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  • Cadernos de Filosofia Alem 4, PP. 107-110, 1998

    Resenha

    O dialeto dos fragmentos. Friedrich Schlegel.Trad. Mrcio Suzuki. So Paulo, Iluminuras, 1997.

    Lus F. S. Nascimento e Pedro Paulo Pimenta*

    Um dialeto, diz o Aurlio, uma variedade regional de uma lngua, umlinguajar. Mas qual seria a regio prpria a um dialeto dos fragmentos, de quallngua ele deriva? Antes de tentar dar alguma resposta a tal questo, devemoslembrar que este nome (Dialeto dos fragmentos) no de Schlegel. O tradutore organizador adverte, em nota preliminar, que tomou a pequena liberdadede escolher um ttulo que no consta na lista das obras de Schlegel. O dialetodos fragmentos uma tentativa de dar nome a trs grupos distintos de refle-xes que, embora diferentes, apresentam soluo semelhante do ponto de vis-ta da forma (p. 9).

    Se pensarmos o sentido da filosofia como reflexo sistemtica, entoalgo como uma filosofia do romantismo no poderia ser seno um absurdo.De fato, em seu tempo como nos dias de hoje, o romantismo no foi conside-rado filosofia, e isso por um motivo simples: o privilgio do fragmento comoforma de exposio ao invs de grandes sistemas. Ora, se o vigor de Kant,Fichte e Schelling se mostra precisamente na capacidade sistemtica da expo-sio conceitual, como aceitar a confuso (aparente, cumpre adiantar) que ofragmento instaura no campo da especulao?

    Kant sempre foi louvado pelo rigor e simetria que caracterizam sua ex-posio, por vezes at mesmo considerados excessivos. Mas no foi ele mes-mo o responsvel pela fragmentao da idia metafsica de mundo? Por detrs

    * Alunos de ps-graduao do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

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    de uma admirao que beira o assombro, o prprio Mendelssohn no hesitouem denominar o amigo de tritura-mundo. Quanto a Fichte, o que dizer dassucessivas elaboraes de sua Doutrina-da-Cincia? Se nenhuma letra esgotao esprito, ento deve existir sempre um trabalho de aproximao e distancia-mento da reflexo com o objeto, que acaba por instaurar um certo carter frag-mentrio no interior da rigidez sistemtica.

    De fato, como aponta Rubens Rodrigues Torres, as esplndidas cons-trues sistemticas que a tradio filosfica nos legou sob o ttulo de idea-lismo alemo (Fichte, Schelling, Hegel) edificam-se sobre um solo de crise a metafsica minada pela crtica da razo (Kant) e erguem sua travao con-ceitual como que a esconjur-la. Do que se pensou no reverso desses sistemas,no epicentro dessa crise, os escritos do primeiro romantismo (Novalis, Tieck,os irmos Schlegel) do alguma medida, e no de admirar que, j na forma,se apresentem como fragmentrios*. Logo se v que o fragmento no signode incapacidade especulativa, mas antes uma nova perspectiva sobre os pro-blemas levantados pelas grandes filosofias sistemticas. A leitura dos irmosSchlegel e de Novalis sugere uma compreenso refinada e precisa de aspectosda filosofia de Kant e seus seguidores, apontando para o fragmento comopossvel soluo para a crise da metafsica que assola o final do sculo XVIII.

    A lngua alem permite estabelecer, como nota o mesmo Rubens Rodri-gues, a relao entre a palavra Fragment, o verbo fragen (perguntar, questio-nar) e o adjetivo fragwrdig (problemtico, digno de questionamento). O frag-mento ento problemtico (ou questionvel) em si mesmo. Trata-se assimde trazer o problema para o interior da reflexo filosfica, desdobrada ne-cessariamente tambm na forma. A rigidez conceitual prpria ao sistema cedelugar a uma articulao que no se furta a pensar a crise da metafsica nosprprios termos em que ela se apresenta. Longe de significar descaso e faltade rigor conceitual, o fragmento pode ser visto como sinal de maturidade filo-sfica, como bem assinala Mrcio Suzuki na Apresentao: em vez de sinto-ma de um fracasso intelectual, a percepo da fragmentao e dilaceramentoda conscincia poderia ser antes considerada como um dos instantes em que o

    * Em introduo a Novalis, Plen. Traduo, comentrios e notas de Rubens RodriguesTorres Filho. So Paulo, Iluminuras, 1988, p. 11.

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    idealismo alemo se d conta de seus limites, em que passa a investigar seusprprios pressupostos e a corrigir seus desvios: abdicar da pretenso de esta-belecer pelo vis da teoria, um sistema do saber absoluto, minimizan-do oalcance especulativo da dialtica. No carter assistemtico da reflexo schle-geliana j se evidenciam os principais elementos deflagradores da crise doidealismo, cujo desfecho ser a filosofia positiva do ltimo Schelling e a fi-losofia da vida do prprio Schlegel (p. 12).

    Se por um lado o fragmento espelha a crise do idealismo, por outro eletraz, na marca de sua prpria forma, os termos em que o romantismo pensa apossibilidade de uma nova filosofia: a unio entre a filosofia e a vida. No frag-mento 206 do Ateneu pode-se ler: um fragmento tem de ser como uma pe-quena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante, perfeito eacabado em si como um porco-espinho. No obstante o fato de, enquantoforma particular da natureza, ser perfeito e acabado em si, o porco-espinhoaponta para todos os lados, e nessa medida ele particular e universal ao mes-mo tempo.

    A metfora orgnica no aparece por acaso: o que ela mostra a prpriarelao existente entre os elementos da natureza, indivduos particulares inter-dependentes, formando uma totalidade organicamente articulada. Dessa manei-ra, o fragmento torna-se tambm o espelho da prpria vida orgnica, e a filo-sofia pensada sob o signo da mesma vida. Aproximar a filosofia da vida lev-la para o mbito da positividade, reverso da mera negatividade lgicados sistemas. Mas Schlegel no abandona a idia de sistematicidade: o que ofragmento introduz um desdobramento que permite conceber o sistema noapenas como edifcio fechado, mas tambm como uma totalidade em que afragmentao no suprimida, mas mantida na prpria articulao. Isso signi-fica abrir caminho para que no se forme apenas um sistema, mas uma diver-sidade de sistemas que se interpenetrem, sem que haja prevalncia de um so-bre outro. O conhecimento no mais pensado de maneira unvoca, mas equi-vocamente, ou seja, a partir de uma concepo aberta que admite diversospontos de vista que apontam, cada um sua maneira, para uma comunidade eigualdade entre eles, que dessa maneira apenas postulada, mas no realiza-da. A crise da metafsica pode assim ser superada atravs da incorporao dafragmentao que ela instaura, e o fragmento se mostra, paradoxalmente, comoa forma sistemtica por excelncia da reflexo filosfica.

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    Nessa perspectiva, a negao dos sitemas do idealismo pode se dar emtermos absolutos, mas deve ser entendida como uma releitura dos mesmos.Estes fragmentos permitem ver em Schlegel no apenas um filsofo, mas umfilsofo que incorpora a histria da filosofia em cada momento constitutivode seu pensamento. O dialeto dos fragmentos, longe de aparecer como algorestrito, abre espao para a conversa (Gesprch) entre os diversos sistemas.Na medida em que aponta para todos os lados, o fragmento se apresenta comoum dialeto que sabe ser universal sem perder de vista a particularidade que ocaracteriza e, nesse sentido, ele dialeto e lngua universal ao mesmo tempo.

    O volume que a editora Iluminuras publica agora entre ns reune a tra-duo de trs conjuntos de fragmentos de Friedrich Schlegel, intitulados Ate-neu, Liceu e Idias, alm de um suplemento com observaes de Novalis aoAteneu. A qualidade do trabalho de Mrcio Suzuki se mostra no somente natraduo, mas tambm no talento de intrprete desse dialeto peculiar e nemsempre acessvel, talento que se evidencia na introduo e nas notas que acom-panham o texto, orientando o leitor ao situar o pensamento de Schlegel tantoconceitualmente como historicamente.

    Esta edio vem somar-se a outro volume com textos de Schlegel jdisponvel ao pblico brasileiro (Conversa sobre a poesia. Traduo de Victor-Pierre Stirnmann, Iluminuras, 1993), fazendo assim com que o pblico delngua portuguesa possa ter acesso a um pensamento original e instigante, masat aqui pouco conhecido. Com isso, temos o privilgio de poder redimensio-nar adequadamente os desdobramentos que a histria da filosofia alem co-nhece aps Kant; mas tambm, o que no menos importante, aprender aindauma vez que a reflexo se contri acima de tudo com liberdade e gosto, comono cessam de mostrar estes paradoxais fragmentos do idealismo alemo.

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