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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03046 A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO CIENTÍFICO SOB O OLHAR DE DOIS CLÁSSICOS MEDIEVAIS: SÃO BOAVENTURA DE BAGNOREGIO E GUILHERME DE OCKHAM PERIN, Conceição Solange Bution (UNESPAR/FAFIPA-GTSEAM) OLIVEIRA, Terezinha (DFE/PPE/UEM-GTSEAM) Neste trabalho, faremos algumas considerações sobre questões que se referem ao discurso científico do final do século XIII e início do século XIV, questões estas que, a nosso ver, evidenciaram alterações no pensamento do homem medieval. Nesse sentido, o propósito deste estudo é compreender as discussões realizadas por dois mestres medievais: Boaventura de Bagnoregio e Guilherme de Ockham, sobre a importância do uso das ciências para o conhecimento de mundo e que evidenciaram, dentro de cada contexto, mudanças sócio-educacionais. Pautando-nos nesse pressuposto e buscando, dentre as transformações, as questões, também, religiosas, percebemos que em virtude das modificações verificadas na própria sociedade, os discursos sobre a fé e a razão estabeleceram conflitos, cada qual tendendo a acompanhar o movimento social do momento histórico. Sob essa perspectiva, abordaremos algumas modificações que permearam o período em estudo e que, paulatinamente, interferiram de forma significativa na formação do homem, modificando suas ações e pensamentos. Os autores, em estudo, apesar de terem realizado seus ensinamentos em universidades distintas e com quase um século de diferença, Boaventura na Universidade de Paris e Ockham na Universidade da Inglaterra, podemos perceber que algumas de suas preocupações tiveram objetivos parecidos, ou seja, a preocupação com o conhecimento mais aprofundado sobre as ciências. Ambos afirmaram que os homens precisavam conhecer o mundo pela via da razão, porém, os autores, cada qual no seu período, interpretaram o uso da racionalidade de formas diferentes.

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03046

A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO CIENTÍFICO SOB O OLHAR DE

DOIS CLÁSSICOS MEDIEVAIS: SÃO BOAVENTURA DE

BAGNOREGIO E GUILHERME DE OCKHAM

PERIN, Conceição Solange Bution (UNESPAR/FAFIPA-GTSEAM)

OLIVEIRA, Terezinha (DFE/PPE/UEM-GTSEAM)

Neste trabalho, faremos algumas considerações sobre questões que se referem ao

discurso científico do final do século XIII e início do século XIV, questões estas que, a

nosso ver, evidenciaram alterações no pensamento do homem medieval. Nesse sentido, o

propósito deste estudo é compreender as discussões realizadas por dois mestres medievais:

Boaventura de Bagnoregio e Guilherme de Ockham, sobre a importância do uso das

ciências para o conhecimento de mundo e que evidenciaram, dentro de cada contexto,

mudanças sócio-educacionais.

Pautando-nos nesse pressuposto e buscando, dentre as transformações, as questões,

também, religiosas, percebemos que em virtude das modificações verificadas na própria

sociedade, os discursos sobre a fé e a razão estabeleceram conflitos, cada qual tendendo a

acompanhar o movimento social do momento histórico. Sob essa perspectiva, abordaremos

algumas modificações que permearam o período em estudo e que, paulatinamente,

interferiram de forma significativa na formação do homem, modificando suas ações e

pensamentos.

Os autores, em estudo, apesar de terem realizado seus ensinamentos em

universidades distintas e com quase um século de diferença, Boaventura na Universidade

de Paris e Ockham na Universidade da Inglaterra, podemos perceber que algumas de suas

preocupações tiveram objetivos parecidos, ou seja, a preocupação com o conhecimento

mais aprofundado sobre as ciências. Ambos afirmaram que os homens precisavam

conhecer o mundo pela via da razão, porém, os autores, cada qual no seu período,

interpretaram o uso da racionalidade de formas diferentes.

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Na segunda metade do século XIII, por exemplo, como todo período de transição,

com as alterações sociais e com as mudanças de comportamento de costumes, o uso do

conhecimento pela via da ciência passa a ser uma exigência do dia-a-dia, pois conhecer o

mundo e as coisas que o compunham tornou-se extremamente necessário para os

comerciantes. Eles, ao negociarem, precisavam refletir para calcular valores e lucro.

Logo, o uso do pensamento reflexivo ou o desenvolvimento do intelecto, pela via

da razão, questão que Boaventura trata detalhadamente em suas obras, nos leva a entender

que essa preocupação não é singular de um momento histórico. O uso da inteligência

sempre foi uma questão debatida, porém, em cada época ela é analisada conforme o seu

contexto. Por exemplo, se no século XIII era preciso desenvolver o intelecto por meio do

uso das ciências, para compreender a existência de Deus e seguir os seus mandamentos, no

século XIV, já temos Guilherme de Ockham (1290-1349), também franciscano, afirmando

a necessidade do uso da inteligência para o conhecimento empírico.

Em outro sentido, toma-se “ciência” como conhecimento evidente, ou seja, quando se diz que sabemos não somente devido ao testemunho de outros, mas também assentimos, mediata ou imediatamente, sem que ninguém o conte, por algum conhecimento incomplexo dos termos. Assim, mesmo se ninguém me dissesse que a parede é branca, eu o saberia vendo a brancura dela. O mesmo se diga das outras verdades. Nessa acepção, não temos ciência apenas das coisas necessárias, mas também de algumas contingentes, quer sejam contingentes quanto à existência ou não-existência, quer de outra maneira (OCKHAM, 1973/A, § 1).

Conhecer estava no primeiro plano da vida cotidiana, pois o mundo não deveria

mais, como preconizava Ockham, ser concebido pelos olhos de outra pessoa, nem ser

apenas avaliado sem o conhecimento empírico de tudo aquilo que poderia ser esclarecido

pelos próprios olhos, o que se chamaria de ciência: “[...] “ciência” significa conhecimento

evidente de alguma coisa necessária. Não se conhecessem dessa forma as coisas

contingentes, mas os princípios e as conclusões que delas se seguem” (OCKHAM, 1973/A,

§ 1).

Todas as coisas deveriam ser conhecidas e esclarecidas pela experimentação de ver

ou de conhecer empiricamente, em conformidade com Ockham. Assim sendo, o autor

propõe uma análise de tudo o que poderia ser compreendido pelo intelecto, visto que todos

poderiam, por meio da inteligência e da sabedoria, descobrir e conhecer a natureza.

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Podemos entender que, independente do período histórico, a base principal dos

debates sobre o intelecto é o de fazer com que os homens façam uso da sua inteligência e

realizem suas ações e comportamentos de acordo com as necessidades da sociedade na

qual estão inseridos.

No final do século XIII, como exemplo, Boaventura abre um debate sobre os

ensinamentos que eram realizados sob as traduções das obras de Aristóteles. Para ele, a

forma como os mestres realizavam as discussões dessas obras levavam os indivíduos a se

distanciarem do conhecimento dado por Deus, porque a introdução da filosofia aristotélica

levou a um esquecimento do ensino da Teologia. A Faculdade de Artes da Universidade de

Paris se distanciou da Faculdade de Teologia e os ensinamentos se pautavam no entender

as ciências sem a forma arraigada na fé.

Logo, os mestres da Faculdade de Teologia, dentre eles Boaventura, não aceitavam

o ensino distanciado do ensino realizado sob os padrões conservadores do conhecimento

das Sagradas Escrituras, ou seja, a exímia interpretação dos ensinamentos divinos.

O conceito tradicional de teologia começa, desta forma, a sofrer uma mudança significativa com a aproximação ao pensamento filosófico aristotélico, mas ajudado por nova onda de traduções que leva a obra de Averróis e Aristóteles a ser difundida em Paris [...] (FALBEL, 1974, p. 8).

Para Falbel, o conflito ocorrido sobre a questão da Filosofia e da Teologia se

explica pelo fato de a Teologia ser a ciência cristã e, por isso, o uso de outra ciência para

explicar a vida humana não poderia ser aceita sem se submeter às explicações dadas pela

Teologia. Esse debate causou grandes conflitos e também possibilitou aos homens

pensarem e agirem de forma mais reflexiva sobre o mundo, de um lado explicado pelas

vias da Filosofia e de outro pela via das ciências subjugadas ao entendimento da fé.

Segundo Boaventura, quando a Filosofia era tratada como explicação primeira de

todas as coisas, ocorria uma negação da existência de tudo, porque nada se explicava por

completo sem o conhecimento da sua criação. Para tanto, Boaventura analisava o

desenvolvimento do intelecto como o principal meio de compreensão de mundo. Desse

modo, o autor apontou questões sobre o uso da Filosofia sem um envolvimento com a

Teologia. Para ele, os ensinos que estavam sendo pregados na Universidade de Paris pelos

averroístas, professores do ensino de Artes, favoreciam uma visão de mundo que levava à

ruptura do pensamento cristão. É, pois, em virtude do debate que ele proferiu na

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universidade, por meio de vinte e três conferências, nas quais procurou provar que a

Filosofia só se explicava pelos esclarecimentos dados pela Teologia.

Ockham, por outro lado, no século XIV, buscou mostrar, em seus debates, a

independência existente entre a fé e a razão. E interpretando o seu momento, constatou que

esse assunto poderia ser discutido e analisado de outro ponto de vista, ou seja, não era

necessário haver um embate entre a fé e a razão, mas sim reconhecer que ambas eram

caminhos distintos para explicar os homens pela natureza e pela alma.

Esses dois tipos de conhecimento, intuitivo e abstrativo, não diferem entre si pelo objeto, que é o mesmo, nem por suas causas – primeiro é causado pelo objeto presente, o segundo o pressupõe e é posterior à sua apreensão - mas são distintos intrinsecamente, pois o conhecimento intuitivo permite formular juízos evidentes em matéria contingente, enquanto o conhecimento abstrativo não o permite (OCKHAM, 1999, p. 19).

Ockham não põe em dúvida, em nenhum instante, a existência de Deus como

Criador de tudo, mas para ele a abstração (fé) não fornecia a dimensão exata do que se

imaginava, logo, não se tinha o conhecimento em sua íntegra. Assim, a informação abstrata

não deveria ser considerada como o ponto de partida para se conhecer a realidade, visto

que, para Ockham o verdadeiro entendimento das coisas se dava pelo conhecimento

intuitivo, empírico, o qual possibilitava ao indivíduo conhecer e apreciar a existência de

tudo o que a natureza fornecia, na sua forma real e natural. Desse modo, esse era o

conhecimento sensível, aquele que poderia elucidar o desconhecido, trazendo solução às

dúvidas do que existia efetivamente.

De acordo com Ockham, as vias de conhecimentos, apesar de serem distintas na

maneira de entendimento, dependiam uma da outra. Os questionamentos e as discussões

realizadas pelo autor acabaram por provocar um embate entre o conhecimento científico e

o poder religioso estabelecido pela Igreja, causando um discernimento da via da ciência e

da religião como verdades independentes e explicadas, cada qual, no seu campo de

entendimento.

Na concepção de Ockham, existiam dois princípios: um que estruturava o conhecer

pela fé e o outro pela razão. O primeiro, que se refere à abstração, concebe Deus como

Criador de tudo e de todos; portanto, para o autor, era inevitável não crer no ser Divino. O

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outro era que a experiência, a razão, apesar de não poder provar que Deus existe, era o

único caminho que se poderia ter para garantir a existência do que Deus criou.

Sobre o primeiro ponto, digo que este nome “Deus” pode ter diversas acepções. Uma delas é que Deus é algo mais nobre e melhor que todo outro ser. Conforme outra, Deus é aquilo em comparação com o qual nada é melhor e mais perfeito [...] Acerca do segundo ponto, digo que, tomando “Deus” na primeira acepção, não se pode demonstrativamente provar que há um só Deus. O motivo é que, nessa acepção, não se pode evidentemente saber que Deus existe; logo não se pode saber com evidência que ele é um só. A inferência é clara. Prova-se o antecedente: A proposição “Deus existe” não é notória por si, visto que muitos duvidam dela; nem pode ser provada por proposições evidentes por si, porque em todo raciocínio se assumirá algo duvidoso ou acreditado; nem será conhecida por experiência, como é manifesto (OCKHAM, 1973/F, p. 395).

Diante dessa afirmação, Ockham assinalava que Deus era o mais importante e

perfeito Ser. E que a credibilidade em sua existência, ou em um só Deus, deveria passar

pelos olhos da razão, pois o homem só crê naquilo que não vê por meio da reflexão e do

conhecimento empírico que ele tem sobre as coisas que Deus criou. Dito de outro modo, a

partir das coisas que conhece.

Boaventura, por sua vez, não deixava de incluir a Filosofia em suas explicações,

mas a explicava como uma ciência necessária para os homens terem mais fé e crerem com

mais veemência no Criador.

[...] Bonaventure essaie, ici, d’excuser les positions aistotéliciennes. Il désigne alors les limites des autres philosophes (Plotin, Platon, Cicéron) dont l’erreur fondamentale est celle-ci : les défauts n’atteignent pas la substance de l’âme. Sans la foi, ces philosophes ignorèrent la pleine réalité des vertus cardinales qui ne peuvent être acquises sans la grâce et qu’ils ne connurent qu’informes (OZILOU, 1991, p. 71)1.

De acordo com Ozilou, Boaventura estabelece um limite de verdade para os textos

de alguns filósofos, pois considera que os erros fundamentais deles era afirmar que os

1 [...] Boaventura tenta, aqui, se desculpar das posições de Aristóteles. Ele designa então os limites dos outros filósofos (Plotin, Platão, Cícero) os quais o erro fundamental é este: os defeitos não atingem a substância da alma. Sem a fé, esses filósofos ignoram a plena realidade das virtudes cardinais que não podem ser adquiridas sem a graça e que eles somente conhecem informes (OZILOU, 1991, p.71).

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defeitos cometidos pelos indivíduos não atingiam a essência, a pureza, da alma. Sem fé,

esses filósofos desconsideravam que os bons sentimentos, que revelam o homem como ser

criado por Deus e seguidor dos seus mandamentos, não podem ser adquiridos sem os

ensinamentos divinos dados pela Teologia.

A inteligência, na visão de Boaventura, deveria ser elevada pela fé, e quando

elevada pela fé o homem conseguiria se superar com maior facilidade das tentações do dia-

a-dia, como, exemplo, do desejo carnal, da gula, da inveja etc. «Bonaventure enseigne ici

la nécessité de la foi, sa suffisance, et sa beauté, qui se manifeste principalement dans la

Trinité et dans l’exemplarité du Créateur» (OZILOU, 1991, p. 72-73)2. Ozilou

complementa afirmando que Boaventura entendia que o Criador deu origem a todas as

coisas, deu a inteligência aos homens, logo, se Deus possibilitou tudo isso, Ele era o

primeiro inteligível.

Nous savons que Dieu est premier par livre de l’Écriture et la raison, et par le livre de la nature selon l’ordre, l’origine et l’achèvement des créatures. Dieu est donc le premier inteligible. La foi éléve et stabilise l’âme dans la présence de l’être premier, être et vérité (OZILOU, 1991, p. 75)3.

De acordo com Boaventura, o fato de Deus ser considerado como o primeiro

inteligível esclarece que Ele, ao criar o homem como seu semelhante, deu a ele a

inteligência com a possibilidade de desenvolvê-la. Porém, se a inteligência é uma

iluminação divina, conforme afirma o autor, para desenvolvê-la o caminho só pode ser por

meio dos ensinamentos divinos. Ao analisar que, se o Criador deu origem a tudo e a todos,

a ordem das coisas, para serem consideradas como corretas, deve seguir os seus

ensinamentos.

Com isso, a possibilidade apresentada aos homens por Boaventura, para garantirem

um retorno a sua criação, é ter uma vida terrena pautada nos ensinamentos da Teologia,

única ciência que conseguia entender e explicar a importância das demais ciências para

fundamentar o conhecimento e elevar a inteligência pela fé.

2 Boaventura ensina aqui a necessidade da fé, sua suficiência, e sua beleza, que se manifesta na Trindade e na exemplaridade do Criador (OZILOU, 1991, p.72-73). 3 Nós sabemos que Deus é primeiro pelo livro da Escritura e da razão, e pelo livro da natureza segundo a ordem, a origem e o fim das criaturas. Deus é, portanto o primeiro inteligível. A fé eleva e estabiliza a alma na presença do ser primeiro, ser e verdade (OZILOU, 1991, p.75).

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Podemos perceber que Boaventura tentava evitar quaisquer possibilidades de

questionamentos e dúvidas do poder divino sobre os homens. O seu modo de exposição

fazia com que a Filosofia não perdesse a valoração e, ao mesmo tempo, levava os homens

a crerem que, se seguissem somente o conhecimento pela via da razão (Filosofia), se

distanciariam dos caminhos propostos pelo Criador para atingirem a vida eterna.

Ele ainda explicava que a dimensão da fé comporta dois aspectos: a altura da

sublimidade e a altura da profundidade. Ou seja, a altura da sublimidade se mede pelo

conhecimento que se tem de Deus e a altura da profundidade consiste no ponto de

conhecimento que o homem tinha chegado. Assim, ele queria dizer que depende da

compreensão que o indivíduo tem do Criador e das suas criações para entender que

algumas coisas, muitas vezes, são inexplicáveis pelas palavras humanas, quando não há o

desenvolvimento da inteligência, realizado pela fé.

[...] « Elle est plus hatue que le ciel : que feras-tu ? », puis de la seconde : « Elle est plus profonde que l’enfer : par oú la connaîtras-tu ? » La profondeur de Dieu fait homme, c’est-à-dire l’humilité, est si grande de la raison défaille. La hauteur de Dieu est insondable. Aussi est-il-écrit : « Ta science merveilleuse me dépasse ; elle s’élève si haut et je ne pourrai l’atteindre ». [Si « nous ne trouvons qu’avec labeur », en effet, les réalites visibles et « à notre portée, celles qui sont dans le ciel »et qui concernent la déité de Dieu et l’humanité du Crist, « qui pourra les découvrir ? ». C’est pourquoi il est écrit dans l’Eclesiaste : « Toutes les choses sont difficiles, et l’homme ne peut les expliquer par la parole ». Si la foi ne croit pas, la parole ne peut guere expliquer ce qui concerne le Christ]. De plus, il dit « dans les hauteurs » en tant que la foi enseigne la connaissance du Dieu éternel, et « mon trône est dans la colonne de nuée » en tant qu’elle enseigne la connaissance du Dieu fait homme (BOAVENTURA, Huitième Conférence, § 5)4.

Segundo Boaventura, se não houvesse a fé, as palavras não conseguiam explicar o

que advinha de Cristo e era inatingível pelo homem. Portanto, ao criticar, exaustivamente,

o uso da Filosofia sem a mediação da Teologia, ele dizia que o conhecimento só se tornava

4 [...] “Ela é mais alta que o céu: que farás tu?” depois da segunda: “Ela é mais profunda que o inferno: por onde a conhecerás tu?” A profundidade de Deus fez o homem. A grandeza de Deus é insondável. Também está escrito: “Tua ciência maravilhosa me ultrapassa: ela se eleva tão alto que eu não poderei atingi-la”. (Se “Nós somente encontramos com labor”, com efeito ”as realidades visíveis e a nosso alcance, essas que estão no céu” e que concerne à deidade de Deus e humanidade do Cristo, “quem poderá descobri-las?” É porque está escrito em Eclesiastes: “Todas as coisas são difíceis, e o homem não pode explicá-las pela palavra”. Se a fé não crê, a palavra não pode quase nada explicar o que concerne o Cristo). Do mais, ele disse “nas alturas” como a fé ensina o conhecimento do Deus eterno, e “meu trono está na coluna de nuvem” como ensina o conhecimento do Deus feito homem (BOAVENTURA, Oitava Conferência, § 5).

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sabedoria quando fosse desenvolvido, primeiro, pela ciência do conhecimento das coisas

divinas, para depois passar pela ciência do conhecimento das coisas humanas.

Ele norteia essa discussão até a décima segunda Conferência. A partir da décima

terceira até a vigésima terceira, a questão principal é sobre a inteligência instruída pela

Sagrada Escritura. Após as explicações que apresentaram a criação de todas as coisas e a

necessidade da fé para o desenvolvimento da inteligência, as últimas conferências foram

dedicadas a provar que sem o conhecimento dos ensinamentos divinos o homem não

desenvolvia a fé e sem a fé não teria o desenvolvimento do intelecto. O autor, nessas

conferências, continuava interligando a questão das ciências e valorizava a Filosofia, mas

não dava abertura para essa ciência ser considerada como a principal via do conhecimento.

Ao se referir a Sagrada Escritura, ele reconduzia o entendimento desta ao princípio

da origem e a entender a realidade eterna. Segundo o autor, a Escritura era o único

ensinamento que tratava das realidades passadas, presentes e futuras, pois revelava

acontecimentos históricos que mostravam o poder de Deus sobre os homens e o mundo.

Mais si l’Ecriture traite des réalités temporelles, elle traite ou bien des réalités passes et ainsi des [faits] historiques, ou bien des réalites présentes et ainsi des [enseignements] sapientiaux, ou bien des réalités futures et ainsi des [vision] prophétiques. Il y a donc des commandements, des exemples, des enseignements et des révélations (BOAVENTURA, Treiziéme confèrence, § 17)5.

Dessa forma, para ele a Sagrada Escritura interligava a compreensão da razão e da

fé, permeada pela Teologia, porque, para entender as questões históricas e os ensinamentos

de Deus por meio das revelações postas na Bíblia, é preciso crer na existência do Criador

com o uso do intelecto. E, conforme Boaventura, os esclarecimentos sobre as questões

postas nas Escrituras apresentam uma sequência que mostra as causas eficientes, as

materiais, as formais e as finais. A causa eficiente das Escrituras é referida a que favorecia

a revelação de que as coisas foram originadas por Deus. A causa material se explica pelo

fato do Criador estar presente tem todas as coisas. A formal é a sabedoria revelada pela

5 Mas se a Escritura trata das realidades temporais, ela trata ou bem das realidades passadas e assim dos fatos históricos, ou bem das realidades presentes e assim dos ensinamentos sapientes, ou bem das realidades futuras e assim das visões proféticas. Há, portanto, comandos, exemplos, ensinamentos e revelações (BOAVENTURA, Décima terceira conferência, § 17).

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inteligência. A final se revela na interpretação dos ensinamentos divinos. Ozilou se refere a

essas questões de Boaventura, esclarecendo que,

Dieu ètant ègalement le principe des choses, des âmes et des mots, la varété des sens possibles et leur harmonie, que « Dieu seul » connaît, peuvent se ramener : eu ce qui concerne les théories, au développement de la révélation (OZILOU, 1991, p. 77)6.

Como para Boaventura as Escrituras corresponde à revelação da inteligência de

Deus como ensinamentos aos homens, a interpretação das palavras da Bíblia é essencial

para entender a submissão da Filosofia à Teologia, pois somente esta ciência pode

interpretar profundamente as questões divinas. O autor detalhou a sujeição da Filosofia e

afirmou que nenhuma ciência pode ser mais importante do que a que esclarece sobre as

coisas consideradas incompreensíveis aos olhos da razão. Logo, as Escrituras, que provém

da iluminação do Criador e não de outras ciências, são a revelação da existência de Deus,

pois é nas Sagradas Escrituras que estão os seus ensinamentos, os seus exemplos, o

discernimento entre o bem e o mal e a confirmação de que o indivíduo, ao seguir os seus

mandamentos, está se preparando para a vida eterna.

Nesse sentido, entendemos que Boaventura representou o seu tempo com seus

ensinamentos. E, como outros mestres medievais, procurou expor o seu pensamento na

universidade, local que favorecia a exposição de longos debates teóricos. Logo, a

Universidade de Paris foi para esse autor o lugar de melhor veículo para os seus

ensinamentos. Na universidade ele provocou debates, expressou os seus conhecimentos

bíblicos e procurou provar que, apesar de necessário na vida prática, o conhecimento

científico tem como principal questão entender Deus como criador de tudo.

Para Ockham, conhecer correspondia ao primeiro plano da vida cotidiana, pois o

mundo não deveria mais, como preconiza Ockham, ser concebido pelos olhos de outra

pessoa, nem ser apenas avaliado sem o conhecimento empírico de tudo aquilo que poderia

ser esclarecido pelos próprios olhos, o que se chamaria de ciência: “[...] “ciência” significa

conhecimento evidente de alguma coisa necessária. Não se conhecessem dessa forma as

6 Deus, sendo igualmente o princípio das coisas, das almas e das palavras, a variedade dos sentidos possíveis e sua harmonia, que “Deus único” conhece, podem se portar: tido o que concerne às teorias, ao desenvolvimento da revelação (OZILOU 1991, p.77).

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coisas contingentes, mas os princípios e as conclusões que delas se seguem” (OCKHAM,

1973/C, p. 342).

Segundo Ockham, todas as coisas deveriam ser conhecidas e esclarecidas pela

experimentação de ver ou de conhecer empiricamente, em conformidade com Ockham.

Assim sendo, o autor propõe uma análise de tudo o que poderia ser compreendido pelo

intelecto, visto que todos poderiam, por meio da inteligência e da sabedoria descobrir e

conhecer a natureza.

Ele procurou despertar a importância da experiência, da reflexão sobre o que se

admirava, porém, não se conhecia, só se imaginava, tal como a natureza ou algo que se

ouvia falar mas que não se via. Nas palavras de Ockham,

[...] “ciência” é certo conhecimento de alguma verdade. Assim se sabem coisas só pela fé. Dizemos por ex., saber que Roma é uma grande cidade, ainda que não a tenhamos visto; e digo igualmente saber que este é meu pai e esta minha mãe; e o mesmo se assevera de outras coisas que não são evidentemente conhecidas, mas que, porque as admitimos sem qualquer dúvida e por serem verdadeiras, dizemos conhecer (OCKHAM, 1973/c, p. 342).

A experiência e o conhecimento intuitivo, para Ockham, estavam em primeiro

plano, ou seja, era preciso experimentar empiricamente para conhecer. Todavia, nem tudo

era possível de comprovar a existência pela experiência, e nesses casos a razão era a

premissa para a compreensão do abstrato. O uso do intelecto fazia com que se entendesse o

que não se via.

[...] pelo conhecimento abstrativo não se pode conhecer com evidência verdade contingente, sobretudo referindo-se ao presente. Isso se verifica pelo fato de que, quando se conhecem Sócrates e a sua brancura, na ausência dele, não se pode conhecer por esse conhecimento incomplexo se Sócrates é ou não é, se é branco ou não, se dista de determinado lugar ou não, e assim a respeito das outras verdades contingentes. Mas é certo que essas verdades podem ser conhecidas com evidência (OCKHAM, 1973/c, p. 344).

Ockham foi um dos pensadores que possibilitou, com os seus ensinamentos e as

possibilidades existentes na época, proporcionar que a reflexão passasse a fazer parte do

cotidiano e que as experiências obtivessem um valor de credibilidade e descoberta.

Podemos afirmar que as discussões de Ockham propiciaram ao homem crer no próprio

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“eu”, refletir sobre as coisas abstratas e concretas, uma vez que com a sua lógica o autor

levava os homens a entender que era preciso haver um pensamento reflexivo, um novo

raciocínio sobre os fatos e os conceitos de tudo que permeava a sociedade.

A experiência moveu e transformou os costumes, a forma de agir e possibilitou o

surgimento de uma ciência nova, tímida, mas que paulatinamente foi se fortalecendo,

cerceando o conhecimento contemplativo e permitindo que os indivíduos usassem da

imaginação pautada na razão.

As discussões de Ockham demonstravam que o conhecimento que vinha sendo

utilizado até então já não supria as necessidades de sobrevivência estabelecida pelos

homens, isto é, aquela visão de mundo proposta pelos universalistas, na qual todas as

coisas se explicavam de maneira semelhante, já não condizia com a prática dos homens de

seu período.

Cumpre dizer, portanto, que qualquer universal é uma coisa singular, e, por isso, não é universal senão pela significação, porque é signo de muitas [coisas]. E isso é o que diz Avicena, no Livro V da Metafísica: “Uma forma no intelecto está relacionada a uma pluralidade (multiuso), e sob esse aspecto é um universal, porque este é uma intenção no intelecto cuja relação (comparatio) com o que quer que seja não varia”. E prossegue: “Essa forma, embora em relação aos indivíduos seja universal, todavia é individual em relação à alma singular em que está impressa. Com efeito, ela é uma única entre as formas que estão no intelecto”. Ele quer dizer que o universal é uma intenção singular da própria alma destinada a ser predicada de muitas [coisas], de tal sorte que, em razão de ser uma forma, existente realmente no intelecto, é dita singular (OCKHAM, 1999, p. 160).

Ockham propunha uma individualidade a cada coisa e o entendimento desse

elemento tinha como um dos fatores principais as palavras que conceituavam cada objeto.

Analisando as formulações nominalistas do autor, percebemos que não se tratava apenas de

uma crítica aos universalistas, mas sim de uma realidade por ele vivenciada, na qual o

autor queria afirmar a existência de todas as coisas justificada na explicação experimental,

avaliada pelos próprios olhos.

Desse modo, o debate a respeito da fé e razão já era assunto de séculos anteriores a

Boaventura e Ockham, visto que desde que os homens medievais tiveram um acesso mais

difuso às obras de Aristóteles teve início uma nova reflexão referente à fé e razão, sobre a

qual vários autores puderam, em seus escritos, tentar discernir essas duas questões. Etienne

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Gilson, por exemplo, em sua obra A filosofia na Idade Média, mostra que vários autores,

cada qual em seu período, tentaram discorrer sobre o entendimento do universo pelo

conhecimento racional.

O século XIII geralmente acreditou ser possível numa síntese sólida a teologia natural e a teologia revelada, concordando a primeira com a segunda nos limites da sua competência própria e reconhecendo sua autoridade em todas as questões relativas a Deus que ela mesma não podia resolver. Seus representantes mais ilustres esforçaram-se, pois, para determinar um ponto de vista em que todos os conhecimentos racionais e todos os dados da fé pudessem aparecer como elementos de um único sistema intelectual (GILSON, 1998, cap. IX, p. 794).

Para Gilson, mesmo com a exigência do desenvolvimento comercial que estava

ocorrendo nos séculos XIII e XIV, voltado para um mundo reflexivo, de descobertas e

necessidades de novos conhecimentos, aconteceu um embate de sentimentos quando os

indivíduos procuraram entender o mundo pelos olhos da razão e questionaram todos os

entendimentos que eles haviam adquirido pela abstração, imaginação. De acordo com

Gilson, especificamente Ockham, ao propor o discernimento de uma questão e outra – fé e

razão, justificando cada uma como necessidade do dia-a-dia, apresentava, aos homens, a

possibilidade de dúvida sobre tudo o que já havia sido explicado e considerado como

indubitável.

Entendendo que, o modo de conceber a ciência se modifica de acordo com as

necessidades historicamente postas, isto é, os homens estão sempre buscando novas formas

de atender as necessidades sociais, percebemos que a concepção de ciência para

Boaventura e Ockham ia além do conceito de experimentar ou conhecer as coisas em sua

íntegra. Para eles, a ciência estava na mente das pessoas, incutida em um saber que após

vários entendimentos chegava à alma como informação; esta, para ele, seria a ciência

humana. Para Boaventura, a ciência aproximava o homem de Deus, pelo fato de entender

que Deus criou tudo e todas as coisas.

Para Ockham, seria a prova da existência dessa ciência humana era considerar a

ciência como um hábito que se tornaria uma qualidade. Nesse caso, segundo Ockham, essa

ciência seria o conhecer racional, porque quando já existia a reflexão, o entender pela

intelecção, o sujeito não apreenderia mais do que já tinha conhecido; entretanto, quando o

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entendimento ainda estava pela via da fé e passava pela via da razão, a alma adquiria algo

que antes não possuía, ou seja, a compreensão racional.

As reflexões desses autores, Boaventura e Ockham, voltadas para a necessidade de

se conhecer Deus como uno, perfeito, verdadeiro e reconhecido pela ciência como o

Criador de tudo e de todos, por meio das ciências, tornou-os um diferencial em relação aos

outros autores que tratavam das mesmas questões, visto que, esses autores afirmam que

não seria possível conhecer o mundo e a sua criação sem o uso das ciências. Eles, ao

mesmo tempo que direcionavam os homens para o conhecer pela via da razão, mostravam

que para tudo havia uma exceção, uma forma de entender o que não poderia ser

comprovada pelos olhos do conhecer racional, e sim pelo conhecimento da fé.

REFERÊNCIAS:

FABEL, NACHMAN. Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: Perspectiva: Fapesp: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. GILSON, E. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. OCKHAM, Guilherme de. Lógica dos termos. Trad. Fernando Pio de Almeida Fleck. Introd. Paola Muller. Porto alegre: Edipucrs, 1999. OCKHAM, Guilherme. Noção do conhecimento ou ciência. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril S.A., 1973/C. OCKHAM, Guilherme. Prova da Existência de Deus. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril S.A., 1973/F. OZILOU, Marc. Introduction. In: SAINT BONAVENTURE. Les six jours de la Création. Paris: Desclée/Clerf, 1991 SAINT BONAVENTURE. Huitième Conférence. In : Les six jours de la création. Paris: Desclée/Clerf, 1991. SAINT BONAVENTURE. Treizième Conférence. In : Les six jours de la création. Paris: Desclée/Clerf, 1991.