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Um Conjunto Urbanístico para a Belém Pombalina* Dra. Yara Felicidade de Souza Reis Universidade de São Paulo I. Introdução Em “Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil”, foram analisadas pioneira- mente algumas particularidades do urbanismo praticado no Brasil a partir da se- gunda metade do século XVIII e que, segundo seu autor, aparecem como resultado de uma produção, cuja principal expressão foram os sobrados padronizados volta- dos para o porto da cidade, que tinham dupla função, de residência e comércio. Esse padrão que encontrou similaridades em cidades como Belém, Rio de Janeiro, São Luis e Salvador, cujos conjuntos antecederam aos da Lisboa Pombalina, situa- va-se no âmbito de uma nova tipologia para a “casa comum”: casas de particulares relativamente simples, mas que adquirem um caráter monumental quando obser- vadas em conjunto, dando a impressão para o observador de se tratar de um único prédio em cada quadra. Essas edificações obedeciam a um projeto comum e desti- navam-se a um segmento social cuja atividade principal era o comércio . No ano de 75, a cidade de Belém passa a ser a sede do governo do Grão Pará e Maranhão , tornando-se parte de um projeto político, que gerou um tipo de * Este artigo é resultado de pesquisa para minha tese de doutorado, defendida em 005, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, intitulada Urbanismo em Belém na segunda metade do século XVIII, que contou com apoio financeiro da Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP, com pesquisa financiada pela CAPES - Co- ordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Pós doutoranda pela FAUSP, com pesquisa financiada pela FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. REIS, Nestor Goulart. Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil in: ÁVILA, Affonso (org.). Revista Barroco. Barroco: Teoria e Análise. São Paulo: Ed. Perspectiva, 997. Este trabalho foi apresentado no II Congresso do Barroco, realizado na Cidade de Ouro Preto, em 989. Idem, Ibidem, p. . A Capitania do Pará esteve subordinada ao Governo Geral desde a sua fundação, em 66. Esse quadro mudará em 6, quando ocorre uma nova divisão do Brasil. Com adminis-

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Um Conjunto Urbanístico para a Belém Pombalina*

Dra. Yara Felicidade de Souza Reis �

Universidade de São Paulo

I. Introdução

Em “Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil”,� foram analisadas pioneira-mente algumas particularidades do urbanismo praticado no Brasil a partir da se-gunda metade do século XVIII e que, segundo seu autor, aparecem como resultado de uma produção, cuja principal expressão foram os sobrados padronizados volta-dos para o porto da cidade, que tinham dupla função, de residência e comércio. Esse padrão que encontrou similaridades em cidades como Belém, Rio de Janeiro, São Luis e Salvador, cujos conjuntos antecederam aos da Lisboa Pombalina, situa-va-se no âmbito de uma nova tipologia para a “casa comum”: casas de particulares relativamente simples, mas que adquirem um caráter monumental quando obser-vadas em conjunto, dando a impressão para o observador de se tratar de um único prédio em cada quadra. Essas edificações obedeciam a um projeto comum e desti-navam-se a um segmento social cuja atividade principal era o comércio�.

No ano de �75�, a cidade de Belém passa a ser a sede do governo do Grão Pará e Maranhão�, tornando-se parte de um projeto político, que gerou um tipo de

* Este artigo é resultado de pesquisa para minha tese de doutorado, defendida em �005, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, intitulada Urbanismo em Belém na segunda metade do século XVIII, que contou com apoio financeiro da Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

� Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP, com pesquisa financiada pela CAPES - Co-ordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Pós doutoranda pela FAUSP, com pesquisa financiada pela FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.� REIS, Nestor Goulart. Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil in: ÁVILA, Affonso (org.). Revista Barroco. Barroco: Teoria e Análise. São Paulo: Ed. Perspectiva, �997. Este trabalho foi apresentado no II Congresso do Barroco, realizado na Cidade de Ouro Preto, em �989.� Idem, Ibidem, p. ���. � A Capitania do Pará esteve subordinada ao Governo Geral desde a sua fundação, em �6�6. Esse quadro mudará em �6��, quando ocorre uma nova divisão do Brasil. Com adminis-

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investimento urbanístico com características inovadoras, apresentando um amadu-recimento no universo do conhecimento técnico, colocado em prática através de novos conceitos e formas. Esse investimento foi capaz de direcionar projetos de grande envergadura, possibilitando assim a criação de um cenário urbanísti-co que englobava a cidade como um todo. Seu caráter transformador manifes-tou-se entre outros aspectos através da articulação do “conjunto urbanístico”5, formado pela “casa-comum”, as edificações públicas e religiosas; as praças, hor-tos, jardins e os eixos viários6.

Nossa abordagem focaliza às edificações com características de padroniza-ção, que começaram a ser erguidas na cidade em princípios da segunda metade do século XVIII formando à frente do porto, uma espécie de fachada para a cidade. Tanto quanto a arquitetura de igrejas e palácios, tinha monumentalidade, embora esta não correspondesse a obras isoladas mas a um conjunto de obras.

Verificaremos em parte a amplitude dessa ação em Belém, ou seja, como essa política urbanizadora se aplicou na cidade e o modo concreto como foi constituído o cenário urbano pelos engenheiros militares presentes na cidade.

II. Desdobramentos da política pombalina na Amazônia

A cidade de Belém, fundada em �6�6, foi transformada, na segunda metade de setecentos, em sede do governo do norte e referência urbana para o empreendi-mento orquestrado pelo Ministro de D. José I, o futuro Marquês de Pombal (�750 – �777) na Amazônia. Tornou-se o mais importante centro regional e cabeça do comércio com as minas do centro-oeste. Como portadora da prática urbanística pombalina, foi palco de uma experiência sem precedentes, obedecendo a um pla-

tração separada do Governo Geral, sediado em Salvador, criou-se o Estado do Maranhão (com sede em São Luis), compreendendo essa capitania também o Ceará e o Pará, que ficariam desli-gados de qualquer subordinação ao Brasil. A Amazônia integrava esse Estado. Em �65� dividiu-se o norte brasileiro em duas capitanias distintas, a do Grão Pará e do Maranhão, permanecendo assim até �65�, quando se torna o Estado do Maranhão e Grão Pará, com sede em São Luis. O Grão Pará fica independente do maranhão pela decisão régia de �9 de abril de �75�.5 O conceito de “conjuntos urbanísticos” foi utilizado por Nestor Goulart Reis, que o entende como “conjuntos urbanos com planos urbanísticos que englobavam os projetos arquitetônicos. Esses conjuntos urbanísticos envolvem construções diversas (arquitetura religiosa, edifícios pú-blicos e privados) que juntos formam um todo monumental e servem de cenário urbano que confere identidade à cidade”. REIS, Nestor Goulart. Texto inédito em obra a ser publicada.Ver referência sobre “conjuntos urbanos” em REIS, Nestor Goulart. Notas Sobre o Urbanismo Barro-co no Brasil. In: ÁVILA, Affonso (org). Revista Barroco. Barroco: Teoria e Análise.. Op. cit. 6 REIS, Yara Felicidade de Souza. Urbanismo em Belém na segunda metade do século XVIII. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo: �005.

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nejamento detalhado, cumprido por engenheiros militares que, com seus planos urbanísticos, vinham comprovar a excelente formação profissional que possuíam.

A importância que a cidade de Belém passa a ter após a ascensão de D. José I pode ser entendida como um desdobramento de acontecimentos ligados a questões de or-dem diversa. No âmbito político e estratégico, estes acontecimentos relacionavam-se ao Tratado de Madri, prioridade inconteste da administração pombalina7; no âmbito econômico, à decadência da produção aurífera nas regiões mineradoras e a conse-qüente criação da Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão8. Aliada a estas questões estava a ação urbanizadora pombalina, geralmente identificada com planos que se materializavam indo do geral ao particular: um projeto em larga escala. Plane-java-se desde a montagem de uma estrutura comercial abrangente, passando pela construção de núcleos inteiros ou regulamentando-os seguindo critérios precisos, fun-damentados nos ensinamentos difundidos pela “escola de urbanismo português”. Era uma ação onde vigoravam valores de uma tradição urbanística que vinha sendo apri-morada desde os primeiros tempos da expansão ultramarina.

A ação urbanizadora protagonizada pelo Marques de Pombal na Amazônia é reconhecida como resultado da utilização dos métodos difundidos pela “escola de urbanismo português”, que deu origem ao “urbanismo pombalino”. A aplicação e divulgação desse urbanismo foram executadas pelos técnicos da Comissão Demarca-dora, que imprimiram sua marca nas vilas e cidades da Amazônia do século XVIII.9

Renata Araújo quando utilizou em sua obra os conceitos de “escola de engenharia militar portuguesa” ou “escola de urbanismo português”, fez a seguinte advertência:

(...) estas expressões não pretendem significar uma vertente necessariamente original e exportável da engenharia ou do urbanismo português, com relação ao dos outros povos. A noção de ‘escola‘ é usada tão somente no sentido de esclarecer um processo, que tem as suas características específicas e que,

7 São delineadas preliminarmente as divisórias entre possessões das coras portuguesa e espanhola, no Tratado de Madri de �750, e fixadas, mais tarde, pelo Tratado de Santo Ildefonso em �777.8 Especificamente sobre a Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão, ver o traba-lho de DIAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão Pará, Belém: Ed. UFPa., �970. V. I, p.�/ V. II, p. 55. Para este autor, foi durante a administração pombalina que teve início o cultivo racional de plantas. Plantou-se, de acordo com o incentivo oficial, cravo canela, castanha, cacau. O estabelecimento da Companhia de Comércio do Gão Pará e Maranhão, em �755, geraria a ocupação e utilização econômica das capitanias do Norte do Brasil. Sua montagem permitiu ao Estado do Grão Pará uma integração com a economia mundial da segunda metade do século XVIII. A navegação entre Belém, São Luiz e Lisboa se desenvolve-ria no bojo da necessidade de ligar a Europa às regiões coloniais, fornecedoras de produtos tropicais mercantilizáveis.9 ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazónia no século XVIII. Belém, Macapá e Maza-gão. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Univer-sidade Nova de Lisboa. Lisboa: �99�, pp. ��7-��8. Esta dissertação foi publicada no ano de �998 pela FAUP Publicações -Faculdade de Arquitetura do Porto da Universidade do Porto – Portugal.

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acima de tudo, se serve de um método de divulgação ‘escolar’, no sentido que se fundamenta em ‘aulas‘ e que implica numa passagem do conhecimen-to de mestres a discípulos, que se multiplicam no tempo e no espaço.�0

A fixação das fronteiras entre Espanha e Portugal ficou diplomaticamente acor-dada no Tratado de Madri de �750. As negociações luso-espanholas estabeleceram, de antemão, duas comissões conjuntas para reconhecimento territorial. Para coorde-nar a Comissão do Sul, Portugal nomeou Gomes Freire de Andrade, então governa-dor do Rio de Janeiro e das capitanias do Sul. Para a Comissão do Norte e da bacia amazônica, Pombal enviou seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que acumulava a função de governador do Estado do Grão Pará e Maranhão.

Sob determinação da coroa portuguesa, foi enviada à Amazônia a Comissão Demarcadora dos Limites, composta por técnicos portugueses e estrangeiros, que lá chegaram em �75� para defender os interesses da metrópole. Nesse quadro de profissionais estavam incluídos astrônomos, naturalistas, geógrafos e capitães enge-nheiros.

III. Belém, a sede do poder

Em �� de setembro de �75�, Belém se torna a capital do Estado do Grão Pará e Maranhão - anteriormente denominado de Maranhão e Grão Pará, com capital em São Luis. O marco que inaugura essa passagem para a nova fase admistrativa, foi a chegada do novo governador do Estado, Francisco Xavier de Mendonça Fur-tado, irmão de Pombal.

Renata Araújo analisou a situação da evolução urbana de Belém no contexto da estrutura de poder que lhe conferiu a posição de capital do Estado. O poder, que se faria representar no espaço da cidade, foi identificado pela autora como aquele que se formara a partir do “quadro das disputas entre o Estado e os missionários”. O conjunto de reformas proposto pela administração pombalina, que incluía a criação da Compa-nhia do Comércio e a Lei da Liberdade dos índios (�755), vinha anular as “forças de oposição“ ao seu governo��. Essa disputa foi gerada pela posse de terrenos situados atrás do colégio dos Jesuítas, zona principal do núcleo urbano e, portanto, de localiza-ção privilegiada e carregada de predicados simbólicos ligados ao poder. Era o espaço urbano servindo de “palco de representação das tensões sociopolíticas da cidade”. Ainda no entender de Araújo, esse conflito - que existia “para além do campo espa-cial“- ao contestar espaços (terrenos), num espaço de representação de poder, traduz uma disputa de poder (ou ao menos de representação de poder)��.

�0 Idem, ibdem, p.�� e ��7. �� Idem, Ibidem, p. ��7. �� Idem, ibidem, p. ��9. Ver sobre esta questão, Parte II, capítulo IV dessa Obra.

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Com as novas responsabilidades do governo e o crescente peso político das questões referentes ao controle do território, instala-se em Belém uma “Aula de Arquitetura Militar”. Sob a responsabilidade dos engenheiros Custódio Pereira e José Velho de Azevedo havia sido instalada no ano de �699 uma Aula no Mara-nhão, contemporaneamente à da Bahia (�696), à do Rio de Janeiro (�698) e à de Recife (�70�). Mais tarde, já com a nova divisão administrativa da região - no Esta-do do Grão Pará e Maranhão - ocorre a sua “recriação”, em Belém, no ano de �758, reativada pelo empenho de Mendonça Furtado no quadro das mudanças pombalinas. Como um braço do conjunto formativo da engenharia portuguesa, a Aula na Amazônia é responsável pela formação teórica e prática dos engenheiros na condução das ações de conhecimento e defesa do espaço colonizado��.

Trabalhavam no Pará, entre �667 e �706, durante o reinado de D. Pedro II, incluin-do Custódio Pereira e José Velho de Azevedo, 0� engenheiros. À época de D. João V (�706 - �750) eram apenas dois. O quadro de engenheiros militares que atuou na região norte durante o reinado de D. José I é extenso. Somente no Pará, trabalharam em torno de �� engenheiros, a maioria originária de Portugal e da Itália. Esse número cai para 09 durante o reinado de D. Maria I entre �777 e �8�6, sendo que entre �8�6 e �8��, apenas Hugo Fournier de la Clair, engenheiro de origem francesa, esteve sediado no Pará��.

As intervenções urbanísticas realizadas na cidade comprovam o elevado estágio de capacitação técnica do quadro de engenheiros militares que foi posto a serviço da montagem de um cenário urbano, como representação do poder da metrópole. Des-ses profissionais o mais notável foi o arquiteto bolonhês Antônio Landi, que chegou ao Pará como membro da expedição para Demarcação dos Limites. Entre as obras públicas que desenhou estão a Planta do Armazém de Armas no Colégio dos Jesuítas (�76�), o Palácio dos Governadores (�767-�77�) ( ver fig. � ) e as Frontarias da Casa da Administração da Companhia Geral do Grão Pará (�77�). Entretanto, sua contri-buição profissional não parou aí, estendendo-se também aos edifícios religiosos e residências particulares. Landi foi responsável pela maioria dos projetos realizados em Belém, desde sua chegada até sua morte em �79�.

IV. O Conjunto Urbanístico Pombalino

A definição da imagem da cidade, identificada com o poder, contou com solu-ções que vieram também das “casas comuns”- sobrados com dupla função de residên-cia e comércio -, a partir das relações que esta arquitetura e sua interação com os espa-

�� Idem, ibidem, p. ��� e pp. �95-�97. �� BUENO, Beatriz S. Desenho e Desígnio: O Brasil dos Engenheiros Militares. op. cit, v. I. Ver Anexo I - Tabela dos Engenheiros Militares Atuantes no Brasil entre �500-�8��, páginas s/ numeração. A autora contabilizou por estado o número de engenheiros militares presentes no Brasil Colônia. A referência que fazemos ao local onde cada engenheiro ficou sediado corresponde às informações contidas nessa tabela.

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ços em seu entorno, assumiram com o espaço urbano como um todo, ou seja, com as praças, ruas, jardins, eixos viários, construções particulares, públicas e religiosas.�5

No período colonial, sobrados e casas térreas eram os principais tipos de ha-bitação. A diferença entre ambos ia além de aspectos técnicos, definindo também as relações entre o habitar e os estratos sociais. Os mais ricos, habitavam os sobra-dos, assoalhados; as casas térreas, feitas de ‘chão batido’, essas, destinavam-se às camadas mais pobres. Os pavimentos térreos dos sobrados não eram ocupados pelas famílias dos proprietários. Quando não eram utilizados como lojas, serviam para acomodar escravos e animais, ou então ficavam vazios.�6

Com a criação da Companhia do Comércio do Grão Pará e Maranhão e a cons-trução de um estaleiro em Belém no ano de �76� se torna mais intenso o tráfico de embarcações na cidade. Com pontes e ancoradouros, ainda que modestos, o porto vinha se estabelecendo para dar vazão ao fluxo comercial mantido com regiões próxi-mas e com a metrópole. Pode-se inferir que a operação comercial, gerada pela Com-panhia, acabou favorecendo o aparecimento de uma classe de comerciantes, que preferencialmente se instalou ao longo do litoral, para exercer seu comércio, cons-truindo um cenário urbano que assumiu característica de monumentalidade.

Através da interpretação e análise das plantas e gravuras da segunda metade do século XVIII e início do século XIX foi possível esclarecer algumas questões sobre os conjuntos de sobrados erguidos na rua cujo nome primitivo foi Rua da Praia e como o próprio nome indica, ficava de frente para o porto da cidade. Acreditamos que esta rua foi, ao menos em fins do século XVIII e início do sécu-lo XIX, a mais importante da cidade. Sua localização privilegiada – de frente para a Baía do Guajará –, as construções que nela foram levantadas e o número de desenhos e gravuras executados nesse período, focalizando esse trecho da cida-de, são indicativos de sua importância.

O comércio exercido tradicionalmente na Rua dos Mercadores – situada atrás da Rua da Praia e um dos principais eixos viários da cidade nos primeiros séculos - foi mantido durante o século XVI e XVII e nos séculos seguintes, mas a rua deixou de ocupar o lugar de único eixo comercial importante da cidade, cedendo espaço para a rua situada a sua frente.

A Rua da Praia, situada entre a Travessa das Mercês e a Travessa que já se chamou da Companhia, e que atualmente é a Avenida Portugal, vai se tornando, a partir da primeira metade do século XVIII, um eixo viário de fluxo e movimento, dada sua localização à beira do porto e sua condição de um novo local para o exercício comercial. As construções que vão sendo erguidas na rua passam a ocu-par a dupla função de residência e local de trabalho e começam a ganhar seus

�5 REIS, Yara Felicidade de Souza. Urbanismo em Belém na segunda metade do século XVIII. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo: �005. �6 REIS, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, �987, p.�8.

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espaços enquanto expressão de poder de um crescente segmento social identifica-do com o comércio. A instalação destas edificações procede deste poder, e a ar-quitetura é organizada para formar, perante os espaços públicos, um cenário urba-no; um cenário de frente para o porto. Essa era a forma de lhe dar visibilidade.

A atual Rua �5 de Novembro era chamada Rua da Praia e, até �8�0, só tinha edificações ao lado oriental�7. Nela foi construído um conjunto de prédios padro-nizados: sobrados de dois pavimentos, seguindo a mesma altura, mesmos tipos de janelas, portas e telhados. As janelas possuíam a mesma altura e balcões semelhan-tes, o que reforça a imagem de que estamos diante de um conjunto homogêneo construído como se tratasse de uma fachada única e contínua. As janelas estavam situadas quase todas no andar superior; no andar térreo ficavam as portas. A partir da segunda metade do século XIX tem início o aterramento da área situada à sua frente�8, erguendo-se na nova faixa de terra conquistada ao litoral edificações que vão deixando para trás os antigos sobrados do século XVIII.

Numa gravura, feita aproximadamente em �800 (ver fig. �), (observando da esquerda para a direita) pode-se ver o trecho do porto situado entre o Convento e a Igreja das Mercês, no Bairro da Campina, até as imediações do Forte do Presépio ou Santo Cristo, situado no núcleo mais antigo da cidade, o Bairro da Cidade. A esquerda, o Convento e Igreja das Mercês, com o Forte de São Pedro Nolasco à frente. Em posição mediana, entre o convento e Forte do Presépio, encontra-se a Praça do Pelourinho fazendo parte do conjunto, numa construção semi circular abrindo-se para os sobrados padronizados e com acesso ao rio pela parte posterior. A abertura para o rio é a continuação do eixo da Rua do Pelourinho, atual 7 de setembro. À direita, ao fundo, a Praça e o Palacio dos Governadores.

A Rua da Praia aparece em toda sua extensão, com suas cinco quadras, cujas dimensões dos lotes deviam ser maiores na largura (frente para a Rua da Praia) do que em profundidade.

Este cenário que começou a ser constituído em fins da primeira metade do século XVIII teria provavelmente, ao término da fase pombalina, quatro quadras de sobrados padronizados, com o mesmo número de andares, telhados iguais e bal-cões na janelas. A exceção à uniformidade ocorria por conta de alguns detalhes construtivos.

Muito provavelmente já estaria concluído em fins da fase pombalina todo o conjunto de prédios de frente para o rio, composto de dois pavimentos com facha-das uniformes e que, nos últimos anos do século XVIII e princípios do século XIX, começaria a ser articulado com eixos viários, praças, jardins e igrejas. As praças

�7 PENTEADO. Antonio da Rocha. Belém – Estudo de Geografia Urbana. V.I, Belém: U. F. Pa, p.�06. �8 Existiu em Porto Alegre uma Rua da Praia, atual Rua dos Andradas. À sua frente, como em Belém, foram feitos aterros e construídos outros prédios. Sobre o assunto ver a publicação: Instrução para tombamento dos conjuntos urbanos da Praça da Matriz e da Alfândega. Porto Alegre: Governo do Estado do Rio Grande do Sul, �000.

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recém construídas, como a dos Quartéis, do Palácio e do Pelourinho, cumpririam papéis relevantes na malha urbana, criando articulações entre si e com a linha viá-ria, referenciando eixos de expansão da cidade. A Praça do Pelourinho (ver fig. �) situava-se às margens do rio, abrindo-se na sua forma semicircular para os sobra-dos com características de monumentalidade a sua frente. Lembremos que esta mesma praça ligava-se à Praça dos Quartéis, através da Rua do Pelourinho. Todo este conjunto estabelecia relações com o espaço ao seu entorno.

A Praça do Palácio e sua edificação (ver fig. �), embora recuadas da linha do lito-ral, estavam voltadas para ele e formavam, juntamente com os sobrados da Rua da Praia e outras construções estabelecidas neste eixo, um cenário para ser visto por quem chegava à cidade. Numa clara alusão aos poderes militar, eclesiástico e de uma classe social que se voltava para o comércio encontravam-se o Forte do Presépio e o Forte de São Pedro Nolasco, a Igreja e Convento das Mercês, a Praça do Pelourinho, o Palácio dos Governadores e as construções dos sobrados erguidos na Rua da Praia.

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Figura �: Prospectos: frontal (abaixo) e posterior (acima) do Palácio dos Governadores. Au-tor: J. J. Codina. Fonte: “Viagem Filosófica” est. �8 e �9. Apud. ARAÚJO, Renata Malcher de. As Cidades da Amazónia no Século XVIII: Belém, Macapá e Maza-gão. Porto: FAUP, �998, p.���.

Figura �: “Prospectiva da Cidade de S. ta. Maria de Belém do Grão Pará”. Fonte: Original manuscrito, de Ignácio Antonio da Silva, do Serviço Geográfico do Exército. Rio de Janeiro. (ca. �800). Apud. REIS. Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Imprensa Oficial. �000, p. �7�,�7�,�7�.

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��86 - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

Figura �: “Prospecto da nova Praça do Pelourinho mandado fazer pelo gov. e cap. general D. Francisco de Souza Coutinho”. autor: J.J. Codina. Fonte: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. “Viagem Filosófica... �78� - �79�”. Op. cit. Original do arquivo Público do Pará.

Figura �: Antigo Largo do Palácio. Ao fundo, à direita, o Palácio do Governo. Cartão Postal do início do século XX. Fonte: Álbum Belém da Saudade. Op. cit. p. ���.