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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000 EDITORIAL O barroco é a regulação da alma pelo escopo corporal” (Jacques Lacan) 1 A s relações da psicanálise com a estética manifestaram-se, desde os primórdios daquela, num entrelaçamento íntimo e frutífero. As inter pretações que desvendaram o inconsciente, longe de confirmar os temores de acabar com o encanto dos enigmas apresentados pelas artes, abriram novos caminhos para estas. Os signos utilizados pelas artes, para condensar ou reduzir à expres- são sutil os traços escondidos da comédia humana, encontraram na psica- nálise uma aliada para quebrar seu atrelo à clássica função imitativa da Na- tureza. Tal era, também, a preocupação de Hegel: “... esta sensibilização a obtém a arte, não com a ajuda de experiências reais, mas unicamente pela sua experiência, substituindo graças a uma ilusão a realidade [o real – diría- mos nós] pelas suas produções . A possibilidade de criar essa ilusão pela aparência descansa no fato de que, no ser humano, qualquer realidade, an- tes de chegar a afetar a alma e a vontade, deve atravessar o conteúdo inter- mediário formado pela intuição e a representação” 2 Sem conceder à Hegel a legitimidade de seu apelo ao aleph da fenome- nologia: a intuição (forma um tanto quanto descarada de negação da sua paixão de ignorância); encontramos nele a antecipação – pela via da repre- sentação – daquilo que a filosofia heideggeriana revela fundamental ao ser e que a psicanálise constitui numa praxis: a linguagem. Neste ponto situa-se uma interrogação que a psicanálise tem lançado inúmeras vezes, embora nunca respondido – parece-nos – de um modo su- ficientemente esclarecedor. No que vai da Beleza à Feiura, no que vai do Encanto ao Horror, no que vai do Enigma à Sabedoria, qual a posição, qual a operação que outorga ao traço sua condição de valor estético? 1 LACAN, Jacques. Seminario 20, “Aún” (1972-73). Buenos Aires: Paidós, 1981, p. 140. 2 G.W.F. HEGEL, G. W. F. Introducción a la Estética. Barcelona: Nexos, 1985, p.49.

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Page 1: EDITORIAL · a todo o objeto de reputação estética, coloca-o como espelho de tal forma ... um Editorial não podemos pretender, nele, esgotar o tema; mas, simples-

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000

EDITORIAL

“O barroco é a regulação da alma pelo escopo corporal” (Jacques Lacan)1

As relações da psicanálise com a estética manifestaram-se, desde osprimórdios daquela, num entrelaçamento íntimo e frutífero. As interpretações que desvendaram o inconsciente, longe de confirmar os

temores de acabar com o encanto dos enigmas apresentados pelas artes,abriram novos caminhos para estas.

Os signos utilizados pelas artes, para condensar ou reduzir à expres-são sutil os traços escondidos da comédia humana, encontraram na psica-nálise uma aliada para quebrar seu atrelo à clássica função imitativa da Na-tureza. Tal era, também, a preocupação de Hegel: “... esta sensibilização aobtém a arte, não com a ajuda de experiências reais, mas unicamente pelasua experiência, substituindo graças a uma ilusão a realidade [o real – diría-mos nós] pelas suas produções . A possibilidade de criar essa ilusão pelaaparência descansa no fato de que, no ser humano, qualquer realidade, an-tes de chegar a afetar a alma e a vontade, deve atravessar o conteúdo inter-mediário formado pela intuição e a representação”2

Sem conceder à Hegel a legitimidade de seu apelo ao aleph da fenome-nologia: a intuição (forma um tanto quanto descarada de negação da suapaixão de ignorância); encontramos nele a antecipação – pela via da repre-sentação – daquilo que a filosofia heideggeriana revela fundamental ao ser eque a psicanálise constitui numa praxis: a linguagem.

Neste ponto situa-se uma interrogação que a psicanálise tem lançadoinúmeras vezes, embora nunca respondido – parece-nos – de um modo su-ficientemente esclarecedor. No que vai da Beleza à Feiura, no que vai doEncanto ao Horror, no que vai do Enigma à Sabedoria, qual a posição, qual aoperação que outorga ao traço sua condição de valor estético?

1 LACAN, Jacques. Seminario 20, “Aún” (1972-73). Buenos Aires: Paidós, 1981, p. 140.2 G.W.F. HEGEL, G. W. F. Introducción a la Estética. Barcelona: Nexos, 1985, p.49.

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Onde e quando o signo se oferece ao escopo do sujeito, por um hiatoque se abre no muro da linguagem, ele não perde a oportunidade da espreita.Aí estão os museus, as vernisages e, até mesmo, as igrejas para testemu-nhar. Em uma particular posição do traço em questão, que suspende desdea luxúria ao asco, arrancando o signo de seu arrebite ao real, é que encontra-mos algo disso que chamamos de Estética.

A repetição o constata: trata-se sempre de uma inflexão do discursoque produz um objeto. Nessa torção, Hegel aponta como, nas artes, esseobjeto se situa numa singular articulação entre o abstrato do espírito e oconcreto do natural. Um concreto onde as coisas entram no labirinto dasrepresentações ou, seu inverso, no qual se opera a invenção de um mundofantasmático: “O homem é capaz de representar para si objetos que não sãoreais, como se efetivamente o fossem”3

Como se percebe, no que acabamos de pontuar, o objeto ali sofreuma torção particular. Seja no scopus, seja no invocante, o seio feminino –por exemplo – perde tanto sua esfericidade quanto seu erotismo, sendo apulsão conduzida por um circuito fora do habitual: nem conhecimento nemsexualidade. O signo suportado pelo objeto estético entra numa série, cujaalteridade não se confronta com o imperativo de gozar do Outro nem com osuperego (cuja consciência moral só poderia fazer obstáculo à operaçãoestética – como já o demonstraram os obscuros tempos da Inquisição). Ascoisas ali se inclinam na direção de “gozar de um saber”, um gozo cujarealização fica em suspenso, e um saber que vive mais da vacilação do queda certeza.

À medida que esse signo é um objeto produzido para se dar a ver (oua escutar) cabe perguntar como se especifica essa outredade, na qual serealiza o efeito de esteticidade, que a particular torção desse objeto colocouna mira. A esse respeito podemos apontar ao menos duas característicasque lhe são absolutamente próprias: a primeira é que o artista pode esque-cer por completo – sem que isso constitua uma denegação – se aquele para

quem ele produz sua obra é homem ou mulher; a segunda – derivada daprimeira – consiste em que aquele que contempla ou escuta vê-se olhado ousituado numa polifonia, na qual o Outro não aparece senão pela sua falha.Dito de outro modo: é pelas rachaduras no muro da linguagem que vaza aestética dos objetos. A curvatura que passa do belo para a feiúra, a série dascoisas que se instalam no ajuste certo para dizer o que, até então, erasilêncio.

Por isso, o espectador nunca tem a tranqüilidade de estar fazendo aapreciação certa. Nunca sabe, nesse viés do discurso, em que posição seencontra o Grande Outro. Cada vez que tenta abrir a sua boca para enunciaro efeito de sua contemplação, é invadido pela vacilação: será que o autorconcordaria comigo? Ou na polissemia da paisagem: será que os olhos doOutro vêem o que eu vejo? O grande Outro o mira por um caleidoscópio e lhefala através de uma diversidade polifônica, que impede o sujeito de se aco-lher a um ponto estável (e estático) de contemplação. Essa é a razão delepoder revisitar sem fim a mesma obra de arte, assim como escutar, infinitasvezes, a partitura de sua escolha.

Só cabe ao sujeito, então, resignar-se a transitar por aqueles territóri-os que Fernando Pessoa localizou tão bem no labirinto das identificações: irdo eu para os outros eu – que, para seu maior desassossego, não são daordem do semelhante; mas, precisamente, de seu estranhamento. É poressa via que os vampiros saltam das páginas do livro para nossos sonhos,que as litanias poéticas arrancam lágrimas de nossos olhos, ou o sorriso daMonalisa nos embaraça no naufrágio de um enigma. Tanto quanto, certa-mente, o mictório de Duchamp nos assalta a cada instante no nosso própriobanheiro.

Essa condição de objeto, que escapa à diferença sexual no eu que ocontempla, ou seja que escapa à castração, tratar-se-ia de uma exceção àestrutura edípica? Seria por isso que tanto esquizofrênicos quanto autistaspintam ou compõem ou se deleitam com a música, apesar de morarem nummundo tão distante do Outro do Discurso Social ou ainda do pequeno outrode seus semelhantes? Precisamente porque, lançados aos percursos daestética moderna, finda a Renascença – que remontou um ideal clássico de

3 Idem, ibidem, p. 49.

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formas supostamente universais – podem encontrar legitimado, em cadasigno, a vigência de um eu tão variável quanto a contingência de uma man-cha de ferrugem numa toalha de mesa. Dito de outro modo, no extremo doindividualismo, estamos dispostos – na modernidade – a encontrar sentidopara cada signo, o que equivale a conceder a cada objeto sua posição esté-tica muito além de sua forma.

Uma maneira radical de escancarar a claudicação da linguagem emfavor da imagem: dizer sim a tudo. Uma nova forma de religião? Uma novaforma de acepção do “amém” – assim seja? Um novo barroco pela via doready made? Ou se trataria de um novo estilo de bacanal “proudhoniano”?

Nada nos autoriza a concluir. Esse estranhamento, a circulação pelosoutros eus, parece ser uma característica essencial de qualquer ordem emque se perfile um valor estético. Para certificarmo-nos, temos Lacan, falandodo sobre o barroco: “ ...quanto se vê em todas as igrejas de Europa, quantose pendura nas paredes, despenca em avalanche, delicia, delira. O que fazalguns momentos chamei de obscenidade, mas exaltada. Me pergunto queefeito pode ter, em alguém que venha do mais distante da China, esse rio derepresentações de mártires.” 4

Denovo temos esse efeito de estranhamento. Essa posição, singulara todo o objeto de reputação estética, coloca-o como espelho de tal formaemoldurado (pela série significante que o separa do real) que a entrada nasua ficção implica em suspendermos a nossa.

Se, para Hegel, não passou desadvertido esse marco de transforma-ção do sentido; certamente, para Bertold Brecht, a dilatação grotesca dogesto teatral denotou o hegeliano de sua moldura; assim como o foi o fantás-tico para Ionesco, ou a nova identificação para Walter Benjamin.

Ainda nos resta, e isso é tão extenso que aqui só podemos dar umaponta, ocuparmo-nos das relações da estética com a verdade. Como este éum Editorial não podemos pretender, nele, esgotar o tema; mas, simples-mente, abrir o panorama. Porém, evidentemente, a complexidade do assun-to em questão neste número do Correio, e a dispersão e tangencialidadecom que se tem abordado este tópico, no decorrer da psicanálise, arrastou-

nos para um desdobramento que, embora mínimo, apresenta-se bem maisextenso do que o habitual para esta porção de nossos textos. Em todo caso,tratando-se de uma porção bem mais generosa, esperamos que, também,fique saborosa.

O gosto, por sinal, primo predileto da estética, cava seu lugar no as-sunto pela via do gozo. Devemos tomar ao pé da letra o vulgar apodigma:“sobre gostos não há nada escrito”, porque não há mesmo como escrever ogozo. Território, então, onde a verdade, como demanda, parece ser estran-geira. Porém, convém escutar este pequeno fragmento de Sigmund Freudnos mantermos alertas sobre de que forma o que se instala como sintomana divisão do sujeito pode acorrentar o gosto ao verdadeiro, precisamente àmedida que o eu que trabalha se distancia desse eu que aprecia a beleza ouharmonia de seu efeito: “Existe escondido em alguma parte de mim um certosentimento da forma, uma apreciação da beleza, ou seja, de uma espécie deperfeição, e as frases rebuscadas que, em meu livro sobre os sonhos, seexibem com suas circunvoluções mal-ajustadas ao pensamento feriram gra-vemente um de meus ideais”5

Esse ‘mal-ajuste’ do texto ao pensamento, causa do mal-estar deFreud, denota claramente sua preferência pelos clássicos: para gregos eromanos as formas reputadas perfeitas e universais, por serem mais próxi-mas dos deuses, eram as únicas capazes de revelar as verdades. Nelasencontravam-se as proporções que denotariam as cifras das idéias puras e,portanto, verdadeiras é claro, aquelas desembaraçadas de todo e qualqueracidente da percepção. Se a psicanálise partilha, de certo modo, desseclassicismo, no que diz respeito a subordinar a contingência da percepção àordem das idéias, certamente não situa estas na comarca dos deuses, masno território da linguagem. A percepção se organiza e diferencia, então, pe-los marcos de arrebite que o significante assinala na ordem do fantasma. Énessa trilha que, seguramente, poderemos achar novas pistas para umamaior indagação sobre a estética.

4 LACAN, op. cit., p. 49.5 Sigmund Freud em carta a Fliess, apud LACOSTE, Patrick. Psicanálise na tela. Rio deJaneiro: J. Zahar, 1992, p. 103.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

JORNADA DE ABERTURA A CLÍNICA PSICANALÍTICA

Nossa Jornada de Abertura dos trabalhos deste ano acontecerá nodia 08 de abril e terá como tema: a clínica psicanalítica.

Queremos lembrar que, para maior conforto daqueles que participamde nossos eventos, estamos disponibilizando a inscrição antecipada, quepoderá ser feita por fax, através de depósito bancário e envio do comprovantede pagamento com a ficha de inscrição, ou na sede da Associação, até umdia antes do evento.

Acreditamos que esta medida facilitará a realização da inscrição paraum maior número de pessoas, evitando, assim, eventuais transtornos no diada Jornada.

PROGRAMA (Sábado – 08/04/2000 )

ManhãO que é o “caso clínico”? – Edson Luiz André de SousaA clínica psicanalítica como espaço de criação – Simone Moschen Rickes

TardePsicanálise nas instituições: ruídos na transmissão – Liz Nunes RamosO que será mesmo falar de clínica? – Ama Maria Medeiros da CostaEncerramento: Alfredo Néstor Jerusalinsky

INSCRIÇÕES Antecipada No localAssociado R$ 20,00 R$ 30,00Profissionais R$ 35,00 R$ 50,00Estudantes* R$ 25,00 R$ 35,00

*estudantes de graduação deverão apresentar documento

CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISEDESCOBERTA <> INVENÇÃO 500 ANOS

Nos próximos dias 12 e 26 de abril, o Cartel Preparatório do Congres-so da APPOA (que acontecerá de 26 a 29 e outubro) dará continuidade aoseu trabalho.

Nestas datas estará sendo discutido mais um dos livros que inventa-ram o Brasil. Desta vez “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda,será objeto dos debates a respeito da nossa cultura.

SEMINÁRIO COM RODOLPHO RUFFINOTEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA DA ADOLESCÊNCIA

Que lugar pode ser atribuído ao apelo, implícito entre as exigências dasintonia, aos Nomes-do-Pai numa clínica do real?

As tentativas de se responder a essa questão, entre os nossos con-temporâneos que se referenciam a partir de Lacan, estão longe de aponta-rem para alguma unanimidade. A este propósito, mesmo a leitura do que nosdocumenta o ensino dos últimos anos de Lacan, quando efetivada sem pre-conceitos, revela-nos hesitações.

A remissão ao fundador do empreendimento, tampouco ela, pode es-clarecer tudo sobre este tema, pois quanto a esta particular questão emFreud, a obturação, por Totem e Tabu, da questão mantida sem resposta –O que é um pai? – teria sido, segundo Lacan, um sucedâneo do mesmoponto cego que nos põe “(...) na pista de um certo pecado original da análise(...) [algo relacionado ao] desejo do próprio Freud, [ao] fato de que algo, emFreud, não foi jamais analisado.” (LACAN, J. Seminário 11, p. 19). “Pai, nãovês que estou queimando?”, frase que sonha/desperta o pai enlutado, ou“Pai, não vês que posso perder-te “, como parafraseia T. Bruzzi, são formula-ções do apelo que, se não é exclusivo da adolescência, nela é que ele se fazmais audível. O que pode, entretanto, o aguardo de um significante fazer

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

GRUPO DE ESTUDOS PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO

A questão da transmissão na educação refere-se não somente à vidaescolar, mas ao mistério que nos leva a aprender, a construir um saber-fazere aos impasses que aí se re-velam.

O que faz com que um sujeito possa apropriar-se da palavra, da escri-ta, do conhecimento, das leis morais de sua cultura, configurando um estilo

quanto a essa outra urgência, que não se manifesta exatamente pelo pedidode ser visto; mas, antes, se expõe pela permanência do que ali, nele, quei-ma e, queimando, faz perder?

Para abordar a questão, a clínica com adolescentes oferece uma opor-tunidade privilegiada. Daí a proposição deste seminário. Lá onde uma res-posta falta, nossa inventividade é convocada. Mas, onde é a nossa inventi-vidade quem oferece o percurso, há de nos ser exigido provas. Então, prepa-rando-nos para elas, nosso percurso irá da clínica ao diálogo com os textosfundadores (Freud e Lacan) e destes à interlocução com a diversidade comque nos presenteiam nossos colegas contemporâneos para, em seguida,reinterrogar o aí colhido à luz da clínica.

Nossa pesquisa em andamento permite que, abaixo, arrolemos asdatas de nossos encontros para este primeiro semestre, ao lado da temáticaque nos propomos a trabalhar em cada um desses encontros.

Rodolpho RuffinoPROGRAMAÇÃO:15/04 – O que queima desde a puberdade.13/05 – A invocação ao pai na adolescência.24/06 – Do suposto limite do tratar do real pelo simbólico, uma interrogação.

Responsável: Rodolpho RuffinoHorários: manhã e tarde, mensal, aos sábadosLocal: sede da APPOAInício: 15 de abril - Maiores informações com a Secretaria da APPOA

próprio e único frente à vida? Por que a uns só resta como “estilo” o não-saber, a violência, a adesão às drogas ou a extrema dificuldade de convivên-cia em grupo?

Para avançarmos no estudo e discussão destas questões, partiremosdo livro de Catherine Millot, Freud Antipedagogo, indo a textos do próprioFreud (Mal-estar na Cultura, Psicologia das Massas, O Futuro de uma Ilusãoe outros), de Lacan, Foucault, Philippe Ariès, Lajonquière e outros pensado-res contemporâneos que se debruçam sobre os enlaces entre cultura e subje-tividade, imbricação esta que diz respeito muito de perto ao universo escolar.

O grupo está aberto aos interessados em aprofundar estas questões.Local: Av. Pedro Adams Filho, 5604/906 – Novo HamburgoTels.: (51) 582-9572 / 99879576Horário: 3ª feiras, das 19h às 21h Frequência: QuinzenalReinício: 14/03/2000 Coordenação: Ieda Prates da Silva

DEFESAS DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

* No dia 07/04, às 14h, no Instituto de Psicologia da UFRGS, CarmenBackes estará defendendo sua dissertação de Mestrado “O que é ser brasi-leiro?”. A banca terá como integrantes: Miriam Chnaiderman, Ana MariaMedeiros da Costa eTânia Galli Fonseca. (Sala a confirmar, tel.: 316 5149 -Secretaria do Mestrado)

No mesmo dia, às 19h e 30min, Miriam Chnaiderman estará fazendouma palestra com o título: “Central do Brasil - Encontros fecundos em íngre-mes Brasis”. O local será confirmado (tel.: 316 5149)

* Em 02/05, às 10h, Luis Roberto Benia defenderá sua dissertação deMestrado “Desemprego: luto ou melancolia”, no Instituto de Psicologia daUFRGS. A banca examinadora será composta por : Mario Eduardo Pereira(UNICAMP), Mario Fleig (UNISINOS) e Cleci Maraschin (UFRGS).

Na mesma data, às 14h, ocorrerá uma palestra de Mario EduardoPereira, com o título “Genética e subjetividade”. Maiores informações pelotel.: 316-5149.

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NOTÍCIAS

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Freud tinha razão ao aproximar o trabalho do psicanalista do trabalhodo poeta. Ambos tentam “sacudir a poeira das palavras”, como nosindica em seu belo texto René Passeron. Esta poeira reveste as for-

mas esquecidas nas prateleiras do pensamento, pois só a fixidez de lugarespode recolher o pó do tempo. A escuta psicanalítica e a prática artística de-monstram que o horizonte da verdade está muito mais no ato que desorgani-za/reorganiza do que na repetição inerte do eco da mesma melodia. A es-pessura de nossas hipóteses e construções teóricas nos convoca a umcompromisso contínuo com a criação, pois é sabendo escutar os limites doconceito que podemos fazê-lo movimentar para dar conta da complexidadede nosso trabalho. Se já conhecemos tão bem as estratégias do sintoma degarantir lugares imaginários com a fixidez da forma, sabemos que é confron-tando o sintoma também naquilo que ele fracassa que podemos, por vezes,inaugurar outros percursos possíveis. Freud e Lacan sempre foram pensado-res inquietos e atentos a este desafio.

Este número do Correio da APPOA traz uma série de textos quetentam circunscrever alguns aspectos do ato criativo no diálogo com a práti-ca psicanalítica. Todos os textos da seção temática foram pensados e pro-postos aos autores no desafio de poderem trazer indagações que nos aju-dem a avançar nesta discussão. Infelizmente, muitos ainda pensam a esferada criação como uma estratégia para animar nossos espíritos com a pro-messa do “deleite da distração” ou da “virtude da ilustração”. Basta um pas-so em direção à “razão teórica”, para descartarem a verdade das proposi-ções do campo da arte e guardá-las com uma admiração estéril, pois ficamcomo preciosidades esquecidas e chaveadas em museus/pensamentos, quenunca visitamos. Os textos aqui apresentados mostram um caminho muitomais promissor.

Ora, criar mais que uma possibilidade é um compromisso. Espera-mos que os textos aqui reunidos possam continuar animando este diálogo.

Edson Luiz André de Sousa Gerson Smiech Pinho

MUDANÇA DE ENDEREÇO

* Ieda Prates da Silva informa o novo endereço de seu consultório – Av. PedroAdams Filho, 5604/906 - Novo Hamburgo/RS, tels.: (51) 582 9572 / 99879576.

* Luís Fernando Lofrano de Oliveira informa seu e-mail: [email protected]; e no-vos endereços: residencial – Rua Amélia Teles, 174/201, Porto Alegre, tel.332 4898;consultório – Rua Faria Santos, 47/305, Porto Alegre, tel.99066610.

SEÇÃO TEMÁTICA

CARTEL DO INTERIOR 

A reunião do Cartel do Interior será realizada no dia 07 de abril, às19h, na sede da APPOA.Para este encontro, Mário Fleig apresentará o tra-balho: Como compreendemos o significante identidade?, dentro da temáticaque definimos como norteadora dos trabalhos do Cartel para este ano de2000.

Convidamos todos os interessados, lembrando que esta atividade serána véspera da Jornada de Abertura da APPOA.

 Coordenação do Cartel do Interior

TESOURARIA - REAJUSTE

Após dois anos sem reajustes, estamos propondo um realinhamentonos valores das mensalidades. Os novos valores, que passarão a vigorar nopróximo mês, são:

Participante - R$ 80,00Membro - R$ 110,00

Tesouraria

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SEÇÃO TEMÁTICA

mas uma repetição liberadora do ato traumático antigo...

A retomada do trabalho do artista, que sem cessar recomeça uma novaobra, é o indício de uma insistência que derrapa e jamais finalizasob a idéia obscura que o perfura.

Esse daimôn interior não é sempre um afeto anedótico vindo dosacontecimentos da infância. Ele pode ser, como para Sócrates,um problema metafísico, tanto mais ardente que ele não tem solução.

Nenhuma ab-reação sendo possível neste caso, a criação não podesenão ornamentar com minúcias os termos da questão, e fazer, do vazio daresposta, um adorno da consciência trágica.

A arte de criar desejaria chegar a uma ab-reação completa: seriapreciso “forçar a inspiração”, como demandava Max Ernst?

Cá estamos.“Sacudamos a poeira das palavras”, nos sacudamos todo, e tombará

do “ferimento do tempo” (Blanchot)uma pepita ensangüentada.

Mas essa pepita não é mais que uma gota. O ferimento não cessarájamais de sangrar, debaixo da consciência.

A ab-reação criadora estimula uma paixão de confessar, que ela nãoestanca. Ela é um apelo à ab-reação final, e esse apelo é sem eco. A própriamorte não é ab-reativa: ela resta colorida para a vida de cada agonizante.

Segue-se daí que a arte não cessará jamais de repetir suas tentativasde liberação, e que, longe de se limitar à invenção de formas estéticas e devisar (ao que parece) ao belo, ela desobstrui os conteúdos erótico-escato-mortuários, das quais a pessoa não se purifica jamais completamente.

O “sangue” das obras é negro.Sob o véu das formas e das palavras, ele é ao mesmo tempo evidente

e enigmático.Nele palpita um sub-pensamento mudo e subterrâneo, mais profundo

que toda sensação possível, obtusa carne da Natureza,

POR UMA POÏANÁLISE1

René Passeron2

O faber está sempre em nós O sapiens é seu luxo, quando, fatigado, ele se senta enfim, em seu

recolhimento noturno. Estará sonhando? Deita-se ele sobre um divã?Provavelmente

E ele repassa em sua mente o trabalho do dia.Ele o pensa. Ele o critica. Ele entra na esfera da poïética como noesis

poieseôs3

E este pensamento corrosivo escava a lembrança dos acasos que sãointeriores aos contornos desta conduta misteriosa.

Este pensamento retoma, numa meditação mimética, a criação da obra,de ponta a ponta

Então, muitas revelações surgem.

O que o pintor vêO que ele sonha e pensa enquanto pinta

enraíza-se no húmus dos fantasmas.E são os fantasmas, por uma insistência que lhes é própria, que

desviam as formas, e empurram o artista à repetição. Esta “longa paciência”chama a ab-reaçãoque não é somente um brusco acontecimento da memória1 Traduzido por Edson Luiz André de Sousa. Agradeço a Bruno Magne a preciosa ajuda emalgumas passagens e a René Passeron pela paciência com que me esclareceu muitas idéiasneste esforço sempre poïético que é o trabalho de uma tradução. Este texto ainda inéditoserá publicado num livro intitulado “Encantações filosóficas”, a ser lançado na França.2 Artista e poeta. Diretor de pesquisa CNRS. Dirige a revista “Recherches Poïétiques”.Publicou inúmeros livros dentre os quais destacamos: “A obra pictural e as funções daaparência” Paris, Vrin, 1962; “História da pintura surrealista”, Paris, Le livre de poche, 1968;e “O nascimento de Ìcaro - elementos de poïética geral”, ae2cg éditions, 1996.3 N.T. Em grego Noesis Poieseôs (pensamento de criação)

PASSERON, R. Por uma poïanálise.

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SEÇÃO TEMÁTICA

que é simultaneamente uma certeza da razãoe um nada da memória.A estranha conduta de criar visaria, em última instância, a preencher

esse buraco da memória, constituir uma memória mítica do imemorial –memória feliz, visto o maravilhoso da luz, – memória trágica, todo onascimento sendo premonição da morte.

Por Deus, minha querida, a creche e o asilo dos agonizantes estão namesma rua! ...

É assim que toda obra de arte é um curativo do vazio.Todo curativo esconde ao mesmo tempo em que trata, e substitui sua

aparência perceptível a não aparência do ferimento, desde então aberta aoimaginário,

o que tem por conseqüência que nenhuma psicanálise do artista atra-vés sua obra finalizada não é seriamente possível: o curativo não é o ferimento5.Somente a conduta instauradora pode ser analisada.

A arte é uma prática de enfermeiro do vazio, mas esse vazio jamaiscicatriza. A tela, como símbolo do vazio memorial do nascimento, não cessade invadir de sua brancura fluida as compressas picturais.

A luta do médico contra a morte, a luta do psicanalista contra a neurose,releva de uma arte da mesma ordem. E todas as pessoas que vemos circular,aqui e lá, que estejam doentes ou não, travestem, graças aos artifícios dovivente,

a morte que as habita.– e não falo aqui de “pulsão de morte”, bem ao contrário,eu falo de um destino inelutável, contra o qual resistimos – honra de lutar...

* * * *

5 Ver “Arte e Psicanálise, Ligéia”, nº 13-14, 1993. Na introdução, p. 37-8, Fabienne Hulak ePierre Vermeerch notam que: “a crença outrora propagada que a psicanálise pode colocara céu aberto o inconsciente do artista dirigindo um olhar para suas obras quase que desa-pareceu completamente”.

atro crores, jorros de sangue negro, a própria vida, a crueldade.E a conduta criativa extrai este sub-pensamento do mangue fisiológico,

a faz esguichar em direção ao silêncio de um sobre-pensamento, que justificaque toda obra, a serviço deste bafo carnal, seja promovida à categoria deobras do espírito, e irradie finalmente de sua aura.

Resta ainda que a crueldade não se extravasa jamais completamentena esfera das artes: foi esta a infelicidade de Artaud...

* * * *Ora, tem mais.Como ato, a ab-reação, mesmo parcial, é um sobressalto da memória

verídica: nenhum processo de ab-reação não poderá satisfazer outra coisaque um acontecimento traumático real.

Mas a arte é habituada da bela mentira fantasmáticaA consciência memorial borda sobre o passado. Ela inventa mesmo

falsas lembranças. Através de seus mitos pessoais, o Dasein se faz umahistória, afim de figurar sob o olhar do Outro...

Contudo, através do zum-zum do histórico, o essencial se abre umcaminho: a noite do corpo tenta “fazer memória”4.

O pensamento quer remontar ao primeiro dia.Ora, ninguém se lembra de seu nascimento: o cérebro do

recém-nascido não era capaz de fixar o acontecimento.Que nascemos de uma mulher, aprendemos, bem tarde, pelas vias da

cultura. E suspeitamos então que guardamos em algum canto secreto destacarne, muito seguidamente renovada, contudo, pela fisiologia,

uma lembrança latente.

Muito mais que a “cena primitiva”, é o “traumatismo do nascimento”,que o artista apalpa para reviver, esta queda no vazio

4 É este o título do colóquio que aconteceu por ocasião do “Simpósio das Artes” de Baie-Saint-Paul (Québec, Canadá), 20 e 21 de agosto de 1998.

PASSERON, R. Por uma poïanálise.

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não pode ser outra senão a obscura Ducaté escrava ensangüentada dotirano Minos Prometeu-mulher, pregada ao tripalium6 de sua gestaçãoe luminosa mãede Ícaro.

O ser-nascido para a morte, e a crueldade da vida se ultrapassamconjuntamente na arrogância criativa, a qual, ainda assim, os deixa intactos.

Seria isto mentira e ilusão?NÃO – O ESPÍRITO MESMO.Fazer nascer a obra, oblitera o esquecimento primal.Gritar-criar é um ato de anti-nascimento, então de anti-morte7.

7 Ver PASSERON, René. Astarim, três poemas de anti-nascimento. Tunis: L’or du temps,1997.

Ora, a atividade mito-poïética de obturar o vazio do nascimento nãotem necessidade de refletir longamente para remontar Àquela que foiresponsável de tudo.

Ícaro faz de seu nascimento uma queda mortal na água primordial, deonde renascerá como Fênix.

Surgem então a evidente fusão de Eros e de Tânatos na imago damãe bem-amada – e o simbólico do feminino de toda conduta criativa.

A ab-reação criadora na arte é uma ab-reação delegada, por umatransferência espiritualmente filosófica e materialmente simbólica

como se colocar no mundo uma obra qualquer dependesse daparturição. Este “como se”, vocês sabem, psicanalistas, é constitutivo daestrutura equilibrada do Eu, por sua ficção mesma.

O AMOR-REVOLTAenriquece de cóleraos sofrimentos da memóriaE essa referência a mãe, através do imemorial do nascimento, pertence

à situação fundamental do Dasein, portanto suscita a universalidade da obra.A arte que contorna o memorial por exprimir o não-dizível do corpo

não é então em sua intimidade mais geralnada mais que a apresentação, quero dizer, a colocação no presentedeste nada da memóriaonde cada sujeito lúcido encontra ao mesmo tempo a figura de sua mãemorta e o VAZIO de um alfa pré-natallançados pela anáfora de uma vidência filosóficasobre o ômega de um VAZIO pós-fatal

Donde tiro que a única divindade que venera o artista

6 N.T. Palavra em latim que deu origem a palavra “trabalho”

PASSERON, R. Por uma poïanálise.

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Camille a Elida.1999, barracões do antigo DEPREC, mais uma passagem que Elida

nos apresenta: um corredor. Faz parte de seu mais recente trabalho expostona Bienal do Mercosul, denominado “Doador”: a exposição, nas paredes deum corredor, de uma série de objetos cujos nomes terminam em “dor”, pedi-dos como doação pela autora. Entrei no corredor procurando o “meu” objeto,aquele que eu teria doado, que supostamente teria se desprendido de mim enão mais precisaria representar-me. E aí fui me perdendo nas pegadas dosobjetos, nas memórias dos recantos que lhes teriam servido de suporte.Freud veio socorrer-me do despedaçamento das décadas e das casas quese materializavam naquele corredor, lembrando-me do jogo de seu neto como carretel, compondo a fonética da memória do laço com a mãe. WalterBenjamin também me tomou pela mão, falando-me de seu “Rua de MãoÚnica”2, na construção narrativa – de inspiração proustiana – de memóriasde sua infância. Benjamin apóia-se no que, em outros textos, denomina“memória do objeto”. Seus escritos partem da mímesis a elementos discre-tos, a objetos ou traços que recortam um ponto a partir do qual a narrativa éconstruída (o dedal da caixa de costuras de sua mãe, por exemplo). É assimque ele carrega o leitor pelas passagens da vida: passagem entre tempos:passagem entre línguas: passagem entre culturas: passagem entre repre-sentações...

Foi dessa forma que naquele corredor de tantas portas, tantas saídaspor significantes que escorriam das paredes, desses que fazem a gentesonhar e brincar, eu esquecera o fio que me conduzia. Encontrei-o do lado defora, na série de plaquinhas, onde cada uma indicava “Doador” acima donome, também com a indicação do objeto. E assim encontrei-me com onome que era eu, mas que não me pertencia, que a autora transformara nosfios invisíveis dos objetos. E assim reconheci a experiência de um corredor

2 BENJAMIN, W. Rua de mão única. In: _____. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense,1997.

Chegar a fazer gritar a obra, é tê-la criado contra a morteque grita nela.

A MEMÓRIA DOS OBJETOS1

Ana Maria Medeiros da Costa

Foi em 1991 quando primeiro me senti fazendo parte de uma instala-ção, dessas que as artes plásticas já nos acostumaram a entrar. Erafim de inverno – início de primavera – em Paris, e eu arrisquei a mate-

rializar-me, sem aviso prévio, na porta de entrada do apartamento de Edsonde Sousa e Elida Tessler. Depois do impacto ao abrir a porta, a alegria doreencontro e a “instalação” de minha cama noturna entre as telas de Elida,naquele que era seu atelier. Então às vezes acontecia de sonhar durante odia e acordar durante a noite, com os humores dos ferros torcidos e osvapores da ferrugem da história, dos restos dos metais europeus recolhidospara produzir a série de trabalhos denominados por Elida de “Interstícios”.Então ela me dizia que era a cor dos metais, naqueles desenhos que eu viaformarem-se em grandes painéis brancos. E eu tentava entender como ostraços da decomposição (ferrugem) poderiam gestar algo novo. Talvez“interstícios” pudesse mesmo representar essa passagem entre dois esta-dos: dois mundos: dois tempos... Em todo caso, eu me encontrava com aHistória pela primeira vez: eu sentia mesmo o enigma da passagem do tem-po passeando pelas ruas de Paris: topava com pegadas, traços corporaisdaqueles que até então eram somente idéias abstratas, penduradas numcéu limpo e eterno. Para eles, não teria havido nem começo, nem fim, nãoteria havido interstícios, passagens. Então, tropecei na obra de CamilleClaudel, naqueles corpos em decomposição que desafiavam a escultura.Nessa noite, não consegui dormir, sufocada pela ferrugem da passagem de

COSTA, A. M. M. da. A memória dos objetos.

1 Texto originalmente publicado no Caderno de Cultura, do Jornal Zero Hora, Porto Alegre,em 11/12/99.

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das, por exemplo, pela espessura de uma luva, retidas pela economia degestos.

Encontramos neste trabalho o processo clássico da gravura: umamatriz, entintamento da mesma e a tiragem de uma cópia sobre papel. Sãoestas linhas gravadas que guardam o segredo de nossa identidade. Paramuitos a impressão digital tem o estatuto de letra e cumpre a função de umaassinatura, isto é, imprimir uma marca que possibilite uma identificação pos-terior. Mas, aqui, encontramos uma “interferência”que Hélio Fervenza no-

da infância, quando a evocação – o apelo do nome – sempre me trazia com-panhia.

CALIGRAFIAS DE UMA SUBTRAÇÃO1

Edson Luiz André de Sousa

“Signe, étoile au creux de ma main.que je cache et que je retiens ...” 2

Jules Superville

Nos objetos que tocamos com nossas mãos fica o rastro de umapresença: lembrança tátil, efêmera, quase invisível. As impressõesdos dedos testemunham, de um certo modo, a resistência de nosso

corpo, pois tocar é, em última instância, um confronto de superfícies. O tatoé o ato, por excelência, de buscar a finitude da forma. Nosso olhar buscacom insistência os contornos, e é por isso que podemos atribuir-lhe a quali-dade de tátil.

De nosso gesto de tocar o mundo ficam os traços: estas linhas flutu-antes entre o visível e o invisível, que poderíamos chamar de grafismo poten-cial das mãos. As digitais marcam, na superfície branca do papel, aquilo quefaz diferença.

“L’identité moins le signe” (A identidade menos o signo) nos revelaesta potencialidade de linhas que podem ser escondidas e retidas; escondi-

1 Este texto, ainda inédito, foi escrito em Paris em 1992. Registra os ecos que provocaram emmim o contato com o trabalho de Hélio Fervenza, artista plástico atualmente radicado emPorto Alegre e que recentemente participou da II Bienal do Mercosul .2 “Signo, estrela no oco de minha mão”.que eu escondo e que eu retenho ...”

SOUSA, E. L. A. de. Caligrafias de uma subtração.

Hélio FervenzaL’identité moins le signe - n. 3 - 1991Impression digitale sur papier mesurant18cm x 25,5cm

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meia a subtração de um signo. Essa operação instigante, complexa e para-doxal nos autoriza algumas reflexões.

O signo em questão é uma pequena forma recortada em papel, queinterrompe uma determinada superfície da impressão digital. Há um encon-tro/confronto de linhas, as quais, evidentemente, não possuem o mesmoestatuto. Ao estado de uma certa “natureza” das linhas digitais se contra-põem o caráter de “manufatura” do signo. Esta tensão sutil se evidenciaainda mais pelo elemento comum aos dois, a saber, algo feito pelas mãos,algo feito com as mãos (A mão como instrumento / a mão com um instru-mento)

O que chamamos “identidade” é a imagem por excelência da fragilida-de, de algo que a todo momento ameaça se dissolver. Por isso nós a prote-gemos, nós a guardamos a sete chaves, nós a contemos. Mas nosso esfor-ço se revela muitas vezes inútil, pois é tênue a fronteira entre o Eu e o Outro.O que nos é próprio é nossa alteridade. O trabalho de Hélio Fervenza torna,de uma certa forma, visível esta reflexão, pois a identidade é apresentadanão como uma totalidade, mas como uma diferença. Há algo que foi subtra-ído, portanto, há algo que falta.

As linhas digitais servem de fundo à forma recortada. O corpo se fazpresente como suporte do signo que aparece. Encontramos aí outra tensãoentre o corpo e sua representação.

“L’identité moins le signe” reflete uma das constantes preocupaçõesdo trabalho de Hélio Fervenza, ou seja, dar forma à tensão existente entre oque se mostra e o que se esconde. O elemento que esconde é o mesmo querevela. Nossa atenção é, sobretudo, despertada pelas diferentes perspecti-vas que podem assumir a função do olhar e do reconhecimento. O que es-conde é justamente esta forma colocada sobre o dedo no momento da im-pressão digital. O que é escondido seria, metaforicamentem, esta identida-de subtraída. Ora, esta articulação só se sustenta se o ponto de vista emquestão for o de um olhar detalhista de perito, cuja figura exemplar seria a dochefe de polícia parisiense do conto de Edgar Allan Poe: “A carta roubada”.A identidade seria ali buscada nestas linhas interrompidas pelo signo. Parao detetive Dupin, certamente bastaria o signo que revela em ato o pensamen-

to/presença do autor. Aqui, a problematização em questão parece ser a daforma do reconhecimento.

Este trabalho interroga, ao meu ver, o lugar da evidência, cujas prolife-rações não garantem necessariamente a elucidação. É deste encontro delinhas, nesta sutil operação de subtração, que vemos surgir a pulsação deuma reflexão: as linhas do pensamento reveladas por esta gravura armaze-nada no corpo.

SOUSA, E. L. A. de. Caligrafias de uma subtração.

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que a disciplinarização impede o pensamento. Ao contrário, lembra-nos apsicanalista Piera Aulagnier (1976, p. 151), “ter que pensar”, “ter que duvi-dar”, “ter que verificar os pensamentos” são “exigências às quais o Eu nãopode se esquivar, o preço pelo qual paga seu direito de cidadania no camposocial e sua participação na aventura cultural”.

Nesse sentido, o que a ordem disciplinar tende a interditar ao indiví-duo é o encontro de “momentos nos quais possa gozar um puro prazer liga-do à presença de um pensamento que não tenha outra finalidade que nãoseja refletir-se sobre si mesmo, que não tenha a ver com a dúvida e com averificação porque não se dirige a nenhum destinatário exterior, um pensa-mento que não tenha outra meta que não seja a de garantir ao sujeito aexistência de um ganho de prazer, ligado à atividade de pensar em si mes-ma”. E isto significa que o indivíduo moderno, disciplinado, é um indivíduoque, em princípio, não tem direito a nenhum segredo. Ou, mais exatamente,se o indivíduo for portador de algum, o zelo se mostrará necessário, pois,como alerta Deleuze (1988, p. 63), na modernidade, “o segredo só existepara ser traído, trair-se a si mesmo”.

Ora, para Piera Aulagnier (1976), o segredo é psiquicamente vital parao sujeito, pois é a condição mesma de possibilidade do pensamento execer-se. E mais do que isso, é a condição de exercer-se com prazer, prazer quenão é dado pelo conteúdo (p. ex: fantasias eróticas), mas pela própria ativi-dade de pensar, condição indispensável para o “sujeito construir sua identi-dade, diferenciando-se do outro”. É necessário que o enunciado do Outropossa ser posto em dúvida para que o Eu conquiste sua autonomia: “o pri-meiro testemunho desta autonomia será a possibilidade de pensarsecretamente” (1979, p. 38). E mais:

“poder exercer um direito de prazer sobre sua própria atividadede pensar, reconhecer o direito de pensar que o outro não pen-sa e não sabe o que pensamos é uma condição necessária aofuncionamento do Eu. Mas o acesso a este direito pressupõe oabandono da crença no todo saber do porta-voz, a renúncia aencontrar na cena do real uma voz que garanta o verdadeiro e o

DO DIREITO AO SEGREDO: PSICANÁLISE E ARTE

João A. Frayze-Pereira1

Apropósito da sexualidade moderna, o filósofo Michel Foucault mos-tra que “sob a capa de uma linguagem que se tem o cuidado dedepurar de modo a não mencioná-lo diretamente o sexo é tomado, e

como que encurralado, por um discurso que pretende não lhe permitir obscu-ridade...”. Quer dizer, “o característico das sociedades modernas não é te-rem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim se teremdedicado a falar dele ininterruptamente, valorizando-o como o segredo” (1976,p. 49). No entanto, cabe a pergunta: há na sociedade que se diz modernaespaço para o segredo? Em trabalho publicado anteriormente (Frayze-Perei-ra, 1994), analisei essa questão cujo ponto central resumo a seguir.

Como sabemos, em várias de suas obras, sobretudo em “Vigiar ePunir” (1975), Foucault realiza uma análise de componentes essenciais damodernidade, demonstrando que, a partir da segunda metade do século XVIII,se constitui uma sociedade caracterizada basicamente como um modo deorganizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamenteos homens e sua conduta.

“Sociedade disciplinar” é como Foucault designa essa ordem social,que tende a fazer do homem um ser dócil e que tem como uma de suasprincipais metas impossibilitar ou, pelo menos, tornar sem objeto e semprazer qualquer pensamento secreto. No entanto, seria ingênuo imaginar

1 Do Instituto de Psicologia da USP. Do Instituto de Psicanálise da SBPSP. Autor dos livros“Olho d’água – arte e loucura em exposição”, São Paulo: Escuta, 1995; e “A tentação doAmbíguo”, São Paulo: Atica, 1984.

FRAYZE-PEREIRA, J. A. Do direito ao segredo...

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dizer implicaria, junto ao sujeito ao qual fosse imposta, um estado de escra-vidão absoluto...”.

Ora, são os artistas aqueles que estão quase sempre a correr atrásdas palavras, das imagens e dos sons, para tornar dizível o indizível, darcorpo sensual ao irrepresentável, dar condições para que o silêncio da obraressoe. Esta é a sua paixão. No entanto, como também observou Anzieu(1981, p. 139), “as obras mais profundas, mais tocantes, são aquelas quecercam, ou sugerem, ou desvelam a existência de um segredo, que fazemcom que o leitor, o usuário da obra, participe dessa busca com sua duplaface de evidência e de incerteza e de um certo fracasso final em compreendê-lo, em comunicá-lo”.

E, no contexto do mundo civilizado-disciplinar, a fruição concomitantea essa busca incerta do não-sabido responde àquela demanda psiquicamen-te vital para o pensamento vir a ser. Quer dizer, tão fundamental quanto osonho para a atividade psíquica e um ato de liberdade, às vezes obtido commuita dificuldade e ações de contra-violência, é o que Piera Aulagnier (1976,p. 151) designa “o preservar-se o direito de gozar momentos de prazer ‘soli-tário’ que não caiam sob o golpe da interdição, do erro, da culpa”. Trata-se deum direito que as artes, moderna e contemporânea, assim como a Psicaná-lise, têm procurado garantir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASANZIEU, D. Le corps de l’oeuvre. Paris: Gallimard, 1981.AULAGNIER, P. Le droit au secret: condition pour pouvoir penser. N.R.P., Paris:

Gallimard, nº 14, p. 141-57, 1976.AULAGNIER, P. A violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1979.COSTA, J. Freire Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1986.DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.FRAYZE-PEREIRA, J. A. Armadilhas da transparência: o segredo, o obsceno

...Caramelo, FAU-USP, nº 7, p. 173-85, 1994.FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Paris, Ed. Gallimard, 1975.FOUCAULT, M. La volonté de savoir. Paris, Gallimard, 1976.MAGGI, A. Último tango em Paris – área secretas. Ide, Publicação da Sociedade

falso (...) Isto só é possível quando a criança descobre que odiscurso do porta voz diz a verdade, mas também pode mentir(...) A descoberta que o discurso pode conter a verdade ou amentira é, para a criança, tão fundamental quanto a descobertada diferença dos sexos. Poder duvidar do que é ouvido é tãoindispensável quanto poder duvidar da realidade de uma cons-trução que se revela sob a égide da fantasia (...) Será só a essepreço que o sujeito poderá questionar o Outro – e se questionar– a respeito do que é o Eu, a respeito da definição que o discur-so fornece da realidade, e da intenção que motiva o discurso doOutro e dos outros”.

Se, por um lado, sabe-se que a sociedade disciplinar não se definepelos espaços secretos (objetos de vigilância); por outro, a condição vitalpara o funcionamento do Eu, psicanaliticamente, repousa nas possibilida-des e no direito do sujeito criar pensamentos, de escolher os pensamentosque comunica e os que guarda secretamente. “A perda do direito ao segre-do”, diz Aulagnier (1976, p. 143), “leva junto com um a mais para ser reprimi-do, um a menos a ser pensado: duas eventualidades que levam ao risco detornar impossível a atividade de pensar e a própria existência do Eu”. E é apossibilidade dessa perda que, de modo sinistro, ameaça o indivíduo nassociedades disciplinares.

Lendo Jurandir Freire Costa (1986, p. 169), sabemos que, se o indiví-duo moderno é alguém cuja identidade é qualificada pelo narcisismo, é por-que se trata de um indivíduo violentado antes de ser narcisista. Ou seja, é aviolência cotidiana a que está submetido que explica seu narcisismo e qual-quer aparência patológica que ele pode vir a assumir. É uma violência, escre-veu A. Maggi (1980, p. 45), que “se exerce contra o próprio Eu e tem comofinalidade destruí-lo”. Trata-se de uma operação que expressa o receio doOutro de ter que lidar com uma personalidade pouco transparente. Nessamedida, o “direito ao segredo” é não só um direito, mas uma condição funda-mental da singularidade, pois “se o direito de dizer tudo, como tão bemescreve Blanchot, é a própria forma da liberdade humana, a ordem para tudo

FRAYZE-PEREIRA, J. A. Do direito ao segredo...

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Esta associação surge agora a propósito de um importante elementoapontado na reflexão psicanalítica sobre a questão, que ressalta a proximi-dade entre a experiência musical e a experiência do inconsciente. Tal proxi-midade aparece, por exemplo, no que poderíamos chamar de avassalamentodo efeito de ultrapassagem do sujeito, implicando uma espécie de impossi-bilidade de defesa ante este tipo de experiência. Aparece, aí, também aquestão da experiência criativa, de que Freud tão belamente se ocupou notexto “O poeta e a fantasia” (1908), mostrando-nos a marcante captação doinconsciente que se realiza no artista.

Nesta perspectiva, uma curiosidade a ressaltar é o fato de que hápessoas para quem a música não exerce efeito e outras, ainda, que lhe sãoavessas. Era o caso de Freud, sabiam? Pois há uma especulação, referidapor Lambotte (1996), de que o notório racionalismo freudiano estaria na raizde sua declarada indiferença à música, entendida como uma experiênciaque prescinde do racional. Referindo-se, em tese, a este tipo de anestesiamusical, Didier-Weill a interpreta como uma espécie de frigidez, análoga àfrigidez sexual, no sentido de apontar para uma impossibilidade de “parar depensar”. (Id., ib.)

A experiência estética tem na fruição um de seus aspectos maismarcantes. Nela algo se destaca de nossa vivência cotidiana, instaurando-se como espanto. Podemos pensá-lo como uma atualização viva da alteridade,esta dimensão tão dificilmente abordável para os humanos. Didier-Weill pro-põe assim a questão: “O que nos faz ouvir a música senão a presença doinaudível, até então banido da mesmice tagarela do cotidiano?” (1997, p. 24)Podemos pensar como a diferença se transforma em mesmice – no tédio,por exemplo. Neste recalcamento da dimensão do Outro encontra-se emoperação um mecanismo de renúncia à alteridade simbólica, que viabiliza aalienação própria, ao alienar o outro “na figura sem surpresa do mesmo”. (Id.,ib.) Tal estado de coisas é rompido no campo da experiência estética.

Nesta perspectiva, podemos então abordar a especificidade da expe-riência musical como a metamorfose que a música tem o poder de operarsobre aquele que a escuta. E aqui encontramos uma reversão que vale apena acompanhar, seguindo com Didier-Weill:

Brasileira de Psicanálise de São Paulo, 1980.

A VOZ QUE ME FALA1

Lucy Linhares da Fontoura

Refletir sobre a experiência estética nos abre imediatamente umadualidade: a questão sensibilidade versus racionalidade. Podemoscaracterizar o gozo estético, com Didier-Weill, como uma espécie

de paralisia ou desamparo da inteligência, no sentido de que a arte em geral“age no ponto em que o homem se encontra dividido entre o que o toca e oque ele pensa” (1997, p. 23), o que remete à dissociação entre intelecto eafetividade.

Numa primeira aproximação, a experiência musical aparece como umaforma eminentemente sensível da experiência estética, prescindindo do au-xílio ou da intermediação intelectual para ser efetivada. É claro que, se to-marmos as questões da educação instrumental e do gosto musical comoelementos presentes na formação do artista ou do profissional da música, oelemento intelectual não pode ser dispensado. Entretanto, quando falamosda experiência da música, a marca da apreensão sensível constitui umaespecificidade que merece ser destacada.

A propósito, lembro que, certa vez, levei um pito de alguém, quandocomentei minha surpresa com relação à Cartola, o qual, sendo de origemhumilde, do morro carioca, sem escolarização formal, criou composiçõesmusicais belíssimas, muito elaboradas, tanto do ponto de vista da melodia,como no aspecto poético, do refinamento lingüístico das letras de suas com-posições. Meu interlocutor tomou esta observação por preconceito.

1 Texto apresentado na Semana Acadêmica de Psicologia da UNIJUÍ, em outubro de 1999,dedicada à temática “Estética e Psicanálise”.

FONTOURA, L. L. da. A voz que me fala.

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uma raiz sobre a qual poderá, em segundo lugar, germinar a palavra...” (Didier-Weill, 1997, p. 240) Antes de perceber o sentido dos fonemas, o bebê perce-be justamente este elemento através da música da voz dos pais. Talvez aípossamos situar a universalidade da música, como uma espécie de línguaoriginária.

Esta língua originária se apresenta em sua sedução terrível na possi-bilidade de absorção do ser à indiferenciação original.

“As respostas especulares da ninfa Eco e a perigosa seduçãodo canto das sereias ilustrariam bem o poder de fascinação davoz, precisamente quando ela evoca, um pouco de perto de-mais, o vestígio sensorial da primeira voz em que o sujeito, noestágio de infans, ficou como que suspenso. (...) Duplo sonorode um Narciso especular, conhecemos a queixa melancólicade Eco e o lento ressecamento mineral de seu corpo. Certa-mente poderíamos interpretar a história de Eco como um retor-no do sujeito a uma fase primitiva de seu desenvovimento, naqual a voz ouvida constituiu o único traço distintivo de seu uni-verso, traço cujas primeiras modulações ele já podia discernirnesse estágio de infans”. (Lambotte, 1996, p. 696)

É preciso, então, dar um passo a mais, apropriar-se deste som que édado para não sucumbir nele, forjando a própria possibilidade subjetiva.

“A criança ouve a voz da mãe que lhe diz algo. Intensamente,querendo respondê-la, ela é esta voz cujo som serve para de-mandar. Assim, este corpo, ao se identificar a esta voz, corre orisco de desaparecer (...) É preciso então cantar, criar estesom, para não correr o risco de morrer. (...) A criança que cantase destaca de um ela-mesma que ela não constituiu, sua vozreproduz longe dela o que terá sido respondendo pela voz. Seupróprio canto a transporta e liberta, seu Eu ideal se desvanecena sonoridade nostálgica do que terá sido, que ela submete emantém à distância. A sublimação não é nesta perspectiva ofundamento de uma elite artística, é um destino obrigatório da

“Num primeiro momento, você sente, enquanto ouvinte, que estáescutando a música. Mas na medida em que é ‘tocado’, comose diz, você descobrirá que de fato não é você que escuta, masque é a música que o escuta, que escuta uma presença decuja existência você se esqueceu e que, pelo fato de ser escu-tada, passa a reviver e a lhe ser dada. Se essa presença ‘lhe’ édada, é que você não pode oferecê-la a si mesmo: ela não estáa sua disposição. Ela está à disposição soberana do Outro,que é o único a poder livrá-la de seu retiro e a entregá-la a você,ao revelá-la.Revelação cada vez mais surpreendente (...) Por que essa sur-presa é dispensadora de alegria? Porque é portadora do poderde dissipar a dúvida que você tinha a respeito de sua existên-cia.” (1997, p. 197-8)

Vemos assim que este som faz ouvir alguma coisa que não é mais anota musical, mas algo que está para além dela. O que aí ressoa é o lugarpara onde o Outro, dado o recalcamento originário, se retirou, “num silêncioque escapa a todo ouvir possível”.(Id., p.199)

Aqui podemos apontar a dimensão do apelo. Enquanto com relação àpalavra só a recebemos numa condição de deliberação interna à mensagemouvida – “direi sim, ou direi não?” –; com relação à invocação musical nãopodemos deixar de lhe dizer “sim”. Neste apelo incoercível, podemos reco-nhecer a pulsão invocante, situada por Lacan como a mais próxima da expe-riência do inconsciente: “Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o únicoorifício que não se pode fechar”. (1979, p.184) Nesta particularidade pulsionalse ilustra, ao mesmo tempo, a continuidade entre o eu e o outro: “Enquantoo se fazer ver se indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para osujeito, o se fazer ouvir vai para o outro”.(Id.,ib.)

Nesta perspectiva, refletir sobre a experiência musical é um dos cami-nhos possíveis para compreender a relação mais primordial do sujeito com oOutro: “... o poder da música é poder de comemoração do tempo primordialem que o sujeito, antes de receber a palavra, recebe previamente uma base,

FONTOURA, L. L. da. A voz que me fala.

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SEÇÃO TEMÁTICA

POMMIER, Gérard. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990.

A INSTALAÇÃO ENQUANTO LUGAR E O LUGAR DO ESPECTADOR

Elida Tessler1

O ato criador não é executado pelo artista sozinho;O público estabelece o contatoEntre a obra de arte e o mundo exterior.

Marcel Duchamp

Oque é a criação de um lugar? Como abrir espaço àquilo que noscomprime a ponto de fazer doer? São perguntas como estas quepulsam no momento em que nos propomos a criar contornos linea-

res a um pensamento encoberto por neblina. O que é nebuloso na vida torna-se matéria-prima para a arte, e eis o ponto de partida para o que eu gostariade aqui expor.

Em que momento um lugar deixa de ser qualquer um para tornar-seobra de arte? De onde vem essa necessidade do artista de envolver comple-tamente o espectador quando este se dispõe a exercitar o seu olhar?

Não sabemos ao certo quando estas inquietações tornaram-se de talforma eloqüentes, contagiando a história da arte de acontecimentos quefugiam às catalogações possíveis, isto é, às categorias como escultura,gravura, pintura, desenho e outras já tão nossas conhecidas. O fato é quehoje se fala em novos conceitos. Porém, a implicação de outra mudançatambém está aqui presente: o estatuto do espectador em relação ao lugar

1 Artista plástica. Professora do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena, junto com JailtonMoreira, o Torreão - espaço de intervenção em arte contemporânea, em Porto Alegre.

pulsão, uma criação necessária à existência: desenhar, canta-rolar e dançar são atividades inevitáveis de um corpo que seguarda ao se perder.” (Pommier, 1990, p. 194-5)

Aqui podemos fazer o enlace com o título que imaginamos para estetrabalho. “A voz que me fala” pretende enunciar esta dupla dimensão: a ne-cessária referência ao Outro, este outro que fala em mim, ao mesmo tempoem que veicula a dimensão da autoria, no sentido da apropriação que mecabe realizar, através de uma voz que diga o que eu sou.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASDIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei. O mandamento siderante, a injunção

do supereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1979.LAMBOTTE, Marie-Claude. Psicanálise & Música. In: Dicionário Enciclopédico

de Psicanálise. O legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996.

TESSLER, E. A instalação enquanto lugar...

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participador, a fim de também estimular uma reação, uma atitude, um atocriativo.

Quem realiza o projeto de uma instalação sabe-se totalmente depen-dente, para sua efetiva realização, do visitante que ali depositará sua aten-ção. Este dado também não é novo. Cristina Freire2 aponta para as origensdo termo instalação e lembra que as expressões Ambientes, Environmemente Assemblage o antecederam. Em relação à diferença destas outras práti-cas, a autora acrescenta: “ela (a instalação) não ocupa o espaço, mas oreconstrói criticamente”.

A equação entre a vida e a arte me interessa de forma particular.Parece que só acreditando nela conseguimos atingir o mínimo de compreen-são do estado atual das manifestações culturais contemporâneas. Ultrapas-sar as fronteiras entre as diferentes disciplinas e aproximar de forma contí-nua a arte e o pensamento, as atitudes cotidianas e as ousadias da criaçãoartística, parece-me uma excelente medida para amenizar a sensação devivermos em um mundo exageradamente fragmentado, sem espaço paradevaneios. Não será a instalação o abrigo para esta necessidade de encon-tro, em espaço e tempo compactados, para nossa experiência sensível coti-diana?

No Manifesto Realista, assinado por Naum Gabo e Antoine Pevsner,em 1920, encontramos já um sopro, um anúncio do que viria a ser a buscade muitos artistas que se opunham a uma separação da obra de seu contex-to. Vejamos o que diziam: “O espaço e o tempo são as únicas formas sobreas quais a vida é construída e, portanto, também a arte deve ser construída”3.Seguindo esta intuição, alguns movimentos como o futurismo, o dadaismo,

2 Cristina Freire é uma pesquisadora ligada ao Museu de Arte Contemporânea da USP. Seutrabalho intitulado “Poéticas do Processo - Arte conceitual no museu” (São Paulo: Iluminuras/MAC-USP, 1999) traz uma excelente contribuição, em termos de exemplos e contextualizaçãohistórica, para muitas manifestações artísticas que não se enquadram nas definiçõesestabelecidas pelos sistemas das artes até então.3 CHIPP, H.B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.331.

que ele ocupa.Para quem tem acompanhado as produções de artistas contemporâ-

neos, no contexto nacional e internacional, o termo instalação já é bastantefamiliar, mas nem por isso deixa de causar ambigüidades ou estranhezas. Omais importante é que ele guarda em si o sentido de abrigar, de alojar, derealmente instalar algo ou alguém em determinado lugar. Instalação é ato ouefeito de instalar (-se). Este aspecto reflexivo faz, a meu ver, o encontro doverbo e do sujeito, mostrando-nos um desenho curvo, circular. A seta indi-cando o estatuto de chegada para o ponto de partida, e a linha convidando-nos a participar de um percurso. Na verdade, utiliza-se o termo instalaçãopara designar um grande conjunto de práticas e pesquisas em arte contem-porânea. Isso começa a acontecer, de forma mais sistemática, a partir doinício dos anos 60, quando se intensificou o desejo de efetivar o que já foraanunciado pelas vanguardas artísticas do início do século 20: realizar a fu-são entre arte e vida, ressignificando atitudes e possibilitando, cada vez mais,que o quadro abandonasse a sua moldura, impregnando o ambiente de valo-res sensíveis e, por que não, perturbadores.

A instalação é uma operação artística, é uma intervenção que reúneatitudes e objetos, incorporando o espaço como elemento constituinte daobra. Que seja a sala de exposições de um museu ou galeria, ou um jardim,uma capela ou qualquer recorte do espaço urbano, o importante a consideraré o conjunto formado como um todo, que faz nascer uma forma outra, coesa,diferenciada de nossos registros anteriores acerca do que já conhecíamosde cada objeto isolado. O que acontece, então? Eis o ponto de giro nova-mente aqui presente: estamos todos incluídos na obra, queiramos ou não,quando adentramos em seu espaço.

Nosso olhar e nossos gestos completam o trabalho do artista. A sig-nificação da obra se infiltra em seu ambiente. A proposição se abre, provo-cando a fusão entre ela e o espaço social. Neste caso, o observador entraem relação com a obra acrescentando sua contribuição. O público reagecriticamente. Uma instalação é constituída por elementos dispostos de ma-neira particular, destinados a sensibilizar a percepção do espectador-

TESSLER, E. A instalação enquanto lugar...

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SEÇÃO TEMÁTICA

AS CRIANÇAS DO “READY MADE”

Alfredo Jerusalinsky

Um estranho mal-estar percorre o mundo. É o fantasma do “readymade”. Crianças bem vestidas e bem alimentadas se jogam no chãona frente de carrinhos de pipoca, esperneiam diante de vitrines de

brinquedos, berram perante algodões-doces e bichinhos da “Parmalat”.Nas prateleiras de seus quartos, dezeeeenas de bichinhos de pelú-

cia, jogos jamais abertos, brinquedos apenas manuseados dormem o mes-mo sonho dos monumentos nas praças. Estão ali para testemunhar algumacoisa imprecisa, que ninguém atina a definir. Dia após dia, as babás e asempregadas domésticas se esmeram em fazer caber – num espaço cadavez relativamente menor – esse festival de objetos coloridos, que se multipli-cam sem cessar. É bem provável que as faxineiras tenham, no dia anteriorao aniversário da mimada criancinha da casa dos patrões, devaneios bemparecidos aos de uma artista plástica nas vésperas de uma “instalação”.Estarão obrigadas a encontrar alguma ordem para a Barbie número dezessete- vestida de Grace Kelly – , o Rambo com rosto de Raph Vallone, o papagaioque responde e olha para a gente, um jogo de dominó, algumas feras pré-históricas, seis bonecos de diferentes tamanhos, um tanque de guerra, duasnaves interespaciais, um apito de juiz de futebol (que não deve se perder),um robô e um cavaleiro medieval, 44 soldadinhos vermelhos de uma Segun-da Guerra Mundial – que já não figura entre os restos imaginários das crian-ças, mas entre os restos infantis dos pais cinqüentões – , e uma série deobjetos inidentificáveis com cara de Piu-Piu, Pateta, Mickey, etc., que api-tam, crepitam, gemem, falam se forem apertados, sorriem e choram, balan-çam, ascendem luzes, mexem, e – todos eles – contêm alguma advertên-cia: “Não serve para voar”, “ Mantenha fora do alcance de crianças menoresde...”, “Requer troca periódica de baterias”, “De 2 a 5 anos”, “De 5 a 8 anos”,“Não aproxime ao fogo”, “Se a criança não souber os números pode se guiarpelas cores”, “Molhe as pastilhas de aquarelas para pintar”, “Para conservar

o construtivismo e o programa da Bauhaus, apresentaram produções fantás-ticas em termos de inserção de fatores importantes para a emergência dainstalação. Um exemplo que não poderíamos deixar de citar aqui, pois elenos ajuda a compreender o valor do espaço para a apresentação de seusdiversos elementos ali inseridos, é a “Sala PROUN”, do artista russo ElLissitzky, exposta em Berlin, em 1923. O que é que faz questão? Justamen-te algo fundamental: a arte é uma espécie de criação de um lugar. Ela provo-ca intersecções entre a arte enquanto objeto e a arte enquanto processo,onde é o espectador que finalmente deve dar sentido àquilo que se passa.Como nos diz Michael Archer4, a significação, dentro de uma instalação, nãopode ser instantaneamente percebida ou reconhecida, pois ela não existe.Precisamos, efetivamente, desta concepção de passagem da arte como coi-sa à arte tornada alguma coisa que tem um lugar no momento de encontroentre o espectador e um conjunto de estímulos.

Diz ainda o Manifesto Realista: “A arte deve esperar-nos onde querque a vida seja fluente e atuante... no banco, na mesa, no trabalho, no lazer,no descanso: nos dias de trabalho e nas férias... em casa e fora dela... a fimde que a chama de viver não se apague na humanidade”.5

Finalmente, temos aqui um encontro marcado: a obra vem a ser umespaço para receber o espectador. Ali, é possível estar. Seja um espaço emfreqüente transformação, um work in progress, seja uma obra que não éfacilmente transportável nem vendável, que não é pintura nem escultura, nemarquitetura como estamos tradicionalmente acostumados a conceber. Estessão projetos de lugares concebidos especialmente para receber o especta-dor de corpo inteiro. O percurso e as reações provocadas pelos materiais“fazem” a obra. O “habitante-visitante” faz o quadro, isto é, assim como emMarcel Duchamp, o estatuto do artista é colocado em questão.

4 Apud OLIVEIRA, N.; OXLEY, N; PETRY, M. Installations: l’art en situation. Paris:Thames &Hudson, 1997.5 CHIPP, op. cit, p.333.

JERUSALINSKY, A. As crianças do “ready made”.

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consulta, mesmo que seja a um psicanalista, costumam perguntar: “Qual éo livro que o senhor recomenda lermos para poder ajudá-lo”. E, certamente,tal demanda não aponta para serem orientados na travessia de uma experi-ência literária – o que pode ser de grande interesse numa “cura” psicanalítica–, mas ao fornecimento do popular “manual de instruções”, desta vez para omanejo adequado do artefato chamado “filho”.1

Por sua vez, as crianças adaptam-se facilmente à supressão daescansão entre o momento da demanda e o momento da satisfação. Res-pondendo a uma lógica completamente “real”, porque deveriam esperar paraaceder ao que já está – por definição – pronto?

Afinal de contas, as crianças recebem, pela via do discurso social, adefinição antecipada do mundo em que deverão viver.

A genialidade de Duchamp consistiu em demonstrar que estávamossendo lançados a viver num mundo onde a “sopinha da mamãe” já não che-garia além de um envelope de sopa instantânea. E o que restaria para nósdefendermos nosso lugar de sujeitos seria, simplesmente, assinarmos em-baixo de algum fragmento dessa repetição.

As crianças compreederam isso: elas tomam os bonecos estândar,as pequenas peças repetidas ad infinitum, e montam com elas sua própriatragédia grega. Se a gente aguçar o ouvido, pode, ainda, escutá-las murmu-rando baixinho – quase na clandestinidade – o argumento de sua novela.Instruindo seus pequenos filhos de plástico para escapar da sinistra profeciade uma genética inexorável.

1 Nossa resposta diante dessa demanda costuma ser: “Os senhores precisam apreder a lero livro que está escrito na cabeça de seu filho. E se não estiver escrito, ou tiver espaços embranco, a pergunta fundamental não é como fazer para escrever ali, mas o que vocêsdesejam escrever”.

as cores puras não misture os blocos de massa”, “O uso inadequado poderádanificar o brinquedo”.

Trata-se de uma variedade de objetos que procuram, com toda evidên-cia, se antecipar a qualquer criação; nossa industriosa sociedade coloca emato seu princípio: eu o fabriquei antes de você poder imaginá-lo. Ergo, nãoimagine, nós o fazemos por você.

Ao mesmo tempo, contêm uma série de advertências, que concedemao sujeito um sossegado lugar de beatífica idiotice. Os pais não precisamaveriguar qual o brinquedo adequado para seu filho – ora! está claro, se eletem 3 anos tem que levar esse que é de 2 a 5 anos. Uma simples capa azulnão transformará seu filho em verdadeiro Superman. Não o sabia? Se seufilho der banho, no vaso sanitário, no toca-fita colorido, seguramente ele vaiestragar. Pintar com pastilhas de aquarelas secas sempre foi muito difícil,sobretudo se você não as molha. E se a pilha acabar, pois é, troque-a. Sebotar para cozinhar seu Kent, certamente, ele vai torrar.

Além dessa “poupança de pensamento”, que tais valiosas instruçõesnos oferecem, elas também se ocupam de que nossos filhos não precisempassar por fatigosas experimentações: não misture as cores, porque senãoirão se produzir outras; não perca tempo, siga precisamente o manual deinstruções e obterá um correto funcionamento, se não não.

A precipitação do objeto diante do nariz do sujeito procura, nas inflexõesatuais do discurso social, poupá-lo da responsabilidade de sua escolha, su-pondo-o numa posição de tão absoluta ignorância, que tende a reduzi-lo aum mero artefato de movimentos previamente pautados e operações previa-mente programadas. Assim ocorre, também, na psiquiatria atual, que, aomesmo tempo que precreve o fármaco para corrigir o desperfeito, suprime ainterrogação acerca do valor subjetivo do sintoma. Nesse ponto, alia-se auma genética mecanicista, que supõe o humano pré-estabelecido em todosos termos já nos seus gens; um destino pré-fixado nas cadeias de DNA, demodo totalmente autônomo às suas vicissitudes.

A impregnação dessa proposta de “poupança do pensamento” alcan-ça tal ponto, no discurso social, que os pais que chegam com seu filho à

JERUSALINSKY, A. As crianças do “ready made”.

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lugar marcante; no entanto, o que de melhor se produziu, aqui em termos deliteratura, foram textos ficcionais de memórias. Dom Casmurro entre eles.Fischer refere o dito “O brasileiro não tem memória” como recorrente e con-clui: parece que os escritores se puseram, então, a inventar as memórias doBrasil na ficção.

Manhattan Connection2, maio de 99, discute-se no programa a expo-sição recém inaugurada no Whitney Museum, NY: o século americano (cemanos de arte americana – parte I, ou seja, os primeiros 50 anos do séc. XX).Contardo Calligaris era o convidado! Ele faz uma observação bem interes-sante. Conta que o filho, ao ver as pinturas dos artistas do início do século,cenas de cowboys e índios, comenta: – “Olha, parece tirado do cinema...”Ao que Contardo responde: justamente ao contrário, o cinema é que pôs emcena o que essa pintura produziu, e todo o imaginário de velho oeste que dealguma forma compartilhamos passa por esta criação, a gente é que muitasvezes não se dá conta disso (do fato de que há produções que criam umarealidade). Traz como exemplo a cena do bar americano pintado por EdwardHooper – Nighthawks – nenhum bar americano é o mesmo depois de Hooper.

Voltei aos textos e aos álbuns de Hooper, são incríveis. Uma curiosi-dade: os críticos o referem como o pintor por excelência da “cena america-na” ao que ele responde: “O que me deixa louco é esta história de cenaamericana. Os pintores franceses não falaram de cena francesa, ou os ingle-ses de cena inglesa. É enervante. A especificidade americana de um pintorestá nele, não há necessidade de lutar para aceder a este lugar. O valor deuma arte proposta em função da identidade nacional é talvez uma questãosem resposta.”3

Identidade nacional, brasilidade, Machado de Assis foi bem criticado,na época, por não acentuar a chamada “cor local” (nem índios, nem araras,

MEMÓRIA E INVENÇÕES DO BRUXO DO COSME VELHO1

Lucia Serrano Pereira

“Há dessas reminiscências que não descansam antes quea pena ou a língua as publique. Um antigo dizia arrenegarde conviva que tem boa memória. A vida é cheia de taisconvivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova deter a memória fraca seja exatamente não me acudir agora onome de tal antigo; mas era um antigo, e basta.” (Dom Casmurro, Machado de Assis)

As questões que nos colocamos hoje, em torno de Brasil 500 anos,têm nos levado nos levado à obra de Machado de Assis.Que bomabrir novamente as páginas de Dom Casmurro (sem a preocupação

com o vestibular – todo mundo começou Machado por ali, quem não selembra?). Estas obras que atravessam o tempo, tão marcantes de um con-texto, nos fazem transitar entre o singular e o coletivo. Que Machado deAssis produz memória do Brasil, parece tranqüilo. Mas como pensar essamemória? Lembrança, reminiscência ou ainda outra formulação?

Ato criativo, narrativas ficcionais, aí vão algumas referências recentesque me fizeram pensar:

Luiz Augusto Fisher, no texto “O ventre e a linhagem das memórias”,chama a atenção para o fato de que no Brasil a escrita biográfica não fez

1 Artigo produzido a partir do texto Convivas de boa memória, apresentado na Jornada daAPPOA - 100 anos de Dom Casmurro – outubro de 1999.

PEREIRA, L. S. Memória e invenções...

2 Programa de debates na Tv a cabo.3 DEBECQUE-MICHEL, L. Hopper. Hong Kong:Hazon, 1992.

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de intenções ou mesmo declarações amorosas. Não faltaram os que apon-tassem em Machado de Assis, justamente, a falta de amor às nossas coi-sas, seu estilo irônico como uma espécie de ofensa ao país. Paradoxalmen-te, não se fala de Brasil sem falar de sua obra. Memória e criação. É nissoque podemos dizer que, por exemplo, um Brasil do agregado se inventa como personagem de José Dias (o agregado da família de Bentinho, em DomCasmurro) tão trabalhado por Roberto Schwarz. Assim como Nighthawksestá para o bar americano, dali para frente sempre marcado por este contor-no, por esta narrativa.

Se algo é recuperado, enquanto memória do Brasil nos escritos deMachado de Assis, é uma memória que passa pela criação. Não é bem algoda ordem de uma memória/lembrança do Brasil.

Lacan5, quando trabalha sobre a criação na arte, pergunta: a finalida-de da arte é imitar ou não? A arte imita o que ela representa?

E ressalta que colocar a questão desta maneira já é cair numa redeum pouco complicada, da qual é preciso se desenrolar. O que vai propor nasaída desse tipo de impasse? Ele diz, é claro que as obras de arte imitam osobjetos que elas representam, sua finalidade, porém, justamente, não érepresentá-los. Fornecendo a imitação do objeto elas fazem outra coisa des-te objeto. Faz uma referência às artes plásticas: “No momento em queCezanne pinta maçãs, trata-se evidentemente de que pintando maçãs elefaz algo bem diferente de imitar maçãs – embora sua última maneira deimitá-las, que é a mais impressionante, seja a mais orientada para umatécnica de presentificação do objeto. Porém, quanto mais o objeto é pre-sentificado enquanto imitado, mais abre-nos ele essa dimensão onde a ilu-são se quebra e visa outra coisa.” A relação com o real, nesse momento, serenova na arte, faz surgir o objeto de uma outra maneira, constitui uma reno-vação de sua dignidade, por onde as inserções são batizadas de uma nova

etc.). Concernido por estas questões, respondeu, a meu ver, como Hooper,perguntando – Romeu e Julieta não tem relação com o território britânico,mas Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencial-mente inglês? No texto conhecido como “Instinto de nacionalidade”, Macha-do propõe: “Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nas-cente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a suaregião; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam.O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimoque o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando se trate deassuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França,analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto diziaque do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo,assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava odito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhordo que se fora apenas superficial.”4

É bem verdade que soa completamente enigmático “a especificidadedo pintor americano está nele mesmo”, ou o “sentimento íntimo que o tornehomem do seu tempo e do seu país”, ou mesmo o “scotticismo interior”. Nãovamos nos perder nisso, tentando estabelecer qualquer delimitação de cu-nho nacionalista, de identidades, buscando entre os significantes que orga-nizam nossos lugares subjetivos, aquele que representasse a identidadenacional. Tomo essas falas como interessantes no ponto em que indicamalgo dos lugares em uma estrutura que permite a produção de um sujeitocomo efeito dessa cultura, ou seja, tudo o que se articula com o campo doOutro. Sentimento íntimo? Talvez Machado de Assis tenha encontrado, as-sim, uma forma de dizer das posições subjetivas possíveis, para cada um,relativas ao tempo e contexto de discurso e que compõem, que organizam,essas condições de enunciação. Efeitos, “falar a partir de”, não declaração

PEREIRA, L. S. Memória e invenções...

4 ASSIS, Machado. Obras Completas . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1975. 5 LACAN, J. O seminário: Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1989.

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maneira.Nesse sentido, podemos propor, de alguma forma, que um artista cria

a realidade, a qual poderíamos pensar que ele estaria ilustrando.Nesses termos, Machado de Assis cria, produz memória do Brasil.

John Gledson considera “Dom Casmuro” como uma obra que tem por objeti-vo nos oferecer um panorama da sociedade brasileira do século XIX – o ro-mance nos trazendo verdades de todos os tipos, de dinheiro, religião, sexo,família, classe, política, relações pessoais, sobre o uso da linguagem, daimagem, etc.

Tenho dúvidas quanto à idéia de que o livro tem por objetivo essepanorama, o que dizer do lado das intenções do autor? Mas estou de acordoem pensar que se produzem ali essas verdades do contexto brasileiro, deum Brasil que ele “inventa” ao mesmo tempo em que escreve.

“Criar é sempre criar um futuro, isso não implica que uma criação sejasem passado” – esta frase de René Passeron6 tem nos dado bastante traba-lho.

Criar é sempre criar um futuro – faz pensar nessas produções narrati-vas que tem a ver com a criação, com um efeito de transformação do real, dolaço do singular com o coletivo de uma forma inovadora. E que acabampropondo o nihil da criação como se produzindo “na frente”, e não atrás(referindo a criação ex-nihilo, “criação a partir do nada”): o que se produz apartir de um ato, por exemplo esse ato de escrita, criando essa relação como real que se renova, fazendo surgir uma nova distribuição.

Isso não implica que uma criação seja sem passado – talvez permitaconsiderar, incluir-se nela, toda a tradição que compõe uma cultura. Nãofazendo oposição, assim, entre o universal e a “cor local” tal qual fazia acrítica em torno de Machado de Assis como se nós pudéssemos escolherefetivamente entre uma coisa ou outra.

Ainda em memória e criação, temos nos encontrado com o texto deWalter Benjamin, em especial onde ele nos faz tomar a memória como umcampo de apagamento e abertura, uma espécie de palco onde a cena não épropriamente a da lembrança (indicando um sentido – foi isto que aconte-ceu), não propriamente o retorno a um passado já inscrito, mas o jogo comcerta obscuridade, com algo da ordem do esquecimento, o que pode parecerretorno às supostas origens, produzindo outra coisa na atualização discursiva.

Benjamin relaciona memória e origem, propondo a origem, a Ursprungcomo um salto para fora da sucessão cronológica com a qual estamos acos-tumados. Não um encontro com a gênese, o início da história, mas algo quese produz como um efeito. Um efeito de origem – que se produz na frente,trata-se mais de designar saltos e recortes inovadores.

Será que não poderíamos pensar nestes termos, justamente, a dife-rença entre encontrar “Dom Casmurro” como nos lembrando ou nos evocan-do o Brasil, e, mais radicalmente, talvez, produzindo como memória do Bra-sil, efeitos de nossas origens?

6 PASSERON, R. La naissance d’Icare: Éléments de poïétique générale. Paris: ae2cg, 1996.

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Guildenstern morreram (1966), de Tom Stoppard. Efetivamente, tal obra sedestaca – entre outros itens – pela exposição exemplar do uso destes recur-sos. Mas antes de verificar tal afirmação, vamos expor aquilo que foi reveladopor Lacan: “(...) quando preparava minha conferência nestes dias li ‘Rosen-crantz e Guildenstern’, de Tom Stoppard (a quem conheci e que me prome-teu vir, talvez esteja aqui entre vocês). É um dos textos mais lacanianos quejá vi, inclusive me atingiu, me deixou doente (...). Porque me dei conta deque uma história, louca como um discurso psicanalítico, faz com que seentre em outro mundo. (Já a havia lido antes3, também me ocupei muito deHamlet, é necessário fazê-lo quando nos interessamos por Freud.) Rosen-crantz e Guildenstern são pessoas que basta colocar em questão – em claraquestão – para aperceber-se de que se está no mundo psicanalítico.”4

Como pode se deduzir disso, Lacan – entrando na mesma inteligibili-dade com que foi composto este volume – dirige-se à obra e ao autor para“verificar” – aprés-coup – a pertinência de suas postulações, adotando orumo em relação à verdade – parcial, transitório – a partir do ensino artístico.Dito de outra forma, a obra de arte não “exemplifica”, e sim corrobora, de-monstra e dirige a orientação do psicanalista. Mas, é claro, trata-se, nomomento, de uma obra muito singular, pois subverte a norma do protótipo,do qual “Hamlet” – o personagem – constitui um inquestionável apólogo.Relem-brando: Rosencrantz e Guildenstern são cortesãos “de segunda”, an-tigos amigos de Hamlet – que desconfia, com motivos de sobra, deles –, eque circulam perifericamente na obra shakespeareana de acordo com osvaivéns e com as variadas peripécias sofridas pelos personagens principais.

3 Efetivamente, pode-se verificar o referido através da menção feita por Lacan pouco tempodepois da estréia – e da publicação – da obra de Stoppard. Desta forma, apreende damesma outra direção – vinculada, na ocasião, com a discriminação de “três níveis damathésis” –, qualifica a peça como marcadamente hábil e até penetrante”. (Séminaire “L’actepsychanalytique”, 15, aula de 6/12/67, inédito).4 LACAN, J. “Conferencia de Lacan en Londres” (3 de febrero de 1975). Uma nota de HebeFriedenthal”, em AA.VV., Cuestiones sobre la teoría y la técnica, Escritos Polémicos, BuenosAires, p. 11.

O ANTI-HAMLET?1

Roberto HarariTradução de Gerson Smiech Pinho

“Não existem pequenos papéis; existem apenaspequenos atores”C. Stanislavski, Minha vida na arte

“A arte não reproduz o visível; faz-se visível.”P. Klee, Teoria da arte moderna

“Na arte não há passado, nem futuro. A arte que não está no presente não existirá nunca.”P. Picasso, conversa com M. de Zayes

I

Acarnavalização comporta um traço cujo desdobramento artístico en-volve, em diferentes instâncias, o andamento psicanalítico. É bempossível que a notável forma de tal caráter – unida com a impressio-

nante mise en abyme ou “relato especular”, segundo a qualificação vertidapelo livro de Dällenbach mencionado neste capítulo2 –, é bem possível quetais aspectos, então, tenham sido os responsáveis pelo contundente juízoformulado por Lacan – por ocasião da conferência que proporcionou em Lon-dres, em 03 de fevereiro de 1975 – a respeito da peça teatral Rosencrantz e

1 Publicado em HARARI, Roberto. Polifónias - del arte en psicoanálisis. Barcelona: Serbal,1998.2 Referência ao capítulo do livro, de onde este texto foi extraído.

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secundárias, e as elevou à dignidade de conceitos maiores; citou Freud,mas não como letra morta, redundante e carente de efeito, mas comorelançamento inventivo – sem evitar espaços críticos – de sua própria elabo-ração conceitual; por outro lado, modificou as “entradas e saídas” dos con-ceitos, de acordo com as ligações assumidas na estrutura. Está claro queisto é o que nos corresponde realizar, hoje em dia, com a leitura de Lacan.

II

No parágrafo anterior, cometi, de modo deliberado, uma omissão; efe-tivamente, a obra “propriamente dita”, ou seja, a escrita por Stoppard, não selimita às falas de Rosencrantz e de Guildenstern, já que seu texto introduztambém, como modificação inovadora, relevante, a presença de um “ator”como protagonista. De um “ator principal” – assim é denominado em Hamlet–, que é o responsável do comando de uma troupe de comediantes cujopapel na obra stoppardiana é fundamental. Nesse sentido, cabe assinalarcomo Lacan – orientado por um texto de O. Rank – havia sublinhado o recur-so shakespeareano a mise en abyme, verificável quando Hamlet convoca àreferida companhia de atores para representar “o assassinato de Gonzago”(intercalado com um breve texto preparado por ele especialmente para aocasião). Trata-se, claramente, de uma tragédia – intitulada A ratoeira – queremeda, em sua trama, à desencadeada pela envenenamento que vitimouseu pai. Segundo Hamlet, esta pequena obra, apresentada frente a seu tio ea Gertrudis – a rainha-mãe-cúmplice-incestuosa – “sob o aspecto contínuode pantomima silenciosa, e mais tarde, de ação falada”6, precipitaria odesvelamento do ocorrido, ferindo culpogenamente à mão homicida e impu-ne. Em O desejo e sua interpretação, o analista francês considera que esta

6 STAROBINSKI, J. La relación crítica (psicoanálisis y literatura). Madrid: Taurus, 1974, p.236.

Súditos temerosos e apreensivos, servis e amorais – além de sustentarem omérito de serem obedientes, de modo acrítico, aos ditames da realeza –,acabam sendo enviados a morte por Hamlet quando este descobre – semser descoberto por sua vez – que seus desleais amigos eram portadores deuma carta na qual constava que o traidor Cláudio – seu tio-rei, assassino dopai de Hamlet – o mandava com eles a Inglaterra para aí ser eliminado.Trocando com sigilo essa carta por outra, em que os destinados à morteeram agora seus “amigos”, Hamlet – normalmente inibido, escrupuloso eprocrastinador, ainda que introduza passagens ao ato – salva assim momen-taneamente sua vida, retornando ao castelo de Elsinor. Sentença executa-da: Rosencrantz e Guildenstern morrem, então, mas “vivem” na obra deStoppard de um modo extremamente diferente ao relatado na tragédia deShakespeare. Carna-valização: os personagens secundários, marginais, obs-curos e subordinados se tornam protagonistas; em uníssono, os persona-gens centrais originários recitam – na obra de Stoppard – suas falas reduzi-das, tal como estão, invertidas, em relação à obra “inicial”. Para ser maisclaro; Stoppard satisfaz ao texto do genial bardo, mas inverte a ordem desuas categorias; por outro lado, cita “literalmente”, mas essa citação, é ób-vio, modifica sua incidência em função do novo contexto gerado. Ou seja,Rosencrantz e Guildenstern, ao carregarem o peso da trama, são aquelesque sublinham a presença da pena de Stoppard. Desde já, também as entra-das e saídas dos personagens se encontram, de tal forma, subvertidas, não“respeitadas”.

Então, não caberia afirmar que Stoppard ensina a maneira de ler umclássico, de citá-lo, de tê-lo como referente, e que também ensina como,graças a tudo isso, conseguiu inventar uma obra surpreendente? Repito: doNome-do-Pai se pode prescindir, com a condição de servir-se dele5. Porquena minha opinião – reitero –, esta direção estética e epistêmica é adotadapor Lacan em sua leitura de Freud: detectou noções – aparentemente –

5 LACAN, J. Séminaire “Le Sinthome”, 23, classe de 13/4/76, inédito.

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Isto posto, o notável da peça em questão é como resolve a efetivaçãoda mise en abyme, não de modo retroativo – como acontece em Hamlet –,mas antecipatório, pois a troupe põe em cena, diante dos mesmos protago-nistas, a pantomima que sobrevirá tragicamente. Ali encontram – ao preçodo sacrifício – resposta frente a insistente pergunta que se formula em rela-ção a seu lugar no Outro. Resposta que, mais tarde, resulta confirmadaatravés da leitura que realizam de seu destino, cifrado em uma carta. Cartafalsa? Toda carta chega ao destino; a perplexidade, a desorientação, a con-fusão, a embaraçosa incredulidade, assaltam renegatoriamente aos prota-gonistas frente a sinistra contemplação da pantomima. Por outro lado, elessão acompanhados com freqüência pelo ator – e sua troupe –, com quemmantém uma relação intensamente agressiva, mas não sem simulação esituações equívocas (no limite, às vezes, com fenômenos de “duplo”).

Mise en abyme: apenas a ficção “habi(li)ta” a verdade, a qual não émais que uma posição, um lugar, no discurso. Antecipação (Stoppard) –retroação (Shakespeare): são dois dos tempos da psicanálise; como tais,defasados, heteróclitos, com respeito à crono-logicidade. Mas apenas o jo-gado nesses tempos – verificáveis na play scene, mas, desde já, não apenasnela –, apenas o jogado nesses tempos, dizia, pode ser crível, em tantomolde montado12 dos acontecimentos cujo “cabo”, cuja “amarração”, mordeo Real: “Ator: (...) Tive uma vez um ator que estava condenado à forca por terroubado uma ovelha ou um cordeiro, já não me lembro – e obtive permissãopara enforcar-lhe na metade da representação – Tive que modificar um poucoo argumento, mas pensei que podia ser eficaz; pois não vais me acreditar:não era convincente! Não se podia lutar contra a incredulidade – e com acena, o público vociferava e jogava amendoins. Um absoluto desastre! Elenão fazia mais do que chorar todo o tempo – completamente fora de seupersonagem – colocava-se ali e chorava...Nunca mais”13.

12 Referência a respeito do capítulo 9 do livro.13 STOPPARD, T. Rosencrantz y Guildenstern han muerto, Cuadernos para el Diálogo,Madrid, 1969, p. 72.

play scene – segundo a expressão com que é conhecida –, além do motivoracional alegado pelo príncipe torturado para promovê-la – isto é, a busca daconfissão expontânea do delito de Cláudio –, põe em cena – cena sobre acena, teatro no teatro – “(...) a estrutura de ficção da verdade. E é o que setorna imprescindível a Hamlet para descobrir como reorientar-se.”7

Transcorridos dezesseis anos dessa afirmação, Lacan mantém, namencionada conferência londrina, uma atitude similar, relativa à linguagemcomo condicionante do caráter inevitavelmente fictício da verdade: “(...) nãohá oposição entre a natureza e a cultura. Natureza é uma idéia da cultura.Basta colocar em questão o que se percebe e ver que não tem nada a vercom o Real; são designações de palavras, e isso constitui a coisa, a coisaque faz andar o mundo.”8 Sim, mas o calibre, o alcance da play scene,haviam guiado a ele com antecedência a sustentar a Hamlet – como obra –enquanto apólogo-ensino de uma inflexão na posição subjetiva, não relativizávelde acordo com suas designações (eventualmente mutáveis).9 Por quê? Por-que o suposto “cosmismo” do mundo – do mundo ordenado como um cos-mos – a cena o limita e secciona, ao “colocá-lo” nela.10 E a cena, está claro,não “reproduz” – como microcosmos – o hipotético macrocosmos. Pois bem,se a cena não representa cosmos algum – pois a mesma se constitui emfunção de uma perda, e não de uma compressão –, o relato especular – aplay scene – marca também outra modalidade da falta: a falta no espelho,vale dizer, a incidência do não especularizável. E Rosencrantz e Guildensterntransitam, pela obra de Stoppard, como dois “impostores (faux-frères)”11, mascomo impostores por não terem “postura” no Outro, circunstância que ostorna tão disponíveis quanto vulneráveis. E isso, por serem resto da estrutu-ra; ou seja, objetos a (como tais não especularizáveis).

7 LACAN, J. Séminaire “Le désir et son interprétacion”, 6, classe de 11/3/59, inédito.8 LACAN, J. “Conferencia...” (cit.), id.9 LACAN, J. Séminaire “L’angoisse”, 10, classe de 28/11/62, inédito.10 Diria Joyce: torna-o caosmos.11 LACAN, J. Séminaire “Le désir ...”, (cit.), classe de 4/3/59, inédito.

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to, é o que cabe, ao final dos filmes, àqueles que não nos reafirmam qual oideal que devemos perseguir. Guido ousou fazer humor da morte, mostrou-nos possuir um Eu cujo princípio de realidade não sobrepõe o princípio doprazer. Mostrou-nos ser onipotente em suas atitudes e, assim, criou umailusão para seu filho. Uma ilusão que ele próprio vivia, acreditando que pode-ria contar com o camarada de charadas. Mentiu para seu filho na intenção demantê-lo vivo na crença que o amor salvaria e sem saber das conseqüênciasfuturas dessa mentira. Mas que pai sabe? Um pai que mentiu a seu filho,como o personagem de Cony também mentiu, mas qual pai não mente?Alguns fazem de sua mentira uma verdade e tentam, até a morte, ser insupe-ráveis, mantendo para seus filhos o engodo de seu lugar fálico. Outros sãofaltantes e sabem disso. Estes, que sabem de sua falta, no decorrer da vida,mostram isso a seus filhos, não apenas a sua impotência, ou a angústia queela poderia lhes causar, mas mostram que é justamente desse modo queeles podem produzir algo.

Referindo-se a Guido, Sanches2 diz que ao criar para seu filho ummundo fantasioso, no qual o campo de concentração era transformado noespaço de um jogo, dá ao filho recursos para negar uma realidade mortífera.Nessa nova realidade imaginária, a impotência se transforma em ação. Noentanto, isto só não se torna aniquilador para o filho, pois existe uma âncorafirmemente ligada à realidade – o pai. Diz, também, que negar a realidade desituações aniquiladoras (ou isolar os sentimentos ligados a elas) é torná-lassuportáveis.

Calderoni3 diz que Guido converteu em sentido o que seria terror sem-sentido para a criança. Muitos são os sobreviventes dos campos de concen-tração que se referem a necessidade de manter um elo com a própria histó-ria e subjetividade para permanecerem vivos. Para Guido, o elo era a fantasia

2 SANCHES, Renate. A vida é bela? Pulsional , São Paulo, v. 122, 1999, p. 65-9.3 CALDERONI, David. Catástrofe e representação: a vida é bela. Pulsional , São Paulo, v. 122,1999, p. 63-4.

HUMOR, A VIDA É BELA, OU TRIBUTO A UM PAI

Maria Cristina Petrucci Solé

Quem não leu “Quase memória” de Carlos Heitor Cony? Nesse livroo autor conta a história de um pai. Sabiamente, nomeia o livro paradeixar claro que apesar de não ser propriamente uma biografia de

seu pai, também não deixa de sê-lo. Talvez, porque saiba que só podemosescrever desde a nossa história. Cony descreve seu livro como um quase-romance, onde personagens reais e irreais misturam-se, alguns são fictíci-os, mas não todos. Este pai, apresentado por Cony, é descrito, na contra-capa por Rui Castro, como um homem que acreditava em tudo que fazia eque fazia os outros acreditarem. O livro descreve com bom humor os desa-certos de um pai. Um pai que transformava a vida em um grande aconteci-mento, que fabricava balões e com eles produzia sonhos. Um pai que trans-gredia, ao lançar balões em festas juninas, mesmo diante da proibição, e nooutro dia, escrevia uma coluna no jornal contra esse hábito. Esse pai faziado cidadão da esquina um sábio na sua originalidade. É um pai repleto dehistórias carregadas de humor. Nas palavras de Carlos Heitor Cony, este paié um anti-herói.

Deste pai passo, imediatamente, para o Guido1 de “A vida é bela”,este pai criou controvérsias e, em alguns momentos, causou-me desconfor-to. Ele era precário demais, seus chistes eram uma maneira de tomar ooutro como objeto e ironizá-lo.

Estamos pouco habituados a ver no cinema o “politicamente incorre-to”. O mocinho sempre salva a mocinha, o pai sempre protege seu filho edemonstra seu amor dentro daquilo que é esperado para o “bom desenvolvi-mento de uma criança”. A morte, a prisão, a infelicidade, ou o arrependimen-

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1 Personagem interpretado por Roberto Begnini, no referido filme. (N. E.)

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chiste. Mas como nos coloca Freud: “Olha, aí tens esse mundo que te pare-cia tão perigoso! Não é mais que um jogo de crianças, bom apenas paratomá-lo como brinquedo.” Mostrar a existência como algo que não é impostosomente a nós, não diminui o trabalho que devemos realizar para sobreviver.

A dimensão que toma nossa tragédia individual pode nos levar a des-se modo, sim, rechaçar a realidade. O superego consolar o Eu através dohumor, protegendo-o do sofrimento, não contradiz, por isso, sua instânciapaterna, diz Freud, colocando, assim, o humor do lado paterno.

Poder rir de si mesmo, e das inevitáveis perdas e atrapalhadas só épossível se aprendermos que o sofrimento tem também um papel de benefí-cio primário, oferecido para solucionar os conflitos psíquicos (a fuga na enfer-midade que nos fala Freud) e, que sempre haverá uma realidade a qual pode-mos nos apegar para inviabilizar nossa existência. Existe, é claro, a durezada realidade externa – a guerra, o trauma e a miséria são exemplos dela. Daneurose de guerra e da neurose traumática Freud nos ensina, não diferenci-ando-as das neuroses de transferência; e, nas misérias, penso ser impossí-vel haver humor.

A realidade da qual Freud fala é a do simbólico e não a realidade datristeza e do sofrimento narcísico.

Essas questões devem ser levadas, também, para o cotidiano da prá-tica clínica. Minha surpresa ao constatar que, em uma de minhas análises,o analista não se compadecia da “trágica situação” que eu estava vivendo e,diante do relato da minha “inusitada e dolorosa experiência”, deu uma sonoragargalhada. Agradeço a brilhante pontuação. Até hoje eu estaria colada aolugar de vítima de minha própria neurose.

Zygouris5 falando-nos das práticas em psicanálise diz:“Se é necessário ter uma idéia do que é o enquadre analítico,do qual faz parte o tempo da sessão, este pode se transformarnuma camisa- de força, num empecilho ao encontro e desen-volvimento ao tempo subjetivo dos protagonistas. Para que ser-ve uma regra quando em vez de favorecer o advento da subjeti-vidade ela o dificulta? Falar, brincar, rir, tempera o aspecto aus-

e o amor. Estes pais sabem que a vida se ampara na esperança de sustentá-la e ensinam a seus filhos que a vida pode ser bela.

De “A vida é bela” deslizo para o cinema italiano de modo geral: “OCarteiro e o Poeta”, “Cinema Paradiso”, “Parente é serpente” e inúmerosoutros. Retratam a beleza de um simples carteiro, os sonhos de um menino,a verdade das relações familiares, sem heróis, sem bandidos, sem tragédi-as, apenas a beleza e a grandeza do pequeno, o outro lado da infelicidade.

Do povo se aprende: “Se a vida te der um limão, faz dele uma limona-da”. Pode esse enunciado nos levar a pensar em uma fragilidade superegóica?

O superego e a castração exige-nos o azedo do limão? Acredito quesó para aqueles muito inconformados com ela e que, por isso, não conse-guem aceitar que não somos filhos de “pais heróis”.

Freud4 diz que o chiste representaria uma contribuição ao cômico,oferecida pelo inconsciente, e o humor viria a ser a contribuição ao cômicomediada pelo superego. Embora o superego seja conhecido como um seve-ro amo, ele facilitaria ao Eu um pequeno gozo. O prazer humorístico jamaisalcançaria a intensidade do que se origina no cômico ou no chiste, e nuncase expressa em riso franco; também é certo que o superego ao provocaruma atitude humorística, no fundo, rechaça a realidade e põe-se a serviço deuma ilusão. Mas, continua Freud, não sabemos porquê, atribuímos alto valorà este prazer pouco intenso, que é sentido por nós como libertador e exaltante.Eu, se pudesse, humildemente perguntaria a Freud: Qual é a realidade?

Há sofrimentos que não têm como serem evitados: a dependência dooutro, a inevitabilidade da morte, nossa incompletude, a solidão inerente dacondição humana e a impossibilidade de dizer tudo, mas se o humor forpossível, se é forçado a sair do sofrimento narcísico .

Não se trata de um imperativo de felicidade ou de busca incansável dogozo, nem de denegar a castração, minimizando seus efeitos pela via do

3 FREUD, Sigmund. El Humor. (1927-1928) In: _____. Obras Completas . Madrid: Nueva,1973.

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RESENHA

O QUE É ESTÉTICA?

JIMENEZ, Marc. O que é estética. São Leopoldo: UNISINOS,1999. 413 p.

Logo ao nascer, a estética já não estariamorta? Não teria ela deixado à posterida-de apenas seu nome de batismo? Deverá

a estética assumir uma função política? Que so-luções propor à deliqüescência dos critérios es-téticos? Devem ser restaurados os critérios an-tigos, deve-se substituir a obrigação de julgar ede avaliar pelo imediatismo e pela espontanei-dade do prazer estético, ou procurar novos cri-térios? Quais são os critérios dos critérios?

Para responder a estas e a outras questões, o filósofo francês MarcJimenez recorre, no livro “O que é estética?”, a uma narrativa genérica,multifocalizada, ainda que bastante didática, pendulando entre episódios dahistória e da filosofia, com significativas passagens pelo Marxismo e pelaPsicanálise.

O livro, cuja questão principal baseia-se na estreita relação entre odesenvolvimento da estética e o do pensamento artístico, é dividido em qua-tro partes: a autonomia estética, heteronomia da arte, as rupturas, e asguinadas do século vinte. Marc Jimenez acaba por defender a significativacontribuição da disciplina Estética, na contemporaneidade, como instânciacapaz de reativar a capacidade de julgamento do público, perdida pela su-cessão dos impactantes acontecimentos artísticos, históricos e sociaisdas últimas décadas.

Segundo o autor, a fundação da Estética como disciplina autônomafoi o resultado de um longo processo de emancipação que, pelo menos noOcidente, concerne ao conjunto da atividade espiritual, intelectual, filosóficae artística, sobretudo a partir da Renascença. A data de 1750, tradicional-mente apontada como a da criação da Estética pelo filósofo alemão Baum-5 ZYGOURIS, Radmila. Ah! As belas lições! São Paulo: Escuta,1995.

tero da tarefa sem, no entanto, tirar-lhe a seriedade. A referên-cia ao mito edípico não impede de rir, e o trágico não é obriga-tório.”

Atravessar o fantasma, reconhecer-se como mortal e finito é dolorosoo suficiente, sem que nisso precisemos acrescentar nenhum tempero desadismo ou masoquismo. O analista “morto” não está putrificado, não preci-sa portanto cheirar.

Voltando a Freud, o superego pode consolar o ego com o humor, semperder sua instância paterna.

Além disso, a vida pode ser bela, e, mais que uma tragédia, é umaopereta, onde os atores devem ter a medida exata de seus papéis, para nãosuporem que o show termina quando eles saem de cena.

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RESENHA RESENHA

somente no interior desta esfera estética por excelência, o julgamento dogosto, individual, subjetivo, pode ser exercido livremente, sem ter de justifi-car-se junto a instâncias “superiores”, como a teologia, a metafísica, a ciên-cia ou a ética.

Houve, pois, uma remodelagem completa dos problemas da estética(relações entre a arte e a natureza, papel da imitação nas belas-artes, papelintermediário da arte entre o conhecimento e a moral) e, embora a Estéticatenha tido vida efêmera como “ciência do belo”, renasceu, portanto, plena-mente, como discurso filosófico específico.

No início do séc. XIX, a estética filosófica apresentava um balançobastante definitivo em relação às antigas teorias da arte, que se sucederamdesde a estruturação da filosofia clássica grega. Mas, caberia ao séc. XX,diante do impacto da multiplicação da obra de arte e sua simultânea apre-sentação a um público de proporções antes impensáveis, refletir sobre odeclínio progressivo da “aura” do objeto artístico único, em proveito do au-mento de um valor de troca, que o torna negociável como qualquer bem deconsumo (Walter Benjamin).

Uma outra questão impõe-se: as novas técnicas de reprodução, comoa fotografia e o cinema, que tendem a se tornar independentes e atraem parasi um público cada vez mais vasto, não poderiam despertá-las contra a sub-missão? A resposta filosófica logo aparece: assustadora é a desproporçãoentre o enorme potencial de libertação que representam os progressos cien-tíficos, técnicos e industriais; e a manutenção de controles e de repressõesque obrigam o indivíduo a refrear seus desejos e suas pulsões para sublimá-los em força de trabalho (Herbert Marcuse).

Para completar a perplexidade dos filósofos diante de um emergente“turismo cultural”, com direito a disputadas excursões a museus e comprade “souvenirs”, surge a dúvida sobre a intensidade e a autenticidade das“experiências estéticas” e sobre sua capacidade de modificar ou, pelo me-nos, enriquecer a vida cotidiana. Começava a ser forjada a expressão, hojecorriqueira, “indústria cultural”, para designar o aparecimento de uma culturaestandartizada, condicionada e comercializada segundo os modelos de bens

gartem, seria apenas mais um, dentre tantos outros, dos acontecimentossignificativos na construção deste campo específico de reflexão filosófica.

No séc. XVI, a polêmica questão sobre “quem pode criar”, cuja res-posta teria necessitado, em outras circunstâncias, de um aporte teológico,parecia resolvida: o artista, ele próprio, cria. Todavia, uma interrogação sub-sistia: que forças o impelem para a criação, o incitam para a inovação? Seráa razão, a sensibilidade, ou o sentimento?

Mas a partir da metade do séc. XVII, surgiria a suspeita de que arazão não é una, absoluta, e de que não constitui fonte exclusiva de conhe-cimento. No sentido inverso, começava-se a suspeitar que o sentimento e asensibilidade não fossem totalmente enganosos. Apenas três decêniosantes que o termo estética viesse a designar uma disciplina autônoma, nadapermitia prever a emergência de um discurso específico, coerente, com umaterminologia segura. O próprio significado do termo “arte” não estava aindabem definido.

Ainda não estavam reunidas as condições para elaboração de umafilosofia da arte sob a forma de uma disciplina positiva e autônoma. Entretan-to, se um discurso estético era possível, ele deveria ser constituído sobreuma base de conceitos, de noções e de categorias relativamente confiáveise estáveis. Era preciso encontrar a distância correta entre uma razão, quenão avançasse no terreno da sensibilidade; e uma esfera do sensível, quenão afundasse no irracional.

Diferentemente daquela razão matemática e lógica, o ponto de con-cordância estaria em uma outra razão, adaptada ao seu novo objeto: a razãoestética ou razão poética. Ela poderia ser um intermediário entre a razão e aimaginação, entre o entendimento e a sensibilidade. E, finalmente, caberiaao indivíduo – ao sujeito –, realizar, de alguma maneira, a adequação entreas faculdades, de um lado, por ser o autor da experiência estética; e, deoutro, porque cabe a ele pronunciar-se sobre o que sente. Cabe a ele emitirum julgamento de gosto (Immanuel Kant).

Ora, se nenhuma estética filosófica poderia ter nascido sem a consti-tuição de idéias de criação autônoma e de sujeito criador, conclui-se que,

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AGENDA

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Dia Hora Local Atividade03, 1017 e 2405, 1219 e 260606 e 2007081010 e 2413 e 27

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Seminário “A técnica psicanalítica”- Respon-sável: José Luiz CaonSeminário “O método psicanalítico”- Respon-sável: José Luiz CaonReunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão de BibliotecaCartel do InteriorJornada de Abertura - A clínica psicanalíticaReunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Comissão do Correio da APPOACartel Preparatório do Relendo Freud e Con-versando sobre a APPOASeminário “A topologia fundamental deJacques Lacan” - Responsável: Ligia VíctoraSeminário “Teoria e clínica psicanalítica daadolescência” - Responsável: RodolphoRuffinoReunião da Comissão da Home PageSeminário “O trabalho das passagens...” -Responsáveis: Ana Maria da Costa, Edsonde Sousa e Lucia Serrano PereiraReunião da Mesa Diretiva aberta aos mem-bros da APPOARelendo Freud - Análise Finita e Infinita

Sede da APPOA

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AGENDA

* Doutoranda em História, Teoria e Crítica das ArtesVisuais/ UFRGS

de consumo (Theodor Adorno/ Max Horkheimer). Sem dúvida, desapareci-am os critérios em que, tão seguramente, se haviam apoiado outrora a críti-ca de arte e a crítica estética para julgar e avaliar as obras de arte.

Numa versão não européia, o mesmo séc. XX assistiu à aproximaçãoentre a experiência científica e a experiência estética: a arte, como ciência,seria um sistema simbólico, uma “versão” do mundo, uma maneira de fabricá-lo (Nelson Goodman). Ou ainda: somente a interpretação permite explicar a“transfiguração” do objeto banal em obra de arte, que supõe um públicoinformado, conhecedor do ambiente da arte e que se deixa envolver por umaatmosfera de “teoria artística” (Arthur Danto). Assim, o iniciado, informadopelo mercado, pelas mídias, pelos profissionais, pelos conhecedores, peloscríticos oficiais, pode empreender a identificação do objeto e reconhecê-loeventualmente como “obra de arte”.

O desafio da filosofia da arte na virada do séc. XX / XXI, diz o autor,parece ser o de renunciar à sua ambição passada de constituir-se numateoria estética geral, que abrace o universo da sensibilidade, do imaginário eda criação. A reflexão filosófica mais recente sobre a arte dedica uma partede seus esforços a resolver a atualíssima tensão surgida entre uma “lógicacultural” e uma “lógica estética”, entre a aceitação passiva dos benefícios dosistema cultural e a vontade de legitimar a apreciação e os julgamentos aosquais estão expostas as obras.

Assim, a principal tarefa da estética consistiria, precisamente, emprestar extrema atenção nas obras a fim de perceber todas as relações queelas estabelecem com o mundo, com a história, com a atividade de umaépoca. Ela reataria, então, uma conhecida exigência kantiana, incrementadapelo reacendimento de um desejo eminentemente socializante (utópico?):abandonar a solidão da experiência particular, subjetiva, hermética, e expan-di-la ao maior número possível de indivíduos.

Neiva Maria Fonseca Bohns*

PRÓXIMO NÚMERO

“MOISÉS E O MONOTEÍSMO”

Page 32: EDITORIAL · a todo o objeto de reputação estética, coloca-o como espelho de tal forma ... um Editorial não podemos pretender, nele, esgotar o tema; mas, simples-

S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 6SEÇÃO TEMÁTICA 11POR UMA POÏANÁLISEPOR UMA POÏANÁLISERené PasseronRené Passeron 1212A MEMÓRIA DOS OBJETOSA MEMÓRIA DOS OBJETOSAna Maria Medeiros da CostaAna Maria Medeiros da Costa 1818CALIGRAFIAS DE UMA SUBTRAÇÃOCALIGRAFIAS DE UMA SUBTRAÇÃOEdson Luiz André de SousaEdson Luiz André de Sousa 2020DO DIREITO AO SEGREDO:DO DIREITO AO SEGREDO:PSICANÁLISE E ARTEPSICANÁLISE E ARTEJoão A. Fraize-PereiraJoão A. Fraize-Pereira 2424A VOZ QUE ME FALAA VOZ QUE ME FALALucy Linhares da FontouraLucy Linhares da Fontoura 2828A INSTALAÇÃO ENQUANTO LUGARA INSTALAÇÃO ENQUANTO LUGARE O LUGAR DO ESPECTADORE O LUGAR DO ESPECTADORElida TesslerElida Tessler 3333AS CRIANÇAS DO “READY MADE”AS CRIANÇAS DO “READY MADE”Alfredo JerusalinskyAlfredo Jerusalinsky 3737MEMÓRIA E INVENÇÕESMEMÓRIA E INVENÇÕESDO BRUXO DO COSME VELHODO BRUXO DO COSME VELHOLucia Serrano PereiraLucia Serrano Pereira 4040O ANTI-HAMLET?O ANTI-HAMLET?Roberto HarariRoberto Harari 4646SEÇÃO DEBATES 52HUMOR, A VIDA É BELA, OUHUMOR, A VIDA É BELA, OUTRIBUTO A UM PAITRIBUTO A UM PAIMaria Cristina Petrucci SoléMaria Cristina Petrucci Solé 5252RESENHA 57“O QUE É ESTÉTICA?”“O QUE É ESTÉTICA?” 57AGENDA 63

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 333 2140 - Fax: (51) 333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Ana Laura Giongo Viccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luzimar Stricher,

Marcia Helena Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 1999/2000

Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira2a. Vice-Presidência - Maria Ângela Brasil1o. Tesoureiro - Carlos Henrique Kessler2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes

1o. Secretário - Jaime Alberto Betts2a.Secretária - Marta Pedó

MESA DIRETIVAAna Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa, Ana Marta Goelzer Meira,

Cristian Giles, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Liz Nunes Ramos,

Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mario Fleig, Robson de Freitas Pereira, e Valéria Machado Rilho.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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N° 78N° 78 – ANO IX – ANO IX ABRILABRIL – 2000– 2000

PSICANÁLISE E ATO CRIATIVOPSICANÁLISE E ATO CRIATIVO