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 Trans/Form/Ação, São Paulo, 28(2): 149-160, 2005 149 CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E HERMENÊUTICA: CONSIDERAÇÕES DE GADAMER ACERCA DA TEORIA DA HISTÓRIA DE DILTHEY 1 Evandro Oliveira de Brito 2 RESUMO: O propósito deste artigo é explicitar o modo como Gadamer reformula a hermenêutica diltheiana (desenvolvida sobre o conceito moderno de vida utili- zado como fundamento da noção de auto-consciência histórica) , ao formular um novo modo de compreender a razão e a existência humanas, tomando como pon- to de partida a experiência concreta da finitude da vida humana. PALAVRAS-CHAVE: hermenêutica, consciência histórica, verdade, finitude. Introdução As considerações preliminares apresentadas por Gadamer na segunda parte de seu livro Verdade e método  mostram claramente a discrepância nos propósitos de Gadamer e Dilthey para com a hermenêutica. 3  Dilthey segue os passos de Schleiermacher ao radicalizar a tentativa de liberar a compre- ensão histórica de todos os pressupostos dogmáticos e, como conseqüência, fundamenta a autoconsciência histórica na  vida. Gadamer, por sua vez, as- sume a tarefa de refazer o caminho aberto por Dilthey com o intuito de ex- plicitar um novo modo de compreender a razão e a existência humanas, to- mando como ponto de partida a experiência concreta dos homens e sua finitude. Neste sentido, a segunda parte da obra Verdade e método (A ex- tensão da compreensão da verdade à compreensão nas ciências do espírito) apresenta o fundamento da possibilidade da “liberação da verdade a partir 1 Artigo recebido em 02 /2205; aprovado para p ublicaçã o em 06/2005. 2 Professor da UDESC e doutora ndo em filosofia pela PUC- SP; evandrobritobr@yahoo.co m.br 3 Gadamer, Verdade e método, p. 273.

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  • Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005 149

    CONSCINCIA HISTRICA E HERMENUTICA: CONSIDERAES DE GADAMER ACERCA DA TEORIA

    DA HISTRIA DE DILTHEY1

    Evandro Oliveira de Brito2

    RESUMO: O propsito deste artigo explicitar o modo como Gadamer reformulaa hermenutica diltheiana (desenvolvida sobre o conceito moderno de vida utili-zado como fundamento da noo de auto-conscincia histrica), ao formular umnovo modo de compreender a razo e a existncia humanas, tomando como pon-to de partida a experincia concreta da finitude da vida humana.

    PALAVRAS-CHAVE: hermenutica, conscincia histrica, verdade, finitude.

    Introduo

    As consideraes preliminares apresentadas por Gadamer na segundaparte de seu livro Verdade e mtodo mostram claramente a discrepncia nospropsitos de Gadamer e Dilthey para com a hermenutica.3 Dilthey segueos passos de Schleiermacher ao radicalizar a tentativa de liberar a compre-enso histrica de todos os pressupostos dogmticos e, como conseqncia,fundamenta a autoconscincia histrica na vida. Gadamer, por sua vez, as-sume a tarefa de refazer o caminho aberto por Dilthey com o intuito de ex-plicitar um novo modo de compreender a razo e a existncia humanas, to-mando como ponto de partida a experincia concreta dos homens e suafinitude. Neste sentido, a segunda parte da obra Verdade e mtodo (A ex-tenso da compreenso da verdade compreenso nas cincias do esprito)apresenta o fundamento da possibilidade da liberao da verdade a partir

    1 Artigo recebido em 02/2205; aprovado para publicao em 06/2005.2 Professor da UDESC e doutorando em filosofia pela PUC-SP; [email protected] 3 Gadamer, Verdade e mtodo, p. 273.

  • da experincia da arte, proposta na primeira parte da obra. Em outras pala-vras, o propsito de Gadamer , por um lado, mostrar que h uma tradio150 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005

    histrica de liberao da verdade que no se restringe ao modelo estabele-cido pelas cincias da natureza, e por outro lado, afirmar que a hermenuti-ca tem como meta levar a cabo a realizao desta tarefa, segundo o modeloque ele mesmo sugere: o palmilhar o desenvolvimento do mtodo herme-nutico na idade moderna, que desemboca na conscincia histrica.4

    A discrepncia entre Gadamer e Dilthey, portanto, pode ser entendida luz das consideraes de Gadamer acerca dos limites e das inconsistn-cias na prpria teoria da histria de Dilthey. Mas, de modo mais preciso, aanlise de Gadamer expe os pontos fracos da proposta de Dilthey justa-mente no modo como este se apropria da hermenutica para estabelecer acorrespondncia entre os conceitos de vida e conscincia histrica.

    No temos como objetivo explicitar, no presente texto, o modo comoGadamer reformula e estabelece efetivamente a hermenutica. Deter-nos-emos apenas em alguns pontos fundamentais da anlise gadameriana acer-ca da conscincia histrica. Assim, apresentaremos o modo como Gadamerexplicita a histria do desenvolvimento desse conceito que culmina em Dil-they, para ento apontar os seus limites e as suas inconsistncias.

    O propsito de Gadamer

    Gadamer afirma compartilhar com Dilthey a tese de que a conscinciahistrica est na base de qualquer liberao da verdade para alm domtodo estabelecido pelas cincias da natureza.5 No entanto, para Gada-mer a hermenutica que deve dar conta da possibilidade de compreensodas cincias do esprito e, para isto, a tarefa da filosofia deve fundament-la a partir da prpria finitude humana em seu contexto existencial de comu-nicao. Dilthey, por sua vez, retrocede ao modelo kantiano para tentar ex-plicitar as condies de possibilidades de compreenso das cincias do es-prito. O que ele (Dilthey) busca com este retorno , por um lado, conferir hermenutica um estatuto de maior maturidade e consistncia (relativa-mente utilizao que Ranke e Droysen dela fizeram). Mas, por outro lado,

    4 Idem.5 A apario de uma tomada de conscincia histrica , possivelmente, a mais importante revolu-

    o por que passamos desde o surgimento da poca moderna. O seu alcance espiritual ultrapassa,provavelmente, aquele que reconhecemos s realizaes da natureza, as quais transformaram, deuma forma bem visvel, a face do nosso planeta. A conscincia histrica que caracteriza o homematual um privilgio, talvez mesmo um fardo tal como nenhum outro que tenha sido imposto aalgumas geraes anteriores (Gadamer, O Problema da Conscincia Histrica, p. 17).

  • Dilthey recusa assumir deliberadamente a tese da filosofia especulativaelaborada por Hegel. Neste sentido, o trabalho de Dilthey deve ser entendi-Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005 151

    do como uma tentativa de soluo do problema da mediao histrica. Ouseja, o que coloca Dilthey a meio caminho entre Schleiermacher e Hegel aepistemologia que ele elabora se valendo da hermenutica para dar contados conceitos de reconstruo e integrao. Portanto, quando Gadameraponta para o problema de que a compreenso co-implica sempre uma me-diao histrica6 e, com isto, pergunta como se ir determinar a tarefa dahermenutica, ele (Gadamer) [1] encontra um ponto comum entre Schleier-macher e Hegel ao mostrar que ambas as teses podem ser designadas pelosconceitos de reconstruo e integrao. [2] Esta tarefa da hermenutica(reconstruo e integrao) determinada por cada um de maneira diferen-te. [3] Dilthey, ainda que trate do mesmo problema, o faz de um modo origi-nal tambm a meio caminho entre Schleiermacher e Hegel, pois Gadamerafirma que

    Schleiermacher e Hegel poderia apresentar as duas possibilidades extremas deresposta a esta pergunta. As suas respostas poderiam ser designadas com os con-ceitos de reconstruo e integrao. Tanto para Schleiermacher como para Hegel, nocomeo se encontra a conscincia de uma perda e [de uma] alienao frente tradi-o, que a que move a reflexo hermenutica. Entretanto, eles determinam a tarefada hermenutica cada um de maneira diferente.7

    muito esclarecedor percebermos o contexto argumentativo em queGadamer prope a comparao citada no pargrafo acima. Justamente na-quilo que seria a concluso da sua anlise sobre a liberao da questo daverdade (tambm na arte e no apenas nas cincias da natureza), se impea mediao histrica e, portanto, hermenutica como a gnese da cons-cincia histrica.8 Neste contexto, ainda, a hermenutica elaborada porDilthey citada como um trabalho a ser aprimorado por meio da subtraodos preconceitos da histria do esprito fundados por ele.9 Mas, qual exa-tamente a posio de Dilthey se o prprio Gadamer afirma que ele, comohermeneuta, compartilha preconceitos da histria do esprito?

    No intuito de explicitar a anlise de Gadamer de um modo claro, apre-sentaremos primeiramente o modo como Schleiermacher e Hegel elaboramaquilo que Gadamer define como reconstruo e reintegrao diante daperda e da alienao diante da tradio. O certo que estes argumentos

    6 Gadamer, Verdade e mtodo, p. 265.7 Idem.8 Cf. Gadamer, Verdade e mtodo, p. 265.9 Gadamer, Verdade e mtodo, p. 264.

  • tratam diretamente da liberao da verdade pela experincia da arte. Toda-via, a anlise esclarece a natureza da conscincia histrica pelo fato de, por152 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005

    um lado, a prpria liberao da verdade pela arte implicar mediao hist-rica, e, por outro lado, ficar caracterizado que a divergncia terica se dem funo da concepo de tempo admitida por cada autor.

    Schleiermacher

    O que importa compreender um autor melhor do que ele prprio seteria compreendido. Esta a tese clebre de Schleiermacher que, no en-tender de Gadamer, evidencia que o ato de compreenso a realizao re-construtiva de uma produo. Em outras palavras, a vantagem prpria da-quele que compreende, relativamente ao autor, est no fato de que oprimeiro pode se tornar consciente de algo que no autor original tenha fi-cado inconsciente. Quanto produo e reproduo, portanto, a herme-nutica geral de Schleiermacher pressupe a esttica do gnio. Ademais,diz Gadamer: o modo de criar do artista genial o caso-modelo, a que sereporta a teoria da produo inconsciente e da conscincia necessria nareproduo.10

    A proposta de Schleiermacher afirma a possibilidade de reconstruir nacompreenso a determinao original de uma obra. Assim, poderamos re-construir o sentido de uma obra de arte ou literria transmitida do passadoe que, por isso, nos chega desenraizada de seu mundo original. Para carac-terizar a pertinncia de uma obra sua poca, Schleiermacher parte dopressuposto de que o natural e o originrio deixam de existir

    (...) a partir do momento em que as obras de arte entram em circulao. Ou seja, cadauma (obra) tem uma parte de sua compreensibilidade a partir de sua compreensooriginal (...). Por isso, a obra de arte perde algo de sua significncia quando arran-cada de seu contexto originrio e este no se conserva historicamente (...). Assim,uma obra de arte est enraizada, na realidade, tambm no seu solo e cho, no seucontexto. Ela j perde o seu significado ao ser retirada desse contexto, e ao entrar emcirculao como algo que foi salvo do fogo e agora traz as marcas de queimado.11

    Seguindo essas consideraes de Schleiermacher, apontadas por Ga-damer, podemos afirmar que o verdadeiro significado de uma obra de arteresulta da reconstruo do originrio. Do mesmo modo, devemos reconhe-cer que a obra de arte no um objeto atemporal da vivncia esttica, pois

    10 Idem, p. 299.11 Schleiermacher, sthetik, ed. R. Odebrecht, pp. 84ss., in: Gadamer, Verdade e mtodo, p. 265.

  • ela pertence a um mundo especfico: o nico mundo capaz de determinarplenamente o seu significado.Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005 153

    Com destas consideraes de Gadamer, ficam explicitados os aspectostcitos da hermenutica de Schleiermacher. Em outras palavras, a recon-struo do mundo a que pertence uma obra de arte, a reconstruo do esta-do originrio que existiu na inteno do artista criador, a execuo no estilooriginal, bem como todos os meios de reconstruo histrica, tm o direitode reivindicar o fato de que eles tornam compreensvel o verdadeiro signifi-cado da obra de arte e, ao mesmo tempo, protegem contra mal-entendidose falsas atualizaes.12 Na verdade, cabe ao saber histrico (e a ele somentepor meio dos procedimentos hermenuticos gramatical e psicolgico13) re-cuperar aquilo que foi perdido, bem como reconstruir a tradio, uma vezque nos devolve o ocasional e o originrio. Assim, conclui Gadamer:

    o empenho hermenutico (segundo Schleiermacher) se orienta para a recuperaodo ponto de conexo com o esprito do artista, que o que deve fazer inteiramentecompreensvel o significado de uma obra de arte; procede como, fora isso, o faz antetextos, procurando re-produzir o que foi a produo original do autor.14

    Antes de passarmos para a exposio da proposta hegeliana de recons-truo e integrao, cabe ressaltar que Gadamer aponta explicitamente umlimite na proposta de Schleiermacher. Para Gadamer, ainda que a com-preenso exija uma operao de reconstruo das condies de origem,esta reconstruo apenas uma existncia secundria na cultura. Portanto,o que alcana Schleiermacher por este caminho algo diferente daquiloque ele busca ao almejar o sentido originrio da produo da obra. justa-

    12 Cf. Gadamer, Verdade e mtodo, p. 265ss.13 Sobre os dois modos de procedimento da hermenutica (gramatical e psicolgico), cabe apresen-

    tar as consideraes sobre o trabalho de Jos Aguirre acerca dos mesmos. Diz ele: "Schleierma-cher concebe a hermenutica como sendo suportada por dois momentos fundamentais que se in-terpenetram. Um deles assume um cunho essencialmente gramatical, uma vez que representa odiscurso em sua faceta mais comum, mais ordinria, que se consubstancia em tudo aquilo queacontece, independentemente da interveno da singularidade individual e que se revela no usoque fazemos das palavras, das lnguas e dos conceitos. O outro corresponde ao momento psicol-gico, que se traduz no somente na compreenso literal das palavras e do seu sentido objetivo,mas tem sobretudo presente a individualidade do locutor ou do autor, sua genialidade. Esta di-menso da compreenso representa a sua faceta positiva, aquela que torna possvel captar a re-ferida individualidade de uma forma direta ou intuitiva, assumindo como objetivo a reconstruomental (da "inteno") do autor do texto. Embora estas duas dimenses devam ser entendidas nasua interao recproca, pressupondo neste sentido um acordo entre pensamento e linguagem, a partir de 1819 que a vertente tcnica da hermenutica adquire mais importncia e se desenvol-ve no sentido de uma interpretao psicolgica" (cf. Aguirre, Raison critique et raison hermneu-tique, p. 83.

    14 Gadamer, Verdade e mtodo, p. 266.

  • mente este limite que a filosofia de Hegel havia superado, embora tivessede afirmar uma especulao metafsica.154 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005

    Hegel

    Na viso de Gadamer, Hegel oferece uma possibilidade diferente decompensar entre si o ganho e a perda da empresa hermenutica. Pois, o quefaz Hegel apontar para alm da dimenso global em que se havia apresen-tado o problema da compreenso em Schleiermacher. Para Hegel, o funda-mento de toda reconstruo e integrao (como conceitua Gadamer a tarefada hermenutica) a filosofia como a forma mais alta do esprito absoluto.No saber absoluto da filosofia, uma vez que se trata aqui do autoconheci-mento do esprito em seu processo de realizao na (e pela) histria, leva-sea cabo a prpria autoconscincia do esprito, a nica capaz de abranger averdade da arte de um modo superior.

    A superioridade da filosofia hegeliana frente hermenutica deSchleiermaher apresentada por Gadamer em metfora muito elucidativa:a metfora dos frutos colhidos. Assim, diz Hegel:

    As obras das musas so agora o que so para ns belos frutos arrancados darvore; um destino amvel no-lo ofereceu, como uma jovem presenteia aqueles fru-tos; no existe a vida real na existncia, no existe a rvore que os produziu, no ha rvore nem os elementos que perfizeram sua existncia nem o clima que perfez suadeterminao, nem a mudana das estaes que dominavam o processo de seu de-vir. Assim, como as obras daquela arte, o destino no nos d o mundo, nem a prima-vera ou o vero da vida moral em que floresceram e maduraram, mas apenas a lem-brana velada daquela realidade.15

    Assim como os frutos arrancados perdem a sua ligao essencial como seu habitat, a obra de arte tambm foi arrancada de seu contexto e nomais se relaciona com seu contexto de produo, ou seu mundo cultural, nosentido que pretendia Schleiermacher. Mas ento toda tentativa de com-preenso v e no passa de uma atividade infrutfera guiada por uma nos-talgia cega? A continuao da metfora dos frutos colhidos afirma que todoeste trabalho no passa de um labor externo:

    Talvez retire uma gota de chuva ou um pozinho desses frutos, e que em lugardos elementos ulteriores da realidade do tico, que os rodeava, que os produziu elhes deu alma, erige o aparato prolixo dos elementos mortos de sua existncia exter-

    15 Hegel. Phnomenologie des Geistes, ed Hoffmeister, p. 524, in: Gadamer, Verdade e mtodo, p.267.

  • na, da linguagem, do histrico, etc., no para adentr-los, experimentando-lhes a vi-da, mas somente para imagin-los.16Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005 155

    Gadamer elucida que Hegel trata aqui diretamente daquilo queSchleiermacher exigia para a conservao histrica. No entanto, a filosofiahegeliana no respalda qualquer investigao ocasional que pretenda cons-tituir o significado das obras de arte. Ou seja, Hegel entende que o retornoao contexto histrico no estabelece nenhuma relao vital, pois o que seobtm apenas uma relao imaginativa. Desta maneira, conforme Hegel,Schleiermacher estaria propondo investigar um suposto comportamentohistrico que no passaria de um labor externo.

    O que Hegel quer expressar, diz Gadamer, uma verdadeira categoriaao afirmar que a essncia do esprito histrico no consiste na restituiodo passado, mas na mediao do pensamento com a vida atual. Isto se con-firma com o desfecho da metfora utilizada acima.

    Mas tal qual a jovem que nos oferece a fruta colhida, mais que uma natureza,na medida em que a jovem, no brilho do olhar autoconsciente do gesto que oferece,rene tudo isto de maneira superior, assim tambm o esprito do destino, que nosoferece aquela obra de arte, mais que a vida tica e a realidade daquele povo, pois a recordao (Er-Innerung) do esprito que nele ainda est exteriorizado o esp-rito do destino trgico que rene todos aqueles deuses e atributos individuais dasubstncia no panteo uno, no esprito autoconsciente de si mesmo como esprito.17

    De fato, como afirma Gadamer, a pretenso de Hegel ultrapassa funda-mentalmente a idia hermenutica de Schleiermacher na proposta de con-cepo da verdade da arte. Mas trata-se ainda de um modo de pensar a his-tria a partir de um padro situado alm dela prpria. Certamente h aquiuma reconciliao esttica modular entre a Antigidade Clssica e a auto-conscincia do presente. esta reconciliao que caracteriza a religio daarte dos gregos como uma figura j superada do esprito e, ao mesmo tem-po, encontra a perfeio da histria no presente, pois no presente que sed a autoconscincia filosfica da liberdade.18

    Se a hermenutica de Schleiermacher pressupunha o acesso a ummundo de significados fora da prpria histria, a teoria hegeliana no me-nos exigente. Tambm aqui se impe a pressuposio de um paradigmaapriorstico fora da prpria histria. justamente este problema que Gada-mer aponta como sendo uma tarefa no solucionada no sculo XIX; mesmo

    16 Idem.17 Idem.18 Gadamer, Verdade e mtodo, pp. 311ss.

  • aqueles que, como Dilthey, polemizaram com o conceito idealista do espri-to, ainda mantiveram referncia a ele.156 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005

    Mas, em que consiste exatamente a originalidade e os limites da teoriade Dilthey?

    Dilthey

    Se queremos situar a posio de Dilthey entre Schleiermacher e Hegel,podemos voltar-nos para a crtica diltheiana metafsica especulativa. Ouseja, preciso entender especificamente, diz Gadamer, o significado dacrtica f na razo, concepo especulativa da histria do mundo, suadeduo apriorstica de todos os conceitos.19 Contudo preciso entender,tambm, o motivo pelo qual Dilthey utiliza termos to hegelianos para defi-nir a realidade da vida e a conscincia histrica como fins ltimos da cin-cia do esprito. Assim, Dilthey esclarece:

    Hoje temos que partir da realidade da vida (...). Procuramos entender esta rea-lidade e apresent-la em conceitos adequados. Na medida em que o esprito objetivofor liberado de uma fundamentao unilateral na razo universal geral que expressaa essncia do esprito do mundo, libertado tambm da construo ideal, torna-sepossvel um novo conceito do mesmo: nele so acolhidos linguagem, costumes, todotipo de formas de vida e de estilo de vida, do mesmo modo que famlia, sociedadecivil, estado e direito. Finalmente, encontra-se sob este conceito o que em Hegeldistinguia o esprito absoluto do objetivo: arte, religio e filosofia.20

    Por um lado, encontramos nesta passagem uma reformulao do con-ceito hegeliano; por outro lado, no podemos negar que h aqui ainda umaespcie de esprito absoluto. Mas o que , para Dilthey, este esprito quemarca uma sua diferena relativamente posio hegeliana? Trata-se daconscincia histrica. ela, e no o esprito absoluto em seu saber especu-lativo, que assumir a tarefa (agora tornada um ideal) de levar a cabo o sa-ber de si mesmo do esprito. Para a conscincia histrica, arte, religio e fi-losofia so formas equiparadas de expresso da vida e no mais, comoqueria Hegel, momentos da razo em seu processo de desenvolvimento.No obstante Dilthey e Hegel compartilharem ainda a idia de que h al-gum tipo de objetivao, a diferena entre eles est no fato de que, enquan-to Hegel tematiza o retorno do esprito como momento da cognio do con-ceito, para Dilthey o conceito filosfico no tem significado cognitivo, mas

    19 Ibidem, p. 349.20 Idem.

  • apenas expressivo. Neste sentido, as objetivaes da arte representam overdadeiro triunfo da hermenutica.Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005 157

    por meio da conscincia histrica, ento, que todos os fenmenos domundo humano-histrico so tomados como objetos. precisamente nestatomada que o esprito conhece mais profundamente a si mesmo e transfereos prprios fenmenos humano-histricos vitalidade espiritual de ondeprocederam. Neste sentido, diz Gadamer, as configuraes do esprito ob-jetivo so para a conscincia histrica, portanto, objetos do autoconheci-mento.21

    Dilthey est certamente recusando o apriorismo hegeliano. Entretanto,,podemos indagar se no seria ainda a sua posio uma espcie de metafsi-ca. Qual seria este tipo de metafsica pressuposta? E ainda, poderia a cons-cincia histrica remeter ao passado que o apriorismo hegeliano negava?

    Outra metfora da natureza pode lanar algumas luzes sobre estasquestes. A flor a verdadeira madureza. O fruto no mais do que a cati-ca casca do que pertence planta orgnica.22 Segundo Gadamer, esta frasede Schleiermacher citada por Dilthey tem a funo de caracterizar a posiometafsica esttica deste ltimo. O que pretende Dilthey lanar-se sobreos contedos histricos passados que o pantesmo hegeliano tomava comsempre presentes. Deste modo, diz ele que a histria dos movimentos es-pirituais tem sua vantagem de monumentos que so verdadeiros. Podemosnos equivocar com respeito s intenes, mas no com respeito ao conte-do da prpria interioridade que est expresso em obras.23 No que diz res-peito aos conceitos de reconstruo e integrao estipulados por Gadamer,a teoria diltheiana pretende ter superado tanto Hegel quanto Schleierma-cher. Contra o primeiro, afirma a necessidade de manter a conscincia daprpria finitude. E, em certo sentido, tambm contra o segundo, afirma quese trata de encontrar a possibilidade de reconstruo e integrao na vida.Deste modo, afirma que vida compreende a vida.

    preciso indagar, na perspectiva de Gadamer, se no haveria umacontradio nesta proposta de Dilthey. Ou: de que modo a vida, marcadapela conscincia da prpria finitude, pode elevar-se conscincia histri-ca? Gadamer esclarece ainda que a idia de conscincia histrica vem su-prir a pretenso da conscincia filosfica em conter em si a verdade inteirada histria do esprito. Pois, diz ele, a conscincia humana no um inte-lecto infinito para o qual tudo seja simultaneamente e presente por igual.24

    21 Idem, p. 350.22 Leben Schleiermacher, 1a edio, 1870, in: Gadamer, H. G., Verdade e mtodo, p. 352.23 Leben Schleiermacher, ed. Mulert, 1922, p. XXXI, in: Gadamer, H. G., Verdade e mtodo, p. 352.24 Gadamer, H. G., Verdade e mtodo, p. 358.

  • Mas surge ai um paradoxo. Como entender a identidade absoluta entreconscincia e objeto de modo que, por princpio, ela no seja inacessvel 158 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005

    conscincia histrica finita? Ou como indaga Gadamer: em que se apia asua distino de elevar-se, apesar disso, sobre si mesma e tornar-se assimcapaz de um conhecimento histrico objetivo?25

    Sobre este ponto h uma sutil divergncia entre os comentadores daobra de Dilthey. Aqueles que se prendem aos primeiros trabalhos de Diltheytendem a consider-lo ainda vinculado a uma epistemologia de cunho psi-cologista.26 No entanto, a tradio filosfica que segue a linha hermenuti-co-fenomenolgica trata de acompanhar o seu desenvolvimento intelectualenfocando a reestruturao hermenutica de Dilthey desde a discussocom Husserl. , portanto, a partir desta disputa intelectual que Dilthey es-tabelece, como dado originrio, o conceito de nexo da vida como um saber.

    O ponto de partida de Dilthey , portanto, a vida, uma vez que esta seencontra apontada para a reflexo. Mas no s isso. O que deve ficar claro o fato de que a vida mesma contm saber (que no resultar, explica Ga-damer, numa experincia, mas j sempre uma compreenso). Se tomamosa vida como o ponto de saber reflexivo, devemos admitir que h, aqui, a in-teriorizao (Innesein) que caracteriza a vivncia. Vale dizer, h uma esp-cie de retorno da vida sobre si mesma. esta reflexividade imanente davida que determina, tambm, como o significado surge no nexo vital.

    Partindo desta estrutura bsica, Dilthey apresenta uma distribuiohierrquica das formas de expresso, pois toma-as como momentos de ob-jetivao dos saberes que esto acima da prpria subjetividade. Deste mo-do, os saberes populares (mais prximos de uma viso natural da vida sobresi mesma) e as grandes obras de arte compartilham a objetividade paraalm do seu criador. Mas, acima deles e num grau de objetividade cada vezmaior, esto as formas de expresso que dominam a vida humana (lingua-gem, costumes, formas jurdicas, etc.), visto que so sempre conformaesdo esprito objetivo. Neste sentido, a dedicao a objetivos comunitriosque liberta o homem da particularidade e do efmero.27

    De fato, Dilthey ps sobre o mesmo fundamento do saber reflexivo ime-diato da vida ambas as cincias (da natureza e do esprito) e, em conse-qncia, impe s cincias do esprito a metodologia das cincias da natu-reza. Este o resultado da influncia kantiana assumida por Dilthey, umavez que ele pretende ter substitudo o sujeito lgico pelo sujeito vivente e,

    25 Idem.26 Jos Aguirre, Jean Grondin, entre outros.27 Gadamer, H. G., Verdade e mtodo, p. 360.

  • com isto, supe poder reconhecer a regularidade do mundo espiritual acimada causalidade subjetiva.Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(2): 149-160, 2005 159

    Finalmente, convm apresentar a considerao de Gadamer acerca dolimite da teoria diltheiana. Para ele, o ponto fraco de Dilthey est em seucomprometimento com o modelo cartesiano. Pois ele no distingue entre advida metdica e as dvidas que aparecem por si mesmas. Desta maneira,a sua teoria pe no mesmo patamar a certeza das cincias e a certeza davida. Esta identificao no d noo de compreenso o sentido de expe-rincia (da vida). Dilthey segue o modelo da hermenutica romntica, etoma o mundo espiritual como um texto a ser decifrado e compreendido emseu sentido. por isso, diz Gadamer, que todo encontro com um texto ,para ele, um auto-encontro do esprito.28 Deste modo, Gadamer tem razoem afirmar que, embora Dilthey tenha relevado a significao da experin-cia da vida, ele foi um pensador do seu tempo. Assim, o fato de no poderconsiderar a experincia da vida (a partir da prpria dvida que caracterizaa finitude humana) fez com que sua investigao sobre o passado histricoacabasse sendo um deciframento e no uma experincia histrica.29

    BRITO, E. O. Historical conscientious and Hermeneutic. Trans/Form/Ao, (SoPaulo), v.28(2), 2005, p.149-160.

    ABSTRACT: The aim of this paper is to present the steps of Gadamers reform ofDilthey's hermeneutic (developed under the modern concept of life experience,which was taken to be the grounding/basis of historical self-conscience) and toexpose the new concepts of reason and human existence within Gadamer's the-ory, when he introduced the concept of finitude to the concept of human life ex-perience.

    KEYWORDS: Hermeneutic, historical conscientious, True and finitude.

    Referncias bibliogrficas

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