6º encontro de psicólogos jurídicos do tjrj - 2004 - comunicações

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Comunicações proferidas no encontro.

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6 ENCONTRO DE PSICLOGOS JURDICOS DO TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ORGANIZAO DO VI ENCONTRO: SERVIO DE APOIO AOS PSICLOGOS DA CORREGEDORIA GERAL DO TJRJ ORGANIZAO DO LIVRO: SERVIO DE APOIO AOS PSICLOGOS DA CORREGEDORIA GERAL DO TJRJ APOIO: TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DE ADMINISTRAO JUDICIRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

6 ENCONTRO DE PSICLOGOS JURDICOS DO TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Os Limites da Clnica: A Prtica do Psiclogo no Sistema JudicirioData: 17 e 18 de novembro da 2005 Programao Dia 17 de novembro: 9h Mesa de Abertura: Desembargador Manoel Carpena Amorim Corregedor-Geral do Tribunal de Justia / RJ

Psicloga Naura dos Santos Americano Coordenadora do Quadro de Psiclogos da CGJ9h30 1 Mesa - A prtica psi e o sistema judicial: histria Coordenao Maria das Graas Duarte Psicloga do TJRJ Palestrantes: Vera Malaguti Batista Mestre em Histria pela Universidade Federal Fluminense. Doutora pelo Instituto de Medicina Social / Uerj. Professora da Universidade Cndido

Mendes e membro do Instituto Carioca de Criminologia. Autora dos livros Difceis Ganhos Fceis e O medo na cidade do Rio de Janeiro. Mrio Bruno Professor do Instituto de Letras da Uerj. Mestre e Doutor em Teoria Literria/UFRJ. Doutor em teoria psicanaltica/UFRJ. Autor de Lacan e Deleuze: o trgico em duas faces do alm do princpio do prazer. 12h - Almoo 13h30 2a mesa - O saber psi e o sistema judicial: relatos Coordenao Ana Alice Trindade Psicloga do TJRJ Palestrantes: Lilian Monteiro Ribeiro - Psicloga do Projeto de Medidas Teraputicas da Vara de Execues Penais - Rio de Janeiro Medidas Teraputicas para Adultos Daniele Venncio - Psicloga do TJMG Projeto de Atendimento Integral ao Paciente Judicirio/PAI PJ Mnicca Moreira - Psicloga do TJRJ Adoo 15h30 3 Mesa A prtica psi e o sistema judicial: limites Coordenao Eliana Olinda Alves -

Psiclogo do TJRJ Palestrantes: Gislio Cerqueira Filho - Cientista poltico, Doutor em Cincias Humanas e Professor Titular de Sociologia. Pesquisador do Laboratrio de Psicanlise, Psicossomtica e Psicopatologia Fundamental da UFF. 18/11 Restrito aos Psiclogos do Quadro da CGJ

A VIDA IMPOLTICA CONVERTIDA EM FUNDAMENTO

Dr. Mrio Bruno (UERJ-UFF)Uma vez que a impolti ca vida natural, converti da em fundam ento da

soberan ia, ultrapas sa os muros dos ocos e penetra sempre mais profund amente na cidade, ela se transfor ma ao mesmo tempo em uma linha em movime nto que deve ser incessa ntement e redesen hada (AGA MBEN, 2002, p.138) Giorgi o Agamb en

Introduo Este texto trata de polticas que pretenderam vigiar, punir e se apoderar da vida, a partir do sculo XVII. Neste percurso nos auxiliaro dois filsofos contemporneos: Michel Foucault e Giorgio Agamben.

1. A idade de ouro da ortopedia social Num conjunto de conferncias que foram publicadas com o nome A verdade e as formas jurdicas, Foucault procurou situar nos fins do sculo XVIII e incio do sculo XIX um tipo de formao social que ele designou de sociedade disciplinar. Diz-nos que a reorganizao do sistema judicirio e penal nos diferentes pases da Europa e do mundo foi importante para a emergncia da sociedade disciplinar. Sabemos, segundo o autor,

que essa transformao teve amplitude e cronologia diferentes nos diversos pases em que ocorreu. A Inglaterra e a Frana, por exemplo, sofreram modificaes distintas. O direito penal ingls apresentava trezentos e quinze casos que ele punia com a morte. Um dos sistemas penais mais selvagem e sangrento que a histria das civilizaes conheceu. No obstante, essa situao se modificou no incio do sculo XIX, sem que as instituies judicirias inglesas se modificassem profundamente. Na Profundas Bentham e Frana, Brissot algo inverso ocorreram. o aconteceu. Beccaria, princpio modificaes

redefiniram

fundamental do sistema terico da lei penal: a infrao deixou de ter relao com a falta moral ou religiosa. O crime passou a ser considerado ruptura com a lei civil estabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislativo do poder poltico. Antes de a lei existir no pode haver infrao. Criminoso aquele que danifica a sociedade. Ele um inimigo interno que rompeu com um pacto

social. O problema da lei penal no era mais a vingana ou a redeno de um pecado, mas a reparao da perturbao causada sociedade. A lei penal deveria reparar o mal ou impedir que males semelhantes pudessem ocorrer. Nesse sentido, basicamente quatro penas foram previstas: deportao, trabalho forado, vergonha (escndalo pblico) e pena da de Talio. Contudo, adotado o funcionamento penalidade pelas

sociedades industriais em vias de formao foi inteiramente diferente. Projetos bem precisos foram substitudos por uma pena que Beccaria havia falado ligeiramente e Brissot apenas fez aluso: o aprisionamento. A priso no surgiu da reforma da penalidade no sculo XVIII, ela emergiu como um fato, no incio do sculo XIX, sem justificativa terica. A polcia das virtualidades Desde o incio do sculo XIX o princpio de uma lei universal foi substitudo pelo o que podemos denominar de circunstncias atenuantes.

Assim como a penalidade se props cada vez menos a definir de modo abstrato o que nocivo sociedade. O problema passou a ser outro. As punies no visavam mais ao que j foi realizado. O problema estava ao nvel do que os indivduos podem fazer. A grande noo da criminologia passou a ser a periculosidade. No se tratava mais de uma reao penal ao que foi feito, mas controle do comportamento no instante em que ele se esboa. Com isso, o poder judicirio deixou de ser uma instituio penal autnoma. A separao atribuda a Montesquieu, que pressupe os trs poderes (judicirio, legislativo, executivo) cede lugar, nesse momento, a um controle penal punitivo ao nvel das virtualidades e que no pode ser efetuado pela prpria justia. Surgem poderes paralelos ao judicirio: a polcia (para a vigilncia), instituies Todas essas psicolgicas, instituies eram psiquitricas, para corrigir criminolgicas e pedaggicas (para correo). virtualidades. Foucault denominou essa poca de idade de ouro da ortopedia social. Nessa era, o

grande nome no foi nem Kant nem Hegel o mais importante foi Bentham. Ele previu um esquema para a sociedade de vigilncia: o famoso Panptico. O poder do esprito sobre o esprito O Panptico era uma arquitetura que permitia o poder do esprito sobre o esprito, a instituio que deveria valer para hospitais, prises, casas de correo, escolas, hospcios, fbricas, etc. Ele era a utopia de uma sociedade e de um poder que pretendia manter todos os indivduos sob vigilncia permanente. No sculo XVIII, os mecanismos sociais de controle no pararam de proliferar. Na Inglaterra surgiram comunidades religiosas que tinham dupla tarefa: vigilncia e assistncia. Assim foram as sociedades de controle aos vcios, os Metodistas, os Quakers, etc. Por outro lado, a Frana, possuidora de um forte aparelho do Estado Monrquico, criou, ao lado dos instrumentos judicirios clssicos (os parlamentares, as cortes, etc), um instrumento parajudicirio: a polcia. interessante notar que nessa

poca a priso ainda no era uma pena do Direito. A lettre-de-cachet Foucault relaciona o surgimento da priso a uma prtica para-judiciria denominada lettre-decachet. Tratava-se de uma utilizao do poder real feita espontaneamente por grupos. Quando uma lettre-de-cachet era enviada contra algum, esse no era enforcado, nem multado, nem marcado, mas preso numa cela por um tempo no estabelecido previamente at nova ordem do rei. A idia era aprisionar para corrigir. A prtica da lettre-de-cachet no tem origem no universo do Direito e no nasceu da teoria jurdica do crime. A idia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando nasceu num jogo de trocas entre demandas sociais (de grupos determinados) e o exerccio do poder, mas, sobretudo, era uma idia policial, nasceu paralela justia. O que ocorreu na Frana no sculo XVII que os instrumentos estatais, estabelecidos pelo poder real, passaram a ser usados por grupos

sociais. O que estava na origem do aparecimento desses grupos de controle era a emergncia de um novo tipo de riqueza (materialidades nomonetrias): mquinas, estoques, mercadorias, etc. Era o nascimento do capitalismo. As riquezas estavam expostas depredao. O problema do fim do sculo XVIII era proteger essa nova forma material da fortuna. No estranho que o criador da polcia na Inglaterra, Colquhon, era algum que foi inicialmente comerciante. A polcia inglesa nasceu para vigiar as mercadorias armazenadas nas docas de Londres. Outra forte razo para a pilhagem, tanto na Inglaterra quanto na Frana, foi o desaparecimento dos grandes espaos nocultivados e das terras comuns. Com isso, multiplicaram-se desempregados, os trabalhadores como agrcolas conseguiam vivendo

(pilhando frutas, legumes, etc). Fica claro que a nova distribuio espacial e social da riqueza industrial e agrcola da sociedade disciplinar. tornou necessria novas formas de controle. Para Foucault, esta foi a origem

O lirismo e a obsesso No Panptico de Bentham, no centro da priso h uma torre que projetada de tal forma que pode vigiar sem que o vigilante seja visto. O vigilante pode at ser virtual, mas o indivduo que est na cela tem a impresso de ser vigiado e de poder ser punido. Foucault denuncia que o modelo da vigilncia e da punio foi um coeficiente de efetuao que atravessou todos os dispositivos institucionais. Em outras palavras, a famlia passou a ser uma espcie de priso, assim como a fbrica, etc. Claro isso que isso se dava em graus diferentes. Numa entrevista, Foucault (FOUCAULT, 1984, p.215) diz que Bentham o complemento de Rousseau. O sonho rousseauniano, presente em muitos revolucionrios, era de uma sociedade transparente, visvel e legvel em cada uma de suas partes, nas quais cada lugar que ocupemos nos permita ver o conjunto da sociedade; que os coraes se comuniquem uns com os outros, que os

olhares e opinies se encontrem. Bentham isso mesmo pelo avesso. Ele pensa uma visibilidade organizada inteiramente em torno de um olhar dominador e vigilante; um poder rigoroso e meticuloso. Nesse sentido, o lirismo da Revoluo articula-se monstruosa idia tcnica do exerccio de um poder omnividente. A obsesso de Bentham complementa o lirismo de Rousseau.

2. A condio ps-moderna: o abandono Muito oportunamente Agamben, numa obra denominada Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I, traa um quadro que retoma e desdobra questes foucaultianas. Como vimos, Foucault nos disse algo assustador: o modelo do presdio, projetado por Bentham, foi o diagrama da sociedade disciplinar. Todavia, Agamben nos afirma algo mais tenebroso: o campo de

concentrao uma espcie de diagrama da sociedade contempornea. Nas palavras de Agamben: Isto nos levar a olhar o campo no como um fato histrico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda verificvel), mas de algum modo como a matriz oculta, o nmos do espao poltico em que ainda vivemos (AGAMBEN, 2002, p.173). preciso aqui acompanhar um pouco a lgica do argumento de Agamben, para que possamos encontrar o sentido desse privilgio do campo em relao ao Panptico. Parece que Agamben ensaia uma crtica da razo poltica contempornea que rompe com a de Foucault e paradoxalmente a suplementa. A banda de moebius da soberania Agamben (AGAMBEN, 2002, p.23) inicia por perceber um paradoxo que se d nos dias de hoje quanto ao conceito de soberania. Nas sociedades tradicionais, o soberano estava ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento

jurdico (AGAMBEN, 2002, p.23). O soberano tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei (AGAMBEN, 2002, p.23). Diremos, era uma espcie de banda de moebius da soberania: a vigncia da lei garantida por um fora-interior. O soberano, em estado de exceo, situa-se dentro e fora do ordenamento jurdico. Entretanto, a exceo a no se subtraia a regra; o vigor da lei pressupe essa exceo: No a exceo que se subtrai regra, mas a regra que, suspendendo-se, d lugar exceo e somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relao com aquela (AGAMBEN, 2002, p.26). O modelo das sociedades de soberania a excluso inclusiva. No toa que a palavra bando, no direito germnico, servia para designar a excluso da comunidade e a insgnia do soberano. A relao de exceo uma relao de bando. O banido no est simplesmente fora da lei, mas abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que a vida e direito, externo e interno se confundem (AGAMBEN, 2002, p.36). Agamben

relaciona essa situao do abandono tambm a uma figura histrica que emergiu no direito romano: O homo sacer. A sacralidade desse homem sacro a vida insacrificvel e, todavia matvel (AGAMBEN, 2002, p.90). a vida nua na sua relao de abandono: qualquer um pode matar um homo sacer. Claro que ao revisitar a figura jurdica do homo sacer (um morto-vivente) Agamben pretende fazer uma histria do presente: pensar as relaes de bando nos dias atuais. preciso problematizar a figura do abandono no nosso cotidiano que torna as vidas matveis nas favelas, nos guetos, nos hospitais, no interior das famlias pobres e das abastadas, etc. A forma vazia da lei explcita a retomada que Agamben faz das Teses sobre o conceito de histria, de Walter Benjamin, em especial da oitava tese, que por sua vez traz um comentrio sobre a problemtica formulada por Carl Schmitt. O que est em questo nessas anlises a concepo da histria como

estado de exceo. Tudo nesses textos anuncia o fim da Modernidade. Parece que a obra de Agamben d um passo a mais, ao retomar as relaes entre a moral kantiana e o problema da lei. Essa construo terica no fcil. O filsofo italiano mostra que a figura moderna da lei kantiana, como pura forma reduzida ao ponto zero de seu significado, ganhou sua vigncia no mundo atual. Kant descreveu, com quase dois sculos de antecedncia, na forma de um sublime sentimento moral, uma condio que se tornaria familiar nas sociedades de massa e nos Estados totalitrios de nosso tempo. A vida, sob uma lei que vigora sem significar, assemelha-se vida no estado de exceo e a lei, por ser carente de contedo, tornase mais facilmente disseminada. Com isso, samos do paradoxo da soberania para nos tornarmos homens sacros, abandonados num estado de exceo. Diz Agamben: Uma pura forma da lei apenas a forma vazia da relao; mas a forma vazia da relao no mais uma lei, e sim uma zona de indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um

estado de exceo (AGAMBEN, 2002, p.66). A tanatocracia do biopoder Numa nascimento da conferncia, medicina denominada social, O Foucault

apresentou o conceito de biopoltica. Para ele (FOUCAULT, 1984, p. 80), com o capitalismo, em fins do sculo XVII e incio do sculo XIX, o corpo enquanto fora de produo, fora de trabalho, foi socializado. O controle da sociedade sobre os indivduos no se operou simplesmente pela conscincia investimento ou pela ideologia. O grande no capitalista foi na biologia,

somtico, no corporal: o corpo tornou-se uma realidade biopoltica. Agamben elogia Foucault pelo mrito de trazer tona o horizonte biopoltico para pensar a Modernidade. No entanto, fica perplexo diante de alguns recortes na pesquisa de Foucault. Afinal, para Agamben o biopoder no surgiu com a Modernidade, havia uma continuidade de fundo entre o poder soberano e o biopoder. A implicao

da vida na esfera poltica constitui o ncleo originrio do poder soberano. O fato fundamental na Modernidade que a poltica moderna, em ntima simbiose da com vida a vida, clssica. perdeu Aqui, a a inteligibilidade que parecia caracterizar o edifcio jurdico-poltico interpretao do conceito de biopoder traz uma sutil diferena em relao s teses de Foucault sobre a Modernidade. Segundo Agamben, a vida nua natural que no antigo regime era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criao, a Deus, e num mundo clssico era (ao menos em aparncia) como zo da vida poltica, entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado (AGAMBEN, 2002, p.134). A vida nua tornou-se o fundamento e a legitimidade da soberania. Os novos morto-viventes A Declarao dos direitos do homem e a Declarao dos direitos do cidado so duas realidades diferentes? So proclamaes gratuitas de valores eternos metajurdicos, sem muito

sucesso? Essas perguntas no so novas, apenas retomadas por Agamben que na esteira de Hanna Arendt, procura encontrar nessas declaraes, uma espcie de significao latente. De acordo com Agamben (AGAMBEN, 2002, p.135), na passagem da soberania rgia de origem divina soberania nacional, a vida nua natural tornou-se portadora imediata de soberania. As conseqncias biopolticas disso s comeamos a medir nos dias atuais. No antigo regime, o princpio de natividade e o princpio de soberania estavam separados. O nascimento dava lugar ao sujet, ao sdito. Com a Revoluo Francesa sugiu o sujeito soberano para constituir o fundamento do Estado-nao. Com a Revoluo, a vida passou a ser a origem e o fundamento da soberania. Era ao mesmo tempo um novo princpio igualitrio e uma nova determinao biopoltica da soberania. Essa mesma poltica chega a sua exasperao no sculo XXI. Ela redefine continuamente a vida no limiar que articula e separa aquilo que est dentro do que est fora. Trata-se agora de uma vida natural

integralmente includa na plis. Sem dvida essa poltica que nos coloca todos em estado de abandono. Somos os novos morto-viventes. Agamben esfora-se por enumerar as situaes de abandono nos sculos XX e XXI: os hebreus desnacionalizados para serem enviados aos campos de extermnio; a seguida falncia dos esforos de organismos internacionais, inclusive da ONU; toda a biopoltica do terceiro Reich; a politizao da morte nos casos de coma dpass, etc. No difcil aumentar essa lista de exemplificaes fornecida por Agamben. A poltica em que a exceo torna-se regra parece dominar o mundo contemporneo. O abandono est longe de ser uma deficincia do Estado-nao. Que caminhos nos aponta Agamben quanto a essa situao poltica? Diante de questes to delicadas, o filsofo italiano mostra-se prudente em suas concluses. No tem propriamente um projeto poltico. Contudo, parece simpatizar com uma certa tendncia heideggeriana.

Heidegger e a vida factcia Para Agamben (AGAMBEN, 2002, p.160), a questo do abandono no pode ser pensada sem levarmos em considerao o que Heidegger denominou de Dasein. A estrutura do Dasein, na sua facticidade, pressupe uma distino impossvel entre a vida e sua situao efetiva, entre o ser e seus modos de ser. Com isso, desaparecem as distines da antropologia tradicional (corpo e esprito; sensao e conscincia; eu e mundo; sujeito e propriedade). Alis, na compreenso da facticidade da vida que Heidegger discordar gravemente do Nacional-Socialismo. O que Heidegger desprezou, sobretudo em Rosemberg, foi ter transformado a experincia da vida factcia em valor biolgico. A facticidade como fato, aprisionava a vida factcia numa determinao racial objetiva. Para concluirmos, diremos que Agamben se aproxima de Heidegger para pensar o abandono luz do que o filsofo alemo denominou de sem-abrigo. O habitar nunca abolir essa ausncia de abrigo. Talvez seja esse o

nosso desafio no sculo XX. Para alm das tradicionais formas de soberania, teremos que caminhar como dipo em Colono (sem Estado e sem Deus?), num mundo em que no h mais como esconder um abandono ao fora de si. Precisamos reinventar uma tica e uma poltica da finitude.

Referncias Bibliogrficas AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. FOUCAULT. Michel. Microfsica do Poder. Rio de janeiro, Graal, 1984. ------ A verdade e as formas jurdicas. Rio de Janeiro, NAU e PUC, 1996. ------ Vigiar e Punir. Histria da violncia nas prises. Petrpolis, Vozes, 1999. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Petrpolis, Vozes, 1989. Mrio Bruno

[email protected]

As classificaes e os desclassificados

Vera Malaguti Batista

Tenho

refletido

sobre

o

impacto

profundo do positivismo da nossa maneira de pensar. Euclides da Cunha livrou-se dele ao defrontar-se com os miserveis de Canudos:O cisco positivista sai dos olhos, iluminando-se nas fogueiras destruidoras de uma crena forte, como das mulheres preferindo se lanar nela com os filhos a se render Repblica. Os Sertes um livro escrito por uma compulso religiosa. Mais do que um testemunho do holocausto de quem no suportou assistir a seus ltimos dias, um ser vivo

soprado por essa crena imbatvel do ser em insurreio sertaneja1.

At o final do sculo XIX o discurso jurdico-policial e o discurso mdico se

entrelaaram para criar a criminologia, nova cincia cujo risco sempre foi ser saber e arte de despejar perigos discursivos2. Alis, para Zaffaroni a criminologia nasce em 1484 com o Martelo das Feiticeiras, como

exposio da etiologia do mal, dentro de um sistema integrado: criminologia penal,

processo penal e criminalstica como o Malleus, elaborado com terrvel finura, com uma enorme finura discursiva, com uma1 MARTINEZ CORREA, Jos Celso, in Caderno Mais, Folha de So Paulo, 28 de janeiro de 2001. 2 ZAFFARONI, Eugenio R. Curso de Criminologia. Rio de Janeiro: UCAM, mimeo, 2000.

artificiosidade discursiva que realmente muito superior ao positivismo de 400 anos depois, que chega s mesmas concluses, com outra linguagem3. A partir dos Manuais dos Inquisidores da inquisio medieval

comeam a estabelecer-se a disposio e os dispositivos de cura contra os hereges. Ainda que a cura fosse a morte4. A criminologia, que aparece como tal no fim do sculo XIX acumula discursos durante 500 anos; discursos que tm como eixo impulsivo sempre o medo, como nos diz Zaffaroni. E, para ele, esse eixo construdo na luta pelas corporaes por este

3 ZAFFARONI, Eugenio R. Conferencia. In: Captulo Criminologico: revista de las disciplinas del control social, v. 27, n 3. Zulia: Instituto de Criminologia Univesidad del Zulia, 1999. p. 157. 4 Cf. BATISTA, Nilo. Matrizes Ibricas do Sistema Penal Brasileiro - I. Op. cit.

saber/poder do medo5. O discurso mdico e a sua corporao um desses eixos. No esqueamos da importncia do mdico-

cirurgio para a localizao no corpo; no corpo fsico que esse poder exercido. Na Inquisio, os juzes eclesisticos precisam de um cirurgio para a descoberta do punctum diabolicum. A bruxaria aparece como

realidade corporal, a ser torturada para confirmar pela boca o que havia sido provado no corpo. Colaborando com o trabalho dos juzes, os mdicos se transformam na

autoridade que estar frente de uma nova represso inaugurada no sculo XVI pelo mdico Jean Wier, que identificaria a feitiaria5 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma histria. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

com as doenas mentais. O trabalho do jurista Bodin (Dmonomie des Sorciers) indica, com seu vocabulrio, a vitria mdica. Um sculo depois a dmonomanie uma das rubricas clssicas da nosologia psiquitrica, aportando uma nova legalidade cientfica, que se dirige amputao desse ser coletivo6. Para Baud, na inquisio medieval e depois no nazismo, sempre que se criar um mecanismo

institucional para esta amputao teraputica do ser coletivo esto sendo criadas as condies para o genocdio: um sistema de legalidade cientfica dominado por uma

teologia e que essa poltica do mundo seja apresentada para defender o ser coletivo.6 Cf. BAUD, Jean-Pierre. Gense institutionalle du gnocide. In: OLFF-NATHAN, Josiane (Org.). La science sous la troisime Reich. Paris: Seuil, 1993

Comecemos por entender aquilo que provocou uma tempestade no sculo XVIII: a estratgia epistemolgica da Encyclopdie: uma necessidade de dividir e classificar os fenmenos que iam muito alm dos arquivos de polcia7. A pergunta que se fazia quando foi lanada era: Era ela (...) trabalho de referncia ou machine de guerre?8. Comea a um processo em que a classificao tornase uma exerccio de poder: afinal, um inimigo definido como menos do que humano pode ser aniquilado9. Darnton nos fala da ao social que flui atravs de fronteiras

determinadas por esquemas de classificao. Assim, as representaes das reas

7 Cf. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 247. 8 DARNTON, Robert. Op. cit. p. 248. 9 DARNTON, Robert. Op. cit. p. 249.

fronteirias do corpo (das quais o organismo se derrama para o mundo material: cabelos, unhas cortadas e fezes, presentes nas poes mgicas) alertam para o perigo dessas fronteiras que, desprotegidas, impem a

entrada do caos. Estabelecer categorias e polici-las , portanto, assunto srio10. Darnton afirma que foi no sculo XVI que o debate sobre o mtodo e a disposio correta na organizao do conhecimento comea a acontecer, impondo uma tendncia a mapear, delinear e espacializar segmentos do conhecimento. Diderot e DAlembert, a partir da rvore do conhecimento de Bacon e Chambers, aprimoram a verso iluminista da enciclopdia ou relato sistemtico da ordem e10 Op. cit. p. 251.

concatenao

do

conhecimento

humano.

DAlembert descreveria a enciclopdia como uma espcie de mapa do mundo. Para Darnton, no sculo XIX que esta estratgia triunfa, com o surgimento das modernas disciplinas escolares e a

secularizao da educao. Mas para o autor, o grande embate deu-se na dcada de 1750, quando os enciclopedistas reconheceram que conhecimento era poder e, mapeando o universo do saber, partiram para sua

conquista11. A psicologia, como a sociologia e a criminologia, uma disciplina fundada no positivismo. Se pensarmos o positivismo como uma atualizao do saber/poder inquisitorial,11 Op. cit. p. 270.

vamos localizar o papel do psiclogo e dos saberes psi nos tribunais como algo que pode se assemelhar em muito aquele cirurgio que colaborava com o juiz nos tribunais da Inquisio:

Eu abaixo assinado Mestre cirurgio... certifico que... examinei Lazare Lamy de Safre acusado de sortilgio em todas as partes de seu corpo onde minha vista e meu tato puderam chegar e no encontrei nele quaisquer marcas nem cicatrizes, seno duas a saber uma sobre a nuca do pescoo muito pequena e muita sensvel e a outra, acima do nus juntado-se ao cccix, um pouco puxado ao lado da ndega esquerda, e tendo-me dito o dito Lamy que o Diabo o havia marcado naquela parte, eu o apalpei em seis ou sete lugares tanto

sobre a dita cicatriz quando nas proximidades dela, sem que o dito Lamy se queixa-se de que se lhe fazia mal, embora as ditas picadas fossem bastante profundas; entretanto todas elas verteram sangue. A dita cicatriz sendo da largura de cerca de um duplo torns de cor semelhante s outras cicatrizes que podem ocorrer seja por queimadura de carvo, chagas e outras coisas semelhantes que impedem de reconhecer a causa primitiva e eficiente12.

George Rosen situa no perodo entre 1750 e 1830 as fundaes do movimento sanitrio do sculo XIX, era de iluminismo e revoluo13. Ele cita a importncia da

Encyclopdie na medicina, seus vrios artigos12 MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na Frana do sculo XVII. So Paulo: Perspectiva, 1979. p. 84. 13 ROSEN, George. Uma histria da sade pblica. So Paulo: Unesp/Hucitec, 1994.

sobre durao da vida, hospital, mortalidade infantil, crescimento ou declnio da populao etc. Desse contexto emerge uma teoria de ao social para a sade, concebida como polcia mdica para um controle racional e sistemtico. neste momento que surgem tambm as reformas quanto ao tratamento dado loucura. A loucura, antes atribuda ao pecado e s atividades do diabo, era trancafiada em prises, casas de correo, asilo e hospcios. As contribuies tericas do sculo XVIII, que para Pessotti constituam uma incipiente psicopatologia clnica, resultavam de

observaes do comportamento dos internos nas instituies asilares atravs das doutrinas

mdicas

hegemnicas

(introqumica,

pneumtica e intromecnica) do sculo XVII. O sculo XVIII no apresenta uma

sistematizao do pensamento mdico sobre a loucura, que concilia critrios

neurofisiolgicos com registros de aspectos comportamentais. A formao mdica no dispunha de regulamentao rigorosa. Os ventos da classificao

enciclopdica influenciam de Sauvages que, em 1767, elabora uma classificao da loucura, conforme o mtodo dos naturalistas. Erhard, em 1794, e Valenji, em 1796, trabalham tambm com o sistema de

classificaes de uma forma abrangente. Cullen quem, em 1782, exclui da loucura o

que no implique na noo de leso. Para ele, o delrio erro de julgamento, remetendo, segundo Pessotti, ao encontro do malleus maleficarum da inquisio moderna, admitindo ainda a influncia de bruxos e demnios. A loucura, ento, deixa de ser desarranjo mecnico, humoral ou pneumtico para ser delrio, erro de juzo, problemas na

imaginao ou na memria. Tambm em 1872, influenciado por Locke, surge a classificao de Arnold, que funda uma genuna patologia mental, com critrios de diagnstico e de classificao independentes dos que regem a patologia geral14. Outro seguidor de Locke, Le Camus, publica em 1769 o Mdecin de LEsprit,14 PESSOTTI, Isaias. Op. cit. p. 93.

sublinhando as causas relacionadas moral e hereditariedade. Para Pessotti esta medicina francesa do esprito que prepara o nascimento da psiquiatria do sculo XIX, o sculo dos manicmios. o trabalho de Pinel que na virada do sculo XVIII sustenta a origem passional ou moral da loucura. O seu Trait MdicoPhilosophique sur lAlination Mentale de 1809 apresenta novidades: a classificao nosogrfica da alienao e a revalorizao das paixes como fatores da loucura15. Para ele, a loucura se manifesta atravs dos sintomas observados (como no comportamento, cuidadosamente. comprometimento A ou a serem loucura leso

15 PESSOTTI, Isaias. Op. cit. p. 69.

fundamental do intelecto e da vontade) poderia ser tratada com um mtodo para botar ordem no caos dos sintomas. A observao dos pacientes que permitir a confeco de diagnsticos e classificaes: a loucura deixa de ser uma condio esttica, irreversvel, anatmica para ser um desequilbrio, uma distoro na natureza do homem a ser corrigida16. Caos, desordem, desequilbrio, assim que a doena vista, devendo ser agora vigiada, classificada, ordenada e

equilibrada. Pessotti associa a obra de Pinel Revoluo Francesa, uma afirmao de valor superior, absoluto da figura humana, na linha do humanismo iluminista. Ele atribui viso16 PESSOTTI, Isaias. Op. cit. p. 72.

de Pinel de loucura o fim da excluso do insensato. No iramos to longe, e

preferiramos trabalhar com a idia de que surge espreita uma seu interveno paciente, teraputica classifica-o que numa

categoria terica e atua pra faz-lo voltar ordem. As descries e classificaes

nosogrficas devem ser feitas como as do mundo natural, na observao dos sintomas, da loquacidade, do apetite, dos vcios, da vida sexual, do comportamento em geral. Para a correo dos hbitos e vcios morais o terapeuta precisa de tempo, de apropriao de anos de vida para o esquadrinhamento dos mnimos detalhes. surpreendente constatar as permanncias desse olhar nos laudos com

que trabalhei em minha pesquisa sobre drogas no sculo XX. Pessotti reproduz um trecho do tratado de Pinel (180, II, 83): o olhar feroz, a postura sombria e silenciosa... tem pressentimentos sinistros sobre o futuro. Vejamos o laudo mdico psiquitrico que aparece no Rio de Janeiro, ao final do sculo XX. O relato dos especialistas era de 1988! uma observao como a do comeo do sculo XIX: possui porte altivo, a revolta aparece como projeo de suas dificuldades e deficincias; so olhos que brilham, cabeas erguidas, andar tranqilo, expresso corporal. Os sintomas no corpo devem ser observados por longo tempo para serem descritos detalhadamente para uma

interveno moral e curativa. Nos sculos XVII e XVIII aparecem as tcnicas e dispositivos de poder centrados no corpo, na tecnologia disciplinar que institua a distribuio espacial dos corpos individuais (postos sob vigilncia asilar, penitenciria, mdica etc.) para enquadr-los e hierarquizlos: aparece, anloga viso mdica, uma viso jurdica, a do contrato social constitudo em poder soberano, forado pelo perigo ou pela necessidade para proteger a vida. Foucault afirma que na segunda metade do sculo XVIII surge uma outra tecnologia de poder que no destitui a anterior mas que a incorpora e amplia. Ela se dirige ao homemespcie, no mais apenas ao homem-corpo

mas multiplicidade dos corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos17. Este processo produz as preocupaes com a higiene pblica, com a centralizao das informaes, sua normalizao e

coordenao, com as pedagogias da higiene e com a medicalizao. Produz tambm a preocupao com os incapazes, com o indivduo que cai para fora do campo de atividade: anomalias os vo incapazes, criar a portadores necessidade de de

instituies de assistncia e de mecanismos muito mais sutis, economicamente muito mais racionais do que a grande assistncia, a um s tempo massiva e lacunar, que era

17 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 283.

essencialmente vinculada Igreja18. So as influncias cientficas nos

processos biolgicos e orgnicos que tornaro a medicina uma tcnica poltica de

interveno, com efeitos de poder prprios, que incidiro sobre o corpo e a populao, sobre os organismos e os processos

biolgicos. E, como a sexualidade, o conceito de degenerescncia aparecer tambm na articulao do disciplinar e do regulamentador, na encruzilhada do corpo e da populao. na compreenso do excesso do biopoder sobre o direito soberano, nessa tecnologia de poder que tem como objeto e18 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 291 Cabe ressaltar aqui uma figura emblemtica daquela conjuntura, Jeremy Bentham: um misto de economista utilitarista, jurista, estatstico, inventor do Panptico, administrador. Enfim um intelectual orgnico do biopoder. Cc. George Rosen. op. cit.

como objetivo a vida, que o poder da morte ser exercido atravs da noo da raa e do racismo. Para Foucault, foi a emergncia do biopoder que inseriu o racismo nos

mecanismos do Estado; o racismo como um corte entre o que deve viver e o que deve morrer. O importante para ns agora

compreender estes processos no quadro da atualizao da incorporao perifrica no processo civilizatrio19. Para Foucault, a

colonizao foi o primeiro desenvolvimento do racismo, o genocdio colonizador. Ral

Zaffaroni reativou o conceito de instituio de seqestro Amrica Latina como um todo,19 RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatrio Estudos de antropologia da civilizao. Petrpolis: Vozes, 1987.

uma espcie de grande laboratrio para a observao das patologias das raas

inferiores. O que a medicina brasileira do sculo XIX enfrentava era ento a

ameaadora configurao de uma populao negra, ndia, majoritariamente mestia, e portanto inferiorizada, degenerada,

patologizada e perigosa. Como regener-la? Trabalhando a medicina no Brasil do sculo XVIII, Ribeiro lana um olhar inspirado em Ginzburg para tratar dos aspectos assentadas

excludos

pelas

vertentes

exclusivamente sob o domnio do irracional20. Ela analisa o imaginrio, as resistncias e as trocas culturais entre a medicina e o mundo20 RIBEIRO, Mrcia Moiss. A cincia dos trpicos: a arte mdica no Brasil do sculo XVIII. So Paulo: Hucitec, 1997.

da magia, o erudito e o saber popular. Aparece aqui o dilema entre a represso das autoridades mdico-sanitrias contra a

concepo de um mundo regido por foras mgicas no contexto das luzes em Portugal. A demanda por modernizao enfrentava as resistncias do sistema colonial, que no permitia a formao mdica no Brasil, para no afrouxar os ns da dependncia

acadmica com relao metrpole, num projeto mais amplo de dominao econmica e cultural. Como no controle social jurdico-penal, na dcada de 1830 que se inicia, com o discurso da modernizao, uma mudana nas relaes entre a medicina popular e a

acadmica, no contexto do processo de medicalizao da sociedade. At ento,a historiadora afirma serem as terapias

populares as mais difundidas na sociedade, exercidas por escravos, forros e livres pobres. As trocas ocorriam de forma intensa, com os mdicos acadmicos utilizando medicamentos preconizados pela medicina popular e viceversa. As elites locais tambm se valiam das mezinhas e terapias populares. Gostaria de chamar a ateno para esta contigidade, esta convivncia intensa entre o mundo europeu e o mundo popular no Brasil, que aparece de forma to clara na medicina do comeo do sculo XIX. importante notar que a fora de

represso pela construo de um processo de medicalizao, que ir se instalar a partir da dcada de 30, vai no sentido proporcional fora desta medicina popular e ao seu profundo enraizamento no cotidiano da vida brasileira. Este temor e esta atrao vo se corporificar na figura de Nina Rodrigues, que no final do sculo na Bahia se debatia entre seu projeto de patologizao dos africanos e o seu fascnio pelos ritos do candombl21. Pode-se afirmar que o processo de medicalizao da sociedade, quando a

medicina investe sobre a cidade disputando um lugar entre as instncias de controle21 Ral Zaffaroni sempre se refere ao espanto causado por uma criminologia lombrosianamente racista inventada na Bahia negra. Esta conjugao entre uma grande proximidade e um afastamento produzido poltico e ideologicamente caracteristico da formao social brasileira.

social22, aconteceu na mesma conjuntura em que se erigia a ordem jurdico-penal. So processos concomitantes e anlogos, que se intensificam no ps-Independncia para dar conta do controle desta nova e pujante categoria: o povo brasileiro. Na anlise da histria da medicina social e da constituio da psiquiatria no Brasil, Machado analisa as transformaes do conceito de sade no Brasil do sculo XIX e a ruptura com o sentido que portava no perodo colonial. Isto implicaria num saber mdico que se institucionaliza e que intervm na vida social, decidindo, planejando e executando medidas ao mesmo tempo mdicas e

22 MACHADO, Roberto et alii. Danao da norma: a medicina social e a constituio da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. p. 18.

polticas23. Surge ento uma medicina que investe na idia da higiene pblica e que tem como alvo principalmente a populao das cidades, como suporte normalizador

fundamental do governo moderno24. Nos meados de 30 do sculo XIX, o discurso mdico se destacar no combate desordem urbana, quando as questes da contaminao humanos, transbordaro do os ar aos

principalmente

humanos

africanos. neste momento que, segundo Machado, impe-se a idia de uma medicina social que se caracteriza por uma ao positiva, transformadora, recuperadora que instituindo, normas, impe exigncias a uma

23 Op. cit. p. 18. 24 Cf MACHADO, Roberto et alii. Op. cit. p. 38.

realidade vista como hostil e diferente. Tem, em suma, um objetivo de normalizao25. As Posturas Policiais do Regulamento de 1828 abrangiam, no confronto com a desordem, a gesto do urbano, do econmico e do populacional. Trabalhando normalizao em o grande no projeto sculo de XIX,

curso

Machado revela as novas correlaes entre medicina e crime, educao, moral, famlia na conjuntura da dcada de 30. A srie de epidemias a partir de 1832 deve tambm ter infludo. Alm disso, a medicina caracteriza-se pelo seu discurso de ordem: discurso propcio no momento, pois 1835 ano de grande violncia da Cabanagem, do incio da guerra25 MACHADO, Roberto et alii. Op. cit. p. 180.

dos Farrapos, da eleio para regente uno. Caracteriza-se no s por ser discurso da ordem, mas por ser uma prtica de

ordenao, de documentao, de registro26. O discurso mdico enfronha-se na construo do Estado Imperial articulando o homem com o clima, com a moral, com a higiene pblica atravs dos saberes da medicina social que enfrentaro as metforas do pntano: as cidades e suas populaes devem ser

saneadas. Nesta perspectiva, a concentrao de populao africana na cidade absorver os contornos da metfora do pntano, produzir o medo da contaminao. O escravo, nesta conjuntura, se transforma em obstculo 26 MACHADO, Roberto et alii. Op. cit. p. 216.

higiene e criao de uma famlia brasileira sadia27, seja pelas patologias introduzidas, pela amamentao, pela degradao dos costumes, pela prostituio ou pela moral. Deste momento em diante vai ser delineado o discurso cientfico que tentar cravar mais internamente a ideologia senhorial na

formao social brasileira28. Livrarmos dessa herana o nosso problema. Como elaborar resistncias s veleidades invasivas da razo instrumental e do objetivismo materialista, fazendo triunfar a viso imaginativa e trans-histrica sobre a27 MACHADO, Roberto et alii. Op. cit., p. 354. 28 Cf. MICELI, Srgio em O enigma da mestiagem. Folha de So Paulo. Jornal de Resenhas, 8 de maio de 1999 e CHALHOUB, Sidney, What are noses for? Paternalism, social darwinism and race science in Machado de Assis. Journal fo Latin American Cultural Studies, vol. 10, n 2, 2001. Carfax Publishing.

metafsica

racionalista

positivista29?

O

paradigma etiolgico o demnio dos saberes nascidos no positivismo. Quais seriam, ento, as grandes

questes acerca do saber psicolgico no interior do sistema judicial a partir da ruptura com essas permanncias? A primeira, seria entender o momento de expanso do poder penal em que vivemos. Nesta fase do capitalismo ps-industrial, os refugos de mode-obra, a fora de trabalho flexibilizada e mcdonaldizada precisa ser criminalizada para estar sob controle. Por isso, o capital vdeofinanceiro transfere recursos do Estado

Previdencirio para o Estado Penal. Como

29 ELHAJJI, Mohammed. Narrativas Comunitrias o caso Mal. Rio de Janeiro: MIMEO, 2003.

diria Loc Wacquant, a partir dos Estados Unidos que se estabelece uma nova gesto da misria pela criminalizao. bvio que esse encarceramento em massa vai precisar atualizar as categorias para dar conta dos novos estranhos: jovens rabes e africanos em Paris e jovens pobres nas favelas do Rio iro receber novas classificaes; mas o que permanecer demarcao ser e a estratgia o de olhar

inquisitorial/lombrosiano. O traficante ser investido demonacos daqueles e mesmos pela poderes etiologia

explicado

renovada do social-darwinismo. O problema agora a magnitude, a proporo do grande internamento. O Brasil tinha, na entrada do

neoliberalismo, em 1994, cerca de 120 mil presos. Estamos hoje com uma populao carcerria de 380.000 e com uma expectativa de 500.000 em 2007. A polcia, o sistema judicial e penitencirio tero de dar conta dessa onda humana que se multiplica a cada ano, embalada pela mdia, pela policizao dos conflitos sociais e pela tradio

exterminadora das nossas instituies de segurana pblica. por isso que nunca se matou nem se torturou tanto como na era dos direitos humanos: de Guantnamo Polinter as prises so instituies fora-da-lei e as regies de periferia se transformam em reas de suspenso de direitos, espaos de

barbarizao consentida.

Esta expanso da jurisdio penal sem limites, em escala nunca vista na histria da humanidade, vai demandar novos servios, novas prticas, novos discursos. Esta a segunda questo. Um dos sinais inquietantes disso se revela no prprio mercado de trabalho da psicologia que cresce na direo do sistema judicial. por isso que a medicalizao proposta pela medicina

prometeica contempornea vem somar-se ao conjunto de dispositivos de controle social. Paradoxalmente o capital trata de criminalizar seletivamente as drogas cuja gesto

econmica est fora de suas mos. Joel Birman crtica a utilizao da droga como ferramenta teraputica de uma

psiquiatria agora geneticista, na qual as heranas revestem biolgicas de novas lombrosianas cores e se tintas

cientficas30. A histria e a memria do mal estar e do desamparo deve ser silenciada. Para Birman medicalizar ativamente o o mal-estar trabalho do

empreender

esquecimento. Os novos naturalistas das neurocincias descartam os argumentos

subjetivos para produzir respostas eficazes e imediatas, regular sndromes e sintomas. Luclia Elias crtica os tratamentos disponveis para os drogaditos, manuais de auto-

classificao, em que a histria do sujeito no interessa para a construo da identidade do30 Cf. Joel Birman. Psicanlise, negatividade e heterogneo: como a psicanlise pode ser obstculo para a barbrie? Cadernos de Psicanlise, SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 18, 1999.

drogado31. Os Tribunais de Drogas, propostos sob o patrocnio do Consulado Americano como consta do ofcio de 11 de junho de 2001 da Associao Nacional de Justia Teraputica, fazem parte do arsenal de novidades desse poder punitivo em expanso. Ao invs da descriminalizao prometida, o que se v uma criminalizao do atendimento. Sei que os psiclogos tm enfrentado dilemas ticos diante de um poder jurdico que pretende curar, corrigir, como o positivismo de

Lombroso e Garfalo contra os pobres e indesejveis do seu tempo: punir e curar como nos velhos tempos. Os saberes psi esto31 ELIAS, Luclia. Psicanlise e toxicomania. In: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, ano 4, n. 9/10. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Freitas Bastos, 2000.

sendo instados a delatarem recadas e mauspassos, voltarem a ser polcia mdica, aonde o lao clnico no com o paciente, mas com o poder penal e recomposio da ordem social32. Alis, qual ser a formao do juiz terapeuta? Os que no se conformam com esse papel vo ter que decidir: trabalham para o seu povo ou trabalham para esse capital soberano. Os jovens da periferia brasileira matam e morrem pelos smbolos do capital neoliberal: um bon de marca, um tnis importado. J os jovens da periferia francesa esto queimando os cones desse capital. Alvo de amor e dio, os fetiches do

32 Cf. BATISTA, Vera Malaguti. O tribunal de drogas e o tigre de papel. In: Revista Democracia Viva, n. 12. Rio de Janeiro: IBASE, 2002.

capitalismo vdeo-financeiro esto no centro da questo. Cabe a ns construir a trincheira de resistncia a essa armadilha. Temos que dar voz aos humanos que transitam nos corredores da nossa justia carregando as suas misrias, seus desejos sobrantes como diria Joel Rufino dos Santos33.... Temos que produzir outros sentidos ao tempo confiscado pela priso de uma parcela to significativa da juventude brasileira. Quando vamos nos livrar das categorias de famlias desestruturadas, de falta de figura paterna, lei, pena, limites? At quando vamos prosseguir com as iluses RE (ressocializar, reeducar, recuperar)

desmentidas por toda a histria do sistemas33 SANTOS, Joel Rufino dos. puras do Social: como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. So Paulo: Global, 2004.

penais e reinventadas a cada dia pelo Estado Penal? Joel Birman levantou a questo: como a psicanlise pode se contrapor barbrie? Joel Rufino dos Santos perguntou: como os intelectuais podem trabalhar para os pobres? Nesse fio da histria, concordamos com os dois no sentido de que a memria e o desejo que podem produzir a utopia, o desejo de um outro futuro. Temos que escrever a nossa histria, na interseo da memria singular e coletiva. Mas, antes de tudo necessrio romper com a articulao perversa entre a desqualificao cientfica do positivismo e as permanncias da demonizao do discurso inquisitorial: atrs das grandes classificaes

esto os desqualificados de sempre, aqueles que Euclides encontrou nos Sertes de Canudos para conhecer ento, no sentido bblico amoroso, o Brasil profundo. Eu

acredito que ns podemos nos contrapor a barbrie. Mas no ser reeditando com a justia teraputica os sonhos do sistema mdico-policial advindo da elaborao terica racista da Liga Brasileira de Higiene Mental que no comeo do sculo XX lutava contra o alcoolismo34. Jurandir Freire Costa assinala nos arquivos da Liga que a intolerncia ao alcoolismo no impedia os psiquiatras de fazer uma distino entre o alcoolismo

34 Cf. BATISTA, Nilo. Poltica criminal com derramamento de sangue. In: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, ano 3, n. 5/6. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Freitas Bastos, 1998.

aceitvel, que era o das pessoas respeitveis, e o alcoolismo inaceitvel, aquele dos

pobres35. Ns temos que produzir uma teoria e uma prtica que sirvam ao povo brasileiro.

Uso de Drogas, Justia e Psicanlise O homem visto, pela psicanlise, como um ser social, construtor de si mesmo e do prprio mundo. Esta forma de construo subjetiva e o reconhecimento deste ser social, pelo sujeito, algo que necessariamente se impe, mesmo que sua aceitao seja conflituosa. Seria, ento, a superao do narcisismo nos indivduos, uma necessidade imperiosa para a subsistncia do social e do prprio sujeito, pois este deve reconhecer que precisa do outro para viver. Assim, a experincia de castrao tem uma funo humanizadora, levando o sujeito a abandonar o investimento libidinal em si prprio, aceitando com isto a alteridade e os limites que esta castrao representa.35 COSTA. Jurandir. Histria da psiquiatria no Brasil: um corte ideolgico. Rio de Janeiro: X Enon ed., 1983.

Freud, no Mal-estar na civilizao, afirma que o uso de drogas mais uma tentativa, dentre outras, de suportar este mal-estar, de burlar a insatisfao fundamental qual todo o ser falante est submetido, de impedir a experincia da castrao. Para Lacan, estes consumos estancam a potncia metafrica do Nome-do-Pai, substituindo-o como metforas cristalizadas, como verses do pai, resultando na troca da infinitude do desejo pelo imediato da concretude do gozo (Otvio de Souza, 2002). A sociedade atual regida, segundo Jurandir Freire Costa, pela moral do espetculo, onde a Autoridade foi substituda pela Celebridade, denunciando um narcisismo fortemente expresso no investimento excessivo no corpo, talvez como mais uma tentativa infrutfera de negar a insustentvel finitude do ser. Assim, objetos de consumo e drogas, com sua capacidade de felicidade instantnea, estariam substituindo os meios dialticos, prprios do sujeito, de tentativa de superao dos impasses insolveis entre desejo e satisfao. E o que fazer diante desta experincia? Otavio Souza* afirma que no cabe ao analista a interpretao que se dirige s

formaes do inconsciente para ali destacar o gozo no qual o desejo se cristaliza, propiciando sua queda em um ato de renncia (prtica diante da neurose). O tipo de interpretao requerido, ao contrrio, visa complementao, a qual apenas se torna possvel atravs do contato emptico com a experincia que o sujeito apresenta silenciosamente. O contato emptico no tem a funo de esclarecer, mas sim a de trazer a presena de um outro para a proximidade de uma experincia que se esboa na solido. Caberia ao analista inicialmente, dedicar ateno ao que ali se expressa como esperana e no exigir do toxicmano uma responsabilidade pelo seu desejo, renunciando, para isto, ao gozo que a droga lhe proporciona, para a qual o mesmo no est preparado. O uso de drogas pode, assim, representar uma fonte de qualidades experienciais que o sujeito necessita para manter a esperana de constituir para si uma base existencial, a partir da qual possa, posteriormente, vir a desejar. Antes que possa assumir a responsabilidade por seu desejo, muitas coisas pelas quais ele no pode se responsabilizar tm de ocorrer, tanto em sua vida quanto em sua anlise. O que no se deve fazer, portanto, convidar o sujeito para sair de sua toca quando, na realidade, ainda est ocupado na tarefa de procur-la ou

escav-la. E o que acontece com o adulto que atuado portando drogas para uso prprio no Tribunal de Justia do Rio de Janeiro? Antes da aplicao das Medidas de Tratamento, estas pessoas tinham, na maioria dos casos, as seguintes determinaes penais a cumprir: Pena Alternativa, que consistem basicamente em Prestao de Servio Comunidade, Limitao de Final de Semana e Pena Pecuniria (cesta bsica), ou Tratamento Compulsrio, que consiste no encaminhamento do sujeito, pelo juiz, diretamente a uma instituio de tratamento. Analisemos ambas as possibilidades: Pena Alternativa O ato de cumprir uma pena alternativa no conduz o sujeito reflexo sobre o seu uso de drogas, servindo, no mximo, para reforar o fenmeno que est em jogo nos toxicmanos e tambm no delinqente. Charles Melman afirma que, h uma erotizao do jogo do toxicmano com os poderes pblicos de todas as ordens, sejam eles mdicos, judicirios ou policiais, que parece ser do mesmo tipo de erotizao que aquela exercida pelo delinqente. O toxicmano ama se envolver com os poderes pblicos. E camos no

ridculo, se interferirmos como parte em causa, para fazer girar sua economia libidinal. Tratamento compulsrio Sabemos que, na maioria das vezes, o toxicmano chega ao consultrio mdico ou clnica especializada, trazido por um outro, sendo raro que a iniciativa parta dele mesmo. Nestes casos, profissionais da sade submetem-no a uma avaliao sobre os procedimentos adequados para aquela situao. Quanto ao tratamento determinado em audincia pelo juiz, fica a pergunta: Dispor um juiz de embasamentos tericos e prticos que possam avaliar que tipo de tratamento pode aquele sujeito se beneficiar ou, at mesmo, se aquele sujeito precisa de algum tipo de interveno, seja esta de ordem clnica ou grupos de mtua-ajuda, ou se o momento de tal procedimento iniciar, sem que antes haja qualquer trabalho de motivao? De acordo com a nossa experincia, quando este tipo de encaminhamento acontece, o tratamento efetivamente no existe, pois as instituies pblicas de sade tm uma resistncia natural em receber tais sujeitos, alegando que os mesmos ficam apenas ocupando a vaga de algum que, de fato, quer se tratar. Assim, o sujeito no quer se tratar e,

por sua vez, a instituio no quer trat-lo. Desta forma, ambos cumprem, formalmente o que a Justia determina: o condenado comparece instituio de tratamento e a instituio informa ao juzo o seu comparecimento, sem que efetivamente nenhum trabalho teraputico seja realizado. Diante desta abordagem e compreenso do uso de drogas, o que pode e o que deve um profissional atravessado pela teoria e pela prtica psicanaltica fazer numa instituio jurdica, frente a um usurio e, consequentemente um delinqente, onde a punio , tradicionalmente, seu destino? Antes de falar do Programa de Justia Teraputica propriamente dito, fao um breve relato de um trabalho que precedeu a este e que parte integrante da nossa histria: Com a inaugurao da Central de Penas e Medidas Alternativas, em 2001, cujo objetivo era priorizar a execuo dessas penas/medidas, houve uma ampliao do quadro tcnico que permitiu a contratao de mais profissionais qualificados (psiclogos e assistentes sociais). A funo desta equipe consiste em fazer uma avaliao psicossocial criteriosa daqueles beneficirios, afim de que sejam encaminhados s instituies conveniadas com o Tribunal de Justia, para

os receberem como prestadores de servio. J naquela poca, a equipe tcnica, ao avaliar o beneficirio, comeou a ter um olhar tambm dirigido ao uso problemtico de lcool ou outras drogas, buscando identificar se havia uso abusivo, prejuzos e, tambm, se havia alguma preocupao daquele sujeito com o seu padro de uso. Este procedimento era independente do delito cometido, no se restringindo aos que eram autuados portando drogas. Quando necessrio, a equipe realizava um trabalho de orientao, motivao e, no caso de uma aceitao, era encaminhado, pela equipe, para o tratamento apropriado. Este procedimento ainda seguido por toda a equipe de tcnicos da DPMA. Numa primeira avaliao, dos 1000 primeiros atendidos, identificamos que 32% faziam uso problemtico de drogas lcitas e/ou ilcitas. No entanto, deste total de 322, apenas 21% tinham alguma indicao jurdica para tratamento por terem sido detidos com drogas. Isto significa que 254 pessoas puderam ser identificadas com o uso problemtico de lcool ou outras drogas atravs de um trabalho da equipe baseado no acolhimento, na escuta emptica e na confiana estabelecida, a qual construda tendo como um dos seus

maiores alicerces o nosso sigilo profissional. Dos 322 identificados com problemas com lcool e outras drogas, encaminhamos para tratamento 200 pessoas sendo que deste total, 69% afirmaram terem interrompido o uso. Faz-se importante ressaltar que no havia, na maioria dos casos (79%), qualquer obrigatoriedade jurdica de tratamento. Em setembro de 2002, foi promulgado o Ato Executivo Conjunto 041/2002, pelo Tribunal de Justia que instituiu o Programa de Justia Teraputica para adultos. Este programa tem o mesmo nome do programa existente na Vara da Infncia e Juventude do Rio de Janeiro, o qual foi, por sua vez, baseado nos princpios do Drug Court. No entanto, nossa metodologia diferente daqueles que deram origem ao nome, uma vez que no seguimos a poltica de tolerncia zero, nem trabalhamos com sanes ou incentivos, elementos chaves que norteiam o modelo americano. De fato, adaptamos a metodologia anteriormente utilizada pela equipe para atender s determinaes do Programa e foi constituda uma equipe de profissionais, da qual eu fao parte como coordenadora, para trabalhar exclusivamente com a Justia Teraputica e Medidas Teraputicas para usurios de drogas. A finalidade do programa de Justia

Teraputica oferecer e possibilitar o tratamento queles que so indiciados e acusados de posse ilegal de substncia entorpecente para uso prprio, conforme consta no Ato Executivo. Nosso trabalho, no entanto, no se restringe queles que vm pela Justia Teraputica, ou seja, aqueles incursos nas penas do artigo 16, porte de drogas para consumo prprio. Tambm atendemos pessoas que cometeram outros delitos, como por exemplo, violncia domstica ou pequenos furtos, onde foi observado pelo juiz um possvel vnculo entre o delito cometido e o uso abusivo de lcool ou outras drogas. Por esta razo, falaremos de Medidas Teraputicas por ser um termo mais abrangente e no de Justia Teraputica. Como a dinmica do Programa? Em audincia, o Ministrio Pblico oferece ao acusado de posse ilegal de substncia entorpecente para uso prprio, a possibilidade de insero no Programa de JT. Aceitando, o juiz criminal homologa a deciso e encaminha o acusado para a nossa equipe a fim de dar incio ao seu processo de avaliao. Caso contrrio, oferecido ao mesmo uma outra medida alternativa dentre s anteriormente mencionadas. Portanto, ele tem o direito a

escolher se deseja ou no se submeter ao programa. importante esclarecer que a oferta pelo programa depende exclusivamente do Ministrio Pblico e do juiz das Varas Criminais ou dos Juizados Especiais Criminais, ou seja, os juizes tm autonomia para encaminhar os acusados para tratamento sem passar pelo programa de Justia Teraputica, se assim o quiserem. O primeiro contato do beneficirio com a equipe tcnica, aps aceitar a transao penal o Grupo de Acolhimento, cujas finalidades principais so as de fornecer informaes sobre a proposta do Programa, dirimindo dvidas e acolhendo as queixas muitas vezes presentes, alem de procurar identificar as demandas e as urgncias de cada caso, as quais iro determinar o agendamento do incio do processo de avaliao. Ao final do Grupo de Acolhimento, os beneficirios so agendados para darem incio s Entrevistas Tcnicas de Avaliao. Nestas entrevistas de Avaliao, realizadas por um psiclogo e um assistente social, buscamos compreender as motivaes individuais que levaram aquele sujeito problemtica em questo, procurando

identificar o grau de comprometimento com o uso de drogas, suas perdas pessoais e familiares, sua motivao, bem como possveis comorbidades presentes. Alm disto, o contexto scio-econmico do sujeito, suas relaes familiares, carncias e demandas nas reas de educao, sade em geral, trabalho e previdncia so tambm pontos amplamente abordados, uma vez que o nosso foco no sujeito e no a droga, propriamente dita. Nosso objetivo inicial avaliar a convenincia de inseri-lo no Programa. Isto significa que a equipe tcnica pode considerar um beneficirio no elegvel para o programa, avaliao esta que dever ser imediatamente informada ao juiz de origem. Sendo inserido, nosso prximo passo avaliarmos a melhor indicao para o beneficirio, que ir depender dos fatores anteriormente mencionados, e que pode resultar nos seguintes encaminhamentos: Tratando-se de um usurio sem indicao de tratamento no momento da avaliao, ou por terem interrompido o uso ou por fazerem uso espordico, no apresentando ainda maiores prejuzos sua vida, este poder ser inserido no Grupo de Reflexo. Nestes grupos abordamos temas relativos s drogas: prejuzos, tratamento, preveno, estratgias de preveno de recada, fatores

biopsicossociais envolvidos, violncia, autoestima, assim como trabalhamos outros temas, tais como: famlia, sade, sexualidade, cidadania, sociedade etc. alm de estimular a organizao e participao social em grupo. O Grupo de Reflexo tem apresentado resultados de valor inestimvel, em funo, principalmente da diversidade de situaes (classes sociais, idades e experincias com o uso de drogas), levando os sujeitos se aproximarem de realidades distantes, desconstruindo estigmas e repensando antigos valores . Um dos desdobramentos do trabalho realizado nestes grupos foi que alguns dos seus membros organizaram trabalhos de preveno dentro das suas comunidades. Em se tratando de algum que tem um comprometimento maior com o uso de lcool ou outras drogas e que a equipe considera necessria uma interveno institucional especializada nesta problemtica, passamos a ter como meta de trabalho a identificao do momento mais apropriado para realizarmos o devido encaminhamento: Quando os prejuzos no so reconhecidos pelo beneficirio, buscamos sensibiliz-lo e motiv-lo antes de realizarmos qualquer encaminhamento, a fim de provocar no mesmo uma demanda prpria, possibilitando

uma maior aderncia ao tratamento proposto, evitando, com isto, resistncias por parte das instituies de sade. Ao realizarmos o encaminhamento para instituio de tratamento, procuramos melhor adequar a necessidade de cada caso ao perfil da instituio que ir receb-lo. A fase da avaliao considerada a mais importante de todo o processo, uma vez que, bem realizada, possibilita instituio de tratamento receber um sujeito que, apesar de ter sido encaminhado pela Justia, est consciente de sua problemtica, disponvel e motivado para ser ajudado. A complexidade do processo de avaliao exige que os profissionais em questo realizem um nmero de entrevistas que pode variar, chegando a alguns casos a superar 3 meses. Aos familiares dos beneficirios do programa oferecido o Grupo de Orientao de Familiares. A proposta do grupo poder oferecer um espao para esclarecimentos, informao, troca de experincias, com vistas a promover a implicao das famlias no referido processo. O beneficirio consultado a fim de que este indique quem gostaria de ser convidado para participar do Grupo, podendo ser mais de uma pessoa, no

precisando, obrigatoriamente, ser um familiar, mas sim um significante outro. Durante todo o tempo de cumprimento da transao penal, a equipe realiza um acompanhamento do beneficirio, independente do encaminhamento realizado. Este acompanhamento visa identificar os resultados do tratamento, estimular a conscincia crtica do beneficirio, avaliando as mudanas suscitadas ou no em sua vida e a aplicao das estratgias de interveno, podendo ser reorientadas de acordo com a necessidade, inclusive com novos encaminhamentos. Aps este perodo, a equipe que o acompanha emite relatrio e submete o mesmo avaliao do juiz de origem que ir determinar o fim do cumprimento. Resultados: Nosso ltimo levantamento, em junho 2005, traz os seguintes resultados: Quanto ao tipo de encaminhamento realizado pela equipe, temos os seguintes nmeros: - 37% foram encaminhados para instituio de tratamento. Isto representa o nmero de pessoas

-

atendidas que necessitavam de uma interveno mais intensiva, que pode ir desde o ambulatrio at a internao. 14,7% foram encaminhados para o Grupo de Reflexo. 25,8 % estavam apenas em acompanhamento individual. 15,9% ainda estavam em avaliao. 6,5% interromperam o cumprimento da medida/pena antes mesmo de terminarem a avaliao.

Daqueles que j terminaram o cumprimento: 52% afirmam ter interrompido o uso. 40%, apesar de continuarem usando, reduziram o uso e, principalmente, conseguiram dar andamento a projetos pessoais que consideravam importantes, os quais estavam paralisados em funo do padro de uso de lcool/drogas, tais como, o retorno ao mercado de trabalho, volta aos estudos, resgate de laos familiares rompidos ou insero em atividades sociais. Concluindo, quero dizer que, atravs da nossa experincia, acreditamos que a implicao do sujeito com a Justia pode se tornar uma oportunidade de reflexo, e, para tal, buscamos muni-lo de ferramentas que possam ajud-lo a, quem sabe, questionar-se sobre suas escolhas. Para isto, no entanto,

necessrio que os operadores da lei e a equipe de profissionais entendam a interveno jurdica como instrumento e no como um fim. Por ltimo, voltando minha prpria indagao sobre o que nos compete fazer dentro do Judicirio, no trago respostas, mas sim alguns pontos para reflexo: Vejo a nossa prtica como uma experincia desafiante e enriquecedora onde buscamos encontrar recursos de superao de impasses entre as bases tericas que nos orientam e as exigncias do poder judicirio. Assim, respeitando a subjetividade do cliente, tentamos responder quele Poder, cujos operadores tm, como um dos pilares de sustentao da sua prtica, o saber absoluto sobre os cdigos sociais que norteiam o comportamento daqueles que so seu objeto de interveno. Num exerccio permanente de questionamento da nossa prtica, precisamos estar atentos vestimenta imaginria da lei, da qual, por distrao, comodismo ou contingncia, podemos nos utilizar, alimentando, com isto, o gozo do sujeito e, por que no, o nosso prprio gozo. Entendo este como um dos nossos maiores desafios ao qual devemos estar sempre atentos, pois,

fazendo um paralelo afirmao de Lacan de que a resistncia sempre do analista, o fantasma da representao do Poder sempre uma construo nossa, portanto, livrando-nos dele, a fantasia do outro no encontra suporte. atravs de uma aposta, de uma oferta, de um ato, analtico ou no, que acreditamos ser possvel provocarmos, naquele que nos fala, uma demanda. O instrumento do qual no podemos prescindir o da escuta, que ir nos permitir compreendermos se esta demanda a de ajud-lo a sair da toca, a procur-la ou at mesmo, a escav-la. a partir desta compreenso que nossa conduta dever ser construda. Dentre tantos outros desafios, o trabalho em equipe multidisciplinar composta por profissionais que seguem abordagens tericas diferentes o que nos traz maior recompensa, pois permite que nos confrontemos com as nossas prprias limitaes, levando-nos a refletir e buscar alternativas que tenham como objetivo tirar o melhor proveito desta situao a qual ambos - o cliente e o profissional esto submetidos.

Por uma clnica psicanaltica do louco infrator

Daniela Venncio Ferreira (1)

Primeiramente, gostaria de agradecer comisso organizadora do evento pelo convite. Escutar os colegas e conhecer os trabalhos desenvolvidos aqui como compartilhar e discutir com vocs o trabalho realizado pelo PAI-PJ - Programa de Ateno Integral ao Paciente Judicirio do Tribunal de Justia de Minas Gerais causa-me grande satisfao. Origem do PAI-PJ Em 19 de abril de 1999, Fernanda Otoni de Barros, psicloga judicial do TJMG juntamente com seus alunos do curso de Psicologia Jurdica do Unicentro Newton Paiva empreende uma visita ao Manicmio Judicirio Jorge Vaz na cidade de Barbacena, interior do Estado de Minas Gerais. Tal visita produz uma impresso inesquecvel. Atravs das palavras da prpria Fernanda pode-se retratar a imagem desse lugar. O caminho por estes corredores escurecidos avassalador aos sentidos. Gritos, gemidos, sorrisos imotivados... ambiente onde se misturam o odor das fezes, urina, suor humano e gua sanitria... ao olhar so oferecidas cenas do absurdo: homens com olhares mrbidos,

lascivos, furiosos, amortecidos... a impotncia diante das cenas que atravessam esse circuito inserem nele o sentido amargo do medo.

Psicanalista, psicloga da Casa PAIPJ/TJMG, mestre em Psicologia, rea de concentrao Estudos Psicanalticos, pela UFMG e professora de Psicologia Aplicada ao Direito da FAPAM - Faculdade de Par de Minas/MG.(1)

Como sabemos, quando um crime cometido por um portador de sofrimento mental d-se incio a um mecanismo de controle social que se difere daquele posto em prtica quando o crime cometido por um cidado comum, ou seja, quando o homem que o realiza no traz em si a marca indelvel da loucura. Para o ordenamento jurdico e para a psiquiatria clssica, o agente do ato infrator, se portador de sofrimento mental, no pode ser penalmente responsabilizado, pois no tempo da ao no possua capacidade para discernir entre o certo e o errado, no podia, em virtude da sua doena, distinguir o carter ilcito do seu ato. Considerado inimputvel em virtude

de sua alienao mental, o louco infrator encaminhado para os manicmios judicirios de nosso pas e estigmatizado pela periculosidade, suposta, para muitos, como inerente loucura. O louco infrator, cuja sentena a Medida de Segurana despachado para fora do espao comum das cidades e segregado por tempo indeterminado nesses depsitos de gente. Esses lugares, ou seja, os manicmios judicirios foram caracterizados pela campanha da Comisso Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia em 1999 como: Manicmio Judicirio... o pior. Trata-se do pior do hospital psiquitrico e o pior da priso reunidos em um s lugar! Torna-se importante salientar que a segregao e excluso das quais o louco infrator objeto na nossa sociedade impede que esses sujeitos tenham acesso aos mnimos direitos garantidos pela Constituio. No Art 196, a Constituio Brasileira declara que a sade reconhecida como um direito de todos e um dever do Estado que deve ser garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem, por um lado, a reduo do risco de adoecer e por outro, (friso) o acesso universal e igualitrio s aes e servios para a promoo, proteo e recuperao da sade. Torna-se bvio que os internos de um manicmio judicirio e seus familiares ficam impedidos, inclusive, de lutarem por tais direitos. O precrio tratamento nos manicmios judicirios se reduz teraputica

medicamentosa. Entretanto, a falta de recursos financeiros constantes justifica a ausncia de medicao em muitos momentos (CENSO, 1998, p. 260). Resta a cela solitria, o abandono pulso de morte e agressividade recorrentemente dirigida contra si mesmo. Diante dessa situao de segregao, injustia e discriminao e, capturados, mas no paralisados, pela imagem atroz do Manicmio Judicirio, fez-se um ato na cidade de Belo Horizonte, a saber, a criao e implantao do PAI-PJ, coordenado pela psicloga judicial e psicanalista Fernanda Otoni de Barros. Trata-se de um projeto pautado pela poltica da reforma psiquitrica brasileira, da qual Minas Gerais tornou-se um Estado de vanguarda nas ltimas dcadas e orientado pela teoria e clnica psicanaltica. Tendo sido implantado como projeto-piloto em maro de 2000, tal projeto obteve sua transformao em programa j em dezembro de 2001, atravs da portaria de nmero 25/2001. Em julho do ano seguinte foi inaugurada a Casa PAI-PJ. Trabalhamos com sujeitos psicticos que em um determinado momento de suas vidas foram confrontados com situaes, tanto estruturais quanto contingentes em relao s quais s encontraram a via da passagem ao ato como sada. Se, por um lado, condenamos o Manicmio Judicirio e desejamos seu fim, por outro, colocamo-nos como co-responsveis na produo de um novo modo de tratamento

destinado ao psictico infrator. Nesse sentido, avivar discusses constantes com os atores do ordenamento jurdico tanto quanto com os profissionais de sade mental da rede pblica uma ferramenta indispensvel para a prtica de todos ns. O PAI-PJ, programa pioneiro no Brasil, inaugura a possibilidade de acesso do psictico infrator ao tratamento na rede de sade mental e oferece a este o direito de responder pelo seu ato, resposta subjetiva, devo ressaltar, na medida em que o sujeito convidado a falar a partir de sua posio diante do Outro. Tem sido possvel, na grande maioria dos casos, encontrar outra sada para o sofrimento que lhe perturba, distinta daquela da passagem ao ato criminosa. Somos testemunhas das mais surpreendes invenes. A singularidade das solues tem demonstrado a viabilidade do lao social. Aprendemos com esses sujeitos que um lao com o Outro pode ser construdo a cada dia. Entretanto, tal lao s se inventa e serve ao sujeito quando traz algo de seu, algo de singular, de sua excentricidade. Torna-se condio da clnica que ns possamos suportar tais invenes. No PAI-PJ contamos com profissionais da Psicologia, do Direito e do Servio Social. Para cada caso acompanhado, forma-se uma equipe interdisciplinar que deve promover, entre outras coisas, o levantamento de informaes sobre o sujeito em conflito com a lei. Essas informaes referem-se ao histrico jurdico do sujeito em

questo, histrico de sade (se houve internaes psiquitricas e/ou tratamento nos centros de ateno sade mental) e histrico scio-familiar. Como j foi dito, alm de ns, numa rede ampla de servios esto os profissionais da rede pblica de sade mental, parceiros comprometidos e indispensveis na realizao desse trabalho. Nesse sentido, a novidade que se apresenta na cidade de Belo Horizonte em relao ao acompanhamento do louco infrator, ou seja, esse novo modelo de tratamento se sustenta, sobretudo, no acolhimento do portador de sofrimento mental infrator pela rede pblica de sade mental da nossa cidade. Juntos, somos responsveis pelo acompanhamento e tratamento do louco infrator. A partir das informaes colhidas e compartilhadas, confecciona-se um projeto teraputico particularizado, vivo, na medida em que se transforma com o andamento e evoluo do caso em questo. Ao invs da universalidade da imposio da medida de segurana em regime de internao36 nos manicmios judicirios temos, a partir de uma poltica pautada pela clnica, a insero do sujeito em conflito com a lei no(s) equipamento(s) de sade mental disponveis em36 Cdigo Penal, Art 97. Se o agente for inimputvel, o juiz determina sua internao (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punvel com deteno, poder o juiz submetlo a tratamento ambulatorial.

Belo Horizonte que seja adequado ao projeto teraputico construdo. So muitos os equipamentos: CERSAM`s, Hospitais Psiquitricos (nos momentos de crises graves), Postos de Sade, Centros de Convivncia, Residncias Teraputicas, etc. Muitas vezes, o sujeito escolhe o PAI-PJ como lugar onde vai confiar, entregar sua histria, seus delrios, alucinaes, seu gozo. Nesses casos, no recuamos da transferncia dirigida a ns. Emprestamos nosso corpo e disponibilizamos nossa escuta e o que se refere ao acompanhamento psiquitrico fica por conta da rede de sade. Apesar de no recuarmos da clnica com esses sujeitos, a funo principal do PAI-PJ produzir a mediao entre a clnica e o ato jurdico. Atravs de nossa equipe interdisciplinar, construmos um espao que viabilize a discusso entre esses campos distintos, ou seja, a sade e a Justia. Documentamos, atravs de pareceres e laudos o projeto teraputico, o andamento e evoluo clnica do caso, a situao social e jurdica do sujeito acompanhado. Esses pareceres e laudos, dependendo do momento em que so formulados servem para requerer autorizao judicial para um dado projeto teraputico proposto como para informar o Juiz o andamento de tratamentos j autorizados. Torna-se claro que a parceria com a rede pblica de sade mental condio fundamental para a realizao desse novo modelo de ateno ao

louco infrator. Em razo dessa parceria, o louco infrator no mais encaminhado para o manicmio judicirio. Ao ser acolhido pela rede, o louco infrator, pela primeira vez, tem acesso aos princpios fundamentais da Constituio Federal e tem chance de ser tratado por profissionais comprometidos com a clnica e com a luta antimanicomial. Se a prtica verdadeiramente clnica com o louco infrator uma experincia relativamente nova em Belo Horizonte e praticamente inexistente em outros lugares, teoricamente no assim. No recente o interesse da psicanlise pela interface com o campo jurdico. Penso que a importncia desse encontro, pelo menos para a psicanlise se deve ao fato desta se interessar pelas relaes entre o sujeito e o crime. possvel observar as manifestaes desse interesse desde um perodo precoce da doutrina. H quase um sculo atrs, Sandor Ferenczi proferiu o que deve ter sido a primeira conferncia de um psicanalista nos meios jurdicos. Tal conferencia, intitulada, Psicanlise e Criminologia realizou-se na Associao Nacional de Juizes e Advogados de Budapeste no ano de 1913. O propsito dessa palestra foi, sobretudo, apresentar seu interesse, ou seja, do prprio Ferenczi em tratar psicanaliticamente o criminoso, pois para ele somente a nova doutrina, pelas descobertas da vida psquica inconsciente seria capaz de servir tanto aos homens da Justia quanto ao condenados por

ela. Como sabemos, poucos anos depois, o prprio Freud, mediante um polmico ensaio, a saber, Criminosos em conseqncia de um sentimento de culpa (1916), apresenta ao pblico a tese original de que o sentimento de culpa no s antecede como pode impelir o sujeito ao crime. s voltas com as manifestaes do sentimento de culpa em sua clnica das neuroses, ele conclui que o crime serviria aos sujeitos assombrados por tal sentimento como uma espcie de expiao. Atravs do ato ilcito o sujeito alcanaria o propsito de fixar o sentimento de culpa em alguma coisa e tal mecanismo serviria, pelo menos temporariamente, como um alvio para os sofredores (FREUD, 1916). Nesse sentido, pode-se dizer, que o ato criminoso visa o peso da lei sobre o sujeito. Por outro lado, ao retomarmos a obra de Freud para pensarmos as questes trazidas pela clnica com psicticos infratores no encontramos nenhuma teorizao. Contudo, pode-se afirmar que as descobertas do inconsciente e das pulses e, sobretudo, as transformaes propostas por ele na sua segunda tpica do psquico influenciaram definitivamente todos os analistas que, em anos posteriores, se debruaram sobre as relaes entre a loucura e o crime. Para alm de seus discpulos analistas, Freud influenciou tambm Paul Guiraud, psiquiatra organicista que se valeu da psicanlise quando escreveu dois importantes artigos sobre as

relaes entre a esquizofrenia e o crime. Trata-se de O assassinato imotivado: reao liberadora da doena nos hebefrnicos (1928) e Os assassinatos imotivados (1931). No primeiro artigo, ele compreende a passagem ao ato criminosa como resultado de uma transferncia do desejo de curar a doena sobre aquele de suprimir o mal social (GUIRAUD, 1928). J no segundo artigo, este claramente calcado na psicanlise freudiana, Guiraud desenvolve a tese que no deixa de ser radical de que o crime psicose (ele est considerando o assassinato) tem como objetivo e tambm como funo a cura da doena que atormenta o sujeito. Nesse artigo, ele recupera a noo de Kakon, encontrada em Von Monakow e Morgue para defini-la como sendo um mal-estar intenso e inexprimvel que o psictico sente no prprio corpo. Esse mal-estar se faz presente, sobretudo, na fase de desencadeamento da doena, o que leva Guiraud a propor uma fase criminosa na esquizofrenia. A passagem ao ato seria movida pela projeo do Kakon, ou seja, pela projeo desse mal que pode ser, ento, atacado no exterior como uma tentativa extrema do sujeito em livrar-se dele. importante salientar que Guiraud faz da projeo do kakon o mecanismo central e determinante da passagem ao ato criminosa, no caso dos esquizofrnicos. Nesse ponto ele est inteiramente de acordo com Freud, especialmente, em relao ao que este formulou no estudo sobre o caso Schreber. Ele nos diz que

o fim do mundo para o presidente Schreber corresponde projeo de sua catstrofe interna (FREUD, 1912). Nos trabalhos posteriores, tal como em Alm do princpio do prazer (1920), Freud continua a afirmar o papel importante da projeo na causao dos processos patolgicos mais graves. Nas dcadas de 1920 e 1930 h entre os psicanalistas, uma intensa discusso e produo terica acerca das relaes entre o sujeito e o crime e isso inclui textos, decerto no a maioria, que se debruam especificamente sobre o tema do crime e a loucura. Para citar alguns, temos, entre os alemes, Franz Alexander que junto Alexander Staub escreve um longo livro intitulado, Os criminosos e seus juizes. Entre os ingleses, destaca-se Melanie Klein e, na Frana Marie Bonaparte quem primeiro se interessa pela interface entre psicanlise e criminologia e escreve em 1926 a clebre analise do caso de Mme. Lefrebvre. Marie Bonaparte seguida por Jacques Lacan que em 1932 com sua tese de doutorado intitulada Da psicose paranica em suas relaes com a personalidade entra na psicanlise elegendo como tema de estudo a relao entre o supereu e o crime na psicose. A parania de punio o nome dado por Lacan para essa forma de psicose em que o delrio dominado pela necessidade de punio imposta pelo supereu (FERREIRA e GOMES, 2004). No possvel apresentar pormenorizadamente, neste artigo, os aspectos desenvolvidos por

Lacan e pelos outros analistas citados acerca das relaes entre a psicose e o crime. Sendo assim, me deterei, apenas por um instante, em uma idia comum aos analistas, contemporneos ou no. A psicanlise no compartilha da lgica psiquitrica e jurdica de que no cerne da psicose encontra-se um dfict ou uma incapacidade. A experincia clnica e poltica que se realiza no PAI-PJ tem sido convocar o sujeito psictico a responder pelo seu ato. Nosso trabalho no sem conseqncias. Fazer nossa parte para que o psictico tome a palavra de forma delirante ou no tem permitido a produo de efeitos teraputicos sobre o sofrimento que uma psicose impe. verdade que a parceria entre a Psiquiatria e o Direito permitiu e ainda permite a segregao desumana do louco infrator. Por outro lado, desde longa data a psicanlise ensaia uma parceria com o Direito. No PAI-PJ realizamos, no sem problemas, esse intuito psicanaltico. Tal parceria tem funcionado, pelo menos em BHte, como um ato de acolhimento loucura. A experincia da loucura muito tem ensinado ao ordenamento jurdico. O louco infrator, na maioria dos casos, quer responder pelo seu ato e deseja responsabilizar-se pelo que fez. Observamos que o sujeito psictico pode se servir do Direito como um Outro capaz de produzir uma certa ordem, um certo tratamento do real. O acompanhamento desses casos na instituio jurdica, orientado pela psicanlise,

mostra-nos a possibilidade de se fundar uma relao entre o sujeito psictico e a lei que confere sentido e orientao aos mais diversos processos da vida civilizada (SANTIAGO, 2005). A psicanlise nos ensina que no se trata ao segregar. Ao contrrio indispensvel a presena do Outro, em relao qual podemos enderear nossa fala e atravs desta produzir algum sentido que nos proteja, pouco que seja, do domnio puro da pulso de morte. Referncias Bibliogrficas: BARROS, Fernanda Otoni. Democracia, liberdade e responsabilidade: o que a loucura ensina sobre as fices jurdicas. Set/2004 (texto mimeografado) FERENCZI, Sandor. Importncia da psicanlise na justia e na sociedade. (1913). So Paulo:Martins Fontes, 1993. Obras Cojmpletas de Sandor Ferenczi. Vol.2. FREUD, S. Alm do Princpio do Prazer (1920). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (E.S.B., 18). FREUD, S. Alguns tipos de carter encontrados no trabalho psicanaltico (1916). Rio de Janeiro:Imago,1996 (e.S.B., 14). GUIRAUD, Paul. LE meurtre immotiv, racion

libratrice de la maledie, chez ls hbephniques. Annales mdico-psycologiques. [s.1.: s.n]. Tomes I e II, 12. Srie, 1928. LACAN, A agressividade em Psicanlise (1948). In:Escritos.Trad.Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. FERREIRA, Daniela Venncio. Psicanlise e Criminologia: reflexes sobre a agressividade na psicose (2005). Dissertao de Mestrado UFMG.

As Interaes entre o saber psi e o dispositivo judicial Por Gislio Cerqueira Filho37 O que no psicopatolgico jurdico? Esta 37 Doutor em Cincia Poltica e Professor Titular de Sociologia. Membro da Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Atua como pesquisador e docente no Instituto de Cincias Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de Autoritarismo Afetivo a Prssia como Sentimento, Editora ESCUTA, So Paulo, 2005 e dipo e Excesso: Reflexes sobre a lei e poltica, Sergio Fabris Editor, 2002, entre outras obras

a pergunta fundamental que formulamos. Mas a organizao do congresso prope tambm uma outra questo: o saber psi como mecanismo de controle ou como possvel ponto de fuga para o funcionamento da mquina disciplinar? Comeo ento propondo uma breve interpretao sobre a possibilidade do saber psi ser um ponto de fuga para o funcionamento da mquina disciplinar. O que, a bem dizer, um ponto de fuga?" Trata-se de um ponto para o qual, na profundidade do quadro, parecem convergir os raios e as linhas que se originam no primeiro plano de uma de uma obra com perspectiva. Trata-se, portanto, de um efeito de iluso (da ordem do parecer convergir). Agora voltemos ao psicopatolgico. Antes de mais nada, entretanto, necessrio ressaltar que estamos tomando um tal termo do sentido que empregado por Pierre Fedida, que atuou na Universidade de Paris 7 Denis Diderot, enquanto constitutivo da subjetividade humana. Estamos contra qualquer apropriao, seja pelos estudos acerca da normalizao psquica, desde a psicologia comportamentalista, psicologia do ego e dispositivos de controle mental, seja pelos estudos e prticas acerca do controle jurdico, desde a sociologia funcionalista, o direito e seus dispositivos de controle social. Pierre Fdida usava o termo

Psicopatologia Fundamental e declarava ter inventado essa expresso para distinguir o novo campo de estudos e pesquisas da Psicopatologia Geral, cunhada por Karl Jaspers, no incio do sculo XX. Esta, sendo disciplina eminentemente fenomenolgica, dedica-se s manifestaes existenciais e sua significao, sendo, por isso mesmo, atividades eminentemente conscientes. A Psicopatologia Fundamental, por sua vez, apresente um duplo eixo38: por um lado, pretende ser um campo de investigao do pathos psquico sobre o qual os estudiosos se inclinam (da a clnica) de diferentes posies tericometodolgicas. Essa diversidade de posies acaba por constituir diferentes maneiras de descrever, conceber e tratar o pathos psquico que, graas sua irredutvel complexidade, no se esgota nem por uma nica dessas posies epistemolgicas nem pelo conjunto de tais posies. Em vista disto, aqueles que se dispem a participar da Psicopatologia Fundamental precisam fazer uma sistemtica opo valorativa pala qual reconhecem que sua posio detm apenas uma parcela de verdade e no toda a verdade sobre o pathos psquico. Optam, assim, por abrir mo de um valor reducionista segundo o qual a posio do outro s interessa se superar relaes de equivalncia entre as diferenas. Assim, por exemplo, como acentua Manoel Berlinck, estabelecer relao de equivalncia entre38Manoel Tosta Berlinck, Psicopatologia Fundamental, Editora Escuta, So Paulo, 2000.

o pathos e o Real lacaniano, ou o biolgico genmico, ou o neurocientfico, ou ainda equivaler o pathos ao subjetivo ou ao objetivo realizar operao epistemolgica reducionista baseada em valores outros dos que regem a Psicopatologia Fundamental. Assim, reduzi-lo psicanlise, genmica, neurocincia, ao comportamento ou a sistemas classificatrios de qualquer tipo recusar a realidade da complexidade do pathos. Outra tentao reducionista a expressa pela idia segundo a qual a melhor conduta clnica seria fornecida por equipe. Essa idia tem sido um importante avano na reforma psiquitrica brasileira quando comparada com o tratamento baseado em internao e medicao de pacientes em hospitais psiquitricos. Entretanto, a noo mesma de equipe supe a reduo de posies diferentes em prol de uma cooperao complementar entre especialistas. Ora, uma ingenuidade cientfica supor que a complexidade de pathos possa ser alcanada pela justaposio de especialidades numa unidade clnica cooperativa. O conhecimento s pode avanar onde fracassa39. Aqui que queremos ressaltar a necessidade de negao da negao. J a expresso fundamental aponta para a complexidade do pathos e adquire um estatuto significante que ultrapassa os limites estabelecidos por seu fundador. Ultrapassa tambm o interesse da nossa fala neste momento. Por isso retomamos a questo que nos39 Manoel Tosta Berlinck, op. cit., especialmente os captulos sobre metapsicologia.

interessa: a negao da negao. Neste aspecto, a afronta ideologia corrente, ou que outro nome venhamos a designar tica, hipocrisia, cinismo, traio, imoralidade, qui conservadorismo mesmo os embates e combates com o jurdico podem e devem ser enfocadas nos termos do conceito hegeliano de negao da negao, utilizado por Hegel, mas tambm por Lnin, Marx, Slavoj Zizek, etc.40 No (se trata) da negao vazia, intil, ctica, a vacilao, a dvida, que caracterstica e essencial na dialtica que, sem dvida, contm o elemento de negao e, na verdade, o contm como seu elemento mais importante , mas sim a negao como um momento de ligao, como um momento de desenvolvimento que conserva o positivo. Assim, a negao presente na negao da negao eivada de positividade prese