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A CARACTERIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS PARA VICO E
HOBBES: SUBSÍDIOS PARA PENSAR O SABER JURÍDICO
Claudia Roesler1
RESUMO O artigo discute a caracterização de um modo de conhecimento dos âmbitos da ação humana (Direito, Política, Moral) que predominou até o século XVII e sua substituição pelo modelo moderno de Ciência, de base cartesiana, a fim de lançar luzes sobre o candente debate que se realizou no século XX sobre a cientificidade do trabalho do jurista. Para percorrer um caminho histórico que se inicia na Antiguidade clássica e chega ao século XX, usa como guias os autores alemães Theodor Viehweg e Jürgen Habermas, os quais discutem basicamente as obras de Giambattista Vico e de Thomas Hobbes para tornar palpável a contraposição entre os dois modelos de conhecimento – dos antigos e dos modernos, de cunho retórico e cartesiano, respectivamente. A reflexão encerra-se apontando a necessidade de se repensar o próprio modelo moderno de Ciência e sua viabilidade de aplicação às ciências humanas, bem como precisar melhor o que significa a modificação ocorrida com o surgimento da esfera social ao lado daquela política. PALAVRAS-CHAVE: ciência social – conhecimento jurídico – Thomas Hobbes – Giambattista Vico – epistemologia jurídica – cartesianismo.
1 Considerações Introdutórias
O presente artigo busca refletir sobre uma das mais candentes e por isso mesmo
complicadas questões de Filosofia do Direito: a delimitação epistemológica do trabalho do
jurista e a conseqüente atribuição do status de cientificidade à doutrina que ele elabora.
Presa em um dilema mais ou menos insolúvel – muito bem localizado por Chaîm Perelman,
ao mencionar a identificação entre racionalidade e lógica formal e a conseqüente
irracionalidade quando da ausência dos estritos modos de demonstração formal2 – a
discussão oscilou, ao longo da segunda metade do século XX, entre aquelas posições que
reafirmavam a cientificidade, a sistematicidade e a presença exclusiva dos métodos da
ciência moderna no pensamento jurídico e aquelas que procuravam ver no trabalho do
jurista um outro modelo de pensamento, ancorado na retórica e na tópica, patrimônios 1 A autora é doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FD-USP – e professora de graduação e pós-graduação stricto sensu da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. 2 PERELMAN, Ch.; TYTECA, L. O. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 7 et seq.
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culturais da antiguidade clássica. Os trabalhos de Perelman e Viehweg são as bases desta
segunda vertente e constituem, de certo modo, o início de toda a teoria da argumentação
posteriormente desenvolvida, inclusive com o intuito de superar o impasse acima
mencionado.
Entender a questão e poder acompanhar seus desenvolvimentos contemporâneos
supõe compreender as bases do debate. Estas somente podem ser bem localizadas se
recuarmos ao tempo em que se formulou a concepção moderna de Ciência, com as
contribuições de Descartes, Galileu, Bacon, dentre outros, e a sua aplicação às ciências
humanas. A presente reflexão procura, assim, recuperar esquematicamente os passos de
uma transição entre o modo de pensar dos antigos, que nasceu com os gregos e predominou
pelo menos até o século XVII e o modo de pensar dos modernos, inaugurado pela reflexão
cartesiana e pelos seus desdobramentos posteriores.
Apanhar esta transição implica em localizar as vozes que a enunciaram e por isso
toma-se como ponto de partida um pequeno ensaio de Giambattista Vico, no qual a
discussão gira exatamente em torno deste tema. Dada a complexidade do tema e das fontes
da discussão, é conveniente esclarecer o leitor que utilizar-se-á como guia alguns autores
que auxiliarão a realizar o percurso requerido sem maiores delongas e com o foco voltado
para a discussão do modelo moderno de Ciência nas ciências humanas, sem desconhecer
que outras tantas opções poderiam ser realizadas para uma discussão similar.
Os autores escolhidos são Theodor Viehweg3, por apontar diretamente ao
problema em sua recuperação da tópica para compreender a praxis do jurista e Jurgen
Habermas, por discutir a relação teoria e praxis que é o fundamento de toda a polêmica,
como se verá oportunamente.
Para desenvolver este tema principiar-se-á por abordar a alusão de Vico tal como
interpretada por Viehweg e por Habermas, objeto do item 1. Realizada tal abordagem, nos
dedicamos à transição entre o modo de pensar dos antigos e o dos modernos, no item 2. Ao
final, breves considerações encerram esta reflexão.
3 O texto de Viehweg utilizado será o de Topik und Jurisprudenz. Para facilitar o trabalho do leitor será referenciado sempre na edição alemã (VIEHWEG, Theodor. Topik und jurisprudenz. 5. ed. München: Beck, 1974) e na edição brasileira (VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Brasília: Imprensa Nacional, 1979), indicando-se as páginas em cada uma. O texto de Habermas será utilizado na tradução para o espanhol, assim consignada: HABERMAS, Jürgen. Teoria y praxis. 3. ed. Madrid: Tecnos, 1997.
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2 A Crítica de Vico ao Cartesianismo
A obra de Vico que se deve examinar intitula-se De nostre temporis studiorum
ratione4, título que pode ser compreendido aproximadamente como “o caráter dos estudos
do nosso tempo”5 ou, conforme a tradução italiana “il metodo degli studi del tempo
nostro”6. Esse trabalho, como explica o próprio autor, que na época era professor de
eloqüência ou retórica (proffessor eloquentiae), foi elaborado em 1708 como uma preleção
a ser lida por ocasião da inauguração solene da Universidade Real de Nápoles e
posteriormente ampliada. Sua intenção básica é responder as seguintes questões: que
método de estudo é melhor e mais correto? O nosso ou aquele dos antigos? Ou, na versão
menos modesta explicitada ao final do trabalho: conciliação do tipo de estudos antigo e
moderno.7
Após delimitar, na introdução de Topik und Jurisprudenz, os propósitos e limites
de seu trabalho, Theodor Viehweg principia (Parágrafo 1º) seu tratamento abordando a
alusão (hinweis) que retirou do escrito de Vico. Refere-se então expressamente ao fato de
que não pretende “examinar os múltiplos aspectos dessa interessantíssima dissertatio, mas
sim extrair dela as idéias fundamentais.”8 Do mesmo modo, quase ao final do parágrafo
ressalta que abandonaremos o Vico histórico para prosseguir no seu tema: a estrutura dos
dois modos de pensar, bem como o papel da tópica e sua relação com a jurisprudência. Não
há interesse, portanto, em examinar com profundidade a própria elaboração teórica de Vico
em seu conjunto, mas sim de utilizá-la como um ponto de partida, um insight que sirva para
salientar a que aspectos ou questões devemos voltar o nosso olhar e, nesse sentido, mais
importante do que o intuito de Vico em produzir a concordância entre os dois modos de
pensamento é a sua comparação entre ambos. Mesmo porque, conforme Viehweg assinala
expressamente ao final do parágrafo 1º, importa indagar que conseqüências teve sobre a 4 Utiliza-se e citar-se-á sempre a tradução italiana assim consignada: VICO, Giambattista. Il Metodo degli studi del tempo nostro. In: Opere. Verona: Stamperia Valdonega, 1953. Colezione la letteratura italiana, Storia e testi, vol. 43, p. 169-242. 5Cfe. propõe Ferraz Jr. em sua tradução da obra de Theodor Viehweg, Topik und Jurisprudenz. Vide VIEHWEG, T., op. cit., p. 19, da edição brasileira. 6A expressão “método” é um tanto problemática na medida em que a tópica-retórica, que Vico considera o modo de estudo dos antigos, não é um método mas um estilo de pensamento. O autor da tradução, todavia, salienta que a escolheu tendo em vista que Vico estava claramente debatendo com o “Discurso do Método” de Descartes. 7VICO, G. , op. cit., p. 172 e 241, respectivamente (tradução nossa). 8Cfe. VIEHWEG, T., op. cit., p. 20, da edição brasileira e 16 da edição alemã.
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jurisprudência a mudança de estrutura, decorrente do novo modo (cartesiano ou crítico) de
pensamento.
Viehweg seleciona, por assim dizer, alguns aspectos mais importantes da
dissertação, principiando pelo modo como Vico refere-se aos instrumentos da Ciência, aos
seus “métodos” ou estilos de trabalho. Nesse sentido Vico menciona o antigo como
retórico/tópico e o moderno como crítico. O primeiro é herança da antigüidade e o segundo
é representado pelo cartesianismo9. O primeiro lida com o verossímil e o provável; o
segundo visa conduzir a uma sistematização dedutiva perfeita a partir de premissas
verdadeiras, evidentes. Nas palavras de Viehweg:
Vico caracteriza o método novo (crítica) da seguinte maneira: o ponto de partida é um primum verum, que não pode ser eliminado nem mesmo pela dúvida. O desenvolvimento ulterior se dá à maneira da Geometria, isto é, segundo os ditames da primeira ciência demonstrativa que conhecemos. Portanto, na medida do possível, através de longas cadeias dedutivas (sorites). Em sentido contrário, o método antigo (tópica) assim se caracteriza: o ponto de partida é o sensus communis (senso comum, common sense), que manipula o verossímil (verisimilia), contrapõe pontos de vista conforme os cânones da tópica retórica e sobretudo trabalha com uma rede de silogismos.10
Vico considera como vantagens do novo procedimento a agudeza e a precisão que
esse possibilita, e como desvantagens a perda de penetração, o estiolamento da fantasia e da
memória, a pobreza da linguagem, a falta de amadurecimento do juízo. Parecem, aponta
Viehweg, predominar as desvantagens.
Dada a forma um tanto obscura como Vico escreve é difícil localizar uma
afirmação peremptória e textual de que o modo de pensamento tópico-retórico seja de fato
“melhor”, no sentido de que traz mais “vantagens” do que “desvantagens”. O que é
incontestável, e aparece ao longo de todo o texto, é que lhe parece um engano ensinar aos
jovens apenas a partir do novo método cartesiano. As vantagens e desvantagens presentes
nos dois modos, que ele resume com a idéia de que ambos os modos são “defeituosos”,
resultam de que o tópico aceita até mesmo o falso, enquanto que o crítico não aceita nem
mesmo o verossímil.11
Como evitar as desvantagens? Ensinando, diz Vico, ambas as formas de
pensamento. Em primeiro lugar a tópica e, depois que o jovem tenha já alcançado a
9VICO, G., op. cit. p. 174-179. 10Cfe. VIEHWEG, T., op. cit., p. 20, da edição brasileira e p. 17 da edição alemã. 11VICO, G., op. cit., p.181.
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maturidade e desenvolvido a capacidade imaginativa e a eloqüência e se aproximado da
“prudência civil”, então ensiná-lo a crítica.12
Parece, todavia, que mesmo com as obscuridades e os rodeios que Vico faz, o seu
intuito maior era de fato uma crítica ao cartesianismo então em franca expansão, justamente
para mostrar que não se podia contar com esse método em alguns aspectos da vida humana
de fundamental importância. Conhecedor do cartesianismo, Vico procurava refutá-lo nesse
e em outros escritos.13
Peter Burke, ao comentar esse escrito de Vico, afirma que o aspecto central, por
assim dizer, do “passeio” empreendido pelo autor por todas as artes e ciências da época, um
pouco à maneira de um texto de Bacon que ele cita no início de sua dissertação14, é a recusa
da pretensão do novo método de ser comum a todas as ciências. Precisamente, e aí está o
ponto que nos parece interessar diretamente a Viehweg, rejeitaria Vico que esse novo modo
de pensamento fosse aplicável à sabedoria prática, à Ética, à Política e ao Direito.15
Burke reforça essa afirmação mostrando que, em um outro escrito, datado de 1710
e intitulado Sobre a antiga sabedoria dos italianos, Vico torna a ressaltar a sabedoria
prática da qual falara em seu discurso de 1708 e a criticar o método geométrico e sua defesa
das “idéias claras e distintas”, consideradas por Vico não como uma virtude do
conhecimento humano, mas como um vício.16
A questão, portanto, que aparece após a caracterização dos dois modos e sua
comparação em termos de vantagens e desvantagens, e que parece-nos ser o centro do
interesse de Viehweg, é que o novo método ou estilo de pensamento descarta
completamente o antigo, propugna mesmo a sua eliminação, pretendendo ser utilizado em
todas as áreas do saber humano. Sobre a pretensão do novo método crítico diz Vico:
Se não que hoje vem cultivada exclusivamente a crítica: a tópica, longe de ser posta em primeiro plano, é em tudo e por tudo deixada para trás. E mais uma vez
12VICO, G., op. cit., p. 180-181. 13BURKE, Peter. Vico. São Paulo: UNESP, 1997. p. 84-85. “...Vico era, no fundo, um humanista renascentista, sugestão esta confirmada por suas freqüentes e favoráveis referências a outros humanistas, de Petrarca a Lípsio. Era sem dúvida um humanista tardio, um dos últimos da raça, cônscio da Revolução Científica do século XVII e marcado pelas idéias de Descartes, ainda que as rejeitasse e as refutasse.” 14Vico inicia a dissertação citando o texto De dignitate et de augmentis scientiarum de Francis Bacon, publicado em 1623, como parte de um projeto mais amplo de desenvolver um ambicioso plano de trabalho científico – chamado por ele de A Grande Instauração - do qual o referido texto seria a primeira parte. Cfe. ANDRADE, José Aluysio Reis. Vida e Obra. In BACON. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. p. 10. 15Cfe. BURKE, P., op. cit., p. 34. 16Cfe. BURKE, P., op. cit., p.34-35.
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de maneira equivocada: pois, como a invenção dos argumentos precede por natureza a avaliação de sua veracidade, assim a doutrina tópica deve ser anteposta àquela crítica. Mas, ao contrário, os nossos dela se afastam e reputam-na de nenhum uso.17
A pretensão de exclusividade do novo método é que afigura-se como exagerada e
inadequada, na medida em que nega a necessidade da invenção dos argumentos antes que
se possa submetê-los a crítica18. Desse modo, retirar a tópica da esfera dos estudos significa
um grave prejuízo à formação e traz consigo todos aqueles inconvenientes já inventariados
por nós no resumo que deles faz Viehweg.
Mas talvez o maior inconveniente que Vico soube ver e que interessa diretamente
ao presente tema seja o da perda do acesso que o antigo saber tinha à praxis e que ocorre
conjuntamente com a sua substituição pelo novo modo crítico de pensamento.
Intrinsecamente ligado à assimilação forçada do novo modelo matematizante das ciências
naturais a todos os âmbitos de pensamento, esse problema remete à própria mudança que há
na concepção do objeto do saber prático e suas conseqüências.
Nesse sentido Habermas19, ao analisar a relação teoria e praxis, propõe a reflexão
de Vico, na dissertação que aqui interessa particularmente e em outros escritos, como ponto
de partida para acompanhar a mudança acontecida desde a antigüidade até a formação da
ciência moderna, e salienta precisamente essa nova concepção de método e objeto da
Ciência, bem como as suas conseqüências, em especial a perda de acesso do novo saber à
praxis. Mesmo que o foco central da análise de Habermas seja o âmbito do político, suas
reflexões podem iluminar melhor o contexto que se está buscando formar para compreender
o tratamento de Vico à questão.
17Cfe. VICO, G., op. cit. p. 178. Tradução livre da autora do artigo. No original: “Senonchè oggi vien coltivata esclusivamente la critica: la topica, lungi dall’esser messa al primo posto, è in tutto e per tutto ricacciata indietro. E ancora una volta a torto: giacchè, come l’invenzione degli argomenti precede per natura la valutazione della loro veridicità, così la dottrina topica dev’esser preposta a quella critica. Ma, intanto, i nostri se ne tengano lontani e la reputano di nessun uso. “Se não que hoje vem cultivada exclusivamente a crítica: a tópica, longe de ser posta em primeiro plano, é em tudo e por tudo deixada para trás. E mais uma vez de maneira equivocada: pois, como a invenção dos argumentos precede por natureza a avaliação de sua veracidade, assim a doutrina tópica deve ser anteposta àquela crítica. Mas, ao contrário, os nossos dela se afastam e reputam-na de nenhum uso.”. 18A distinção entre a invenção e a posterior análise lógica dos argumentos é também importante para a questão da fundamentação mais ampla da Ciência enquanto pensamento situacional. Vide VIEHWEG, T., op. cit., p. 103, da edição brasileira e p. 113 da edição alemã. 19Cfe. HABERMAS, J., op. cit., p. 49-86. A respeito consulte-se também KOPPERSCHMIDT, Josef. Von der Kritik der Rhetorik zur kritischen Rhetorik. In: PLETT, Heinrich. (Org.). Rhetorik: kritische positionem zum stand der forschung. München: Fink, 1977, p. 213-229.
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Utilizando-se de Hobbes como um autor modelo para ilustrar esse novo modo de
trabalhar com as questões ligadas à praxis, como a Política, a Ética e o Direito, Habermas
procura salientar a profunda diferença existente entre o modo como os antigos, na
elaboração teórica de Aristóteles, e os modernos concebem o tipo e o modo de saber que a
nova concepção exigia.
Assim, salienta que a antiga Política, ao modo aristotélico, converteu-se em algo
estranho para nós, ao menos em três sentidos. Em primeiro lugar, porque a Política era
entendida como a doutrina da vida boa e justa, continuação da Ética. Somente a Politeia
habilita o cidadão para a vida boa, e o homem é, em geral, zoon politikon no sentido de que
para a realização de sua natureza depende da cidade.20
Em segundo lugar, que a antiga doutrina da política referia-se exclusivamente à
praxis em sentido estrito, no sentido grego da expressão21. Não havia conexão nenhuma
com a techné, que consistia na fabricação habilidosa de obras e no domínio firme de tarefas
objetivadas.22 A Política orientava-se para a formação do caráter, procedendo pedagógica e
não tecnicamente. Já para os modernos, como Hobbes por exemplo, o gênero humano tem
de agradecer os maiores impulsos à técnica e, certamente, em primeiro lugar, à técnica
política da organização correta do Estado.23
Em terceiro lugar, Aristóteles sublinhava que a filosofia prática não pode
comparar-se em sua pretensão cognoscitiva com a ciência estrita, a episteme apodíctica.
Seu objeto, o justo e excelente, carece, no contexto da praxis mutável, tanto da
permanência ontológica como da necessidade lógica. A capacidade de filosofia prática é
phronesis, uma sábia compreensão da situação. Hobbes, ao contrário, quer criar ele mesmo
a política com vistas ao conhecimento da essência da justiça, a saber, leis e pactos.
Certamente, esta afirmação segue o ideal cognoscitivo contemporâneo das novas ciências
da natureza: que só conhecemos um objeto na medida em que podemos produzi-lo.24
20Cfe. HABERMAS, J. op. cit., p. 49-50. 21Cfe. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p.21. “A principal diferença entre o emprego aristotélico e o posterior emprego medieval da expressão é que o bios politikos denotava explicitamente somente a esfera dos assuntos humanos, com ênfase na ação, praxis, necessária para estabelecê-la e mantê-la. Nem o labor nem o trabalho eram tidos como suficientemente dignos para constituir um bios, um modo de vida autônomo e autenticamente humano.” 22Sobre a “fabricação” e o domínio de tarefas objetivadas vide ARENDT, H., op. cit., p. 149-187. 23Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit. p. 50-51. 24Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit. p. 50-51.
8
Esse novo modo de conceber a tarefa do pensamento no âmbito da Política, da
Ética e do Direito, significa essencialmente que se tem a pretensão de uma filosofia social
cientificamente fundamentada e portanto capaz de especificar, de uma vez por todas, as
condições da ordem estatal e social correta em geral. Nesse sentido, a transformação ou
utilização dos conhecimentos científicos aparece como um problema técnico, não como um
problema que requer a ação prática e sábia dos homens entre si. O necessário, nesse tipo de
conhecimento, é uma elaboração corretamente calculada de regras, relações e disposições, e
por isso a conduta dos homens entra em consideração somente como material25. Os
engenheiros da ordem correta podem prescindir das categorias do trato moral e limitar-se à
construção das circunstâncias sob as quais os homens, enquanto objetos naturais, estão
forçados a uma conduta calculável.26
O que se pode perceber como conseqüência dessa transformação é que há uma
mudança profunda de concepção do que se busca como finalidade do saber que explica e
prepara a convivência humana. Separadas Política e Moral, também a concepção
aristotélica da Política como um saber pedagógico cuja finalidade é a condução para uma
vida boa é substituída pelo entendimento da finalidade do saber como a condução para uma
vida moldada em uma ordem corretamente elaborada. E nesta medida se modifica tanto o
conceito de ordem como o âmbito que é ordenado: modifica-se o objeto mesmo da ciência
política (que deixa de ser uma “filosofia prática”). A ordem do comportamento virtuoso se
transforma em uma regulação do tráfico social. Ao referido câmbio na posição
metodológica corresponde uma remoção do objeto científico: a política se converte em
filosofia social.27
No contexto da discussão de Habermas sobre a relação teoria e praxis, fica
colocada a seguinte pergunta, a qual, a nosso ver, espelha exatamente a preocupação que
embasa a crítica de Vico ao novo modo de pensamento: Como pode saldar-se a promessa
da política clássica, a saber: a orientação prática sobre aquilo que em uma situação dada há
que se fazer de um modo correto e justo sem, por outra parte, renunciar ao caráter
estritamente cientifico do conhecimento, que pretende a moderna filosofia social em
25À medida em que o homem vê todas as atividades como um fazer (no sentido de fabricação) tudo se torna “meio” para um fim, inclusive a própria conduta humana. Vide ARENDT, H., op. cit., p.166-169. 26Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit. p.51 27Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit. p. 51.
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contraposição à filosofia prática dos clássicos? E como, contrariamente, pode cumprir-se a
promessa da filosofia social, a saber, uma análise teórica do contexto vital social, sem, por
outra parte, renunciar à orientação prática da política clássica?28
Nesse sentido Habermas salienta, ao analisar as referências de Vico, que o autor se
mantém na determinação aristotélica da diferença entre ciência e sabedoria: enquanto
aquela aponta para verdades eternas e deseja realizar afirmações sobre o que é constante e
com necessidade, a sabedoria prática só tem a ver com o provável. Vico mostra como essa
forma de proceder conduz na praxis a uma maior certeza e remete às realizações da
retórica, que se serve sobretudo da capacidade da phronesis e do modo de proceder
tópico.29
Vico, no entender de Habermas, e em contraposição com a filosofia social
contemporânea, já antecipa uma tendência que só se impõe hoje em dia. A falta de certeza
na ação cresce quanto mais estritamente se escolhem nesse âmbito os parâmetros para o
asseguramento científico. Nesta medida, Vico rechaça o atrevimento da ciência moderna de
“trasladar o método do juízo científico à praxis da sabedoria”. A fundamentação da
filosofia prática como ciência, que exige Bacon e que Hobbes promete realizar pela
primeira vez, lhe parece contraproducente. Nisto passa por alto que a nova posição
metodológica põe também a descoberto um novo objeto, precisamente o contexto vital do
social.30
A fim de se verificar com mais vagar quais as conseqüências desse processo que
Habermas está apontando, veja-se como se deu, acompanhando ainda a construção do
referido autor, a transformação da política clássica na moderna filosofia social entre
Aristóteles e Hobbes.
28Essa mesma pergunta pode ser feita para a Ciência do Direito entendida ao modo moderno, e em especial ao positivismo jurídico e sua recusa de oferecer qualquer juízo sobre o problema da justiça. Nesse sentido é interessante ver que Viehweg estava atento à questão e entendia que a própria recusa positivista tornava-a uma doutrina de base adequada ao “espírito” do seu tempo, conforme demonstra em alguns escritos. Cfe. VIEHWEG, Theodor. Was heisst Rechtspositivismus? In: Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie: Gesammelte Kleine Schriften. Baden-Baden: Nomos, 1995. p. 166-175. O artigo pode ser encontrado também em: VIEHWEG, Theodor. Qué significa positivismo jurídico? In: Tópica y filosofía del derecho. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 52-65. 29Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 52-53. 30Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 53-54. A esse respeito ARENDT, H., op. cit., p. 37: “...mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem pública no sentido restrito do termo, é um fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna e que encontrou sua forma política no Estado nacional.”
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3 Hobbes e a Passagem da Sabedoria dos Antigos à Ciência dos Modernos
Os pensadores modernos já não se perguntam, como faziam os antigos, pelas
relações morais da vida boa e excelente, senão pelas condições fáticas da sobrevivência.
Trata-se diretamente da afirmação da vida física, da mais elementar conservação da vida.
Essa necessidade prática, que exige soluções técnicas, está no começo da moderna filosofia
social e diferentemente da necessidade ética da política clássica, não exige nenhuma
fundamentação teórica das virtudes e das leis em uma ontologia da natureza humana.
Enquanto que o ponto de partida teoricamente fundamentado dos antigos era como
os homens podem, desde um ponto de vista prático, estar em correspondência com uma
ordem natural, o ponto de partida praticamente afirmado dos modernos é este: como os
homens podem dominar tecnicamente o ameaçante mal natural.31
O sentido normativo das leis se esvazia de sua substância moral – mas não se
suspende enquanto tal – por meio da redução às estruturas subjacentes, seja do domínio
político, seja da exploração econômica. Em atenção à tarefa prática da conservação da vida
e da elevação desta vida, as leis mostram sua utilidade instrumental.32
Se para o mundo antigo a diferença entre a legislação enquanto produto de um
fazer – o legislador é aquele que “constrói” os limites da polis e a torna possível, embora
sua tarefa não seja política, mas condição de instauração da Política – e o Direito como
resultado da ação permanentemente vinculada com a Justiça enquanto virtude estava clara,
para o mundo moderno essa diferença se esvaece e o Direito torna-se instrumento neutro de
direção de comportamentos. Como todo o resto, o Direito é algo que se produz e que deve
ser produzido tendo em vista a sua utilidade. Assim considerado ele nada mais é do que um
instrumento para o homem atuar sobre o homem.33
Aristóteles não conhecia nenhuma cisão entre a constituição promulgada
politicamente e o ethos da vida cidadã na cidade. Maquiavel e Morus, no início da Idade
Moderna, e cada um a seu modo, consumaram a separação entre a Ética e a Política. Se em
31Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 58. 32Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 60. 33Cfe. FERRAZ JUNIOR., Tercio S. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 25-26. ARENDT, H., op. cit., p. 73 e 207.
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Maquiavel a técnica da conservação do poder é moralmente neutra, em Morus o é a
organização da ordem social. Nenhum dos dois se ocupa de perguntas práticas, senão de
perguntas técnicas. Projetam modelos, isto é, investigam sob condições artificiais o novo
campo aberto por eles. Inclusive antes que o método experimental fosse introduzido nas
ciências naturais, a abstração metodológica a respeito da multiplicidade de relações
empíricas prova-se aqui empiricamente. Desde esta perspectiva, Maquiavel e Morus
coincidem, de forma surpreendente, em um mesmo nível.34
Mas é Hobbes quem supera de maneira decisiva as debilidades metodológicas de
seus predecessores. Nem Maquiavel nem Morus pretenderam tratar a Política e a Filosofia
Social como Ciência, no sentido tradicional da filosofia prática, nem no sentido moderno
daquela forma de proceder empírico-analítica, que somente foi proclamada um século mais
tarde por Bacon (sem que ele mesmo chegasse a consumá-la). Maquiavel e Morus estão na
metade do caminho: rompem metodologicamente com as pressuposições da tradição e
substituem a orientação prática por uma forma técnica de colocar os problemas. Mas, sem o
estrito método cognoscitivo de Descartes e sem o exitoso método de investigação de
Galileu35, cultivam sua matéria de certo modo pragmaticamente: a uma recomendação de
técnicas chega um, a uma proposta de organização o outro.36
Certamente o interesse cognoscitivo que guia o Príncipe e a Utopia está já
encaminhado a atuar à maneira do produzir37. Maquiavel e Morus quebraram a barreira –
inviolável na filosofia clássica – entre praxis e poiesis e buscaram a relativa segurança do
saber técnico-artesanal em um campo que até então estava reservado à inexatidão e
intransmissibilidade da sabedoria prática.
Sem embargo, esta prolongação não poderia ser levada a cabo de uma maneira
radical antes que o mesmo saber técnico fosse assegurado teoricamente e não apenas
pragmaticamente. A esse respeito, devia cair previamente outra barreira: a preeminência
34Cfe. HABERMAS, J., op. cit., p. 62. 35 Sobre Galileu e a fundação da moderna ciência da natureza de um ponto de vista experimental, vide PERA, Marcello. The discourses of science. Chicago: University of Chicago Press, 1994, passim. Também FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Lisboa: Relógio d’água, 1993, passim e ARENDT, H., op. cit., p. 240 et seq. 36Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 66. 37Vide ARENDT, H., op. cit., p.149-187.
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greco-cristã da vita contemplativa diante da vita activa, o fechamento da teoria frente à
praxis.38
Para os antigos, a capacidade de comportamento teleológico, a destreza, a techne,
assim como a sabedoria da atuação racional, eram phronesis, um saber que remete
constantemente à teoria como ao fim supremo e como à meta mais elevada, mas nunca
pode derivar-se dela, nem justificar-se a partir dela. Precisamente por causa dessa auto-
suficiência da contemplação, techne e phronesis tornaram-se capacidades cognoscitivas
“mais baixas”. A esfera do fazer e da ação, o mundo da vida dos homens e dos cidadãos
ocupados em sua conservação ou em sua vida em comum, ficava à margem da teoria. Isto
se modificou pela primeira vez quando a moderna investigação da natureza começou a
manejar a teoria desde a atitude do técnico.39
Não é que a intenção cognoscitiva das ciências modernas, especialmente no seu
começo estivesse estado orientada subjetivamente para a produção de um conhecimento
utilizável tecnicamente. Mas a intenção primeira dessa investigação, desde os dias de
Galileu, é objetivamente a seguinte: conseguir a destreza de fazer os mesmos processos
naturais de igual modo como a natureza os produz. A teoria se mede pela capacidade de
reprodução artificial dos processos naturais.40 Em oposição à episteme, aponta, por sua
própria estrutura, à utilização, à aplicação. Nesta medida, a teoria alcança como um novo
critério de sua verdade (junto ao caráter lógico-concludente) a certeza do técnico:
conhecemos um objeto na medida em que o podemos fazer.41
Hobbes é quem estuda pela primeira vez as leis da vida cidadã com a intenção
expressa de colocar a ação política sob a base insuperavelmente certa daquela técnica
dirigida cientificamente, que ele conhecia a partir da mecânica, sua contemporânea. Hannah
38Cfe. HABERMAS, J., op. cit., p. 66. e ARENDT, H., op. cit., p. 291. 39Vide ARENDT, H., op. cit., p. 302-307. 40Sobre a transformação da ciência a partir da idéia de experimentação, vide ARENDT, H. op. cit., p. 243. 41Cfe. ARENDT. H., op. cit., p. 286-287: “Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem – o telescópio – que realmente mudou a concepção física do mundo; o que os levou ao novo conhecimento não foi a contemplação, nem a observação, nem a especulação, mas a entrada em cena do homo faber, da atividade de fazer e de fabricar. Em outras palavras, o homem fora enganado somente enquanto acreditava que a realidade e a verdade se revelariam aos seus sentidos e à sua razão, bastando para tanto que ele permanecesse fiel ao que via com os olhos do corpo e da mente. A antiga oposição entre a verdade sensual e a capacidade superior da razão no tocante à apreensão da verdade, perdeu sua importância ao lado desse desafio, ao lado da óbvia implicação de que a verdade e a realidade não são dadas, que nem uma nem outra se apresenta como é, e que somente na interferência com a aparência, na eliminação das aparências, pode haver esperança de atingir-se o verdadeiro conhecimento.”
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Arendt caracterizou as suas construções, aproveitando a metáfora hobbesiana do relógio,
como a tentativa de transpor o espírito de fabricação que invadira a ciência da natureza ao
âmbito da ação humana. Aqui os processos da vida interior, encontrados nas paixões
através da introspecção, tornam-se critérios para criação da vida “automática” (como a do
relógio) daquele corpo artificial que é o Leviatã.42
Mas por que se serve Hobbes para este fim do instrumento contratual, por que
fundamenta a filosofia social científica como construção jurídica?
Precisamente para fundar cientificamente a sua teoria é que Hobbes utiliza-se
desse instrumento jurídico que é o contrato. Responde a três pontos-chave – porque os
indivíduos contratam, porque respeitam os contratos em vigor e, sobretudo, porque o poder
soberano se pensa como procedente de tais contratos, mas enquanto poder constituído já
não pode ser impugnado pelas partes contratantes – e na medida em que os ordena em uma
conexão causal, a partir do direito natural faz ciência e esta ciência satisfaz sua tarefa
quando investiga os efeitos a partir das causas produtoras ou vice-versa, as causas
produtoras a partir dos efeitos conhecidos.
Essa conexão de causas se apresenta do seguinte modo: que o caráter soberano do
poder estatal se deduz a partir da necessidade de obter pela força a validade do sistema
contratual; que o mesmo sistema contratual se deduz a partir da necessidade de tornar
possível uma sobrevivência em paz e ordem; e que o interesse comum pela paz e pela
ordem se deduz finalmente a partir da necessidade de suprimir a contradição que existe no
estado natural. Esse estado natural, a seu turno, deve conceituar-se conforme as leis que
regem a natureza para poder cimentar a construção jurídica na conexão causal de uma lei
natural interpretada de modo mecanicista. Hobbes deve especificar a coerção natural que, a
partir de si e com necessidade, dá lugar a uma coerção artificial, e o faz no medo da morte
violenta.43
Hobbes projeta o direito natural absoluto sobre a relação dos homens entre si
interpretada maquiavelianamente e assim surge a aparência de que a legalidade do estado
natural foi apreendida normativamente. Na realidade Hobbes se serve destes direitos (à
liberdade, à igualdade, de todos a tudo) em uma concepção negativa: que não há nenhum
domínio político, nenhuma desigualdade social, nenhuma propriedade privada, meramente 42Cfe. ARENDT, H., op. cit., p. 312-313 e HOBBES, Thomas. Leviatã. 2. ed. São Paulo: Abril, 1979. p.5-6. 43Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 69 e HOBBES, Thomas. Leviatã, op. cit., p. 77-78.
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como determinações descritivas, desvestidas de seu caráter normativo. Sua análise do
estado natural do gênero humano antes de toda socialização não é de modo nenhum ética,
senão que é fisicalista: tem a ver com o aparato sensorial, com as reações instintivas, com a
constituição física dos homens e com seus modos de reação causalmente determinados.44
Hobbes denomina de lei natural tanto a conexão causal da natureza instintiva antes
da constituição contratual da sociedade e do Estado, quanto a regulação normativa de sua
vida social em comum depois desta constituição.45 A dificuldade salta aos olhos: Hobbes
deve derivar a partir da causalidade da natureza humana instintiva as normas de uma ordem
cuja função consiste precisamente na obtenção pela força de uma renúncia à satisfação
primária destes instintos.46
Se, como Hobbes supõe, os mandamentos da razão natural, isto é, as leis da
natureza em sentido normativo, procedem necessariamente de uma coerção dos desejos
naturais, ou seja, de leis naturais em sentido causal-mecanicista, então a problemática se
encontra precisamente em interpretar causalmente essa mesma necessidade – somente cabe
conceituá-la, como se mostrará, como uma necessidade prática. Hobbes que, sob as
pressuposições mecanicistas da teoria da ciência contemporânea, tinha que rechaçar como
absurda uma “necessidade” experimentada a partir de contextos da praxis, somente se
esquiva da dificuldade mediante uma equivocação quase metodológica no uso do termo “lei
natural”.47
O problema que aparece então, e que a equivocação do termo “lei natural” não
consegue nem ocultar nem resolver, pode ser resumido nos seguintes termos: como podem
se impor os mandamentos jusnaturalistas contra a pressão da natureza instintiva humana,
pressão que continua influindo?
Criam-se pois, de acordo com Habermas, duas antinomias decorrentes dessa
sistemática de construção. Em primeiro lugar ocorre a auto-imolação dos conteúdos liberais
à forma absolutista de seu sancionamento. Hobbes constrói a soberania
jusnaturalisticamente porque a razão de Estado consiste em possibilitar uma sociedade
liberal. Porém, esta é apenas uma de suas faces, pois para uma sociedade semelhante deve
44Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 70-71 e HOBBES, Thomas, op. cit., p. 09-77. 45Vide, como exemplo, HOBBES, Thomas, op. cit., p.78-95. 46Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 71. 47Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 72.
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existir a soberania na forma de poder absoluto. O preço da submissão ao poder absoluto é
pago na esperança de que ele seja exercido liberalmente, mas o controle desse exercício é
negado ao cidadão.48
Esta dialética, na qual os conteúdos liberais do direito natural cedem à forma
absolutista de seu sancionamento, pode ser posta em conexão com a dificuldade
metodológica de que partíamos. As normas da razão natural revertem de novo à mecânica
dos desejos naturais dos quais haviam sido antigamente derivadas. Deve-se providenciar
sua obediência por meio de sanções que estão calculadas sobre a física da natureza
humana: as leis se convertem nessa medida em mandamentos no sentido de uma motivação
coercitiva suscetível de ser calculada psicologicamente. Ao final, o poder de sanção obtido
à força pelas leis da natureza em sentido causal rege, com efeito, de novo sobre as leis da
natureza em sentido normativo e também em seu nome.49
Em segundo lugar, a antinomia que aparece diz respeito à impotência prática do
saber técnico-social, aspecto central da presente investigação e razão pela qual segue-se
Habermas até aqui em seu argumento.
A relação entre teoria e praxis está determinada segundo o modelo da mecânica
clássica. A análise científica da conexão vital como objeto natural nos instrui sobre as
legalidades causais segundo as quais se reproduzem os estados existentes. Hobbes está
menos interessado na história fática do surgimento de determinadas instituições do que nas
pressuposições gerais sob as quais funciona a vida humana em comum. Cabe entender a
construção jusnaturalista como uma física universal da socialização e Hobbes não apresenta
dúvidas a propósito da autocompreensão tecnológica da filosofia social fundamentada
como ciência.50
Entende Hobbes que, na medida em que a exigência cartesiana de um método para
os fundamentos iniciais da filosofia social de modo algum fora feita antes dele, a doutrina
clássica da política nunca havia podido levar a conhecimento real. Hobbes, na posse do
novo método, desenvolve pela primeira vez uma física da socialização51. Tão prontamente
como foi alcançada a intelecção da mecânica do estado de sociedade, podem encontrar-se
48Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 74. Vide HOBBES, Thomas, op. cit., p. 105-113, 130-136. 49Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 75-76. 50Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 78. 51Vide HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1992, (especialmente a Epístola Dedicatória e o Prefácio do Autor aos Leitores, nas p. 5-10 e 11-23, respectivamente).
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as disposições tecnicamente indispensáveis para produzir a ordem social e política
correta.52
Certamente surge a dificuldade de que os técnicos da ordem correta devem ser
tomados do círculo daqueles cidadãos que eram ao mesmo tempo objeto de conhecimento,
enquanto membros da defeituosa ordem existente. Os mesmo homens cujo comportamento
se havia conceituado primeiramente em sua necessidade como objeto da natureza a partir
da conexão causal das pressões institucionais e dos modos de reação antropologicamente
dados, devem também tomar o papel de sujeitos que, conhecendo essa conexão, têm de
encontrar um melhor arranjo. São tanto objeto das relações investigadas quanto sujeitos das
relações que se há de modificar.
A mesma dificuldade que no modo de consideração genético nasce do fato de que
a coerção normativa que produz o contrato deve surgir a partir da causalidade natural, se
repete a propósito da interpretação tecnológica das relações da teoria com a praxis. No
primeiro caso, Hobbes pode aludir ao caráter heurístico do Estado artificial com o
argumento de que todos os estados faticamente surgidos por meio do poder despótico
podem representar-se, como efeito, como se o poder de seus soberanos tivesse tido sua
origem em um compromisso contratual recíproco. No caso de uma utilização atual da
filosofia social, Hobbes tinha que se enfrentar de novo com o papel fictício de uma
assembléia constituinte de cidadãos. Pois, se sua própria teoria deve ter conseqüências
práticas (instituir a correta ordem da sociedade), então deve fazer-se pública e deve ser
aceita pela massa dos cidadãos.53
Vico encontra a dificuldade com a qual Hobbes se bate em vão. A teoria da ação
social cientificamente estabelecida malogra na dimensão da praxis, à qual a doutrina
clássica possuía um acesso imediato.
A filosofia social projetada segundo o modelo da física moderna, isto é, desde a
atitude do técnico, somente pode refletir as conseqüências práticas do próprio ensinamento
no marco das fronteiras da autocompreensão tecnológica e Hobbes somente pode
estereotipadamente reiterar que a certeza científica levaria à construção da praxis adequada.
No entanto, tanto as pressuposições mecanicistas de seu método quanto também as
conseqüências absolutistas de sua teoria excluem que os homens se mostrem dispostos, a 52Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 78-79. 53Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 79.
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partir de puras intelecções, a submeter-se à autoridade estatal. Não cabe fundamentar no
marco da sua filosofia social a possibilidade daquelas conseqüências práticas – colocadas
debaixo de uma certeza do conhecimento filosófico-social consumado, certeza situada à
margem de toda comunicação.54
Diferentemente da mera utilização técnica de resultados científicos, a
transformação da teoria em praxis está, com efeito, diante da tarefa de passar a formar parte
da consciência e da reflexão dos cidadãos dispostos à ação: as soluções têm de demonstrar-
se em situações concretas como as soluções praticamente necessárias para a satisfação de
necessidades objetivas. Mais ainda, têm que estar já concebidas de antemão a partir do
horizonte dos sujeitos atuantes.
Nesse sentido Vico recomenda a retórica, porque sabe o que as verdades ricas em
conseqüências práticas requerem do consenso sabiamente obtido: o “parecer” verdade do
senso comum dos cidadãos que discutem publicamente.55 O saber dos antigos, sua forma de
pensamento, é indispensável quando se trata de analisar a ação e não pensar o âmbito da
convivência humana como uma questão, tal como nas ciências naturais, de disposição.
Mais do que técnica é preciso para organizar a vida em sociedade. A tentativa de Hobbes,
portanto, esbarra em um obstáculo que possivelmente implique em reavaliar justamente a
função da tópica-retórica dos antigos, tão prontamente repudiada. Para usarmos uma
metáfora: talvez fosse o caso de buscar pela porta aquilo que se havia jogado fora pela
janela.
Além disso, como muito bem ressalta Hannah Arendt, a aplicação dos novos
conceitos pertinentes ao fabricar e ao prever à filosofia política, tarefa que sem dúvida
Hobbes se propôs56, trouxe consigo a paradoxal conseqüência de que a nova filosofia não
podia nem compreender nem acreditar na realidade. A idéia de que só aquilo que podemos
produzir e prever é real – válida para o âmbito da fabricação – não consegue dar conta da
multiplicidade gerada pelo acaso, pelos acontecimentos inesperados, e que são a marca
54Cfe. HABERMAS, J., op. cit, p. 80. Como mostra ARENDT, H., op. cit., p. 296-297, a própria noção de senso comum é alterada na construção da filosofia e da ciência modernas, a partir da dúvida cartesiana. Se antes era aquilo que partilhamos com os outros homens no sentido de compreensão do mundo que nos rodeia, passa a ser apenas a estrutura mental, nossa capacidade de razão enquanto cálculo e previsão de conseqüências. – base da construção hobbesiana – que partilhamos com os outros homens. 55Cfe. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 81. 56HOBBES, Thomas, op. cit., p. 5-6.
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específica dos negócios humanos57. A teoria, portanto, está irremediavelmente separada da
realidade. A ação no sentido da fabricação ou da previsão implica justamente em planejar e
não se pode planejar o inesperado58. Se esse inesperado, característica dos eventos
humanos, constitui a própria textura da realidade no âmbito dos negócios humanos, é
altamente irrealista não contar com ele.59
Embora seja possível, e Hobbes estava proposto a isso quando preparou seu
arcabouço teórico, encontrar limites e fronteiras60 que contenham a ação nos corpos
políticos e ofereçam proteção quanto à tendência que a ação tem de violar todos os limites
(ela é, por natureza, ilimitada), não se consegue impedir que ela seja sempre imprevisível e
não apenas porque não se possa prever todas as conseqüências lógicas de um determinado
ato (problema que um bom computador resolveria) mas porque ela só se mostra cabalmente
quando tiver acabado, ou seja, aparece sempre como história.61
A teoria, compreendida ao modo de Hobbes, se situa completamente à margem de
toda comunicação precisamente porque ela desconsidera o inesperado dos negócios
humanos, que se manifestam justamente na capacidade de agir e que está intrinsecamente
57A referência ao acaso deve ser remetida à distinção aristotélica das coisas que são por natureza e o são necessariamente ou freqüentemente de um mesmo modo e as que, não sendo nem necessárias nem freqüentes, mas tendentes a um fim determinado, produzem efeitos que lhes são próprios. Essa segunda categoria, vinculada por Aristóteles ao acaso, é a esfera dos negócios humanos. Sobre este aspecto, pode-se consultar AUBENQUE, Pierre. La Prudence chez aristote. 2. ed. Paris: Quadrige : PUF, 1997, p. 65-66, que assim se manifesta : « ...la prudence se meut dans le domaine du contingent, c’est-à-dire de ce qui peut être autrement qu’il n’est (...) C’est même par là que la prudence se distingue le plus clairement de la sagesse, qui, en tant qu’elle est une science, porte sur le nécessaire et, en tant qu’elle est la plus haute des sciences, porte sur les realités le plus immuables et ignore le monde du devenir ». Vide ainda FERRAZ JUNIOR., Tercio S. La nocion aristotelica de justicia. Atlantida. Madrid, v. 7, p. 171-189, mar. 1969, e PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ciência e dialética em Aristóteles. São Paulo: UNESP, 2001, passim. 58Exemplar a seguinte afirmação de ARENDT, H., op. cit., p. 50, na medida em que mostra como a ascensão do novo objeto da filosofia social tinha de tratar o comportamento humano: “Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los ‘comportarem-se’, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada.” 59ARENDT, H. op. cit., p. 313: “A filosofia política da era moderna, cujo maior representante é ainda Hobbes, tropeça na perplexidade de que o moderno racionalismo é irreal e o realismo moderno é irracional – o que é apenas outra maneira de dizer que a realidade e a razão humana se divorciaram.” 60Cfe. ARENDT, H., op. cit., p. 204: “As cercas que inscrevem a propriedade privada e protegem os limites de cada domicílio, as fronteiras territoriais que protegem e tornam possível a identidade física de um povo, e as leis que protegem e tornam possível sua existência política, têm enorme importância para a estabilidade dos negócios humanos precisamente porque nenhum princípio limitador e protetor resulta das atividades que transcorrem na própria esfera dos negócios humanos. As limitações legais nunca são defesas absolutamente seguras contra a ação vinda de dentro do próprio corpo político, da mesma forma que as fronteiras territoriais jamais são defesas inteiramente seguras contra a ação vinda de fora.” 61Cfe. ARENDT, H., op. cit., p. 204.
19
ligada à discussão pública e racional62. Ao propor a construção de toda ciência, natural ou
social, a partir do mesmo método, o racionalismo moderno perde as condições de ver a
diferença entre os âmbitos e de atuar como guia para a ação nos negócios humanos.
Quentin Skinner, ao realizar uma reavaliação do pensamento e da trajetória
intelectual de Hobbes pelo viés de sua formação humanística, defende a tese de que o
próprio Hobbes teria reconsiderado, ao longo de seus tratados políticos, a relação entre a
retórica e a razão demonstrativa, justamente porque lhe ficava claro, ao observar a ausência
de repercussão, que sua demonstração dos verdadeiros princípios da ciência política
produzira em seus interlocutores, a dificuldade que se vinha discutindo.63 Embora pensasse,
e afirmasse, ter elaborado pela vez primeira uma verdadeira “ciência” da política esta
parecia não provocar nenhum resultado prático e ninguém parecia ter se apercebido do
nascimento de referida ciência e dos grandes benefícios que ela traria à humanidade.64
Com efeito, se se examinar a epístola dedicatória do primeiro tratado político de
Hobbes, Elementos de Direito Natural e Político65, encontrar-se-á ali uma expressa
afirmação de que o trabalho apresentado é de estilo fraco, porque dominado mais pela
lógica do que pela retórica. Do mesmo modo, no segundo tratado político de Hobbes, Do
Cidadão, encontra-se a firme condenação da filosofia política que em nada avança no
conhecimento da verdade sobre a lei natural e o governo dos homens, porque adota
62 “Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político.” Cfe. ARENDT, H., op. cit., p. 11. Vide também LAFER, Celso. A política e a condição humana. In: ARENDT, H. op. cit., p. VI e X. 63 Cfe. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo: UNESP, 1999, passim. Skinner faz um interessante e exaustivo trabalho de reconstrução da formação escolar ao tempo em que Hobbes estudou e procura mostrar como esse autor teria feito um percurso quase que circular, de uma formação fortemente influenciada pela retórica, como peculiar ao currículo dos estudos da Idade Média e do Renascimento, a um abandono deliberado desse instrumental em prol de uma postura científica com metodologia embasada na geometria, até uma reconsideração da necessidade de utilizar os recursos retóricos, ao menos no âmbito da “ciência” civil. O referido trabalho de Skinner acompanha, assim, a presença e a ausência dos diversos recursos técnicos retóricos que compunham a opinião comum da época. Não interessa aqui essa explicação detalhada, mas apenas a tese central que corrobora aquilo que se vinha discutindo sobre a dificuldade do novo modelo de Ciência em tratar com a praxis. 64 Sobre a falta de resultados em fundar uma verdadeira ciência da política Hobbes diz: “Ora, a única razão desta falta de sorte parece ser a seguinte: que entre todos os autores daquela parte da filosofia nunca houve um que adotasse um princípio que seja adequado para tratá-la.” Cfe. HOBBES, Thomas, op. cit., p. 7. Vide também SKINNER, Q., op. cit., p. 569-581. 65Cfe. HOBBES, Thomas. Elementos de direito natural e político. Porto: Res Jurídica, s/d.
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princípios errôneos, e sua ampla aceitação decorre muito mais de sua “retoriquice” que de
sua contribuição ao entendimento de tais importantes questões.66
O próprio estilo de redação dos primeiros tratados parece espelhar-se diretamente
na geometria, organizado que está em parágrafos numerados e em constante remissão uns
aos outros, além da utilização constante de expressões como “conforme foi demonstrado”,
“como defini anteriormente” etc., numa clara tentativa de produzir um argumento que
falasse por si só. A recusa da retórica encontra-se ainda documentada em diversas
passagens dos textos nas quais são criticados e refutados os autores da Antigüidade e os
contemporâneos de Hobbes que a eles seguiam ou endossavam.67
Uma tal posição tão clara não aparece, contudo, no Leviatã, última versão do
pensamento político de Hobbes. Como aponta exaustiva e textualmente Skinner, nesse
último tratado, tanto em sua versão inglesa quanto em sua versão latina e ainda mais
salientemente nesta, o autor recupera a vasta gama de recursos retóricos que havia
aprendido quando de sua formação escolar, como todo jovem inglês seu contemporâneo, e
a aplica para tentar convencer seus interlocutores da veracidade e da qualidade de suas
afirmações.
Trata-se, no entender de Skinner, não de uma reconsideração em termos absolutos,
o que implicaria em Hobbes defender a retórica e seus resultados, mas numa espécie de
resignação amargurada de que, afinal de contas, ela pode ser necessária se entendida como
complementar ao uso do raciocínio científico e seu poder de demonstração.68 Nem mesmo
66 Diz o texto de Hobbes: “Mas o que hoje notamos, isto é, que nem a espada nem a pena se vêem autorizadas a qualquer repouso; que o conhecimento da lei natural cessa de avançar, não crescendo uma polegada além de sua antiga estatura; que os filósofos a tal ponto se repartem em facções diversas e hostis, que a mesmíssima ação por uns é verberada, e por outros exaltada; que o mesmíssimo homem em distintos momentos abraça distintas opiniões, e estima as ações que ele próprio comete de maneira muito diferente do que faria se fossem cometidas por outrem; - tudo isso, afirmo, são sinais claros e argumentos manifestos a provar que aquilo que foi escrito, até hoje, pelos filósofos morais em nada avançou no conhecimento da verdade. E, se foi acolhido pelo mundo, não foi tanto por trazer alguma luz ao entendimento, mas por agradar às afeições, dado que pela bem-sucedida retoriquice de seu discurso eles confirmaram os homens em suas opiniões apressadamente aceitas.” HOBBES, Thomas, op. cit., p. 7. 67 Para esse trabalho de acompanhamento dos textos dos dois primeiros tratados hobbesianos vide SKINNER, Q. op. cit., p. 339-438. 68 Cfe. SKINNER, Q. op. cit., p. 460: “A despeito dessas dúvidas e críticas, persiste o fato de que, no Leviatã, Hobbes abandona sua insistência anterior em que a arte da retórica deveria ser excluída do campo da ciência civil. Embora nunca tenha chegado a ver a ars rhetorica com bons olhos, não há dúvida de que ele passou a acreditar na necessidade inescapável de uma aliança entre a razão e a eloqüência e, por conseguinte, entre a arte da retórica e os métodos da Ciência.”
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as verdades da Geometria, se por acaso interferissem com os interesses humanos, seriam
aceitas por evidentes.69
Com essa resignada constatação de Hobbes chega-se à situação em que a pretensão
da ciência moderna, que apresentava seu vigor máximo na Física e em especial na
Revolução Copernicana, e pretendia oferecer o único critério válido e racional para todo
conhecimento, parece ter de ser rejeitada, ao menos no que diz respeito ao âmbito dos
negócios humanos. No mínimo é preciso que se recorra também à retórica para que se
produzam os efeitos devidos aos novos conhecimentos obtidos (e legitimados) com a
metodologia científica.
4 Considerações Finais
O breve e esquemático percurso desenvolvido pode mostrar claramente o grau de
dificuldade que a discussão envolve. De um lado, pode-se constatar que as bases da
compreensão da filosofia prática, âmbito do humano, não são mais as mesmas, mesmo
porque as condições de possibilidade, com o surgimento da esfera do social, foram
profundamente modificadas. De outro, percebe-se que a adaptação da filosofia prática ao
novo modelo de ciência – e que implicava em deixar de ser uma “filosofia prática” – não
trouxe as conseqüências que se pretendia. Os infortúnios de Hobbes, frustrado em sua
tarefa de fundar, de uma vez por todas, as leis da organização correta da sociedade, muito
bem o demonstram.
Evidentemente que o modelo moderno de ciência, gerado a partir de Descartes e
Galileu e adaptado, como vimos, por Hobbes à filosofia política, não deixou de ser
utilizado como guia e modelo para todas as áreas do conhecimento, tanto em sua primeira
versão, da qual Hobbes é um bom exemplo, quanto em versões mais sofisticadas e
posteriores – é o caso, parece-nos, do positivismo kelseniano – que chegam ao final do
século XX, apesar das dificuldades que se discutiu até aqui.
69 Cfe. HOBBES, Thomas, op. cit., p. 63. : “Pois não duvido que, se acaso fosse contrária ao direito de domínio de alguém, ou aos interesses dos homens que possuem domínio, a doutrina segundo a qual os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos de um quadrado, esta doutrina teria sido, senão objeto de disputa, pelo menos suprimida, mediante a queima de todos os livros de geometria, na medida em que os interessados de tal fossem capazes.”
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Esta reflexão encerra-se, assim, apontando a necessidade de se repensar o próprio
modelo moderno de Ciência e sua viabilidade de aplicação às ciências humanas, sem
esquecer que, mesmo do ponto de vista dos campos de conhecimento dos quais nasceu – as
ciências exatas e naturais –, tal modelo vem sendo objeto de profundas críticas, pelo menos
desde meados do século XX. Paralelamente a esta direção de pesquisa, que se pretende
enfrentar em outro momento, é necessário também precisar melhor o que significa a
modificação ocorrida e muito bem apontada por Hannah Arendt como o surgimento da
esfera social ao lado daquela política, tema que será objeto de reflexões posteriores.
Mais do que resolver a difícil questão, ou questões, levantadas nas considerações
introdutórias, pretendia-se trazer aqui um conjunto de dados que permitam continuar a
reflexão. Ao leitor caberá julgar se o fizemos com propriedade.
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