2.#)*(%*.1'-)-#*'-)#',)$'3#*%*(%*4#)*/)!'.5*1* 4&1.%''1 ... a...

63
!"#$%&'#()(% +%(%&), (% ')"-) .)-)&#") #')/%,) 0)&-#"' ')"-1' ) #"+,!2".#) (% .1"'-)"-#" '-)"#',)$'3# % (% 4#") /)!'.5 "1 4&1.%''1 (% .&#)671 .2"#.1 +,1&#)"841,#' 9:;<

Upload: ngokhanh

Post on 25-May-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

!"#$%&'#()(%*+%(%&),*(%*')"-)*.)-)&#")#')/%,)*0)&-#"'*')"-1'

)*#"+,!2".#)*(%*.1"'-)"-#"*'-)"#',)$'3#*%*(%*4#")*/)!'.5*"1*4&1.%''1*(%*.&#)671*.2"#.1

+,1&#)"841,#'9:;<

������� ����� ��

��������������� � ��� �������������������������������������������

����� !"#! !$ %&%�'!(! ) ��#*% &#(!(% �%(% !+ (% �!�'! �!'! #�! ,�-� %./#&#'�$! ,#!+$! !,��,+/&0�(��/ &�(%1 !(/!20�%- '%&�3�#,!&4� #%�'!(� !5� �"64�&64�78� !9!-! #�+#

����������������

Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Santos, Isabela Martins A influe?ncia de Constantin Stanislavski e de PinaBausch no processo de criac?a?o ce?nico / Isabela MartinsSantos ; orientadora, Débora Zamarioli - Florianópolis, SC,2013. 62 p.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -Universidade Federal de Santa Catarina, Centro deComunicação e Expressão. Graduação em Artes Cênicas.

Inclui referências

1. Artes Cênicas. 2. Constantin Stanislavski . 3. PinaBausch . 4. Antígona. 5. dança-teatro. I. Zamarioli, Débora.II. Universidade Federal de Santa Catarina. Graduação emArtes Cênicas. III. Título.

Para minha mãe Maria Helena Aparecida Martins Santos, com amor.

AGRADECIMENTOS

A Deus pelo amor, proteção e providência durante toda a minha vida.

À minha mãe Maria Helena Aparecida Martins Santos pelo amor, amizade, apoio, ajuda,

compreensão, pela paciência para ler os meus textos e pelo incentivo aos estudos.

À minha madrinha Maria do Carmo Abreu pela ajuda e estímulos positivos.

À minha amiga Melissa Martins pelo carinho, companhia e apoio.

Ao meu avô João dos Santos Pereira pela ajuda nos momentos difíceis.

À minha orientadora Prof.ª Ms.ª Débora Zamarioli pelas orientações, sugestões, ajuda e

comentários construtivos.

Ao Prof.º Dr.º Rodrigo Garcez pela generosidade e ajuda durante todo o meu percurso no

curso de Artes Cênicas da UFSC.

À Prof.ª Dr.ª Elisana de Carli pela disposição em ajudar, incentivo aos estudos e pela

indicação de fontes sobre o teatro grego.

À minha amiga Vic Barros Delben pelo apoio e pelos bons momentos vividos no curso de

Artes Cênicas.

Aos profissionais técnico-administrativos Ricardo Magro, Gabriel Guedert e Guilherme

Rotulo pela competência demonstrada no serviço público.

RESUMO

Essa monografia é uma reflexão pessoal

-teatro Areias que é inspirado em Antígona, personagem da tragédia grega de mesmo

nome escrita por Sófocles. Na nossa concepção de espetáculo, a personagem está inserida na

contemporaneidade e observamos a sua relevância quando estudamos o conceito de

modernidade líquida descrito pelo sociólogo Zygmunt Bauman. A metodologia do diretor

russo Constantin Stanislavski foi fundamental para o meu trabalho de construção da

personagem, dessa forma essa monografia apresenta uma reflexão pessoal dessa metodologia

aplicada no meu processo. Refletimos também sobre a utilização do método de perguntas e

respostas desenvolvido pela coreógrafa alemã Pina Bausch na criação do espetáculo.

Apontamos as semelhanças entre os métodos de Stanislavski e Bausch assim como

comentamos sobre a minha experiência em trabalhar com os dois métodos na criação de

Areias.

- -teatro 4.

ABSTRACT

This monograph is a personal reflection about my creative process in spectacle of dance

theater Areias that is inspired by Antigone, the character Greek tragedy of the same name

written by Sophocles. In our conception of the spectacle, the character is inserted in

contemporary and we observe its relevance when studying the concept of liquid modernity

described by sociologist Zygmunt Bauman. The methodology of the Russian director

Constantin Stanislavski was fundamental to my work of building a character, so this

monograph presents a personal reflection of this methodology applied in my process. We also

reflect on the use of the method of questions and answers developed by German

choreographer Pina Bausch in creating the spectacle. We point out the similarities between

the methods of Stanislavski and Bausch as well as comment on my experience working with

the two methods in creating Areias.

Keywords: Constantin Stanislavski 1. Pina Bausch 2. Antigone 3. dance theater 4.

LISTAS DE FOTOS

Foto 1 Vivência nas Dunas do Santinho .............................................................................. 32

Foto 2 Bacia de areia ............................................................................................................ 33

Foto 3 Cortina cortada em faixas ......................................................................................... 36

Foto 4 Despedaçando o buquê de rosas vermelhas .............................................................. 39

Foto 5 Meu caderno com diversas anotações ....................................................................... 50

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9 1.1 JUSTIFICATIVA NA CONTEMPORANEIDADE.......................................................... 12

2 CONSTANTIN STANISLAVSKI .................................................................................... 16 2.1 A IMPORTÂNCIA CULTURAL E ARTÍSTICA DE STANISLAVSKI ......................... 17

2.2 ANÁLISE DA PERSONAGEM ANTÍGONA ................................................................. 21

2.2.1 Circunstâncias dadas ................................................................................................... 21 2.2.2 Linhas de ação direta ................................................................................................... 23 2.2.3 O superobjetivo ............................................................................................................ 24 2.2.4 Memória das emoções ................................................................................................. 26 2.2.5 Imaginação ................................................................................................................... 30 2.2.6 Fé e sentimento de verdade .......................................................................................... 34 2.2.7 Concentração ................................................................................................................ 37 2.2.8 Desconcentração dos músculos .................................................................................... 39 3 PINA BAUSCH .................................................................................................................. 42 3.1 PANORAMA HISTÓRICO .............................................................................................. 42

3.2 A ARTE DE PINA BAUSCH............................................................................................ 45

3.3 A NATUREZA DE FLORIANÓPOLIS APRESENTADA NO PALCO .......................... 47

3.4 O MÉTODO DE PERGUNTAS E RESPOSTAS ............................................................ 48

3.5 PINA BAUSCH E CONSTANTIN STANISLAVSKI ..................................................... 55

4 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 57 5 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 59

  9  

1 INTRODUÇÃO

No processo criativo de Areias retiramos a personagem Antígona da peça de mesmo

nome e a inserirmos na contemporaneidade a fim de usá-la como inspiração de dramaturgia

na construção do espetáculo cênico.

Essa peça escrita por Sófocles em 422 a.C. ou 421 a.C. é uma tragédia grega renomada.

O autor nasceu em uma cidade perto de Atenas, Colono, e viveu entre 496 a. C. e 406 a.C..

Ele nasceu em uma família rica, desempenhou algumas funções politicas, se apresentou como

ator e venceu concursos de dramaturgia em Atenas. A escritora Margot Berthold (2001)

acrescenta que:

Sófocles ganhou dezoito prêmios dramáticos. Dos cento e vinte três dramas que escreveu, e que até o século II a.C., ainda se conservavam na Biblioteca de Alexandria, conhecemos cento e onze títulos, mas apenas sete tragédias e os restos de uma sátira chegaram até nós. (BERTHOLD, 2001, p. 109)

De acordo com Berthold (2001) o teatro europeu surgiu na Grécia como uma arte social

e comunal. Segundo os historiadores Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet (1999),

tragédia como gênero dramático surgiu no final do século VI a. C. na Grécia e se caracteriza

pela originalidade e regras. As apresentações teatrais das tragédias eram abertas a todos os

cidadãos; as apresentações não refletiam a realidadevivida pelos gregos, mas as questionava e

confrontavam seus valores. Vernant e Vidal-Naquet (1999) comentam que:

A tragédia instaura, no sistema das festas públicas da cidade, um novo tipo de espetáculo; além disso, como forma de expressão específica, traduz aspectos da experiência humana até então despercebidos; marca uma etapa na formação do homem interior, do homem como sujeito responsável. Gênero trágico, representação trágica, homem trágico: sob esses três aspectos, o fenômeno aparece com caracteres irredutíveis. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999, p. 1)

Vernant e Vidal-Naquet (1999) ressaltam que o surgimento da tragédia coincide com o

mesmo momento em que os gregos começam a desenvolver o direito relacionado à noção de

. Esse momento é

importante para os gregos porque começa a pensar no homem mais ou menos autônomo, mais

ou menos senhor dos seus atos e mais ou menos possuidor de formas de ação no seu próprio

destino pessoal e político mesmo diante da soberania dos seus deuses. Segundo Vernant e

Vidal- a verdadeira matéria da tragédia é o pensamento social próprio da

  10  

cidade, especialmente o pensamento jurídico em pleno trabalho de elaboração . (VERNANT;

VIDAL-NAQUET, 1999, p. 3)

Para o filósofo grego Aristóteles (19--) a tragédia faz parte da arte da imitação, mais

especificamente, da imitação da ação. Ela pode suscitar compaixão e terror através do

trabalho dos atores. De acordo com Aristóteles (19--):

A tragédia é a imitação, não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo o fim que se pretende alcançar o resultado de uma certa maneira de agir, e não de uma maneira de ser. Os caracteres permitem qualificar o homem mas é de sua ação que depende sua infelicidade ou felicidade. A ação, pois, não se destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres já são representados. Daí resulta serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é, em tudo, o que mais importa. Sem ação não há tragédia. (ARISTÓTELES, 19--, p. 248)

As tragédias de Sófocles que temos acesso são Antígona, Ajax, As Traquínias, Édipo

Rei, Electra, Filoctetes e Édipo em Colono. Aristóteles (19--) destaca que coube a Sófocles a

introdução de um terceiro ator nas peças e a criação da cenografia. O historiador de literatura

grega Albin Lesky (1995) também cita uma inovação creditada ao trabalho do poeta, segundo

ele:

Sófocles voltou a dividir a trilogia em peças isoladas e independentes, no que se refere ao conteúdo. [...] Em última análise, neste desenvolvimento torna-se manifesto até que ponto na tragédia de Sófocles a personagem isolada se transformou cada vez mais no tema central. (LESKY, 1995, p. 304)

Nesse contexto literário encontra-se Antígona, a personagem é filha de Édipo que, por

sua vez, é personagem central das peças Édipo Rei e Édipo em Colono. Seu pai matou o avô

paterno, tornou-se rei de Tebas e casou-se com a própria mãe, Jocasta. Juntos eles tiveram

quatro filhos: Antígona, Ismene, Polinice e Etéocles. Quando Édipo teve conhecimento de

que sua esposa era também sua mãe e que seus filhos eram também seus irmãos, cegou-se

com suas próprias mãos. Jocasta suicidou-se e Polinice e Etéocles mataram um ao outro sendo

que Polinice, por ter lutado em um exército inimigo, foi considerado traidor de Tebas. Apenas

Antígona e Ismena sobrevivem. As ações que formam esse contexto familiar são antecedentes

à peça, mas muito importantes para a sua compreensão.

Portanto, o conflito da peça tem início quando o rei de Tebas e tio de Antígona,

Creonte, estabelece uma lei que o corpo de Polinice não deve ser enterrado, deve ser

  11  

consumido por aves e cães porque ele é considerado traidor. Revoltada com a situação,

Antígona pede ajuda de Ismene para enterrar o irmão, mas com medo, ela nega. Então

Antígona enterra seu irmão sozinha, mas é flagrada pelos guardas que vigiavam o corpo. Ela é

presa e levada à Creonte. Diante do rei ela assume a sua ação e não demonstra

arrependimento. O filho do rei que é também noivo de Antígona, Hemon, tenta convencê-lo a

não condená-la, mas não consegue. Antígona é condenada a morrer isolada em uma caverna.

O adivinho Tirésias consegue convencer Creonte argumentando que coisas ruins lhe

acontecerá por conta dessa condenação injusta. Tomado pelo medo, o rei decide libertar

Antígona, mas a encontra morta. Ela se matou. Quando Hemon toma conhecimento da morte

da noiva também se mata esua mãe, esposa de Creonte, se mata ao saber da morte do filho. 1

Como o espetáculo Areias se baseia livremente na personagem Antígona, a leitura e

análise do texto para a montagem cênica e para a escrita dessa monografia são feitas através

da percepção da personagem na tragédia.

Dessa forma o conflito da peça começa com a decisão injusta de Creonte em proibir o

enterro de Polinice e

era lícito negar-lhe sepultura na sua terra natal, embora pudesse ser sepultado em qualquer

parte para além das suas fronteiras . (LESKY, 1995, p. 309).

Quando Sófocles escreveu Antígona, a justiça e o destino eram questões relevantes

abordadas no drama, mas de acordo com o especialista em cultura grega H. C. Baldry (1969)

tanto o autor quanto o público poderiam considerar as personagens livres e com capacidade de

escolha. Sendo assim, a diferença primordial entre Ismene e Antígona está no fato de que a

última não se intimidou com a lei do Estado e sepultou Polinice.

O conflito da peça é formado a partir do momento em que o rei decreta uma lei que

nega a Polinice um direito que Antígona considera fundamental, portanto ela não aceita essa

lei. Sobre as leis que asseguram o direito de Polinice ois elas

não são de ontem nem de hoje, mas/ são sempre vivas, nem se sabe quando

surgiram .(SÓFOCLES, 2013, p. 34)

Ao se deparar com essa realidade imposta pelo Estado, Antígona toma a iniciativa e

executa a ação que considera correta. O caráter da personagem permanece firme e ela assume

as consequências e as responsabilidades das suas ações.

_______________ 1 Utilizamos no processo criativo de Areias e para a produção dessa monografia o texto: SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2013.

  12  

1.1 JUSTIFICATIVA NA CONTEMPORANEIDADE

Antígona foi escrita há 2435 anos, mas é uma obra relevante para o século XXI porque

acredito que se trata de questões relacionadas ao amor. Escolhemos fazer um paralelo entre a

heroína grega e o discurso do sociólogo polonês Zygmunt Bauman sobre o líquido mundo

moderno.

Bauman descreve nossa sociedade como líquida porque os relacionamentos humanos

estão apresentando uma grande facilidade para iniciar e para terminar. Há uma crescente

tendência de individualização que aumenta a velocidade na mudança de atividades,

comportamento e sentimentos de acordo com os interesses individuais e momentâneos

daspessoas. Portanto os relacionamentos humanos dificilmente se tornam em laços fortes

porquesão breves e banais. Outra questão apontada pelo sociólogo é a identidade na modernidade líquida. A

sociedade não é mais formada por pessoas que produzem, mas por pessoas que consomem e o

consumismo, por sua vez, está se relacionando diretamente com a identidade, ou seja, as

pessoas possuem uma noção de identidade espelhada no que consomem. Bauman (2001)

comenta que:

Em vista da volatilidade e instabilidade intrínsecas de todas ou quase todas as identidades, é a capacidade identidades, o grau de liberdade genuína ousupostamente genuína de selecionar a própria identidade e de mantê-la enquanto desejado, que se torna o verdadeiro caminho para a realizaçãodas fantasias de identidade. Com essa capacidade, somos livres para fazer e desfazer identidades à vontade. Ou assim parece. (BAUMAN, 2001, p. 98)

A relação de consumo e identidadeserve de base para a ideia de pessoas como exemplo

de felicidade e qualidade de vida. Essas pessoas conseguem influenciar outras e por isso a

intimidade tornou-se um assunto de discursão pública. Em entrevista publicada no canal

Fronteiras do Pensamento no Youtube Bauman diz que essas pessoas não discutem na mídia o

bem-estar na sociedade, seus interesses compartilhados ou os problemas em comum, elas

confessam seus problemas privados individuais e bastante íntimos. O sociólogo fala que antes

as pessoas discutiam a sua intimidade apenas com quem elas realmente confiavam mas que

agora há microfones instalados nos confessionários. Segundo Bauman (2001):

O que está ocorrendo não é simplesmente outra renegociação da fronteira notoriamente móvel entre o privado e o público. O que parece estar em jogo é uma redefinição da esfera pública como um palco em que dramas privados são encenados, publicamente expostos e publicamente assistidos. A

  13  

amplamente aceita por quase todos os setores da sociedade, é o dever de encenar tais dramas em público e o direito do público de assistir à encenação. (BAUMAN, 2001, p. 83)

Antígona, por sua vez, mostra-se como uma personagem de personalidade firme,

identidade sólida e ações de coragem. Quando ela fala

OCLES, 2013, p. 39) podemos perceber a coerência entre discurso e

comportamento pelo fato de ter enfrentado a lei para enterrar seu irmão sozinha. Esse amor ao

qual Antígona é fiel também é descrito por Bauman (2004):

Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz respeito a auto-sobrevivência através da alteridade. E assim o amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e também à caricia, ao afago e ao mimo, ou a ciumentamente guardar, cercar, encarcerar. Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a ordem. Mas também pode significar expropriar e assumir a responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício resultando em exaltação. (BAUMAN, 2004, p. 24)

Ele ainda acrescenta que amar o próximo pode exigir um salto de fé. O resultado,

porém, é o ato fundador da humanidade. Também é a passagem decisiva do instinto de

sobrevivência para a moralidade . (BAUMAN, 2004, p. 98) Esse amor está cada vez mais

raro na modernidade líquida porque as pessoas consumidoras com identidade fluída veem os

relacionamentos humanos como um meio de satisfação pessoal que pode ser descartado

quando não mais o fizer. É raro também encontrar disposição para manter um relacionamento

já que ele deve ser consumido e não produzido. Bauman (2004) acrescenta que:

Na melhor das hipóteses, os outros são avaliados como companheiros na atividade essencialmente solitária do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cujas presenças e participação ativa podem intensificar esses prazeres. Nesse processo, os valores intrínsecos dos outros como seres humanos singulares (e assim também a preocupação com eles por si mesmo, e por essa singularidade) estão quase desaparecendo de vista. A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor. (BAUMAN, 2004, p. 96)

A comunicação através da tecnologia é um fenômeno contemporâneo. Com a invenção

das redes sociais, a vida do indivíduo encontrou uma forma de existir no espaço virtual. Por

exemplo, através de um perfil no Facebook é possível compartilhar informações pessoais,

fotos pessoais, expressar ideias, expor sua vida amorosa e comunicar com os amigos

  14  

conectados na rede através de mensagens,nesse contexto a ideia de compartilhar significa

construir uma identidade virtual. A relevância do Facebook encontra-se no fato de que ele é

uma rede social presente na vida de mais de um bilhão de pessoas e da mesma forma que a

vida real influência a vida virtual, o inverso também acontece.

Bauman comenta sobre o Facebook na entrevista publicada pelo Fronteiras do

Pensamento, ele destaca que na rede social é fácil de se conectar com alguém e fazer amigos,

mas que também é muito fácil de se desconectar e excluir o amigo porque para isso é

necessário apenas apertar o botão deletar, não há a necessidade de passar pela experiência

traumática de encarar a pessoa pessoalmente e olhar nos seus olhos para romper um laço

humano. Dessa forma podemos notar que na modernidade líquida houve uma mudança no

conceito de amizade, perdeu-se muito o relacionamento duradouro de parceria e confiança.

Para Bauman a parceria e a confiança são elementos indisponíveis para a amizade no

Facebook, ele acredita que existem pessoas solitárias em multidões solitárias. Uma das

consequências da modernidade líquida descrita por Bauman é tornar frágeis os laços

humanos.

Bauman (2009) nos lembra que o amor e a amizade não estão disponíveis para venda

em um shopping. Eles são fundamentais para a felicidade humana e se encontram nos

relacionamentos, mas a partir do momento em que os laços humanos se tornam frágeis, é

natural observarmos o problema refletido na felicidade. Para Bauman (2009), na modernidade

líquida a felicidade consiste em estar à frente dos competidores/consumidores, ou seja,

consiste em adquirir coisas que outras pessoas não possuem condições para adquirir. Dessa

forma as pessoas gastam tempo e energia em atividades que lhes traga dinheiro para consumir

coisas.

A personagem Antígona não se encaixa na modernidade líquida por diferença de

valores. Enquanto nela as pessoas são tratadas como objetos descartáveis de satisfação,

Antígona foi condenada à morte por dar sepultura ao irmão morto. Ela demonstrou coragem

ao enfrentar uma pessoa mais forte pelo amor à Polinice. Sua firmeza ao enfrentar Creonte

demonstra uma personalidade sólida e percebemos que ela considera sua família, mesmo com

todos seus problemas, como algo muito valioso.

De acordo com Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet (1999), Antígona proclama

que os seus irmãos defuntos, Polinice e Etéocle, tenham direitos iguais quanto aos deveres

religiosos, ou seja, a cerimônia de enterro, independente da forma como eles viveram. A

fidelidade e amor à sua família se relaciona com o culto dos mortos.

  15  

Lesky (2006) ressalta que Antígona luta pelas leis eternas, então o seu drama pessoal é

intemporal, ela é uma pessoa ordinária, com esperança e desejos, mas enfrentou uma lei

autoritária imposta pelo Estado e não admitiu que ele interferisse em questões relacionadas à

dignidade humana.

Acredito que essa personagem inserida na modernidade líquida pode nos apresentar

uma visão dos valores de toda a humanidade em contraste com os valores presentes na

sociedade contemporânea. O individualismo, o consumismo e o egoísmo não encontram

sentido no universo de Antígona. Então a personagem representa uma oportunidade de refletir

através da arte sobre o valor dos relacionamentos humanos fortes e sobre a importância do

amor. Bauman (2009) comenta que:

Se o amor é por natureza uma tendência a se juntar aos objetos de amor (uma pessoa, um grupo de pessoas, uma causa) em sua luta por realização, ajudá-los nessa luta, promover os combates e abençoar os combatentes,

mesmo em favor de seu objeto, transformar sua própria felicidade num reflexo, um efeito colateral da felicidade desse objeto. (BAUMAN, 2009, p. 56)

Esse tipo de amor é encontrado nas motivações da personagem Antígona e a sua

importância me motivou a criar o espetáculo Areias.

Depois da introdução à dramaturgia do espetáculo Areias e da justificativa da sua

escolha diante da contemporaneidade, iniciamos o diálogo sobre a influência da metodologia

do diretor e ator russo Constantin Stanislavski no meu processo de criação e posteriormente o

diálogo sobre a influência da metodologia da dançarina e coreógrafa alemã Pina Bausch no

mesmo processo. Na conclusão eu apresento as minhas considerações relevantes sobre o

desenvolvimento de criação do espetáculo partindo do princípio ao fim, ou seja, o caminho

percorrido desde a sua concepção até a sua apresentação.

  16  

2 CONSTANTIN STANISLAVSKI

A metodologia e as reflexões de Constantin Stanislavski influenciaram diretamente a

formação da personagem Antígona em Areias. Seu interesse pela arte começou na infância e a

sua vida foi dedicada ao teatro,ele fundou o Teatro de Arte de Moscou e desenvolveu um

sistema conhecido como Sistema Stanislavski com base nos vários anos de observação e

estudo sobre o trabalho do ator.

Embora tivesse pretensões artísticas, Stanislavski se considerava desajeitado e por isso

se esforçou para superar suas dificuldades relacionadas à atuação através do treinamento de

voz, dicção e gesticulação. Stanislavski (1956) comenta sobre essa sua questão pessoal:

Mas eu era, infelizmente, alto e desengonçado, e articulava mal. E era, além disso, tão desastrado, que mal me viam entrar numa sala, iam logo tratando de afastar vasos e estatuetas. Uma vez, dançando num baile, derrubei uma palmeira, e outra vez, tropeçando no piano com meu par, fomos ambos parar no chão. (STANISLAVSKI, 1956, p. 50)

Para ele o estado criador não é acessível apenas aos artistas que possuem talento,

através da intuição a criação é acessível a todos os artistas. Percebendo as anomalias e os

recalques dos atores em cena, o mestre russo iniciou sua busca por um estado físico propício a

criação artística.

Stanislavski buscava o humano no artista e para ele o espírito do ator é muito

importante para expressar os sentimentos das personagens criadas pelos autores. Sobre o seu

método ele comenta que:

A própria força deste método está no fato de que ninguém o forjou nem inventou. Tanto pelo espírito como pelo corpo ele faz parte das nossas naturezas orgânicas. Baseia-se nas leis da natureza. O nascimento de uma criança, o crescimento de uma árvore, a criação de uma imagem artística, tudo isto são manifestações de tipo semelhante. Como poderemos aproximar-nos desta natureza da criação? Isto tem sido a principal preocupação de toda minha vida. Não é possível inventar um sistema. Nascemos com ele dentro de nós, com uma capacidade inata de criatividade. Esta é a nossa necessidade natural, portanto parece que não poderíamos saber como expressá-la senão de acordo com um sistema natural. (STANISLAVSKI, 2009b, p. 381)

Para o professor de arte J. Guinsburg (2008), o que Stanislavski chama de sistema foi

seu objeto de construção contínua e não se caracteriza como sendo uma didática estratégica

com concepções artísticas definidas. Por essa razão o professor considera apropriado chamar

o Sistema Stanislavski de Método. Segundo Guinsburg (2008):

  17  

O encaminhamento metodológico, longe de implicar por si num sistema fechado, é, em essência, um instrumento processador que deve permitir englobar organicamente, como uma totalidade representativa, as forças vivas do homem na expressividade da obra de arte materializada na cena. (GUINSBURG, 2008, p. 6)

Guinsburg (2008) considera que Stanislavski possuía inquietações como artista de teatro

e além da naturalidade, ele buscava a verdade estética, espiritual, psicológica e humana na

obra teatral.

no próprio ser do indivíduo, e o caminho para ela só é possível ser aberto através de si

mesmo . (DAGOSTINI, 2007, f. 59) Sendo assim, o ator deve desenvolver suas faculdades

relativas ao seu interior e ao seu aparelho físico, ou seja, seu corpo, a fim de expressar sua

criação artística original de maneira bela e orgânica.

Esse sistema natural de criação artística citado por Stanislavski permite uma busca

pessoal dentro do ator para construir e expressar uma personagem. De acordo com o crítico de

teatro Theodore Hoffman (1964), o Sistema foi criado para servir como uma ferramenta no

trabalho do ator, através dele o ator amplia a sua liberdade para a criação. Alguns pontos

abordados por Stanislavski foram muito importantes para entender Antígona e encontrar a

minha maneira de expressá-la.

2.1 A IMPORTÂNCIA CULTURAL E ARTÍSTICA DE STANISLAVSKI

Segundo Guinsburg (2008) o período que Stanislavski fundou e trabalhou no Teatro de

Arte de Moscou é um momento revolucionário da criação teatral moderna. Para ele

Stanislavski é um universo artístico e acrescenta que:

Ele [Stanislavski] é um desses gigantes que marcaram a história da arte, um homem de gênio que realizou no palco uma revolução que poderíamos chamar copernicana. O seu trabalho transferiu, do artifício convencional e da cópia mecânica para a vivência natural e a criação orgânica, o centro nevrálgico da arte cênica. Sob o impacto de suas idéias e experiências, não só estilo e práticas se transformaram, como a própria visão do teatro, na sua dimensão estética e ética. Stanislávski pôs no palco da persona, a persona. Pois, para ele, poder-se-ia dizer, como para o filósofo grego, o homem é a medida de todas as coisas, na vida e na arte. Homem e artista unem-se nele na amplitude do grande espírito. (GUINSBURG, 2008, p. 3-4)

  18  

De acordo com Hoffman (1964), a importância histórica de Stanislavski deve-se ao fato

de que ele rejeitou o amadorismo e fundiu a técnica estabilizada do teatro com a intensidade

emocional dos atores do século XIX. No seu sistema há a necessidade de relacionar a escola

com o es na

arte da encenação, Stanislávski teve vários discípulos cuja contribuição artística marcou época

na cena russa e rasgou sendas para o movimento teatral moderno . (GUINSBURG, 2008, p.

57)

Stanislavski saiu em turnê com o Teatro de Artes de Moscou. Berlim, Praga, Paris e

Nova York foram algumas das cidades visitadas pela companhia. De acordo com o crítico de

teatro Richard Hornby (2010), as teorias sobre atuação de Stanislavski são muito populares

nos Estados Unidos e isso deve-se ao fato de que a recepção das apresentações do Teatro de

Arte de Moscou nesse país em 1923 foi muito boa, elas tinham como base a emoção honesta

ao invés de belos discursos e movimentos. Por isso a companhia se tornou um exemplo para o

teatro estadunidense. Sobre esse assunto, a professora de teatro Iná Camargo Costa (2002)

comenta que:

A imprensa deu conta de registrar as mais importantes unanimidades americanas a respeito dos espetáculos do TAM [Teatro de Artes de Moscou]: a barreira lingüística não prejudicou a fruição dos espetáculos porque se tratava de entender e sentir o que acontecia em cena; no palco assistia-se a uma fatia de vida e não a uma peça de teatro; os atores vivem seus papéis, não os interpretam; e, independentemente de haver hierarquização dos personagens, todos os atores têm igual importância na realização do espetáculo, o que resulta do trabalho conjunto (ensemble), coisa jamais vista nos Estados Unidos. (COSTA, 2002, Não paginado)

Devido ao sucesso de Stanislavski nos Estados Unidos, dois membros da companhia,

Richard Boleslavski e Maria Ouspenskaya, decidiram permanecer no país e fundaram um

laboratório de teatro (American Laboratory Theater) no final de 1923 em Nova York com a

intenção de torná-lo uma versão estadunidense do Teatro de Artes de Moscou. Guinsburg

(2008) comenta que Boleslavski é uma pessoa importante para o teatro estadunidense e

europeu, com um perfil stanislavskiano, ele trabalhou como ator e diretor de teatro e filmes.

Seu próprio aluno, Strasberg, comenta sobre o seu papel na arte do ator nos Estados Unidos:

Lee Strasberg escreveu a respeito de seu professor: Boleslávski representa para mim uma importante etapa na história do teatro americano, por ter introduzido aí as idéias de Stanislávski. Sem ele não sei qual teria sido o caminho de nosso

INSBURG, 2008, p. 200)

  19  

Lee Strasberg, Harold Clurman e Cheryl Crawford foram alguns dos alunos de

Boleslavski e juntos eles formaram uma companhia denominada Group Theatre em 1930,

uma que trabalhava somente com peças estadunidense novas. Hornby (2010) comenta que

essa companhia apresentou um estilo de atuações realísticas com emoções intensas que

eletrizou o público. A atriz e professora de teatro Stella Adler foi membro do Group Theatre.

A companhia terminou em 1941 e em 1947 três de seus membros, Elia Kazan, Robert

Lewis e Cheryl Crawford, fundaram o como uma organização que dá ao ator

um espaço para criar e experimentar sem a pressão da produção comercial. No site do

Studio existe a informação que uma das principais razões que motivou Elia Kazan a fundá-lo

foi o desejo de preservar e desenvolver esse novo estilo de atuação estadunidense.

Artistas aclamados mundialmente fazem parte da história do : Elia Kazan

dirigiu filmes como Um bonde chamado desejo (1951) e Sindicato dos ladrões (1954); Lee

Strasberg criou uma escola de atuação. Ellen Burstyn e Al Pacino são alguns dos atores que

tiveram contato com o . Marlon Brando, Robert De Niro e Dustin Hoffman são

alguns que aprenderam atuação através de professores estadunidense que se consideravam

discípulos do mestre russo.

Brando escreveu o prefácio do livro escrito por Stella Adler, The art of acting, ele nos

lembra que ela estudou diretamente com Stanislavski em Paris (quem ele considera como um

observador do comportamento humano). Para o ator a fusão do Sistema Stanislavski com os

atores estadunidense causou um grande impacto cultural porque influenciou diretamente a

atuação no cinema dos Estados Unidos, que por sua vez consegue influenciar o cinema do

mundo inteiro.

Stanislavski comenta que escreveu o livro Minha vida na arte por sugestão dos

estadunidenses. O livro foi escrito nesse país e o autor o dedicou aos Estados Unidos em

gratidão pela hospitalidade que foi recebido junto com o Teatro de Arte de Moscou.

Meu primeiro contato com Stanislavski foi através do trabalho do ator inglês-irlandês

Daniel Day-Lewis, tenho grande admiração por esse ator que é conhecido pela sua dedicação

e total imersão no mundo dos seus personagens. Day-Lewis nasceu e cresceu em Londres,

mas ficou impressionado com o trabalho de Robert De Niro no cinema. Em entrevista para o

site do jornal The Telegraph, o ator comenta que tenta encontrar primeiro na vida o que ele

encontra na personagem e que o objetivo principal do seu trabalho é achar uma forma de

tornar a vida da personagem significativa para outras pessoas.

  20  

No curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina iniciei meus

estudos sobre Stanislavski. Considero importante a sua abordagem sobre a ética e acredito que

ela é um fator fundamental no trabalho de artistas que eu admiro.

Para Stanislavski (2009b) a ética e a disciplina contribuem para a criação dramática e o

teatro pode servir como um meio de transformar o ator em uma pessoa melhor. No trabalho

do ator é necessário haver ordem, disciplina e dedicação para atingir seus objetivos artísticos.

ntes, há atores insignificantes . (STANISLAVSKI, 1956, p. 104) O

espetáculo teatral é resultado da cooperação de vários artistas: atores, diretores, cenógrafos,

dramaturgos, etc., todos são a serviço da arte e devem ser respeitados igualmente.

Sobre o Teatro de Arte de Moscou, ele comenta:

O programa da nova empresa teatral era revolucionário. Repudiava a antiga maneira de representar, e não só o artificialismo teatral, a falsidade na emoção, na declamação, na mise-en-scène e nos cenários, o cabotinismo, o

do repertório. Destruímos em nome da arte, declaramos guerra à rotina teatral onde quer que ela se manifestasse. (STANISLAVSKI, 1956, p. 109)

Stanislavski (1956) acredita que trabalhou e viveu de acordo com as leis da natureza e

que quando começou a estudar essas leis, começou a criar um teatro vivo. As turnês do Teatro

de Artes de Moscou permitiu que o mundo conhecesse o trabalho e as descobertas de

Stanislavski, ele mostrou em cena o elo indivisível entre o corpo e a alma do ser humano.

Para ele r, para

eles, um estado normal e perfeitamente natural . (STANISLAVSKI, 1956, p. 171)

Muitas pessoas de várias partes do mundo estudaram Stanislavski e deram uma nova

versão ao seu Sistema. O fato é que o mestre russo nos pede o a

, (STANISLAVSKI, 2009b, p. 334) ele valorizou o trabalho do ator e foi

responsável por fazer a codificação da sua formação. O mestre russo consegue influenciar o

artista que busca se expressar de forma natural e verdadeira quando aponta que os sentimentos

e as emoções só vivem dentro do ser humano. Stanislavski (1956) ainda acrescenta:

Lançando um olhar retrospectivo sôbre a minha vida na arte, comparo-me ao mineiro que, andando há muito pelo sertão em busca do filão de ouro, só depois de lavar centenas de quilos de areia e de pedras, consegue recolher algumas parcelas do precioso metal. Como o caçador de ouro, trago-lhes agora, após tantos anos de labor, de pesquisas e provações, de alegrias e decepções as parcelas do nobre metal que nesse meio tempo pude acumular. (STANISLAVSKI, 1956, p. 206)

  21  

Podemos concluir que o Sistema Stanislavski foi criado através dos estudos, das

observações, das experiências e das práticas de um homem que buscou expressar a arte do

teatro durante toda a sua vida.

2.2 ANÁLISE DA PERSONAGEM ANTÍGONA

O início do processo de criação da personagem Antígona teve início com a análise e o

estudo dos dados fornecidos por Sófocles. O meu objetivo em trabalhar com a personagem

que se encontra no texto era criar uma compreensão da sua dramaturgia pessoal e da visão do

autor ao escrevê-la para criar a minha base de criação a partir desses elementos.

2.2.1 CIRCUNSTÂNCIAS DADAS

As circunstâncias apresentadas pela peça são fundamentais para a criação da

personagem porque através delas podemos imaginar a sua vida e entender seus conflitos. Para

Dagostini (2007) tudo o que diz respeito a personagem é importante, os detalhes da sua vida,

as situações em que passou e em que se encontra, seu comportamento, sentimentos, ideias e

sonhos. Esses são pontos relevantes porque fazem parte da individualidade da personagem.

Analisando o texto, percebemos que a situação da família de Antígona é complicada e

ela mesmo comenta em conversa com sua irmã Ismene:

Sabes de algum mal, dos que nos vêm de Édipo, que Zeus não queira consumar em nossas vidas? Nada angústia, infortúnio, humilhação, desonra , não há mal que eu não veja cair sobre ti, sobre mim. (SÓFOCLES, 2013, p. 7)

De fato a sua família sofreu vários males. Não podemos afirmar que Antígona seja órfã

porque a última notícia que temos de Édipo na peça Antígona é que ele deixou a cidade

depois de cegar-se. Mas sua mãe se suicidou e seus irmãos mataram um ao outro. Portanto

podemos afirmar que a morte trágica marcou sua vida. Além disso existe o importantíssimo

fato de seu pai ter se casado com a própria mãe, sendo assim seu pai e seu irmão.

Ela vive em Tebas, cidade governada pelo seu tio Creonte, e como ela é noiva do filho

de Creonte, Hemon, observamos que possui planos de se casar. Seu vínculo familiar mais

  22  

forte é com sua irmã Ismene, por essa razão compreendemos porquê ela pediu sua ajuda para

enterrar Polinice.

A decisão de enterrar o irmão foi tomada diante da recusa em aceitar que uma lei

violasse um direito dele. Antígona estava ciente que desobedecendo a lei estaria colocando

sua vida em risco, embora a lei fosse sobre o corpo de Polinice, ela também se sentiu ferida.

Em suas palavras:

Mas quanto ao corpo de Polinice, infaustamente morto, ordenou aos cidadãos, comenta-se, que ninguém o guardasse em cova nem o pranteasse, abandonado sem lágrimas, sem exéquias, doce tesouro de aves, que o espreitam famintas. As ordens propalam do nobre Creonte, que [ferem a ti e a mim, a mim, repito, são estas, que vêm para cá com o propósito de anunciar as ordens aos que ainda não [as conhecem explicitamente. O assunto lhe é tão sério que, se alguém transgredir o decreto, receberá sentença de apedrejamento dentro da cidade. (SÓFOCLES, 2013, p. 8-9)

Diante dessas circunstâncias podemos compreender o conflito inicial enfrentado por

Antígona, ou seja, ela está diante de uma escolha entre assegurar o direito do irmão de ser

enterrado ou não arriscar sua vida.

Stanislavski nos convida a em que a

personagem está envolvida para despertar a imaginação em busca de uma melhor

compreensão da personagem. É possível encontrar um sentido para o conflito da personagem

relacionando-a com a vida pessoal do ator. Segundo Stanislavski (2009a):

As circunstâncias que servem de complemento ao se são tiradas de fontes próximas aos próprios sentimentos do ator e exercem forte influência na sua vida interior. Uma vez estabelecido este contato entre as suas vidas e o seu papel, vocês experimentarão aquele impulso ou estímulo interior. Acrescentem toda uma série de contingências baseadas em sua própria experiência de vida e verão como lhes será fácil crer na possibilidade do que terão de fazer em cena. Elaborem assim um papel inteiro e terão criado toda uma vida nova. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 79)

Ele ainda acrescenta que as circunstâncias dadas servem de base para perguntas

relacionadas ao se e que ambas são dependentes. Antígona permite perceber isso porque em

frente as circunstâncias contidas no texto a respeito da personagem podemos imaginar as

razões pelas quais ela decidiu desobedecer a lei e enterrar seu irmão. Perguntas relacionadas

  23  

com quando, onde, porque e como ajudam a imaginação elaborar respostas baseadas em fatos

e circunstâncias da peça, assim a construção da personagem possui bases sólidas que se

fundamentam no próprio texto e o ator pode apoiar sua criação nelas.

As minhas perguntas relacionadas com a situação familiar de Antígona foram

fundamentais para o meu trabalho de construção de personagem. Trazer o questionamento do

destino trágico dos seus pais, Édipo e Jocasta, para a esfera da minha vida pessoal através do

se despertaram sentimentos aterrorizantes dentro de mim. Já os questionamentos sobre o

corpo de Polinice me trouxeram uma compreensão pessoal sobre a motivação de Antígona

para enterrá-lo.

2.2.2 LINHAS DE AÇÃO DIRETA

Para Stanislavski as ações de uma personagem na dramaturgia se relacionam em uma

continuidade. Esse é um ponto importante para a criação do ator porque através dessa linha

direta da ação ele compreende asua função em cena, ou seja, a linha direta da ação busca

executar o superobjetivo da personagem e através dela o ator possui noção da sua localização

na dramaturgia. A linha direta da ação não se encontra completamente na dramaturgia porque

nem tudo é apresentado em cena, Stanislavski (2009a) comenta sobre isso:

O dramaturgo só nos dá alguns minutos de toda a vida dos seus personagens. Omite muito do que acontece fora de cena. Muitas vezes não diz coisa alguma do que se passou com os personagens enquanto estavam nos bastidores, nem por que motivo fazem o que fazem quando voltam ao palco. Nós temos de preencher o que ele deixa por dizer. De outro modo, teríamos a oferecer apenas retalhos e pedaços da vida das pessoas que interpretamos. Não se pode viver assim, por isso temos de criar para os nossos papéis linhas relativamente ininterruptas. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 304)

Dessa forma, é parte do trabalho do ator conceber a linha direta da ação através dos

dados fornecidos pelo dramaturgo e pela sua imaginação. Para apresentar um determinado

fragmento da vida de uma personagem em cena é preciso compreender como e porquê ela se

encontra nessa determinada situação exposta pela peça. Stanislavski (1956) comenta sobre sua

experiência praticando a linha direta da ação quando era jovem:

Mais um principio ficou estabelecido: para impregnar-se de um papel, para entrar na pele de um personagem, é preciso habituar-se ao papel, nele se exercitando constantemente. Por conseguinte, escolhíamos um dia qualquer para vivermos, não a nossa própria vida, mas a vida das nossas personagens, de acordo com os dados da peça, e fosse lá onde fosse (durante um passeio de barco ou a pé, colhendo morangos ou cogumelos) devíamos respeitar o

  24  

enredo e os tipos da peça. Por exemplo, se, na peça, o pai da minha futura noiva me proibisse expressamente que eu dela me aproximasse (na peça, sou um estudante feio e pobre, ela uma moca rica e bonita), o amigo que faz o papel de pai nunca nos deve encontrar juntos, a mim e a minha irmã (que faz o papel da moça). Se isso acontecer por acaso, ela que invente uma maneira de nos desculpar. Quanto ao outro, em vez de agir como na vida real, trata de fazer o que faria a personagem que esta encarnando. (STANISLAVSKI, 1956, p. 44)

De acordo com Stanislavski, esse exercício forçava os atores (incluindo ele) a

improvisar de acordo com a personagem interpretada. Gestos, frases e ações podem surgir

através dele.

As improvisações para a preparação de Areias trouxeram movimentos e gestos que

foram utilizados no espetáculo. Como, por exemplo, nas improvisações feitas tendo como

base a ação de enterrar Polinice considerando as circunstâncias dadas e a linha direta da ação,

ou seja, quando eu fiz um exercício de pegar e carregar o corpo imaginário considerando o

seu peso surgiu uma forma de andar e de movimentar as pernas e os braços que eu utilizei na

parte final do espetáculo.

2.2.3 O SUPEROBJETIVO

A linha direta da ação tem por finalidade executar o superobjetivo da personagem.

Portanto todas as ações, pensamentos e sentimentos da personagem encontram sentido dentro

da dramaturgia para a realização do superobjetivo. Dagostini (2007) ressalta que o

superobjetivo deve estar unido a toda a linha de criação e que deve orientar o ator ao longo da

obra. Para Stanislavski (2008):

Só há uma coisa que pode seduzir nossa vontade criadora e atraí-la para nós: um alvo atraente, um objetivo criador. O objetivo é o aguçador da criatividade, sua força motriz. O objetivo é a isca para as nossas emoções. Esse objetivo gera surtos de desejos para os fins da aspiração criadora. Envia mensagens internas que lógica e naturalmente se exprimem por meio da ação. O objetivo faz pulsar a entidade viva do papel. (STANISLAVSKI, 2008, p. 72)

É importante que o superobjetivo seja um verbo porque dessa forma ele induz a ação

que, por sua vez, é a base do trabalho do ator. Stanislavski também menciona que todas as

ações da personagem em uma peça deve ter um propósito e uma justificativa. Assim podemos

entender a relação entre ação, linha direta da ação e superobjetivo porque toda ação deve ter

  25  

justificativa e propósito dentro de uma linha direta da ação que tem por finalidade a execução

do superobjetivo. Segundo Dagostini (2007):

O ator, nesse processo de busca, deve ter cautela para não eleger um objetivo secundário, que o desvie do grande propósito do papel. Para isso deve vigiar para que todos os objetivos dos acontecimentos e as linhas da vida da personagem se dirijam a um lugar comum a todos, isto é, ao superobjetivo do espetáculo. Assim, todas as linhas, grandes e pequenas da vida do papel, devem se orientar para um único lugar, o superobjetivo da obra. O superobjetivo e a linha transversal de ação estão intimamente, organicamente, ligados à obra e não podem ser inventados por temas estranhos agregados à mesma. (DAGOSTINI, 2007, f. 30)

Partindo para Antígona, acredito que o superobjetivo da personagem é honrar sua

família. Com esse propósito encontramos justificativa emsuas ações quando ela pediu ajuda a

Ismene para enterrar Polinice, quando enterrou o irmão e quando se mostrou firme diante de

uma sentença de morte. Quando Creonte pergunta se ela não se envergonha pelo seu

c adade vergonhoso há em honrar os do mesmo sangue .

(SÓFOCLES, 2013, p.37)

Com base no texto, percebemos que Antígona e Ismene encontram-se em circunstâncias

dadas semelhantes, mas somente Antígona possui o superobjetivo de honrar sua família.

Quando Antígona admite para Creonte que enterrou Polinice, ela tem conhecimento que

será condenada à morte, mas demonstra um comportamento resistente, justificando sua ação e

mostrando-se persistente no seu superobjetivo. Um traço marcante na sua personalidade é a

resiliência, ou seja, ela possui a capacidade de se manter firme nos seus objetivos e

convicções mesmo enfrentando uma situação adversa e de forte pressão.

A dramaturgia nos mostra o caminho da personagem desde quando ela decide enterrar

Polinice, a ação de enterrar e as consequências dessa ação, ou seja, sua morte. Esses três

momentos fazem parte da linha direta da ação da personagem que visa honrar sua família.

O superobjetivo da Antígona é sua motivação para o seu comportamento, isso encontra-

se no núcleo da obra de Sófocles e deve ser respeitado nas encenações. Dagostini (2007)

comenta que:

A renovação da obra, a sua modernização, não pode destruir o eterno nela, que assenta nos grandes temas e idéias que dizem respeito a toda a humanidade. A tendência na obra são os acréscimos modernos, para a sua renovação, que não deve ser alheia à mesma, mas contemplada e descoberta na obra, e permitida pela sua relação com a modernidade. (DAGOSTINI, 2007, f. 30)

  26  

Embora o espetáculo Areias seja uma adaptação contemporânea, o respeito ao tema da

obra de Sófocles foi fundamental no seu processo de criaçãoporque ele é o responsável por

tornar Antígona em uma peça relevante para os seres humanos independente de época.

Stanislavski (2009b) também considera a perspectiva importante no trabalho do ator,

segundo ele a perspectiva é, em toda a extensão da peça, o caminho pelo qual a linha direta

de ação vai constantemente avançando . (STANISLAVSKI, 2009b, p. 247)

Em cena, eu tinha consciência através da perspectiva onde eu me encontrava na linha

direta da ação para a execução do superobjetivo da personagem, dessa forma eu conseguia

localizar minhas ações e movimentos dentro da narrativa do espetáculo baseada na sua

estrutura de começo, meio e fim. A perspectiva em cena me forneceu uma ideia de futuro, e

para Stanislavski (2009a):

O futuro, num papel, é o seu superobjetivo. A personagem deve-se ir encaminhando para ele. Não é nada prejudicial que o ator, enquanto isto, se lembre, por um instante, da linha total de seu papel. Isto apenas reforçará o significado de cada segmento enquanto ele o vive e atrairá sua atenção com maior poder. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 245)

Dessa forma podemos observar a relação entre a linha direta da ação, a perspectiva e o

superobjetivo. A linha direta da ação são as ações contínuas executadas pelo ator para

alcançar o superobjetivo. O motivo da existência da personagem na peça é o superobjetivo,

sua maior vontade é alcançá-lo. E a perspectiva é a capacidade do ator de se encontrar dentro

da linha direta da ação com relação a execução do superobjetivo.

Esses elementos foram fundamentais no meu processo criativo porque me ajudaram a

compreender as ações e as motivações da Antígona. Eu consegui conhecê-la melhor quando

entendi que o seu comportamento era motivado pela vontade de honrar sua família.

2.2.4 MEMÓRIA DAS EMOÇÕES

Stanislavski considera importante o uso de sentimentos e emoções do próprio ator na

criação da motivação interior da personagem. Para ele a memória das emoções permite que o

ator traga para a cena emoções que ele sentiu no passado. Segundo Stanislavski (2009a):

Do mesmo modo que sua memória visual pode reconstruir uma imagem interior de alguma coisa, pessoa ou lugar esquecido, assim também sua memória afetiva pode evocar sentimentos que você já experimentou. Podem parecer fora do alcance da evocação e eis que, de súbito, uma sugestão, um pensamento, um objeto familiar os traz de volta em plena força. Algumas

  27  

vezes as emoções têm a mesma pujança de sempre, às vezes são mais fracas, às vezes os mesmos fortes sentimentos retornam, mas sob aspectos um pouco diverso. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 207-208)

Guinsburg (2008) nos lembra que Stanislavski busca encontrar a emoção autêntica do

ator para exibi- à base da experimentação quase científica dos materiais,

dos processos e dos operadores teatrais, bem como da análise crítica dos resultados estéticos

obtidos . (GUINSBURG, 2008, p. 4)

A capacidade visual e auditiva do ator é fundamental para a memória das emoções

porque através da visão e da audição é possível despertar sentimentos e emoções que possuem

relação com os elementos apresentados a visão ou a audição. Com essa abordagem, espera-se

que o ator tenha uma reação emocional proveniente da sua memória. Stanislavski (1956)

reflete sobre esse tema de acordo com o seu trabalho como diretor:

Não encontráramos ainda os misteriosos caminhos que conduzem à obra poética, e para auxiliar os atores, despertando neles a memoria afetiva e a inspiração criadora, íamos aperfeiçoando cada vez mais os cenários e os efeitos de ruídos, e de iluminação. Como os resultados eram muitas vezes excelentes, acabei abusando desses ilusórios efeitos cênicos. (STANISLAVSKI, 1956, p. 135)

Stanislavski afirma que o trabalho com a memória das emoções é complexo porque ela

se encontra no subconsciente do ator, mas ele argumenta por meios conscientes

alcançamos o subconsciente . (STANISLAVSKI, 2009a, p. 215)Sua intenção é apresentar em

cena emoções vivas, dessa forma, o mestre russo preza muito por qualidades interiores.

o artista deve utilizar o seu próprio material espiritual, humano,

pois é esta a única matéria com que ele pode amoldar uma alma viva para o seu papel. Mesmo

se sua contribuição for pequena, o fato de ser ele mesmo a tornará melhor .

(STANISLAVSKI, 2009a, p. 357) De acordo com Guinsburg (2008):

Sem dúvida, todo artista, seja ele pintor, escultor, músico, poeta ou ator, precisa depois de tê-la assim vivenciado em sua alma criativa pode ele atribuir-lhe traços visíveis exteriormente, moldá-la naquela forma que é peculiar a ele. Mas, de outro lado, nenhuma idéia criativa, por mais cabalmente vivenciada que seja, chega em si mesma a ser uma obra de arte enquanto não for plasmada numa forma visível. Pois a forma é o único meio através do qual nossa criatividade se torna perceptível aos outros. Enquanto o processo de configuração não ocorrer, não pode haver obra de arte. (GUINSBURG, 2008, p. 154-155)

  28  

Dessa forma podemos compreender que o trabalho interior para o ator encontra o seu

sentido na expressão dos sentimentos e das emoções através do corpo e esse trabalho tem a

função de tornar a expressão artística viva no momento em que o ator se encontra em cena.

Outro tema importante é emoções análogas. Para Stanislavski o ator deve procurar

encontrar na sua personagem sentimentos e emoções que lhe sejam análogas para o processo

interior de criação do papel. Quando um ator procura compreender a sua personagem se

colocando no seu lugar, os sentimentos análogos podem despertar. Embora esses sentimentos

sejam semelhantes aos da personagem, eles pertencem ao ator. Sobre esse processo,

Stanislavski (2009a) comenta que:

Se tiverem matéria emocional assim tão viva e fácil de despertar acharão simples transferi-la ao palco e representar uma cena análoga à experiência que tiveram na vida real e lhes deixou tão chocante impressão. Ser-lhe-á desnecessária qualquer técnica. A cena interpretar-se-á por si mesma, pois a natureza os ajudará. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 226)

Os sentimentos análogos foram muito importante para minha compreensão de Antígona.

Como as suas circunstâncias dadas são muito diferentes da minha vida pessoal, procurei

encontrar situações onde eu teria a mesma coragem que ela tem de arriscar a própria vida. O

interessante é que o que eu encontrei dentro do meu íntimo está diretamente relacionado com

pessoas que eu amo. Eu considero esse ponto a minha principal ligação com Antígona. Foi

mais difícil encontrar semelhanças entre o meu eu, a resistência e a resiliência da personagem,

então para encontrar alguma situação em que eu me comportaria de forma semelhante,

precisei entrar em contato com os meus valores inegociáveis. Stanislavski (2009b) acrescenta

que:

É por isto que quando estamos em cena a nossa preocupação maior deve ser a de constantemente refletir em nossa própria visão interior as coisas análogas àquelas que a nossa personagem teria na sua. Essa corrente interior de imagens, alimentada por toda sorte de invenções fictícias e circunstâncias dadas, instila vida num papel, dá base a tudo o que a personagem executa, às suas ambições, pensamentos, sentimentos e, mais do que isto, ajuda muitíssimo o ator a fixar sua atenção na vida interior do seu papel. Ela deve ser utilizada para firmar a atenção vacilante. (STANISLAVSKI, 2009b, p. 176)

Posso dizer que os sentimentos análogos foram meu ponto de partida, mas também

utilizei a memória das emoções. A cena do enterro de Polinice no espetáculo Areias foi

mostrada através de uma projeção em vídeo e a gravação ocorreu na praia Daniela em

  29  

Florianópolis. Eu cavo uma cova na areia, entro nela para continuar cavando, tiro o meu

figurino (uma camisola branca) esfregando-o no meu corpo eo enterro.

A minha maior dificuldade foi fazer as ações com a pressão, o medo, a tristeza e a

agilidade que a cena requer, mas eu recebi estímulos auditivos da professora Débora

Zamarioli que orientou o trabalho e da aluna de Artes Cênicas Marcela Trevisan que

colaborou na produção e também estava presente. Esses estímulos e a minha concentração

pessoal me ajudaram a dar o meu melhor para fazer a cena. Eu não me concentrei nos

sentimentos, mas na minha memória. Senti também que quanto mais eu cavava, menos eu

pensava porque estava focando cada vez mais na ação. Nesse trabalho com Antígona,

considero importante essas palavras de Stanislavski (2009a):

Nunca se perca no palco. Atue sempre em sua própria pessoa, como artista. Nunca se pode fugir de si mesmo. O instante em que você se perde no palco marca o ponto em que deixa verdadeiramente viver seu papel e o início de uma atuação exagerada, falsa. Assim, por mais que atue, por mais papéis que interprete, nunca conceda a si mesmo uma exceção à regra de usar sempre os próprios sentimentos. Quebrar essa regra é o mesmo que matar a pessoa que você estiver interpretando, pois a estará privando de uma alma humana, viva, palpitante, que é a verdadeira fonte da vida do papel. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 216)

Acredito que quando um ser humano possui a profissão de ator, sua vida pessoal, suas

experiências e suas observações podem contribuir positivamente na criação de uma

personagem. Para Stanislavski o corpo e a alma são dependentes e Dagostini (2007)

complementa que:

K. Stanislávski, como homem de teatro, viveu e lutou incessantemente para poder estabelecer princípios e meios para um teatro espiritual, os quais

As emoções e os sentimentos análogos possibilitam uma compreensão do conflito

pessoal da personagem através do interior do ator e a memória das emoções pode ser uma

ferramenta de expressão capaz de deixar a cena viva, ou seja, com sentimentos e emoções

verdadeiros. Para o mestre russo, quando o ator estuda o seu papel, ele também deve estudar a

si mesmo. Stanislavski (2008) comenta sobre a relação das emoções do ator com os objetivos

da personagem:

  30  

São necessárias emoções profundamente passionais para transportar os sentimentos, a vontade, a mente e todo o ser do ator. Essas emoções só podem ser despertadas por objetivos de conteúdo interior mais profundo. O segredo e a essência da técnica interior neles se ocultam. Portanto, a preocupação seguinte do ator deve ser a de achar objetivos que movam constantemente os seus sentimentos, e assim deêm vida à sua partitura física. Essa partitura criadora deve excitar o ator não só por sua veracidade física externa, mas acima de tudo por sua beleza, sua euforia interior. Os objetivos criadores devem evocar não apenas o simples interesse, e sim uma ardorosa excitação, ardentes desejos, aspirações, ação. Todo objetivo que não tiver essas qualidades magnéticas não estará cumprindo sua missão. É claro que não se pode afirmar que todo objetivo emocionante é adequado e bom para a partitura criadora de um papel, mas se pode afirmar com toda segurança que um objetivo seco não serve para nada. (STANISLAVSKI, 2008, p. 84-85)

Como escrevi anteriormente, defini o superobjetivo de Antígona como honrar sua

família e encontrei sentimentos análogos aos da personagem relacionados as pessoas que eu

amo. Dessa forma, consigo compreender através do meu interior as suas ações para alcançar

esse objetivo que eu considero nobre.

Com base na minha experiência na criação da Antígona, acredito que a abordagem do

ator como ser humano e do corpo dependente da alma permite o processo de criação se

aprofundar na personagem e explorá-la de forma única e pessoal a fim de levar para a cena

uma interpretação com emoções e sentimentos verdadeiros. Segundo Stanislavski o principal

fator em qualquer forma de criatividade é a vida de um espírito humano, o do ator e o de seu

papel, os seus sentimentos conjugados e sua criação subconsciente . (STANISLAVSKI,

2009b, p. 382)

2.2.5IMAGINAÇÃO

Stanislavski define a importância da imaginação quando diz que a arte provém dela. É

necessário desenvolver a imaginação e a técnica para transportar a personagem criada pelo

autor para a realidade teatral. Para artista, conscientemente ou

inconscientemente, seleciona constantemente imagens fundamentais que povoam a sua mente

e que constituem material para o seu trabalho criativo . (DAGOSTINI, 2007, f. 68)

As circunstâncias dadas, a linha direta da ação e o superobjetivo existem através da

imaginação. Quando o ator começa a trabalhar com o se e com perguntas com quando, onde,

porque e como ele ativa sua imaginação para criar as respostas. Dessa forma a narrativa da

vida da personagem e as imagens relacionadas a ela são criadas interiormente. Segundo

Stanislavski (2009a):

  31  

Necessitamos, antes de mais nada, de uma série interrupta de supostas circunstâncias, nos meios das quais se desenvolve o nosso exercício. Segundo, temos de contar com uma linha sólida de visões interiores, ligadas a essas circunstâncias, de modo que elas sejam ilustradas para nós. Durante cada segundo que estivermos no palco, a cada momento do desenrolar da ação da peça, temos de estar cônscios das circunstâncias externas que nos cercam (toda disposição material do espetáculo) ou de uma cadeia interior de circunstâncias que foram imaginadas por nós mesmos, a fim de ilustrarmos nossos papéis. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 96)

Compreendo que as imagens que formam a série interrupta tornam as circunstâncias

dadas mais acessíveis para a consciência do ator. A linha direta da ação preenchida com

imagens provenientes da imaginação é semelhante a um filme exibido no interior do ator. O

uso da imaginação dessa maneira facilita o ator a focalizar na dramaturgia e pode despertar

emoções e sentimentos em cena. Stanislavski (2009a) comenta que:

Nossa arte requer que a natureza inteira do ator esteja envolvida, que ele se entregue ao papel, tanto de corpo como de espírito. Deve sentir o desafio à ação, tanto física quanto intelectualmente, porque a imaginação, carecendo de substância ou corpo, é capaz de afetar, por reflexo, a nossa natureza física, fazendo-a agir. Esta faculdade é da maior importância em nossa técnica de emoção. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 103)

O mestre russo acrescenta que todas as palavras e movimentos feitos pelo ator em cena

são resultados da sua imaginação e que conhecer a nossa própria natureza trará um efeito

positivo quando trabalharmos com circunstâncias imaginárias.

Eu tive a oportunidade de trabalhar com a imaginação de imagens principalmente

relacionando-as com o local onde se passa a peça Antígona, ou seja, na cidade de Tebas. Por

se tratar de uma tragédia grega, minha memória resgata fotografias que eu vi da Grécia.

Quando penso onde Antígona vive, minha mente é inundada por imagens de arquitetura grega

como a Acrópole e teatros da antiguidade.

Embora a referência de arquitetura seja importante, o principal para mim são as

imagens relacionadas à natureza. Através de fotos, percebo que a Grécia possui um litoral

maravilhoso. Eu vivo em Florianópolis e posso afirmar que nessa ilha existe praias lindas.

Sendo assim, a natureza marítima da cidade em que eu vivo serviu como impulso para

imaginar a cidade da Antígona.

  32  

Foto 1 Vivência nas Dunas do Santinho

Fotografia: Gregori Homa

Eu não conhecia as Dunas do Santinho e me surpreendi com a sua natureza, é um

ambiente longe da dinâmica da cidade moderna e a paisagem é natural. A minha vivência

nesse lugar foi marcada pela sensação de estar em contato direto com a natureza através do ar

puro, da areia limpa, do som do vento e da paisagem natural. Dessa forma eu consegui sentir

no meu corpo, através dos meus sentidos, o local onde eu imagino que Antígona vive.

Com essa experiência eu criei uma dramaturgia percorrida pela personagem. Na minha

imaginação ela inicia a sua trajetória em um ambiente natural com ventos, árvores, plantas,

chão de terra e próximo ao mar. Esse cenário começa a mudar quando Antígona encontra com

Creonte porque minha imaginação acrescenta monumentos de pedra com arquitetura da

Grécia antiga. A última mudança ocorre quando Antígona se mata, eu penso em um lugar

escuro, abafado e úmido.

Eu enfrentei muita dificuldade em colocar em cena a minha trajetória de ações, minha

intenção era relacioná-la diretamente com a linha direta da ação. A dificuldade de

concentração foi um fator que eu acredito ter interferido de forma negativa na minha tentativa

de despertar as sensações, os sentimentos e as emoções em cena, mas houve um momento

relevante. Nas Dunas do Santinho eu executei várias vezes a ação de cavar na areia e no

cenário do espetáculo havia bacias cheias de areia limpa e eu interagia com o mesmo material.

  33  

Foto 2 Bacia de areia

Fotografia: Gregori Homa

Em ummomento eu fazia a mesma ação feita das dunas, então quando eu cavava na

bacia de areia eu vivia e sentia o que eu havia experimentado anteriormente, mas baseado nas

ações do momento presente. Dessa forma, eu experimentava sensações novas que são

semelhantes às que eu já havia experimentado no passado.

É um grande desafio para o ator colocar em cena as sensações, emoções e sentimentos

experimentados no passado, percebi que a problemática deve-se ao fato de que eles só se

apresentam organicamente em cena através da vivência no momento presente. Sobre esse

assunto, Guinsburg (2008) acrescenta:

Ora, Stanislávski não vê o elemento de verdade na arte da representação como uma simples reposição de estados afetivos reais, anteriormente vivenciados pelo eu interpretante, que este recupera através dos mecanismos da memória afetiva e dos exercícios para a sua reenergização. Esse recurso, um dos mais importantes do chamado Método, representa apenas uma parte do processo. A outra consiste em pôr os elementos assim mobilizados a serviço de uma ficção a ser criada no palco, uma criação pertencente a três esferas que se interpenetram: a emocional, a imaginativa e a carnal. É na efetiva conjugação orgânica das três que reside a autenticidade do representado, isto é, a sua verdade. (GUINSBURG, 2008, p. 4-6)

  34  

Considero que o elemento areia em cena foi fundamental para o meu desempenho em

busca da integração da minha emoção, da minha imaginação e dos meus movimentos. O meu

objetivo se resumia em apresentar uma arte autêntica e orgânica.

2.2.6 FÉ E SENTIMENTO DE VERDADE

Guinsburg (2008) considera que a questão da verdade e da realidade na arte é um ponto

relevante para o teatro de Stanislavski. Segundo Stanislavski (2009a), existemduas formas de

crer no que se faz. A primeira é crer na realidade, naquilo que realmente existe na vida. A

segunda é crer na imaginação, em algo que não é real. O mestre russo considera a verdade em

cena um elemento importante para o trabalho do ator. Para Stanislavski (2009a):

A verdade em cena é tudo aquilo em que podemos crer com sinceridade, tanto em nós mesmos como em nossos colegas. Não se pode separar a verdade da crença, nem a crença da verdade. Uma não pode existir sem a outra, e sem ambas é impossível viver o papel ou criar alguma coisa. Tudo que acontece no palco deve ser convincente para o ator, para os seus associados e para os espectadores. Deve inspirar a crença de que na vida real seriam possíveis emoções análogas às que estão sendo experimentadas pelo ator em cena. Cada momento deve estar saturado de crença na veracidade da emoção sentida e na ação executada pelo ator. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 169)

As circunstâncias dadas são fundamentais para ajudar o ator a alcançar a verdade cênica

quando estiver em cena. De fato, acreditar nas circunstâncias dadas e nas condições que

envolvem a personagem permite que o ator se relacione com o cenário, com os objetos e com

os outros atores de uma forma verdadeira, ou seja, o cenário, os objetos e os outros atores

representam uma ficção em cena, mas através do sentimento de verdade eles se tornam reais

para o ator. O ator precisa acreditar não só no que está se passando no palco, como

principalmente no que se passa com ele . (STANISLAVSKI, 1956, p. 167).Para manter-se

dentro do papel, Stanislavski aconselha o ator a restringir os seus pensamentos em cena aos

pensamentos que a personagem teria se estivesse em circunstâncias semelhantes. Dagostini

(2007) acrescenta que:

Para alcançar a autenticidade em cena, o ator tem que colocar em movimento todas as forças criativas para realizar a ação como quando a criou pela primeira vez, não imitando o que criou, mas passando novamente pelo processo vivo orgânico da criação. Na ficção artística a verdade e a fé surgem do trabalho de fermentação e ativação da vida imaginária. Para o ator realizar uma ação genuína, despertando em si mesmo a verdade cênica, deve transferir-se para o plano da vida imaginária, com a ajuda das

  35  

nstâncias dadas e com objetivos interessantes. A permanência do ator em cena deve estar constantemente ratificada pela verdade das ações que está realizando e pela fé na verdade dos sentimentos que está vivendo. (DAGOSTINI, 2007, f. 74)

Stanislavski também aponta a dificuldade em manter o sentimento de verdade na

dramaturgia inteira e por isso propõe fragmentá-la para absorvê-la por partes. Para da

crença na veracidade de uma pequena ação, o ator pode chegar a sentir-se integrado em seu

papel e a depositar fé na realidade de uma peça inteira . (STANISLAVSKI, 2009a, p. 180)

Outro ponto importante abordado pelo mestre russo é o cuidado que o ator deve ter para

manter a linha direta da ação para não criar rupturas na continuidade da vida do seu papel e

evitar criar lacunas que desviam o ator dos pensamentos e dos sentimentos da personagem.

A verdade cênica é fundamental para que o ator consiga trabalhar com as circunstâncias

dadas, o superobjetivo e a linha direta da ação. Os sentimentos de verdade e a fé encontram-se

no interior do ator e são responsáveis por criar a motivação das suas ações em cena.

Stanislavski comenta que um elemento psicológico, e um elemento

físico em todo ato psicológico . (STANISLAVSKI, 2009a, p. 179) Dessa forma podemos

perceber a relação entre o corpo e alma, Stanislavski (2009a) acrescenta que:

Porque o elo entre o corpo e a alma é indivisível. A vida de um dá vida ao outro. Todo ato físico, exceto os puramente mecânicos, tem uma fonte interior de sentimento. Por conseguinte, temos em cada papel um plano interior e um plano exterior, entrelaçados; um objetivo comum liga-os em parentesco e lhes reforça os elos. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 182)

Para alcançar uma interpretação orgânica que utiliza a alma e o corpo para sua

expressão, Stanislavski aconselha a usar a técnica consciente de criar o corpo físico da

personagem como base para a criação do espírito da personagem. Ele exemplifica dizendo

que se um ator se preocupar com as questões trágicas e as ações psicológicas do seu papel

começará se interiorizar violentando seus sentimentos e exagerando sua paixão, mas se ele se

concentrar em um problema físico envolvido em circunstâncias interessantes e

comovedorasnão haverá preocupações em gerar psicologia, tragédia ou drama. Dessa forma

não há violência e o resultado será natural. Segundo Stanislavski (2009a):

Cheguem à parte trágica do papel sem estremeções dos nervos, sem sufocações nem violências, e, sobretudo, não o façam de repente. Encaminhem-se para ela gradual e logicamente, por meio da execução correta de sua sequência de ações físicas exteriores e acreditando nessas ações. Quando tiverem aperfeiçoado essa técnica de abordagem dos

  36  

sentimentos, sua atitude em relação ao momento trágico mudará inteiramente, e ele não mais os assustará. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 189)

Antígona é uma personagem trágica e expressar o seu drama pessoal foi um grande

desafio. Eu encontrei grande dificuldade quando tentei criar as suas emoções e sentimentos,

por isso procurei ajuda estudando o Sistema Stanislavski.

As circunstâncias dadas, a linha direta da ação e o superobjetivo são muito importantes,

mas na minha vivência percebi que eles só funcionam se eu desenvolver a verdade cênica.

Como Areias trata-se de um solo, eu não tive a oportunidade de desenvolver verdade

cênica relacionada a parceiros, mas precisei desenvolvê-la relacionada ao cenário e aos

objetos.

No cenário havia uma cortina cortada em faixas que estavam suspensas e amarradas

formando dez tiras de laço, minha ação era desamarrá-las lentamente e uma montagem de

fotos minhas nas Dunas do Santinho era projetada na cortina. Essa ação faz parte do início do

espetáculo, ela é simples, mas está inserida em um momento de tragédia no espetáculo porque

a cena anterior é sobre a perda dos olhos de Édipo. Sendo assim, eu procurei me relacionar

com as tiras com a intenção de descobri-las sentindo sua textura, seu peso e sua forma, me

concentrei em desamarrá-las dessa forma e fui envolvida pela música desse momento que era

Fjögur píanó da banda islandesa Sigur Rós.

Foto 3 Cortina cortada em faixas

Fotografia: Gregori Homa

  37  

No espetáculo Areias, Antígona se mata fincando uma faca no coração. Na verdade da

realidade a faca estava sem fio, mas eu procurei crer que ela realmente poderia me machucar

buscando a verdade cênica. Na minha concepção de personagem, esse momento é muito triste

e tenso. Com sentimento de isolamento e desespero, a natureza interna do conflito de

Antígona nesse momento se define pela dúvida entre a esperança e a realidade em que se

encontra. Dessa forma houve uma hesitação em fazer a ação. O meu trabalho nessa cena foi

crer no perigo da faca e experimentar a hesitação e a execução da ação lembrando das

circunstâncias dadas e do superobjetivo. A música da cena era uma versão de Lacrimosa do

Mozart pelo músico polonês Zbigniew Preisner e eu a considero muito importante pelos

sentimentos e emoções que eu senti em cena.

2.2.7 CONCENTRAÇÃO

Segundo Stanislavski (2009a), a presença do público pode exercer uma influência

negativa no trabalho do ator no palco porque pode intimidá-lo causando nervosismo e

insegurança que torna as suas ações forçadas. Stanislavski (2009a) reflete sobre essa questão:

Todos os nossos atos, até os mais simples, que nos são de tal modo familiares na vida cotidiana, tornam-se forçados quando surgimos atrás da ribalta, perante um público de mil pessoas. Por isto é que temos de nos corrigir e de aprender novamente a andar, a nos mover de um lugar para o outro, a nos sentar ou deitar. É essencial nos reeducarmos para olhar e ver no palco, para escutar e ouvir. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 112)

Sendo assim, podemos compreender a importância da concentração para o desempenho

do ator. Dagostini (2007) comenta que:

O domínio da arte da concentração, o seu constante desenvolvimento, leva o ator a discernir o que é essencial na natureza das coisas e das pessoas, a obter o máximo controle sobre o seu corpo e sua mente e, conseqüentemente, conquistar um aperfeiçoamento na sua percepção do mundo, na sua sensibilidade, e uma alteração qualitativa em sua consciência. Portanto há uma elevação como artista e como ser humano, pois não há separação entre sua atitude no teatro e na vida: elas se coadunam. (DAGOSTINI, 2007, f. 67)

O ator deve manter um ponto de atenção que não esteja no público. Os olhos têm um

papel fundamental no processo de concentração, Stanislavski os considera o espelho da alma

e o olhar vago é o espelho de uma alma vazia. É importante que os olhos do ator, o olhar,

  38  

reflitam o profundo conteúdo íntimo da sua alma . (STANISLAVSKI, 2009a, p. 237) Quando

um ator olha com concentração para um objeto, ele indica para onde o espectador deve olhar

atraindo a sua atenção para esse objeto.

A percepção é um elemento importante para a concentração, através dela o ator

descobre através dos seus sentidos o objeto de observação e então sua atenção é fixada. O

processo da concentração é interior, mas reflete no exterior pela sua natura psicofísica.

Stanislavski esclarece que o ator, em cena, vive dentro de si mesmo ou fora. Vive uma vida

real ou uma vida imaginária. Esta vida abstrata contribui com uma fonte inesgotável de

material para a nossa concentração interior de atenção . (STANISLAVSKI, 2009a, p. 122)

O objeto no qual o ator mantém sua atenção muda no transcorrer da peça, mas é

importante que todos eles exerçam uma força atrativa capaz de despertar o seu interesse.

Dessa forma o processo de concentração serve como base para o processo de criação.

Stanislavski comenta que a descontração dos seus músculos aliada a concentração lhe

proporcionaram um estado de bem-estar no palco, para ele esses momentos eram agradáveis e

o sentimento de medo se fazia ausente porque a sua concentração estava voltada para as suas

ações. Stanislavski (1956) compartilha as suas experiências pessoais:

Prosseguindo nas minhas observações, compreendi (ou antes, senti) que a criação exige em primeiro lugar uma completa concentração do ser, tanto físico como espiritual. Concentração essa que se estende não só à vista e ao ouvido, como a todos os sentidos, ao corpo inteiro, ao pensamento, à razão, à vontade, ao sentimento, à memória, à imaginação, tudo isso concentrado unicamente no que se passa na alma da personagem que está sendo representada. (STANISLAVSKI, 1956, p. 166)

Considero a minha dificuldade de concentração como um ponto frágil no meu processo

de criação. A presença do público consegue desviar o meu foco para pensamentos

relacionados ao medo e à insegurança e consequentemente eu me sinto o nervosismo dominar

o meu ser, ou seja, meu aparelho psicofísico.

Para superar essa dificuldade, tento manter a minha concentração focada no que eu devo

realizar no palco e, de certa forma, ignorar a expectativa de reação do público.

No espetáculo Areias eu fixei a minha atenção para um objeto específico durante o

determinado momento presente, dessa forma houve trocas constantes de objeto de atenção.

Em uma cena eu despedaço um buquê de rosas vermelhas e jogo as pétalas no chão.

  39  

Foto 4 Despedaçando o buquê de rosas vermelhas

Fotografia: Gregori Homa

Essa cena é a que eu considero que eu atingi meu ponto máximo de concentração e ela

desperta as minhas emoções e sentimentos com facilidade, nela a minha atenção fica

focalizada no buquê e nas pétalas a medida em que eu utilizo minha percepção como base

para viver o momento. Em outra cena eu escrevo meu nome com as minhas mãos e nesse

processo eu imaginava as linhas que eu estava criando enquanto mantinha meus olhos

voltados para as mãos.

O mais difícil são os momentos de encarar o público porque os olhares das pessoas me

fazem pensar na sua recepção. Assistindo a gravação do vídeo do espetáculo, percebi que a

minha noção de tempo em cena não é coerente com o tempo que é mostrado no vídeo.

Acredito que isso seja uma consequência direta do nervosismo em cena que aumenta a

ansiedade destorcendo a noção de tempo para o ator no palco.

2.2.8 DESCONTRAÇÃO DOS MÚSCULOS

Para Stanislavski (2009a) é importante que o ator se dedique em relaxar seus músculos

porque ele percebeu que a tensão física influencia de forma negativa a interpretação. Além

disso, no palco a tensão física é evidenciada e o palco pode causar uma influência negativa no

ator, por isso ele deve se educar para aprender a fazer ações cotidianas novamente, ou seja,

ações como andar, falar, olhar sem o excesso de tensão física. Stanislavski (2009a) comenta

que:

  40  

Um objetivo vivo e uma ação real (pode ser real ou imaginaria, desde que esteja adequadamente baseada em circunstâncias dadas em que o ator possa crer) fazem, natural e inconscientemente, funcionar a natureza. E só a natureza pode controlar plenamente os nossos músculos, distendê-los adequadamente ou relaxá-los. (STANISLAVSKI, 2009a, p. 142)

O próprio Stanislavski comenta sobre a sua dificuldade, como ator, em atuar com os

músculos relaxados. Ele estabeleceu o objetivo de obter o domínio do seu corpo em cena, mas

percebeu que até a ação de permanecer imóvel diante do público é difícil por causa da tensão.

Podemos observar sua reflexão pessoal:

No decurso dos ensaios, desembaracei-me porém da agitação convulsiva e transformei a tensão geral em tensão local. Aprendi a localizá-la, ora nos dedos dos pés, ora nos dedos das mãos, ora no diafragma, ou fosse onde fosse. Serrava os punhos com tal força que o sangue me jorrava das unhas. Crispava os dedos dos pés, e, com todo o meu peso, afundava-os no chão, a ponto de manchar muitas vezes as meias de sangue. Dessa maneira conseguia assumir uma aparência de tranquilidade, e aprendia a ficar parado no palco, sem sapatear nem me mexer inutilmente... Tratei em seguida de suprimir esses pontos de contração que eu mesmo criava. Mas ai de mim! Se afrouxava os punhos, desencadeavam-se de novo as convulsões, ameaçando invadir-me o corpo todo. Tinha de recomeçar tudo, desde o princípio! Desse circulo vicioso não esperava desvencilhar-me jamais. Mas se um dia conseguisse, que alegria!... (STANISLAVSKI, 1956, p. 77-78)

Sobre esse assunto, Dagostini (2007) acrescenta que:

[Stanislavski] considera que a tensão e o esforço físico em cena são causados pela violação das leis da natureza e paralisam todo o trabalho ativo do ator interferindo em sua vida psíquica, o que se reflete no processo orgânico da ação e na expressão dos sentimentos. Os sintomas da tensão são defeitos que influem sobre o estado geral do ator e a tensão muscular deforma o artista e o impedem de atuar, afetando todo o seu aparato psicofísico: o corpo, a voz, os olhos e a respiração. (DAGOSTINI, 2007, f. 85)

Para Stanislavski (1956) uma falha na vontade do ator pode prejudicá-lo em cena por

causar contrações involuntárias no seu corpo afetando os seus movimentos, por essa razão ele

acredita que o corpo precisa estar liberto e submetido ao espírito, ou seja, o corpo precisa se

conectar com a alma.

Stanislavski (2009b) também aconselha o ator a ouvir o seu corpo e sentir a energia que

se encontra no seu interior. Para ele essa energia que brota do coração é carregada de

emoções, sentimentos e objetivos que podem despertar ações. Descobrir a mecânica do

próprio corpo e experimentar exercícios físicos é um caminho para encontrar novas sensações

e tornar o corpo mais expressivo e sensível.

  41  

Minha amiga e estudante de Artes Cênicas Vic Barros Delben colaborou na minha

preparação corporal para o espetáculo. Uma das suas contribuições significativas foi um

exercício que ela conduziu com a finalidade de descontrair os meus músculos. Delben baseou

esse exercício em uma aula de vídeo dada pelo professor de interpretação Lee Strasberg. Eu

me sentei em um cadeira, fechei os meus olhos e tinha como objetivo relaxar enquanto

respondia perguntas relacionadas à personagem Antígona. Esse exercício é um caminho de

relaxamento em exaustão porque as ordens são sempre para relaxar mais. Os lugares onde eu

notei mais tensão foram nos dedos das mãos e dos pés, nos ombros, na face, no pescoço e nos

joelhos. Ele também trabalha a imaginação e a memória sensorial porque eu respondia as

perguntas, como Antígona, sobre quem é a personagem, as motivações das suas ações e o

ambiente em que ela se encontra.

Outra experiência positiva no processo de preparação foi um exercício simples que eu

conheci através da professora Débora Zamarioli, trata-se de colocar sobre o coração uma

bolsa térmica quente e relaxar. Considero esse exercício uma forma de interiorização, o fato

interessante é que através das batidas do meu coração eu consegui sentir que existe uma

distância entre ele e a minha pele. Notei que nessa distância existem músculos tensos e quanto

mais eu relaxava, mais eu conseguia sentir a sua profundidade. Não cheguei ao ponto de

conseguir sentir o meu coração, mas experimentei a procura de senti-lo como um órgão vivo.

  42  

3 PINA BAUSCH

Areias é um espetáculo de dança-teatro baseado na personagem Antígona e com

metodologia de criação inspirada na dançarina e coreógrafa alemã Pina Bausch. Ela foi

diretora artística do Tanztheater Wuppertal e influenciou a dança moderna com o seu estilo

único de dança -teatro. A professora Solange Pimentel Caldeira (2006) -

teatro é uma invenção contemporânea que revela o cotidiano evidenciando as tradições e

contradições dos corpos pós-modernos. Dessa forma o surgimento da dança pós-moderna vem

do cotidiano para refletir as dificuldades enfrentadas pelas pessoas no final do século XX, ou

seja, a dificuldade de comunicação e a solidão. A professora de Artes Cênicas Ciane

Fernandes (2007) -teatro da companhia de Wuppertal interage com e

recria a história estética, pessoal e social. O dançarino é um corpo inteligente e crítico, capaz

de mover-

(FERNANDES, 2007, p. 142)

3.1 PANORAMA HISTÓRICO

A professora de dança Isa Partsch-Bergsohn (2004) ressalta a necessidade de entender o

panorama histórico da dança na Alemanha porque ele possibilitou o desenvolvimento da

linguagem de dança-teatro.

Para ela é necessário iniciar esse panorama com o dançarino e coreógrafo Rudolf von

Laban porque ele apresentou a dança em harmonia com as leis das formas espaciais e como

uma arte independente. Além disso, Caldeira (2006) o considera como um forte representante

da dança expressionista o que ela mesmo define:

O Expressionismo foi um movimento artístico surgido na Alemanha no inicio do século XX, que privilegiava a emoção, a intuição e o inconsciente, e visava a descarga violenta de sentimentos, especialmente os de dor e de perda, tornados mais prementes nos indivíduos após os horrores da Primeira Guerra Mundial. Na tentativa de traduzir com a máxima intensidade o sofrimento humano individual e coletivo, abusava-se da exacerbação e da distorção formais. A realidade assim deformada provocava um efeito de estranheza e de grotesco. Na pintura, no teatro, no cinema e na dança, cores fortes, contrastes do claro-escuro, criavam atmosferas sombrias, mórbidas, trágicas. (CALDEIRA, 2006, não paginado)

  43  

Laban fundou a Tanzbühne Hamburg (Companhia de Dança de Hamburgo) e nela ele

conseguiu experimentar as suas teorias. As danças eram criadas através da cooperação entre

coreógrafo, diretor e dançarinos. Caldeira (2006) afirma que:

Para ele , , cada movimento, cada simples gesto de qualquer parte do corpo, revela um aspecto do estado interior, ou seja, os movimentos são manifestações de sentimentos. (CALDEIRA, 2006, não paginado)

Dessa forma, a dança deve expressar o interior do dançarino através dos movimentos do

corpo, ou seja, os movimentos são a dramaturgia da dança. De acordo Partsch-Bergsohn

(2004) os estudos desenvolvidos por Laban permitiram analisar a dança através dos

movimentos dos dançarinos no espaço de acordo com o ritmo. O princípio sequência é uma

das principais leis do movimento humano, o movimento irradia do centro da gravidade e

retorna para ele. Espaço, tempo, peso e energia são usados como parâmetros para a sua

análise de movimento. Laban também criou o Labatonation, um sistema gráfico de análise do

movimento.

Mary Wigman uma foi aluna de Laban que chegou a ser sua colaboradora, mas em certo

momento preferiu abandoná-lo para trabalhar de forma independente. Ela também está

inserida na corrente do expressionismo alemão através da dança e abordava a tragédia do

homem e da humanidade nas suas obras. Segundo Caldeira (2006), a metodologia de dança de

Wigman propõe que o dançarino tenha consciência dos seus impulsos interiores e escute a si

próprio para escutar o mundo. Dessa forma o dançarino conhecerá seus impulsos criadores e

adquirirá meios para expressá-los. Caldeira (2006) também comenta sobre um aspecto

importe no trabalho de Wigman:

,

lutar. Dessa premissa surge uma concepção do movimento como fruto da interação do homem com esse espaço que lhe é ameaçador. O movimento assim toma um novo sentido, torna-se descontínuo e imprevisto, remete a uma tensão que nada mais é do que a reunião de forças para resistir a este espaço opressor. (CALDEIRA, 2006, não paginado)

 

-teatro e está inserido no

expressionismo alemão é Kurt Jooss. Ele fez parte da Companhia de Dança de Hamburgo,

mas depois fundou uma escola de dança que tinha como base no treinamento as teorias

espaciais de Laban. De acordo com Partsch-Bergsohn (2004), -

teatro se caracterizava por uma ação grupal dramática e acrescenta:

  44  

Jooss explicou: -teatro, entendida como forma e técnica de coreografia dramática, preocupada de perto com o libreto, a música, e acima de tudo com os artistas intérpretes. Na escola e no estúdio, a nova técnica de dança deve ser desenvolvida em busca de um objetivo não pessoal para a dança dramática, a técnica do balé clássico a

(PARTSCH-BERGSOHN, 2004, não paginado)

Caldeira (2006) comenta que Jooss utilizava as posições básicas do balé nas suas

obras, mas explorou as possibilidades de gestos expressivos e eliminou as exibições de

simples virtuosismo. A mesa verde é considerada sua obra-prima e para Partsch-Bergsohn

(2004), Jooss argumentava que a dança necessita de gestos intensos porque precisa atingir

uma linguagem compreensível em uma arte sem discurso verbal. Seu trabalho é marcado pela

combinação da técnica do balé com a dança moderna e traços teatrais intensos.

Pina Bausch nasceu em 1940 na cidade alemã Solingen. Aos 15 anos começou estudar

dança na escola dirigida por Kut Jooss em Essen na Alemanha, Folkwang-Hochschule. Após

a graduação, Bausch foi para os Estados Unidos estudar dança na escola Juilliard School of

Musicem Nova York, nesse período ela entrou em contato com técnicas de dança moderna

estadunidense, como, por exemplo, técnicas de Martha Graham, e estudou com Antony

Tudor. Partsch-Bergsohn (2004) comenta que Tudor trabalhava criando personagens e

apresentando suas motivações psicológicas com gestos expressivos.

Ela dançou com o Metropolitan Opera Ballet (Balé da Ópera de New York) entre

1961/62. Segundo Partsch-Bergsohn (2004), Bausch tinha consciência das questões discutidas

nesse período nos Estados Unidos e as artes dos anos 60 expressavam os direitos civis, o

meio-ambiente, o feminismo e preocupações contra armas nucleares.

Bausch retornou para a Alemanha e levou consigo essas questões em pauta nos

Estados Unidos. Por convite de Kurt Jooss, começou a dançar e a dar aulas de dança moderna

na companhia Folkwangballett. Quando Jooss se aposentou, Bausch assumiu a direção da

Folkwang Dance Studio (Folkwang Estúdio de Dança) e trabalhou como coreógrafa nessa

companhia por cinco anos. Em 1973 ela tornou-se diretora da Companhia de Dança em

Wuppertal que se tornaria a Tanztheater Wuppertal.

Em entrevista ao jornal New York Times, Bausch (1985) comenta que Jooss era

maravilhoso e que o importante nas suas coreografias eram os relacionamentos. Ela ressalta

que a escola de Jooss ensinava diferentes estilos de dança moderna e dança clássica, mas não

havia um sistema estabelecido como, por exemplo, o sistema de Martha Graham. Dessa forma

  45  

podemos compreender quando ela diz que se sente intimamente ligada a Jooss, mas que não

Em entrevista para a revista Ballet Magazine, Bausch (2002)

também comenta que ele sabia muito sobre história e música e que considera sua escola

especial, nela também havia departamentos de atuação, pantomima, artes gráficas, fotografia

e escultura. Para o New York Times, Bausch (1985)ainda acrescenta que ela queria ser uma

dançarina e não uma coreógrafa e que se sentiu frustrada em seu primeiro trabalho, então

criou alguma coisa que ela gostaria de dançar.

3.2 A ARTE DE PINA BAUSCH

Pina Bausch trabalhou com elementos europeus, estadunidense e contemporâneos.

Partsch-Bergsohn (2004) comenta que a maneira de misturar tendências estadunidense com a

tradição do teatro europeu distingue as suas obras e acrescenta que:

A d -teatro de Pina Bausch é altamente autobiográfica, sua força está na intensidade da experiência e em sua expressão. Sua limitação está em sua subjetividade. Não oferece soluções, mas articula os problemas. Pina Bausch se intromete de maneira descompromissada na esfera particular e observa o que é aparentemente não importante, com olhos clínicos. Ela traz para fora as motivações das pessoas. Seus dançarinos dirigem-se diretamente à platéia, e falam sobre si mesmos (uma prática comum durante os anos 60 no teatro alternativo off-Broadway). (PARTSCH-BERGSOHN, 2004, não paginado)

Caldeira (2006) ressalta que as primeiras apresentações das obras de Bausch, incluindo

a Sagração da Primavera de Igor Stravinsky, não foram bem recebidas. A plateia da cidade

não aceitou as coreografias agressivas, sem magia e glamour, mas essa situação se reverteu

quando seu trabalho foi aclamado em Londres e Paris.

Para a escritora Eva Hoffman (1994), Bausch tenta encontrar um ponto de encontro

entre a sensação física e a percepção e traduzi-lo em movimento. Se essas ações e

movimentos das obras da coreógrafa forem estranhos, grotescos ou violentos, pode ser pelo

fato dela levar para a cena dramas intensos e interiores da vida humana.

Segundo Caldeira (2006), Bausch iniciou um novo processo de construção da

dramaturgia utilizando o híbrido das linguagens da dança, do teatro, das artes plásticas e do

cinema. Caldeira (2006) acrescenta que:

  46  

Através de um discurso poético fragmentado e repleto de imagens oníricas, Pina Bausch induz o espectador a uma leitura pessoal da realidade focalizada, realidade esta que passa a ser uma "recriação" e não uma "interpretação" de modelos comportamentais conhecidos. O que de mais sério ela fez foi requalificar o que se entendia , , por expressividade. Pina Bausch construiu a dramaturgia do expressionismo via dança. Exatamente por isso, trouxe uma dificuldade suplementar para os que preferem as classificações. Para lidar com o que ela criava , foi necessário nomear uma categoria que a um olhar pouco treinado pode parecer um hibridismo, mas que na realidade, representa uma nova instauração: -teatro ou tanztheater. (CALDEIRA, 2006, não paginado)

Bausch estava inserida na dança moderna europeia, portanto ela tinha consciência da

dinâmica do espaço como uma tradição de Laban e Jooss. Além disso, como diretora e

coreógrafa, ela considerava importante a personalidade dos dançarinos dizendo que os

escolhia como pessoas e não pelos seus corpos. Bausch (1985) declara seu amor pelos seus

dançarinos e acrescenta que eles são lindos, mas não no formato de beleza exterior, dessa

forma ela tenta expressar a beleza interior dos dançarinos. Podemos compreender que a

coreógrafa considera importante a história pessoal do dançarino que vive no seu corpo.

Em uma entrevista para o autor Raimund Hoghe, Bausch (1980) se diz uma observadora

e que observar pessoas é a única coisa que ela sempre fez. Para a coreógrafa as relações

humanas é o assunto que mais lhe interessa e que considera mais importante, então ela tenta

falar sobre elas. Bausch comenta que as pessoas querem ser amadas e que fazem várias coisas

para que outras gostem delas. De acordo com Bausch (1980) nós somos todos transparentes

expressa alguma coisa sobre a sua forma de viver ou alguma coisa que lhe aconteceu; tudo é

visível de alguma forma e em certo momento as pessoas não pensam no autocontrole.

O corpo para Bausch, segundo Caldeira (2006) se apresenta como núcleo dramático,

fonte original de suas histórias recordadas.

que:

. Corpos para ela são documentos com seus assuntos. produção - pois são os co-autores de suas peças. Bausch os escolhe em razão

história cultural. Isso talvez explique por que seus vinte e poucos bailarinos são de dezessete nacionalidades diferentes. (CALDEIRA, 2006, não paginado)

  47  

Essa pluralidade cultural proveniente de várias nações também estão presentes na obra

de Bausch com outra abordagem: as obras feitas para cidades. A coreógrafa desenvolveu um

programa de residência em diferentes cidades com a Tanztheater Wuppertal.

A dançarina australiana e integrante da companhia, Julie Shanahan (2000), declarou

para o jornal Folha de São Paulo que:

Quando percorremos os países que inspiram uma produção, nós procuramos sentir o que cada lugar transmite. Mas muito do que se vê no palco vem de nós mesmos, dos bailarinos como seres humanos, movidos por sensações subjetivas, de raiva ou de amor. (PONZIO, 2000, não paginado)

A própria Pina Bausch (2000) comenta sobre esse processo de residência em uma

entrevista para a Folha de São Paulo:

Como em todas as peças que faço em co-produção, o que me interessa na cidade são as pessoas, os ambientes, os contrastes e não os monumentos. Quero me questionar sobre o que se passa no mundo de hoje por meio da cidade e não fazer um retrato dessa cidade. Interessa-me encontrar a alegria, ver os dois lados das coisas, o positivo e o negativo, mas procurar sempre um equilíbrio de otimismo naquilo que eu vejo e sinto. (BAUSCH, 2000, não paginado)

Segundo Caldeira (2006) a companhia fazia residência em algum lugar a cada um ou

dois anos e o resultado era uma coreografia. São espetáculos inspirados por cidades ou países

e podemos citar como exemplos Água (2001, inspirado no Brasil), Viktor (1986, inspirado em

Roma), Palermo, Palermo (1989), inspirado na Itália, Nur Du (1996, inspirado nos Estados

Unidos) e Wiesenland (2000, inspirado em Budapeste).

Em muitas das criações de Bausch elementos da natureza estão presentes no palco. Ela

utilizou água em Arien e Vollmond, terra na Sagração da Primavera, cravos em Nelken e

cactos em Ahnem. Caldeira (2006) acrescenta que a coreógrafa traz esse cenário para o

público devido à impossibilidade de levá-lo ao cenário desejado. Bausch (1980) ressalta que o

cenário é desenvolvido apenas dentro do trabalho real, ele não é definido antes da criação da

peça. Ela também comenta que acha lindo os elementos reais no cenário como terra, folhas e

água.

3.3 A NATUREZA DE FLORIANÓPOLIS APRESENTADA NO PALCO

  48  

A criação de Areias foi fortemente inspirada por Florianópolis. Já havia três anos que eu

vivia na cidade quando o processo criativo começou e a vontade de trabalhar com a natureza

dailhaestava presente desde que eu iniciei o curso de Artes Cênicas na UFSC.

Como a apresentação do espetáculo foi em um anfiteatro fechado, a questão sobre a

natureza de Florianópolis se resolveu através da inclusão de elementos da mesma no cenário.

Como se trata de uma ilha em um país tropical, as praias possuem destaque especial na

paisagem. Dessa forma houve a utilização de areias (provenientes da praia da Joaquina) e

água. Ambos os elementos

certo momento do espetáculo, a interação entre eu, as areias e a água acontecia. Além disso a

projeção de imagens apresentava fotos e vídeos que foram feitos em cenários naturais de

Florianópolis. Dessa forma o espetáculo trouxe para a cena um pouco da natureza da cidade.

3.4 O MÉTODO DE PERGUNTAS E RESPOSTAS

Bausch criou um método para a criação das suas obras que consiste em fazer perguntas

para os dançarinos que respondem com ações ou gestos ou movimentos que se relacione com

o seu próprio ser. Segundo Caldeira (2006), Bausch desenvolveu esse método em Bochum, na

Alemanha, em 1978 na preparação do balé Ele. A própria Pina comenta sobre seu início:

Para a peça, tive além dos bailarinos vários atores e percebi que não podia criar a partir de evoluções do corpo, mas sim da cabeça e por isso comecei a fazer perguntas sobre o que o grupo pensava sobre o texto e o vínculo com a vida pessoal de cada um; percebi que funcionou bem e, desde então, sempre faço perguntas. (HOGHE, 1980 apud CALDEIRA, 2006, não paginado)

A coreógrafa adotou o método de perguntas e respostas em Wuppertal para a criação

dos seus trabalhos. Através dele os dançarinos também participam da criação da obra porque

a dramaturgia é formada pelas ações executadas pelos mesmos quando respondem as

perguntas.

O processo de criação do espetáculo Areias teve como base esse método de perguntas e

respostas da Pina Bausch relacionado com a personagem Antígona. Nesse processo apenas

duas pessoas estavam envolvidas: eu, como atriz-dançarina; e a professora Débora Zamarioli,

como orientadora. Dessa forma as perguntas ou estímulo-tema foram feitas pela professora

Zamarioli e eu apresentava as respostas. Esse método se apresentou para mim como um

desafio porque eu precisei buscar na minha memória, na minha vida pessoal e na minha

  49  

identidade cultural materiais para impulsionar a criação do espetáculo, considero que

trabalhar dessa forma é um encontro do artista com o seu próprio eu porque permite fazer com

que a expressão artística nasça e se desenvolva entrelaçada com a vida completa do indivíduo,

ou seja, seu corpo, sua história, sua cultura, seu pensamento etc.

A bailarina brasileira Lícia Maria Morais Sanchez viveu dois anos (1987-1989) em

Wuppertale trabalhou na companhia -teatro da Pina Bausch, ela participou do

método de perguntas e respostas e escreveu na sua dissertação de mestrado, O processo Pina-

bauschiano como provocação à dramaturgia da memória, reflexões e recordações dessa

experiência. Segundo Sanchez (2001), Pina não ensinava fazer, mas fornecia ferramentas que

facilitam o desenvolvimento de ideias próprias. Ela explora as infinitas possibilidades do

indivíduo enquanto ator e dançarino como um ser humano que tenta se relacionar com o

mundo através de esforços humanos e da criatividade.

Sobre as perguntas e respostas, Sanchez (2001) comenta:

Estas sessões de pergunta e resposta eram os ensaios para a criação das peças, momentos nos quais trabalhávamos o tema que nos era transmitido em forma de perguntas, e as respostas eram as ações que realizávamos, expressando as nossas idéias sobre o tema. (SANCHEZ, 2001, f. 22)

Através do meu processo criativo, compreendi que as perguntas possuem um certo grau

de dificuldade porque as respostas devem expressar algo interior, mas que possua coerência e

que não faça parte do senso comum. Essa dificuldade foi muito importante para o

desenvolvimento da minha criatividade porque ela me tirou da zona de conforto, eu precisei

buscar sentido em ideias e possibilidades que eu jamais havia imaginado. Por exemplo, a

um questionamento pessoal sobre o significado de irmão. A resposta veio através da minha

vontade de ter um irmão mais velho, um irmão para me proteger, dessa forma surgiu na minha

mente a imagem de um jogador de futebol americano forte e ágil. Então respondi indo para o

centro da sala e fazendo a posição de um jogador de futebol americano.

Sanchez (2001) comenta que Bausch tinha sempre consigo um caderno para fazer

anotações e que os dançarinos também possuíam o seu próprio para anotar minuciosamente o

registro das perguntas e das respostas que eram construídas. Durante o meu processo eu

também mantive o hábito de anotar em um caderno de anotações e também no computador.Eu

escrevi as minhas perguntas, as minhas ideias de respostas, de movimentos, de materiais, de

  50  

músicas e todas as palavras que surgiam na minha mente e que poderiam ser úteis para o meu

trabalho.

Foto 5 Meu caderno com diversas anotações

Fotografia: Isabela Martins Santos

Sanchez (2001) também ressalta que Bausch conseguia ser compreendida pelo olhar e

pelos seus gestos, era uma pessoa que falava pouco, mas quando falava utilizava a língua

inglesa para se comunicar devido à pluralidade de nacionalidade dos dançarinos da

companhia. De acordo com Sanchez (2001) a compreensão do processo não se relacionava

em palavras, ela acrescenta:

As palavras ajudavam na adequação da conduta a ser seguida, mas a compreensão profunda veio do sentir, um sentir que está ligado mais à intuição do que convencionalmente é chamado de sentimento: tristeza, dor, ódio, amor e tantos outros. Poderíamos até dizer que esta compreensão veio da tomada de consciência. (SANCHEZ, 2001, f. 23)

Segundo Sanchez (2001), Bausch considerava seus dançarinos pessoas sensitivas por

serem intuitivas e sensíveis. Para a dançarina brasileira não há explicações lógicas para o

processo ba

envolvida apenas por sensações . (SANCHEZ, 2001, f. 23)

Sanchez (2001) comenta que a reação dos dançarinos quando recebem uma pergunta ou

estímulo-tema se caracterizava por deixar a mente vazia para a chegada de uma ideia

  51  

proveniente da sua própria história de vida ou do próprio cotidiano ou do inconsciente. Essa

ideia deveria se materializar através da interpretação pessoal do dançarino diante do tema

considerando a sua maneira de ver, sentir e perceber o mundo. É importante eliminar a

interpretação óbvia da pergunta.

Buscar as respostas que não se encontram na interpretação óbvia me instigou a

questionar, refletir e procurar o sentido nas minhas ideias, as perguntas funcionaram para mim

centro da sala com um cobertor infantil e o enrolei no meu corpo em pé, em seguida comecei

respondi indo para o centro da sala, fechando os olhos e andando tentando apalpar algo.

Quando recebi a

uma faca, apontá-la para o meu coração sorrindo.

As ações para as respostas devem ter começo, meio e fim, sem explicação. Em algumas

eu senti fortemente o impulso de explicar verbalmente as razões que me levaram à formular

para explicar que eu estudei os três últimos anos com uma turma e agora me encontrava no

mesmo lugar, mas fazendo um trabalho sozinha. Essa situação trouxe para mim momentos de

tristezas e a minha ação expressa como eu estava me sentindo perdida e tentando encontrar

meus colegas.

Sanchez (2001) acrescenta que:

A assimilação desse processo não é tão fácil, apesar de ser simples, pois, na maioria das vezes, procuramos entender as coisas pela via dos códigos preestabelecidos, o que certamente é mais acessível. A verdade é que ele é muito mais simples porque busca que expressemos o essencial de um tema. (SANCHEZ, 2001, f. 25)

De acordo com Sanchez (2001), Bausch não explica muito para os seus dançarinos o

que deseja ou em que ponto quer chegar, mas ela sabe seguramente o quer quando faz uma

pergunta ou estímulo-tema. Esse exercício não exige nenhum treinamento específico como

preparação, o exercício se constitui na prática e a experiência deve se realizar no nível

intuitivo deixando livre a expressão da imaginação e criação do dançarino. Nesse processo

não existe nenhum método para construir personagem ou preparar o ator, nele o dançarino

assume sua própria ide

peças de Pina Bausch: de dentro para fora . (SANCHEZ, 2001, f. 25)

  52  

Uma diferença importante entre o processo de criação da Pina Bausch e o meu processo

na criação de Areias é que ao contrário dela, eu me posicionei como dançarina que responde

as respostas feitas pela minha orientadora, mas eu sabia onde eu queria chegar porque o

espetáculo foi inspirado pelo drama pessoal de uma personagem. Dessa forma eu precisei

entrar no processo como indivíduo dentro da dramaturgia da personagem Antígona. Não foi

fácil fazer essa junção, ou seja, desenvolver um espetáculo com base no método de perguntas

e respostas e me colocar nele como Antígona, mas com a ajuda da metodologia de

Stanislavski eu percebi que esta proposta funciona quando a personagem é construída

considerando a minha identidade.

Em alguns momentos houve a interferência da professora Débora nas respostas, como

pessoais

(escova de dente e pente) e a professora ressaltou que a ação precisa ser real, sem imitação e

fingimento, e que a pergunta foi direcionada para mim, ou seja, não se tratava do que

Antígona poderia enterrar, mas o que eu desejava enterrar. Dessa forma eu reformulei a

resposta a pedido da professora. Fui para o centro da sala com embalagens vazias de

refrigerante, doce e remédio; depositei a embalagem do doce e do remédio dentro da garrafa

pet de refrigerante, fechei, deixei no centro da sala e sai.

Com base na minha experiência, não acredito que o fato de trabalhar com personagem

se opõe totalmente ao fato de trabalhar apenas com o dançarino como indivíduo. Antígona foi

o tema proposto em Areias e a dramaturgia da personagem serviu como base para as

perguntas e respostas. Esse foi um processo de criação onde eu me coloquei como indivíduo

dentro das questões do drama pessoal da personagem.

Sanchez (2001) ressalta que:

No processo bauschiano, após ser dado o estímulo-tema, devemos buscar a idéia em conexão com esse estímulo, de maneira que seja construído um

todo o seu percurso nos mínimos detalhes. Caso esse quadro seja escolhido para entrar na peça, ele deverá ser repetido fielmente, ainda que sujeito a algum corte ou transformação que Bausch possa vir a fazer. (SANCHEZ, 2001, f. 29)

Para Sanchez (2001) as perguntas e respostas são estímulos-temas ou texto que os

dançarinos devem expressar através de ações físicas externas, mas a necessidade de separar o

lado pessoal do lado criativo do dançarino é importante para Bausch, ela intervém quando o

  53  

dançarino explora algum problema psicológico próprio. Segundo Sanchez (2001) Bausch fala

essoas vomitem seus sentimentos . (SANCHEZ, 2001, f. 30)

Sanchez (2001) cita alguns exemplos de perguntas e respostas na sua dissertação, mas o

seguinte é o que considero mais interessante:

Pergunta- As respostas dos participantes são ações simples. - Tirar os anéis do dedo e colocar dentro da boca. - Guardar dinheiro dentro do sapato. - Um cinto de castidade é mostrado. (SANCHEZ, 2001, f. 32)

Sobre o exemplo dos anéis, Sanchez (2001) acrescenta que o dançarino se dirige ao

centro do espaço, executa a ação e sai sem interpretar e sem explicar o motivo da proteção.

Acho interessante nessas respostas como os dançarinos inseriram os materiais (anéis,

dinheiro e cinto de castidade) dentro da necessidade humana de se sentir seguro e protegido.

Exceto o cinto de castidade, os materiais são de uso cotidianos e não estão diretamente

relacionados com a pergunta, mas possuem coerência. Das três respostas, a que mais me

agrada é a dos anéis porque eu acho encantadora a ação do dançarino em utilizar um órgão do

seu corpo (a boca) para dá segurança e proteção aos anéis que geralmente são símbolos de

afeto e amor e compromisso entre duas pessoas, como no caso da aliança que é um anel e no

fato das pessoas presentearem as outras com esse objeto.Com base na minha interpretação

como leitora da dissertação, esta resposta serviu como referência para minha opinião de que o

método de perguntas e respostas serve como meio de expressar questões e sentimentos

importantes para os seres humanos. E esse é um ponto muito importante no processo de

criação de Areias.

De acordo com Caldeira (2006), essa metodologia coreográfica de Bausch não possui

um roteiro prévio. Sanchez (2001) acrescenta que com o material das respostas, Bausch pede

para repetir o quadro que foi feito anteriormente pelo dançarino e a partir da seleção, ela pode

modificá-lo. Caldeira (2006) acrescenta que:

Ela propõe a improvisação, depois seleciona dentre os resultados, fragmenta, descontextualiza, muitas vezes alterna as partes, repetindo-as ou justapondo-as e eis que as imagens explodem numa multiplicidade de significados. Em seguida, trabalha a montagem desses pedaços, exatamente como um diretor de cinema. Pina Bausch é uma artista escrevendo uma peça com um vocabulário especialíssimo: o corpo e a memória corporal dos seus bailarinos. Toda a sua obra depende do que lhe oferecem ou sugerem como material. (CALDEIRA, 2006, não paginado)

  54  

Para Sanchez (2001), as obras criadas por Bausch não são agregadas a um texto, nem

possuem textos e movimentos preestabelecidos que se unem para criar a peça, são das

perguntas que nascem as ações, os gestos e os cantos. ivenciado para

ser compreendido . (SANCHEZ, 2001, f. 47) De acordo com Sanchez (2001):

O não-usual permite concluir que esse processo irá configurar uma modalidade de expressão importante da cena contemporânea, de estrutura não-linear, na qual, entre procedimentos variados, cada ação é realizada na direção de conexões inusitadas, tomando a forma de uma cadeia infinita de possibilidades que, em conseqüência, é refletida no momento em que ela procede a seus recortes, redimensionamento e edição desse material. (SANCHEZ, 2001, f. 48)

Um detalhe importante é apontado por Caldeira (2006): a edição da peça, a maneira

como ela é montada, é uma decisão somente de Bausch. Sanchez (2001) também comenta

sobre o assunto quando afirma que o ponto de vista de Bausch é determinante nas escolhas

das ações e que não há discursão com o elenco sobre isso.

Embora Areias fosse livremente baseado na personagem Antígona, a busca pela criação

do não-usual foi um fator importante no processo criativo. A interpretação óbvia da

personagem foi descartada e através do método de perguntas e resposta foi criado um

espetáculo baseado na minha identidade. Muitas vezes eu me senti perdida, com medo e

insegura, mas compreendi que o único caminho possível nesse processo era criar a partir da

minha identidade.

Como o espetáculo Areias se tratava de um solo e não houve o trabalho de direção

delegado a ninguém, o meu ponto de vista e minhas escolhas foram determinantes na sua

edição e esse é outro ponto que difere do processo de criação da Pina Bausch no Tanztheater

Wuppertal.

As respostas provenientes das perguntas estímulo-tema forneceram o material que

precisava ser trabalhado para a montagem de um espetáculo. Com a ajuda, sugestão e

orientação da professora Débora Zamarioli, esse material foi modificado, transformado,

acrescentado a outros movimentos e à outras partes. Dessa forma foi montando, costurado e

colado o espetáculo Areias.

Acredito que o acumulo das funções de interpretação, direção/edição e produção

manteve a minha atenção voltada para dentro do espetáculo. A minha experiência foi muito

intensa para a sua realização, mas gratificante pelo conhecimento adquirido.

  55  

3.5 PINA BAUSCH E CONSTANTIN STANISLAVSKI

O objetivo dessa monografia não é abordar a metodologia completa da Pina Bausch e de

Constantin Stanislavski, ela simplesmente aponta como Bausch e Stanislavski influenciaram o

meu processo criativo e assim como Sanchez (2001) eu percebo semelhanças entre ambas

metodologias na criação artística.

Embora o trabalho de Stanislavski estivesse focalizado no teatro, ele apreciava muito a

dança e admirava o trabalho das dançarinas, inclusive a arte de Isadora Duncan. Para

Stanislavski (2009b) a dança pode beneficiar o trabalho do ator porque permite tornar o seu

corpo mais ereto e melhora os seus movimentos deixando-os mais definidos.

Em entrevista para a Folha de São Paulo, Bausch (2006) comentou sobre sua motivação

para criar uma peça de dança:

É a única maneira que eu consigo me expressar de fato. É a minha linguagem, é como eu sei dizer o que acho que devo dizer -e não em palavras apenas. O que espero, do que gostaria. É através das peças que as pessoas me conhecem de verdade. (BAUSCH, 2006, não paginado)

am Sanchez (2001)

acrescenta que:

Para nós, são substanciais os princípios para encontrar a verdade necessária ao teatro. São princípios que estão antes da forma. São universais e estão de acordo com procedimentos da cena contemporânea. Como, por exemplo, o acionamento do plano dos sentimentos criadores pessoais, que pertencem ao ator, que está dentro de cada um e que é um fator responsável pela transmissão da veracidade de uma cena. (SANCHEZ, 2001, p. 90-91)

Sanchez (2001) também comenta que a criação de Stanislavski está relacionada com o

subtexto lógico dado através das palavras escritas pelo autor do texto, mas que Pina Bausch

utiliza como subtexto lógico o conteúdo subjetivo encontrado na memória dos dançarinos

transformado em ação externa. De acordo com Sanchez (2001) as ações no método de Bausch

são provenientes de estímulos que acionam a subjetividade, mas Stanislavski também trabalha

com estímulos que são provenientes de um texto.

No processo de criação de Areias o texto escrito por Sófocles deu para o espetáculo uma

personagem que serviu como base para a formulação das perguntas, mas as respostas foram

ações criadas a partir da minha identidade.

  56  

Com base na minha pesquisa teórica e na minha experiência no espetáculo Areias,

acredito que os princípios para encontrar a verdade cênica estão na base das metodologias

propostas por Pina Bausch e por Constantin Stanislavski .

Tanto Bausch quanto Stanislavski trabalharam dentro das suas estéticas artísticas, mas

como criadores e diretores, ambos acreditavam que os dançarinos ou atores são pessoas

capazes de criar arte envolvendo também a sua alma.

  57  

4 CONCLUSÃO

A cultura da Grécia antiga influenciou diretamente a cultura do Ocidente. Em entrevista

para a Folha de São Paulo, Vernant (1999) comenta que:

Acredito, de fato, que os gregos em grande parte nos inventaram. Sobretudo ao definir um tipo de vida coletiva, um tipo de atitude religiosa e também uma forma de pensamento, de inteligência, de técnicas intelectuais, de que lhes somos em grande parte devedores. A história do Ocidente começa com eles. (VERNANT, 1999, f. 4)

De acordo com Vernant (1999), encontramos a influencia grega em áreas como política,

democracia, filosofia, medicina, arquitetura e teatro. Eu acredito que a tragédia grega pode

trazer questionamentos para sociedade contemporânea da mesma forma como ela questionava

a sociedade da Grécia antiga e isso é possível através dos conflitos humanos que são

apresentados nelas.

A peça Antígona me trouxe vários questionamentos sobre direitos humanos e

responsabilidade social, mas para mim o mais importante são as ações da personagem

Antígona baseada no seu amor pelo irmão.

Através da descrição de Bauman sobre a modernidade líquida eu percebi como o amor é

importante para a humanidade e que a falta de amor fraterno causa disfunções sérias para a

sociedade.

O estudo das reflexões de Bauman sobre a sociedade e o comportamento humano foi

fundamental para o desenvolvimento da minha vontade de questionar a maneira como

estamos vivendo no mundo contemporâneo. Para Bauman (2009) todos os seres humanos são

artistas da vida porque possuem a capacidade de modificá-la. Considero importante suas

seguintes palavras:

em nosso mundo líquido-moderno, viver num estado de transformação permanente, auto-redefinir-se perpetuamente tornando-se (ou pelo menos tentando se tornar) uma pessoa diferente daquela que se tem sido até então.

- deixar de ser quem se foi até agora, romper e remover a forma que se tinha. [...] Para apresentar em público um novo eu e admirá-lo no espelho e nos olhos dos outros, é preciso tirar o velho eu das vistas, nossas e de outras pessoas, e possivelmente

- destruição criativa. Diariamente. (BAUMAN, 2009, p.100)

  58  

Guinsburg (2008) também acrescenta algumas palavras escritas por Stanislavski em

uma carta para o diretor teatral Yevgeny Vakhtangov sobre o Teatro de Arte Hebreu:

formação do Teatro de Arte Hebreu, Habima. Considero-me feliz que, com essa obra, eu realizasse a maior das missões artísticas. A arte é uma esfera espiritual em que os povos se encontram com intenções puras, livres da política, sem quaisquer ambições pessoais, tão-somente por amor à beleza e à exaltação estética. A arte é o plano onde a fraternidade das nações pode

(GUINSBURG, 2008, p. 228)

Considero que as artes cênicas podem contribuir para a formação de uma sociedade

melhor porque tanto o artista como o público encontram na arte diferentes comunicações e

expressões. Dessa forma cria-se o contato com pensamentos, valores e culturas diferentes do

indivíduo artista ou indivíduo público. Por esse motivo eu acredito que a busca de

humanidade presente tanto na metodologia de Constantin Stanislavski quanto na da Pina

Bausch é importante.

Através do método de perguntas e respostas de Bausch e do Sistema Stanislavski eu me

relacionei com a personagem Antígona como um ser humano com identidade única que busca

encontrar e expressar o que existe de humano na personagem escrita por Sófocles.

Além de trabalhar a minha criatividade, essa experiência foi um processo de

autoconhecimento e questionamentos sobre o ser humano diante dela mesmo e diante do meio

em que está inserido.

  59  

5 REFERÊNCIAS

ADLER, Stella. The art of acting. Nova York: Applause Theatre & Cinema Books, 2000. ARISTÓTELES. Arte poética. In: ______. Arte retórica e arte poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. [S. l.]: Editora Tecnoprint S. A. [19--]. BALDRY, H. C.. A Grécia antiga: cultura e vida. [S. L.: s. n.], 1969. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001. _________________. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004. _________________. A arte da vida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. BAUSCH, Pina. "A dança é um auxílio para superação dos medos", diz Pina Bausch. Folha de São Paulo, dez. 2000. Entrevista concedida a Fabio Cypriano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u7684.shtml>. Acesso em: 26 out. 2013. ____________. Pina Bausch: Catching Intuitions on the Wing. The New York Times.Entrevista concedida a Eva Hoffman. Disponível em: <http://www.nytimes.com/1994/09/11/arts/the-new-season-dance-pina-bausch-catching-intuitions-on-the-wing.html?pagewanted=all&src=pm>. Acesso em: 11 out. 2013. ____________. Pina Bausch dance: key is emotion. The New York Times. Entrevista concedida a Anna Kisselgoff. Disponível em: <http://www.nytimes.com/1985/10/04/arts/pina-bausch-dance-key-is-emotion.html?pagewanted=1> . Acesso em: 11 out. 2013. ____________. Pina, Queen Of The Deep. Ballet Magazine, fev. 2002. Entrevista concedida a Valerie Lawson. Disponível em: <http://www.ballet.co.uk/magazines/yr_02/feb02/interview_bausch.htm>. Acesso em: 23 out. 2013. ____________. Pina Bausch aborda o "tempo de desamparo" em espetáculo. Folha de São Paulo,ago. 2006. Entrevista concedida a Fabio Cypriano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u63060.shtml>. Acesso em: 26 out. 2013. BERTHOLD, Margot. Grécia. In: ______. História Mundial do Teatro. Tradução de Maria Paula V. Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 103-137. CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da imperatriz: a linguagem em trânsito de Pina Bausch e a questão do espaço e a cidade na obra bauschiana. Orientado por Evelyn Furquim Werneck Lima. Rio de Janeiro, 2006. 344 f. Tese (Doutorado em Teatro) Universidade do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes da UNIRIO, Programa de Pós-graduação em teatro. Rio de Janeiro, 2006.

  60  

COSTA, Iná Camargo. Stanislavski na cena americana. Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 46, Não paginado, set./dec. 2002. DAGOSTINI, Nair. O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. Orientado por Arlete Orlando Cavaliere. São Paulo, 2007. 251 f. Tese (Doutorado em Letras) Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura Russa. São Paulo, 2007. DAY-LEWIS, Daniel. Daniel Day-Lewis: the perfectionist. The Telegraph.Entrevista concedida a Lynn Hirschber. Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/culture/3669814/Daniel-Day-Lewis-the-perfectionist.html>. Acesso em: 5 out. 2013. FACEBOOK. Investor Relations. Disponível em: <http://investor.fb.com/releasedetail.cfm?ReleaseID=761090>. Acesso em: 01. nov. 2013. FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Tanztheater: Repetição e transformação. São Paulo: Annablume, 2007. GRÉCIA ANTIGA. Antígona, de Sófocles. Disponível em <http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0434>. Acesso em: 08 set. 2013. _______________. Sófocles. Disponível em <http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0075>. Acesso em: 09 set. 2013. GUINSBURG, J.. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2008. HOGHE, Raimund. The Theatre of Pina Bausch. Tradução para o inglês de Stephen Tree. The Drama Review, v. 24, n. 1., p. 63-74, 1980. HOFFMAN, Theodore. Stanislavski Triumphant. The Tulane Drama Review, v. 9, n. 1, p. 9-17, 1964. HORNBY, Richard. Stanislavski in America. The Hudson review, v. 63, n. 2, p. 294, 2010. Lee Strasberg Theatre and Film Institute. Disponível em: <http://strasberg.com/>. Acesso em: 26 out. 2013. LESKY, Albin. Sófocles. In: ______. História da literatura grega. Tradução de Manuel Losa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 301-331. ____________. A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva, 2006. PARTSCH-BERGSOHN, Isa. A Dança-Teatro de Rudolph Laban a Pina Bausch. Tradução de Ciane Fernandes. Revista Digital Art, v. 2, n. 01, não paginado, 2004.

  61  

Pina Bausch. Disponível em: <http://www.pina-bausch.de/en/index.php>. Acesso em: 26 out. 2013. PONZIO, Ana Francisca. Crítica: Elenco de Pina Bausch influi no processo criativo. Folha de São Paulo, dez. 2000. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u8291.shtml>. Acesso em: 26 out. 2013. SANCHEZ, Lícia Maria Morais. O processo Pina-bauschiano como provocação à dramaturgia da memória. Orientado por Marcio Aurelio Pires de Almeida. Campinas, 2001. 107 f. Dissertação (Mestre em Artes Cênicas) UNICAMP, Instituto de Artes da UNICAMP, UNICAMP, 2001. SINDICATO de ladrões. Direção: Elia Kazan. Columbia Pictures. Estados Unidos, 1954. DVD (108 min.), NTSC, p&b. SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2013. STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Tradução de Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009a.

________________________. A construção da personagem. Tradução de Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009b. ________________________. A criação de um papel. Tradução de Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. STANISLAVSKI, Constantino. Minha vida na arte. Tradução de Esther Mesquita. São Paulo: Editôra Anhembi Limitada, Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, 1956.

Disponível em <http://theactorsstudio.org/studio-history/>. Acesso em: 26 out. 2013. UMA rua chamada pecado. Direção: Elia Kazan. Warner Bros. Estados Unidos, 1951. DVD (122 min.), NTSC, p&b. VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999. ___________________. Os gregos inventaram tudo. Folha de São Paulo Caderno Mais!, p. 4-5, out. 1999. VIEIRA, Trajano. Édipo rei de Sófocles. São Paulo: Perspectiva, 2009. Vimeo. An Evening at the Studio with Lee Strasberg. Disponível em: <http://vimeo.com/33053572>. Acesso em: 29 set. 2013. Youtube. Zygmunt Bauman - Fronteiras do Pensamento. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=POZcBNo-D4A>. Acesso em: 29 set. 2013.

  62  

ZANIRATTO, Cristiane Patrícia. Tradução, Comentário e Notas de Édipo em Colono de Sófocles. Orientado por Flávio Ribeiro de Oliveira. Unicamp, 2003. 128 f. Tese (Mestre em Linguística) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Programa de Pós-graduação. Unicamp, 2003.