53 - doÇura ou mansidÃo (dulzura)

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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637) + DOÇURA OU MANSIDÃO Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz Necessidade da doçura Cuidai de que não desapareça jamais a mansidão de vosso coração, diz Santo Agostinho: De corde lenitas non recedat (Medit.). Não vos vingueis por vossa própria conta, mas dai lugar a que passe a cólera, diz São Paulo: Non vos metipsos defendentes, sed date locum irae (Rom. XII, 19). Deixai passar a ira, isto é, guardai silêncio, cedei aquele que se enfurece, sede dóceis, sofrei com paciência a injúria, não digais nada até que a calma tenha modificado vosso coração para que caiba nele a doçura e a caridade.

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Texto de Cornélio à Lápide traduzido da Obra "TESOROS DE CORNELIO Á LÁPIDE" - Tomo II, por Uyrajá Lucas Mota Diniz.

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Page 1: 53 - DOÇURA OU MANSIDÃO (DULZURA)

Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)+

DOÇURA OU MANSIDÃO

Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz

Necessidade da doçura

Cuidai de que não desapareça jamais a mansidão de vosso coração, diz Santo

Agostinho: De corde lenitas non recedat (Medit.). Não vos vingueis por vossa

própria conta, mas dai lugar a que passe a cólera, diz São Paulo: Non vos metipsos

defendentes, sed date locum irae (Rom. XII, 19).

Deixai passar a ira, isto é, guardai silêncio, cedei aquele que se enfurece,

sede dóceis, sofrei com paciência a injúria, não digais nada até que a calma tenha

modificado vosso coração para que caiba nele a doçura e a caridade.

Irmãos meus, diz São Paulo aos Gálatas, se alguém cair desgraçadamente em

algum delito, vós que sois espirituais, cuidai de levantá-lo com doçura, refletindo

naquilo que se passa com cada um de vós mesmos, e temendo cair, como ele, na

tentação: Fratres, et si praeoccupatus fuerit homo in aliquo delicto; vos, qui

spiritales estis, hujusmodi instruite in spiritu lenitatis, considerans te ipsum ne et tu

tempteris (Gal. VI 1).

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Jesus Cristo, diz Santo Agostinho, pronunciou estas palavras: Aprendi de

mim, não a fazer um mundo, não a criar as coisas visíveis e invisíveis, não criar

outras maravilhas aqui na terra, nem a ressuscitar os mortos; mas, sim, aprendei de

mim como ser manso e humilde de coração: Discite a me, non mundum fabricare,

non cuncta visibilia et invisibilia creare, non ipso in mundo mirabilia facere, et

mortos suscitare; sed quoniam mitis sum et humilis corde (Serm. de Verb. Dom. in

Matth.).

Praticai a mansidão com todos, disse São Paulo a seu discípulo Timóteo: Sed

mansuetum esse ad omnes (II Tim. II, 25).

Somente com a mansidão destroem-se os abusos.

Em que consiste a mansidão

Vejamos em que consiste a mansidão. Esta consiste:

1º em conservar para com todos a bondade do coração e da linguagem;

2º em moderar a ira dos demais por uma resposta honrosa, quieta, e sem fel;

3º em sofrer com paciência as injúrias;

4º em alegrar-se nelas;

5º em vencer a malquerença de um inimigo, atraí-lo, ganhá-lo e convertê-lo

em amigo, com bons procedimentos e benefícios;

6º não buscar a vingança;

7º em operar sem acritude, sem soberba, sem desdém, sem querer se antepor

a ninguém, sem insultar ao desgraçado, sem chocar ao soberbo; senão

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procurando ganhar a uns e a outros com tato; e insinuar-se com habilidade no

coração deles, sem que ninguém se aperceba disso.

Quando mais azeda é a pessoa, ou quanto mais extravagante o caráter

daquele com quem tenhamos de tratar, mais doçura, mais mansidão, e modos mais

amistosos e sinceros devemos empregar na ocasião. Não devemos opor jamais raiva

a raiva, violência a violência; pois, ao contrário, a paciência e a caridade devem ser

nossa norma.

A doçura é certa habilidade de espírito que, tanto nas honras quanto nas

humilhações, mantém ao homem em uma perfeita igualdade de caráter. É uma

virtude que chega até a fazer-nos rezar, sem que nos perturbemos, por aqueles que

nos perturbam e nos molestam.

Pode-se comparar a mansidão a um rochedo elevado e inabalável que resiste

aos furores do mar e arrebenta suas ondas embravecidas.

Convém não fazer resistência aos que nos maltratem. A lã detém uma bala de

canhão; e, entretanto, a bala rompe, atravessa, destrói as mais duras e sólidas

muralhas.

Não resistir, é vencer pela virtude aquele que nos ataca pela paixão. Assim,

nós nos manifestamos mais fortes que ele. Não resistir, é retirar da ira os meios de

acender-se. Não contestando nada e conservando a calma e um rosto pleno de

doçura, o homem manso triunfa de tudo.

Devemos tomar parte nos males que nosso próximo sofre, aguentar seu mau

humor, desculpar seus defeitos, condescender a seus desejos quando o possamos, e

humilhar-nos sem obstáculos.

Há doçuras fingidas, doçuras desdenhosas, plenas de um orgulho oculto:

existe uma ostentação e afetação de mansidão mais repugnante e insultante que o

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azedume declarado; é a mansidão do tigre, é uma doçura hipócrita, soberanamente

detestável e perigosa.

Nossa mansidão deve ser sincera, consciente, modelada sobre a de Nosso

Senhor Jesus Cristo, e semelhante à mansidão de Moisés, de Davi, de São Francisco

de Sales e de tantas outras almas escolhidas.

Excelência e vantagens da doçura

A mansidão e a humildade são irmãs, como a ira é irmã do orgulho. O

homem não pode ser manso se não é humilde, e se o sopro das paixões não se

acalma em seu coração. Somente quando os ventos cessam, está tranquilo o mar.

1º a mansidão faz-nos agradáveis a Deus e aos homens;

2º faz-nos imitar a Jesus Cristo, modelo de mansidão;

3º proporciona-nos a paz do coração: Discite a me, quia mitis er humilis

corde; et invenietis réquiem animabus vestris (Matth. XI, 29).

4º faz-nos aptos para receber a sabedoria e adquirir os bens celestiais,

segundo aquelas palavras do Rei Profeta: Diriget mansuetos in judicio:

decebit mites vias suas (Psalm. XXIV, 9).

Bem-aventurados os mansos e humildes, porque eles possuirão a terra, disse

Jesus Cristo: Beati mites, quoniam ipsi possidebunt terram (Matth. V, 4). Jesus

Cristo classifica essa virtude entre as oito bem-aventuranças, em seu sublime

Sermão da Montanha. Jesus Cristo não diz: Bem-aventurados os ricos, os homens

que possuem os prazeres e as honras; mas, sim, bem-aventurados os homens

dirigidos e guiados pela mansidão.

São João Clímaco expõe as razões que obrigaram a Jesus Cristo a dizer:

Bem-aventurados os que tem a mansidão. A doçura ou mansidão, diz o Santo,

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auxilia à obediência, dirige a sociedade religiosa, reprime a ira, acalma o furor, dá

nascimento à alegria, imita a Jesus Cristo, adorna aos leitos, aprisiona o Inferno, e

chega a ser uma defesa contra o pesar e a amargura. A alma plena de doçura oferece

ao Senhor um agradável lugar de descanso, ao passo que a alma turbulenta e

arrebatada é o ninho do demônio (Gradu XXV).

Os mansos, diz o Real Profeta, serão os herdeiros da terra, e regozijar-se-ão

na abundância e na paz: Mandueti hereditabunt terram, et delectabuntur in

multitudine pacis ( Psalm. XXXVI, 11).

Bem-aventurados os mansos, eles possuirão a terra, disse Jesus Cristo

(Matth. V, 4). Possuirão a terra, até mesmo esta em que vivemos; porque ninguém

inquieta aos homens de doçura e mansidão em suas possessões. Logo, o homem

manso está contente com tudo; tudo é riqueza para ele. Porém aquela terra

prometida é principalmente o Céu, a verdadeira terra dos vivos.

São Bernardo entende que a terra que os homens mansos hão de possuir, é o

corpo e o coração porque o homem que transborda mansidão possui a si mesmo

reinando sobre os movimentos sensuais, mandando sobre eles e fazendo-os

obedecer (Serm. in Fest. Omn. Sanct.).

A terra prometida aos homens plenos de mansidão, diz São Leão Magno, é a

ressurreição de seu corpo para a glória (Serm. in Fest. Omn. Sanct.). Os homens

mansos possuirão a terra, isto é, os corações mesmos dos homens da terra.

Meu filho, diz o sábio, cumpre teus afazeres com mansidão, e além de ser

louvado serás amados pelos homens: Filii, in mansuetudine opera tua perfice, et

super hominum gloriam diligeris (Eccli. III, 19).

Nada é penoso aos corações que praticam e amam a doçura, diz São Leão

Magno: Nihil asperum est mitibus (Serm. in Fest. Omn. Sanct.).

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A mansidão é o fundamento da paciência, o princípio, ou melhor, a mãe da

caridade; é a mais visível proba da prudência; procura o perdão; é o recurso dos

pecadores que querem mudar de vida, e o domicílio do Espírito Santo, diz São João

Clímaco (Gradu XXV).

Se nos manifestássemos mansos, diz São João Crisóstomo, seríamos

invencíveis; nenhuma injúria nos alcançaria: Se mansuetudinem exhiberemus,

essemus omnibus insuperabiles; nec ulla ad nos injuria pervenieret (Homil. LVIII).

A mansidão faz o coração dócil e disposto a receber a Lei de Deus. A doçura

é a serenidade, a tranquilidade e claridade do espírito; dá a sabedoria e sustenta o

bom agir.

Assim como a arca de Noé, diz Gerson, elevava-se à medida que cresciam as

águas, assim eleva-se a alma plena de mansidão à medida que aumentam as águas

das tribulações: Ut arca Noe, qui magis abundarent aquae diluvii, tanto altius

ferebatur, sic mansuetus animus, quo majores erunt tribulationis aque, tanto erit

celsior (Part. II Serm. de Omn. Sanct.).

O Senhor recolhe sob sua proteção os homens mansos, diz o Salmista:

Suscipiens mansuetos Dominus (Psalm. CXI, 6).

O homem doce, diz Sêneca, faz-se superior à injúria (Epist. IV).

Nada é tão poderoso como a mansidão, diz São João Crisóstomo. A água

apaga o fogo mais ardente; e uma palavra pronunciada com doçura, acalma o

espírito mais furioso. Encontramos dupla vantagem em pronunciá-la: por um lado,

damos prova de mansidão, e por outro, pomos fim à irritação de nosso irmão, e

livramos a sua alma do perigo de sucumbir. O fogo não pode apagar o fogo, nem a

ira acalma a ira; senão que a água é para o fogo o que a mansidão é para a cólera1.

1 Nihil mansuetudine violentius; nam, sicut rogum cum valde accenditur, aqua injectarestinguit; ita et animum caminho magis exardenscentem, verbum cum mansuetudine prolatum extinguit. Et duplex inde nobis lucrum accrescit, tum quod mansuetudinem declaramus, tum quod fratris indignationem cessare facimus, et mentem ejus a turbatione liberamus. Non potest ignis igne extingui; sic nec furor furure demulaeri: verum, quod igni est aqua, hoc irae est mansuetudo (Homil. de Mansuet.).

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Com a mansidão, elevam-se os homens aos primeiros postos; porque são

amados e julgados como capazes de governar, posto que sabem dominar suas

paixões.

O homem doce, diz São João Crisóstomo, é agradável e amável aos que

tratam consigo, e deleita inclusive aqueles que somente de nome o conhecem. A

ninguém achareis que, ouvindo falar de um homem pleno de mansidão, não cuide

de o ver e de aproximar-se dele, considerando como uma grande vantagem

conseguir sua amizade2.

A mansidão, acrescenta aquele Santo Doutor, põe nossa alma em uma

perpétua tranquilidade; e, como que no porto da paz. Tal virtude proporciona-nos

toda classe de consolação e de descanso. Qual é a coisa mais venturosa do que se

ver livre de uma guerra mortífera? Por mais que gozemos de uma completa paz no

exterior, se a tempestade, o tumulto e a sedição da ira despedaçam nossa alma, de

nenhuma utilidade terá para nós a paz exterior3.

Uma palavra doce multiplica os amigos e aplaca aos inimigos, diz o

Eclesiástico: Verbum Dulce multiplicat amicos, et mitigat inimicos (Eccli. VI 5). A

Escritura diz-nos que Deus santificou a Moisés por meio de sua mansidão e de sua

fé: In lenitate ipsius santum fecit illum (Eccli. XLV, 4).

O homem de mansidão, diz São João Crisóstomo, é feliz em si mesmo, e

presta grandes serviços aos demais, porém, o homem iracundo acha-se desgraçado,

e é o açoite dos outros: Mansuetus sibi ipsi est dulcis, et alii utilis; iracundus vero,

et sibi insuavis, et aliis damnosus (Homil. XXXV, in Gen.).

2 Mansuetus gratus et amabilis est videntibus; gatus etiam et his quibus nomine notus est. Neque facile illum invenies, qui audiens laudari hominem mansuetum, illum videre, et exosculari non desideret, et non habeat in aliqua lucri sui parte, ejus amicitia posse perfrui (Homil. de Mansuet.).3 Mansuetudo animam mostram in perpétua tranquillitate, et quase in portu constituite et omnis recreationis ad quietis nobis occasio est. Quid enim beatius quam intestino liberari bello? Nam, quamvis plurima pace externa fruamur, si intra nos irarum nascatur tempestas, tumultus et seditio, nihil externa pax proderit (Homil. XXXIV in Gen.).

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Que a discussão seja sem ira, diz Santo Ambrósio, a mansidão sem amargura,

a advertência sem aspereza, e a exortação sem ofensa: Disceptatio sine ira, suavitas

sine amaritudine sit, monitio sine asperitate, hortatio sine offensa (Offic.).

A aspereza, a dureza ou uma dominação demasiadamente imperiosa, não

previvem o pecado; este cessa com avisos plenos de doçura, no lugar de ameaças

terríveis. É preciso, numerosas vezes, agir com doçura ao dirigir-nos a culpáveis. A

severidade não deve ser empregada em particular senão no que diz respeito aos

obstinados e orgulhosos, e também deve estar mesclada de mansidão.

Se nos vemos obrigados a ameaçar, façamo-lo com sentimento, pondo ante

os olhos do culpável a vingança divina, a fim de que não tema a nós mesmos, mas a

Deus. A mansidão e a exortação caritativas atraem aos pecadores.

Os homens mansos alegram-se cada dia mais e mais no Senhor, diz Isaías:

Addent mites in Domino laetitiam (Isai. XXIX, 19).

Jesus Cristo é um modelo de mansidão

Aprendei de mim que sou manso, diz Jesus Cristo: Discite a me, quia mitis

sum (Matth. XI, 29).

Os profetas haviam-No representado como tendo a mansidão do cordeiro; e,

ao manifestá-Lo, São João Batista dizia: Eis aqui o Cordeiro de Deus... Ecce agnus

Dei (Johann. I, 29).

Para perpetuar eternamente a recordação da mansidão de Jesus Cristo,

quando a Igreja O apresenta aos fiéis antes da Comunhão, recorda que é o Cordeiro

de Deus (Ecce Agnus Dei...).

Falando Isaías da mansidão do Salvador do mundo, diz: Será conduzido à

morte sem resistência de sua parte, como a ovelha ao matadouro; e guardará

silêncio sem sequer abrir a boca diante de seus verdugos, como o cordeirinho que

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está mudo diante daquele que o tosquia: Sicut ovis ad occisionem docetur; et quase

agnus coram tondente se obmulescet, et non aperiet os suum (Isai. LIII, 7). Nesta

cruel tosquia não Lhe tiram a lã, mas a carne, o Sangue e a vida. Açoitaram-No,

cobriram-Lhe de profundas feridas, crucificaram-No; e, contudo, Ele não deu

nenhum gemido, não se queixava, nem resistia, mas sofria tudo no silêncio da

paciência e da mansidão supremas.

No tempo do Dilúvio, Deus apresentou-se como um leão, e fez desaparecer

da terra os pecadores; Jesus Cristo, no momento da Redenção, veio como um

Cordeiro, e justificou-os.

O dilúvio das águas varreu a raça humana, porém não apagou os pecados; o

dilúvio do Sangue do Cordeiro sem mancha apagou os pecados e devolveu a vida

aos homens. Este Cordeiro tão manso fez-nos semelhantes a Ele; todos os que

praticaram a paciência e perseveraram, todos os humildes, todos os mansos, todos

os mártires, encontraram sua força, sua paciência e sua mansidão no divino

Cordeiro.

Que força tão admirável resplandece neste Cordeiro tão pleno de mansidão!

Quanta glória conquistou? Venceu ao mundo:

1º não com o aço, senão com a cruz;

2º não por meio da espada, senão derramando seu Sangue;

3º não ferindo, mas sofrendo;

4º não exterminando, senão morrendo sem queixar-Se.

A vitória pertence à mansidão. E Isaías, depois de ter pintado a Jesus Cristo

tão humilde, tão paciente, tão manso, conclui dizendo que Ele alcançará a vitória,

que ganhará sua causa no tribunal de Deus, e que os gentios depositarão Nele sua

esperança (Isai. LIII, 11-12).

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Consideremos a mansidão de Jesus Cristo naquelas palavras de Isaías: Eis

aqui meu servo; eu estarei com Ele, meu escolhido, em quem se compraz a minha

alma; sobre Ele derramei meu Espírito; ele mostrará a justiça às nações. Não fará

acepção de pessoas; não gritará, nem se ouvirá sua voz nas praças; não quebrará a

cana rachada, nem apagará o pavio que ainda fumega (Isai. XLII, 1-3).

O divino Cordeiro é doce com os pecadores e os débeis: não apaga a mecha

que, todavia, ainda fumega, isto é, não aniquila aqueles homens que, plenos de

raiva, estão acesos de ira contra Ele. Ele sofre todas as injúrias, todos os ultrajes

sem incomodar-se e com uma confiança absoluta. Estais possuídos do espírito

maligno, dizem-Lhe. Quem pensa em dar-vos a morte? E responde sem comover-se:

Eu não estou possuído pelo demônio, senão que honro a meu Pai; e vós me

desonrastes a mim: Ego daemonium non habeo, sed honorifico Patrem meum, et vos

inhoronastis me (Johann. VIII, 49).

Se os judeus enfureceram-se porque Ele curou um enfermo no dia de sábado,

responde com mansidão a tanta hipocrisia, insolência, perversidade e furor. Vós vos

irritais contra Mim porque, para curar a um homem, fiz um milagre em dia de

sábado; porém, quem entre vós, se uma de suas ovelhas cai em um buraco no dia de

sábado, deixará de a retirar dali no mesmo instante? Entretanto, não vale mais um

homem que uma ovelha? (Matth. XII, 11-12).

Toda a vida de Jesus Cristo foi plena de doçura. Apresentaram-Lhe a mulher

adúltera, e perguntou-lhe: “– Ninguém te condenou?” “– Ninguém, Senhor” “–

Então, nem eu condenarei. Vai. E não voltes a pecar” – Nemo te condemnavit? –

Nemo, Domine. – Nec ego te condemnabo. Vade, et jam amplius noli peccare

(Johann. VIII, 10-11).

Ao princípio de sua Paixão, deixou-Se beijar por Judas. Amaldiçoaram-No, e

não amaldiçoou; prenderam-No, cuspiram-Lhe o rosto, caluniaram-No, foi objeto

de zombaria, e não Se queixou. Pedro negou-se a reconhecer-Lhe; e Ele olhou-o

com doçura, despertando o arrependimento em seu coração culpável. Acoitaram-

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No, foi condenado à morte e crucificado, e não proferiu nem uma queixa; antes,

pelo contrário, pediu graças para seus algozes, tendo sede da salvação deles. Ó

divina mansidão! Ah, com quanta razão podia dizer: Aprendei de mim, que sou a

mesma Mansidão: Discite a me, quia mitis sum (Matth. XI, 29).

Mansidão dos Santos

Santo Efrém tinha natural inclinação à ira; porém, venceu tão perfeitamente

esta paixão que a mansidão era uma das virtudes que mais lhe brilhavam, de tal

modo que o chamavam “o manso e o pacífico de Deus”. Jamais se ouviu dizer que

ele travasse contestações com alguém; a mansidão, as lágrimas e as orações eram as

armas que empregava contra os pecadores endurecidos (Surius, in ejus vita).

São Bernardo era todo mansidão ao tratar com seus religiosos. Seguia a

máxima, tantas vezes repetida em suas obras, de que um superior deve governar

mais como pai que mandar como dono. Se, porventura, devia repreender a algum

monge tíbio ou se lhe impunha alguma penitência, fazia-o com tanta ternura e

mansidão que claramente se via que a sua compaixão para com o culpável era

superior à confusão de sentimentos que experimentava o castigado, e até teria

desejado tomar parte naquelas penalidades. Em suas exortações comparava-se a

uma mãe; chamava a seus discípulos de seus olhos, suas entranhas e coração seu.

Nas ternas expansões de sua alma, parecia de destilava de seus lábios mel e doce

maná; e é indubitável que, se a mansidão em pessoa pudesse fazer homilias ou

escrever livros, expressar-se-ia como São Bernardo. O resultado de tal conduta foi o

seguinte: aqueles que, a princípio, foram vistos desanimados correram com santa

alegria ao caminho da perfeição, e o mosteiro de Claraval converteu-se em um

paraíso. A experiência ensinou àquele ilustre Doutor, segundo ele mesmo o declara,

que não se faz nenhum bem quando não se governa aos outros com espírito de

mansidão (Surius, in ejus vita).

Se é impossível agradar a Deus sem fé, como diz São Paulo aos Hebreus

(Heb. XI, 6), também é impossível conquistar o coração dos homens ou guiá-los

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sem mansidão. Obedecemos com gosto a um homem manso, antecipamo-nos a seus

desejos, e até vamos além daquilo que mandou.

A força de vencer-se a si mesm, São Sisoés, anacoreta no Egito, adquiriu

uma mansidão que nada era capaz de alterar. Seu zelo contra o vício não lhe

acarretava amarguras. Não lhe surpreendiam as faltas de seus irmãos; e, em vez de

lançá-las no rosto com indignação, ajudava-lhes a remediá-las com uma bondade e

doçura admiráveis (Vit. Patr.).

Santo Elzeário4 viu-se obrigado, depois da morte de seu pai, a passar ao reino

de Nápoles para tomar posse do condado de Arian; porém, o povo que favorecia à

casa de Aragon contra os franceses, negou-se a reconhecê-lo. Somente com doçura

e paciência resistiu aos rebeldes durante três anos, apesar das razões que alegavam

seus amigos para obrigar-lhe a fazer justiça. O príncipe de Tarento, seu parente,

disse-lhe um dia: Dai-me o encargo de castigar aos rebeldes; farei enforcar a alguns,

e vereis como prontamente se submetem os demais; se temos de ser cordeiros com

os bons, devemos também ser leões com os maus; chegou a hora de castigar

tamanha insolência. O quê?, contestou Santo Elzeário, quereis que meu governo

comece com matanças? Eu conseguirei fazer-me senhor dos rebeldes com meus

bons serviços. Não há glória em que um leão despedace aos cordeiros. Grandioso é

ver como um cordeiro triunfa de um leão. E eu espero que, com o auxílio de Deus,

prontamente vereis este milagre. Os sucessos não tardaram em dar cumprimento à

predição. Os de Arian, envergonhados com sua rebelião, submeteram-se

voluntariamente, convidaram ao santo para tomar posse do condado; e, desde então,

amaram-no e honraram-no sempre como a um bom pai. O mesmo Elzeário

manifestou a causa da admirável mansidão com que sofria as injúrias e afrontas.

Quando recebeu alguma afronta, dizia: “Ó, apenas sinto que se levanta em meu

coração algum movimento de impaciência, dirijo, logo, os meus pensamentos até

Jesus Cristo Crucificado, e digo para mim mesmo: Pode se comparar aquilo que

sofro com aquilo que Jesus Cristo dignou-se sofrer por mim?”.

4 Santo Elzeário de Sabrano (*1285 em Apt; + 27.09.1323 em Paris) (Nota do tradutor).

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A conduta deste Santo não era, portanto, uma falta de valor, mas agia assim

por mansidão e grandeza de alma, e por uma generosidade verdadeiramente cristã

(Giodesc., in ejus vita)

Apesar de suas austeridades, Santo Odilon, sexto abade de Cluny, observava

para com os demais um comportamento plenos de bondade e mansidão.

Ordinariamente dizia que, se tivesse que optar entre extremos, preferiria pecar por

excesso de mansidão que por excesso de severidade (Surius, in ejus vita).

Por sua inalterável doçura quando provado em todas as contradições, São

Francisco de Sales ganhava eficazmente todos os corações. Nem todos sabem talvez

os rudes combates que lhe custaram para adquirir esta virtude. Sabemos, por ele

mesmo, que era naturalmente vivo e inclinado à ira; e, em seus escritos, nota-se

certo fogo, certa impetuosidade que não dão lugar a colocar o fato em dúvida.

Desde sua juventude, violentou-se extraordinariamente para reprimir os ímpetos de

sua natureza; e, a força de estudar na escola de um Deus manso e humilde de

Coração, conseguiu estabelecer sobre a ruína de sua paixão dominante o reino da

mansidão, que constitui seu caráter distintivo. Esta virtude principalmente foi a qual

abriu os olhos aos mais obstinados calvinistas, e arrancou setenta e duas mil almas

do seio da heresia.

Um dia, em uma conferência com Monsenhor Camus, bispo de Belley,

pronunciou o mesmo Santo estas notáveis palavras sobre a correção fraternal:

Sempre deve ser caritativa a verdade; um zelo amargo somente produz

males; as reprimendas são um alimento que dificilmente se digere; é preciso

cozinhar também por meio do ardente fogo da caridade, para que percam

toda a sua aspereza. De outra sorte, parecer-se-ão à uma fruta não muito

madura, que dá cólicas. A mansidão não busca seus interesses, senão

unicamente a glória de Deus; jamais a amargura e a dureza proveniente da

paixão, da vaidade e do orgulho. Um bom remédio, quando aplicado

inoportunamente, converte-se em veneno. Sempre é melhor um silêncio

judicioso que uma verdade não caritativa.

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Aquele grande Santo tinha um talento admirável para fazer-se dono de seus

inimigos: consistia em responder com mansidão aos insultos, e com benefícios aos

ultrajes.

A mansidão era sua virtude dominante. Um dia, dizia que tinha empregado

três anos em estudá-la na escola de Jesus, e que seu coração não podia satisfazer-se

com isso. Se aquele grande Santo, que era a mesma mansidão, acreditava estar tão

desprovido desta virtude, que diremos, então, daqueles cujo coração está tão cheio

de amargura, e cujos modos e palavras revelam a perturbação e a ira?

Estou pleno de negócios, dizia aquele grande bispo; todas estas pessoas que

acodem, umas após outras, são filhos que se dirigem ao seio de seu pai. Uma

galinha jamais se cansa quando seus pintinhos chegam juntos debaixo de suas asas;

pelo contrário, procura estendê-las o mais que pode, a fim de cobri-los a todos.

Parece-me que meu coração dilata-se à medida que cresce o número dessas boas

pessoas. O remédio mais eficaz que conheço contra as súbitas emoções de

impaciência, é um silêncio doce e sem mel. Por poucas palavras que se digam,

interessa-se o amor próprio, e escapam-se coisas que amargam o coração por vinte e

quatro horas. Quando não se diz uma palavra, sorrindo de boa vontade, passa a

tempestade, afugenta-se a indiscrição e a ira, e é possível gozar uma alegria pura e

duradoura. Quem quer que possua a mansidão cristã tem um coração terno para

todo o mundo; está inclinado a perdoar e a desculpar as fragilidades alheias.

Manifesta a bondade de seu coração com uma doce afabilidade que influi sobre suas

palavras e ações, e o faz encontrar-se todo agradável; abstém-se de todo discurso

seco, brusco e imperioso. Sempre revela em seu rosto uma amável serenidade, e não

se parece em nada àqueles que, lançando olhares furiosos, não sabem mais que

recusar, ou se concedem, o fazem com tão má vontade, que perdem todo o mérito

do benefício.

Tendo-lhe algumas pessoas vituperado, um dia, por sua indulgência para

com os pecadores, respondeu-lhe: Se houvesse algo melhor que a mansidão, Deus

no-lo haveria ensinado; porém, as duas coisas que Ele mais nos encarregou de fazer

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é que tenhamos mansidão e sejamos humildes de coração. Quereis me impedir de

observar o mandamento de Deus e de imitar com todas as minhas forças a virtude

de que Ele nos deu exemplo e que tanto e tanto aprecia? Haveríamos de pretender

saber mais que Deus?

Quando os apóstatas e os mais abandonados pecadores recorriam a Ele,

abria-lhes seu Coração com indizível ternura e uma mansidão celestial. Recebia-os

como aquele pai do Evangelho recebeu a seu filho pródigo. Vinde, dizia-lhes, filhos

queridos; vinde a que eu vos abrace e vos estreite em meu coração: Deus e eu vos

assistiremos. Não vos peço mais que uma coisa, e é que não vos desespereis;

encarrego-me de tudo o mais. E mirava-lhes com olhos plenos de doçura que

revelavam a sinceridade de seus sentimentos; abria-lhes sua bolsa, seu coração e

todas as suas entranhas. Aos que se escandalizavam deste proceder e faziam-lhe

tomar consciência de que com a impunidade alentava a muitos no pecado, o Santo

respondia-lhes: Não vedes que são minhas ovelhas? Havendo Nosso Senhor Jesus

Cristo dado por elas todo o seu Sangue, como poderia eu negar-lhes minhas

lágrimas? Estes lobos converter-se-ão em cordeiros, e dias virão em que serão mais

santos que todos nós. Se Saulo houvesse sido rejeitado, jamais teríamos a São Paulo

(Guodesc., in ejus vita).

Lede a vida dos Santos, e achareis em todos eles uma doçura, uma mansidão

admiráveis; porque todos seguiram as pegadas de Jesus Cristo, todos tomaram por

regra de sua conduta aquelas palavras do Salvador: Aprendi de mim, que sou manso

e humilde de coração, e achareis o repouso para vossas almas: Discite a me, quia

mitis sum et humilis corde, et invenietis réquiem animabus vestris (Matth. XI, 29). É

muito certo que sem o cumprimento e a prática destas sublimes virtudes, a saber: a

mansidão e a humildade, é impossível ganhar a salvação e chegar a ser santo.

Meios para adquirir e praticar a mansidão

Para adquirir a mansidão, é preciso:

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1º ser humilde. Jamais o orgulhoso conheceu a mansidão;

2º meditar sobre a dignidade, a formosura, a bondade da mansidão;

3º não dizer nem fazer nada quando nos sintamos agitados;

4º sobrepor-se às injurias;

5º deixar a Deus o cuidado de vingar-nos. A mim me cabe toda a vingança,

diz o Senhor; Eu darei a cada um o merecido segundo suas obras: Mihi

vindica; ego retribuam (Rom. XII, 19).

6º Desprender-se de tudo, e unir-se tão somente a Deus; e

7º propor-se frequentemente os modelos de Jesus Cristo e dos Santos.

Esforcemo-nos em adquirir o espírito de mansidão, que é o verdadeiro

espírito do Cristianismo. Modifique-se nosso caráter, e apague-se o nosso orgulho

pela unção do Espírito Santo. Não levantemos jamais a voz com dureza e fatuidade,

porque daríamos provas de ser débeis; a força consiste em expor tranquilamente os

motivos que nos impulsionam a agir, e quase sempre nos falta esta força quando

recorremos à pendência e á altivez.

É preciso falar com espírito de mansidão junto àqueles contra quem a

verdade nos fornece armas. Assim, sem disputar e sem perturbar-nos, faremos com

que reconheçam visivelmente sua insensatez; e, assim, também seremos

verdadeiros cristãos e imitadores de Jesus Cristo.

Servi a Deus com mansidão; sede cristãos perfeitos; e, por conseguinte,

humildes cordeiros. Não murmureis, não façais ruídos; não vos deixeis arrastar pelo

espírito de contradição. E manifestai constantemente uma imperturbável doçura.

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Tende mansidão: ela gera a paciência. Tende paciência: dela nasce a

mansidão. Estas duas virtudes constituem o caráter próprio da piedade cristã e os

frutos da unção de Jesus Cristo derramada em nós.