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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº161 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2004 VOLUME XI ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC Primeira Versão destina-se a divulgar ensaios breves em todas Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 161 FLÁVIO DUTKA BAKHTIN: APONTAMENTOS TEMÁTICOS Maria Celeste Said Marques PRIMEIRA VERSÃO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº161 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Primeira Versão destina-se a divulgar ensaios breves em todas

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 161

FLÁVIO DUTKA

BAKHTIN: APONTAMENTOS TEMÁTICOS

Maria Celeste Said Marques

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 2

Maria Celeste Said Marques BAKHTIN:APONTAMENTOS TEMÁTICOS Professora do Departamento de Educação – UFRO [email protected]

Para os propósitos deste ensaio, o que segue não é uma análise exaustiva de idéias bakhtiniana. Trata-se, antes, de um breve diálogo com sua obra. O meu

interesse é explorar o potencial analítico de alguns conceitos e da metodologia de Bakhtin.

Bakhtin é um dos maiores pensadores do século XX e um teórico fundamental da língua. Em Marxismo e filosofia da linguagem está sua teoria da linguagem

e do dialogismo. Bakhtin enfatizou a heterogeneidade concreta da parole, ou seja, a complexidade multiforme das manifestações de linguagem em situações sociais

concretas, diferentemente de Saussure e dos estruturalistas, que privilegiam a langue, isto é, o sistema abstrato da língua, com suas características formais

passíveis de serem repetidas. Bakhtin concebe a linguagem não só como um sistema abstrato, mas também como uma criação coletiva, integrante de um diálogo

cumulativo entre o “eu” e o “outro”, entre muitos “eus” e muitos “outros”.

1. O Pensamento de Bakhtin

Neste tópico, meu procedimento será fazer uma introdução concisa do pensamento de Mikhail Bakhtin fundamentada em Todorov (1979). Depois dialogarei

com seus escritos.

Escolhi Bakhtin e penetrarei em suas idéias não somente por meio de seus textos, mas também por meio de textos de autores que escrevem sobre ele.

Interessam-me suas concepções relacionadas à linguagem, centrando-me em sua abordagem dialética a partir de suas considerações sobre o caráter ideológico do

signo lingüístico e da natureza eminentemente semiótica (e ideológica) da consciência.

Todorov (1979) destaca que a unidade da obra de Bakhtin está em sua concepção de que o inter-humano é constitutivo do ser humano: a multiplicidade

dos homens é a verdade do próprio ser do homem. Para Todorov (1979:14), Bakhtin não cessou de procurar o que pode nos parecer agora diferentes linguagens destinadas

a afirmar um único e mesmo pensamento. Poderíamos, desse ponto de vista, distinguir quatro grandes períodos (quatro linguagens), conforme a natureza do campo em que ele

observa a ação desse pensamento: fenomenológico; sociológico; lingüístico; histórico-literário. No decorrer de um quinto período (os últimos anos), Bakhtin tenta a síntese dessas

quatro linguagens diferentes.

Dessa forma, percebe-se que a arquitetônica, ou construção, da obra de Bakhtin não é unívoca. Os matizes de sua trajetória intelectual podem ser

sintetizados, segundo Todorov (1979), do seguinte modo:

Período fenomenológico - é representado pelo primeiro livro de Bakhtin, consagrado à relação entre autor e herói, que ele considera como um caso

particular da relação entre dois seres humanos e concentra-se nessa análise. Defende que tal relação é “indispensável [...] para que o ser humano se constitua num

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todo, pois o acabamento só pode vir do exterior, através do olhar do outro” (Todorov, 1979:14). O trabalho de demonstração de Bakhtin compreende dois planos da

pessoa humana. O primeiro, espacial, é o do corpo: “ora, meu corpo só se torna um todo se é visto de fora, ou num espelho (ao passo que vejo, sem menor

problema, o corpo dos outros como um todo acabado)” (p.14). O segundo é temporal, e relaciona-se à ‘alma’: apenas meu nascimento e minha morte me

constituem em um todo; ora, por definição, minha consciência não pode conhecê-los por dentro. Logo, o outro é ao mesmo tempo constitutivo do ser e

fundamentalmente assimétrico em relação a ele: a pluralidade dos homens encontra seu sentido não numa multiplicação quantitativa dos ‘eu’, mas naquilo em que

cada um é o complemento necessário do outro (p.14-5).

Período sociológico e marxista - o coroamento deste período é representado pelos livros assinados pelos amigos e colaboradores de Bakhtin. Ele e seus

amigos se posicionam contra: a psicologia e a lingüística subjetivas por procederem como se o homem estivessem sozinho no mundo; as teorias empiristas por se

limitarem ao conhecimento dos produtos observáveis da interação humana. Para o grupo bakhtiniano o social tem caráter primordial: “a linguagem e o pensamento,

constitutivos do homem, são necessariamente inter-subjetivos” (p.14).

Período lingüístico - após suas críticas à lingüística estrutural e à poética formalista - por reduzirem a linguagem a um código e negarem o discurso como uma

ponte lançada entre duas pessoas socialmente constituídas -, Bakhtin se empenha em lançar as bases de uma nova lingüística, chamada de “translingüística” (para

Todorov seria a “pragmática” e Barros (1996:23) opta por teoria do discurso1), cujo objeto não é mais o enunciado, mas a enunciação, isto é, a interação verbal.

Bakhtin formula propostas produtivas para o estudo da interação verbal na última parte de seu Dostoïevski e no ensaio sobre “O discurso no romance”. Ele analisa, em

particular, a forma pela qual “as vozes dos outros - autores anteriores, destinatários hipotéticos - misturam-se à voz do sujeito explícito da enunciação” (p.15).

Período histórico-literário - inicia-se nos anos trinta. Comporta dois grandes livros, um sobre Goethe e outro sobre Rabelais. Para Todorov (1979:15),

Bakhtin constata que a literatura sempre jogou com a pluralidade de vozes, presentes na consciência dos locutores, mas de duas formas diferentes: ou o discurso da

obra é em si mesmo homogêneo, mas se opõe em bloco às normas lingüísticas gerais; ou então a diversidade do discurso (a ‘heterologia’) se encontra representada

no próprio interior do texto.

É justamente a essa segunda tradição que Bakhtin dá atenção especial não apenas dentro da literatura, mas também fora. Como resultado, têm-se os

estudos das festas populares, do carnaval e da história do riso, que ele desenvolveu.

Todas essa linguagens afirmam o pensamento condutor da obra bakhtiniana: a irredutibilidade da entidade transindividual. Todas essas vastas explorações

participam do projeto comum de Bakhtin.

5.Segundo a autora, atualmente, o nome mais adequado é teoria do discurso como correspondente da metalingüística de Bakhtin, visto que “as diferentes pragmáticas que

conhecemos tratam apenas de algumas das questões que Bakhtin desenvolve na sua translingüística. As atuais teorias do discurso parecem-me mais abrangentes e mais próximas, portanto, das reflexões do autor”.

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Para a compreensão de alguns conceitos e categorias de análise, apontarei percursos a partir dos textos de Bakhtin e de textos de autores que escreveram sobre ele. Interessam-me principalmente suas concepções relacionadas à constituição do sujeito, á dialética, à ideologia, ao marxismo, à cultura etc. Para isso, seguirei as trilhas de algumas obras, de forma a construir e desenvolver os temas necessários à análise, visto ser fato que nos textos de Bakhtin, os conceitos não seguem uma rede temática estritamente definida como os manuais, e seus escritos não convergem para um fechamento. Exercitando o próprio percurso não-linear, mas dialógico das idéias, os conceitos bakhtinianos são lidos na rede textual que constitui o conjunto arquitetônico de suas formulações. Afinal, trata-se não de fazer uma exposição sobre a teoria de Bakhtin, mas de compreender a construção de determinados conceitos e categorias a partir de posicionamentos bem determinados presentes na rede interativa de seus escritos.

2. A constituição dialógica do sujeito bakhtiniano

Para Bakhtin, o reconhecimento do sujeito e do sentido é imprescindível para a constituição de ambos.

Bakhtin coloca em crise a unicidade do sujeito falante. Ele atribui ao sujeito um estatuto heterogêneo. O sujeito modifica seu discurso em função

das intervenções dos outros discursos, sejam elas reais ou imaginadas. Portanto, o sujeito não é a fonte primeira do sentido.

Segundo Bakhtin, o sujeito emerge do outro. O sujeito bakhtiniano é dialógico e seu conhecimento é fundamentado no discurso que ele produz. Conforme

Bakhtin, “não podemos perceber e estudar o sujeito enquanto tal, como se ele fosse uma coisa, já que ele não pode permanecer sujeito se ele não tem voz; por

conseguinte, seu conhecimento só pode ser dialógico” (Bakhtin, apud Todorov, 1981:34).

O eu, para Bakhtin, não é monádico e nem autônomo (o cogito autocriador de Descartes). Ele existe a partir da do diálogo com os outros eus; necessita da

colaboração de outros para poder definir-se e ser “autor” de si mesmo.

Com efeito, o sujeito dialógico bakhtiniano abala a concepção clássica do sujeito cartesiano, circunscrito em uma identidade permanente. O sujeito

baktiniano é solidário das alteridades de seu discurso ao ser concebido numa partição de vozes concorrentes. Dessa forma, a idéia de sujeito de Bakhtin é uma

negação do sujeito pensante de Descartes, ao mesmo tempo, que é o oposto do sujeito lacano-althusseriano da AD francesa, já que “a ‘palavra do outro’ se

transforma, dialogicamente, para tornar-se ‘palavra pessoal-alheia’ com ajuda de outras ‘palavras do outro’, e depois, palavra pessoal (com, poder-se-ia dizer, a

perda das aspas). A palavra já tem, então, um caráter criativo” (Bakhtin, 1992b:405-6).

Essa fundamentação do sujeito de Bakhtin na crítica radical do sujeito coisa abre uma perspectiva inovadora importante de conhecimento para a lingüística,

pois propõe que o sujeito só pode ser teorizado como objeto de teoria, a não ser com a condição de ser reconstruído como tal, a partir da realidade das outras

vozes de seu discurso. O sujeito bakhtiniano marca sua originalidade epistemológica por meio de um duplo deslocamento. Um que ancora a consciência na palavra:

“a consciência de si é sempre verbal” (Bakhtin/Voloshinov, 1980:183). E outro que ancora o sujeito na comunidade: “eu só pode se realizar no discurso, apoiando-se

em nós” (Bakhtin, apud Todorov, 1981:68).

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O sujeito não está pronto, acabado. É incompleto e está numa busca eterna de completude inconclusa. Com efeito, é impossível uma formação individual

sem alteridade, pois o outro delimita e constrói o espaço de atuação do sujeito no mundo. No entanto, o outro constitui o sujeito ideologicamente e proporciona-lhe

o acabamento.

Segundo Bakhtin, o mundo semiótico do sujeito é construído com os outros. O nascimento e a seqüência da vida estão marcados por aquilo que

somente o outro sabe, vê e conhece do mundo do sujeito.

3. Dialética, ideologia e marxismo

Bakhtin, ao conceber a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação, fez da dialética o seu método na construção de seu

arcabouço teórico. A sua dialética é dialógica e está vinculada com a totalidade, com a história, com a interação social. Sua visão de mundo é pluralista e polifônica.

Dessa forma, ao privilegiar uma visão mais comunitária da dialética social, Bakhtin afasta-se do marxismo clássico ao dar menos ênfase à determinação econômica.

Para Bakhtin, o homem constrói sua existência dentro das condições sócio-econômicas objetivas, de uma sociedade. Somente como membro de um grupo

social, de uma classe social é que o indivíduo ascende a uma realidade histórica e a uma produtividade cultural. O nascimento físico não é uma condição suficiente

para o homem ingressar na história, pois o animal também nasce fisicamente e não entra na história. “Portanto, é necessário, um segundo nascimento, um

nascimento social. Não se nasce organismo biológico abstrato, mas camponês ou aristocrata, proletário ou burguês [...]” (Bakhtin/Voloshinov, 1980:34). Dessa

forma, a ligação do homem à vida e à cultura se dá por meio da realidade social e histórica.

Nessa perspectiva, Bakhtin concebe a consciência como um fato sócio-ideológico. Para ele, a consciência só existe na medida em que se concretiza através

de algum tipo de material semiótico, seja sob a forma de discurso interno, seja no processo de interação verbal com os outros. Com efeito, Bakhtin descentraliza a

consciência individual da filosofia idealista e da visão psicologista da cultura que “afirmam que a ideologia é um fato de consciência e que o aspecto exterior do

signo é simplesmente um revestimento, um meio técnico de realização do efeito interior, isto é, da compreensão” (Bakhtin/Voloshinov, 1992a:33). Para o referido

autor, o verdadeiro lugar do ideológico é o material social particular de signos criados pelo homem. “Sua especificidade reside, precisamente, no fato de que ele se

situa entre indivíduos organizados, sendo o meio de sua comunicação. Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual” (Bakhtin/Voloshinov, 1992a:35).

Assim, segundo Stam (1992:30), Bakhtin, em sua crítica marxista do psicologismo, “desmascara o apreciado mito burguês da autonomia individual”.

Bakhtin critica também o marxismo vulgar, mecanicista por relegar o mundo dos signos e da ideologia a uma superestrutura determinada pela base

econômica. Pois, para Bakhtin/Voloshinov (1992a:33), “cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento

material dessa realidade”. Dessa forma, Bakhtin não concebia a ideologia como falseamento da realidade ou falsa consciência. Para ele, o conceito de ideologia é

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mais abrangente, pois considera a contradição como constitutiva do produto ideológico, visto que este último “reflete e refrata uma outra realidade que lhe é

exterior” (Bakhtin/Voloshinov, 1992a:31). Essa concepção supõe um movimento dialético com a infra-estrutura.

Como vimos, Bakhtin faz uma crítica marxista do psicologismo e mostra-se igualmente crítico em relação ao marxismo mecanicista.

O fenômeno ideológico por excelência e o modo mais puro e sensível de relação social é a palavra, ou seja, a linguagem no sentido mais amplo, de acordo

com Bakhtin/Voloshinov (1992a:36). É na palavra que se revelam a forma básica e ideológica gerais da interação verbal. Dessa forma, “a concepção ampla que

Bakhtin tem da linguagem torna-se um veículo para evitar a armadilha do economicismo mecanicista” (Stam, 1992:31).

Bakhtin critica a categoria da causalidade mecânica para explicar como a realidade (infra-estrutura) determina a ideologia. Para ele, “o ser, refletido no

signo, não apenas nele se reflete, mas se refrata” e o que determina essa refração do ser no ideológico é confronto de interesses sociais, ou seja, a luta de classes.

“Classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O

signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (Bakhtin/Voloshinov, 1992a :46).

Essa plurivalência social do signo ideológico é o traço que torna o signo vivo, móvel e capaz de evoluir. No entanto, segundo Bakhtin/Voloshinov (1992a:47),

essa mesma característica faz dele um instrumento de refração de deformação do ser: “a classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter

intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente”.

Na realidade, para Bakhtin, todo signo ideológico vivo tem duas faces, mas essa dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser em épocas de crise

social e de comoção revolucionária. Enfim, é assim que, para Bakhtin/Voloshinov (1992a:47), “se apresenta o problema da relação entre infra-estrutura e as

superestruturas”.

4.Cultura

A partir das categorias-chave de Bakhtin como dialogismo, interação verbal, ideologia, consciência, etc, pode-se perceber que a contribuição de Bakhtin à

análise da produção cultural e das ciências humanas é uma visão transdisciplinar.

A noção de dialogismo, de acordo com Bakhtin, pressupõe uma cultura fundamentalmente não-unitária, na qual diferentes discursos existem em relações de

trocas constantes e versáteis de oposição. Segundo Stam (1992:101), com essa noção, a maior contribuição de Bakhtin talvez seja de caráter político, pois

implicitamente “critica o modelo stalinista do ‘realismo socialista’ (na época de Bakhtin) e o derrotismo implícito da escola de ‘ideologia dominante’ do marxismo

althusseriano de nossa época”. No entanto, o pensamento crítico de Bakhtin não representa um recuo em relação ao radicalismo e sim um avanço por chamar

atenção para todas as formas opressivas de poder e não apenas as que derivam de classe. Para Stam (1992), apesar de Bakhtin não se dirigir especificamente a

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todas as opressões, “uma política textual bakhtiniana favoreceria uma abertura à especificidade e diferença, recíproca e descentralizada; não aconselharia aos

embates feministas, negros ou gays que ‘esperem sua vez’, até que a luta de classe atinja seus fins” (p.101).

Para Bakhtin, não há produção cultural fora da linguagem. O dialogismo opera dentro de qualquer produção cultural, seja letrada ou analfabeta, verbal ou não-

verbal, elitista ou popular.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. (Voloshinov,V.N.1980). Écrits sur le freudisme. Paris, L’Age D’homme.

_____ (Voloshinov, V.N.-1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992a.

BARROS, D.L.P. de (1997). “Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso”. In: Brait, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. São Paulo,

Editora da Unicamp, pp.27-36.

STAM, R. (1992). Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo, Ática.

TODOROV, T. (1979). “Prefácio”. In: Bakhtin. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992b.

______ (1981).Mikhail Bakhtine. Le principe dialogique. Paris, Seuil

.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº162 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

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NILSON SANTOS

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MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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FLÁVIO DUTKA

DA UNIVERSIDADE E O “NADA”

REITORÍFICO OU DA REITORIA... Em vinte

anos, prá que serve isto mesmo?

Walterlina Brasil

PRIMEIRA VERSÃO

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Walterlina Brasil DA UNIVERSIDADE E O “NADA” REITORÍFICO OU DA REITORIA... Em vinte anos, prá que serve isto mesmo? Professora do Departamento de Educação - UFRO [email protected]

A crise de pertinência porque passa a Universidade hoje embora com dimensões complexas, vem obtendo diversas formas de ressonância interna. Dentre

elas a convivência política com o poder expresso na reitoria, que vem se moldando a partir de ressignificações que resumem a um nada a conversão social do

conhecimento como uma das tarefas possíveis dessa Instituição realizar. Tal convivência vem inflando-se de gás e poderá estourar em qualquer nenhum-lugar,

conformando-se em retalhos irreconciliáveis. Vem enchendo-se do vazio das noções políticas do comércio internacional, da falta de alma política e perfil

institucional; por degradação da inteligência, do atrevimento, da utopia, da ideologia, da renovação burocrática e do eco moral expresso na íris. A coexistência com

as pressões externas e internas de toda ordem, são minimizadas e traduzidas em “pérolas” explicativas tais como: “e que é que eu posso fazer, né maninha? Nada

né? O jeito é ir tocando”. Curioso é: Tocando quem ou o quê? O “gado”? Qual? A que preço? A um custo social de quantos?

A universidade nadificada, sem pertinência, é um nada que se distancia e se convence de que é inevitável distanciar-se da capacidade de produção e gestão

do conhecimento, ou que este seja alcançável através do exercício acadêmico sério e responsável. Parece-me que isto ocorre exatamente quando uma maior

aproximação a este debate (e não a outro) é o que seria necessário, como única forma (nestes tempos tão duros) de abjurar-se em esforço pelo coletivo, num

sentido de acesso ao processo de conhecer, com eqüidade e qualidade do serviço que oferece.

A universidade nadificada é umbilical. Apenas o nada (no umbigo) é convergente e comporta a complexidade do poder na instituição universitária ao longo

deste tempo. Por estas bandas do oeste brasileiro, a UNIR participa com vinte anos... gotículas para quem crê na humanização, eternidade para quem pensa em

aposentadoria. A distribuição nadificada que posso tentar categorizar a partir da UNIR, poderia ser de qualquer outra, se vista com o cuidado de uma análise sobre

o poder reitorífico e a convivência com suas instâncias políticas internas. São coisas que tem me dito os sentimentos e as leituras de quem sabe muito pouco desses

assuntos, mas vem apreciando o nada que permeia e envolve momentos especialmente nadificados, como o de “consulta” interna, durante os atos em que a

comunidade universitária reitorifícasse.

O caráter e a legitimidade do momento político em aceder ao que é corretamente reitorífico na universidade certamente percorre uma larga história. Tocar

nisto pode invadir o coração e as paixões históricas mais delicadas e difíceis de serem tratadas: vai do marco de uma importante reação nacional à ditadura, aos

enclaves impensados das IFES Universitárias instaladas sem qualquer cuidado com sua natureza e identidades locais, marginando-as em seus projetos de

implantação, como no caso das IFES Amazônicas. Estas feridas não daríamos conta tocá-las aqui, apenas reconhecemos que existem e são complicadas de sarar.

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De fato, no que me interessa aludir, a reitoria ainda ilustra o desejo por um tipo de poder político – o reitorífico – que deveria ser exercido legitimamente,

por um professor: a pretensão da execução de uma grande obra sob o comando de uma inteligência privilegiada e capaz de liderar aos demais. Está temporalmente

situado no movimento na área das humanidades – na França – como a vontade dos pares das Artes e Letras em ter alguém cujo mérito da idade, competência,

prestígio, assegurasse ao pretenso reitorista uma condição de fazer-se respeitar primeiro no âmbito burocrático e, posteriormente, fazer-se seguir em idéias,

projetos e desafios. Hoje reitoria vem se convertendo, simplesmente, um espaço de oportunidades... pessoais. Com o aborto paulatino da pertinência da

Universidade, a conformação e os exercícios de poder máximo institucional (conselhos e reitoria, por exemplo) podem revelar esta outra face: aquela em que a

Universidade vem se decompondo e sucumbindo: aos melindres políticos e falta de clima institucional para fazer-se. A UNIR em seus vinte anos (11 de julho de

1982) poderia ser uma amostra do que estou tentando apontar neste texto. Desde já peço o perdão pelo desconhecimento da vida autorizada pelos partícipes da

UNIR há mais tempo, em suas vísceras e bofes, que chegaram a sentir o odor mais de perto e devem saber, melhor do que eu, qual foi ou é.

Longe de representar liderança interna, vigilância política, probidade intelectual e moral, reitoria é, socialmente, um não-espaço social. Uma concentração

gravitacional, uma força centrípeta, um nada nada fractário. O nada institucional possibilita que a reitoria seja uma mera contemplação dos desejos que se possa

realizar, uma lâmpada de Aladin que, além de limitar os desejos, atende a quem o descobre (ou acede), incorrendo em uma decisão, em termos gerais, entre (1)

servir às relações políticas gigantes (reitorificar-se é converter-se, politicamente, em uma igualdade pautada em função de uma carta de poder: são cargos, não

pessoas; rejeita-se outras identidades) ou (2) a um projeto autônomo, coletivo, articulado, que conviva com os gigantes, mas crie um potencial realizativo

inovador, criativo, com respeitabilidade social fundada na competência e liderança. Difícil encontrar quem alie ou sobreviva ao esforço dessa dupla ocorrência. Por

conseqüência, no convívio nadificado, na rotina institucional, uma maioria expressiva de supostas intelligentsias procura “ficar bem” com todos, abonando ou

acomodando sua capacidade crítica, inovadora e ética.

A falta de compromissos não vai longe e suas conseqüências estão explícitas. Estão desencadeadas por essa energia mundial de falta de sentido, de falta de convivência democrática que se instalou e a desmoralização da tarefa universitária que pode converter-se em soluções do tipo “trator”. Uma pá-de-cal no

pouco que resta de consciência e intenções de elaboração consistente de um projeto institucional. O clima institucional, por sua vez, está longe de ser dos melhores. A

ética do “no-futuro-vê-se-não-me-atrapalha-pois-te-fiz-um-favor-hoje”, detona qualquer oportunidade de diálogo crítico. O burocrático se confunde com o político e

vice-versa, e ambos se confundem com ranços e mágoas pessoais. A barbárie que parece longe, está sentada na mesma mesa na qual todos se alimentam.

A nadificação política da universidade no poder reitorífico, constrói fenômenos realizativos parecidos com o princípio das ondas civilizatórias do Toffler (sem

qualquer pretensão de comparação teórica, pois seria um esforço em outra dimensão): convivem entre si em um mesmo tempo e necessariamente não são

concorrentes, mas, neste caso, apenas formulam um comportamento institucional nadificado e hegemônico. Ao longo desses vinte anos na UNIR, sua nadificação

reitorífica poderia, a meu ver, ser agrupada inicialmente em quatro categorias mais abrangentes com dimensões reais e traçados próprios: o sienismo, o ottismo, o

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januísmo e o adunismo. Esses fenômenos eventualmente podem ser fortalecidos ou desestabilizados com movimentos como o DCEísmo ou o Caldaslocisismo.

Podem gerar partículas de ar no gás que preenche o vazio nadificado, mas, normalmente, são prontamente dissipados, como mais recentemente vem sendo

tentado (não tenho noção – como não creio - se conseguido) no caso do “Caldaslocisismo”, ou reconvertidas a um dos fenômenos do poder reitorífico, como no

DCEismo. É bom tratar primeiro das quatro dimensões do nada reitorífico que presencia a UNIR, para posteriormente abordarmos as duas intervenções a estes,

mencionadas aqui.

1. O sienismo, como diriam os ottistas é o exercíco do poder formulado e exercido como uma fruta que amadureceu fora do tempo e às custas de muitas

renúncias em favor do brilho do ouro-de-tolo. Suas raízes e convívio remontam o antonismo (gerado nas Uberlândias, lembram?). Portanto decorre das condições

mais pífias da UNIR e, portanto, mais difíceis. Aí o nada não era previsível e parecia muito distante. O sienismo traz um nada que aprende só. É de traçar poucas

metas, negocia quase nada, espatifa a celeuma da falta de calma, mas ignora as víboras que se apresentam, que o rodeia permanentemente, circundando-lhe,

ávidas pelo poder que o instituiu. O sienismo tem a capacidade de gerar, em nome da paz (ou pax?) o poder centrado, mas autorizado. O nada é a justiça das

circunstâncias.

2. O ottismo é o exercíco da reitoria pelo frison, de fala áspera, que engole e faz engasgar a saliva. Da rotina da pele e o fascínio da autoridade. É a

capacidade do calor das emoções (inclusive físicas), em todo seu potencial. Um abuso por estar na Universidade que governa, e uma vontade explícita de nunca ter

estado ali ou, pelo menos, animar esta oportunidade. O nada é a celeuma.

3. O januísmo é o conhecimento (e uso) da natureza humana. O perdão do fetiche. Mais um aprimoramento do ottismo, sua humanização com o mesmo

refinamento político (mas que não significa neo-ottismo). É o conhecimento de como quebrar as regras, sem gerar oposição. A capacidade de distribuir bondade aos

poucos e desvincular-se de qualquer maldade. Difícil de saber o que pensa – se é que pensa em termos políticos ideológicos requeridos na condição reitorífica –

somando a delicadeza mítica e a autoridade de um “senhorio”, de um “amo”, de um “coronel”. O januísmo pode facilmente mitificar-se. Ao mesmo tempo gera

quem abuse de sua largura e fidelidade, e oculte contra o januísta sua capacidade de trair para beneficiar-se do próprio januísmo. Isto seria desnecessário, pois, em

uma disputa, o januísmo constitui-se como adversário respeitável, de armas claras, na mesa: os detalhes são esquecidos (mesmo que seja o “ar” do pedinte), não

se discrimina os critérios de justiça: o fim justifica os meios. Portanto quem é que corrompe: quem oferece ou quem pede? O januísmo cala porque atende.

Rompedor, trator, o que seja! Mas reúne, aglutina, envolve, distribui pequenos agrados: resolve. As conseqüências disto: o curso de medicina, a editora da UNIR, a

RIOMAR funcionando, 17 doutores numa fornada só, cursos interinstitucionais a rodo, cursos stricto sensu DA UNIR existindo, a UNIR em todo o interior do

Estado... São fatos. O januísmo gera fatos, embora encubra processos, às vezes as custas de inibir a capacidade de análise sobre eles (analisar demanda tempo). O

não nunca existe, e o talvez pode ser um não que isenta um januísta... e a verdade? É mais relativa do que “E=mc2” . O nada é realizar. Acontecer. O nada é a

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negociação, a sensação de ritmo. A universidade crescendo; desastradamente, mas crescendo, ainda que sem qualquer capacidade de posicionar-se

adequadamente em termos políticos sobre seu próprio nada. E tudo o que é coletivo se desvanece no ar.

4. O adunismo é um fenômeno de poder reitorificável genérico; é digressivo. Como um potencial de “resistência”, não sabe bem o quanto deseja o poder,

mas ao mesmo tempo não saberia bem o que fazer com ele se o obtivesse, pois o lance é nunca aceder a ele. Se isto ocorrer, se nadifica em uma das posições

acima. Talvez trampolim, mais do que ponte. Por isso mesmo possivelmente oculte alguns nadificantes que de algum modo se sentem mais autorizados para

realmente desejar isto: o nada que a reitoria é como uma condição de melhoria interna da capacidade produtiva institucional. Desarmado frente as pressões

evidentes das grandes políticas – tal qual qualquer fenômeno reitorífico nesses vinte anos – promove uma vigilância da estagnação interna.

Agora, no caso da UNIR, como citei antes, é possível falar ainda dos movimentos paralelos à nadificação reitorífica, que acabam por ajusta-los. Algo que

posso primariamente identificar como DCEísmo e o Caldaslocisismo. Não são exercícios reitoríficos, mas possuem grande capacidade de revelar-lhes o foco. O

primeiro, reduzido em 85% do seu potencial político lógico, diz respeito a ilusão da discência conscienciosa e ao fervor ideológico. Espatifou-se na falta de leitura e

de tempo e é apenas muleta reitorífica, pois, nos vinte anos, amarga as derrotas de ter apostado alto na idéia de que poderia dizer “xô” a nadificação da política

universitária, e na roleta da crença ao ottismo auto-Detonado, perseguindo um pensamento de que a “UNIR viraria Universidade com você”. O DCEísmo poderia ser

um fenômeno de integridade ética, mas sobra-lhe - como antes – ingenuidade, e como agora, medo e incertezas. Um nada sem conversão atual, cujas pressões

faltam ainda em conteúdo e profundidade.

Já o Caldaslocisismo - se ganha corpo - traz enquanto idéia a justeza do fôlego, da inteligência e da revisão conceitual da Universidade de forma

competente (em condições “técnicas” mais favoráveis do que o Izuísmo, o Totismo ou o Sinedismo, por exemplo, pretenderam alcançar). Nesses vinte anos, o

Caldaslocisismo foi quem conseguiu produzir e repercutir o pensamento mais autêntico sobre o que é a Universidade e sobre o que a corrompe. Ainda que com a

violência das palavras e o monólogo que acaba produzindo, remói e reconvoca a atitude institucional e a coragem do pensamento. Não macula, embora agrida com

certo sadismo; constrói uma fogueira chamuscante (que rapidamente converte-se em incêndio), e, quando não queima a todos, cega mais do que ilumina, fazendo

com que, propositadamente, os que constroem este fenômeno se assurdinem, implicando em um Caldaslocisismo do espelho ou do mimetismo (que é falso e

estranho em relação a origem, pois Caldaslocizar implica em mostrar-se). Como a figura da medusa Caldaslocizar-se passou a significar petrificar-se com o próprio

veneno. Nesse fenômeno, pedras envenenadas (em lugar de pessoas) devem parecer gente, caso contrário assustam. Daí o Caldaslocisismo fragilizou-se pela sua

forma nada confiável de se exprimir e de compartilhar-se, pois parece necessitar ser uma doença em lugar do fenômeno com a boniteza e conteúdo que traz e a

deferência que merece.

A proposta Caldaslocizante não pretenderia o poder reitorífico, mas o solicita e também o nadifica. Se exercido, possivelmente seria idêntico ao ottismo. O

método porém, causou, felizmente, um fervor menos esterilizante que um ottismo. Levado a termo e em seu lugar (na paralela) deveria gerar uma revolução no

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pensamento interno, em lugar de um abandono personalista. Na verdade, nunca se saberá o quê ou a quem um Caldaslocisismo representa, pois aí o nada está por

toda parte, em um não-lugar longe de si mesmo e um apreço indiscutível a libertinagem das palavras, numa reconfiguração teórica densa e permanente. De fato,

um nada intenso, corporificado e válido. Traz algo de inteligência para o que uma reitoria poderia ser, embora nunca será, pois a Caldaslosidade constrói evidências

da nadificação do poder institucional que só existe se não for permitido que ocorra.

Pois bem, os eventos descritos neste texto adjetivaram-se a partir de pessoas concretas, com a pretensão de indicar um modo de ver como se conseguiu

nadificar linguagens políticas, através do poder reitorífico, de gestão nada-ideológicas, com um vazio cheio de nenhum-lugar. A idéia foi expressar as condições de

como vejo em que a política interna vem se convertendo, como vem se fazendo; “iconografá-las”, para que se possa visualizar um entendimento - especulativo por

certo - de algumas partes deste todo que compõem o nada dessa Universidade. Assim, já que adjetivei os fenômenos reitoríficos segundo uma percepção e critérios

bastante pessoal, tentando comportar os vinte anos com denominações que me parecem óbvias, porque não vejo um enismo na UNIR? Porque essa reitoria,

enquanto fenômeno de poder interno e sua forma de existir, não existiu (independente da sinceridade, presteza, boa vontade e capacidade científica de sua

liderança, cujo respeito testemunho). A fidelidade que surgiria em um enismo, escorreu pelo januísmo. O enismo só ocorreria se por si, mas é uma circunstância.

Não é uma reitoria, um poder; é um evento. Se fosse possível realizar-se seria, no máximo, um sienismo. Se parecer tentar prosseguir, o que ocorrerá é uma

avaliação do januísmo. Portanto, uma arapuca política e o continuísmo visando a uma nadificação corretiva. Conseqüentemente, o que talvez precise prosseguir é

um fenômeno existente ante a uma aparente incapacidade de se gerar outro.

A UNIR (este ente) está abandonada em si mesma. Um exemplo é dizer que a Universidade poderia ser debatida a partir de seu nome, de sua cara, de seus

processos acadêmicos, em lugar de ver-se motivada favoravelmente exclusivamente a partir de momentos tópicos de uma “consulta interna”, por exemplo, ou

associada a uma “gestão”, que já se revelaram pouco coerentes, após consagradas. Esta visão é um tipo mais amplo de nadificação: aquela dos Conselhos

Superiores. Gera-se um panorama limitado da motivação institucional (a pessoas ou grupos reitoríficos) e daí sucumbe-se qualquer capacidade de reação que possa

gerar uma melhoria nos fenômenos que se apresentam. Infelizmente a nadificação tende a aperfeiçoar-se enquanto estratégia, mas não em responder a dinâmicas

mais exigentes em relação ao que a universidade é.

Em termos gerais então, posso sintetizar que as formas de poder reitorífico sempre estiveram aí, enquanto os ajustes nem tanto. Ambos são mecanismos

construídos no calor das circunstâncias e das oportunidades; construções sobre um modo de ver a Universidade e exercê-la. Das quatro categorias, o januísmo

pareceria o mais surpreendente, mas também sempre esteve aí, nesses vinte anos de UNIR, quem sabe em porções menores (que não conseguem uma mesma

força, ritmo e precisão) como um francinetismo, um militãonismo, ou mesmo como uma “banda larga” pouco conhecida e não revelada do DCEísmo talvez. É sua

manifestação como civilização do poder que é recente.

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Enfim, em vinte anos, a UNIR está fazendo suas escolhas e produzindo os fenômenos que quer. A questão aqui não é discutir dentre os processos qual

aquele que nos destina a um mal menor, mas pelo menos aquele onde as regras do jogo estão mais difundidas, afinal a UNIR, em vinte anos é mais um jogo

interno do que uma luta de consciências... e nenhum Caldaslocisismo seria capaz de (de)construir e não parece ter esta pretensão, muito menos um DCEísmo

atualmente deslocado (ainda que esforçado).

Em tempos de eleições, um texto como este pretende ser reflexivo. Em vinte anos as opções institucionais que prevaleceram foram de esfacelamento na

qualidade e nos processos de participação política interna e, como boa parte das Universidades brasileiras, que julgam não ter que responder socialmente pelos

seus atos, está deixando de ser um bem público ou de pretender ser melhor do que é, em termos de qualidade. O que parece acenar como mais adequado e

oportuno para a UNIR é que o januísmo se assuma, caso contrário que surpreendam propostas distintivas aos fenômenos reitoríficos aqui categorizados. Desde já

pressinto que seriam heróicas se aparecessem e provavelmente não vencerão. (Se bem que perder também é uma boa desculpa para persistir: lembremos – nos

gigantes - os antagônicos malufismo e lulismo). Por sua vez o enismo dificilmente ocorrerá, pois não foi pensado para ocorrer e reitoria não é para quatro anos.

Façam suas apostas... afinal, pra que serve a universidade mesmo?

Page 15: Volume xi 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº163 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 163

FLÁVIO DUTKA

A ABORDAGEM COMUNICATIVA NO ENSINO

DA LÍNGUA MATERNA E A LEITURA NA LÍNGUA ESTRANGEIRA

Klondy Lucia de Oliveira Agra

PRIMEIRA VERSÃO

Page 16: Volume xi 2004

Klondy Lúcia de Oliveira Agra A Abordagem Comunicativa no Ensino da Língua Materna e a Leitura na Língua Estrangeira Aluna do mestrado em Linguistica - UFRO [email protected]

Muitos métodos e técnicas têm sido propostos com o objetivo último de levar o aluno a comunicar-se numa língua estrangeira. Entretanto, estas técnicas,

infelizmente, não são aproveitadas no ensino da língua materna. O que se pretende neste artigo é chamar a atenção de professores e estudiosos da língua sobre a

importância da Abordagem Comunicativa no ensino da Língua Materna. Detalhando como dar oportunidades ao aluno para aquisição da Competência Comunicativa

em sua própria língua e de como as possibilidades deste aluno aumentarão tanto na construção de uma nova competência comunicativa em uma língua estrangeira,

quanto suas possibilidades para um aumento de domínio social conferindo-lhe maior autonomia em todos os campos.

As aulas tradicionais da língua materna trazem grande número de exercícios escritos e alguns exercícios orais dirigidos. Este tipo de conversação

convencional cujas discussões são geralmente dominadas pelos melhores alunos, enquanto o restante da turma permanece em estado de timidez, frustração e

enfado, não desenvolve a competência comunicativa em sala de aula. Demonstra-se na prática que ao contrário das limitadas opções dadas ao aluno pela

conversação convencional, as atividades comunicativas contribuem para que o aluno se torne, em grande parte, agente de sua própria aprendizagem: muito da

responsabilidade da aprendizagem deixa de ser do professor e passa a ser do aluno.

PRÁTICA ORAL COMUNICATIVA

Os objetivos do ensino da língua podem ser vários, mas colocando como objetivo principal o desenvolvimento da expressão oral, obter-se-á um progresso

contínuo do educando tanto na produção oral como na escrita.

A abordagem comunicativa, objetivando o ensino da competência comunicativa, trabalha com uma perspectiva mais ampla da língua. Não se pára no ensino

das formas lingüísticas; examina-se também como o aluno pode usar essas formas quando ele precisa ou quer se comunicar. A língua, desse modo, é usada com o

devido propósito comunicativo; como um meio para um fim: um instrumento de interação social.

O ensino comunicativo deverá apresentar ao aluno oportunidades para falar próximas do real, sem ter a precisão lingüística como preocupação básica. Por

esse motivo, atividades comunicativas objetivam mais a comunicação do que itens a serem aprendidos. Nelas a fluência ocupa um lugar central. Por fluência,

entende-se “habilidade de se expressar sem hesitação excessiva numa dada situação, na fala ou na escrita” (cf. Davies, 1980:100).

A ênfase na fluência, entretanto, não deve ser vista como uma desvalorização da precisão lingüística, que deve aqui ser entendida como “um comando das

estruturas gramaticais e sintáticas da língua” ( Davies, 1980:90 ). A volumosa quantidade existente de materiais e técnicas objetivando a aquisição de estruturas

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lingüísticas claramente reflete a relevância que o domínio do sistema lingüístico tem recebido na aprendizagem de uma língua. Não obstante, acredita-se que o

conhecimento de estruturas é somente um passo em direção ao objeto maior de ajudar o aluno a usar o sistema lingüístico criativa e flexivelmente, de tal maneira

que possa se comunicar efetivamente.

A ênfase na fluência é fundamental como um meio de se estimular a confiança do aluno em sua habilidade de se comunicar. E esse desenvolvimento de

autoconfiança pode se tornar crucial para seu futuro desempenho lingüístico, pois uma vez liberto da ansiedade causada pela insegurança comunicativa, pode mais

facilmente, desenvolver a precisão lingüística2.

Precisão e fluência, conseqüentemente, são dois aspectos do processo da aprendizagem de uma língua. Maley (1980 ) usa a distinção estabelecida por

Stephan Krashen ( 1981 ) para, habilmente, associar o treino da fluência com aquisição e da precisão com aprendizagem. De acordo com Krashen, o processo por

que um indivíduo passa para obter controle da língua nativa é a aquisição. Ela resulta do intercâmbio da criança com seu meio ambiente. Por outro lado, a

aprendizagem é o que se abstrai conscientemente da experiência; é um processo que resulta do estudo consciente.

Segundo Krashen, a aquisição é um processo que permanece acessível a adolescentes e adultos, pelo menos até certo ponto, no desempenho da segunda

língua. A aquisição vem a ser, sob esse aspecto, um processo subconsciente de ‘construção criativa’, pelo qual o aluno internaliza as regras da segunda língua.

Entretanto, quando a atenção do aluno é focalizada nas formas lingüísticas e ele tem bastante tempo para pensar, é mais provável que seu desempenho lingüístico

seja influenciado mais pela aprendizagem ( o processo consciente ).

O fato da comunicação oral exigir que a formulação de frases e o processo de seleção que a precede sejam feitos muito rapidamente, isto é, no ‘tempo

real’, pressupõe que o processo da aquisição é o que vai operar mais. Já que o aluno não tem tempo para estudar em profundidade o que ele vai dizer antes de

converter seus vários significados psicológicos e conceituais para a forma oral, todo o processo será provavelmente espontâneo, com os alunos usando mais

conhecimento adquirido do que conhecimento aprendido.

Não obstante Krashen afirmar que “nossa fluência numa segunda língua é resultante do que adquirimos, não do que aprendemos” (Krashen, 1981 a : 99), a

distinção entre aquisição versus aprendizagem e fluência versus precisão vem se tornando distinta nos artigos e livros de pesquisadores experientes como Brumfit

(1984), que apresenta um modelo alternativo do processo de ensino de língua no qual sugere: (1) Mais tempo de ensino para a prática da precisão no início do

curso do que na sua continuidade, quando a prática da fluência deve dominar quantitativamente; (2) o conhecimento consciente passará a conhecimento

inconsciente através de atividades para desenvolver a fluência.

2 Note-se que estes estudos foram feitos com o intuito de esclarecer os processos de aprendizagem de uma língua estrangeira, mas como diz Daniel Coste em seu artigo Leitura e Competência Comunicativa (GALVES, C. e ORLANDI, E. Campinas, SP: Pontes, 1997.) :”Competência comunicativa põe em jogo funções de ordem cognitiva, volitiva, afetiva e toda uma experiência social. Então como não aplicar estes estudos para o ensino e aprendizagem da língua materna?!

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Faerch, Haastrup e Phillipson em seu livro Learner Language and Language Learning (1984) tendem a concordar que a aquisição se torna aprendizagem e

que a aprendizagem se torna aquisição. Segundo eles, o conhecimento aprendido pode ser mais tarde adquirido através do caminho normal para a aquisição, e o

conhecimento adquirido pode ser mais tarde aprendido através da explicação, prática e exercícios.

Parece, então, que a aquisição e a aprendizagem, a fluência e a precisão não são opostas entre si, mas se completam, uma reforçando a outra. A prática

pedagógica, entretanto, continua enfatizando a forma, em detrimento do conteúdo; a precisão, em detrimento da comunicação. Há necessidade de se concentrar a

atenção do aluno em outros aspectos além dos da língua propriamente dita. Há necessidade de atividades nas quais o mundo real entre em cena. Precisamos de

materiais que estimulem e levem o aluno a falar tão naturalmente o quanto possível, de modo que sua conversação na sala de aula espelhe a comunicação da vida real.

O INTERESSE DO ALUNO NAS ATIVIDADES COMUNICATIVAS

Os objetivos dos alunos, suas expectativas e valores têm que ser cuidadosamente considerados nas atividades comunicativas. Os tópicos relevantes e

interessantes ao aluno é que ligam o mundo real deste aluno ao mundo da sua sala de aula. E, são estes tópicos que despertarão e manterão seu envolvimento no

processo de comunicação real na aula, criando assim um propósito para se comunicar e a vontade de verbalizar significados através de um sistema dinâmico e

flexível que lhe fornece os meios para criar mensagens para ele próprio e para outros.

Assim sendo, para criar um ambiente propício ao aluno, o material apresentado deve apresentar oportunidades para este aluno criar e adaptar. Sem que

determine em detalhes o conteúdo lingüístico ou conceitual que será produzido.

Na abordagem comunicativa, o material deixa de ser um fim em si mesmo e torna-se um recurso para o progresso de ensino-aprendizagem. Nesse sentido,

ele age como um elo entre o aluno e seus colegas, o aluno e o professor, o aluno e seu objetivo.

As atividades propostas na abordagem comunicativa deixam a cargo dos alunos muitas decisões que devem ser tomadas no decorrer das realizações das

tarefas. Divididos em grupos ou pares, eles percebem que não podem agir como meros receptores de informação, pois as atividades não são baseadas na

apresentação do professor e eles têm que trabalhar muitas vezes sozinhos, como ‘agentes de sua própria aprendizagem’.

Para que haja sucesso no ensino da língua através da abordagem comunicativa, torna-se imprescindível que desperte o interesse real do aluno através de

assuntos e materiais que forneçam a eles subsídios necessários a necessidade de comunicação.

A COMPETÊNCIA LINGÜÍSTICA E A LEITURA EM LÌNGUA ESTRANGEIRA

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19

A leitura não é uma operação de ritmo estável, nem mesmo na língua materna. Mesmo para um leitor experiente, é preciso conceber a leitura como

modulada, sempre suscetível de mudar de relação e de marcha.

Para uma leitura significativa, seja na língua materna, seja na língua estrangeira, é necessário que o leitor se concentre nos elementos importantes que

transmitem a mensagem, isto é, nos grupos de palavras ou frases, não em palavras isoladas. Justamente por isto, importa o desenvolvimento da competência

lingüística no aluno, primeiramente na língua materna, para que ele possa, ao ler o texto, compreendê-lo. E ao se deparar com um texto em língua estrangeira,

certamente este aluno, possuidor da competência lingüística, terá menos dificuldades em usar seu sentido em busca de significado, do que uma pessoa falante da

língua, mas sem competência lingüística.

O professor deve ajudar o aluno a formar um vocabulário básico de leitura e encorajá-lo a desenvolver, através da abordagem comunicativa, a competência

lingüística. Tanto na língua materna como na língua estrangeira, torna-se maçante para o aluno, ter de consultar dicionário em busca de significados a cada palavra

desconhecida.

É importante que o professor leve o aluno a esgotar todos os outros meios de descobrir o significado das palavras desconhecidas em um texto, antes de

consultar um dicionário. Se o aluno verificar no dicionário o significado de cada palavra desconhecida ao ler um texto, perde a visão do todo e no final terá uma

grande quantidade de informações desconexas, sendo impossível sua absorção.

O aluno deve ser capaz de deduzir o significado através do contexto em que a palavra se encontra ou através da estrutura da palavra, antes de lançar mão do

dicionário. Ás vezes o aluno não possui estas habilidades na sua língua nativa, então é necessário desenvolvê-las, pois isto é competência comunicativa. Com estas

habilidades desenvolvidas o aluno terá também facilitado seus problemas com a leitura em língua estrangeira. Anderson e Freebody (1979) afirmam que a leitura é

importante para ajudar o leitor a adquirir vocabulário e que um bom vocabulário, por sua vez, assegura uma melhor leitura. Isto se aplica também a língua estrangeira.

Segundo Smith (1991), aprendemos a maior parte dos significados das palavras que conhecemos através do contexto em que estão inseridas. Por isto,

quanto mais praticarmos a leitura, tanto mais eficientes leitores nos tornamos.

Então, como vimos, competência comunicativa permite, inclusive numa língua estrangeira, um aumento de domínio social e maior autonomia ao sujeito.

Visto que, a leitura e a compreensão vão depender do nível da competência comunicativa do leitor.

Há vários caminhos para despertar interesse no aluno para a aquisição e aprendizagem da língua. Muito do ensino e aprendizagem oral ainda se encontra

relativamente sub-pesquisado. E as propostas inovadoras que vem aparecendo vão encontrar barreiras no sistema educacional vigente. Mas sem dúvida, a medida

que o aluno desperta seu interesse por determinados assuntos e tem vontade de discutir ou emitir sobre seus pensamentos, este desejo de participação o ajudará

não somente na aprendizagem da Língua, mas no entendimento de outras disciplinas e na compreensão mais clara do seu próprio mundo. Ao fazer uso da

Abordagem Comunicativa no ensino da Língua Materna, devemos visar o despertar do interesse real do aluno e sua vontade de opinar, defendendo a aprendizagem

Page 20: Volume xi 2004

20

centrada no aluno não só em termos de conteúdo, mas também de técnicas usadas em sala de aula, deixando o professor de exercer o seu papel de autoridade, de

distribuidor de conhecimentos, para assumir o papel de orientador, encorajando o aluno a participar e acatando sugestões, só assim o aluno estará livre para pôr

em prática o uso da aquisição da língua e construir sua própria aprendizagem, dominando sua fala e aprendendo a ler e escrever com fluência.

BIBLIOGRAFIA

BREEN, M.P. and C.N. The essentiais of a communicative curriculum in language Teaching Applied Linguistics. Candlin, 1980.

BRUMFIT, C. J. Communicative Methodology in language Teaching. CUP, 1984.

CODER, P. Talking shop: language teaching and applied linguistics. Elt Journal, 1986.

DAVIES, N. F. Language acquisition, language learning and the school curriculum. System,1980.

FAERCH, C. et al. Learner Language and Language Learning. Multilingual Matters, 1984.

KRASHEN, S. D. Second Language Acquisition and Second Language Learning. Pergamon Press, 1981.

________(1981 a). Effective second language acquisition: Insights from research. In Alatis J. E. et al (eds.) The Second Language Classroom: Directions

for the 1980’s. OUP, 1981.

MALLEY, A . Teaching for communicative competence: Realty and illusion. Studies in Second Language Acquisition, 1980.

MATHEWS and REED, A. , C. Tandem. Evans, 1981.

VON DAHL, G. Travelling: a class project. Modern English Teacher, 1981.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº164 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

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EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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FLÁVIO DUTKA

O IMPASSE DA MODERNIDADE A PARTIR DE UMA LITERATURA DE INSIGNIFICÂNCIAS

João Carlos de Carvalho

PRIMEIRA VERSÃO

Page 22: Volume xi 2004

João Carlos de Carvalho O IMPASSE DA MODERNIDADE A PARTIR DE UMA LITERATURA DE INSIGNIFICÂNCIAS Professor de Teoria da Literatura, Literatura Amazônica, e Latino-americana - UFAC [email protected]

O século XX fez uma clara opção pelo homem medíocre, quem sabe dando continuidade a um processo vicioso, desde a Revolução Francesa, que se voltaria

inevitavelmente pela construção de uma vertente, e cada vez mais forte, de destruição de valores. Isso, sem dúvida, não desfaz ou diminui o sentido de certas conquistas,

pois viveríamos uma poderosa dicotomia de contaminação e renovação, porém, por outro lado, subentendia-se um universo ainda mais esmagado pela própria força de

juntar contradições. O homem ocidental, nesse sentido, não conseguiria suportar essas décadas todas pela frente se diante do espelho ele não revelasse a si próprio o seu

poder de superação e escolha. Desta feita, o que ele vem encontrando, em sua condição de infinda busca, seria o irremediável aprofundamento das marcas do processo

vivido. A mediocridade, no entanto, nos últimos cem anos, parece ser o paliativo de uma sociedade esmagada entre os sonhos e a competição.

A modernidade nasce sobre o crivo das grandes navegações, sem se tornar necessariamente moderna. Invade lentamente circuitos nunca antes

penetrados, fazendo do homem do baixo medievo uma fronteira entre dois universos dilacerantes. O que foi realizado a partir daí valeu muito mais pela

representação de uma impotência secular, de uma solução adiada por meio do aceno a um improvável futuro onde o homem ensaiava o seu drama na própria

turbulência de seu cada vez mais mal resolvido drama de humanidade, já que as contradições, no jogo das lógicas, impunham faces muito mais perversas do que as

previamente imagináveis. Entre as câmaras de tortura inquisitoriais e os malabarismos eróticos do Marquês de Sade, ficaríamos com a grave sensação de que uma

loucura tomaria conta de qualquer aparato racional. Nesse sentido, modernidade e humanismo se tornam, ao longo dos séculos, sinônimos inconciliáveis, já que

encontram os óbices de seus sentidos na própria desarticulação de tantos movimentos. O que, no entanto, conhecemos hoje como modernidade diz mais respeito

ao impasse de sê-la em torno de diferentes conquistas, sejam técnicas, industriais ou espirituais. O homem moderno – ele o é, dentro das muitas conjunturas que a

História mostrou – o ser exilado pela ampliação do seu potencial de condenado pelo reconhecimento (e ao mesmo tempo desconhecimento) de si mesmo.

Esse processo de desconfiguração na história humana representa, na maioria das vezes, um grande ponto de interrogação, como se o que se soubesse

fazer dependesse de um inevitável adiamento de ser. Do Renascimento até o século XX, passando pelo Barroco e o Romantismo, penduramos as nossas chuteiras

em diversos momentos de consagração e esvaziamento. Toda a consubstanciação estética de redefinição estilística dependia desse jogo de crenças e descrenças no

próprio fazer humano. A radicalidade humanística, inaugurada como fruto de impasse e afirmação, sempre dependeu drasticamente das articulações entre

racionalismo e irracionalismo, ponderando ora o imponderável, “imponderando” ora o ponderável. As três fases da modernidade, destacadas por Marshall Berman

em seu conhecido livro (16-7), implicam um processo de avanço e de progresso inevitável, mas não sem um alto preço a pagar. Sendo esse, ao meu ver, o aspecto

mais perverso da relação do homem com uma realidade sempre em construção, é a partir principalmente do século XVIII que encontramos uma condição

inevitavelmente agônica e que, nas artes, acaba por ser dilacerada pelo adiamento proporcionado pelas inúmeras experimentações vanguardistas dos séculos XIX e

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23

XX. Ora, seria muito fácil se conseguíssemos compreender a lógica desse processo como um vale tudo de todas as irresponsabilidades permissíveis entre o querer e

o fazer, já que o artista, nesse caso, ficaria com a obrigação de resolver, até certo ponto, as causas que explicam a infelicidade no mundo por meio das projeções

de uma fantasia transcendental, o que dramatizaria a desumanização no embate entre o referente e o representado, aspecto que fomentou, e de certa forma ainda

predomina em tempos pós-modernos, uma linguagem que se constrói na condição de ser destruindo-se.

Quando, hoje, enfim, voltamos o olhar já melancólico para trás, induzidos por não sei quantos projetos utópicos, de revoluções e acenos de revoluções,

num universo cada vez mais globalizado, e também capitaneado, pela força do urgente, indagaríamos sobre as respostas e saídas provocadas pelo

desencadeamento de um humanismo que só conseguiu sobreviver a partir da sua própria fragilidade de sustentação. O que nos resta, nos escombros de coisas e

homens legados pela chamada arte moderna do século XX, corresponde a um desafio incalculável de investigação que nos leva a alimentar o suficiente de um jogo

onde ninguém mais sabe qual a regra. A modernidade, no final das contas, pode ter se apresentado como um grande logro no tabuleiro esquizóide das questões da

dramaticidade humana e que jamais poderão ser vencidas, a não ser como mais um ensaio de compensação nesse eterno conjunto de perdas e ganho

programáveis de um cotidiano avalizados pela lógica dos progressos tecnológicos. Se, como eu já desconfio, chegamos a um novo século marcado pelos

esgotamentos, vivenciados até a flor da pele por aqueles que se recusam a compartilhar da miserabilidade desse inevitável dia-a-dia, supõe-se que, no fundo,

nunca houve um desafio a ser vencido no horizonte de qualquer modernidade, mas, sobretudo, uma incrível representação farsesca, no sentido mais medieval do

termo, do que o homem jamais deixará de ser, essa inesgotável fonte de aprendizado que, no fim das contas, dentro desse processo de fragmentação, não servirá

de grande coisa enquanto um projeto de homem para o futuro. Rousseau, e alguns românticos que o seguiriam, ficariam extremamente decepcionados se vissem o

que certas arquiteturas pedagógicas se transformaram diante da insolvência de tantas posturas revolucionárias.

Quando Harold Bloom coloca Samuel Beckett como o grande profeta do silêncio antes do ricorso viconiano (480), no meio da lama espalhada por

personagens cada vez mais esvaziados por seus conflitos sem sentido, temos, de certa maneira, um diagnóstico malandro de uma época que tudo esgota e tudo

promete. O século XX é o momento particularmente poderoso de desafio do escritor e seus fantasmas da modernidade. O homem medíocre, o grande herói desse

momento, supõe uma polarização com o tudo que para existir terá de ser nada. O nada como provocação das consciências adormecidas significa a possibilidade da

imprudência do mesmo processo de esvaziamento, o que torna improvável a superação pelo lado negativo de qualquer alternativa proposta. Entre Dom Quixote,

Kirilov e Estragon, por exemplo, subentende-se um abismo que aproxima e oprime os homens no que eles possam ter de mais natural. E, nesses casos, qualquer

gesto de loucura passa a soar como o mais previsível dentro de um circuito de apostas onde, no fundo, ninguém tem de valer tanto assim. O profeta moderno do

século XX, no fundo, anuncia principalmente o gesto apocalíptico antes do apocalipse. Se isso não resolve muita coisa, enfim, faz com que todos acabem vítimas de

si mesmos e o nada se torna o grande prêmio a ser alcançado.

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O grande pecado do Ocidente parece ter sido apostar na realidade de suas utopias. Nenhum filósofo, ou historiador, nos últimos dois séculos, parece ter

sabido aproveitar a provocação de suas próprias escolhas. Tudo se mostrou sempre muito certinho e previsível dentro da mobilidade que a História sugeria.

Ninguém, já desde Hegel principalmente, conseguiu escapar da intensa necessidade de superação. Camus nos dá um depoimento vigoroso, em O homem revoltado,

do que seria essa catástrofe do pensamento ocidental em torno do não realizável: o niilismo como última fronteira entre todas as possibilidades. De certo, não

ganhamos mais do que perdemos, mas o que perdemos começou a ter um preço muito alto na nova configuração das consciências. Todos partilhavam e, ao mesmo

tempo, ficaram alijados de um processo sempre muito maior de conquista. O drama kafkiano, no fundo, corresponde ao grito anônimo de todos e ninguém, pois a

humanidade não queria ser invisível, mas ao mesmo tempo não podia deixar de se atrair pela mediocridade, por personagens que representavam cada vez mais as

encruzilhadas entre o tudo e o nada. No despertar desta feroz consciência, o homem é um incontrolado que deseja o controle e foge dele para se aliviar de uma

tensão que corresponde aos séculos de herança adiada, pois, mais na frente, ele se deparará sempre com a possibilidade de um gasto a mais. As sobras são o

grande material a ser trabalhado por esse escritor que se atola até o pescoço na força se suas configurações.

Compreender a literatura no século XX é mergulhar nas raízes de um desespero insuportável. É lidar com as réstias de um paraíso ansiado e

sempre adiado. Um século em que os marxismos e os freudismos não puderam supor além dos seus pragmatismos incoerentes com qualquer tipo de

representação realista. Seria, mais ou menos como compartilhar com o triunfo capitalista à espera do fim do capitalismo, sempre, cada vez mais adiado.

Todos os gêneros literários no último século se tornaram, cada vez mais, narrativas de um silêncio absoluto. Fala-se porque já não se tem mais o que

falar. O nada não se traduz, apenas aguarda-se. Os personagens nascem naturalmente corrompidos por um universo intraduzível e não sabem se

comunicar se não se corromperem ainda mais com os valores que eles próprios condenam. Eis aí a maldição dostoievskiana, já pressentida em Bakthin: o

processo dialógico só termina por uma opção monológica (209-22). O discurso, para não morrer, necessita de doses de talento cada vez maiores, uma

maestria que obriga o escritor a distribuir acentos e tons de acordo com a necessidade de oxigênio de cada personagem. Eles vivem, mas na evidência de

sua morte, alimentando-se dos pequenos dramas de um cotidiano que tem de ser um inferno sem se esquecer de que poderia ter havido uma salvação.

Desta maneira, a complexidade a que se chega com os romances e peças de Proust, Kafka, Pirandello, Joyce ou Beckett (apenas para citar os mais

consagrados) ultrapassa qualquer fronteira de expectativa e desafio. Todos partilham um mesmo sentido de perda irremediável, cada vez mais sustentada pelo

domínio da linguagem. O background da modernidade no século XX, diferentemente dos momentos anteriores, entre tantas idiossincrasias estilísticas, é o impasse

de representação expresso pelas tortuosidades maneiristas de um universo em que se tudo é aceito nada bastará. Mas se existe ainda uma novidade a ser

perquirida nesse ponto, diz respeito ao processo inevitável de esgotamento que a linguagem, ainda hoje no limiar do século XXI, exibe despudoradamente. Todo o

arcabouço de sofisticação literária e estética desenvolvida durante o século XX nos legou, como em nenhuma outra época, um sentido doméstico de esvaziamento,

como se tudo se continuasse a partir do universo desolador do The waste land.

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Resta, ainda hoje, por assim dizer, um compartilhamento com os círculos viciosos dos modernos meios de comunicação, que ora nos dão sinais de

revitalização, ora nos submetem a uma apatia assombrosa. As letras, nesse sentido, proliferam, junto à tv, ao cinema, às rádios e, agora, à Internet, os

mecanismos que serão responsáveis por uma necessidade cada vez maior de autodestruição. A linguagem já não corresponde, ela apenas ensaia o seu poder num

suporte agônico. Diante disso, toda e qualquer tradição se torna descartável e a que poderá surgir se torna somente simulação, pois a única coisa que interessa é o

esvaziamento. Todo o processo desencadeado pela pós-modernidade indica uma necessidade de recomposição constante. O personagem medíocre é o grande herói

porque ele também é apenas um ensaio de linguagem. O romance Libra, de Don Delillo, toca bem nessa ferida aberta de um tempo que se alimenta do excesso e

das sobras desse excesso. Inventa-se um cotidiano porque ele se tornou o maior construtor de fantasmas no interesse de qualquer virtualidade. Anteriormente, os

personagens beckttinianos investiriam obsessivamente na opacidade das relações humanas, pois ali já se tinha uma idéia clara do que se leva ao processo de

esvaziamento. Hoje, o sentido é o próprio vazio e as relações humanas um mero detalhe entre tantas coisificações. O resultado, por exemplo, diante da tela do

computador, daria ao homem medíocre a afirmação de uma lógica de impotência, tal como um bom aprendiz da fruição gratuita que os seus antepassados do

século XX souberam tão bem aperfeiçoar ao longo dele. A grande diferença, me parece, que agora o que se funda é uma nova maneira de articulação de um gesto

derradeiro, como se o escritor estive condenado a reinaugurar a incompletude como saída, não mais como um brado de dor. O homem do século XX se contorcia no

seu universo de insignificâncias, o de hoje, num mundo cercado de virtuais totalidades, parece fadado a vivê-la na integridade de suas fantasias, o que impossibilita

um verdadeiro gesto de criação. A grande literatura que pode se formar daí necessitaria de um fôlego ainda maior do que o herdado do século anterior, já que o

imaginário, liberto em suas fragilidades de realização, faz do homem medíocre um ser ainda mais vulnerável às tentações da fruição imediata. Há uma tendência,

por exemplo, a se diminuir as páginas dos romances contemporâneos, não só pelas questões comerciais, mas também por uma falta de fôlego evidente dos novos

romancistas, presas que estão a um universo de pragmatismo e esvaziamento, de esvaziamento e pragmatismo.

Ao contrário de muitas tendências apocalípticas, acho que a literatura de qualquer tempo continua, de uma maneira ou de outra. O que nocauteia o

chamado “processo evolutivo” é a forma como o escritor e o seu tempo negligenciam a força de seu próprio tempo. A vitalidade de uma época, e algumas Histórias

nos mostraram isso, se encontra debruçada entre as crenças e descrenças legadas das convulsões antigas. O que move a literatura é sobretudo a vontade de

enfrentamento, sem isso não há literatura, não há sequer uma época que possa se dizer vivida. O homem medíocre é uma conseqüência de todo um esfacelamento

que se tornou altamente produtivo em boa parte do século passado. Hoje, por mais incrível que possa parecer, vivemos o impasse por termos sobrevivido a ele. O

impasse pós-moderno pode bem ser a frustração de não ser moderno, de lidar com as sobras de uma linguagem que não pertence a ninguém, já que os herdeiros

não querem ter novos filhos que lhes causem muitos problemas.

BIBLIOGRAFIA

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BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense-universitária, 1981.

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1986.

BLOOM, H. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

CAMUS, A. O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, s.d.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº165 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 165

FLÁVIO DUTKA

CONVITE À SOCIOLOGIA CIENTÍFICA

Clodomir Santos de Morais

PRIMEIRA VERSÃO

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Clodomir Santos De Morais CONVITE À SOCIOLOGIA CIENTÍFICA Membro fundador do IATTERMUND

em 1973, há 25 anos, ou seja, um quarto de século, que este seu servidor foi honrado com um convite do presbítero Núñez Jiménez, destacado político e

intelectual centro-americano de indelével memória, criador desta Universidade de Heredia, para participar da solenidade de abertura do claustro de seu recém-

fundado estabelecimento de ensino superior.

Era um momento crepuscular de extraordinária beleza, emoldurado pela não menos bela tumultuada geografia da Cordilheira Central, ostensivamente

retocada pelas nuvens que, ao prelúdio do anoitecer, costumam regar feixes e mais feixes de cores nos pináculos dos soberbos vulcões costa-riquenhos.

Por outro lado, cá embaixo a paisagem humana de um milhar de pessoas, entre convidados especiais e professores, manifestava claramente um

cosmopolitismo peregrino, fruto da grande crise institucional que vivia a América Latina e especial a América Central, cujos golpes de Estados

promovidos, ao antojo das transnacionais fizeram confluir para a República Liberal da Costa Rica cidadãos, professores e cientistas de quase todas as

nacionalidades de nosso continente.

Assim que, senhores e senhores, a Universidade Nacional da Costa Rica já nasceu conformada por uma considerável riqueza de quadros que, juntamente

com os quadros autóctones, rapidamente iriam torná-la um respeitável centro universitário de prestígio internacional.

Daí que é motivo de orgulho, de envaidecimento para todos os costa-riquenhos heredianos, e nós, os modestos colaboradores, o fato de ver esta

universidade realizar tão importante conclave internacional que reúne a inteligentsia universitária dos países de Ibero-américa e do Caribe.

É compensador contemplar, hoje em dia, os professores e técnicos que, naquela solenidade de cinco lustros passados, eram jovens e agora, já de cabelos

grisalhos, comprovam o desprendimento, a lealdade e a abnegação, o amor à semente bem semeada pelo presbítero Benjamin Núñez Jiménez.

Foi o mesmo padre Núñez Jiménez que participou do governo surgido da Revolução Burguesa da Costa Rica, encabeçada por José Figueres Ferrer, este

importante prócer das transformações históricas costa-riquenhas que, um pouco mais de cinco lustros antes, em 1918 havia sido protagonista da Revolução

Universitária de Córdoba, Argentina, juntamente com os estudantes o peruano Haya de la Torre, o guatemalteco José Arévalo e o venezuelano Rómulo Betancourt.

O movimento de rebeldia dos estudantes da Universidade de Córdoba, de profundas conseqüências nas universidades e na própria história da América

Latina, não foi, evidentemente, um fato isolado. Não. Porque, se houvesse sido, seria uma exceção incompreensível de uma das leis da dialética que explica a

inexorável interdependência dos fenômenos.

De fato, ademais das idéias de Gonzalo Prada e de Mariátegui no Peru, os “Ventos do Leste”, ou seja, da Revolução de Dezessete na Rússia, haviam soprado todo

o Planeta, fazendo surgir novas perspectivas para as alianças das classes dos despossuídos e para o acesso destes às universidades gratuitas, livre de discriminações.

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Um dos eméritos professores e mais ativistas da Universidade de Córdoba foi o exilado alemão Goldshimith que, dois anos antes, juntamente com Rosa

Luxemburgo, Liebenicht e Witffogel, eram os catedráticos da escola de formação de quadros do Partido “Spartaco” dos comunistas germânicos.

Segundo Carlos Tunnerman Berheim “os movimentos de Córdoba foram a primeira confrontação entre uma sociedade que começava a experimentar

mudanças em sua composição interna e uma universidade enquistada em esquemas obsoletos” e, ademais, teve “o afã de projetar o trabalho universitário no seio

da coletividade, que foi um dos enunciados básicos do Movimento, dando origem – segundo o mesmo autor citando a Gabriel Mazo – a uma “nova função” para a

Universidade Latino-americana, “a função social, isto é, o propósito de pôr o saber universitário a serviço da sociedade e fazer de seus problemas (da sociedade)

tema fundamental de suas preocupações”.

“Dita nova função representa para vários teóricos da Universidade Latino-americana a que mais contribui para tipificá-la e distingui-la, em certo modo, de

seus congêneres de outras regiões do mundo”.

A “ação social” que encarna a Extensão Universitária nascida em Córdoba presidiu, desde seus primeiros momentos de existência, a Universidade Autônoma da

Costa Rica. Com efeito, não faltou, até o presente momento, a esta universidade sensibilidade para encarar, para enfrentar, os problemas sociais que mais afetam aos

costa-riquenhos “extra-campus”: os operários atirados ao desemprego, os camponeses carentes de terra, a pequena burguesia cada dia mais sacrificada, o meio

ambiente permanentemente ameaçado; os direitos individuais dos cidadãos freqüentemente restringidos pela violência urbana (que cresce na medida em que o sistema

econômico imperante elimina massivamente postos de trabalho e a renda, multiplicando, assim, os excluídos), os direitos da mulher e dos adolescentes.

Ademais da inovadora experiência de autogestão, sua Escola de Planejamento Social, dirigida pelo Prof. Miguel Sobrado Chaves, realizou diversos eventos

capacitadores em autogestão durante vários anos, integrados por professores e alunos. Eventos de capacitação massiva envolvendo milhares de pessoas.

A esta jovem universidade se deve o decisivo empenho na estruturação de quase uma centena de empresas associativas ou comunitárias geradoras de

emprego e renda, algumas das quais estão entre as maiores e modelares empresas congêneres da América Latina, como são os casos da Cooperativa “El Silencio” e

“La Vaquita”. Em conseqüência deste extensionismo universitário sistemático, esta Universidade capacitou um grande número de professores e alunos no trabalho

de organização das massas de desempregados.

Já nos primeiros passos desta universidade, um de seus catedráticos (e que, hoje em dia, ocupa o digníssimo posto de Reitor), o Prof. Jorge Moral Alfaro,

estabelecia em um de seus escritos sobre capacitação massiva, o seguinte paradigma: “a capacitação de líderes ou de quadros dirigentes sem referir-se à teoria e à

prática da organização é irremediavelmente uma capacitação deficiente, que pode ter conseqüências negativas pelo menos em dois sentidos: de uma parte, se pode

criar uma elite com fortes possibilidades de desvinculação dos problemas da coletividade que originarão sua capacitação, através de canais de ascensão social

acessível em seu novo “status” e, de outra, ao restar aos quadros e às massas o conhecimento técnico da organização, torna-os incapazes de evitar a “entropia” nos

organismos sociais, provocada pela degradação destes e de seus integrantes e, por defeituosa ou inexistente vida orgânica, mumificada em atos litúrgicos”.

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A bandeira da organização dos excluídos para gerar postos de trabalho e renda mediante a metodologia da capacitação massiva foi conduzida por

professores desta Universidade de Heredia a El Salvador, ao México, à Nicarágua, ao Panamá, à República Dominicana, à Venezuela e à Colômbia, em cujos países

ensinaram a criar e a consolidar empresas de autogestão, a fim de elevar o nível de vida das populações carentes de centros urbanos e de áreas rurais.

Desta forma, a extensão universitária da Universidade Nacional Autônoma da Costa Rica não se limitou a ultrapassar as muralhas do “campus”, senão que

foi mais além das fronteiras nacionais cobrindo toda Mesoamérica, países do Caribe e da América do Sul. Não é por acaso que esta UNACR foi elegida a

“Universidade–âncora” do “pool” de universidades européias e latino-americanas que levarão a efeito o Doutorado centrado no tema da Capacitação Massiva para a

Autogestão de Empresas de Propriedade e Produção Sociais.

Desde o nascimento desta universidade até nossos dias, o mundo sofreu profundas mudanças, de tão acentuado que foi o desenvolvimento das forças

produtivas em seu entorno, durante estas três décadas que, à Extensão Universitária, evidentemente, de nenhuma maneira passou despercebido.

São tempos distintos, muito bem diferentes, dos começos da primeira universidade surgida no Planeta, no século X, a Universidade de Tombuctu, no sul do

Deserto do Saara, quase nos pântanos do Rio Níger, atualmente República de Mali, onde se conservam restos de suas ruínas.

Desde lá, do coração da África tórrida, no afã de extensionismo universitário, seu jovem geógrafo IBN BATUTA, viajou durante mais trinta anos, para o

Mediterrâneo cartaginês, romano e grego a fim de conhecer o Mundo e a História do mundo em troca da difusão de avançados conhecimentos africanos e islâmicos.

Neste plano, seguiu viagem para o Mar Negro, ao Volga, aos Montes Urales e ao Mar Cáspio, ao Cáucaso azerbaijano e, após uma pausa de um

ano em Samarkanda, capital do Império de Gengis Khan, enfrentou as grandes distâncias da Turcomênia, Uzbequistão, Sibéria, Mongólia e China.

Passado algum tempo, chegou-lhe a vez de viajar para Indochina, Península de Málaga, Malásia, Cingapura e Indonésia. Seu regresso a sua universidade de

Tombuctu, tratou de fazê-lo pela Índia, Caxemira, Paquistão, Afeganistão, Irã, Iraque, Turquia, Jordânia, Palestina, visitando, em seguida, Meca, na Península da

Arábia Saudita.

No entanto, não fatigado ainda de ditar, durante mais trinta anos, milhares de conferências (significado literal do Corão), em seu afã de extensionismo

universitário baseado no proselitismo islâmico, o professor IBN BATUTA dirigiu-se para o sul da África, chegando até a Ilha de Zanzibar, famosa, já desde aquela

época, pela exportação do cravo.

Ele buscou regressar ao Mediterrâneo através do Rio Nilo, visitando o Sudão, a Etiópia e o Egito para depois chegar ao Marrocos e, em seguida, em uma

caravana de camelos, atravessar o Saara e aparecer, já de cabelos grisalhos, marcados pelo tempo e sofrimentos, à sua Universidade de Tombuctu a fim de

reassumir sua cátedra de Geografia e História do Mundo.

O eurocentrismo, que cerca a sede da UNESCO em Paris, nunca possibilitou a restauração da mesquita onde funcionou, há mil anos, a primeira universidade

do mundo, porém, em contraposição, prestigia a conventos jesuítas, europeus e latino-americanos, nos quais nasceram Universidades muito menos antigas que a

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africana de Tombuctu. Além disso, deixa permanecer no olvido IBN BATUTA, o geógrafo viajante, extensionista universitário, que superou quase duas vezes as

distâncias percorridas pelo europeu Marco Polo.

As justificativas desse longuíssimo périplo por três continentes estavam somente no desejo de ensinar os conhecimentos africanos e de aprender sobre

muitos povos e culturas daquele mundo antigo. O propósito fundamental era – digamos – uma singular extensão universitária inspirada no intento da “globalização”

do Islam, ao longo e ao largo do Mundo conhecido, cujos confins orientais mais distantes, naquelas épocas, estavam na Australásia, na Indonésia de nossos dias.

Alá, o criador do “céu e da terra”, é o deus dos islâmicos e pré-determinador do destino de cada homem que se considera impotente ante esse Todo-

Poderoso, adorado nas mesquitas.

Passados seiscentos anos depois de IBN BATUTA, hoje em dia, nos atuais últimos anos do Segundo Milênio, África e Indonésia vivem outro tipo de

Globalização: a Globalização da miséria e do desemprego presidida por outro deus todo-poderoso: o dinheiro que, adorado no “templo” das Bolsas de Valores,

desde logo, deve suscitar outro tipo de extensionismo universitário.

Com efeito, a ONU noticiou, no mês passado, que a África apresenta trezentos e quarenta milhões de famintos e, em cada minuto, três africanos morrem de

desnutrição. Enquanto isso, a revista Visão, edição de 16 a 21 de agosto último (1998), informa que “com a firma Quantum Funds o célebre megaespeculador

George Soros, que possui fundos disponíveis ao redor de vinte bilhões de dólares, é capaz de obter créditos cem vezes maiores por meio do mercado dos derivados

e, em particular, dos detestáveis hedge funds (fundos de resguardo), popularmente conhecidos como cobertura de riscos. Ou seja, enquanto a Quantum Funds

pode facilmente mover duzentos bilhões de dólares, o quarto país mais povoado do planeta, Indonésia, se encontra incapacitado de conseguir nos seletos mercados

de dinheiro sequer um quinto destes créditos bancários, onde se movem como peixes na água os megaespeculadores”.

William Shakespeare, no “Timão de Atenas”, assim destacava a onipotência do “deus-dinheiro”:

“Primeiro, é a divindade visível, a transmutação de todas as propriedades humanas e naturais em seu contrário, a confusão e inversão universal de todas as

coisas, capaz de irmanar das impossibilidades; segundo, é a prostituta universal, o universal alcoviteiro dos homens e dos povos”.

Marx, comentando sobre esta catarse do dramaturgo inglês, disse que:

“A inversão e confusão de todas as qualidades humanas e naturais, a conjugação das impossibilidades; a força divina do dinheiro radica em sua essência,

enquanto que essência genérica desterrada, alienante e auto-alienante do homem. É o poder alienado da humanidade”.

“O dinheiro, enquanto possui a propriedade de comprar tudo, enquanto possui a propriedade de apropriar-se dos objetos, é, pois, o objeto por excelência. A

vulnerabilidade de sua qualidade é a onipotência de sua essência; vale, pois, como ser onipotente”.

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“Se o dinheiro é o vínculo que me liga à vida humana, que liga à sociedade, que me liga com a natureza e com o homem, não é o dinheiro o vínculo de

todos os vínculos? Não é também por isto o meio geral de separação? É a verdadeira moeda divisória, assim como o verdadeiro meio de união, a força galvano-

química da sociedade”.

Assim responde, atualmente, Jack Weatherford a esta indagação: “Os une uma só coisa: O dinheiro. Independentemente de que designe a sua moeda

como dólares, rublos, ienes, pesetas, marcos, balboas, francos, libras, pesos, escudos, colones, liras, reais, bolívares, dracmas, iuans, quetzales, rúpias, chelins,

cada uma opera essencialmente da mesma forma, como parte menor de um sistema monetário internacional que chega a cada granja, ilha e aldeia do Planeta. Sem

importar onde esteja e qual seja a divisa local, este moderno sistema possibilita o fluxo rápido e fácil de dinheiro de um mercado a outro”.

Já em 1677, “”Aphra Behn, uma dramaturga do século dezessete – acrescenta Weathrford – escreveu em sua obra “The Rover” (O Vagabundo) que “o

dinheiro fala com sentido em uma linguagem que todas as nações entendem”.

Para Marx, “na forma de dinheiro, o capital une a força de trabalho e os meios de produção; na forma produtiva produz menos valores de uso que

constituem os portadores materiais do próprio valor capital; na forma mercantil, ao realizar o valor do capital e da mais-valia, lança o valor de uso da esfera do

consumo (o individual e o produtivo)”.

Para esclarecer este caráter ilimitado do dinheiro e a força com que comanda todos os músculos da atividade humana, há que ir mais a fundo, à Divisão

Social do Trabalho (germe do conhecimento e da linguagem social”) que fez surgir, paralelamente à propriedade privada, a MERCADORIA, a célula da economia

mercantil, cuja expressão exponencial, o dinheiro, propicia, em forma de movimento, a solução das contradições do valor de uso e do valor de troca. Ambos são

gerados, respectivamente, pelo trabalho concreto (o dispêndio de energia do produtor) e pelo trabalho abstrato revelador (no mercado) do tempo socialmente

necessário para produzir a mercadoria.

De fato, as relações entre os seres humanos, entre comunidades, entre povos e entre países se manifestam com a mesma clareza na esfera do intercâmbio.

A produção mercantil não só inter-relaciona as pessoas como também sujeita aqueles alcançados pela circulação mercantil.

A novela “O Grande Norte” de T. Siomúchkin mostra eloqüentemente como, antes de 1917, os indivíduos de uma comunidade de caçadores e pescadores

lapões se ligavam ao resto dos telúricos. Eles viviam no norte da Sibéria, ao ocidente da longínqua Ilha de Wrangel, e estavam sempre pendentes da visita anual de

um único barco que, no degêlo do Estreito de Behring, conseguia penetrar no Oceano Glacial Ártico.

Charleston, possivelmente um prófugo da justiça norte-americana, dono do único armazém, enorme bodega daquela aldeia de lapões, comprava suas mercadorias

(em geral peles finas de foca e presas de leão-marinho) pelo que trazia no barco: chá preto da Índia empacotado na Inglaterra; chocolates suíços e holandeses feitos com

o cacau de Gana ou da América Central; café da Etiópia empacotado na Itália; alguns tecidos chineses exportados por ingleses; facões e machados “Solingen” da

Alemanha; rifles e escopetas de caça e uma variedade interminável de utensílios de alumínio para a cozinha e a mesa: chaleiras, frigideiras, panelas etc.

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Charleston, durante o ano, adquiria centenas de peles dos lapões; em troca de insignificantes chaleiras e panelas de alumínio ou em troca de pacotes de

chá da Índia; um que outro rifle, cujo preço equivalia a uma pele de raposa prateada, facilmente trocável vendia (a mercê da ignorância do comprador) por dez

peles que o proprietário do barco, seus consignatários em São Francisco da Califórnia, enquanto os revendedores em Nova Iorque, Paris, Tóquio, Londres e Viena

obtinham facilmente, dos consumidores finais, dinheiro suficiente para comprar armas de todo um batalhão.

Era a energia despendida no trabalho concreto de modestos caçadores dos bosques supergelados da Cordilheira de Verkoyansky; energia regada por

milhares e milhares de quilômetros mediante a vasta rede de artérias da circulação mercantil espalhada em três continentes.

Obviando o referencial dinheiro e fixando na energia representativa do trabalho que o encarna, Antonio Peña e George Dreyfus falam sobre “um

trabalhador alemão que, no total do processo produtivo, gasta 225 mil kilojoules de energia operando com uma gigantesca máquina que extrai vinte mil

toneladas de carvão por dia, as quais, por sua vez, vão produzir mais 165 milhões de joules/hora. Isso significa que esse indivíduo consegue mover uma

quantidade de energia quase 500 mil vezes maior que seu gasto total diariamente”.

E logo fazem a comparação desse trabalhador alemão com um agricultor de um país do Terceiro Mundo que, ao contrário do alemão, não usa despertador

elétrico, não se banha com um chuveiro elétrico, tampouco consome energia elétrica no desjejum e não usa automóvel para deslocar-se até o local de trabalho.

Dito agricultor remove a terra com um arado de tração animal; realiza na colheita de seu minifúndio (com a ajuda de sua esposa e filhos) uma produção

pequena que apenas cobre sua própria subsistência.

No que se refere à energia, este agricultor produz apenas 42 vezes o valor de sua própria força de trabalho, ou seja, produz muito pouco se se compara

com aquele trabalhador do país desenvolvido. Isto se deve à tecnologia utilizada que, no caso daquele produtor alemão, permite incrementar a relação de energia

despendida por energia produzida. No caso do camponês, ao que ao ponto de vista energético se refere, pelo fato de investir pouca energia em sua pequena

propriedade, move uma quantidade quase insignificante de energia.

Agora bem, como tanto aquele trabalhador do Primeiro Mundo, que maneja uma moderna e poderosa máquina extratora de carvão, comparado com o

agricultor de um país subdesenvolvido, que opera com arado movido a bois, através das relações globais de comercializações, ambos estabelecem vínculos ainda

que sejam indiretos. Pode ser que estejam separados geograficamente, porém a imensa rede do sistema de intercâmbio da economia mercantil capitalista, como se

fosse um sistema de vasos comunicantes, os mantêm articulados e, como tal, um dependendo do outro em escala planetária.

Aqui, seguramente a bomba de sucção do intercâmbio mercantil a nível internacional levará para o mundo desenvolvido os lucros resultantes da

desfavorável relação de energia despendida por energia alcançada do Terceiro Mundo. Isso, vale dizer, que as condições saudáveis de um produtor do Primeiro

Mundo resultam da sucção da energia despendida por milhares de produtores do Terceiro Mundo. A elevada esperança de vida daquele se alimenta da reduzida

esperança de vida destes.

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De modo que é um equívoco imaginar que a tecnologia de ponta montada sobre a informática, sobre a robótica, predominante no famoso “Grupo dos Sete”

países mais ricos do mundo, dispensem a participação, e até a existência dos outros 174 países que conformam a comunidade internacional. O conceito de

marginalidade é, pois um conceito falso, seja a nível local ou nacional ou a nível mundial, porque ninguém pode estar à margem da economia mercantil capitalista,

se acaso já foi alcançado pela circulação mercantil.

Os três milhões de hindus atirados ao desemprego pela crise financeira da Indonésia não podem ser rigorosamente considerados excluídos. Sua existência,

por si só, com tudo e fome que sofrem, jogam um papel importante na manutenção de baixíssimos salários, tanto nos países da crise financeira como no país de

origem, Índia, ameaçada a tê-los de regresso.

Quer dizer que as comunicações informatizadas, o microcomputador ou a “Internet”, neste caso, vieram apenas acelerar a apropriação da “mais-valia”

mercê da interdependência, a nível mundial, de todos os cidadãos inseridos na gigantesca teia de aranha das relações de intercâmbio, instaurada desde quando o

Código de Morse navegou em cabo submarino ou em ondas hertzianas captável pelo detetor de Brangli.

Tal e como se comportam os vasos capilares do sistema circulatório identificado por Harvey e Malpighi no século XVI, similar às redes hidrográficas, os

fluxos de energia despendida nas periferias resultam sempre incrementando o leito dos grandes caudais, que em biologia humana seriam as aortas superior e

inferior que o coração usa para fazer circular o precioso líquido, o sangue, com o qual se faz chegar ou restar energia às células/energia que provém de distintas

formas, da luz, em um princípio, ou dos alimentos e seus componentes”.

“Ao degradarem-se as moléculas das células (segundo Peña e Dreyfus aqui já referidos), a energia se transforma ou se “dissipa” em forma de calor. O

balanço é, afinal de contas, que uma grande parte da energia que se requer para levar a cabo esta constante renovação de seus componentes está contida nos

alimentos dos seres vivos” (alimentos que no intercâmbio mundial se denomina a mercadoria ou dinheiro).

Quanto ao transporte biológico, vejamos:

“Os organismos que estamos acostumados a ver na vida diária, inclusive nós mesmos – acrescentam aqueles cientistas da bioenergética – têm a

necessidade de tomar do exterior substâncias para viver”.

Os animais necessitam de alimentos muito diversos que contêm, por sua vez, uma grande variedade de substâncias e água. As plantas necessitam de água

e algumas substâncias que, ou bem pode gerar-se no próprio solo, ou devemos proporcionar-lhes como fertilizantes, que não são outra coisa que diferentes tipos

de sais de amônio e outros minerais”.

“Os organismos unicelulares como as bactérias ou os fungos protozoários também devem tomar do meio em que vivem materiais que lhe são indispensáveis

para subsistir”. “Muitas substâncias que existem nos seres vivos se encontram em concentrações maiores em seu interior que no meio em que vivem. Por exemplo,

o potássio está quase sempre em todas as células a uma concentração muito maior que os do meio que as rodeia e não é este o único caso”.

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“É um fato conhecido de todos que qualquer substância colocada em um líquido, por exemplo, tende a distribuir-se neste por igual. Uma gota de tinta

colocada em um vaso com água termina, com a passagem do tempo, por distribuir-se uniformemente em todo o líquido”.

“Isto se deve a que as moléculas do corante têm um movimento constante devido a uma forma de energia, a energia cinética. Como resultado disso,

qualquer substância tende a deslocar-se dos lugares de maior aos de menor concentração”.

“Assim, cada molécula ou partícula de uma solução tem uma quantidade de energia e a quantidade total desta depende da quantidade dessa substância em

um espaço dado. O caso é o mesmo que para o ar comprimido”.

“A energia contida em um tanque depende da quantidade que se tenha conseguido introduzir e a energia se manifesta como pressão. Para comprimir-se ar

se requer energia; a saída do ar, por sua vez, se pode utilizar para realizar trabalho movendo uma turbina, um compressor etc.”

Contudo, a vigilância necessária para não cair prisioneiro do Mecanicismo vulgar e menos ainda das tendências energetistas que afloraram na sociologia

política do século passado, sempre há que levar em conta que a diversidade do conhecimento humano não discrimina e não exclui, que não que necessita dos

avanços das diferentes ramificações científicas.

O exemplo mais eloqüente disso reside na importante contribuição da escrita contábil, ou seja, a Contabilidade de Partida Dupla – escrita esta resultante da

práxis cada vez mais complicada das transações mercantis do início do nosso atual milênio.

Segundo Sombart, pelo fato da Contabilidade de Partida Dupla ser o primeiro sistema que o ser humano foi capaz de construir e entendê-lo (com o

movimento de entrada e saída, ou seja, de retroalimentação), facilmente levou Copérnico e Galileu a entender a mecânica celeste do Sistema Solar, enquanto

Harvey e Malpighi, no campo da biologia, puderam conceber o sistema Circulatório.

Agora bem, na encruzilhada em que se depara, hoje em dia, a Humanidade, em plena crise laboral e ecológica do progresso técnico, os protagonistas dela terão

que criar experimentalmente os mais distintos espectros que ajudem na leitura, na equação e na solução de seus enormes problemas de conseqüências imprevisíveis.

O planeta afunda vertiginosamente em parâmetros e critérios éticos incompreensíveis, tais como:

a. as linhas de financiamento da Comunidade Européia para que seus agricultores não produzam alimentos, quando um terço da população da Terra padece

de fome epidêmica com milhões e milhões de óbitos por desnutrição;

b. a conversão do terrorismo vulgar na vulgarização do terrorismo de Estado;

c. a volúpia das políticas de privatização que conduzem à indiferença, frente à plétora mundial do desemprego e seu corolário imediato, a miséria e a

violência entre indivíduos, entre povos, entre nações e entres Estados;

d. a mistificação ao identificar como povo faminto aos cubanos, que ganham sistematicamente a maioria das medalhas de ouro das olimpíadas regionais, ou

aos coreanos do norte, que lançam satélite com sua própria tecnologia.

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Toda essa fenomenologia especialmente trágica do final do milênio rompe o esquema lógico-formal da Extensão Universitária nascida em Córdoba há oitenta anos.

O pior de tudo é que o fetichismo, em que o dinheiro e a circulação mercantil se envolvem, leva os indivíduos a não sentir a gravidade do processo violento

em que se vive e o confronto armado em escala mundial que já se vislumbra.

De modo que temos que desalienar o enfoque lógico-formal, já que o capital volátil transformou os “tigres asiáticos” (exemplos eloqüentes do êxito

capitalista) em tigres de papel; ameaça afundar a gigantesca economia japonesa e põe a tremer os povos mais distantes com o “crack” da economia russa.

Já não devemos pensar tão somente em termos econômicos. Temos que recorrer à biologia e tomar a energia que um ser humano necessita como unidade

vital de 2.100 calorias, a qual, em uma parte do Planeta, se acumula em forma de riqueza em detrimento de milhões de indivíduos que não alcançam nem metade

destas calorias. Esta riqueza é conseguida (enquanto trabalho consumidor de energia) eliminando a uns milhões do mercado de trabalho e a outros milhões da

própria existência vital, pela desnutrição.

Aqui me permitam apresentar uma modesta proposta: que a sociologia não se apóie somente nos critérios ou parâmetros da Economia para explicar aos

recipiendários da extensão universitária o complexo momento que vivemos.

Que ela recorra também à biologia porque a linguagem desta ciência explica melhor o que é a fome, sem o que resulta difícil convencer às massas de

alienados despossuídos como superá-la.

É, pois, um modesto chamamento a todos os extensionistas universitários e aos seus orientadores, a tentar a formulação dos primeiros princípios que

tragam em seu bojo a fundação de uma Sociobiologia Científica, nascida da prática conscientizada dos que trabalham com as massas de pobres, carentes,

necessitados, vítimas da praga mundial do desemprego estrutural.

Tentemos, estimados professores da UNACR, inicialmente, definir a Sociobiologia Científica como o tratado da ação das leis sociais (correspondente à forma

superior de organização da Matéria) sobre o movimento e o desenvolvimento da Matéria regida por leis biológicas.

Ela terá que preocupar-se com os três grupos fundamentais de fenômenos do mundo material: os fenômenos da vida social, os da natureza orgânica e os

da natureza inorgânica. Porém, principalmente pelos fenômenos da vida social, responsáveis que são pelo gigantesco salto da evolução do Homem, se se leva em

conta as mudanças havidas em seus quinhentos séculos de existência e compara com o milhão de anos anteriores que marcaram o ritmo das leis da evolução

biológica do Homem.

Com essa ramificação científica, lograr-se-á contrapor às teses anti-historicistas de biologização do Homem, algumas vezes inseridas na antropologia e

outras vezes na psicologia social, de onde predicam a inferioridade da mulher ante o homem; as teses racistas de inferioridade dos negros ou dos indígenas e,

ainda, não raras vezes, teses desenterradas das concepções filosóficas nietzschesianas da origem biogênica dos homens superdotados do futuro. É que os

defensores das ditas teses ignoram que o desenvolvimento das capacidades do homem provém de cada formação econômico-social que se sucede. É certo que “o

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homem é de procedência biológica, porém de origem social, ou seja, um ser sociogênico”. Tanto é assim que “não se forma no Homem nenhuma atividade

especificamente humana sem a ação da sociedade sobre o indivíduo e sua capacitação”.

Neste particular, Todor Pavlov joga luzes ao que afirma Friedrich Engels a respeito da mão considerando-a “não só o órgão do trabalho, porém também

produto do trabalho”. Com efeito, Todor Pavlov afirma que “em prol do desenvolvimento dos instrumentos de trabalho, o Homem transforma (desenvolve e

aperfeiçoa) os órgãos que lhe servem para a percepção sensível e para a reação objetivo-sensível e a suas (respectivas) funções”. Por outras palavras,

transformando o mundo que o rodeia, o Homem se transforma a si mesmo.

Como explica Adolfo Lertora, “muitas características biológicas do Homem são de origem social, pois foi o trabalho o que arrancou o Homem do mundo

zoológico. A maior capacidade craniana é tanto uma condição para a maior base neurológica do trabalho como o resultado do desenvolvimento social que

possibilitou a preparação de alimentos e, assim, o encolhimento do maciço mandibular”. Lertora se apóia no livro de Naturj, “A Origem do Homem”, que afirma que

“a comida preparada e amolecida não requer, para sua mastigação, dentes e mandíbulas muito desenvolvidos. Os instrumentos começaram a substituir, cada vez

mais, o aparelho mastigatório ao esmigalhar previamente a comida. Graças à diminuição do trabalho que devia realizar, o maxilar inferior dos primeiros homens foi

se reduzindo e dilatando até adotar sua forma atual de ferradura; a coroa dos caninos se reduziu e os molares, especialmente o último, se tornaram menores.

Estas constatações servem para contra-restar também aos da “biosociologia” que, segundo Iván Labra, costumam aplicar os conceitos de “seleção” de

“assimilação e desassimilação” da energia, de balanço energético etc. às ciências sociais.

Uma vez visto tudo isto, Lertora indaga: quê fica do darwinismo social? Quê fica da antropologia filosófica (meta-psicologia) instintiva psico-analista, base de

tantas lucubrações sócio-psicológicas contemporâneas? É assim que se baseia um prolegômeno de uma psicologia social científica, o princípio do antibiologismo na

conservação da natureza humana.

Aqui, pois, estão os pressupostos que emoldurarão a Sociobiologia Científica, para cuja fundação estou convidando os professores da Universidade Nacional

Autônoma da Costa Rica. Tão somente assim se poderá opor às tendências biosociológicas e biopsicológicas tão em moda há mais de um século e em rota de

colisão com o Materialismo Histórico e com o Materialismo Dialético.

Este chamamento modesto, o faço aqui em retribuição ao honroso convite que, no passado, me fez o Presbítero Núñez Jiménez para a abertura do Claustro

da Universidade Nacional da Costa Rica.

Faço-o aqui, e neste momento, porque creio plenamente na capacidade intelectual e na inquietação científica dos costa-riquenhos e dos que fazem e

honram a jovem e querida Universidade de Heredia.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº166 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 166

FLÁVIO DUTKA

A UNIVERSIDADE E O FETICHE DO

PRIVADO

Walterlina Brasil

PRIMEIRA VERSÃO

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Walterlina Brasil Professora do Departamento de Educação - UFRO [email protected]

A UNIVERSIDADE E O FETICHE DO PRIVADO

Em 1992 o V Seminário da Comissão “Educação e Sociedade” do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), realizado em Caracas, discutiu

uma série de questões relativas ao Ensino Superior sintetizadas em uma coletânea de artigos publicados em 1994 em um livro intitulado Dilemas do Ensino Superior

na América Latina.(Papirus). Neste seminário, a argentina Hebe Vessuri (civic-venezuela) já abordava sobre os “Acadêmicos Empresários. Por que e como alguns

professores escolhem trabalhar com o setor produtivo a partir do meio acadêmico”, e em seu artigo centra-se em uma importante questão: de como a academia,

através de seus pesquisadores se vinculariam a iniciativa privada com a finalidade de estreitar e transformar em tecnologias seus “produtos” (resultantes das

pesquisas que realizavam). Neste estudo algumas constatações (que vem sendo cada vez mais restauradas atualmente), indicavam duas evidências fundamentais:

em primeiro lugar a questão da desconfiança na visão do setor produtivo ante as idéias vantajosas apresentadas pelos pesquisadores; em segundo lugar que tal

desconfiança provinha especialmente por dúvidas a respeito da condição e da pesquisa que a universidade seria capaz de produzir. O estudo já apontava – fundada

em um enfoque microssociológico em 13 casos com iniciativas dentro do tema – para a complexidade das redes de valoração em que se formam as concepções

acerca da atividade científica e o que a tornaria relevante socialmente, quais perspectivas no setor estatal poderiam ser empreendidas para estimular a que essas

experiências prosperassem, bem como a visão universidade-cientista-setor privado sobre a natureza do conhecimento e sua aplicabilidade; a intenção comercial

sobre a ciência e os cientistas empresariando esta intenção.

Em que pese uma aparente visão mercadológica (que deverá ser atribuída a minha tentativa de síntese, não ao texto que menciono), em linhas gerais o

estudo indicava que as motivações e mecanismos que os acadêmicos empresários têm relacionam-se com uma revisão conceitual sobre até que ponto a

Universidade seria uma torre de marfim, em que medida e em que áreas poderia estar sendo e quais os mecanismos e estratégias que os cientistas acadêmicos

deveriam observar para não sê-lo e obter sucesso nesse vínculo universidade e iniciativa privada.

Recentemente, em Brasília, as impecáveis funcionárias da burocracia federal, corriam nos seus saltos para lá e para cá para trazer “ao corrente” os

expedientes e digitantes para dar suporte às inúmeras auditorias que iriam “visitar” as IFES por conta dos professores que estavam desrespeitando o instituto da

gratificação de Dedicação Exclusiva - DE. Constatou-se documentalmente que os professores que deveriam prestar serviços exclusivamente nas IFES Universitárias estariam trabalhando em instituições privadas: assessorando, coordenando e, a maioria, “dando aula” , em tempos e horários legalmente incompatíveis com os

critérios da referida gratificação ! O fato é que estariam deixando a descoberto as outras responsabilidades que julgam necessárias para o seu exercício funcional.

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As duas questões identificadas inicialmente evidentemente são muito distintas. Certamente não cabe compará-las. E não é este o propósito aqui. Mas

seu ponto de partida indicam algumas referências sobre como ajustar um diálogo sobre o uso do tempo profissional na tarefa acadêmica. Vê-se no primeiro caso,

tratar-se de ancorar um debate responsável quanto as reais condições e possibilidades de uma relação “científica” entre a Universidade e o setor produtivo,

apresentando evidências de como os “cientistas” acadêmicos estavam tratando isto e quais alternativas pareciam ser aquelas de maior sucesso. Dentre os treze

casos apontados, buscou-se traçar um debate sobre como o conhecimento que a universidade produz pode expandir-se socialmente e as circunstâncias em que os

próprios cientistas empresariam suas idéias.

A segunda questão, provavelmente majoritária em termos de conjuntura institucional, trata da comercialização dos recursos do governo pela iniciativa

privada, contando com a aquiescência e interesse dos próprios professores universitários. Estes necessariamente não são cientistas e não estão negociando

qualquer processo de inovação técnica ou tecnológica, mas vendendo – ou agregando mais renda aos ganhos individuais – sua força de trabalho mais elementar: a

docência. Todas as IFES Universitárias da Amazônia estão denunciadas em Brasília por conta de seus quadros “exclusivos” exercerem ilegalmente outras atividades

ou pertencerem, da mesma forma, a outras instituições. Fatos portanto incompatíveis com as normas de seus contratos. As maiores chegam a ter 90% (noventa

por cento) de seu pessoal DE denunciado com este comportamento.

Não creio que haja maior ou menor grau de importância ou dignidade entre uma ou outra tarefa (ciência ou docência), concordaremos que possuem seus

princípios estruturantes (para lembrar Habermas) bem distinguidos, uma vez que possuem condição, grandeza, natureza e função qualificados de maneira

específica. Portanto não é este o caso aqui também. A semelhança porém consiste em que ambas atividades devem ser objeto dos cuidados daquele que é

contratado para atuar nas IFES Universitárias. E é na relação com o contrato que partem todas as questões. Os comentários, justificativas, lamentos, assombros

sobre esta questão são de toda ordem: vão desde a questão salarial (“mas como viveríamos sem uma complementação salarial?”) às oportunidades pela

competência profissional que estes detém (“mas este profissional oferece distinção e nome a nossa instituição!”). De fato estes argumentos tem seu valor e tem

alguma força. E talvez sejam estes que esterilizem um pouco a polêmica a partir de outras possibilidades.

Tentaríamos então proceder uma análise a partir de um “outro lado”, cujo marco estaria na relação individual em referência a um marco institucional que

obtém como conseqüência duas atitudes: atuar a partir do público no público (como sociedade), com benefícios que podem ser intermediados pelo privado; ou

atuar no privado a partir do público; ou seja, em que termos há o ajuste do individual em proveito das condições que lhe são adequadas no ambiente do

funcionalismo público, utilizando-me da questão do regime DE da universidade para exemplificar isto.

A segunda questão portanto remeteria a uma necessidade de olhar mais atentamente os modos de ver a construção do ambiente, das relações e da

figuração de cada qual nos papeis profissionais dentro do que considera seu trabalho. Uma possibilidade que provavelmente gere compreensões mais próximas ao

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que menciono seria observar que há muito de fetichização do eu profissional, que se respalda no ambiente do cenário comportamental difundido e associado a

iniciativa privada.

A docência pouco exclusiva e a conversão ao fetiche do privado

Em termos gerais os fetiches são constituídos assim: uma boa dose de fantasia e ilusionismo, e uma certa leviandade. Ocultam-se nos “pecados” e/ou

devaneios, que não se mostram em essência, mas realizam e aliviam o “eu”. O serviço privado é pois, um fetiche, uma válvula de escape para o que não se

consegue fazer ou dizer. E o público é a “Geni” (para lembrar Chico Buarque) de nossa realidade. Não há evidências, em termos objetivos, que o privado preste

melhor serviço do que o público, tanto em qualidade como em resultados. Basta uma olhada no Censo da Educação Superior-2000 do INEP, região norte, para

vermos isto.

Daí onde vejo o caso da dupla face da docência pouco exclusiva universitária. Não creio na explicação simplista do aumento de ganho salarial. Seria

impossível dizer quanto iria satisfazer as necessidades de cada qual à medida que elas crescem conforme aumentam os ganhos e a necessidade de manter-se em

um certo patamar, cujos parâmetros são enormemente variáveis. Igualmente não creio em uma riqueza generalizada do sistema privado e uma fartura salarial aí.

As queixas mais contumazes em relação ao público estão em outro lugar, que organizo em dois elementos: 1) Na aparência das pessoas: gente mal vestida, mal

humorada, falta de higiene e modos domésticos generalizados, vão da forma de atendimento logo na entrada, e tem seu ápice nos banheiros (onde as vassouras e

panos de chão imundos convivem igualmente com papel higiênico, falta de água e vidros de desinfetantes abertos e ceras endurecidas por falta de uso); 2) Na

aparência dos serviços: soluções pouco funcionais, burocráticas, redundantes, ineficientes ou indisponíveis, uso das tecnologias de comunicação e informação

escasseadas e acintosas para os tempos e acessos atuais – onde as universidades gozam de certos privilégios – pouca eficiência e coerência interna, onde os

setores básicos pouco podem fazer para dar contar dos hábitos capitais da preguiça e das condições para uma política preventiva de manutenção do patrimônio,

além de proliferado o princípio de eqüidade interna (ganha quem falar mais alto ou representar algum tipo de liderança conspiratória).

O Estado, como uma instituição - cuja racionalidade burocrática prevalecente é traçada em favor da eficiência de seus usos e meios - admite por missão

oferecer serviços qualificados, reconhecidos e categorizados como bem social (a educação evidentemente é um deles), e diz qual o pessoal necessário, quanto pode

pagar-lhes e sob quais condições. Todas as organizações porém (estatal ou privada portanto), regem-se pela mesma lógica, além de agregar que seus quadros

profissionais devem prestar os serviços nos termos em que aceitaram fazê-lo. Essa é uma suposição, liberal, com boa dose de realismo técnico. Assim, os serviços

prestados nas diversas organizações geradas internamente no aparelhamento estatal devem ser ofertados da melhor maneira possível: bom atendimento com

presteza, higiene, pontualidade, competência e por aí vai. Ocorre que nada disto parece atribuível aos serviços do Estado, mas ao privado, embora o primeiro exista

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e ofereça estes serviços em função de que uma parcela significativa da população não lhes teria acesso se tiver necessariamente que pagar por eles, o que

pareceria à primeira vista uma motivação fabulosa aos que tem a oportunidade de prestar o serviço, de fazê-lo bem.

Independentemente se na esfera pública ou privada supostamente todos foram “livres” para fazer esta opção e submeter-se aos rituais divulgados ao

empregar-se. Entretanto o mesmo pensamento que criou esta “matriz”, a moveu para assentar-se em que estas evidências organizações-pessoas-serviços são relações

impossíveis de serem harmonizadas se a condição de gerenciamento não for, por “estilo”, privada. Já sabemos que pode não ser assim, ou não ser só isto.

O “outro lado” que julgo valer dar ênfase é que, em que pese os termos técnicos, junto com o Contrato, o contratado leva suas expectativas de realização

profissional e – pasme! – pessoal (aceitação, afeto, crescimento, paz interior, dentre outros). O ambiente de trabalho deveria se converter em um local favorável

onde todos se sentissem bem, até porque é o local onde a pessoa passa a maior parte de seu dia. Leva pra este lugar porém seus “pecados capitais” (a preguiça, a

luxúria, vaidade, gula, inveja, parecem os mais destacados) disputados agostinianamente com a resistência à corrupção individual: entre o senso de dever e o deus-

dará em que o ambiente de trabalho se converte.

Converteu-se em senso comum, com fortes evidências empíricas, que a condição do público é irreversível e que jamais poderá ser alterado ou ser diferente

para melhor, porque o público (ou as pessoas?) já estão tão corrompidas que será impossível alterar a conduta interna. Pior que isto, as rotinas institucionais

viciadas e burras são igualmente impossíveis de serem alteradas porque algumas inteligências funcionais já cristalizaram-se e o pressuposto é sempre verdadeiro:

todos somos culpados, inclusive antes que qualquer denúncia de incompetência seja feita. Além disto, as relações “estáveis” chegam as vias da agressão a

privacidade alheia.

O serviço privado entende-se que deva ser assim: não há permissão para o mau-humor, para a falta de maquiagem e perfume, de vestimenta adequada,

para o adiamento àquele serviço dentário nunca feito e, muito menos, para a impontualidade, a negligência e a desinformação. Como no público, são pessoas

aquelas com as quais deve-se conviver, obviamente. Mas, ao contrário deste quem não corresponder, manipular as regras do jogo, beneficiar-se com maledicência

da ausência alheia, pode desaparecer da rotina, sumir: ser demitido! As propostas pedagógicas da iniciativa privada surgem da vontade (e obrigação) que a

instituição tem para expandir-se e independem da disposição dos contratados em alterar ou não seus horários e disponibilidade, embora seja sempre bom que se

consiga que o “trabalhador” colabore. Entretanto, é o arcabouço do privado o que parece realmente compensar. A gratificação da aparência das pessoas e do

ambiente, da disponibilidade e condições de trabalho, da modernidade em equipamentos e usos.. além disto há o reconhecimento público dos “ bons serviços” que

o indivíduo presta, a recompensa social aos mais dedicados. Isto é um fetiche. Realizado, desencadeia prazer.

Parece que são os mesmos indivíduos os que trabalham (ou experimentam) os dois espaços. Seja pela docência ou iniciativa das relações científicas

empresariais interinstitucionais, não se duplicam numericamente; transitam nos dois ambientes ou mercados, mas indicam dois comportamentos, aceitos por cada

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qual da mesma maneira. Ora, se um número tão expressivo de profissionais possuía ou possuem vínculos duplicitados, então a depreciação de um ambiente (a

opção seria do público), parece ser compensada pelo fetichismo do outro e ajuda a disseminar a ilusão.

A Universidade e a distorção a partir do fetiche

O fato é que o fetiche do privado gera um ajuste no sistema privado, as custas do desequilíbrio do público. Em que pese a baixa capacidade estatal em

resolver os agudos problemas de eficiência e provisão de um sistema que gere bons serviços e respeito aos seus trabalhadores (além de uma profunda sensação de

que sempre alguém serve de “boi-de-piranha”, enquanto casos que seriam eticamente mais agressivos, sequer são tratados), não seria o caso de sucumbir-se uma

perspectiva social a partir da incapacidade de reação política dos indivíduos. Não se trata de medir um erro pela amplitude ou profundidade da ignorância sobre um

outro que se possa cometer.

As Universidades públicas são, ainda, órgãos do Estado. Procuram preencher seus quadros com um ritual específico, mas que possui as mesmas

conseqüências da iniciativa privada: um contrato. Mas trazem (ou propugnam) uma tradição política mais constante. As expectativas sobre as condições de trabalho

fizeram com que a ineficiência do estado (funcionários e estrutura) a acompanhasse e convencesse de que é real, abrangente e, o que considero pior, verdadeira

em certos termos.

As corporações por sua vez acabaram por tornar-se um complicador no setor público. Há uma necessária convivência vigiada contra o abuso do seu

proprietário nesta esfera, uma vez que, no serviço público, o patrimônio é, evidentemente, “público”... deveria oferecer um benefício e sentimento coletivo sobre

ele, isento dos humores políticos do governo ou do governante. Do governo, porque passa; enquanto do serviço, supostamente, porque permanece. Daí o bem

público deveria ser socialmente consistente. O fetiche deveria ser auto-identificável e regulável entre os pares. Esta questão é hoje um fio da navalha na tensão

sobre quais questões deve-se abordar “para avançar nas lutas”. Tem-se na vigilância corporativa uma ética atabalhoada. Por sua vez, o “patrão” do público, por

conta de sua natureza, consegue fazer maior pressão e exercer mais eficiência nas suas exigências rumo ao sistema privado (acabando também por apoiá-lo) do

que no seu próprio domínio. Assim, a política para o sistema público e as corporações que se instalaram não conseguiram uma ponte de equilíbrio entre o bom

senso administrativo e a insanidade das relações internas.

Se o que tratamos aqui faz algum sentido, então o instrumento legal para a mera existência de uma gratificação de exclusividade aos docentes, parece

dispensar que se perceba um fetiche também em outras categorias, em especial os técnicos-administrativos. Mas não é assim. As relações que se desenvolvem

entre ambas parecem servir mais para confirmar o fetiche do que para contraria-las. As pessoas são, essencialmente, pessoas. Não se alteram quando

“categorizadas”. Simplesmente têm lugar, rotinas e papeis distintos, ainda que possam ser entendidos como complementares de algum modo, ou interdependentes

em termos genéricos na realização institucional.

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Em termos de função docente na universidade, de fato o horário de trabalho não indica a dedicação profissional a ele. Neste caso, docentes e técnicos-

administrativos possuem lugar e papeis que se distinguem e que jamais tiveram em disputa e, muitos menos, possuem hierarquia baseada em superioridade de

valores, que naturalmente se sobreporiam. Não é uma questão meritocrática, por exemplo. Pretende-se unicamente que cada um saiba o seu lugar, o que deve

fazer para atingir as metas institucionais, com as funções que lhes cabe. Limites que, no privado, parecem regras que não tem um porquê de dúvida

Agora, o caráter nacional das IFES Universitárias e seu valor social intrínseco inscreve que o ônus para o país em termos de sustentar uma rede improdutiva

e incompetente de docentes (na tarefa elementar da docência, e não vou discutir que o provão indique competência, pois seria um debate deslocado aqui), é um

prejuízo intransferível. O que cabe e pelo que responde a categoria docente quanto a publicações, rendimento, pesquisas, formação científica e profissional, são

indiscutíveis em termos de trajetória e compromissos institucionais e nada comparáveis com a atividade-meio. O “contrato” do docente lhe impõe isto. O que não

ocorre com os técnicos-administrativos, menos com os alunos e que, portanto, a qualificação para ciência do pessoal administrativo não é a regra. Se o torna,

converte-se a convivência docente.

Quero dizer com isto que as mágoas das relações profissionais advindas por comparações entre a rotina docente e técnica são descabidas. O que vejo

discutível é a transferência e conseqüência política disto (como por exemplo o percentual da representatividade nos órgãos de deliberação interna) e o devaneio da

arrogância e do pedintismo que as vezes circundam as relações entre estas categorias. Confunde-se ou faculta o uso bons modos, com a obrigação ou desobrigação

de bom atendimento entre todos. Isto não tem a ver com saber o seu lugar ou disposição para o trabalho, ou ainda, incompetência profissional.

Por certo os docentes duplistas estão de alguma forma se resolvendo e sabe-se pouco dos técnicos-administrativos neste tema Seja em termos burocráticos

ou políticos se resolverá (o Estado tem a capacidade de convergir para uma das soluções), mas isto parece que terá repercussões limitadas, com efeitos individuais

e manutenção do fetiche, que pode não incidir na qualidade política do clima e trabalho universitário, tão necessário para o seu crescimento. Parece que, resolvida a

questão individual e “driblando” as ameaças a possíveis prejuízos pessoais, o abandono a condição pública da universidade e a sua tradição social, parece

acomodar a participação do fetichista enquanto sua capacidade de se comprometer abertamente com os problemas que hoje esta instituição enfrenta: uma

gravíssima crise de pertinência científica, social e política.

Uma reação possível ao fetiche do privado

No privado as pessoas aparentemente se realizam. Podem fazer e acontecer; trabalhar bem, pensar sem vigiar o outro (ou não pensar), submetendo-se as

regras está tudo bem e podem acumular renda. No público é o peso da carga da convivência tipo “pele-de-bufalo”: o tempo todo na água para controlar a

temperatura interna, pois sem porosidade adequada, sem escapatórias, há que acostumar-se. O que pode estar ocorrendo, além dos incontestáveis fatos políticos

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agressivos a dignidade do trabalho, é que o fetiche está às vias de uma conversão esquizofrênica e daí talvez não se consiga psiquiatria organizacional, nem plano

de modernização de gestão que resolva.

O que penso que deve ser anotado é que o público ainda tem uma causa. É preciso iluminá-la. É isto que o fetiche abre mão. Quando a Educação Superior,

enquanto bem público, consegue desenvolver-se com o olhar para a relevância das questões sociais importantes como a busca da equidade social, da prosperidade

econômica sustentável, do combate a pobreza, da construção de inteligências livres, da formação de profissionais que sabem de seu trabalho, do resgate da

compreensão necessária de valores sociais que incidam em relações interinstitucionais proveitosas em termos científicos, do reconhecimento permanente do sujeito

multifacético, não se sucumbe a “relevância do lucro” ou ao conforto dos prazeres humanos por si. Fetiches são íntimos, não justificam uma degradação política

mais profunda em termos institucionais. Não advogo nenhum voto de pobreza ou abstinência de ganhos, mas o monitoramento à pequenez individual em forma de

um diletantismo profissional e ao abandono das possibilidades de tornar a universidade viável e competente.

Trabalhar bem e sentir-se recompensado por isto, em termos de universidade pública, implica em uma reconversão das consciências e o aprazeiramento pela verdade onde se consiga encontrar condução, criatividade e disposição no ambiente de trabalho que seja suficiente para gerar rotinas onde o combate à farsa

ética, à impunibilidade e à lerdeza, seja lei. As forças dessas três condições engordam em muito a busca pelo privado e a esculhambação do público. O respeito ao bem público como um bem comum não pode gerar uma “tragédia dos comuns” na universidade, onde o uso abusivo dos recursos burocráticos, dos valores aí

embutidos, da omissão política e das relações desrespeitosas permitem que o que poderia ser durável seja desmontado, e os indivíduos acabem por motivar-se (e

serem convencidos) mais por seus fetiches do que pelo senso de eternidade que a humanidade conseguiu construir. E daí perdermos todos nossa capacidade de dar

sentido a nossa existência pela condição política que esta existência propõe na prática acadêmica e científica que é a luta pelas grandes causas. Os acadêmicos

cientistas e seu trabalho com a iniciativa privada vem demonstrando isto: há mais coisas para negociar que aulas ou consciência.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº167 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 167

FLÁVIO DUTKA

A ESCOLA QUE (NÃO) QUEREMOS PARA O

ENSINO MÉDIO

Jorge Luiz De Mattos

PRIMEIRA VERSÃO

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Jorge Luiz de Mattos A ESCOLA QUE (NÃO) QUEREMOS PARA O ENSINO MÉDIO Professor de Biologia

O Texto que apresentamos objetiva analisar alguns aspectos de atividades e procedimentos no magistério, ao nível de ensino médio, que não podem

mais alicerçar uma educação de qualidade dentro do contexto atual. Pretende apontar novas direções, sugerindo novas atividades que podem ser mais valorativas

na tarefa de se estruturar uma aplicação pedagógica mais eficiente e por estar mais em sintonia com as características cognitivas claramente percebidas nos

educandos. Ainda que essa abordagem da problemática do ensino médio se mostre parcial e possa estar sob uma perspectiva fenomenológica, pretendemos

denunciar o senso comum que norteia grande parte do fazer pedagógico no ensino médio como também envolver nessa atitude denunciativa a inépcia percebida

em ações pseudo-educativas que se pretendem educativas.

Nos textos da LDB como também, nos do PCNEM o ensino médio aparece como formação básica: LDB (Lei 9.394/96). Isso sugere, ainda, maior

importância dessa etapa da escolarização, maior responsabilidade com a qualidade e eficácia da aprendizagem. Essa importância e responsabilidade tornam-se

evidentes quando as leis (9.394/96) e (5.692/71), são comparadas em suas perspectivas: Enquanto a segunda aparentava o ensino de 2º grau dirigindo-se para

uma dupla finalidade, a primeira apresenta o objetivo de reunir essas finalidades – habilitar o educando para o mercado de trabalho e proporcionar as condições

necessárias para o prosseguimento nos estudos – assumindo assim todo o ônus de uma formação “holísticas” do indivíduo. Essa condição “holística” do ensino

médio é percebida no Art. 22: “tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e

fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Art. 22, Lei 9.394/96 - Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros

Curriculares Nacionais: ensino médio. Brasília: Ministério da educação, 1999, p. 21). Devemos refletir sobre a aprendizagem que efetivamente estamos viabilizando

no âmbito do ensino médio, não podemos perder a orientação que “propõe-se, no nível do Ensino Médio, a formação geral, em oposição à formação específica; o

desenvolvimento de capacidades de pesquisar, buscar informações, analisá-las e selecioná-las; a capacidade de aprender, criar, formular, ao invés do simples

exercício de memorização. […] São estes os princípios mais gerais que orientam a reformulação curricular do Ensino Médio e que se expressam na nova Lei de

Diretrizes e Bases da Educação – Lei 9.394/96.”( Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Brasília: Ministério

da educação, 1999, p. 16)

Assim, idéias e mais idéias surgem, problemas e mais problemas são discutidos acirradamente em torno do ensino médio objetivando a qualidade na

aprendizagem. Só isso: idéias, problemas e discussões, enquanto o ensino torna-se cada vez menos produtivo, e as melhorias por todos pretendidas ficam cada dia

mais distantes, perdidas no tempo e no ânimo de professores e alunos. A verdade é que considerando a evolução que ocorre em nosso mundo (mundo globalizado,

mundo pós-moderno), pouco tem sido feito para melhorar o ensino visando um bom produto final – o aluno. Sabemos que a escola é um dos aparelhos ideológicos

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do Estado, mesmo assim devemos reconhecer a necessidade de mudança e adequação do proceder educativo, do modo de se produzir conhecimento e reconhecer

que cada etapa do ensino formal tem suas características próprias relacionadas aos seus objetivos específicos. Assim, como o ensino fundamental sempre foi alvo

de investimentos e melhorias em sua estrutura com o objetivo de sempre melhorar sua qualidade, o ensino médio também é merecedor de tais e totais

investimentos na melhoria de seu processo de ensino-aprendizagem.

Sabemos que o modo e a qualidade de produção do conhecimento implica na evolução tecnológica e esta, está diretamente ligada a um momento

histórico do fazer de um povo, sendo assim, novos tempos reclamam novos investimentos, criam novas necessidades, sendo preciso nova tomada de posição

filosófica, epistemológica, moral e ética frente aos problemas que surgem como conseqüência da complexidade desse momento. Nesse contexto, o sistema

educacional no seu direcionamento ao ensino médio deve rever suas ações no sentido de oferecer uma escola que atenda às necessidades impostas pela pós-

modernidade, fazendo emergir a escola que queremos e ir dissolvendo a existência daquela que já não satisfaz os anseios da nova geração.

Queremos uma escola de qualidade que valorize nosso trabalho e nossas capacidades. Escola divorciada de utopias, demagogias, má gestão e

(im)posições ideológicas. Escola de conteúdo interdisciplinar com abordagem contextualizadora dentro de um ambiente motivador utilizado predominantemente

para os fins da educação. Escola que não se mova na cadência senil de uma pedagogia adiposa. Escola que represente espaço privilegiado ao discurso de libertação

do espírito crítico e criativo do educando, na produção do conhecimento, aprimoramento de habilidades e no aprender a pensar. O imperativo dessas condições se

justifica no momento em que percebemos que “as novas tecnologias, que atingem o jovem através de distintos caminhos (jogos, computação, etc.), vão confrontar-

se com a escola, se esta não for capaz de repensar os temas e as novas lógicas do conhecimento, a estrutura icônica e tecnológica que forma as percepções dos

jovens, a autonomia dos mesmos com reação ao uso dessas tecnologias, os métodos e os meios educativos, o valor da vida cotidiana, etc.3”. Por Isso, a

“reelaboração do ‘saber’ tão propagado pela Escola Tradicional, do ‘ser’ estimulado pela Escola Nova, do ‘fazer’ enfatizado pela Escola Tecnicista e do ‘coletivo’

defendido pela Escola Progressista faz-se necessário num mundo em que as fronteiras estão cada vez mais tênues, as diferenças ameaçadas e o avanço tecnológico

permitindo conhecimentos mais amplos, de forma mais rápida. […] Toda a escola, nessa perspectiva, necessita se modificar a partir das pegadas do passado,

corresponder ás necessidades dos tempos pós-modernos e aos que ainda virão4”.

Passada a visão pobre e estreita de que o ensino médio deve ser conduzido pelas mesmas características e atividades lúdicas que conduzem os

primeiros ciclos do ensino fundamental (talvez por falta de cientificidade no fazer pedagógico no âmbito do ensino médio) importa assumir a responsabilidade de

uma educação pragmática capaz de estabelecer materiais e métodos que nos aproximem da verdadeira aquisição de conhecimento. Estamos hoje, inseridos numa

nova dimensão da história onde a comunicação, a informação e os efeitos da globalização fornecem elementos para a construção de um novo modelo arquitetônico

3 MENEZES, Luiz Carlos Menezes (org.). Formação continuada de professores de ciências no contexto Ibero-Americano, 2001, p. 60. 4 BARBOSA, Laura M. Serrat. PCN: Parâmetros Curriculares Nacionais. Vol 3: O papel da escola no Século XXI. Curitiba: Bella Escola, 2002, p.p. 30-83.

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de estrutura cognitiva apresentado pelas novas gerações. Nesse contexto o anacronismo pedagógico não encontra lugar. “Este é o cenário que se descortina para a

educação hoje. Sem dúvida, um cenário de crise porque estão sendo desestabilizados os principais alicerces do pensamento moderno sobre os quais se funda,

ainda, a prática educativa. Vivemos, é certo, novos tempos, seja no campo da ciência (produção), da ética ou da estética […], o pensamento pós-moderno, ressalva

feita ao seu viés modista e radical, reflete uma realidade em transformação que precisa ser assumida criticamente pela teoria educacional e refletida na perspectiva

de seu significado, presente e futuro, para a prática pedagógica” (GOERGEN, 2001:76).

Hoje, num cenário de pós-modernidade “mais importante que o imperativo dos sentimentos é o imperativo da mobilização das inteligências humanas, o

investimento redobrado no saber e na dimensão educativa permanente5”, esta posição de LIPOVETSKY encontra grande respaldo no que diz GOERGEN: “A crise de

legitimidade da epistemologia, da ética e outros domínios da cultura convencional aponta, conforme assinalam os pós-modernos, para a importante questão da

reconceituação educativa. Esta é uma das questões fundamentais que se colocam hoje para a teoria da educação: quais os fundamentos do nosso proceder

educativo; com fundamento em quais princípios fazemos a relação dos conteúdos que ministramos e dos métodos que usamos” (GEORGEN, 2001: 69-70).

Nesse sentido a melhor utilização do tempo, energia e trabalho deve ser compromisso da escola, preservando aquilo que lhe é essencial sem permitir

uma inversão de valores. SAVIANI ilustra muito bem essa inversão de valores: “[…] Não é demais lembrar que esse fenômeno pode ser facilmente observado no

dia-a-dia das escolas. Dou apenas um exemplo: o ano letivo começa na segunda quinzena de fevereiro e já em março temos a Semana da Revolução; em seguida,

a Semana Santa, depois, a Semana das Mães, as Festas Juninas, […], Semana da Pátria, […], Semana da Asa etc., e nesse momento já estamos em novembro. O

ano letivo se encerra e estamos diante da seguinte constatação: fez-se de tudo na escola; encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas muito

pouco tempo foi destinado ao processo de transmissão – assimilação de conhecimento sistematizados. Isto que dizer que se perdeu de vista a atividade nuclear da

escola, isto é, a transmissão dos instrumentos de acesso ao saber elaborado6. E assim se promove até carnaval na escola sob o subterfúgio de atividade cultural.

Atividades dessa natureza devem fazer parte de um outro “mundo” e não do “mundo” da escola, sobretudo se não são essenciais à escola, ainda pior: homogeniza

todos os alunos sob um mesmo desejo sem dar opções quando na verdade deveria respeitar as individualidades, as concepções religiosas, filosóficas e pessoais. A

escola a todo custo deve portar-se como diferencial nas atividades sociais, pois o lugar que ocupa é ponto de sobriedade. Uma escola dogmática não pode

compartilhar de uma consciência filosófica no âmbito do ensino médio e, portanto, só lhe cabe o espaço do senso comum.

Não queremos uma escola que não tenha poder de intervenção na vida do educando, elevando suas condições sociais, modificando o sentido da

estratificação cinicamente dita social onde a mobilidade se faz mais horizontal que vertical. Para que a educação seja uma forma de “intervenção no mundo”

5 LIPOVESTSKY, 1994, p.p. 24-25. 6 SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-crítica: primeiras aproximações, 2000, p. 21.

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conforme a concepção de Paulo Freire7, devemos começar pela sala de aula, dizendo ao educando que a manutenção da sua condição precária é exclusivamente

produto de ideologias reacionárias e não vontade de Deus, ainda mais se tal condição precária é uma realidade cognoscível, se está no âmbito do observável, do

percebido podemos então, apoiados em Augusto Comte8, dizer que “positivamente” tal condição precária não se encontra no “estado teológico” porém afirmar que

são desígnios de Deus é desvelada e descaradamente intenção da ideologia, assumindo o mesmo propósito que em Gênesis capítulo 2, versículos 16 e 17 e capítulo

3, versículos 1 e 5, como também a preocupação de Deus em Gn 3.22, da mesma forma é o temor da ideologia e, a exemplo de Deus que “colocou querubins” e

“uma espada” refulgente “que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida” (Gn 3.24), a ideologia por estratégias mais sutis porém não menos perigosas

que a espada do “bondoso” Deus, mas com o mesmo intento de “bondade” também guarda e restringe o caminho da árvore do conhecimento. Porém esta condição

pode ser alterada pelo poder da educação se ele tornar-se proprietário dos conhecimentos e das formas de construção desses conhecimentos. Não será pela

resignação que a educação exercerá poder de intervenção, mas por seu caráter axiológico e revolucionário tendo no ensino médio os elementos e o espaço

necessário. Não podemos aceitar que o ensino médio seja palco da subserviência, do discurso vazio ou polissêmico – o que seria a mais pura expressão da

ideologia. Segundo DEMO9: “A ideologia é necessidade do poder, porque é a linguagem específica de sua justificação. […] Alicia o obediente, garantindo que a

obediência não é mais que a condição de sua felicidade. […] Apresenta a insurreição como afronta, a resistência como traição, a crítica como detração”. A

educação é um ato político porque o homem é um ser político ainda que assim não se reconheça. Perigosa é a ideologia que alicerça o ato político, nociva quando

multiplica a mais-valia, dissemina a fome, disfarça a ignorância (mas empenha-se em mantê-la), ilude o ignorante dizendo no seu discurso que tudo é desígnio de

Deus ou são fatalidades. Não são fatalidades ou obra de inspiração teológica, são condicionamentos. Isso pode ser demonstrado quando se verificam as ações da

educação e suas derivações nos variados segmentos da sociedade onde se apresenta diferenciadamente.

Se o sistema, através da ideologia dominante, esforça-se em manter-se, cabe à educação promover uma intervenção que minimize ou acabe com a

impermeabilidade do sistema às novas ações menos turvas e dotadas com maior desejo de igualdade. Tal intervenção, contudo, só será possível se os grupos

interessados reunirem-se em torno do único objetivo qual seja a mudança do estado de segregação social no qual nos encontramos. Sempre há uma ideologia a

serviço dos interesses de classes dominantes que invariavelmente estão assumindo um poder opressor. Os fatos que são contrários aos seus interesses

imediatamente são encobertos, diluídos, habilmente exterminados. Tudo em função de manter a posição da classe dominante e seus interesses aviltantes. Quando

se tenta chegar ao verdadeiro conhecimento sobre um sistema, uma realidade social, política ou de outra natureza qualquer encontramos barreiras e desvios que a

todo custo procuram impedir esse conhecimento. Assim, se não temos vontade ou consciência bastante para uma intervenção ou se nos deixamos acomodar em

7 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, 1996, p. 110. 8 COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. S. d.; p 11. APUD HÜHNE, Leda Maria (org.). Metodologia Científica: Caderno de Textos e Técnicas. 5 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1992, p. 223. 9 DEMO, Pedro. Pobreza Política. 6 ed. Coleção Polêmicas do Nosso Tempo. Campinas, SP: Autores Associados, 2001, p. 19 [grifo nosso].

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uma situação de indiferença seguindo passivamente o norte determinado, assumimos uma posição de alienação social. Em CHAUI10, encontramos que “a alienação

social se exprime numa ‘teoria’ do conhecimento espontâneo, formando o senso comum da sociedade. […] A produção ideológica da ilusão social tem como

finalidade fazer com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem, julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem pretender transformá-las

ou conhecê-las realmente, sem levar em conta que há uma contradição profunda entre as condições reais em que vivemos e as idéias.”

Não queremos uma escola esvaziada dos seus ideais, propósitos e deveres mais primordiais. Não queremos que metodologias teratológicas interfiram

descaracterizando a atividade docente no âmbito do ensino médio ou ainda que este espaço (a escola) se constitua em campo fértil onde viceja a inépcia. Essa

inépcia se revela, entre outras ações, na mobilidade dos sujeitos entre uma sala de aula, uma vice-direção ou direção da escola, uma supervisão escolar, uma

secretaria de ensino ou órgão equivalente na esfera pública e uma – sempre e lamentável – volta à sala de aula. Essas idas e vindas através das posições

administrativas, burocráticas da educação não contribuem em técnica nem habilidade ou conhecimento para aquele que volta de sua excursão para a sala de aula,

muito menos o faz ter uma visão melhor do processo estando do lado de fora dele. Longe de demonstrar capacidades para essas tarefas distanciadas da sala de

aula ou melhor aproveitamento de usa mão-de-obra, na realidade revela a emblemática falta de identidade profissional imanente ao processo de ensino e

aprendizagem sobretudo no ensino médio. Não obstante, é preferível esses sujeitos distanciados da sala de aula e imersos na atmosfera administrativa ou

burocrática da educação porque, aí o prejuízo é menor principalmente se não há aquela interferência na sala de aula. Assim, manifestamos nosso verdadeiro

repúdio àqueles cujo pedantismo desfiguram o processo de aprendizagem e se enriquecem e se alimentam de prestígio e notoriedade social através da usurpação

da “mais-valia” do trabalho do verdadeiro profissional da educação que constrói todos os dias, várias horas por dia (e por noite) o “capital” do conhecimento. Então,

aí está o maldito senso comum, que deve ser queimado na fogueira da reflexão filosófica, dando a falsa impressão de que a educação é feita por poucos,

principalmente por aqueles que “aparecem”, no cenário social. Essas pessoas procuram na escola, sobretudo no ensino médio, algo que não existe na concepção do

ensino-aprendizagem, procuram uma vivência mais cômoda e descompromissada no âmbito do serviço público notadamente nas posições de supervisão escolar,

orientação escolar e outras de mesma natureza que na verdade, do modo como acontece, esses funcionários (que não funcionam como deveriam) não fazem

menor falta para que a educação aconteça. É lamentável perceber o desejo à comodidade alcançando também professores que atuam no ensino médio, mas

transpiram apatia pelo trabalho intelectual, pela busca e aprimoramento de conhecimentos, pelo aspecto epistemológico de usa área de formação, pelo aspecto

social e político da educação. Parecem tomados de profundo solipisismo envolvidos (ao acaso) por um processo educacional. Não podemos deixar de enxergar

nesses sujeitos um movimento centrífugo em relação ao cerne das atividades precípuas ao devido fazer pedagógico no âmbito do ensino médio. Concordamos com

Celso Ferrarezi11 quando diz que “muito da aprendizagem escolar se perde porque os professores assumem posturas pessoais estranhas à natureza do processo de

10 CHAUÍ, Marilene. Convite à Filosofia. 5 ed. São Paulo: Ática, 1996, p. 174. 11 FERRAREZI JUNIOR, Celso. Discutindo Linguagem com Professores de Português, 2000, p. 164 [grifo nosso].

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ensino. O autoritarismo absolutista, o desprezo pela espécie humana, a descrença na possibilidade de o homem mudar e a irresponsabilidade para com o seu

trabalho são algumas dessas posturas que devem ser evitadas na escola como se evita uma doença contagiosa qualquer. Enquanto houver professores que atuam

na escola de uma forma que fere os princípios naturais do processo de ensino, haverá crianças [jovens e adultos] que tenham aprendido, na própria escola, a

desprezar a leitura, a escrita, o conhecimento, enfim”.

Não queremos uma escola capitalista, mas uma escola onde as receitas de alguma forma geradas favoreça ações notadamente propedêuticas

sobretudo direcionadas ao ensino médio já a tanto tempo desassistido pelo governo, ainda mais por entendermos que este é um espaço limítrofe entre a

continuidade acadêmica e a estagnação e regressão das potencialidades do educando na conquista de condições mais dignas e sua relevante contribuição para a

melhoria da sociedade através de mão-de-obra qualificada. Neste sentido, há de se ter rigor científico no ensino dos conteúdos da aprendizagem formal, dissolver

as ambigüidades metodológicas e promover a hegemonia do ensino médio oferecido nas instituições públicas de todo o país. Sendo assim, o professor, nesse

contexto, não pode se dar o direito de se manter fora de uma atividade de atualização constante de conhecimentos de sua área e além desta, muito menos não

criar um vínculo com os procedimentos de investigação já que “[…] dificilmente o professor poderá orientar a aprendizagem de seus alunos como uma construção

de conhecimentos científicos, ou seja, como uma pesquisa, se ele mesmo não possuir a vivência da tarefa de investigação12”.

Não queremos uma escola cujo MODUS VIVENDI seja regido por políticas partidárias, arcaísmo ou cegueira pedagógica, impedindo a visão de um

descompasso entre as realidade interna e as devidas ações formativas a serem tomadas porque “a falta de sintonia entre a realidade escolar e necessidades

formativas, reflete-se nos projetos pedagógicos das escolas, freqüentemente inadequados, raramente explícitos ou objeto de reflexão consciente da comunidade

escolar. A reflexão sobre o projeto pedagógico permite que cada professor conheça as razões da opção por determinado conjunto de atividades, quais competências

se buscam desenvolver com elas e que prioridades norteiam o uso dos recursos materiais e a distribuição da carga horária13”.

Hoje temos uma concepção de educação diferente de algum tempo atrás quando as disciplinas eram aplicadas de forma individual, encasteladas em si

mesmas, não se reconheciam como fibras de uma rede maior de conhecimentos e estes conhecimentos eram colocados lado a lado sem esboçar a menor relação

entre si; quando o aluno não percebia suas correspondências epistemológicas e lógicas – a não ser através de grande esforço cognitivo. Uma nova postura foi

assumida sob à luz da interdisciplinaridade e acreditamos que essa postura traga unidade de conhecimento amplo através das contribuições de cada disciplina agora

de uma forma mais integrada independente de tendências pedagógicas.

Sendo a qualidade profissional do âmbito de educação formal condição precípua ao domínio das novas competências face às conquistas científicas do

mundo pós-moderno, que determinam avanços consideráveis nos mais diversos campos do conhecimento, bem como o grande salto de caráter qualitativo e

12 MENEZES, Luiz Carlos Menezes (org.). Formação continuada de professores de ciências no contexto Ibero-Americano, 2001, p. 157. 13 PCN + Ensino Médio: Orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC – Secretaria de Educação Média e Tecnologia, 2002, p. 9.

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quantitativo observado a nível tecnológico, a exigência da necessária titulação para lecionar a nível de ensino médio, deve-se fazer constante a atuante já que

compreendemos que é da relação dialética entre esses dois sujeitos (educando e educador) em torno do objeto do conhecimento que deve emergir as estratégias

de aprendizagem no educando e as habilidades de ensino do educador.

O ensino médio perde sua característica, sua hegemonia, sua sobriedade quando a educação torna-se um “bico” para reforçar o orçamento de alguém

que muitas vezes não tem relação legítima com ela. “[…] a escola se tornou um mercado de trabalho disputadíssimo pelos mais diferentes tipos de profissionais

(nutricionistas, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, artistas, assistentes sociais, etc.) e uma nova inversão de opera14”. Esta falta de adequação profissional não

permite à educação atuar como promotora da devida evolução na qualidade ontológica dos sujeitos (educandos) e neste caso a devida habilitação no espaço do

magistério como afirmação do contrato pedagógico entre ensino e aprendizagem perde seu valor, torna-se expressão da falsidade e morre aí a relação dialética do

processo educacional. “Por isso, os professores precisam relacionar as nomenclaturas e os conceitos de que fazem uso com o uso feito nas demais disciplinas,

construindo, com objetivos mais pedagógicos do que epistemológicos uma cultura científica mais ampla. Isso implica, de certa forma, um conhecimento de cada

uma das disciplinas também pelos professores das demais, pelo menos no nível do ensino médio, o que resulta em uma nova cultura escolar, mais verdadeira, pois

se um conhecimento em nível médio de todas as disciplinas é o que se deseja para o aluno, seria pelo menos razoável promover esse conhecimento na escola em

seu conjunto, especialmente entre os professores15”.

Portanto, queremos uma escola que tenha a especificidade e a importância do ensino médio reconhecidas e que as ações para ele direcionadas não se

percam em meio às idiossincrasias, ainda mais que muitas dessas ações permitem uma formação continuada dos docentes como condição imprescindível de

melhoria profissional e melhor atuação técnica em sala de aula. Esperamos que a reflexão feita pela parte pedagógica se converta em fazeres mais elaborados no

âmbito da equipe gestora das escolas sendo que é na equipe gestora que o professor deve buscar constantemente auxílio uma vez que não existe mais a

hegemonia da figura do diretor ou da diretora da escola, mas uma equipe de profissionais conscientes das deficiências que devem ser reparadas e das necessidades

do corpo docente que devem ser atendidas. Não será minimamente possível ao educando dominar as competências indicadas nos PCNEM16 se não forem atendidos

os reclamos do ensino médio, se não tivermos consciência da constituição do educando que freqüenta a escola. Assim, a “intervenção no mundo” pretendida pela

educação pode ser alcançada começando pelo “mundo” imediatamente mais próximo de nós – nossas salas de aula do ensino médio.

14 SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-crítica: Primeiras aproximações, 2000, p. 21. 15 PCN + Ensino Médio: Orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC – Secretaria de Educação Média e Tecnologia, 2002, p. 31. 16 Idem, p. 15.

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CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº168 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 168

FLÁVIO DUTKA

CARACTERÍSTICAS DE SOLO SOBRE CULTIVO DE CASTANHEIRA (Bertholletia excelsa H.B.K.) EM PORTO VELHO, RONDÔNIA, BRASIL

Marília Locatelli, Eliomar Pereira da Silva

Filho, Abadio Hermes Vieira, Eugênio Pacelli Martins, Petrus Luiz de Luna Pequeno

PRIMEIRA VERSÃO

Page 56: Volume xi 2004

Marília Locatelli, Eliomar Pereira da Silva Filho, Abadio Hermes Vieira, Eugênio Pacelli Martins, Petrus Luiz de Luna Pequeno

Pesquisadora - Embrapa RO, Professor do Departamento de Geografia da UFRO, Engenheiro Florestal - Sedam, Professor da FARO

[email protected], [email protected] CARACTERÍSTICAS DE SOLO SOBRE CULTIVO DE CASTANHEIRA (Bertholletia excelsa H.B.K.)

EM PORTO VELHO, RONDÔNIA, BRASIL

A castanheira (Bertholletia excelsa H.B.K.), pertencente à família Lecythidaceae,é considerada uma das plantas de maior valor da floresta amazônica. Árvore

de grande porte que pode atingir até 50 m de altura e 2 m de diâmetro na base. Apresenta fuste retilíneo, cilíndrica, sem sapopemas, desprovido de galhos até a

copa, com casca marrom-escura e fendida longitudinalmente (Corrêa, 1931). Sua madeira é de ótima qualidade para construção civil e naval, bem como para

esteios e obras externas. Pode também ser considerada como boa fonte de celulose (Loureiro et al., 1979).

O fruto da castanheira é um pixídio lenhoso de forma globosa conhecida como ouriço, e em seu interior abriga entre 10 a 25 sementes (amêndoas). Suas

sementes (castanhas) são utilizadas para o consumo humano, principalmente na região Norte, além de serem exportados para os Estados Unidos da América e

Europa. Tem alto valor nutritivo sendo muito utilizado como ingrediente na culinária. Seu valor protéico é tão alto que é também chamada de “carne vegetal”.

Sua madeira é de ótima qualidade para construção civil e naval, bem como para esteios e construções externas. A madeira é moderadamente pesada,

macia ao corte, textura média, grã direita, superfície sem brilho e lisa ao tato, de boa resistência ao ataque de organismos xilófagos. Pode também ser considerada

como boa fonte de celulose.

É uma espécie que exige solos ricos e profundos, argilosos ou argilo-arenoso, sendo que sua maior ocorrência é nos de textura média a pesada. Não é

encontrada em áreas com drenagem deficiente nem em solos excessivamente compactados, dando-se bem em terras firmes e altas. Vegeta naturalmente em clima

quente e úmido. Ocorre em áreas onde a precipitação média varia de 1400 a 2800 mm/ano, e onde existe um déficit de balanço de água por 2-5 meses. (Clement,

,2003; Diniz e Bastos, 1974).

Experimentos desenvolvidos pelo Centro de Pesquisa Agroflorestal da Amazônia Oriental da EMBRAPA em Belém do Pará têm demonstrado que, ao lado de

outras essências florestais, a castanha-do-brasil é excelente alternativa para o reflorestamento de áreas degradadas de pastagens ou de cultivos anuais.

Atualmente, a exploração de exemplares nativos é proibida pelo Decreto n 1282 de 19 de outubro de 1994 que não impede seu plantio com a finalidade de

reflorestamento tanto em plantios puros quanto em sistemas consorciados.

Devido à importância desta espécie e tendo em vista a necessidade de dados sobre o cultivo da mesma, o presente trabalho objetivou avaliar

preliminarmente as condições químicas, físicas e hídricas do solo sob cultivo de castanheira em Porto Velho, Rondônia, Brasil.

Page 57: Volume xi 2004

57

Metodologia

O levantamento dos dados foi realizado em povoamento de castanha do Brasil (Bertholletia excelsa H.B.K.) no município de Porto Velho, em argissolo

vermelho amarelo distrófico plíntico, textura argilosa, cujo relevo é plano, altitude de 95m, precipitação de 2300 mm e temperatura média de 26° C. A área

encontra-se no campo experimental da Embrapa.

Os dados foram realizados em plantio de castanha com quicuio da Amazonia ( Brachiaria humidicola (Rendle) Schweicrerdt) em espaçamento de 10x10m

aos 480 meses de idade em Porto Velho.

As amostragens de solo realizadas foram quanto a características químicas, densidade aparente (0-20, 20-40, 40-60 cm de profundidade), umidade do solo

(1/3 e 15 atm), e compactação do solo.

Para as características químicas do solo foram analisadas conforme a seguinte metodologia: pH em água 1:2,5; Ca, Mg e Al extraídos por KCl 1N, enquanto

P e K foram extraídos pelo extrator Mehlich 1 (HCl + H2SO4). As determinações foram feitas pelo método de colorimetria para P (Murphy & Riley, 1962), por

fotometria de chama (K) e uso de espectrofotômetro de absorção atômica para leitura de Ca, Mg.(Embrapa, 1979).

Os valores de umidade do solo a 1/3 e 15 atm foram determinados segundo metodologia descrita em Embrapa (1979). Com estes dados calculou-se a

classe de disponibilidade de água no solo baseado no Bureau of Reclamation (1953), que define as classes em: Baixa disponibilidade - < 0,69 mm/cm; Média

disponibilidade - 0,70 – 1,29 mm/cm; Alta disponibilidade - > 1,30 mm/cm.

Para determinação da compactação do solo foi utilizado o penetrômetro de impacto modelo modificado de IAA PLANALSUCAR, desenvolvido com base no modelo

citado por JORGE (1985), sendo os valores obtidos (resistência mecânica) transformados em kgf/cm2 através da fórmula holandesa, de acordo com STOLF (1991).

Quanto ao crescimento das árvores foram estimados a altura total e o diâmetro a 1,30 m do solo (DAP) em todos os indivíduos. Para a medição de altura

das árvores foi utilizado o hipsômetro de Blume-Leiss e do diâmetro usou-se uma fita diamétrica com precisão em milímetros.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O valor médio relativo a % de umidade do solo, entre W e X de profundidade, foi de 0,79mm/cm, classificando a condição de disponibilidade de água

neste solo como de média , segundo U.S. Bureau of Reclamation (1953).(Tabela 1 e Figura 1).

Tabela 1. Dados de densidade aparente, umidade do solo e água disponível em diferentes profundidades de um argissolo vermelho amarelo distrófico

plíntico com plantio de castanha-do-Brasil. Porto Velho.

Page 58: Volume xi 2004

58

Umidade % volume Àgua disponível Profundidades (cm)

Densidade Aparente (g/m³)

1/3 atm 15 atm mm/cm mm/hor/prof. Valor acumulado

0 – 20 0,74 23,52 14,00 0,95 19,0 19,0

20 –40 0,88 24,38 16,50 0,79 15,8 34,8 40 - 60 0,92 22,98 16,50 0,65 13,0 47,8

F ig u r a 1. D is p o n ib ilid a d e d e á g u a em ca s t a n h a - d o - br a s il

cult iva d a em Por t o Velh o , Ro nd ô n ia , 2 0 0 2 .

lâ m ina d 'á gua ( m ilím et r o s )

1 9 3 4 , 8 4 7 , 8

profu

ndid

ade

(cm

)

0

1 0

2 0

3 0

4 0

5 0

6 0

Os Argissolos Vermelho Amarelo Plíntico ocupam extensão de 27,69 ha, da área do campo experimental da Embrapa em Porto Velho, correspondente a

9,5% da área total do mesmo, segundo VALENTE et. al. (1997). De acordo com Falesi et. al. (1967) é um solo mineral muito intemperizado, desenvolvido em

sedimentos antigos do terciário. Com característica de baixa relação textural entre os horizontes A e B, sendo que suas unidades estruturais, são revestidas por

cerosidade, caracterizando um horizonte B podzólico. Este solo se caracteriza pela presença de horizonte plíntico em posição não diagnóstica para Plintossolo, ou

que apresentam 5% ou mais de plintita e /ou petroplintita em um ou mais horizontes do B textural, dentro de 150 cm da superfície do solo. Este solo possui

baixos valores de saturação de bases, baixa capacidade de troca de cátions e altos valores de saturação com alumínio, dando ao solo caráter álico .

É importante ressaltar que o valor de saturação de bases (V) é muito baixo (5%), o solo é distrófico álico com baixa fertilidade natural. Se compararmos os

valores de V deste solo com as necessidades de pupunheira veremos que é baixíssimo, pois a referida espécie necessita que o mesmo seja elevado a 50% para

plantio visando produção de palmito (Bovi, 1998), muito embora tenhamos valores semelhantes em Machadinho d’Oeste com plantio da mesma espécie. Os teores

de fósforo são baixos como a maioria dos solos de Rondônia. O teor de matéria orgânica diminui da superfície para as camadas mais profundas, sendo considerado

Page 59: Volume xi 2004

59

médio em todas os pontos amostrados. Quando comparamos com os dados de plantio de castanheira solteira em Machadinho d’Oeste aos 13 anos de idade (dados

não publicados fornecidos por Marília Locatelli), constatamos valores de matéria orgânica com 26,9 g/kg de 0-15 cm e 22,8 g/kg de 15-30 cm de profundidade.

Verificamos que em Porto Velho, os valores são maiores devido ao fato de que durante algum tempo foi feito experimento com bubalinos nesta área, o que deve ter

feito aumentar o teor de matéria orgânica, devido a decomposição do estrume dos referidos animais. Os valores de pH do solo são ácidos. (Tabela 2).

Tabela 2. Resultados da análise química do solo em plantio de castanheira. Porto Velho. Rondônia.

cmolc/dm3 Profundidade

cm pH em H2O

P mg/dm3

K Ca Mg Al +H Al

MO g/kg

V %

0-20 4,5 3 0,14 0,2 0,2 11,4 4,6 33,4 4 20-40 4,4 2 0,10 0,2 0,1 10,4 5,0 22,7 4 40-60 4,6 1 0,16 0,2 0,2 9,7 4,3 19,0 5

A compactação do solo verificada nesta área sob plantio de castanheiras,conforme pode-se verificar na Figura 2, evidencia valores altos (117,6 kgf/cm2

entre 0-10 cm de profundidade, passando para 72,9 kgf/cm2 entre 10 e 20 cm, e 72,9; 66,4; 59,0 kgf/cm2 entre respectivamente 20-; 30-40; 40-50 cm de

profundidade, obtidos com a fórmula holandesa definida em Stolf (1991). Os valores são altos conforme Sales et. al., 1983).

Características de manejo, umidade do solo e classificação textural, são algumas das variáveis que influenciam tais resultados. Moraes et. al. (1995),

estudando a compactação do solo em um Latossolo Roxo e uma Terra Roxa Estruturada, constatou aumento nos valores de resistência a penetração medida com

um penetrômetro. Segundo o autor, com a compactação as partículas e os agregados do solo se aproximam reduzindo a porosidade e aumentando a resistência

mecânica à penetração.

Prof. (cm) Imp./ dm 0-10 12,2

11-21,5 9,6 22-31 7,4 32-41,5 6,7 42-50 5,9

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Page 61: Volume xi 2004

61

3. A compactação neste solo pode ser considerada alta. Constatou-se em observação de campo que os bubalinos aproveitaram esta área sob sombra

durante algum tempo para descanso e pastejo.

BIBLIOGRAFIA

BOVI, M. L. A. Palmito pupunha: informações básicas para cultivo. Campinas, Instituto Agronômico, 1998. 50p. (Boletim Técnico 173)

CLEMENT, C.R. Brazil nut. Disponível em www.fao.org/docrep/v0784e/v0784e0k.htm. Acesso em 30 maio 2002.

CORRÊA, M. Pio. Diccionário das plantas uteis do Brasil e da exoticas cultivadas. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1931. v. 2.

DINIZ, T. D. de A S.; BASTOS, T. X.. Contribuição ao conhecimento do clima típico da castanha-do-brasil. Boletim Técnico do IPEAN., Belém, n.64, p.1-83, 1974.

EMBRAPA. Manual de métodos de análise de solo. Rio de Janeiro, Embrapa, SNLCS, 1979.

EMBRAPA. Sistema brasileiro de classificação de solos. Brasília: Embrapa Produção de Informação; Rio de Janeiro: Embrapa Solos, 1999. 412p.

FALESI, J.C.; VIEIRA, L.S.; SILVA, B.N.R. da; CRUZ, E. de S.; GUIMARAES, G. de A.; SILVA, R.P. da; LOPES, E. de C. Solos da Estação Experimental de Porto Velho – T.F. Rondônia .

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JORGE, José Antônio. Física e manejo dos solos tropicais. Campinas: Instituto Campineiro de Ensino Agrícola, 1985. p. 89-118.

LOUREIRO, Arthur A.; SILVA, Marlene F.; ALENCAR, Jurandyr da Cruz. Essências madeireiras da Amazônia. Manaus: INPA, 1979. v. 1.

MORAES, M.H.; BENEZ, S.H.; LIBARDI, P.L. Efeitos da compactação em algumas propriedades físicas do solo e seu reflexo no desenvolvimento das raízes de plantas de soja. Revista

de Ciências Agronômicas, São Paulo, v. 54,n.2, p. 393-403, 1995.

MURPHY, J; RILEY, J.P. A modified single solution method for the determination of phosphate in natural waters. Anal. Chim. Acta v.27, p.31-36, 1962.

SALLES, H.C.; ORTOLLANI, A F.; COAN, O. Influência da compactação no solo no desenvolvimento da soja. In: Congresso Brasileiro de Engenharia Agrícola, 11, 1983, Brasília.

Anais...Brasília, 1983. v.3,p. 1123-1138.

STOLF, R. Teoria e teste experimental de fórmulas de transformação dos dados de penetrômetro de impacto em resistência do solo. Revista Brasileira de Ciência do Solo,

Campinas, v.15, p. 220-235, 1991.

U.S. Bureau of Reclamation, 1953. Reclamation Manual, Vol. V: Irrigated land use, Part 2:Land Classification. USBR, Denver, Colorado.

VALENTE, M.A ; OLIVEIRA JUNIOR, R.C.; SILVA FILHO, E.P. et. al. Caracterização e mapeamento dos solos do campo experimental de Porto Velho. In: Congresso Brasileiro de Ciência

do Solo. Rio de Janeiro. Anais...Cd Rom.

YARED, J. A. G.; KANASHIRO, M., VIANA, L. M.; CASTRO, T. C. A. de; PANTOJA, J. R. de S. Comportamento silvicultural da castanheira (Bertholletia excelsa H. & K.), em diversos

locais da Amazônia. In: CONGRESSO FLORESTAL PANAMERICANO = PANAMERICAN FORESTRY CONGRESS, 1.; CONGRESSO FLORESTAL BRASILEIRO = BRAZILIAN FORESTRY

CONGRESS, 7., 1993, Curitiba. Anais... Curitiba: SBS, 1993. v. 2. Trabalhos voluntários e posters. Acima do título: Floresta para o desenvolvimento: política, ambiente, tecnologia e

mercado.

Page 62: Volume xi 2004

62

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FLÁVIO DUTKA

O IMC DE MULHERES PRATICANTES DE HIDROGINÁSTICA

Marcio de Araújo Oliveira, Luiz Gonzaga,

Flávio Batista Simão

PRIMEIRA VERSÃO

Page 63: Volume xi 2004

Márcio de Araújo Oliveira, Luiz Gonzaga, Flávio Batista Simão O I.M.C DE MULHERES PRATICANTES DE HIDROGINÁSTICA Aluno do Curso de Educação Física - UFRO, Professor do Departamento de Educação Física - UFRO, Professor do Departamento de Matemática - UFRO [email protected]

A oobesidade atinge tanto aos países ricos quanto aos emergentes. Todas as pequenas vitórias são conquistas importantes a favor da saúde. As mudanças

ocorridas no estilo de vida das pessoas fizeram com que o peso da população mundial aumentasse de maneira significante no século passado. A Organização

Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 7% da população mundial é obesa, têm mais de 30K/m² de Índice de Massa Corporal (IMC).

A obesidade e o conseqüente sobrepeso têm se caracterizado como a disfunção orgânica que mais apresenta aumento em seus números, não apenas nos

países industrializados, mas particularmente nos países em desenvolvimento. As evidências mostram que a adoção de estilo de vida inadequado vem favorecendo

este tipo de acontecimento, sobretudo no que se refere ao sedentarismo e aos hábitos alimentares.

Segundo a Associação Brasileira para Estudo da Obesidade (ABESO), nos próximos cinco anos, o percentual pode superar os 10% em valores absolutos, os

números são impressionantes. Hoje são 250 milhões de obesos. Em 2025 ultrapassarão a casa dos 500 milhões. Estima-se que a quantidade de indivíduos com

sobrepeso estará entre 500 a 700 milhões. Em 1998, em função desses dados alarmantes foi criada pela OMS a Força Tarefa Internacional da Obesidade que tem

por objetivo buscar soluções preventivas a serem implantadas no mundo para aliviar o impacto das enfermidades relacionadas, como o Diabetes, a Hipertensão, e

as doenças cardíacas, vasculares, pulmonares e articulares entre outras, possam não ter a magnitude esperada.

O Centro de Controle de Doenças (CDC) nos Estados Unidos, estima que a obesidade é a Segunda principal causa direta e indireta de mortes. Além disso,

os gastos do sistema de saúde com a doença superam os US$ 10 bilhões anuais. As estatísticas também apontam que elas faltam mais ao emprego e demoram

mais tempo para retornar ao mercado de trabalho.

O National Health and Nutrition Examination Survey – NHANES – supervisionado pelo National Center for Health Statistics – NCHS – tem se mostrado uma

das principais iniciativas de análise de prevalência da obesidade e do sobrepeso na população norte-americana. Este estudo vem sendo desenvolvido desde 1971,

por meio de uma sucessão de programas conduzidos de época em época, o que se convencionou denominar de “ciclos”.

Em nosso país, ainda que sejam necessárias estatísticas mais aprimoradas, é cada vez mais evidente a “americanização” dos hábitos alimentares, o que,

aliado à progressiva redução das atividades física do cotidiano em razão da mecanização e do avanço tecnológico de nossa sociedade, torna possível prognosticar

paulatino aumento da prevalência da obesidade e do sobrepeso nos diferentes segmentos da população brasileira.

Dados preliminares produzidos pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN) mostram que aproximadamente 32% da população adulta

brasileira apresentam algum grau de sobrepeso, especialmente nas classes menos favorecidas.

Page 64: Volume xi 2004

64

No Brasil houve uma inversão estatística significativa. Há cerca de três décadas existia mais desnutrição ao que obesos. Hoje, a realidade é outra. De acordo

com as últimas estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), cerca de 35% da população adulta brasileira tem sobrepeso ou é considerada

obesa. Deste modo, este estudo teve como objetivo verificar o Índice de Massa Corporal de praticantes de hidroginástica do clube Sest/Senat e verificar realmente

se esses números se confirmam, bem como o risco de morte para diferentes Índices.

O excesso de gordura e de peso corporal não deve ser encarado simplesmente como um problema estético. Pelo contrário, é um grave distúrbio de saúde

que reduz a expectativa de vida e ameaça sua qualidade. Existe grande número de evidências que permitem afirmar que o maior acúmulo de gordura e de peso

corporal assume importante papel na variação das funções orgânicas, constituindo-se em um dos fatores de risco mais significativos associado à morbidades

específicas e ao índice de mortalidade.

Os dados mostram uma curva em forma de “J”, com índice de mortalidade mínima entre os indivíduos com índice de massa corporal entre 20 e 25 kg/m2.

As variações acima ou abaixo desses índices se associam a aumento de mortalidade muito evidente, sobretudo a partir de 30 kg/m2. A medida em que o índice de

massa corporal se aproxima de 40 kg/m2, a inclinação se torna cada vez mais pronunciada, ao passo que, com a alguma similaridade, a mortalidade também

aumenta quando o índice de massa corporal se apresenta abaixo de 20 kg/m2. No entanto, faz-se necessário chamar a atenção para o fato de que, em ambos os

extremos da curva em “J”, as causas de morte são distintas. Alguns cânceres e enfermidades respiratórias e digestivas supõem alto risco de morte associado a

pesos corporais baixos, enquanto doenças de origem metabólica e crônico-degenerativas justificam o risco de mortes em indivíduos com sobrepeso.

A figura (1) ilustra a relação índice de massa corporal x risco relativo de morte encontrada no estudo apresentado pela Sociedade Americana de Câncer.

Materiais e Métodos

O trabalho foi realizado nas disciplinas de Bioestatística aplicada e atividade física e saúde na Universidade Federal de Rondônia.

A amostra foi constituída por 33 mulheres na faixa-etária de 17 a 65 anos de idade, que praticavam hidroginástica 3 vezes por semana. A idade média do

grupo foi de 42,2+ anos variando entre 40 a 55. A média de peso e estatura foram 68,9+ 10,5g e 156+4,8cm respectivamente e I.M.C de 27,7 Kg/m².

Page 65: Volume xi 2004

65

Foram mensurados peso corporal através de uma balança digital (Filizola), Estatura (Estodiômetro de parede) e entrevista através de (anamnese simples).

Coletados os dados, lançamos na equação de classificação de I.M.C proposto por (Bray, 1992).

E posteriormente a montagem da tabela.

Figura (2) – Classificação de I.M.C. e os respectivos dados amostrais.

CLASSIFICAÇÃO (IMC-KG/M²) INDIVÍDUO Baixo Normal Sobrepeso Obesidade I Obesidade II Obesidade Mórbida

Menor de 20 20 a 24.9 25 a 29.9 30 a 34.9 35 a 34.9 > 40

2 8 12 9 1 1

FONTE: BRAY/1992 – Dados de Campo.

Resultados

Grande parte da amostra coletada foi classificada como tendo sobrepeso corporal. A quantidade de doenças que uma pessoa pode adquirir é o que lhe

define a classificação em Obesidade I, Obesidade II e a mais grave Obesidade Mórbida, aquela pessoa que muitas vezes é dependente de outras pessoas para

executar tarefas simples do dia-a-dia como subir escadas, correr para pegar o ônibus, carregar sacolas no supermercado, calçar os sapatos e até mesmo cuidar de

sua higiene corporal. Do quantitativo de 33 pessoas avaliadas de diferentes idades, 3,03% apresentou classificação baixa mantendo seu IMC menor que 20Kg/m²,

24,24% classificaram-se como normal apresentando IMC entre 20 a 24,9Kg/m². Um percentual de 36,36% foi classificado como tendo sobrepeso corporal

apresentando índices de 25 a 29.9kg/m², 27,27% apresentou obesidade I índices que variam de 30 a 34,9kgm². Apenas 3,03 apresentaram obesidade II e

obesidade mórbida demonstrando altos índices de massa corporal (IMC). Estes números são considerados alarmantes mas, que hoje em dia só estão se tornando

cada vez mais freqüentes em revistas, livros e pesquisas. O aumento do I.M.C. traz sérios riscos a saúde do indivíduo, como podemos verificar na (fig. 1) quanto

maior o I.M.C. aumenta o risco de morte da população classificada.

Diante deste estudo concluímos que:

As mulheres têm um percentual de massa gorda mais elevado em seu corpo em relação aos homens, isso se deve à ação do hormônio feminino estrógeno.

A facilidade em acumular gordura corporal principalmente na região pélvica também é conseqüência dessa taxa hormonal. Verificando os índices e resultados

obtidos na pesquisa em relação ao peso corporal, estatura e idade, podemos afirmar que para a população, o I.M.C. nessa oportunidade pesquisado pode nos trazer

Page 66: Volume xi 2004

66

informações verdadeiras sobre o diagnóstico de sobrepeso corporal e suas conseqüências a saúde mundial. Os achados deste estudo demonstram a necessidade de

um programa de promoção e atividade física específico para mulheres como forma de controlar, auxiliar e prevenir os agravos à saúde e ao sedentarismo.

BIBLIOGRAFIA

BRAY, G. A. Pathophysiology of obesity. The American Jornal of Clinica Nutricion, V. 55, 1992.

GUEDES, Dartagnan Pinto & GUEDES, Joana Elisabete R. Pinto. Composição Corporal, Atividades Físicas e Nutrição: Controle do Peso Corporal. Ed.

Midiograf. 1998.

MELLEROWICZ/MELLER. Treinamento Físico – Bases e princípios fisiológicos. E.P.U.

PITANGA, Francisco José Gondin. Testes, Medidas e Avaliação em Educação e Esportes. Salvador. 2000.

Revista Veja. Edição Especial Saúde. Abril

Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade. Revista Abeso. Ano III. Nº 11. Dezembro de 2002.

Page 67: Volume xi 2004

67

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 170

FLÁVIO DUTKA

OS PRINCÍPIOS UNITÁRIOS NA ESCOLA TÉCNICA DO MST

Antonio Julio Menezes Neto

PRIMEIRA VERSÃO

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Antonio Julio Menezes Neto

UFMG OS PRINCÍPIOS UNITÁRIOS NA ESCOLA TÉCNICA DO MST

Este trabalho apresenta o curso Técnico em Administração Cooperativista- TAC- mantido pelo MST no Rio Grande do Sul, em razão da sua especificidade

pedagógica e da sua vinculação direta com o processo produtivo das cooperativas ligadas ao MST.

O TAC é um dos cursos da escola “Josué de Castro”, localizada no município serrano de Veranópolis, no Rio Grande do Sul. Abriga-se numa parte do

“Seminário São José”, da congregação dos Freis Capuchinhos, alugado pela CONCRAB. A relação entre o MST e a Congregação é amistosa.

Os cursos possuem estatuto legal como um curso supletivo de Ensino Médio, tendo o MST, através do ITERRA e da CONCRAB,17 como o responsável

econômico, político e pedagógico. A escola “Josué de Castro” promove os seguintes cursos médios: “Técnico em Administração de Cooperativas (TAC)” e

“Magistério”18 Promove também cursos supletivos para o ensino fundamental, pesquisa na área da reforma agrária e educação popular, cursos de panificação,

laticínios e embutidos, arquivo sobre a reforma agrária, intercâmbio de experiências e seminários, palestras e debates.19

O Curso Técnico em Administração Cooperativista – TAC - visa “implantar e consolidar empresas associativas rurais, tendo como objetivo desenvolver a

consciência organizativa e a mentalidade empresarial e ética; capacitar os alunos na gestão empresarial cooperativa; aprofundar conhecimentos sobre a proposta do

sistema cooperativista autogestionário dos assentados; desenvolver habilidades pedagógicas para a cooperação; e ampliar o horizonte dos alunos para o

entendimento da realidade”. O curso tem três grandes eixos interligados: a organização da cooperativa; a qualificação técnica; e a educação geral humanística

(CALDART, 1996).

O TAC surgiu em 1993, tendo como base o Laboratório de Curso (OFOC) dirigido pelo Professor Clodomir Santos de Moraes,20 no município de Braga,

também no Rio Grande do Sul, tendo sido transferida para Veranópolis, em 1995, onde ficou em fase de transição até 1997. No dia 24 de outubro de 1997, ocorreu

17

A CONCRAB (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda.) é um sistema cooperativista dos assentados. É a promotora do curso, sendo mediado pelo Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa (ITERRA), que é uma entidade educacional ligada ao MST. O ITERRA foi criado em 12 de janeiro de 1995, em Veranópolis-RS, para ser a mantenedora do Curso Técnico em Administração em Cooperativas (TAC). São sócios-fundadores a CONCRAB e a ANCA (Associação Nacional de Cooperação Agrícola) 18 A escola ofereceu, também, o “Curso Técnico em Administração de Assentamentos”, que era direcionado a habilitar técnicos para desenvolverem trabalhos sociais e políticos. Porém, depois de avaliado na sua primeira turma, o curso foi desativado. 19 Fonte: Folder da escola “Josué de Castro”. 20 Segundo MORAES (1989), o Laboratório de Curso 20 surgiu na década de sessenta, nas ligas Camponesas, e foi recomendado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). O método foi aplicado em países da África, América Latina, Caribe e Europa nas décadas de 70 e 80. MORAES (1989) define o método como um ensaio prático e real, que introduz uma consciência organizativa numa empresa ou numa ação organizada. Para tanto, cria-se uma

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a implantação definitiva. Recebe alunos de todo o Brasil, sendo que a maioria é proveniente do Sul do Brasil e indicados pelo MST. CERIOLI (1997) define o que

leva o aluno a realizar o curso:

“...ter conhecimento da dificuldade em que se encontra os nossos assentamentos no planejamento da produção e na comercialização, a dificuldade que

o grupo encontra na questão administrativa ou por sentir que os nossos coletivos precisam de administradores, para contribuir com o MST, mais

específico no SCA, a vontade de continuar contribuindo para a transformação da sociedade, para se capacitar em área que já tinha estudado mas não

aprendeu, para concluir o segundo grau ou porque queria continuar os estudos. Há casos em que o que determinou a vinda do aluno foi que no grupo

só existe um companheiro com o primeiro grau completo: ele”(p. 14).

Os alunos, no período em que freqüentam o TAC, devem “militar” no MST, não deixando de participar das mobilizações realizadas pelo Movimento. Conforme

informações da direção da escola, esta participação é parte do processo pedagógico.

Os professores não são fixos, pois são contratados por etapa do curso, sendo que alguns recebem por hora/aula, principalmente nas disciplinas das ciências

físicas, químicas e biológicas. Devido a dificuldade de contratação voluntária nestas áreas, a escola, às vezes, admite professores sem maiores identidades políticas.

Mas, na maioria dos casos, os professores se oferecem para lecionar, por simpatia política pela luta dos sem-terra21. A habilitação é indispensável, e muitos

professores residem em outros estados do Brasil Quando o contrato é acertado, a direção da escola orienta o professor a respeito da proposta da escola, a

metodologia de ensino e da avaliação.. Cabe ao setor pedagógico da escola tentar garantir ao máximo esta difícil integração.

A “Auto-organização dos Alunos” foi concebida seguindo a metodologia do “Laboratório de Curso”. Aplicada à primeira turma do TAC, de 1993, os alunos

foram desafiados pelo Animador Pedagógico22 a montarem uma empresa real, que deveria, inclusive, manter financeiramente uma parte do curso. Nesta ocasião, os

alunos receberam um patrimônio real para gerir, implicando o movimento pedagógico de prática e teoria dentro da escola. A seguir, os alunos contatavam a EAP

(Empresa de Assessoria Pedagógica), uma empresa ligada à escola que realizava consultoria independente. Esta consultoria buscava, inclusive, responsabilizar os

alunos pelo andamento do empreendimento. Os estudantes deveriam passar de um estágio inicial de anomia e descontrole para um estágio de planejamento e

organização final. Este processo mostrou-se, afinal, complexo e complicado, resultando na evasão de diversos alunos. Por este motivo, a forma de gestão sofreu

modificações, e hoje toda a escola é “a empresa”. Conforme a direção da escola, este processo encontra-se no seguinte estágio:

empresa com funcionamento real, onde os meios de produção estão nas mãos dos integrantes da empresa. Em seguida, os bens e meios de produção são divididos, induzindo-os a uma divisão do trabalho e do processo produtivo em comum. Estes meios de produção devem ser menores do que a necessidade, para desenvolver a iniciativa nos participantes do laboratório. 21 Existem, também, convênios de Extensão com algumas Universidades gaúchas, através dos quais, professores ministram cursos na “Josué de Castro”. 22 O “Animador Pedagógico seria “aquele agente que faz o desafio inicial aos participantes do curso para que se auto-organizem e montem sua empresa. (...) Em caso de o desafio ser aceito, o papel do animador é acompanhar o processo de auto-organização, sem interferir na autonomia do grupo, mas provocando a reflexão permanente sobre as decisões que vão sendo tomadas e fazendo as “entregas teóricas” que possam ajudar na constituição do coletivo” (CALDART, 1996, p.18)

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“ Nós tínhamos a EAP (Empresa de Assessoria Pedagógica), que era um equipe interna, composta por alguns alunos da turma e mais algumas pessoas que

eram de fora da turma, uma assessoria que vinha dos estados e ficava aqui durante o tempo escola. A Empresa de Assessoria Pedagógica deixou de existir na

metade do ano passado, em função de problemas. Nós tínhamos várias empresas na casa, porque os alunos formavam uma empresa, a escola outra e a

empresa de assessoria pedagógica outra. E a relação entre elas era empresarial, tudo formalizado. A partir do ano passado, nós modificamos isso, e os alunos

também não formam mais uma empresa à parte, mas sim nos ajudam no processo de gestão da escola. É uma co-gestão. Deixou de existir a EAP.. Hoje, cabe

ao Setor de Formação fazer essa atividade..”23

Buscando aplicar a “ Autogestão escolar”, a escola reparte para as turmas que estão iniciando as suas atividades, os conteúdos teóricos, para que estes

debatam a organização do trabalho escolar. Os alunos são desafiados a montar um jornal ou boletim informativo para circular na escola. Como a proposta da escola

é que esta seja autogerida pelos alunos, estes devem elaborar um plano de trabalho englobando a proposta metodológica, as oficinas, a produção e a

comercialização. Essas propostas serão apresentadas, debatidas e aprovadas em assembléia. O sistema de autogestão estende-se também na administração e

manutenção. Conforme relato colhido em pesquisa de campo:

“E é um exercício para a pessoa aprender a fazer uma proposta. Nós temos ao final do mês a assembléia, mas durante o mês nós temos várias reuniões de

avaliação e de estudo. Temos informações dos setores. Por exemplo, o setor de finanças encaminha o informe, a cada semana, de como foi a finança e a

produção naquela semana, quais as dificuldades que tivemos. Se tivemos problemas de máquina quebrada, a gente sempre informa isso através do nosso

boletim. O núcleo pode encaminhar mudanças ou propostas para a coordenação da escola. Porque na coordenação participam dois alunos de cada turma, mais as

pessoas que eu citei das quatro áreas e representantes dos trabalhadores, dois, que tomam as decisões que, durante o mês precisam ser encaminhadas. Isso

tudo é eleito na assembléia: os dois representantes das turmas mais os dois dos trabalhadores são eleitos em assembléia.”24

A duração do TAC é de dois anos e meio, divididos em seis etapas de cinco meses, denominadas TC (Tempo Comunidade) e TE (Tempo Escola),

demandando viagens em cada etapa do TC e estágio em um assentamento, para que o aluno não deixe de vivenciar a prática do trabalho. Em cada uma destas

etapas existe um novo enfoque, um novo estágio. Na primeira viagem a campo, no primeiro TC, conforme relato da direção da escola,25 os alunos realizam um

diagnóstico da realidade do assentamento, pesquisando as condições sociais e econômicas dos moradores. Esta etapa apresenta-se de fundamental importância

para que os alunos aprendam a fazer a leitura da realidade local.

23 Entrevista realizada com Dirlete Dellazeri, que na época da pesquisa de campo era professora de História e coordenadora de Formação Política. Todos os relatos foram colhidos em pesquisa de campo, realizada em maio de 1999. 24 Entrevista realizada com Dirlete Dellazeri, ibidem. 25 Relato coletado em pesquisa de campo.

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Nas etapas subseqüentes, os alunos cumprem estágios nas cooperativas, estudando a produção e a comercialização. Devem, também neste período, realizar

estudos teóricos e tarefas escolares complementares ligadas a comercialização. Em cada TC, estão previstos trabalhos ligados às disciplinas da escola. Além da

avaliação a que estão sujeitos no TAC, neste período de TC a direção do MST do estado em que o aluno está estagiando dá um parecer e uma nota pelo trabalho

realizado pelo aluno, assim como os cooperados, que avaliam se o aluno contribuiu, se fez proposta, mostrou disposição para aprender e para ensinar. Neste sentido,

os alunos tomam contato com o trabalho real, onde ele está sendo realizado, com todas as suas contradições e possibilidades.

No TE, o aluno fica dois meses e meio envolvido com aulas, oficinas, atividades culturais e estudo, participando da empresa que gerem. Esta etapa é

dividida em diversos tempos: Tempo Aula (5 horas-aula por dia); Tempo Trabalho; Tempo Oficina; Tempo Educação Física; Tempo Reflexão Escrita; Tempo Estudo;

Tempo Verificação de Leitura; Tempo Cultura; Tempo Formatura; e Tempo Lazer.

Neste período, participam de aulas teóricas, normalmente no período da manhã, e no período da tarde dedicam-se às atividades de produção e gestão. No

período da noite, discutem, em reuniões e assembléias, as diversas atividades culturais e produtivas. Observa-se que este método pedagógico procura vincular-se à

produção, à administração e a gestão da escola pelos alunos.

Na grade curricular do curso, observa-se a preocupação em ofertar a formação profissional unida à formação geral humanística e administrativa. O currículo é

composto por um “Núcleo Comum”, contemplando as disciplinas que todos os alunos devem cursar, e um “Núcleo Diversificado”, ligado especificamente à formação

profissional. No Núcleo Diversificado, ao lado de disciplinas formativas específicas, como Administração e Controle, Economia e Mercado, Contabilidade e Custos,

Técnicas Agropecuárias, Agroindústria, Estatística, Doutrina do Cooperativismo, Educação Cooperativista, Direito e Legislação, encontram-se disciplinas ligadas a uma

discussão humanística, como Sociologia, Economia Política, Psicologia, Filosofia e Metodologia do Trabalho Científico.

O simples oferecimento de disciplinas diversas não rompe a dualidade entre escola geral e escola profissional, entre ciências humanas e ciências técnicas,

entre trabalho manual e trabalho intelectual, pois estas divisões estão no âmbito das relações sociais de produção, da divisão social do trabalho capitalista, do

conflito entre classes sociais. Na Josué de Castro, e no TAC especificamente, as diversas disciplinas são contempladas com um conteúdo socialmente crítico, ligado

às lutas e às necessidades materiais dos trabalhadores cooperados do MST. Daí que, mesmo não rompendo a realidade dicotômica social, contribui para o avanço

das lutas dos trabalhadores.

Ao final do curso, o aluno, individualmente, apresenta, perante banca, um trabalho monográfico. Este trabalho é precedido da escolha da área de estudo,

da pesquisa bibliográfica e da elaboração de um projeto de pesquisa.

No desenvolvimento prático das atividades, os alunos são divididos em quatro “Setores”, ou Áreas”, ligados às atividades produtivas, pedagógicas, de

formação e de manutenção da escola. Para tanto, a escola mantém os espaços devidos, dentro de suas condições e limitações. O setor produtivo, ou econômico, é

composto dos subsetores de laticínio, padaria, agroindústria de doces e conservas, horta e roça. Os alunos são responsáveis, tendo de produzir parte para a própria

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alimentação e parte para o mercado. Administram o excedente comercializando, controlando as finanças, a produção e planejando. Aprendem desde a preencher e

assinar um cheque até a fazer planilhas de custos e vendas. Devem planejar, vender e ser responsáveis pelas finanças. Mantêm uma loja na própria escola, onde

vendem produtos agroindustrializados por eles mesmos, como geléias, doces, conservas diversas e mel, não deixando de buscar espaço no comércio local. Às vezes,

vendem os produtos de casa em casa.

Os alunos são responsáveis pela manutenção da escola, construindo um setor para esta finalidade. Realizam trabalhos múltiplos, como secretaria, faxina,

trabalhos de pedreiros e jardineiros. Estes trabalhos também são realizados junto aos moradores de Veranópolis, e parte dos recursos são disponibilizados para a

manutenção da escola.

No Setor Pedagógico, os alunos são responsáveis pela biblioteca, sala de estudos, sala de leituras e sala de atividades culturais. Uma das coordenadoras da

escola afirma que:

“ A escola está organizada em quatro grandes áreas de serviços. Uma das áreas cuida mais da questão pedagógica. Têm uma área que cuida do lado econômico e

da produção, porque aqui nas escolas nós temos agroindústria. Nós temos as indústrias de geléia, temos uma padaria, laticínios, uma pequena agroindústria de

laticínios, especialmente na produção de queijos. Temos uma horta, tudo nosso. Enfim, todo esse processo de produção tem uma área econômica que gerencia

isso, faz todo esse trabalho de controle financeiro, comercial. É uma forma da gente envolver os alunos no trabalho e que através do trabalho eles também

participem. Além disso, nós temos uma outra área, “de formação”, que cuida da formação do aluno, especialmente da formação cultural, política e na formação de

novas relações entre as pessoas. E a gente também faz o acompanhamento do aluno que tenha dificuldade de entendimento, que tenha dificuldade de trabalhar de

forma organizada, tenha dificuldades de compreensão maior. Tem uma outra área, a área de moradia, que cuida do alojamento, da saúde dos alunos, das

condições de habitar nessa casa, da alimentação, da limpeza, da higiene da casa e assim por diante. Na verdade, são áreas de trabalho em que nós nos dividimos e,

temos aqui internamente, quatro coordenadores, cada um responsável por uma dessas áreas. Temos trabalhadores, funcionários que nos ajudam. Mas, o grosso do

trabalho, é feito pelos alunos. Os alunos ajudam, na verdade, a tocar a escola”.26

Essas atividades, se por um lado são revestidas por um certo utilitarismo, visando manter a escola, por outro lado atuam como um princípio

pedagógico, pois alia o trabalho teórico ao prático e dá ao aluno a responsabilidade da gestão. Em suma, qualificação técnica e administrativa e ensino

humanístico e político são, objetivamente, imprescindíveis ao projeto educativo do MST.

A FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA VISÃO DOS ALUNOS27

26 Entrevista com Dirlete Dellazeri, ibidem. 27 Os dados foram coletados através de questionários respondidos pelos alunos do TAC, em pesquisa de campo realizada em maio de 1999.

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Engajados nas lutas do MST e desejando contribuir para a reforma agrária, 99% dos alunos do TAC avaliam que a formação profissional deve conjugar a

educação geral e a educação profissional. Para os alunos, o trabalho é um princípio pedagógico fundamental, mas não deve ser desvinculado do conhecimento

científico e humanístico. Sobre esta questão, assim se posicionou a direção da escola:

“O principal objetivo da escola, em relação à proposta pedagógica, é vincular o estudo com a prática.. Por que isto? Porque a gente acredita que a educação

sem prática não prepara e não capacita tanto quanto se você estivesse tendo as duas coisas ao mesmo tempo, discutindo-as, estudando-as e aperfeiçoando-as.

E, também, porque é uma necessidade do Movimento dos Sem Terra. Todos os cursos partem da necessidade do Movimento. Por exemplo, o curso Técnico de

Administração em Cooperativas. Ele tem como objetivo a formação na área das cooperativas. A escola em si é organizada de uma forma cooperativa. Os alunos

vivenciam um processo de organização de uma cooperativa, tanto que o lema da escola é “educando para a cooperação”. O que é isso? Nós vamos vivenciando

os novos valores dentro do processo coletivo de organização, de divisão do trabalho, de divisão econômica dentro do coletivo, o que é o processo de educação

dentro de uma gestão coletiva. Desde um aluno que tenha dificuldade em uma determinada disciplina, e que o outro colega pode ajudar. Durante todo o curso,

os alunos devem passar por todos os setores de trabalho na escola, e isso interfere na produção. Mas isso tudo é muito pensado. Se todo mundo não consegue

passar por todos os setores de trabalho, a gente vai fazendo oficinas de capacitação dentro daquelas determinadas áreas. Dentro do Curso Técnico de

Administração das Cooperativas existe o Setor de Planejamento, o Setor de Finanças, o Setor de Agroindústria, a parte de comércio, tudo isso que as

cooperativas vivenciam e que é o foco do curso deles. Se todos os alunos não passam por esses setores, a gente vê um jeito para todo mundo se capacitar

dentro das oficinas de trabalho. Como é que você faz um pão, como você faz aquilo através das oficinas, como é que você faz um orçamento, como é que você

faz um planejamento, como é que você faz um projeto, como é que você trabalha o marketing, a produção, as vendas. Dentro da sala de aula ou dentro das

oficinas, a gente faz com que os alunos possam passar por todos esses níveis e possam entender o todo.”28

Para analisar a possibilidade real de uma educação geral, vinculada à formação profissional, torna-se necessário averiguar a existência de condições sociais

objetivas, pois sabe-se ser impossível superar a dicotomia social da divisão social do trabalho apenas no contexto escolar. Mesmo partindo de uma sociedade

capitalista, observa-se que a escola Josué de Castro busca articular o trabalho desenvolvido pelos alunos com o processo real de produção e gestão. Apesar da

precariedade financeira, que impede que a escola seja melhor equipada, observa-se que nem o academicismo, nem a teoria pela teoria e nem o trabalho como

adestramento, para servir à reprodução do capital e para o “ganha-pão do trabalhador”, estão na base do projeto educativo da escola. Ao contrário, os alunos e a

direção estão conscientes de que o seu conhecimento serviria para o desenvolvimento das cooperativas de assentados e que a possibilidade de o projeto político do

MST prosperar depende, em grande parte, da viabilidade destas cooperativas.

28 Entrevista realizada com Senira Beledelli, ibidem.

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O mundo do trabalho está articulado à teoria, no TAC, pelo significado real que este mundo tem para os alunos. O trabalho é a sua condição de

subsistência, mas é também a sua identidade social. A administração de cooperativas é um fato concreto para os alunos, e eles desejam conhecer cada processo de

trabalho, com todas as suas contradições.

Um dos maiores problemas enfrentados pela proposta de uma escola unitária e crítica situa-se no âmbito da inserção desta escola em uma sociedade já

marcada pela divisão de classes e, conseqüentemente, pela divisão social do trabalho. Mas a escola pesquisada vive a contradição do mundo do trabalho, e os

alunos estão ali, naquela escola, buscando subsídios para transformar a situação política, social e econômica vivida pelos trabalhadores. Uma das coordenadoras da

escola Josué de Castro afirma:

“Os alunos precisam atuar e precisam saber coordenar, saber organizar um seminário, coordenar uma palestra, conversar, organizar um estudo e um

debate. Também estudam como é se que faz uma rádio, porque nós temos a comunicação, como é que se faz um boletim, como é que se faz um

mural, um cartaz. São coisas simples mas que aqui na escola é fundamental. Na minha área, eu tenho a preocupação dos alunos estarem agindo ao

mesmo tempo em que eles estão se capacitando. É claro que acontecem vários erros, mas o trabalho para nós é compreendido como um elemento

pedagógico fundamental para a capacitação dos alunos. No setor pedagógico, existe a necessidade de fazer o planejamento, desde o contato com os

professores, da metodologia da aula, de como o professor poderia trabalhar nas oficinas de capacitação, observar quem tem mais dificuldade em

algumas oficinas, como datilografia, computação; ensinar a preencher um cheque, ler um extrato bancário, como se preenche um recibo, como se lê

uma prestação de contas, de como se lê um orçamento, enfim, para as pessoas conseguirem, na prática, ter domínio dessas questões que no dia-a-dia

fazem parte da vida do aluno, do assentado, para que ele possa auxiliar também as cooperativas. O aluno também se sente escola, porque eles

também estão num processo de construção, e para nós isso é importante. Por exemplo, nós temos um setor de comércio. O aluno vai aprender a

comercializar os produtos, a trabalhar neste mercado tão competitivo. Como é que tu faz, por exemplo, com os produtos da nossa cooperativa? Como é

que você entra no mercado? Porque é assim a teoria e a prática.”29

Praticamente todos os aluno do TAC (99%) defendem que um curso técnico deve formar profissionais capazes de atuar em diversas áreas, contra apenas

1%, que diz que deve formar um especialista. Também se constata pela pesquisa que 88% dos estudantes destacam que uma escola técnica de administração de

cooperativas deve preparar os alunos para um trabalho solidário, 2% defendem que se deve preparar para competir no mercado e 10% responderam que a

solidariedade e o mercado não são excludentes. Conforme o coordenador econômico:

“O curso dá ênfase para formar técnicos, pessoas qualificadas que possam encarar o mercado de frente. A escola transforma a prática do aluno, que, talvez,

era um tanto quanto distorcida, e mostra a ele novos caminhos, como é que as coisas poderiam ser e, através disso, o aluno tem uma nova visão, abre

29 - Entrevista realizada com Dirlete Dellazeri, ibidem.

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horizontes. No curso TAC, os alunos tem quatro horas de aula, onde eles vêem essa teoria e quatro horas de trabalho onde eles implementam essa teoria.

(...).Os alunos chegam e são desfiados a pensarem na questão do trabalho. Na luta de classes, enquanto a burguesia pensa, o resto a classe trabalhadora

executa. Aqui, não; ele pensa e ele executa. Isso é o trabalhador ser sujeito da sua própria história .”30

Pelas novas definições legais da reforma do ensino técnico (LDB 9394/96 e Decreto 2.208/97) os estudantes devem “aprender a ser, a fazer, a conhecer e a

conviver”, além de desenvolver a “sensibilidade”. A reforma diz que visa à “a democracia, à igualdade e integração, e à busca da verdade”, sem debater as

desiguais relações sociais de poder. Assim, de um modo vago e genérico, o modelo de “competências”, definido para o ensino médio, propõe integrar os alunos às

necessidades do seu tempo, sem definir historicamente este tempo, pois hoje estas competências são delimitadas pelas exigências do mercado e da divisão de

trabalho capitalista. Além do mais, esta discussão das “competências” joga a responsabilidade do emprego sobre o trabalhador individual, buscando quebrar a

resistência organizada e coletiva daqueles que vivem do seu trabalho.

Mas no caso específico do projeto educativo colocado em prática pelo MST existe uma especificidade que talvez resignifique ou coloque a discussão da

competência em outro patamar. Não se pode desconhecer as transformações que ocorrem no mundo contemporâneo e que estas mudanças trazem a necessidade

de um novo perfil para os trabalhadores. Estas exigências mais amplas das habilidades podem ser um avanço quando pensados numa perspectiva de desconstrução

das atuais relações de trabalho com vistas a superar as relações que as engendraram. Ou seja, numa perspectiva crítica, com vistas a construir relações sólidas de

solidariedade. E a escola do MST forma jovens para trabalharem em suas cooperativas, e não num genérico e excludente mercado capitalista. Desta forma, o

“saber-ser” e as novas habilidades flexíveis estão servindo aos interesses dos trabalhadores.

Quanto ao tipo de saber que deve ser priorizado numa escola de ensino técnico, 25% dos alunos afirmam que deve priorizar o estudo das organizações

sociais e políticas dos trabalhadores, 19% dizem que deve priorizar a gestão, 17% assinalam que a prioridade deve ser para estudos da organização social e política

do país e do mundo, 12% centram suas respostas nos direitos sociais, 9% na formação de lideranças, 9% no conhecimento científico e tecnológico e 9% no estudo

das formas de produção e culturas específicas do campo Considerando que os alunos do TAC são provenientes da militância em algum setor do MST, as respostas

apresentaram certo equilíbrio. Chama a atenção o fato de o conhecimento científico e tecnológico moderno ter sido citado por apenas 9% dos alunos pesquisados,

o que pode ser analisado como uma excessiva ênfase nas questões políticas discutidas na escola em detrimento do aprofundamento de questões científicas.

Para 45% dos alunos, a contribuição maior que o TAC pode dar aos cooperados é na organização social e política das cooperativas, ao passo que 30% acreditam que a

contribuição maior situa-se na mudança cultural que podem proporcionar, rompendo com o tradicionalismo do agricultor, 19% afirmam que poderão contribuir na gestão

financeira e mercadológica e 6% na inovação tecnológica. Alguns alunos relataram que “devemos ser autônomos e criar a nossa técnica sem depender da burguesia”; “nos

nossos assentamentos devemos trabalhar em cooperativas, socializar nossos trabalhos e cooperar em todas as atividades”.

30 Entrevista realizada com Rubens Tasso, ibidem.

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A importância da formação política dos alunos está bem delineada. E, devido a esta formação política, eles não fazem a diferenciação entre a gestão

“técnica” das cooperativas e a administração política, pois acreditam que “a questão técnica é também política”. Pode-se analisar que, para os alunos, o sucesso da

administração das cooperativas está diretamente ligado à organização social e política dos trabalhadores. Ao retornar ao assentamento, 89% dos alunos pretendem

desenvolver trabalhos relacionados à gestão cooperativa, contra 11% que pretendem trabalhar na agricultura

Estas respostas estão diretamente relacionadas ao fato de os alunos estarem fazendo um curso direcionado para o Movimento dos Sem Terra, que investe

na qualificação destes alunos visando melhorar a gestão das cooperativas e viabilizar o seu projeto social, econômico e político. Conforme depoimentos coletados

em campo, quase todos os alunos habilitados no TAC estão desenvolvendo atividades nas cooperativas. A diretora da escola avalia como positiva a inserção dos

alunos já formados nos assentamentos:

“É positiva, porque, se tu vai observar, das quatro turmas do curso técnico de cooperativas, acho que deve ter uns dois ou três, que não são lideranças, que

ficaram no seu mundinho pequenininho do seu lote. Todos estão ou na direção das cooperativas ou na direção regional do partido, dos movimentos, na

direção regional. Eles estão na direção do Estado, dentro dos setores, na direção nacional do Movimento dos Sem Terra. Têm alunos nossos do TAC que foram

escolhidos no 2º grau para irem para Cuba fazer um curso de medicina alternativa. Têm três alunos do Curso Técnico que foram selecionados, dentro do

Movimento, para irem fazer esse curso em Cuba, de seis anos, para ser médico para o Movimento Sem Terra. (...) Eles não estão aqui respondendo por si;

eles estão respondendo por um movimento social, e esse movimento social vai cobrar deles quando voltarem.”31

Esta questão pode ser remetida para outro tipo de problematização em relação ao processo educativo: a pressão social direta pelo aprendizado

não seria prejudicial ao desenvolvimento da formação do aluno? A escola não pode ser desvinculada do processo social real e crítico e não deve ser

utilitária, pois perderia o seu papel na construção do conhecimento. Mas em uma escola mantida por um movimento social de trabalhadores, este debate

teria sentido?

A vinculação direta dos alunos às cooperativas e ao MST, visando a uma preparação vinculada às necessidades da produção, não pode ser contextualizada

de forma utilitarista, pois o conteúdo ministrado na escola é crítico, geral, não sendo direcionado para a gestão “tecnicista” das cooperativas. A vinculação dos

alunos ao MST direciona-os para a formação de valores sociais fundamentais na construção de uma nova sociabilidade e uma nova sociedade. Os alunos valorizam

seu estudo, pois acreditam que estão realizando um trabalho social e politicamente justo e necessário

Assim, quando foi perguntado aos alunos o que eles esperam de seu curso, 33% disseram que pretendem ter um bom conhecimento em administração de

cooperativas; 31%, que querem aprofundar os seus conhecimentos políticos; e 8% deram outras respostas. Nenhum estudante afirmou que esperava com o curso

conseguir um bom emprego ou ter uma vida pessoal mais confortável.

31 Entrevista realizada com Senira Beledelli, ibidem.

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Estas respostas sintetizam o esforço e a proposta pedagógica da escola. Porém, chama a atenção o fato de que nenhum aluno pretende, com o curso, ter

um emprego ou ter uma vida pessoal mais confortável. Esta questão pode, por um lado, ser entendida como uma forte negação, real ou camuflada, da

individualidade dos alunos e, conseqüentemente, um sentimento coletivista. Por outro lado, a constituição dos sujeitos não pode ser vista apenas no campo

individual. Ter um bom emprego ou uma vida pessoal mais confortável é subjetivo; dependendo dos valores pessoais.

Perguntou-se, a seguir, o que o aluno, individualmente, deseja profissionalmente: 53% disseram que desejam trabalhar exclusivamente com as

cooperativas do MST; 25%, que desejam trabalhar em cooperativas de trabalhadores rurais, independente de ser ligada ao MST; 16%, que pretendiam trabalhar na

gestão das cooperativas, porém desejavam conciliar este trabalho com o trabalho agrícola; e 6% disseram, que desejavam trabalhar com cooperativas de

trabalhadores, independente de serem urbanas ou rurais. Ser um produtor agrícola familiar, trabalhar como assalariado agrícola, trabalhar exclusivamente em

cooperativas urbanas ou ter um emprego nas cidades não foram expressões de desejo apontadas por nenhum estudante.

Estes dados demonstram que os alunos estão, e desejam continuar, organicamente vinculados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. A

importância atribuída ao MST fica clara nas falas de alguns alunos: “O estudo no campo é muito importante, devido ao alto grau de analfabetismo e o povo não

sabe sobre a organização do MST”; “Para o MST, quanto mais estudo, melhor”.

Observa-se também que a maioria não deseja prosseguir no mesmo ramo de sua origem familiar; ou seja, não desejam ser um produtor familiar agrícola, preferindo trabalhar nas cooperativas e militar no MST.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelas respostas dos alunos, pode-se concluir que o TAC, mantido por um movimento social e sindical, apresenta especificidades quando comparado a outros

cursos de formação profissional: os alunos são selecionados pelo MST, com um perfil definido pelo Movimento; e o conteúdo curricular e o prático são também

definidos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas não se pode perder a perspectiva de que esta escola apresenta uma prática hegemonizada pelos

trabalhadores e utiliza uma metodologia original, adaptada, reconstruída e construída de propostas que pensaram a educação unida ao trabalho. Pode-se dizer que o

TAC resgata os princípios da escola unitária e politécnica, dentro de especificidades necessários à luta dos trabalhadores sem-terra.

A união entre trabalho e ensino, formação profissional e formação geral, presente nos debates teóricos pedagógicos e políticos de pensadores e ativistas

socialistas, transparece na prática e nas avaliações de alunos e da direção do TAC. Esta pequena escola, mantida pelo MST, com toda ordem de privações materiais,

apresenta um projeto de formação profissional que desenvolve as capacidades intelectuais, gestionárias e de produção, no âmbito de uma prática política crítica e

centrada no desenvolvimento do trabalho coletivo.

Toda proposta pedagógica que pretenda unir o trabalho e o ensino deve incorporar o movimento real da ação e da reflexão, produzindo novos saberes,

construindo e desconstruindo valores, teorias e práticas. Neste sentido, pode-se concluir que o projeto pedagógico de formação profissional colocado em prática na

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78

escola Josué de Castro pelo MST gera uma proposta inovadora, principalmente no tocante à gestão da escola pelos alunos e à alternância como o elo de ligação

entre o mundo da escola e o mundo da produção.

Também deve ser ressaltado o interesse de um movimento social, sindical e político pela proposta de formação e escolarização de seus militantes e dos

assentados. Assim, a conjugação da preocupação do MST com a escolarização, a formação e a formulação de uma pedagogia crítica deve ser vista como a garantia

de uma educação crítica e necessária para a formação dos sujeitos coletivos que compõem a classe trabalhadora.

BIBLIOGRAFIA

CALDART, Roseli S. A formação dos trabalhadores no MST: um estudo sobre o curso técnico em administração de cooperativas. Porto Alegre, 1996. (

mimeo.).

CERIOLI, Paulo. Educação para a cooperação: experiência do curso técnico em Administração de cooperativas do MST. São Leopoldo, UNISINOS-RS,

1997 ( monografia do curso de especialização superior em cooperativismo).

MORAES, Clodomir S. A Capacitação Massiva. PortoVelho, Emater, 1989.

.

Page 79: Volume xi 2004

79

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº171 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 171

FLÁVIO DUTKA

CLIMATOLOGIA DE RONDÔNIA

Marcos Cortez

PRIMEIRA VERSÃO

Page 80: Volume xi 2004

Marcos Cortez CLIMATOLOGIA DE RONDÔNIA Professor do curso de Geografia - UFRO [email protected]

Foram utilizados os dados da Estação Meteorológica da Embrapa, em Porto Velho com coordenadas: 08.46 LAT. (S) e 63.05 LONG.(W Grw).

A caracterização climática da área de estudo foi feita com base nos dados da estação Meteorológica da Embrapa de Porto Velho - RO. Foram utilizados

dados das Normais Climatológicas editadas pelo Departamento Nacional de Meteorologia do Ministério da Agricultura e Reforma Agrária, considerando as médias de

dados de 15 anos de funcionamento da Estação(1975 a 1990).

Para que sejam consideradas como “normais climatológicas” as médias devem referir-se a períodos padronizados de trinta anos e de maneira geral, os dados

do clima tem maior utilidade quando comparados com valores padrões ou normais. Daí a necessidade de estabelecimento de períodos estandardizados, seguidos por

todos os países. As normais são obtidas através dos cálculos das médias, obedecendo critérios recomendados pela Organização Meteorológica Mundial (OMM).

Esses critérios, porém, não são claros no que diz respeito a períodos inferiores a trinta anos. Para tentar suprir esta deficiência, uma equipe de técnicos

reuniu-se em Washington D.C., em março de 1989 e elaborou um documento (WCPD N° 10) que procurava estabelecer procedimentos padronizados para o cálculo

das Normais Climatológicas. Deu-se, assim, uma orientação sobre como proceder em relação às estações cujas séries não alcançavam o período padronizado, mas,

ficavam acima de dez anos. Neste caso convencionou-se que seriam denominadas “Normais Provisórias”.

O Brasil, porém, para maior validade, adotou somente séries superiores a quinze anos. O conceito de “cálculo das normais” inclui a análise da

homogeneidade de dados e a avaliação dos outros elementos descritivos do clima. No presente estudo foram trabalhadas as médias mensais e anuais referentes a

nove parâmetros meteorológicos e valores extremos de temperatura e precipitação.

As médias mensais e anuais de pressão atmosférica, temperatura do ar, nebulosidade e umidade relativa, foram obtidas a partir das médias mensais e

anuais dos valores diários. Da mesma forma calcularam-se os totais mensais e anuais de precipitação, evaporação e insolação.

Para avaliação dos valores de temperatura média e umidade relativa, usaram-se as seguintes fórmulas: T = ( T12+2T00+TMAX+TMIN)/5 para temperatura

e U = (U12+U18+2U)/4, para a umidade. Os índices indicam as horas das observações: 12:00, 18:00 e 00:00 TMG (Tempo Médio de Greenwich).

A análise de homogeneidade inclui a verificação de tendências, desvios, valores alterados e outros problemas que evidenciaram a heterogeneidade dos

dados. Em seguida foi feita uma verificação da heterogeneidade através da análise dos resultados obtidos, a fim de identificar a origem da variação e

descontinuidade não climática.

Page 81: Volume xi 2004

81

A análise dos ventos não é contemplada pelas normais climatológicas, assim, foi adotado como padrão o ano de 1999, para análise do comportamento dos

ventos na área de estudo.

Caracterização Climática

De acordo com a classificação climática de Köppen, publicada por Trewartha, 1954, a região está submetida ao clima continental de floresta do tipo Aw,

clima tropical chuvoso cuja temperatura média do mês mais frio é superior a 18o C e a do mês mais quente é superior a 25o C. A variação sazonal do clima

apresenta um período seco entre o outono e inverno e um período chuvoso nos meses da primavera e do verão.

Topografia e Meteorologia Local

A topografia da área é plana, baixa e sem impedimento do relevo para a circulação dos ventos. Sendo assim, apresenta-se como quente durante todo o ano

e como a área ao redor é ocupada com floresta natural, há um equilíbrio térmico fazendo que as amplitudes térmicas sejam pequenas, considerando-se que se trata

de uma área continental.

As massas de Ar e os Processos de Larga Escala

Para entender o funcionamento do clima de um ponto qualquer da superfície é preciso considerar a sua posição com relação à atuação das massas de ar. A

climatologia dinâmica procura estudar o clima de uma área a partir da análise de massas de ar que atuam em larga escala.

A área de estudo está localizada na região de circulação de ventos do vale do rio Madeira e estará sujeita à influência da massa de ar dominante em dado

período do ano. Além disso, sua localização a coloca nos limites extremo da atuação das massas Tropical e Subtropical, na área de confronto dessas massas de ar

com a massa Equatorial continental.

Três massas de ar se alternam na área: a massa Equatorial continental, a massa Tropical continental e a massa Subtropical, cujo sistema de frentes frias

pode eventualmente atingir a região.

O processo que regula a circulação das massas de ar é determinado em primeira instância pela radiação solar. A inclinação da Eclíptica tem portanto

importante papel no posicionamento da massa de ar. Desta forma, a massa de ar Equatorial, com o cinturão das tempestades da Zona de Convergência

Intertropical, acompanha o posicionamento do sol, assim, quando o sol se desloca em direção ao hemisfério norte no meio do ano, arrasta consigo a massa

Equatorial levando o sistema de chuvas para Roraima.

Page 82: Volume xi 2004

82

Enquanto isto, no mesmo período, a massa de ar Tropical continental, quente e seca, ocupa a área de estudo produzindo déficit hídrico. As estações

intermediárias, outono e primavera, representam momentos de transição da massa de ar, no outono com o recuo da massa Equatorial e na primavera com o seu

retorno, culminando com um verão chuvoso sob influência da massa Equatorial.

Análise dos Dados

Foram analisados e cruzados uma série de dados de temperatura, pressão, umidade, precipitação,

nebulosidade e outros que possibilitam a análise climática da área de estudo. Os resultados podem ser vistos a

seguir.

Componentes do balanço hídrico

Para caracterização climática da área de estudo foi utilizado o método do Balanço Hídrico de Thorntwaite e Mather.

Gráfico 1-Balanço Hídrico

O gráfico mostra o cruzamento das linhas de precipitação(vermelha) com a de evapotranspiração potencial (verde) e real (azul). A evapotranspiração potencial

depende da disponibilidade de água no solo, assim, em períodos com déficit hídrico a evapotranspiração potencial é maior que a real. O período de déficit hídrico

aparece marcado por uma área amarela e a análise do gráfico permite identificar um período com déficit hídrico, que atinge o máximo nos meses de junho e julho.

Page 83: Volume xi 2004

83

Este período marca notadamente o clima da área, a superfície do terreno se torna seca, os rios e igarapés reduzem seu volume e o lençol freático sofre

forte oscilação. Segue-se um período de chuvas em agosto, que irá marcar o retorno da primavera.

São chuvas do tipo “frontal”, provocadas pela chegada de frentes frias vindas do sul do país. No mês de setembro, as chuvas do tipo ‘frontal’ vão

desaparecer pois a força de penetração da massa de ar subtropical diminui, e ela será substituída por chuvas derivadas das linhas de Instabilidade Tropical.

As ITs formam longas faixas no limite de contato da massa Tropical com a massa Equatorial. Tais linhas de instabilidade trazem chuvas tropicais, chuva

fina, de céu alto, com formações de nuvens estratos ou estratos cúmulos, típicas da primavera. Em setembro, essas chuvas despertam a natureza para um novo

ciclo mas não são ainda suficientes para suprir o déficit hídrico, considerando-se o volume de evaporação e o gráfico mostra um déficit de evapotranspiração real,

na forma de um pequeno triângulo amarelo no mês de setembro.

A partir do mês de outubro, retornam gradativamente as condições úmidas e as linhas de Instabilidade Tropical persistem atuando durante toda a

primavera. As chuvas tropicais cessam no início do verão em dezembro e passam a dar lugar a fortes chuvas, agora, sobre a influência da Zona de Convergência

Intertropical. Trata-se de um sistema de circulação atmosférico associado a fortes chuvas do tipo convectiva, com tempestades formadas por nuvens do tipo

cúmulos nimbos, com forte componente de circulação vertical.

Evapotranspiração e evaporação

O gráfico de balanço hídrico mostra os valores associados de evapotranspiração e evaporação. Para a presente análise de valores de evaporação foram

separados com base nas médias de evaporação total como pode ser visto no gráfico a seguir.

Gráfico 2- Evaporação Total

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EVAPORAÇÃO TOTAL

0

20

40

60

80

100

120

janeiro fevereiro março abril maio junho julho agosto setembro outubro novembro dezembro

meses

mm EVAPORAÇÃO TOTAL

Com o início do verão, a partir de dezembro, a taxa de evaporação total é decrescente. Isto se deve ao fato de ser um período de intensa precipitação com

grande cobertura de nuvens e elevada umidade relativa do ar, fatores que dificultam a evaporação.

A taxa de evaporação se mantém em declínio até abril, quando alcança seu menor valor. Neste mesmo período o volume de evapotranspiração é muito alto

e é comum, logo após uma chuva, a formação de nevoeiro em áreas florestadas devido à intensa evapotranspiração. Observa-se que, no gráfico de balanço hídrico,

a evapotranspiração real é igual à evapotranspiração potencial e que em março, abril e maio estão os maiores valores de evapotranspiração. Este quadro muda a

partir do mês de maio quando inicia o período de déficit hídrico, indicado no gráfico de balanço hídrico pela área de cor amarela. Neste caso a evapotranspiração

diminui e aumenta o componente de evaporação. Nos meses de junho e julho prevalece apenas a evaporação e a evapotranspiração cessa.

A precipitação em agosto corresponde a um idêntico volume de evaporação assim, um novo déficit hídrico ocorre num curto período do mês de setembro. A partir

desse mês, entram as chuvas de primavera, a evapotranspiração se torna gradativamente maior que os volumes de evaporação total, cujos valores se tornam

decrescentes.

Gráfico 3- Precipitação Total

Page 85: Volume xi 2004

85

PRECIPITAÇÃO TOTAL

0

50

100

150

200

250

300

350

400

janeir

o

fever

eiro

março abril

maio

junho

julho

agos

to

setem

bro

outub

ro

nove

mbr

o

deze

mbro

meses

pre

cip

ita

çã

o(m

m)

PRECIPITAÇÃO TOTAL

As precipitações

As precipitações são dependentes da movimentação das massas de ar que atuam sobre a região. Observamos nas análises precedentes a existência de

quatro estações, cada uma delas marcada pela presença de uma massa de ar. Assim, o verão é marcado por fortes precipitações, derivadas da atuação da massa

Equatorial úmida, com chuvas convectivas, nuvens baixas do tipo cúmulos nimbos, baixa pressão e grande nebulosidade.

O mês de março é um mês de transição, quando a massa Equatorial é reforçada por ventos úmidos vindos da Amazônia oriental. Neste mês as pressões são

altas, as precipitações aumentam mas muda gradativamente o tipo de chuva. Estas chuvas marcam o final do verão e início de outono. Abril e maio são os meses

em que o domínio da massa tropical se torna cada vez maior. No inverno do meio do ano, as precipitações diminuem. É o período de domínio das massa de ar

subtropicais, responsáveis pelo déficit hídrico na região. A penetração da massa fria e seca do sul é dificultada pela massa de ar quente e úmida ao norte.

Neste caso, a frente se torna estacionária e devido à maior pressão da massa Equatorial. Neste caso o ar quente dessa massa ascende sobre o ar mais frio

da massa que está entrando e produz um fenômeno conhecido como subsidência: uma inversão térmica que impede a ascensão do ar e a formação de chuva com a

retenção de fumaça e poluentes atmosféricos a nível do solo, havendo ocasiões em que a visibilidade se torna muito baixa levando até mesmo ao fechamento de

aeroportos.

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86

Os meses de junho, julho e agosto, são os mais secos, sendo que agosto apresenta a menor quantidade média de precipitação com 20.2 mm para Porto

Velho. Agosto novamente aparece como mês de transição, marcando a entrada da nova estação (primavera). As precipitações se elevam sob a influência de chuvas

leves, de céu alto, propícias para o despertar vegetativo das plantas.

Segue-se um curto período seco(setembro) e, a seguir, as chuvas aumentam gradativamente de volume. As chuvas de primavera são do tipo tropical,

derivadas da formação de linhas de Instabilidade Tropical que trazem chuvas de céu alto. São chuvas abundantes mas não torrenciais, com formação de nuvens do

tipo estratos cúmulos e chuvas de nimbos estratos, muito importantes para o desenvolvimento e florescimento das plantas. Finalmente, entra a estação do verão

em dezembro, com o retorno da massa de ar equatorial e suas fortes chuvas .

Precipitação altura máxima em 24 horas

O gráfico de alturas máximas de precipitação em 24 horas é revelador dos tipos de chuva que ocorrem na área.

Gráfico 4- Precipitação em 24 horas

PRECIPITAÇÃO ALTURA MÁX.24HS.

0

20

40

60

80

100

120

140

160

180

janeiro fevereiro março abril maio junho julho agosto setembro outubro novembro dezembro

meses

pre

cip

itação

PRECIPITAÇÃO ALTURA MÁX.24HS.

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87

Observa-se que em dezembro, janeiro e fevereiro os valores são altos, podendo chover mais de 100 mm em apenas um dia. No entanto, estes não são os

valores mais altos pois após um ligeiro declínio das precipitações máximas em fevereiro, as chuvas torrenciais voltam em março, novamente com 148 mm de chuva.

Como já foi dito, o mês de março representa um mês de transição, quando a massa Equatorial continental recebe um reforço com muita umidade vindo do nordeste

da Amazônia. Neste caso, a massa úmida trás aumento de chuvas. São as águas de março fechando o verão.

A acentuada queda das precipitações anuncia o domínio da massa de ar Tropical continental com o período seco do meio do ano. Para esta secura muito

contribui o regime hídrico do rio Madeira. Este é um rio com um componente pluvial, dado pelas intensas chuvas da área e outro componente nival, pois o rio

recebe grande quantidade de água do degelo de neves na cordilheira dos Andes. As cheias desse rio são reguladas por este processo e, no meio do ano, com o

advento do inverno no hemisfério sul as neves são retidas na cordilheira dos Andes e o rio Madeira desce muito no seu nível hídrico. Com isto se altera o nível de

base local e os igarapés e afluentes do rio Madeira se esvaziam neste período e o lençol freático sofre grande variação.

Observando-se a situação das chuvas em junho e julho notamos que é possível chover em torno de 50 mm em um único dia, pois a área está sujeita à

penetração de frentes frias, trazendo uma súbita alteração nas temperaturas e nas chuvas. Tais valores são alcançados quando há o contato entre a massa

Equatorial e as massa Tropical e Subtropical. Nesse tipo de contato, quando a massa de ar penetrante possui temperaturas mais baixas e uma maior pressão,

penetra como uma cunha por baixo da massa quente e úmida, provocando a elevação do ar e chuva.

Em outubro se encontra o valor mais alto de chuva máximas em 24 horas com um total acima de 157 mm. Estas fortes chuvas estão associadas à formação

de linhas de Instabilidade Tropical que formam um corredor chuvoso da fronteira do Amazonas com o Peru até a região Sudeste do Brasil. Finalmente, a partir de

novembro, retornam as condições de chuvas da massa Equatorial.

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Gráfico 5- Umidade Relativa

U M ID AD E R ELATIVA

74

76

78

80

82

84

86

88

90

jane iro fevere iro m arço abri l m a io junho julho agosto se tem bro outubro nov em bro dezem bro

m eses

% U M ID AD E R E LAT IV A

Ao observarmos o gráfico de variações mensais das médias de umidade relativa do ar, concluímos que a área de estudo não apresenta um período seco

propriamente dito pois mesmo no mês de maior déficit hídrico (julho) a umidade relativa é muito alta (80%) e não há período seco pois chove, em média, pelo

menos 22.6 mm. A seca é de caráter fisiológico pois, como pode ser visto no gráfico de balanço hídrico, a evapotranspiração potencial é de cerca da metade da

evapotranspiração real.

Os componentes do Balanço de Radiação

Para estudo dos componentes do balanço de radiação foram analisados os valores médios de nebulosidade, insolação e de temperaturas como pode ser

visto a seguir.

Gráfico 6-Nebulosidade

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NEBULOSIDADE

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

janeiro fevereiro março abril maio junho julho agosto setembro outubro novembro dezembro

meses

(0-1

0)

NEBULOSIDADE

No verão, sob a influência da massa de ar Equatorial a nebulosidade é muito alta, atingindo seu valor máximo em fevereiro. No mês de março, a

nebulosidade ainda é muito alta mas vai começar a cair à medida que a massa de ar Equatorial cede espaço à massa Tropical. O tipo de nuvens também se altera e

as nuvens cúmulos nimbos são substituídas por nuvens estratos e estratos cúmulos.

A nebulosidade alcança seu mínimo em agosto com o domínio da massa Tropical continental. Dias cinzentos com chuva fina podem ocorrer com a

penetração de frentes frias derivadas da massa de ar subtropical. Com a chegada da primavera em setembro retornam as chuvas tropicais e a nebulosidade

aumenta gradativamente até atingir seu máximo novamente no verão.

Gráfico 7-Insolação Total

INSOLAÇÃO TOTAL

0

50

100

150

200

250

janeiro feverei ro m arço abril m aio junho julho agosto setem bro outubro novem bro dezem bro

m eses

(ho

ras

e d

écim

os

)

INSOLAÇÃO TOTAL

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A taxa de insolação total está intimamente associada com a nebulosidade. Os meses de menor taxa de insolação total são os meses de verão (dezembro,

janeiro e fevereiro) quando a área se encontra com grande nebulosidade. A partir de março, com o início do outono, há uma transição com mudança da massa de

ar dominante na área e a insolação começa a subir ao mesmo tempo em que a taxa de nebulosidade diminui.

Durante o período de domínio da massa Tropical continental, nos meses de junho e julho, a insolação atinge o seu máximo com mais de 199 horas de

insolação no mês de junho e atingindo seu máximo de insolação em julho com mais de 218 horas mensais de insolação em média. É um período com pouca

cobertura de nuvens, quando predomina a névoa seca.

A insolação diminui em agosto sob o efeito da névoa seca. Setembro e outubro são meses de chuvas tropicais e a nebulosidade aumenta diminuindo ainda

mais a insolação total. A insolação volta a se elevar com o recuo da massa Tropical em novembro e a partir de dezembro, com o retorno da massa Equatorial o total

de insolação diminui para alcançar o seu mínimo em fevereiro com apenas 91 horas mensais de insolação.

Temperatura

Para observar a variação anual das temperaturas foram estudadas as Temperaturas Médias, as Temperaturas Máximas, as Temperaturas Mínimas, a

Temperatura Máxima Absoluta e a Temperatura Mínima Absoluta.

Gráfico 8- Temperatura Média

TEMPERETURA MÉDIA

22

22,5

23

23,5

24

24,5

25

25,5

26

janeir

o

fever

eiro

mar

ço abril

maio

junho

julho

agos

to

sete

mbro

outub

ro

nove

mbr

o

deze

mbro

meses

ºC TEMPERETURA MÉDIA

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A análise das temperaturas permite perceber a substituição de uma massa de ar por outra, É que, cada massa de ar tem suas próprias características de

temperatura, pressão e umidade, desta forma, a substituição de uma massa por outra aparece expressa na análise de dados. Observa-se que, em março, mês de

transição, com substituição da massa Equatorial pela massa vindo da direção nordeste, há grandes alterações. Com relação às temperaturas, ao mesmo tempo que

a temperatura média do mês alcança seu valor mais alto, as temperaturas máximas atingem seu valor mais baixo. Isto se deve às características da massa de ar

que está penetrando, com temperaturas mais equilibradas devido à grande umidade

Em Porto Velho a temperatura média anual é 25,2o C. Observa-se também que ocorre uma gradativa diminuição das temperaturas no meio do ano. A partir

do mês de maio, por influência da penetração de massa de ar frias e secas vindas do sul do país, ocorre uma sensível queda nas temperaturas, descendo abaixo

das médias mínimas de 23,5 °C. no mês de julho. Ao observarmos o gráfico podemos perceber uma notável queda de temperaturas nos meses de junho e julho.

O mês de Agosto caracteriza-se por fortes oscilações de temperatura pois frentes frias são responsáveis pela ocorrência do fenômeno da “friagem”, levando a

quedas súbitas de temperatura, quando a temperatura mínima do ano atinge aproximadamente 10 °C. Isto denota a atuação de massas de ar frio na área neste período.

No entanto, isto não significa que as temperaturas sejam mais baixas nesses meses do ano e sim que, devido à chegada de "frentes frias", há uma súbita

queda de temperatura e, assim que a massa de ar frio se dissipa e como a atmosfera está sem cobertura de nuvens, a temperatura logo volta a se elevar. Isto pode

ser observado no gráfico de Temperatura Máxima a seguir.

Gráfico 9- Temperatura Máxima

T E M P E R A T U R A M Á X IM A

2 6

2 7

2 8

2 9

3 0

3 1

3 2

3 3

3 4

janeir

o

feve

reiro

março abril

maio

junho

julho

agos

to

sete

mbro

outub

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nove

mbro

deze

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o

m e s e s

º C T E M P E R A T U R A M Á X IM A

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92

O gráfico de temperaturas máximas é muito expressivo a respeito das alterações de temperatura que ocorrem com a substituição da massa Equatorial pela

massa de origem subtropical. Devido à intensa cobertura de nuvens no período do verão (dezembro, janeiro e, sobretudo, no mês de fevereiro), a radiação diminui

fazendo com que as temperaturas máximas sejam menores.

As temperaturas máximas alcançam seu valor mais baixo no mês de março. A partir de abril a cobertura de nuvens começa a diminuir e as temperaturas máximas

novamente se elevam. Maio representa um mês de transição, quando a massa de ar Equatorial cede lugar as massa de origem tropical e subtropical, o ar mais seco e

pesado penetra por baixo das camadas de ar mais quentes e úmidas da massa equatorial, a cobertura de nuvens diminui e as temperaturas máximas se elevam.

Este processo continua atuando até agosto quando as temperaturas máximas são as mais elevadas do ano pois o domínio da massa de ar Tropical

continental acentua as condições de continentalidade da área. No mês de setembro as condições se alteram com a entrada das chuvas das linhas de Instabilidade

Tropical, as temperaturas máximas caem e se mantêm em declínio com a entrada do período chuvoso.

Gráfico 10- Temperatura Mínima

T E M P E R A TU R A M ÍN IM A

0

5

1 0

1 5

2 0

2 5

janeiro

fever

eiro

mar

ço

abril

maio

junho

julho

agos

to

sete

mbr

o

outu

bro

nove

mbro

deze

mbr

o

m eses

º C TE M P ER A T U R A M ÍN IM A

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93

Se observarmos as médias de Temperatura Mínima, durante os meses de atuação da massa Equatorial, as mínimas não sofrem fortes variações, mas, a

partir de maio a transição climática é notável com a queda das temperaturas mínimas, por influência de massas de ar frio vindas do sul.

Com relação às variações de temperatura, um aspecto interessante de se observar diz respeito à amplitude térmica da área de estudo. Neste caso, a

amplitude térmica expressa a atuação de dois fatores diferentes. O primeiro diz respeito ao fato da área estar situada em área continental, e as variações de

temperatura diárias expressam esse fato.

Há uma constante variação térmica entre o dia e a noite de aproximadamente 8ºC. a 9°C. É uma variação pequena quando comparada com outras áreas

continentais. Isto se deve à presença da floresta que atua no sentido de equilibrar as temperaturas, desta forma, a área não apresenta variações extremas. Por

outro lado, o segundo fator atuante na amplitude térmica é a presença de massa de ar frio vindos do sul pois as maiores variações de temperatura estão associadas

à chegada de frentes frias na região.

As temperaturas mais baixas da massa de ar provocam quedas de temperatura que podem durar até três dias, fenômeno conhecido regionalmente por “friagem”.

Considerando que a área está sujeita à influência de dois sistemas de circulação atmosférica, a saber: a Zona de Convergência Intertropical (ZCI) e as

Instabilidades Tropicais (IT), temos dois sistemas de temperatura diferentes atuando na região pois enquanto a ZCI atua associada a massas de ar quentes do tipo

Equatorial, o que implica numa amplitude térmica pequena, as ITs estão associadas à atuação de anticiclones subtropicais semi-permanentes e transientes.

Desta forma, ao observarmos as variações de temperatura podemos perceber o mês onde é maior a ocorrência de anticiclones subtropicais e sua

intensidade, que pode ser inferida pela amplitude térmica apresentada.

Gráfico 11- Amplitude Térmica AMPLITUDE TÉRMICA

0

2

4

6

8

10

12

14

16

janeiro fevereiro março abril maio junho julho agosto setembro outubro novembro dezembro

meses

am

plitu

de

(ºC

)

AMPLITUDE TÉRMICA

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94

A variação da amplitude térmica nos permite observar quando a massa de ar equatorial é substituída pela massa tropical. É que a massa de ar equatorial é

quente mas tem as temperaturas variando pouco, daí apresentar uma amplitude térmica menor. É o que sucede em dezembro, janeiro e fevereiro.

O mês de março apresenta uma importante transição, nota-se que, neste caso, a amplitude térmica alcança seu valor mínimo com a alteração da massa

Equatorial provocada por ventos de NE, a amplitude térmica diminui e, à medida que a massa Equatorial vai sendo substituída pelo domínio da massa Tropical as

amplitudes térmicas aumentam, atingindo o seu máximo com a penetração de massas de ar subtropicais.

Os valores de amplitude térmica são crescentes até agosto o que denuncia a atuação de frentes frias na área. A partir de setembro, com o retorno do

sistema de chuvas, as amplitudes térmicas diminuem com o retorno da massa Equatorial.

Perfil do Vento

Vento, por definição, é o deslocamento de uma massa de ar de uma área de alta pressão para outra de baixa pressão. Desta forma, para analisarmos o

perfil do vento se faz necessário à compreensão da movimentação das massas de ar e dos processos associados à pressão atmosférica. Assim, para análise do perfil

do vento, vamos observar os dados relacionados à variação mensal das médias de pressão atmosférica no gráfico a seguir.

Gráfico 12- Pressão Atmosférica

Page 95: Volume xi 2004

95

PRESSÃO ATMOSFÉRICA

986

988

990

992

994

996

998

1000

1002

1004

1006

1008

janeiro fevereiro março abril maio junho julho agosto setembro outubro novembro dezembro

meses

hP

a

PRESSÃO ATMOSFÉRICA

A marcha diária da pressão atmosférica exerce um papel determinante sobre os fenômenos meteorológicos de larga escala. Quando se fala em larga escala,

está se tratando da propagação de ondas na atmosfera de amplitudes superiores a 300 km. Essas ondas ditam o comportamento do clima de regiões que estão

dentro deste raio.

O gráfico de pressão atmosférica permite acompanhar o comportamento deste componente ao longo do ano. Durante o período chuvoso do início do ano,

sob a influência da massa Equatorial quente e úmida as pressões estão em queda, alcançando aproximadamente 1000 hPa. Cada mudança da massa de ar

dominante na área é marcada por uma forte mudança na pressão atmosférica. Assim é que, no mês de março, mês de transição de verão para outono, a massa

Equatorial modifica seu comportamento, perturbada por variações na direção do vento de norte para nordeste, este fenômeno é marcado por uma pressão mais

alta, a seguir, no mês de abril, com o recuo da massa Equatorial para o hemisfério norte há uma queda de pressão.

Logo que o recuo da massa Equatorial termina de ceder espaço, a área é ocupada pelo ar seco da massa de ar Tropical continental que se torna

dominante e as pressões se elevam alcançando seu máximo anual em junho. Nestas condições, os anticiclones subtropicais vão poder penetrar até a área

trazendo chuva e frio no fenômeno conhecido regionalmente como “friagem”. Julho e agosto vão apresentar pressões mais baixas, pois é quando o

período de déficit hídrico se apresenta, a seguir, setembro representa uma nova fase de transição e, a partir de novembro, o retorno gradativo da massa

Equatorial vai ser marcado por uma contínua queda nas pressões até a volta do verão e reinicio do ciclo.

Ø Os ventos

Page 96: Volume xi 2004

96

A velocidade média dos ventos é baixa, em torno de 1,4 m/s. Ao longo do ano as variações são pequenas e os ventos mais fortes estão relacionados a chuvas.

O gráfico a seguir relaciona as velocidades médias e as velocidades máximas.

Gráfico 13- Ventos

VE NT OS

0

2

4

6

8

10

12

14

16

18

20

j anei r o f ever ei r o mar ço abr i l maio j unho j ul ho agosto setembr o outubr o novembr o dezembr o

me s e s

V E LOCIDADE MÁ X IMA

V E LOCIDADE MÉ DIA

Dezembro, janeiro e fevereiro são os meses de domínio da massa Equatorial, neste caso, a direção dominante do vento é norte com a velocidade máxima

variando de 10,5 a 11,5 m/s. Em março, as velocidades médias e máximas caem e a direção dominante do vento torna-se nordeste. Observa-se que de abril até

outubro a massa de ar atuante na área é a massa Tropical com a direção SE e S sendo a dominante.

Os meses de junho e julho são meses de estabilidade atmosférica. Os ventos diminuem com as velocidades médias e máximas caindo. Nessas condições

predomina névoa seca, com grande quantidade de poeira e fumaça no ar. A partir de agosto a penetração de anticiclones subtropicais é denunciada por fortes

ventos. As velocidades máximas alcançam 17,6 m/s. com ventos vindos do sul.

De setembro para outubro ainda prevalecem as condições de domínio do vento sul mas inicia-se a formação de linhas de Instabilidade Tropical, trazendo

as chuvas de primavera. Novembro marca a transição do vento com o retorno gradativo da massa Equatorial, a direção torna-se NW para, finalmente, passar a

atuar com a direção dominante norte.

Para visualizar essas direções foi feito o gráfico que relaciona a velocidade máxima com as direções predominantes.

Gráfico 14- Ventos Predominantes

Page 97: Volume xi 2004

97

vento predominante

0

2

4

6

8

10

12

14

16

18janeiro

fevereiro

março

abril

maio

junho

julho

agosto

setembro

outubro

novembro

dezembro

PREDOMINÂNCIA

VELOCIDADE MÁXIMA

VELOCIDADE MÉDIA

Gráfico 15- Velocidade Máxima

Page 98: Volume xi 2004

98

VELOCIDADE MÁXIMA

0

2

4

6

8

10

12

14

16

18N

N

NE

SE

SE

SE

SE

S

S

S

NE

N

VELOCIDADE MÁXIMA

BIBLIOGRAFIA

COSTA, Marcos Côrtes, Estimativa da evapotranspiração regional por meio de imagens orbitais Universidade Federal de Viçosa, setembro de 1997.

Pp.57.

Departamento Nacional de Meteorologia. Normais Climatologicas. Ministério da Agricultura e Reforma Agraria, Serie 1961/1990. p.190.

THORNTHWAITE, W. C. An approach toward a rational classification of climate. Geographical Review, v.38. p.55-94, 1948.

VIANELLO, R. L., ALVES, A.R. Meteorologia básica e aplicações. Viçosa, MG: Universidade Federal de Viçosa, 1991. 449p.

SELLERS, W. D. Physical climatology. Chicago: University of Chicago, 1965. 272p.

Page 99: Volume xi 2004

99

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº172 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 172

FLÁVIO DUTKA

O DITO PELO NÃO DITO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CURRÍCULO OCULTO

Vanassa Aparecida Alves de Lima

PRIMEIRA VERSÃO

Page 100: Volume xi 2004

Vanessa Aparecida Alves de Lima Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano / USP [email protected]

O DITO PELO NÃO DITO :CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CURRÍCULO OCULTO

Não é sem angústia que administradores escolares e educadores acompanham a desestruturação social em nossas escolas. Repetência, evasão, mau

aproveitamento nos conteúdos e outros comportamentos transgressivos e violentos, desde a agressão verbal aos colegas até a formação de gangues. Muitos

elementos estão por trás destes problemas.

Historicamente muitos têm sido apontados como responsáveis pelo fracasso escolar: o primeiro a ser colocado no banco dos réus foi o próprio aluno, sua

era a responsabilidade por não ir bem na escola, fosse por fatores biológicos, neurológicos ou familiares. Depois, nesta desprivilegiada posição também foi

colocada a família, por fim, o professor vem sendo colocado na berlinda.

Mas há de se considerar que um grande número de professores, depois de colocados nesta posição, tem feito muito para livrar-se do estigma, saindo numa

busca desenfreada por novas teorias e formas de ensino. Embora saibamos que há um número significativo de professores que se recusam a mudar de estratégia.

A idéia de fracasso escolar há um bom tempo já vem sendo questionada. Cada vez mais a tendência é discutir o fracasso da escola, e Maria Helena Souza

Patto faz isto magnificamente.

Enquanto instituição educacional, a escola deveria promover a discussão de sua problemática, dadas as peculiaridades de cada comunidade. A LDB e as

políticas públicas, cada vez mais, permitem aberturas na discussão e implantação de currículos, inclusive os experimentais. A possibilidade de autogestão que

estão experienciando as escolas dá-lhes uma possibilidade de autonomia que, se negociada e aceita pela comunidade, é irreversível e satisfatória.

Contudo, para além dos fatos mais explícitos que possam ser discutidos dentro da escola, há que se considerar o Currículo Oculto.

Em minha experiência profissional, trabalhando com formação de professores, encontrei no curso de pedagogia de uma faculdade particular, muitos alunos

que já atuavam como professores, e havia para eles uma grande dificuldade de compreender que por trás do “dito”, pode estar o “não dito”.

O conceito de inconsciente, embora seja de certa forma um domínio comunitário, pois a psicanálise é hoje a teoria psicológica mais conhecida do grande

público (isto não significa aceita), é de difícil compreensão quando se trata de denunciar nossos próprios atos.

Falar de currículo oculto com professores que estão com alguns traços de sua prática já cristalizados, significa questionar a estrutura de sua auto-imagem,

sua identidade.

Compreender que tem sido um transmissor dos conteúdos, um raro questionador de sua prática, muitas vezes usado como ponte para chegar ao aluno um

currículo oculto com conteúdos que ele não disse, mas “defende”.

Page 101: Volume xi 2004

101

É inegável que existe no currículo oculto da escola, a ideologia da competitividade – “que vença o melhor” – da discriminação, da marginalização. A ética da

defesa do mais bonito, mais simpático, mais comunicativo, mais “limpinho". Em frases que dizemos "quase" sem perceber, repetidas "mecanicamente", como:

"programa de índio" - para descrever atividades de lazer onde prevemos complicações práticas e falta de conforto; ou, "serviço de preto" - para situações onde a

atividade não foi realizada a contento; estão inscritos séculos de discriminação e marginalização do negro e do índio. Idéias que valorizam a produtividade

capitalista, onde não conta a colaboração entre os indivíduos, mas a superação de si em detrimento do grupo.

Na escola, é “proibido” colaborar. Não se deve ajudar o colega a fazer a tarefa, nem lhe emprestar qualquer material escolar. Memin (1996) ao observar o

comportamento das professoras em sala de aula em classes do Pré-II até a 4ª série, assinalou, concordante com muitos autores, que as regras são impostas à

criança, e estas "impedem contato ou troca entre crianças. "Não converse", "Não saia do lugar", "Cada um faz o seu", "Não pegue material do outro" (...) "Faça

sozinho, quieto!" (p. 63).

A escola distorce o desenvolvimento infantil. O que naturalmente nas crianças se daria em direção à cooperação e ao respeito mútuo32, torna-se, na escola,

competição e desrespeito ao outro. Raras escolas onde se pratica um respeito ao outro são encontradas nas redes de ensino, sejam elas públicas ou particulares.

Araújo (1996) fez uma busca entre as escolas de São Paulo e "A maior dificuldade encontrada para realizar a pesquisa (...) foi encontrar uma sala de aula que

estivesse de acordo com (..) um "ambiente cooperativo"" (p.113-114). Mas o autor encontrou uma sala de aula cooperativa para seu estudo, em Itatiba/SP, o que

é para nós um alento, e nos indica ações, norteia o caminho.

Idéias como estas, se diz, são impostas para se manter o sistema. Manter quem “está no poder”. Mas o que é o sistema? Onde estão estas pessoas que

estão no poder? Quem são elas? Prefiro sempre, trazer esta idéia de sistema mais próximo dos alunos-educadores.

Muitas vezes, parece-nos que o “sistema” seja algo muito abstrato. Embora não se saiba onde encontrá-lo, estamos vinculados a ele e transmitindo

informações valiosíssimas. Por isto mesmo, somos diretamente responsáveis por muito do que transmitimos. Assim como é importante para uma criança na quinta

série perceber-se como um habitante do Planeta Terra (que ela está estudando as características), é importante o professor perceber-se como uma peça deste

sistema.

É cômoda a posição de sentir-se influenciado “pelo meio” e não responsável pelos próprios atos, já que eles são resultado cultural. Enquanto sabemos que

as modificações sociais de uma comunidade só ocorrem a partir de uma conscientização desta.

Enquanto professores do primeiro e segundo graus estão sentados em sua sala de estar assistindo televisão e recusando-se a estudar para melhorar seus

conhecimentos, trabalhadores braçais, (semi) analfabetos, aprendem a ler e a escrever com voluntários no período noturno.

32

Vide PIAGET, Jean O Juízo Moral na Criança (1932/1994).

Page 102: Volume xi 2004

102

O fato é que consciência significa responsabilidade. Quantas vezes nos negamos a saber para não ter que tomar uma atitude – como ao fingir não ver uma

agressão física entre alunos na hora do intervalo escolar. Porque não é somente suspender a briga, é conversar, explicar, conscientizar, dispensar tempo (o

precioso tempo), atenção e carinho.

Estamos assim, expostos às influências do currículo oculto, bem como somos transmissores do mesmo, mas quase nunca nos percebemos disto. Há, em

muitos de nós, uma apatia relacionada ao pensar o que estamos estudando, fazendo, ensinando. Mas até esta apatia nos chega através do currículo oculto: a

idéia oculta na apatia em pensar nossa prática é a da ‘verdade absoluta e inquestionável das ciências’.

Para tornar mais direta esta explanação sobre o currículo oculto, vamos falar do “Curriculum Vitae”, documento descritivo da trajetória profissional do

indivíduo, utilizado para se conseguir empregos e melhores posições na escala profissional. Na sociedade competitiva que vivemos, vence o indivíduo de visão

triunfalista, onde o documento comprobatório vem em forma de epopéia, onde o herói da narrativa só conhece as vitórias.

Assim como os Curriculum Vitae, os currículos escolares são descritivos de uma epopéia da humanidade, das experiências escolares e científicas, e como

aquele, escondem as dificuldades, os fracassos e as coisas que não são “belas”. É por isto que sabemos que a “escola da vida” ensina mais do que a “escola da

carteira”. É por estes fatores que acreditamos ser necessário tomar consciência da situação que nos envolve.

A vida, de nada nos poupa. Testa nossas maiores resistências, nossas crenças e nossas esperanças. A vida na carteira escolar é feita de sucessos escrita

nos livros de história que se confrontam com nosso próprio fracasso nas aulas de matemática, química, física, português e outras. A parte oculta dos currículos

escolares aumenta nossa tensão, dificulta nossa lucidez, confunde e deturpa nossos pensamentos acerca do mundo.

Para questionar o currículo oculto, devemos todos, não somente os professores, questionar o currículo explícito. Todos, porque o currículo oculto está

expresso em todo processo educacional: em todas as áreas, na vivência do cotidiano.

Devemos perguntar-nos: ‘por que dizer isto?’, ‘que uso fará o aluno?’, ‘a quem e a que serve?’ Lembram-se daquela frase clássica nas cartilhas de

alfabetização “o bebê viu a uva”? Nesta frase muito comum pode-se pensar uma situação complexa: ‘quem era este bebê?’, ‘ele gosta de uva?’, ‘só a viu ou pode

comê-la?’, ‘realmente a viu ou foi um reflexo (atraído pela cor ou movimento)?’, ‘ele a reconheceu?’ – estas e outras perguntas quase em forma de brincadeira,

são o primeiro passo para despertar uma consciência do que há por trás do currículo escolar explicito. Freqüentemente, o que está por trás são indivíduos que

merecem nosso respeito.

Obviamente, nossa prática profissional, nos leva a convocar os professores, preferencialmente, para questionar o currículo oculto. Mas todos podem

procurar os significados ocultos na transmissão escolar, na televisão, nos gibis e até mesmo nos contos de fada – aquelas inocentes estorinhas com que

embalamos os sonhos de nossos filhos. Questionar o que recebemos e principalmente o que repassamos é mais do que necessário, é um dever de educadores

comprometidos.

Page 103: Volume xi 2004

103

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Ulisses Ferreira. O Ambiente Escolar e o Desenvolvimento do Juízo Moral Infantil. In. MACEDO, Lino. Cinco Estudos de Educação Moral. São

Paulo, Casa do Psicólogo, 1996.

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.

CECCON, Claudius e outros. A Vida na Escola e a Escola da Vida. Petrópolis, Vozes, 1983.

MARTINS, José de Souza. Sobre o modo Capitalista de Pensar. São Paulo, Hucitec, 1986.

MENIN, Maria Suzana de Stefano. Desenvolvimento Moral. In. MACEDO, Lino. Cinco Estudos de Educação Moral. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1996.

PATTO, Maria Helena Souza. Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1999.

PIAGET, Jean. O Juízo Moral na Criança. São Paulo, Summus, 1994

Page 104: Volume xi 2004

104

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº173 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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FLÁVIO DUTKA

VOZES E RUÍDOS DA GRANDE FLORESTA

Laércio Bacelar

PRIMEIRA VERSÃO

Page 105: Volume xi 2004

Laércio Bacelar Professor de Literatura Brasileira na UFMG, UnB e Federal de Goiás

VOZES E RUÍDOS DA GRANDE FLORESTA

“O livro é um pássaro com mais de cem asas para voar” {Ramón Gómez de la Serna}

A propósito de Conversas Animais, a ser publicado pele EDUFRO, de Celso Ferrarezzi Júnior, que dizer se o livro fala por si mesmo? De qualquer modo,

arrisco-me a dizer que o livro se estrutura a partir de dois eixos que se cruzam, sejam eles o metafórico e o metonímico.

No primeiro plano, explorando exaustivamente o potencial expressivo da Metáfora, o Autor – com grande sabedoria – faz do comportamento animal e dos

diálogos entre os animais um grande painel da condição humana: os Animais se humanizam e encarnam as contradições humanas - virtudes e defeitos e, com isso,

desmascaram o lado animalesco das relações humanas: os homens se animalizam, se bestializam. Trocando em miúdos, o conflito entre as várias espécies, em

cada uma das saborosas fábulas do autor, é metáfora do relacionamento humano. Como um conjunto de metáforas compõe uma Alegoria, o conjunto das

Conversas Animais é uma belíssima - e dolorosa – representação alegórica das vaidades, das vicissitudes, da hipocrisia, dos valores éticos e morais que regem a

convivência e o comportamento individual e social dos seres humanos. Assim, na Hiléia Brasiliensis, a floresta amazônica, com seus igarapés e suas seringueiras,

povoada por uma fauna tropical – das Brocas e Cupins às Onças e Antas, passando pelos animais alados e seres míticos – como o Velho-da-Mata, por exemplo – as

várias espécies, os predadores e os predados, presas – se debatem em diálogos profundos, que transcendem as limitações das fábulas tradicionais, condicionadas

formalmente por um desfecho clássico: a moral da história.

No segundo caso, a Metonímia estabelece uma relação dialética entre a parte e o todo, entre o todo e a parte. Isso significa dizer que, o relacionamento entre

determinadas espécies de Animais Humanos na Floresta tropical representa o todo, ou seja, as relações entre quaisquer seres humanos, em qualquer canto do mundo.

Por ser um recorte de um todo, as conversas animais ganham em universalidade. Do mesmo modo – ao trabalhar os diálogos entre algumas espécies animais que

representam as “espécies” de humanos, o Autor monta um painel da fauna humana, com suas Antas, Onças, Araras, Gaviões, Papagaios, Tatus etc. A floresta

amazônica com sua flora típica é a floresta urbana, a floresta de casas arranha-céus, e a animosidade entre os animais que se debatem não é maior que a selvageria

que brota entre os que se dizem animais racionais. A nossa porção animalesca, mais ou menos acentuada de indivíduo para indivíduo – é desnudada. Será mera

coincidência que alguns antropônimos, originários de nomes de animais, pareçam tão condizentes com o ser que nomeiam? Quem tem medo de Virginia Wolf?

Metaforizar ou alegorizar o comportamento humano por meio de animais vem de longa tradição: desde os tempos remotos integra a mitologia de muitos

povos, passa pelas fábulas de La Fontaine, e mais recentemente pela Revolução dos Bichos, de George Orwell, ou por Fazenda Modelo, de Chico Buarque – para

Page 106: Volume xi 2004

106

citar um exemplo nacional contemporâneo. Nesse sentido, comparações, metáforas e analogias entre Homens e Animais proliferam, inclusive como expressões

idiomáticas cristalizadas, abundantes em Português, tais como “ficar uma arara”, “ficar uma fera”, “é uma cobra”, “é uma anta”. Não causa surpresa que muitos

seres míticos sejam metade Homem e metade Animal, como os sátiros, o centauro e o lobisomem etc. Acaso não seriam os vampiros o resultado da conjunção

entre homem, lobo e morcego?

A rigor, na Floresta de símbolos, as lutas entre animais, ao longo do desenvolvimento cultural humano, vêm simbolizando, nas mais diversas séries

artísticas, os mais diversos estágios da força instintiva, conforme se deduz de Cirlot (1984: 356) em seu Dicionário de símbolos. Em termos psicanalíticos, são

conflitos no domínio do ID, embates na oposição entre Eros e Thanatos. Em termos antropológicos, o conflito entre Natureza (o primitivo) e Cultura (o civilizado).

Leia-se, para ilustrar, o magistral conto “Meu tio, o iauaretê”, de Guimarães Rosa, no qual a personagem central oscila entre dois e, quanto mais mergulha no

inconsciente, mais deixa vazar a onça que a habita.

No entanto, em se tratando de Arte, sobretudo a literária, mais importante que a originalidade ou não da idéia é o tratamento que se dá a ela. Esse, sim,

deve ser original. De repente, uma paródia pode ser mais original que o original que a motivou. Quantos não foram os que se valeram do “mote alheio”, reflexo de

outro mote, para construir o novo? Camões bem o sabia fazê-lo!

O verdadeiro artista é aquele que questiona o já interrogado, ou o desvela sob uma nova ótica, um novo ângulo de visão. É o que relê o que já foi lido e

não tem sido esta a postura de tantos grandes nomes ao longo da História da Arte. E isso, esse tratamento original a partir de uma idéia arquetípica, Celso Ferrarezi

o consegue indubitavelmente em Conversas Animais. O mito da idéia de originalidade absoluta já se definha e não se sustenta a partir dos conceitos de

intertextualidade (o texto como um reflexo de outros textos), interdiscursividade (o dialogismo entre vários tipos de discurso) e intersemiose (as relações entre dois

ou vários sistemas semióticos). E aí reside o âmago da originalidade. De fato, Conversas Animais estabelece relações intertextuais não só com a tradição mítica e

com as fábulas de La Fontaine, como também com os textos de mesmo gênero como as parábolas e os apólogos. Se o texto literário é, por sua natureza, um objeto

especular, a narrativa ferrareziana cumpre essa função, posto que reflete a tradição das fábulas no terreno do realismo maravilhoso por meio das prosopopéias

animais, com as quais dialoga; das HQ e do cinema de animação como, por exemplo, as personagens de Disney. Contudo, o tratamento é original e se evidencia no

investimento artístico no trato com a linguagem. Como o próprio título sugere, mais vale o conteúdo dos discursos que a ação: são conversas animais. Aí a

originalidade e a criatividade brotam exuberantes na densidade dos diálogos “animalescos”. O Autor verticaliza as relações dialogais, ou seja, aprofunda – e muito –

o conteúdo das falas dos animais – para ganhar em qualidade, muita qualidade. E o faz com uma boa dose de humor, de tal modo que muitas passagens se tornam

deliciosas, como as variações formais de tratamento empregadas pelo Papagaio ao dirigir-se mui respeitosamente ao Gavião Real em “Ele disse que”, para citar

apenas um entre outros tantos exemplos.

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No que se refere às relações interdiscursivas, em Conversas Animais, vários discursos se cruzam, entre os quais o filosófico-existencial, o ético-moral, o

político-sociológico, o antropológico e o ecológico, entre outros tantos ruídos na “floresta de símbolos” cultivada pelo Autor. Vale dizer que, nas fábulas

ferrarezianas, as falas dos animais são constituídas por formações ideológico-discursivas em conflito, por isso mesmo polarizadas na luta entre o Bem e o Mal: ética

versus antiética; altruísmo versus egoísmo, submissão versus dominação. O discurso do oprimido, da presa, se opõe ao discurso do opressor, o predador e, desse

modo, a luta carnal, física, material, pela sobrevivência na grande Floresta se transfere para o nível da palavra e se torna uma peleja verbal, um batalha

argumentativa, uma guerra discursiva, já que todo discurso tem o seu avesso e toda ideologia sua contra-ideologia. Sabiamente, os supostamente fracos se tornam

fortes porque, munidos de princípios éticos e valores morais positivos, fazem da força da argumentação, contundente e inatacável, não só mecanismo de defesa

como também de ataque contra os que se julgam fortes e, se esforçam por parecerem tais, mas não passam de uns fracos.

Não se trata, entretanto, de mera guerra argumentativa entre esta e aquela espécie, em particular: o Autor vai muito além. As Conversas Animais são, na

verdade, um pré-texto e um pretexto para que cada um descubra o animal ou a fauna inteira que tem dentro de si, quantos animais habitam o corpo desses seres

que se dizem humanos e racionais. Daí, o conjunto das narrativas de Ferrarezi nos conduz à reflexão e à análise da psicologia humana, uma releitura das relações

animalescas que se procriam como vermes nas relações interindividuais, intersociais, interétnicas, inter-humanas e se torna um libelo contra toda sorte de valores

negativos e individualistas, que, infelizmente, predominam na conduta dos bichos civilizados.

Os ruídos e rumores da Grande Floresta estão aí. Dos urros aos cantos melodiosos, dos grunhidos, ganidos e nhares gaviônicos a outros tantos sons

emitidos pelos animais, seja para atrair a fêmea, seja para oprimir a presa, seja para amedrontar ou afugentar o predador, em Conversas Animais, muitas vozes

narrativas se multiplicam na voz do narrador; muitos ruídos discursivos se entrecortam no Dia Escuro ou na Noite Clara no íntimo da Floresta. Há quem não sabe

ouvi-los! Há quem não quer ouvi-los. Mas não há Floresta sem tais ruídos e sonidos e zumbidos, entre outros idos: eles são da Natureza dos bosques, das florestas,

das selvas... Pára para escutá-los ou ouve a voz de um momentâneo silêncio!

Provavelmente – e isto é inevitável – o Leitor vai se auto-identificar com alguma ou mesmo com várias nas espécies animais que contracenam na floresta.

Porém, dado o caráter contra-ideológico do livro, muita Onça que se julga muito onça, ao lê-lo, vai ficar uma arara ao descobrir que não passa de uma Anta; tanto

quanto muito Gavião Real que voa orgulhoso por aí vai ficar uma fera ao descobrir que não passa de um Jacu.

Diante a taxionomia das espécies propostas por Ferrarezi, outras espécies não retratadas poderão sentir-se aliviadas por não terem sido retratadas ou

citadas. Uma Toupeira, por exemplo, poderá até ficar indiferente, auto-excluindo-se da luta, por tolamente julgar que se trata de problemas específicos dos animais

da fauna tropical, aqueles terceiro-mundistas selvagens e animalescos. Ledo engano, santa Burrice! Só mesmo uma Toupeira poderá pensar assim, pois dado o

caráter universal da animosidade humana, as relações metafóricas e metonímicas, não a excluem.

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108

Se está viva, tem ânima, ou seja, tem alma, se tem alma, ânimo, é animal. Mesmo que desanime ao saber disso. Talvez, por ser Toupeira, não enxergue a imensa

Anta, e/ou Abutre, e/ou Urubu, de/ou Serpente, que tem dentro de si. Muita Fuinha provavelmente não conseguirá ver o Verme a parasita, sobretudo quando esse

Verme é abstrato, psicológico, comportamental.

Mesmo as espécies domesticadas e submissas, as que vivem adaptadas nas florestas urbanas ou suburbanas, estão ali metaforizadas: o Garanhão e o

Veado, a Perua, a Gato e a Gata, o Cachorro e a Cachorra; passando pelas Aranhas e Tarântulas, mesmo as espécies aquáticas, da fauna fluvial ou marítima, sejam

as Piranhas ou os Tubarões, os Polvos com seus imensos tentáculos, os Baiacus ou as Águas-Vivas traiçoeiras e peçonhentas, as Anêmonas complacentes, toda a

bichara do imenso zoológico, dos mais violentos aos mais dóceis, dos mais venenosos aos inofensivos, quer queiram ou não, não passam de animais e estão

representados nas Conversas Animais. Se não se enxergam e nem têm a capacidade de se enxergarem, pois há espécies animais eternamente cegas; se não têm a

astúcia ou a perspicácia de se perceberem metonimicamente representados nos conflitos da Grande Floresta existencial, é porque não sabem que há uma enorme

diferença entre o que se tenta projetar, o que acaba sendo projetado e o que em essência se é. Muita Toupeira pensa que é Onça e quer ser vista como Onça e usa

todas as suas armas, sobretudo o Poder, para projetar essa imagem. Mas, por sua animalesca toupeirice, acaba projetando uma Anta. Pensa que é vista como

Onça, mas é vista como Anta e, em sua essência, é Toupeira. Ou gera uma terceira espécie híbrida ou transgênica: a Toupeiranta brasiliensis sp., aquela que tem

espírito de porco, que matraca mais que mil Maritacas, têm discurso de Asno e, por isso só rosna ou gane asneira, e saem macaqueando por aí, serelepe como ela

só, já que bom Cabrito não berra. Quando acuada, no sentido literal e etimológico o termo, fica uma Jararaca da Silva, isto é, da Selva (Silvarum bestia feroce

sunt!) e cospe marimbondos. Seu passatempo preferido é futucar a intimidade do casulo de Borboleta Azul, uma crisálida, para destruir a borboleta que vai voar

livre e por si mesma e viver de néctar do néctar das flores! Discurso de Toupeiranta brasiliensis sp. sempre é conversa para boi dormir, ainda que muitas se

ostentem como Doutora Pavão, exibindo seus anéis de grau, ou aspirem cargos para serem tratadas como Vossa Megatoupeirantência, Vossa Asneirência, por

excelência.

Desnudando os Lobos que existem sob as peles de Cordeiros ou tosquiando as Ovelhas para revelar as os Lobos, as Conversas Animais de Ferrarezi, muito

além das fábulas moralizantes, são espelhos para que miremos nosso próprio focinho e tenhamos, no mínimo, coragem de fazer uma auto-análise ou reavaliação de

nossa conduta na relação com o Outro, tão bicho quanto nós. Feliz e evidentemente, nem todos os animais se devoram, pois há muitos que, fitófagos ou não-

carnívoros, não precisam beber do sangue alheio, nem mascar a carne alheia para sua sobrevivência e de sua espécie. Não são poucos os que, sempre ameaçados

por carnívoros e sanguinários de toda Ordem, voam ou caminham pelas Florestas entoando seu canto ou deixando seu ruído, ou seu grito de vida a favor da Vida.

Infelizmente, quanto mais o Homem avança no progresso material e tecnológico, mais algumas espécies de animais entram em extinção... mas precisam ser

urgentemente preservadas!

Page 109: Volume xi 2004

109

O Autor, um astuto Lince que se faz de Mocho Orelhudo para ver e ouvir os ruídos e rumores da Floresta, como um Bacurau que se disfarça de tronco, e

engana sabiamente seus possíveis predadores, pois vê, mas não é plenamente visto, é, a rigor, uma espécie em extinção, na Floresta dos best-sellers. Milhões e

milhões de livros editados não resolveram um dos mais elementares problemas humanos: o Homem continua sendo Lobo para o próprio Homem. Mas há livros que

deveriam ser vendidos em joalherias. Esse, para mim, é um desses casos, ainda que alguma Coruja ranzinza e ranheta, sobretudo as especialistas em pôr e achar

defeitos na obra alheia, porque não escrevem (Elas nunca escrevem!) de alguma acadêmica Oca-de-Mico não concorde com meu latido. Olhar aguçado de um lince,

aquele felino meio mítico capaz de enxergar através das paredes, Ferrarezi não é niilista: no desfecho do livro, que se transmuta em seringueira, lança uma

semente de esperança. Tomara que nós, animais metidos a Bestas, o ouçamos! É isso aí, Bicho!

Page 110: Volume xi 2004

110

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº174 – DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 174

FLÁVIO DUTKA

A RELIGIOSIDADE NA MAGISTRATURA

Nilza Menezes

PRIMEIRA VERSÃO

Page 111: Volume xi 2004

Nilza Menezes A RELIGIOSIDADE NA MAGISTRATURA Centro de Documentação Histórica do TJ/RO [email protected]

O presente artigo busca apreender a diversidade religiosa dos julgadores. Fazendo uso de um questionário buscamos apreender como se relacionam com a

religião aqueles que são condicionados para agirem com a razão.Tomamos como objeto de pesquisa os magistrados do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia e

aplicamos noventa questionários. Fazendo uso de algumas informações vamos estar analisando o comportamento religioso, isso não quer dizer que estaremos

aprendendo a religiosidade desse grupo, vez que o trabalho que buscamos fazer é objetivo e comparativo, sem a pretensão de alcançarmos questões filosóficas.

A intenção inicial era fazer um levantamento para saber se havia mais católicos, mais evangélicos ou mais espíritas, e acabamos por alargar esse foco para

discutir um pouco sobre as práticas religiosas desses profissionais.O interesse da pesquisa se deu em razão da observação de encontros nacionais com profissionais,

a exemplo do ocorrido em Minas Gerais que reunia Magistrados Espíritas e que na época, conforme publicação no Diário da Justiça levou ao encontro quatro juízes,

nos sinalizando alguma tendência.

Dos noventa questionários encaminhados, apenas quarenta nos foram devolvidos preenchidos. Encontramos alguma dificuldade na análise dos

questionários em razão das respostas muito sintéticas e evasivas. As perguntas possíveis de “sim” e “não” eram respondidas, as demais onde se fazia necessário

fazer algum comentário eram deixadas em branco. Percebemos haver desinteresse ou defesa em falar sobre religião, em assumir um pertencimento religioso como

se o assunto fosse pessoal, quase um tabu, chegando alguns magistrados a questionar sobre o porque de perguntas tão pessoais, ou de questionários não

respondidos sob a alegação de que as perguntas eram inconvenientes e sem nenhuma importância prática.

Após a realização de um terço das entrevistas, ampliamos o questionário acrescentando perguntas que pudesse ampliar o nosso foco de observações com o

fim de apreendermos um pouco mais as relações religiosas desses profissionais. No primeiro questionário as perguntas eram diretas, perguntava a religião, a

religião do companheiro(a), se a religião era por escolha familiar ou por conversão posterior ao ingresso na magistratura e se pertencia a maçonaria. No segundo

questionário perguntamos, por exemplo, se acreditavam na vida após a morte, se compravam objetos em lojas esotéricas, se já tinham ido alguma vez em

cartomantes ou benzedeiras etc.

Observamos pelas respostas que foi muito comum o fato de se reconhecerem enquanto católicos, observando-se após que na verdade não eram

praticantes, mas católicos por terem nascido em famílias católicas, e por não freqüentarem oficialmente nenhuma outra igreja reconheciam-se como católicos. As

perguntas sobre a participação em práticas místicas e esotéricas como ir a cartomantes, benzedeiras ou comprar produtos esotéricos foi negado pela maioria, como

Page 112: Volume xi 2004

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uma forma de dizer que isso era sem importância. Essa nossa observação é bastante pessoal e se dá em razão de que em trabalho de campo em locais religiosos

como candomblés ou locais místicos pessoas que negaram qualquer participação religiosa com o mundo espiritual foram vistas interagindo com os rituais.

Percebemos também que reconhecer uma pertença religiosa não pareceu tão natural, ocorrendo casos em que a resposta foi apenas cristã negando, assim um

pertencimento. Essa resposta pode estar escondendo alguma prática que na verdade a pessoa não tinha interesse de assumir publicamente, como espiritismo ou

candomblé, ou espaços denominados de Nova Era, ou ainda a dificuldade de poder reconhecer-se como pessoa capaz de crer ou participar de atividades religiosas.

Percebemos também que juizes pertencentes aos concursos mais recentes tiveram maior interesse ou aceitação para responder os questionários e que

Desembargadores e magistrados mais antigos se absteram da resposta.

Com relação ao questionamento sobre pertencer a maçonaria dos oito espíritas três declararam pertencer a maçonaria enquanto que dos vinte e quatro

católicos sete também pertenciam. Essa proporção deve ser levada em consideração o fato de que mulheres ficaram prejudicadas na resposta e o numero de

mulheres entre as juizas católicas e espíritas é relevante. Dos dois evangélicos que preencheram o questionário nenhum pertencia a maçonaria. Cabe aqui uma

observação. Temos conhecimento que o número de evangélicos na magistratura de Rondônia não é tão inexpressivo assim, mas foi o grupo de maior relutância

para responder o questionário.

Quanto a participação em outras religiões como Candomblé e União do Vegetal apenas um caso assumido, sendo também um único caso o interesse pelo

judaísmo messiânico.

A religiosidade hoje tem apresentando uma grande diversidade.Vivemos o tempo da multiplicidade, do multiculturalismo, em que a orientação religiosa tem

sofrido alterações o que vem sendo registrado como uma característica pós-moderna (Prandi, 1999). William Paden nos alerta para o perigo ao interpretarmos a

questão religiosa, vez que sempre estaremos olhando para o objeto religião de um ponto de vista determinado e ainda que devemos estar atentos quanto a qual e

de quem é a religião a que estamos nos referindo. (2001:14).

Aqui estamos tentando perceber a religiosidade tomando como base para nossas informações a formação profissional. Todos passaram pelo curso de Direito

e buscaram a atividade de magistrados, uma prática que em tempos outros esteve intimamente ligada a religiosidade. No mundo cristão, de onde estamos falando,

Juizes conforme definição bíblica são aqueles que Deus escolheu para salvar o povo, sendo a ação desses profissionais a de julgar que ainda conforme observação

bíblica tinha a função de comandar e governar. (Bíblia, 1995: 274).

A atividade dos juizes esteve sempre ligada a religiosidade, havendo momentos em que a religião e a justiça se fundiam uma na outra se confundindo. Essa

atividade ainda hoje está intimamente ligada à vida política sofrendo as influências de todo o contexto social, além das percepções pessoais de cada individuo.

Portanto estamos num campo onde a pluralidade se apresenta, trazendo uma multiplicidade de imagens construídas no mesmo mundo social e pessoal que ainda

conforme observações de Paden podem um dia não ter mais importância, mas no mundo de hoje elas fazem parte do cultural e educacional (2001:234).

Page 113: Volume xi 2004

113

Observando os dados selecionados vamos tentar buscar os significados dessa falta de significado. Chamamos de falta de significado o desinteresse ou a

reserva quanto a prestar a informações que pode estar residindo no conflito em definir religião e religiosidade e o fato de se compreender religião como algo ligado

a vida privada do cidadão, não se observando que a religião é uma manifestação cultural que acompanha os tempos, ligada de forma natural ao movimento dado

pela história e pelos fatores sociais.

Isso transparece também quanto a dificuldade em assumir uma pertença religiosa quando ela poderia ser mal interpretada. Observamos casos de

magistrados que se fizeram presentes, por exemplo, no encontro de magistrados espíritas e ao assumirem uma pertença religiosa no momento do preenchimento

da ficha registraram apenas serem cristãos, o que pode também estar nos sinalizando a existência dissimulada de um transeunte religioso que é aquele que

experimenta varias formas religiosas, mas que não possui território cultural ou religioso demarcado, que conforme observa Sandra Duarte de Souza, citando Leila

Amaral esse tipo possui uma religiosidade desencarnada.(2003:164).

Alguns casos também de negarem qualquer pertença religiosa ou declararem-se católicos não praticantes, percebendo-se que em alguns casos as

companheiras assumem o papel religioso na família, como se esta fosse uma responsabilidade feminina. A mulher tem uma pertença religiosa e a ela cabe o papel

de cuidar espiritualmente da família.

Como as omissões foram muito altas não podemos cometer a ingenuidade de generalizarmos os dados. As informações fornecidas, no entanto, nos

proporcionam perceber a multiplicidade de formas religiosas que podem estar resguardadas, deixando perceber que a diversidade religiosa praticada na atualidade de

forma discreta tem feito parte da vida dos magistrados. Conforme já anotamos essa multiplicidade e diversidade pode ser percebida mais claramente nos magistrados

de concursos mais recentes, assim também como praticar esportes, acreditar em anjos ou comprar produtos esotéricos é uma prática assumida pelos mais jovens.

De qualquer maneira, embora tenhamos a impressão de que pelo material analisado não estamos tendo uma visão completa da complexidade religiosa que

pode ser apresentada pelo grupo analisado, concluímos as observações que nos apresentaram um quadro onde a grande maioria se reconheceu como católicos.

Isso nos remete ao que observou Mallimaci em estudo sobre a religiosidade na Argentina anotando que o catolicismo continua a ser importante muito

embora tenha perdido o monopólio (1999:73 -92), mas também nos coloca frente ao que vem sendo observado nos estudos das ciências da religião de que se

reconhecer como católico ainda é importante para as pessoas que nasceram católicas, é assumir o que historicamente foi legitimado, muito embora a sua prática

religiosa esteja muito mais para o que especialistas chamam de religiosidade difusa e que está presente no processo atual de laicização da consciência.

Observamos também que, essa classe ou grupo ainda não foi alcançado pelo surto neopentecostal tão crescente no Brasil nos últimos anos, estando esse

grupo aberto aos processos de hibridização, sem, no entanto se exporem publicamente em andanças religiosas.

Page 114: Volume xi 2004

114

BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA TEB. Paulinas/Loyola, São Paulo, 1995.

AMARAL, Leila. Carnaval da Alma. Vozes, Petrópolis, 2000.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2003.

ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Martins Fontes, São Paulo, 2002.

BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. Paulus, São Paulo, 1985.

________. Rumor de Anjos. Vozes, Petrópolis, 1997.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Loyola, São Paulo, 1996.

MALLIMACI, Fortunato. A situação Religiosa na Argentina Urbana do Fim do Milênio. In: Globalização e Religião. São Paulo, Vozes, 1999.

PADEN, William, E. Interpretando o Sagrado. Paulinas, São Paulo, 2001.

PRANDI, Reginaldo. A Religião do Planeta Global. In: Globalização e Religião. São Paulo, Vozes, 1999.

SOUZA, Sandra Duarte. Transito religioso e construções simbólicas temporárias: uma bricolagem contínua. In: Estudos de Religião. Universidade

Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo. 2002.

TERRIN, Aldo Natale. Nova Era. A Religiosidade do Pós-Moderno. Loyola, São Paulo, 1996.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Martin Claret, São Paulo, 2002.

Page 115: Volume xi 2004

115

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº175 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 175

FLÁVIO DUTKA

CIDADES

Alberto Lins Caldas

PRIMEIRA VERSÃO

Page 116: Volume xi 2004

Alberto Lins Caldas CIDADES Professor de Teoria da História - UFRO Centro de Hermenêutica do Presente - UFRO [email protected]

incipit

[há sempre uma escritura desenhada na pedra, nu cimento, nu chão das ruas da cidade que é uma das faces do tempo. i vamos, olhos nu chão, lendo

vagarosamente us calçamentos. são rastros dos mais díspares animais de sangue quente; a marca rodada dos dedos alcatifados de silêncio das correrias de cães i

do espanto dos gatos; patas de cavalos i bois como si a cidade fosse uma fazenda; hieróglifos de uma multidão de aves; us minúsculos vincos dos ratos; sinais de

répteis; indícios indistintos onde si confundem homem i animal; trilhas de caramujos; pistas de um corpo que pode ter sido de aranha, de abelha ou de mosca;

pontos arrastados de um velho i gordo escorpião; buracos de algum inseto cavador que morreu sem encontrar u que procurava; formigas tentando escapar depois

de terem feito u salpicado de uma linha de pontos nervosos, amedrontados, perdidos; passos de crianças correndo, mulheres conversando, homens descalços,

ensapateados, gordos, magros, pequenos i grandes; passos que sobem i descem ladeiras, afundando mais u calcanhar ou us dedos do pé; passos surpreendidos i

passos decididos; passinhos tímidos i passadas arrogantes; traços de riqueza i da mais dolorosa indigência; símbolos, emblemas, flâmulas, nomes, corações,

rabiscos, desenhos, letras, insultos; impressões digitais; moldagens de unhas, tecidos, pedras, objetos; varreduras, polimentos, escorregões; partituras de pingos de

chuva, impressões de folhas, de galhos i de mãos; rachaduras de calor; bolhas de ar i de água; erosões i ondulações do vento; moldagens de corpos mortos ainda

com u espalmado dos estertores; entradas i saídas de colméias, formigueiros i cupinzeiros; esqueletos, conchas i dentes; talhos, escoriações, tumores, amputações;

riachos, lagoas, enseadas, praias, promontórios, ilhas.

tendo desaparecido todos aqueles seres que só fizeram atravessar a substância mole, que logo endureceria, si pode deduzir a espécie, u corpo, u sexo, u

peso, a idade, u movimento, as intenções, us hábitos, u desejo, us dramas, u esforço que moveu u vulto sobre aquela substância.

essa forma enviesada de lógica consegue deduzir, sem tremer i sem a sombra de uma dúvida, u animal ou u homem a partir dos seus vestígios na escritura

das cidades, como reconstitui, a partir de uma pobre seqüência de dentes, de uma lasca de osso, u animal inteiro, vivo, resplandecente em toda sua força de

músculo, fome i universo.

essa reflexão anfíbia, brincando de bricabraque, restaura u desaparecido, u informe, u vislumbrado, u fantasma. i por malabarismo alegre i brincalhão, que

si considera sério i verdadeiro, talvez pra não cair nu desespero de quem tudo perdeu i não si deu conta, transforma u corpo mole que si metamorfoseou em pedra

ou a vida daqueles seres que caminham sobre a substância flexível que endurecerá em algo visível, palpável, i consideram u resultado plástico desse trabalho u

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modelo daquilo que respirou i chamam de memória todo u processo como si não fosse vontade atravessando vontades, delírios fecundando delírios, prepotências si

entrelaçando à prepotências, ingenuidades adormecendo ingenuidades com u imenso deus morto como solo i adubo.

mas assim como pretendemos afirmar, nessa ladeira, que foi uma criança que desceu a passos largos, talvez sem ver a argamassa molhada; naquela

calçada, um pássaro pousou pra devorar uma borboleta, pois restam us fios dos dedos i as leves batidas das asas tentando escapar tanto do bico esfaimado quanto

da massa úmida; ali alguém por xamânico divertimento pôs as mãos, i deve ter si abismado olhando, não si sabe bem porquê, aquelas deformadas estrelas-do-mar

numa contorção de fuga, não podemos jamais dizer que qualquer elemento, qualquer signo que pensemos aflorar como um passo moldado nas lages, tenha

realmente acontecido daquela maneira que nus vem, daquela maneira como dizemos i pensamos, normalmente em imagens, sensações ou palavras. é sempre

substituição sobre substituição, tradução sobre traduções, sem um original como padrão, como modelo, sem verdadeiro autor, sem riscos, sem elementos, sem

nada que possa nus guiar, como papel antes de ser escrito ou depois de habilmente apagado.]

1. caim construiu a primeira cidade: u fruto do crime. a sedentarização, u estabelecimento de um espaço, de uma rede quadrangular, a estabilidade em

oposição ao redondo das tendas sempre em movimento das tribos nômades. a cidade é u centro do mundo, refletindo a ordem celeste (o triângulo sobre u

quadrado), mas antes de tudo a ordem do mundo. essa ordem equilibra u universo, u sustenta. a cidade representar u antimundo, a unidade celeste, é sintomático:

as mitologias sempre organizaram seus sistemas com uma percepção muito mais aguda que as ciências (hipnotizadas com a mercadoria i com u corpo morto de

deus). u homem como um peregrino entre a cidade de cima (engendrada pelo espírito) i a cidade de baixo (originada da carne): deus i a mulher: u celestial, u

uterino que simboliza a cidade, proteção i limite, u caos como suporte, antes i depois: a cidade como um útero, uma volta, uma proteção absurda. a mulher que

envolve us filhos como a cidade envolve us cidadãos (o estado, as leis, as instituições como grandes mães que protegem seus filhos nus seus corpos).

2. cada cidade tem um espírito diferente que combina com seus fluxos, suas construções, ladeiras, brechas, marcas, ruas, telhados, gentes. mas esse

espírito não é a resultante nem de uma história nem de uma arquitetura, muito menos de uma “indústria” ou de uma “geografia”, mas de um conjunto móvel de

atributos em relação ao caminhar, ao olhar, aos degustares urbanos.

3. esses caminhares pré-sentem a configuração, u “ar”, us trejeitos próprios, us vazios, a face que si oculta (“a cidade” é um dos momentos das

inumeráveis máscaras) dos que a atravessam, dos que nela sempre viveram, trabalharam, morreram: gestos, acenos, sinais, cicatrizes, marcas, vestígios, estigmas,

tatuagens, indícios, sombras, traços.

4. a configuração é sentida somente por quem não tem “uma cidade”, não pertence a “um lugar”, não sustenta “um corpo”, “uma face”, “um desejo”, não

traz a ferradura de um destino, de uma “cor local”: us devires da cidade exigem us devires do caminhante: seu corpo de nada só si entrega nu movimento i ao

movimento: “a cidade” é u instável equilíbrio que brilha entre devires: brilho que mais ofusca, oculta, do que faz aparecer: seu lugar é u do libertino, do que paga u

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fim desejo, u que olha, u que apalpa sem ser notado, u que lambe nu ar alfabetos proibidos i textos indizíveis: a cidade como instância natural, como aglomerado,

como entidade de construções como um formigueiro, é pra u burguês, pra u proprietário, pra us servidores, pra us que podem: a cidade só existe pra quem pode

olhar, pra quem pode pagar, pra quem pode fazer circular mesmo estando imóvel (sedentário). u nomadismo dentro da cidade é “coisa de pobre”, de “sem teto”: u

cidadão é gregário, fixo.

5. esse não-território, não-lugar dos lugares (a configuração onde si movem us lugares) só é percebido pelo desterritorializado, u sem pátria, u des-nascido,

u des-naturado, u monstro, u que atravessa em devires, u que olha enviesado (entre as brechas das formatações, entre as pernas, entre as dobras: a cidade está

entre as dobras), u olhar monstruoso (anormal, anômalo, irregular, desviado, híbrido), u olhar marginal, u olhar sob a pele: u olhar entre as colagens, multiplicando

movimentos, sobrepondo massas, tornando longínquo u perto i perto u longínquo, buscando u dentro quando só há fora i u fora quando só há dentro: levantar us

olhos dentro da noite, freqüentado por todas as fomes, i perceber a perversidade inexistente da cidade, i não saber que isso que si sente é a dobra viva, virtual, da

nossa forma de existência.

6. a cidade não si dá por leitura (desde us livros i us corpos até us cartazes, as arquiteturas i us costumes: a cidade pode ser lida tradicionalmente de várias

maneiras, desde us autidores até as marcas nu cimento, nas pedras, nas tintas, nas roupas, nus corpos, nus gestos, nas arquiteturas i nus monumentos), mas por

impressão de molde. u molde si configura enquanto síntese provisória entre u móvel i u imóvel, entre a mudança i a fixidez, entre a vivência i a passagem, entre a

iluminação i u saber, entre u lógico i u ilógico: momentum de percepção (o quantum necessário, u mínimo, u irrealizável da razão).

7. a cidade não si dá nem pela totalidade nem pela soma de todas as suas redes. u lugar dos totalitarismos pra ser visto não aceita totalidades, com-textos,

fazendas, finanças. sua entrega mentirosa é “por partes”. u fragmento (tão próprio da cidade) é u que a diz mais.

8. a cidade é a ruína: nosso lugar enfim conquistado: todos us antes i todos us depois giram em torno dessa ruína fundamental, casulo monstruoso

segregado por nós em nosso nome: a cidade é defecada, cuspida, ejaculada, segregada, sangrada, parida, escarrada, expelida da nossa carne que é cidade

também.

9. a cidade são redes ficcionais, específicas torções que geram ilusões próprias que obscurecem em vez de mostrarem, aparecendo muito mais u efeito, u

produto, a vontade, a racionalidade, a irracionalidade, u plano, a história, u espelho do que si acredita, que u programa que a faz existir em sua maneira i funcionar

em sua medida. u visível i u abstrato, a cidade i u urbano, a vivência i u saber, são inflexões desse programa existência próprio de cada cidade.

10. nenhuma cidade é uma cidade, mas u programa existência si dá como unidade i diferença: a cidade é um efeito jamais visto em sua inteireza, em sua

dimensão: é u corpo invisível da visibilidade.

11. a cidade não é “obra humana”; não é “mundo de objetos”; não é realidade produzida “segundo procedimentos” ou “determinadas materialidades”;

muito menos “regida por intencionalidades” ou por “homens” (ilusão dos poderes i dos que nele acreditam); muito menos pelo estado, pela nação, pela população,

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pelos trabalhadores. a cidade não produz nenhuma intencionalidade nem pode advir de nenhuma racionalidade: este é um dos efeitos secundários do seu programa

realidade si defendendo i si explicando: a cidade está sempre além da racionalidade: com ela si reduziu u universo criado por nós a sua menor existência, a sua

menor percepção, mas não a sua menos existência: a universo da cidade é maior que a cidade do universo (duas dimensões do mesmo programa).

12. a cidade é da mesma substância do programa natureza. daí porque nus parece sempre “regida por leis”, como a natureza; com um “ser superior” que a

cria, a mantém i a explica (o homem), ou com uma “materialidade própria” com suas exigências i leis.

13. nietzsche a seu zaratustra: “... você aí não tem nada que procurar mas tem tudo a perder”: essa é a ilusão própria dos romantismos: a separação entre

cidade i natureza.

14. a cidade não é um “fruto da técnica”, de um “saber prático”, uma “conquista do trabalho” ou da “organização em comunidade”. normalmente perdemos

u sentido vivo das coisas i nus entregamos ao múltiplo visgo em processo dos conceitos, das crenças, das práticas, das ilusões próprias daquilo que tentamos

estudar ou até mesmo vivenciar: como si vivêssemos sempre as crenças sobre as coisas dizendo viver as coisas mesmas (nosso desejo sempre foi viver entre as

“coisas” como si as “coisas” existissem: só podemos viver entre nós sem nus sabermos). a cidade não é uma coisa, não é um conjunto de coisas, não é uma

coletividade, não é uma colméia, um formigueiro, um cupinzeiro: é um holograma de infinitos devires: comunga com u corpo i com a natureza: frutos ficcionais dos

devires.

15. a cidade não é uma “etapa histórica”, a “organização da família”, a “sociedade civil”, ou u “domínio do estado”: seu saber não é nem a ciência política

nem a economia. a cidade não pode ser nem u “lugar da coexistência” nem u “lugar da liberdade”, muito menos u “lugar da vigilância”, da “exclusão” ou da

“disciplina”. a cidade não é um panóptico na mesma medida em que u exige.

16. na cidade cessa u tempo, cessa u ritmo, pois é nela que si vem criando todos us fluxos, todos us ritmos: somente pedaços vivos do tempo imóvel da

cidade podem ser apreendidos; somente ritmos fragmentários podem nus fazer pensar havermos apreendido u ritmo imóvel da cidade: jamais poderemos sentir a

imobilidade da cidade: sua imobilidade faz parte dos devires.

17. a cidade é u informe que fecha a outra ponta do nosso existir. de um lado u caos, do outro, a cidade. nu centro u corpo, a linguagem. sobre as duas

extremidades do centro tudo é possível, tudo si imanta, tudo si dispersa, tudo convida i afasta, tudo é gerado i destruído.

18. a reflexão sobre a cidade como uma “coisa”, um conglomerado de construções, foi desenvolvida desde um aristocrata como humboldt, burgueses

socialistas como engels i marx, historiadores da positividade como fustel, i por toda uma gama de tendências, idéias, posições muito compatíveis com a “matéria

constitutiva” da cidade: a cidade burguesa gerou seus pensadores.

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19. a cidade é sinônimo do horror, do medo, da debilidade, da desesperança, da covardia, da mentira, da suspeita, da dor, do sofrimento, da morte: ao

mesmo tempo da vida, da esperança, da confiança, do crédito, da fé, da riqueza, da grandeza, da distinção, da oportunidade: assim gostam de pensar us que

reduzem tudo a uma seqüência dialógica.

20. a cidade sempre foi “global”, universal: qualquer vila é maior que u mundo i si interliga i faz crescer uma rede infinita pra dentro como si fosse pra fora.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº176 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME XI

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 176

FLÁVIO DUTKA

ESCREVER

Alberto Lins Caldas

PRIMEIRA VERSÃO

Page 122: Volume xi 2004

ISSN 1517 - 5421 122

Alberto Lins Caldas ESCREVER Professor de Teoria da História - UFRO Centro de Hermenêutica do Presente - UFRO [email protected]

incipit [Dizem “sois o sal da terra” porque querem que façamos o que faz o sal. Mas o efeito do sal é parar a corrupção: já não conseguimos nem queremos ser o “sal da terra”: a corrupção somos nós, e nos alegramos nisso, e

nos compreendemos assim e voltar é impossível: as ficções do viver não retornam a não ser como novas ficções, mesmo vestidas de velhas fIcções.

O sal já não tem seu ofício e a causa dessa corrupção já também não nos importa porque não a consideramos mais corrupção. Quem nos salga é a corrupção porque

se não deixa salgar. Porque o sal não salga os escritores (os críticos também!) dizem uma coisa e fazem outra. Porque é a corrupção e não o sal a nos salgar que

escrevemos imitando a imitação, nos dizendo como todos podem ver, sem nos dizer realmente como se fossemos sal, e sal da terra.

Ao mesmo tempo a linguagem permite tudo, até mesmo se salgar pela corrupção em vez de se deixar salgar pelo sal da literatura. Mas a literatura já perdeu há

muito sua capacidade de não servir para nada a não ser salgar a vida e se salgar como se fosse o sal da terra.

Nada disso é verdade, mas poderia ser, e assim sendo, isso se torna verdade, pois a verdade salgada não é igual a simples verdade sem sal; ela sendo uma

coisa, também é seu contrário. E tudo isso sem que uma parte queira ou exija supremacia. Suposto, pois, que ou a literatura não salgue mais nem se deixe salgar, que

se há de então de fazer a esta língua que não se deixa mais salgar? O que se há de fazer a uma língua que não salga? Que também não enfrenta nem é o sal. Se a

língua perder a substância e a virtude, e o escritor faltar a si mesmo, o que se lhe há de fazer, senão lançá-lo fora como inútil, como coisa que se gasta, como

mercadoria. E não é isso ao redor e por dentro?

Quem se atrevera a dizer o contrário? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o escritor que abre na solidez

da existência as brechas que fazem ver o interior do exterior, e fazia o que devia, e assim era merecedor de todos os louvores, mas agora, por não salgar e se deixar

salgar, é metido debaixo dos pés, com a palavra e com a vida pregando o contrário daquilo que devia salgar e não se vender antes mesmo do sal. Mas é isto mesmo o

que se deve fazer ao sal que não salga, à língua que se não deixa salgar, ao escritor que esquecido da sua missão ri com riso frouxo dos que se vendem. Prega o escritor, se é escritor, contra os homens sem sal; contra o insosso dos erros de entendimento que são dificultosos de arrancar, contra tudo que muito difícil de engolir: e todos se levantam contra ele e falta pouco

para que lhe não tirem a vida.

Que deve o escritor fazer? Sacudir o pó dos sapatos? Mas o escritor está sempre com os pés descalços, as mãos nuas, a boca suja, o sexo em zombaria, preso

a uma terra de ninguém. Se retirar? Se calar? Dar tempo ao tempo? Isso ensina a prudência e a covardia.]

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ISSN 1517 - 5421 123

Escrever é perder o nome, o reconhecível do corpo, as vozes que nos povoam, o olhar e os olhares que podem nos ad-mirar, as memórias, os desejos, os

anseios: é aceitar o tempo como dimensão de existência da escrita: o tempo deixa-se destramar pela escrita: é se deixar povoar por outros corpos, outras vozes,

desejos, sonhos, escritas, respirações: recebemos, como aprendizes, instrumentos, conseqüências, seqüelas e matérias de muitos mestres: outros tempos

germinam no imediato onde vegetamos no monstruoso: somos um ponto frágil na teia: essa delicadeza é a principal diferença entre a escrita e a escritura, entre a

Literatura e a literatura, entre a palavra libertina e a palavra viril: entre aquela que reúne machos e fêmeas numa orgia e aquela que em sua virilidade decadente

invade o mundo e o torna uma fazenda, uma família, um estado.

Escrever é fugir do cartório, do arquivo e do museu do trabalho cotidiano gasto, emudecido por uso inconsciente, mercantil, midiático. Estar além da

tecnologia, da técnica, do estoque e da moda. Estar indiferente ao bom estilo, ao bem escrever, a gramática e a estilística: fora dos manuais de redação e da auto-

ajuda gramatical: longe, bem longe, da História da língua e da Literatura, da História do país e dos costumes da região: fora do pertencimento, da festa, do culto,

das alegrias, das crenças e das necessidades. É não dizer o que todos dizem, vivem, trabalham, sofrem, crêem, sonham e desejam (isso eles já fazem entre si),

mas saber porque e como e para quem e para que crêem, desejam, dizem, sofrem, sonham, trabalham e vivem. Escrever é não ficar seduzido com a moda: o que

aparece: a visibilidade sem sutileza. É não ser universal nem regional, muito menos nacional: a sedução fascista da escrita chama-se escritura, aquela que não se

faz no silêncio, mas com o lócus de inspeção e tudo aquilo que por ele é respeitável, querido, necessário para que subsista.

Por isso escrever não é ofício, quem escreve por ofício precisa escrever para viver, para sobreviver, para afiançar uma posição, para ficcionalizar, apoiar ou

criticar o existe na medida do existir: torna legível certa dimensão da vivência para os que a atravessam com os olhos bem fechados, mas para confirmá-la em suas

ilusões e poderes: é funcionário público, trabalhador, sindicalizado, cidadão, crente, alguém cumprindo um papel, uma função social permitida, aceita e requerida:

escrever por ofício faz parte daquilo que é consentido ao bobo da corte, que não é palhaço para si mesmo, mas para o rei, para a corte, para os outros.

Escrever é, antes de tudo, escrever para si mesmo (para isso é preciso ser “assustadoramente ateu”, como intui Umberto Eco), contra si mesmo, contra todos

os outros que nos infestam, escrever enquanto diálogo intransigente consigo mesmo, árdua batalha de compreensão e convencimento, de manutenção e perda, onde

as coisas retomam sua dimensão, seu nome, seu movimento; enquanto os outros dialogam, discordam, vislumbram e cintilam no silêncio como se objetos e animais

ainda não fossem: por isso a escrita pode ver os planos perversos do viver; onde posso dizer-me e pensar e querer sem véus, sem utilidade, sem instinto: o leitor é

somente um curioso indesejável ou companheiro de busca: o consumidor aqui não existe nem interessa: sem reduzi-los a mim nem me reduzir a eles a escrita abre seu

corpo em tocaia: plena de suavidade, inconformismo, refinamento, libertinagem e desinteresse, a escrita conversa com as fundações da vivência.

Escrever é dialogar com as forças que formatam o caos e mantêm a ordem; é enfrentar, sem hipostasia, tudo aquilo que criamos e perdemos como coisa

nossa: deus, espírito, matéria, natureza, sociedade, país, língua, corpo, poder. Este é afrontamento que exige a descoberta da respiração, do ritmo, do tom, da

fácies daquela voz que dominou as outras vozes: a escrita é rigorosamente encontrar um ponto cego e silencioso, uma linha d’água fora da caverna, fora desta voz

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exclusiva: entender as razões da sua supremacia sobre as legiões que somos cada um de nós. Ao compreender que somente essa voz senhorial pode dizer a

verdade, a realidade, o sentido pelas razões que a fizeram dominante, esse ponto cego torna-se sua voz recuperada, ou criada de de dentro do horror: escrever é

recuperar o nome, o corpo, o desejo, o sonho, a palavra há muito raptada sem que sequer desconfiássemos: deixamos de exigir as naturalizações e as

universalizações: perdemos o sexo definido, o vocábulo gramatical, a língua materna, a nacionalidade, a história: a escrita é aceitar todas as perdas, a diluição

intermitente das ilusões que formatam o real.

Escrever é polir as palavras, a respiração, os sentidos – superando o tom falso, grosseiro, pastoso, recitativo, jornalístico ou “poético” de uma Literatura

despreocupada em dissolver a torturante presença senhorial da escritura (o fantasma do senhor dentro da carne do escravo): polir como despossessão: escrever no

estremo: o neutro desativando os mecanismos. Escrever é violento exercício de cortar e, principalmente, acrescentar, fazer crescer, multiplicar, não somente

insuflando vida a palavras, idéias, sentimentos, e imagens desgastadas, mas alargando a escrita em inquietas transversais, numa polifonia ampla – fazendo

novamente este corpo ressequido respirar, receber sangue, alimento, sexo, carinho – que exatamente pelo seu desmedimento consiga dar conta das complexidades

não enfrentadas pelas frases anãs, pela timidez árida dos exemplos, pela vergonha dos adjetivos, pela repugnância a mácula das repetições, pelo prolixo fôlego

determinado pelo viver ao se expor, pela virtude dos vocábulos minguados, pelo conjunto impressionista e descarnado, fugindo da obscuridade que exige olhos

maiores, olhares gordos, impados, macroscópicos – o terrível tempo desta desmesurada caverna sem mundo exterior – palavras afiadas, frases do tamanho de

ilhas, imagens gigantescas para conseguir com suas goelas do inferno engolir os planos vivenciais, as ideologias, os modelos vivos, os trilhos, os tobogãs da

existência, e com isso desobstruir a literatura da arte-literária, das, das belas-letras, do jornalismo, da contensão pequeno-burguesa, de certa tradição castradora,

recitativa, limpa, enxuta – que transformou escrever num ofício, num vício, numa ocupação pacata, mercantil, senhorial, oligárquica.

A escrita, lida por quem não busca sua busca, é veementemente transformada em escritura, em objeto, em espetáculo, em mercadoria, em Literatura: sua

dimensão deve ser esmagada, reduzida, curvada, amortizada ao comum dos sensos, fazendo ser dito o que ela não diz, fazendo ser o que ela não é, fazendo

positivo o que é negativo, fazendo crente e amoroso e legal o que é tão somente terrorismo contra o existente: o alegórico é sacrificado deixando somente o

grotesco que pode ser negociado: o terror é reconduzido e se transforma no horror: o guerrilheiro se torna quitandeiro.

Intacto o mundo continua, o leitor continua, a escritura vitoriosa reclama seu território: mais uma vez a aparência lucra: impõe sua necessidade sem

camadas, sem castas, sem alusões, sem paródia, sem ironia, sem desejos, sem denegações. O passado e o futuro se dissolvem, aparecendo somente como

imediato do presente: a dignidade do tempo, aquilo que nos faz ser, torna-se palco, cânone, existência unidimensional.

Page 125: Volume xi 2004

ISSN 1517 - 5421 125

VITRINE

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nem derreliçãonem derreliçãonem derreliçãonem derrelição Lá todas as contas estão certasLá todas as contas estão certasLá todas as contas estão certasLá todas as contas estão certas

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CARLOS MOREIRACARLOS MOREIRACARLOS MOREIRACARLOS MOREIRA