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    Economia e Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1 (18), p. 1-44, jan./jun. 2002.

    A teoria do regime de acumulao financeirizado:contedo, alcance e interrogaes1

    Franois Chesnais2

    Resumo

    O trabalho oferece uma sntese das posies relativas ao regime de acumulao financeirizado oucom dominao financeira, mostrando tanto os problemas quanto as potencialidades das teorias quetratam desse regime. Procura descrever os principais traos sistmicos do regime financeirizado.Questiona o carter virtuoso e mesmo a viabilidade deste novo regime de acumulao. Conclui que possvel, se no provvel, que este enfrente num futuro prximo uma crise cujo epicentro estar nosEstados Unidos.

    Palavras-chave: Teoria da Regulao; Globalizao; Regime de acumulao; Financeirizao; Crisesistmica.

    Abstract

    This paper provides a synthesis of the approaches to the financialized accumulation regime, showingboth the problems and the potentialities of the theories that deal with it. It tries to describe the mainsystemic features of the financialized regime, while questioning its virtuous character and even itsviability. It concludes that it is possible, if not probable, that the regime will soon face a crisis whose

    epicenter will be in the United States.

    Key words: Regulation theory; Globalization; Accumulation regime; Financialization; Systemiccrisis.

    JEL B50, F00, F30.

    Neste texto, defendemos as seguintes posies:

    (1) Pode-se aproximar a noo de regime de acumulao incluindo nestaa dimenso essencial das construes institucionais de uma idia marxiana: a dasuperao momentnea dos limites imanentes do modo de produo capitalista. Oregime fordista reuniu condies que asseguraram tal superao, superao estaque foi momentnea ainda que prolongada. O regime fordista nasceu de relaes

    polticas impostas ao capital e no por ele escolhidas. Beneficiou-se tambm decondies histricas exgenas particularmente favorveis para a acumulao.No entanto, constata-se a presena de uma dimenso de construo deliberada deinstituies e de relaes destinadas a conter os conflitos e as contradiesinerentes ao capitalismo. Qualquer regime de acumulao que pretendesse sucederao regime fordista deveria ser capaz de passar com xito num teste de comparaocom este, a respeito da solidez dos compromissos sociais e polticos fundadores.

    (1) Texto apresentado no Forum de la Rgulation, Paris, 11-12 out. 2001. Revisado e aumentado paradifuso, em 29 mar. 2002. Traduo do francs e reviso tcnica por Catherine Marie Mathieu ( FACAMP Campinas) e Adriana Nunes Ferreira (FACAMP Campinas).

    (2) Universit de Paris-Nord, Villetaneuse.

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    (2) Desde 1979/80, assistiu-se ao ressurgimento de um capital deaplicao financeira altamente concentrado, que havia desaparecido durante cercade 60 anos. Nas ltimas duas dcadas, ocorreu tambm o reaparecimento dosmercados financeiros, seguido por pleno florescimento, garantindo a esse capitalos privilgios particulares, bem como poder econmico e social notvel, ligados liquidez. Dentre os diversos plos de centralizao financeira que prepararam talressurgimento, constam os sistemas de aposentadoria privada por capitalizaofinanceira cuja expanso teve incio no final da Segunda Guerra Mundial, nospases anglo-saxes e no Japo. Essas transformaes qualitativas na acumulao

    financeira ocorreram num contexto de mudanas maiores no alcance e nocontedo da internacionalizao do capital, bem como na abrangncia dadominao mercantil. Essa extenso foi possvel graas s polticas deliberalizao implementadas pelos pases do G7.

    (3) A partir de meados dos anos 1980, o capital de aplicao financeiraconquistou posies, o que lhe permitiu exercer um peso significativo sobre onvel e a orientao do investimento, bem como na configurao da distribuio darenda. Isso incentivou alguns poucos pesquisadores a levarem adiante a hiptesesegundo a qual o regime de acumulao potencialmente sucessor do regimefordista consistiria num regime organizado a partir de relaes originadas menosna esfera produtiva do que na esfera financeira. Tratar-se-ia de um regime de

    acumulao com dominao financeira ou, ainda, de um regime de acumulaofinanceirizado. Michel Aglietta deu um passo a mais, ao anunciar a formao nosEstados Unidos de um regime de crescimento patrimonial que prefiguraria ocapitalismo de amanh, pelo menos nos pases capitalistas avanados. Asformulaes apresentadas por esse grupo de pesquisadores apresentam algumasconvergncias e complementaridades, mas observam, no entanto, fortes diferenasquanto a certos pontos centrais.

    (4) Ao examinar essas formulaes tericas, bem como o curso da histriaeconmica e social da ltima dcada, confirma-se que a forma de capital que sevaloriza sob a forma de aplicao financeira e que provm da repartio do lucrodas empresas apresenta-se como a frao dominante do capital, aquela que tem

    condio de comandar as formas e o ritmo da acumulao. O advento dessa formade capital fez-se acompanhar da formao de configuraes sistmicas novas e deencadeamentos macroeconmicos e macrossociais inditos, no mago dos quaisesto os mercados financeiros e um novo corpo de acionistas. Tal constatao nopermite afirmar, no entanto, que se tenha chegado a algum regime de acumulaono pleno sentido da palavra, vale dizer, instituies e relaes sociais comcapacidade de conter os conflitos e as contradies inerentes ao capitalismodurante um certo perodo.

    (5) Mesmo sendo possvel identificar novos circuitos e processoscumulativos exibindo traos sistmicos, no se tem certeza de que tal conjunto de

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    elementos poder constituir um regime de acumulao vivel, provido de certaestabilidade e suscetvel de criar razes fora dos pases onde se originou, oumesmo neste. Esse ceticismo quanto viabilidade e, portanto, legitimidade deum uso forte da noo de regime de acumulao baseia-se tanto na teoria daregulao em sua verso clssica (Boyer, 1987) quanto na Teoria Marxista daacumulao e das crises.

    (6) Desde o momento (por volta de 1995/97) em que foram plenamentereunidos os elementos que tornaram possvel o esboo da teoria da emergncia deum regime de acumulao com dominao financeira, apenas uma grande potncia

    econmica, a norte-americana, passou por uma fase de crescimento plenamenteidentificvel. Foi nessa economia que se centraram as anlises relativas hiptesede um novo regime e tambm a nica para a qual tal hiptese verdadeiramenteconsistente. Em nvel terico, isso coloca a questo fundamental da relao dosregimes de acumulao com o processo de internacionalizao em suas sucessivasformas. Tal questo, mais escamoteada do que realmente resolvida no tocante aoregime fordista, deve ser plenamente tratada no que diz respeito ao regime deacumulao com dominao financeira.

    (7) A anlise da economia mundial que aqui propomos procura levar emconta simultaneamente dois processos interligados: por um lado, a tendncia homogeneizao sob a forma de um fortalecimento do mercado mundial como

    um espao comum de valorizao, colocando todas as empresas em concorrnciadireta, provocando assim um processo de eliminao e concentrao propriamentemundial; por outro lado, a reproduo dos fatores de diferenciao entre pasescom a constituio de relaes ainda mais fortemente assimtricas ehierarquizadas do que na poca fordista. Graas a essa abordagem, poderemossustentar que o crescimento norte-americano de 1995/2000 baseou-se em grandeparte nas relaes especficas dos Estados Unidos com o resto da economiamundial, das quais nenhum outro pas ou unio de pases poderia se beneficiar.

    (8) Finalmente, mesmo que se considere que os grandes rgosinternacionais, tais como FMI e OMC, tenham comeado algum trabalho deconstruo institucional, numa abordagem estritamente regulacionista, tal trabalho

    inscreveu-se sob a ideologia da superioridade de mercado. A construoinstitucional potencialmente reguladora , portanto, extremamente fraca quandoconfrontada enorme quantidade de medidas visando a restituir uma totalliberdade de manobra ao capital, medidas essas tomadas no contexto das polticasde liberalizao e desregulamentao. Num mbito marxiano de interpretao, oque ocorreu desde a poca de Thatcher e Reagan parece mais uma fuga parafrente do que a busca de solues minimamente durveis para os conflitos e ascontradies de um capitalismo submetido aos imperativos da valorizaomediada pelos mercados financeiros. As contradies capitalistas mais clssicaspoderiam at ter sido libertadas da mesma forma que o prprio capital e estar em

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    condies de se reafirmarem com a intensidade de outrora. Os Estados Unidos nopodero permanecer indefinidamente fora da crise, como o fizeram ao longo daltima dcada, ainda que permanea forte sua capacidade de transferir o peso dacrise para as outras economias. Seu lugar central na globalizao, bem como suatotal adoo do regime de acumulao financeirizado, poder tornar os EstadosUnidos o epicentro das crises financeiras e econmicas no futuro.

    Introduo

    1 As etapas na pesquisa sobre o regime financeirizado

    Penso ser um dos primeiros, se no o primeiro, a ter utilizado a expressoregime de acumulao com dominao financeira (Chesnais, 1997).Esta serviupara designar o que me pareceu ser uma configurao nova do capitalismo, na qualo movimento da acumulao e seu contedo econmico e social concreto seriammoldados pelas posies econmicas e sociais, concedidas a e conquistadas por formas muito concentradas de determinado tipo de capital , aquela designadapor Marx no livro III de O capital sob a expresso capital portador de juros ou,ainda, forma moderna do capital dinheiro. Essa caracterizao foi precedida, jdesde a primeira edio de La mondialisation du capital, em 1994, por

    observaes relativas posio de comando e ao grau de autonomia que essecapital parecia ter adquirido.3 A meu ver, o advento daquilo que se chama deforma bastante redutora de finanas foi, e continua sendo mais do que nunca,indissocivel daquilo que constituiu o ponto de partida de minhas pesquisas, asaber, a nova fase da internacionalizao, a da mundializao do capital.

    O golpe de Estado que abriu caminho para a ditadura dos credores, nosentido amplo de Andr Orlan,4 teria sido impossvel sem as polticas deliberalizao, de desregulamentao e de privatizao, no apenas na esfera dasfinanas como tambm no tocante ao IDE e troca de mercadorias e servios. Nodecorrer dos anos 1980/95, assistiu-se restituio, para o mercado, de setoresou grandes atividades de servios que lhes haviam sido confiscados atravs da

    incluso dos mesmos no setor pblico, bem como de pases que haviam escapadoem funo da Revoluo Russa e seus desdobramentos sob controle burocrticoaps a Segunda Guerra Mundial. A pretenso autonomia das finanas fundadanuma forte extenso da esfera geopoltica, alm de social, do reinado damercadoria.

    (3) Notava-se o fato de estarmos frente a uma reafirmao pelo capital dinheiro de sua autonomia totalperante o capital industrial e emergncia de uma situao em que o movimento prprio desta frao do capitalque tende a impor sua marca ao conjunto das operaes do capitalismo contemporneo (Chesnais, 1994: 265). Oadjetivo total era excessivo, conforme corrigi depois.

    (4) Ou seja, incluindo os acionistas institucionais, chamados minoritrios. Veja Orlan (1999: 194).Voltaremos a este ponto na seo I.

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    As mesmas polticas e os mesmos processos polticos de liberalizao e dedesregulamentao foram essenciais para a formao das condies de emergnciada nova fase de internacionalizao do capital. Essa fase foi marcada por um forteavano do IDE que ainda est prosseguindo nos setores de servios, como tambmpor uma expanso do comrcio internacional do qual os pases avanados sosimultaneamente os principais atores e os beneficirios. No entanto, o trao maismarcante da nova fase da internacionalizao consiste na superexpanso dosfluxos internacionais de capital de aplicao financeira em busca de valorizao,de tal modo que se tornou indispensvel definir a natureza das relaes que ligam

    as atuais formas da internacionalizao ao regime de acumulao financeirizado.A idia de emergncia de um regime de acumulao com dominaofinanceira, tomado no sentido supradefinido, foi depois retomada e desenvolvidana segunda edio revisada do La mondialisation du capital (1997) e em outrostextos posteriores. O termo regime de acumulao pertence Escola daRegulao; tomei-o emprestado pelas razes que vou explicar adiante. Mas euemprego esse termo em um sentido diferente daquele entendido pelosregulacionistas. Estes, evidentemente, compreenderam imediatamente essamodificaopor mim operada. Os membros da Escola que mais estudam asfinanas e que esto, conseqentemente, mais atentos aos efeitos econmicos dasnovas concentraes de capital, no demoraram no entanto para formular tambm,

    e sem referncia marxista, uma hiptese semelhante minha. Comearamsustentando que o regime de acumulao em emergncia, de certa maneirasucessor do regime fordista, seria um regime cuja anlise deveria ser feita apartir de relaes econmicas e sociais originadas no na produo, mas sim nasfinanas.

    Em 1998, Michel Aglietta deu o primeiro passo de suma importncianesse caminho ao propor, com o ttulo O capitalismo de amanh, uma teoria muitodesenvolvida daquilo que chama o regime de crescimento patrimonial. O termorefere-se ao papel desempenhado pelos mercados de ativos, bem como importncia dos investidores institucionais nas finanas e governana dasempresas como instncia primordial de regulao (Aglietta, 1998). Por sua vez,

    tambm em 1998, Frdric Lordon passou a empregar, ainda que com cautela, aexpresso regime de acumulao financeirizado5 e formulou a hiptese segundoa qual o regime eventualmente sucessor do fordista no traria, em seu seio, umanova forma de organizao tecno-industrial o toyotismo, por exemplo , massim a privilegiada posio econmica conquistada pelas finanas. No ano seguinte,Andr Orlan retomou a expresso regime de acumulao financeirizado. Acaracterizao baseava-se numa teoria muito desenvolvida da liquidez e dosmercados de ttulos de empresas. O emprego do termo por Orlan referia-se a umregime que se constitui em substituio regulao fordista e cujo ncleo duro

    (5) Participao no congressoMarx International II(outono 1998). Publicado em Lordon (1999).

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    formado pela governana corporativa. Segundo ele, as economiascontemporneas tm como caractersticas centrais o fato de ter levado o poderfinanceiro a um nvel jamais alcanado e de t-lo colocado no centro mesmo doregime de acumulao (Orlan, 1999: 214).

    Em 2000, Frdric Lordon andou mais um passo ao propor um enunciadogeral de uma teoria do regime financeirizado. Segundo o autor, estamos diantede uma configurao na qual a gesto da poupana coletiva assumiu a posio deuma forma institucional permitindo-lhe impor sua lgica sobre todas as demaiscombinaes institucionais (relao salarial, governana corporativa, formas da

    concorrncia) e, portanto, dar sua prpria fisionomia ao novo regime deacumulao do capital (Lordon, 2000: 66). A anlise abrange um campo diferentedaquele coberto por Michel Aglietta, mas tem semelhante alcance. No entanto, aoinvs de elogiar o novo regime, Frdric Lordon o critica severamente.Finalmente, aps ter permanecido por um longo tempo distante da hiptese daemergncia e da consolidao, pelo menos nos Estados Unidos, de um regime deacumulao cujo ponto nodal estaria nas finanas, Robert Boyer publicou em 2000um estudo que coloca a questo: Um regime de acumulao governado pelasfinanas constituiria uma alternativa vivel ao fordismo? (Boyer, 2000). Emparalelo, com certa cautela mas de modo cada vez mais freqente, Claude Serfatipassou a usar a expresso regime de acumulao com dominao financeira ao

    desenvolver uma problemtica marxiana ou marxista prxima da minha.6

    2 Seria imprprio juntar o qualificativo financeirizado ao termo

    acumulao?

    O emprego que fao da expresso regime de acumulao temsurpreendido e, at, chocado alguns de meus leitores mais ou menos prximos noplano terico e/ou poltico. Porque a expresso, pelo menos na Frana, tem umaforte conotao regulacionista mas tambm porque, para alguns, parece difcilfalar em acumulao em um contexto em que so as finanas que tm as rdeas namo. Antes de explicar onde situo meu uso da expresso em relao a seu uso

    regulacionista ortodoxo, gostaria de abrir um parntese sobre o termoacumulao do capital, em suas relaes com o capital dinheiro.

    A idia de que possa existir, pelo menos momentaneamente, umaconfigurao dominada pelo capital dinheiro retirada de Marx, em particular dasobservaes feitas no incio do livro II e que preparam os captulos inacabadossobre as finanas do livro III. Diz ele que mesmo que o capital industrial seja onico modo de existncia do capital no qual sua funo no consista apenas emapropriao mas tambm em produo de mais-valia, em outras palavras, deexcedente e que as demais formas de capital capital mercadoria e capital

    (6) Veja Serfati (1999)e La domination... (2000).

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    dinheiro sejam sempre dependentes da base que este lhes fornece, evidenteque todas as naes que ingressam no modo capitalista de produo expem-seperiodicamente tentao vertiginosa de querer fazer dinheiro sem aintermediao do processo de produo. Por que? Porque o aspecto dinheiro dovalor constitui sua forma independente e tangvel, de modo que a forma D-D cujos pontos de partida e de chegada so o dinheiro efetivo expressa da formamais tangvel a idia de se fazer dinheiro, principal motor da produocapitalista. E Marx acrescenta que o processo de produo capitalista parece serapenas um intermedirio inevitvel, um mal necessrio para se fazer dinheiro

    (Marx, s.d.: 54). No momento em que escreveu isso, essa vertigem s perduravao tempo da fase final de expanso do ciclo industrial decenal clssico. Porm,em condies histricas dadas, no poderia essa vertigem assumir proporesmaiores, adquirir temporariamente um carter estrutural? Por que se deveriarecusar a explorao da hiptese segundo a qual a emergncia de relaes polticase sociais e de instituies poderosas favorveis ao capital de aplicao financeiraconcentrado levou a uma tentativa de transformar a vertigem num modo deexistncia do capital para um perodo maior que o final de uma fase ascendente?

    A dominao das finanas exclui a acumulao? Os dois termos soincompatveis? A teoria do imperialismo apresentada por Lnin no seria j umateoria na qual a acumulao comandada pelo capital financeiro analisado por

    Hilferding e que acontece num mbito mundializado?

    7

    O leitor atento de Marx edos maiores tericos do imperialismo sabe que a palavra acumulao recobrepelo menos trs mecanismos diferentes. Estes podem se sobrepor e, portanto, seconfundir (o que ocorreu freqentemente), mas so completamente distintos noplano conceitual, bem como quanto a seus efeitos sociais. Para comear, o termoacumulao significa tanto o aumento dos meios e da capacidade de produoatravs do investimento quanto a extenso das relaes de propriedade e deproduo capitalistas para pases ou setores e atividades sociais ainda nosubmetidos a tais relaes.8

    A acumulao tomada nesse segundo sentido, de extenso espacial e/ousocial das relaes mercantis e de relaes de propriedade capitalistas, expressa-se

    atravs de processos tais como a expropriao de produtores que ainda mantmuma relao imediata com seus meios de produo, a integrao (ou reintegrao,no caso dos Estados burocrticos) de pases na esfera do mercado ou, finalmente, aincorporao de atividades no mercantis na esfera de valorizao capitalista (por

    (7) Veja meu captulo sobre as relaes entre a teoria da mundializao do capital e o trabalho de Lnin,em Dumnil & Lvy (1999). nesta obra que defendi tambm a idia de que a formao, o funcionamento e acrise de regimes de acumulao sucessivos so elementos que auxiliam na diviso do estgio do imperialismo emfases ou perodos. Dada a durao deste estgio, os marxistas foram obrigados a levar a anlise desde aquilo queseria comum entre as fases sucessivas que tal estgio presenciou no decorrer de to longo perodo, at aquilo que

    justamente as diferencia.(8) A introduo mais fcil a esta dimenso talvez seja aquela dos ltimos captulos deLaccumulation

    du capital de Rosa Luxembourg.

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    exemplo, atividades domsticas ou organizadas como servios pblicos peloEstado). A acumulao assim entendida totalmente decisiva no duplo contextodo regime de acumulao com dominao financeira e das formas damundializao possibilitada pela liberalizao, pela desregulamentao e pelaprivatizao ligadas a ele. Nos ltimos vinte anos, a mercantilizao acentuadado planeta superou claramente a ampliao dos meios de produo.

    Finalmente, numa terceira dimenso, a acumulao pode acontecer semnovo investimento ou mediante uma forma desmaterializada de nova forma deinvestimento,9 pela apropriao, puno e centralizao em direo a centros de

    acumulao mais fortes que outros no plano financeiro, organizacional ouinstitucional, de fraes do valor e da mais-valia gerados no mbito de outrasformas de organizao social. Pode se tratar, na modalidade amplamente estudadapelos historiadores, de formas camponesas oriundas de relaes pr ouprotocapitalistas, porm, hoje em dia, pode se referir tambm ao valor extrado deoutras empresas capitalistas dentro das esferas modernas da economia, como ocaso de extrao de valor dos subcontratados em favor dos grandes grupos. Acentralizao por captao e predao uma modalidade da acumulao. Podehaver e h acumulao sem investimento no sentido da criao de novascapacidades. Determinados graus de poder de monoplio e de monopsnio,combinados com inovaes organizacionais, podem garantir uma acumulao

    em certas partes do sistema em detrimento de outras. Aqui tambm se est napresena de configuraes que esto hoje em dia no cerne da acumulao comdominao financeira.

    Um ltimo esclarecimento. Partir das finanas e levar em conta o adventodo capital portador de juros (os credores, no sentido ampliado de Orlan) e suaentrada macia no capital das empresas no significam, em absoluto, um abandonoda assertiva terica do papel primordial desempenhado no processo de acumulaopela extrao da mais-valia e pela explorao daqueles que vendem sua fora detrabalho. Muito pelo contrrio, a compreenso do significado do corporategovernance constitui uma das vias de acesso indispensveis (sendo que a outra aexposio concorrncia internacional dos vendedores da fora de trabalho

    atravs da liberalizao das trocas e dos investimentos) para o entendimento dasconfiguraes novas de extrao da mais-valia com flexibilizao e precarizaodo trabalho. O administrador de fundos de penso ou de fundos coletivos deaplicao que implementa a corporate governance pertence a uma categoriaeconmica nova: a do capitalista financeiro ou do rentista ativos10 que se

    (9) Veja minha discusso desta noo popularizada pelos trabalhos de C. Oman no Centro deDesenvolvimento da OCDE no captulo 4 deLa mondialisation du capital (1997: 99).

    (10) Nos captulos XXI, XXIII E XIV do livro III de O capital, Marx ope repetidas vezes o capitalistaativo ao capitalista financeiro que se torna assim um capitalista passivo. Este no o caso dos atuaisadministradores de fundos de penso que organizam formas de interconexo entre finanas e indstria em que apresena cotidiana dos financistas mais pesada do que no caso do entrelaamento com o capital bancriotradicionalmente estudado desde Hilferding.

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    dedicam a verificar se a administrao dos grupos est em conformidade com osinteresses do capital cuja valorizao devem garantir. Essa abordagem estestreitamente relacionada a uma escolha metodolgica fundamental: a de noabordar o emprego das novas tecnologias sob o ngulo de um progresso tcniconeutro, ao qual poderiam ser atribudas as mudanas sempre julgadaspositivamente deste outro fator (ou outro indicador) to desencarnado quanto, que chamado taxa de crescimento da produtividade, mas sim sob o ngulo doaumento da taxa de explorao, fundamento da possibilidade momentnea de seatender s exigncias de apropriao de juros e dividendos do capital portador de

    juros. A esse respeito, a nova governana dos acionistas institucionaiscertamente acelerou a implementao, pelos dirigentes das empresas, doselementos constitutivos da nova relao salarial, como mudanas organizacionaisindispensveis para a introduo das tecnologias portadoras de uma taxa deexplorao aumentada.

    3 As teorias da autonomia das finanas e do capital fictcio

    A teoria da autonomia das finanas, vale dizer, das finanas como foraindependente diante dos demais atores do processo econmico e, portanto,perante a sociedade como tal, constitui um dos pontos sobre os quais a discusso

    entre marxistas e regulacionistas deve acontecer. Antes da publicao de Lepouvoir de la finance de Andr Orlan, a nica apresentao estava em Marx. Emtrechos muito pouco estudados do livro II e sobretudo do livro III de Ocapital,11Marx estuda o modo pelo qual, aps uma fase de transio na qual as finanasforam totalmente subordinadas ao capital industrial produtivo e a suasnecessidades exclusivas, aquelas passam a se reconstituir como fora autnoma.Isso acontece no momento em que uma parte do lucro bruto cristaliza-se e setorna autnoma sob a forma de juros. A partir do momento em que isso ocorre, seo capitalista trabalha com seu prprio capital ou com capital emprestado nomodifica em nada o fato de que a classe dos capitalistas financeiros ope-se a elecomo uma categoria particular de capitalista, o capital financeiro como um tipo de

    capital autnomo e, finalmente, o juro como a forma independente da mais-valiaque corresponde a este capital especfico. E, ainda, a classe dos capitalistasfinanceiros ope-se ao capitalista industrial como uma categoria particular decapitalista, o capital financeiro como um tipo de capital autnomo e, finalmente, o

    (11) Este desconhecimento tem como origem uma leitura produtivista de Ocapital, dominada por umapreocupao com o desenvolvimento das foras produtivas, associada acumulao do capital real e expanso do assalariado do qual o capitalismo seria o portador para toda a eternidade. Tem como corolrio o fatode relegar a um segundo plano (se no se recusar totalmente a levar em conta) a acumulao financeira, fonte deum parasitismo que no gera nenhuma perspectiva de progresso. Este desconhecimento levou a imensa maioriados marxistas a ignorar quase que totalmente a parte do livro II em que se expe a teoria da autonomia dasfinanas, com uma formulao de ambas as dimenses que acabei de lembrar, sendo a segunda expressa naforma de notas a respeito da noo de capital fictcio.

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    juro como a forma independente da mais-valia que corresponde a este capitalespecfico. Do ponto de vista qualitativo (grifos no original), o juro mais-valiaobtida pela mera posse do capital (...) mesmo que seu detentor permanea fora doprocesso de produo; o juro portanto gerado por capital retirado de seuprocesso.12

    O capital retirado de seu processo aquele para o qual o mercado dettulos constitui a base operacional. este cuja teoria contempornea AndrOrlan comeou a formular, aps Keynes. Marx empenhou-se em desenvolv-lanuma fase ainda inicial da acumulao financeira que iria prover aos capitalistas

    financeiros sua autonomia.13

    Orlan desenvolve sua anlise num momento emque este processo ganha novamente enorme amplitude. Quando Marx escreveu, osmercados secundrios de ttulos, inclusive o mercado das bolsas, ainda no erammuito desenvolvidos, nem mesmo em Londres. na forma do emprstimo e dojuro (cuja taxa no entanto j determinada de modo autnomo em relao taxade lucro) que se manifesta principalmente o poder das finanas. Hoje em dia, noentanto, so os mercados secundrios de ttulos, notadamente de aes, queconstituem a sede principal de tal poder.

    A autonomia das finanas , simultaneamente, uma construoinstitucional forte no sentido de que se beneficia do total apoio de todas asforas materiais e simblicas14 com que conta a sociedade capitalista

    contempornea, e uma miragem. Vejamos Marx: D-D representa (...) a inversodas relaes de produo elevada potncia mxima: (...) a capacidade dodinheiro de frutificar (seu) prprio valor, independentemente da reproduo, amistificao capitalista em sua forma mais brutal (Marx, s.d., livro III, cap. XXIV).Por maiores que sejam os meios utilizados para garantir sua perenidade, adominao dos mercados financeiros no pode transcender as restries e ascontradies cuja esfera real consiste no terreno imediato. A autonomiapermite que o capital de aplicao financeira ou, ainda, a poupana concentradacoloque-se diante do capital envolvido na produo e, portanto, diante do trabalho,para exigir e impor uma participao na repartio legitimada apenas pela possepatrimonial e cujos beneficirios determinam eles mesmos os termos. A forma

    (12) Ambas as citaes so de O capital (livro III, cap. XXIII). Peo a meus detratores do lado dosmarxistas que notem cuidadosamente que toda vez que Marx emprega o termo autnomo, ele o faz sem nemutilizar as aspas que tendemos a usar agora.

    (13) A formao de um capital financeiro no sentido de Hilferding, gerado atravs de diversasmodalidades de fuso entre o capital industrial e o capital dinheiro, em particular bancrio, no tira a necessidadede se apreender a dualidade do capital, sua diviso em propriedade de capital externo ao processo de produo(...) e em capital envolvido na produo, capital em movimento. (Marx, livro III, cap. XXIII, v. 8, p. 41 Grifosno original).

    (14) Estas incluem a liquidez que os investidores institucionais buscam se garantir mutuamente pelomaior tempo possvel nos mercados de ttulos que eles reconhecem ser sua principal base operacional(essencialmente Wall Street), mas tambm o apoio ilimitado do Banco Central dos Estados Unidos e doPentgono. Veja a este respeito a contribuio de Claude Serfati apresentada no presente Frum.

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    imediata uma puno nos lucros e a origem efetiva, uma taxa de mais-valiaaumentada. Mas para que o valor e a mais-valia possam ser apropriados, estesdevem ter sido previamente gerados em escala suficiente. Isso pressupe que ociclo do capital possa ter sido encerrado e a produo comercializada. Um dosprincipais limites da autonomia reside justamente nisso. O consumo rentista dosbeneficirios de dividendos e juros nunca poder compensar a parte da demandaefetiva destruda pelo desemprego macio dos assalariados urbanos ou pelapauperizao absoluta imposta a comunidades camponesas que podiamanteriormente garantir sua reproduo e expressar no mercado uma certa demanda

    solvvel.15

    Outro limite da autonomia diz respeito s dimenses fictcias do capitaldinheiro concentrado que se valoriza nos mercados financeiros. O carter fictciodo patrimnio financeiro aquele expresso pelas revistas semanais de economiacom frases do tipo desde o ms de maro de 2000, as famlias americanas jtiveram US$ 2 trilhes de seu patrimnio volatilizado.16 Apenas um patrimnioque nunca existiu seno virtualmente, por esta instituio muito particular que omercado secundrio de ttulos, pode assim sumir. Marx o nico grandeeconomista (no sentido dado por Schumpeter, como sendo um economista queoferece uma interpretao global do capitalismo) a reservar em sua anlise umlugar para esse tipo de capital. Identificou em sua poca trs formas de capital

    fictcio: as aes, os ttulos da dvida pblica mas, tambm, o crdito, aquilo quejustamente Suzanne de Brunhoff chama o crdito do banqueiro.17 No tocante saes, que nos interessam particularmente, Marx escreve: Os ttulos apenasestabelecem direitos sobre uma frao da mais-valia que se vai apropriar. Mas taisttulos transformam-se eles tambm em duplicata do capital real, em trapos depapel, como se um certificado de carga pudesse ter algum valor ao lado da carga eao mesmo tempo em que a carga. Transformam-se em representantes nominais decapitais que no existem (...) enquanto duplicata, negociveis elas mesmas comomercadoria e circulando portanto como valores-capital, seu valor fictcio: podeaumentar ou diminuir de modo totalmente independente do movimento de valordo capital real, sobre o qual os detentores detm um direito.18

    (15) Nas situaes, como na Europa, onde o Estado e as instituies, garantindo a proteo social, pormais enfraquecidas que sejam, ainda intervm para compensar parcialmente as discrepncias, a conjuntura constituda por diferentes nveis de equilbrio de subemprego bem keynesianos. Em pases como os da AmricaLatina e do Caribe ou da Amrica Andina, ela reflete inteiramente a pauperizao do campesinato e sua quaseexcluso do mercado formal.

    (16) Veja Americas (2000: 97). E um trabalho mais recente, When... (2001), que menciona umdisappearing act.

    (17) Veja Brunhoff (1967: 138), onde se encontra uma apresentao da teoria do capital fictcio cujareatualizao pela autora desejamos muito. O carter fortemente atual da teoria do capital fictcio de Marx reconhecido tambm por Robert Guttmann.

    (18) Cf. Marx (s.d. livro III, cap. XXX). Veja tambm o captulo XXIX.

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    Dever-se-ia conceder a essa noo um desenvolvimento pleno. Umpatrimnio ou um capital constitudo por ttulos amplamente fictcio.Compe-se de crditos, ou seja, promessas sobre uma atividade produtiva futura,depois negociados num mercado muito peculiar que determina seu preo deacordo com mecanismos e convenes muito especiais. A constituio de umpatrimnio ou de um capital desse tipo pode ser relacionada tambm, emdiversos graus, com a criao prvia de capital fictcio assumindo a forma decrdito. Concedem-se emprstimos e criam-se cadeias de dvidas visando aquisio de ttulos. Caso o valor formal destes despenque, os crditos nas contas

    dos banqueiros revelam plenamente seu carter fictcio. A prpria essncia docapital fictcio torna sua avaliao difcil e flutuante. Tem-se a obrigao derecorrer aos indicadores que fornecem uma idia do peso dos mercados e dosativos financeiros na economia. A lista dos mesmos longa e seus limitesintrnsecos so claros. Tais indicadores19 expressam, simultaneamente, o podereconmico particular que resultado fato de os mercados deterem ttulos sobre aatividade produtiva e uma simples bolha, ou seja, uma acumulao de capitalpuramente fictcio. no momento dos craques nas bolsas e das maiores crisesfinanceiras que esse carter fictcio desvendado. As conseqncias para aeconomia real dessa destruio podem ser terrveis, particularmente caso venhama fragilizar a outra grande forma de capital fictcio constituda pelos ttulos

    gerados atravs da criao anterior de crditos bancrios industriais e imobiliriosde mdio e longo prazos. Essa a experincia pela qual o Japo est passandodesde o craque de 1990/91 at hoje.

    4 Regimes de acumulao e fases de superao das contradies imanentes

    Uma vez convencido do lugar assumido pelo capital portador de juros nomovimento do capitalismo contemporneo, eu provavelmente poderia mecontentar com uma perfrase do tipo uma configurao especfica daacumulao. Preferi usar o termo regime. Para mim, o emprstimo , em parte,

    (19) Podem-se dar exemplos. O montante dos ativos nominais detidos pelos investidores institucionaisconstitui um indicador freqentemente utilizado. O dos fundos de penso norte-americanos passou de US$ 2,533trilhes em 1990 para US$ 7,162 trilhes em 1998 e o dos Fundos Mtuos passou de US$ 1,155 trilho em 1990para US$ 5,088 trilhes em 1998 (OCDE, 2000, tab. S3 e S4.). Dado que o montante dos ativos se calcula deacordo com seu preo de mercado, no independente do crescimento e da capitalizao em bolsas. No caso doprincipal mercado (NYSE), a curva de capitalizao teve um crescimento exponencial, porm regular. Passou deUS$ 4,5 trilhes em 1994 para mais de US$ 12 trilhes no incio do ano 2000. Em compensao, no caso doNASDAQ assistiu-se, a partir do final de 1998, a uma verdadeira disparada da especulao nominal, aps terpassado o susto das conseqncias da crise russa em Wall Street e os temores de uma grave crise no Brasil.Representava US$ 1 trilho em 1994, US$ 2,5 trilhes no final de 1998 e passou de US$ 5 trilhes no incio de2000, antes de comear a despencar. O volume dirio de negcios tambm constitui um indicador do montante docapital fictcio que pde se formar. Na NYSE, passou-se de US$ 250 milhes em 1994 para US$ 1,7 bilho em2000 (veja The Economist, 17 jun. 2000).

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    a expresso de alguma dvida. Considero que, no final dos anos 1970, osregulacionistas lanaram um desafio srio e enriquecedor s correntes marxistasortodoxas da poca como tambm a um corpo marxiano fortementemumificado. Esse desafio certamente contribuiu na Frana para a sobrevivncia domarxismo como corrente terica na economia, atualmente muito minoritria,porm muito viva. Sem tal desafio e as reaes que provocou, o marxismo estarianeste pas, pelo menos na rea da economia, mais ou menos na mesma situao emque est hoje em dia na Itlia, ou seja, praticamente fora do jogo. Por isso,conservo um reconhecimento notvel aos fundadores da Escola.

    Mas h tambm fortes razes de cunho terico para que os marxistasqueiram pegar carona com os regulacionistas. Esto em jogo precisamente oprolongamento e o aprofundamento de algo contido nos trabalhos do incio dosculo XX a respeito do imperialismo e que no vinha sendo metodologicamenteexplicitado com a clareza necessria: isto , a inscrio do movimento daacumulao na Histria20 a das classes sociais e de suas lutas como a dasrelaes entre Estados.

    O movimento da acumulao do capital no contm nele prprio e por sis, de modo autnomo ou endgeno, o conjunto dos elementos que desenhamconcretamente a curva do investimento, da produo e da troca e que determinama capacidade efetiva do capital de garantir sua reproduo.21 Deixado por sua

    prpria conta, o movimento da acumulao gera contradies cujos fundamentos eintensidade parecem impedir que haja outra coisa seno breves remisses entreuma crise e a prxima e que, portanto, so de natureza a provocar a exploso dosistema. No entanto, o que claramente marcou a histria do capitalismo so osperodos de crise (dos quais as guerras no sculo XX foram uma das formas), mastambm fases de estabilizao relativa do movimento de reproduo ampliada,algumas das quais so bastante longas; portanto, tambm perodos ao longo dosquais as contradies permaneceram contidas.

    No livro III de O capital, Marx diz (vrias vezes, alis, com palavrasdiferentes) que a produo capitalista tende incessantemente a superar os limitesque lhe so imanentes, mas s consegue faz-lo recorrendo a meios que,

    novamente e em maior escala, levantam a sua frente as mesmas barreiras (Marx,s.d., cap. XVI). evidente (ou deveria ser) que no o capital como categoriaabstrata que opera esses momentos de superao temporria dos limites imanentesda produo capitalista, principalmente quando essas superaes consistem emrespostas a restries muito fortes oriundas da luta de classes. As superaesdevem-se interveno deliberada de foras sociais agindo (homens construindosua prpria histria, Marx, 1970), situadas do lado da burguesia ou, de modo

    (20) E na poltica, entendida como a realizao da histria.(21) uma ambigidade que Alain Bihr cobra de Marx, por t-la deixado pairando, num livro que est

    no prelo, ver (Bihr, s.d.).

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    mais amplo, daqueles que se do por satisfeitos pela propriedade privada dosmeios de produo (ou que acreditam que seja inevitvel). por no t-las levadoem conta (pelo menos no com a devida importncia) que tantos prognsticospolticos a respeito da crise do capitalismo revelaram-se equivocados.

    Devemos provavelmente introduzir aqui uma cesura entre os sculos XIX eXX. No sculo XIX, as superaes peridicas dos limites imanentes assumiramformas cegas (no planejadas), tais como as ondas de expanso externa, coloniale imperial, em direo ao mercado mundial ou, ainda, como a criao de novasreas importantes de acumulao a partir de progressos tcnicos constitutivos de

    indstrias totalmente novas. Mas o ingresso na era finita do mundo, retomandouma expresso de Paul Valery, modificou radicalmente os dados do problema. Nofinal de um perodo histrico comportando duas guerras mundiais que tiraram avida de milhes de homens, mulheres e crianas, duas guerras separadas pela maisviolenta crise da histria do capitalismo, que destruram tambm as relaessociais e instituies necessrias para a estabilidade do capitalismo, entramosnuma fase da histria do capitalismo e do mundo na qual no podia haver fases desuperao temporria dos limites imanentes da produo capitalista sem umainterveno relativamente consciente das foras sociais interessadas na perenidadedo capitalismo. Os trs elementos designados por Robert Boyer comoconstitutivos do ncleo duro da teoria da regulao so a expresso desta

    realidade, a do sculo XX e, a fortiori, do sculo XXI: O processo de acumulao determinante na dinmica do conjunto; este ltimo no espontaneamente auto-equilibrado por puros fenmenos de mercado e de concorrncia; as instituies eas formas estruturais so determinantes para canalizar este processo atravs decomportamentos coletivos e individuais (Boyer, 1987: 111). Na primeira fileiradessas formas e instituies, os regulacionistas colocam os compromissos sociais,primordialmente entre o capital e o trabalho.

    5 O regime de acumulao financeirizado garante uma superao

    temporria? Satisfaz os critrios colocados pela teoria da regulao?

    De um ponto de vista marxista, a superao dos limites imanentes quese materializam sob a forma particular de construo social que um regime deacumulao, jamais poder levar a outra coisa seno alguma estabilizaotemporria das condies de acumulao, bem como da reproduo socialdominante baseada na propriedade privada. As contradies fundamentais e oslimites imanentes da produo capitalista sero reafirmados mais cedo ou maistarde, e a eles se adicionaro as contradies prprias de um dado regime deacumulao.

    A durao do processo de estabilizao das condies institucionais esociais da acumulao estabelecidas por um dado regime de acumulao necessariamente variada. Duas a trs dcadas, como no caso do regime fordista,

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    mas podem durar tambm perodos bem mais curtos. Assim que emergem,configuraes visando a se tornar um regime de acumulao podem revelar suaincapacidade de se firmar como regimes viveis. Depende de numerosos fatores.As questes hoje colocadas, comuns aos regulacionistas bem como aos queaceitam uma abordagem semelhante minha, so as seguintes: a emergncia doregime de acumulao com dominao financeira e sua consolidao nos EstadosUnidos anunciam uma superao com possibilidade de durar um certo tempo?Ou, ao contrrio, elas se baseiam em objetivos excessivamente estreitos dereproduo das condies de dominao de certas fraes do capital, bem como

    dos pases mais fortes, podendo ser apenas uma configurao efmera que abra ocaminho para uma reafirmao mais ou menos brutal das contradiesfundamentais do capitalismo? O regime patrimonial ou financeirizado atendeaos critrios postos pela teoria da regulao, em particular no que diz respeito necessria solidez dos compromissos sociais?

    O capitalismo no simplesmente um sistema econmico, uma formade organizao da produo material. Tambm principalmente, at um modode dominao social,22 uma forma de organizao do poder. Aps as guerras e ascrises que marcaram a primeira metade do sculo XX, uma parte das classesdirigentes pareceu ter admitido a idia de que no podia haver reproduo estveldo sistema sem a construo de compromissos sociais dentro dos pases, bem

    como de compromissos polticos entre Estados. A meu conhecimento, fora doquadro da Unio Europia, no houve trabalhos regulacionistas procurandoestabelecer a existncia dos segundos. Em compensao, Michel Agliettareivindicou muito categoricamente o estabelecimento de um compromisso socialforte, cujo campo seria a administrao, no mbito das finanas de mercado, dosfundos acumulados pelos regimes de aposentadoria por capitalizao. Essaconvico o levou a designar o regime de crescimento financeirizado que teorizacomo um regime patrimonial. Examinaremos detalhadamente sua anlise naprxima seo.

    Exceo feita a este campo de compromisso que diz respeito no mximo,mesmo nos Estados Unidos, a uma pequena frao dos assalariados, um dos traos

    caractersticos do regime com dominao financeira o de se originar de umasrie de golpes de fora (ligados aos nomes de Margaret Thatcher, Paul Volcker eRonald Reagan). Ainda hoje (ou talvez se deva dizer, hoje mais que nunca),aqueles que dominam o novo regime (os mercados tanto quanto os governantesdos pases do G7) no esto muito dispostos a negociar qualquer coisa com osassalariados, trabalhadores, camponeses e pouca coisa at entre eles prprios emp de igualdade. Esta a lio dos eventos de Gnova, bem como da posionorte-americana a respeito do protocolo j minimalista de Quioto.

    (22) Por exemplo, quando se ouve o presidente G. W. Bush explicar os motivos da recusa norte-americana em ratificar o protocolo de Quioto.

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    Esse trao reflete uma realidade mais profunda: o regime de acumulaoque procura abrir caminho e estabilizar seu prprio funcionamento , de fato, umaconstruo social no sentido de que resulta de polticas deliberadas. O processo deconstruo continuou dentro de instituies tais quais a OMC ou o FMI, cujosmecanismos esto passando por uma tentativa de reforma com o intuito depermitir que garantam as condies internacionais da viabilidade do regimefinanceirizado. Mas esse processo foi conduzido predominantemente sob o signodo fortalecimento contnuo e nunca terminado para seus turiferrios domovimento de liberalizao, desregulamentao e privatizao. Reforou-se dessa

    forma o peso das foras sociais que, diferentemente dos tericos da Escola daRegulao, admitem que a acumulao possa ser auto-equilibrada por purosfenmenos de mercado e de concorrncia e que os comportamentos coletivos eindividuais que as novas instituies devem elaborar e impor ou reimpor aospases e grupos sociais recalcitrantes devem procurar adaptar-se a essa primaziareafirmada aos automatismos do mercado. Tanto essa pretenso quanto a tentaorecorrente de querer passar na marra, da qual G. W. Bush representa hoje apersonificao, poderiam ser o prenncio de catstrofes sociais e polticas.

    I As apresentaes do regime financeirizado: aproximaes e divergncias

    O principal campo de observao e anlise da teoria de um regimefinanceirizado so os Estados Unidos. Em particular, para Michel Aglietta. Apartir das lies do novo mundo, ele acredita ser capaz de anunciar, de modomuito contundente, o advento de um novo regime de crescimento (tomando essaexpresso como sinnimo de regime de acumulao). Tal regime satisfaria ascondies necessrias de viabilidade econmica, de legitimidade social (emtermos de abrangncia e de autenticidade dos compromissos sociais fundadores),como tambm as de difuso e de transferibilidade internacionais (em particular,em direo Unio Europia). Aglietta toma para si, implicitamente, ao transp-lada Inglaterra para os Estados Unidos e ao aplic-la ao regime de acumulaofinanceirizado, a posio de Marx, para quem o pas mais desenvolvido

    industrialmente apenas mostra para os pases que o seguem a imagem de seuprprio futuro.23 Extremamente discutvel e muito discutida pelos marxistas, atransposio dessa idia para o mbito regulacionista de modo a poder anunciar oadvento de um novo capitalismo no absolutamente convincente.Voltaremos a esse ponto na seo II.

    Tambm a partir da experincia e de obras norte-americanas, FrdricLordon e Andr Orlan apresentaram sua compreenso dos mecanismos e/ou dasinteraes sistmicas fundando a hiptese da emergncia de um regime deacumulao financeirizado. As posies que expuseram a respeito da viabilidade

    (23) Marx (Prefcio da primeira edio alem de O capital).

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    econmica de tal regime, bem como da solidez de seu compromisso socialfundador (ou suposto como tal), distanciam-se sensivelmente das de MichelAglietta. No que me diz respeito, os fundamentos marxistas crticos de minhaabordagem me levaram a teorizar, recorrendo at a um esquema bastanteregulacionista, sobre os encadeamentos cumulativos depressivos produzidospelos efeitos combinados da mundializao neoliberal e da financeirizao.24 Avia de acesso atravs da anlise da mundializao do capital, atravs, portanto, dastrs formas de capital (as empresas multinacionais; os grupos econmicos e agrande distribuio; os fundos de aplicao financeira e os bancos internacionais),

    explica por que no me focalizei em pases e abordei o caso dos Estados Unidostardiamente. A anlise da nova economia levou-me recentemente a defender aidia de que a emergncia e a consolidao do regime financeirizado nos EstadosUnidos baseiam-se em relaes polticas, econmicas e sociais no reprodutveisem outro lugar, principalmente no tocante s relaes econmicas e financeirasinternacionais. Essa questo, que levanta o problema terico crucial relativo srelaes entre um dado regime de acumulao e o movimento dainternacionalizao do capital, ser tratada especificamente na seo II.Examinamos aqui duas outras questes-chave: a da realidade e do grau delegitimidade do compromisso social fundador do novo regime, ou suposto comotal; a das coerncias sistmicas desse regime e das tendncias de evoluo que

    emanam de seu funcionamento.

    1 A natureza da poupana concentrada e a realidade do compromisso

    social fundador

    Na abordagem regulacionista, na primeira fileira das condiesnecessrias para a viabilidade de um regime de acumulao constam a abrangnciae a solidez dos compromissos fundadores, em particular os compromissos sociaisentre classes. Ao colocar-se claramente a favor da existncia de um talcompromisso em sua apresentao do regime patrimonial, Michel Agliettaconfirma o carter crucial do mesmo.25 Tal compromisso situar-se-ia no terreno de

    uma administrao socialmente positiva dos fundos acumulados pelos regimes deaposentadoria por capitalizao.

    A existncia ou no nesse plano de um compromisso social forte no uma simples questo factual, embora o exame das formas de administrao dosfundos e de associao dos assalariados e dos sindicatos nas decises de aplicaopossa contribuir para esclarec-la. Supe uma caracterizao determinada dodinheiro administrado pelos fundos de penso e de aplicao financeira. Para

    (24) O esquema est no captulo 12 de ambas as edies posteriores deLa mondialisation du capital. Naedio de 1997, est (com correes) na pgina 303.

    (25) Em Aglietta (1998), a passagem mais significativa est na pgina 21.

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    Michel Aglietta, os montantes acumulados e administrados pelos fundos de pensoe de aplicao financeira (a distino e suas possveis implicaes no discutida,desaparecendo atrs do termo freqentemente empregado de poupanacontratual) so encarados como uma forma maior de dvida social. So,portanto, designados como sendo uma propriedade social e os mercadosfinanceiros como sendo mercados de ativos constituindo a riqueza das famlias.Dessa forma, o papel desempenhado por esses mercados de ativos, alm daampliao do nmero dos acionistas assalariados atravs da importncia dosinvestidores institucionais nas finanas e na governana das empresas como

    instncia primordial de regulao, que funda a expresso regime patrimonial.26

    No capitalismo de amanh, o capital desvaneceu-se cedendo, portanto, o lugar auma dvida social privada cuja administrao de responsabilidade dosinvestidores institucionais. De fato, a eles que os assalariados tornados acionistasdelegam a frutificao de sua poupana, bem como o exerccio dos poderesligados aos ttulos de propriedade. Desempenhando esse papel, os administradoresadquirem a legitimidade necessria para poder intervir na governana dasempresas.

    Nenhum dos outros autores parece pronto a acompanhar Aglietta nessasquestes. As respostas dadas por cada um caracterizao dos montantes dirigidospara as sociedades administradoras dos fundos de penso so marcadas pelo

    mbito terico que as inspira. No entanto, elas so relativamente convergentes.Todas giram em torno das conseqncias da forte concentrao (mais exatamentea centralizao) dos fundos levantados e da efetividade dos direitos de propriedadeconcedidos aos assalariados.

    Dado que vou interpretar as posies assumidas por Orlan, Lordon eGauron pelo prisma de minha prpria abordagem terica, melhor exp-lapreviamente. A formulao que dei num mbito marxiano postula que osmontantes que nascem como poupana transformam-se em capital no decorrer desua centralizao entre as mos das firmas administradoras especializadas. Ao sercentralizada, a poupana passa por uma mudana de natureza.27. Torna-se capitalno sentido mais pleno do termo. Acumulada no plo constitudo pelas instituies

    no bancrias e pelos mercados de ttulos, ela contribui para a modificao dasrelaes econmicas e polticas entre o trabalho e o capital em favor do segundo,da mesma forma que fortalece a financeirizao, ou melhor, o peso do capital deaplicao financeira e dos mercados financeiros com tudo aquilo que implica emtermos de especulao e de formao de capital fictcio. Por intermdio dosmercados de ttulos pblicos e privados de dvida, a administrao da poupanaconstitui uma poderosa alavanca para a acumulao e a centralizao financeiras;por esse vis e pelo da governana das empresas, ela torna os assalariados

    (26) VejaAglietta (1998: 14 e 24) e a seo comeando na pgina 32.(27) A primeira formulao est num longo artigo sobre os fundos de penso escrito para Le Monde

    Diplomatique (fev. 1996).

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    aposentados ou beneficirios de planos de acionistas, quer o entendam ou no,participantes indiretos do processo de explorao no sentido definido por Marx.

    As caracterizaes propostas por Andr Gauron,28 por Frdric Lordon epor Andr Orlan, bem como as respostas por eles dadas explcita ouimplicitamente a Michel Aglietta, situam-se no mbito estrito da regulao. AndrGauron afirma estar pronto para aderir idia de um regime de crescimento noqual dominem as finanas, mas no sua caracterizao como patrimonial. Suaprimeira crtica diz respeito extenso dada por Aglietta noo de dvida social e representao dos fatos que poderiam justificar o emprego do termo

    patrimonial. Tal crtica comea estabelecendo as distines necessrias entre asdiferentes formas de fundos. S h os fundos de penso com prestaes definidasque participam de um modo de regulao organizada (...) enquanto so (ouforam) um componente das negociaes coletivas e das negociaes salariais.Tambm so os nicos suscetveis de serem colocados entre os compromissos paraos quais se possa aplicar o qualificativo de dvida social. Se bem que essecarter de dvida social est longe de ser reconhecido como tal nos EstadosUnidos: uma deciso da Suprema Corte em 1999 nega aos assalariados todo equalquer direito sobre a partilha do excedente de um regime de aposentadoria comprestaes definidas.29 Alm do mais, de se perguntar se essa dvida seriarealmente honrada em caso de craque financeiro.30 Lembramos, finalmente, que,

    mesmo no seu auge, os sistemas com prestaes definidas s interessavam a umapequena frao dos assalariados e funcionrios pblicos e foram alvo a partir dosanos 1990 de ataques sistemticos por parte dos empregadores que do prefernciaaos sistemas com contribuies definidas. So sistemas de poupana contratual,nos quais os riscos das aplicaes afetam exclusivamente os assalariados titularesde contas individuais, renegando todo e qualquer carter de dvida social. 31Desde o Frum da Regulao, em outubro de 2001, as conseqncias dasdemisses e da queda das aes das companhias areas sobre essas contas, bemcomo sobre aquelas perdidas em sua totalidade pelos assalariados quando dafalncia do grupo Enron, vieram concretizar singularmente os termos do debate.32

    (28) Andr Gauron, nota de leitura sobre Le capitalisme de demain, publicada em Lanne de laregulation (2000).

    (29) Cf. Supreme (1999).(30) Gauron lembra de fato que o nvel elevado da cotao das aes permitiu que as empresas

    reduzissem o montante efetivo de suas contribuies. Acrescentamos que, para tais empresas com folga decontribuio h vrios anos graas ao rendimento de aplicaes decorrente do nvel elevado das bolsas, certoque as aposentadorias no constituem mais um custo e sim uma fonte de lucro financeiro. O que poder acontecercaso se inverta este movimento?

    (31) A ofensiva na Frana dos defensores dos fundos de penso seguindo o movimento nos EstadosUnidos a favor dos Fundos Mtuos tem, portanto, um objetivo muito preciso: transformar uma dvida socialnuma simples poupana contratual (op. cit., p. 338). A obra de referncia sobre a qual se baseia Gauron Roberts (2000).

    (32) Veja Sauviat (2001), bem como Sauviat (2002), no prelo para Problmes conomiques.

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    A segunda crtica compartilhada por Andr Gauron e Frdric Lordon.Diz respeito ao poder que os assalariados aposentados supostamente deteriamcomo acionistas. Para Gauron, estes so simples depositantes; seu poder nemvirtual , ele simplesmente no . A introduo ou a extenso (atravs dossistemas obrigatrios) da poupana assalariada permitiu de maneira poderosa aprogresso da integrao-desapropriao dos assalariados ao capitalismo. Pois ofato de o assalariado se substituir ao rentista clssico no modifica o carter docapital (...). Permanece um capital financeiro no sentido de Hilferding, sem setransformar em capital salarial: no h nenhuma transferncia de propriedade.

    Frdric Lordon concede uma importncia considervel aos mecanismos deconcentrao; acha que a poupana dos poupadores no significa nada, apoupana concentrada que tudo. Denuncia a fantasmagoria do socialismo dosfundos de penso, bem como as falsas aparncias dos acionistas assalariados ecita os resultados dos estudos e pesquisas publicados nos ltimos dois anos arespeito das formas e do contedo efetivo de exerccio, pelos assalariados, de seusdireitos de propriedade (em particular, atravs da ao dos sindicatos nessa rea).33Mais relevante ainda, Lordon no dissocia sua discusso a respeito dos acionistasassalariados daquela (examinada mais adiante) que desenvolve sobre o espaoatribudo aos salrios como varivel de ajuste do sistema. Sua concluso, muitontida, que os fundos salariais constituem uma formidvel mquina de romper a

    unidade poltica dos assalariados (Lordon, 2000: 94 e 105).Finalmente, Andr Gauron cobra de Michel Aglietta ter relegado a um

    segundo plano sua teoria da moeda, de t-la esquecido no momento em quedesenvolveu sua teoria do compromisso social patrimonial. De acordo comGauron, Aglietta se recusa a ver que os Fundos Mtuos mantm intacta aheterogeneidade da moeda, que ele prprio e Orlan haviam outrora identificado,entre aqueles que tm a iniciativa e aqueles que no a tm.34 Essa crtica no podeser feita a Andr Orlan. Provavelmente ele quem trata de forma mais amigvelas posies de Michel Aglietta. Mas sua compreenso das bases institucionais dopoder das finanas e do funcionamento dos mercados financeiros o impede de iralm da formulao de alguns incentivos vagos contraditos pelo ncleo duro de

    sua anlise.35 Sua teoria (examinada abaixo) sobre a autonomia das finanas edo poder econmico que estas extraem da liquidez oferecida pelos mercadossecundrios de ttulos, leva Orlan a caminhar no sentido de uma heterogeneidadeampliada da moeda. A poupana concentrada realmente capital: O poder dasfinanas revela-se em sua essncia como sendo um poder de abstrao e atravs dojogo deste poder a atividade produtiva submete-se s restries da valorizao do

    (33) Ver em especial os trabalhos de Catherine Sauviat e Jean-Marie Pernot, particularmente seu artigopublicado emLanne de la rgulation (2000), bem como o artigo mais recente de Sauviat (2001/2002).

    (34) Andr Gauron, nota de leitura sobre Le capitalisme de demain, publicada em Lanne de laregulation (2000: 339).

    (35) Veja, por exemplo, rlean (1999: 256 e 263).

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    capital (Orlan, 1999: 219). Assim, o poder abstrato do dinheiro transforma-senum poder efetivo sobre a produo, sobre o investimento e sobre os assalariados(Orlan, 1999: 194). pouco provvel que se possa construir um novocompromisso social slido nessa base. Tudo que se v, pelo menos por enquanto, um aumento do individualismo patrimonial, ou seja, um definhamento dasolidariedade cidad em proveito de uma dependncia dos outros, cada vez maisabstrata e annima, sob a gide dos mercados (onde) o indivduo se define (oumelhor, seria definido por eles?) como um proprietrio de direitos-ttulos cujovalor deve defender (Orlan, 1999: 244).

    2 As posies relativas s coerncias e ao sentido dos encadeamentos

    Michel Aglietta concede ao novo regime que se enraizou nos EstadosUnidos uma coerncia sistmica simultaneamente portadora de encadeamentosvirtuosos e orientada para o crescimento. Para Frdric Lordon, emcompensao, embora a administrao da poupana coletiva tenha assumido aposio de uma forma institucional dominante e reconfigurado os encadeamentosdo circuito econmico global, as coerncias resultantes no esto associadas aencadeamentos virtuosos portadores de uma expanso sustentada. Na suaabordagem, esta parece estar excluda por dois motivos principais: a necessidade

    que parece intrnseca ao regime de acumulao de tornar a massa salarial e o nvelde emprego a principal varivel de ajuste do sistema e sua dependncia muitoforte de um mercado altista a ser mantido no estado de bolha financeirapermanente para que se fechem os circuitos macroeconmicos. Para AndrOrlan, as coerncias sistmicas tampouco so portadoras de encadeamentosvirtuosos. A principal razo diz respeito quilo que chama de a incompletudedas finanas (Orlan, 1999: 252), ou seja, a incapacidade dos mercadosfinanceiros de se auto-regularem e dominarem os processos, provocandorecorrentemente crises que pem em perigo a prpria existncia dos ativos quedevem administrar. Porm, Orlan questiona tambm a capacidade dosadministradores de orientar corretamente as empresas. Para ele, no , em

    absoluto, certo que a capacidade dos credores de se apropriar de parte da riquezagerada pelas empresas e pelos assalariados (e) de exigir participao no controleda empresa (e de) postular uma partilha da propriedade mesma do capital, com ointervencionismo que este poder confere aos administradores financeiros,corresponda a suas competncias. Sabe-se, finalmente, que eu, pessoalmente,embora no plo oposto, me situo no mesmo campo que Michel Aglietta,principalmente pelo fato de este deixar um lugar de destaque tecnologia eintroduzir o IDE e a globalizao em seu esquema de apresentao dosencadeamentos virtuosos. Para mim, as coerncias sistmicas, colocadas dechofre no mbito da mundializao do capital, levam ao surgimento de um tipo de

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    regime macroeconmico da economia mundial globalizada, dominado pelapresena de encadeamentos viciosos orientados no sentido de um crescimentolento ou muito lento e tambm cada vez mais desigual.

    Para situar exatamente as divergncias, no se pode deixar de tomar aapresentao de Michel Aglietta como ponto de partida, mesmo que este modo deproceder tenda necessariamente a acentuar as oposies. Michel Aglietta o nicoa ter anunciado a emergncia de um novo regime e a ter sustentado que este estavaem condies de garantir o crescimento, nos Estados Unidos, evidentemente,como tambm em outras regies (o capital de amanh). Michel Aglietta o

    nico a afirmar que o novo regime ser capaz de se reproduzir no tempo. Avarivel piv (disto) o lucro por ao imposto pela governana dos acionistasinstitucionais. graas a estes que, no caso americano, as empresas foramempurradas para atividades com alto potencial de crescimento e que adotaramcritrios de administrao transparentes e padres organizacionais queidentificam e separam nitidamente as responsabilidades. A governana dosacionistas institucionais constitui um fator de eficcia. Empurra os dirigentes deempresas para investimentos organizacionais que poupam o capital. Taisinvestimentos so simultaneamente possibilitados e exigidos pelas novastecnologias, em primeiro lugar pelas Novas Tecnologias de Informao eComunicao (NTIC). Por sua vez, estas facilitam as reestruturaes que abaixam

    os custos salariais e diminuem os volumes de estoques. Isso permite a formaodo elo seguinte no processo virtuoso: os lucros gerados desta forma permitem adistribuio dos dividendos e sustentam a alta das bolsas.

    Aqui, confessa Michel Aglietta, pode surgir um problema: (A alta) podeassumir um carter especulativo financiado a prazo. Esse problema se resolve sea alta nas bolsas provocar um aumento do valor de mercado da riqueza dasfamlias mais rpido que o endividamento, estimulando desta forma, emconjuno com a queda dos preos, o consumo privado. Mas este , claramente,um dos elementos mais fortes da vulnerabilidade do regime, cuja gravidade pdeser constatada no ltimo ms: assim que o nvel das bolsas diminui, o valor demercado da riqueza das famlias, como tambm o valor de mercado verdadeiro das

    empresas deixam de crescer mais rapidamente que o endividamento e a magnitudedeste aparece claramente, provocando atravs de um efeito de retroalimentao ainquietao dos investidores financeiros.

    Como j disse, Aglietta deixa em seu esquema dos encadeamentosvirtuosos um lugar para as relaes econmicas externas. Dessa forma, encontra-se uma referncia globalizao que liberta da restrio de conta corrente nobalano de pagamentos graas ao crdito internacional e uma outra referncia,surpreendente por se tratar dos Estados Unidos, onde as exportaes lquidasalimentam o crescimento, ao lado do consumo. A sensibilidade em relao inflao demonstrada pelos mercados, com seu poder de sano caso ocorra

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    algum desvio, constitui um estabilizador endgeno. A nica ameaa que pairasobre tal regime de crescimento vem de fora, da globalizao financeira. ainstabilidade financeira, fonte de risco sistmico. Os culpados foram apontados:no so as bolsas americanas. A instabilidade tem como origem a incapacidadede avaliar o risco dos pases (os demais pases, no os Estados Unidos) e,portanto, seus nveis de endividamento externo excessivos, no o funcionamentodos mercados domsticos e nem o fato de recorrer maciamente criao decrdito para sustentar a compra de aes. Em suma, a reunio do crescimento eda compresso dos custos forja o lucro total que valida a rentabilidade dos fundos

    prprios exigida dos investidores institucionais por aqueles (os acionistasassalariados) que lhes delegaram o exerccio de seu direito de propriedade.

    2.1 A inovao, a produtividade e o investimento

    A afirmao de que se estaria na presena de um regime de acumulao(chamado aqui de regime de acumulao de crescimento) possuidor de forteaptido para o crescimento recorre a trs nveis de argumentos diferentes. Oprimeiro diz respeito inovao e produtividade. O segundo aquele dos efeitosbenficos da governana corporativa. O terceiro refere-se s funes que o regimefinanceirizado patrimonial entrega aos mercados financeiros e que estes se

    demonstram muito satisfatoriamente capazes de assumir. No podemos nopresente trabalho fornecer seno algumas indicaes sumrias a respeito do modopelo qual se pode contestar o otimismo que Michel Aglietta gostaria de nos passar.

    Em relao produtividade, a interpretao otimista (vale dizer, do pontode vista do capitalismo de amanh) dada por Michel Aglietta no tocante aoprogresso tcnico constitui o aspecto de suas posies menos questionado pelosautores franceses.36 Tal otimismo pode ser relativizado se recorrermos a estudosde autores norte-americanos ou anglo-saxes, alguns deles residentes na Frana.Os autores americanos so mais confiveis pois, trabalhando numa tica noradical mas sim apenas crtica, atribuem o aumento da produtividade do trabalhoem parte ao emprego das tecnologias da informao e em parte ao aumento da

    produtividade total dos fatores.37 Os trabalhos mais esclarecedores so os deRobert Gordon, cujas concluses relativizam consideravelmente o desempenhonorte-americano. Gordon est muito longe de partilhar a euforia a respeito daefervescncia tecnolgica. De seus trabalhos, vemos que: 1) o nico setoreconmico que teve um aumento da produtividade total dos fatores foi o setor queproduz computadores e microprocessadores; 2) no setor de produo de bensdurveis, houve um aumento da produtividade mdia do trabalho devido

    (36) Jean Gadrey a principal exceo.(37) Veja Chesnais (2001: 28), baseado nos trabalhos de S. Oliver e D. Sitchell, de D. Jorgensen e

    K. Stiroh e de Robert Gordon. Para as duas primeiras referncias, veja a bibliografia do relatrio citado.

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    introduo de computadores e de bens de capital automatizados na base dosmicroprocessadores, porm no houve nenhum aumento da produtividade total dosfatores; e, finalmente, 3) no restante da economia, ou seja, o setor produtor de bensno durveis e o setor agregado dos servios, o efeito informtica nofuncionou, ou muito pouco: no se percebe nenhuma modificao sensvel daprodutividade.38 Quando se analisa a composio do investimento, constata-se que elevada a parcela das sociedades do prprio setor financeiro (fundos deaplicao, bancos, corretoras, firmas de consultoria e assessoria financeiras, etc.)(Henwood, 1999). No tocante ao investimento, houve tambm pouca discusso

    quanto s possveis implicaes de sua concentrao muito forte no setor dehardware e software, em detrimento dos de infra-estrutura e de mquinas.

    Em sua apresentao global de 1998, Michel Aglietta julgafavoravelmente o espao assumido pelos fundos de capital de risco (venturecapital) e pela NASDAQ no financiamento da inovao. Ele atribui amplamente odinamismo desta ltima a sua articulao com os mercados financeiros. Outrosfatores relevantes, no entanto, estiveram presentes, devendo-se relativizarsensivelmente tal interpretao. Um nmero cada vez maior de trabalhos temcontribudo para dar o devido valor ao papel desempenhado pela chegada macia econtnua de estudantes, como tambm de renomados pesquisadores, dos quais opas beneficiou-se ao longo de toda a dcada numa escala ainda mais elevada que

    anteriormente. Os pases perifricos, como tambm pases da Trade, sofreramuma fuga de crebros com destino aos Estados Unidos, fuga esta paralela eprovavelmente ainda mais grave que a fuga de capitais.39 Se a atividade de P&D dosetor empresarial conseguiu novamente se comportar bem a partir de 1995, foidevido, por um lado, a um efeito mecnico da retomada cclica40 e, por outro lado,ao efeito da transferncia progressiva, por grandes grupos europeus, de frao desuas capacidades e de seus gastos em P&D para os Estados Unidos.41 Alm disso,no se poderia esquecer do papel essencial dos gastos pblicos. A pesquisa na reamdica est apoiada noDepartment of Health e nosNational Health Institutes queconstituem uma das principais fontes das pesquisas a partir das quais se montamas start-up. Finalmente, o anncio de uma forte retomada do P&D militar no

    programa do escudo nuclear42 serviu para lembrar que desta maneira que osEstados Unidos sempre alimentaram o fluxo de inovao. No entanto, no tocantes firmas que recorrem aos meios de financiamento oferecidos pelo venturecapital e a NASDAQ, os estudos mais recentes, tais como os de Mary OSullivan e

    (38) Sobre todos estes pontos, veja Gordon (2000: 19-27).(39) Para dados numricos e referncias, veja Kogut (2000). Kogut fala do comportamento de predao

    e defree riding em relao aos investimentos na formao de capital humano no resto do mundo (p. 40).(40) Veja Guellec & Ionnadis (1997).(41) A participao dos grupos estrangeiros no financiamento prprio de P&D do setor das empresas

    passou de 9% em 1987 para 15% em 1997. Veja Dalton et al. (1999).(42) Veja Serfati (2001).

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    Bill Lazonick para o ARC II, evidenciaram os mecanismos de fragilizao dainovao industrial privada trazidos por sua interconexo com um financiamentoespeculativo do mercado financeiro.

    2.2 A governana corporativa dos acionistas institucionais

    O segundo conjunto de posies sobre as quais se baseia a tese do crculovirtuoso e a partir das quais este pode ser contestado aquele dos efeitosbenficos da governana corporativa dos acionistas institucionais (tidos como

    minoritrios) aos quais a liquidez permite the Wall Street walk, vale dizer, asada a qualquer momento atravs da venda dos ttulos. Andr Orlan dedicou aesse ponto a mais longa anlise. Suas concluses no mnimo matizam aquelas deMichel Aglietta. A sntese proposta por Orlan, no captulo IV de seu livro, daspesquisas realizadas em economia industrial (no LEREP de Toulouse, por exemplo)e em economia da tecnologia (em particular as pesquisas feitas pelo grupo doINSEAD coordenado por Mary OConnor e W. Lazonick) conclui no sentido deuma submisso da produo aos princpios da liquidez financeira (Serfati, 2001:216). A crtica pode ser feita de modo ainda mais completo hoje em dia, com aajuda, por exemplo, da experincia dos setores da telefonia e dos equipamentos esoftware da E-economia. Viu-se a sobreacumulao e a sobreproduo

    desenvolverem-se nesses setores em paralelo a uma subordinao, ainda mais forteque anteriormente, das estratgias e dos investimentos em P&D s disponibilidadesde fundos de capital de risco bem como s flutuaes do mercado dos valorestecnolgicos.

    Uma outra dimenso dos efeitos no mdio prazo da financeirizao e dagovernana corporativa diz respeito s conseqncias da nova configurao darelao salarial. Essa configurao caracteriza-se pela eroso do empregoestvel e pelo advento concomitante da insegurana do emprego e daquela de umafora de trabalho contingente (trabalhadores em tempo parcial ou temporrio,etc.). H alguns trabalhos norte-americanos cujo resgate seria de interesse paraelaborar uma abordagem crtica (Cappelli et al., 1997). As estratgias de

    downsizing implementadas pelas empresas de modo permanente, inclusive desde aretomada do ciclo de crescimento no incio dos anos 1990, afetam o ncleo damo-de-obra norte-americana que costumava desfrutar de uma relativa seguranade emprego (os assalariados eram submetidos a demisses temporrias ligadas aosciclos econmicos, dependendo de seu tempo de servio na empresa, e seussindicatos negociavam a responsabilidade do custo desse desemprego tcnicotemporrio).

    Comandado no apenas pelo lucro no sentido mais amplo, como tambmpela busca do valor acionista, o regime de acumulao financeirizado marcadopor um posicionamento estruturalmente antagnico do capital em relao ao

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    trabalho. Frdric Lordon o membro ortodoxo da Escola da Regulao quemais profundamente j avanou nesse ponto essencial. Ele sugere que o poder dasfinanas j est to forte que a liquidez tornou-se, portanto, um paradigma.Constitui a representao mais madura de uma propriedade de reversibilidadejulgada to altamente desejvel que se sonha com sua generalizao para todos oscompartimentos da economia. Esta a razo justamente pela qual, por exemplo, asestratgias chamadas de externalizao jogam na direo de acabar com aempresa orgnica integrada para se passar o mais rapidamente possvel para ummodelo federativo, no qual a concorrncia entre unidades interligadas por

    relaes mercantis permite denunciar mais facilmente as antigas cooperaes.Denunciar, reconsiderar, retirar-se, desenlaar: a liquidez um paradigma do exit.A flexibilizao salarial no outra coisa seno a aplicao no fator trabalho destabusca obsessiva da reversibilidade, do momento mais baixo possvel de inrcia(Lordon, 2000: 62-63). Essas falas so falas de filsofo. Devemos ficar felizes queainda surgem economistas capazes de tais falas. At o leitor que no concorda comelas ou, pelo menos, no na sua totalidade no deveria ignor-las.

    Convm examinar dentro desse mbito conceitual o uso das novastecnologias, particularmente aquelas relacionadas com a informtica. Deve-semencionar aqui o livro de Pierre Veltz, cuja relevncia ainda maior por ter sidoescrito pelo diretor da Ecole Nationale des Ponts et Chausse e por se basear nos

    trabalhos do laboratrio de pesquisa industrial da ENPC sobre as tcnicas, asempresas e os territrios (LATTS). No , portanto, nenhum esquerdista queexplica que doravante ou, pelo menos, atualmente, de acordo com a longevidadeque se concede ao regime de acumulao financeirizado a questo com a qual sedefrontam diz respeito a esta contradio fundamental que subordina osprocessos lentos e cumulativos, baseados na mobilizao subjetiva das pessoas, lgica fria dos mercados, reais e financeiros (Veltz, 2000: 202-203). Essacontradio ganha ainda mais seriedade na medida em que as novas modalidadesda concorrncia oligopolstica e as estratgias industriais que esta gerou tornarama fronteira entre os momentos da inovao e aqueles da rotina mais permevel ecada vez mais suscetvel de mudar. Isso acontece at nas indstrias mais

    tradicionais e para as fases mais corriqueiras da produo. Nas prprias tarefasoperacionais simples, a renovao incessante dos produtos e dos processos encurtaconsideravelmente os perodos de estabilidade (...) as fases de lanamento denovos produtos, como os testes de pr-lanamento, assumem um espao crescente.A capacidade de aprendizado individual e coletivo torna-se, portanto, um elementocentral da eficincia (Veltz, 2000: 116-117).

    Existe um grupo de empresas recusando-se a levar em conta essaexigncia. So as empresas que baseiam suas operaes na ultraflexibilidade doemprego e respondem contradio de fundo utilizando a informtica paraobter uma definio muito enrijecida das tarefas: Para que se possa substituir

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    de imediato algum assalariado, tudo deve estar estritamente procedimental erigidificado. Nessas empresas (por exemplo, parte da subcontratao do ramoautomobilstico ou a grande distribuio concentrada nas indstrias de servio), aformalizao no serve para gerar espaos de dilogos mas sim para bloqueartoda e qualquer discusso; as regras formalizadas no so suscetveis de serapropriadas pelos atores e a gesto dos eventos (dos incidentes imprevistos)no produz aprendizado (Veltz, 2000: 120-121). Aqui, a satisfao das normas derentabilidade financeira imposta pelos mercados baseia-se em formas de controle ede represso do trabalho que se manifestam atravs da precariedade e dos baixos

    salrios. Outras empresas exploraram outros caminhos no sentido de procurarreconciliar as exigncias da cooperao, da interatividade e dos aprendizadoslongos, com as da rentabilidade rpida das atividades de concepo e de produoe com o ethos socialmente dominante do tudo-mercadoria e dos ganhosfinanceiros pessoais elevados. Tais caminhos so os da organizao do trabalhoem rede, com a ajuda dos modelos celulares suscetveis de serem adaptados aum amplo leque de situaes. Trata-se de uma outra maneira de atender aoparadigma da reversibilidade cuja capacidade de reconciliar os assalariados e aempresa dever ser verificada.

    2.3 Mercados financeiros, distribuio da renda e equilbrios

    macroeconmicos

    O terceiro nvel em que se deve debater a aptido do novo regime paragarantir o crescimento aquele que se refere s funes que o regimefinanceirizado patrimonial delega aos mercados financeiros, bem como scondies a serem satisfeitas para que essas funes sejam corretamentedesempenhadas. Essas no dizem respeito apenas determinao do nvel e daorientao do investimento e do exerccio de um poder de controle e/ou deiniciativa em termos de fuses e reestruturaes. Dizem tambm respeito distribuio da renda e ao nvel de consumo das famlias. Michel Aglietta ressaltaclaramente esse ponto, embora tratando da distribuio apenas no mbito da

    repartio do lucro (planos de poupana, envolvimento dos assalariados, stockoptions) da qual depende a distribuio dos dividendos. Ressalta-o, portanto, aodesconsiderar a questo dos efeitos macroeconmicos das exigncias dosinvestidores institucionais no tocante aos salrios e ao emprego. a esse respeito,particularmente, que Frdric Lordon prope posies muito distintas das deAglietta.

    Lordon dedica o terceiro captulo de seu livro, O assalariado exposto atodos os riscos, s conseqncias do poder acionista e da administraoempresarial que prioriza a dimenso financeira sobre a relao salarial. No regimefinanceirizado, sobre os salrios que se concentram e se ajustam todas as

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    tenses aquelas das orientaes de polticas pblicas concebidas com o intuitode satisfazer os mercados, as das transformaes das formas da concorrncia sobo efeito da liberalizao das trocas e da deslocalizao das firmas e, finalmente,coroando o conjunto, aquelas dos critrios financeiros de administrao paraatender s normas dos acionistas: O golpe de fora do EVA43consiste em definirum tipo de renda mnima garantida para o acionista (Lordon, 2000: 61). Essa afuno das polticas de flexibilidade e de precariedade que podem tambm serinterpretadas como a ilustrao da tentativa de impor ao fator trabalho umequivalente da propriedade de liquidez, com a qual o mercado financeiro beneficia

    o capital. No regime de acumulao financeirizado, os salrios tm o estatuto degrandeza residual que era outrora prpria do lucro. Mais fundamentalmente ainda uma gigantesca redistribuio do risco que se opera entre capitalistas eassalariados (Lordon, 2000: 62-63).

    Os efeitos de tal redistribuio no so apenas polticos e sociais. A partirdo momento em que os salrios tornam-se a varivel de ajuste do regimefinanceirizado, o montante dos rendimentos financeiros (efetivos ou antecipados)e, portanto, o nvel das bolsas, tornam-se variveis crticas para a determinaodos equilbrios macroeconmicos. dos mercados e dos que nele intervm quedepende o famoso efeito riqueza to difcil de ser mensurado com precisoporm to importante por comandar as expectativas de todos os agentes as

    famlias, as empresas e, principalmente, os bancos cuja criao de crdito fortemente influenciada pelo nvel da bolsa. Chega-se na situao ora cada vezmais reconhecida pelos especialistas da conjuntura em que o consumo das famliase, portanto, as projees de crescimento dependem da evoluo das cotaes. Aconfigurao do regime financeirizado supe que os mercados financeirossubstituam-se s polticas econmicas e s negociaes coletivas salariais fordistase que ocupem seu lugar na determinao do nvel da demanda e, portanto, daatividade econmica. Sero os mercados financeiros capazes disto?

    Lendo Andr Orlan, entende-se uma parte importante dos motivos pelosquais essa crena ilusria. Graas autonomia provida pela liquidez eenquanto esta lhes parece garantida, os mercados financeiros constroem um

    ambiente enclausurado, um mundo em que os fetiches reinam. Dessa forma, algica financeira se fecha sobre si mesma e se torna auto-referenciada: aracionalidade econmica, por no estar ancorada numa mediao social quedetermine sua finalidade, degenera numa racionalidade mimtica (p. 254). AndrOrlan situa neste ponto o calcanhar-de-aquiles das finanas. Sua extraordinriacapacidade de se tornar impermevel durante longos perodos quilo que aconteceno mundo real tem como efeito permitir a formao de convenes, cujasdisparadas constituem a origem das bolhas financeiras e bursteis, deixando oespao aberto para craques. J em 1999, Andr Orlan no hesitava em anunciar

    (43) Economic Value Added(Nota do Tradutor).

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    que haveria, em alguma data indeterminada porm no muito longnqua, umacorreo de grande envergadura. Quando ela ocorrer, ter como conseqncias(entre outros efeitos) a possvel destruio de parte da capitalizao fictcia (ocapital fictcio) e tambm, certamente, a exposio luz do dia da validadeduvidosa de um regime de acumulao fundamentado na valorizao patrimonial.

    Os ingredientes imediatos desse craque anunciado, sem que seja possvelprever nem quando ocorrer nem que amplitude alcanar, consistem nomimetismo dos administradores da poupana coletiva, no auto-reforo dasdinmicas financeiras e na miopia das expectativas convencionais (Orlan, 1999:

    260). A vulnerabilidade da autonomia dos mercados nasce do fato de a liquidez sebasear nos mecanismos de cotao dos ttulos fundados em avaliaes subjetivasdos agentes atuando no mercado e dos investidores. As avaliaes so realizadasem condies nas quais predomina a racionalidade auto-referenciada. O nveldas cotaes que surge do confronto interno entre os participantes do mercado tempara eles o valor de um consenso, mas este se forma em condies nas quais aauto-referencialidade das interaes faz surgir uma opinio comum apenas pelojogo da auto-realizao das crenas, no por ser intrinsecamente verdadeira masporque todo mundo acredita que verdadeira (Orlan, 1999: 84).

    3 Um resumo das principais tendncias

    Tendo chegado a este ponto, interessante lembrar os elementos a partirdos quais se pode avaliar um regime de acumulao. Na definiotradicionalmente proposta por Robert Boyer, estes elementos incluem um tipo deevoluo da organizao da produo e das relaes dos assalariados com osmeios de produo; um horizonte temporal de valorizao do capital na base doqual possam ser evidenciados alguns princpios de administrao; uma partilha dovalor permitindo a reproduo dinmica das diferentes classes e grupos sociais; euma composio da demanda social que valide a evoluo tendencial dascapacidades de produo (Boyer, 1987: 46). Na leitura que acabamos de fazer dasapresentaes do regime d