a educação e consciência: uma reflexão crítica

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ISSN: 2176-5804 - Vol. 22 - N. 1 - Dez/2017 22 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA REGIONAL - NDIHR www.ufmt.br/ndihr/revista

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Page 1: A Educação e Consciência: Uma Reflexão Crítica

ISSN: 2176-5804 - Vol. 22 - N. 1 - Dez/2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSONÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA REGIONAL - NDIHR

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TESTEMUNHOS HISTÓRICOS: EUCLIDES DA CUNHA (1866-1909) NO PAPEL DE TESTEMUNHA OCULAR

DO MASSACRE EM CANUDOS

Varlei da SilvaUniversidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Departamento de HistóriaInstituto de Filosoa e Ciências Humanas - IFCH

Mestrando em HistóriaPrograma de Pós-Graduação em História

[email protected]

RESUMOO objetivo deste artigo se insere no âmbito das problematizações historiográcas acerca da importância de testemunhos históricos na apreensão de eventos traumáticos do nosso passado recente, nos quais, ocorreram massacres, portanto, crimes cometidos contra a vida de seres humanos indefesos. Nesse aspecto, podemos notar que o dever de História e Memória na esfera das operações historiográcas do presente, tem nos reportado às investigações concernentes às narrativas históricas de testemunhas oculares como a do intelectual Euclides da Cunha (1866-1909), o qual cumpriu a função de jornalista durante a quarta expedição militar enviada a Canudos em 1897. Por outro lado, testemunhos históricos como os do químico Primo Levi (1919-1987), enquanto sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz vem a calhar com as problemáticas que envolvem a elaboração de nova trama historiográca a partir do estudo de testemunhos que retratam crimes cometidos contra a vida humana. Nesse sentido, processos investigativos como estes nos garantem, por meio de questões do presente, o direito de representarmos nossos passados traumáticos à luz das contestações da História e da Memória. E que, por m, é preciso considerar que trabalho desse perl tem contribuído com as reexões concernentes aos Direitos Humanos quanto à defesa e direito à vida.

Palavras-chave: História. Memória. Testemunho.

ABSTRACT

The goal of this paper is included among the historiographical discussions regarding the importance of historical testimonies for the apprehension of traumatic events in our past, where massacres, crimes committed against the lives of defenseless humans. In this respect, we can notice that the duty of History and Remembrance in the sphere of historiographical operations in the present has been leading us to investigations concerning historical narratives of eyewitnesses such as the one told by intellectual Euclides da Cunha (1866-1909), who worked as a journalist during the fourth military expedition sent to Canudos in 1897. In the other hand, historical testimonies such as the one told by chemist Primo Levi (1919-1987) as a survivor of Auschwitz concentration camp come in handy with issues involving the elaboration of new historiographical schemes from the study of testimonies depicting crimes against human life. For that matter, investigative processes like these ensure our right to depict our traumatic past in the light of History and Remembrance and by means of today's questions. Lastly, it must be noted that such studies have been contributing to the debate concerning the Human Rights with respect to the defense of the right to life.

Keywords: History. Memory. Testimony.

NÚCLEO DEDOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO

HISTÓRICA REGIONALNDIHR

UNIVERSIDADE FEDERAL DE

MATO GROSSO

ISSN: 2176-5804 - Vol. 22 - N. 1 - DEZ/2017

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INTRODUÇÃO

Oestudo concernente à obra monumental Os Sertões (1902), a qual é tomada como nosso objeto de

pesquisa, nos conduz à apreensão da experiência pessoal do escritor Euclides da Cunha (1866-1909) do

período de 1897 a 1902. Nesse sentido, é necessário salientarmos nessa introdução que Euclides

testemunhou muitas das cenas que antecederam o desfecho final do Massacre em Canudos (1896-1897). Por outro

lado, vale ressaltar ainda que Euclides ocupou a função de jornalista, e, testemunha ocular daquele evento,

considerado por nós como traumático. Designamo-lo assim, devido ao acontecimento de um dos maiores crimes

cometidos contra a vida de seres humanos indefesos no Brasil. Ademais, nossa abordagem tem nos reportado ao

desdobramento de variáveis teóricas relacionadas ao testemunho por causa da importância em que se configuram os

testemunhos históricos de Euclides no âmbito da nossa pesquisa. Como a obra Os Sertões (1902) se constituem nosso

objeto de pesquisa, vale ressaltar que, dentre outros mais importantes testemunhos históricos de Euclides da Cunha,

consideramos também, a poesia Página Vazia (CUNHA, 1897). Porque, o estudo dela junto ao nosso objeto de

estudo sinaliza a possibilidade de todo um desdobramento da nossa temática que se volta às problematizações que

envolvem a retomada por parte da historiografia acerca de eventos traumáticos do nosso passado.

Dessa forma, nos propusemos nesse artigo refletir a partir do estudo das fontes supracitadas, e, de outros

documentos pertencentes a Euclides investigar com atenção a obra Os Sertões (1902) como um

documento/monumento. Nesse sentido, é possível notar que em Os Sertões, por meio de sua narrativa Euclides

conferiu às vítimas do Massacre em Canudos visibilidade em nosso desenvolvimento humano ao longo da história.

Partindo desse pressuposto não podemos perder de vista que o estudo conferido a Os Sertões nos conduz, por um

lado, ao estudo da trajetória de Euclides da Cunha de 1897 a 1902, e, por outro lado vale considerar que outros

documentos históricos escritos por Euclides neste período levam-nos a retratar acerca do evento traumático do

nosso passado recente que foi Canudos. No encalço das nossas reflexões pudemos notabilizar que inauguramos por

meio das nossas inquietações historiográficas novas perspectivas com o objetivo de se investigar o passado por meio

do conceito caro ao historiador Carlo Ginzburg, o de “paradigma indiciário” (GINZBURG, 1989, 143-179). Dessa

maneira, nos debruçamos sobre os silêncios e lacunas que se escondem nos testemunhos históricos de Euclides da

Cunha, os quais recuperam o contexto da época em que ele obteve várias experiências enquanto testemunha ocular

de um dos maiores eventos limites ocorrido durante nosso período republicano brasileiro.

É preciso notar ainda, portanto, que no âmbito dos debates historiográficos no que diz respeito à

apreensão de eventos traumáticos do nosso passado, nos quais, se sucederam massacres, percebe-se que vem

sendo problematizado na esfera dos debates concernentes à História e à Memória o retrato de eventos em que

houve crimes contra a vida, tanto no Brasil quanto no mundo. Nesse sentido, as argumentações do historiador 1

François Hartog referente a “regime de historicidade” se faz bastante pertinente para se compreender a narrativa

de Euclides, tomada por nós como testemunho histórico, a qual retrata acerca do Massacre em Canudos como um

crime. Nota-se que essa abordagem tornou-se ainda mais relevante ao ser apreendida por meio de

1 Cabe ressaltar que, para Hartog, “Regime de Historicidade” é um instrumento construído pelo historiador. Portanto, uma instrução heurística com a qual o historiador pode trabalhar e abordar conhecimentos historiográficos no âmbito das apreensões concernentes às relações dos tempos históricos, ou seja, a relação entre passado, presente, futuro. Nesse sentido, nota-se que, este conceito, do ponto de vista de Hartog, serve “para refletir sobre outras experiências do tempo”. Além disso, essa posição do autor vem a calhar com a nossa condução temática quanto ao desenvolvimento das problemáticas e investigações acerca dos eventos traumáticos do nosso passado. E, permite-nos abertura teórica e de análise das fontes quanto à apreensão dos crimes cometidos contra a vida humana. Quanto ao conceito de “Regime de Historicidade” consultar a obra: HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Trad. de Andréa Souza de Menezes. Belo Horizonte/MG: Editora Autêntica, 2013.

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questionamentos que nos inquietam no presente em relação ao nosso passado. Além disso, é possível perceber

outros elementos que emergem no âmbito dessa temática e que estão vinculados aos princípios que constam das

conquistas históricas, aos longos do tempos, dos Direitos Humanos, especificamente, no que diz respeito ao

direito e à manutenção da vida humana.

Por meio do nível de violência testemunhado por Euclides no Massacre em Canudos pode-se notar nos

últimos versos da primeira estrofe da poesia Página Vazia (CUNHA, 1897) que Euclides testemunhou cenas

horripilantes. Assim, os versos mencionados nos revelam o seguinte: “Quem volta da região assustadora / De

onde eu venho, revelando, inda na mente, / Muitas cenas do drama comovente / Da guerra despiedada e 2

aterradora” . Com isso, cabe destacar que o resgate deste testemunho através da nossa narrativa nos conduz aos

questionamentos e dúvidas que nos levam a compreender a obra Os Sertões (CUNHA, 1902) como denúncia de

um crime, um crime cometido contra seres humanos, os sertanejos vítimas do Massacre em Canudos.

Por outro lado, é no bojo das reflexões do historiador Carlo Ginzburg que, do ponto de vista da alteridade, 3

ao retratar ele sobre o significado da distância e da perspectiva , notabilizamos que, essa normativa, também tem

nos reportado, de certa maneira, às problemáticas da História e da Memória na apreensão dos eventos 4

traumáticos do nosso “passado recente” . E, nesse aspecto, o Massacre em Canudos, se inclui. Por conseguinte

devemos enfatizar que, à História é considerado o seu papel investigativo, desde as concepções de Jacques Le 5

Goff (1924-2014) , encapsuladas, portanto, por regras epistêmicas, metodologias, e, à Memória, o papel da

lembrança que só faz sentido se pensada em paralelo à existência do esquecimento. Nesse ínterim, vale ainda

atentarmo-nos à expressão de Recoeur: “o esquecimento propõe uma nova significação dada à ideia de

profundidade que a fenomenologia da memória tende a identificar com a distância, com o afastamento, segundo

uma fórmula horizontal da profundidade” (RICOEUR, 2008, p. 424). Dessa maneira, e, como consequência

desse embate teórico emerge a necessidade de se retratar os nossos passados traumáticos à luz das problemáticas

do presente contra o esquecimento tal qual nos assegura Aleida Assmann de que devemos “lembrar para não

repetir” (ASSMANN, 2013, p. 6-7).

Referente à função ocupada por Euclides da Cunha durante o Massacre em Canudos, o texto de Maria Inês

Mudrovcic El debate em torno a la representación de acontecimentos limites del passado reciente: alcances del testimonio como fuente

(MUDROVCIC, 2007) dialoga com nossa problemática, justamente, no retrato teórico acerca do conceito de

testemunha ocular. Segundo a autora, toda testemunha, é, antes, testemunha ocular, ou seja, para ela: “Tal como

señala Arendt, tanto la palabra griega istoría como eidenai que significa saber, derivan de la raíz id, ver y 6

originalmente istor significo testigo ocular” . Nesse sentido vale atentarmos aos argumentos de Roberto Ventura

(1957-2002), o qual, retrata que, Euclides da Cunha durante o período em que ficara em Canudos “presenciou

pouco menos de três semanas de luta, ao todo dezoito dias, de 16 de setembro até 3 de outubro” (VENTURA,

2003, p. 174).

Ademais, por meio das nossas investigações é possível averiguar que em relação ao Massacre em Canudos a

poesia Página Vazia (CUNHA, 1897) e a obra Os Sertões (CUNHA, 1902) se configuram como marcos cruciais na

2Essa poesia pode ser encontrada através do site do INSTITUTO MOREIRA SALLES (Brasil). Euclides da Cunha. Cadernos de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, n. 13 e 14, 2002. p. 160-161.

Disponível em: <http://issuu.com/ims_instituto_moreira_salles/docs/clb_-_euclides_da_cunha> . Acesso em: 04 agos. 2015. Ou ainda no livro: BERNUCCI, Leopoldo M. e HARDMAN, Francisco Foot. Euclides da Cunha: Poesia Reunida. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 277.3Quanto a este assunto consultar os ensaios 1. Estranhamento, 7. Distância e perspectiva: Duas metáforas e 8. Matar um mandarim chinês: as implicações morais da distância, os quais, constam do livro: GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove Reflexões sobre a distância. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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4Ao que se refere a “passado recente”, tomamos o argumento de María Inés Mudrovcic acerca de “passado traumático”, para explicá-lo. Logo, para a autora “passado recente” é o desdobramento conceitual de passados traumáticos. Por outro lado, Mudrovcic refere-se a passados extremos, passados que não passam por ter causado grande poder de destruição que chocara muitas pessoas, e, ainda mais, as testemunhas oculares e sobreviventes de determinado evento limite. Consultar: MUDROVCIC, María Inés (editora). Pasados em conflicto: Representación, mito y memoria. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2009. p. 14.5Vale lembrar que no texto “Memória” de autoria do historiador Jacques Le Goff (1924-2014), este intelectual, utiliza-se dos conceitos do antropólogo britânico Siegfried Frederick Nadel (1903-1956) no que se refere ao NUPE (grupo étnico da Nigéria), para o qual, Nadel vai retratar que à História cabe o seu papel: de objetiva. Neste aspecto é importante conferir as palavras de Nadel: “a série dos factos que nós investigadores, descrevemos e estabelecemos com base em certos critérios “objectivos” universal no que respeita às suas relações e sucessão”. NADEL, S. F. A Black Byzantium.The Kingdom of Nupe in Nigeria, Oxford University Press, London; ed. Oxford University Press, London 1969.p. 72. Conferir esta passagem em: Enciclopedia EINAUDI, Vol. 1. Memória, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1997. p. 14.6Tradução – “Tal como assinala Arendt, tanto a palavra grega istória como eidenai que significa saber, derivam da raiz ir, ver, e originalmente isto significa testemunha ocular”. Consultar: MUDROVCIC, María Inés. El debate em torno a la representación de acontecimientos límites del pasado reciente: alcances del testimonio como fuente. Diánoia. Vol. LII, n° 59 México Nov. 2007. p . 131.7Atribuímos ao Massacre em Canudos (1896-1897) o conceito de “evento limite” porque os estudos do literato Marcio Seligmann-Silva acerca das problemáticas referentes à Catástrofe e Representação garante-nos oportunidade no aprofundamento nos estudos que se voltam à análise da linguagem dos sobreviventes de guerras por todo o mundo. Nesse aspecto, se inclui o retrato de testemunhas oculares e outros sobreviventes de campos de concentração nazistas durante o período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). É evidente que personagens históricos como a do químico italiano Primo Levi (1919-1987) e Euclides da Cunha (1866-1909) ajuda-nos a nos situar historicamente diante estes eventos estarrecedores, portanto, denominados, eventos limites. Dessa forma é dentro do conceito de testemunhas oculares que conseguimos nos debruçar sobre as narrativas históricas destes personagens, os quais nos ajudam a investigar dentro de um contexto maior, os crimes praticados pelos vencedores contra a vida dos vencidos.8Cabe assinalar que valemos da assertiva de que é a temática que nos exige um corpus documental, no qual, nos propomos debruçar em nossos estudos, porque, segundo Edgar de Decca “É a exigência documental que funda o acontecimento e não o contrário, isto é, a sua narrativa”. Quanto a esta definição consultar: DECCA, Edgar Salvadori de. Os intelectuais e a memória do Holocausto. In: LOPES, Marco Antônio (org.). Grandes nomes da história intelectual. São Paulo: Contexto, 2003. p. 72.

vida de Euclides. Porque, estes documentos retratam acerca da vida dos sertanejos os quais permaneceram

relegados à mercê das condições básicas de sobrevivência justamente naquele ambiente marcado pela fome,

miséria, seca. Além disso, na condição de indefesos foram humilhados, violentados, massacrados. Dessa maneira,

os testemunhos históricos de Euclides nos possibilitam, ainda, estudar acerca da ferida identitária nacional

marcada pelo desdobramento da Guerra de Canudos que foi representada por Euclides da Cunha em suas

narrativas. Portanto, essa inquietação nos conduz aos questionamentos acerca daquele Massacre em que

contemplamos as vozes silenciadas dos canudenses por meio da violência e coerção instaurada pelos

perpetradores no sertão baiano no final do século XIX. Portanto, os brasileiros que estiveram acometidos às

ordens dos militares, no arraial de Canudos, no início da nossa República, tornaram-se personagens fundamentais

de um crime cometido contra seres humanos indefesos, ou seja, vítimas de um acontecimento que tomou

comoção nacional devido ao massacre brutal dos homens, mulheres e crianças daquele sertão da Bahia.

Diante essa perspectiva é preciso notar ainda que o estudo referente a obra Os Sertões em nosso estudo e

que contempla a trajetória intelectual de Euclides da Cunha, o qual nos reporta à apreensão do Massacre ocorrido 7

no evento limite de Canudos ajuda-nos a avaliar com bastante atenção como se constituem primordiais os

questionamentos que elaboramos no presente para que junto às indagações da academia e da esfera pública 8

possamos trabalhar com a exigência documental que a temática exige convergindo-nos a uma análise mais

onisciente e precisa do tema para o qual estamos voltados. Dessa forma, imbuídos da necessidade em analisar

minuciosamente os documentos que a temática exige é possível conferir à obra Os Sertões (1902) o seu papel de

fonte histórica primordial e monumental no âmbito dos testemunhos históricos de Euclides da Cunha.

Neste encalço vale destacarmos que, trabalho dessa natureza, certamente, requer manuseio com corpus

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documental específico, porque, além das obras citadas temos a Caderneta de campo (CUNHA, 1897), e, Canudos

(Diário de uma expedição) (CUNHA, 1897), o que nos leva, contudo, às observações metodológicas e embasamento

teórico junto à análise de outros documentos referentes a Euclides e que sustentam nossa narrativa. Vale também

ressaltar nesse sentido, inspirações teóricas como as do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), este, 9

particularmente, no que refere à “tarefa escovar a história a contrapelo” onde nos proporciona condições para

que possamos reler produções historiográficas e as fontes por meio dessa vertente que não deixa de convergir às 10

questões históricas referentes a testemunho, passados traumáticos, testemunha ocular.

Logo, a tarefa da História, da Memória, agregam ainda outras inspirações voltadas às questões colocadas no

âmbito da historiografia para se investigar o nosso objeto de estudo, a obra Os Sertões. Ou seja, essa preocupação

e estímulo se tece direcionando-nos ao uso da literatura, filosofia, psicologia, memória e de naturezas outras que

nos reportam às problematizações propostas por outras vertentes em relação às interpretações já consagradas

quanto a Canudos e que fazem alusão às vítimas de morte a que foram sujeitados aqueles sertanejos. Isso nos

redireciona ao aporte de indagações que convergem na busca dos silêncios, rastros e resquícios no intuito de

levantarmos discussões no âmbito das problemáticas concernentes aos Direitos humanos.

A importância dos testemunhos históricos do escritor Euclides da Cunha (1866-1909) no âmbito da historiografia

As pistas deixadas por Euclides da Cunha (1866-1909) na escrita da obra Os Sertões (1902), e, em outros

testemunhos históricos de sua autoria se configuram de grande importância no encalço dos estudos

historiográficos referentes a crimes cometidos contra seres humanos em nosso passado recente. Nesse

sentido, vale assinalarmos que o Massacre dos indefesos de Canudos se constitui bastante pertinente no

âmbito das discussões de eventos traumáticos, justamente, ao situarmos a trajetória de Euclides da Cunha de

1897 a 1902 no desdobramento investigativo dos nossos estudos referentes a Os Sertões. Porque, é neste

período que o autor saiu do Rio de Janeiro e foi até a Bahia, portanto, em poucas semanas que lá ficou pôde

testemunhar o Massacre em Canudos. Cunha voltara de lá traumatizado. Na volta passou pela Bahia, Rio de

Janeiro, São Paulo, empós, seguiu para São José do Rio Pardo, interior do Estado de São Paulo, para

acompanhar a reconstrução de uma ponte metálica. (VENTURA, 2003, 183). Assim, cabe considerar que,

após cinco anos de escrita Euclides estava com a obra Os Sertões pronta a ser publicada.

Dessa maneira, é no bojo das problematizações acerca dos testemunhos históricos que o texto de Carlo

Ginzburg referente ao conceito de “paradigma indiciário”, modelo epistemológico que surgiu na esfera das

ciências humanas no final do século XIX, se configura bastante pertinente à nossa narrativa. Logo, não podemos

perder de vista que este conceito tão caro a Ginzburg, apresenta elementos que convergem nas problemáticas que

circundam as investigações referentes à testemunha ocular Euclides da Cunha, a qual testemunhou episódios

horripilantes do Massacre em Canudos. Neste aspecto ao voltarmo-nos às contribuições da historiografia para

com a nossa temática vale salientarmos que para Ginzburg:

Em suma, pode-se falar de paradigma indiciário ou divinatório, dirigido, segundo as formas de

9Para uma compreensão mais profunda acerca deste conceito consultar: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. p. 225.10A este respeito consultar: HUYSSEN, Andreas. Usos tradicionais do discurso sobre o Holocausto e o colonialismo. In: HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2014. p. 184.

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saber, para o passado, o presente ou o futuro. Para o futuro – e tinha-se a arte divinatória em sentido próprio - ; para o passado, o presente e o futuro – e tinha-se a semiótica médica na sua dupla face, diagnóstica e prognóstica - ; para o passado - e tinha a jurisprudência. Mas, por trás desse paradigma indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto talvez mais antigo da história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa (GINZBURG, 1989, p. 154).

Orientados por meio das perspectivas de Ginzburg referente a “paradigma indiciário” vale destacarmos

ainda conforme o autor “a análise desse paradigma, amplamente operante de fato, ainda que não teorizado

explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre racionalismo e irracionalismo”

(GINZBURG, 1989, p. 143). Dessa forma, essa assertiva não deixa de nos reportar a outro texto Unus testis - O

extermínio dos judeus e o princípio de realidade (2006), o qual foi escrito por Ginzburg ao químico italiano Primo Levi

(1919-1987). Neste, o autor reflete acerca das representações históricas do nosso passado recente em que

podemos incluir os nossos passados traumáticos.

No seguimento desta vertente cabe assinalar que, do ponto de vista teórico é preciso notar três elementos

abordados neste texto de Carlo Ginzburg, os quais, de certa maneira, nos auxiliam a refletir acerca da função de

Euclides da Cunha como testemunha ocular do Massacre em Canudos. O primeiro se configura quando

Ginzburg menciona o massacre da comunidade judaica de La Baume ocorrido em 16 de maio de 1348 (no qual ele

assinala o grau de violência praticado às vítimas) no sul da França. Este evento se deu justamente no auge da Peste

Negra pela Europa, e, sucumbiu com boa parte da população européia. Ou seja, o retrato por parte de Ginzburg

quanto à questão da intolerância e hostilidade contra os judeus ao serem culpabilizados pela Peste Negra é

evidente, e que, merece atenção quando relacionamos às perseguições aos judeus vítimas das atrocidades

humanas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Nesse sentido, a violência perpetrada às vítimas do massacre da comunidade judaica de La Baume, e, a

forma brutal a que foram massacrados os indefesos de Canudos, leva-nos a atentar-nos quanto à violência e a

perseguição contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Além disso, é importante

considerar que este período é um marco por ter sucumbido com um elevado número de vidas humanas se

caracterizando, portanto num crime humanitário de grande proporção. Neste aspecto, as palavras de Andréas

Huyssen o qual defende que o Holocausto tornara-nos referência para que possamos tratar acerca de outros

testemunhos históricos de catástrofes em que ocorreu exterminação em massa de seres humanos, nos leva à

reflexão de quanto é necessário analisarmos a intenção, a necessidade e o ponto de vista dos escritores destes

testemunhos.

Assim, testemunhos históricos de eventos limites, de certa forma, dialogam-se seja em suas temporalidades

específicas seja como forma de denunciar as atrocidades e arbitrariedades ocorridas em momentos específicos ao

longo da história. Por isso notamos que é uma forma de contemplarmos várias expressões referentes ao direito à

vida, ainda mais, expressa por testemunhas oculares. Porque estas nos legaram testemunhos e com os quais, anos

mais tarde, estes testemunhos puderam ser problematizados por meio da História e da Memória.

Ao destacarmos o segundo elemento no texto de Ginzburg, nossa atenção recai sobre a importância de

haver apenas um sobrevivente no extermínio da comunidade judaica em La Baume, “um homem que dez dias

antes tinha partido para Avignon, convocado pela rainha Joana. Ele deixou uma comovida recordação do

acontecimento em poucas linhas escritas num exemplar da Torá, hoje conservado na Österreichische

Nationalbibliothek de Viena” (GINZBURG, 2007, p. 210-211). Nota-se então que, diante esta análise podemos

situar Euclides da Cunha em nossa narrativa, uma personagem que por meio das obras Página Vazia (CUNHA,

1897) e Os Sertões (CUNHA, 1902), nos deixou testemunhos históricos que recuperam os acontecimentos de

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Canudos, e, com tais testemunhos podemos, hoje, ressignificar a Guerra de Canudos como Massacre em

Canudos, portanto, um crime. Nessa oportunidade, podemos conceber o Massacre em Canudos, um crime

cometido contra vidas humanas indefesas no nordeste da Bahia em fins do século XIX.

Já o terceiro elemento, refere-se ao posicionamento do autor de que “os princípios jurídicos não podem ser 11

transferidos com todo o seu peso para a pesquisa histórica” porque, como sabemos, enquanto para o judiciário

são necessárias mais de uma testemunha para o processo de sentença; em contrapartida, para a historiografia uma

única testemunha nos possibilita rever toda uma constituição argumentativa e de provas. Dessa maneira, é no

âmbito desta assertiva que as narrativas históricas, frutos de testemunho, como a do escritor Euclides da Cunha,

enquanto este ocupou a função de jornalista e testemunha ocular durante a quarta expedição militar enviada a

Canudos, e, a do químico Primo Levi enquanto testemunha ocular e sobrevivente do campo de concentração em

Auschwitz tem nos possibilitado problematizar novas questões historiográficas a partir do estudo das narrativas

destes personagens históricos. É interessante observar que processos investigativos como estes que

apresentamos nos garantem o direito de representarmos nossos passados traumáticos à luz das contestações da

História e da Memória. Ou seja, nota-se ainda que trabalho desse perfil estimule a garantia de contribuições junto

às conquistas, ao longo dos tempos, dos Direitos Humanos. Porque, hoje, ao que se referem aos Direitos

Humanos, estes tem ganhado cada vez mais espaço nos debates da esfera pública, e, em defesa da vida.

Ainda no arcabouço do terceiro elemento referimo-nos ao argumento notável que Ginzburg enfatizou

quanto à importância de nos atermos às pistas, aos vestígios em nossas investigações históricas. Vale assinalar que,

ele direcionou estes argumentos ao historiador norte americano Hayden White. Logo, é preciso notar que este

momento se configurou, quando White, contra-argumentou as reflexões de Pierre Emmanuel Vidal-Naquet

(1930-2006), o qual escreveu o quinto ensaio Os Assassinos da Memória (VIDAL-NAQUET, 1987) para refutar a

tese do literato e negacionista do Holocausto, Robert Faurisson. Vale ainda lembrar que Faurisson é reconhecido

por afirmar que os campos de extermínio Nazistas não existiram. Ou seja, ele nega, portanto, a existência e

realidade dos massacres hitlerista.

Nesse sentido, cabe perguntar: Por que trazer este diálogo a este texto? Porque diante a nossa problemática

historiográfica que envolve a representação de passados traumáticos, o diálogo entre Vidal-Naquet e Hayden

White nos conduz a contemplar à análise e o estudo atento dos vestígios históricos legados por Euclides da Cunha

em sua obra maior, Os Sertões (1902). Por outro lado, é importante considerar os estudos do literato Andreas

Huyssen ao referir-se a outros massacres do nosso passado, ele considera exemplar o Holocausto devido ao

número de vítimas massacradas. Neste aspecto, a figura de Primo Levi se constitui muito importante devido às

suas obras que, para nós, também são testemunhos históricos do que ele testemunhou em Auschwitz. Cabe

destacarmos ainda que, Levi, ao concebermo-lo uma vítima de evento estarrecedor como Euclides, Levi carrega

mais uma experiência, a de sobrevivente. Assim, tanto Levi quanto Euclides legaram-nos importantes

testemunhos históricos, os quais, não deixam de evocar o retrato das vítimas submetidas a um crime cometido

contra a vida humana.

11Consultar: GINZBURG, Carlo. Unus testis – O extermínio dos judeus e o princípio de realidade. In: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Trad. de Rosa Freire d' Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 215.

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O importante papel da Memória na órbita dos estudos referentes aos testemunhos históricos de Euclides da Cunha (1866-1909)

Em nosso processo investigativo referente à poesia Página Vazia (CUNHA, 1897), e, mais especificamente

à obra Os Sertões (CUNHA, 1902) emergiu a necessidade de atentarmo-nos aos debates referentes à historiografia

os quais em nossos estudos se abrem ao diálogo com a filosofia, literatura, na apreensão dos nossos passados

traumáticos. Nesta assertiva vê-se que um dos nossos objetivos se configura, portanto, no alerta de que é preciso

discutir primeiramente na academia aquilo que consiste em apreender o nosso passado traumático por meio de

questionamentos do presente e que muito tem se valido dos estudos de François Hartog em relação a regime de 12

historicidade. Além de Hartog, Pierre Nora também se configura como historiador fundamental em nosso

estudo porque podemos nos atentar em nossa narrativa, à importância dos conceitos e suas variáveis

concernentes, à História e à Memória.

Por outro lado, é no espaço das reflexões referentes às questões metodológicas e problematizações

historiográficas referentes à obra Os Sertões e à Euclides da Cunha que procuramos nos abrir às indagações da

esfera pública e que vai ao encontro das reflexões acerca dos Direitos Humanos. Assim, é perceptível, portanto

que, todas estas problemáticas nos afetam em nossa operação historiográfica, ou seja, na escrita da História. Uma

das reflexões do historiador François Hartog que muito nos chama a atenção é: “Finalmente, para que surja a

questão da narrativa, basta que o historiador acabe por se fazer esta simples pergunta que foi soprada por Michel

de Certeau: o que é que eu estou fazendo quando faço história?” (HARTOG, 1998, p. 194).

No encalço da pergunta de Hartog é preciso considerar que o estudo da obra Os Sertões que nos leva ao

retrato do evento limite Massacre em Canudos (1896-1897) o qual foi detalhado por parte de Euclides da Cunha

em Os Sertões (1902) nos reporta à apreensão dessa obra com maior atenção por meio do nosso trabalho da 13

História com a Memória , em que, situamos a escrita de Euclides da Cunha como uma forma de defender a vida

humana. Essa abordagem toma corpo justamente na esfera das discussões acerca dos crimes cometidos contra a

vida humana, ocorridos, portanto, em nosso passado recente. Dessa maneira o diálogo que estabelecemos da

História com a Literatura e a Memória, nos leva, também, em nosso ofício historiográfico, a repensar na

relevância do conceito de alteridade. Este conceito é concebido, portanto, como o outro, o diferente, o estranho,

onde, nos baseamos nas reflexões do historiador Carlo Ginzburg no trato desse assunto. Assim, o tempo

cronológico e o espaço são peças fundamentais nesta abordagem em que não deixamos de refletir a respeito das

problemáticas desenvolvidas por Ginzburg no que se refere aos temas: distância, perspectiva, estranhamento, 14

cultura histórica que estão envoltos no desdobramento emblemático do conceito de alteridade.

Ademais, vale observarmos que para efeito de memória Vidal-Naquet republicou o mesmo ensaio Os

assassinos da memória (VIDAL-NAQUET, 1987) em um pequeno volume intitulado: Os assassinos da memória: um

12 Fazemos referência a Pierre Nora aqui, porque, além da sua contribuição com o retrato do conceito de História e Memória, também, consideramos a sua atuação diante a historiografia hoje por meio da “Associação Liberdade para a História”, a qual é presidida por ele desde 2005 quando foi inaugurada na França. 13 Vale destacar que utilizamos como reflexões norteadoras no trato da História e da Memória os textos de Jacques Le Goff (1924-2014) e Pierre Nora. Esta escolha proposital se deu devido a estes renomados historiadores se configurarem como representantes da terceira geração da Escola dos Annales na França, durante a década de 1970. Conferir os textos: LE GOFF, Jacques. História. Enciclopedia EINAUDI, Vol. 1, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1997.; LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopedia EINAUDI, Vol. 1, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1997 e NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. de Yara Aun Khoury. Projeto História. São Paulo, (10), dez. 1993.14 Consultar o livro: GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove Reflexões sobre a distância. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Page 10: A Educação e Consciência: Uma Reflexão Crítica

Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo (VIDAL-NAQUET, 1988) o qual dedicara à sua mãe Marquerite 15

Valabrègue que fora morta em Auschwitz em 1944 . Conforme Ginzburg, diante da experiência de Vidal-Naquet

com os documentos, depoimentos, e, no ensejo de escrever o livro este se deparou com a questão concernente ao

terreno da história positivista onde a mentira e o erro defendido por Faurisson implicam em elementos como

realidade e provas. Isto, para Hayden White, deve nos levar ao acesso da interpretação eficaz, precisa, portanto,

verdadeira (GINZBURG, 2007, p. 227). Em contrapartida, Ginzburg, se valida do discurso de que essa eficácia se

aproxima de ideologias como o nazi-fascismo e o que importa são as pistas, as evidências, os rastros. Por

conseguinte, e, neste ínterim, a assertiva de Ginzburg é plausível para nós devido à importância do testemunho

histórico de Euclides referente à poesia Página Vazia (CUNHA, 1897), e, da obra Os Sertões (CUNHA, 1902) a

qual se configura como nosso objeto de estudo em nossas investigações. É preciso notar ainda que as

problemáticas que envolvem os desdobramentos da nossa temática vinculada à trajetória intelectual de 1897 a

1902 da testemunha ocular Euclides da Cunha nos conduziram ao estudo de outras fontes como a Caderneta de

campo (CUNHA, 1897), outras reportagens escritas por Euclides da Cunha e que foram enviadas ao jornal O

Estado de S. Paulo. Assim, vale atentarmos às perspectivas de Ginzburg:

Outras implicações, de ordem mais explicitamente teórica, foram delineadas por Vidal-Naquet numa carta a Luce Giard incluída num volume em memória de Michel de Certeau lançado faz uns anos. L'écriture de l'histoire [A escrita da história], publicado por Certeau em 1975, foi (escrevia Vidal-Naquet) um livro importante, que contribuiu para arranhar a orgulhosa inocência dos historiadores: “Desde então tomamos consciência do fato de que o historiador escreve, produz um espaço e um tempo, embora estando ele próprio inserido num espaço e num tempo”. Mas (continuava Vidal-Naquet) não devemos nos desfazer da velha noção de “realidade” no sentido, evocado por Ranke um século antes, daquilo “que propriamente aconteceu”... (GINZBURG, 2007, p. 216).

O que nos cabe por ora observar neste debate teórico e que vem a calhar com nossa pesquisa é que White ao

se distanciar de Vidal-Naquet ao final do excerto de autoria do historiador Carlo Ginzburg, observa-se um desvio

às aspirações de White por parte de Vidal-Naquet. Porque ao considerar a objetividade histórica do século XIX,

Naquet, se contrapõe a White justamente ao cuidado conferido por este à negação quanto aos princípios que

levariam a rejeitar a concepção histórica que estivesse vinculada às ideologias fascistas.

Dessa maneira, diante essa problemática teórica, aparentemente complexa, mas que, envolve as variáveis

concernentes à representação do Holocausto, por parte dos historiadores, em que, a interpretação das fontes se

torna essencial, nota-se que, por outro lado essa normativa inspira-nos à busca de representar outros passados

traumáticos e que, no nosso caso, por meio do estudo dos testemunhos históricos de Euclides é que foi possível

resgatarmos o Massacre ocorrido em Canudos. Teoricamente, ainda é interessante observar que, do ponto de

vista da História e da Memória, a partir de 1970 com a inauguração da Terceira Geração dos Annales,

considerando as concepções de Pierre Nora e Jacques Le Goff (1924-2014) conseguimos observar que o corpus

documental que selecionamos, o qual não deixa de retratar o Massacre em Canudos por meio dos vestígios,

rastros, sinais deixados pela testemunha ocular Euclides da Cunha foi estudado e investigado levando-se em

consideração os “novos problemas”, as “novas abordagens” e os “novos objetos”. Neste âmbito procuramos

trazer à luz e como pano de fundo em nosso estudo, as problemáticas e discussões que emergiram, retrocedendo

um pouco, a 1968, com as mudanças e contribuições historiográficas estimuladas a partir do maio de 1968 na

15 A respeito desse assunto, no intuito de compreensão mais detalhada, consultar: VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Trad. de Marina Appenzeller. Campinas/SP: Papirus, 1988.

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Page 11: A Educação e Consciência: Uma Reflexão Crítica

França.

Portanto, os argumentos de White no âmbito das concepções propostas a partir de 1970 revelam que ao

partir ele da defesa em relação à eficácia na representação histórica o enfatiza que é necessário tomarmos cuidado

com os nossos sentimentos pessoais. Porque estes nos levariam a não rejeitar a concepção histórica que estivesse

vinculada a ideologia fascista. Portanto, White, em nossa lógica, vai se expressar como contra argumento em

outro ensaio tomando o modernismo como parâmetro em relação às mudanças concernentes ao século XX:

Looked at in this way, howener, modernism appears, less as a rejection of the realist Project and a denial of history, than as an anticipation of a new form of historical reality, a reality that included, among its supposedly unimaginable, unthinkable, and unspeakable aspects, the phenomena of Hitlerism, the Final Solution, total war, nuclear contamination, mass starvation, and ecological suicide; a profound sense of the incapacity of our sciences to explain, let alone control or contain these; and a growing awareness of the incapacity of our tradicional modes of

16representation even to describe them adequately .

Nesse sentido o argumento de White referente ao modernismo não invalida outras contribuições do

próprio autor justamente ao que ele retrata acerca da relação e apreço que mantêm aos “pensadores históricos

magistrais do século XIX”. Porque estes representam “a elaboração das possibilidades de prefiguração

tropológica do campo histórico contidas na linguagem poética em geral” (WHITE, 1995: 14). Dessa maneira, o

que é interessante destacar ainda à luz das problemáticas que nos conduzem à interpretação das fontes, é a

possibilidade de que a defesa do historiador Carlo Ginzburg quanto às pistas, vestígios, paradigma indiciário deve

ser levado em consideração na investigação da obra Os Sertões (1902) do escritor Euclides da Cunha como

testemunho histórico principal em nossa abordagem. Dessa maneira, empós, é importante destacar que foi

somente após nossos estudos, nossas problematizações e reflexões quanto a terceira parte da obra Os Sertões “A

Luta” pudemos ler em suas lacunas e silêncios um monumento memorialístico que faz referência às vítimas do

Massacre em Canudos.

A importância de narrativas históricas que, por meio da concepção de testemunhos históricos, retratam crimes cometidos contra seres humanos

Mergulhar no universo de Os Sertões (CUNHA, 1902) possibilitou-nos descobrir a grandiosidade da obra

literária e monumental em que ela se constitui. Além de agregar o retrato de outros documentos escritos por

Euclides da Cunha (1866-1909), durante o período em que ele foi à função de jornalista cobrir a Guerra de

Canudos, nota-se que Os Sertões se configura de grande alcance, nacional, e, internacionalmente. Ademais,

podemos concebê-la como um monumento justamente por fazer memória às vítimas do Massacre em Canudos.

Além de outros vestígios e rastros que este monumento carrega é possível ainda atentarmo-nos aos dois brasis: o

do sul e do norte como o próprio Euclides retrata na obra. E que, vale observar também que, essa assertiva pode

ser encontrada no diário do autor Canudos (Diário de uma Expedição) (CUNHA, 1897).

16 Tradução - "Visto desse modo, contudo, o modernismo aparece menos como uma rejeição do projeto realista e da negação da história do que uma antecipação de uma nova forma de realidade histórica; uma realidade que inclui, entre seus aspectos supostamente inimagináveis, impensáveis e indizíveis, o fenômeno do Hitlerismo, a Solução Final, guerra total, contaminação nuclear, fome generalizada, e suicídio ecológico; um profundo senso de incapacidade de nossas ciências para explicar, muito menos para controlar ou contê-los; e um crescente receio da incapacidade de nossos modos de representação até mesmo para descrevê-los adequadamente". WHITE, Hayden. Historical Emplotment and the Problem of Truth. In: FRIEDLANDER, Saul. (Edited by). Probing the Limits of Representation: Nazism and the “Final Solution”. Canadá/E.U.A: Harvard University Press; London/England: Cambridge, Massachusetts, 1992. p. 51.

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Page 12: A Educação e Consciência: Uma Reflexão Crítica

Por outro lado, vale destacarmos que as distâncias entre as pessoas de Canudos e do Rio de Janeiro cravadas

por meio de seus costumes e hábitos locais nos reportam a pensar que aquelas diferenças, aqueles estranhamentos

conforme ressalta Ginzburg no retrato sobre aspectos culturais no âmbito da historiografia e que marcam o 17

mundo ocidental , não se dissipara na relação que lemos entre as pessoas do Rio de Janeiro e Canudos. Porque em

nossa narrativa procuramos não perder de vista o retrato acerca da realidade de Canudos, e, da capital do Brasil

naquele momento histórico, o Rio de Janeiro. Ou seja, isso ficaria mais explícito se considerássemos uma câmera

posicionada no alto estando voltada ao Brasil durante o período de 1896-1897. Nesta metáfora podemos notar

que se a resolução da câmera estivesse voltada para Canudos, certamente, quando aberta um pouco mais a

resolução desta, a mesma não deixaria de captar em suas singularidades a reação de toda nação brasileira diante os

episódios submetidos àquele evento limite. Ademais, o que queremos destacar é que as singularidades culturais,

mapeadas, e, referentes a Canudos, revelam em nosso estudo por meio dos nossos questionamentos referentes ao

presente, as fissuras dos grupos culturais, políticos e econômicos que as compuseram. Nesse sentido cabe aqui

considerarmos o que a historiadora Jacy Alves de Seixas nos chama atenção em relação à memória e à história

tomando como ponto de análise a apreensão teórica por parte dos intelectuais no espaço acadêmico, os quais

procuram se valer dos aportes da História e da Memória no que se refere à representação de eventos do passado,

dos povos específicos e suas culturas. Para Seixas,

se as diferenças são muitas entre os muitos autores que se debruçaram sobre questões relativas à memória e à história, há um acordo selado entre todos: a memória possui um primeiro e bem definido patamar espaço-temporal: a memória é desencadeada de um lugar, e este situa-se no presente. A memória do passado revela assim, de imediato, sua incontornável inscrição original: o tempo presente (SEIXAS, 2008, p. 20).

Desse modo, ao partir desse pressuposto para retratarmos os eventos traumáticos do nosso passado, vale

atentarmos que a narrativa de Primo Levi (1919-1987), o qual ocupou a função de testemunha ocular e

sobrevivente do Holocausto, nessa medida, vem a calhar com nossas investigações referentes à obra Os Sertões

(CUNHA, 1902), e, a Euclides da Cunha. Porque, pudemos notabilizar a significativa contribuição das narrativas

de Levi com a nossa temática, justamente, quando tomamos conhecimento das suas obras principais É isto um

homem? (LEVI, 1974) e Os Afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades (LEVI, 1986), as quais,

muito corroboraram com os estudos sobre testemunho, sobreviventes de eventos limites e catástrofes. Por outro

lado, estes testemunhos históricos dialogam com a assertiva de Hannah Arendt (1906-1975) quanto à importância 18

de tornar público as experiências vividas, vir a público, divulgar nossa experiência individual ao mundo. Além

disso, os mesmos oferece-nos grande contribuição ao fomento das discussões sobre trauma, memória, história,

vinculados, portanto, às questões de reparação e garantia dos Direitos Humanos às vítimas dos eventos

traumáticos. Dessa forma, nota-se que intervenções dessa natureza no espaço público por parte das testemunhas

oculares nos reportam às reflexões quanto ao nosso dever de historiador, ou seja, de que devemos nos atentar à

construção do nosso discurso que recaem nas problematizações convergentes à nossa operação historiográfica e 19

que se coadunam em nosso horizonte de expectativas .

17O Historiador Carlo Ginzburg logo no prefácio do seu livro retrata a importância da cultura na compreensão do outro, o qual, muitas vezes é um composto étnico e cultural totalmente diferente de nós. Nesse aspecto, essa experiência exige de nós um olhar diferenciado. É interessante notar que Ginzburg sabe que ao retratar isso não estaria nos contando nada de inédito, ou seja, o que lhe interessa é como o tema é tratado por intelectuais. Consultar: GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove Reflexões sobre a distância. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 11-41.18Quanto à sugestão de Arendt se faz necessário consultar a obra: ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo/Introdução de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. p. 59.19 Vale lembrar que a respeito da expressão “horizonte de expectativa” nota-se que este é um conceito utilizado pelo historiador Reinhart

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Page 13: A Educação e Consciência: Uma Reflexão Crítica

Dessa maneira, ainda quanto à nossa investigação que em nossa abordagem se volta ao testemunho

histórico do escritor Euclides da Cunha, a obra Os Sertões (1902) - em específico ao que concerne à sua terceira

parte “A Luta” - é preciso destacar ainda que esta obra monumental merece um estudo mais aprofundado no

âmbito das problemáticas referentes à historiografia que levantamos por meio da nossa pesquisa. Nesse encalço,

percebemos que as reflexões do historiador americano Hayden White vêm a calhar com as nossas problemáticas

referente à nossa operação historiográfica porque o autor retrata acerca da linguagem que é um dos elementos

fundamentais a ser investigado em testemunhos históricos e nas narrativas históricas de testemunhas oculares de

eventos limites. Neste aspecto é importante observar, então, os argumentos do autor quanto às nossas narrativas

históricas:Elas conseguem dar sentido a conjuntos de acontecimentos passados, além e acima de qualquer compreensão que forneçam, recorrendo a supostas leis causais, mediante a exploração das similaridades metafóricas entre os conjuntos de acontecimentos reais e as estruturas convencionais das nossas ficções. Pela própria constituição de um conjunto de eventos com vistas a criar com eles uma estória compreensível, o historiador impõe a esses eventos o significado simbólico de uma estrutura de enredo compreensível. Os historiadores talvez não gostam de pensar que suas obras são traduções do fato em ficções; mas este é um dos efeitos das suas obras. Ao sugerir enredos alternativos de uma dada sequência de eventos históricos, os historiadores fornecem aos eventos históricos todos os possíveis significados de que a arte da literatura da sua cultura é capaz de dotá-los (WHITE, 1994, p. 108).

Assim, diante o excerto mencionado, e, do ponto de vista da história, cabe a nós tentarmos responder ao

questionamento proposto por Hartog e que faz parte dessa teia argumentativa referente à historiografia, a qual

está imbricada nas investigações referentes aos crimes cometidos contra seres humanos indefesos. Ademais,

devemos destacar que, é neste arcabouço argumentativo que procuramos situar nossos estudos, os quais,

retomam o Massacre em Canudos com preocupações que se voltam aos vencidos da história. Nesse ínterim vale

ainda ressaltar a importância quanto ao norteio epistemológico que o filósofo Walter Benjamin (1892-1940)

propõe aos historiadores na escrita da história e que faz referência à “História a Contrapelo” (BENJAMIN, 1985).

Nesse sentido quanto a essa tratativa vale destacar o que o saudoso historiador Edgar de Decca endossa em seu

texto História a Contrapelo: sobre vencedores y vencidos (DECCA, 2013) onde é possível encontrar argumentos que

dialogam com o estudo do nosso objeto de estudo o qual nos leva a recuperar a narrativa de Canudos deixada a

nós por Euclides da Cunha. Vale assinalarmos então que é na obra Os Sertões (1902), em sua terceira parte que,

Euclides retrata claramente o Massacre dos sertanejos no Sertão da Bahia. Portanto, é preciso salientar que,

aquelas vítimas foram massacradas pelos vencedores tornando-se vencidos que devem ser investigadas pela

História que revolve e pela memória que rememora. Assim, nas palavras de Decca, quanto à interpretação do

passado,el historiador imaginado por Benjamin debe tener sus hipótesis explicativas y sus modelos de interpretación, pero no debe pretender producir outro discurso histórico tan exhaustivo y coherente como aquel al que se opone. Si el conocimiento del passado no es um fin em si mismo y si el rigor historiográfico debe ser uma condición para el trabajo del historiador, deberá echar mano de esa exatitud para, justamente, interrumpir la historia de los vencedores que se cuenta,

Koselleck (1923-2006), o qual, ao retratar sobre o tempo confere ao conceito “horizonte de expectativa” o significado de, construção cultural. Pelo o que se entende da última expressão é que em sua análise temporal dos acontecimentos históricos criam-se relacionamentos culturais que mais tarde serão lidos como experiência, ou seja, aquilo que foi vivido no passado. Neste aspecto, do ponto de vista de Koselleck o conceito de horizonte de expectativa se volta a tudo aquilo que vê e se espera do futuro a partir do que foi apreendido por nós historiadores em relação ao que ocorreu no passado, dentro da perspectiva: especificidade e historicidade em relação ao que foi apreendido, e, estudado. Dessa maneira, apreendemos, por meio dessas problematizações, uma posição, em que, se constitui, como se olhássemos e nos lançássemos, com nossas experiências de passado, ao nosso horizonte de expectativa, ou seja, ao futuro. Conferir: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006.

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Page 14: A Educação e Consciência: Uma Reflexão Crítica

para inscribir em esa narrativa, que parece reproducirse por si sola, los silêncios y lãs fracturas. En esse sentido, el historiador debe estar atento a los disimulos de la historia y al rescate de la memoria y los discursos de los vencidos, luego de que fueron silenciados para construir la imagen de una temporalidad, única, lineal, continua, progresiva y despojada de alternativas históricas reales. No obstante, para Benjamin, aquel que buscara em esa outra historia la voz clara y límpida de los vencidos, por médio de testimonios o entrevistas, probablemente se

20decepsionaría porque esa contrahistoria está tejida de modo inusitado .

Com a exposição da abordagem de Decca o que por ora queremos enfatizar é a leitura que pudemos fazer

do nosso objeto de pesquisa acerca da narrativa de denúncia por parte de Euclides da Cunha quanto a um crime

cometido contra seres humanos indefesos em Canudos. Euclides, por meio do seu testemunho histórico deixou-

nos recuperado em sua obra maior Os Sertões (1902) a denúncia de um dos maiores crimes cometidos contra a

liberdade de homens, mulheres e crianças no início da República Brasileira. Cabe reiterar, portanto, que Os

Sertões retrata mais especificamente na terceira parte da obra intitulada de “A Luta” o Massacre ocorrido em

Canudos. Esse retrato de Euclides reporta-nos aos estudos e acontecimentos que, mesmo sendo de outra

temporalidade não deixa de contemplar a vida dos sobreviventes e testemunhas oculares, além, das vítimas de

morte. Nesse sentido é que as obras de Primo Levi podem ser relacionadas à obra Os Sertões, como denúncia de

crime contra seres humanos.

Ademais, as narrativas de Cunha e Levi devem ser tomadas como denúncia de crimes cometidos contra a

vida humana de um modo geral. Porque, do ponto de vista da historiografia, ao fazermos isso buscamos retomar e

contemplar a frase bastante significativa a todos nós de Aleida Assmann: “Lembrar para não repetir”

(ASSMANN, 2013, p. 6-7). Além disso, que possamos ouvir os massacrados e humilhados de Canudos através

dos restos e resquícios testemunhais da testemunha ocular Euclides da Cunha. Porque Euclides pôde legar-nos

rastros, pistas, vestígios valiosos por meio de seus testemunhos históricos, e, assim pudemos analisá-los como

documentos que recuperam a visibilidade dos vencidos da história, ou seja, das vítimas daquele massacre.

Por outro lado, através deste objetivo acreditamos que acabamos por responder à pergunta de François

Hartog a qual foi soprada por Michel de Certeau (1925-1986) e que se encontra exposta no segundo parágrafo do

subtítulo “O importante papel da Memória na órbita dos estudos referentes aos testemunhos históricos de Euclides da Cunha

(1866-1909)” deste artigo. Nota-se, portanto que o questionamento de Hartog se refere à apreensão do homem

ao longo do tempo por parte do historiador que procura investigar a atuação do indivíduo na esfera pública, o qual

está vinculado ao âmbito coletivo do qual faz parte. Além disso, podemos observar a atuação do homem ao longo

da história e considerar que este, está vinculado, sob a lente dos historiadores, nas problemáticas que emergem por

meio dos nossos estudos que não deixam de contemplar o retrato de massacres, crimes contra seres humanos,

passados traumáticos. Nesse sentido não podemos perder de vista o conceito de alteridade ao considerarmos no

caso de Canudos o perfil dos seres humanos silenciados pela força e imposição dos vencedores no Massacre em

Canudos. Porque, mesmo estando nós, distante do passado, muitos historiadores na atualidade ao invés de se

20DECCA, Edgar Salvadori de. Historia a contrapelo: sobre vencedores y vencidos. In: MUDROVCIC. Maria Inés e RABOTNIKOF, Nora (coordinadoras). Em busca Del pasado perdido: Temporalidade, historia y memória. México: Siglo XXI Editores, Unam, 2013. p. 95. Tradução – “...o historiador imaginado por Benjamin deve ter suas hipóteses e modelos explicativos de interpretação, porém não deve ter como objetivo produzir outro discurso histórico tão exaustivo e coerente como aquele ao que se opõe. Se o conhecimento do passado não é um fim em si mesmo e se existe rigor historiográfico deve ser uma condição para o trabalho do historiador, deverá então recorrer-se desse exaustivo para, justamente, interromper a história dos vencedores que se conta, para inscrever nessa narrativa, que parece reproduzir por si só, os silêncios e as fraturas. Neste sentido, o historiador deve estar atento aos dissímulos da história e ao resgate da memória e dos discursos dos vencidos, logo dos que foram silenciados para construir a imagem de uma temporalidade, única, linear, contínua, progressiva e despojada de alternativas históricas reais. Não obstante, para Benjamin, aquele que buscar nessa outra história a voz clara e nítida dos vencidos, por meio de testemunhas ou entrevistas, provavelmente se decepcionará porque essa contrahistória está tecida de modo inusitado”.

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Page 15: A Educação e Consciência: Uma Reflexão Crítica

perguntar “o que aconteceu no passado”, devemos responder a questão: “o que acontece no presente com relação 21

ao passado”?

Contudo, é preciso destacar que os estudos do literato americano Andreas Hyussen têm contribuído de

forma bastante contundente com nossas preocupações historiográficas. Porque, segundo ele, se os estudos

acadêmicos sobre testemunhos históricos referentes ao Holocausto têm tomado a atenção dos historiadores e

dos intelectuais das humanidades sobre os horrores dos campos de concentração, nesta medida, temos que ter

consciência de que o Holocausto é a mais “investigada das catástrofes humanas” (HUYSSEN, 2014, p. 184).

Quanto a este ponto vale salientar que o estudo de testemunhos históricos de personagens envolvidos em

acontecimentos dessa natureza assim como foi com Primo Levi oferece-nos, portanto, condições para se

pesquisar outros traumas históricos do nosso passado recente. Levando em consideração os argumentos de

Huyssen chegamos aos debates circunscritos à política da memória em que “o atual movimento internacional dos

direitos humanos e os fluxos transnacionais da política da memória expressam, desde a década de 1990, uma

conjuntura fundamentalmente nova” (HUYSSEN, 2014, p. 195). Diante dessa assertiva é instigante o objetivo de

Andreas Huyssen quando nos apresenta a seguinte problemática e posicionamento:o que os direitos têm a ver com a memória, para começar? No nível simples, poderíamos dizer que somente a memória das violações dos direitos pode alimentar o futuro dos direitos humanos no mundo, fornecendo um elo substancial entre passado e futuro (HUYSSEN, 2014, p. 196).

Nesse sentido é que, testemunho histórico como o de Euclides da Cunha presente em Os Sertões (1902) e o

testemunho de Primo Levi presente em É isto um homem (1974) e Os Afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as

penas, as impunidades (1986) conduz nosso olhar para estas narrativas concebendo-as como denúncias de crimes

cometidos contra a vida humana em nosso passado recente.

Dessa forma, estes elementos se constituem através de vias epistemológicas que nos conduzem a

configurarmos novas problematizações, novos enredos, novas tramas que não deixarão de contemplar o valor à

vida humana, como imprescindível. Ademais, através da história e da memória, utilizando-nos dos conceitos

acerca da narrativa histórica conseguimos apreender o passado e representar aquilo que foi possível recolher do

vivido. Sabemos que os artifícios da memória são importantes neste contexto quanto Levi enquanto

interventores no espaço público puderam contribuir com o avanço dos Direitos Humanos, os quais, em nossos

estudos, são tomados como uma conquista ao longo da história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que os estudos acerca de testemunhos históricos como os de Euclides da Cunha (1866-1909)

por meio da obra Os Sertões (1902) e Primo Levi (1919-1987) por meio das obras É isto um homem (1974) e Os

Afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades (1986) reporta-nos à recuperação do contexto

histórico que envolve os eventos traumáticos do nosso passado. Além disso, visualizamos a oportunidade de

buscar nestes testemunhos históricos, por meio de questionamentos do presente, pistas e indícios quanto aos

eventos traumáticos do nosso passado recente, os quais sucumbiram com a vida dos vencidos por meio da

violência e massacre imposto pelos porque como nos sugere Huyssen de que a negociação entre a memória e o

21 Vale lembrar que estas problemáticas foram trabalhadas durante o Curso HH172-B Tópicos em Teoria da História oferecido pelo Programa de Pós Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) no ano de 2015.

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Page 16: A Educação e Consciência: Uma Reflexão Crítica

esquecimento é necessária para que surja um “modelo teórico para a reconciliação, em contraste com a

irreconciliabilidade e a concorrência feroz” (HUYSSEN, 2014, p. 210).

Desse modo, devemos salientar que, através desse processo historiográfico em que colocamos o dedo na

ferida para conferir à nossa abordagem o papel memorialístico em relação às vítimas de massacre, por meio desse

processo notamos a oportunidade de trazer à luz o reconhecimento através da nossa operação historiográfica às

vítimas de Canudos. Porque quanto àqueles massacrados eles sempre estarão vinculados às problemáticas do

presente que por meio de narrativas como a nossa conseguimos oferecer atenção e visibilidade aos vencidos da

história. Nesse sentido, o conceito de alteridade se propõe importante porque através dele, também conseguimos,

do ponto de vista historiográfico e dos conceitos culturais, expor as fissuras, as diferenças, as singularidades

culturais que marcaram aquele momento histórico.

Contudo, é importante destacar neste artigo que, foi possível nortearmo-nos por meio do estudo do

testemunho histórico de Euclides, a obra Os Sertões (1902), em direção às problemáticas referentes à representação

histórica do Massacre em Canudos (1896-1897) como um crime praticado contra seres humanos indefesos. Dessa

forma, o silenciamento imposto pelos vencedores aos vencidos, precisa, reiteramos ser revolvido pela história e

rememorado pela memória para que os mortos do Massacre em Canudos possam ser ouvidos. Essa assertiva

ficou-nos clara por meio da leitura atenta que fizemos da obra Os Sertões (1902) e de outros documentos que

Euclides usou para sua elaboração, e, assim, através de sua obra maior Euclides da Cunha pôde retratar os

horrores que testemunhou naquele fratricídio. Dessa maneira, através do nosso discurso historiográfico,

conseguimos oferecer as vítimas um lugar no mundo, no qual, deveriam, no passado, ter obtido direito à vida, e, de

forma incondicional.

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