8 uma história natural da utopia - o caso das cidades obscuras

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1 Uma História Natural da Utopia: O Caso das Cidades Obscuras Miguel Ramalhete Gomes (Investigador do CETAPS e Doutorando da Faculdade de Letras da Universidade do Porto) Citação: Gomes, Miguel Ramalhete, "Uma História Natural da Utopia: O Caso das Cidades Obscuras", E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 12 (2011). ISSN 1645-958X. <http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id05id164&sum=sim> I Uma criança que passeie por um museu de história natural cumpre, sem o saber, um ritual centenário marcado pelo fascínio não só perante os objectos que ocupam as prateleiras ou aparecem suspensos no ar como também pelo espaço do próprio museu. Qual é o encantamento particular dos museus de história natural? Um dos motivos será certamente o facto de aí a natureza se oferecer como objecto lúdico. Empalhada ou transfigurada numa montagem de ossos fossilizados, a natureza desperta o instinto de brincar. Animais desaparecidos ou simplesmente perigosos quase se oferecem ao toque. Segundo a antropologia filosófica de Giorgio Agamben, o jogo nasce da apropriação de um ritual cuja utilidade se esvaziou; este repete-se, já para além de qualquer função, como mecanismo autónomo e lúdico (cf. Agamben 2002: 127-129). De certa forma, ao ser transformada em objecto inanimado, ao despojar-se da sua actividade própria, a natureza ganha também ela um lado lúdico. 1 Como Museum through a Lens (cf. Snell & Parry 2009), um volume recente coligindo fotografias tiradas ao Natural History Museum entre 1880 e 1950, demonstra, outro dos atractivos dos museus de história natural é o facto de o próprio museu ser um objecto histórico e poder preservar o contexto em que se elaborava história natural no século XIX. O desenvolvimento das ciências transformou necessariamente esse contexto oitocentista e remeteu-o ao domínio da museologia. O local onde se escreveu e montou alguma história natural foi ele mesmo alvo das contingências da história humana, entre elas a Segunda Guerra Mundial. A história natural exibe assim uma outra história, que é humana. Por outro lado, que tipo de história está aqui em causa? A história natural depois de Darwin tem sido a história da evolução – encontrando assim o verdadeiro objecto de uma história digna desse nome: a mudança. Contudo, é ainda comum remeter a história humana para o domínio natural no sentido de lhe encontrar um ponto de estabilidade. A ideia de natureza humana, tal como esta é usada actualmente nas humanidades, visa precisamente encontrar uma constante, algo que permaneça sempre ao abrigo da história, por se colocar do lado da natureza. Como vimos, contudo, a história natural hoje em dia já nem esse refúgio admite. É talvez esta relação conturbada e paradoxal entre história natural e história humana que alimenta o fascínio quase inesgotável produzido pelos museus de história natural e pelos seus fósseis de dinossauros, animais empalhados, exemplares de minerais, rochas lunares, meteoritos e muitas outras coisas – mas acima de tudo os ossos de hominídeos, que marcam esse momento sempre impressionante de passagem de uma história para a outra. Aí, onde o museu de história natural acaba, começa o museu de história antiga. Se, por um lado, a teoria da evolução de Darwin veio dar razão a uma nomenclatura nem sempre reflectida, mostrando como de facto se trata de história natural, por outro lado a ciência da passagem do século XIX para o século XX tratou de relegar o conceito de história natural para o museu dos conceitos mais ou menos superados. À história natural, um conceito vago e demasiado abrangente, sugerindo algum amadorismo, sucederam-se na história das ciências as chamadas ciências históricas: a biologia, a geologia, a paleontologia e a astronomia. A história natural passou a designar uma forma histórica de praticar as ciências naturais. Outra noção de história natural é ainda a que designa uma versão popularizada ou divulgadora das ciências naturais. A ideia de história natural sofreu, assim, ela mesma, uma mudança histórica. Se o conceito perdeu o referente que em tempos teve, por outro lado a ideia de história natural corre o risco de evocar um entendimento determinista da história, equiparada à natureza e alegadamente regida por leis imutáveis. As infiltrações conceptuais permitidas por essa expressão ambígua têm de facto ocorrido, produzindo efeitos por vezes inesperados e frequentemente mal interpretados. O prefácio à primeira edição de Das Kapital (1867) fornece um caso exemplar. Aí, Marx usa sistematicamente e de forma variada a linguagem das ciências naturais para descrever o seu próprio esforço no sentido de descrever o modo de produção capitalista. Encontramos comparações organicistas a células – “the economic cell-form” (Marx 1990: 90) –, microscópios e reagentes químicos (cf. ibidem). Marx refere-se mesmo às leis naturais da produção capitalista, das quais diz que operam com uma necessidade férrea (cf. idem: 91), e afirma ainda investigar as leis económicas do movimento da sociedade sua contemporânea, a qual diz ter fases naturais. Aliás, o autor faz por marcar a sua posição claramente:

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1 Uma Histria Natural da Utopia: O Caso das Cidades Obscuras Miguel Ramalhete Gomes (Investigador do CETAPS e Doutorando da Faculdade de Letras da Universidade do Porto) Citao: Gomes, Miguel Ramalhete, "Uma Histria Natural da Utopia: O Caso das Cidades Obscuras", E-topia: Revista Electrnica de Estudos sobre a Utopia, n. 12 (2011). ISSN 1645-958X.

I Uma criana que passeie por um museu de histria natural cumpre, sem o saber, um ritual centenrio marcado pelo fascnio no s perante os objectos que ocupam as prateleiras ou aparecem suspensos noar como tambm pelo espao do prprio museu. Qual o encantamento particular dos museus de histrianatural?Umdosmotivossercertamenteofactodeaanaturezaseoferecercomoobjectoldico.Empalhadaoutransfiguradanumamontagemdeossosfossilizados,anaturezadespertaoinstintodebrincar.Animaisdesaparecidosousimplesmenteperigososquaseseoferecemaotoque.Segundoa antropologiafilosficadeGiorgioAgamben,ojogonascedaapropriaodeumritualcujautilidadeseesvaziou;esterepete-se,jparaalmdequalquerfuno,comomecanismoautnomoeldico(cf.Agamben 2002: 127-129). De certa forma, ao ser transformada em objecto inanimado, ao despojar-se da sua actividade prpria, a natureza ganha tambm ela um lado ldico.1 Como Museum through a Lens (cf. Snell & Parry 2009), um volume recente coligindo fotografias tiradas ao Natural History Museum entre 1880 e 1950, demonstra, outro dos atractivos dos museus de histria natural o facto de o prprio museu serum objecto histrico e poder preservar o contexto em que se elaborava histria natural no sculo XIX. Odesenvolvimentodascinciastransformounecessariamenteessecontextooitocentistaeremeteu-oao domnio da museologia. O local onde se escreveu e montou alguma histria natural foi ele mesmo alvo dascontingnciasdahistria humana,entreelas aSegundaGuerra Mundial.Ahistria naturalexibeassim uma outra histria, que humana. Por outro lado, que tipo de histria est aqui em causa? A histria natural depois de Darwin tem sido ahistriadaevoluoencontrandoassimoverdadeiroobjectodeumahistriadignadessenome:amudana. Contudo, ainda comum remeter a histria humana para o domnio natural no sentido de lheencontrar um ponto de estabilidade. A ideia de natureza humana, tal como esta usada actualmente nashumanidades,visaprecisamenteencontrarumaconstante,algoquepermaneasempreaoabrigoda histria, por se colocar do lado da natureza. Como vimos, contudo, a histria natural hoje em dia j nemesse refgio admite. talvez esta relao conturbada e paradoxal entre histria natural e histria humanaque alimenta o fascnio quase inesgotvel produzido pelos museus de histria natural e pelos seus fsseisde dinossauros, animais empalhados, exemplares de minerais, rochas lunares, meteoritos e muitas outrascoisas mas acima de tudo os ossos de homindeos, que marcam esse momento sempre impressionante de passagem de uma histria para a outra. A, onde o museu de histria natural acaba, comea o museude histria antiga. Se,porumlado,ateoriadaevoluodeDarwinveiodarrazoaumanomenclaturanemsempre reflectida, mostrando como de facto se trata de histria natural, por outro lado a cincia da passagem do sculo XIX para o sculo XX tratou de relegar o conceito de histria natural para o museu dos conceitosmais ou menos superados. histria natural, um conceito vago e demasiado abrangente, sugerindo algumamadorismo,sucederam-senahistriadascinciasaschamadascinciashistricas:abiologia,ageologia,apaleontologiaeaastronomia.Ahistrianaturalpassouadesignarumaformahistricade praticarascinciasnaturais.Outranoodehistrianaturalaindaaquedesignaumaversopopularizada ou divulgadora das cincias naturais. A ideia de histria natural sofreu, assim, ela mesma,uma mudana histrica. Se o conceito perdeu o referente que em tempos teve, por outro lado a ideia dehistria natural corre o risco de evocar um entendimento determinista da histria, equiparada natureza ealegadamenteregidaporleisimutveis.Asinfiltraesconceptuaispermitidasporessaexpresso ambguatmdefactoocorrido,produzindoefeitosporvezesinesperadosefrequentementemalinterpretados. O prefcio primeira edio de Das Kapital (1867) fornece um caso exemplar. A, Marx usa sistematicamenteedeformavariadaalinguagemdascinciasnaturaisparadescreveroseuprprio esforo no sentido de descrever o modo de produo capitalista. Encontramos comparaes organicistas aclulas the economic cell-form (Marx 1990: 90) , microscpios e reagentes qumicos (cf. ibidem). Marx refere-se mesmo s leis naturais da produo capitalista, das quais diz que operam com uma necessidadefrrea(cf.idem:91),eafirmaaindainvestigarasleiseconmicasdomovimentodasociedadesuacontempornea, a qual diz ter fases naturais. Alis, o autor faz por marcar a sua posio claramente:

2 My standpoint, from which the development of the economic formation of society is viewed as aprocessofnaturalhistory,canlessthananyothermaketheindividualresponsibleforrelationswhosecreatureheremains,sociallyspeaking,howevermuchhemaysubjectively raise himself above them. (idem: 92, itlicos meus) Poroutrolado,ainsistnciadeMarxemusarestevocabulriocientficodeveseralvodealgumasuspeita,sobretudotendoemcontaaatenofrequentementedadapelomesmoMarxatentativasideolgicas de naturalizar questes sociais (cf. Adorno 2006b: 117-118). No mesmo volume, referindo-se leidaacumulaocapitalista,Marxusaoseguintequalificativo:mystifiedbytheeconomistsintoa supposedlawofnature(Marx1990:771).Pormenorescomoestepoderotalvezqualificartambmanossa recepo do cientismo de Marx, uma recepo que muitas vezes lhe omite a veia pardica.2 Se o cientismo de Marx nos incomoda de uma forma que no teria incomodado no sculo XIX, convm notar que importaes conceptuais e metafricas deste tipo no se faziam apenas de forma unidireccional.Em The Origin of Species, ao discutir a teoria da imperfeio dos registos geolgicos, Darwin desenvolveumametforaemprestadaaCharlesLyellecomparaoestudodahistrianaturalleituradahistriahumana: For my part, following out Lyells metaphor, I look at the natural geological record, as a historyof the world imperfectly kept, and written in a changing dialect; of this history we possess the last volume alone, relating only to two or three countries. Of this volume, only here and there ashort chapter has been preserved; and of each page, only here and there a few lines. Eachword of the slowly-changing language, in which the history is supposed to be written, beingmore or less different in the interrupted succession of chapters, may represent the apparentlyabruptly changed forms of life, entombed in our consecutive, but widely separated, formations. (Darwin 2008: 229) A comparao que Darwin faz entre a investigao de um registo geolgico e a interpretao filolgicade uma histria fragmentria da espcie humana pode no passar de uma metfora, um dito espirituosocom que terminar um captulo.3 Por outro lado, podemos detectar no livro de Darwin, e em maior medidana apropriao posterior de teorias evolucionistas, a passagem de conceitos vindos do estudo da histriahumana. A ocasional identificao de evoluo com o melhoramento simples em vez do mais frequente emais neutro tema da adaptao ao ambiente justificou o uso da teoria da evoluo para alargar o mito doprogressoaodomniodahistrianatural,aopassoqueaideiadesobrevivnciadosmaisaptos,queDarwin s mais tarde adoptou (e que no era sua, mas do filsofo Herbert Spencer), veio abrir a porta aodarwinismosocial,queidentificava,eassimsancionava,asociedadecapitalistaeos seusmecanismos(competio,lucro,exclusodosmembrosmaisfracos)comasleisdanatureza(cf.Beer2008:xix-xx; J ameson 2007: 95).4 SegundoStephenJ ayGould,aidentificaoimplcitaentreevoluoeprogressopersisteaindaemvriasrepresentaespopularesdateoriadaevoluo:Thefamiliariconographiesofevolutionareall directedsometimescrudely,sometimessubtlytowardreinforcingacomfortableviewofhuman inevitability and superiority (Gould 2000: 28). Gould analisa as representaes visuais mais comuns a scala naturae e a ainda mais cannica marcha do progresso e aponta a sugesto nelas veiculada de um progresso inevitvel que termina necessariamente nesse animal favorito dos humanistas o Homem. Uma das pardias marcha do progresso que Gould refere joga alis com a ambiguidade e presuno dotermo. A ilustrao mostra duas marchas, uma sobre a outra: por cima, a do Homem, desde o macaco aohomemactual,e,porbaixo,adamulher(semmaiscula),quepermaneceidnticadoincioaofimdamarcha,imobilizadanaposedelavarocho(cf.idem:34).Afatuidadehumanistaprojectaassimna evoluo um renovado antropocentrismo destinado a auto-congratular-se com esse milagre da natureza que o Homem, invariavelmente ilustrado como masculino. Em Wonderful Life The Burgess Shale and the Nature of History, Gould usa o exemplo dos fsseis do perodo Cmbrico descobertos nos xistos de Burgess, no Canad, para defender a activao do conceitode histria no par de palavras que compe a expresso histria natural. Gould argumenta que a histriadanatureza no serege meramenteporleisnaturais,mastambm,e deformadeterminante,por umasequncia de acontecimentos contingentes, tais como extines em massa provocadas por eventualidadesexternas. A contingncia , alis, o conceito basilar da teoria de Gould: I am not speaking of randomness (for E had to arise, as a consequence of A through D), but ofthe central principle of all history contingency. A historical explanation does not rest on direct deductions from laws of nature, but on an unpredictable sequence of antecedent states, where 3 any major change in any step of the sequence would have altered the final result. This finalresult is therefore dependent or contingent, upon everything that came before the unerasable and determining signature of history. (idem: 283) Gould usa a metfora de uma fita da vida que o cientista faria retroceder de volta ao incio e depoistocariadenovo.Aocontrriodeumafitamagntica,afitadavidaproduziriasempreumresultadodiferente: [Any] replay of the tape would lead evolution down a pathway radically different from the roadactuallytaken.Buttheconsequentdifferencesinoutcomedonotimplythatevolutionissenseless, and without meaningful pattern; the divergent route of the replay would be just as interpretable, just as explainable after the fact, as the actual road. But the diversity of possibleitineraries does demonstrate that eventual results cannot be predicted at the outset. (idem: 51) AconclusoqueseretiradateoriadeGouldpermite,porumlado,salientaraimprobabilidade,poroposioinevitabilidade,daevoluohumana(cf.idem:24),e,poroutrolado,mostraravalidade inesperadadeumconceitocomoodehistriaparaumadisciplinacomoapaleontologia.Noqueresta destasconsideraespreliminares,interessa-meprecisamenteopontoemquehistriaenaturezaseencontram. EmDiedeutscheIdeologie(1845-1846,maspublicadapostumamente)MarxeEngelsavanam,porseu lado, uma viso conjunta da histria natural e da histria humana que se revelar altamente produtiva,num pargrafo que foi eliminado de uma verso posterior do texto: We know only a single science, the science of history. One can look at history from two sidesanddivideitintothehistoryofnatureandthehistoryofmen.Thetwosidesare,however,inseparable; the history of nature and the history of men are dependent on each other so longas men exist. (Marx & Engels 1998: 34)5 Esta viso ecolgica de conjunto (cf. Adorno 2006b: 122) estimula a produo de usos filosficos do conceitodehistrianatural,quepodemosencontrarsobretudoemdeterminadostextosdeWalterBenjamin e de Theodor W. Adorno. Ser de notar antes de mais que aos textos destes dois autores seaplica um aviso que Adorno faz no incio do seu ensaio Die Idee der Naturgeschichte, em que explica quea ideia de histria natural que ir desenvolver no se refere nem a um sentido tradicional e pr-cientfico de histria natural nem a uma histria natural em que a natureza o objecto das cincias naturais (cf. Adorno 2006a: 252; cf. Hanssen 2000: 51; cf. Hullot-Kentor 2006: 238-239). Benjamin no ter encontrado inspirao para um conceito novo de histria natural em Marx e Engels,mas sim no drama alemo do Barroco, o Trauerspiel. O livro Ursprung des deutschen Trauerspiels (1928) foi alis escrito antes do perodo marxista do autor. Segundo Benjamin, a natureza aparece no universodramtico dos autores do Barroco alemo por meio de analogias metafricas entre a histria e o ciclo da natureza, analogias estas que permitiam evitar a reflexo tica (cf. Benjamin 2009: 89). Conflitos ticos ehistricos apareciam como demonstraes de histria natural (cf. idem: 90). Benjamin argumenta que na poesiapastoril,porexemplo,ahistriasefundecomocenriopormeiodeversoscomemorativosdeixados por pastores em memria dos heris, pelo que o movimento cronolgico concebido atravs deuma imagem espacial (cf. idem: 92), maneira dos lugares de memria que comeavam a ser teorizados pela mesma altura por Maurice Halbwachs e mais tarde por Pierre Nora. Outro exemplo de histria naturalodramadedestino,emqueodestinonoumfenmenonempuramentenatural,nempuramentehistrico (cf. idem: 129). O conceito de histria natural comea a iluminar-se quando Benjamin nota queeste dialctico e se prende intimamente com o tema da alegoria: Whereas in the symbol destruction is idealised and the transfigured face of nature is fleetinglyrevealedinthelightofredemption,inallegorytheobserverisconfrontedwiththefacies hippocratica of history as a petrified, primordial landscape. Everything about history that, fromtheverybeginning,hasbeenuntimely,sorrowful,unsuccessful,isexpressedinafaceorrather in a deaths head. (idem: 166) Referindo-se aos livros de emblemas, Benjamin argumenta que a partir da estranha combinao denatureza e histria que surge o modo alegrico de expresso (cf. idem: 167), em que a natureza, na sua representao emblemtica de sentidos e significados humanos, permanece irremediavelmente diferentede uma concretizao histrica (cf. idem: 170). A relao dialctica entre histria e natureza encontra o seutermo definidor no conceito de transitoriedade: 4 The word history stands written on the countenance of nature in the characters of transience.The allegorical physiognomy of the nature-history, which is put on stage in the Trauerspiel, is presentinrealityintheformoftheruin.Intheruin,historyhasphysicallymergedintothe setting. And in this guise history does not assume the form of the process of an eternal life somuch as that of irresistible decay. (idem: 177-178) A runa marca materialmente o momento de fuso entre histria e natureza, em que a transitoriedade do histrico coincide com a transitoriedade do mundo natural; por outro lado, e de acordo com a relaodialctica entre os dois termos, o momento artstico projectado no mundo natural atravs do interessebarroco pela runa e da produo da runa como artefacto em cenrios de representaes pictricas (cf.idem: 178). A transitoriedade transforma-se numa ontologia do histrico nos poetas do Barroco. Segundo Benjamin: In nature they saw eternal transience, and here alone did the saturnine vision of this generationrecognisehistory(idem:179).Esteconceitodetransitoriedadeeternatorna-seolugardaalegoria: Allegory established itself most permanently where transitoriness and eternity confronted each other mostclosely (idem: 224). Benjamin contemplava o conceito de histria natural no contexto de um estudo esttico-filosfico. No sabemos se, no fosse a sua morte prematura em 1940, na fronteira franco-espanhola, quando tentavaescapar da Frana ocupada pelos nazis, no teria continuado a desenvolver o conceito noutros contextos.WalterBenjaminsOtherHistory:OfStones,Animals,HumanBeings,andAngels, de Beatrice Hanssen, consiste precisamente numa tentativa de explorar esse conceito e possveis derivaes em outros textos de Benjamin. A ideia de histria natural revelou-se, contudo, de grande utilidade para Theodor W. Adorno,queseinspirouemgrandepartenolivrodeBenjaminsobreodramatrgicoalemoparaotextoqueapresentou em 1932 junto do grupo de Frankfurt da Kant-Gesellschaft. A comunicao, intitulada Die Idee der Naturgeschichte, s veio a ser publicada em 1973, no primeiro volume das obras completas.6 Tendo emigrado para o Reino Unido e mais tarde para os Estados Unidos, Adorno conseguiu escapar ao nazismo eteveaoportunidadededesenvolveresteconceitoemseminriosnaUniversidadedeFrankfurteemNegative Dialektik (1966). A discusso de Adorno sobre a ideia de histria natural prende-se com as discusses sobre ontologia que ganharam um relevo considervel na Alemanha no seguimento do trabalho e crescente influncia deMartin Heidegger, sobretudo aps a publicao de Sein und Zeit (1927). Adorno explica que a questo da ontologiaaquiloqueeleentendepornaturezanoseuensaio.Oobjectivodoensaioanuncia-sena intenodesuperardialecticamenteatradicionalantteseentrehistriaenatureza,entreaquiloqueaparece na histria como Ser predeterminado e programado pelo destino e o qualitativamente novo, quesupera a mera reproduo identitria daquilo que sempre foi (cf. Adorno 2006a: 252-253). Num prenncio doqueviraserumacrticaimplacvelaHeidegger,sobretudoemJargonderEigentlichkeit(1964), Adornorev umconceito queparece cumprirumafuno semelhanteaode histrianatural:aideiade historicidade,queHeideggerusouparacontrariaratendnciaahistricapatentenotrabalhode,porexemplo, Max Scheler. Numa reviso inteligente dos termos do problema, Heidegger havia transformado ahistria, em toda a sua agitao, na estrutura ontolgica bsica, que se torna uma qualidade fundamentalda existncia (Dasein) humana (cf. idem: 256). A crtica de Adorno comea por fazer notar que a categoriadahistoricidadeincapazdelidarcomoproblemadacontingnciahistrica,acabandopordesaguarnuma tautologia: I mean nothing else than that the attempt of neo-ontological thought to come to terms with the unreachability of the empirical continually operates according to one schema: precisely wherean element fails to dissolve into determinations of thought and cannot be made transparent butrather retains its pure thereness, precisely at this point the resistance of the phenomenon istransformed into a universal concept and its resistance as such is endowed with ontological value. (idem: 257)

Adornoencontranestegnerodesoluotautolgicaelementosidealistasqueredundamnotemaclssico da identidade entre sujeito e objecto (cf. idem: 259). A transformao daquilo a que Adorno vir a chamar no-identidade num conceito universal em que se baseia uma ontologia derrota a funo resistentedo fenmeno, ignorando de que forma este contm um lado inacessvel conceptualizao, maneira dacoisa-em-sikantiana:SuchnonidentitywouldquitecloselyapproachtheKantianthing-in-itself(Adorno 2005a: 254). Ao contrrio de Heidegger, que funde histria e ontologia na categoria da historicidade, umacategoria que mais no faz do que naturalizar a histria (cf. Hullot-Kentor 2006: 244), ao mesmo tempo que mantm um humanismo tcito por via da categoria de Dasein (cf. Hanssen 2000: 22), Adorno propeuma soluo caracteristicamente dialctica: 5 If the question of the relation of nature and history is to be seriously posed, then it only offersanychanceofsolutionifitispossibletocomprehendhistoricalbeinginitsmostextreme historicaldeterminacy,whereitismosthistorical,asnaturalbeing,orifitwerepossibletocomprehend nature as a historical being where it seems to rest most deeply in itself as nature. It is no longer simply a matter of conceptualising the fact of history as a natural fact toto caelo(inclusively) under the category of historicity, but rather to retransform the structure of inner-historicaleventsintoastructureofnaturalevents.Nobeingunderlyingorresidingwithin historicalbeingitselfistobeunderstoodasontological,thatis,asnaturalbeing.Theretransformationofconcretehistoryintodialecticalnatureisthetaskoftheontologicalreorientation of the philosophy of history: the idea of natural-history. (Adorno 2006a: 260) AdornoremeteemseguidaparaGeorgLukcseWalterBenjaminparadesenvolveroargumento.Usandooconceitodesegundanatureza,talcomoLukcsodefine,isto,comoomundodasconvenes em que as coisas se reificaram e deixaram de produzir sentido, Adorno nota que em Lukcs ahistria, enquanto passado, se metamorfoseia em natureza, pelo que a histria petrificada se revela comonaturezaouavidapetrificadadanaturezacomoprodutododesenvolvimentohistrico(cf.idem:262). Essa metamorfose leva a que Adorno identifique como ponto fulcral o tema da transitoriedade: Thedeepestpointwherehistoryandnatureconvergeliespreciselyinthiselementoftransience.IfLukcsdemonstratestheretransformationofthehistorical,asthat-which-has-beenintonature,thenthereistheothersideofthephenomenon:natureitselfisseenastransitory nature, as history. (ibidem) Otemadatransitoriedade,emquenaturezaehistricaseencontramimbricadas,conduzAdornoa Benjamin e materializao da transitoriedade na runa e no fragmento em que tudo aquilo que existe setransforma(cf.idem:265).AconclusodeAdorno,umaconclusoqueirreapareceremtextosmaistardios, prende-se com uma filosofia da histria: history, as it lies before us, presents itself as thoroughlydiscontinuous, not only in that it contains disparate circumstances and facts but also because it containsstructural disparities (idem: 266). Em 1964/1965, em duas das sesses de um seminrio sobre histria e liberdade, o conceito de histrianatural novamente abordado, desta vez no contexto da preparao de Negative Dialektik. Ao contrrio do ensaio de 1932, que compreensivelmente, dado o momento histrico, mantinha camufladas as referncias marxistas,osseminriosde1964/1965earespectivasecoemNegativeDialektikexplicitame perspectivamdeforma diferentemuitosdostemas doanteriorensaio(cf.Hullot-Kentor2006:241).7No primeiroseminrio,AdornopartedeHegeledaideiadeprogressodahistriacomoummecanismoinfernal ou um matadouro, uma ideia que surge no incio do curso de Hegel sobre filosofia da histria, paraargumentar que o momento em que a histria parece progredir de forma mais desinibida o momento em queestaaparececomonaturezacega,emvezdesedistanciardela.Ahistria,atento(ou,se quisermos,atagora),tinhasidohistrianatural(cf.Adorno2006b:117),isto,naturezacomoumahistria de violncia (cf. idem: 124).8 Adorno critica a Hegel a transformao desse efeito da histria nosujeito a impresso de que a histria pertence ao domnio da natureza, com as suas leis e catstrofesnaturais numa viso filosfica que valoriza e trata a histria enquanto natureza, ou seja, como algo que existe antes e fora do sujeito, o que entra em contradio com a prpria viso hegeliana da liberdade comofim da histria (cf. idem: 119). Segundo um apontamento em Negative Dialektik, O () esprito do mundo [deHegel]aideologiadahistrianatural(Adorno2003b:350),atravsdoqualHegelpraticaumacaracterstica identificao com o agressor (cf. Hullot-Kentor 2006: 247).9 Nosegundoseminrio,AdornoretomaaargumentaodeDieIdeederNaturgeschichte,quefoi acima exposta. Vale a pena somente notar que Adorno assinala que a ideia de natureza deve ter em contaque a natureza como paisagem j algo de planeado, cultivado e organizado, caminhando no sentido daideiadereservanatural(cf.Adorno2006b:121).10UmtemacaroaAdorno,odemediao,voltaa aparecer no meio da prpria natureza. Este gnero de voltas dialcticas forma o cerne das vrias teorizaes que tenho vindo a referir. Ostextosqueabordeiinteressam-sepelomomentoemquesepodediscerniranaturezanahistriaea histriananatureza,emborausemfrequentementecaminhosdiferentesparachegaraessascombinaes. O propsito destas inverses dialcticas, que funcionam como princpio argumentativo devriosdestestextos,consisteemabordarmomentosdeinstabilidadeedeambivalncianatradicionaloposio entre natureza e histria.11 Como Fredric J ameson nota a propsito de Adorno, What is involved here is a reciprocal defamiliarisation of the two incommensurable poles of the 6 dualism of Nature and History, but clearly enough and on Adornos own formulation this mustbeaperpetualprocessinwhichneithertermevercomestorest,anymorethananyultimate synthesis emerges. (J ameson 2006: 99) Esta tarefa revela-se essencial j que a referida oposio serve de fundamento, deixado muitas vezesporquestionar,deumasriededisciplinasereasdeinvestigao,desdeascinciashistricaseexperimentais histria como cincia humana e a algumas das suas ideologias, incluindo acima de tudo ohumanismo. Serve este prlogo conceptual para fundamentar uma anlise do conceito e metfora de histria naturalna srie de lbuns Les Cits Obscures, de Franois Schuiten e Benot Peeters. A colaborao entre estesdois autores belgas tem produzido, desde h j quase trinta anos, um conjunto de livros algures entre abanda desenhada e o lbum ilustrado que tematizam as relaes entre planeamento urbano, organizaosocialedomniodanatureza,numcontextops-modernosituadonaencruzilhadaentreutopia,fico cientfica,histriaalternativa,efantasia.Acomponenteartsticadesteslbunstemsidoamplamentereconhecida e o seu flego imaginativo levou a que este universo diegtico se perspectivasse atravs dengulos inesperados: Schuiten e Peeters publicaram, entre outros, um guia turstico das cidades obscuras,umacolecoderecortesdeumjornalpublicadonesseuniverso,ummapadocontinentedascidadesobscuras editado com o aval do muito real Institut Geographique National de Frana e mesmo DVDs. Tal comodefendiemensaioanterior,esteuniversoencontranacategoriademeta-utopiaumadescrio adequada s suas caractersticas: As such, it is a type of utopia which is highly self-reflexive as a study about the possibilities and problems of the genre and its variants, constructing itself out of the immense field of utopianliterature and thinking and pointing towards it and not so much to an outside against which itwould be measured. (cf. Gomes 2007: 100) A histria natural, enquanto conceito e metfora, oferece um ponto de entrada invulgar neste universo,ao permitir analisar a relao estabelecida entre utopia e histria, o uso da cincia para dominar a naturezae a mescla entre histria e natureza. Comearei por considerar este ltimo tema num lbum que difere umpouco dos outros, Souvenirs de lternel Prsent (2009). Em seguida, abordarei a presena das cinciasduras no universo dos outros lbuns e a sua relao conflituosa com uma natureza que raramente se deixa dominar. Esta interaco entre histria humana e histria natural ir, julgo eu, coincidir com algumas dasideiasqueacimaexpusapropsitodadiscussodoconceitodehistrianaturalemBenjamineemAdorno. II SouvenirsdelternelPrsent (2009), o mais recente lbum de Schuiten e Peeters, anuncia-se como uma variao do filme Taxandria (1994), de Raoul Servais, para o qual Schuiten contribura com vriosdesenhos.Aproduoconturbadadofilmelevouaquevriosdosdesenhosnofossemaproveitados, tendo um lbum sido editado em 1993 que aproveitava algum desse material (cf. Schuiten & Peeters 2009:66-77). Em Le Guide des Cits (2002), um autntico guia turstico sobre o universo das Cidades Obscuras,Schuiten e Peeters comearam a apropriar-se das narrativas e imagens produzidas em volta da cidade deTaxandria para fazer delas parte das Cidades Obscuras. Uma descrio unificadora formulada e, numaestratgiatpicadoslbuns,orealizadordofilmeaparececomopersonagemdoseuprpriouniverso diegtico:Unpersonnagesembleentoutcasavoirjouunrledcisifdanscesvnements,leprofesseur Servais, inventeur du servaisgraphe (Schuiten & Peeters 2002: 184).12 Em mais uma aluso ao filme, o professor Servais aparece ainda como o autor de vrias imagens que, comentam os autoresdo guia, reconstituem de forma muito convincente a cidade de Taxandria (cf. idem: 185). O guia contm ainda a vantagem de narrar e descrever aspectos do lbum de 2009 que so abordados elipticamente ou apenas considerados como parte do cenrio. Segundo o guia, a cidade de Taxandria teria sido devastada por um cataclismo natural, na sequnciadeterrveismanipulaescientficas.Nolbum,estasmanipulaesconsistemnainvenodeum aparelho capaz de produzir reprodues idnticas de qualquer coisa. Os cientistas de Taxandria, seguindoalis o modelo do cientista tpico deste universo, entusiasmam-se com a descoberta e produzem inmeras cpias exactas de si mesmos, at que se torna impossvel distinguir os originais das cpias.13 Uma destas cpias decide duplicar o sol, um acto com consequncias terrveis. Os dois sis liquidificam a neve, fazemevaporar-seaguadosrios,incendeiamosprodutosinflamveis.Duranteumincndioqueassolaa cidade,Irina,amulherdopresidente,elamesmaduplicada,morreaodarluzumacrianacomduas7 cabeas.Poucashorasdepois,acpiadeIrinamorre.Segue-seocataclismo:umasriedeondas gigantes varre a cidade e, das entranhas da terra, surgem estalagmites de propores titnicas, ao arrepioda forma como as estalagmites se criam no mundo natural. Pouco depois, um dos sis extingue-se. Na sequncia do trauma, declara-se ento o reinado do Eterno Presente, do qual se banem as imagens, as mquinas e toda e qualquer forma de desenvolvimento o progresso erradicado. Qualquer referncia ao passado ou ao futuro interdita e os livros de histria desaparecem. A ditadura do Eterno Presente torna-se to preponderante que, de facto, o tempo deixa de correr e o prprio futuro desaparece. Aim, a criana que protagoniza o lbum de 2009, chama a ateno, logo no incio, para o facto de no lhe crescerem cabelos (cf. Schuiten & Peeters 2009: 6); estes s comeam a nascer na ltima pgina do lbum, aps Aim conseguir escapar do mundo de Taxandria (cf. idem: 65). A cidade de Taxandria justifica assim o seu nome botnico, visto fazer aluso a um gnero da famliadas Myrtaceae, as quais se caracterizam, entre outras coisas, por aquilo a que se chama folha persistente ou perene. Aps o cataclismo, a cidade caracteriza-se por uma mistura heterclita de elementos dspares. Acinciaearquitecturadacidadeaotempodocataclismosoidentificveiscomopara-vitorianas, podendo aludir a um sub-gnero de fico a que se chamou Steampunk, uma forma de ucronia em queosparadigmascientficosetecnolgicosactuaisouimaginriossoatingidosatravsdemeioscaractersticos de perodos anteriores, como o motor a vapor. Esta caracterizao pode alis estender-se, comalgumaliberdade,aosoutroslbunsdasrie.Taxandria,contudo,mostraestaarquitecturapara-vitorianacomoumaruna.Vriascasasencontram-setombadasoucombrechas;asruasdeparalelo apresentam subidas acentuadas para os lados; as molas gigantes de uma torre relgio tombam sobre arua; um dos edifcios serve apenas como depsito de relgios e ampulhetas deitados fora (cf. Silva 2010:25); todos os edifcios apresentam uma devastao marcada e meios rudimentares so usados para obviar asdificuldadescausadasaspersonagensfrequentementeusamescadasepequenaspontesimprovisadasparapassardeumedifcioparaoutro.Oquemaisimpressionanacidadesoasestalagmites surgidas durante o cataclismo. Segundo o guia, os habitantes ter-se-iam dedicado a talhar as estalagmites,transformando-asemcolunascomcapitiscorntios(cf.Schuiten&Peeters2002:185).Contudo,comoasestalagmitessurgiramdeformanatural,emngulosimprovveis,atravessandoedifcios, transportando-os para o alto, a impresso dada ao leitor a de uma srie de colunas inacabadas,com as bases ainda semelhantes a estalagmites mas com a parte superior e os capitis j talhados. Estasaparecem ora integradas nos edifcios ora como erupes selvticas e congeladas, parecendo ainda por vezes que os edifcios foram construdos a partir destas formaes minerais. Como Bruno Mendes da Silvaargumenta, Em Taxandria a ausncia de tempo reflecte-se no espao (Silva 2010: 20). A interaco surpreendente entre as runas arquitectnicas e as estalagmites parcialmente apropriadascomocolunastransmiteaoleitorumairredutvelsensaodeserincapazdedistinguirentreformaonatural e construo humana. Dado que se trata de um lbum marcadamente surrealista e fantasmagrico, em que uma parte considervel do enredo e do cenrio consiste em voos da imaginao, o leitor levadoa imaginar que as casas pousadas em cima de estalagmites corntias inacabadas tambm elas saram docho.Aarquitectura,essaartehumanaehistoricamentedocumentadaeperiodizada,oferece-se,no delrio causado pelo lbum, como um objecto natural. A metfora organicista usada at exausto nascincias humanas deixa aqui de ser uma metfora e passa a ser uma descrio apta da realidade. Casas nascem,crescemedecaemcomoplantas.aquiqueoconceitodehistrianatural,sobretudonasteorizaes de Benjamin e de Adorno, se revela determinante. Por um lado, na sua irrupo a partir domundo da natureza, o Eterno Presente parece querer congelar a histria e anul-la num presente esse objectofugidiodasontologiaspermanenteeigualtodososdias.Ahistria,nascendoemestadodenatureza, torna-se um objecto da ontologia e no da historiografia.14 O seu estado o do ser e no do devir;anaturezaqueolbumpressupe,nosurpreendentemente,adasformaesmineraisedasguas estagnadas. Parecemos ouvir aqui Adorno, que procurava a natureza a onde a histria se mostramaishistrica.Poroutrolado,anaturezaalgoqueirrompeupelomundodeTaxandrianopassado distante,interrompendo-seoseufluxohistrico,queseafirmavacomodeterminadopeloprogresso.Omundo do Eterno Presente uma reaco humana a uma catstrofe ecolgica. Ora a catstrofe, emboraassociada por Benjamin ao avano inelutvel do progresso, tambm a marca da histria como sucessode momentos descontnuos. A prpria apario das estalagmites gigantes apresenta-se como interrupo edescontinuidade.Natransformaodomundohumanoporfenmenosnaturaisimprevisveisreconhecemosessemotivodefinidordahistria,queacontingncia.Acontingnciaasseguraatransitoriedade da sociedade humana anterior ao cataclismo e parece anunciar a transitoriedade do prpriomundodoEternoPresente.DenovonoslembramosaquideAdornoque,completandooquiasmo,procurava a histria a onde a natureza se mostrava mais natural. Ao unir uma histria que tende para aontologia e uma natureza que se define pela contingncia, o lbum Souvenirs de lternel Prsent ilustra de forma exemplar esse conceito enigmtico que a histria natural. Tal como a histria natural, na suaapropriao filosfica, parece juntar dois termos num oximoro perigoso mas altamente produtivo, tambm8 estelbumconjugaelementosquenoshabitumosaverseparadosequeproduzemumacontnuasensao de estranheza e desconforto. Vistospeloprismadahistrianatural,osrestanteslbunsparecemempalidecerperanteaforaconceptual e sincrtica do lbum de 2009. Isto deve-se tambm estrutura narrativa adoptada na maioria dos lbuns da srie, por oposio de Souvenirs. Se naqueles a narrao e construo de ambiente mais convencional e linear (excluem-se deste grupo lbuns como Le Guide des Cits e LEcho des Cits), Souvenirsdependedeumaestruturamaisprpria,adamemria.15Asucessodeincidentesevita frequentementeacausalidadeeosepisdiosindividuaisnoincluemmuitasvezesumaconclusosatisfatria. Parece por vezes que o protagonista atravessa o espao de Taxandria com o nico fim de o mostraraoleitor,damesmaformaqueseatravessaummuseu.DeacordocomosprincpiosinternosdesteEternoPresente,aorganizaoedisposiodolbummaisespacialdoquepropriamentetemporal e isso permite a sugesto de um conceito poderoso e aparentemente paradoxal, como o dehistria natural, de uma forma mais imediata e comprimida do que nos outros lbuns. III Oconceitodehistrianaturalpermiteaindaperspectivardeformaconvincentealgunsaspectosde outros lbuns da srie. Na ausncia da forte apropriao conceptual que caracteriza o lbum Souvenirs, o tema surge agora como enquadramento para histrias sobre a dominao ou domesticao da natureza,inserindo-se em narrativas plausveis, se bem que de uma plausibilidade prpria do gnero do fantsticoou da fico cientfica. A cincia alis uma presena constante nos lbuns de Schuiten e Peeters, sendofrequentes as conjecturas e discusses cientficas, tal como o trabalho de anlise e experimentao. Em LaFivredUrbicande, surpreendemos Eugen Robick, urbatecto, mais do que uma vez no acto de fazermedieseelaborarclculos.EmLEnfantPenche,AxelWappendorf,ocientistaidosomastemerrio que mais vezes aparece nos lbuns das Cidades Obscuras, dedica-se a estudar a mecnica obscura de umplanetaescondidoqueprovocaestranhasperturbaesgravitacionaisnoplanetadasCidadesObscuras. Wappendorf decide-se eventualmente a partir na direco desse planeta, fazendo uso de umprojctil habitvel a ser disparado por um canho imenso. Tal como em DelaTerrelaLune (1865) e AutourdelaLune(1870),deJ ulesVerne,osmodelosevidentesdestapartedolbum,aviagemdeWappendorf falha o alvo e depressa volta Terra. Toda a preparao da viagem se caracteriza por uma totalintrepidezquecedoserevelasimplesimprudnciaeoprojectonoacabaemdesastrepormeroacaso. Segundo o guia das cidades, Wappendorf no seria um modelo dos cientistas deste continente e,no entanto, considera-se que, a, a cincia depende em parte considervel da intuio, da imaginao e demtodos inslitos: as cincias seriam no exactas, mas aproximadas (cf. Schuiten & Peeters 2002: 53). Uma amlgama de audcia e impreciso caracteriza, alis, uma boa parte das actividades cientficas e tecnolgicas nas Cidades Obscuras. no seu confronto com o mundo natural que reencontramos o temadahistrianatural.Estemanifesta-senormalmenteatravsdatentativadedomesticao,ousimpleserradicao,danaturezaeaconsequenteirrupodescontroladadeumanaturezaquenosedeixadominar.16 O caso de Brsel paradigmtico. Baseando-se na histria da cidade de Bruxelas, Schuiten e Peeters usam o episdio histrico e definidor da cobertura do rio Senne, sobre o qual se construiu umasrie de novas avenidas, durante a segunda metade do sculo XIX. O episdio ficcionalmente includono contexto de outra revoluo urbana em Bruxelas, aquilo a que se chamou bruxellisation, um termo que designaodesenvolvimentoanrquicodepropriedadecomercialnumacidadehistrica.Nocasodas CidadesObscuras,atransformaodeBrseldtambmlugarafilasdearranha-cuseavenidas desmesuradas. A cobertura do rio que neste universo tambm se chama Senne d lugar no fim do lbum Brsel a uma inundao de propores excessivas.17 medida que os protagonistas do lbum abandonam a cidade de barco, alguns painis mostram a imagem dantesca de um mar de onde despontam arranha-cus e rvores indiferentemente. O protagonista desse lbum, Constant Abeels, um vendedor de plantasdeplstico,comasquais pretendedesembaraar-se dafaltadehigieneprovocadaporumavegetao orgnica.Ainsistnciaemvencerosciclosdevidadanatureza,substituindo-aporumsimulacro plastificado e perene, recompensada com uma tosse persistente que s desaparece quando Constantfinalmente abandona Brsel.18 Dois curiosos exemplos de interaco entre o mundo humano e o mundo natural podem encontrar-se nas cidades de Blossfeldtstadt e de Calvani. Schuiten e Peeters inventam um entusiasmo inabalvel nasCidadesObscurasporumlivroeumautorbemreaisUrformenderKunst,deKarlBlossfeldt,um representante na fotografia da corrente alem da Neue Sachlichkeit (Nova Objectividade). Blossfeldt ficou conhecido por produzir fotografias de plantas tiradas de perto, salientando formas e detalhes ornamentais,e argumentando que tanto a arte como a tcnica teriam a aprender com as formas naturais: The plant maybe described as an architectural structure, shaped and designed ornamentally and objectively. (...) Not only, then, in the world of art, but equally in the realm of science, Nature is our best teacher (Blossfeldt 1998:9 vii).19 No universo das Cidades Obscuras, as autoridades na pequena cidade de Brentano empenham-se numa reconstruo total da cidade imagem das formas fotografadas por Blossfeldt. O entusiasmo tantoqueacidademudadenomeparaBlossfeldtstadt.Todososedifciospassamaostentarformasquerecordam o leitor do mundo natural. Calvaniapresentaumexemplobemmaisradical.DesprezandoasoluounicamentemimticadeBlossfeldtstadt, os habitantes de Calvani optaram porimportar o prprio mundo natural para dentro dosseusedifcios.Segundoaracionalizaoemdiscursoindirectolivreporpartedosautoresdoguiadascidades, si on aimait les plantes, il ne fallait pas les figer dans la pierre, mais bien leur donner les moyensde spanouir (Schuiten & Peeters 2002: 111). A cidade passa a constituir-se de vastos palcios de cristal destinadosaalbergarjardinseaservirdeestufasparaexemplaresdeplantasexticas.Numexemplotpico do dialogismo que caracteriza estes lbuns, as opinies dividem-se. Pela sua parte, Isidore Louis, o protagonista do lbum O Arquivista, relata: H quem afirme que este grande entusiasmo, porm, esmoreceu quase to depressa comosetinhaimposto.Doenasestranhaster-se-iamdesenvolvidonestaatmosferapesadae hmida,asestufasteriamtambmcadoemdesuso,eaingrataNaturezacalvanianateria retomado os seus direitos. Pessoalmente, no acredito em nada disto. (Schuiten & Peeters 2003: 28) OsautoresdoguiadascidadesparecemapoiarestaltimaexclamaodeLouis,notandoqueasdificuldadesenumeradaspeloarquivistateriamsidoexageradas:eraverdadequecertastempestadeshaviamdanificadoafrgilarquitecturadacidadeequealgunsbairrosperifricoshaviamsidoreconstrudos em estilo tradicional, mas os autores do guia reafirmam que a cidade permanece uma das mais agradveis do continente (Schuiten & Peeters 2002: 112). interessante notar a diferena de opiniodeumlbumparaoutro.EnquantoOArquivistainsisteaindanumaincompatibilidadeirredutvelentremundohumanoemundonatural,emqueanaturezaretomaosseusdireitosdeformaindiferenteem relao s homenagens humanas, o guia oferece a imagem de uma cidade dedicada no apenas a emulara natureza, mas a tentar atingir uma relao harmoniosa, e progressivamente equilibrada, entre os doisuniversos.Aindadeacordocomoguia,acidadepareceteratradoumgrandenmerodecientistas,sobretudo botnicos e geneticistas, tendo finalmente reestruturado a economia em torno do turismo, dashortas e da viticultura. AcidadedeUrbicandeoferecejumcasolimite,emquehumanoenaturalsedistinguemmal,aproximando-se as suas relaes das metforas e conceitos de Souvenirs, embora se trate aqui de umanarrativa clara. A ideia de um cubo que, ao ser desenterrado, comea a aumentar de dimenso ao mesmo tempoqueproduzoutroscubos,tomandooaspectodeumaredeoudeumaestrutura,aludeaonvelestrutural em que funciona o conceito de histria natural no lbum LaFivredUrbicande. O estatuto de mineral com propriedades fantsticas e misteriosas parece afastar o cubo do domnio estrito da natureza,sugerindoquesepodetratardeumprodutohumano.Essasugesto,contudo,nuncaseconcretizaaolongo do lbum. medida que o cubo cresce, a populao de Urbicande assiste impotente ocupao da cidadeporumaredesimultaneamentematerialeimaterialocubocrescetranquilamenteatravsdos edifcios, mas no se deixa ele mesmo atravessar. Quando o crescimento parece cessar, os habitantes dacidadeapropriam-sedanovaestruturaarquitectnicacomodeumobjectonatural:apoiadasnocubo, constroem-sepontes,passadios,elevadoresemesmoculturasagrcolassuspensas.Ocubo,contudo,fazendojustiatransitoriedadedonatural,voltainesperadamenteacrescer,oquereduzasnovasconstrues a um campo de runas. A comunidade traumatizada decide iniciar um projecto ambicioso reconstruirocubo,oupelomenosumseusimulacro,atravsdemeioshumanos.EugenRobick,oprotagonista do lbum, adopta ento uma soluo ainda mais radical, dedicando-se nas ltimas pginas a esculpirapartirdaprpriarochaumcubosemelhanteaoqueinicioutudo.Estesartefactoshumanosanunciam contudo o seu fracasso, por serem incapazes de emular a contingncia definidora do cubo. AsrunasdeUrbicandeapsapassagemdocuboindicamumltimoexemplodecomoahistrianatural actua no universo das Cidades Obscuras. De facto, voltando a Benjamin, a runa, que assinala ovestgiodaimplantaodahistrianapaisagem,representaumesplendortransitrio,umadecadncia insupervel (cf. Benjamin 2009: 176, 178). E, se as alegorias so no mundo dos pensamentos aquilo queas runas so no mundo das coisas (cf. ibidem), ento a seguinte citao sobre a alegoria ganha uma foramaterial sbita: in allegory the observer is confronted with the facies hippocratica of history as a petrified, primordial landscape (idem: 166). A histria petrificada encontra a sua representao mais acabada narunasemi-destruda.NocontinentedasCidadesObscuras,arunaumdosobjectosarquitectnicosmaisfrequentes.Colunas,novamente emestilo corntio,surgemdasguasdoLacVert(cf.Schuiten&Peeters1996:153-157);orelatrioficcionalquecompeolbumOArquivistaincluitrsgrandes ilustraes de runas com um forte carcter pitoresco (cf. Schuiten & Peeters 2003: 9, 25, 47), dando de10 novo razo a Benjamin, que caracterizava a runa ainda como um artefacto, um objecto que, mais do quemeramentehistrico,eraeminentementeartstico:Whatprevailshereisthecurrentstylisticfeeling,farmore than the reminiscences of antiquity. That which lies here in ruins, the highly significant fragment, theremnant,is,infact,thefinestmaterialinbaroquecreation(Benjamin2009:178).Apoiando-senuma citaodeKarlBorinski,Benjaminencontraexemplosdarunacomoobjectodeumaproduonoscenrios renascentistas da cena do nascimento e adorao de Cristo, em que os artistas trocam o estbulomedieval pelas runas de templos da antiguidade clssica (cf. ibidem). A runa mais famosa deste universo talvez a Torre que lhe serve de mito fundador. No tempo dasCidades Obscuras, a Torre j no existe e ningum sabe onde esta tinha sido erguida. O lbum La Tour, contudo,narraosltimostemposdaTorre,antesdoseudesabamento.Aolongodolbum,aTorre aparece sempre com propores to descomunais que nunca dela vemos uma representao completa,exceptuandoosquadrosquefalhamclamorosamentenatentativadelheadivinharaformaeas dimenses. No incio do lbum, o protagonista, Giovanni Battista, encarregado de cuidar de uma pequenazona da Torre em evidente estado de degradao, queixa-se de no ter h muito tempo contacto com a base da Torre e com os seus inspectores. A viagem que ento empreende em direco ao cimo da Torre revela comunidades isoladas umas das outras e estados diversos de desenvolvimento. medida que sobena Torre, Giovanni v mquinas cada vez mais sofisticadas, incluindo transportes a vapor, e grupos cadavez mais dispersos e desesperanados de habitantes. A Torre, nos seus vrios estdios de construo,marcaassimdiferentesmomentosdedesenvolvimentohistricoetecnolgico.20semelhanadas catedraisgticas,oprprioedifciovaiabsorvendoosestilosartsticosemconstantemudanae beneficiando das novas tecnologias (cf. Schuiten & Peeters 2008: 72-73). O cimo da Torre, contudo, de novo um campo de runas (cf. idem: 80). Tendo perdido a esperana de alcanar o divino com a Torre, osseus construtores teriam abandonado a construo pelo seu centro oco e deixado as populaes dos pisosintermdios sua sorte. Antes de finalmente desabar, a Torre aparece assim ela mesma como uma runainacabada, um objecto arquitectnico em degradao avanada ainda antes de terminado. No pode haver melhor exemplo de histria natural enquanto histria do transitrio. IV Qualquer apelo Natureza no contexto das Cidades Obscuras arrisca ver a desejada estabilidade ouperenidade natural esboroar-se perante a transitoriedade e a contingncia que, essas sim, caracterizam o mundo natural e que se vem assim transplantadas para um mundo humano que raras vezes entende anaturezaenvolvente,consequentementefracassandonassuastentativasdedominao.Mesmosemaajudadanatureza,essascaractersticascausamaindaumgrandenmerodecatstrofesnaprpriahistriahumana,queseadaptamalmudana,aosacidenteseefemeridadedosseusplanoseconstrues. Apanormica,naprimeirapartedestetexto,dealgumasconceptualizaesedesenvolvimentos imaginrios a que a ideia de histria natural se tem prestado teve por objectivo preparar uma anlise douniverso das Cidades Obscuras, elaborado por Franois Schuiten e Benot Peeters numa srie de lbuns,a partir desta perspectiva dialctica de uma histria com caractersticas naturais e de uma natureza comtraos histricos. O universo de referncias que alimenta estes lbuns o de um sculo XIX possudo pelomito da cincia e pela dominao da natureza. Os acontecimentos que ocupam as pginas desta srie delbuns prendem-se assim, muitas vezes, com uma relao intensa entre histria e natureza: ora a histriase paralisa num eterno presente, ora a natureza irrompe pela histria dentro com a violncia e a brevidadede uma revoluo. Por vezes, as cidades imitam a natureza, outras vezes exibem-na e outras vezes ainda ocultam-na, abafando-a e substituindo-a por simulacros plastificados. Neste ensaio espero ter mostrado agrande variedade que caracteriza as relaes entre histria e natureza no mundo das Cidades Obscuras. Estaanlisepretendeteraindaoutrautilidade.Oconceitodeutopiatemtradicionalmenteassumidocontornos conflituais em relao ideia de histria. Tem-se por vezes pretendido que a utopia marca o fim da histria ou a sua suspenso, que est para alm dos conflitos histricos, num lugar intermdio entrehistriaeeternidade.Essemomentoimaginrioqueligaintimamentehistriaeeternidadenaideiadeutopiaestprximodaideiadehistrianatural,entendidasobretudocomoumahistriacongelada, purgada de conflitos e contingncias. Contudo, outra acepo da expresso, uma que a considere comotransitoriedade eterna, pode ajudar a desbloquear algumas das ansiedades prprias do gnero da utopia edas suas ramificaes filosficas, ao colocar a utopia firmemente do lado de c da histria. Do ponto devistadacontingncia,tantodistopiascomoutopiassofenmenosprovisrios.Nodevemos,pois,esperarat queassuas representaespassemaumregistogeolgicoimperfeito,comoodeDarwin. Devemosantesabord-lascomomomentosdeumahistriacontemporneaqueurgeirescrevendo,mesmo que esta nos aparea como uma contnua catstrofe natural. 11 Referncias Bibliogrficas Adorno, Theodor W. 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O coleccionador, que arranca as coisas e os corpos ao seu devir diacrnico e ao seu contexto sincrnico, junta numa coleco os objectos que agora oferecem o conhecimento do todo, quando so miniaturas de outros objectos que normalmente apenas se podem conhecer parcialmente (cf. idem: 132). No recurso taxidermiaeconstruodemodelosescalareal,omuseudehistrianaturalevitaparcialmentea necessidadedaminiaturizao(emboratambmfaausodela,porexemploemreproduesde fenmenos geolgicos), encontrando-se tambm a uma parte do seu fascnio. O uso de uma coleco de objectos para narrar uma histria da natureza contribui para estabelecer o museu como espao de jogo, estimulando o desejo de manipulao. 2 Por outro lado, convm lembrar o discurso pronunciado por Engels no funeral de Marx, onde surge o famoso comentrio: J ust as Darwin discovered the law of evolution in organic nature, so Marx discovered the law of evolution in human history (apud Gould 2003: 115). Engels, como se sabe, estava muito mais ligado s cincias naturais do que Marx, tendo escrito Anti-Dhring e o pstumo Dialektik der Natur, dois volumes que lidam com temas das cincias da natureza e que fazem parte do esforo por parte de Engels emafirmaromaterialismodialcticocomoumacincia.OefeitodotrabalhodeDarwinemMarx abordado de forma concisa e acessvel em Gould 2003: 113-129. 3 Este pargrafo de Darwin tem, contudo, consequncias interessantes, ao insistir no facto de a histria, mesmoageolgica,serforadaalidarcomosmateriaissuadisposio,aceitandoaperda irrecuperveldaquiloquedesapareceu:Inthispassageheemphasisestheelementsoftimeandof decay, and suggests how impossible it is to retrieve the full roster of evidence. Principles of change must serve(...).Darwinimpliesanimaginedsynchronicitybetweenwritingtherecordandbeingpartofthe experience, as any historian must. But the passage also admits how fitful and slight is any access to the forms of the past (...). Darwins theories demand recognition of loss, irrecuperable (Beer 2008: xvii). 4 Marx, por exemplo, criticava aquiloque via comoa tendncia deDarwin em transportar os traos da sociedade capitalista sua contempornea para as suas descries da natureza (cf. Gould 2003: 124-125). Gould nota que o prprio Darwin se debatera quanto presena ou ausncia de progresso no fenmeno da evoluo, tendo-se pronunciado, em ocasies diferentes, pelas duas posies (cf. Gould 2000: 257-258).SegundoGould,ahistriadacinciarevelanestegnerodetendnciaumaoutraformade infiltrao da histria no domnio das cincias: [it is] the subtle and inevitable hold that theory exerts upon dataandobservation.Realitydoesnotspeaktousobjectively,andnoscientistcanbefreefrom constraints of psyche and society. The greatest impediment to scientific innovation is usually a conceptual lock, not a factual lack (idem: 276). Gould escreveu sobre este tema em vrias ocasies, sendo tambm relevante, por exemplo, a sua discusso da metfora da cunha em Darwin (cf. Gould 2007: 300-312). 5 De forma caracteristicamente materialista, Fredric J ameson aponta para um dos momentos mais tpicos destaimbricaoentrehistrianaturalehistriahumana:theplagueis,ifanywhere,theplacewhere human history and natural history most dramatically intersect, before the naked eye (J ameson 2006: 95). 13 6 Neste ensaio, e sempre que possvel, usei tradues para ingls ou francs. Nos poucos casos em que cito um texto a partir da edio alem, a traduo minha. Neste caso especfico, utilizo a traduo para ingls de Robert Hullot-Kentor, includa no seu volume de ensaios ThingsbeyondResemblance. Hullot-Kentor tem-se afirmado como tradutor e intrprete de Adorno, tendo, por exemplo, traduzido para ingls sthetische Theorie, Philosophie der neuen Musik, Kierkegaard: Konstruktion des sthetischen e editado a coleco fragmentria Currents of Music. A presente traduo apresenta inmeros sinais de rigor e uma tendnciaparareveratradiodetraduodasobrasdeAdornoedeBenjamin:quasesempreque Hullot-Kentor recorre a uma traduo para as citaes que Adorno faz, essa traduo aparece corrigida ou emendada. A impresso de rigor, contudo, cedo se torna uma impresso de alguma arrogncia. Ao longodeThingsbeyondResemblance,Hullot-Kentorrevela-sealtivoeagressivamentesarcstico(cf. Hullot-Kentor2006:190-192;220-233)eassucessivascorrecesnatraduodeDieIdeeder Naturgeschichte, algumas um pouco idiossincrticas, esbarram na nota de fim 12, em que Hullot-Kentor explica que escolheu omitir uma frase do texto por esta no adiantar compreenso do leitor: Nothing of importanceseemstobeatstake,andsothephrasehasbeendroppedtoavoidconfusion(idem: 303n12). Uma comparao com o original (cf. Adorno 2003a: 357) revela que a nota est, na verdade, acoplada a uma frase situada uma pgina depois da frase a que se devia referir, pelo que o leitor fica sem saber qual era a frase confusa e aumenta essa confuso ao ler uma nota elptica que se refere a outra parte do texto. Esta confuso deriva directamente do tipo de interveno sem cerimnias que caracteriza asanotaesepossivelmenteatasopesdetraduodeHullot-Kentor.Advidasobreorigorda traduo ainda mais acentuada quando, noutra nota, o leitor se depara com uma conhecida citao de Franz Grillparzer, Eifersucht ist eine Leidenschaft, / Die Eifer sucht, was Leiden schafft, que no s mal citada por Hullot-Kentor, como atribuda a Siegfried Krakauer (cf. Hullot-Kentor 2006: 301n20). Contudo, feito este aviso e na ausncia de uma alternativa, opto por usar a traduo de Hullot-Kentor. 7 O ltimo pargrafo do ensaio de 1932 indicativo dessa situao, ao fazer apenas duas referncias no desenvolvidas a um materialismo histrico e a uma dialctica materialista (Adorno 2006a: 269). 8 Em Negative Dialektik, esta ideia atinge, como frequente nos livros de Adorno, uma expresso lapidar: Ahistriahumana,acontnuadominaodanatureza,fazperseveraroinconscientedanatureza,o comer e ser comido (Adorno 2003b: 348-349). Fredric J ameson assinala o horror que se segue a esta viso dantesca da histria da natureza: a hideous eternity of domination and hierarchy, designed at least to leave its subjects alive, but also and finally the violence of nature itself, organisms obliged to eat their whole waking life long, and to eat each other (J ameson 2006: 96). Esta ideia aponta ainda na direco de uma ideia tematizada em Dialektik der Aufklrung, e retomada em sthetik Theorie, a de que a liberdade dosujeitoimplicaumaprivaodaliberdadedooutro,danatureza(cf.Adorno2010:82).Otemada dominao da natureza , alis, constante no pensamento de Adorno, sendo as preocupaes ecolgicas proeminentes em Dialektik der Aufklrung e em Minima Moralia. 9 Esta crtica desenvolvida em Negative Dialektik, em que desta vez o alvo a ideologia num contexto capitalista,emqueovalor,emtermoseconmicos,transformadoemcoisa-em-si,emnatureza.De acordocomoconceitodeideologiadeAdorno,queconsideradaumaaparnciasocialmente necessria, este processo considerado real e, ao mesmo tempo, ideolgico (cf. Adorno 2003b: 348). 10 Neste aspecto, as consideraes de Adorno aproximam-se das de Heidegger, quando este nota que a histria aparece na natureza em casos como o cultivo agrcola, o campo de batalha e o lugar de culto (cf. Hanssen 2000: 20-21). 11 Por outro lado, como Beatrice Hanssen nota a propsito da crtica de Benjamin ao conceito de eterno retornodeNietzsche,estemcausaatentativadepensarnumstermosingularidadehistricae repetio: Benjamin considered Nietzsches principle of repetition to be an inconclusive and insufficient explanationforoneofthecentralantinomiesofhistory,namelythataprincipleofrepetitionmanifested itselfintheformofhistoricalperiodsorepochswhilehistoryitselfwasasingularandunrepeatable process. In fact, what Benjamin aspired to accomplish with his new notion of origin was nothing less than to think together, and to bring together in one term, historical singularity and repetition (Hanssen 2000: 42). 12 Sobre a servaisgraphie, cf. Silva 2010: 32n10. 13 [A] frequent characteristic of scientists and architects in the universe of the Obscure Cities is that they understand no middle term: their solutions are always as revolutionary as they are extravagant, and their failures are no less grand, which, by a satirical treatment, brings us close to the style of anti-utopia. This is aggravated by the fact that science in the Obscure Cities is not an exact science. It is constantly faced withinexplicableanduncontrollablephenomena,whichdisturbplansorthenewlybuiltcities.(Gomes 2007: 93-94) 14 14 A prpria historiografia protagoniza uma apario surpreendente no lbum, quando Aim descobre um livroonicoquepareceexistirnesteuniversoquecontaahistriadocataclismoquedestruiu Taxandria.Asprimeirasfrasesdolivrodocontadoestatutoreprimidoeperturbadordahistriano mundodoeternopresente:Osera-t-ondirequilyeutuncommencementnosmalheurs,quenotre ternit (bnie soit-elle!) eut elle-mme une histoire? Sera-t-il permis, une seule fois, denfreindre la plus prcieusedenosloispourvoquercesjours(mauditssoient-ils!)oleTempsscoulaitencore? (Schuiten & Peeters 2009 :12). 15Ocasode LeGuidedesCitstemvantagensprprias,aopermitiradivisodotextoempequenos artigos de informao turstica e geogrfica, incluindo uma interessante seco sobre fauna e flora, com algumas referncias a espcies extintas ou em vias de extino (cf. Schuiten & Peeters 2002: 16-21). 16 Num pargrafo que resumemuitosdos exemplos que eu examinoem maior pormenor, J oo Miguel Lameiras e J oo Ramalho Santos notam a convivncia tensa entre histria humana e mundo natural no universodasCidadesObscuras:[O]pesodasplantasnestasriebemvisvel.Noacidadede Samaris simbolizada pela drsera, uma planta carnvora? No invadem as plantas as seculares pedras de ATorre do mesmo modoque os modernos edifcios damegalmanaBrsel, aps o dilvio quequase arrasou a cidade? No a cidade de Calvani uma imensa estufa e a cidade de Blossfeldtstadt inspirada nas fotografias que Karl Blossfeldt fez de plantas? Do mesmo modo, o crescimento geomtrico do cubo-retculodeUrbicandasimbolizabemaforadanaturezaquenadadetm,enquantoqueos prolongamentosdasrieparaoutrossuportes(desdeoslivrosilustradosatInternet,passandopor iniciativas como esta) so como razes que se espalham sob a terra frtil, simbolizando a vida que pulsa por trs das imponentes fachadas de Alaxis, Brsel ou Urbicanda. Uma vida que, na falta de bom senso, no deixar de ser posta em causa. Se no for possvel uma ordem mais harmoniosa, a fora da natureza far-se-sentir,epodersertardedemais.AmetamorfosedeSamariseadegradaodaTorre,a inundao de Brsel e o terramoto que terminou o sonho de Urbicanda a esto para o provar (Lameiras & Santos 1998: 66-67). 17Tudocomeoucomchuvastorrenciaisqueofracocursodeguanoconseguiaabsorver.Depois seguiu-se uma enchente, aps as grandes mars equinociais. Da All Verte ao Quai au Foin, o corao da cidade encontrava-se submerso. (Schuiten & Peeters 2003: 20) 18Numoutrolbum,LaRoutedArmilia,umahistriaque,maistarde,serevelacomoumafico composta por um habitante das Cidades Obscuras (cf. Gomes 2009), Brsel surge de novo como vtima de uma misteriosa irrupo do mundo natural. Uma vegetao densa apodera-se em poucos minutos da cidade, atravessando arranha-cus de alto a baixo e saindo pelas janelas (cf. Schuiten & Peeters: 1988: 30-32). 19 Numa recenso de 1928 ao volume de Blossfeldt, Walter Benjamin salienta o mtuo jogo entre arte e natureza, em que a ltima por um lado alimenta as novas formas da arte moderna, ao passo que nestas fotografias do mundo natural Benjamin adivinha uma tendncia do fotgrafo para o gtico (cf. Benjamin 1991 III: 151-153). A imbricao dialctica entre natureza e histria prpria do conceito de histria natural parece assim de novo manifestar-se nesta recenso. 20J ooMiguelLameiraseJ ooRamalhoSantosapontamtambmparaaTorrecomocaso paradigmticodaintroduodahistrianouniversodasCidadesObscuras:LaTour,autnticomito fundador dAs Cidades Obscuras, () apesar dos anacronismos j referidos, introduz na srie a noo de devirhistrico,acrescentandoumpassadoeumaorigemmticaaumuniversoatentointemporal (Lameiras & Santos 1998: 96).