27 acrobacias(2014)

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27 acrobacias sobre (quase) a mesma coisaigualdade de género contada e ilustrada

Esdime - Agência para o Desenvolvimento Local no Alentejo SudoesteJunho de 2014

Concepção Gráfica | O Lado EsquerdoTiragem | 1000 exemplaresImpressão | Gráfica Almondina - Torres NovasDepósito Legal |

edição financiada pelo Programa Operacional Potencial Humanoeixo 7 - tipologia 7.3 | apoio técnico e financeiro às ONG’s

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Acrobacias — Alice BritoPrefácio — Carlos Castilho Pais

A identidade de Eva — Vítor Encarnação e Joaquim Rosa

Devia ter nascido homem — Teresa Barão e Cygny

Laura — Sofia Catarino

A Anita manda nos homens — Frederico Pinto e Rodrigo Saias

Vasos comunicantes — Natàlia Tost e Pep Gavaldà

Foste minha — Lúcia Lima e Henrique Figo

Bigodes — Sandra Serra e António Santos

Fim da linhagem — Rui Ângelo Araújo e Helena Lousinha

Um pensar alternativo — Cristina Santos e Patrícia Alves

Quem quer casar com a Maria Alice? — Mara Alves e Eric Cuadrado

Cassandra — Olinda Gil e Cláudia Banza

Amores quase perfeitos — Rita Carvalho e Nuno Carvalho

Relatos da loucura normal — Maria Filomena Fernando e Vanda Palma

Uma cor — António Coelho e João Lourenço

Biografias acrobáticas

ÍNDICE

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xerazade triunfou pela palavra. Contou histórias. Utilizou o saber e a experiência. Assim se salvou da morte certa.

As palavras são armas possantes na luta das mulheres. É nas palavras que o pensamento se constrói.

Por isso, um livro de contos sobre as mulheres, sobre a vida das mulheres, é de saudar. Saudar pela von-tade de escrever, saudar pela teimosia, saudar pela oportunidade.

Porque este é um tempo de quase agonia. É um tempo em que não se é, ou não se pode ser.

O direito a SER foi desde sempre uma reivindicação feminista. Tão simples e, no entanto, quase inalcan-çável.

Todos os dias os media transmitem uma miragem de direitos conquistados em que subliminarmente nos sugerem que já não há necessidade de lutar seja pelo que for ao nível das liberdades. Estão todas alcançadas. A mulher já vota. Vai à escola, à universidade, entra de rompante em todas as profissões. Tem os mesmos direitos constitucionalmente consagrados. As famílias dos anúncios que ao pequeno-almoço comem cereais são todas democráticas. Felizes. Que mais querem? As mulheres já não usam espartilhos. A modernidade chegou e com ela trouxe uma saquilada de libertações. O que é que falta?

E enquanto se trocam alianças em altares adornados de flores e se sussurram juras de amor eterno, a violência doméstica prossegue implacável; as diferenças salariais ainda não são vistas como um escânda-lo, mas como coisas que sucedem, que vão sucedendo, como a chuva que cai ou a geada que queima; o acesso ao topo, à liderança, à gestão, à administração da sociedade, permanece inatingível para a maioria das mulheres; o trabalho doméstico cola-se à pele das mãos femininas como se fosse uma luva invisível e coerciva.

Ninguém nasce a gostar de cor-de-rosa. Ninguém nasce a gostar de bonecas ou carrinhos. Se os meni-nos vissem os pais a mudar fraldas como natural tarefa sua, gostariam também de bonecas; se os meninos vissem o pai na cozinha a fazer o jantar depois de um dia de trabalho, gostariam de tachinhos e panelas em miniatura. Os pequenos actos da vida quotidiana são interiorizados pelos dois fundamentais mecanis-mos de socialização: identificação e imitação. O género constrói-se. Por isso mesmo também se descons-trói.

ACROBACIAS — Alice Brito

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Ao feminismo é necessário desmanchar malha a malha, decompor elemento por elemento, decan-tar gota a gota o grande vaso de vinho da ética sexista.

Trabalho trabalhoso, este labor que mal pára vai para trás, como que se perde, que estrada com tantas voltas, tanta rampa, que cansaço, tanta língua para falar, químicas a desvendar os segredos dos grandes antí-dotos para os grandes venenos. Uma humanidade envenenada por lógicas que avariam a vida.

A História durante séculos esqueceu-se das mulheres. Foi precisa muita gritaria, muito aceno de mãos, muito esperneio, para que ela tropeçasse em nós. As mulheres mordiam-lhe as canelas, puxavam-lhe as mangas, e ela nem ai nem ui. Olhava cega para aquele mar de gente, a maior parte das vezes incomoda-da e altiva, impenetrável, e prosseguia com o seu séquito macho em gabarolices de exclusão. Desatendia pedidos, às vezes de uma justiça tão evidente, que até dá nervos olhar para trás. O tempo de hoje abriu algumas portas.

Os contos que aqui se revelam, com as suas autoras e autores, acrobatas desta aventura, também abrem portas. São pedaços de vida, por vezes de vidas despedaçadas.

À frente dos nossos olhos, como numa passerelle, desfilam Evas, Madalenas, Lauras, Anitas, Clarinhas, nomes gritados, Josélias, produtos de muitas linhagens, Anas, Alices, Cassandras, amores quase perfeitos, loucuras normais, invenções de cor.

As cores também se inventam. Prova disso são os magníficos desenhos que acompanham cada história, como um som a anunciar o caminho.

Caminhemos, pois. Caminhemos neste percurso difícil, tão difícil quanto necessário.

Porque de cada vez que a luta das mulheres afrouxa, descansa, dá tréguas, o que até aqui se alcan-çou não fica paradinho no mesmo sítio. Anda para trás. Andar para trás é andar em direcção à barbárie. É tomar a rota de todos os desesperos. É regressão em estado quimicamente puro. É o progresso da incivilidade, é a negação da natural sede de justiça, essa candeia, esse motor que faz andar a História. E a História não perdoa.

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foi com todo o gosto que recebi o convite para prefaciar esta antologia de textos. É com o mesmo gosto que escrevo estas palavras. Duas coordenadas essenciais orientam aquilo que escrevo.

A primeira: devo cingir-me àquilo que esta antologia de facto é. É esse o caminho que deve seguir qualquer autor de prefácios. A segunda coordenada foge, propositadamente, à primeira. O autor insere uma opinião sobre a temática dos textos antologiados, revela-se, também, no texto do prefácio. Como falar da igualdade do género sem falar de si?

Pensei, inicialmente, dar um título a este prefácio, escolhendo uma das muitas frases que os textos oferecem ao leitor, mas desisti da ideia. A escolha averiguava-se ser muito complicada e injusta. Muitas eram as frases e todas elas mereceriam o destaque do título. «Somos iguais. Mas não fazemos o mesmo género.», podia ser uma dessas frases, mas também podia ser «Não se educa ninguém a bater-lhe, que parvoíce», que encontramos na reflexão da personagem Rafael no texto que tem por título ‘Um pensar alternativo’.

Qualquer destas frases teria a vantagem de nos introduzir de imediato na temática dos textos antologiados. Mas o leitor atento passará da capa da obra ao índice, num movimento que se aconselha como modo de saborear tão belos títulos, para além da curiosidade compreensível em querer saber quem escreve o quê. A identidade ‘mulher’ está evidente em títulos como ‘A identidade de Eva’, ‘Devia ter nascido homem’, ‘Laura’, ‘Quem quer casar com a Maria Alice?’, ‘Cassandra’. Por sua vez, a identidade ‘homem’ pode encontrar-se em ‘A Anita manda nos homens’, ‘Foste minha’, ‘Um pensar alternativo’, ‘Relatos da loucura normal’.

Os textos escolheram a escrita em prosa, exceptuando-se o primeiro, intitulado ‘A identidade de Eva’, que preferiu o verso livre, sem, contudo, ser alheio à narrativa. É, pois, pela narrativa que a temática do género se enuncia aqui, nas suas vertentes sociais, que implicam a mulher, mas também o homem. Encontramos quase tudo o que nos interroga e aflige. Estão cá a violência verbal vivida entre as quatro paredes do casal, o divórcio mal suportado por uma das partes, o bullying (também homofóbico), tantas outras histórias de vida a que não podemos senão chamar de brutais. E, se nestas narrativas domina sobretudo uma visão do homem alheio à igualdade do género, outras há em que a diferença da mulher ou do homem se assume enquanto protagonista: por um espírito ou modo ousado de viver, que incomoda ou questiona os usos e o quotidiano.

PREFÁCIO — Carlos Castilho Pais

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Devo agora esclarecer aquilo a que mais acima referi como ‘identidade homem’ e ‘identidade mulher’. Desde logo, para assinalar que não existe da minha parte a vontade de consignar uma identidade ao género. Tratou-se, acima de tudo, de um modo de nomear o género que estava implicado no texto. Nos problemas do género, homem e mulher estão implicados, e sabemos que é a mulher quem mais sofre. Essa é uma verdade incontestável, como, para mim, é verdade também que é a identidade dita masculina que está na origem de tanto mal. Não li estas narrativas sob o prisma da identidade, nem masculina, nem feminina. Deixei-me conduzir nestas histórias mais pelo que diz o outro do que pela afirmação do mesmo. Parece-me significativa de toda a visão que impregna a obra a afirmação que o leitor encontrará na história da ‘Anita manda nos homens’: «Queremos preservar as diferenças que a natureza nos atribui, mas nunca aceitaremos um mundo em que um género comanda e o outro obedece».

Li nestes textos uma vontade de literatura. Somos convocados para entrar no real, sim, mas, como acontece na literatura, através do singular. A personagem é a figura catalisadora de quase todos estes textos, sendo a descrição, como convém em textos curtos, de ambientes e de contextos, utilizada com parcimónia. É esta uma opção que nos permite encarar a questão e os problemas do género enquanto território do múltiplo. Não é em nome de uma identidade (abstracta ou dogmática) que a personagem vive e actua, mas em função de uma singularidade que se reivindica como direito de existir.

Textos há nesta antologia em que o homem e a mulher são confrontados nos seus papéis sociais, que estão imbuídos, como sabemos, de uma pretensa identidade: masculinidade ou feminilidade. E a tensão, ou, em casos mais fortes o drama, acontece. Também isso não é estranho ao olhar do conjunto dos textos desta antologia. Pode apresentar-se, como exemplo, qualquer dos casos descritos em ‘Relatos da loucura normal’. Porém, significativo é o facto de serem apresentados na sua realidade nua e crua, sem o acompanhamento de afirmação moral de qualquer espécie.

O tópico da pertença também está retratado nas histórias desta obra, destacando-se do conjunto o título ‘Foste minha’. Corolário da identidade, a pertença sobre o outro é fruto de uma conjugação do ter com o ser, na qual, pela ruptura do ter, o ser fica desamparado e ferido na sua identidade. A violência e a tragédia acontecem, únicas alternativas da afirmação de um ponto de vista. O tópico destaca-se no texto mencionado, mas ele está presente, de forma mais ou menos evidente, noutros textos.

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Deve saudar-se a ideia de reunir estes textos, assim como deve saudar-se a sua publicação, esmerada e ilustrada de forma primorosa. O livro surge-nos nesta obra como artefacto único, resistente aos novos tempos e pelo qual ansiamos, pelo seu dizer deslumbrante, oportunidade de diálogo e de aprendizagem.

E é sobre a aprendizagem que termino estas minhas palavras introdutórias, para referir quão útil será a leitura desta obra. A igualdade de género não se decreta. Antes implica a reflexão e o diálogo dentro de nós, o respeito pelo outro, pela sua cultura e formas de estar. É um apelo ao íntimo de cada nós aquilo que aqui está em jogo e que a leitura nos proporciona. É o nós que necessita de transformação. Assim esta obra chegue às escolas, aos nossos jovens, às nossas crianças, a todos!

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A identidade de Eva

Vítor Encarnação

Joaquim Rosa

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enquanto Adão dormia profundamente,podia ter sido da metade do coração,

da pele de um braço terno, da luz dos olhos, da carne dos lábios,mas foi de um osso inestético que a mulher nasceu já feitapreparada para o encaixe do homem.

E quando o homem acordou, aparentemente imune à dor e ao sangue de lhe terem estropiado o flanco,logo despertou uma serpente no seu tronco, e Eva, que devido à sua tenra idade da abstinência ou da líbido ainda nada percebia, não a repeliu, pelo contrário, pensando pela sua própria cabeça,agiu com a independênciade achar que o corpo lhe pertencia na totalidade,incluindo a carne,tomou-a em si, caiu em tentação e transgrediu.

Ainda a palavra não constava como doutrina irrefutávele já Eva destruía o primeiro dogma de que o homem é a cabeça da mulher.

E foi assim, com a fácil desculpabilização de Adão,apesar de haver uma forte suspeita de que o tronco e principalmente a serpente lhe pertenciam, que segundo as leis bíblicas a mulher inaugurou o pecado edeu cabo de uma casa de família,ou seja, e porque só havia essa, de toda a humanidade.

Ide e multiplicai-vos, sede santas, piedosas, honradas e belas.Casai, louvai o vosso homeme só assim podereis comer o fruto proibido.

A dor do parto é o grito eterno da culpa.

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A semente estava lançada ao chão da existência dos géneros. A imagem dos doze apóstolos não podia, obviamente, incluirqualquer pessoa que tivesse nascido de uma costela,(ainda se fosse de metade do coração, ou da pele de um braço terno, ou da luz dos olhos, ou da carne dos lábios)e, principalmente, tivesse com as suas curvas voluptuosas acabado com o paraíso no tempo que leva a trincar uma maçã.

Os homens afirmaram-se em pai, filho e espirito santo,As mulheres em mãe, filha e esposa.

Pater familias.O poder patriarcal, o pensamento patriarcal, a sociedade patriarcal, a opressão patriarcal, o sistema patriarcal E as mulheres invisíveis,não-sujeitos, passivas, pacientes, exemplos de moral e de fésombras da luz dos pais,depois sombras da luz dos maridos, recetoras de fecundação,vestais, castas, recalcadasúteros da descendência,depositárias dos valores privados, sepultadas na sua condição feminina.

As mulheres foram uma ausência.

E quando saíam deviam usar o cabelo presoporque os cabelos soltos eram erotismo, faziam soltar serpentes dos troncos dos homens,e por isso só a prostitutas usavam o cabelo solto, e por falar em prostitutas, já quase nos esquecíamos que afinalhouve uma coisa em que as mulheres foram pioneiras, contam os homens que foram elas as inventoras da profissão mais antiga do mundo.Talvez até tenha sido logo Eva, porque se ofereceu ao primeiro que encontrou.

A História sempre foi contada por homens.A História dos tempos é pouco mais do que a história dos homens.A História das mulheres quase não tem tempo e quase não tem espaço e por isso não grafou a memória no feminino. A História fez com que as mulheres fossem mais lentas do que o tempo.Cristalizou-as. Manteve-as presas nos quartos, nas cozinhas, nos mosteiros, nos corpetes, no silêncio,no casamento, na maternidade. A História não escreveu bem as mulheres,fez delas camas e mesas de cozinha e ventres e tetas de leite e viúvas e lavadoras de roupa, de loiça e de mágoas.Quanto muito fez notas de rodapé estabelecendo relações entre o feminino,o sexo, a luxúria, o mal e a morte.

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Presa ao pensamento de Galeno, a mulher não era um género,era apenas um osso inestético rodeado de carne pecadora,pingando um desejo patológico.Eterna Lúcifer vestida de folhas de videira,de túnicas, de vestidos, de saias, de calças.

E os homens perguntam, mas afinal o que querem as mulheres?Essa perplexidade,esse enigma, esse continente negro, esse ser encurtado.Que mal faziam o recalcamento, as aspirações moribundas,os desejos secos como desertos,a circunscrição ao mundo doméstico, a mutilação genital, a fantasia morta,a monotonia?Porquê o histerismo,as atitudes desproporcionadas,as exigências de mudança em torno de uma não-questão?Porquê deitar a perder uma identidadeafirmada nas rugas do tempo,no equilíbrio de toda a existência, na perfeita tradição?Que sentido faz a emancipação quando as mulherestêm um colo para os filhos descansarem e um ventre para os maridos gozarem?Porquê mudar o mundo?

E as mulheres respondem que não queremser apenas a outra parte onde o homem encaixa o seu tronco e a sua serpente,e querem finalmente nascer da carne dos lábios, ou de metade do coração,e querem tomar posse do seu corpo,construir-se culturalmente,evoluir no tempo e no espaço,assumir o centro,desorganizar o ordem hierárquica do mundo,divorciar, divergir,participar, inverter, subverter,persistir, integrar, pluralizar,ser para lá da biologia, da anatomia.

Iguais de género.

Para poderem ser alfa e ómega dos seus próprios destinos.

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Devia ter nascido homem

Teresa Barão

Cygny

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madalena é o protótipo da menina de bem, assim que acabou a escola começou a aprender costura, trabal-hou com afinco e conseguiu amealhar para comprar a própria máquina de costura, onde cheia de entu-

siasmo faz o seu enxoval, o casamento não tarda nada e ainda lhe falta muita coisa, Artur é um rapaz trabalhador, vai todos os dias para o campo, dará um bom marido!

O pai de Madalena é um homem rude sempre pronto a discutir, nunca tem uma palavra doce para dizer, mas a mãe garante-lhe que é um bom homem, nunca lhe faltou nada naquela casa, e pronto, todos os homens são assim, Madalena sonha que o Artur é diferente, que lhe compra flores e a leva ao cinema.

O vestido de noiva está pronto! Um imenso manto branco com uma cauda bem comprida, está todo bordado com pequenos brilhantes, foi colocado num dos guarda-vestidos mais reservados da casa, a rapariga oculta-o de toda a gente, agora precisa duma coisa azul, duma coisa velha e de uma coisa emprestada, a coisa velha será o véu da mãe, a coisa emprestada são as luvas da prima Leonor que casou no verão passado, a coisa azul serão as flores, tem tudo pensado, na cabeça dela tudo está pronto, está sempre a sorrir, as amigas oferecem-lhe pequenas prendas para a casa, na próxima semana o enxoval será exposto, sente um orgulho tão grande!

O mês passa a correr e Madalena não sabe o que mais fazer, a madrinha prepara-lhe a comida, a tia que mora na cidade há muitos anos pinta-lhe o rosto com uma maquilhagem suave, as primas andam todas numa correria pela casa, a mais velha ajuda-a a vestir o vestido, uma cabeleireira lá da terra vai penteá-la lá a casa, as vizinhas há muito tempo que estão à porta para vê-la sair de casa.

O momento é solene, Madalena sobe ao altar pelo braço do pai, ao princípio parecem meio descoordenados, mas no fim acertam o passo, a mãe chora, chora muito, com soluços audíveis, no meio da comoção ouve-se a se-nhora dizer :

– Vai-se a alegria da minha casa!

O casamento decorre sem percalços, Madalena está cansada, sorri apoiada no ombro do marido, no outro dia acorda cedo, prepara o pequeno-almoço de Artur que vai trabalhar, arruma a casa num instante, faz a cama a correr

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e vai para a costura sempre em passo de marcha, as outras costureiras riem-se dela, mas Madalena sorri tranquila, dobra-se sobre a máquina e começa a coser, pouco depois começa a cantar sempre num tom baixinho e das mãos dela saem peças perfeitas, à hora do almoço corre apressada a casa, aquece a comida, coloca-a no prato do marido, enche-lhe o copo de vinho, descasca-lhe e corta-lhe a fruta, ele chega, dá-lhe um beijo rápido e começa a comer, ela conta-lhe coisas engraçadas que lhe aconteceram nessa manhã.

– Por favor cala-te, estou demasiado cansado! Deixa-me comer sossegado!

Madalena engole as lágrimas, levanta a mesa e lava a louça ruidosamente, Artur já partiu. A tarde passa lenta e sem brilho, as colegas estranham não a ouvir cantar, no regresso a casa Madalena encontra a casa vazia, prepara uma refeição para o marido que teima em não vir, espera por ele sem jantar, Artur vem tarde e visivelmente alcoolizado segura-a pela cintura e começa a cantar, aos poucos os dias tornam-se todos iguais e Madalena começa a ter sau-dades do namorado, o marido não se parece em nada com ele.

Descobriu que estava grávida, sorri cheia de esperança, Artur por uma razão inexplicável aproxima-se muito dela, parece muito preocupado, acompanha-a com desvelo protector, os meses correm rápidos e a barriga grande de Madalena dá muito que falar, dizem as vizinhas que será um rapaz, diz a mãe que será uma rapariga, Artur exige um menino, a sogra reclama uma neta, Madalena sorri em jeito de gozo diz que será as duas coisas.

Na hora do parto a casa está cheia, os homens esperam impacientes na sala, as mulheres rezam uma eterna ladainha na cozinha, Madalena está com a mãe e a parteira, está transpirada e sem força, a mãe incentiva-a e ela num derradeiro esforço expulsa uma menina pequenina que chora como uma condenada, grita como quem está zangada e Madalena sorri exausta, a parteira limpa a menina com a ajuda da avó, na cozinha as mulheres rejubilam, entram na sala e anunciam que é uma menina, Artur responde de mau humor:

– Raio de mulher que nem para parir serve!

De repente Madalena entra numa nova agonia, as dores parecem agora mais fortes, sente como que se um gume aguçado lhe rasgasse as entranhas, a parteira aproxima-se e diz-lhe:

– Querida tens que ter muita força, vem aí outra criança, mas esta está sentada.

Três horas depois de passar por uma lenta agonia nasce um rapazinho, vem roxo e mirrado, o seu choro é seme-lhante a um miado de um gatinho débil, Madalena apesar de exausta toma as dores do filho e numa paixão sem fim olha para aquele pequeno ser com determinação de leoa, o menino acaba por recuperar e por volta dos dois anos é igualzinho à irmã, a única coisa que os torna diferentes são as roupas, a menina de nome Margarida veste sempre

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vestidos cor-de-rosa, feitos pela mãe, o rapaz Artur como o pai usa calçõezinhos azuis e camisa branca sempre bem vincada e passada a ferro com mestria, o pai parece ter perdido o encanto pelas crianças, é a mãe que trata de todos os assuntos que lhes digam respeito, o pai trabalha muito e vem para casa sempre tarde, na maioria das vezes embriagado.

Por volta dos cinco anos de casamento Artur decide emigrar, acha que trabalha demasiado e não tem o proveito económico equivalente, reclama da mulher não fazer nada desde que os meninos nasceram, sem grandes expli-cações parte para a Suíça, Madalena fica sozinha em casa com a ameaça do marido a fazer-lhe eco na cabeça:

– Aí de ti se não fizeres do meu filho um homem!

No princípio Artur manda religiosamente grande parte do ordenado para casa e Madalena poupa o mais que pode para conseguir amealhar dinheiro para os meninos e para um futuro mais longínquo, sonha com uma velhice cheia de netos, é muito complacente com o filho, com Margarida é mais severa, apesar da tenra idade da menina a mãe ensina-lhe a executar pequenas tarefas domésticas, o rapaz brinca pela casa sem qualquer obrigação, quando o menino tenta participar nas tarefas a mãe sacode-o com uma palmada amigável.

– Não filho, isto são coisas só para senhoras, os rapazes brincam com bolas e jogam ao pião, Margarida vai lavar a louça! Ajuda-me filha!

Artur aos poucos começa a relaxar nas obrigações económicas do lar e manda cada vez menos dinheiro, ha-vendo mesmo meses em que pura e simplesmente não manda nada, Madalena escreve-lhe cartas apaixonadas que ficam sem resposta, as crianças deixaram de perguntar pelo pai, é Madalena que está sempre a recordá-lo, na memória dos meninos o pai é apenas uma sombra que partiu, nem sabem bem para onde.

No verão antes de os meninos entrarem na escola, Artur vem passar as férias a casa, chega de surpresa, a casa que deixou parece-lhe agora pequena e sem graça, Madalena em nada se parece com as mulheres que conheceu fora do lar e sem cerimónias repreende tudo o que a mulher faz, não tem para ela um gesto de carinho ou ternura, as crianças são tudo para ele, passeia com elas no final de tarde e de manhãzinha, acorda-as com um ar feliz, brinca deslumbrado. É véspera de voltar a partir, Madalena sente algum alívio, tem vergonha de admitir mas a verdade é que está cansada do marido, Artur chama-a à cozinha.

– Madalena! Temos de conversar!

Ela senta-se com um ar submisso, a cara está marcada por olheiras profundas, não sabe bem o que esperar do marido.

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– Madalena, tenho outra mulher, não venho mais vez nenhuma, vou ficar sempre na Suíça.

– E os meninos?

– Duas crianças são demais para ti, vou levar o Artur comigo, deixo-te a Margarida.

Madalena salta como que impelida por uma mola, enfrenta o marido com raiva na voz:

– Nem penses que me tiras o meu filho, é mais fácil matar-me!

– Ouve Madalena, eu não posso sustentar duas casas, se eu levar o menino é tudo mais fácil, tenta com-preender.

– Eu compreendo muito bem, embora não pareça, eu nunca fui burra! Destas mãos há-de sair o sustento dos meus filhos!

Olha para as mãos como se as visse pela primeira vez, as lágrimas escorrem-lhe do rosto, olha mais uma vez para Artur e ordena-lhe:

– Vai-te embora! Já não me serves para nada. Maldito sejas mais a linda mulher que arranjaste!

– Como queiras, adeus Madalena.

Madalena não dormiu nada naquela noite, chorou um pouco, depois começou a fazer projectos, a pensar em resolver o problema, pela manhã levantou-se da cama, vestiu os meninos e entregou-os à mãe dizendo que não demorava, entrou na casa da Dona Glória costureira e pediu trabalho, nesse mesmo dia começou a trabalhar, era quase tempo dos meninos irem para a escola e precisava de comprar livros e cadernos, a sogra ofereceu-se para cuidar dos meninos e entre as nove da manhã e as cinco da tarde as crianças ficavam com a avó, Madalena depressa recuperou a forma e tinha fama de ser a melhor costureira, as colegas olhavam-na com respeito e os dias passavam sempre iguais entre linhas e trapos, aos Domingos saia com os filhos passeavam e conversavam sem pressas, de vez em quando chegava da Suíça um envelope com algumas notas para os filhos, nunca vinha uma única palavra a acompanhar o dinheiro.

Os gémeos entraram na escola, a professora já tinha uma certa idade e um olhar severo, a sala era dividida em três filas de carteiras de madeira rugosa gasta pelo tempo, na primeira fila sentavam-se as meninas, na segunda os rapazes e a terceira era destinada a rapazes e raparigas apelidados de “burros”, todos fugiam da terceira fila, tinham vergonha e algum receio de lá se sentarem, todos os outros se riam, Margarida era rápida e inteligente mas Artur

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por muito que se esforçasse não conseguia obter bons resultados, Margarida frequentemente era dispensada de fazer algumas provas e Artur estava em pânico por ter de fazer um exame de matemática, Margarida teve uma ideia:

– Nós somos iguaizinhos, basta trocar de roupa e eu faço a prova por ti.

– Está bem, eu hoje durmo no teu quarto e tu no meu, de manhã vestimos a roupa e a mãe não vai dar por nada.

À mesa do pequeno-almoço, Madalena olhou para os filhos com mais atenção.

– Não sei porquê mas hoje estão mais bonitos!

Os meninos saíram para a escola a rir, parecia natural andarem daquela forma sem se preocuparem, pois nem a mãe os tinha reconhecido, Artur sentou-se na fila das meninas e Margarida na dos rapazes, as provas foram distribuí-das e Margarida depressa resolveu os exercícios do irmão, Artur ficou sossegado à espera da prova terminar e ape-sar de estar cheio de nervos aguentou-se tranquilo, na hora do recreio Margarida jogou futebol e para admiração dos colegas, marcou vários golos, sempre enérgica e cheia de vida viu o irmão a brincar na casinha das bonecas muito feliz, ela resolveu que aquela troca poderia demorar mais um tempo. No caminho para casa fez a proposta ao irmão que aceitou com prazer, e passado um mês eles próprios já não se importavam muito de saber quem era quem. Um dia Madalena entrou no quarto da filha e deu um grito horrorizada de ver o Artur a vestir um vestido, chamou os miúdos à sala com um olhar muito sério, os meninos nem se mexiam.

– Isto não pode tornar a acontecer! Se o vosso pai sabe, acontece uma coisa muito má, isto vai ser um se-gredo só nosso, que isto nunca mais aconteça!

Os meninos acenaram com a cabeça afirmativamente, e nunca mas falaram no assunto.

Muitos anos se passaram, Madalena gere um pequeno atelier de costura, onde emprega muitas raparigas e até mesmo m rapaz, que toda a gente diz que tem jeito para fazer vestidos, na terra alcançou um lugar de respeito por ter criado duas crianças sozinha. Artur deixou a escola cedo e trabalha no campo, Margarida está na universidade e é uma atleta de alta competição, quando foi representar a equipa na Suíça voltou a ver o pai, um estranho que mal conhecia, Artur quando viu a filha em campo só teve uma frase:

– Esta minha filha deveria ter nascido um homem, grande fera!

Sorriu com orgulho…

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Laura

Sofia Catarino

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há uns anos, folheei um livro que era da minha bisavó Carlota, com dicas para ser uma boa dona de casa. Tinha vários artigos sobre como engomar uma camisa,

como tirar nódoas da roupa, etc..., mas o que mais me chamou a atenção foram alguns textos sobre o modo como nós, as mulheres, nos devíamos comportar na sociedade e perante os homens. Claro que me perguntei logo se havia um para homens.

Quando fui visitar a minha bisavó, falámos muito sobre esta igualdade desigual entre homens e mulheres.

Contei-lhe que a minha professora da segunda classe não me deixou inscrever no futebol. Disse que só havia rapazes inscritos e que era melhor eu ir para o ballet. Ela acenou em concordância.

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A minha bisavó contou-me que naquela altura os homens é que sustentavam a casa e que as mulheres tomavam conta dos filhos e faziam a lida da casa. Eu disse-lhe que na minha escola não ensinam essas coisas. Contei-lhe que tínhamos várias disciplinas mas essas não. Na minha escola os rapazes e as raparigas estudam as mesmas discipli-nas. Começou a rir muito e disse que eu ainda era novinha para perceber estas coisas.

Explicou-me que os homens vão à tropa e nós, as mulheres, damos à luz. Pelo que percebi, quando eles vão à tropa nós ficamos a tomar conta da casa e dos filhos até eles virem. Fiquei mais descansada. A tropa, hoje em dia, já não é obrigatória e dura pouco tempo.

No tempo dela, da minha bisavó Carlota, os rapazes e as raparigas frequentavam escolas diferentes. E as meninas usavam saias e os meninos calças. Claro que na Escócia é diferente!

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A Anita manda nos homens

Frederico Pinto

Rodrigo Saias

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oseu coração agitou-se, enquanto Rosemary abocanhava o seu delicado sexo. Contraiu-se mas não conseguiu acautelar a ereção. Ela abusou tresloucadamente do seu frágil pénis.

Entre flashes de recordações intercaladas com tetas na cara, Joseph pensava nas infelizes notícias do dia 29 de Fevereira de 1974 (o ano ainda mal começara e já havia 27 homens assassinados pelas suas companheiras)… e zás, disparou, não conseguiu evitá-lo. Rosemary aproveitava-se mais uma vez do seu líquido fértil.

Insatisfeita ainda com a fornicação, Rosemary lançou dois dedos aos maxilares de Joseph e com a mão esquerda fê-lo engolir um comprimido azul, causando-lhe nova erecção e mais trinta minutos de sofrimento atroz. Sentia-se dominado, sufocado e abusado. O sexo nunca lhe oferecera prazer, antes pelo contrário era para ele, assim como para a maior parte dos homens, um dever que tinham que cumprir enquanto esposos.

Depois da tortura tentou adormecer, junto do seu algoz. Retorceu-se, atormentado, não conseguia adormecer, não podia estar tranquilo, pois sabia que se Ela engravidasse novamente o terceiro filho impedi-lo-ia, em definitivo, do tão desejado acesso ao mercado do trabalho. E, como tal, tudo aquilo com que sonhara estaria furtado, desde o mísero dinheirinho para um café até ao sonho quase delirante de poder tirar a carta de condução.

Há dois anos que Joseph estava ligado a um movimento cívico que lutava pela igualdade de género. Acalentava-o uma nova esperança, apesar de um terrível medo em ser descoberto pela sua Esposa, estava entusiasmado de tal forma com os conhecimentos dos seus camaradas, com os livros que estes tinham e lhe emprestavam, com a forma como falavam de certos assuntos (interditos ao sexo masculino), o camarada Vasco que não fazia a depilação, o Afonso que, apesar de só poder sair à noite, ostentava sempre uma poderosa barba facial de 10cm, e o camarada Arnaldo que em as todas reuniões usava saia (essa poderosa peça de vestuário que servia para hierarquizar a socie-dade e que se algum homem fosse apanhado a usá-la teria certamente a prisão como consequência).

Em suma, estes dois últimos anos tinham restabelecido alguma esperança num Joseph que tinha sido obrigado a casar em idade precoce pela sua mãe, e, como tal, nem sequer a escolaridade mínima para homens tinha comple-tado. Pior ainda, nunca tinha, até à sua adesão ao movimento cívico, experimentado sentimentos de paixão e amor.

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Apesar de já existirem alguns homens no “mundo do trabalho”, a situação de Joseph era semelhante à maioria dos homens deste mundo, ou seja, encontrava-se economicamente dependente do salário da sua Esposa, tendo que desempenhar todas as funções da lida doméstica e ainda tomar conta, sem qualquer auxílio, das duas filhas, Rose e Mary de 3 e 5 anos de idade, respetivamente.

Tal como a maioria dos homens, Joseph não tinha direito a qualquer tipo de posse, propriedade ou direitos.

– O jantar está uma merda!!! — rosnou bruscamente Rosemary como era hábito, sempre que trazia algum problema do trabalho.

Cambaleante, Joseph preparava-se para ir buscar a sobremesa. Assustava-se sempre que via Rosemary irritada, pois sabia perfeitamente que poderia acabar em violência física.

– Escusas de trazer a sobremesa, tenho andado enjoada.

Joseph pareceu desmaiar, sentindo-se atingido por um raio de consciência… lembrou-se que ao recolher a roupa interior da sua esposa no último mês, desde a fatídica violação, não havia qualquer rastro de menstruação. E, como um mais um são sempre dois, foda-se, Ela estava grávida novamente. O terceiro filho vinha a caminho e todos os sonhos de Josefh se tinham dissipado.

Mais uma noite sem conseguir dormir… mais uma manhã estonteante… Joseph tinha que ser rápido a voltar da escola e a arrumar os quartos e a cozinha, porque queria ir ter com o Afonso antes da hora do almoço.

Cerca das 11h, já com tudo arrumado, deslocou-se ao Esgoto*1para poder expor a sua situação ao companheiro. De Afonso, camarada estimado e com provas dadas, só se poderia esperar o otimismo que resplandece nos que apesar de maltratados continuam a apresentar o rosto da vitória. Este companheiro vivia miseravelmente há dez anos no esgoto. Foragido da justiça, a sua expressão espelhava a imagem de alguém a quem não faltava peva, e de facto nada lhe faltava, era um SER LIVRE.

Com um simples toque no ombro e um olhar cintilante, Afonso acalmou de imediato o sofrimento do seu companheiro. Depois, tentou explicar-lhe que lhe restariam na pior das hipóteses 8 meses para consumar a sua revolução.

Joseph fitou-o meio desconfiado, embora a confiança no companheiro fosse absoluta, era-lhe, no entanto, difícil

*Esgoto – Termo que designa o espaço em que os homens não casados podem viver. Espaço com péssimas condições de habitação, geral-mente situado nas periferias, com regras específicas e recolher obrigatório.

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alcançar na íntegra as palavras que o camarada lhe transmitia. Afonso, perspicaz, compreendeu as incertezas do seu compa-nheiro e disse-lhe que fosse para casa, mas que não se es-quecesse de voltar na manhã seguinte.

À medida que se aproximava de casa, a tristeza e a incerteza acentuavam-se no rosto de Joseph. O ter estado com Afonso tinha-o alegrado, mas o ter que regressar a casa estava a tornar-se demasiado penoso. Os dias eram quase todos iguais, para os homens deste mundo; não havia férias nem fins de semana; as lidas domésticas e o dever de servirem as suas Esposas assim o ditavam.

Depois de fazer o jantar, retocar alguns pormenores da arru-mação, dar banho às suas crias e de as instalar confortavelmente no sofá para verem os desenhos animados da “Anita manda nos homens”, Joseph aproveitou para espiar os trabalhos que estas trouxeram para casa. Os dois anos de convívio com o movimen-to cívico permitiam-lhe, agora, que tivesse opinião crítica sobre a pedagogia escolar. Tinha, contudo, de o fazer às escondidas, pois na casa de Rosemary não podia opinar.

Como quase sempre, Rosemary chegou às 8 horas em ponto, encontrando já Rose e Mary sentadas à mesa e Joseph mecan-icamente a cruzar o corredor entre a cozinha e a sala de jantar com a travessa na mão. Hoje Joseph tinha que estar atento, tinha mesmo que obter mais alguma informação acerca da hipotética gravidez de Rosemary – apesar de alguma luta e formação, a maior parte dos maridos continuava a mostrar-se elevadamente insegura.

– O jantar está outra vez uma merda!!! — trazzzz… e Joseph sucumbiu com um estalo da sua Esposa.

– Ouve lá imbecil… talvez tenha que te trocar por outro

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mentecapto, só que mais novo do que tu. Para além de estar farta de olhar para as tuas carnes flácidas, já percebi também que não és capaz de cuidar da porcaria da casa com duas crianças, muito menos conseguirás com três.

Poommmm — a estocada final estava dada, não só vinha nas palavras de Rosemary a confirmação da gravidez, como também a possibilidade de Joseph se ver totalmente desamparado. Seria uma vergonha para a sua família e teria que viver de esmolas…

No meio de tal “merda”, restava-lhe apenas o conforto de saber que durante o período de gravidez de Rosemary não seria violado sexualmente.

Mais uma noite mal passada, Joseph tinha perdido dois dentes com a bofetada que levara e, já com 35 anos de idade, as hipóteses de permanecer belo estavam também desarmadas. Numa sociedade em que a aparência física do homem é o aspecto mais preponderante, Joseph, ao ver-se privado do belo, encontrar-se-ia encurralado na miséria.

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25.º de Abrilia de 1974 (dia de revolução)

Acordou, dirigiu-se de imediato ao Esgoto descurando as arrumações e a escola das filhas. De nada quis saber… o reencontro com Afonso assumia-se cada vez mais como a sua única esperança. À medida que avançava pelas ruas o seu frágil corpo tremelicava… um misto intenso de medo e ansiedade notava-se até num rosto coberto, que escondia as marcas da agressão.

– Bem-vindo camarada Joseph — saudou-o o companheiro Afonso, mais alegre do que sempre.

Joseph foi incapaz de responder. Permaneceu simplesmente congelado ao ver no esgoto do seu camarada deze-nas de companheiros que ostentavam saias e barbas teimosamente compridas, a retocar dezenas de cartazes com variados apelos à igualdade de género.

– Desculpa não te ter avisado do que temos andado a planear, mas, tal como sabes, esta organização tem sido muito vigiada…

Joseph enchia-se de esperança enquanto Afonso continuava:

– Hoje é o grande dia! Vamos finalmente fazer a revolução. O mundo não pode apenas pertencer às Mu-lheres. A força não pode continuar a ser a razão pela qual se estabelecem hierarquias…

– O mundo do trabalho não tem que ser uma condicionante — gritaram os companheiros.

– Não, não, não queremos ser iguais, queremos é direitos iguais. Uma justiça que trate com igualdade o homem e a Mulher.

– Queremos preservar as diferenças que a natureza nos atribui, mas nunca aceitaremos um mundo em que um género comanda e o outro obedece.

O entusiasmo dos cerca de 40 companheiros era brutal. O plano estava inexoravelmente traçado… avançariam pela avenida principal, percorrendo os cerca de 300 metros até à escadaria do Parlamento, e, lá, Afonso e outros camaradas profeririam discursos de igualdade.

A marcha iniciou-se lentamente, causando desde logo imensa surpresa aos transeuntes… as Advogadas do n.º38 vieram logo à janela, as Médicas, as Arquitetas as Ourives, as Empreendedoras do 27, todas as Mulheres se aproxi-mavam para ver com espanto. Inversamente, os poucos homens que andavam pela rua, inicialmente, acercavam-se, mas quando entendiam o que ali se estava a passar fugiam rapidamente para evitar que pudessem ser confundidos.

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Chegando ao destino, os 40 companheiros espantam-se com a velocidade com que o companheiro Vasco surge numa carrinha-palco que estaciona de imediato em frente às escadas do parlamento.

Afonso sobe rapidamente e inicia um discurso que certamente ficará para a história:

Num mundo dominado por apenas um sexo, o FEMININO, a resistência do masculino vai-se tornando cada vez mais difícil…

– Igualdade, Igualdade — gritam os companheiros.

Os cargos de decisão são maioritariamente ocupados por fêmeas… restam-nos alguns lugares, claro está, mas apenas por decreto constitucional — vejam só… e todos eles são ocupados por machos inseguros e incapazes…apoiantes do regime.

– Abaixo o servilismo…

A nossa sobrevivência é apenas assegurada pela nossa propensão divinal para a lida doméstica, na qual se inclui, como é facto, a nossa natureza paterna, que é indispensável para assegurar a espécie, tal como é reconhecida a nossa capaci-dade para criar os seres que nos arrancam por força do amor.

Não queremos continuar a ser os servos de um mundo com duas medidas que distingue substancialmente os dois géneros.

Não é nossa pretensão ocupar o lugar daquelas que nos exploram e oprimem, até porque elas mesmas também se exploram entre si, estratificando a sociedade em classes sociais tão distintas que jamais criarão união e igualdade.

A deliberação por que hoje nos manifestamos é pela exigência de um mundo sem distinção de géneros, por um mundo sem classes sociais tão distintas. Queremos criar os nossos filhos com condições de acesso à cultura e à saúde, senão iguais pelo menos semelhantes.

Tal como já referiu Bakunine, “A liberdade do outro estende a minha ao infinito”. E nunca o inverso. Liberdade e igual-dade são o caminho que percorreremos a partir de hoje sem qualquer hesitação ou recuo.

Liberdade, liberdade, liberdade…

Igualdade, igualdade, igualdade…

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Vasos Comunicantes

Natàlia Tost

Pep Gavaldà

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clarinha sabia perfeitamente o que queria. Sabia-o desde sempre. Naquela manhã, a máscara de carochinha que usava era coroada por uma pequena comitiva composta por duas amiguinhas, escravas idólatras e duas

carochinhas elas próprias, que a acompanhavam a todas partes e que sem hesitar entraram com ela no mini-merca-do. Quando a empregada a apanhou, já de saída, com o bollycao na mão, Clarinha abriu os olhos de forma ostensiva para declarar a toda a gente que não tencionava roubá-lo, que não possuía o conceito de roubar, que não era capaz de entender a barbaridade ominosa da apropriação de bens alheios, que era apenas uma criança, mas não uma criança qualquer, era a inocência pura, vestida — por azar cronológico e festivo — à imagem e semelhança de uma personagem de conto de duvidosa reputação amorosa. Clarinha — pensaram todos— não entendia o conceito de roubar e não entendia porquê, depois de uma bela manhã de carnaval em que tinha espalhado pelo bairro charme e elegância com generosidade, não podia permitir-se um pequeno luxo, tinha alguém que vir estragar tudo, pergun-tar se tinha dinheiro. Dinheiro, dinheiro, como se o dinheiro resolvesse tudo…

Mais tarde contaria à mãe uma versão ligeiramente apurada daquela história. A mãe, prudentemente, acredi-taria apenas numa parte e, de seguida, abriria o frigorífico para colmatar as óbvias necessidades de açúcar da filha oferecendo, numa tigela, um pouco de dulce de leche do frasco que Marcelo tinha enviado desde Buenos Aires havia dois meses, como sempre fazia no Natal, aquele frasco que estava a acabar de uma forma triste e lenta, anunciando um calendário de dias e meses de ausência total de Marcelo. O sol que entrava pela janela no fim da tarde fez brilhar o frasco quase vazio e os olhos da mãe da Clarinha. O frasco media o tempo, tudo o que ela sabia media a distância.

Clarinha comeu o dulce de leche e pegou no telefone para ligar ao seu amigo Marcos e perguntar-lhe se queria descer à rua para brincar. Ele não sabia, mas brincariam aos namorados.

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Ser viúva não era nada de especial. Clara precisou de uma só sessão de ajuda mútua para se aperceber disso, meia, na realidade. Ser viúva e estar grávida de seis meses poderia parecer desgraça suficiente para uma pes-

soa obter a compaixão e a compreensão das outras no grupo de ajuda, mas pelos vistos não chegava. Era pena, mas estava cheia de dinheiro. O seu marido tinha morrido de uma morte jovem, trágica e perfeita, mas demasiado lucrativa. Uma grua esmagou-o, ao pé de uma obra de uma ponte de uma estrada muito importante de Luanda. Com um cheque obsceno, a companhia e o governo local evitaram que aquela estrada se tornasse famosa de forma prematura por razões tão desagradáveis como a falta de segurança das pessoas que a estavam a construí-la. Na sessão, depois de ouvir dois ou três relatos sobre vidas miseráveis de viúvas miseráveis, abandonou a sala. Não estava lá a fazer nada. O seu luto era um luto menor.

E agora passeava pelo Born prenha de uma lista inesgotável de mistérios: de uma filha sem nome, de desconcerto — a morte de um marido de 30 anos é uma bofetada que fica parada no momento da surpresa, que não chega a doer porque tudo congela nesse preciso instante — de raiva, sentia raiva realmente? A raiva era aquilo que a comandava por dentro ou era aquele pesadume que a prendia à cama? Fosse o que fosse, a psicóloga tinha preferi-do chamar àquilo depressão-qualquer-coisa.

Caminhava prenha de tudo e fixava o olhar na calçada cinzenta e suja do passeio. Era realmente daquela cor ou nunca tinha sido limpa?

Tudo estava bem, tudo estaria bem, a menina não teria pai. Um pai, como se ter um pai resolvesse tudo.

Sentou-se na esplanada de um café e a voz do empregado, castelhana, sul-americana, peganhenta, remotamente familiar, sugando-a como um túnel, falou para lhe perguntar o que desejava. Levantou a cabeça para olhá-lo. O sol cegou-a e, de repente, soube-o.

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amenina Clara sentou-se no chão sujo do cais, com os pés pendurados por cima da água, e deixou que o vento do mar a despenteasse e a obrigasse a fazer caretas enquanto tirava os cabelos da face.

Pensou que fazia exactamente três meses que não lhe aparecia o período, já tinha o peito enorme. Uma blusa branca, um bom decote e daria uma taberneira perfeita.

E lembrou-se daquela noite, aquela noite sem querer, quando a vida se tornou um lugar muito melhor, mais importante, um lugar onde a gente tropeçava com a felicidade. Ele passou toda a festa a segui-la, com o olhar e com aquele sotaque que a abraçava, apertava, com força. Pela primeira vez na sua vida o conteúdo das palavras de um homem que ansiava beijá-la e tocá-la pareceu-lhe secundário e acabou por aceder com uma alegria e uma leveza desconhecidas. No quartinho de estudante, num beliche quase infantil, fizeram amor e foderam até chegar a madru-gada. Nos intervalos riram como loucos dos absurdos da vida, como aquela história da rapariga com quem ele ia casar. Dizia ele que, apesar daquela noite, amava-a de verdade e ela acreditava nele e ria, com a sua liberdade e o seu corpo, ambos novos e selvagens, concordando perfeitamente com tudo, eles e o mundo a condizer.

Quando soube que estava grávida fugiu da casa dos pais depois de deixar um bilhete em cima da mesa, um só bilhete, uma só mentira, era o melhor para toda a gente.

Balançou as pernas por cima da água e decidiu o que queria, o que quereria de agora para frente, para sempre.

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marcos não sabia se era dos nervos que lhe davam os preparativos do casamento, das chatices do trabalho ou de outra coisa qualquer, mas a verdade é que a visita da avó da sua noiva, a Dona Clara, o deixara

abalado. Ficou estupefacto quando ela aparecera na porta do seu apartamento para falar com ele. Não imaginava como ela tinha lá chegado — de taxi?—, nem onde é que arranjou a morada, nem fazia ideia se a senhora era capaz de ter uma conversa lúcida, parecia ter mil anos e nas poucas situações em que coincidiram nunca lhe pareceu que ela estivesse interessada em interagir com ele.

E agora que ela acabava de sair, ainda entendia menos que tipo de visita tinha sido aquela e tão pouco se aquilo que aconteceu tinha sido uma conversa lúcida ou se deveria ter ligado a alguém para que a fosse buscar e a de-volvesse ao lugar de onde ela devia de ter fugido. Era verdade que ia casar com a neta dentro de duas semanas e era bom que a família se conhecesse um bocadinho melhor, como ela tinha referido nos escassos dez minutos em que esteve sentada no sofá do apartamento, mas aquilo tudo continuava a não fazer muito sentido.

Dona Clara, pequena e encolhida, não deixou que esses atributos, próprios da idade que tinha — afinal, algo menos de mil anos —, interferissem na elegância do seu porte, das suas roupas ou da breve conversa que man-teve com ele. Na realidade não tinha acontecido nada que justificasse o mal-estar que sentia. No encontro, dirigido completamente por Dona Clara, falaram do tempo, da casa nova onde iria viver com Clarinha, do felizes que ambos deviam estar pelo acontecimento e pouco mais, mas no fim teve mesmo de fazer aquilo que fazem os velhos, falar em código. Só que ele não entendia nem achava graça ao código dos velhos, nem queria reflectir sobre aforismo nenhum, queria tomar banho e sentar-se no sofá para ver um programa desportivo. Queria somente que aquela segunda-feira tivesse acabado de uma forma mais simples e previsível. Normalidade era coisa que nunca tinha feito mal a ninguém.

– Convém conhecer a família — disse ela, já na porta, a despedir-se, estendendo a mão com uma espécie de livro encadernado em pele preta. Disse-o com uma voz quase jovem, projectada, clara como o nome dela. — É a minha prenda de casamento.

– Ah, bom, claro, muito obrigado… É o quê? Um álbum de fotos? Ah! Muito bom, vou gostar muito, com certeza, obrigado, obrigado…

O último obrigado — enésimo — disse-o muito baixinho, depois de fechar a porta. Tudo bem, senhora, tudo bem. Ou não. Deixou o álbum no sofá e foi tomar banho. A remoer. Ligaria à Clarinha e contar-lhe-ia que a velha era maluca e que deviam de ter atenção porque ela fazia coisas estranhas e dizia coisas estranhas. Eram estranhas aquelas mulheres, a mãe, a avó, sempre a olhar nos olhos, fixamente, sem dar a um gajo uma trégua, não eram boas, não.

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Não, não ligaria nada à Clarinha, esconderia o álbum e faria de conta que se tinha esquecido do assunto, se um dia tal conversa viesse à baila.

Quando acabou de se vestir ouviu um barulho na sala e ficou paranóico. Pensou que a velha tivesse voltado, ela não gostava mesmo dele e por isso tinha ido lá, ao apartamento, incomodá-lo para ele ficar ansioso, olhá-lo desde aquele azul profundo cercado de rugas, e agora voltava com uma desculpa qualquer para o desorientar ainda mais.

Entrou na sala de rompante e encontrou Clarinha.

– Olá!! Que bom, já estás pronto, vamos? — disse ela dando-lhe um beijo nos lábios.

– Mmmm…onde? — respondeu, atordoado.

– Não te lembras? Combinámos ir ao cinema, hoje é segunda…

– Pois, claro, claro que me lembro, só um bocadinho…

Enquanto vestia a camisola de lã que a sogra lhe tinha oferecido no Natal, Marcos perguntava-se se realmente tinham combinado alguma coisa nesse dia. Clarinha tinha destas coisas, dizia-lhe que já tinham falado de qualquer coisa e como ele, por vezes, não estava realmente a ouvir o que ela dizia, respondia um sim, sim que criava um vazio — na conversa e na agenda — que ela, achava Marcos, preenchia programando aquilo que lhe apetecia no momento. Mas tudo bem. Ou não. Queria mesmo ver o resumo do futebol do fim-de-semana. Apetecia-lhe mesmo sentar-se no sofá a executar um magnífico nada-de-nada. Não queria ir ver um filme paquistanês de um realizador oprimido e galardoado em festivais de lugares que nem sequer apareciam no mapa, ou pelo menos no seu mapa particular, o que ele considerava civilização. Mas tudo bem.

Quando chegou à sala, Clarinha estava sentada no sofá com o álbum aberto no colo. Levantou a cabeça com a boca semi-aberta e olhou para ele, com tanto azul nos olhos que só podia ser ódio. Ele tentou pará-la, tentou parar o ódio, tentou congelar a cena, tentou voltar para trás e desfazer o que não tinha feito, esconder o erro, inventar uma saída impossível. Foi só na sua cabeça.

Clarinha levantou-se e olhou para ele uma última vez, olhos abertos, redondos, serenos, agora sem ódio nem qualquer outro sentimento. Olhou para ele com magnânima indiferença, como quando olhava para uma mota que passava na rua, para um jogo de futebol ou para uma gritaria. Despojou-o de qualquer significado, de vontade e de entendimento. Foi-se embora devagar, com serenidade e um agradecimento profundo pela informação obtida.

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Marcos sabia que ela não pensaria mais, que não sentiria dor, nem saudade, porque naqueles instantes tinha conseguido eliminá-lo, brutal e certeira, de uma só vez conseguiu extirpá-lo de dentro dela e nem à síndrome do membro fantasma a sua pessoa teria direito. Nunca mais a veria. Nunca mais lhe falaria. Nunca mais seria para Clar-inha. Estava morto.

Não precisava de olhar para o álbum preto para conhecer o seu conteúdo. Lembrava-se agora. Aquela rapariga jeitosa, calças de ganga slim, rabo bonitinho, blusas de algodão às riscas ou flores ou assim, mamas promissoras, casaquinho de pele fina, uma máquina de fotos ao pescoço, das grandonas, das que custavam dinheiro, cara esquisita, de bichinho. Teve no início um pensamento vaidoso, por momentos pensou que a rapariga o rondava e fazia-se de encontradiça para ver se metia conversa com ele, devia precisar de um giraço que lhe desse um jeitinho. Encontrou-a várias vezes na porta da casa da Rita, mas depois de tanto encontro e tão pouca conversa pensou que a rapariga meio engraçada vivia no mesmo edifício e que, fosse como fosse, aquilo não tinha assim tanto interesse. E não tinha. Mas passou a ter. Era capaz, até, de ser ilegal.

Marcos sentou-se no sofá, pegou no álbum e pôs-se a escolher uma fotografia em que ambos tivessem ficado bem. Era uma boa prenda. Podia contar a história de uma forma suficientemente interessante para ela o receber de braços abertos. Podia pensar em mudar-se para casa dela. Rita ficaria feliz. Afinal, podia acabar a segunda-feira num sofá confortável, ao pé de uma mulher que gostava dele, podiam ver um filme, como outro casal qualquer. Pegou no telefone. Normalidade era coisa que nunca tinha feito mal a ninguém.

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Foste minha

Lúcia Lima

Henrique Figo

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escuto as pancadas na porta lá fora. Chamam por ti e por mim. Não respondes.

Nunca foste de ligar muito ao que os outros dizem. Sempre gostei disso em ti. Lembra-me o dia em que nos conhecemos. Estavas nas compras, com a tua irmã. Falavam dele, do teu marido. Como se estivesse ali. Pobre coitado! Vi-te e dei por ti. Como não podia! Riam às gargalhadas como se estivessem sozinhas, pondo toda a gente a olhar:

– “Vai-te embora!” Disse-lhe assim, sem mais nem menos. Ele gritou-me, mas não me fiquei. Preguei-lhe uma lambada na cara! Até recuou uns passos! — explicavas, repetindo o gesto, enquanto a tua irmã se desfazia a rir.

– E depois? O que é ele fez? — perguntou ela.

– Foi-se embora, o palhaço! Só podia! — respondeste, com aquele jeito teu, que já se adivinhava. Um sorriso malandro e mandão.

Espreitei-te quase sem me aperceber que estava a dar bandeira. Olhaste para mim. Viste que te mirava e sorriste. Eras minha, pensei.

Só uns dias mais tarde pudemos trocar as primeiras palavras, no dia do baile. Não dissemos muito. A primeira conversa só chegou depois de nos vestirmos e de sairmos do carro. Nunca mais deixei de te rondar. Tinha que te ter mas tu impunhas a tua vontade. Tu mandavas. Mas com o teu marido sem voltar, foram sucedendo-se as noites que me deixavas entrar. Ficar, só mais tarde.

O meu trabalho na obra deixava-me tempo e dinheiro para te levar a alguns bailes naquelas noites quentes de verão. Corremos tanta festa!

Continuam a bater e a chamar. Não lhes ligamos. Eles aqui não entram. Eu não deixo.

Nunca deixei que se metessem entre nós. Tu mandavas mas eras minha. Eu bem os via no baile, a olhar para ti, a desejarem-te enquanto dançavas comigo. Eras a mais bonita. Mas eras minha. E teimavas comigo se eu me enciumava. Zangavas-te. Mas eu não me continha. Eu também me zangava, com eles. Foram poucos os bailes em que não houve confusão.

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Umas vezes fugias, abandonavas-me no meio da confusão. Mas era eu que tinha as chaves do carro e tu não partias sem mim. Voltavas sempre. E julgo que nessas noites eras mais minha do que nas outras. Eras mais minha, não eras?

No dia seguinte, fazíamos planos. Imaginávamos a nossa casa, os nossos filhos. Eu dizia-te: “Quando eu arranjar mais umas obras, começo a trabalhar por minha conta e, aí, tu sais do café. Não te quero assim.” Tu respondias-me: “Tem juízo, homem. Eu preciso daquele dinheiro. Tu não mandas em mim, ouviste?” Eu acenava, consentindo. Mas pensava: “Tu vais deixar esse café.”

Eu não gostava de te ver lá. Não gostava do teu patrão. Não aguentava a maneira como ele olhava para ti. Comia-te com os olhos. Parecia um porco! Eu aguentava-me porque ele era irmão do meu patrão, mas não sem esforço. Comecei a teimar. Tinhas que ficar em casa.

Quando ficavas até mais tarde, porque serviam um jantar ou algo do género, eu, em casa, remoía como se lá estivesse. Via-os a rodearem-te como cães. E via-te a sorrir, o sorriso que devia ser só meu a aumentar-lhes a fome. E eu em casa. Era como se não estivesse. E quando chegavas a casa, sorrindo, como se ainda estivesses no café, enchias-me a cabeça de pensamentos.

– “Vamos entrar!” — gritava alguém, lá fora. “Não vão nada!”, pensei. Não me levam a minha mulher daqui.

E tu sabes que não te deixo ir. Tal como naquele dia, em que o teu sorriso foi demais para mim. Perguntei-te, quando chegaste: “Quem jantou lá hoje?” E tu respondeste, sem parar de andar pela casa, enquanto jogavas as sandálias pelo chão e te espojavas no sofá: “Foram os moços da bola!”. Eu sentia o cheiro a tabaco e a álcool. Eram duas da manhã. Não era normal. Gritei-te: “Isto são horas de chegar? Não me digas que estiveste a servir até agora?” E tu, bêbeda, respondeste-me, palavras metidas no meio duma risada: “Claro que não, meu trolha. Estive a rodar a equipa toda!”

Não podias perceber. Estavas perdida e quiseste provocar-me. Eu não podia deixar.

Nesses dias não voltaste ao café. Mas eu fui. “Está doente” — expliquei.

Nos dias que se seguiram fizemos planos. Voltaste ao café uma semana depois. Mas já não fazias noites. Eu juntava dinheiro. Mas não conseguia. Era muito difícil começar a trabalhar por conta própria. Tu dizias que era de mim. Que eu nunca iria conseguir. Eu não te respondia. Sabia que era verdade. Mas não te podia dar razão. Eu havia de te tirar daquele café. Acreditava que quando engravidasses tudo iria mudar. Mas tu não me deste filhos. Eu sei que tentei, mas senti sempre que o fazia sozinho. Parecia que não querias. Estavas distante. Começava a sentir que não vinhas para casa. Mesmo quando chegavas, parecia que não vinhas toda. E comecei à tua procura mas não sabia onde te encontrar.

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Não comia, não dormia, não fazia nada mais do que pensar em ti, onde estavas e com quem. Estava debaixo do teu feitiço. Já não era eu nem sei quem eras tu, quando discutia contigo, quando gritava, quando te abanava e te rias na minha cara. Por mais força que usasse não te conseguia encontrar dentro de ti mesma.

Ouvia uma estranha música na cabeça que me dizia que já não eras minha. Era como uma música repetida, que não deixava de tocar no rádio, no carro, no café, na televisão. Não parava. E mesmo quando estavas comigo em casa, sentia que a música não deixava de tocar.

Ouço um vidro partido. Estão a entrar em casa. Ergo-me mas há algo que me joga ao chão. Sinto uma dor. Está alguém em cima de mim. Desato a gritar o teu nome, mas não me respondes.

Eles não querem saber. Não estavam lá. Nessa manhã segui-te sem me veres. Vi-te entrar no café, ainda fechado. Fui à volta. Parei perto da porta da cozinha. Ouvi risos. Espreitei e vi a mão do João, o filho do patrão, a subir pela tua perna enquanto te dobravas para trás, encostada à bancada. Rias-te enquanto vos beijáveis. Não consegui deixar de te ouvir : “Pára, João! Compraste os bilhetes?” Ele acenava positivamente enquanto te procurava o pescoço com a boca e enquanto eu tacteava com a mão à procura duma pedra. Não a encontrei mas ele encontrou o teu pescoço e as lágrimas, que entretanto me caíam, encontraram a minha boca. Segurei-me enquanto o ouvi dizer : “Está tudo pronto. Vamos amanhã, meu amor!”

Quando ao fim da tarde chegaste a casa eu esperava-te e não estava sozinho. Tinha o cajado do meu pai nas minhas mãos e mostrei-te como se usa.

Talvez por essa razão não te mexes quando os guardas se debruçam sobre ti, enquanto outros me arrastam para longe enquanto eu grito o teu nome. Já dentro do carro vejo-os a cobrir-te com um pano ou lençol. Partiste. Mas não para onde querias. Ficaste presa a mim para sempre.

Foste minha no dia em que te fiz partir.

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Bigodes

Sandra Serra

António Santos

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somos iguais. Mas não fazemos o mesmo género. Ele gosta mais de cerveja e eu sou mais vinho. É nestas pequenas coisas que a nossa igualdade se desvanece. “A cerveja é para alarves”, digo-lhe eu. “O vinho é para

ingénuos sonhadores”, diz-me ele enquanto cospe, furioso, cascas de tremoço. O Benfica está a perder e o melhor é não dizer mais nada. Mudo-me com o meu copo de vinho para a cozinha e preparo um risotto de salmão com alcaparras. São estas pequenas coisas. Se o Benfica ganhar talvez ele prove, contrariado, o risotto - a entrada estava boa e o jantar é o quê? – dir-me-á, franzindo um sorriso cínico. Caso contrário, e pelo andar do jogo, muito prova-velmente é o que vai acontecer, vai fritar, em óleo abundante, duas bifanas para acompanhar a meia-dúzia de cerve-jas que vai beber enquanto, oh claro, me vai explicar e reexplicar porque é que o Benfica foi roubado. Idiossincrasias. Finda a terrível tortura futebolística a que voluntariamente me submeterei vou querer ver um filme. E aí, aí meus senhores e minhas senhoras, aí se encetará outra confabulação filosófica (vulgo discussão, no nosso caso) sobre as virtudes dos filmes de ação, centradas principalmente nesse grande homem que é o Rocky Balboa (há pessoas que não distinguem a ficção da realidade. Ele é uma dessas pessoas). Como já não há rabiosque que aguente, vou-me deitar.

E amanhã levantar-nos-emos iguais, mas, definitivamente, não fazendo o mesmo género. Somos assim, eu e o meu irmão. O mesmo ADN. A mesma cara da nossa mãe, o mesmo cabelo escorrido e sem graça. Iguais as mãos e iguais os pés. Tudo igualzinho. Tudo, menos o género. Há quem diga que eu sou mais esperta. Outros que tenho mania de esperta. Cá para mim, eu sou é mais assertiva. Mais concreta no que às coisas da vida dizem respeito e mais sonha-dora no que às coisas da alma e do coração concernem. O meu mano, mais bonacheirão, mais simpático segundo os outros, é cá para mim, mais desinteressado, mais daquele tipo de pessoas que anda cá para ver os outros andar. Estão a ver o tipo? Está tudo sempre bem, menos se o Benfica perder e se não houver cerveja no frigorífico. Nestes dois casos, a possibilidade de rebentar uma terceira guerra mundial cresce exponencialmente. Não há quem não saia acossado desde o Jesus a Deus.

Gosto muito do meu irmão. Mas, definitivamente, não faz o meu género. Nunca me casaria com o meu irmão. Não só porque aos olhos de Deus, da genética e da minha libido a coisa não devia correr muito bem, mas princi-palmente porque o mais certo era o divórcio após a primeira noite com ele a roncar aos meus ouvidos enquanto geme hum, hum e me passam pela cabeça imagens de mulheres nuas engalfinhadas, porque é com isso que ele está

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a sonhar, de certeza.

Enfim… géneros à parte há, decididamente, uma coisa pela qual eu e o meu irmão nutrimos a mesma antipatia: bigodes. Explico porquê.

Nascemos com dois minutos de diferença, corria o ano de 1974. Eu sou a mais velha, já agora.

Em Janeiro de 1974, numa tarde fria e cinzenta num hospital frio e cinzento de um país cinzento com muitas ganas de ganhar cor, nasciam José d´Almeida Campos e Josélia d’Almeida Campos. Agora é a parte em que podem sorrir complacentemente do meu nome, estou já mais do que habituada a isso. Também por isso, toda a gente me trata por Ju, exceto a senhora minha mãe a quem tanto trabalho deu escolher este belíssimo nome juntando o nome de meu pai, José, e o seu próprio, Célia, e o senhor meu irmão porque… porque é parvo.

Ora onde íamos? Ah, sim, no nascimento. E pronto, por aqui não há muito que contar ; o parto correu bem, o meu pai era para ter assistido mas sentiu-se mal e tiveram de o pôr fora da sala de partos, a minha mãe diz que custou muito mais do que uma cólica renal que é a única dor que já tive para comparação.

A nossa mãe, costureira, e o nosso pai, barbeiro, eram donos dos seus próprios “negócios”, o que fez com que a minha mãe deixasse de costurar tailleurs às senhoras abastadas assim que nós nascemos. O nosso pai continuou a cortar barba e cabelo aos maridos delas. O dinheiro era pouco a entrar em casa. O pai trabalhava das 7 às 19 horas. A mãe cuidava de nós as horas todas. Nós, pois, devíamos fazer o que todos os bebés fazem: comer, dormir, chorar e mais as aquelas coisas que aos tratos urinário e gastrointestinal inferior dizem respeito.

Tenho memórias muito vagas da minha infância; imagino por isso que tenha sido calma e prazerosa.

O tempo foi passando, nós fomos crescendo, eles foram envelhecendo, as máquinas de barbear foram-se genera-lizando, o dinheiro minguando.

Em 1982, tínhamos nós oito anos de idade, a mãe decidiu que voltaria a coser para fora. A decisão da nossa mãe, e o jantar consequente, é das primeiras coisas da infância de que me lembro com toda a clareza. “Meninos, a mãe vai voltar a trabalhar, por isso vocês têm de começar a ajudar a mãe e o pai. Josélia, minha querida, tu tens de ajudar a mãe com as coisas da casa e tu, José, tens de dar uma mãozinha ao pai na barbearia”.

José, filho, e Josélia, olham de rompante um para o outro e enfiam novamente a cara no prato de massa com salsichas. “Filhos?”, disse o pai. “Então meninos, não dizem nada?”, insistiu a mãe. Silêncio entrecortado por sorvedelas de massa. “Josélia, José, estamos a falar convosco e é um assunto importante, importam-se de responder?” Olhámos

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novamente um para o outro e tivemos, creio eu, a nossa primeira conversa de adultos.

– O que é que achas, mano? — avancei eu, que sou a mais velha.

– Não sei, não me parece muito justo, já temos tanto que fazer…

– Oh, José, então… — interrompeu a mãe.

– Mãe, se não te importas nós estamos a conversar, já falas, no fim — disse eu.

E recomecei.

– Oh, José, então…

– Então, o quê? Temos muito que fazer. É a escola, os trabalhos de casa. E temos de brincar, porque as crian-ças que não brincam não crescem saudáveis nem se tornam adultos responsáveis.

– Responsabilidade, agora falaste bem.

– Mãe, não interrompas.

– Tens razão, mano, mas a mãe e o pai precisam de nós. E quando nós precisamos deles eles estão sempre lá.

– Eu não vi lá ninguém no teste de Estudo do Meio.

– Vá, não sejas parvo. Damos uma ajudinha e pode ser que assim consigamos ir à praia do Algarve.

– Está bem, pode ser… mas na barbearia? É que aquilo está cheio de cabelos…

– Pois, claro que está. Sabes que o pai ganha dinheiro é ficando com os cabelos dos outros.

– Eh lá, eu não fico com os cabelos de ninguém. Nem cabelos nem couros. Cobro um valor muito justo pelo meu trabalho — ofendeu-se o pai sem nenhum de nós ter percebido a razão.

O mano continuou sem ligar nenhuma à suscetibilidade de barbeiro do pai.

– Aquilo está cheio de cabelos e homens de bigode, não quero.

– E aqui em casa? Vai ficar cheia de mulheres, muitas delas com tanto bigode como cabelo. Isso é que é

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nojento. E depois eu é que tenho de afofar as senhoras e os seus rabos gordos. Se é nas minhas mãos que começa a liberdade, pois eu digo: antes quero as minhas mãos em bigodes de homens do que em rabos de mulher! — lancei eu poeticamente.

– Pois eu cá prefiro o meu rabo fora dos bigodes dos homens — disse o meu irmão sem poesia nenhuma.

– Hã?

– Prefiro ajudar a mãe com as senhoras, é isso.

– Por mim, ótimo, eu também prefiro ajudar na barbearia.

– Negócio fechado. Podes falar, mãe — E voltámos à massa, por nós o assunto estava encerrado.

– Mas, meninos — começou ela devagar —, vocês não acham que era mais apropriado cada um ajudar nas suas coisas. Há coisas que são de homens e coisas que são de mulheres, percebem?

– Percebo. Eu tenho uma pilinha e a mana uma lolita.

– Sim, claro, mas não é disso que estou a falar. O que eu quero dizer é que há coisas que as mulheres fazem melhor, como a lida da casa e o comer; e outras que os homens fazem melhor, como cortar barba e cabelo.

– Espera lá, mãe — insurgi-me eu —, mas tu estás a dizer que as mulheres devem fazer umas coisas porque as fazem melhor, e que os homens devem fazer outras porque as fazem melhor.

– Pois, filha, é assim.

– Mas isso não faz sentido, mãe. Então, se há coisas que já fazemos bem, devemos praticar as outras que não fazemos tão bem e assim ficarmos melhores. É isso que a minha professora diz: ‘A prática faz a perfeição’.

– Sim, filha, e tu podes aperfeiçoar os bordados e a costura e, quem sabe, podes até vir a ser uma estilista como aquela que tem o nome do outro fascista mas não lhe é de família, graças a Deus. E não fica bem, uma menina para lá metida na barbearia.

E foi aqui, neste momento, que eu decidi.

– Mãe, mas eu quero ser barbeira. Quero cortar bigodes. Este país tem muitos bigodes, mãe. Bigodes de homens e mulheres que se deixam esconder atrás de bigodes.

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– E eu quero… quero… — balbuciou o meu irmão. Trinta segundos em silêncio.

– Quero ser costureiro do bigodes.

– Hã?

– Quero ser costureiro do António Variações.

A mãe e o pai, atónitos, não disseram mais nada e nós voltámos à importante tarefa de sorver massa como se não houvesse amanhã.

E foi ali, entre massa com salchicha e o olhar abismado dos nossos pais, que a nossa igualdade se desvaneceu. Deixámos de ser os gémeos Campos para sermos o José Campos e a Josélia Campos. Iguais. O mesmo ADN. A mesma cara da nossa mãe, o mesmo cabelo escorrido e sem graça. Iguais as mãos e iguais os pés. Tudo igualzinho. Menos o género.

Hoje em dia, vivemos juntos neste apartamento de duas assoalhadas. A mãe já não costura e a barbearia do pai é agora uma loja dos chineses. Somos a Ju e o Zé. Eu não sou barbeira, mas cá em casa ninguém usa bigode. O mano não é costureiro, mas cá em casa cosemos os dois pelas mesmas linhas. E até aqui tudo bem. Depois, depois, o resto é do género de cada um. Ele é mais cerveja e eu sou mais vinho, estão a ver. Há o Benfica e tal e coiso. E contra isso não há grande coisa a fazer.

PS: E já agora, diz-se do nome Josélia: “Gosta de manter-se de igual para igual com qualquer pessoa. Não se sente nem busca ser melhor nem pior que ninguém”. OK, mãe?

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Fim da linhagem

Rui Ângelo Araújo

Helena Lousinha

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ele punha-se a dizer que não havia nada mais lindo do que um cão e esperava que eu me enternecesse como ele se enternecia. Já sabes que eu não suporto animais, dizia-lhe, não lhes quero mal, mas não os suporto. Ele

ignorava os meus argumentos e continuava a olhar para onde quer que lhe apetecesse olhar, compondo o seu ar de miúdo sabidolas e independente. Tenho uma solução para ti, respondia, como se eu fosse um problema a precisar de uma solução. Depois, ia-se a ver, e, ainda que ele não pensasse assim, a solução não era para mim mas para o meu problema, porque pesando bem as coisas eu não era um problema, eu tinha um problema. Pomos-lhe uma cai-xa em cima com um buraco para ele espreitar e já não podes dizer que é um bicho, insistia, passas a ter uma enco-menda como mascote. E ria-se. Lá em baixo na rua deslizava uma caixa de papelão levada pelo vento e era aquilo o que lhe dava matéria para discursar. A noite marcava o início do Inverno; o frio, a chuva e o vento tinham finalmente unido esforços para fazer descer a estação à nossa latitude, depois de um Outono seco e com temperaturas altas. A ideia vinha de um filme de que por acaso lhe falei, o meu irmão não tinha imaginação para coisas destas, mas a mim ocorria-me o mesmo ao espreitar o alcatrão molhado, onde a embalagem de um aparelho de televisão fazia o percurso aleatório das últimas folhas das tílias, como se andasse por ali, debaixo da caixa, o agorafóbico cão de The Price of Milk.

Estava disposta a manter-me ofendida, eram as minhas memórias o que ele usava, servia-se dos meus relatos para se fazer interessante e para construir as suas frases insidiosas, as suas metaforazinhas, e com elas causar-me dor. Para tua informação, dizia-lhe, no filme o cão supera a fobia, mas eu não tenciono abandonar esta casa nem por um minuto, e com os braços trémulos de raiva fazia rodar a cadeira para longe da vidraça da sala. Ele fingia-se surpreen-dido, mas não evitava o sarcasmo, via-se-lhe nos olhos a forma industriosa como tudo, cada palavra, era convertido em farpas, ainda que se forçasse a ser subtil. Não me passava pela cabeça sugerir-te isso, querida, dizia, apenas achei que te seria útil uma companhia. E a mim apetecia-me dizer uma companhia mais assídua, mas continha por segun-dos a vontade de argumentar, estava já demasiado humilhada para me submeter a estes torneios. Agradeço que te preocupes com a minha solidão, respondia, abertamente irónica, sem afinal resistir ao diálogo, sobretudo aprecio a tua intenção de delegares num cão ou num caixote as obrigações do amor fraternal. Depois arrependia-me de frases destas; eu precisava dele, isso era evidente, mas a mágoa que sentia pedia-me que ocultasse o mais possível as minhas fraquezas. Ele obtinha a sua pequena vitória e sentia-se ainda mais investido na função de tomar decisões por mim, de saber o que era melhor para mim, mesmo que o melhor para mim fossem coisas insuportáveis como

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ter uma mascote ou uma mulher-a-dias ou uma enfermeira particular. Abominava a intromissão de quem ou o que quer que fosse na minha casa, mas o meu irmão estava disposto a passar por cima de mim para assegurar o meu bem-estar e não se dava conta do paradoxo. Talvez porque não era propriamente em mim que ele pensava, mas na noção de correcção que lhe tinha sido inculcada cedo com um conjunto enorme de princípios de pacotilha. Ter uma irmã, a sua única irmã, o último membro da família, prostrada numa cadeira de rodas era algo que se cravava nas suas entranhas com a força das bestas que ele conhecera em África e que lá caçara com decisão e jactância.

A doença não era para ele um mal que se abatera sobre mim, mas a desculpa que eu procurara toda a vida. Am-parava-me por dever familiar e social, mas odiava-me por aceitar a reclusão e uma vida que ele considerava inútil. Às vezes queria que eu ficasse a par de milagres que certas publicações pouco escrupulosas divulgavam, insinuando à sua maneira pretensamente divertida que pela oração é que nos salvamos. Algures na sua mente tradicional residia a ideia de que se eu desejasse suficientemente viver e fosse suficientemente fervorosa nas crenças que ele achava respeitáveis haveria uma altura em que teria acumulado tantas ave-marias e tantos pais-nossos que não me restaria outra hipótese senão levantar-me e caminhar, tal a força da fé e a misericórdia de Deus. Eu insultava a sua persona-lidade beata e dizia-lhe que a única coisa de que necessitava era que ele se pusesse a milhas, me deixasse tratar da minha vida na minha casa. Como tu quiseres, dizia ele sem na realidade dar importância ao que eu pensava nem se sentir livre de obrigações para comigo, mas na tua condição dispensar a companhia de um cachorro ou de um gato é uma atitude soberba. Eu ficava a pensar na expressão, mas estava cansada de ser racional, já não lhe dizia que ter as pernas paralisadas não era uma sentença, não me obrigava a nada que não quisesse. Dizia vai-te foder, e isto, que não resolvia nada, aliviava-me um pouco, e por isso repetia algumas vezes, vai-te foder, vai-te foder.

Talvez devesse estar agradecida por ter alguém que queria olhar por mim, mas não conseguia sentir as coisas deste modo; para o meu irmão eu era uma parte da herança da família, mais um dos itens do inventário a que era preciso dar atenção, só isso. Não se perdoaria se me acontecesse algo, como não se perdoava quando se quebra-va uma das jarras chinesas ou quando uma das propriedades ardia, mas não lhe importava muito a minha opinião sobre o assunto. Pelo meu lado, eu considerava que o que havia para me acontecer tinha acontecido e não tinha a certeza de o lamentar, lamentava-o sem dúvida muito menos do que ele. Quando um dia damos por nós numa cadeira de rodas, o primeiro pensamento é para todas as coisas que vamos deixar de poder fazer, como se antes daquele momento passássemos os dias a querer fazer coisas. Suponho que não escapamos com facilidade à autoco-miseração e quando o conseguimos ainda temos de lutar com a comiseração alheia. Se me tivessem amputado as pernas, o meu irmão não teria dúvidas, até para ele seria evidente o carácter inelutável da minha nova condição. Mas as pernas estavam ali, incólumes, e percebo que as pessoas se revoltem contra a inutilidade de membros assim. Eu fi-lo, quando percebi que sem as poder usar ia depender de terceiros para a minha derradeira viagem, aquela que me levaria a casa, ao sítio de onde eu finalmente tinha uma razão para não sair. Passei muito tempo no hospital à espera

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de um enfermeiro verdadeiramente altruísta que me metesse numa ambulância e me deixasse sem perguntas no elevador do prédio. Tinha a certeza de que faria facilmente a parte final do caminho, no patamar do meu piso. Mas foi o meu irmão quem empurrou a cadeira, cheio de fórmulas de encorajamento e estatísticas sobre a longevidade das pessoas em condições adversas, relatos de triunfo e felicidade. O meu irmão não era o único a confundir espe-rança de vida com esperança de viver. Eu desistira desta aspiração há muito tempo e não nego que por isso tinha mais facilidade em encarar a paralisia como uma benesse. Infelizmente a minha desculpa era também aquilo que me fazia depender dele. Claro que, pelo meu lado, a dependência seria suportável se ele me tratasse verdadeiramente como uma das cabeças de gado da família, me afagasse regularmente o cabelo e mais não fizesse do que designar alguém para fazer subir até mim as coisas de que eu necessitava e para tratar da limpeza da casa uma vez por sema-na. Se ele fosse capaz deste tipo de honestidade, a minha docilidade estaria à altura das conveniências. Mas havia o factor humano a contaminar as nossas relações. Ele não conseguia ser um cínico acabado e eu não me livrara de todas as carências, havia ainda espaço em mim para o afecto, vivia um estoicismo inacabado. Quero dizer que ainda amava o meu irmão, quase tanto quanto o odiava.

Sempre que entro aqui, dizia ele, abandonando por momentos a estratégia do humor, sinto uma nostalgia forte, recordo como era regressar a casa nas férias grandes, depois de termos ido para o colégio; os objectos, a disposição dos móveis, quando eu entrava tudo me parecia familiar e novo simultaneamente. E lembro-me que o que me ape-tecia era passar os dedos pelas coisas, espreitar todos os compartimentos, mesmo antes de abraçar o pai e a mãe. Herdaste dela o bom gosto, o jeito para decorar um lar. Olho à volta e poderia jurar que houve aqui dedo dela, Deus a tenha. Não era verdade, a casa da família era muito mais antiga do que a mãe, e quando ela lá chegou não teve autorização do pai para mexer em nada, para redecorar o que quer que fosse. A memória do meu irmão es-tava a fazer um trabalho delicado de reconstrução, a sua actual sensibilidade servia o branqueamento do machismo paterno, enraizado no lado masculino da família por séculos de prática empedernida. E nada no meu apartamento lhe permitia lembrar o património familiar, era apenas eu que me parecia fisicamente com a mãe e ele que se sentia perdido sem os pais, os avós, os tios, a pequena multidão que nos acompanhou até à idade adulta. A linhagem tinha chegado ao seu fim connosco e ele não aceitava com facilidade que o último membro do clã, eu, fosse tão volunta-riamente anónimo e desinteressado do futuro. Uma casa tem de ter armários e mesas e cadeiras, não?, respondia-lhe com vontade de o desprezar por cada palavra que dizia. Essa é a única semelhança, em casa havia mobília e aqui há mobília, não sei o que mais podes ver de parecido. Nem nós nos parecemos com aquelas duas crianças estúpi-das, tu agora com a mesma barriga e a mesma obstinação cega do pai, eu sem a paciência que naquela altura tinha para as vossas ilusões patriarcais. Não, voltava ele, por mais que o negues aqui respira-se o mesmo ar que se respi-rava lá em casa. Isso é porque de cada vez que expiro me livro de mais um pouco desse tempo de merda, retorquia eu. Podes vir aqui absorver o meu dióxido de carbono todas as vezes que quiseres, com a condição que deixes lá fora os teus projectos para mim. Ele dilatava as narinas ao ouvir-me, inspirava a plenos pulmões como se de facto a

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atmosfera estivesse impregnada dos aromas da velha casa. Algures no seu cérebro era estabelecida uma ligação e a realidade não o conseguia desmentir. Na verdade, a ligação existia, mas não estava na casa, estava em mim, não só na minha respiração, mas no som da minha voz, nos traços do meu rosto, nos gestos que a cadeira me deixava fazer, na forma como em certos momentos eu o olhava.

Não estranhei quando uma noite me pediu para o deixar subir com uma das suas mulheres e dormir no quarto vago. Aquilo não fora uma necessidade de última hora derivada de uma avaria no carro, era uma ideia fantasiosa que ele não se impediu de pôr em prática. O seu objectivo com as mulheres era a procriação, assegurar a descendência. Teve várias antes de perceber que o problema estava nele, que o seu sémen era inútil. Naquele dia tinha sido emi-tido o derradeiro boletim clínico e ele tinha-o lido, mas na sua mente tradicionalista e beata havia ainda uma última tentativa a fazer, procurar no domínio do místico aquilo que a ciência lhe negava. Tocou à campainha e conduziu a mulher ao quarto, mas ficou-se a vaguear pela casa antes de lhe ir fazer companhia. Parecia absorto, preocupado com alguma coisa, mas na verdade dedicava-se a uma espécie de ritual, embebia-se da atmosfera, convocava os fantasmas que a minha respiração largava no apartamento. O seu olhar cruzou-se com o meu por várias vezes e em todas ficava latente um pedido, uma súplica que ele não tinha coragem de materializar. Cansada daqueles enigmas e da sua deambulação, fiz rodar a cadeira para o meu quarto e deitei-me. Ouvi-o encostar-se à minha porta antes de avançar finalmente para o quarto que eu lhe emprestara e nesse momento percebi o que pretendia de mim. Mas não estava disposta a alimentar a sua credulidade, a servir de amuleto para aquilo que se propunha. Não seria eu quem abençoaria aquela cópula, mesmo que por absurdo estivesse convencida como ele de que se velasse à cabeceira da cama, em nome de todos os que nos tinham antecedido neste mundo, a mulher debaixo do seu corpo lograria conceber naquela noite.

Havia ainda, talvez, outras razões para aquele seu desejo, mas preferi ficar a ver o dia aparecer na janela e não pensar no assunto.

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Um pensar alternativo

Cristina Santos

Patrícia Alves

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tarde de julho, um calor que não se podia, o Alentejo parecia o deserto… “só faltam os molhinhos de palha a rolar, porque as ondinhas de calor a sair do chão já vejo eu.”

Rafael não conseguiu deixar de pensar que a melhor decisão que havia tomado fora a de não convidar ninguém para aquele passeio, nem conseguia imaginar o que seria para além de todo o calor ter de aturar alguém a lamentar-se “que cansado que estou”, “quando acaba esta passeata sem objetivo?”, “nem sequer tens água, isto assim é para morrer”. A felicidade era então visível na sua cara, mas ao imaginar todos os comentários que fariam por estar ali com ele, lembrou-se também de todos os comentários que lhe haviam feito ultimamente, ao voltar à sua terra para as férias do verão. “Estás cada vez mais parecido com o teu avô”, “a tua mulher também deve estar farta de ti, não?”, “afinal quando crescem é que se percebe com quem são realmente parecidos”.

As parecenças com o avô não tinham grande problema para ele, pelo contrário, o avô sempre tinha sido um porreiro, mas quando pensava na cara que a avó fazia cada vez que o avô entrava mais tarde em casa, e em todas as discussões em que ela pouco abria a boca e ele é que gritava e gesticulava… chegou mesmo a vê-lo bater na avó, “uns sopapos nunca fizeram mal a ninguém, educam”. Estas palavras do avô já não lhe traziam tão boas recor-dações…seria assim tão parecido com ele?

Rafael era uma pessoa bastante saudável, carinhosa, conversadora e até um pouco romântica, embora isto não fosse muito o seu género. Casou-se fazia em Setembro 4 anos e sempre dizia “não me interessa o que pensam, gosto mesmo da minha mulher”. A vida de casado não era muito diferente da vida de solteiro, trabalhava, dava umas voltas com os amigos, bebia uns copos, quando chegava a casa conversava com a Ana, falavam do dia, dos traba-lhos, de vez em quando jantavam fora, iam ao cinema… Como não tinham filhos tinham algum tempo livre que, na maioria das vezes, passavam juntos. Mas não era tudo um mar de rosas, e ele sabia… Discutiam, depois ficavam a bem, mas quando discutiam valia “quase tudo”, insultavam-se, gritavam, diziam que o outro não sabia fazer nada, e às vezes um dos dois chegava mesmo a dizer que se voltasse atrás nunca se casaria… mas tudo passava e no dia seguinte, com a cabeça fresca, já estava tudo bem… Nunca bateu na Ana, mas por vezes no meio das discussões até tinha vontade de a “educar”… Abanou a cabeça “Que pensamentos parvos. Estou mesmo a ficar como o avô. Não se educa ninguém a bater-lhe, que parvoíce!”.

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O calor era mesmo insuportável e como não tinha água resolveu que seria melhor encostar-se um pouco na sombra de uma árvore, mas as palavras não lhe saiam da cabeça “Igual ao avô…”. Um pouco mais tarde, depois de já ter passado pelas brasas relembrou vários momentos da sua relação… Aquela vez que tentou cozer um ovo para fazer uma salada e quando foi para descascar… pum… o ovo não estava cozido e a cozinha passou a ficar com as paredes pintadas de amarelo… e riu-se, riu-se muito. Mas, o que aconteceu a seguir? Não se conseguia lembrar… Ah, a Ana apareceu, olhou para o que se estava a passar e muito irritada disse: “Não acredito, nem uma merda de um ovo… Para que querias tu o ovo? Agora eu é que tenho de limpar, não é? Claro que sim, se limpares tu temos salmonelas na cozinha para o resto da vida.” Rapidamente pegou num pano e começou a limpar, escorraçando-o da cozinha. Ele até achou piada, de certeza que ela também achou, devia estar chateada com o trabalho ou isso, coitada.

No meio de gargalhadas, lembrou-se de outra… O dia em que a passar a ferro deixou cair a tábua porque es-tava todo entusiasmado a dançar a música da rádio… Mais umas gargalhadas… e depois?... Ah é verdade, o vizinho viu-o pela janela “Pois claro, homens a fazer coisas de mulheres só dá asneira. Devias era estar a conversar com os teus amigos pá! Isso nunca vai dar bom resultado”… Mas que tinha piada, tinha… E aquela vez que estava a fazer a mala e por muito que tivesse pensado em tudo o que queria levar para as férias acabou por se esquecer de levar boxers… “Que parvoíce, não dou mesmo uma para a caixa!”. Mas o que se riu quando teve de vestir os calções de banho, sem boxers e ir à cidade mais próxima comprar vários pares, que não precisava, verdade, mas aproveitou e comprou só dos que tinham desenhos parvos e andou as férias todas a dizer que os seus boxers de corações e de ursinhos fariam sucesso se mais alguém os visse… Os amigos só lhe diziam “Porque não foi a Ana a fazer a mala? A mim é sempre a minha mulher que me faz a mala e nunca falta nada. Elas é que são boas a fazer essas coisas, são coisas de mulher…”

O caminho para casa não era longo e com todos estes pensamentos e com tantas gargalhadas à mistura nem deu conta do caminho de volta. Quando entrou na casa dos seus pais, só a Ana lá estava, a acabar de arrumar a cozinha. Entrou deu-lhe um beijo a sorrir, “gosto de ti sabias?”. A Ana sorriu e mandou-o ir tomar banho, estava todo transpirado e daí a pouco teriam de ir ter com uns amigos e amigas para um petisco.

Enquanto o Rafael tomava banho a Ana sentou-se um pouco no sofá, estava cansada. Havia ajudado a mãe de Rafael a fazer a comida, a servi-la, a tirar tudo no final e depois ofereceu-se para limpar enquanto o Rafael foi dar um passeio e os seus pais foram ao café. Ninguém se ofereceu para ajudar, mas caso tal tivesse acontecido teria dito que não “Quanto mais pessoas a fazer a mesma tarefa, pior resulta. Assim canso-me mais, mas pelo menos sei que foi tudo bem feito…”

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Desde pequena que a Ana aprendeu a fazer tudo o que era preciso, a mãe criou-a sozinha depois de o pai ter morrido, e desde os seus 6 anos que ouvia “Uma mulher tem de ser forte, as mulheres é que levam as famílias para a frente. Tens de saber fazer tudo, porque os homens não conseguem ver e fazer muitas coisas ao mesmo tempo, eles não veem a sujidade, não conseguem cozinhar bem, nem sequer a cama fazem… Depende de nós.” E com um sorriso fazia-lhe uma festa na cara e ensinava-lhe tudo.

Agora, deitada no sofá, ouvia a água do duche do Rafael correr, e com o barulho da água lembrou-se da primeira vez que, já casada, lavou a loiça com ele, nesse dia combinaram, ele lavava e ela limpava, para ser diferente. Conver-saram muito enquanto o faziam, riram-se, brincavam um com o outro, foi bastante divertido. No final olhou para os copos e estavam mal lavados e os pratos também tinham alguns restos, coisas pequenas… e lembrou-se das palavras da mãe “os homens não conseguem ver a sujidade”. Mas isso não a estava a chatear, pensou “não lhe vou dizer nada, ele estava tão divertido, e foi um querido por querer ajudar, qualquer outro nem tinha tentado.” Mas as palavras da mãe não lhe saíam da cabeça e disse “Oh pá isto está tudo mal lavado, não consegues mesmo ajudar-me em nada… De hoje em diante sou eu que lavo sempre a loiça.”. Dois dias depois chegou a casa e o Rafael estava a lavar a loiça “Estou a fazer-te uma surpresa, pensei que podia ajudar um bocadinho, como ias chegar tarde…” Ao o-lhar para toda a espuma e toda a loiça em monte irritou-se como nunca se tinha antes irritado com ele “Estás a ver bem o que estás a fazer? Isso não ajuda nada. Vai dar uma volta, vai conversar com alguém, sei lá… deixa-me a mim fazer estas coisas, tu não consegues…” A partir desse dia só a Ana lavava a loiça, mesmo que fosse a única atarefada lá em casa. Agora, olhando para trás, pensava “Coitado, ele só queria ajudar, nem lhe dei uma oportunidade”.

Ao imaginá-lo no meio de toda a espuma deu-lhe uma vontade enorme de rir… Lembrou-se logo de seguida da vez em que os convidaram para ir jogar futebol, que dia tão divertido, ela foi das poucas mulheres que foram, ela e a Sandra, uma amiga de há muitos anos, alinharam na brincadeira e… não deram uma para a caixa. Cada vez que a bola vinha caiam, escorregavam, mas fartavam-se de rir, os homens diziam “Olha lá, até têm jeito para a coisa…”, isto quando, por acaso, a bola lhes batia no pé e até parecia que sabiam jogar. No final do jogo todos conversavam, elas sabiam que eles tinham detestado a forma como elas jogaram, mas até lhes acharam graça e todos se riram muito. Mas a verdade é que todos sabiam que tinha sido uma vez sem exemplo, aquele jogo era para homens, não valia a pena... Mas lembrou-se que um ano depois disso soube que a Sandra tinha começado a jogar futebol numa equipa feminina e até se estava a sair muito bem. Talvez tenha sido aquele jogo que a incentivou…

Por pensar em homens, a Ana recordou-se do dia em que estava sozinha em casa e queria pendurar um cande-eiro, pesado, grande, sempre pensou que não conseguisse, mas subida numa cadeira e com algumas “engenhocas” lá conseguiu pôr o candeeiro no escritório. O Rafael até achou giro, mas no dia seguinte, quando o avô da Ana foi lá a casa e lhe mostraram o candeeiro, disse logo “É bonito sim. Quem o pendurou aqui?”. Ao saber que tinha sido

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a Ana “O quê? Mas que parvoíce. Vou já buscar as minhas ferramentas e dar aqui um jeito nisto, como está é bem capaz de cair na cabeça de alguém. Ajuda-me lá Rafael. Ana, querida, podias ir preparando um lanchinho enquanto aqui o pessoal da força faz isto”.

O chuveiro parou e com o barulho que o Rafael fazia a sair do banho a Ana percebeu que devia levantar-se e arranjar-se também. Foi para o quarto, o Rafael meio vestido meio a pingar olhou para ela com um olhar terno, ela observou o quarto, a toalha molhada em cima da cama, a roupa suja em cima da roupa lavada que ainda estava na mala, os sapatos cheios de terra em cima do tapete, pensou em dizer uma coisa, algumas coisas, muitas coisas, estava a começar a ficar realmente irritada, pensou novamente e disse “podias ter mais cuidado com as coisas”, quase em automático ele olhou à volta e percebeu tudo o que ela poderia pensar que estava errado, “desculpa, estava à pressa, prometo que vou ter mais cuidado… Sabes hoje estive a pensar muito na nossa relação, acho que podia começar a aprender a fazer mais umas coisas lá em casa para te ajudar… és sempre tu a fazer tudo, eu não sei fazer, é verdade, mas se tu me ensinasses…”. A Ana pensou em tudo aquilo que desde pequena havia aprendido, e em tudo o que gostaria de saber mas nunca ninguém lhe ensinou porque não eram coisas para mulheres, e respondeu “Ok. Tu também me podias ensinar umas coisas…”. Beijaram-se, acabaram de se arranjar e foram para o petisco. Quando chegaram o Tiago, amigo de Rafael há muito tempo, falou-lhes e pediu “Rafael podes dar ali uma ajudinha nos grelhados, talvez a Ana possa ajudar na cozinha, estão lá as outras raparigas todas…”. A Ana e o Rafael olharam-se, queriam estar juntos, mas… se todas as mulheres estavam na cozinha e os homens cá fora… Bem, não deveria ser por muito tempo…

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Quem quer casar com a Maria Alice?

Mara Alves

Eric Cuadrado

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era uma vez, uma rapariga que não era alta, nem baixa, era forte. Tinha uma força desmedida, capaz de levantar um touro. O cabelo era liso, mas cortado de uma forma totalmente desuniforme, à medida que a tesoura

o apanhou. Gostava dele pelas orelhas. Maria Alice não tem qualquer memória de vestir saias ou vestidos, nem de brincar com bonecas, sempre preferiu andar no campo, especialmente a fazer armadilhas aos pássaros. Era uma rapariga com muitos traços masculinos e pouco ou nada feminina. Usava calças de tecido, uma camisa verde tropa, um colete, um relógio de bolso e uma boina aos quadrados. Era conhecida na aldeia como “machorra” ou “mulher -homem”. Afinal, sempre gostou de coisas de homens e das coisas que os homens fazem. Todos os dias era vista na taberna a cantar e a beber copos de vinho. Quando saía da taberna, cambaleava, de parede em parede, a soluçar, a peidar-se e a arrotar como um homem. A caça e a pesca eram a sua paixão.

Um certo dia, o pai já cansado de ouvir os outros a dizer que a filha era “machorra” tomou uma decisão, a Maria Alice tinha de casar. O difícil ia ser encontrar homem que quisesse desposar a filha — como é que um homem casa com uma mulher que se parece com um homem — pensava o pai.

A notícia de que o pai queria um noivo para a Maria Alice caiu na aldeia como uma bomba. Todos comentavam o ridículo que seria encontrar um noivo para a “machorra”. Uns faziam apostas e outros riam até cair. A procura do noivo para a Maria Alice virou chacota popular.

O pai, irredutível, já tinha um plano: deixava duas cercas e um burro a quem casasse com a filha. O pai tinha a certeza que a filha era uma filha, viu-a mal tinha nascido, disso não restavam dúvidas! Só não compreendia porque é que a filha não se vestia como as outras raparigas, com saias, vestidos e lenços coloridos. Mas estava convicto que com as duas cercas e o burro conseguia um noivo para a filha. Além disso, Maria Alice também sabia fazer o que as mulheres fazem: cozinhava, lavava e arrumava a casa. O que mais queria um homem para ser feliz?

Naquele dia, estava uma manhã solarenga, era Páscoa. Era um dia importante na aldeia, não por ser Páscoa, mas por ser o dia em que Maria Alice ia escolher o noivo. O pai montou uma barraca onde eram entregues as senhas aos candidatos, com a seguinte descrição, feita em carimbo, “Quem quer casar com a Maria Alice”. Em todas as aldeias, vilas e até na cidade foram afixados cartazes com o acontecimento — “Atenção solteiros, viúvos e homens

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que nunca pensaram em casar. Esta oportunidade é para todos. Ofereço duas cercas e um burro a quem quiser casar com a Maria Alice, uma rapariga mega prendada e com atributos físicos que fazem tremer qualquer homem. Apareçam no dia de Páscoa, depois da missa, no largo da aldeia da Cisma” — diziam os cartazes.

O largo foi pequeno para tantos homens, jovens, novos e velhos. Uns vinham de burro, outros em carroças, amon-toados uns nos outros, e até a pé de aldeias e de vilas muitos distantes. Ninguém queriam perder aquela oportuni-dade fabulosa de casar e ficar rico. As senhas “Quem quer casar com a Maria Alice” não chegaram para todos. Caos total. Que revolta tão grande! A assistência indignou-se, o povo partiu para a batalha. Sucederam-se lutas e brigas, socos, luta livre, boxe e todos os tipos de luta conhecidos e desconhecidos, valeu tudo, até matar, por tamanha injustiça.

Maria Alice estava escondida atrás da barraca, apenas uma cortina verde a separava da rua, chorava tanto que alagou as restantes resmas de senhas que o pai não pôde utilizar. Não desejava casar, queria era ir à pesca e caçar, qual casar! Nunca lhe foi conhecido namorado, nem nunca falou nessas coisas, nem se sabia se algum dia o tinha de-sejado ou não. Pelo modo como se vestia, provavelmente não. Seria difícil enfiar-lhe um vestido de noiva, além disso não devia de gostar de homens.

O pai não se emocionava com o pranto, o seu plano estava prestes a ser cumprido, Maria Alice não saía dali sem um homem para casar.

O momento mais esperado estava a chegar, toda a aldeia estava impaciente pelo desfecho. Faziam-se apostas, ven-diam-se comidas e bebidas, até bancadas se montaram, mas mesmo assim o lugar era pequeno para tanta algazarra, parecia que o mundo estava ali em peso. A Aldeia da Cisma passou a ser o centro do universo. Era gente de lu-gares distantes, de que nunca se tinha ouvido sequer falar. Eram os que viviam na aldeia e os que já lá tinham vivido, e os familiares dos que ainda viviam e os outros. E ainda, os curiosos, os candidatos e a família, parentes e amigos, até gente importante e menos importante estava lá. Era um momento histórico. Não havia quem não quisesse ver com os próprios olhos quem ia ser o escolhido para casar com a Maria Alice.

O dia já ia longo e a noite ia cair não tardava; era mesmo isso que o pai tencionava, pois o aspeto físico de Maria Alice era a principal preocupação. Assim, no lusco fusco, os candidatos iam ter dificuldades na observação a olho nu da noiva, mesmo os que levassem uma lupa ou usassem óculos, por aquelas bandas a noite era mais escura que o carvão mais preto. E assim, aos olhos dos candidatos, tudo não passaria de um vulto.

O pai salta para o estrado, montado em frente à barraca, e grita — “atenção, cheguem-se à frente os candidatos

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com as seguintes características: que saibam cantar, pescar e caçar”. Consciente de que a filha não poderia viver sem isso, e que casar já seria castigo suficiente para uma vida, o pai decidiu que o noivo da filha teria de estar capacitado para a acompan-har nas suas atividades extra matrimoniais.

Ainda mal compostos da batalha anterior, dá-se uma nova revolta popular — “que condição é essa? isso não estava escrito nos cartazes”, gritavam, a reclamar. As senhas foram rasgadas e comidas, a raiva instalou-se no largo da aldeia. Muitos tinham apostado tudo o que tinham e o que não tinham, outros já fizeram planos para o burro, e um ou outro, mais pretensiosos, já tinham preparado os documentos de promessa de compra e venda das cercas. Eram pedras naqueles ares, ovos e fruta podre, o povo misturou-se com os candidatos e assim se deu a maior batalha de todos os tempos. Entre mortos e feridos, apenas restou um pretendente.

Era franzino, imberbe e delicado. Sabia cantar maravilhosa-mente, era de fazer chorar os corações menos amolecidos. Na pesca, tinha sempre a cana mais bonita, a mais ornamentada com flores pintadas à mão por ele. Ir à pesca era o momento alto do dia, adorava exibir a cana. Caçar, só mesmo borboletas.

O pai achou-o estranho, um pouco “azedo”, mas também, que hipóteses tinha? era a última oportunidade de casar a filha. O encontro ia dar-se, os dois iam bater o olho um no outro. A cortina abriu, já era noite. O povo fez silêncio, as respirações pararam, Maria Alice apareceu. Com a escuridão da noite, apenas pôde ver as luzes refletoras da boina do noivo, e ainda as sabrinas escarlate. Ele apenas conseguiu ver que a Maria Alice não era alta nem baixa, ficou feliz, eram da mesma altura. Nada importou!

ESGOTADAS

“Quem quer casar com a Maria Alice”

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Maria Alice e Tavinho, frente a frente pela primeira vez, olho por olho, buço por buço, boina por boina, ela não fugiu, ele também não. Não choraram, apenas sor-riram, foi como se tivessem lido a alma um ao outro. Foi amor à primeira vista!

No outro dia de manhã, a aldeia acordou como todos os dias, mas era um dia diferente, o largo já não existia! Era apenas um monte de terra, pedras, fruta e ovos, quase tudo tinha sido destruído. O chefe da aldeia apressou-se a acusar o pai da Maria Alice, por causa dele e da sua filha é que a aldeia estava assim.

Tavinho, noivo da Maria Alice, saltou em sua defesa, “aqui não há culpados, a não ser a curiosidade e o preconceito que estão dentro das vossas cabeças”. O silên-cio fez-se sentir de imediato. Maria Alice emocionou-se com a bravura do noivo, nunca ninguém a defendera antes, os homens com quem se costumava dar eram brutos, toscos e indelicados, mal falavam, só arrotavam e bebiam. Uma rosácea lhe cobriu o rosto de alegria, deu a mão ao Tavinho e apertou-a, com uma expressão no rosto que adivinhava o quanto iam ser felizes.

A verdade é que todos tinham ido ali para ver a humilhação pública da Maria Alice, não houve ninguém que não quisesse ir. Houve, sim, quem até fizesse bom dinheiro com tal acontecimento. Ninguém pensou nos sentimentos e na tris-teza de Maria Alice. O que todos queriam era “sangue”, mataram-se por aquilo, envolveram-se, emocionaram-se, e por fim desiludiram-se. Maria Alice e o noivo entenderam-se mal se viram.

“Que desilusão, como pode um homem aceitar uma mulher-homem, uma ma-chorra que só anda com os homens”, comentavam, escandalizados, os desiludidos.

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Cassandra

Olinda Gil

Cláudia Banza

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Livro I

1Estas são as palavras de Cassandra, mulher pensante, tal como ela as conseguiu proferir. 2Cassandra sentia que dentro de si tinha muitas palavras para dizer ao mundo. 3Mas essas muitas palavras prendiam-se-lhe no pensa-mento, não as conseguindo escrever. 4Cassandra queria escrever as palavras que pensava e mostrá-las ao mundo, mas as palavras eram mais rápidas no seu pensamento do que nas suas mãos. 5E Cassandra não conseguiu escrever nenhuma das palavras que queria dizer. 6Conseguiu dizer algumas, aqui transcritas fielmente ao que foram ouvidas. 7Porque Cassandra não conseguiu também dizer todas as palavras que pensava, uma vez que o seu pensamento era também mais rápido do que os seus lábios. 8Por essa razão este manuscrito nunca poderá ser fiel aos pensamentos de Cassandra.

Livro II

1As palavras surgiram em Cassandra muito cedo. 2Os seus pensamentos dominaram a sua personalidade. 3Cassandra tornou-se calada e observadora, absorvendo a realidade à sua volta. 4Mas as palavras que surgiram a Cassandra nos seus pensamentos eram reflexões e opiniões, que resultavam na observação crítica de tudo o que a rodeava. 5Cedo Cassandra se apercebeu da dificuldade de contar as suas pequenas palavras, porque era criança. 6As suas pequenas palavras não eram levadas a sério por quem as ouvia. 7E como não podia dar a conhecer as suas pa-lavras, mantinha-as dentro de si. 8E dentro de si elas cresciam e condensavam-se. 9E quanto mais fortes se tornavam as suas palavras, mais rápido começava a ser o seu pensamento. 10Depois disso, as suas palavras não foram tomadas a sério por quem as leu na sua adolescência. 11Tomaram a sua crítica por revolta, a sua reflexão por imaturidade. 12Disseram-lhe que as suas palavras só existiam porque não conhecia o funcionamento do mundo. 13E Cassandra, pela primeira vez, não conseguiu explicar as suas palavras escritas, porque elas já não conseguiam ser fiéis ao seu pensamento.

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Livro III

1Quando se tornou adulta, as suas palavras já haviam vencido a sua personalidade, e não conseguira ainda dá-las a conhecer. 2Mas sabia que as suas palavras iriam ser o imperativo da sua vida. 3Contudo, e para que as tentas-se dar a conhecer, Cassandra tinha de se dar a conhecer a si mesma. 4Porque ninguém ouve palavras sem rosto. 5E para se dar a conhecer, Cassandra tinha de lateralizar o imperativo da sua vida: as palavras. 6Mas mostrar o seu rosto, quando todos querem mostrar os seus, é de grande dificuldade. 7Cassandra teve de retaguardizar o imperativo das suas palavras. 8Porque para dispensar energia a dar a conhecer o seu rosto tinha de encontrar a fonte dessa energia. 9E foi assim que Cassandra encontrou o seu primeiro emprego.

Livro IV

1Aquando das primeiras vezes que conseguiu mostrar o seu rosto, perguntaram-lhe de quem ele era. 2Ao que parece, as suas palavras, para serem ouvidas, tinham de ser proferidas por um rosto que tivesse ganho compro-vada experiência de vida. 3E as suas palavras condensavam-se tanto dentro da sua mente, que já não as conseguia escrever. 4E mais difícil era fazer-se ouvir do que fazer-se ler. 5E quando Cassandra teve idade para acumular expe-riência de vida suficiente para o seu rosto ser visto com respeito, perguntaram-lhe se tinha marido e filhos. 6Mas Cassandra tinha-se esquecido de ter marido e filhos. 7E então disseram-lhe que mulher alguma seria levada a sério se não tivesse marido e filhos. 8“E se eu fosse homem?” 9Perguntou Cassandra. 10Então contaram-lhe que, se ela fos-se homem, não precisaria de ter mulher, nem filhos. 11Nem precisaria de provar nada na sua vida. 12Nem precisaria de ter mais idade, pois a beleza, no homem, não é sinónimo de falta de seriedade.

Livro V

1Então Cassandra desistiu de tentar dar a conhecer as suas palavras. 2Até porque as suas palavras também já não eram fiéis aos seus pensamentos. 3Foi quando um grupo de mulheres quis ouvir o que Cassandra tinha para dizer. 4Eram mulheres como ela, que se tinham esquecido de ter marido e filhos. 5E muitas mulheres novas que ainda não se tinham lembrado de ter marido e filhos. 6As outras mulheres, as que se lembravam, não só não queriam ouvir as suas palavras, como as abominavam. 7Mas a partir desse momento as palavras de Cassandra começaram a mudar. 8As suas críticas e reflexões tomaram um tom muito profundo. 9E Cassandra não as conseguia dizer.

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Livro VI

1Então Cassandra quis deixar mensagens às outras mulheres. 2Quer estas também tivessem palavras para divulgar, ou apenas a quisessem ouvir e repetir. 3Em primeiro lugar, Cassandra disse que todas as palavras que tinha proferido até àquele momento não tinham validade. 4Porque até aquele momento Cassandra não tinha transpa-recido a verdade. 5Em segundo lugar, Cassandra disse que essa verdade era a maior facilidade com que os homens podiam dar a conhecer as suas palavras do que as mulheres. 6E que era mais fácil um homem ser levado a sério do que uma mulher. 7Em terceiro lugar, Cassandra afirmou que as mulheres eram as primeiras a formalizar esta situa-ção, quando ensinavam os homens-criança a não as levar a sério, e ao mandar calar as suas filhas mulheres-meninas. 8Em quarto lugar recordou que nunca um homem poderia aceitar casar com uma mulher com estes pensamentos, porque esta o nunca o aceitaria como superior.

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Livro VII

1Foi então que Cassandra contou a história das garças. 2As garças eram dos pássaros mais belos que Deus tinha criado. 3Mas, no início da criação, quando ainda os animais falavam, as garças gostavam de dar a sua opinião sobre tudo. 4Criticavam e faziam reflexões. 5Mas os outros animais não gostavam de ouvir todas as palavras das gar-ças. 6E pediram-lhes que só dissessem aquilo que gostavam de ouvir. 7Mas as garças recusaram. 8E ao recusarem, as garças causaram um dos maiores conflitos de toda a criação. 9Então, Deus, que preparava o mundo para a chegada da humanidade, queria resolver aquele conflito antes da chegada dos seus filhos predilectos. 10E viu que a linguagem era tão bela que só a humanidade deveria ter o seu uso. 11Deus decretou então que todos os animais deixassem de falar. 12E condenou as garças, como causadoras do conflito, a debicarem eternamente parasitas do dorso dos grandes mamíferos. 13E esta é a história das garças que Cassandra nos contou. 14E Cassandra acrescentou que já tinha contado essa história outras vezes. 15E que quando contava a história, os homens que a ouviam pensavam que as garças eram as mulheres, e que o castigo fora justo. 16Para Cassandra, esta história era um dos exemplos de como já não conseguia exprimir-se e dar a conhecer os seus pensamentos.

depois da leitura do livro, o silêncio da audiência que se seguia era sempre monumental. Todas as segundas-fei-ras de manhã se cumpria aquele ritual e as pessoas tinham sempre a mesma reacção. Por muito que ouvis-

sem aquelas palavras parecia que nunca se habituavam a elas.

O grupo de pessoas que ali estava a ouvir começou a dispersar : era altura de se dirigirem para os seus locais de trabalho. Ninguém sabia dizer ao certo por que razão a leitura sucedia naquela altura, era um hábito velho, que nas-cera depois do Livro de Cassandra ser escrito. Há quem diga que as pessoas levavam as palavras consigo na semana que iria iniciar, como alimento que dá força, mas a verdade é que ninguém sabia se isso era verdade.

A maior parte dos ouvintes eram mulheres, mas nada havia que impedisse a presença de homens. Se eles eram menos, isso só se deveria o facto de eles serem menos sensíveis àquela temática. Mas aqueles que ali iam eram tão crentes na força daquelas palavras que por vezes chegavam a ter mais fé que as mulheres.

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Quando Cassandra morreu, o seu número de seguidores já era bastante grande, e já havia, entre eles, quem dis-sesse que ela era uma mulher santa. As suas portas nunca se fecharam a ninguém, independentemente da idade, do sexo, da religião ou etnia que trouxesse consigo.

Depois da sua morte, o movimento de seguidores não quebrou, pelo contrário, continuava a crescer.

Acontece que as pessoas se identificavam com as suas palavras, sobretudo as mulheres. Rara era aquela que não tivesse sido diminuída pelo menos uma vez na sua vida, por causa da sua condição natural. Quer tivesse sido por falta de respeito, quer por menosprezarem as suas capacidades ou opiniões, quer por criticarem alguma das suas es-colhas (neste caso, a culpa seria só por “ser mulher”). Mas havia muitos homens que também se revoltavam, porque não gostavam que estas situações acontecessem às suas mães, irmãs, esposas, filhas, amigas. E depois de pensarem em todas as mulheres que amavam viam que também não podia acontecer com nenhuma e então juntavam-se à luta.

Mas infelizmente ainda havia muito para fazer. Havia muitos homens a depreciarem as mulheres e muitas mulhe-res a desconsiderarem as suas companheiras, e a elas próprias. E, muitas vezes, tudo isto era feito sem consciência, porque cada um só imitava aquilo que sempre tinha visto fazer e nunca se perguntara quais as consequências dos seus actos.

Depois da leitura terminada, uma jovem adolescente, de corpo ainda muito imaturo, mas de forte carácter, apro-ximou-se da mulher que tinha lido O Livro de Cassandra. Era uma mulher velha, que tinha estado entre os seus seguidores enquanto Cassandra ainda era viva.

– Eu quero ser Cassandra.

A velha mulher olhou para a criança sem saber o que lhe dizer. Viu nos seus olhos força, determinação, coragem, mas viu também impulsividade e ignorância. Mas quem não os tivera naquela idade? Certamente que Cassandra também tinha tido.

– Queres ser como a Cassandra? — perguntou-lhe.

– Não, quero ser Cassandra.

Havia qualquer coisa nas palavras da jovem que estava a escapar à velha mulher.

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– Queres ser a Cassandra? Mas ninguém pode ser outra pessoa.

– Não. Quero ser Cassandra — repetiu. — Como tu. Tu és Cassandra.

De facto, desde que conhecera Cassandra que a sua vida lhe tinha sido dedicada, e às suas palavras. Mas tal como ela, houve outras mulheres que depois deram continuidade aos seus ensinamentos. Mas todas elas já estavam velhas. Várias vezes falaram sobre isso, sobre a necessidade de continuação, mas não viam como o fazer. Tinha sido agora, nas palavras daquela rapariga, que vira o futuro, como só os jovens sabem mostrar.

– Sim, vem ser Cassandra. Eu ajudo-te.

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Amores quase perfeitos

Rita Carvalho

Nuno Carvalho

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os primeiros raios de sol batem no vidro do quarto do prédio cinzento e decrépito. O regresso à casa que herdara dos pais foi também difícil e decrépito. Passados catorze anos de casamento e depois de outros

tantos de namoro, era ainda inacreditável que tivesse voltado à cama de corpo e meio, ao individual único à mesa e aos serões em frente à televisão com jantares altamente calóricos improvisados e aquecidos no microondas. Por vezes tentava recordar-se da vivência a dois, antes dos filhos, mas pareciam já memórias de outra vida, distantes e sem sentido. Lembrava-se perfeitamente da irreverência da adolescência, na sua companhia, lembrava-se da emoção (e do medo!) de irem viver juntos, à moderna, sem terem casado. Lembrava-se da oposição dos respectivos pais e avós... Mas esquecera-se de repente da pessoa que esteve a seu lado e que agora tinha decidido sair da sua vida. Não percebia bem de que pessoa se tratava ou se realmente se tinham conhecido em toda a plenitude. Onde teria falhado?

A evidência irreversível do divórcio – afinal, já havia uma terceira pessoa há muito tempo, e não era da sua parte – trazia um vazio que lhe era novo e muito desconfortável. Esse vazio não era preenchido nem na presença dos filhos e, assim, sucumbia progressivamente a uma tristeza paralisante. Este fim de semana os filhos iriam para a outra casa: aquela onde a terceira pessoa entrou de vez, para fazer parte da família. “Mas qual família!?”, pensava. A família que lhe havia sido roubada, era o que continuava a sentir intensamente. Mas os raios de sol não se compadeciam nem da sua tristeza nem da sua revolta e era necessário pôr o dia a andar.

Os pés deslizaram a custo, de dentro da cama para dentro das pantufas de lã e, como se de uma mola se tratasse, ergueu-se em menos de nada. Acabava de se lembrar que a editora lhe tinha dito para fazer as revisões da reportagem sobre o caso de homofobia impreterivelmente até ao fim daquela manhã. Logo hoje que tinha pensado ir dar um jeitinho àquele cabelo! É sabido que quem está triste tende a procrastinar as obrigações e a pôr em segundo plano os cuidados pessoais. Agora não tinha hipótese senão rever o texto e deixar o cabelo, esse sim, para depois, ou tinha aquele chato do Lopes à perna. O seu chefe era, ele próprio, um tanto ou quanto homofóbico e não era necessário dar-lhe motivos para cancelar a reportagem. Quando pensava na reportagem, pensava também que poderia ter ido ver a peça “Gisberta” quando esteve aquelas semanas no Porto a fazer pesquisa sobre o caso. Gostava tanto de cultura e teria sido uma boa oportunidade para matar dois coelhos de uma cajadada só.

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Apesar de escrever com prazer, sobretudo jornalismo com foco em temas de exclusão social, aquilo de que realmente gostava era de fotojornalismo. Lia muito sobre abordagens e técnicas e tinha algumas máquinas fotográficas com as quais fazia experiências. Às vezes, para se inspirar, começava o trabalho de escrita com base em fotografias que procurava sobre o tema. Precisava de sentir emocionalmente o caso para depois se dedicar a ele, sem nunca perder o rigor jornalístico. Considerava que era essa inspiração inicial que tornava o trabalho final humano e acessível a todos. Neste caso, limitou-se a escrever o que obteve das pessoas entrevistadas e a recolher dados sobre o processo judicial, de uma forma asséptica e objectiva. Não se envolveu, talvez como forma de auto-protecção, para não se fragilizar ainda mais. Talvez não quisesse olhar de frente para a violência ideológica que nasce da juventude, nem para esse ódio cujas proporções foram irreparáveis. Talvez nunca quisesse sequer sonhar que um dos seus filhos pudesse aproximar-se em pensamento a essa discriminação negativa. De qualquer forma, sabia que esse pouco envolvimento também tinha muito pouco de profissional e encerrava dificuldades que tinham que ver com a fase pela qual estava a passar.

Os próprios filhos homofóbicos?! Onde teria ido buscar tal ideia...

Enquanto preparava o pequeno-almoço, ainda com uma nuvem de sono sobre o cabelo farto cujo corte acabara de ser adiado, tentava a custo preparar o seu dia. Não havia muito a preparar : era rever o texto, almoçar e ir para a agência entregar o artigo em mãos ao seu chefe. Mas parecia uma enorme trabalheira, tendo em conta que lhe apetecia ter ficado na cama. O som do descolar das borrachas da porta do frigorífico, já meio rotas e a pedir reparação, acompanhavam o seu pensamento lento e enferrujado: devia voltar a fazer dieta. Antes de tirar a manteiga e o queijo e o fiambre e também o doce de tomate, repensou. Aquela barriguinha já tremelicava a cada passo que dava e se queria refazer a sua vida em pleno também tinha que ponderar voltar a entrar no mercado romântico da oferta e da procura. “Pronto, pronto, vou comer cereais e daqui tiro só o leite!”, comprometeu-se, como se estivesse a responder ao Grilo Falante, sobre o seu ombro. Também a cozinha era um espelho do seu estado de espírito: caótico, com muita coisa por lavar e outra tanta por arrumar. Adorava cozinhar e experimentar pratos novos, especialmente quando tinha os filhos em casa ou um grupinho de amigos, ou mesmo as vizinhas da rua que se precipitavam de forma bisbilhoteira quando cheirava a bolos ou bolachas, mas quando se tratava de refeições monodose, perdia a vontade.

A manhã passou-a à secretária, em pijama e robe, e com uma caneca de café para enfrentar o sono. O texto foi revisto com a máxima concentração e foi com satisfação que deu por terminada a tarefa. Ainda se deixou impressionar pelas estatísticas recolhidas (”Quarenta por cento dos jovens entre os 12 e os 20 anos que eram homossexuais, bissexuais e que ainda não tinham bem definida a sua orientação sexual disseram ter sido vítimas de bullying homofóbico”...), ainda se deixou invadir de pensamentos aterrorizantes sobre os filhos, mas não se deixou envolver muito mais. O documento estava pronto a ser entregue. Apesar da luta árdua contra a modorra, conseguiu perfumar-se e vestir-de de forma minimamente formal e elegante. Foi ao restaurante do centro comercial na rua

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abaixo da sua e trouxe uns rolinhos de sushi para almoçar enquanto aproveitava para dar resposta a alguns emails atrasados e depois saiu. Enquanto esperava pela formalização da separação de bens e o desenlear de todas as situações logísticas e administrativas associadas ao divórcio, os únicos meios de transporte que lhe estavam reservados eram os transportes públicos. Já bem bastavam todas as formas de desvantagem em que se sentia, e ainda mais isto de se sentir incapaz de se deslocar de forma autónoma!

– Já terminou a reportagem a favor das bichas ou falta muito? — grunhiu o Lopes, do seu escritório, no fundo do corredor.

– O quê, a reportagem sobre o bullying homofóbico? Com certeza, está aqui.

– É o que for. Estava a ver que nunca mais me livrava deste assunto. É que isto não tem assunto mesmo nenhum!

– Se não tivesse assunto não havia tanto alarido para que se assinalasse o Dia Internacional Contra a Homofobia também em Portugal. Já muitos países deram o exemplo...

– Poupe-me! Vou ter que ler o seu artigo e isso já me chega. Para mim até o Dia Internacional da Mulher é uma anedota, quanto mais!

– Bem, realmente tudo o que não seja futebol para si não tem interesse.

– Ora agora é que disse uma coisa acertada, sim senhor! Só por causa disso, pago-lhe o café. Aceita um café pago por um preconceituoso, conservador e tacanho...?

Aquele Lopes tinha o dom de lhe fazer perder a cabeça mas ao mesmo tempo tinha a sua graça, de tão surreal, nunca conseguia chatear-se durante muito tempo com ele. A semana passada, na hora de fecho, cancelou a edição de uma reportagem de duas páginas sobre adopção, que estava a ser terminada em tempo útil, só porque ia jogar o Benfica. Colocou publicidade. O Lopes é assim, tem o poder de estabelecer prioridades laborais em função das pessoais. Ver a jogatana com a malta, com minis e tremoços, é que não podia falhar! Mas no decorrer do dia, o Lopes era o menor dos seus problemas, era apenas um grãozinho de pó. Nem com os comentários descabidos se conseguia revoltar, como tantas vezes fizera. Nem do abuso de poder, da prepotência, nem mesmo do preconceito. Nada importava, tudo era anestesia.

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Ainda assim, com um leve desconforto na consciência por não se reconhecer nessa apatia e falta de motivação profissional, andou a vaguear pelos corredores labirínticos da internet à procura de entusiasmo pelo tema. A grande aproximação passava pelos filhos, pelo temor que essa forma de pensar fosse terrivelmente contagiosa e nada estivesse ao seu alcance para impedir tamanha aversão irreprimível! Realmente, educar para a cidadania era uma missão para audazes, nos tempos que corriam... E tinha que fazer a sua parte de educar em solitário. Voltou então a abandonar o tema e a afundar-se em tristeza, o pensamento não permitia fugas muito prolongadas à sua dor. Nisto, encontrou um projecto interessante, que fez com que desfocasse do sofrimento: The Pansy Project! Podia ler no sítio do Público: “Por cada acção homofóbica, por cada impropério bradado aos céus, por cada ameaça política velada, ele — e outros — planta(m) um amor-perfeito no local onde tudo aconteceu. Ele é Paul Harfleet, um artista britânico que já anda há oito anos a combater desta forma a homofobia. Eis The Pansy Project (“O Projecto do Amor-perfeito”, em português). Que bela ideia. Plantar flores contra a homofobia. A arte e a cultura têm este poder avassalador imediato de fazer pensar. E as fotografias eram perigosamente bonitas. O seu batimento cardíaco alterou-se ligeiramente e sorriu, de vitalidade.

Resolveu voltar a casa a pé, recusou ir beber um chá com a sua gente da redacção. A caminhada era longa e o calçado não era o mais adequado e ainda carregava o computador, mas queria cansar-se. Durante a caminhada tomava particular atenção às flores nos canteiros, dependurados das varandas, nos parques e nos jardins. Vivia numa cidade onde a natureza se encontrava com facilidade. Ainda assim, não viu um único amor-perfeito mas começava a semear uma ideia na sua cabeça: da próxima vez que estivesse com os filhos iam plantar um amor-perfeito juntos e ia ser contra os impropérios do Lopes!

Olhou para o relógio: se fosse de autocarro ainda apanhava a mercearia aberta para tentar arranjar sementes. E assim até podia ir cortar o cabelo, se não houvesse fila no Mestre Joel. Aproveitava e fazia a barba.

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Relatos da loucura normal

Maria Filomena Fernando

Vanda Palma

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I

Tinha sessenta anos, mas os entalhes da navalha do sofrimento no rosto somavam-lhe vinte. Chorosa, lamentou-se:

– Todos me criticam por me ter divorciado ao fim de quarenta anos, mas eu devia tê-lo deixado quarenta horas depois do casamento. Eu nem conseguia andar por causa da brutalidade dele na primeira noite. Espancou-me por eu afinal ser uma mulher fraca. Nunca recuperei totalmente, massacrada por trabalhos de burra de carga, pelos dez partos difíceis, pelas tareias que me dava por tudo e por nada. Nunca disse nada a ninguém, tinha vergonha. Sabe como é, eu vinha da família dos lavradores mais ricos da terra, ele tinha sido nosso criado e eu casei contra a vontade dos meus pais. Deixei-o agora porque os meus filhos não suportavam que eu sofresse mais.

A todas as mulheres cujas histórias de vida me determinaram a ser mais livre

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III

Era mais velha, cuidara do marido durante uma longa agonia. No funeral, as pessoas choravam, por necessidade de catarse colectiva, por sentido genuíno de perda. O silêncio e a ausência de qualquer sinal de comoção ao receber os pêsames davam ao rosto a catadura inquietante das estátuas.

A certa altura, levantou-se, dirigiu-se ao féretro, ergueu o híssope e aspergiu o defunto com as únicas palavras que lhe abriram a boca nessa noite:

– Aí, filho da puta! Agora assim esticado já não me bates mais.

II

Teria a mesma idade, cumpria pena por homicídio. Com a curiosidade de estagiária interessada, perguntei à directora da penitenciária o que tinha atirado aquela mulher de olhar brando e tímido para a prisão. Informou-me que tinha matado o marido, que ele lhe batera tanto, durante tanto tempo, que um dia pediu ao filho para ir comprar um certo veneno.

– É para o pai, não é, mãe?

Ela confirmou e o filho correu à drogaria.

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Uma cor

António Coelho

João Lourenço

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descias de carregos em ponta de braços. Ligeiramente arqueados, para que, subindo na altura, o seu peso to-cando o chão, não juntasse ainda mais peso a outros pesos do corpo e da alma. Foi assim que te vi por aí.

A tua beleza era dissimulada como por uma burca invisível e os teus pensamentos esbatidos nos orifícios do pano que só tu vias. Porque só tu vias por dentro. Sem saberes da felicidade ou infelicidade que irias encontrar para além do véu, porque repetidos, os caminhos e os dias são desiguais, enquanto espreitares os pensamentos, os melhores, que escolhes em pequenas gotas, que escondes no interior e consomes em dias de alívio e até mesmo de mágoa e de raiva.

Não foste prometida. Prometido. Achas tu. Eu não. Que coisa tão capilar que nos une em iguais para nos tornar tão desiguais. Serias tu filha, filho, daquele senhor, senhora, do escritório que trabalhava para outro senhor, que ven-dia laranjas a um senhor, que as ia lá buscar e as vendia à fábrica grande, que fazia laranjadas fingidas e que tu não haverias de beber pelo suposto amargo?

É verdade, saberias tu que as coisas não são amargas? Têm doce a mais, o que as tornam por vezes amargas. Se calhar demais. Tem, por isso, cuidado quando te apaixonares, ou só estiveres apenas a modos de gostar, não vás confundir o doce das laranjas com o doce que te ofusca. Olha que será suposto beberes — com o tempo irás gostar, aprenderás a gostar — dir-te-ão. No fundo escondem-te, escondes-te, nos teus próprios pensamentos, as amarras que só tu podes ver e desatar. Nos teus pensamentos, dentro de ti.

Pois foi, tens razão, foi por isso que aprendeste uma função, que te disse logo à nascença que a tua cor era de rosa ou azul. Acho que a minha era azul. Era. Ou quase. Ou seria cor-de-rosa?

– E se inventássemos uma cor?

Como eu gostaria de ajudar-te. Mas por agora só posso pegar numa asa do teu saco. A outra é tua. E espero que em breve esta também seja tua.

– Não te esqueças da cor.

Vi-te por aí

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Fado

seria talvez por aqui que, sublinhando a ideia de fado, te deveria ver e pensar. Enfim, discorrer sobre a tua vida. Uma vida que podia ser desigual, não só pela forma do teu corpo e da função que jugaram desti-

nar, ou até mesmo por aquela que entendes dever ser. Nessa ou noutra função de mulher ou homem, de ti ou de alguém. É verdade que te podes enganar e, não enganando, vais enganando e finges que te enganas, a ti a outros e outras.

Apeteceu-me dizer-te: ninguém engana ninguém. Mas só para te ter por resposta e embarcar nos meus cogitos filosóficos, não disse. Não disse, porque nem só de coragem se fazem mudanças de coragem. Sobretudo quando essa mudança não mora fora de ti, de mim e se esconde num sítio chamado eu. Mas também não se multiplica, quando se confunde com tudo o que te atiram ao caminho e te faz pensar e cansar, numa visão de braços caídos. Só porque tu desististe, e eu cansado, talvez me dê jeito. Mas acredita que cansa pela soma de pequenas glórias, que se desfazem por causa de um grão-de-areia, que tu não soubeste soprar e eu não sabia que provinham de um mon-te, de onde continuamente vêm, mais e mais como um filão inesgotável. Tão inesgotável como é o nosso cérebro a arrumar coisas tão desarrumadas e por isso vão caindo por todos os nossos sentidos. E é por isso que se riem de ti, de mim, e nos fazem quase sentir de patetas, de utópicos apalermados, a querer mudar o fado. Bem pior, já nos chamaram: embusteiros e embusteiras. Imagina tu, só porque queríamos uma casa com janelas por onde entrasse o sol e gostássemos de ver o chuvar. E naquele molhar divertido de que adorávamos salpicar-nos, batendo e batendo com aqueles botins de borracha preta enfiados. Pretos, porque ainda não havia cor-de-rosa. Não havia, só porque não devias tu, ou eu, ser dados a essas tontarias. Imagina agora explicar a diferença entre uma coisa tão tonta e boa, e a força empregue num ferro de engomar e numa enxada. Pronto mau exemplo. Disso sabes tu.

– Já pensaste na cor que vais inventar?

Tentemos outro exemplo mais tarde e sobre outros desafios da lei da física sobre o peso dos corpos e da sua soma de forças. A propósito, quanto pesa o medo? Descontando o preconceito e a sombra, se por uma coisa ou por outra, que espreita por detrás daquela janela? E aquela meia desfeita, em que estavas prometida, que vem den-tro de ti quase sem dares por isso? Acaso falamos da matemática de ardósias, cadernos, folhas soltas, coisas chatas de empinanço, que nos toldam em rotinas entre o dia e a noite, ou da matemática da soma dos dias? Sacos vazios de nada quanto pesam? Certo, não gostas da matemática. Eu também não. Mas já pensaste no pecado? Sabes, da culpa ou desculpa será o feitio das vozes e olhares de censura ou ombros encolhidos. Depende. Não digas, fica só para ti.

– E a cor? Já a inventaste?

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Sapatos

mas está bem, continuemos com o teu fado. Mas antes deixa-me ir ter com alguém de saltos altos… ou rasos e a seu modo também o seu fado. E é mais ou menos assim:

Já transpiravas, e libertavas o perfume e cheiros do corpo. Já o desconforto da curva dos braços teimava em não desaparecer quando entraste em batida acelerada e de olhos descidos e subidos, julgando todos que os olhavas, mas em que nada vias, ainda desligada e escondida nos teus pensamentos, como que a fugir ao enfado e às incerte-zas do dia e do retrocesso, ao que se diria de mais do mesmo.

Eu sei, frase feita, perigosamente feita como tantas outras. Perigosa porque tão desinteressante quanto vulgarizada, até se perder o seu feitio sobre as coisas que verdadeiramente interessam quando se fala de ti. Sei lá, porque és elegante, ou provida de atributos divinos ou simplesmente interessantes. Um avião. Boa, bom, mesmo. Está bem eu também gosto. E quem não gosta? Mas, não entendo, como pode a estética das formas tornar-se, de onde brota, numa ameaça e não num prazer? Um castigo - a considerar na lista das coisas divinas e que terrenamente dão jeito a puras idiotices ou a puras maldades. Coisas das mais dissimuladas, que a ciência erigida sobre nós e do eu plasma-rá sem nada acrescentarem.

– E a cor? Que cor?

Vozes

acaso se saberia do que falamos? Exatamente de que falamos? E de quem falamos? Onde nos levariam vocábulos como perfume, elegante, avião, boa, bom? Suspeito que até mesmo o vocábulo estética. Na

verdade até o sentido etimológico. Palavra cara.

Quebrar as regras do paradigma sobre funções com atributos genéticos revela-se difícil. Difícil, tanto quanto o tipo de discursos necessários e diferentes de local e sujeitos culturais. Pensar o discurso não em funções de corpos mas em função de sujeitos leva-nos invariavelmente ao engano.

– E na cor não pensas?

E que dizer do ferro de engomar e da enxada? Esfregona não. Até o silabar a dar para o fanhoso nasal arranha a alma. Instrumento a dispensar de qualquer paridade.

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– Assenta aí. Esfregona não.

Dispensável de assunto de coceira do catar-se, em salas de semicírculo, ou em plano inclinado onde se sentam pessoas bem vestidas e que sabem falar muito bem. Falam dos seus empregos e como são bons e bons. Fazem xixi e falam ao telemóvel. Juntam-se no intervalo, comem saladas de alface, aproveitam e compram pilhas para a balança do wc, e voltam à sala de plano inclinado, onde bocejam, olham para o relógio e dizem que têm tanto, mas tanto para fazer. E lá no fundo no plano inclinado, onde se podem ler palavras que tu não entendes, porque não chegas lá, o women vai-se descolando pelas pontas até se enrolar sobre si mesmo e ficar no esquecimento.

– O que é catar-se? Têm piolhos?

– Não. Acho.

– E a esfregona? Fica ou não?

– Pensa numa cor.

A esfregona, como sempre, ficará para o tal assunto proverbial: se for preciso eu até… faço e aconteço. Mas sobra e fica sempre para ti. Aí sim. Chegas lá. Quando não é ela a chegar a ti sob a forma de encosto, proveniente de frustrações várias e até do ciúme, sob a forma de tropeços encalhados no teu corpo, só porque estás no caminho. Sempre no caminho e onde o que mais dói é a alma. Sabes, às vezes lembram-se de ti. Até eu. Talvez se não fos-se a Paula, a Marina, a Natàlia, a Madalena… nem sequer assunto eras em desconstrução de nós, entre cabeleiras, olho de pirata e perna de pau. Se por alguma coisa se chamam de malucas é só porque na loucura se entendem de instrumentos, sobrados do carnaval, tirados de uma caixa de cartão, e de assuntos em que te entendes. Ficarias escondida como que naquele pequeno orifício, ao cimo de um cabo de vassoura, onde se enfia um cordel para se pendurar numa parede, em sítio que não fique à vista. Fica mal à vista. Mas de onde sairás invariavelmente para a função, quando não ficar, de quando em vez, para um autêntico coiso que faz coisa que são de autêntica coisa.

E agora vou continuar com as falas com a pessoa dos sacos e a pessoa perfumada. Imagine-se os lugares e as coisas que se poderiam recriar a partir das imagens mentais. Não são essas que estás a pensar. Não, pela vulgaridade das funções dos papéis da genética aceite, mas da genética e do género. Que é como quem diz “como vieste ao mundo”. Não, não estou a falar do nu. Distraídos, distraídas, falo do destino. Na única forma de destino, feito por antecipação a nós.

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– E não me perguntas pela cor?

Conversas de sonho e voar

– deixa-me então, não no papel como imaginaste, mas no meu, porque dúbias são as tuas intenções e o cansaço espreita e o corpo não quer.

– E o saco? Que faço com o saco?

– Olha, sempre lhe podes colocar alguma coisa para o corpo.

– Falas de alimentos normais, creio eu.

– E de que outra coisa quererias que falasse?

– Sei lá, de outras coisas...

– Por acaso pensarás que sou dada a querer coisas do corpo…

– E do desejo.

– Mesmo quando a isso sou permitida…

– E não és?

– Olha, a conversa vai longe demais. Tão longe como as paredes terem ouvidos.

– Quem sabe, também olhos.

– É como dizes. Tão certo como a minha pele que cobre o meu corpo. O tempo deu-lhe sabedoria e cau-telas. Não suficientes, mas...

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– E o que faço com o ferro de engomar e a enxada?

– Como se tu não soubesses o que fazer.

– E no saco o que coloco?

– Já imaginaste que posso sonhar?

– Já sei. Queres dizer inventar. Até dizem que inventaste o pecado.

– Sabes?

– Sei. Toma o saco. Surgiu-me por acaso, só por acaso a ideia: o que achas dos sonhos?

– Faz-me esquecer dos esconderijos do destino.

– Então vou dar-te sonhos. Quantos eu puder. Quantos tu puderes guardar. Não te rias.

– Não. Sonho é coisa séria. Tão séria que sou dada a sorrisos que não são de rir. Assim gastam-se menos e duram mais quando tropeço, mesmo sem querer.

– Só não sei como dar-te sonhos que não sejam os meus mas os teus.

– Saberás quando me vires por aí e a gostar de rir. E desta a tropeçar nos sonhos. A entrar neles como mergulhos na água azul e salgada.

– Hum… não sei nadar.

– Hás-de aprender como aprendeste a sonhar.

– Sonho é coisa que não se gasta. Mas que só se imagina de sonhar e gostar quando se acorda e sentimos as mãos presas às asas do saco, ao ferro de engomar, à enxada e aos tropeços, às dores que não se vêm, que são de doer mas que não doem da mesma maneira. Até mesmo da maneira que não queremos. Se pudésse-mos escolher as dores, a maneira, o tempo, o sítio…

– E quanto vale uma dor em troca de um sonho?

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– E porque queres tu trocar um sonho? Saberás por acaso que por cada sonho que troques somarás menos à tua capacidade de voar? Já viste a cidade de cima? E o rio que a atravessa, já te sentaste nas margens? Uma pluma a menos é um sonho a menos. E saberás tu de quantas plumas serão feitos?

– De que falas tu? Por onde anda o teu tino? De que serviriam as penas? Mesmo com asas deixei há muito tempo de voar. Que se interessam a cidade e as margens do rio de mim? As minhas asas foram-se com o destino. Isso são coisas de ângelo. O pecado é meu por antecipação do destino. Por isso não posso voar.

Explicar o destino é o mesmo que explicar a razão dos sonhos. Imaginei pelos sabores.

– Mas esse não é feito de ti. É feito dos outros.

A Cidade

a cidade era feita de um largo circular. Com vários círculos, uns dentro dos outros sem se tocarem. E nin-guém pensaria porquê. Porque não se tocam? Porque sempre foi assim. Antes de nós e do antes de nós

de nós. Acaso não teríamos mãos para abrir caminhos de ruas e ruelas. Mas sempre foi assim. Sempre foi assim.

Mesmo no centro havia um círculo mais pequeno sem interesse mas com mistério. Dir-se-ia dissimulado em relva agreste, quase cortante, circundada por pedra granítica em cinzentos-escuros e claros. Nada de interessante que alguém fez por ali. Como não tivesse mais nada que fazer. Ouvi dizer, já cá estava quando eu nasci e com destino antecipado. Já os antes de mim o conheceram assim. Parece que a cidade começou aqui. Depois foram fazendo mais círculos e mais círculos à medida que a cidade ia crescendo. Estranhamente, não se percebia que de tão redondos e perfeitos os círculos apenas se encontrassem por labirintos estreitos. Mas quem estranhava? Eu? As malucas da cabeleira e olho de vidro e perna de pau?

A cidade era feita de destinos que só se encontravam no mesmo fado feito por antecipação a nós, como as ruelas apertadas por onde cabiam apenas cavalinhos de pau de quixotas e quixotes, dados a brigas e a pensares sobre ti. Como aqueles dias de chuva a inventar coisas em torno de uma mesa, com coisas do destino antecipado, despejado de uma caixa de papelão. E nós sem muito jeito para inventar histórias de contar ao contrário.

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Guarda-Chuvas

talvez daí, ou não, à hora combinada, descemos em direção ao estranho largo. E deixámos uma mensagem: “Fo-mos voar. Podem ficar com o ferro de engomar e a enxada”…

– Escreve aí também: “a esfregona está dependurada pelo cordel no prego. Mesmo junto à tábua de engo-mar. E a esfregona e a tábua de engomar também. Far-vos-á falta. Pelo menos enquanto não apreenderem a voar. Fomos ali e já não voltamos”.

Partimos. Percorremos ruelas, enfiámo-nos por estreitos de chão de granito, entrámos e saímos dos becos, esprei-támos por cima dos muros, subimos aos telhados e avistámos ao longe caminho. E continuámos. Enxotámos cães, a outros fizemos festas, chamámos os gatos e inventámos-lhes nomes, roubámos laranjas e pedimos desculpa. Come-mos azeitonas e pão e deram-nos água fresca, agradecemos as pequenas coragens e continuamos. Caminhámos dia e noite e chegámos de noite às margens do rio.

E aí, nessa mesma noite decidimos. Naquela noite escolhemos voar. E nessa noite entre aromas de chá de hortelã e jasmim, vencidos pelo cansaço adormecemos sobre a areia das margens do rio. Adormecemos e deslizámos. Des-lizámos mais e ainda mais. Afundámo-nos pelo sonho adentro, primeiro devagar, depois vertiginosamente, depois outra vez devagar, e finalmente a planar. E quando acordámos vimos a cidade, as margens do rio, de cima como nunca tínhamos visto.

E quando a cidade se iluminou agarrámos os guarda-chuvas que o vento atirou para ali por causa do Afonso Cruz, que tinha que guardar os guarda-chuvas nalgum lado. Sorte a nossa. Dependurados neles formámos um arco-íris, demos cambalhotas e mais cambalhotas, tantas que perdemos o medo de voar. Soprámos cores e feitios de sonhos num nunca mais acabar. Fizemos festas ao nosso destino, e o destino antecipado foi-se em novelos de vento atados em cordéis de dependurar coisas nas paredes, em sítios escondidos, para o sítio para onde vão os ferros de engo-mar, as enxadas e os sacos com asas.

E descemos, descemos, provando o algodão doce das nuvens. Acordámos a sorrir e beijámos o destino olhando a cidade iluminada, sem largo pequeno de pedra cinzenta escura e erva agreste. Agora havia uma árvore. Uma árvore grande de onde se podia colher o destino, dependurar coisas, escolher coisas e dançar de roda.

FIM?

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b iografias

acrobáticas

António Coelho. Talvez eu. A procura do meu infinito tornou-se na utopia que continuo a procurar na forma das coisas pensadas. Coisas que construo com o olhar, com o pensar e com as mãos. Talvez por isso me esqueço de algumas coisas e não me lembro de outras. Talvez por isso escrevo e faço coisas sobre o que não se esquece, a utopia. Por ora, esta aqui.

Frederico Marinheira Dias Sampaio Pinto. Nasceu no Porto, no dia 3 de Janeira de 1983. Com cerca de 1 ano de idade vai morar para Alijó onde passa toda a sua infância e juventude. Licenciado em Ciências da Informação e da Documentação pela Universidade Aberta, reside actualmente em Castro Verde, onde se encontra a realizar um estágio profissional na Biblioteca Municipal de Castro Verde.

António Santos. 1971. Alfacinha de gema. Amo Lisboa. Gosto de passar para a arte aquilo que sou. Constantemente em mutação, umas vezes tenho barba, outras cabelo pintado. Faço rabiscos desde pequeno e lembro-me de todas as passagens até chegar ao ponto ilustrativo. Sou criativo de profissão e ainda tenho muito que desenhar.

Cygny. Desde que me lembro que gosto de desenhar. No 9.º ano desenhei as repostas do meu teste de aptidão para que não houvesse dúvidas. Tirei um curso de desenho e a licenciatura em Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes. Em 2000 formei com dois colegas a empresa Formas do Possível onde ainda hoje trabalho.

Cristina Santos. Ao longo da minha vida já fiz formação em Teatro, em Psicologia, e dentro da Psicologia tirei um Mestrado em Psicologia da Educação. Neste momento sou psicóloga e trabalho, entre outros públicos, com jovens no âmbito da Saúde Sexual e Reprodutiva. No meu trabalho com jovens abordo diversas questões no âmbito da SSR, principalmente ao nível da prevenção, informando-os e ajudando-os a pensar as opções que têm e qual será a mais adequada. É um trabalho que me traz uma felicidade imensa e que me faz aprender coisas novas todos os dias.

Cláudia Banza. Já participou em algumas exposições coletivas de pintura e fotografia. É formada em Design de Moda e Artes Plásticas e Multimédia.Trabalha como designer/ilustradora free-lancer abraçando vários projectos. É também blogger:miss-poa.blogspot.co.ukhttp://claudia-de-highheels.blogspot.co.uk/ “

Eric Cuadrado. Natural da Galiza, de sentimento e de espirito. Namorado das viagens e da beleza em geral. Sonhador, amante das cores para toda a vida. Sou mais uma pessoa a sobreviver neste mun-do, dando sempre o meu melhor sorriso a quem precisar de alegria.

Joaquim Rosa. Nasceu em Castro Verde. Tem realizado ilus-trações para cartazes, livros e revistas. É professor de Multimédia no Agrupamento de Escolas de Castro Verde e quando o tempo sobra é pintor das gentes e dos sentires alentejanos.

Helena Lousinha. Participa em exposições colectivas desde 1983 em Portugal (destaca-se a III Exposição de Artes Plásticas da Fundação Gulbenkian), Cabo Verde, Espanha (ARCO, Madrid e Exposição de Arte Ibérica, Cáceres/Campo Maior), Alemanha (Arte de Portugal na Alemanha – Dusseldorf e Werkraum Godula Buchholz, Denklingen). Apresenta-se individualmente desde 1987. A sua exposição “Ailleurs” está de momento em itinerância pelo Alentejo.

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Henrique Figo. É um jovem ilustrador que começou a riscar o papel aos 7 anos. Aos 22 terminou a Licenciatura em Artes Plásticas e Multimédia, no Instituto Politécnico de Beja, tendo como professores Viviane Silva e o serigrafista António Inverno. A sua visão surreal e cri-ativa da realidade complementa-se através das suas vivências culturais, sociais e interpessoais onde desenha o seu mundo surreal, fantástico e onírico, refletindo sempre algum contexto social ou cultural, umas vezes crítico, outras vezes construtivo.

Mara Alves. É formada em jornalismo. Começou na rádio, pas-sando pela imprensa e a televisão. Das várias experiências, dentro e fora da área de formação, a que a mais marcou foi a oportunidade de ser jornalista num jornal português em Inglaterra.

Atualmente, está a terminar a sua tese de mestrado em jornalismo digital e prepara-se para rumar ao País de Gales, onde vai desenvolver a parte prática da sua tese, “Coração Luso”, que relata histórias inspiradoras de portugueses pelo mundo.

Lúcia Lima. Nasceu para a literatura num dia de sol quente de inverno. Desapareceu num dia parecido. Autora de uma pequena obra intensa, este é o seu primeiro conto publicado. Alguém disse sobre ela: “Parece um homem a escrever”, ao que terá respondido: “São capazes de dizer tudo!”

Encontra nas pequenas coisas da vida das pessoas a sua inspiração. Tolerante, apenas não aceita que lhe chamem Bela Luísa, porque lhe faz “lembrar a vizinha do número 13, que é velha e feia.”

João Lourenço. Designer de Comunicação. Enquanto free-lancer, executa projectos na área do design gráfico fazendo uso de diferentes valências (fotografia, ilustração, infografia…). Actualmente, sobretudo, cria e organiza informação gráfica destinada a caminhantes e ciclistas. Gosta de correr mundo e, especialmente, de o descobrir a partir do dorso de uma bicicleta. Criou e conduz o Estúdio Nómada, um atelier itinerante de artes visuais.

Natàlia Tost. Comecei a fazer coisas em 1974. Coisas como psicologia, desenvolvimento local, fast-food, narração breve, cortar o cabelo na casa de banho, educação ambiental, antropologia, tradução e promoção da leitura. Algumas destas coisas até são fixes.

Maria Filomena Fernando. Ex-trotamundos, ex-enfermeira, ex-professora do Desensino Básico e Secundário. Num país de bolsos vazios, de futebol e de reallity shows, continua a acreditar que a Litera-tura é o território onde a palavra pode ser impoluta, o que não quer dizer incorruptível, pode ser fonte de prazer e acender consciências, o que não significa salvar o mundo.

Maria Filomena Fernando nasceu em 1962 em Trás-os-Montes. Publicou crónicas de viagem no suplemento cultural «Mil folhas» do Público e foi colaboradora da revista Periférica.

Nuno Carvalho. Tenho um amor platónico que venho namo-rando desde o ano 2006; nasceu com a minha experiência de Eras-mus e este ano juntei-me a ele. Reencontro-o mais acolhedor, cheio de personalidade e incrivelmente belo - Bilbau, no seu País Basco. Grato por ter um coração grande, nele cabe igualmente a calma do Alentejo e o nosso pequeno, embora grande, Portugal.

Kaixo (olá, em basco)!

Poderia dizer que o meu segundo nome é Xavier, como esteve para ser, mas quis o destino que a minha graça fosse Nuno Tiago. Já os apelidos são a harmoniosa união entre a piada do bairro grande e a árvore que no passado dominou as florestas portuguesas, Bairrão de Carvalho.

Tenho a idade de Cristo e nem por isso me sinto mais crente; ainda assim, acredito num super-herói que não usa capa nem tem uma identidade secreta: Quentin Tarantino.

Desde muito cedo desenvolvi o gosto pelo desenho nas inúmeras tentativas de reproduzir o Mickey dos livros de banda desenhada que lia. Com o tempo, tornei-me designer gráfico, profissão usada para fazer a ponte entre empresas e clientes, da qual gosto e de que a ilustração felizmente faz parte.

pEp gAvaldà. Ilustrador que escala, engenheiro geólogo que desenha, consumidor compulsivo de literatura... Nunca estive no Japão. No Canadá, também não.

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Sandra Serra. 1977. Nascida e criada em Serpa, que é terra onde se canta bem, embora não tenha sido, de todo, abençoada com esse dote. Isso não quer dizer que não cante. Gosto de comunicar e segui o conselho de Confúcio: “Escolhe o trabalho de que gostas e não terás de trabalhar um único dia na tua vida”. E essa é que é essa. Viva o trabalho!

Rodrigo Prazeres Saias. Ilustrador, premiado em Nova Iorque pela Society of Publication Designers, colaborou já com alguns dos melhores suportes editoriais portugueses, de entre os quais se desta-cam a revista “Egoísta”, os jornais “Público”, “Diário de Notícias” e “Jornal i”. Colaborou ainda com as editoras D. Quixote, Porto Editora e Asa Editores.

Patrícia Alves. Olá, sou a Patrícia e para me conhecerem melhor vou falar-vos de mim. Gosto do mar, da areia, das conchas e da ma-resia, gosto de flores e de andar descalça, de bicicletas, de rir com os meus filhos, do vento no cabelo, de dar as mãos, de beijinhos, de chá e de desenhar. Sou formada em Design de Equipamento, mas o que mais gosto de fazer é mesmo ilustrar e nos últimos anos ilustrei livros de contos e livros escolares que preenchem os dias e os serões das crianças.

Olinda P. Gil. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Ensino do Português e das Línguas Clássicas. Tem também uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos. Foi colaboradora do “DNJovem”, suplemento do “Diário de Notí-cias”. Participou com outros colaboradores do suplemento no site na-cama.com e jotalinks. Foi 3.º prémio do concurso literário “Lisboa à Letra” em 2004, na categoria de prosa. Foi seleccionada no 4.º con-curso de mini-contos do IST Taguspark. Tem textos publicados nas revistas “Ao Sul de Nenhum Norte”, “Bang!”, “Nanozine”, “Sítio” e “InComunidade”. Publicou nas colectâneas “Ocultos Buracos”, “Beijos de Bicos” e “Poesia sem Gavetas”. Lançou em Novembro de 2013 um conjunto de micronarrativas intitulado “Contos Breves”. Lançou em Abril de 2014 “Sudoeste” pela Coolbooks. Escreve no blog www.olindapgil.com.

Rita Bairrão de Carvalho. Alentejana de origem e psicóloga de formação, interessa-se pelo trabalho com populações em risco de exclusão social e pela integração entre terapia e arte. Gosta de viajar e gostava de poder trabalhar em projectos de cooperação interna-cional com refugiados. Andou entre Espanha e Itália de onde trouxe experiências académicas, profissionais, culturais e gastronómicas.

Vítor Encarnação. Nasceu na Aldeia de Palheiros, concelho de Ourique, onde a terra farta de tanta planura se começa a levantar.Colabora em jornais e publica poesia, crónicas, contos e outras coisas mais ou menos indefinidas, desde os anos noventa do século passado. É professor de Inglês e Alemão.

Teresa Maria Barão. Nasceu a 23 de Dezembro em Aljustrel. Frequentou a FSCH de Lisboa. Actualmente exerce funções de assistente administrativa numa associação sem fins lucrativos. Gosta de projectos novos e enfrentar novos desafios.

Rui Ângelo Araújo. Fundou e dirigiu o ‘Eito Fora - Jornal de Vilarelho’ e a revista ‘Periférica. Escreveu algumas dezenas de contos e três romances, um dos quais, ‘Os idiotas’, foi publicado em 2013. Mantém o blogue ‘Os canhões de Navarone’, onde verbera o país ou se senta a observar a vida selvagem em volta. Numa era remota tocou viola-baixo. Hoje vacila no seu desempenho do Quixote, mas a culpa é da realidade.

Vanda Palma. É ceramista, nascida em Setúbal na última semana dos anos 70. Em 98 decide mudar-se para Castro Verde, onde vive e trabalha, feliz!

Sofia Catarino. Sou mulher, visto calças e não gosto de saias. Não gramo passar a ferro, nem estender roupa.Prefiro dar banho ao cão do que cortar cebolas e alhos.Adoro jogar futebol na praia e pintar as unhas dos pés.Tenho uma filha e não sou casada nem viúva.