a crianÇa, o corpo e a linguagem corporal- versÃo preliminar

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VERSÃO PRELIMINAR

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VERSÃO PRELIMINAR

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MANDALA DO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO INFANTIL DE

CONTAGEM

CADERNO:

A CRIANÇA, O CORPO E A LINGUAGEM CORPORAL

CONTAGEM

2010

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A CRIANÇA, O CORPO E A LINGUAGEM CORPORAL

Um corpo não é apenas um corpo. É também o seu entorno. Mais do que um conjunto de músculos, ossos, reflexos e sensações, o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam, os vestígios que nele se exibem, a educação de seus gestos ... enfim, é um sem limite de possibilidades sempre reinventadas e a serem descobertas. Não são, portanto, as semelhanças biológicas que o definem, mas fundamentalmente os significados culturais e sociais que a ele se atribuem

(GOELLNER, 2003, p. 29).

1. DELIMITAÇÃO

Esse campo de experiência na Educação Infantil diz respeito a aspectos

relacionados ao corpo, com ênfase nos movimentos, na expressividade, nas

sensações, na saúde e na sexualidade.

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. O QUE É ESSE CAMPO DE EXPERIÊNCIA E QUAL O SEU

SIGNIFICADO?

Na interação com outros seres humanos, o corpo biológico vai, gradativamente,

sendo marcado e continuamente alterado pela cultura e pelos valores de

determinado tempo histórico; suas necessidades e desejos mudam

progressivamente. Ainda que ele seja, também, lugar de expressão da nossa

subjetividade, é nele que a cultura deixa suas marcas. É nele e com ele que

conhecemos o mundo; é com ele que nos movimentamos; é ele que expressa

nossos sentimentos e emoções; é nele que experimentamos as sensações

despertadas pelos estímulos externos; é com ele que vivenciamos nossa

sexualidade; é com ele que perpetuamos a nossa espécie. A primeira forma de

linguagem da criança é o movimento sendo que ela utiliza seu corpo para

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dialogar com o outro. A capacidade de movimentar-se e criar em cima do

movimento ampliam a interação entre os humanos.

Enfim, é no corpo que a vida se consubstancia, se revela, se apresenta, se

materializa. Portanto, não se pode conceber o corpo como instrumento, mas

como lugar e espaço da manifestação da nossa humanidade.

Portanto, a criança não aprende apenas a andar, a falar, a comer, a controlar

os esfíncteres, etc. Ela aprende, também, a maneira de andar, de se comportar

e falar nos diferentes lugares, o gosto por determinados alimentos, o manuseio

dos artefatos culturais para se alimentar, a forma correta de utilizar o banheiro,

etc. A cultura molda nossos gestos, nossa forma de expressar sentimentos e

emoções, nossas sensações, nossos hábitos de higiene e saúde e, ainda,

nossa sexualidade.

Sob essa perspectiva, o corpo “não é apenas uma construção pessoal, mas

social e política” (TIRIBA, 2005, p. 191) que, ao inserir-se no mundo, também

produz cultura, na medida em que imita, repete, nega ou transgride os saberes,

os conhecimentos, as normas e os costumes. Ao se tornar “cultural”,

humanizado, o corpo “fala", manifestando emoções, ideias e sentimentos.

O corpo, como resultado da cultura, sente o mundo e, por isso, não é estático.

Ele é provisório, mutável e mutante, permitindo que os seres humanos, ao

assumirem determinadas referências, façam cultura, realizando, dia após dia,

uma educação que é também corporal.

Nesse sentido, passa a ser responsabilidade das instituições de Educação

Infantil – IEI - possibilitar que as crianças vivenciem o movimento, a

expressividade, as sensações, o cuidado/autocuidado e a sexualidade. Trata-

se de refletir sobre a integralidade da criança, admitindo que corpo, sensações

e emoções são aspectos indissociáveis da humanidade dela, determinados

pelo biológico, pelo social e pelo cultural.

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Esse olhar remete à necessidade de se criar possibilidades interativas que

instiguem nas crianças o seu desejo natural de explorar a multiplicidade de

manifestações culturais relacionadas ao corpo.

O debate sobre o trabalho com o corpo já se encontra contemplado no campo

das políticas públicas, o que pode ser verificado, entre outros documentos, nas

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI - e no

Referencial Curricular para a Educação Infantil - RCNEI.

As DCNEI aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em dezembro de

2009, preconizam que

[...] as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira, garantindo experiências que: I - promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança; II - favoreçam a imersão das crianças nas diferentes linguagens e o progressivo domínio por elas de vários gêneros e formas de expressão: gestual, verbal, plástica, dramática e musical; [...] VI - possibilitem situações de aprendizagem mediadas para a elaboração da autonomia das crianças nas ações de cuidado pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar (BRASIL, 2009, s.p).

Uma das principais características da criança de 0 até 6 anos é que ela está

em pleno desenvolvimento motor. Assim, do ponto de vista biológico, ela está

potencialmente em condições de descobrir os limites e as possibilidades do

seu corpo. Na relação com o meio, mediada por outros sujeitos seu corpo se

constrói e reconstrói na síntese das determinações culturais, sociais, biológicas

e psicológicas.

Nessa direção, o RCNEI já afirmava que o movimento, os gestos e as

expressões ganham significado na cultura, assim como é na cultura que se

aprende o manuseio de objetos específicos (pás, lápis, bolas, bolas de gude,

etc.). Esse documento reconhece também que

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o movimento para a criança pequena significa muito mais que mexer partes do corpo ou deslocar-se no espaço. A criança se expressa e se comunica por meio dos gestos e das mímicas faciais e interage usando fortemente o apoio do corpo. A dimensão corporal integra-se ao conjunto de atividade da criança. O ato motor faz-se presente em suas funções expressivas, instrumental ou de sustentação às posturas e aos gestos (BRASIL, 1998, p. 18).

Contudo, mais do que atender a determinações legais, os profissionais que

lidam cotidianamente com as crianças precisam estar atentos para o fato de

que as características físicas da criança, o meio no qual ela nasce e a cultura

mais ampla na qual está inserida deixam marcas no seu corpo. Marcas que

precisam ser compreendidas, significadas, ressignificadas e, não raro,

problematizadas. Assim, as meninas, as crianças negras, as crianças com

deficiência, as gordas, as altas, as muito magras, as que usam óculos podem

sofrer preconceitos e discriminações por parte de outras crianças e de adultos.

Ao serem detectadas, essas situações precisam ser discutidas, esclarecidas e,

na medida do possível, desconstruídas. A intervenção do profissional deve ser

sempre no sentido de ajudar todas as crianças a terem uma auto-imagem

positiva, a respeitarem seu corpo e o corpo das outras pessoas, a

reconhecerem e respeitarem a diversidade com a qual se deparam

constantemente no convívio social.

Se o corpo fala, a linguagem corporal se manifesta quando a criança corre,

anda, salta, rola, brinca com o corpo - movimento; quando ela dança, gesticula,

faz mímica, interpreta, dramatiza, expressa sentimentos, desejos e

necessidades oral e corporalmente - expressividade; quando externa bem estar

ou mal estar nas diversas situações que vivencia - sensações. Então, é

fundamental que as IEI procurem considerar os movimentos, as sensações e a

expressividade do corpo como formas privilegiadas de manifestação de

cultura, de prazer e de aprendizagem. A valorização das brincadeiras infantis,

do teatro e da dança são fortes aliados no processo de construção e expressão

do conhecimento e de humanização da criança.

Nesse sentido, a realização de atividades sensoriais, expressivas e de

movimento corporais possibilita que a criança amplie sua noção espacial, pois

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o corpo é o primeiro espaço que a criança conhece e reconhece; é a partir dele

que ela explora o espaço externo. Portanto, não há espaço externo que se

configure sem envolvimento do corpo, assim como não há corpo que não seja

espaço e que não ocupe um espaço. O espaço é o lugar no qual o corpo pode

mover-se e o corpo é o ponto em torno do qual o sujeito organiza o espaço.

Estimular a linguagem corporal é possibilitar que a criança se conheça,

conheça o mundo e se manifeste sobre o que conhece.

Mas, além do desenvolvimento da linguagem corporal, manifestada no

movimento, na expressividade e nas sensações, o trabalho com o corpo

possibilita à criança construir sua autonomia e conquistar sua independência

em relação aos adultos. Para tanto, os profissionais devem desenvolver

atividades que visem a consolidar as práticas de autocuidado (higiene pessoal,

movimentação segura nos diferentes espaços, limpeza da instituição e cuidado

com o meio ambiente), que podem ser trabalhadas em momentos coletivos

(escovação dos dentes, higienização das mãos, recolhimento de brinquedos,

deslocamentos dentro e fora da sala de atividades e da instituição, etc.) ou em

momentos individuais (hora do banho, troca de fralda e uso do banheiro, por

exemplo).

Além disso, a criança também precisa sentir que sua natural curiosidade sobre

as questões relacionadas à sua sexualidade é considerada, respeitada e

respondida pelos adultos com os quais lida cotidianamente. É interessante que

se leve em conta que a sexualidade faz parte da vida da criança desde o seu

nascimento e que uma postura mais tranqüila e equilibrada diante dessa

questão, por parte dos adultos, exerce grande influência na construção de uma

sexualidade sadia e sem culpa.

Finalmente, o que se deseja mesmo é que todos que lidam com a educação da

criança de 0 até 6 anos de idade compreendam o corpo como construção

biológica e cultural e que trabalhar na perspectiva da formação humana exige

atenção a esse campo de experiência. Afinal, nossos corpos dizem muito de

nós, de nossas origens, mas também dizem muito da instituição e da

sociedade a que pertencemos.

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2.2. COMO O CONHECIMENTO SOBRE ESSE CAMPO DE EXPERIÊNCIA

FOI CONSTRUÍDO HISTORICAMENTE PELA HUMANIDADE?

Atualmente, é bastante aceita a teoria de que o homem só foi capaz de

produzir conhecimento e se apropriar do ambiente ao começar a se locomover

de forma ereta e ao ampliar seu campo de visão. Essa motricidade, específica

do ser humano, permitiu a supremacia sobre os demais animais, assim como o

desenvolvimento das funções mentais superiores (a função simbólica, atenção,

percepção e memória) e a construção da cultura e o estabelecimento de

relações sociais. Portanto, o aumento da possibilidade de movimentação

favoreceu o desenvolvimento intelectual da espécie humana.

Essas potencialidades físicas e mentais permitiram que o homem, mesmo que,

inicialmente de maneira elementar, passasse a se organizar política e

socialmente, significando e ressignificando continuamente o seu corpo de

acordo com as necessidades e exigências de cada tempo histórico.

Portanto, ao traçarmos o percurso histórico das atividades físicas da espécie

humana, percebemos que o corpo é um espaço ilimitado de possibilidades,

fortemente influenciado pelo seu entorno e que se constitui de sentidos,

sentimentos, formas, cores, gestos, sabores, cheiros, roupas, adornos,

linguagens...

De fato, o homem pré-histórico, na luta pela sobrevivência, utilizava o corpo

para se defender dos animais e de outros homens; para caçar, pescar e

procurar moradias mais seguras; para cultuar seus deuses e realizar seus

rituais. Para explicar o mundo combinava dança, música e dramatizações; para

comemorar a volta do sol na primavera; para reverenciar os deuses e pedir-

lhes sucesso nas caçadas e lutas; para se preparar para as guerras e

competições; para celebrar os nascimentos; para tentar curar um enfermo; para

lamentar uma morte.

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Na Antiguidade clássica, a relação da humanidade com o corpo sofreu grande

influência das culturas grega e romana, que, muito competitivas, preparavam

seus jovens para os grandes jogos olímpicos. Mas, enquanto o povo grego

valorizava a simetria, a perfeição das formas, a beleza e utilizava os exercícios

físicos para o aprimoramento da beleza estética, os romanos, mais

preocupados em formar jovens guerreiros para a conquista de novos territórios,

relacionavam as práticas esportivas a treinamentos intensivos, com exercícios

físicos para o aprimoramento militar, a disciplina cívica, o caráter competitivo, o

fortalecimento do corpo e a energia espiritual.

Porém, com o advento do cristianismo, começaram a se disseminar

concepções que se pautavam na valorização do espírito em detrimento do

corpo. Entendiam que o corpo submetia o homem à sua condição de animal.

Mas foi na Idade Média, com a consolidação do Teocentrismo (a ideia de

Deus como centro do universo), que o corpo perdeu definitivamente seu lugar

privilegiado, passando a ser associado a práticas pecaminosas. Assim, tanto os

filósofos do final da Antiguidade como os medievais, dentre eles São Tomaz de

Aquino, concebiam o corpo como instrumento da alma.

Por volta do século XV, a Igreja Católica começou a perder sua hegemonia

econômica, política e ideológica, mas a dicotomia entre corpo e mente já tinha

se consolidado. Junto com o corpo, foram “relegados a um segundo plano

algumas dimensões e canais de expressão da experiência humana, entre elas

as sensações físicas, as emoções, os afetos, os desejos, a intuição, a criação

artística” (TIRIBA, 2008, p. 24).

No século XVII, em nome de uma racionalidade pura, Descartes definiu o

homem como sendo fundamentalmente espírito (“Penso, logo existo”). Sua

teoria estabeleceu uma assimetria entre o corpo e a mente, onde o primeiro,

com todas as suas potencialidades, tinha que se submeter a uma razão que,

por ser pura, dirigiria os indivíduos à verdade. Segundo Tiriba (s.d.), no texto A

pele é a raiz cobrindo o corpo inteiro: as linguagens do corpo,

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Somos parte de uma civilização ocidental que, para realizar o seu projeto de modernidade, precisou provocar algumas cisões filosóficas e epistemológicas. [...] O projeto de modernidade enquanto desenvolvimento/progresso material, que foi gestado ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII e floresceu nos séculos XIX e XX, está, ainda hoje, sustentado numa supervalorização da razão em detrimento de outras dimensões humanas (s.p.).

Mais tarde, com o surgimento dos Estados Nacionais e a ascensão política e

econômica da classe burguesa, a relação da sociedade ocidental com o corpo

modificou-se completamente. Cada governante geria seu território de forma a

preservar os bens e as pessoas, analisando os dados estatísticos e

demográficos e implantando políticas para controlar as questões pessoais

(nascimentos, óbitos, casamentos etc.) que podiam interferir na vida da

população (Foucault, 1999). Concomitantemente, a burguesia fomentou a

emergência de novas formas de relação com o corpo, com preocupações

nunca antes cogitadas (vigilância sobre a masturbação da criança, instabilidade

do humor das mulheres, surgimento da sexualidade e da noção de complexo

de Édipo). Como a burguesia não tinha “sangue azul”, ofereceu seu próprio

corpo para a validação de várias ciências, como a medicina, a psiquiatria, a

psicologia e a pedagogia (FOUCAULT, 1988).

O percurso traçado mostra como o corpo é continuamente ressignificado de

acordo com os diferentes contextos históricos; tenta esclarecer a relação da

sociedade ocidental com o corpo em cada contexto histórico. Toda essa

discussão serve de base para entendermos o formato de escolarização que

temos hoje, pois a escola não é natural. Ela nasce da necessidade de

disciplinar os corpos dos meninos (e, mais tarde, das meninas) para atender a

demandas econômicas (mercado de trabalho), sociais (moral burguesa) e

políticas (fortalecimento dos Estados Nacionais). Haja vista que o início da

escolarização, no século XIX, desconsiderava a subjetividade do corpo infantil,

indo ao encontro da ideia de um corpo científico, biológico e psicológico, que

precisava ser educado, disciplinado, controlado. Mas, como se deu esse

processo de escolarização? Qual o lugar ocupado pelo corpo nele?

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Rousseau, que viveu no século XVIII, se tornou um marco importante para a

pedagogia, ao romper com a ideia de que a criança era um ser desprezível,

destituído de alma, um adulto em miniatura. Para ele, a educação deveria,

antes de qualquer coisa, formar o homem. Sugeria, então, a prática de

exercícios físicos, a alimentação pura e sadia e o arejamento do ambiente

(elementos para a saúde e o desenvolvimento corporal) e aconselhava:

“Cultivai a inteligência de nossos alunos, mas cultivai antes de tudo, o seu

físico por que é ele que vai orientar o desenvolvimento intelectual; fazei

primeiro vosso aluno são e forte para poder vê-lo inteligente e sábio”

(ROUSSEAU apud BONONINO, 1931, p.77).

As ideias de Rousseau traduzem bem a consolidação da concepção de

infância como uma fase específica da vida humana, a qual permitiu a expansão

de várias experiências pedagógicas. No final do século XIX e início do século

XX, por exemplo, surgem tendências pedagógicas mais abertas, como as

teorias de Montessori, Decroly, Freinet, Piaget, Vygotsky, Froebel, que

questionaram os métodos mais tradicionais e colocaram os interesses e/ou

necessidades dos sujeitos no centro do processo de escolarização. Todos eles

defendiam que a escolarização e a possibilidade de expressão permitiriam o

desenvolvimento do pensamento na infância.

No entanto, as discussões propostas pelos teóricos acima não impediram que

discursos de uma educação compensatória ganhassem força por volta dos

anos 1970. Segundo essa concepção, a criança pobre teria um déficit cultural e

a escola teria o papel de moralizar e controlar a vida social: ensinar regras e

valores, controlar corpos e comportamentos, definir a utilização dos espaços,

diferenciar meninos e meninas. Essa crença favoreceu a proposição de

atividades repetitivas e sem sentido, que visavam apenas desenvolver a

disciplina, a concentração e a coordenação, sem nenhuma preocupação com o

desenvolvimento da linguagem corporal.

Uma forma de trabalho que ilustra essa concepção e que ainda persiste, são

as aulas de Educação Física baseadas em exercícios repetitivos que objetivam

apenas disciplinar os corpos dos pequenos e prepará-los para a alfabetização,

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os famosos exercícios para desenvolver a coordenação motora, e em práticas

esportivas que enfatizam a competição. Tais aulas não propiciam às crianças o

que Vago (1996) chama de práticas corporais lúdicas, ou seja, práticas de um

corpo “brincante”. Observando algumas crianças consideradas “portadoras de

„grande defasagem intelectual, emocional e social‟ realizando suas práticas

corporais lúdicas nos espaços e nos tempos da escola” tais como corridas no

pátio, jogos de futebol e cambalhotas no gramado, o autor afirma que “naquele

instante, elas provavam, sentiam, viviam, experimentavam seu corpo, e

construíam ali sua corporeidade.” (p. 53).

Nos dias de hoje, além de tentar ressignificar suas concepções e práticas

pedagógicas referentes ao corpo, a escola ainda tem que se haver com os

apelos da mídia e da indústria de produtos destinados ao corpo, com a

erotização do corpo infantil e com a banalização da sexualidade.

Portanto, segundo Goellner (2003), falar de corpo é falar também da identidade

atribuída aos sujeitos pela cultura contemporânea. Exige repensar o conflito

entre corpo e mente, na medida em que o processo de constituição da

identidade é influenciado pelos conhecimentos adquiridos e pelos

desdobramentos do crescente mercado de produtos e serviços direcionados ao

corpo.

É claro que a escola não pode, e nem deve desejar, controlar a educação

ofertada pela família e pela mídia, mas essas discussões não podem ficar fora

de um currículo que conceba o corpo como uma dimensão importante do ser

humano. Deve ser uma preocupação constante das IEI a garantia de um

trabalho com a linguagem corporal que contemple o movimento, a

expressividade, as sensações, a saúde, o autocuidado e a sexualidade, mas

que também questione estereótipos e “verdades” produzidas pela mídia e pela

cultura.

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2.3 COMO A CRIANÇA POR MEIO DAS EXPERIÊNCIAS, SABERES E

CONHECIMENTOS SE DESENVOLVE E TORNA-SE PROGRESSIVAMENTE

HUMANA?

Quando nasce, o bebê não anda, não fala e não se alimenta sozinho, sendo

extremamente dependente do adulto. Uma de suas primeiras manifestações é

o choro, por meio do qual ele comunica que algo está acontecendo. Aos

poucos, na relação com outros humanos, ele começa a perceber a função de

determinados gestos e expressões, conhece as potencialidades do seu corpo e

começa a usá-lo para se apropriar do mundo. Assim ao ser inserido na cultura,

o bebê, com seu corpo, inicia e consolida seu processo de humanização.

Na medida em que cresce e se desenvolve, a criança começa a perceber que

pode imitar os gestos das pessoas que convivem mais intimamente com ela

para comunicar e conseguir o que quer. Assim, aprende a apontar os objetos

que deseja, a se sentar para ter uma visão melhor das coisas e das pessoas, a

engatinhar para alcançar sozinha o que quer e, por fim, a andar, ficando com

as mãos livres para segurar os objetos que alcança. Se a criança tiver alguma

deficiência física ou mental, esse processo pode ser mais lento e, em alguns

casos, pode chegar a não acontecer, mas ela vai tentar se apropriar do espaço

da forma mais próxima possível aos modelos que possui e com os recursos

que o seu corpo oferece.

Concomitantemente a esse processo de conseguir se locomover, a criança

experimenta o mundo com todo o seu corpo. Na medida de suas

potencialidades físicas e mentais, pega os objetos, leva-os à boca, conhece

gostos e cheiros, reconhece ruídos familiares. Essa exploração do espaço vai

ajudar a criança a desenvolver as habilidades necessárias para se locomover

sozinha ou, no caso de crianças com deficiência, para, de outras formas, se

apropriar do ambiente que a cerca.

Como na infância há um grande desenvolvimento da função simbólica, nessa

fase da vida é necessário oferecer a todas as crianças condições para

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compreender esse mundo tão rico em informações e possibilidades. A

linguagem corporal é uma das formas que a criança utiliza para representar o

mundo e, consequentemente, para consolidar o pensamento simbólico.

Para que os processos de locomoção e de desenvolvimento desse

pensamento sejam potencializados, o adulto que cuida da criança deve

proporcionar um ambiente estimulante, que permita a ela, entre outras coisas,

se movimentar, pular, correr, pegar objetos, colocar objetos na boca, tocar a

própria pele e a do outro, imitar, expressar sentimentos e ideias. Isso vai levar

a criança a conhecer o próprio corpo, a conhecer a si e o meio em que vive, a

ampliar suas sensações e emoções, a significar e se apropriar dos gestos,

hábitos e costumes da sua cultura, a descobrir o mundo, a construir

conhecimentos e, acima de tudo, a sentir prazer, muito prazer.

Ao imitar os papéis desempenhados pelos adultos, por exemplo, ela os

compreende e começa a entender como se dão as relações sociais. Esse

processo de apropriação deve ser mediado pelos adultos da instituição, que

vão observar e acompanhar as brincadeiras, participando e interagindo com as

crianças.

As considerações acima se aplicam ao trabalho com todas as crianças

atendidas em IEI, mas existem algumas especificidades quando se trata de

crianças de 0 a 3 anos de idade e de crianças com deficiência.

As crianças de 0 a 3 anos de idade estão iniciando seu processo de construção

da linguagem oral e de significação de gestos, o que vai exigir do adulto uma

atenção especial no trabalho com essa faixa etária. Portanto, é necessário

conversar muito com essas crianças, desafiá-las, possibilitar a sua locomoção,

oferecer objetos diversos e permitir a interação delas com crianças da mesma

idade, com crianças mais velhas e com outros adultos. Quando o adulto

acredita que a construção do conhecimento passa também pelo corpo, ele

propõe atividades que privilegiam o movimento e a expressividade,

possibilitando que a criança se aproprie da cultura da forma mais intensa

possível.

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Outro grupo que precisa de atenção especial é o de crianças com deficiência,

uma vez que seus ritmos de aprendizagem são diferentes. Não se pode

esperar que uma criança com deficiência conheça e reconheça o mundo do

mesmo modo que as demais. No entanto, cabe ao adulto realizar um trabalho

de observação sistemática dessa criança, com o objetivo de descobrir a melhor

maneira de desenvolver a linguagem corporal dela. Isso só será possível se o

adulto se desvencilhar da ideia de déficit e trabalhar na perspectiva da

potencialidade. Portanto, a pergunta não é “o que essa criança não dá conta de

fazer?”, mas sim “o que ela já consegue realizar?”, levando em consideração

que toda criança é capaz de aprender. Com deficiência ou não, a criança tem

um corpo que precisa ser inserido na cultura, humanizado.

Fica evidente, então, que a interação é a estratégia privilegiada para que todas

as crianças possam desenvolver plenamente a linguagem corporal. E é nessa

perspectiva de estimulação e troca que Pasqualini (2004) afirma que:

As crianças vão construindo conhecimentos, valores, afetos a partir de sua experiência com o mundo, experiência vivida num universo de corpos que tocam, olham, cheiram, comem, escutam. Corpos que sentem o mundo, lêem o mundo. Durante o brincar, os movimentos, os gestos vão construindo a cultura, e se constituem como fontes de experiências, satisfações e insatisfações físicas e emocionais (p. 31).

Nesse sentido, deve-se ampliar o leque de possibilidades corporais, por meio

de atividades que considerem o movimento, a imitação, o contato físico, o

cuidado/ autocuidado, a degustação de diferentes alimentos, o manuseio de

diversos materiais, o autoconhecimento físico e emocional, as brincadeiras, os

jogos, os passeios, as dramatizações e a dança. É por meio das experiências

vividas que o individuo tem a possibilidade de levantar inúmeras hipóteses para

construir e reconstruir conhecimentos, adquirindo sua autonomia e sua

independência. É nesse processo que a criança constrói sua identidade e se

apropria do mundo para viver nele de forma cada vez mais humana.

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A construção de todo e qualquer tipo de conhecimento inicia-se no corpo e a

instituição de Educação Infantil - espaço legítimo de construção de

conhecimentos formais e informais - não pode deixar o corpo e a linguagem

corporal fora de seu currículo.

3. OBJETIVOS

Na Educação Infantil, em relação ao corpo e à linguagem corporal,

possibilitaremos às crianças:

ampliar experiências sensoriais, expressivas e corporais interagindo

com o outro, com a natureza e a cultura;

conhecer o próprio corpo na sua integralidade construindo,

gradativamente, sua imagem mental;

construir a autonomia de movimentos;

construir a identidade corporal;

reconhecer os limites e as possibilidades do corpo no espaço e o prazer

que pode usufruir dele;

desenvolver noções de segurança, de saúde, higiene e autocuidado;

apropriar-se das manifestações da cultura e do patrimônio cultural

relacionados ao corpo tais como jogos, danças,brincadeiras, teatro e

outras;

apropriar dos gestos, hábitos e costumes da sua cultura, dando-lhes

significado;

desenvolver a capacidade de comunicar corporalmente desejos,

sentimentos, emoções e sensações

desenvolver a sexualidade própria da sua faixa etária,vivenciando-a da

forma mais natural possível..

4. EXPERIÊNCIAS

Na Educação Infantil, em relação ao corpo e à linguagem corporal, serão

possibilitadas às crianças as seguintes experiências:

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relaxar;

massagear e ser massageado;

tocar e ser tocado (com consentimento);

contemplar sua imagem no espelho, fazendo caretas, gestos e sorrindo

diante dele;

imitar movimentos;

explorar as várias possibilidades do corpo no espaço: sentar, arrastar,

engatinhar, rolar, ficar em pé com apoio, andar, correr, pular, saltar,

rodar, dançar, marchar, subir escadas, ultrapassar obstáculos , passar

dentro, equilibrar-se, abraçar, esconder, passar por circuitos, túneis,

trilhas, etc.;

manusear e explorar sensorialmente objetos e materiais diversos

(morder, olhar, cheirar, ouvir, degustar, amassar, rasgar, picar, embolar,

enrolar, etc.);

explorar as várias possibilidades dos materiais e objetos no espaço:

pegar, encaixar, empilhar, puxar, segurar, enfileirar, agrupar, chutar,

arremessar, etc.;

identificar e comparar as semelhanças e diferenças corporais;

despir-se e vestir-se sozinha;

controlar os esfíncteres;

lavar as mãos, escovar os dentes, tomar banho;

alimentar-se sozinho e degustar diferentes alimentos;

expressar sentimentos e sensações com o corpo;

calçar e amarrar o tênis;

representar o corpo por meio de desenhos, modelagem, músicas etc.;

cuidar do corpo, atendendo as regras de segurança, proteção e higiene;

ser respeitada na sua especificidade física;

recortar e colar;

construir brinquedos, quebra-cabeças, utilizando diferentes materiais;

andar de velotrol;

rodar bambolê;

brincar com corda, colchões, bola, bancos, etc.;

jogar bola, peteca;

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brincar de roda;

realizar jogos corporais (amarelinha, capoeira, pegador, etc.);

brincar no parquinho;

visitar o entorno da escola (parques, praças, lojas, supermercados,

centros culturais, etc.);

atravessar ruas e avenidas sob a orientação dos profissionais da

instituição;

expressar sentimentos e sensações com o corpo;

dramatizar e produzir representações teatrais de pessoas, de fantoches,

de sombra, de vara, de máscaras fazendo cenários, figurinos,

sonoplastia;

assistir peças teatrais;

fazer apresentações para colegas, funcionários e familiares;

dançar;

brincar de faz-de-conta;

experimentar roupas, enfeites e adornos;

ser respeitada na vivência da sua sexualidade.

ser desafiado e encarar desafios;

ganhar e perder;

imitar e fazer mímica;

tirar sons do corpo e de objetos da natureza e da cultura.

5. SABERES E CONHECIMENTOS

A partir das experiências relacionadas acima e de muitas outras, as crianças

construirão os seguintes conhecimentos e saberes:

autoconhecimento físico e emocional;

possibilidades e limites do próprio corpo

noções e hábitos de saúde, higiene, autocuidado e proteção;

identidade corporal;

autonomia de movimento;

reconhecimento e respeito a diversidade;

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reconhecimento das diferenças e semelhanças entre as pessoas;

noções espaciais (lateralidade, equilíbrio, espessura, largura,

comprimento, profundidade, perto, longe, embaixo, em cima, etc.);

gosto e diferenciação de diferentes odores, sabores, texturas, sons e

imagens;

tensão e relaxamento

orientação espacial;

estruturação espacial;

regras para locomoção segura nos diferentes espaços;

segurança para apresentação em público;

reconhecimento da própria sexualidade;

diferentes manifestações culturais, como danças e brincadeiras

populares;

autocuidado;

cumprimento de combinados, regras e instruções;

cooperação;

respeito ao outro;

atitudes adequadas como platéia;

respiração adequada;

ritmo;

solução de conflitos sem violência, sem uso da força;

controle e planejamento de movimentos.

cautela, atenção;

ousadia e coragem;

silêncio e inércia em oposição ao barulho e movimento.

6. DINAMIZAÇÃO DO CAMPO DE EXPERIÊNCIA DO CURRÍCULO NA

RELAÇÃO COM OS ELEMENTOS DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO

Na história da escolarização da infância, o trabalho corporal vem sendo tratado

como secundário, tendo como objetivo suplementar ou preparar para outras

disciplinas consideradas mais importantes. Às vezes, é utilizado para ocupar o

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tempo, com ênfase no aprendizado da coordenação motora, de habilidades e

de percepções. O trabalho nessa vertente propõe atividades repetitivas,

entendendo que elas serão suficientes para garantir que a criança se aproprie

da sua motricidade. Podemos citar como exemplo os pontilhados para as

crianças “passarem por cima”, a proposta de andar em cima de uma linha

riscada no chão, a nomeação das partes do corpo, a ideia de que o corpo deve

ser trabalhado por partes, as aulas de Educação Física que privilegiam os

polichinelos, as flexões e os jogos de competição, além da noção de disciplina

como silenciamento.

Ademais, a despeito de termos vinte ou sessenta anos, a escola na qual

estudamos operava nessa lógica restrita em relação ao trabalho com o corpo, o

que deixou marcas muito fortes em todos que passaram por ela. Portanto,

ainda que a cisão provocada pelo pensamento cartesiano e a disciplinarização

da sociedade ocidental (tese defendida por Foucault) sejam bastante

questionadas hoje, não podemos dizer que elas foram completamente abolidas

da escola. Somos produto, mas também produtores delas, desenvolvendo

atividades que silenciam os corpos das crianças. Muitas instituições de

Educação Infantil, ainda hoje, partem do pressuposto que a aprendizagem só é

possível num ambiente em que impere a ordem, o silêncio, a imobilidade.

Além disso, ninguém está descolado do presente, o que significa que os corpos

de crianças, jovens, adultos e velhos continuam sendo marcados pelas

exigências deste tempo também. Tempo em que as crianças têm maior

liberdade de expressão. Tempo em que os conceitos tradicionais sobre gênero

e sexualidade estão sendo questionados. Tempo em que questões sobre a

sexualidade adulta estão cada vez mais expostas e banalizadas pela mídia.

Tempo em que os corpos infantis são erotizados pela mídia. Tempo em que os

corpos, face à voracidade do mercado, passam a ser mercadorias à qual se

acoplam outras mercadorias.

Portanto, uma prática mais libertária em relação ao trabalho com o corpo vai

requerer uma reflexão sobre a forma como o adulto se relaciona com o próprio

corpo. Geralmente, as experiências em relação ao corpo são bastante

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repressivas, dependendo, entre outros fatores, da idade, do sexo e da família,

o que impõe o desvelamento das marcas que a escola, a família e a cultura

deixaram e deixam nos sujeitos, em seus corpos, na sua sexualidade, na sua

subjetividade.

Então, trabalhar a dimensão corporal com as crianças de 0 até 6 anos requer

reconhecê-las como sujeitos que se apropriam da cultura e, ao mesmo tempo,

produzem cultura; como sujeitos de direitos que precisam ser respeitados nas

suas especificidades e formados na sua integralidade de seres humanos; como

sujeitos de desejos que querem ser satisfeitos; como meninas e meninos que

têm necessidade de compreender o mundo para viver nele da forma mais

humana possível. Requer também questionar as relações que estabelecemos

com elas e com os colegas de trabalho, assim como as relações que elas

estabelecem com o coletivo de funcionários da escola, na medida em que

relações de respeito e de atenção são importantes demais para serem

relegados ao segundo plano. Ainda é preciso levar em conta o contexto onde

essas crianças vivem, as especificidades da sua faixa etária e as exigências do

mundo contemporâneo.

Em relação a esse último aspecto, sabemos que a sociedade atual sofre uma

influência avassaladora da mídia, cujos padrões levam famílias, adolescentes e

até mesmo crianças a se entregarem a um consumo desmedido e a

naturalizarem a erotização dos corpos infantis e a banalização do sexo. Sobre

essa questão, Oliveira (2004) esclarece que

A tecnologia, a indústria cultural e da beleza [...] continuamente lançam para o indivíduo a responsabilidade pela qualidade de vida, pelo bem-estar, valorizando a manutenção do corpo. A manutenção e aparência do corpo na cultura de consumo que vivemos sugere duas categorias: o corpo interno e o externo. O interno refere-se à saúde e ótimo funcionamento do corpo como um todo, exigindo manutenção diante de doenças e do declínio orgânico no processo de envelhecimento. E o segundo refere-se a aparência e a seu controle dentro do espaço social.

Nessa mesma direção, o Proinfantil, material de formação produzido pelo MEC

destaca:

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Hoje, cada vez mais, os corpos têm sido solicitados e enfatizados na sociedade e na cultura. Nas revistas e nos canais de televisão anunciam-se novas modas, desejos e necessidades. Aparecem, dia após dia, novos produtos e práticas que trazem promessas e receitas de felicidade, prazer, juventude, diversão, eficiência, habilidade, saúde, relaxamento. Mas os corpos têm sido valorizados tendo como princípio o direito, a dignidade, a liberdade, o conhecimento, a sensibilidade e a vida em sua riqueza e totalidade? Ou, ao contrário, revelam formas de controle e incentivos ao consumo que, a cada dia, vão sendo elaboradas e impostas a todos? (BRASIL, 2006).

Atentos às questões acima, os profissionais precisam organizar os espaços,

os tempos, as metodologias, os agrupamentos de crianças, os instrumentos de

trabalho e os materiais de forma a favorecer a realização do trabalho com o

corpo. Isso implica, entre outras coisas, deixar a sala de atividades com o

maior espaço livre possível para as crianças se movimentarem, levar as

crianças para explorarem o espaço externo à sala e à instituição, diminuir o

tempo em que elas ficam sentadas, possibilitar a interação delas com o meio,

dispor os materiais de maneira a favorecer o manuseio seguro. As escolhas

feitas pelo profissional em relação a esses aspectos traduzem suas crenças,

suas concepções de mundo, de criança, de sociedade e de Educação Infantil,

influenciando fortemente, positiva ou negativamente, a vida das crianças com

as quais trabalha.

Diante do exposto, é necessário que os profissionais:

procurem conhecer as diversas manifestações culturais que privilegiam

o uso do corpo, como danças, músicas, brincadeiras, teatro e outras;

estabeleçam relações entre a cultura mais ampla e o contexto das

crianças;

valorizem a identidade cultural das crianças;

ajudem as crianças a compreenderem sua cultura e sua história;

resgatem, por meio de conversas e entrevistas, as experiências

corporais coletivas da comunidade onde as crianças vivem;

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ajudem as crianças a identificar, significar, ressignificar e, se necessário,

apagar as marcas deixadas no corpo pela cultura;

reconheçam os interesses, gostos e desejos das crianças;

envolvam as crianças na pesquisa e na identificação dos conhecimentos

que se relacionam aos movimentos corporais, fazendo e ouvindo

perguntas, formulando novas questões e estimulando a curiosidade, a

criatividade e a inventividade delas;

levem as crianças para assistir peças teatrais, concertos, shows e

apresentações artísticas em geral;

partilhem com as crianças danças, músicas e ritmos variados. dançar

junto, dramatizar, produzir sons com diferentes objetos e com o próprio

corpo;

possibilitem que as crianças inventem movimentos, gestos e jeitos de

dançar, encenar, representar, se expressar e produzir ritmos e sons;

garantam o aprendizado de técnicas (maneiras de fazer) que

possibilitem às crianças realizarem movimentos e gestos com maior

facilidade;

trabalhem com as crianças a expressão de suas singularidades, mas

não se esquecendo da produção coletiva de gestos, movimentos,

dramatizações e escolha de temas. os significados e sua compreensão

emergem das relações compartilhadas, reconhecidas e apropriadas;

organizem o espaço da sala de aula e do pátio, de forma a privilegiar e

favorecer o movimento das crianças;

privilegiem o uso do espaço externo, em função da maior possibilidade

de a criança movimentar-se;

ofereçam diversos materiais para as crianças manusearem, permitindo a

elas tocá-los, levá-los à boca, conhecê-los e reconhecê-los;

preparem um cantinho com roupas, adornos e acessórios para as

crianças;

ajudem a criança a construir uma auto-imagem positiva, intervindo nas

situações em que o preconceito se apresente;

proponham jogos coletivos que pressuponham a colaboração e não a

competição;

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promovam passeios e excursões aos mais variados locais;

proponham atividades significativas e, quando possível, dentro de

projetos de trabalho;

estabeleçam, sempre que possível, relações com o trabalho de outros

profissionais da instituição.

Enfim, trabalhar com o corpo na Educação Infantil é uma oportunidade de

ajudar as crianças a desenvolverem essa dimensão tão importante do ser

humano, mas é também a oportunidade de o profissional se interrogar sobre as

escolhas de experiências corporais que faz cotidianamente. Portanto, não é um

trabalho pronto, mas uma tarefa que, mesmo sistematizada e intencional, pode

ser sempre reiniciada de acordo com o que a realidade exigir.

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7. REFERÊNCIAS

BONONINO, L. L. Histórico da educação física. Futura, Imprensa Oficial,

1931. BRASIL. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRASIL. Resolução CNE/CEB 5, de18 de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 18 dez. 2009.

BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. PROINFANTIL. Livro de Estudo: Módulo IV. Brasília: MEC. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Educação a Distância, 2006. (Coleção PROINFANTIL; Unidade 4). DEBORTOLI, José Alfredo Oliveira. Múltiplas Linguagens e formas de Interação da Criança com o mundo Natural e Social II: Corporeidade, Artes, Música – Linguagem gestual, Corporeidade e Movimento DINIZ, Isabel Cristina Vieira Coimbra. Dança e Estilo de Vida: O corpo lúdico no contexto. In: ENAREL, 14, 13/16 Nov. 2002, Santa Cruz do Sul/RS. Disponível em: http://www.redcreacion.org/documentos/enarel14/Mt_dc04.html Acesso em: 10 de abr. 2010. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade do saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade – Curso do Collège de France

(1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção cultural do corpo. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre (Org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 2ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

OLIVEIRA, Eliany Nazaré. Atividade física na história da humanidade. 2004. Disponível em: <http://www.noolhar.com/opovo/Opinião/329322.htmll> Acesso em: 15 jan. 2010. PASQUALINI, Sueli Teresinha. O Brincar e suas Várias Linguagens: um estudo de caso enfocando a formação do professor de Educação Infantil. 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) - UDESC/UNIDAVI, Florianópolis, 2004, Disponível em: <http://www.tede.udesc.br/tde_arquivos/10/TDE-2006-05-09T171607Z-183/Publico/SueliPasqualini.pdf> Acesso em: 15 jan. 2010. TIRIBA, Léa. Crianças, Natureza e Educação Infantil. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Teologia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

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Disponível em: <http://www.nima.pucrio.br/cursos/pdf/023_lea.pdf> Acesso em: 20 jan. 2010. TIRIBA, Léa. A Pele é a Raiz Cobrindo o Corpo Inteiro: as linguagens do corpo. Disponível em: <http://www.tvebrasil.com.br/SALTO/boletins2001/ling/ lingtxt1.htm>. Acesso em: 20 jan. 2010. TIRIBA, Léa. Seres humanos e natureza nos espaços de Educação Infantil. Revista Sinpro-Rio, Rio de Janeiro, Jun. 2008. Disponível em: <http://www.

sinprorio.org.br/publicacoes/revista/Download/revistaed_infantil.pdf> Acesso em: 15 dez. VAGO, Tarcísio Mauro. Educação Física na Escola: lugar de práticas corporais lúdicas. Presença Pedagógica. Belo Horizonte, v.2, n. 10, jul./ago. 1996. .

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FICHA TÉCNICA

PREFEITA MUNICIPAL Marília Aparecida Campos

VICE – PREFEITO Agostinho da Silveira SECRETÁRIO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA Lindomar Diamantino Segundo

SECRETÁRIO ADJUNTO DE EDUCAÇÃO E CULTURA Dimas Monteiro da Rocha

COORDENADORA DAS POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO BÁSICA Maria Elisa de Assis Campos

AUTORES (AS) DO DOCUMENTO CONSULTORIA PEDAGÓGICA Fátima Regina Teixeira de Salles Dias Vitória Líbia Barreto de Faria

DIRETORIA DE EDUCAÇÃO INFANTIL Lucimara Alves da Silva Rosalba Rita Lima Valma Alves da Silva ASSESSORES (AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL DOS NÚCLEOS REGIONAIS DE EDUCAÇÃO

Cibelle de Souza Braga – NRE Industrial/Riacho Darci Aparecida Dias Motta – NRE Sede Érica Fabiana Beltrão Pereira – NRE Vargem das Flores Liliane Melgaço Ornelas – NRE Eldorado Maria Elizete Campos – NRE Petrolândia Micheli Virgínia de Andrade Feital – NRE Eldorado Sandro Coelho Costa – NRE Industrial/Riacho Silvia Fernanda Mutz da Silva – NRE Ressaca/Nacional Sônia Maria da Conceição Félix – NRE Sede

GRUPO DE TRABALHO RESPONSÁVEL PELA ELABORAÇÃO DO CADERNO A CRIANÇA, O CORPO E A LINGUAGEM CORPORAL Ana Paula Aguiar da Silva – CEI Santa Filomena Cristiane Diniz Oliveira – CEMEI Pés No Chão Daniele Aparecida Diniz – CEI Lírio do Vale

Darci Aparecida Dias Motta – Coordenação do Grupo Leila Henriques Lima Lopes - E.M. D. Babita Camargos Maristela Aguiar da Silva– CEI Santa Filomena Regiane Martins Costa Ribeiro – E.M. Sebastião Camargos Regina Magalhães Gomes da Silva – E. M. Francisco Borges

CO-AUTORES (AS) Profissionais da Educação Infantil da Rede Municipal e da Rede Conveniada de Contagem