volume 61 - junho 2002 - nÚmero 1 · do pressuposto de que somos nós, seres humanos, que...

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1 Í NDICE IGREJA LUTERANA VOLUME 61 - JUNHO 2002 - NÚMERO 1 Editoriais In Memoriam. .................................................................................. Artigos Como se Forma um Teólogo: Oratio, Meditatio, Tentatio John W. Kleinig .............................................................................. Sentido e Conteúdo na Proclamação Cristã: Subsídios para uma Reflexão a partir da Leitura em Lutero no Capítulo 1º do Evangelho de João Paulo P. Weirich ............................................................................. A Tarefa do Homem de Fé ...E o Levou a Jesus Vilson Scholz .................................................................................. Auxílios Homiléticos ................................................................... Devoções ....................................................................................... Recensão Cristologia do Novo Testamento. Por Oscar Cullmann Gerson L. Linden ...........................................................................

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Igreja Luterana - nº 1 - 2002

ÍNDICE

IGREJA LUTERANA

VOLUME 61 - JUNHO 2002 - NÚMERO 1

EditoriaisIn Memoriam. ..................................................................................

ArtigosComo se Forma um Teólogo: Oratio, Meditatio, TentatioJohn W. Kleinig ..............................................................................

Sentido e Conteúdo na Proclamação Cristã:Subsídios para uma Reflexão a partirda Leitura em Lutero no Capítulo 1º do Evangelho de JoãoPaulo P. Weirich .............................................................................

A Tarefa do Homem de Fé ...E o Levou a JesusVilson Scholz ..................................................................................

Auxílios Homiléticos ...................................................................

Devoções .......................................................................................

RecensãoCristologia do Novo Testamento.Por Oscar CullmannGerson L. Linden ...........................................................................

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IN MEMORIAM

REV. PROF. ARNALDO JOÃO SCHMIDT

Foi no Domingo da Páscoa, 31 de março! Enquanto os cristãos da IgrejaEvangélica Luterana do Brasil e os funcionários, alunos e professores doSeminário Concórdia celebravam com alegria e gratidão a ressurreição deJesus Cristo, partia para a eternidade, na esperança de sua própria ressur-reição, o Pastor e Professor Arnaldo João Schmidt. Da ressurreição deJesus, tantas vezes por ele lembrada e anunciada, o Prof. Schmidt trouxepara si a esperança do seu próprio ressuscitar glorioso.

Aqui, na igreja militante, Arnaldo João Schmidt serviu seu Senhor comopastor, na Comunidade Evangélica Luterana “Cristo”, de Schroeder, SC(1943-1950), Comunidade Ev. Luterana “Sião”, de Santo Ângelo, RS (1950-1961). Atuou também na Diretoria da Igreja, como Primeiro Vice-Presiden-te (1960-1962) e como presidente (1963-1965). Foi professor do SeminárioConcórdia de Porto Alegre, RS (1962 - até tornar-se emérito), tendo sidoseu Diretor, de 1972 a 1976. Nesta função o Prof. Schmidt procurou ampli-ar os horizontes do Seminário no cenário brasileiro, especialmente promo-vendo-o junto à Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE),entidade da qual foi também vice-presidente. Prof. Arnaldo J. Schmidt inte-grou várias comissões dentro da igreja, destacando-se sua participação noDepartamento de Missão e no Departamento de Educação Média e Supe-rior. Seu interesse pela educação especial manifestou-se relevante na dedi-cação pela Escola Especial Concórdia, integrando por vários anos o Conse-lho Diretor e a Diretoria Executiva dessa instituição.

O Prof. Arnaldo foi casado com Gertrudes Martha Rehfeldt Schmidt,que o precedeu na morte. Seu matrimônio foi abençoado com três filhas:Sônia, Marlene e Arlete.

Agora, embora já na igreja triunfante, o Prof. Arnaldo consegue manterentre aqueles que o conheceram e tiveram o privilégio de tê-lo como pastorou professor, uma admiração, respeito e carinho muito grandes, coisas que adistância não apaga. Tais sentimentos nasceram espontaneamente em grandenúmero de membros da igreja, em alunos que passaram pelo SeminárioConcórdia e naqueles agora pastores da IELB, também alunos que foramdo Prof. Arnaldo. São sentimentos provocados pela maneira de ser e agir dosaudoso Pastor e Mestre.

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O Seminário Concórdia agradece ao Senhor pela bênção de ter tido oPastor Schmidt como seu Professor e Diretor. Ao mesmo tempo, estendeaos seus familiares a gratidão por terem alcançado a ele o apoio e carinhodurante sua trajetória de servo de Cristo na Igreja e no Seminário. Semdúvida que tais coisas em muito contribuíram para que fôssemos beneficia-dos pelo trabalho zeloso e pela amizade sempre presente daquele que, leva-do pelo Senhor no Domingo da Ressurreição, aguarda o cumprimento dapalavra do apóstolo Paulo: Porque, assim como, em Adão, todos morrem,assim também todos serão vivificados em Cristo (1 Co 15.22).

Prof. Paulo Moisés NerbasDiretor do Seminário Concórdia

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ARTIGOS

INTRODUÇÃO

Como se forma um teólogo? Dificilmente nós, professores de teologia,poderemos ouvir pergunta mais desconcertante do que esta. Não importao lugar donde viemos, o fato é que os membros de nossas igrejas estãocada vez mais críticos em relação ao sistema de treinamento teológico quetradicionalmente temos usado na Igreja Luterana. Conhecemos bem essesistema, pois somos todos, de certa forma, produtos do mesmo. Os currí-culos diferem de uma igreja para a outra, mas o padrão básico é sempre omesmo. As disciplinas acadêmicas das áreas de teologia bíblica, teologiahistórica e teologia sistemática levam às disciplinas da área prática. Pri-meiramente cuidamos da teoria; depois é que vem a prática da teologia.

Nós que lecionamos teologia podemos estar felizes com esse sistema deestudos, mas muitos membros de nossas igrejas não estão satisfeitos comele e com os pastores que o mesmo produz. Vocês sabem o que elesdizem. Nossos formandos não sabem atender as necessidades espirituaisdas pessoas. Estão fora de sintonia com o mundo moderno e não conse-guem se relacionar com ele de forma positiva. São teóricos sem noções deprática que não sabem lidar com gente de carne e osso e suas reais neces-sidades. Não sabem trabalhar com outros, em equipe. Pior, faltam-lheshabilidades básicas para liderar uma congregação, seja na área de adminis-tração ou organização, liderança ou comunicação, aconselhamento ou re-solução de conflitos, evangelização ou expansão da igreja.

Essas críticas se tornam mais insistentes em tempos difíceis, como osque hoje vivemos, quando o dinheiro é pouco e os recursos são limitados.Podemos nos dar o luxo de investir tanto dinheiro assim num sistema de

John W. Kleinig *

COMO SE FORMA UM TEÓLOGO:ORATIO, MEDITATIO, TENTATIO

*Dr. John Kleinig é professor no Luther Seminary, Adelaide, Austrália. Este artigo é resul-tado da conferência que foi apresentada na Conferência Mundial de Seminários Teológi-cos Luteranos, dia 5 de abril de 2001, em Canoas, RS. A tradução do inglês foi feita peloDr. Vilson Scholz e está sendo publicada com permissão do autor.

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treinamento de pastores que não forma os pastores que realmente necessi-tamos? Será que, de fato, precisamos de pastores com formação acadê-mica? Se os necessitamos, não deveríamos remodelar todo o currículo,fazendo-o girar em torno de teologia pastoral como a disciplina chave, oualgo assim? Seria inadequada a nossa maneira de fazer teologia nestecontexto pós-modernista?

Existe, sem dúvida, algum fundo de verdade nessas críticas, bem comoalgum valor nas contrapropostas apresentadas. Penso, no entanto, que o pro-blema é bem mais agudo do que isto. Tanto nós quanto nossos críticos partimosdo pressuposto de que somos nós, seres humanos, que produzimos teólogos.Segue daí que, se conseguirmos ajustar o sistema de treinamento, invariavel-mente produziremos bons pastores. Agora, será que isto é de fato assim?Como se forma um teólogo? Todos sabemos que um sujeito muito bem treina-do, que domina perfeitamente todos os assuntos da teologia e que tem todas ashabilidades pastorais necessárias, pode vir a ser um pastor medíocre, e um mauteólogo. O inverso também é verdadeiro! Como se forma um pastor?

Lutero foi daqueles professores de teologia que refletiu muito elongamente a respeito dessa questão de aprender teologia. Em diferentesocasiões ele tratou do assunto, sob diferentes ângulos. Embora Lutero,para surpresa nossa, tenha reconhecido a importância das artes liberaiscomo fundamento de uma boa educação teológica1, sabia também quemesmo o melhor currículo, lecionado pelos melhores teólogos, não poderia,por si só, produzir um bom pastor. Algo mais era necessário. Aprenderteologia era uma questão de experiência e sabedoria derivada da experiên-cia. Em linguagem contemporânea, o que forma um teólogo é a corretaprática da espiritualidade evangélica na igreja, a prática da vita passiva2, adimensão receptiva da fé.3 Em teologia, assim como na vida, não temosnada que não tenhamos recebido e continuamente recebemos (1 Co 4.7).

Lutero desenvolveu esta percepção de diferentes formas. Por volta de1520, numa preleção sobre o Salmo 5.11, afirmou, de modo um tanto quantocategórico, que um teólogo não é formado mediante “compreensão, leiturae especulação”, mas por meio do “viver, ou melhor, o morrer e ser conde-

1 Na WA TR 3, 312, 11-13, por exemplo, Lutero diz: “O que é que forma um teólogo? 1. A graça do Espírito; 2.Tentação; 3. Experiência; 4. Ocasião; 5. Aplicação à leitura; 6. Conhecimento das belas artes”.

2 Lutero aqui emprega o termo “passiva” no seu sentido gramatical, como o ato de receber uma ação, e não numsentido físico, designando um estado de inércia ou inação.

3 O uso que Lutero faz desse termo bem como suas implicações foram investigadas por Christian Link, “VitaPassiva”, Evangelische Theologie 44 (1984): 315-351; Oswald Bayer, Theologie (Eerdmans: GuetersloherVerlagshaus: Guetersloh, 1994), 42-49; e, de modo mais abrangente, Reinhard Huetter, Suffering Divine Things.Theology as Church Practice ( Grand Rapids: Eerdmans, 1997).

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nado” (WA 5, 163,28-29). Mais tarde, nas suas Conversas à Mesa(Tischreden) de 1532, Lutero acrescentou que, a exemplo do que acontecena medicina, a teologia é uma arte que se aprende apenas da experiênciaque se adquire ao longo da vida. Ele se considera pastor e afirma:

Eu não aprendi a minha teologia toda de uma só vez, mas tiveque buscá-la sempre de novo, indo cada vez mais fundo. Quemfez isso para mim foram as minhas tentações, pois ninguémconsegue entender as Escrituras sem prática e tentações. Istoé o que falta aos entusiastas e às seitas. Eles não têm o críticocerto, o diabo, que é o melhor professor de teologia. Se nãotivermos esse tipo de diabo, seremos apenas teólogosespeculativos, que só ficam perambulando em seus própriospensamentos e especulando com a própria razão se as coisasdevem ser assim ou assado (TWA I, 147, 3-14).

Aí está, dito de forma rude e ofensiva, como só Lutero sabia fazer: “odiabo é o melhor professor de teologia”. O diabo faz do pastor um verda-deiro professor de teologia na escola da vida, a universidade das pancadas.Não, isto não está totalmente correto e precisa ser corrigido. O diabotransforma estudantes de teologia em teólogos ao complicar a vida delesdentro da igreja. Portanto, treinamento em teologia envolve luta espiritual,a luta entre Cristo e Satanás dentro da igreja. Conflito na igreja, este é ocontexto em que se aprende teologia.

Em 1539, Lutero desenvolveu estes conceitos, com mais intensidade evigor, no famoso Prefácio à Edição de Wittenberg de seus escritos emalemão (WA 50, 657-661; LW 34, 283-288). Neste prefácio Lutero deli-neia “o modo correto de estudar teologia”, um modo que ele tinha apren-dido a partir de muita prática, “o modo que o santo rei Davi ensina noSalmo 119”. Apesar da linguagem empregada, Lutero não propõe, comose poderia esperar, um currículo teológico, ou, ao menos, um método parao estudo acadêmico da teologia. Ao contrário, Lutero descreve a práticapessoal da espiritualidade que ele tinha aprendido de cantar, recitar e oraro Saltério. Mas até isto pode ser mal entendido. Lutero não defende ummétodo específico de meditação, mas esboça a efetiva dinâmica de for-mação espiritual para estudantes de teologia. Isto envolve a interação detrês poderes: o Espírito Santo, a palavra de Deus, e Satanás. Luteroassevera que a interação dinâmica entre essas três forças é tão poderosae eficaz que aqueles que se submetem a ela “poderiam (se necessáriofosse) escrever livros tão bons quanto aqueles dos Pais e dos concílios”(LW 34,285).

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Como Martin Nicol deixou claro, Lutero fez uma diferença entre suaprática pessoal de espiritualidade e a tradição de fundamentação espiritualque ele tinha vivenciado como monge.4 A tradição monástica seguia umantigo padrão de meditação e oração bem estruturado em termos de tem-po. Seu alvo era a “contemplação”, a experiência de êxtase, bem-aventurança, arrebatamento e iluminação mediante a união com o SenhorJesus glorificado. Para atingir este alvo, o monge ascendia da terra ao céu,da humanidade de Jesus à sua divindade, em três etapas, como se fora poruma escada, a escada da devoção. A elevação começava com a leiturapessoal, em voz alta, de uma passagem das Escrituras, para despertar osafetos; prosseguia com oração intensa, e culminava com a meditação men-tal de realidades celestiais, enquanto se aguardava a experiência da con-templação, a infusão de graças divinas, a concessão de iluminação espiritu-al. Quatro termos eram usados para descrever esta prática de espiritualidade:leitura, meditação, oração, e contemplação.

Em contraste com este método um tanto quanto manipulável, Luteropropôs um modelo evangélico de espiritualidade em termos de recepção, enão de autopromoção. Isto inclui três coisas: oração (oratio), meditação(meditatio), e tentação (tentatio).5 Estas três giram em torno de umacontínua e cuidadosa atenção à palavra de Deus. A ordem da lista é signi-ficativa, pois, ao contrário do modelo tradicional de devoção, esta forma deestudar teologia começa e termina aqui na terra. Os três termos descre-vem a vida de fé como um ciclo que começa com oração pelo dom doEspírito Santo, concentra-se na recepção do Espírito Santo mediante ameditação da palavra de Deus, e redunda em ataque espiritual. Isto, porsua vez, leva a pessoa a mais oração e meditação mais intensa. Logo,Lutero não encarava a vida espiritual de forma ativa como um processo deautodesenvolvimento, mas em termos passivos como um processo de re-cepção da parte do Deus trino. Nele, pessoas auto-suficientes aprendem aser mendigos na presença de Deus.

Nesta conferência, quero valer-me do prefácio de Lutero à edição deWittenberg para investigar um pouco mais a fundo o que ele tem a dizersobre como se forma um teólogo. Penso que temos muito a aprender delequanto à formação espiritual de pastores. O que ele nos propõe nesta áreade estudo da teologia bem pode nos libertar da camisa de força que nos é

4 Martin Nicol, Meditation bei Luther (Vandenhoeck & Ruprecht, 1984), 19, 91.5 Minha compreensão destes termos e de seu significado deriva do estudo cuidadoso dos mesmos feito por Martin

Nicol em Meditatio bei Luther (Vandenhoeck & Ruprecht, 1984), 91-101; Oswald Bayer em Theologie(Gueterslohe: Verlagshaus, 1994), 55-105, e Reinhard Huetter em Suffering Divine Things (Grand Rapids:Eerdmans, 1997), 72-76.

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imposta por algumas antíteses pouco proveitosas e até, quem sabe, falsas.Dessas resulta a separação entre teologia pastoral e teologia acadêmica,teologia sistemática e teologia litúrgica, espiritualidade individual e cultocomunitário, vivência espiritual subjetiva e revelação objetiva, bem como aseparação entre a vida particular do pastor de sua função pública. Esperoque o ensino de Lutero a respeito do estudo de teologia ajude a clarear qualé nosso papel como educadores na área da teologia.

COMO SE FORMA UM TEÓLOGO

a. Oração pelo dom do Espírito SantoLutero assevera que o estudo de teologia tem a ver com o dom da vida

eterna. Nenhum professor deste mundo pode nos ensinar a respeito disso,pois nenhum professor terreno pode nos dar vida eterna. Tampouco pode-mos alcançar a vida eterna para nós mesmos fazendo uso da razão pararefletir sobre nossa experiência de Deus ou até mesmo para interpretar asEscrituras à luz de nossa experiência pessoal. Na verdade, estaremos co-metendo suicídio espiritual, se tentarmos alcançar a vida eterna com Deuspor meio de especulação racional e autodesenvolvimento espiritual. Quemse vale da razão e do intelecto para construir uma escada que o leve ao céuestará, ao contrário, e a exemplo de Lúcifer, precipitando a si mesmo e aoutros no inferno.

A verdade é que não precisamos subir ao céu por conta própria. ODeus Trino desceu à terra por nós. Deus se encarnou a nosso favor. Elese fez acessível externamente em nossos sentidos. No ministério da pala-vra, ele se tornou concreto para nós, criaturas de carne e osso. As Escritu-ras Sagradas não apenas nos ensinam a respeito da vida eterna; elas defato nos dão a vida eterna à medida que nos ensinam. Também temos ‘overdadeiro mestre das Escrituras’, o Espírito Santo, que se vale das Escri-turas para nos ensinar as coisas de Deus. Assim, Lutero recomenda aoestudante de teologia que desista de tentar elaborar um sistema teológicobaseado na razão e na experiência humanas. Ao invés disso, ele deveriaaprender teologia orando pelo dom do Espírito Santo como seu instrutor.Diz Lutero:

Ajoelha-te em teu quarto e ora a Deus com verdadeira humil-dade e seriedade, para que, por meio de seu Filho amado, elete dê seu Espírito Santo, para que te ilumine, guie, e dê enten-dimento.

Duas coisas se destacam neste conselho de Lutero: a dinâmica trinitáriadesta oração pelo Espírito Santo, e o reiterado pedido pela dádiva do Espí-

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rito Santo. Como mendigos que se ajoelham de mãos vazias perante nossogrande benfeitor, somos levados para dentro do Deus Trino e participamosde sua ação aqui no mundo.

Seria muito fácil fazer uma aplicação errada dessas palavras de Lutero,a exemplo do que fazem alguns pietistas e carismáticos, e defender ummétodo de exegese espiritual. O fato é que Lutero não está aqui despre-zando a leitura atenta da Escritura, com análise gramatical e exegese literá-ria, para propor a dependência da orientação mental direta do Espírito San-to. Lutero não diz que, por meio de oração e pela inspiração do EspíritoSanto, o leitor recebe um entendimento especial do texto das Escrituras,isto é, seu verdadeiro sentido. Ao contrário, Lutero pressupõe que, pormeio de sua palavra, o Pai nos dá seu Espírito Santo que ilumina e vivifica.Assim sendo, o estudante de teologia pode orar pela iluminação, orientaçãoe compreensão que só o Espírito Santo pode dar por meio das Escrituras.6

Ele ora para que o Espírito Santo se valha das Escrituras para interpretar aele, o intérprete, e sua experiência, de tal sorte que ele veja a si mesmo e aoutros sob a ótica de Deus. Neste sentido ele confia na palavra de Deuscomo meio da graça, o canal do Espírito Santo.

Fica claro que o estudo de teologia está baseado na oração pelo dom doEspírito Santo. O Espírito Santo faz com que pretensos mestres de teolo-gia, gente que quer se autopromover no âmbito espiritual, se tornem humil-des e vitalícios estudantes das Escrituras. Sem o Espírito e a capacitaçãoque ele dá, ninguém sabe nada a respeito da vida eterna. Sem a iluminaçãodo Espírito, o ensino das Escrituras fica sendo mera teoria sem nenhumarealidade. Um teólogo é formado por meio da súplica junto a Deus pelacontínua dádiva do Espírito Santo por meio de Jesus e pela constante re-cepção do Espírito Santo. Em suma, o Espírito Santo forma o teólogo. Eeste é um projeto que dura a vida toda.

Se Lutero está certo, então nós, professores de teologia, precisamospromover a obra do Espírito Santo e o papel da súplica pelo dom do EspíritoSanto no estudo da teologia. Ninguém deveria ousar diminuir a importânciada oração apenas por não ser ela um meio da graça, tampouco deveríamosdescartar a súplica pelo dom do Espírito Santo como sendo uma aberraçãoneopentecostal. A exemplo dos apóstolos em Atos 6.4, precisamos nosdedicar à oração e ao ministério da palavra, pois o estudo de teologia de-pende da contínua recepção do Espírito Santo por meio desses dois.

6 Ver Gunnar Wertelius, Oratio Continua (Lund: CWK Gleerup, 1970, para uma discussão do relacionamento entrea obra do Espírito Santo e a prática da oração, 285-298.

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b. Meditação da Palavra escritaLutero afirma que, no estudo de teologia, a oração pelo dom do Espírito

Santo precisa vir acompanhada de contínua meditação das Escrituras.7 Omotivo desta conexão é que ‘Deus não lhe dará o seu Espírito sem a pala-vra externa’. As Escrituras são a palavra inspirada de Deus. O mesmoDeus que as inspirou com seu Espírito vivificador se vale delas para nosinspirar e potencializar com seu Espírito. A palavra de Deus é o meio dagraça através do qual Deus Pai concede seu Espírito Santo por meio de seuamado Filho. Portanto, o Espírito Santo é recebido por meio da meditaçãoda palavra. O Espírito vem a nós por meio da palavra para que ele, oEspírito, possa fazer sua obra em nós por meio da palavra. Sem a palavra,não se tem o Espírito. Do mesmo modo, sem oração, não se tem o Espírito.

Ao falar da “palavra externa”8, Lutero critica dois outros tipos de meditaçãoque, na prática, negam a encarnação. Por um lado, ele critica o método demeditação que tinha aprendido como monge. Este se valia das Escrituras comouma espécie de trampolim para a oração do coração e a apropriação mental ouvisionária de realidades celestiais. Por outro, Lutero igualmente se mostra críticoem relação à prática entusiasta de meditação na palavra interior do Espírito San-to, falada diretamente aos corações do povo de Deus. Em contraste com essesdois métodos de aprender teologia, Lutero defende a meditação na “palavra ex-terna”. É a palavra concreta, falada por lábios humanos, escrita com mãos hu-manas, e ouvida com ouvidos humanos. A exemplo da luz do sol, a palavra estáfora de nós, é dirigida a nós por um pastor, escrita num livro, encenada no cultodivino.9 Assim, uma vez que o foco da meditação é a palavra externa, o que estáenvolvido é basicamente extroversão espiritual e não introversão espiritual. É umassunto que envolve o coração, mas não apenas o coração. O acesso ao coraçãoé de fora para dentro, através dos ouvidos. Na meditação, ouvimos interiormenteo que nos é falado exteriormente.

Esta noção da palavra de Deus como o meio físico para a concessão doEspírito Santo trouxe duas profundas mudanças na forma como Luteropraticava a meditação em sua vida pessoal. Em primeiro lugar, como mon-ge ele tinha aprendido a ver a meditação como um ato mental, um estadoem que se é marcado por uma reflexão interior, silenciosa. Agora ele en-tendeu que meditação cristã era antes de tudo uma atividade verbal. A

7 Ver John W. Kleinig, “The Kindled Heart. Luther on Meditation”, Lutheran Theological Journal 20/2&3 (1986)142-154.

8 Lutero emprega a expressão ‘a palavra concreta’ (das leiblich Wort) como sinônimo de palavra externa. OswaldBayer explora o significado dessas expressões em Leibliches Wort (Lund: J. C. B. Mohr, 1992), 57-72.

9 O estudo de Norman Nagel, “Externum Verbum: Testing Augustana 5 on the Doctrine of the Holy Ministry”,Lutheran Theological Journal 30/3 (1996): 101-110, examina a íntima conexão entre a palavra externa e oministério da palavra.

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pessoa que medita fala a palavra de Deus para si mesma e a ouve comatenção, de todo o coração, “para descobrir o que o Espírito Santo querdizer nela”. Nisto Lutero foi influenciado por seu estudo dos Salmos emhebraico, ao invés do latim.10 Ele descobriu que todas as palavras hebraicasque, nos Salmos, falam da prática da meditação tinham a ver com diferen-tes formas de vocalização e subvocalização, que iam de falar a murmurar,conversar a suspirar, cantar a entoar, balbuciar a gemer. Portanto, aqueleque medita ouve a palavra de Deus com atenção ao ser esta falada pesso-almente a ele. Ele se concentra exclusivamente na palavra. Fala essapalavra para si mesmo sempre de novo. Lê e relê a palavra. Compara oque ela diz com o que é dito em outras partes de Bíblia. Ele a rumina, assimcomo a vaca rumina seu alimento. Ele a esfrega, a exemplo de uma ervaaromática que libera sua fragrância e seus poderes terapêuticos ao seramassada. Ele se concentra nela, física, mental e emocionalmente, paraque a mesma chegue a seu coração, seu interior, o cerne de sua existência.Ali ele recebe o que Deus diz a ele e lhe dá em sua palavra.

Em segundo lugar, ao ensinar sobre meditação, Lutero deriva a vidadevocional particular do estudante do envolvimento que este tem no cultopúblico. Diz Lutero:

Assim, percebes como Davi constantemente se orgulha noSalmo 119, dizendo que, de dia e de noite e sempre, ele nãofalaria, comporia, diria, cantaria, ouviria e leria nada que nãofosse a palavra e os mandamentos de Deus. Pois Deus não tedará o seu Espírito sem a palavra externa. Portanto, deixaque isso te oriente, porque não é por nada que ele ordenou quea palavra fosse escrita, pregada, lida, ouvida, cantada e faladaexternamente.

Lutero não vê a prática da meditação como uma atividade mental, inter-na, e sim como uma encenação ritual, externa. Em si, este método foiinspirado pela liturgia e derivado da encenação da palavra de Deus empúblico, no culto divino. Deus ordena à igreja que pregue, leia, ouça, cantee fale sua palavra, para que assim ele possa transmitir e dar o seu EspíritoSanto a seu povo. Esta proclamação externa e esta encenação da palavrade Deus determina como o estudante de teologia medita.11 Do mesmo

10 Ver Siegfried Raeder, Grammatica Theologica (Tuebingen: J. C. B. Mohr, 1977), 262-268.11 Enquanto Oswald Bayer, na obra Theologie (Guetersloher Verlagshaus, 1994), 88-92, destaca o caráter público

da meditação e de sua prática em Lutero, Reinhard Huetter, em Suffering Divine Things (Grand Rapids: Eerdmans,1997), 73, corretamente enfatiza sua conexão com práticas eclesiásticas tradicionais. Ambos reconhecem que aprática da meditação em Lutero estava intimamente relacionada com o cantar e orar dos salmos na escola, na igreja,e no mosteiro.

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modo como as Escrituras são lidas no culto divino, aquele que medita lêessas Escrituras para si mesmo em voz alta, ao meditar sobre um trechodelas. Assim como os salmos são cantados no culto, ele os canta em par-ticular. Assim como a palavra de Deus é pregada no culto, ele a prega parasi mesmo. Assim como a congregação ouve a palavra de Deus falada noculto, ele a ouve endereçada a si próprio de forma bem pessoal. Portanto,Lutero defende a prática de uma meditação litúrgica da palavra de Deus,ou seja, o exercício de uma piedade litúrgica.

Penso que tudo isso tem importantes implicações para a maneira comoaprendemos teologia em nossos seminários. Toda a vida de um semináriodeveria girar em torno do culto diário, o centro e alvo da vida receptiva dafé. Tanto professores quanto alunos precisam ser discípulos da palavra deDeus quando esta é falada e encenada no culto. Como é possível umseminário luterano onde o currículo não deriva do culto divino e leva alunose professores de volta a ele? Como podemos ser modelos e ensinar anossos alunos a arte da meditação a não ser no culto corporativo? Comcerteza eles não se tornarão bons pregadores da palavra de Deus a menosque primeiro tenham se tornado ouvintes dela em atitude de meditação. Ofruto da meditação, como Lutero reconheceu (LW 14,296, 302-303), é apregação e o ensino da palavra de Deus.

c. Tentação da parte de SatanásLutero afirma que o correto estudo da teologia culmina na experiência.

Tanto ele quanto seus mestres concordavam nisto. Agora, discordavamquanto ao que experimentavam, e como. A tradição monástica de medita-ção entendia que a prática adequada da meditação levava à experiência dacontemplação, isto é, a experiência de união com o Senhor Jesus glorifica-do. Em contrapartida, Lutero ensinava que o estudo receptivo da Escrituraem oração e meditação levava à experiência da palavra de Deus, isto é, aexperiência de sua eficácia, sua criatividade, e sua produtividade. Por es-tranho que possa parecer, é na tentação que se encontra e experimenta deforma bem nítida o poder da palavra de Deus, o poder do Espírito Santooperante em e através da palavra.12 Assim diz Lutero:

Em terceiro lugar, existe a tentação, ‘Anfechtung’. Este é oteste que te ensina, não apenas a conhecer e entender, mastambém a experimentar quão justa e verdadeira, quão doce eamável, quão poderosa e consoladora é a palavra de Deus,sabedoria que excede toda sabedoria.

12 Confira Andrew Pfeiffer, “The Place of Tentatio in the Formation of Church Servants”, Lutheran TheologicalJournal 30/3 (1996): 111-119, e Steven A. Hein, “Tentatio”, Lutheran Theological Review 10 (1997-98): 29-47.

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A experiência que Lutero descreve difere radicalmente daquilo que nósnormalmente chamaríamos de experiência espiritual. É a experiência doimpacto da palavra de Deus sobre nós, seu efeito em nós. Experimenta-mos o poder da palavra de Deus. Mesmo que esta experiência comece naconsciência, ela afeta todas as partes de nosso ser e permeia a pessoa emseu todo, mental, emocional e fisicamente. A palavra cheia do Espírito noscoloca em sintonia com Deus o Pai ao conformar-nos ao seu Filho amado.Não somos nós que a internalizamos e assimilamos a nosso modo de ser.Ao contrário, é ela que nos assimila e torna piedosos. Não somos nós quenos valemos da palavra para nos tornarmos algo; é a palavra que nos fazteólogos.

Na tentação, o estudante de teologia experimenta pessoalmente a justi-ça e a verdade da palavra de Deus em todo o seu ser, e não apenas em seuintelecto. Ele tem experiência da doçura e beleza da palavra de Deus comtodo o seu ser, e não apenas com suas emoções. Ele experimenta o podere a força da palavra de Deus com todo o seu ser, e não apenas com seucorpo. A tentação é, portanto, o teste para avaliar qualquer teólogo; elarevela o que, sem ela, não se vê e não se conhece. Assim como o penhoristafaz um teste para detectar a presença e pureza do ouro numa moeda oujóia, também a tentação testa e prova a realidade da espiritualidade dealguém.

Ao falar da tentação no prefácio da edição de Wittenberg, Lutero em-prega a palavra num sentido especial. Ele não se refere aos convites que odiabo nos faz a que pequemos, nem mesmo ao fato de o diabo condenar opecador. A palavra alemã que Lutero usa, ‘Anfechtung’, mostra que estáenvolvido algum tipo de ataque à pessoa. Lutero deixa claro que isto sepassa no âmbito público. Envolve antagonismo e oposição pública àquelesque são pastores ou estão se preparando para sê-lo. Trata-se de um ataqueao ministério da palavra. O diabo não ataca o ofício do ministério em si,pois este pode estar a seu serviço, se atuar sem a palavra de Deus e oEspírito Santo. Ele ataca o instrumento através do qual o ofício do ministé-rio recebe poder espiritual, a saber, a atuação do pastor em fé na palavra deDeus e no poder do Espírito Santo. Isto o diabo não pode permitir de jeitonenhum, pois será seu fim.

Enquanto um pastor ou um estudante de teologia atua baseado em seupróprio poder, com seu próprio intelecto e idéias humanas, o diabo o deixaem paz. Mas tão logo ele medita na palavra de Deus e depende do poderdo Espírito Santo, o diabo o ataca, promovendo falta de compreensão, con-tradição, oposição, e perseguição. Ele ataca através dos inimigos do evan-

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gelho na igreja e no mundo. Deste modo tenta impedir a ação da palavra deDeus no estudante de teologia. Assim sendo, tão logo a palavra de Deus éplantada no coração dele o diabo procura tirá-la de lá, para que o teólogonão possa atuar pelo poder do Espírito Santo. As muitas lamentações nosSalmos indicam que esta situação é bastante comum. Mostram como oministério da palavra suscita inimizade e oposição. O ministério provoca aira do inimigo.

Mas paradoxalmente esses ataques são contraproducentes. Luteroexplica:

Pois tão logo a palavra de Deus cresce e se espalha atravésde ti, o diabo te persegue. Ele faz de ti um verdadeiro mestre(de teologia). Por meio de seus ataques (tentações) ele teensina a buscar e amar a palavra de Deus.

Assim, o ataque que o diabo lança contra o estudante de teologia ajudaa fortalecer a fé deste, pois o impulsiona a voltar à palavra de Deus como oúnico fundamento para seu trabalho na igreja. Diante do ataque do diabo,ele não pode depender de seus próprios recursos. Ele não pode dependerda confirmação de sua teologia por parte do mundo e nem mesmo porparte da igreja. Sua própria fraqueza espiritual e sua falta de sabedorialevam-no a depender do poder do Espírito Santo e da sabedoria da palavrade Deus, que é ‘sabedoria que excede toda sabedoria’. Por meio da tenta-ção o estudante de teologia se torna teólogo; ele aprende a teologia da cruz;para ser mais exato, a espiritualidade da cruz.13 Ele não experimenta aglória da união com seu Senhor glorificado, mas conhece a dor da uniãocom o Cristo crucificado. Ele carrega a cruz juntamente com seu Senhor,sofrendo com ele na igreja.

Se atentarmos no que Lutero diz a respeito do papel do diabo na forma-ção espiritual dos teólogos, compreenderemos que nossos seminários sãocampos de batalha espiritual, um lugar de luta, e não um oásis espiritualonde se encontra refúgio da tentação. Também poderemos ajudar nossosalunos a entender por que eles e suas famílias sofrem um ataque tão cerra-do em certos momentos ao longo do programa de estudos. Poderemos atéconsiderar esses ataques bem-vindos, pois mostram que Deus de fato estáatuando entre nós, fazendo de nós e de nossos alunos verdadeiros teólogos.

13 Ver Gene Edward Veith, Jr., The Spirituality of Cross (St. Louis: Concordia, 1999).

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CONCLUSÃO

A vida de fé é a vita passiva, a vida receptiva, onde não somos nós quenos tornamos algo, mas Deus nos molda e desenvolve. Isto também seaplica a pastores. Nós, professores de teologia, não formamos teólogos;isto é obra de Deus. Ele os forma, chamando-os para serem ministros dapalavra, assim como chamou os apóstolos. Ele os treina em sua igreja pormeio daquilo que ele faz com eles ou por meio do que eles sofrem na igreja.Deus forma teólogos por meio do dom do Espírito Santo, do poder de suapalavra, e da oposição do diabo.

Se isto de certo modo facilita a nossa vida de professores de teologia,por outro lado também torna as coisas muito mais complicadas, pois nuncaseremos capazes de desenvolver um sistema de treinamento infalível paraa produção de bons pastores. No entanto, é isto que se espera de nós. E émuito fácil querer corresponder a tal expectativa. O melhor que podemosfazer é organizar um currículo que condiz com a dinâmica de formaçãoespiritual instituída por Deus, fomentar uma comunidade que promova suaoperacionalização, e servir de modelo em como continuar a aprender vi-vendo a vida receptiva da fé.

Que podemos fazer para promover a vida receptiva entre estudantes deteologia? Apresento sete breves propostas, à guisa de conclusão.

1. Todo o currículo da educação teológica precisa girar em torno do cultoda comunidade. Isto precisa estar no centro de tudo que é feito noseminário, pois no culto a palavra de Deus que concede o EspíritoSanto é proclamada e encenada ao ser lida e cantada, pregada e orada,falada e confessada. No culto deveríamos cantar e orar todos os Sal-mos, pois é o manual de espiritualidade cristã inspirado por Deus noqual o próprio Deus nos ensina a orar, meditar e resistir ao inimigo.

2. Seria aconselhável começar todas as nossas aulas com uma leitura dapalavra de Deus e oração pelo dom do Espírito Santo.

3. Precisamos ser diligentes em nossa própria vida espiritual e ajudar osalunos a desenvolver o hábito de devoções diárias, com ênfase na me-ditação da palavra de Deus, oração e vigilância espiritual.

4. Uma disciplina sobre espiritualidade luterana como a vida receptiva defé poderia fazer parte do currículo. A ênfase aqui deveria recair, nãosobre a teoria, mas sobre a experiência concreta e a prática pessoal.Um curso desses deveria abordar a conexão entre a piedade pessoal eo culto público, a prática da oração, meditação evangélica da palavrade Deus, envolvimento em luta espiritual, e o papel do Espírito Santo navida de fé.

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5. O estudo de teologia precisa ser visto como parte da luta entre Cristo eSatanás na igreja. Quanto melhor nosso desempenho como estudan-tes da palavra de Deus, maior será a oposição. E isto não é mau,desde que encaremos os conflitos em nossa comunidade e na vida denossos estudantes numa perspectiva espiritual, como ataques do diaboe não simplesmente como problemas pessoais, doutrinários ou psicoló-gicos.

6. A mesma ênfase que se dá ao desenvolvimento acadêmico deveria serdada à fundamentação espiritual dos alunos. Isto se dá por meio deseu envolvimento na comunidade e sua aceitação de autoridade, a par-ticipação no culto público e a interação dos alunos entre si, nosso cui-dado pastoral deles e o cuidado pastoral que eles têm um pelo outro,nossa provisão de liderança espiritual14 e a prática de auto-avaliaçãoespiritual da parte deles, nossa prontidão em pedir desculpas e a dispo-sição deles em perdoar.

7. Todo o currículo deve estar centrado no uso da palavra de Deus noculto, na vida e no ministério como o meio pelo qual o Espírito Santoatua. Pois, como diz Lutero, “Deus não nos dará ... seu Espírito sem apalavra externa”. Sem a palavra de Deus ninguém nunca poderiaaprender teologia. É assim que se forma um teólogo.

ANEXO

PREFÁCIO À EDIÇÃO DE WITTENBERGMARTINHO LUTERO

Mais do que isso, quero mostrar-te o modo correto de estudar teologia,pois eu mesmo o pus em prática ... Este é o modo que o santo rei Davi ...ensina no Salmo 119. Nele encontrarás três princípios, detalhadamenteexplicados ao longo de todo o Salmo. São estes: oração (oratio), medita-ção (meditatio), tentação (tentatio).

Primeiramente, precisas entender que as Escrituras Sagradas são aque-le tipo de livro que transforma a sabedoria de todos os outros livros emloucura, porque nenhum deles pode ensinar a respeito da vida eterna, a não

14 Ver a discussão sobre liderança espiritual em Eugene H. Peterson, Working the Angles (Grand Rapids: Eerdmans,1987), 103-131.

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ser somente as Escrituras. Assim, deverias imediatamente perder as espe-ranças em relação a tua própria razão e entendimento. Com estes, nãoalcançarás a vida eterna. Ao contrário, com uma arrogância dessas, tu, aexemplo de Lúcifer, precipitarás a ti mesmo, e a outros junto contigo, docéu ao abismo do inferno. Em vez disso, ajoelha-te em teu quarto e ora aDeus com verdadeira humildade e sinceridade, para que, por meio de seuFilho amado, ele te dê seu Espírito Santo, para que te ilumine, guie, e dêentendimento.

Podes notar como Davi continua a orar no Salmo 119: “Ensina-me,Senhor, instrui-me, guia-me, mostra-me”, e assim por diante. Embora co-nhecesse muito bem o texto do Pentateuco e de muitos outros livros; pormais que ouvisse e lesse os mesmos diariamente, Davi queria ter tambémpara si o verdadeiro professor (mestre) das Escrituras, para que não lidassecom elas a partir de seu próprio entendimento e se tornasse seu próprioprofessor (mestre). Isso produz agitadores espirituais que imaginam que asEscrituras estão sujeitas a eles e são facilmente compreendidas com o pró-prio entendimento que eles têm, sem o Espírito Santo e a oração, como sefaz com as lendas de Markolf ou as fábulas de Esopo.

Em segundo lugar, precisas meditar, não apenas com o coração, mastambém externamente, sempre de novo trabalhando e esfregando, lendo erelendo a palavra falada e o texto escrito na Bíblia, diligentemente prestan-do atenção e refletindo no que o Espírito Santo está dizendo nela. Cuidapara não perder o interesse e pensar que, se leste, ouviste e falaste essapalavra uma ou duas vezes, isto basta para que a entendas perfeitamente.Desse jeito nunca te tornarás um bom teólogo, mas serás como uma frutaimatura que cai da árvore antes mesmo de ter amadurecido pela metade.

Assim, percebes como Davi constantemente se orgulha no Salmo 119,dizendo que, de dia e de noite e sempre, ele não falaria, comporia, diria,cantaria, ouviria e leria nada que não fosse a palavra e os mandamentos deDeus. Pois Deus não te dará seu Espírito sem a palavra externa. Portanto,deixa que isso te oriente, porque não é por nada que ele ordenou que apalavra fosse escrita, pregada, lida, ouvida, cantada e falada, e isso exter-namente.

Em terceiro lugar, existe a tentação (tentatio), ‘Anfechtung’. Este é oteste que te ensina não apenas a conhecer e entender, mas também a expe-rimentar quão justa e verdadeira, quão doce a amável, quão poderosa econsoladora é a palavra de Deus, sabedoria que excede toda sabedoria.Assim vês como, no Salmo 119, Davi a toda hora lamenta a respeito de

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todos os diferentes inimigos, príncipes arrogantes e tiranos, e acima de tudoa respeito dos falsos espíritos e bandos que ele tem que enfrentar precisa-mente porque ele está meditando, isto é, porque ele se ocupa, como disse-mos, com a palavra de Deus de muitas maneiras diferentes. Porque tãologo a palavra de Deus cresce e se espalha através de ti, o diabo te perse-gue. Ele faz de ti um verdadeiro doutor (em teologia); por meio de suastentações, ele te ensina a buscar e amar a palavra de Deus.15

BIBLIOGRAFIABAYER, Oswald. Leibliches Wort. Reformation und Neuzeit imKonflict. J.C.B. Mohr: Tuebingen, 1992.BAYER, Oswald. Theologie. Guetersloh: Guetersloher Verlagshaus,1994.HUETTER, Reinhard. Suffering Divine Things. Theology as ChurchPractice. Grand Rapids: Eerdamans, 1997.HEIN, Steven A. “Tentatio”, Lutheran Theological Review 10 (1997-98), 22-27.KLEINIG, John W. “The Kindled Heart. Luther on Meditation”,Lutheran Theological Journal 20 (1986), 142-154.LINK, Christian. “Vita Passiva. Rechtfertigung als Lebensvorgang”,Evangelische Theologie 44 (1984), 315-357.NAGEL, Norman. “Externum Verbum: Testing Augustana 5 on theDoctrine of the Ministry”, Lutheran Theological Journal 30 (1996),101-110.NICOL, Martin. Meditatio bei Luther. Goettingen: Vandenhoeck &Ruprecht, 1984.PETERSON, Eugene H. Working the Angles. The Shape of Pasto-ral Integrity. Grand Rapids: Eerdmans, 1987.PFEIFFER, Andrew K. “The Place of Tentatio in the Formation ofChurch Servants”, Lutheran Theological Journal 30 (1996), 111-119.RAEDER, Siegfried. Grammatica Theologia. Tuebingen: J. C. B.Mohr, 1977.VEITH Jr., Gene Elmer. The Spirituality of the Cross. The Way ofthe First Evangelicals. St. Louis: Concordia, 1999.WERTELIUS, Gunnar. Oratio Continua. Das Verhaeltnis zwischenGlaube und Gebet in der Theologie Martin Luthers. Lund: CWKGleerup, 1970.

15 Tradução revisada por John W. Kleinig, baseada em LW 34, 285-287

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A TAREFA DO HOMEM DE FÉ:... E O LEVOU A JESUS

REFLEXÕES A PARTIR DE 1 PEDRO

Vilson Scholz*

INTRODUÇÃO

Um dossiê de testemunhos“E o levou a Jesus” (Jo 1.42) é o lema deste congresso *. Um lema

tirado daquele Evangelho que, apesar da simplicidade da linguagem, é omais profundo de todos. Em razão disso, pode ser estudado e descrito devárias maneiras. Uma destas, e que nos interessa no momento, é a descri-ção de João como um dossiê de testemunhos, tanto contra quanto a favorde Jesus Cristo. O objetivo deste dossiê é que o leitor e ouvinte aceite ostestemunhos a favor de Jesus e creia que ele é o Cristo, o Filho de Deus, epara que, crendo, tenha vida (Jo 20.31).

A primeira testemunha é um homem enviado por Deus (1.6) cujo nomeera João. Este veio para testemunhar da luz (1.6-8), daquele que tem aprimazia (1.15), daquele que batiza com o Espírito Santo (1.32-33), daqueleque é o Filho de Deus (1.34). João testemunhou para André (1.40), apon-tando para o Cordeiro de Deus (1.36). André testemunhou a seu irmão,Simão Pedro, e o levou a Jesus (1.41-42).

Outros testemunham ao longo do Evangelho de João: a mulher samaritana(4.39), o Pai (5.32,37), as obras de Jesus (5.36), e as Escrituras (5.39). Opróprio Jesus testemunha (8.14). E para o futuro havia a promessa de queo Espírito da verdade testemunharia de Jesus (15.26) e que também osapóstolos testemunhariam (15.27).

O apóstolo João dá testemunho no relato que chamamos de Evangelhode João (19.35; 20.31). E Pedro, que dizer de Pedro? Também ele teste-munha, como personagem do Evangelho de João. Afirma que Jesus é o

* Dr. Vilson Scholz é Professor de Teologia Exegética no Seminário Concórdia e na Universida-de Luterana do Brasil. No Seminário exerce também as funções de coordenador de Registro.Este artigo, com devidas adaptações, resulta de palestra proferida no 150 Congresso deLeigos Luteranos do Brasil em Termas do Gravatal, em 24 de agosto de 2001.

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Santo de Deus (6.68). Mas a nuvem negra da traição se aproxima em João13.36-38: Pedro é avisado. A negação se confirma em João 18. No entan-to, existe restauração e, no final, Pedro confessa: “Senhor, tu sabes todasas coisas, tu sabes que eu te amo” (21.17).

Não termina aí o testemunho de Pedro. Além do testemunho dele em Atos,sem falar do tropeço em Gl 2, Pedro testemunha em suas cartas, no NovoTestamento, em especial a primeira delas. Ele mesmo declara, em 1 Pe 5.12:“Quero animá-los e dar o meu testemunho de que as bênçãos que vocês têmrecebido são uma prova verdadeira da graça de Deus. Continuem firmes, pois,nessa graça” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje - NTLH).

É assim que chegamos a 1 Pedro, que é o testemunho de Pedro. Leva-do a Jesus por seu irmão André, Pedro testifica da genuína graça de Deus.Ele nos leva a Jesus. Vale a pena examinar seu testemunho.

O TESTEMUNHO DE SIMÃO PEDRO

A Primeira Epístola de Pedro1 Pedro é um daqueles textos do Novo Testamento que Martinho Lutero

colocou entre os mais nobres e importantes de toda a Bíblia. Afinal, omandato do sacerdócio real, para não dizer do laicato, emana desta carta (1Pe 2.9). No entanto, em tempos recentes, a carta recebeu pouca atençãoem círculos acadêmicos. Alguém chegou a caracterizá-la como um “filhoadotivo” do Novo Testamento. Mas vale a pena estudar esta carta!

Conhecida como a “carta da esperança” (ver 1 Pe 1.3,21; 3.15), 1 Pedroé, antes, a “carta da graça”. O termo “graça” aparece oito vezes: 1 Pe 1.2(“graça e paz vos sejam multiplicadas”); 1.10 (“profetizaram acerca dagraça a vós destinada”); 1.13 (“esperai ... na graça que vos está sendotrazida na revelação”); 3.7 (“herdeiros da mesma graça da vida”); 4.10(“despenseiros da multiforme graça de Deus”); 5.5 (“aos humildes [Deus]concede a sua graça”); 5.10 (“o Deus de toda graça ... vos há de aperfei-çoar”); 5.12 (“testificando, de novo, que esta é a genuína graça de Deus”).Mas, afora isso, a carta como um todo é uma exposição da graça de Deus.

1 Pedro é uma carta encíclica enviada a igrejas de cinco províncias doImpério Romano (1 Pe 1.1), na região onde hoje fica a Turquia. É um textobreve: 105 versículos, três páginas na NTLH. Mas é um texto profundo.Isto já pode ser visto num simples cálculo matemático: no original grego, acarta tem 1675 palavras (o que é pouco), mas o número de termos chega a547 (o que é muito)! A riqueza do texto é evidenciada pelo grande númerode vocábulos diferentes que aparecem. Há pouca redundância ou repeti-

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ção. (Cada palavra, incluindo as mais comuns, aparece em média apenastrês vezes!)

1 Pedro é um resumo da fé e da vida cristã. Seria possível dar-lhe oseguinte título: “Como ser cristão num mundo não-cristão”. Outra possibi-lidade: “Não ser do mundo, mesmo estando no mundo”.

A carta apresenta um interessante entrelaçado de doutrina (Deus, e oque ele faz por nós) e ética (como vivemos). A ética está profundamenteenraizada na doutrina, tanto que aparece lado a lado com a doutrina. (Emoutras cartas, Efésios, por exemplo, existe uma seqüência “doutrina - éti-ca”.) Tema de destaque é “fazer o bem”, uma noção que aparece em 1Pedro tantas vezes quanto aparece em todos os outros livros do NT juntos.

A palavra “igreja” não aparece em 1 Pedro. Mas ele tem muito a dizersobre ela. A linguagem é comunitária do começo ao fim. (Pedro usa asegunda pessoa do singular apenas quando exemplifica ou especifica algo,como em 1 Pe 4.11,16. Tal quebra do padrão não deixa de ser enfática.)

Os cristãos aos quais Pedro se dirige são pessoas “contristadas porvárias provações” (1.6). São injuriados ou insultados por serem cristãos(4.14-16). Em meio a isso, Pedro, contra as expectativas, recomenda maissantidade, não menos.

De acordo com Pedro, a igreja tem um propósito missionário. Ele temem vista pagãos na sociedade (2.12), descrentes em casa (3.1-2), e tam-bém perseguidores (3.15-16). Pedro não advoga uma cristianização dasociedade. Também não defende uma saída do mundo, pois isto seria ne-gar o senso de missão da igreja.

São Pedro conhece e leva a sério três esferas, ou ordens, ou âmbitos,em que os cristãos vivem: a ordem familiar, a ordem econômica, e a ordemestatal. É nesses contextos que os cristãos dão seu testemunho e levampessoas a Jesus, assim como ele foi levado por seu irmão André.

No entanto, antes de tratar disso, convém examinar um pouco mais deperto o que Pedro tem a dizer de nossa identidade. Só então daremosatenção à nossa agenda: para com Deus, na igreja, na família, nas relaçõeseconômicas e na ordem estado, em geral.

NOSSA IDENTIDADE, SEGUNDO 1 PEDRO

Quem somos, afinal? É uma pergunta que os cristãos do tempo dePedro devem ter feito. É uma pergunta que hoje ainda temos de responder.

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Isto porque a crise da igreja é, em grande parte, crise de identidade. Não éassim que muitos se vêem apenas como “clientes” da igreja e não comoigreja propriamente? Outros, em especial os leigos, são tentados a pensarque são eles os que “sustentam” a igreja, esquecendo-se que eles são aigreja. Pedro nos ajuda a reafirmarmos nossa identidade.

O apóstolo Pedro quer que seus leitores entendam quem eles são diantede Deus, para que possam ser o que são no meio da sociedade em quevivem. Ele nos descreve de diferentes maneiras, algumas um pouco estra-nhas a nossos ouvidos, mas todas muito significativas.

1. Estrangeiros de passagem. Dois textos falam disso: 1 Pe 1.1 (“Pedro... aos eleitos que são forasteiros”) e 1 Pe 2.11 (“como peregrinos eforasteiros que sois”). Esta noção de ser peregrino e estrangeiro depassagem vem do Antigo Testamento. Lá o povo foi, por muito tempo,peregrino no deserto. Era algo bem concreto. No caso dos leitores dePedro, também é algo concreto, só que num outro sentido. Não querdizer que se trata de gente que não tem onde morar, mas de pessoasque, embora cidadãos deste mundo, sabem que sua pátria não é aqui(ver Fp 3.20). Como gente que faz parte do Reino de Deus, somos umacolônia do céu em território estrangeiro. Somos estrangeiros de passa-gem por este mundo.

2. Eleitos. Pedro fala disso bem no início da carta (1.2): “eleitos, segun-do a presciência de Deus Pai”. Não há povo de Deus por acaso.Somos o seu povo porque ele nos escolheu segundo o seu propósito.Não por sermos especiais, mas porque ele nos ama. E o amor de Deusnos torna especiais. Escolhidos também para um propósito? Com cer-teza, mas isto vem mais tarde (ver 1 Pe 2.9).

3. Pedras vivas, templo, sacerdócio santo. O grande texto aqui é 1Pe 2.5: “como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual (“tem-plo espiritual”, segundo a NTLH) para serdes sacerdócio santo (“dedi-cado a Deus”), a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis aDeus por intermédio de Jesus Cristo”.

Aqui Pedro junta, por assim dizer, duas metáforas: a do templo, feito depedras vivas, e a do sacerdócio, que atua dentro dele. Somos pedras vivasque Deus usa na construção de um templo espiritual. Somos pedras vivasporque nos achegamos à pedra que vive, Cristo (1 Pe 2.4). Somos tambémsacerdócio santo, um grupo de sacerdotes dedicado a Deus. Somos umgrupo de sacerdotes que pertence ao Rei (2.9). O sacerdote é um media-dor, alguém que representa outros junto a Deus. Na igreja a rigor nãoexistem sacerdotes, porque a igreja como um todo é sacerdotal. Esta foi e

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continua sendo a grande descoberta da Reforma. A igreja é sacerdotalantes de tudo em relação ao mundo, assim como o antigo Israel foi um reinode sacerdotes num mundo que no seu todo pertence a Deus (Êx 19.5-6).

4. Raça eleita, nação santa, povo de Deus. Este é um dos grandes textosde 1 Pedro: “Vós, porém, sois raça eleita, ....nação santa (“nação comple-tamente dedicada a Deus”), povo de propriedade exclusiva de Deus (“povoque pertence a ele”) (1 Pe 2.9). Este texto nos é tão familiar que nem nosdamos conta que “raça eleita”, “nação santa” e “povo de propriedade ex-clusiva” são epítetos aplicados, no Antigo Testamento, a Israel (Is 43.20;Êx 19.6; Dt 7.6). Temos agora um novo Israel, um novo povo de Deus.Novo em Cristo, mas tão povo quanto o antigo Israel.

5. Família de Deus, irmandade. A igreja é, no seu todo, família deDeus. Não é tanto a família que é igreja, mas a igreja é descrita comofamília. Deus é o Pai. Ele é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (1.3),mas é nosso Pai também (1.17). Ele nos deu novo nascimento, median-te a ressurreição de Jesus (1.3). Agora existe uma irmandade (2.17,“os irmãos”; 5.9). (Aliás, em todo o NT o termo “irmandade” apareceapenas nestas duas passagens de 1 Pedro.) O que caracteriza a irman-dade é o amor fraternal (1.22; 3.8).

6. “Ninho” do Espírito. Esta designação é derivada de 1 Pe 4.14: “Sobrevós repousa o Espírito da glória e de Deus”. Ou, como diz a NTLH, “oglorioso Espírito de Deus veio sobre vocês”. O Espírito repousou sobre oMessias (Is 11.2) e agora repousa sobre o povo do Messias. Fomosungidos com o Espírito no batismo e agora somos morada de Deus.

7. Cristãos. O termo “cristão” aparece três vezes no Novo Testamento:At 11.26; 26.28; 1 Pe 4.16. Ao que tudo indica, foram pessoas de forada igreja, e não os próprios cristãos, que começaram a usar essa pala-vra. (O mesmo aconteceu com “luterano”.) “Esses são aqueles queseguem a Cristo, são cristãos ...” Era usado em tom de deboche, assimcomo hoje muitas vezes se fala dos “crentes” e “evangélicos”. Cha-mar alguém de “cristão” era uma tentativa de ferir alguém, de fazê-losofrer. Ser cristão era o suficiente para alguém ser submetido a sofri-mento. (O irônico é que, depois disso, já houve tempos em que pessoassofreram por não serem cristãos ...) Pedro diz: “Se sofrer como cris-tão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus com esse nome”(4.16). Sou cristão. Este nome é uma honra.

NOSSA AGENDA: PARA COM DEUS

Agenda diz respeito a nossa atitude ou ação. Inicialmente veremosnossa agenda para com Deus. Depois, nossa agenda na igreja, na família,e no mundo em geral.

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1. Amor. Em 1 Pe 1. 8 diz: “... Jesus Cristo; a quem, não havendo visto,amais; no qual, não vendo agora, mas crendo, exultais com alegria indi-zível e cheia de glória ...” É a única vez que Pedro fala do amor aDeus, neste caso do amor a Jesus. Quem não lembra o famoso “Si-mão, filho de João, tu me amas?” (Jo 21) Pedro tinha visto Jesus Cris-to. Os cristãos aos quais se dirige, não. Mesmo assim eles o amam, ePedro faz questão de sublinhar este fato. E o amor aparece em primei-ro lugar, antes mesmo de mencionar a fé, que leva a exultação, agora, esalvação, no final.

2. Temor. Duas vezes Pedro menciona o temor a Deus: “Portai-vos comtemor durante o tempo da vossa peregrinação” (1.17) e “temei a Deus”(2.17). Em 1.17, o contexto deixa claro que se trata de temor diante deDeus, o juiz imparcial. A pergunta que fica é se este temor é temormesmo (uma atitude ou emoção) ou apenas respeito (no sentido dehonra dada a um superior). Interessante é que a NTLH prefere “res-peito” no primeiro caso (“durante o resto da vida de vocês aqui na terratenham respeito a ele”), e opta por temor em 1 Pe 2.17 (“temam aDeus”). Nossa tendência é suavizar esse “temor”, também na explica-ção que Lutero dá aos mandamentos (“Devemos temer e amar a Deus...”). Falamos em temor filial. De fato, em Cristo temos acesso ao Paie, como consta numa liturgia antiga, “ousamos dizer: “Pai nosso”. Portrás deste “Pai nosso” pode estar o “Abbá”, que alguém já sugeriufosse traduzido por “Paizinho”. Se isto parece afetivo demais, imagineo que dirá um muçulmano, para quem a forma como os cristãos sedirigem a Deus é familiar demais ou até desrespeitosa. Independente-mente do que pensam aqueles que não conhecem o evangelho, fica areflexão se não deveríamos tentar recuperar um pouco o senso de te-mor ou medo diante de Deus. Em outras palavras: Será que esseabrandamento do temor não é uma forma de dizer que não levamosDeus a sério? Será que levamos a sério a realidade do juízo? Estudio-sos de Lutero em todo caso afirmam que, quando o Reformador escre-ve “temer e amar a Deus”, na explicação dos mandamentos, aquele“temer” deve ser tomado no sentido de “ter medo”. Esse temor, quemo cria em nós é o próprio Deus, através de sua lei.

3. Fome espiritual. Em relação a Deus, esta é nossa agenda fundamen-tal. Pedro escreve: “Desejai ardentemente, como crianças (“crian-cinhas”) recém-nascidas, o genuíno (“puro”) leite espiritual, para que,por ele, vos seja dado crescimento para salvação” (2.2). Já houvequem lesse este texto como indicação de que Pedro estava se dirigindoa cristãos recém-batizados, concluindo que 1 Pedro era uma espécie desermão batismal. Isto é pouco provável. As crianças ou criancinhas,como prefere a NTLH, apenas entram como comparativo. Desejar o

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leite espiritual da palavra de Deus deve ser algo tão intenso quanto umacriancinha reclamar o leite materno. Por outro lado, espichando umpouco a metáfora das criancinhas, é oportuno perguntar como se chegaà maturidade espiritual. Talvez seja ousado dizê-lo, mas não se chegalá se não se estiver todo dia no começo do processo, reclamando o leiteespiritual, a exemplo de crianças recém-nascidas. Um Lutero que meditae ora o Catecismo é um belo exemplo disso.

4. Sacrifícios espirituais. Como grupo de sacerdotes dedicado a Deus,nossa missão é oferecer “sacrifícios espirituais agradáveis a Deus porintermédio de Jesus Cristo” (2.5). Trata-se de sacrifícios agradáveis aDeus em Cristo. Integram, por assim dizer, o ofício sacerdotal de Je-sus. São espirituais, não porque lhes falte o aspecto concreto ou mate-rial, mas porque são parte da era do Espírito Santo: são fruto da açãodo Espírito. Não são mais bois e ovelhas queimadas sobre um altar emJerusalém, mas são, entre outros, sacrifícios de louvor pela confissãodo nome de Jesus (Hb 13.15) e sacrifícios de intercessão e ação degraças (1 Tm 2.1-4).

5. Serviço. O texto aqui é 1 Pe 2.16: “Como livres que sois, não usando,todavia, a liberdade por pretexto da malícia (“para encobrir o mal”),mas vivendo como servos de Deus”. Livres, mas ao mesmo temposervos: este é o paradoxo da vida cristã. São Paulo diz o mesmo emRomanos 6 (ver os versículos 18 e 22).

Servos de Deus. Não seria melhor, “escravos de Deus” (NTLH)? Aquiparece que temos dificuldade com ambas as opções. Se “servos” parecemuito brando ou honroso demais, “escravos” parece muito duro ou desres-peitoso. O que somos, afinal? Verdade é que, à luz de nossa história deescravatura, nas Américas, o termo “escravo” traz consigo um sentido de“pessoa que pertence a alguém e lhe presta serviços forçados pelo resto davida”, que não está necessariamente associado ao termo grego doulos.Um doulos também pertencia a alguém e prestava serviços, mas esta nãoera uma situação irreversível. Um em cada três moradores do ImpérioRomano era um “liberto”, isto é, alguém que tinha sido “escravo”. Haviapessoas que voluntariamente assumiam essa condição de doulos. Isto ser-ve para mostrar que “servo” é também um título de honra. Nas parábolasde Jesus, as pessoas que trabalham com e para um rei são os seus “servos”(douloi). No Antigo Testamento, há vários “servos” de Deus. O próprioIsrael é servo de Deus. Jesus é o Servo do Senhor. Nós somos servos deDeus: a ele pertencemos, a ele servimos. É uma honra ser servo de Deus.

NOSSA AGENDA: NA IGREJA

1. Amor cristão mútuo, intenso e sincero. Três textos merecem des-

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taque: “amai os irmãos (na fé)” (1 Pe 2.17); “tendo em vista o amorfraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardente-mente (com todas as forças)” (1.22); “acima de tudo ... tende amorintenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de peca-dos” (4.8).

Pedro recomenda o amor. O amor é a receita para uma igreja que temproblemas, muito mais do que para uma igreja que supostamente vai bem.O melhor exemplo disso é 1 Co 13, o grande salmo do amor no NovoTestamento. Seria de esperar que aparecesse talvez na carta aos Filipenses,mas está mesmo numa das cartas dirigidas à problemática igreja de Corinto.Se Pedro fala em amor, isto não quer dizer que aquelas igrejas às quais sedirige tivessem os mesmos problemas que a igreja de Corinto. Se Pedrolembra o amor, isto se deve ao fato de ser ele um remédio para todas ashoras. Por sermos justos e pecadores ao mesmo tempo, nenhuma igreja émelhor que a dos coríntios.

Também a nós não faltam problemas. Nunca faltam atritos dentro daigreja, em parte, talvez, porque nosso alvo é equivocado. Voltamos nossas“armas” contra nós mesmos, quando o campo de ação é lá fora. É claro,quem causa o problema, assim pensamos, equivocadamente, são sempreos outros. Se é verdade que o amor cobre multidão de pecados, pensamosque isto se aplica aos nossos pecados, não aos dos outros. Na igreja, noconvívio dos irmãos da fé (sim, porque é fácil amar o irmão distante), oamor, que é paciente, que não anda em ciúmes, que tudo sofre, tudo supor-ta, nunca sai de moda.

2. Concórdia, compaixão, amizade, humildade. O texto base é 1 Pe 3.8-9: “Sede todos de igual ânimo (“tenham o mesmo modo de pensar ede sentir”), compadecidos, fraternalmente amigos, misericordiosos, hu-mildes, não pagando mal por mal”. Todas estas atitudes e ações, quesão fruto da fé, são uma outra maneira de expressar o amor. Cada qualmerece destaque. De momento, no entanto, queremos sublinhar ape-nas uma, que nos é tão conhecida: a concórdia.

A rigor, o termo “concórdia” não aparece no texto. Pedro fala em “ser deigual ânimo”. Expressa isto, no original grego, com uma só palavra, que,diga-se de passagem, aparece apenas aqui em todo o Novo Testamento:homóphrones (“tendo o mesmo pensamento”). É um tema que aparece, emlinguagem cognata, em outros lugares do Novo Testamento (ver Rm 15.5; 2Co 13.11; Fp 2.2; 4.2). Não significa, assim nos parece, que todos pensem esintam exatamente as mesmas coisas (o que seria impossível), mas que haja

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uma mesma mentalidade, um mesmo modo de pensar. Em outras palavras,harmonia ou, então, concórdia. Não necessariamente um uníssono, mas comcerteza um acorde harmônico. Em Cristo, a igreja é una. Esta unidade é umdom. O que falta, muitas vezes, é concórdia. Formas diferentes de pensar,doutrinas diversas, e outras coisas constantemente ameaçam a concórdia.Por isso, vale o lembrete: Sede todos de igual ânimo! Concórdia!

3. Serviço em palavra e ação. O texto é 1 Pe 4.10-11: “Servi uns aosoutros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros(“administradores”) da multiforme graça de Deus (“dos diferentes donsque receberam de Deus”). Se alguém fala, fale de acordo com osoráculos de Deus (“quem prega, pregue a palavra de Deus”); se al-guém serve, faça-o na força que Deus supre (“sirva com a força queDeus dá”), para que, em todas as coisas, seja Deus glorificado, pormeio de Jesus Cristo...”

Os dons de Deus são diferentes, porque sua graça, como diz Pedro, é“multiforme”. Isto significa que ela é variada ou tem diferentes formas. Pedroexemplifica com o dom da palavra e o dom do serviço, sem ser necessariamen-te exaustivo. Quem prega, que pregue a palavra de Deus. Quem serve, quesirva com a força que Deus dá. Fica implícito que não deve parar de servir,pois Deus há de suprir forças. Cada qual é despenseiro, mordomo, administra-dor dos dons que recebeu. E os dons foram recebidos para serviço.

As palavras de 1 Pe 4.10-11 são um princípio operacional de grandeimportância para a igreja cristã. Aplica-se à igreja local (que é, ao mesmotempo, a una sancta, pois, na medida que tem as marcas da igreja —palavra e sacramentos — nada lhe falta como igreja) e vale também, comcerteza, para o trabalho de várias congregações num nível paroquial, distritale sinodal. É possível que nem todas as congregações de uma área geográ-fica tenham uma representação de todos os dons. O mesmo vale para aigreja em âmbito nacional. Uma congregação precisa da outra e o serviçoé mútuo. Congregações, paróquias ou distritos que se isolam, impedem queesse princípio operacional do serviço mútuo seja colocado em prática. Quemse fecha em si mesmo, tanto impede a saída dos dons da multiforme graçade Deus para o serviço a outros quanto impede que os dons que outrosreceberam possam ser colocados a serviço em seu meio.

Deus quer promover e de fato promove entre nós uma boa administra-ção dos dons. Exemplo disso são os dons do ministério, ou seja, pessoasque se preparam para o ministério. Há congregações ou distritos que rara-mente são agraciados com um dom neste sentido. Já outras congregações

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têm sido agraciadas com tantas vocações que, se quisessem reter todosesses dons, teriam, quem sabe, mais de 20 ou 30 pastores! Louvemos aDeus pelos dons de sua multiforme graça!

NOSSA AGENDA: NA FAMÍLIA

A agenda na família se resume à atuação de esposas e maridos, ou seja,não há, em 1 Pedro, uma palavra dirigida aos filhos e aos pais. E a agendade esposas e maridos aparece no contexto da assim-chamada “tábua dosdeveres domésticos” (que ainda hoje é conhecida pelo termo técnicoHaustafel, que foi cunhado por Lutero) ou “regra do lar”. Em 1 Pedro,essa “tábua dos deveres” começa com uma palavra dirigida a todos, em2.17: “Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”.A partir daí, há uma palavra específica para os servos (2.18-25), as mulhe-res (3.1-6), os maridos (3.7), e uma conclusão em 3.8: “Finalmente, sedetodos de igual ânimo ...” Não se tem em vista, aqui, “relações de escolha”como, por exemplo, a amizade (ou seja, não há uma palavra dirigida aosamigos), mas apenas “estruturas” ou “instituições da sociedade”, tambémconhecidas como “ordens de preservação” do mundo. Queremos desta-car o que é dito às esposas, e o que é dito aos maridos.

1. Esposas: submissão, conduta, beleza interior. “Mulheres, sedevós, igualmente, submissas a vosso próprio marido, para que, se eleainda não obedece à palavra (“se ele não crê na mensagem de Deus”),seja ganho (“levado a crer”), sem palavra alguma, por meio do procedi-mento de sua esposa, ao observar o vosso honesto comportamento cheiode temor. Não seja o adorno da esposa o que é exterior, como frisadode cabelos (“penteados exagerados”), adereços de ouro, aparato devestuário (“jóias ou vestidos caros”); seja, porém, o homem interior docoração, unido ao incorruptível trajo de um espírito manso e tranqüilo,que é de grande valor diante de Deus”. (3.1-4)

Muito se poderia dizer a partir deste texto, mas como este é um con-gresso de leigos, embora tenhamos aqui bom número de servas também,quero limitar-me a apenas algumas observações.

Antes de tudo, uma palavra a respeito de submissão. É um tema quemuitos evitam, por ser considerado herança dos tempos patriarcais que jáse foram! Mas é um tema que está aí, bem à nossa frente, no texto. Nãopodemos ignorá-lo.

Para quem pensa que o Novo Testamento simplesmente reflete opatriarcalismo daquele tempo, onde as mulheres não tinham voz nem vez,

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lamento dizer que não é bem este o quadro que os historiadores da épocanos pintam. O próprio Novo Testamento permite um quadro diferente. Não éassim que hoje as mulheres se emanciparam e que, naquele tempo, o mundoera só dos homens. Naquele tempo também havia mulheres, e mulheres. Asmulheres gregas tendiam a ser mais apagadas ou confinadas ao lar; as mulhe-res romanas, por outro, eram ativas na sociedade. Exemplo disso é Lídia (At16), que morava ou, ao menos, estava em Filipos, uma colônia romana. Erauma empresária! Além disso, as palavras de Jesus em Mc 10.12 têm em vistao contexto romano: a mulher é vista repudiando seu marido!

E que dizer da submissão? Nosso problema é que ouvimos a palavra“submissão” a partir do prefixo “sub”, que imediatamente lembra, por as-sim dizer, um pé colocado sobre o pescoço de alguém (neste caso, a mu-lher). No original grego, onde o verbo é hypotássein, a ênfase está noradical tássein (“ordenar-se”), presente em palavras como taxionomia eoutras. O que Deus quer quando fala em “subordinação” é simplesmenteque as pessoas adaptem-se às instituições existentes, sem querer criar umanova. Se isto não soa convincente, pois acaba de qualquer forma, como sediz, “sobrando para as mulheres”, é bom lembrar que o mesmo verbo éusado para falar de Cristo, na passagem de 1 Co 15.28. No maior dia dahistória, o dia final, Cristo se sujeitará, isto é, subordinará ao Pai, para queDeus seja tudo em todos.

Uma segunda palavra a respeito do testemunho silencioso. Tudo indicaque havia mais mulheres nas igrejas a que Pedro se dirige, ao menos muitasmulheres cujos maridos não eram cristãos. Pedro as estimula a dar umtestemunho silencioso de sua fé. Por que isto? Porque pouco ou de nadaadianta falar muito, se as atitudes falam tão alto que os outros não conse-guem ouvir o que estamos dizendo! Como alguém observou, este “sempalavra alguma” não significa que seja “sem a Palavra”.

Mais um comentário, desta vez a respeito da questão dos enfeites (v.3).É preciso notar o contexto em que isto é dito. Está no mesmo contexto do“ganhar o marido sem palavra alguma”. Parece que Pedro está dizendo:Também os enfeites e as jóias não vão dar conta do recado, se não houver“honesto comportamento cheio de temor” (v.2). O versículo 4 confirmaisto ao apontar para a beleza interior, que é de grande valor diante de Deuse, por certo, também aos olhos do marido. Afinal, beleza exterior é algorelativo e passageiro.

2. Maridos: discernimento e respeito. “Maridos, vós, igualmente, viveia vida comum do lar (“a vida em comum com a esposa”), com

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discernimento; e, tendo consideração para com a vossa mulher comoparte mais frágil (“o sexo mais fraco”), tratai-a com dignidade (“deveser tratada com respeito”), porque sois, juntamente, herdeiros da mes-ma graça de vida (“a esposa também vai receber, junto com você, odom da vida, que é dado por Deus”), para que não se interrompam asvossas orações”. (3.7)

Pedro se dirige aos maridos, e subentende-se que sejam cristãos. Nãofala de direitos; ao contrário, pede discernimento e consideração. Fala damulher como “parte mais frágil”, mais fraca, ou, “o sexo mais fraco” (NTLH).Também isto provoca reações de toda ordem. Fala-se do “sexo frágil”, aoque uma canção gravada por Erasmo Carlos responde, dizendo tratar-se deuma “mentira absurda”. Acontece que o texto não diz bem isso. Fala emparte “mais frágil” ou sexo “mais fraco”. Ora, este é um fato biológico,comprovado, por exemplo, em todas as modalidades esportivas. Além dis-to, o “mais frágil” dá a entender que também o sexo masculino é frágil. Eé, de fato. Uma reportagem publicada na revista Veja, na semana do 15ºCongresso Nacional da LLLB (22 de agosto de 2001), sob o título “Ho-mens também choram”, dá conta que “o sexo masculino lidera as estatísti-cas mundiais de suicídio, de mortes violentas, de envolvimento com álcool.De cada quadro dependentes de drogas em todo o mundo, três são homens.Eles vivem, em média, dez anos menos que as mulheres. E também sãomais acometidos por doenças cardiovasculares, crises de hipertensão, dia-betes e obesidade”. (p. 118)

Ter consideração pela mulher como parte mais frágil é outra forma defalar de amor (ver Ef 5.25). Pedro justifica esse respeito à esposa com ofato de tanto o esposo cristão quanto sua mulher serem, juntamente, herdei-ros da mesma graça de vida. Isto lembra Gl 3.26-28. Se a gente leva emconta que, naquele tempo, em muitos lugares a mulher não era consideradaherdeira, esta afirmação de que a mulher também é “herdeira da mesmagraça de vida” deve ter calado fundo na alma daquela gente.

Pedro tem ainda, ou, melhor, começou sua Haustafel com uma palavradirigida aos servos (2.18-25). Estes eram, pelo que o termo grego oikétesdá a entender, escravos ou servos domésticos. Faziam parte da grandefamília, isto é, moravam e trabalhavam na casa de seu senhor. Já explica-mos, acima, que ser escravo naquele tempo não era exatamente a mesmacoisa que ser escravo nas Américas. Interessante nesta palavra aos ser-vos é que o apóstolo prevê a possibilidade de alguém sofrer injustamente,por motivo de sua consciência para com Deus (v.19). Este é um eco dafamosa clausula Petri ou o “princípio petrino” de At 5.29: Há momentos

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em que obedecer a Deus é mais importante do que obedecer a homens,mesmo que isto custe sofrimento.

Não há menção de senhores, aqui em 1 Pedro. Será que isto quer dizerque a igreja era feita só de escravos? Embora muitos pensem que o cristi-anismo era um movimento das classes pobres e que apenas “vingou” noImpério Romano porque era a chance de ascensão social dos escravos, oNovo Testamento não permite esta leitura rasante ou superficial da situa-ção. Aqui em 1 Pedro, no entanto, este parece ser o caso: Não há senho-res, só escravos. Agora, é preciso ter cautela. Argumentar com o silêncioé perigoso. Afinal, o texto também não cita os filhos, o que não significaque a igreja só tinha pais ou gente adulta!

NOSSA AGENDA: NO MUNDO EM QUE VIVEMOS

Além de destacar a importância da santidade (1.14-14), do viver para ajustiça (2.24), e da prática do bem (2.20; 3.13,17; 4.19), Pedro enfatiza otestemunho diante daqueles que não são cristãos.

1. Testemunho por atitude. O testemunho, como disse alguém certavez, é como um avião que, para voar, precisa de duas asas. Existe otestemunho da vida, das atitudes, e também o testemunho em palavra.Do testemunho da vida Pedro trata ao longo de toda sua epístola (vertambém 1 Pe 2.11-12).

2. Testemunho em palavra. Existe também o testemunho em palavra, eé para este que nos voltaremos agora. Pedro trata disso em 2.9: “a fimde proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para asua maravilhosa luz”. Este “proclamar” com certeza envolve palavras.Mas a passagem que está mais diretamente relacionada com aevangelização é 1 Pe 3.14b-16: “Não vos amedronteis, portanto, comas suas ameaças, nem fiqueis alarmados (“preocupados”); antes,santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando semprepreparados (“prontos”) para responder a todo aquele que vos pedirrazão da esperança que há em vós (“que expliquem a esperança quevocês têm), fazendo-o, todavia, com mansidão e temor (“com educa-ção e respeito”), com boa consciência (“consciência limpa”).

O grande destaque deste texto, que se relaciona diretamente com olema deste Congresso, “E o levou a Jesus”, é aquele “estando sempre pre-parados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperançaque há em vós”. Em que sentido deveríamos entender este “estar prepara-do”? Seria apenas um estar disposto ou ter vontade de fazer algo? Certa-mente que não. Estar preparado subentende que se tenha tido preparação

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para responder ou fazer uma defesa (o termo grego é apologia) da razãoda esperança que se tem. Como aquele era um ambiente hostil, Pedroencoraja os cristãos: “Não vos amedronteis!”

Neste ponto, cabem algumas reflexões sobre o “dar razão da esperançaque há em nós”. Em primeiro lugar, é bom notar que esta palavra não sedirige direta ou exclusivamente aos pastores (estes só entram em cena nocapítulo 5). Nossa tendência é olhar para os apóstolos de Jesus e pensarque foram grandes heróis solitários. Isto é um equívoco. Paulo tinha umaequipe de colaboradores. Pedro escreveu esta carta (1 Pedro) com a ajudade Silas (5.12). Os grandes missionários da igreja antiga foram aquelescristãos que nós hoje chamamos de leigos. Naquele tempo, como aindahoje, há momentos em que o testemunho destes, em casa, no trabalho, etc.,é bem mais eficaz do que o sermão do pastor na igreja.

Talvez alguém pergunte: Por que nos é tão difícil testemunhar? É pos-sível que tenhamos um problema de auto-imagem. Achamos que não so-mos o tipo de pessoa talhada para isso. Nos sentimos “verdes”, ainda nãoprontos para falar.

É possível que tenhamos idéias errôneas a respeito dos outros. Nossatendência é colocar as pessoas em categorias e generalizar. Talvez pense-mos assim: “Todos aqueles que não fazem parte da igreja ou não freqüentamuma igreja já foram confrontados com o evangelho e o rejeitaram”. Outropreconceito: “Gente rica ou em posição de destaque tem menos chance deresponder ao evangelho do que gente pobre e mal de vida”. Mais um: “Genteidosa está mais aberta ao evangelho do que pessoas recém-casadas”.

Outro fator é o medo. Existe o medo de passar vergonha. Nossa tendên-cia natural é fugir de situações em que somos rejeitados ou ridicularizados.Existe também o medo de perder a discussão e o medo de fracassar. Osucesso de grandes evangelistas, muitas vezes usado para nos entusiasmar, éo modelo que vira lei, pois nos acusa em nosso fracasso. Neste ponto é bomlembrar que não podemos assumir o papel de Deus (querendo provocar aconversão), nem a responsabilidade do outro (caso ele rejeite o evangelho).

Se temos tido nossos fracassos, se negamos conhecer o Salvador, ébom lembrar que Pedro não foi diferente. Também ele teve altos e baixos.A grande comissão de Cristo (Mt 28.16-20) foi dada, não num contexto defé heróica, mas num contexto onde “alguns tiveram suas dúvidas” (Mt 28.17).Como disse alguém, este pequeno detalhe ajuda a humanizar a grande co-missão. Além disso, não se pode perder de vista a graça de Deus, que épara nós também.

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Talvez nos perguntemos quanto ao conteúdo de nosso testemunho. Semdúvida, é importante saber verbalizar a mensagem. Além disso, convémater-se ao essencial, isto é, de fato dar razão da esperança que há em nós.Para falar do que cremos, não existe um só roteiro, perfeito e imutável. Oroteiro do Credo, que confessamos no culto, é, talvez, o melhor que pode-mos usar.

Para estarmos preparados, ou, então, melhor preparados, podemos nostreinar mutuamente. A congregação pode, neste sentido, ser a nossa esco-la. Temos ali um “ambiente protegido”, uma área fechada semelhante aum terreno baldio onde se aprende a dirigir um automóvel. Ali, através deestudos, dramatizações, etc. podemos nos preparar melhor para “dar razãoda esperança que há em nós”. Tudo para que possamos viver à altura dolema “E o levou a Jesus!”

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SENTIDO E CONTEÚDO NA PROCLAMAÇÃO CRISTÃ:SUBSÍDIOS PARA UMA REFLEXÃO A PARTIR DA

LEITURA EM LUTERO NO 1º CAPÍTULO

DO EVANGELHO DE JOÃOPaulo P. Weirich*

* Rev. Prof. Paulo P. Weirich, S.T.M., é professor de Teologia Prática no Seminário Concórdia ena Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). No Seminário, Prof. Paulo Weirich exercetambém as funções de Coordenador de Pré-estágio. Este artigo é resultado da aula inauguralapresentada à comunidade acadêmica do Seminário em 26 de fevereiro de 2002.

INTRODUÇÃO

1. A palavra proclamada tem sido essencial à vida da igrejaNão é possível imaginar a fé cristã, tal como aconteceu na história, sem o

concurso da palavra proclamada. O anúncio da palavra é considerado entreo povo como o aspecto que dá conteúdo e caráter ao culto da igreja. Entre-tanto é também nesse aspecto da centralidade da palavra que a fé cristãparece ter sido mais vulnerável e atacada. As tentações de Jesus no desertodemonstram isso. Cada tentação, na verdade, implicava o pressuposto bási-co: Qual é o verdadeiro conteúdo ou sentido do que se diz? É verdade que apalavra tem mesmo um sentido claro e irreformável? O que se diz e se acre-dita é realmente fiel ao que foi dito? As palavras não poderiam significar algomais do que isso que se supõe? A relação entre palavra e conteúdo pode ounão ser questionada? O que dá conteúdo ao texto bíblico?

A constatação da dubiedade de sentido nas palavras foi realmente aquestão central em qualquer debate diante da infiltração de desvios e here-sias. Entre os luteranos, talvez seja possível apontar para a Fórmula deConcórdia como o testemunho mais vivo do debate sobre a possibilidade deuma palavra trazer em si sentido que seja real, verdadeiro e confiável.

O século XX, de cujos pressupostos somos herdeiros, foi testemunha,talvez, do ataque mais contundente e radical na tentativa de afirmar que apalavra não é instrumento confiável para a transmissão e comunicação deconteúdos válidos.

Entretanto, na virada do século XXI a igreja luterana insiste em dizer ocontrário, isto é, a palavra não somente é instrumento válido como é oinstrumento que Deus preparou para o anúncio da palavra de salvação até

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a revelação final da palavra. A palavra que a igreja anuncia é a palavra quedevolve ao ser humano o seu lugar na criação e o acompanha na direção dasua nova criação. Para tanto, a igreja depende da palavra.

Lutero, que foi instrumento de Deus na preparação da caminhada daigreja nos últimos quase cinco séculos em direção à modernidade, aindacontinua sendo o referencial para aquele que se apresenta como mensagei-ro ou candidato a mensageiro dessa palavra no relativismo da pós-modernidade.

Ebeling inclusive define Lutero como um acontecimento lingüístico e serefere a ele como gênio lingüístico.1 Mais adiante afirma: “A obra de Luterovisava a palavra”.2

Esse estudo procura, a partir de uma breve leitura de Lutero na suaexposição do Evangelho de João, capítulo 1, alguns indicativos que demons-tram a necessidade de uma permanente releitura em Lutero e também oestímulo de saber que a partir do seu labor teológico na palavra para umapermanente renovação na proclamação da Palavra. Ao mesmo tempo ficao desafio a que em momento nenhum a igreja e aqueles nela responsáveis,relaxem a vigilância e até luta para que seja instrumento fiel da proclama-ção que Deus tem para o mundo.

A PERGUNTA PELO SENTIDO NA PALAVRA

2. A linguagem como veículo de conteúdoEm 1973, Joseph A. de Vito, publicou Language: Concepts and Pro-

cesses, reunindo artigos de autores como Noam Chomski, Bertrand Russel,Hayakawa, George Orwell e outros, representativos de diversas áreas doconhecimento mas que em algum momento da sua trajetória fizeram a sipróprios a mesma pergunta, uma pergunta que, para muitos, poderia pare-cer ociosa e supérflua. Para eles, entretanto, tornou-se um dos questio-namentos essenciais na caminhada do ser humano em busca da auto-com-preensão definitiva. A pergunta se desdobra: Qual a relação da linguagemcom o pensar? Qual a função da linguagem na comunicação? Até queponto podemos comunicar sentido naquilo que dizemos?

Na virada para o século XX o mundo ocidental se questionava sobre se ahumanidade realmente poderia encontrar sentido para a existência humana. Ascertezas de um certo cristianismo dependente dos ditames da autoridade eclesi-

1 Gerhard Ebeling, O Pensamento de Lutero (São Leopoldo: Sinodal, 1988), 20.2 Idem, p. 33.

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ástica, a convicção implícita na filosofia de que o homem é a medida de si próprioe que a resposta de tudo era somente uma questão de tempo, a certeza de que aciência e a razão humana trariam a cura e o novo caminho para o ser humano,essas e outras certezas semelhantes estavam sendo questionadas. A crescenteintensidade da comunicação, se a princípio dá esperanças de apressar o adventode uma revelação final de libertação da sociedade humana, começava a ser ques-tionada nas suas raízes pondo em dúvida o nascente pressuposto da modernidadede que a linguagem da ciência seria a linguagem última e definitiva.

Os cristãos, por sua vez, que na virada para o século XX intensificaramo esforço missionário para a conversão dos que eram chamados de pagãose até ignorantes, também começavam a questionar-se sobre as estratégias,o progresso e os pressupostos ocidentais que, vistos como sinal de sobera-nia cristã sobre o mundo, entretanto começavam a esbarrar naquilo que seconhece como as barreiras transculturais em que muitos pressupostos vis-tos como óbvios e até bíblicos passaram a ser questionados.

Em 1977, a Universidade de São Paulo publica um livro que reúne tex-tos de Jean Ladriere, filósofo e lingüista francês, intitulado A Articulaçãodo Sentido, ou como Ladriere preferiria tê-lo chamado: “Discurso Cientí-fico e Palavra da Fé”. O autor parte da pergunta fundamental: Comopode a linguagem significar? Que é, portanto, a significação? Até que pon-to conteúdos podem ser realmente traduzidos em linguagem mutuamentecompreensível? A linguagem da fé, vista por cristãos como a linguagem dosignificado absoluto é vista como “a formulação de uma ingênua represen-tação da realidade”3 que necessita ser explicada ”no quadro de uma teoriacientífica adequada”.4

Em 1978, David Hasselgrave, teólogo e missionário protestante, enve-redava por esse campo de pesquisa com a 1ª edição de CommunicatingChrist Cross Culturally. Após 15 tiragens, em 1991, este trabalho recebeuuma segunda edição ampliada. Este material foi traduzido no Brasil e publi-cado em três volumes em 1996. A presente leitura tanto se reporta à 1ªedição original como à 2ª edição em sua tradução brasileira.

A questão do sentido no conteúdo da proclamação cristã entretanto nãoé novo. A linguagem é representativa de um sentido absoluto? Existe umalinguagem apropriada da fé? A fé e o divino podem ser expressos emlinguagem humana ou naquilo que Lutero chama a linguagem da razão? Em

3 Jean Ladriere, A Articulação do Sentido (São Paulo: EDUSP, 1977), 6.4 Ibid.

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que sentido a linguagem da fé depende do respaldo científico da lingüísticaou linguagem científica para revelar conteúdos e fazer sentido?

A fé cristã é fé proclamada para ser ouvida (Rm 10). “Bem-aventura-dos são os pés daquele que anuncia boas novas” (Is 52.7) é uma daspalavras bíblicas que aponta para a nobreza e a sublimidade da função dosporta-vozes da palavra. Nas palavras conhecidas de Lutero, “o ofício maisnobre sobre a face da terra”.

A porção rural brasileiro-germânica da Igreja Evangélica Luterana doBrasil (IELB) já não é a comunidade fechada de códigos implícitos dealguns anos atrás. Anunciar a palavra hoje, em qualquer região do Brasil,modificou-se tremendamente. Qual o sentido da palavra família nas perife-rias das metrópoles, nas pequenas cidades e no interior? O que significajustificação pela fé, conceito tão caro para luteranos? Qual é a dimensão equais são os limites da tarefa de anunciar a palavra de Deus que faz sentidopara o ser humano agora?

Se realmente a proclamação da palavra é a tarefa mais sublime e elevadasobre a terra, a ela também se agrega a dificuldade que identificamos. Essadificuldade não pode ser sublinhada suficientemente. Entretanto, a perplexi-dade de quem vê as dificuldades como intransponíveis no estágio em queestamos e que leva muitos a questionar o sermão tradicional como forma decomunicação, estão mais nos pressupostos de quem não vê na linguagem dafé uma parceira na articulação do sentido. Esse breve ensaio se vale dotratamento dado por Lutero ao conceito Palavra de Deus especialmente nasua exposição do primeiro capítulo do evangelho de João, onde Lutero con-fronta a linguagem da razão e a linguagem da fé, denunciando os pressupos-tos e afirmando a sublimidade da tarefa do pregador da Palavra.

3. Palavra e conteúdo: a palavra é Deus.Jaroslav Pelikan, um dos editores das obras de Lutero em língua inglesa,

Luther’s Works, acrescenta-lhe um volume do editor, que ele denominouLuther the Expositor. Em definindo a natureza desse volume, Pelikanjustifica a necessidade desse trabalho ao dizer que as introduções a cadatexto de Lutero na coleção, especialmente os textos de interpretação bíbli-ca, estão limitados ao momento histórico do texto. Estas introduções histó-ricas não esgotam a informação a que o leitor tem direito caso queira ler asobras de interpretação (bíblica) de Lutero de maneira inteligente.”5

5 PELIKAN, Jaroslav. Luther the Expositor. In: Luther´s Works: Companion Volume, Jaroslav Pelikan, ed.(SaintLouis: Concordia Publishing House, 1959), ix. Doravante Luther´s Works será abreviada por LW. As tradu-ções, nesse ensaio, se não indicado de outra maneira, são traduções livres do autor a partir das obras citadas.

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No capítulo 3 desse volume, Pelikan se debruça sobre a expressão Pa-lavra de Deus para sublinhar o esforço interpretativo de Lutero. Pelikan, apartir de Lutero, propõe que a história da teologia é a história da manifesta-ção pública de Deus através da pregação da palavra. Lutero é alguém quefaz teologia quase contra a vontade porque vê no seu trabalho acadêmico aresponsabilidade de levar a igreja a pregar a palavra com clareza epureza.Todo o esforço teológico é validado enquanto esforço que visa cla-rificar essa manifestação pública:

A História da teologia é, evidentemente, o aspecto mais em evidência dahistória do Cristianismo na qual a interpretação das Escrituras exerceu pa-pel proeminente – especialmente se a história da teologia, como é de espe-rar, inclui a história da pregação cristã.6 Em O Pensamento de Lutero7

Ebeling afirma que a docência acadêmica ...intimamente ligada à prega-ção, foi o ponto de partida e o rumo da Reforma. Althaus abre o capítuloDie Heilige Schrift dizendo: A Palavra é, para Lutero, acima e além detudo, palavra oral, isto é, a viva proclamação para a atualidade. Mas épalavra comprometida (gebunden) com a palavra apostólica. 8 Com essanota de abertura, Pelikan procura mostrar como é difícil e ao mesmo tempofascinante o esforço de classificar Lutero como teólogo. Será ele um siste-mático? um exegeta? historiador? Um pregador circunstancial? De queescola? Todo esforço esbarra no próprio Lutero, que insiste em negar eimpedir qualquer sucesso a quem se aventura nessa empreitada.

Pelikan parece indicar em Lutero uma dimensão teológica que se recu-sa a ser limitada por um sistema ou sistematização que transformasse arevelação divina em axiomas que pudessem ser repetidos em todos os tem-pos. Lutero parece ter se deixado levar para além da tentativa comum aqualquer ser humano de cativar para si e dominar a revelação divina apartir da sua compreensão pessoal. A revelação de Deus foge ao controlede Lutero e Lutero não se ressente de ser dominado pela revelação.

Lutero também não limita o ser humano. Ele contempla e segue o ser humanosem tentar reduzi-lo a um estereótipo teológico ou filosófico. O ser humanotambém está para além do domínio imediato de Lutero. Cada ser humano está emconexão imediata com Deus a partir da criação, conexão essa que é única eindividual. Essa conexão entre Deus e o ser humano está na palavra.

6 Idem, p. 5.7 Gerhard Ebeling, O Pensamento de Lutero (São Leopoldo: Sinodal, 1986), 20 e 33.8 Paul Althaus Die Theologie Martin Luther’s (Gütersloher Verlagshaus, 5. Auflage, 1980), 71 ss.

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Werner Elert aponta para o fato de Lutero dizer que escrever livros arespeito da fé não é próprio. O evangelho é por si só um fenômeno da procla-mação e essa, oral. Como, entretanto, escrever tornou-se necessário, muito seperdeu da proclamação original e nos questionamos sobre o seu sentido9.

Por essa razão a revelação de Deus, a Palavra de Deus, é para Luteromais do que um texto a ser dissecado. A Palavra é o próprio Deus emmanifestação pessoal. A Palavra não é meramente uma opção de Deusdiante da necessidade de comunicar-se, tal como nós optamos entre escre-ver ou falar, ou gesticular. Em sua explanação de João, Lutero diz: “Temosde compreender que a Palavra de Deus é totalmente diferente da minha ouda vossa palavra”.10

Mais adiante Lutero acrescenta que a Palavra estava em Deus mesmo antes dacriação e esta palavra era Deus. Assim como as fortes emoções de um homem setraduzem em sons e são inseparáveis dessa mesma emoção, assim Deus estavagrávido da Palavra A palavra da boca somente tem substância quando é a palavrado coração. Caso contrário ela não tem sentido.11 Lutero afirma:

Deus, em sua majestade e natureza, está grávido de uma pala-vra ou assunto que ele tem consigo mesmo na sua essênciadivina e que reflete os pensamentos do seu coração. Isto é tãocompleto, excelente e perfeito como o próprio Deus. Ninguém,além de Deus mesmo, vê, ouve ou compreende esta conver-sação. Essa palavra, esta conversa do coração de Deus é oseu filho que Deus carregou no ‘seu seio ou coração’.12

Ao ver na Palavra o próprio Deus como gerado de Deus, como umagravidez divina (sic), Lutero confere uma dimensão diferente à própria dou-trina da Trindade.13 E assim faz da Bíblia algo mais do que um registro dasidéias ou atos de Deus. A Bíblia, no seu conteúdo, está para além da lingua-gem que a ciência humana possa abarcar. Em conseqüência, a pregação doevangelho, ao trazer Deus para a realidade “escapa à compreensão huma-na”. Não podemos compreender o que se passa no coração de Deus.14

Quando Deus fala e se manifesta, rompendo o silêncio, a Palavra falada é opróprio Deus manifestando a sua natureza e o seu mais íntimo ser. A Palavra e

9 Werner Elert, The Structure Of Lutheranism (St. Louis: Concordia, 1962), 188.10 LW 22, 8.11 Ibidem.12 LW 22.13 LW 22, 15.14 LW 22, 8 e 9.

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ação estão inseparáveis de Deus. A história estava em Deus antes de serdesencadeada pela Palavra. Os acontecimentos que a história registra são porisso o sinal e registro da presença de Deus como gerada e sendo gerada dele. Opecado não somente mudou o homem e o mundo. O pecado mudava por isso opróprio Deus, na medida em que alterava a sua palavra. A palavra era Deus.Razão porque Deus intervém. E a intervenção que se mostra na pergunta “Ondeestás?” (Gn 1.9) é Deus presente revelando que a sua natureza não sofreu amudança e também não pode ficar alheio ao que se passou. Ele permanece omesmo. Esse “novo mundo” que Adão e Eva desencadearam ainda é o mundoque nasceu da Sua palavra, nasceu do Seu coração, numa extensão de Si próprio.Essa fidelidade de Deus ao seu mundo também é fidelidade a Si próprio, fidelida-de essa manifestada no Verbo que vem ao mundo e nele revela quem é Deus equal a sua relação com o mundo e com o Verbo gerado.

Lutero afirma: “João mostra que havia em Deus um Discurso ou Palavraque ocupava Deus na sua totalidade, que era o próprio Deus, uma palavra tãogrande quanto o próprio Deus. Realmente a palavra é o próprio Deus.”15

4. A Palavra é ação de Deus.Em Lutero Deus não é apático, ausente ou indiferente. Deus está per-

manentemente ocupado com pensamentos e palavra. E como estes são opróprio Deus, tudo que Deus pensa ou fala é conseqüente. O discurso deDeus não especula nem vagueia a esmo. Isto é contra a sua natureza. Suapalavra é, portanto, a sua ação, porque na palavra ele está e atua.

A ação de Deus é desencadeada pela palavra, e somente essa desenca-deia a ação criadora e, por isso, revela a sua natureza. E esta se manifestano ato da encarnação da palavra. Tudo que Deus quis mostrar do seu ínti-mo, da conversa que mantinha intensa consigo mesmo desde a eternidade,o discurso eterno de Deus, a sua natureza própria, sua vida interior, estámanifesto na sua palavra encarnada. Lutero resume dizendo:

O que aprendemos até agora dos versículos de abertura dacarta de S. João é que o evangelista definiu nosso queridoSenhor e Salvador Jesus Cristo como a palavra do eterno Paie, com ele, como verdadeiro Deus desde a eternidade. . . .Além disso, essa Palavra é também a luz e a Vida do homem.E desde o princípio essa palavra sempre falou pela boca dospatriarcas e profetas até o tempo de João Batista. Essa pala-vra não tem princípio nem fim.16

15 LW 22, 12, 13, 1516 LW 22, 37

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Dessa forma, a Escritura Sagrada é vista por Lutero sob dois aspectos.Ela é registro ou imagem fiel de Deus e, no dizer de Lutero, o próprio Deuse proclamação fiel a Deus. Não são os profetas que testificam de Cristocomo se alguma coisa dependesse deles ou que fossem eles detentores dealgo. A revelação não é revelação dos profetas. Inversamente, os profetassão os instrumentos que a revelação, a palavra de Deus, utiliza para estarpresente pessoalmente no mundo e no seu povo. Ouvir profetas, portanto,significa não se deixar conduzir e levar por pessoas, porque no profeta eatravés do profeta fala Deus. Esse Deus é Palavra. Essa palavra é Cristo.

Em Lutero esse conceito é fundamental para a pregação Quando se dizque Deus é o autor da Escritura, não se entenda autor como alguém queredige uma mensagem ou pinta um quadro. Tanto Cristo como a palavrasão gerados por Deus e por isso ambos espelham fielmente Deus, como umfilho reflete qualidades e atributos característicos do pai (Jo 16.15).17

Em um artigo intitulado Christus, der Herr der Schrift, GottfriedHoffmann18 encontra em uma das edições do comentário de Lutero aos Gálatasaquilo que, no seu entender, era o pressuposto mais presente e representativoda teologia da palavra em Lutero. Lutero argumenta a partir da hipóteseimpossível. Mesmo que os adversários pudessem trazer argumentosirrefutáveis da Escritura Sagrada a favor da sua teologia das obras e queLutero não mais tivesse argumentos da Escritura a contrapor, mesmo então

... escolho dar a honra somente a Cristo e crer nele em vez deceder a todas as passagens bíblicas que eles pudessem alinharcontra a doutrina da fé para estabelecer a justificação pelasobras. Nesse caso deve-se responder-lhes simplesmente isto:Aqui está Cristo e lá estão os testemunhos da Escritura sobreleis e sobre as obras. Entretanto Cristo é Senhor sobre a Escri-tura e todas as obras, bem como ele é o Senhor sobre céus eterra, sobre o sábado, o templo, a justificação, a vida, a ira, pe-cado, morte e tudo o mais, e é disso que Paulo, seu apóstolo,prega, de que ele se tornou pecado e maldição por mim.19

Com isso Lutero não está contrapondo Cristo e Escritura, mas está mos-trando sua coerência diante do fato de que a Escritura é a manifestação queDeus decidiu fazer de si próprio. A Escritura acaba sendo para Lutero dessamaneira o próprio Deus. Uma vez que aquilo de que Deus estava grávido

17 LW 22, 14, 19-20.18 Gottfried Hoffmann, “Christus, der Herr der Schrift” . Lutherische Theologie und Kirche, 12 (Dez. 1988): 122.19 Ibidem.

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desde a eternidade (para permanecermos na figura de Lutero) se manifestoupor voz dos profetas, nada na Escritura pode ser visto sob outra luz e nadapode contradizer, ferir ou diminuir o sentido dessa manifestação.

5. Cristo é o sentido da ação de DeusNenhuma passagem da Escritura pode ter luz própria. Somente Cristo

é luz que ilumina e revela o sentido de cada parte da Escritura. O pressu-posto, se queremos utilizar essa linguagem, é sempre Cristo, sua palavra esua obra, seus próprios pressupostos e fins. Cristo, dessa maneira, é nãosomente o objeto da Escritura, mas também o seu autor, seu princípio e seufim (Jo 5.39; Rm 10.4; Ap 22. 9-10,13).

Por isso as Escrituras não podem se contradizer. Elas não são o resulta-do de muitos autores, mesmo que muitos a tenham escrito. Os textos nãotêm autoridade própria porque sua autoridade depende do seu autor. E oautor único é Deus numa dimensão que foge à razão natural: Deus gerou apalavra, a sua única palavra. Deus não tem outra palavra. Desta palavraparte e para ela converge toda a Escritura. Ter a fé em Cristo resulta emcompreensão final da Escritura. Em Lutero, a fé abre o entendimento parao conteúdo da escritura permitindo ver o universo sob uma nova perspecti-va. Nada além da fé pode compreender isso”.20

Como Deus não registrou de outra maneira a sua Palavra, a Escrituratem as qualidades, atributos e autoridade que lhe conferem o seu autor.Dessa maneira, para que Cristo não seja destruído, a unidade de toda aEscritura não pode ser ferida. Romper a Escritura, levando a contradizer-se, ou admitir que ela não traz a unidade da pessoa de Cristo em alguma desuas partes, significa tirar dela a pessoa de Cristo, o próprio Deus, reduzin-do-a a um texto qualquer.

Lutero reconhece que o texto das Escrituras está sujeito à leitura quedele se faz. O texto, nesse sentido, é um servo, que depende da orientaçãoque se lhe quer dar ou se lhe quer negar. Se sabemos que seu autor e fimé Cristo (Jo 5.39), essa intenção não é oculta mas sempre esteve claramen-te expressa, resta, então, concluir que as contradições e enganos a elaatribuídos estão dependentes dos pressupostos e enganos com que as pes-soas dela se aproximam. Enquanto o ser humano se fecha para o sentidoque a Escritura traz em si mesma, esta lhe permanece um livro fechado echeio de contradições. Por essa razão Lutero vê a Escritura como um ser-vo a serviço de Cristo, cuja autoridade está na relação direta de sua fideli-

20 LW 22, 8.

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dade a Cristo. Quando então Lutero infere que é palavra de Deus aquiloque na Escritura promove Cristo, da mesma forma Lutero entende quenada na Escritura tem outra intenção a não ser promover Cristo, sua pes-soa e sua obra com vistas à fé.

Elert cita Lutero, argumentando sobre o objeto da fé nessa relação detranscendência: “A Palavra apreendo com o meu intelecto; mas a adesãoa essa palavra é a obra do Espírito Santo.” 21

A PERGUNTA PELO CONTEÚDO DA PROCLAMAÇÃO DA IGREJA

6. A presença real de Deus na proclamação fiel da Sua PalavraRobert Kolb, em Confessing the Faith, lembra que em Erasmo já se

percebia uma leitura da Escritura numa perspectiva descritiva, mais narra-tiva do que reveladora de Deus, permitindo ao intérprete manter-se emcontrole sobre o texto e protegendo-se da reação da fé.22 Essa“domesticação acadêmica” do texto teve o contraponto dinâmico de Lutero,como se os filósofos gregos e os profetas do AT estivessem em batalha.Lutero não aceitava que a Palavra de Deus pudesse ser analisada e dissecadada mesma forma em que a razão pode analisar objetos da criação. Ele criaque a Palavra de Deus deve simplesmente ser proclamada. “A reação dafé é diferente da reação da razão.”23

Uma diferença fundamental entre um enfoque e outro está na procla-mação. Herrmann Sasse abre o livro Sacra Scriptura com a declaração:“Os deuses são mudos, mas o Senhor fala. O Deus da Bíblia é o Deus quefala... Ninguém pode compreender a doutrina do falar de Deus se nãoestiver claro para ele que o falar é um marco que divide o único e verdadei-ro Deus dos demais cuja adoração é condenada no Primeiro Mandamen-to.”24 Afirma também que a Igreja Luterana fez da doutrina da justificaçãoa doutrina central da Escritura, não como uma teoria doutrinária, mas “aocontrário, toda a vida do antigo luteranismo, a mensagem da sua pregaçãoe ensino, sua liturgia e sua hinódia clássica oferecem uma compreensãounificada dessa compreensão do evangelho” porque foi isto que Deus fa-lou.25

A Escritura Sagrada adquire para o luteranismo essa dimensão de iden-tificação com Deus na mensagem que ela proclama. Deus é inseparável

21 Elert, 84.22 Robert Kolb, Confessing the Faith (St. Louis: Concordia, 1991), 26.23 Idem, p. 26-27.24 Herrmann Sasse, Sacra Scriptura (Erlangen: Verlag der Ev. Luth. Mission, 1981), 11.25 Ibidem.

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da Escritura. A própria personalidade de Deus, a sua natureza, se fundemno texto sagrado, porque esse texto, no dizer de Lutero, é Deus. Será issoum exagero? Terá Lutero, no seu esforço de estabelecer a autoridade naigreja, ido longe demais na sua compreensão de autoridade bíblica?

A ortodoxia luterana teve de lidar com essa postura luterana diante daPalavra, na medida em que alguns teólogos procuraram acomodar umavisão racional, mais Erasmiana, no dizer de Kolb,26 da revelação de Deus.Em The Theology of Post-Reformation Lutheranism, Robert Preus, quan-do aborda a questão da unidade da Palavra, cita Quenstedt: “O ato deescrever, tal como o ato de pregar, é incidental à Palavra de Deus e nadamais é do que um aspecto externo (patós) da Palavra, um modo auxiliar deproclamar e comunicar a Palavra, que não altera a essência da Palavradivina.”27 E Preus conclui: “A assim chamada palavra profética e a pala-vra que está em Deus jamais podem ser dissociadas ou separadas do logosupostatikos, o filho eterno através do qual Deus fala e age.”28

Para manter esse trabalho direcionado para os objetivos propostos inici-almente, e dado o espaço dessa apresentação, não será possível acompa-nhar os questionamentos que essa posição de Lutero levantou e nem asdiferentes seqüências de pensamento que trouxe. Se por um lado repôs aEscritura como única fonte e norma de doutrina, por outro lado, no seuesforço de ver Cristo em toda a Escritura e em nome desse esforço, tam-bém teve liberdade de crítica em relação a textos e livros da Escritura quetinha em mãos.

Sasse, por exemplo, aborda o questionamento se Lutero, com a suaabordagem crítica de passagens e livros da Escritura, talvez não mais tives-se espaço dentro da própria igreja luterana 50 anos mais tarde. 29

Entretanto, como Fagerberg observa, o esforço da ortodoxia em definir umainspiração verbal, se por sua vez serviu para manter a revelação de Deus comocentro do fazer teológico, também ofereceu o risco da anulação da revelaçãocomo palavra de Deus na proclamação.30 A crítica que a ortodoxia recebeu foidirecionada contra a posição anti-reformatória de identificar Bíblia e Palavra deDeus. Isso fica exemplificado no tratamento que é dado à expressão palavra

26 ,Kolb, 26.27 Robert Preus, The Theology of Post Reformation Lutheranism, (St. Louis, Concordia, 1970), 268.28 Ao identificar essa relação Deus-Palavra, os luteranos da ortodoxia estão cientes de que essa identificação está

em Cristo. Essa palavra é uma e única. Não se anula o fato de Deus ter mais para ser conhecido e de que Deusse comunica de outras formas. Mas a palavra que Deus dirige ao ser humano é Cristo, seja ela a palavra em Deus,ou a palavra no profeta, ou essa mesma palavra no coração de quem crê. Cf. Preus, 269.

29 Sasse, 319.30 Holsten Fagerberg, A New Look at the Lutheran Confessions (St. Louis: Concordia), 30.

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de Deus que, nas Confissões, é utilizada intercambiadamente para designartanto a palavra escrita quanto a palavra proclamada.

A ortodoxia luterana, ao se precaver de possíveis erros e ataques à revelação,talvez não se tenha dado conta da impossibilidade de encontrar e oferecer formu-lações definitivas da palavra que pudessem resistir ao tempo. Ou talvez foramleitores da ortodoxia que, reconhecendo nesse trabalho teológico um bem sucedi-do esforço de afirmação da palavra, talvez tenham tomado como definitivo esseesforço. A Apologia aponta para esse risco de o trabalho teológico parar notempo e perder-se tanto da sua origem quanto da sua finalidade. 31

Nesse sentido também C.F.W. Walther afirma sob a 3ª Tese em suaspalestras sobre a correta distinção de lei e evangelho: “Uma pessoa podeter compreendido a doutrina pura e, mesmo assim, estar em situação irre-gular ante Deus”.32 Sob a 2ª Tese: “Apesar de alguém de fato poderafirmar ‘Meu sermão não continha nenhuma heresia’, é possível que todo oseu sermão tenha sido falso. ...Teólogo ortodoxo somente é aquele que,entre outros requisitos, sabe diferenciar corretamente lei e evangelho”.33

A revelação de Deus não é estática. Ela é encarnada, vital e dinâmica.Cada tempo e cada lugar requerem um testemunho, nesse sentido, novo,atual, encarnado. Teologia que pensa ter resolvido a tensão lei e evangelho,fica a dever à Palavra. Da mesma forma em que, cada teologia que pensater resolvido o mistério da revelação, fica a dever à Palavra. Porque aPalavra é Deus que fala a palavra da fé.

7. A palavra é a história de Deus agoraO profeta de Deus tem sempre a mensagem de Deus para esse momento

da história. Ele é a palavra de Deus agora. Quando Jesus em Nazaré terminaa leitura, ele diz que isso se cumpriu agora. A história é a palavra de Deus paraesse momento e nesse momento. Assim ele foi entendido. E assim, rejeitado.

Essa é a dificuldade que acompanha a teologia luterana e que ao mesmotempo a desafia ao permanente refazer teológico vital e encarnado. Luterocresceu num mundo teológico em que de cada lado o agrediam teologias coma solução definitiva, a solução que acabava com a tensão e a dúvida, até aangústia que aguarda o pensar teológico. A dificuldade de enquadrar Lutero

31 Ap IV, 211. Ao comentar a discussão que teólogos ortodoxos mantiveram sobre os sinais vogais do Hebraico,Preus conclui: “Este é um dos capítulos estéreis da história da teologia”. Elert, 195 ss., parece ver na ênfaseda ortodoxia posterior sobre a palavra externa o fator que desencadeou a crítica sobre o texto na sua fragilidadecomo fonte segura do conteúdo da pregação apostólica.

32 C. F. W. Walther, Lei e Evangelho, 2 ed., trad. Vilson Scholz (Porto Alegre: Concórdia, 1998), 27.33 Idem, 23.

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em uma teologia tem sido vista como resultado da dedicação de Lutero deapontar a presença viva de Cristo e nele Deus com o seu povo. Lutero vivepara convencer todos da sua libertadora certeza de que Deus está com o seupovo. Como perceber isso? Na palavra de Cristo, a viva voz do Evangelho.Nesse sentido, os organizadores da Concórdia mantiveram coerência comLutero identificando a palavra pregada com a palavra que desde a eternidadeesteve em Deus e que a palavra escrita preserva e proclama como Palavrade Deus, fazendo com que tanto a palavra escrita quanto a palavra que estásendo proclamada sejam realmente a Palavra de Deus.34

À pergunta de como se pode traduzir conceitos tão vastos e abrangentescomo a própria divindade de Cristo e todos os mistérios da fé cristã queinsistem em fugir ao domínio da razão, os ortodoxos fizeram o esforço demostrar a viabilidade de tal empreendimento.

É possível escrever claramente a respeito de coisas obscuras, es-crever de maneira humilde sobre coisas sublimes, escrever de ma-neira simples sobre assuntos difíceis e escrever publicamente decoisas ocultas. ...A tocar os mistérios temos de distinguir entre oque (a coisa em si) e o como (o modo). Leio na Escritura queDeus é um em três pessoas, leio que o filho de Deus foi concebidodo Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria. Ora, se uma pessoanão se contenta com isso e de maneira atrevida pesquisa o como eporque disso, não tem o direito de atribuir obscuridade à Escritura,mas terá todas as razões para condenar a sua própria insolência. 35

A focalização na coisa em si, o objeto do qual a Escritura trata, divide oterritório da razão e da fé. Somente dessa maneira pode a Escritura serfonte e norma auto-reveladora. Quando a razão mergulha no como e nopor que é necessário que se saiba que a própria Escritura afirma que arazão se confunde. Entretanto, enquanto a razão se concentrar no objetoda revelação, no seu sentido próprio e literal, “a Escritura é clara paraqualquer pessoa, mesmo para o não regenerado. Um descrente é capaz deapropriar-se do sentido literal e histórico da Escritura.” 36

Uma vez que a Escritura é respeitada na sua autoridade própria, deixan-do para ela o direito de ser clara ou obscura conforme as suas própriasintenções, somente assim ela realiza a sua obra de ser a palavra de Deus elevar à fé nessa palavra, que é Cristo, o filho de Deus.

34 Fagerberg, 31.35 Preus, 313, citando Quenstedt.36 Idem, 313.

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Por essa razão a Bíblia, quando é lida ou proclamada, é uma entidadecom caminhada autônoma, própria. Ela fala de maneira a ser a sua própriaintérprete. Ela define e distingue o significado direto e o oculto, o históricoe o teológico, e cada uma das outras formas. Para Fagerberg o fato de asConfissões Luteranas não oferecerem uma doutrina sobre a inspiração deveser acatado seriamente como uma decisão teológica.37 Talvez possamosidentificar aí o cuidado de não estabelecer novamente uma autoridade ex-terna sobre a Escritura, pois, até aí, cada vez que isso aconteceu, a Escritu-ra foi limitada e obscurecida. Entenderam então e foi evidente que a Escri-tura tem autoridade própria que sempre tem em vista Cristo e não o quedele possam pensar pessoas, por melhor intencionadas que sejam.

Os entusiastas se louvavam da sua fidelidade à Palavra. Entretanto,desprezavam a palavra externa da absolvição. Lutero identifica nessa ati-tude a atitude de quem despreza a própria revelação de Deus, o próprioDeus porque Deus está absolvendo. Ele é a Palavra. A igreja e o indivíduoestão na presença de Deus. Instituições e pessoas são instrumentos deDeus, que não substituem Deus. E nessas partes, que dizem respeito àpalavra falada, externa, é preciso permanecer com firmeza nisso que Deusa ninguém dá o seu Espírito ou a graça a não ser por intermédio da palavraexterior precedente ou com ela.38

Ora, se a palavra é a ação de Deus, suas intenções, atos e objetivos, apalavra escrita é palavra instrumental para que o ser humano encontreDeus e diante dele se confronte com suas próprias ações. Por essa razãoLutero entende que a Escritura somente pode ser lida teologicamente. Nasua exegese a carta aos Gálatas, distingue entre o fazer moral, fruto dafilosofia humana, e o fazer que ele define como teológico. Essa definiçãopara Lutero está na própria natureza da revelação de Deus.

Assim isso adquire um sentido totalmente novo. Certamenterequer argumentação correta e boa vontade, mas num sentidoteológico, não em um sentido moral, o que significa que pelapalavra do Evangelho eu sei e creio que Deus enviou seu Filhoao mundo para nos redimir de pecado e morte.Nesse caso, fa-zer tem um sentido novo, desconhecido da razão, dos filósofos,legalistas e todos os homens, pois aqui se trata de sabedoriaoculta no mistério. . . Estes são termos teológicos, não naturais,nem morais (1Co 2.7).39

37 Fagerberg, 30.38 AE VIII, 3 ss.39 LW 26, 262.

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Dessa revelação dinâmica de Deus (Rm 1.16) nasce a fé que abre acompreensão de Deus. Em Lutero isso é tão absoluto que a própria narrativada criação é objeto de fé tão-somente. Uma vez que a fé o aceita, a razãopode elaborar a verdade revelada “Essas palavras do Espírito Santo, tiradasde Moisés no primeiro capítulo de Gênesis (1.3): ‘Haja luz’ são incompreen-síveis a qualquer razão ou sabedoria humanas, independente da capacidadede compreensão.”40 Da mesma forma, ao tratar as parábolas, que até entãoeram vistas como ilustrações de uma moralidade geralmente aceita, “Luterolevou a sério a fórmula de introdução: ‘O reino de Deus é semelhante a...’Ele as interpretou como descrições de como Deus age no seu reino.” 41

8. A dimensão divina da palavra proclamadaEssa força dinâmica da palavra de Deus revelada na Escritura Sagrada

levou posteriormente os luteranos a tentar sistematizar e tornar compreensí-vel esse fenômeno, ao qual nem a Bíblia, nem as Confissões mostram inte-resse em definir quanto ao como. Mesmo que se diga que os teólogos daortodoxia levaram esse esforço para além das intenções dessa mesma reve-lação, permanece o fato de que a revelação de Deus é inseparável da Escri-tura. E por isso mesmo a Escritura Sagrada mais quer ser do que o veículo.Mas permanece o veículo que Deus materializou. Isso nos traz de volta àquestão da dinâmica da revelação. Se ela revela e revela com o objetivo deser proclamada e proclamada para ser crida, ela deve ser vista, segundoautores como Schlink e então Fagerberg a partir dessa sua função. Mesmonão concordando com Schlink em todos as suas conclusões, entretanto areflexão é posta por Fagerberg. Em Schlink, o peso da autoridade da Escritu-ra e seu uso teológico pende para a sua função. A Bíblia, o texto, não é, porsi só, um meio da graça, mas ela é um meio da graça somente em conexãocom a sua proclamação. Com isso não se pode anular o fato de que fora daEscritura Deus não se revela salvador, ou na sua natureza própria. Enfatiza-se, entretanto, o compromisso teológico da proclamação como o verdadeirofazer teológico, pois mesmo a palavra escrita é proclamação.

Fagerberg se vale da argumentação de Schlink para abordar o aspectomais dinâmico da revelação de Deus conforme percebido em Lutero e nasConfissões, quando esse afirma que a autoridade da Bíblia não está napalavra enquanto texto escrito mas na palavra falada, o evangelho, endere-çado e pregado aos homens.42 Entretanto, a função não pode ser divorcia-da da palavra que lhe dá origem e confirmação: a palavra escrita.43

40 LW 22, 10.41 Pelikan, 60, 61.42 Fagerberg, 30.43 Idem, p. 31.

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A proclamação tem esse caráter no entender da teologia luterana de serato divino. A Apologia44 afirma que a palavra da absolvição já não é nossapalavra, mas é a voz do evangelho. Na edição alemã: “a própria voz doSenhor Jesus Cristo, nosso Salvador”. Essa convicção levou Lutero aconfrontar-se com a dimensão do que aí se afirma: “Se é verdade que nãosou capaz de expressar completamente os pensamentos do meu coração,quantas mil vezes menos será possível a mim o compreender ou expressara palavra ou a conversa que Deus tem no seu ser divino.45 A pesquisalingüística moderna torna a questão mais aguda, talvez porque afirma parao nosso tempo o colapso da linguagem enquanto meio de comunicaçãomesmo que minimamente confiável. Se estamos convencidos da dificulda-de de efetivamente transmitir conteúdos e fazermo-nos entendidos, quantasmil vezes maior é o desafio de compreender e transmitir o conteúdo docoração de Deus, sua Palavra, o próprio Cristo?

O apóstolo Paulo, em uma de suas marcantes frases sobre a ação deDeus na pessoa, declara que “a fé vem pelo ouvir, e ouvir da Palavra deDeus”. A ênfase do argumento de Paulo não está tanto na forma em queDeus converte, mas no ato da proclamação, pelo qual Deus se faz presenteneste momento da história..

Ainda no primeiro capítulo de João, Lutero reconhece essa realidade apartir da afirmação da divindade de Jesus. Decisivo é o fato de que essaPalavra é a palavra criadora de Deus. Não meramente uma criação navisão Tomista de Primeira Causa, mas de Deus que cria continuamentepela palavra. Ela, a palavra, é vida. Sem ela não há vida. Somente ela podeiluminar e dar sentido à vida. Essa palavra foi ouvida na voz dos profetas.Ela própria, encarnada, fez-se ouvir. E continuou sendo ouvida através dosapóstolos e agora é ouvida na voz daqueles que crêem no evangelho.46

Entretanto e citando Jesus (Jo 3.19) e o apóstolo Paulo em 2 Ts 2.10-11,Lutero lamenta que tanto pregadores, como a própria igreja, preferem andarnuma luz própria e não na luz que é a palavra, a mesma, a própria que faladesde a criação. Em Lutero a fidelidade à palavra está para além de umadiscussão acadêmica em estilo “erasmiano” de busca da verdade que enge-nho humano reconhece. Diante da Palavra, Lutero está na presença viva doSenhor Jesus Cristo. Ele fala. A palavra é a palavra que continua criadora naproclamação. Por essa razão, todo encontro com a Escritura é um encontrocom a luz que cria e mantém a vida, a única vida que se pode ter.

44 Ap XII, 2.45 LW 22, 11.46 LW 22, 34-35.

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A presença real de Cristo não está, em Lutero, circunscrita ao Sacra-mento. Em Lutero, onde está a Palavra, aí está o próprio Senhor. O modocomo Deus está presente ficou evidenciado pela encarnação. Ele está tãopresente como esteve então junto dos seus discípulos. A sua pessoa epalavra acalmaram o mar, curaram doentes, alimentaram o povo e desper-taram fé. Sua presença é real e viva.

A teologia luterana sempre manteve clareza quanto à diferença entrepalavra humana e divina. Fala-se em palavra de Deus indireta. Entretanto,em Lutero, a palavra humana recebe a encarnação da palavra divina, assimcomo no pão se oculta o corpo e na carne se oculta Deus. A palavra, queé Deus, está oculta na palavra que hoje anuncia e proclama a palavra deDeus. Essa identificação torna tanto mais sério o compromisso de fé efidelidade à palavra revelada.

Até que ponto em nosso fazer teológico nos damos conta desse com-promisso, desafio ou até dificuldade? Com que espírito nos aproximamosdo encontro diário com a Palavra enquanto objeto de nosso estudo?

O estudo teológico começa pela fé na palavra como a própria palavra deDeus. Se isso poderia parecer ingenuamente óbvio, não o foi para Lutero. Apresença da graça de Deus em Cristo, ligada intimamente ao sola Scriptura esola fide foram o fundamento que Lutero identificou para seu fazer teológico.Pois quando a palavra humana, o saber do ser humano, encontram a Palavra,renova-se permanentemente a tentação de reduzir o divino ao humano.

9. A linguagem da razão e a linguagem da féAí a pergunta é: O que é comunicável na comunicação humana? Pode-

mos ilustrar esse tema com a experiência narrada por um pastor. Diz eleque durante anos esforçou-se em realizar cultos e sermões significativosvoltados para a família por ocasião do Dia das Mães e do Dia dos Pais.Questionou-se, entretanto, certo domingo sobre a sua prática quando umasenhora, ao final do culto, disse:”Pastor, acho que não virei mais ao cultonesses dias festivos da família. O senhor, quando fala, tem em mente etransmite que a família que Deus aprova é aquela que tem papai, mamãe efilhos. Nunca o senhor considerou a minha família como família da qualDeus se agrada ou cuida.” O pastor nunca se dera conta de que ao promo-ver a família como objeto do amor de Deus, ao mesmo tempo deixavaentendido para aquela mulher de que ela, sendo separada e com filhos,pertencia a uma categoria não contemplada na palavra de Deus.

Bertrand Russel diz que a linguagem pode ser usada para expressaremoções ou para influenciar o comportamento de outros. Ela não pode ser

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limitada como mero instrumento de afirmação de fatos ou meio de passarinformações. Quando constatamos que um certo conjunto de circunstânciascausa uma certa emoção, e certo tipo de emoção causa um certo tipo de ruído,e que certo tipo de ruído permite a um observador ter informação sobre osentimento e as circunstâncias ligadas a esse sentimento, sabemos que o ruídoé mais do que simples ruído. É comunicação. Linguagem, por isso, é meio deexternar e publicar nossa experiência pessoal.47 Esse compartilhar experiência,se por um lado permite a aproximação, também acaba por denunciar a distân-cia que separa as pessoas. E Russel conclui: “A linguagem, apesar de ser uminstrumento útil e mesmo indispensável, é um instrumento perigoso, pois sugereum caráter definitivo, esclarecedor e de quase permanência nos objetos que afísica parece mostrar que não possuem”.48

Diante disso, resta ao filósofo a tarefa de buscar a verdade não como ofaz a mente matemática que constrói o belo a partir de resultados previs-tos. Esta tentação de elaborar a partir de certezas previstas deve cederlugar à busca muito limitada da verdade.

Ashley Montague defendeu a teoria de que as palavras que usamosservem como condicionadores que influenciam os nossos pensamentos,sentimentos e comportamento. Parte do princípio de que o significado dapalavra está na ação que ela produz.49

William Moulton lembra que, em geral, as pessoas partem do pressupos-to de que a linguagem compõe-se essencialmente de dois ingredientes: some significado. Entretanto som e significado não são a linguagem, mas ma-nifestações do que chamamos linguagem. Isoladamente pouco significam.O sentido está na correlação entre ambos e isso não obedece necessaria-mente ao mesmo padrão para diferentes pessoas e épocas. O significadode algo depende completamente do som que lhe é agregado e vice-versa.50

Noam Chomsky é taxativo em dizer que existe no ser humano umaestrutura de compreensão e produção de linguagem que é comum a todasas línguas e inata ao ser humano. Entretanto, essa absoluta variedade deresultados não permite ao estudioso encontrar essa estrutura que determi-na os universais lingüísticos.51

A ciência lingüística hoje parece concordar com o pressuposto de Lutero

47 Apud Joseph A. de Vito, ed. , Language – Concepts and Processes (New Jersey: Prentie Hall, 1973), 40 ss.48 Idem, p. 45.49 Apud Joseph A. de Vito, 146.50 Apud Joseph A. de Vito, 112 ss.51 Apud Joseph A. de Vito, 108.

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de que a linguagem humana é incapaz como instrumento para dar sentido àexistência humana. A razão como instrumento do fazer teológico se sobre-pusera à fé. A razão, como controlador externo da Escritura, capturara umsentido que julgava suficiente e definitivo para a Escritura.

Para Lutero, qualquer certeza que não partisse da fé, e esta submetida àrevelação de Deus, era vista como ameaça à palavra. “Eck acreditava queera inconcebível que alguma passagem da Escritura pudesse contradizer a fécatólica. Por isso, cada passagem, em certo sentido, seria sempre uma ilus-tração da fé católica, que era uma interpretação a priori da Bíblia”.52

Lutero permanentemente se impôs a qualquer tentativa de fugir ao sen-tido da palavra como ação permanente de Deus. Lutero se antecipa notempo ao entender que o sentido da palavra está no efeito que ela produz. Aênfase de Walther em Lei e Evangelho também é a ênfase que liga o sen-tido ao efeito. O sentido em si nada é sem o efeito produzido que a eleadere tanto em Lei quanto em Evangelho.53 E a ligação entre o efeito e seusignificado também para Lutero estava no som, a palavra, que é fiel à reve-lação, o evangelho, que desperta pensamento, sentimento e ação. A corre-lação está estabelecida na Escritura.

CONCLUSÃO

10. A palavra é palavra encarnada na linguagemRazão porque o ministério da palavra em Lutero e nas confissões é um

ministério do som, ministério da palavra oral,54 falada com clareza e pureza,fiel à função e efeito que ela pressupõe: comunicar salvação salvando, oque ultrapassa o conhecimento natural, humano e somente pode ser assu-mido pela fé.

Essa fidelidade, portanto, se manifesta na proclamação da palavra quandoo sentido que está no texto se torna, por sua vez, sentido para quem fala epara quem ouve. A pergunta: ‘O que significa esse texto’ sempre é feita nopresente, pressupondo pelo menos uma pessoa com quem o texto/Cristofala agora. Cristo, entretanto, não procura meramente informar alguém.Ele é salvação que busca ser proclamada agora.

A linguagem da fé é a linguagem da revelação. Esta está oculta e encar-nada (enverbada) na linguagem da razão. Com a diferença de que a lingua-gem da razão é serva absoluta da linguagem da fé, como o crente é servo

52 Pelikan, 113.53 Walther, 27, 33, 37, 55, 93.54 Pelikan, 65.

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de Cristo, o Senhor. Uma vez feita essa inversão de postura, que exigepermanente esmurrar a carne, na linguagem do apóstolo Paulo, todos osresultados da melhor pesquisa lingüística e recursos da comunicação sãodivinizados para a melhor proclamação da palavra que é Deus

Para Lutero essa é única e derradeira proteção contra toda a inteligên-cia e esperteza argumentativa dos adversários e toda a autoridade daquelesque racionalizam para obterem controle pessoal, externo sobre a revelaçãode Deus, anulando assim a palavra, esvaziando-a do seu conteúdo e sentidopróprios da sua dinamicidade e atualidade.

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PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTESDeuteronômio 4.32-34, 39-40

26 de maio de 2002

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS

CONTEXTO

O livro de Deuteronômio é como um testamento de Deus para o seupovo, pronunciado pelo servo Moisés. Através de uma série de discursos(sermões), Moisés, o grande líder, exorta-o a permanecer fiel ao Deus quese revelou graciosamente ao povo que era totalmente escravo.

O texto em destaque para este domingo está inserido no primeiro gran-de discurso (1.1-4.43) e é a parte final deste discurso. Por isso, como con-clusão retoma aspectos importantes do discurso, encerrando com o maispuro evangelho vindo da parte de Deus. Sugiro a leitura deste discurso paraacompanhar a conclusio de Moisés.

Outro aspecto importante a lembrar, especialmente quando enfatizamosa ação da igreja durante o período do Pentecostes, é de partirmos da açãoda Trindade de Deus em nosso favor, como base para qualquer ação ereação como seu povo. Nada melhor para nossa vida de cristãos do que depercebermos Deus agindo em e através de nós.

TEXTO E NOTAÇÕES HOMILÉTICAS

Vv. 32-34 - “Para que eu lhe pertença e viva submisso a ele em seu reino” sãoas palavras chaves de Lutero para o seu catecismo. Também, podemosaplicá-las a esta passagem bíblica. Assim como nós olhamos para um mo-mento crucial na história da nossa salvação, a obra de Cristo vicária, tãobem resumida por Lutero no segundo artigo do Credo, Moisés faz o povo deIsrael olhar para o êxodo de Israel do Egito. O interessante em nosso textoé que Moisés faz a presente geração olhar para um passado anterior erecente. O êxodo proporcionou libertação, mas aquela geração que saiunão poderia viver plenamente sua liberdade; ela teve o deserto pela frente eesta “peneira”, infelizmente pela incredulidade do próprio povo, fez com quepoucos que saíram do Egito pudessem realmente entrar na Terra Prometi-da. Moisés foi um dos que não aproveitou. Observando um passado anteri-

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or, “desde a criação” como diz Moisés, nada se viu tão gracioso em relaçãoao homem: a mão poderosa de Deus e seu braço estendido sempre trazemlei e condenação e agora “provas, sinais, milagres e peleja” são o mais puroevangelho para o povo de Israel. Ao observarmos como a mão poderosa deDeus e seu braço estendido agiram quando da saída do Egito, percebemoslei para os egípcios e evangelho para os israelitas.

Vv. 39-40 - Nós cremos e confessamos na ação trinitária de Deus emnosso favor. O Credo é o centro de nossa fé e vida. Nesta passagemprecisamos observar que a universalidade de Deus passa pelo reconhe-cimento de fé de sua obra em nosso favor. A proposta de Lutero naexplicação do Primeiro Mandamento nos remete diretamente ao Deusdo Credo e não a qualquer Deus; e esta identificação requer, além dotemer e amar, fé e confiança como Lutero explica no Primeiro Manda-mento. No v.40 temos algo semelhante ao que Lutero faz no QuartoMandamento – o mandamento com promessa. Na relação pai-filho, hápromessa para quem vive sob a direção do pai: vida longa está relacio-nada diretamente ao cumprimento da vontade do pai. Enquanto no cum-prir do Quarto Mandamento a nossa vida longa restringe-se a esta vida,em nosso texto Moisés nos diz que teremos vida para sempre.

Que caminhada temos pela frente como cristãos que crêem no Deus Triúno?Qual nosso futuro? Assim como Moisés está diante de um povo prestes aentrar na Terra Prometida, assim, como pregadores, estamos diante de umpovo que precisa caminhar para um novo céu e nova terra providos por Deus,mas que ainda está a caminho. Lembramos que Moisés não entrou na TerraPrometida; ele foi enterrado na terra de Moabe – o final de Deuteronômionos diz isto. Mas, Moisés esteve ao lado de Elias no Monte da Transfiguraçãoe isto nos sugere a glória de Deus. Moisés já está lá; estejamos conscientesde que as promessas de Deus não falham pois ele agiu com seu braço esten-dido em nosso favor para vivermos para ele eternamente.

TEMA HOMILÉTICO

A proposta é de explorar o que Lutero nos diz no Credo: “Para que eulhe pertença e viva submisso a ele em seu reino”. Isto nos remete à justifi-cação e santificação, tema apropriado, penso eu, para este culto, pois amensagem do Pentecostes nada mais é do que a ação do Espírito de Deusque creiamos em Cristo como Salvador e, a partir daí, sejamos submissos àvontade do Pai em seu reino aqui e eternamente.

Clóvis Jair PrunzelSão Leopoldo, RS

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SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTESDeuteronômio 11. 18-21, 26-28

2 de junho de 2002

LEITURA DO TEXTO E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Após relembrar sua oração (Dt 3.23-29) pedindo a Deus o direito deentrar na terra de Canaã (vale lembrar que Moisés havia perdido esse direi-to pela sua própria desobediência), Moisés inicia (cap.4.1ss) seus discursose exortações ao povo para a obediência. Esses discursos seguem ao longode todos os capítulos até o nosso texto, com o guia do povo de Israel cha-mando para a obediência e alertando contra a infidelidade.

No capítulo 11, nos primeiros sete versículos, continua com sua exorta-ção à obediência e, a partir do versículo oitavo, começa a mostrar os bene-fícios dessa obediência.

Nos versículos da presente perícope, o texto chega a um gran finale,enfatizando como essa obediência poderia ser buscada, ou seja, colocandoa palavra de Deus, todo o ensinamento do próprio Javé, via Moisés, emprimeiro lugar.

Moisés enfatiza para que estas palavras sejam colocadas no coração, naalma, e atadas na mão, de tal forma que não sejam esquecidas (v. 18).(Séculos após, o profeta Isaías nos consola dizendo que Deus havia de es-crever, gravar, nosso nome em sua mão, para jamais esquecer-se dele e,conseqüentemente, de seu servo). Na cultura popular brasileira, talvez atéretirada deste texto, temos a idéia de amarrar um cordão no dedo para nãose esquecer de um recado, ou algo importante que se tem a fazer.

A palavra deveria ser ensinada aos filhos a todo o momento, sentado emcasa, andando pelo caminho (v.19). Isso nos faz lembrar que a palavra deDeus não deve ser deixada para ser ensinada na igreja, na escola dominical,ou na instrução de confirmandos. Essa é a função de cada pai/responsávelao longo da vida. Lutero bem lembra no Catecismo Menor que o pai defamília deveria ensinar a doutrina cristã para sua casa, toda a casa, inclusiveaos servos.

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Moisés continua exortando para que a palavra esteja presente no cotidi-ano da vida do povo, escrito nos umbrais e nas próprias portas (v. 20), locais,naturalmente, de destaque do dia-a-dia, por onde haveriam de passar a cadamomento.

A conseqüência da observância da palavra seria a longevidade, as bên-çãos sobre toda a descendência (v 21). O Senhor o havia jurado e estavapronto para cumprir seu juramento.

Assim como Deus havia colocado a árvore do conhecimento do bem edo mal no jardim e exortado a Adão e Eva que não a comessem, bênção emaldição estavam diante do povo de Israel neste momento (v. 26).

O desafio estava lançado e a recompensa, bênção pela obediência, esta-va posta, bem como maldição pela desobediência (vv. 26-27).

Se Adão e Eva haviam desobedecido e Deus mesmo assim enviou seuFilho, mesmo na desobediência, também havia a possibilidade do perdão.Contudo, por que deixar passar a bênção?

TEMA

A presença cotidiana da palavra de Deus é o princípio de toda sorte debênção.

Agenor BergerResplendor, MG

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TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTESOséias 5.15 - 6.6

9 de junho de 2002

CONTEXTO HISTÓRICO

Amós, aquele que era pastor de ovelhas em Tecoa, anunciou a mensa-gem do Senhor a Israel pelo ano 750 AC. Depois veio Oséias. E, na se-qüência, aconteceu a conquista de Samaria, pelos assírios, em 721 AC.Oséias, pois, realiza seu serviço numa época em que Israel já havia sidoadvertido quanto ao seu desvio dos caminhos do Senhor, mas continuavainsistindo em neles permanecer; e mais, procurava, até, iludir-se com atosde piedade, por meio dos quais o Senhor pudesse ser levado a querer-lhesbem. Os capítulos 1 a 5 demonstram a infidelidade do povo e as acusaçõesde Deus, chamando-os ao arrependimento. O versículo de 5.15 faz umaponte que continua em 6.

EXEGESE DO TEXTO

V.15 – “Irei e voltarei para o meu lugar, até que se reconheçam culpadose busquem a minha face; estando eles angustiados, cedo me buscarão...” O Senhor, aplicada a correção, assume postura de observador –observador em expectativa. A esperança é de que tenham aprendido alição e voltem a buscá-lo.

O Senhor está sempre “no seu lugar”, lugar de amor, santidade e justiça.Quando os faltosos se arrependerem e desejarem retornar à presença doSenhor, o caminho estará aberto. Com Israel a predominância foi que nosperíodos de prosperidade, especialmente sob o governo de Salomão eJeroboão II, o povo depositava sua confiança em seus próprios recursos,seguia após deuses estranhos e afastava-se do Senhor.

Vv. 1-3 – “Vinde e tornemos para o Senhor, ... que rega a terra.” Apósmuito sofrimento, sem receber qualquer socorro dos deuses estranhos,Israel se lembra do Senhor Javé. O profeta representa os pensamentose as palavras dos próprios israelitas no seu desespero. As aliançaspolíticas não alimentam mais qualquer esperança; agora desejam o so-

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corro do Senhor, seu Deus. “Vinde e tornemos” – expressa que adecisão de voltar precisava partir do próprio povo; uma decisão de de-sapegar-se de tudo o mais, para apegar-se unicamente ao Senhor. Nosvv. 1 e 2, porém, revela-se a falta de verdadeiro arrependimento; a idéiaainda é que Deus pode ser comprado facilmente; Deus deve estar debraços abertos, aguardando-os. “Ele nos sarará”, “nos levantará, eviveremos diante dele” são expressões que indicam a superficialidadedo sentimento religioso do povo. Quando o reconhecimento de que eranecessário conhecer melhor ao Senhor surge, já é tarde demais; denada adianta citar belos conceitos e grandes doutrinas teológicas se nãose entende seu significado e não se pretende viver de acordo com eles.

Vv. 4-5 – “Que te farei ... sairão como a luz.” A nuvem da manhã (nebli-na) e o orvalho da madrugada são elementos de passagem rápida; aeles é assemelhado o amor deste povo. Diante desta instabilidade, oSenhor vai agir, vai abater (cortar) por meio dos profetas – é anúncio dojulgamento de Israel por causa de sua apostasia.

V. 6 – “Pois misericórdia quero, e não sacrifício; e o conhecimento deDeus, mais do que holocaustos.” Pois eu quero Dsh - é o termotraduzido como “misericórdia”, significando algo como amor firme, fiel,constante. É palavra que tem íntima relação com a revelação de Deusem suas providências na história de Israel, acentuando o amor fiel doSenhor. Assim como Oséias, também outros profetas concordam quantoà influência negativa dos sistemas de sacrifícios na vida religiosa deIsrael (Am 5.21-24; Is 1.11, 14-17; Mq 6.6-8; Jr 7.21-22). A meramanutenção dos rituais de sacrifícios era entendida como suficientepara que o agrado de Deus os acompanhasse. Sacrifícios e holocaustosnão são em si práticas detestáveis; quando, porém, estãodesacompanhados do exercício de misericórdia e do conhecimento deDeus, tornam-se objeto de rejeição por parte do Senhor. Também Je-sus, em seu ensino a respeito da religião do amor na vida, oposto aoformalismo dos fariseus, cita a passagem de Oséias (Mt 9.13).

APLICAÇÕES HOMILÉTICAS

1 - Quando a pessoa se afasta dos caminhos do Senhor, ele a busca, pormeio de eventos, sinais (chamadas que precisam ser percebidas), eaguarda “no seu lugar”, na expectativa de que ocorra arrependimentosincero e volta.

2 - Idéias piedosas não são a mesma coisa que arrependimento verdadei-ro; podem enganar as pessoas, mas jamais enganam o Senhor.

3 - A busca pelo conhecimento do Senhor precisa acontecer enquanto há tempo.4 - Usar de misericórdia e conhecer o Senhor são quesitos primeiros para

a vida cristã; sacrifícios e holocaustos são conseqüências.

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ALGUMAS IDÉIAS HOMILÉTICAS

IntroduçãoO contexto histórico que hospeda a perícope.

- A teimosia de Israel em não atender à voz do Senhor por intermédio dosprofetas.

- Diante do aperto, a volta superficial (erramos, mas não somos tão mausassim...).

- A postura reta, justa e insubornável do Senhor (castigo para o transgressorimpenitente).

- O desejo do Senhor: compartilhamento do amor e vivência por caminhosretos e úteis aos semelhantes.

ConclusãoDiante da conscientização de nossos desvios e omissões, o recurso só

pode ser encontrado na misericórdia, no amor e perdão de nosso Deus, pormeio de arrependimento sincero.

Nelson LautertCuritiba, PR

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QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESÊxodo 19.2-8a

16 de junho de 2002

Estamos no início da segunda metade do ano eclesiástico, também cha-mada de semestre da igreja; a ênfase está no crescimento espiritual dopovo de Deus. A cor litúrgica verde expressa essa verdade. A leitura doAntigo Testamento para o quarto domingo após Pentecostes vem do se-gundo livro de Moisés, chamado Êxodo.

Quanto ao contexto litúrgico e o relacionamento desta leitura com asoutras leituras podemos observar o seguinte:

O Salmo do dia, Salmo 100, fala no versículo 3 que o Senhor é Deus e nóssomos o seu povo, e nos chama para servir o Senhor com alegria (v.2). Aleitura da Epístola, Romanos 5.6-11, faz parte da lectio continua desta cartado apóstolo Paulo, que começou no segundo domingo após Pentecostes (3.21)e se estende até o décimo sétimo domingo após Pentecostes (14.9). Não hárelacionamento direto com o Antigo Testamento, mas convém ressaltar areconciliação através de Cristo, que forma a base para alguém pertencer aopovo de Deus. O Evangelho de Mateus, 9.35-10.8, também faz parte de umalectio continua, e de fato determina o caráter e o tema dos domingos apósPentecostes. O Antigo Testamento foi escolhido em função do Evangelho.Ouvimos a respeito da escolha e do envio dos discípulos de Jesus.

Quanto ao contexto histórico, somos trazidos aos tempos em que o povode Israel tinha sido recentemente libertado da escravidão no Egito. Comsua poderosa mão o Senhor Deus libertou o seu povo e o leva para a terraprometida. Mas não antes de renovar a sua aliança com o povo. No versículoanterior ao nosso texto somos informados que era no terceiro mês da saídados filhos de Israel da terra do Egito. Sob a liderança do seu servo escolhi-do, Moisés, Deus tinha feito o povo passar de forma milagrosa o Mar Ver-melho, da mesma forma transformou águas amargas em boas para beberem Mara, deu ao povo o maná e codornizes, fez sair água da rocha emRefidim, deu a vitória ao seu povo na luta contra os amalequitas. Após oencontro de Moisés com o seu sogro Jetro, o povo chega ao Sinai.

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V.2 – “deserto do Sinai” – Lugar que fica na península do Sinai. Omarco principal sem dúvida é o monte Sinai, também identificado com omonte Horebe (cf. entre outros Êx 33.6, Dt. 1.2, 1Rs 8.9, At 7.30-34).Lugar da teofania, Deus se revela gracioso com o seu povo e renova aaliança anteriormente feita com Abraão, Isaque e Jacó.

V.3 – Vemos no texto um ciclo: Deus fala com Moisés (v.3), Moisés falacom o povo (v.7), o povo responde e fala com ou para Deus (v.8).

V.4 – O Senhor lembra a Moisés o que fez pelo seu povo. Usando ailustração da águia ele lembra o êxodo e ao mesmo tempo a eleição eadoção do seu povo. Deus salva o seu povo e o leva a ele (“vos che-guei a mim”).

Vv.5,6 – Uma aliança envolve duas partes. Renovação da aliança signifi-ca não somente a ação de Deus, mas também em ouvir a voz de Deuse guardar a aliança por parte do povo. Aí sim, o povo é realmente povode Deus. Toda a terra e tudo o que nela há é de Deus, mas o seu povoescolhido será uma propriedade peculiar dele. E mais ainda: tambémum reino de sacerdotes e uma nação santa. Nos vem à mente a expli-cação do segundo artigo no Catecismo Menor: “... me resgatou e sal-vou de todos os pecados, da morte e do poder do diabo ... paraque eu lhe pertença e viva submisso a ele, em seu reino, e o sirva...”. Também as palavras do Salmo 100 e da primeira carta de Pedro2.9 cabem perfeitamente aqui. Menção particular para “nação san-ta”. No original lemos goi qadosh, sendo goyim normalmente usadopara os povos gentios. Mas agora o povo se torna propriedade de Deuse, portanto, se torna uma nação santa. O mesmo acontece com aspessoas que são levadas à fé em Cristo. Sendo o povo de Deus, emoutras palavras a igreja, um reino de sacerdotes, significa que a igrejanão está aí para reinar sobre outras pessoas, mas para servi-las, levan-do-lhes o Evangelho da salvação em Cristo Jesus.

Vv.7,8 – O ciclo continua e se completa: Moisés fala ao povo as palavras doSenhor, o povo responde positivamente às palavras. Tudo fará o que oSenhor falou. Essa também deve ser a resposta de cada cristão em suavida. Ouvir a voz, a palavra, de Deus, guardar a sua aliança, que Deus fezcom cada cristão no batismo, ser um sacerdote do reino vivendo uma féativa no amor, testemunhando a ação de Deus em sua vida.

Vemos que assim no Sinai Deus executa mais um passo no seu planopara a salvação do mundo, que se concretizará com a nova aliança pelosangue de Cristo.

No sermão podemos mostrar o que Deus fez para nos tornar os seusfilhos. Tanto a explicação do segundo como do terceiro Artigo se aplicam

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aqui. Após isto, o que significa pertencer ao povo de Deus? O lema daIELB: Missão de Deus – Desafio da Igreja pode ser maravilhosamenteaplicado aqui. Apesar de que melhor seria dizer “tarefa” da igreja, em vezde “desafio” da igreja.

DISPOSIÇÕES:O povo de Deus1. Deus chama o seu povo (justificação)2. santifica o seu povo (santificação)3. envia o seu povo (missão)

A igreja é propriedade peculiar de Deus1. Deus leva o seu povo sob asas de águia (graça, salvação)2. A obra de Cristo pela ação do Espírito Santo faz a igreja santa e

peculiar3. Deus dá o privilégio de trabalharmos como sacerdotes em seu reino,

fazendo a sua missão.

Gijsbertus van HattemAntuérpia, Bélgica

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QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESJeremias 20.7-13

23 de junho de 2002

CONTEXTO

Jeremias relutou em aceitar o chamado profético, mas aceitou-o diante dapromessa de Javé: Não temas diante deles, porque eu sou contigo para telivrar (1.8). Sua pregação, no entanto, começa pela denúncia do pecado deJudá e o castigo inevitável. Já no final do capítulo 11 ele descobre planos paraeliminá-lo, e queixa-se perante Deus. Mas após a cruel e humilhante puniçãoimposta por Pasur (20.1-6), diretor do templo, Jeremias desabafa. É provávelque os vv. 14-18 antecedam 7-13, caso tenham sido proferidos em seqüência.Após amaldiçoar o seu nascimento, Jeremias protesta contra Javé, até recobrara confiança na justiça de Deus e conclamar a comunidade ao louvor. A partirde então, Jeremias passaria a nomear os culpados: os reis de Judá, os falsospastores e profetas; o cativeiro viria através de Nabucodonosor.

TEXTO

tP’a,w” hw”hy> ynIt;yTiPi (v.7) – htp expressa idéia mais forte do que a tradu-ção de Almeida deixa transparecer. Antes cauteloso (15:18), Jeremias ago-ra desabafa sem meias palavras: Tu me enganaste, Javé, e enganado fui!Javé prometera e não cumprira. Jeremias protesta por causa dos sofrimen-tos a que se encontra sujeito em virtude da mensagem que lhe cabe procla-mar, especialmente o relatado nos vv. 1-6.

Como Jó, Jeremias define Javé como o seu inimigo (“foste mais forte eprevaleceste”), a causa da sua perseguição. Embora soe ofensivo e mes-mo como blasfêmia, trata-se do grito de desespero de quem se entregou decorpo e alma à proclamação profética e depara-se com orgulho e ódio aoinvés de arrependimento. O próprio Lutero teria dito:

Às vezes é preciso acordar a Deus com palavras deste tipo.Doutra forma Ele não ouve. Este é um caso em que Jeremiasestá realmente murmurando. Cristo falou assim: “até quandoestarei convosco?” (Mc 9.19). Moisés chegou ao ponto de

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lançar as chaves aos pés de Deus quando perguntou: “Conce-bi eu, porventura, todo este povo?” (Nm 11.12). Não pode serde outra forma. É irritante quando se tem a melhor das inten-ções mas as coisas não saem bem. Isto é certamente murmú-rio. Eu faço o mesmo, e não consigo me livrar da idéia de queeu jamais deveria ter iniciado (a pregação da Palavra?). As-sim, só os teólogos especulativos é que condenam essa impa-ciência e recomendam paciência. Se eles colocarem os pés nochão, eles se darão conta disso. (Luther’s Works 54:30-1)

q[‘z>a, (v.8) – q[z, usado quase como termo técnico para o clamor dooprimido (cf. Êx 2.23; Jz 6.6-7; Sl 107.13,19; Jn 1.5; Hc 1.2 etc.), indicaque Jeremias não se refere ao conteúdo da sua pregação, mas à sua pró-pria angústia. Sugere, no entanto, que Israel deveria juntamente com eleclamar por misericórdia, ao invés de permanecer surdo e perseguir os pro-fetas que anunciam o juízo merecido, cf. os Salmos 44 e 79, onde o par slq//hprx é igualmente usado (44.13; 79.4), provavelmente já durante o exílio.

tr,[,Bo vaeK. yBilib. (v.9) – Apesar de sua situação, o profeta não pode calar.A palavra de Deus não é menos poderosa no Antigo Testamento: Jeremiastestemunha o mesmo poder que os discípulos de Emaús, Pedro, João ePaulo experimentaram (Lc 24.32-33; At 4.20; 2Co 5.14; cf. ainda Am 3.8).Os verdadeiros mensageiros da Palavra de Deus são impulsionados peloEspírito, não por sua própria decisão. E não se abatem pela surdez ou per-seguição dos seus opositores.

bybiS’mi rAgm’ ~yBir; tB;DI yTi[.m;v’ yKi (v.10) – Exatamente a mesma fraseocorre no Sl 31 (v.13), que bem poderia ter Jeremias como autor. A expres-são “terror por todos os lados,” é – à exceção da passagem acima – exclu-siva e típica de Jeremias (6.25; 46.5; 49.29). Aparentemente, os muitos querepetem a frase parecem acusar Jeremias de rogar pragas contra a nação,identificando seu uso freqüente, mas especialmente em 20.3, como a causado perigo que o crescente poderio Babilônio representa. Vê-se que, já na-quela época, atacar alguém do status de Pasur implicava ser rotulado comoconspirador. Note-se que a crítica de Jeremias é dirigida contra os própriosguardiões do templo (7.4-11). Como seria Jeremias recebido na IELB? Emminha congregação?

#yrI[‘ rABgIK. ytiAa hw”hyw: (v.11) – O vav adversativo rompe com o lamentoe subitamente apresenta um Jeremias confiante, liberto da angústia. Agoraele afirma que Javé não o esquecera, nem era seu real inimigo. Pelo con-trário, Javé está ao seu lado como um guerreiro valente cuja mera presença

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já inspira terror (#yr[, que em 15.21 descreve os inimigos de Jeremias) nosadversários. A mão invisível de Javé não deixa de revelar a sua graça aoprofeta, e mesmo que o curto período em que o profeta se vê desamparadoexerce sobre ele um efeito devastador, ela é suficiente para erguê-lo davergonha para a glória, do lamento para o louvor. O castigo aos perversos,ao contrário, dura para sempre (~l’A[ tM;liK.) e não é esquecido. Esta trans-formação conduz o profeta ao ápice da passagem: ao invés do lamento, ocanto; ao invés da maldição ao dia do seu nascimento, o louvor ao Deus quelivra o pobre das mãos dos perversos (v.13).

PROPOSTA HOMILÉTICA

I. Deus nos chama a testemunharII. O mundo e nosso velho homem rejeitam este testemunhoIII. Mas Deus está conosco

Ele fará a sua palavra arder nos coraçõesEle nos erguerá da aflição para o júbilo

Gerson L. FlorWindsor, ON, Canadá

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SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESJeremias 28.5-9

30 de junho de 2002

CONTEXTO LITÚRGICO/HISTÓRICO

Israel já estava no cativeiro da Babilônia. Um profeta, Hananias, prega-va que logo o povo voltaria do cativeiro e traria os objetos do templo quehaviam sido levados junto por ocasião da invasão dos babilônios.

Outro profeta, Jeremias, dizia em sua pregação que o povo ficaria sete décadas,70 anos, e só depois voltaria. Estava sozinho. Era contestado. Odiado, também.

Afinal, quem teria razão? Tratava-se de saber: quem estava falando averdade? Jeremias propõe uma prova. Valeria ela ainda hoje? Qual era aprova?

O texto é atual. O Seminário Concórdia está formando pregadores háquase 100 anos.

Pregação é sempre prato do dia. Afinal, pregamos ou vamos ouvir apregação todas as semanas. E há muitos pregadores. E nem todos dizem amesma coisa. E igrejas e pregadores estão surgindo em muitas esquinas.Há uma verdadeira indústria. E mais: quem tem razão? Quais são os prega-dores que falam a verdade? Jeremias ou Hananias? Que prova podemossugerir para vermos a verdade?

Antes de olhar o texto propriamente dito, olhemos as outras leituras do dia:

O Salmo - é 119.153-160.O resumo do salmo é fidelidade à Palavra de Deus.

A 2ª leitura é Rm 6.1-11.O resumo é: pela fé em Jesus somos filhos de Deus.

A 3ª leitura é Mt 10.34-42.O resumo desta leitura é: a Palavra de Deus divide a humanidade em

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crentes e descrentes. Por isso, Jesus divide. Une todos os que crêem n’Elee separa todos os que não crêem n’Ele.

O TEXTO

Vv. 5,6 – Hananias, o profeta, tinha dito: “... Deus me disse ... quebrei ojugo do rei de Babilônia ... dentro de dois anos trarei de volta todos osexilados e também os objetos sagrados...” (vv. 2-4).

Jeremias disse: Que bom seria se assim fosse! Humanamente falando:Que bom seria isso!

É como hoje falam os pregadores curandeiros e milagreiros. Que bom seriase tudo isso se cumprisse! Não haveria mais hospitais, nem cemitérios, nem ...

Há pregadores que pregam o que o povo quer ouvir.

Vv. 7,8 – Jeremias tem outra mensagem. Ela aponta para aquilo que osprofetas de Deus tinham sempre dito. Eles tinham dito duas coisas:

a) Deus usaria Babilônia e seu rei Nabucodonosor como instrumento nassuas mãos. Mesmo sendo rei e país idólatras, Deus os usaria. Ele éSenhor. Depois, sim, viria também a ruína desta e de outras naçõesímpias.

b) Israel seria levado cativo para Babilônia. A causa: seu pecado e a faltade arrependimento (Jr 21.12; Jr 22.8,). O exílio: 70 anos.

Conseqüentemente, se isto o que Jeremias pregava era verdadeiro, en-tão a pregação de Hananias era mentira (v. 15). Não existem duas prega-ções diferentes certas. Deus é um só.

V. 9 – A prova – quem é o profeta verdadeiro e qual mensagem verdadeira.

Jeremias propõe no versículo 9 como saber se a mensagem do profeta éde Deus: se ela se cumprir. No nosso texto: a prova seria a volta docativeiro e a paz. E em vez de volta e paz, continuava o cativeiro do povo.Logo, a mensagem de Jeremias era a verdadeira.

Qual a prova hoje?

Toda a Bíblia e toda a pregação verdadeira tem seu centro emJesus. Se esta não for a pregação, tudo é falso e confuso.

Mas, qual a prova?

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a) Estamos com a verdade se ensinamos e pregamos o que a Bíblia diz eexposto nas Confissões a respeito de Jesus Cristo no 2º Artigo do Cre-do Apostólico. Ou, como diz o apóstolo João em 1 Jo 4.1-6: “ ... Nistoreconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que JesusCristo veio em carne é de Deus e todo o espírito que não confessa aJesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito doanticristo...”

b) Estamos com a verdade quando vemos a fé como resultado da prega-ção – Rm 10.17 – “.. a fé vem pela pregação e a pregação pela palavrade Cristo”.

c) Estamos com a verdade quando cremos que os feitos poderosos deDeus se confirmam na vida dos crentes – 2 Co 13.3.

ILUSTRAÇÃO

Certo pastor, recém chegado à sua paróquia, fez uma enquete. Propôsque cada membro, à saída do culto, pudesse dizer sobre que assunto gosta-ria de receber uma mensagem. À saída, muitos expressaram seu gosto.Uns queriam uma mensagem sobre divórcio; outros, sobre pena de morte;uns, sobre casamento e muitos outros temas. Por fim chegou um senhoridoso. Chegou-se ao ouvido do pastor e também queria dizer seu gosto. Eledisse ao pastor: “Fale-nos sempre de Jesus”. Este acertou na mosca o quedeve ser nossa pregação. Os jovens de hoje diriam: A resposta deste velhi-nho “matou a pau.”

Alinhavando tema e partes, podemos sugerir:

PREGA A PALAVRA:1 – quer seja oportuno, quer não;2 – mas que fale de Jesus.

Benjamim JandtCachoeira do Sul, RS

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SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESZacarias 9.9-12

7 de julho de 2002

LEITURAS BÍBLICAS DO DIA

Sl 119.137-144: A palavra de Deus é reta (v.137), pura (v.140), aprópria verdade (v.142) e o meu prazer (v.143), diz o salmista, mostrandoseu desejo sincero de viver na sabedoria de Deus e sua preocupação comos que rejeitam o SENHOR. O SENHOR em sua Justiça ama o seu povo eo quer auxiliar e fortalecer.

Rm 7.15-25a: O apóstolo reconhece: a) que a lei é boa (v.16); b) a incapa-cidade humana para cumprir a lei (vv.15,18); c) o peso da condenação (v.24b);d) a necessidade de salvação (v.24a); e e) a solução está em Jesus (v. 25a).

Mt 11.25-30: Jesus agradece a Deus por ter revelado a salvação nãoatravés da sabedoria humana, o que poderia levar as pessoas a se gloria-rem, mas na humildade dos que confiam e se refugiam na graça de Deus(cf. Ef 2.8-9). Jesus convida os cansados e sobrecarregados a buscaremnele o alívio, pois ele é o único que pode dar descanso à nossa alma.

CONTEXTO HISTÓRICO

Zacarias estava entre os israelitas que voltaram para Jerusalém do cati-veiro da Babilônia. Os temas de suas mensagens, anunciadas entre 520 e518 a.C., são uma série de visões em que Deus iria preservar o que restoudo seu povo, contra todas as nações poderosas que queriam a sua destrui-ção. Os povos gentios seriam destruídos enquanto Israel suportará todas asprovações, pois trata-se do povo através do qual Deus enviaria o Messias.Suas mensagens tratam da reconstrução de Jerusalém e do templo, do per-dão dos pecados do povo e aspectos da vinda do Messias.

Os capítulos 9 a 14 são uma coleção de mensagens a respeito do Messi-as e do juízo final. Na presente perícope o profeta anuncia a vinda do Se-nhor da Igreja, o Salvador Prometido. A profecia se cumpriu, segundo Mt21.5 e Jo 12.15, com a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém.

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A profecia de Zacarias, numa forma mais abrangente, atinge a Igreja doNT. As portas do inferno não irão prevalecer contra ela (Mt 16.18 e Ef 6.11-13). Cumpre-se o que diz o salmista: “o anjo do SENHOR acampa-se aoredor dos que o temem, e os livra” (Sl 34.7 e Zc 9.8). Nem as sangrentasperseguições do império romano, nem os falsos ensinamentos e dificuldadespuderam destruir a Igreja, pois o SENHOR permanece a cuidar dela.

TEXTO E COMENTÁRIOS

V. 9 – “Sião” e “Jerusalém” são símbolos que representam o povo deDeus, que aguardava ansioso pela vinda de um Libertador, que agora seaproxima segundo a visão de Zacarias.

O “Rei”, descendente de Davi (conquistador do monte Sião e de Jerusa-lém), virá para cuidar do seu povo, conforme expressam as palavras “eis aí tevem o teu Rei” (cf. Is 9.6). Nenhum súdito, de qualquer país ou época, pode sertão beneficiado pelo governante como os cristãos o são da parte de Jesus.

Ele é “justo” e “salvador”. Não apenas agirá corretamente em todasas ocasiões, pois Pilatos não achou nele crime algum (Jo 18.38), nem al-guém o pôde convencer de algum pecado (Jo 8.46), como iria promover ajustiça de Deus tornando justos os pecadores, em lugar dos quais ele iria sesacrificar (Jo 1.29; 2Co 5.21; Gl 3.13) a fim de que se pudesse proclamar oevangelho, a boa notícia. Através da qual os pecadores estão absolvidos daculpa de seus pecados (Is 53.11; Lc 24.47).

Por tudo isso Sião, a Igreja, pode “alegrar-se muito”, “exultar”, regojizar-se, gritar de alegria, pois o nosso Rei lutou e venceu por nós.

Jesus veio fisicamente de maneira “humilde”, mas espiritualmente évencedor sobre todos os poderes que possam ameaçar a Igreja.

V. 10 – O profeta fala agora do domínio do Messias. “Efraim” e “Jerusa-lém” estavam sempre separados e em pé de guerra (1Rs 12.16-20;14.30; 15.7), mas estariam unidos quando o Messias chegasse (Os 1.11).Ele não teria necessidade de carros de guerra, de cavalos, de armas,nem para defesa, nem para ataque (Zc 4.6), pois ele “anunciará”, istoé, ele iria dominar com a sua palavra (Jo 8.47,51; 18.37). Não anuncia-rá condenação, porém “paz” (Mq 5.5; Lc 2.14) e isto não apenas paraIsrael, mas também para toda a humanidade: “Ele anunciará paz àsnações”. A sua arma é a Palavra, o evangelho. Ainda que esta sejaloucura e escândalo para os descrentes (1Co 1.23), ela é espírito e vida(Jo 6.63) e poder para salvação (Rm 1.16). Por meio da Palavra o seu

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reino, a Igreja, se estenderá “de mar a mar, e desde o Eufrates até àsextremidades da terra”, isto é, a todo o mundo. É o que acontece coma Igreja em nossos dias. Em toda parte há cristãos, pois o evangelho éanunciado em todo o mundo.

Vv.11,12 – Ao estender o seu domínio sobre toda a terra, o Messias nãodeixará de manter a aliança que fez com Israel no Sinai (Êx 19.5,6), ratificadacom sangue (Êx 24.5-8) que prefigura o sangue purificador de Jesus (Hb9.14-26; 1 Jo 1.7). O sangue que Jesus iria derramar foi o motivo pelo qualDeus preservou e libertou o seu povo “da cova em que não havia água”,a prisão na qual o pecado e Satanás os mantinham. O cativeiro babilônicohavia sido para o povo uma cova assim. Foi o castigo pela apostasia (Jr25.1-11). Desta cova haviam sido libertados. Agora estavam para caíremna cova do desapontamento, do desencorajamento e da incredulidade. Deusassegura pelo profeta que ele está pronto para libertá-los desta cova tam-bém. Tão-somente deveriam voltar-se para Deus, “voltai à fortaleza, ópresos de esperança”.

“Também hoje vos anuncio”. Ainda que a situação pareça ser muitodifícil, como era na ocasião em que Zacarias se dirigiu à Judá, Deus declaraque tudo lhes seria restituído em dobro. As dificuldades deles não iriamdurar para sempre (1Co 10.13; 2Co 1.3-10; 4.8-18). Há um futuro gloriosoque aguarda o povo de Deus. Deus prometeu restituição “em dobro” (Is40.2; 61.7). A referência é feita à herança em dobro que cabia ao primogênitoem relação aos demais irmãos (Dt 21.17; cf. Hb 12.22,23).

SUGESTÃO DE TEMA E PROPOSTA HOMILÉTICA

O POVO DE DEUS PODE SE ALEGRARpois:

I. Deus nos traz para junto de siII. Deus está conosco e sabe da nossa situaçãoIII. Ele é Justo e SalvadorIV. Traz a verdadeira pazV. Promete um futuro glorioso

Elvio BenderCapitão Leônidas Marques, PR

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OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 55.10,11

14 de julho de 2002

O DOMINGO NO ANO ECLESIÁSTICO

A partir de modificações propostas por igrejas da América do Norte,congregações luteranas da América do Sul e Austrália adotam a nomen-clatura de domingos após Pentecostes para todos os domingos que suce-dem a celebração da vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos reunidosem Jerusalém. Como é do conhecimento geral, as igrejas luteranas da Eu-ropa prosseguem denominando esses domingos de após Trindade. O do-mingo que contemplamos hoje leva conseqüentemente o nome de 8º Do-mingo após Pentecostes e 7º Domingo após Trindade, nas Américas e Eu-ropa respectivamente. Diga-se de passagem que tal nomenclatura restrin-ge-se às Igrejas Luteranas, uma vez que a Igreja Católica Romana chamaesse domingo de “Tempo Comum”.

A cor litúrgica verde adotada para essa época do ano eclesiástico bemindica a característica desses domingos que se sucedem, sem que maiorescelebrações chamem nossa atenção. Há um crescimento que se assemelhaao crescimento das plantas, lento e até invisível aos olhos, mas constante.

A igreja avança no tempo, os fiéis são alimentados pela palavra de Deuse os sacramentos. Quem há de estar no culto quando a palavra de Deus forpregada nesse 14 de julho de 2002? Um domingo comum, igual a tantosoutros, que trará à igreja um público diferente daquele que costuma estar noscultos em dias especiais como Natal, Sexta-Feira Santa, Páscoa. Certamenteaqueles que habitualmente vêm aos cultos. Talvez, dado o período de fériasescolares, algum visitante a acompanhar familiares ou amigos. Ao pregadorcabe anunciar a palavra de Deus, Lei e Evangelho. Palavra que é poderosapara gerar vida porquanto meio pelo qual o Espírito Santo cria a fé e a alimen-ta, como também o faz através dos Santos Sacramentos.

O TEXTO

Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus e para lá

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não tornam, sem que primeiro reguem a terra, e a fecundem, e a façambrotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim seráa palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, masfará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei.

Isaías tem intimidade com a palavra e com o Senhor que a revela. Seusouvintes não são muito diferentes dos ouvintes de hoje: pecadores perdidosos quais só podem ser salvos se a graça divina lhes for oferecida. Osversículos objeto de nossa atenção apresentam o contraste: o desalento docoração humano e o poder de criação da palavra de Deus. Somente Deuscria. Pelo poder de Sua Palavra Ele o faz.

POSSIBILIDADES HOMILÉTICAS

A Palavra é a presença de Deus entre os homens!

1 - Cristo é o Verbo, nEle Deus se faz compreensível.2 - Ele (o Verbo) se manifesta continuamente nos meios da graça (Pala-

vra e Sacramento).3 - O poder transformador da palavra de Deus na vida das pessoas (hoje

e sempre); no Universo novo a ser revelado.

Gilvan L. C. de AzevedoWindsor, ON, Canadá

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NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 44. 6-8

21 de julho de 2002

CONTEXTOEstamos vivendo agora o período pós-Pentecoste. Um bom período para

a Igreja refletir sobre o seu crescimento e desenvolvimento. Tratar da ex-pansão , da divulgação de uma mensagem clara são itens imperiosos paraque ela não permaneça confinada às paredes dos templos, mas saia, superebarreiras e “não volte vazia”.

Os capítulos 44 e 45 de Isaías são uma previsão da volta de Israel do cativeiro,sob Ciro, com ênfase especial sobre o poder exclusivo de Deus de predizer o futuro.Ciro, rei da Pérsia, reinou em 539-530 a. C., consentiu que os israelitas voltassempara Jerusalém e expediu um decreto autorizando a reedificação do templo. Isaíasprofetizou cerca de 150 anos antes de Ciro. Todavia, chama-o pelo nome e predizque ele reconstruirá o templo o qual, nos dias de Isaías, ainda não tinha caído.

O ponto a destacar no texto é a superioridade de Deus sobre os ídolos. Suacapacidade de predizer o futuro, profetizar, enfatizam a sua condição de Deussoberano.

Isaías ridiculariza os ídolos e seus adoradores, pois tais ídolos são pro-dutos da imaginação humana: não falam, não vêem, não ouvem! Mas, “onosso Deus”, diz Isaías, não só pode fazer o que os homens fazem, como écapaz (poder) de fazer coisas que os homens não podem executar. Isaíasconvida os povos para uma conferência de deuses; questiona se algumanação tem em sua literatura predições de fatos que aconteceram depois.

Há uma identificação bem clara de quem é o nosso Deus, o que ele écapaz de fazer em contraposição aos ídolos e falsos deuses cuja existênciadeve-se exclusivamente à imaginação do homem e à tradição humana.

Este Deus formou e escolheu uma nação para si. E, mesmo em flagran-te desobediência e rebeldia, ainda era a nação de Deus. Deus não abando-na o seu povo. Não deixa de investir nele, apesar de constante afastamentoe rejeição. Continuamente procura dar demonstrações de seu poder paraque todo o mundo veja que somente Ele é Deus.

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É preciso salientar que um elemento muito importante na aliança de Deuscom seu povo é a obediência. Deus a espera, a deseja de seu povo. Um dosmaiores pecados do povo é justamente abandonar o seu Deus e Senhor, quese identifica como Rei e Salvador, e trocá-lo por outros. Ele se apresentacomo “primeiro e último” para determinar a amplitude de seu poder e confir-mar a condição de “Todo-Poderoso”. Este Deus pode anunciar juízo iminen-te ao povo rebelde. Há uma clara determinação de Deus para reafirmar aunicidade deste Deus. Ele é único, soberano, não existe outro igual.

APLICAÇÕES HOMILÉTICASO povo, distante de sua terra natal, vivendo o exílio na Babilônia, está muito

abatido. Deus então leva a todos eles uma palavra de esperança. Deus prome-teu libertação ao povo. Quer que o povo confie nesta palavra. Por isso apre-sentou-se como Senhor. Este Deus garante que não existem outros deuses, porisso ele mesmo se apresenta “como único Senhor e Deus”.

Sem dúvida, conhecendo o histórico rebelde de seu povo, Deus procurademonstrar-lhes, num contexto maior, que a multidão dos deuses, feiticeiros eencantadores da Babilônia não teriam nenhuma chance contra os exércitos deCiro. Reitera-se mais uma vez o poder único de Deus, de vaticinar e de dirigiro curso da história. De um lado, Deus protege o seu povo e depois desafia osdeuses das nações a mostrarem capacidade de predizer o futuro. Tão clara sãoas visões do profeta Isaías que ele fala do futuro como se já estivesse no passa-do, o que é também uma característica da visão profética.

COMENTÁRIOS HOMILÉTICOSO pregador poderá escrever uma mensagem ou estudo enfocando a

esperança do povo de Deus. Pois o povo de Deus necessitou muito deesperança. Vivendo longe de sua terra natal, com saudades do templo edas cerimônias e do contato com as coisas sagradas do templo, o povo éincentivado a esperar. Deus prometeu libertação ao povo e queria que opovo realmente confiasse nas suas promessas, pois ele é o primeiro e oúltimo. Além dele não existe outra divindade, outro deus que possa estarcredenciado a prometer e garantir a execução da promessa.

SUGESTÃO DE TEMA E PARTESTema: Deus é a esperança do seu povo

I. Mostrando-nos que ele é Rei e SalvadorII. Garantindo-nos que não existe outro igual a ele.

Walter José MormelloEsteio, RS

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DÉCIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES1 Reis 3.5-15

28 de julho de 2002

CONTEXTO

O texto nos situa nas páginas áureas e gloriosas da história de Israel, oreinado de Davi que passa a Salomão, o anúncio da nova fase, o reinado depaz em Israel. Davi, morrendo, lega suas palavra de pai ao filho e sucessor(2.2-9). Salomão, por assim dizer numa aliança política, casa-se com a filhado Faraó do Egito, e está diante de sua tarefa de líder nacional. Logo apóso acontecimento relatado na perícope, vê-se confrontado a questões soci-ais e religiosas em seu reinado e a decisões importantes a serem tomadas,desde a disputa de prostitutas pela sua prole até o estabelecimento de alian-ças internacionais (3.16-28;5.1ss) e a centralização do culto no novo tem-plo. Responsabilidades pedem capacidade. Capacidade pressupõe prudên-cia (2.9). Prudência implica não só ações certas (2.9) mas coração com-preensivo (3.9). Coração compreensivo é antes de mais nada um cora-ção que ouve (2.3;3.16-22).

TEXTO - CONSIDERAÇÕES GERAIS

A expressão nir’ah não significa que Deus apareceu a Salomão em algu-ma forma corporal, mas que revelou-se a ele, que o inspirou, que lhe falou dealguma forma específica de sonho. Podemos entendê-lo como Salomão rece-bendo comunicações divinas, pensamentos divinos num sonho. Salomão funda-mentou seu pedido na certeza de que Deus o atenderia para ajudá-lo em seureinado, assim como fora misericordioso para com seu pai Davi.

O pedido de Salomão revela sua prudência: se na vida comum somoschamados a tomar muitas decisões, a julgar, a fazer escolhas, quanto maisna função política de dirigir uma sociedade ou nação. O coração compre-ensivo é antes de mais nada um coração que ouve. Saber ouvir é umavirtude, requisito para uma ação sábia. Julgar bem pressupõe ouvir bem. Anatureza humana caracteriza-se pela precipitação e interesses particulares,egocêntricos, de onde saem ações e decisões erradas e conflitos e injusti-ça. A oração de Salomão é o modelo de uma oração de fé e confiança: não

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pensa primeiramente em si, mas no seu serviço a outrem. Não fundamentao seu futuro fazer e o sucesso na sua capacidade, mas pede esta do alto.Testemunha de uma fé confiante na bondade e graça de Deus. Deus se lherevela à noite porque ele o procurou e adorou durante o dia. O amor e aadoração a Deus não permanecem vazios nem ficam sem resposta. Deusatende, e acima da conta, o pedido de Salomão.

REFLEXÕES HOMILÉTICAS

Há, na cultura alemã, uma história antiga sobre desejos atendidos: “Opescador e sua mulher” (Der Fischer und seine Frau) (que as criançasgostavam de ouvir em LP nos anos 70, como o abaixo-assinado também).Um pescador salva a vida de um peixe barbada, que se revela ser um peixemágico. O famoso e repetido grito do pescador à beira do mar, para chamaro peixe, que lhe promete atender os desejos, era a fórmula mágica: “Manntje,Manntje, Timpe Te, Barbada no mar, minha mulher Ilsebill não quer como euquero” (“Manntje, Manntje, Timpe Te, Butje Butje in der See, meine Frau dieIlsebill will nicht so wie ich wohl will”). Na história vemos tanto questõesconjugais como questões de excessos, de constante insatisfação: Primeiro, amulher deseja, com a ajuda da barbada, sair de sua casa miserável de pesca-dor e ter uma casa melhor. Depois não se contenta mais: sempre resmungan-do, deseja um castelo. Quando o tem - sempre com a intercessão do cada vezmais desesperado, mas inativo marido junto ao peixe -, quer tornar-se rainha.Depois, imperatriz. O peixe sempre lhe dando estas coisas “de barbada”.Quando ela enfim pede para tornar-se Deus e poder decidir sobre o sol, abarbada os leva ambos de volta à sua pobre casinha de pescador, e desapare-ce para sempre no mar. A lição é evidente: desejos e ambições irrefreadosnão ajudam, mas podem destruir até aquilo que teria sido possível. Aqui notexto também temos uma história de desejos a serem atendidos. Um homemsucede ao outro em altíssima função. O segundo olha com gratidão para asconquistas do primeiro. Mas está preocupado com a responsabilidade que oespera. Prudente (2.9), Salomão não confia excessivamente em si: olha parao alto, adora o criador e está atento àquele que é maior do que nossos desejose capacidades (3.3-4). À noite, Deus o inspira num sonho, e lhe proporcionaum desejo ilimitado: imaginem o que “amigos” e “assessores” lhe teriam su-gerido! Mas eles não sabem, Deus fala a sós com Salomão, num pedido,numa troca: atende meu pedido, e faz o teu pedido, porque quero ouvir-te.Deus entra numa troca do ouvir e ser atendido: o pedido de Deus foi atendido,ele atenderá o pedido de Salomão. Deus não é um Deus imóvel, inacessível,mas é um Deus-conosco, um Deus que entra em relação conosco. E eleprocura não uma pessoa imóvel e estagnada, mas alguém que reage a Deus,como Salomão: ele honra a Deus e lhe pede. Pedir e ser atendido, é assimque funciona com Deus. No Novo Testamento o pedido de Deus foi demo-

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cratizado: a todos Jesus pede: pedi, e dar-se-vos-á. E o novo rei pede umcoração sábio, que ouve. Ele sabe que só se enxerga bem com um bomcoração. O coração alimenta-se do ouvir e se exerce no distinguir e julgar.Alimenta-se do ouvir a palavra de Deus, nas suas orientações e valiosaspromessas. E exerce-se no julgar e distinguir. O coração distingue entre obem e o mal, entre o que destrói e o que preserva a vida. Um coração queouve funciona como um aviso precoce, uma mente forte e crítica, que tem acoragem de, se necessário, dizer não em tempo, e de dizer sim quando épreciso avançar com coragem. Deus gosta do pedido de Salomão. Ele ficafeliz. Um Deus feliz gosta de atender pedidos. E por sua vez faz o rei feliz:promete-lhe um coração sábio. E com ele, muitas outras bênçãos materiais.Aqui fica claro que não se trata de substituir a competência pela piedade.Não rezar ao invés de trabalhar e agir. Mas trabalhar e agir corajosamentepedindo que Deus nos assista em nosso fazer e nos dê coração compreensi-vo. Eis do que se trata. Um coração que ouve, um coração sábio não é umavirtude nossa, é uma dádiva que se pede de Deus. Ao pescador e à suamulher faltaram corações que ouvem para tornar-se sábios. Nós nos predis-pomos a pedidos de Deus quando o honramos e o adoramos, como Salomão.Felizes somos, porque Deus quer nos fazer pedidos: deixemo-lo feliz, pedindotambém um coração que ouve, que é sábio e compreensivo. E poderemoscumprir com as tarefas de nossa vida para o bem dos nossos semelhantes, econhecer bênçãos e felicidade.

ESTRUTURAS HOMILÉTICAS

Opção I: Disposição: Quando nossa oração agrada a Deus?

1) Quando oramos no sentimento de nossa pequenez e fraqueza, e naconfiança em sua misericórdia e suas promessas.

2) Quando antes de mais nada pedimos dons e bênçãos espirituais (Mt6.33;Ef 1.3;Tg 1.5). (mas veja também Pv 3, 16-35 quanto a bens ma-teriais).

Opção II: Tema: A verdadeira sabedoria que deveríamos pedir a Deus(Tg 1.5) não consiste em grandes conhecimentos, mas na compreensão doque é bom e mau (Jó 28.28; Tg 3.17; Ef 5.17), e é fruto da renovação denossa mente (Rm 12.2).

Pensamento importante, para finalizar: o que acontece neste texto, Je-sus nos oferece no sermão do monte e no Pai Nosso (Mt 7.7-12; 6.9-13).

Manfred ZeuchCanoas, RS

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DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 55. 1-5

4 de agosto de 2002

CONTEXTO

Pela vivacidade do seu estilo, este convite tem sido comparado com osgritos dos vendedores de água e outros vendedores, tão comuns no OrientePróximo. Este texto está entre os conceituados como um vibrante discursode consolo, dirigido aos israelitas exilados nas distantes terras da Babilônia.A esperança de em breve retornar à Pátria é o anúncio com que o Senhor,pela palavra do profeta, põe alegria no coração dos desterrados. Ciro, o reipersa, foi o instrumento escolhido por Deus para levar a cabo a libertação ea repatriação do povo, descritas com palavras que, às vezes, lembram oêxodo do Egito. Este texto contém uma vibrante exortação para aceitar porfé a salvação oferecida. É um dos maiores convites das Escrituras.

ESBOÇO

a. Os participantes – é apenas para os que têm sede.b. O produto – leite e vinho à vontade.c. O preço – é de graça.d. A promessa – esta bebida gratuita salva a alma.e. A súplica – os pecadores são solicitados a buscar o Senhor agora,

antes que seja tarde.

TEXTO

V. 1 – O Senhor está falando. A exortação começa de forma metafórica.Uma figura familiar no dia-a-dia em Jerusalém é o vendedor de água,que carrega um pote nas costas e oferece em voz alta o seu suprimentoà venda. O apelo para vir e comprar; ao mesmo tempo torna-se claroque de fato a intenção é outra. O que fala aqui não é comerciante queoferece sua mercadoria mediante pagamento; pelo contrário, Ele con-vida as pessoas para um banquete de salvação, que pode ser obtido pornada. Tudo o que é necessário é que as pessoas venham e tomem o queo Senhor lhes oferece.

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É interessante que o profeta não dirigiu as palavras ao povo de Israelcomo era costume, mas a indivíduos: “vós que tendes sede, e que nãotendes dinheiro”. Aqui o que interessa é a decisão pessoal, ninguém éexcluído, visto que o convite aos que têm sede também pode despertar emoutras pessoas o desejo de vir.

Quando o autor usa as palavras “Vós que não tendes dinheiro”, eleestá descrevendo a miséria total em relação aos convidados. Transpondoessas palavras para a obra redentora de Cristo, entenderemos o que Deusestá preparando, e concluiu na morte vicária de Cristo para nós, povo deIsrael. Nós que somos miseráveis, sem dinheiro, sem condições para nosachegarmos até Deus, sendo totalmente dependentes da obra de Cristo. Oque Deus quer de nós imperfeitos é penitência, arrependimento, humilha-ção (cf. Lc 18.9-14).

V.2 – O convite se torna mais urgente quando o profeta aponta para apobreza da vida sem a salvação oferecida pelo Senhor. A nossa vida éuma bola girando no desperdício, em gastar dinheiro naquilo que não épão, e naquilo que não satisfaz. Essa expressão deve ser entendidafiguradamente, referindo a uma ilusão de suposta satisfação que opõe-se aos prazeres reais oferecidos pelo Senhor. Tudo o que se ganha como suor, o trabalho é incapaz de satisfazer o coração em relação ao queDeus oferece gratuitamente. O profeta está nos dando uma aula demordomia do tempo, dos bens, e ressaltando o 3º mandamento. Temoso momento de trabalho para o sustento do lar, do lazer; mas tambémdevemos reservar tempo necessário para saciar a fome e sede da vidaespiritual, que aliás, é gratuita.

A 2ª parte do v. 2 “Ouvi-me atentamente” e “comei o que é bom” , nohebraico podemos lê-la da seguinte maneira: “Se me ouvirdes, entãocomereis o que é bom”. Essa pessoa insensata (surdo para Deus) podiaviver muito melhor nesse mundo em relação aos sacrifícios próprios que omundo exige. Ele apresenta o simples ato de escutar à voz do Senhor achamar; e logo receber aquilo que não é pão, mas que é bom para comer,ou seja, uma experiência de verdadeira satisfação da alma. Isto é expressode maneira ainda mais vigorosa ao se dizer que sua alma se deliciará comfinos manjares, sendo a gordura considerada como manjar especial pelosorientais, portanto uma figura da experiência da maior alegria.

Vv. 3, 4 – O convite para ouvir o Senhor e vir a Ele e, conseqüentemente,para as bênçãos da redenção que Ele oferece é repetido aqui, acres-centada a promessa de que então a sua alma ou pessoa viverá. Esta

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vida, no seu plano mais alto pode ser experimentada apenas na obedi-ência da fé. A salvação oferecida é descrita em linguagem clara comouma aliança perpétua, uma aliança que Ele dará, que é descrita inteira-mente como uma dádiva e graça de Deus, complementada em detalhescomo “fiéis misericórdias prometidas a Davi”. Esta profecia se refere àpromessa de que o Messias sairia da casa de Davi, sendo completa-mente cumprida com a vinda de Cristo, o príncipe que Ele deu portestemunho, prova, e governador dos povos.

V. 5 – Como fecho dessa perícope, o profeta mostra nesse v. as bênçãosque obterão nEle e através dEle: “Eis que chamarás a uma naçãoque não conheces”. Podemos contrapor esse v. com o lema vigentena IELB: “Missão de Deus, desafio da Igreja”. O governo do Mes-sias expresso no v. 4 é que esse chamado é um convite aos gentios paraque entrem em comunhão com o povo de Deus, os cristãos, e assimgozem das bênçãos preparadas para o povo que teme ao Senhor, e aoque Ele foi preparar aos que nEle confiam e guardam os seus manda-mentos (cf. Jo 14.2,3).

O mesmo convite que Deus faz ao povo através do profeta é feito a nós,povo de Deus. Somos chamados e convidados a cada dia para o banquete,sem dinheiro e sem preço. Nós, que somos conhecedores das bênçãos deDeus e da obra vicária de Cristo, temos o desafio de fazer esse convite atodos, sem distinção de raça, nível cultural e social, pois todos carecem dagraça de Deus, e a recompensa será extraordinária: a vida eterna.

SUGESTÃO DE TEMA

Vinde e fartem-se:

a) Com o alimento que Deus nos oferece (palavra e sacramentos)b) É inteiramente gratuito.c) A recompensa é inevitável.

Donário BorchardtAmambaí, MS

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DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES1 Reis 19. 9-18

11 de agosto de 2002

TEXTO E CONSIDERAÇÕES HOMILÉTICAS“Que fazes aqui, Elias?” Deus encontra o seu profeta com medo, decep-

cionado, recluso, acuado, “revoltado”, desanimado e escondido numa ca-verna. Elias poderia tomar tal atitude extrema? Ele possuía razão para fugire abandonar a sua missão? Havia ele esquecido rapidamente a parceriadivina em sua vida? Quantos milagres foram realizados em nome de Deuspor seu intermédio! Em nome de Deus ele anunciara a seca, fez reviverpessoas, amparara moribundos, enfrentara e dizimara inimigos, experimen-tara o poder e a inseparável assistência divina. Em tudo o que fizera foraum vencedor. Por que então a fuga e o refúgio numa caverna?

Elias viveu uma contradição, em que a vitória lhe trouxe um sabor amar-go de derrota. Elias, na verdade, estava decepcionado com a rebeldia eincredulidade do povo. Ele não conseguia relacionar o seu compromissocom Deus e a reação negativa do povo. O povo, juntamente com os seuslíderes, não reagiu positivamente à ação de Deus. Deus, diante da rebeldia,aplicava corretivos extremos como a morte, mas não houve arrependimen-to. Além da rebeldia, a sua vida estava correndo perigo novamente. Os seuse os inimigos de Deus eram muitos. Elias cansou. Ele deu um basta. Nãoqueria ser mais o carrasco de um povo rebelde e surdo ao chamado deDeus. Encontrou a saída. Atravessou o deserto, encontrou a caverna pararefugiar-se. Ali não veria mais pessoas. Desconheceria os problemas, nãoenvolveria o povo com o juízo divino e resguardaria a sua vida.

“Que fazes aqui, Elias?” É a voz de Deus. Talvez a caverna, para ostress de Elias, era uma boa saída. Mas não para Deus. E a intervençãodivina revela o grande amor e a solidariedade que Deus possui para com osseus profetas. Deus foi atrás de Elias. Apesar da revelada fragilidade doseu profeta, Ele o chama de volta. Deus toca fundo na alma de Elias epermite que despeje as suas queixas e decepções. Que paciência possui oDeus de Elias. Conhecendo bem a sua alma, Deus permite que ele coloque

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para fora tudo o que está armazenado. Com essa atitude, Deus revelou que“perde tempo” para correr atrás de seus filhos e ouvir as suas lamúrias.Muito nos consola a paciência e a atenção dedicada de Deus a Elias. ComoDeus é maravilhoso. E o seu amor excede, quando reintegra o profeta nasua missão. Apesar da fuga, do medo, do “stress” e do momento negativode Elias, Deus renovou com ele a parceria de sua obra. Elias ignorava, masDeus desejava sua participação. Pois Deus precisava salvar mais sete milpessoas que eram fiéis a Ele. E Elias recebe a missão definitiva e aindamais nobre: ungir reis e o profeta Eliseu e confirmar o seu Reino perante oseu povo.

Diante deste Deus de amor, Elias não se recusa servi-lo. Elias reconsi-dera os seus planos, enfrenta novamente o deserto e se dispõe a cumprir avontade do SENHOR. Elias, grande profeta, também revelou fraqueza edificuldades para encarar a sua missão. Mas a grandeza do profeta residejustamente na revelação de sua fraqueza, sujeitando-se à interventora pro-messa divina.

Elias não se opôs à missão de Deus, apesar de ter vacilado. Apesar deseus questionamentos e dúvidas, ele se submeteu à ordem divina e realizoua obra. Elias aprendeu que não pode olhar para os frutos imediatos, pois aação é divina e é Ele quem monitora a sua obra. O fato de Elias ter serefugiado na caverna aponta para uma prática comum: buscar o desertopara fugir da missão e omitir-se na caverna da inatividade. Cabe-nos anali-sar, para que identifiquemos como fugimos para o deserto e nos refugiamosem nossas cavernas. Ou somos isentos desta prática? Quando nos recusa-mos a participar de um programa ou trabalho no reino de Deus, devido afracassos e decepções anteriores, por acaso não estamos imitando Elias?Quando recusamos a convocação da igreja para desempenharmos uma fun-ção, não estamos deixando desassistidos os sete mil que Deus deseja aten-der e fortalecer para o Seu reino?

Como é grande o amor de Deus! Compreensivo e restaurador com aquelesque fraquejam. Protetor e vigilante de todos os seus filhos. Este é o Deus deElias. Este é o nosso Deus. Este é o Deus que assiste, fortalece, renova oseis servo atemorizado e envia um Elias comprometido e zeloso. Este é onosso Deus, que não deixa um Elias sozinho na caverna, bem como vigia osseus sete mil fiéis que precisam da sua assistência através do profeta. Por-tanto, podemos ter a certeza, diante de problemas e desafios, podemos con-fiar que Deus estará sempre diante da nossa caverna confirmando o seuamor. Refugiar no seu amor é melhor do que refugiar-se numa cavernaescura e isolada do deserto.

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PROPOSTA HOMILÉTICA

No refúgio do fracasso, Deus compartilha o seu amor1. Restaurando o seu servo2. Confiando-lhe a Sua missão.

Danilo V. FachCanoas, RS

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DÉCIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 56. 1,6-8

18 de agosto de 2002

LEITURAS DO DIA

O Salmo 67 é conhecido como o Salmo Missionário. Aqueles a quemDeus se revelou, se tornou conhecido, são agora, embaixadores – têm umamissão – tornar este Deus conhecido (vv. 1,2,6,7). No v.2, o salmista pedeque Deus capacite o seu povo para espalhar a boa notícia da salvação entretodas as nações.

O povo escolhido de Deus (Igreja) deve ter como missão (objetivo)levar “Cristo para todos”, para que, assim como faz o povo de Deus, todosos povos da terra venham à presença do Todo-Poderoso para adorá-lo.

O texto de Rm 11. 13-15, 29-32 aponta para a universalidade dagraça de Deus (v.32). Por causa do pecado, por natureza, todos são cegos,mortos e inimigos de Deus. Mas Deus, por sua imensa graça, contemplou atodos com sua misericórdia. Deus graciosamente alcançou e alcançará atodos pelo Evangelho – palavra e sacramentos.

O Santo Evangelho do dia mostra, claramente, que Cristo veio parasalvar todos. Josué havia expulsado os cananeus da terra prometida. Estepovo concentrou-se e se desenvolveu na terra de Tiro. Agora, Jesus leva aeste mesmo povo a esperança de uma terra melhor – a pátria celeste – eJesus é o Caminho – para todos.

CONTEXTO

Isaías foi um dos maiores profetas, não só pela extensão do seu livro, mas pelariqueza do conteúdo de sua proclamação. Ele é conhecido como o “Evangelistado Antigo Testamento”, visto que apresenta a mais completa e clara exposição doEvangelho de Jesus Cristo que se pode encontrar em qualquer parte do AntigoTestamento. O livro de Isaías serve de compêndio das grandes doutrinas da épo-ca pré-cristã. O Novo Testamento diz que Isaías “viu a revelação da NaturezaDivina de Jesus e falou a respeito Dele” (Jo 12.41 – NTLH).

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Isaías, filho de Amoz, membro de uma respeitada família de Jerusalém,viveu entre os anos 742 e 687 antes de Cristo. Recebeu de Deus a ordemde pregar, sem qualquer transigência, uma mensagem de advertência edenúncia contra o seu povo, por causa da vida ímpia e idólatra. Convocoutoda a nação para fazer uma reforma completa e entregar-se a um verda-deiro arrependimento.

Isaías foi odiado e perseguido pelo rei Acaz, mas foi respeitado pelorei Ezequias (716-698 a.C.) que, apesar de considerá-lo, desconsiderou suasadvertências contra a aliança com o Egito. “Uma tradição talmúdica, aceitacomo autêntica por muitos primitivos pais da Igreja, declara que ele resistiuaos decretos idolátricos de Manassés, pelo que foi preso, prensado entreduas pranchas de madeira e “serrado ao meio”, sofrendo assim mortepenosíssima e horrível. Pensa-se que a isto se refere Hb 11.37.” (ManualBíblico – H. H. Halley – página 256)

O TEXTO

O capítulo 54 de Isaías fala da bênção sobre Israel; o capítulo 55 enfatiza agraça a todos os pecadores que confiam em Deus. Para ratificar esta verdade,o capítulo 56. 1. 6-8 confirma a inclusão dos gentios na bem-aventurança deIsrael (não como nação, mas como o seu povo, na totalidade).

V.1 – O capítulo 56 inicia com as sempre importantes palavras: “Assim dizo Senhor”. O Senhor Deus instrui, ensina – o Senhor relembra o que oseu povo esqueceu: a sua lei, a sua santa vontade.

Quando o Senhor fala, ninguém mais tem uma palavra melhor, ninguémtem proposta melhor, ninguém tem Salvação, pois ele é o único SENHOR.Quando o Senhor diz, ele cumpre. A mensagem deste versículo pode sercomparada à de João Batista em Mc 1.15. O Senhor diz que vem – elecumpre o que promete. Estar pronto, preparado, é a ordem.

Vv.6,7 – Estes vv. falam do destino (sorte) dos estrangeiros. O v.6 des-creve o seu relacionamento com o Senhor, enquanto o v.7 fala daspromessas que lhe são asseguradas. V.6: “....e chegam ao Senhor parao servirem”.... A palavra original para este “servirem” denota um ser-vir voluntário, serviço honroso, não um serviço simples, uma obra qual-quer, feita por um escravo. O Senhor é a causa de os estrangeiroschegarem até a sua presença, para servirem... para amarem... paraserem servos (esta ascendência não pode ser ignorada). Isto caracteri-za um apegar-se (pertencer) ao Senhor – sincero e de coração (Salmo24. 3-4). Estes Deus receberá (fará com que cheguem e sejam recebi-

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dos) no seu santo monte – no seu templo, sua casa de oração. Ali Deusestará no meio deles (Êx 20.24 e 29.42ss) e todos serão família deDeus (Ef 2.19).

A base destas promessas está na oração proferida por Salomão, nadedicação do templo, em 1 Reis 8.41-43. Parece que os judeus do N.T.haviam esquecido da universalidade do amor e da graça de Deus. Haviamse esquecido de Dt 4.6-8, 32-35. O templo de Salomão havia sido construídotambém para os estrangeiros. Ali todos tinham acesso à graça de Deus.Na verdade, Israel foi chamado para ser o Servo de Deus e pregar aosgentios a salvação de Deus (43.21), até o momento em que a parede queseparava Israel e os gentios seria derrubada (Ef 2.14) e a diferença entreeles deixaria de existir (Rm 3.9-12; Ef 2 e Mc 11.17).

V.8 – Assim diz o Senhor Deus... São palavras introdutórias, justamentepara mostrar a grandeza da promessa que segue: “Congregarei osdispersos de Israel: ainda congregarei outros.....” A força do reunir,congregar, está no Senhor. Ele ajuntará, reunirá o Israel disperso. Eletambém ainda quer reunir, juntar aos filhos de Israel que estão dispersosoutros que “não são deste curral” (Jo 10.16). Para mostrar o quantoDeus quer que “todos sejam salvos” (Jo. 3.16) ...AINDA vai em buscados... OUTROS.

PROPOSTA HOMILÉTICA

Tema: O Senhor quer todos os povos

I – Ele criou – todosII – Ele enviou o Salvador – para todosIII – Ele quer reunir – todos.

Wilmar MeisterSão Leopoldo, RS

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DÉCIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESÊxodo 6.2-8

25 de agosto de 2002

CONTEXTO

O nome divino Senhor (JAVÉ) já era conhecido antes de Moisés. Já háreferência na Escritura a esse nome bem no princípio (Gênesis 2.4;4.26).Segundo os melhores comentaristas, essa passagem de Êxodo 6.2 se refereao momento em que Deus estabeleceu o nome SENHOR, com o qual man-teria, dali para frente, o seu relacionamento especial com Israel.

Trata-se de resposta confortadora ao grito de desespero e ansiedade deMoisés no confronto com o faraó egípcio nas tratativas com respeito à liber-tação do povo de Israel da escravidão. O registro está em Êxodo 5.22,23:“Ó Senhor, por que afligiste este povo? Por que me enviaste? Pois, desdeque me apresentei a Faraó, para falar-lhe em teu nome, ele tem maltratadoeste povo; e tu, de nenhuma sorte, livraste o teu povo”.

Alguns exegetas consideram esse texto bíblico como um segundo relatodo primeiro chamado de Moisés, um reforço. Sem dúvida, pode ser tambémentendido como uma nova motivação e uma confirmação do primeiro cha-mado, num momento em que Moisés parecia estar desanimado com seuvisível fracasso.

TEXTO

Vv. 2-4 – É, sem dúvida, uma solene e definitiva declaração: “Eu sou oSENHOR”. Para os patriarcas, o Senhor não se revelou na sua capaci-dade específica como Jeová, embora o nome Senhor não fosse desco-nhecido para eles. Agora, Deus queria dar uma evidência atual, umaprova definitiva de si mesmo de que cumpriria plenamente suas promes-sas, pondo em efeito e abrangendo as condições do pacto messiânico,pelo menos, na forma que o tipificasse e caracterizasse.

“...como o Deus Todo-Poderoso...” não quer apontar um nome de Deus,mas quer descrevê-lo como o “Deus que é poderoso”.

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“... mas pelo meu nome, o Senhor...” Esta afirmação, a princípio, pareceser um tanto incompreensível. Parece ser certo que o nome era conhecido,mas o significado não. Jeová (SENHOR) é o nome próprio, nome pessoal deDeus, significando o que vive, o que tem existência própria, e nesta conexão,o Deus da Redenção, o Deus da Aliança. Não é somente o Deus que criou ouniverso e o sustenta, o Deus que criou o homem e lhe dá proteção e pão, maso Deus que entra em contato pessoal com a criatura caída, perdida e quersalvá-la. Neste dimensão, Jeová (O SENHOR) não tinha sido conhecido pe-los antigos patriarcas. O Senhor agora se manifesta como se manifestariaséculo depois entre os mesmos judeus, humanizando-se em Cristo para poder,de maneira completa, resgatar, salvar o ser humano.

Esta aliança foi feita com Abraão, Isaque e Jacó como suas históriasmostram abundantemente, enquanto permaneciam como estrangeiros naTerra Prometida. Porém, o tempo de 04 gerações a que Deus se referiu aAbraão (Gênesis 15.16) estava se completando e sua palavra precisavaagora ser cumprida.

V. 5 – “... e me lembrei da minha aliança”. Daqui para frente, todos osatos redentores de Deus serão apresentados como “lembranças” des-se compromisso obrigatório que Deus estabeleceu livremente. Lem-brar não significa que Deus tenha esquecido Sua aliança. “Lembrar-se da aliança” é agir de maneira tal que os homens possam ver eperceber o cumprimento das promessas.

V. 6 – “... resgatarei com braços estendidos...”, sugere um relaciona-mento pessoal, íntimo, entre Redentor e redimido.

V.7– “Tornar-vos-ei por meu povo...” uma das mais lindas declarações,conseqüência da aliança.

“... que vos tiro de debaixo das cargas do Egito”. Este é o começo dogrande credo da fé israelita e aparece de forma mais distinta na introduçãoaos 10 mandamentos ( Êxodo 20.2).

À medida que crescia a experiência de Israel com Deus, novos “artigos”eram acrescentados ao credo, mas esse “artigo fundamental” permaneceuo mesmo em toda a história da nação.

V. 8 – Assim o Senhor deixava estabelecida Sua tríplice promessa:

1) libertar o povo da escravidão do Egito;2) adotar formalmente o povo de Israel como SEU povo;3) e levá-los, conduzi-los para dentro de Canaã, a terra prometida. As-

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sim, o Senhor conforta seus filhos e filhas em meio às suas aflições com apromessa de perpétua libertação, por meio da Sua aliança, que permaneceuviva em seus corações.

PROPOSTA HOMILÉTICA

O SENHOR “se lembra” sempre da Sua Aliança:

1) o fez maravilhosamente com o povo de Israel, livrando-os e adotando-os como seu povo;

2) o faz maravilhosamente conosco, livrando-nos, por Cristo, dos“escravizadores” e da escravidão eterna;

3) fará maravilhosamente conosco, adotando-nos, perpetuamente, comoseu povo, levando-nos para dentro de nossa verdadeira pátria, a pá-tria celestial.

Norberto Ernesto HeineSão Leopoldo, RS

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DÉCIMO QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESJeremias 15. 15-21

1 de setembro de 2002

Há muitos paralelos entre a época de Jeremias e o nosso tempo, entre oseu chamado e o chamado de cada cristão, entre a sua dor e o nosso desa-fio de não só permanecer fiéis ao nosso Salvador, mas também anunciarclaramente a sua mensagem à nossa geração. Para entender a mensagemdesta perícope, é preciso passear pelo seu contexto e desenterrar as suasraízes, numa tentativa de entender o que Deus está dizendo nela a estageração.

CONTEXTO

O próprio livro de Jeremias contém algumas coordenadas importantespara traçar o seu mapa. De 1.1-3, (1) sabe-se que nasceu de uma famíliasacerdotal e que, portanto, desde criança tinha intimidade com as escrituras econhecia bem as dificuldades do seu povo para ajustar-se à vontade de Deus– “este povo é de coração rebelde e contumaz” (5.23). (2) Sabe-se quenasceu em Anatote (moderna Anata), povoado levítico a uns 5 km a Nordes-te de Jerusalém, e que durante o seu ministério viu o trono de Jerusalém serocupado pelos reis Josias, Jeoaquim e Zedequias, até os dias em que osbabilônios vareram o reino de Judá para as margens dos rios da Babilônia(Faça uma leitura rápida desses governos em 2 Rs e 2 Cr para obter maisinformações contextuais, especialmente porque Jeremias é mais temático doque cronológico. (3) Sabe-se que Jeremias foi chamado durante o governode Josias. Se Jeremias nasceu, como estima-se, aproximadamente em 650a.C., o décimo-terceiro ano de Josias corresponde aproximadamente a 625a.C. Portanto, era jovem (1.6, “não passo de uma criança”), talvez em idadede casar. O Senhor não lhe dá opção. Chama-o expressamente para serprofeta. Proíbe que se case (16.2). O privilégio de anunciar a palavra deDeus será muitas vezes obscurecido pela crescente solidão, pelo isolamentoe pela oposição que sofrerá por causa do anúncio da mensagem.

Longe atrás estão os dias de Isaías, Amós e os grandes profetas doséculo VII a.C. Pela mesma atitude de insensibilidade à mensagem, de

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infidelidade e rebelião a Deus, Samaria, coração do reino do Norte, foidespedaçada pelos Assírios. Deus, em sua misericórdia, não quer que Judátenha o mesmo destino. A primeira divisão do livro (cap. 2-25) contém apregação profética dos primeiros 20 anos de ministério de Jeremias, dirigidaao povo de Judá e Jerusalém. A leitura dos primeiros capítulos compõe oclipe que estabelece o perfil: imagens de um povo que não tem mais jeito.“Tornaram às maldades de seus primeiros pais, que recusaram ouvir asminhas palavras; andaram eles atrás de outros deuses para os servir” (11.10).“Tenho visto as tuas abominações sobre os outeiros e no campo, a saber, osteus adultérios, os teus rinchos e a luxúria da tua prostituição. Ai de ti,Jerusalém! Até quando ainda não te purificarás?” (13.27).

TRANSIÇÃODentro deste contexto, o texto. É fácil perceber seus dois momentos: o

momento de desabafo do profeta (15.15-18) e o momento de puxão deorelha e consolo de Deus (15.19-21). Este texto, bem como 11.18-20,21-23; 17.12-18; 18.18-23; e 20.10-13, é classificado como “Poema de La-mento”, onde a humanidade do profeta se manifesta num momento de crisee onde Deus traz uma resposta ao conflito.

TEXTOO texto parece refletir um momento do ministério de Jeremias posterior

à reforma de Josias e anterior à deportação final, talvez durante o reinadode Jeoaquim. O lamento começa com um pedido de vingança contra osinimigos. No v. 15, Jeremias diz: Tu, ó Senhor, o sabes. Um dos sentidosdo verbo hebraico é: “Tu estás consciente do que está acontecendo”. Éuma frase familiar para expressar inocência e protesto ao mesmo tempo.Lembra-te de mim. O verbo não significa mera lembrança passiva, masseu sentido implica o seguinte: Jeremias pede que Deus lembre da suafidelidade e dedicação e, em base a estas ações do passado, atue em seufavor no presente. Ampara-me significa literalmente “visita-me”, com aimplicação de que Deus deveria entrar em ação a seu favor, impedindo queos seus inimigos continuassem maltratando-o. O vinga-me não vem sim-plesmente de um pedido de favor pessoal. O sofrimento do profeta é gera-do por atitudes que são contra um servo de Deus e, portanto, contra Deusmesmo. É Deus mesmo quem está sendo desafiado. Há um certo atrevi-mento nas palavras do profeta, que seguem esta lógica: “Olha, Senhor, dáum jeito nesta gente, porque eles não só estão me incomodando, mas estãoimpedindo que eu faça o trabalho que me pediste. Por conseguinte, façacom que parem com isto.” Não me deixes ser arrebatado, por causada tua longanimidade, isto é, “não sejas tão paciente com os meus inimi-gos que eles tenham tempo de destruir-me”.

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No v. 16, Jeremias continua desenvolvendo o tema do seu sofrimentoinjusto, pois é inocente, e do seu clamor por justiça. Achadas as tuas pala-vras, logo as comi; as tuas palavras me foram gozo e alegria… Pro-vavelmente há aqui uma volta ao momento do seu chamado (1.9), à alegriae satisfação ao deixar a palavra do Senhor tornar-se parte integral da suavida. Ler também Ez 2.8-3.3 (Onde ordena-se ao ‘filho do homem’ quecoma o rolo de um livro: “Eu o comi, e na boca me era doce como o mel”),Ap 10.9-11, e Dt 8.3.

O tema da inocência do profeta volta no v. 17, ao fundamentá-la comsua forma de vida. Roda dos que se alegram, segundo Kähler (459) “é ocírculo das pessoas de posição na comunidade que compartilham de umadecisão comum, que discutem os negócios e as fofocas, que tomam asdecisões e que levam adiante as tradições.” No v. 16, a palavra do Senhoré fonte de gozo e alegria. No entanto, o profeta está excluído da alegria dov. 17, porque provém de escarnecimento, de zombaria, da qual o próprioprofeta é objeto (20.7). (Ler Sl 1.1). Oprimido por tua mão – esta é aforma como o profeta vive a sua presente situação. Aqui aparece o conflito– Jeremias sente o peso da sua missão. Ele não pode cumprir o seu minis-tério profético e ser apenas um entre os seus pares. A sua tarefa o separados demais (leia 16.1-17), há urgência no cumprimento da mesma, e elesente-se pressionado pelo Senhor, tendo que superar suas resistências in-ternas (leia também Is 8.1; Ez 1.3; 3.14, 11; 8.1).

A lamentação chega ao seu auge no v. 18. O profeta tira a roupa eexpõe a sua alma. É um momento de desabafo que só pode ser entendido apartir da extrema dedicação e fidelidade do profeta. Toda a sua humanida-de fica exposta. Segundo Baumgartner (49), dor e ferida – símbolos desofrimento físico – são aqui usados metaforicamente para expressar an-gústia mental, a ruptura da sua alma criada pela dicotomia entre a compulsãodivina e o desejo humano. Será Deus um ilusório ribeiro, como águasque enganam? Em 2.13, Deus identifica-se como “o manancial de águasvivas.” Jeremias é provocativo. Está levantando a hipótese de ser Deus oque ele não pode ser por definição e essência – justamente o contrário doque Deus mesmo afirma ser. Será Deus como um riacho que só corre naestação de chuva? Será Deus mera ilusão? As últimas palavras do profetajá não expressam sua indignação contra o povo endurecido, mas contraDeus mesmo. São palavras de rebelião e de crise com o próprio Senhor queo chamou.

Os vv.19-21 expressam o momento de puxão de orelha e consolo deDeus. A resposta de Deus é surpreendente. O próprio profeta precisa ser

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chamado ao arrependimento, à mudança de atitude. “Deixe de lado estaatitude de autopiedade”. No v. 19 Deus não promete nada além de que, sehouver arrependimento, o profeta talvez possa continuar a exercer o seuofício profético. Com toda a tribulação implicada, seu ofício ainda é umprivilégio. É preciso trilhar o caminho da cruz para que se possa chegar àglória. Jeremias precisa purificar-se da sua amargura – que quase fechou asua boca, que quase o fez perder de vista a sua missão, que quase abalou asua confiança naquele que o enviou. Não é o profeta quem precisa contem-porizar com o povo, mas é o povo quem deve ser transformado pela mensa-gem do profeta. A mensagem dos vv. 20-21 é puro evangelho, é promessa.Aqui há um segundo chamado, que repete a promessa e o conteúdo doprimeiro (ler 1.5-10). “Seja qual for a situação que tenhas que enfrentar, euestarei lá”. A promessa de Deus é a garantia de Jeremias. Ele agora sabeque a jornada do profeta implica abrir mão de muitas alegrias terrenas, eque mesmo no sofrimento e dor, o Senhor não o abandonará, mas renovaráas suas forças.

APLICAÇÕES HOMILÉTICAS

1. A leitura dos outros textos para o 15° dom. após Pentecostes (Sl 119.105-112; Rm 12.1-8; Mt 16.21-26) imediatamente revelarão o tema comuma todos: Amor à palavra de Deus; a consagração de todo o nosso ser aoSenhor; a presença do sofrimento na trajetória dos servos de Deus,que não deve obscurecer o seu alvo ou enfraquecer o seu testemunho.

2. Jeremias tornou-se presa de um duplo conflito: 1.Com o povo, por cau-sa da mensagem de julgamento que pregava. 2. Com Deus, porqueachava injusto ter que sofrer por causa do anúncio da sua mensagem.Teve que ser chamado ao arrependimento e à fé; ao abandono da auto-compaixão e à certeza da presença de Deus, apesar da rejeição sociale do sofrimento.

3. Como pastores, líderes ou sacerdotes reais (o que inclui cada cristão),somos permanentemente expostos ao mesmo conflito e tentação. So-mos chamados, empregando uma metáfora conhecida, a ser luz do mundo.É a luz da fé o que torna possível iluminar o caminho para vida abun-dante aqui e na eternidade. Se nossa luz brilhar, as trevas, que sopramforte, não sobreviverão. Ser luz gera oposição, reações negativas esofrimento. No entanto, é preciso lembrar sempre que o preço vale apena e que nosso Pai Celeste sempre estará lá para trazer conforto erenovar forças. E se Jesus tivesse cedido à tentação? (Mt 16.23.) Senão lidarmos com o conflito, ele vai enfraquecer nossa vontade, nossotestemunho e, finalmente, nossa fé. Vida consagrada implica aceitar osofrimento como parte de nossa realidade, mas também implica saberque Jesus está conosco cada dia até o final.

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PROPOSTA HOMILÉTICA SUCINTA

1 - O conflito de Jeremias – conflito de cada cristão1.1 - A tentação de fechar nossa boca e não anunciar lei e evangelho

plenamente – por medo das suas conseqüências.1.2 - A tentação de culpar a Deus pelo que sai errado ou de não querer

ser diferente.

2 - Chamado ao arrependimento2.1 - Retornando a Deus.2.2 - Aprendendo a confiar nas suas promessas.

Cláudio FlorLondres, Inglaterra

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DÉCIMO SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESEzequiel 33.7-9

8 de setembro de 2001

CONTEXTO

Ezequiel, primeiramente sacerdote em Jerusalém, foi levado ao exíliopara a Babilônia junto à primeira leva de deportados em 597 a. C. No 5ºano de sua deportação ele foi chamado para ser profeta, exercendo essepapel por um pouco mais de 20 anos junto aos judeus que viviam no exílio.Neste seu papel, como atalaia, ele exorta seus companheiros de sofrimentono exílio, os adverte e consola. Recebe visões a respeito de Judá e Jerusa-lém distantes, contra quem inicialmente dirige suas ameaças, alertando opovo exilado contra a expectativa de um retorno à pátria, visto Deus teramaldiçoado Jerusalém por causa dos pecados do povo e da idolatria queimperava no templo em Jerusalém (2 Cr 36.16). Em 586 a. C., no 11º anode exílio do profeta, Jerusalém foi tomada pelas tropas de Nabucodonosore o templo reduzido a ruínas.

Nesta primeira etapa, que se divide em duas partes: profecias antes datomada de Jerusalém contra o povo idólatra, e profecias sobre o juízo deDeus contra as nações, o profeta prega lei, a dura lei, ameaçadora e corre-tiva. Suas pregações, nesta fase, são um misto de ameaças, invectivas,cânticos de lamentação e cânticos fúnebres. Têm o propósito de humilharo povo exilado, seu auditório, e levá-lo ao arrependimento. Ezequiel tinhaliberdade de exercer seu ofício profético no estrangeiro. À sua casa acor-riam os anciãos do povo para o ouvir, ouvir por curiosidade, ouvir segundosentiam coceira nos ouvidos, mas não davam ouvidos às suas mensagens,não queriam ouvir o que precisavam ouvir. Ele lhes era como atalaia, eles,contudo, se negavam a atender o toque de seus alarmes.

Na segunda etapa, que engloba a terceira parte de suas profecias, apartir do capítulo 33, iniciam suas profecias de restauração e livramento dopovo depois da tomada de Jerusalém. São mensagens emitidas após aqueda de Jerusalém. O povo santificado seria restituído à sua pátria e osinimigos seriam duramente punidos. Em vez de um povo humilhado e puni-

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do, depois de restaurado, profetizado pela restauração do templo e das águasque corriam do templo para a banda do oriente, o que simboliza a igreja emseus atos de culto a Jeová e de testemunho ao mundo, o povo de Jerusalémseria uma bênção para o mundo.

Com sentido cristológico ou cristocêntrico aparece o termo “pastor”,um novo profeta, o servo de Deus, Davi. Davi é o grande patriarca e paiancestral do Filho do homem, Jesus Cristo. Nele, no filho de Davi, é verda-deiramente restaurada a Jerusalém, o povo santificado a Deus.

TEXTO

Como texto de apenas 3 vv, digno de nota é a palavra central “atalaia”,vigia, pregador, mensageiro de Deus, a quem o povo deve ouvir para a suarestauração espiritual. É uma repetição de 3.17-19, com a diferença deque em 33.7-9 é seguido o convite à conversão e à doutrina da responsabi-lidade pessoal, vv. 12-19. Ezequiel, como profeta, é uma espécie de avisadorde Deus a um povo a quem ele foi enviado. O inimigo a ser percebido edenunciado eram os pecados do povo, também agora no exílio, a funestaidolatria, ainda não renunciada.

A terrível responsabilidade de um atalaia em época de guerra sobre osmuros da cidade, não lhe sendo permitido dormir jamais enquanto está noposto, a ela, com seriedade semelhante, é comparada a função do profetanaquela crítica conjetura que a nação, o povo de Deus, atravessava.

Não deve ter sido fácil, apesar da liberdade de profetizar, a Ezequieldenunciar os pecados do povo, especialmente o da idolatria, por cuja causae culpa Judá e a capital Jerusalém tinham sido entregues por Deus na mãodos inimigos em 597 a.C., e que o templo seria, e foi, contra a expectativado povo, jogado abaixo. Na mente do povo esta “cumplicidade” de Deuscom os inimigos, permitindo que o seu ícone idolatrado, que era o templo,fosse debulhado, seria um baque catastrófico em sua crença religiosa. Ede fato foi. O próprio Ezequiel, ao receber a notícia, através de boatos, deque os caldeus tinham mesmo derrubado e queimado o templo, o levou aopânico e ele emudeceu, até que Deus, numa nova visão, o comissionou afalar novamente ao povo (24.25-27).

A tarefa básica de Ezequiel é, então, tentar cortar o “cordão umbilical”que amarrava a crença do povo no templo. Deveria anunciar e convencero povo que a “fé” em “paredes e construções”, repetida pelos própriosapóstolos de Cristo (Mc 13.1), quando desvirtuada pela segurança em coi-sas, objetos e mesmo monumentos, desviam a fé verdadeira no Deus Jeová

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que quer ser adorado em espírito e em verdade, com um coração arrepen-dido e fiel nas promessas divinas; que a “fé” em Deus por serem filhos deAbraão não garante absolutamente nada a ninguém. Mas os judeus pensa-vam que sim, e esta foi a grande “tranqueira” a impedir que os judeuspercebessem e reconhecessem seus pecados.

O profeta é chamado por Deus de “filho do homem”, revestido danatureza mortal e pecaminosa, tal como o seu próprio povo. Mesmo exer-cendo função especial, sendo “boca” de Deus, tal como Daniel (Dn 3.17),Ezequiel não poderia procurar se sobrepor aos demais do povo, lembrar-sesempre de sua pecaminosidade. Embora tenha sido distinto por Deus paraa função de profeta, jamais poderia se igualar ao profetizado Filho do ho-mem, Jesus Cristo, a quem aponta em suas promessas de restauração: Ofim último da lei e dos profetas é Cristo.

PROPOSTA HOMILÉTICA

Um profeta de Deus

a) Chamado por Deus: através de sonhos, visões, comissionamentos- Moisés na sarça (Êx 3)- Samuel pela voz noturna (1 Sm 3)- Elias pela palavra direta de Deus (1 Rs 17)- Ezequiel, chamado já sendo sacerdote, por visões à beira do rio (1.1-3)- Um profeta sempre diz “assim diz o Senhor”, e não “assim digo eu”- A IELB chama e ordena pastores e demais ministros: voz indireta

de Deus: nos seus 100 anos é atalaia divino: pregando, administran-do os sacramentos, visitando, confortando, fazendo o bem

- Autodenominar-se ministro de Deus: cuidado = porta aberta paramuita heresia: muitos dos “profetas” de hoje são “lobos roubadores”,que pularam o muro e estão enganando em nome de Deus

b) Sua mensagem- Deve ser anúncio da aproximação do “inimigo” – pecado que está

sempre à porta- Condena a idolatria – todo o pecado é idolatria: pregação da lei para

que “belas e grandes construções” (templo para os judeus, boasobras, religiosidade popular e cheia de superstições, etc) sejam pos-tos por terra e assim Deus seja buscado

- Dificuldades inerentes ao exercício da função: diz uma lenda judai-ca que Ezequiel foi morto por ordem de um príncipe caldeu porcondenar os pecados do príncipe.

- Pode ser e é rejeitada: muita gente ouve o que quer ouvir, não o que deve ouvir.

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- Há os que ouvem o profeta (Palavra) e voltam à Jerusalém celestial(igreja), confiando em Cristo e se santificando, adorando a Deusem espírito e em verdade. Estes são igreja.

- Reconstrução do reino de Deus, do povo santificado: função funda-mental e última da vocação de profetas

- Sejamos gratos a Deus pela construção do reino de Deus entre nóspela voz dos profetas.

Heldo E. BredowCuritiba, PR

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DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESGênesis 50. 12-21

15 de setembro de 2002

LEITURAS DO DIA

- Salmo 103.1-13 – Este salmo mostra o Deus Eterno na sua graça emperdoar. A confiança na misericórdia deste Deus, que perdoa e quesara, não deixa dúvidas de sua bondade. Deus é paciente, bondoso eamoroso. Esta é a atitude de Deus em favor da criatura, e Davi louva aDeus, porque ele perdoa todas as iniqüidades e redime da maldade.

- Romanos 14.5-9 – Paulo coloca o resultado da ação de Deus na vidade seus filhos. Se o peso da lei massacra, somos perdoados e restabe-lecidos, não pela nossa justiça, mas pela graça perdoadora de Deus.Esta graça é que cria o referencial de vida em relação ao irmão maisfraco. Porque Cristo morreu e ressuscitou por nós, fomos libertados, eé esta liberdade que nos leva para uma relação de amor e perdão paracom os irmãos, com paciência, em suas fraquezas.

- Mateus 18.21-35 – As palavras de Jesus sobre viver em comunhãocristã terminam com a parábola do evangelho do dia – viver no perdão.Pedro levanta uma pergunta sobre os limites do perdão – onde parar?Jesus traz resposta típica contra o legalismo casuístico dos judeus –“Setenta vezes sete” não sugere lista de 490 perdões, mas a alegria deviver no perdão. Se apenas e tão-somente esperamos receber perdão,e não queremos viver no perdão, a vida em comunhão cristã sempresucumbirá. É fácil pedir para nós mesmos o perdão de Deus; difícil éestender este perdão para os outros. A comunhão cristã só tem subsis-tência quando vive no perdão total de seu Senhor que deu sua vida pelacristandade. Não só receber e possuir o perdão, mas viver.

CONTEXTO

O problema começa com a venda de José para o Egito. O sentimento deculpa e apreensão deve ter permanecido no coração de seus irmãos. A vida dafamília de Jacó não foi fácil e agradável após o episódio. José, em terra estra-nha, também passou por muitas privações. Junto com as privações o sentimen-to de abandono e solidão. Superou todos eles, sempre fiel ao seu Deus.

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Os irmãos movidos pela fome vão em busca de alimento no Egito. Há oencontro e reencontro. São reconhecidos por José. São perdoados porqueJosé vê a mão de Deus em todos os caminhos de sua vida. Jacó é trazidopara junto de seu filho e a família está novamente reunida. O elo de amor -Jacó e José, pai e filho - traz para todos os outros irmãos a segurançanecessária de não vingança. Jacó morre e a segurança, tão importante, noíntimo dos irmãos desaparece. Não conhecem a reação de José.

O texto está registrado logo após a morte de Jacó. A sobrevivência detoda a família depende de José. A culpa pelo que haviam feito, há muitosanos, vem à tona. José pode tomar uma atitude legal diante de seus irmãos,mas, o que se passa no seu íntimo?

Diante deste questionamento somos levados ao tema central deste Domin-go – “perdão pelo mal que nos é causado e paciência com os que são fracos”.

TEXTO

V. 15 – “Vendo... que...” – no sentido de ser visível, saber, observar, terconhecimento.

- “pai” – Como comandante – objeto de honra, obediência e amor. Estepai constitui, controla, guia. A falta deste pai trouxe aos irmãos de Joséo temor e a preocupação. José poderia agora agir de acordo com o queeles lhe haviam feito no passado.

- “perseguir” – guardar rancor com animosidade.- “retribuir” – retornar, trazer de volta. Pensamento normal dentro das rea-

ções e padrões humanos. O que “aqui se faz, aqui se paga” era regracomum para muitos. O conhecimento desta lei eles perceberam, mas opoder do perdão era preciso dizer-lhes pelas ações da vida de José.

Vv. 16-18 – Fundamentam seu pedido de perdão na memória do pai. Éverídica a mensagem, ou não? Não há registro. Pode ter sido invenção,não sabemos. Primeiro são enviados mensageiros, depois vão pessoal-mente. Reconhecem seu erro, buscam o perdão.

Vv. 19-21 – A resposta que José dá aos seus irmãos é sua grandeza, suahumildade e exemplo:

1 - sabia seu lugar e não se colocou no lugar de Deus para julgar;2 - reconheceu o mal que tinham feito contra ele, mas reconheceu que

Deus transformou este mal em bem para preservação do povo;3 - tranqüilizou seus irmãos não se vingando, mas consolando-os, sus-

tentando-os.

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A atitude de José em perdoar e sustentar seus irmãos demonstra a féque precisa mover cada cristão, que sabe perdoar e dar nova oportunidadede vida de acordo com o amor de Deus.

PROPOSTA HOMILÉTICA

Tema: Deus cuida dos que perdoam e os retribui quando:

I – deixam nas mãos de Deus o julgar os erros dos outros;II – pagam o mal com o perdão;III – agem na prática deste perdão com afeto e amor.

Egon EidamDourados, MS

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DÉCIMO OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 55. 6-9

22 de setembro de 2002

CONTEXTO

No que se refere ao contexto litúrgico, é digno de nota o ponto de con-tato entre a leitura do Antigo Testamento e aquela do Evangelho do dia -Mateus 20.1-16 - a parábola dos trabalhadores na vinha. Se, por um lado, aparábola acentua a graça de Deus, que chama o pecador para o seu reino(assim como Is 55.6,7), por outro lado, o texto de Mateus exemplifica bem(“São maus os teus olhos porque eu sou bom? Assim, os últimos serãoprimeiros e os primeiros serão últimos”) o que Deus anuncia através doprofeta - “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos”. O Sal-mo do dia, Sl 27.1-9, também acentua a necessidade de voltar-se para Deus,como fonte de toda a graça; o tema de buscar a Deus também ali estápresente.

No contexto literário, é importante notar que o texto em estudo é conse-qüência do que é anunciado no famoso texto sobre o Servo (Is 52.13-53.12).O capítulo 54 mostra a misericórdia e a fidelidade de Deus para com seupovo, a quem Ele - o esposo fiel - não abandonará. No início do capítulo 55,temos o convite de Deus para que o seu povo participe do grande banqueteda graça. Algumas expressões se salientam: “Ouvi-me atentamente ... ouvi,e a vossa alma viverá ....convosco farei uma aliança perpétua ...”. Deus seapresenta como o gracioso doador da salvação. O texto em estudo mostrao que isto implica para aqueles que ouvem estas palavras.

TEXTO

Onde colocar a ênfase nas palavras do versículo 6? Pode-se tender aenfatizar o “enquanto”, para dizer que chegará a hora em que Deus nãopoderá ser buscado, nem invocado. Daí a urgência no buscar a Deus. Pormais que tal idéia tenha seus méritos, não é a maior ênfase do texto. Esta seencontra nos verbos: buscai - Ele pode ser achado; clamai (invocai) - Eleestá perto. Os verbos que se referem a Deus (pode ser achado, está perto)deixam claro que é de Deus a iniciativa de vir até Seu povo e chamá-lo ao

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arrependimento. E a ação das pessoas (buscar, invocar) só é possível por-que Deus se coloca diante do Seu povo “perto” (a palavra é usada tantopara proximidade física, como para denotar um relacionamento pessoal eamoroso).

O texto seria usado de maneira equivocada se fosse considerado comouma declaração de que a pessoa deva tomar a iniciativa. Deus já tomou ainiciativa - Ele se coloca onde pode ser achado; Ele está perto. Mas onde éisto? Em sua aliança (v. 3), que se manifesta em Sua palavra (v. 11). Aação de buscar/invocar só é possível porque se refere ao povo de Deus, opovo da aliança, que foi chamado por Deus para ser Seu povo amado e aoqual Deus continua se manifestando de maneira graciosa.

“Perverso”, “iníquo” (v. 7) - é a estes que Deus se reporta e busca, emSua graça. Eles não conseguem chegar a Deus, por suas forças e decisão.O “convertei-vos” (Almeida RA) é uma referência ao chamado ao arre-pendimento, tanto no sentido de deixar o modo ímpio de viver, como, princi-palmente, retornar para o Deus de quem recebera a aliança.

A que se refere a afirmação de que os pensamentos e caminhos deDeus são mais elevados que os do homem (visto que a afirmação iniciacom um “porque”)? Até certo ponto, o próprio texto responde a questão, demaneira simples. O v. 7. se refere aos “pensamentos” e “caminho” dosímpios. É preciso que o pecador deixe os pensamentos e caminho de incre-dulidade, visto que Deus pensa e age diferente.

No entanto, pode-se notar ainda outro contraste entre os pensamentos ecaminhos de Deus e aqueles das pessoas. Aí o texto do Evangelho do diaajuda na reflexão. Em sua graça e misericórdia, Deus manifesta um cami-nho e pensamento que parecem loucura para o homem natural (cf. 1 Co1.18ss). Em uma sociedade do “recebe-pelo-que-merece” e do “aqui sefaz e aqui se paga”, o pensamento e caminho de Deus através de Seu Filhoé, sim, novidade.

Note-se que o v. 10 também inicia com um “porque”, mostrando a cone-xão que há em todo o texto. Deus anuncia o resultado da sua palavra (v.11), que produz vida e alegria em seu povo (vv. 12,13). Assim, o “mais alto”característico dos pensamentos e caminhos de Deus não é apenas um con-traste entre pecaminosidade humana e santidade divina. O contraste é ain-da mais profundo, entre a justiça de obras que caracteriza toda busca hu-mana e a justiça atribuída por Deus ao pecador, por graça, por causa deCristo, mediante a fé. O Evangelho é a grande surpresa de Deus para o

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mundo e também para o seu povo. Dois textos que também tratam domesmo assunto podem ser conferidos em Is 65.1-7 e Jr 29.11-14.

APLICAÇÕES HOMILÉTICAS

- Vivemos em um tempo de oportunidade, o tempo da graça. Vale aqui oditado popular: “Enquanto há vida, há esperança”; mas tal esperança não éa popular, mas a que vem do chamado gracioso de Deus no Evangelho.

- Deus tem critérios estranhos para agir conosco. Ao pecador, Ele secoloca perto e de modo que possa ser achado; mas ao Seu Filho santo eamado, Ele se colocou longe (“por que me desamparaste?” Mt 27.46). É ocaminho da cruz, dolorosa cruz para o Servo de Deus (Is 53), mas graciosacruz, para o pecador.

- Também os cristãos têm dificuldade de viver do Evangelho. É maisfácil e cômodo (e bem mais natural) viver pela lei. É um desafio para nossavida diária deixar Deus ser Deus, reconhecendo-o como gracioso, tantopara nós, como para aqueles que consideramos perversos.

PROPOSTA HOMILÉTICA

Tema: Os pensamentos e caminhos de Deus - mais altos que os nossos.- Por quê?

Gerson Luis LindenSão Leopoldo, RS

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DÉCIMO NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTESEzequiel 18.1-4, 25-3229 de setembro de 2002

INTRODUÇÃO

Não é segredo que o texto de Ezequiel 18 foi escolhido em função doevangelho do domingo, que é a parábola dos dois filhos (Mt 21.28-32).Trata-se de uma parábola que, até certo ponto, é paralela a Lc 15.11-32 (o“filho pródigo”). Tanto Mt 21 quanto Lc 15 apresentam um pai e seus doisfilhos, com destaque para o tema do arrependimento, que, no caso da pará-bola do filho pródigo (Lc 15), é mais descrito do que mencionado. De igualmodo, Ez 18 destaca o arrependimento, ou a conversão. O termo apareceumas cinco vezes, o que estabelece o vínculo com Mt 21.

TEXTO

Ez 18 é um capítulo famoso na Bíblia. Notável é o provérbio ou ditadodas uvas verdes e dos dentes embotados (v.2), que tem paralelo em Jr31.29. Aliás, Ezequiel gosta de provérbios populares (o termo é lv’M’,traduzido, em outros contextos, por “parábola”). Ele tem outro provérbioem 12.22: “Prolongue-se o tempo, e não se cumpra a profecia”. Igualmen-te famoso é o v.4: “A alma que pecar, essa morrerá”. Lido fora do contex-to, antecipa Rm 6.23. Só que no contexto a ênfase é a seguinte: A almaque pecar, essa (e não outra em lugar dela) morrerá. Em outras palavras,a responsabilidade não pode ser transferida.

Como um todo, Ez 18 trata do justo juízo de Deus. O povo se vale de umprovérbio para caracterizar os desígnios de Deus (v.2), insinuando que osfilhos estão pagando os pecados dos pais. A referência é ao exílio babilônico,pois, ao tempo de Ezequiel, o povo está no exílio. Deus responde, jurandopela sua própria vida, que esse provérbio não será mais repetido em Israel.Surpreende uma resposta aparentemente tão branda. Como se não bastas-se, Deus passa a argumentar com o povo. Mostra que cada um é respon-sável por seus atos.

Entramos na discussão na altura do v.25. O povo questiona os cami-

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nhos de Deus. Nada de provérbios (v.2) desta vez, mas ainda é a mesmachoradeira. “O caminho do Senhor não é direito”. “Deus é injusto”. Aresposta é, outra vez, bastante branda. Quando seria de esperar um “quemés tu, ó homem, para discutires com Deus?!” (Rm 9.20), o Senhor respon-de (v.25), em forma de pergunta, se tortuosos não são os caminhos dopovo?!

E novamente Deus passa a argumentar. Introduz o tema da conversão(vv.26-28). Reitera a pergunta pela retidão dos caminhos da casa de Israel(v.29). O que seria um “caminho tortuoso”, neste contexto? Caminhotortuoso é jogar a culpa em Deus, especialmente quando há uma situaçãodifícil (naquele tempo, o exílio). Situação análoga foi apresentada a Jesusem Lucas 13, com a notícia do massacre promovido por Pilatos, ao queJesus acrescenta o desastre da torre no bairro de Siloé. E a resposta aqui,em Lc 13, é idêntica àquela em Ez 18: “Se não vos arrependerdes, todosigualmente perecereis”. Traduzido: Mais do que tentar entender ou saberde quem é a culpa, é preciso tirar uma lição para a própria vida. E estalição passa pelo arrependimento.

Na continuação (Ez 18.30), Deus mostra que a responsabilidade é indi-vidual. Cada qual é responsável por seus atos. “Eu vos julgarei, a cada umsegundo os seus caminhos”. O bom nisso tudo é que, se os filhos, hoje, noexílio, não estão pagando pelos crimes dos pais, cometidos no passado, naterra de Israel, o caminho de volta está aberto a todos e cada um. E aconversão passa a ser um tema marcante da perícope.

O verbo “converter-se” (bwv, shub) aparece cinco vezes em Ez 18.25-32.(Por trás do “desviando-se”, no v.26, está o mesmo verbo hebraico.) Esteverbo ocupa o 12º lugar na lista dos mais freqüentes do AT, com mais de1050 ocorrências. Em Ezequiel, ocorre 62 vezes, sendo superado apenaspor Jeremias (111 vezes), Salmos (71 vezes), e Gênesis (68 vezes). Osentido literal é “voltar”, implicando um movimento físico. Em contextosteológicos, onde se tem em vista a aliança, tem um sentido metafórico:“voltar” como “conversão”, “volta a Deus”.

Na Bíblia, o arrependimento, visto da perspectiva do homem, é descritode diferentes formas. Pode ser um “inclinar o coração ao Senhor” (Js24.23), “circuncidar-se para o Senhor” (Jr 4.4), “lavar o coração da malí-cia” (Jr 4.14), “arar o campo de pousio”, isto é, arar a terra que ficouimprodutiva por algum tempo (Os 10.12). Todas essas descrições de arre-pendimento poderiam ser resumidas, com grande perda de plasticidade, éclaro, pelo verbo bwv, shub.

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Em Ez 18 a conversão é apresentada, ainda, como um “desviar-se dastransgressões” (v.30), “lançar de si as transgressões” (v.31), e, como pontoalto, “criar em si um coração novo e um espírito novo” (v.31). Tudo isto soabastante antropocêntrico, como se a conversão dependesse de nós. Porisso é importante repetir que se trata de descrições a partir de uma pers-pectiva humana. E para que não fique nenhuma dúvida quanto a quem, defato, é o “cirurgião” neste caso, é preciso recorrer a Ez 36.26, onde Deusdiz: “Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei devós o coração de pedra e vos darei coração de carne”.

Ez 18 parece, de fato, colocar todo o peso sobre os nossos ombros. Ojusto que se desvia da justiça, morre por causa da iniqüidade (v.26). Operverso que se converte, conserva a vida (v.27). O texto parece ter poucoou quase nada a respeito da graça e do amor de Deus. No entanto, umajanela se abre no v. 32: “Porque não tenho prazer na morte de ninguém, dizo Senhor Deus”. Deus não é apenas um juiz que, embora imparcial e justo,proclama um frio veredicto de culpado ou inocente. Ele é o Criador quenão tem prazer na morte de ninguém (ver Ez 18.23;33.11). Ao contrário,ele quer conduzir à vida (cf. 1 Tm 2.4-6).

APLICAÇÃO

Existe a tendência, especialmente em tempos de crise, de dizer que aculpa é dos outros (assim como os filhos de Israel, no exílio, achavam queestavam pagando a conta dos pais). Outras opções são culpar Deus, ou,então, perguntar o que Deus tem em vista com tal acontecimento, quandonão se tenta justificar os atos de Deus (teodicéia). Difícil é fazer um meaculpa. Diante disso, sempre é oportuno direcionar nossos olhos para nos-sos próprios caminhos tortuosos. Sempre é tempo de pregar arrependi-mento, especialmente o arrependimento da fé, como o evangelho do dia(Mt 21.32) deixa claro.

Assim, em qualquer período do ano, também no pós-Pentecostes, cabebem esse tema. Porque arrependimento e fé são tema de cada dia. Atéconta-se a história de um rabino que ensinava a seus discípulos a necessidadede fazer penitência um dia antes da morte. Diante da perplexidade dos discí-pulos, que responderam ser impossível saber o dia da morte, o rabino retru-cou: Tanto mais necessário se faz que cada um se arrependa hoje!

Na base do arrependimento estão a ira e o amor de Deus. Antes detudo, sua ira precisa ser levada a sério. Romanos 1-3 deixa isto bem claro.Por outro, ninguém deveria ter medo de ser achado pecador na presençade um Deus que declara não ter prazer na morte de ninguém. E este é o

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Deus que chegou a ponto de não poupar o seu próprio Filho para que tivés-semos vida.

Na pregação, sugere-se explorar imagens bíblicas de conversão e arre-pendimento. “Criai em vós coração novo e espírito novo” poderia ser o tema.Com tal ênfase, uma sugestão é colocar a pregação no início do culto (se-guindo uma sugestão de Lutero), seguida de confissão e absolvição e – porque não? – a celebração da Ceia. Ou, então, organizar o culto de tal formaque, neste dia, culmine com confissão e absolvição, seguida de celebração daCeia. Por que não realizar neste dia, por mais que seja dia de São Miguel etodos os Anjos, um Dia de Súplica e Oração. Neste caso, sugere-se tomar oSalmo (Sl 6) e a Epístola (1 Jo 1.5-2.2) previstos para um Dia de Súplica eOração (ver Palavra e Oração, p. 188), juntamente com a leitura do AT (Ez18) e o Evangelho do 19º Domingo após Pentecostes (Mt 21.28-32). Outraopção é substituir o Evangelho do domingo pelo Evangelho do Dia de Súplicae Oração (Lc 15.11-32) que, como vimos, é paralelo a Mt 21.

Vilson ScholzSão Leopoldo, RS

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VIGÉSIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 5. 1-7

6 de outubro de 2002

LEITURAS DO DIA

Sl 118.19-24. O título deste Salmo é: “A alegria dos justos pelo Salvador”ou “Agradecimento pela vitória”. Aí se destaca o júbilo espiritual de umpovo. O salmista incentiva ao regozijo e à alegria no v. 24, certamente pen-sando naquele que foi rejeitado, mas que veio a ser a principal pedra, angu-lar, segundo profecia a respeito do Salvador Jesus.

Fp. 3.12-21. Paulo faz uma advertência contra o perfeccionismo. Elemostra que pela fé os crentes já alcançaram a plena aceitação de Deus.Mas como continuamos sendo pecadores, neste mundo ninguém alcança aperfeição. Mesmo estando plenamente confiantes acerca da nossa salva-ção, devemos evitar o orgulho e a presunção que podem inibir o nossocontínuo crescimento na graça. Com o auxílio de Deus, crescer nasantificação.

Mt 21.33-43. Deus espera bons e abundantes frutos do seu povo, porcausa do seu grande amor demonstrado, mas muitas vezes só recebe o quenão é bom, injustiças e ingratidão. Citando o texto do Sl 118. 22,23, Jesusmostra que a rejeição ao Salvador traz castigo e condenação.

CONTEXTO

No cap. 4, vv.2-6 Isaías enfatiza a esperança de tempos futuros. Mesmocastigando Jerusalém, Deus purificou o seu povo, reservando-o e separan-do-o para a sua glória. Um pouco difícil é a interpretação do v. 4 : “quandoo Senhor lavar a imundícia das filhas de Sião.” É possível que Isaías quises-se levá-las a perceber que já não podiam esconder suas responsabilidadespor trás dos respectivos maridos ou governantes.

A culpa do sangue a ser banida de Jerusalém talvez se refira aos sacri-fícios insinceros (1.15), aos homicídios (1.21) ou mesmo aos sacrifícios decrianças (57.5) - atos que contavam com a participação das mulheres.

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V.5 –“pavilhão”. Possivelmente é um sentido figurado: a promessa daproteção geral de Deus nos dias que se seguiram às aflições de Israel.

TEXTO

Do cap. 4 para o cap. 5 há uma mudança repentina de tema. Da espe-rança de tempos futuros, Isaías passa para a realidade dolorosa do momen-to imediato. Nessa mudança poética, as emoções de Deus são ressaltadasde modo impressionante, sobretudo seus sentimentos de dor e anseio. Ape-sar de todo o cuidado e amor dispensado ao seu povo, esperando que produ-zisse bons frutos, ele produziu frutos maus.

Os primeiros dois versículos formam um pequeno cântico de amor querevela o prazer que Deus tem em seu povo escolhido, e, no fim, mostra aingratidão daquele povo para com o Senhor (confira a parábola dos lavrado-res maus - Mt 21.33-43).

V.1 - Israel como vinha (Sl 80.8; Jr 2.21)V.2 - Proteção divina (2 Cr 16. 9a)O cuidado de Deus para com seu povo. Proteção contra perigos.Frutificação (Mt 3.8). Cristãos produzem frutos em qualquer idade (Sl 92.14Fruto do pecado (Dt 32.32; Os 10.13).

“Abriu um lagar”. Na Palestina e no Líbano, os lagares geralmente eramabertos na rocha, em dois níveis: o superior - mais largo e mais raso, no qualas uvas eram pisadas (Is. 63.3), e o inferior - mais estreito e mais fundo -para receber o líquido da parte superior, por intermédio de uma goteira.

Através do AT vemos sempre de novo o cuidado e a atenção de Deus aoseu povo, pensando no seu bem-estar. A promessa de Deus se renova sem-pre de novo, isto é, nas bênçãos que derramaria sobre o povo se ouvisse asua voz e seguisse seus conselhos e orientação (cf Is 48.18). Apesar doapelo e das promessas do Senhor ao seu povo, este mostrava-se rebelde edesobedecia, afastando-se do seu Deus.

Os vv.5 e 6 são bastante fortes, em que Deus ameaça castigar o povopor não produzir frutos bons, mas “uvas bravas”.

A chuva é essencial para o crescimento da semente e do fruto. As nu-vens, feitas para chover, recebem ordens de não fazê-lo; o próprio Deus,com quem está a chave da chuva, deu ordens, ordenou que retivessemtotalmente suas chuvas refrescantes.

Hoje nós somos o povo escolhido de Deus. Somos a vinha do Senhor.

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Ele espera que produzamos bons frutos. Mas também nós somos pecado-res. Merecemos castigo. Não produzimos os frutos que ele espera de nós.Arrependendo-nos, ele se mostra gracioso e misericordioso. Concede per-dão por causa de Cristo. Promete a salvação e nos dá certeza dela. Conhe-cendo a graça de Deus, tendo certeza da salvação, ele também nos animae incentiva a produzirmos abundantes e bons frutos. Isto inclui o testemunhoe o empenho de levar “Cristo para todos”. É o desafio da igreja.

Lutero (Dr. Martin-Luthers Sammthliche Schriften, Vol.VI) diz o se-guinte sobre o texto de Isaías:

A “vinha” é o povo de Israel, o qual Deus “cercou” com a sualei. As “vides escolhidas” são os juízes e reis, como Josué eDavi. A torre é a Palavra do Senhor, que Deus concedeu parao exercício e a preservação da fé. O “lagar” é o afogar dovelho homem, do qual Rm 12.1 fala. “Uvas bravas” são peca-dos cometidos e que se manifestam de diferentes maneiras,naquele tempo também na morte de profetas e depois do pró-prio Cristo.

SUGESTÃO DE TEMA

Que tipos de frutos produz a vinha do Senhor (o povo de Deus)?

1 - Pela tendência natural são frutos maus.2 - Com auxílio e a bênção do Senhor são frutos bons.

Fermino BündchenCruz Alta, RS

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VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 25. 6-9

13 de outubro de 2002

ASPECTOS INTRODUTÓRIOS

A ênfase desta perícope está no cântico, no banquete, na festa. Osvv.6-9 são empregados de forma bem adequada na leitura do AT para aPáscoa (cf. Trienal B), ou seja, a festa da ressurreição de nosso SENHOR.

Os cap. 24 - 27 de Isaías formam o que comumente se denomina de“Apocalipse isaiano” visto que seu foco centraliza-se no triunfo de Deussobre o anti-reino, representado no contexto pela cidade tirana. O cap. 25antecipa a derrota dessa cidade, ocasião em que o Reino é estabelecidopara sempre. A derrota da cidade motiva o cântico de louvor em 25.1-5 e 9.Este cântico reflete as ações de graças pela fidelidade divina em cuidar doSeu povo e livrá-lo de forças humanamente imbatíveis.

TEXTO

“Neste monte... todos os povos”, no v. 6, combina particularidade comuniversalidade. O monte, evidentemente, é Sião. Já no AT aplica-se a todosos habitantes da “cidade santa”; no NT, como em nossa liturgia e hinos, otermo é uma referência à igreja. Todos os que vêm à festa são convidados doSENHOR (cf. o evangelho do Dia, Mt 22.1-10). É o próprio rei quem convi-da. No Antigo Oriente Próximo a festa normalmente ocorria por ocasião dafesta de coroação do rei (cf. 1Rs 1.25). Nessa ocasião o rei presenteava osconvidados com honra, e até bens e favores. Este parece ser o pano defundo deste texto. “Banquete de cousas gordurosas” - para um povo que nãovê necessidade em se preocupar com o colesterol, as partes gordurosas dacarne eram as melhores partes (Sl 36.8; 63.6). Nos sacrifícios, estas parteseram queimadas ao SENHOR, exclusivas Dele (Lv 3.3; 4.8-9). Mas aquiDeus está presenteando Seu povo com o que Lhe é exclusivo. “Vinhos ve-lhos” (~yrmv - de rmv -) é o vinho que permaneceu guardado, decantado paratornar-se claro e puro: é o melhor vinho (cf. Jr 48.11; Sf 1.12).

Vv. 7 e 8 mostram que o povo vem para o grande banquete com o véu sobre

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suas faces. Conectando-se este v. com o v. 8, vê-se que a referência provavel-mente é ao véu ou mortalha da morte. Antes que os seres humanos possamdesfrutar a alegria da festa de Deus, algo deve ser feito com relação à maldiçãouniversal, que cobre e entristece toda a humanidade. E esta ação apenas Deuspode assumir. Tanto no v. 7 quanto no v. 8, o verbo é [lb, que significa “engolir”,“tragar”. O verbo em outros lugares é usado como equivalente a fazer desapa-recer, tomando para si mesmo. Após a expulsão edênica, a morte traga a tudoe a todos e não pode ser tragada por ninguém das criaturas. Convive-se com amorte a todo momento e em todos os lugares. Deus, entretanto, é o único quepode tragar a Morte (no texto com artigo, personificada), no monte Sião. Queoutra relação há senão com a morte e ressurreição de Cristo, a razão últimapela qual se pode celebrar a festa? Nele a Morte foi tragada para sempre epara todos os povos da terra (Rm 6.14; 1Co 15.12-57; 1Ts 4.14; Ap 1.17, 18;21.4). Esta é a última libertação. Podemos ser libertados da escassez e opres-são, mas até que sejamos libertados da morte as demais libertações são “cafépequeno” porque a Morte sempre ainda vence (Is 40.8).

“Deus enxugará as lágrimas” é uma figura que demonstra carinho e conso-lo paternos à criança em aflição. Deus tirará a tristeza associada à inevitabilidadeda morte. “E tirará o opróbrio do seu povo” é o resultado da vitória de Deussobre a morte e o Seu oferecimento da celebração da vida. O pecado (nature-za, inclinação, disposição) do povo trouxe vexame aos olhos das nações. Mas,naquele dia, ao tornarem para o monte Sião, toda a vergonha, decepção, fracas-so terão sido apagados das vistas dele e de todos os povos.

O v. 9 fala em esperança e salvação. “Esperar” (hwq) é um termo teolo-gicamente importante no AT, especialmente no Saltério). Homileticamente,o pastor deve lembrar que no vernáculo “esperar” nem sempre envolvecerteza; no contexto bíblico, entretanto, “esperança” é sinônimo de “certe-za”. Cristãos também se lamentam, choram e se entristecem na presençada morte, mas não como os que “não têm esperança” (1Ts 4.13).

A proximidade do final do ano eclesiástico lembra a “esperança” dasegunda vinda do Noivo na consumação dos séculos (Ap 21.4). Nesseínterim, a Morte continua a “ceifar” vidas, mas com seus dias contados.Entretanto, o povo de Deus, a “cidade santa” continua cada domingo acelebrar a festa do “dia do Senhor” (Ap. 1.10) e a “exultar e alegrar-se nasua salvação” porque vive na esperança e no aguardo Daquele que nahistória e na promessa é “o nosso Deus” (v. 9).

SUGESTÕES HOMILÉTICAS

1. O texto aborda a questão da universalidade-particularidade-universali-

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dade. Todos os povos estão envoltos com a “coberta” e o “véu” damorte. Sião, onde se materializa a salvação, é o único lugar onde todospodem buscar guarida.

2. A morte, ao adentrar o universo da humanidade, mostra-se uma vence-dora imbatível. Mas a morte, esse monstro que traga a tudo e a todos,será tragada pelo “Monstro Maior” - o SENHOR dos Exércitos - que afaz desaparecer engolindo-a na sepultura de Cristo que se abre, sefecha e novamente se abre para trazer a vida e vida em abundância.

3. Liturgicamente, o uso de “véu” pode ser associado à Santa Ceia antesde os elementos serem descobertos para a sua distribuição. Uma vezesclarecido seu valor e consagrados, os elementos sacramentais con-cedem o benefício da vida e a salvação.

4. Apenas a ação divina interferindo no processo “natural” da morte edestruindo, aniquilando seu poder, desperta a esperança (certeza) daparticipação de todos os que aceitam o convite no grande banqueteescatológico.

SUGESTÃO DE TEMA

Deus nos faz participantes do Seu divino banquete.

Acir RaymannSão Leopoldo, RS

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VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 45. 1-7

20 de outubro de 2002

CONTEXTO

O texto se insere mais ou menos na metade do ciclo profético dos capí-tulos 40-48, que contêm nove profecias, sendo a do nosso texto a sexta, emque o profeta profetiza que Ciro, o rei da Pérsia, será o ungido do Senhorpara libertar o povo de Judá do cativeiro babilônico. A profecia toda seresume nos seguintes termos: “O Senhor fez de Ciro o irresistível vencedordos príncipes e conquistadores da Babilônia por amor de seu servo Jacó,para que todo o mundo saiba que ele somente é Deus.”

TEXTO

V. 1 – Ciro naturalmente não foi ungido exteriormente, num ritual de con-sagração, em que se derramava óleo na cabeça dos israelitas que fo-ram consagrados para seus cargos, como, por exemplo, os reis, sacer-dotes e profetas. Mas Ciro, de um modo especial, recebeu poder doSenhor, que o tomou pela mão direita para vencer todos os obstáculosque se lhe antepunham nas suas conquistas gloriosas. Descingir os lom-bos dos reis é o mesmo que tirar-lhes o poder, enquanto cingir os lom-bos significava o contrário: armar-se ou preparar-se para o trabalho(cf. Jr 1.17; Jó 40.7). As portas que se lhe abriram para não se fecharmais é uma alusão às numerosas conquistas que realizou.

V. 2 – No entanto, Ciro nada poderia fazer sem o auxílio de Deus, que iriaadiante dele. Endireitar os caminhos tortuosos é uma expressão seme-lhante à de Is 40.3,4 e parece referir-se especialmente à extensão doreino messiânico, que as conquistas de Ciro iriam favorecer. Quebraras portas de bronze e despedaçar as trancas de ferro podem ser umaalusão especial às 100 portas de bronze que guarneciam a cidade daBabilônia e que, humanamente falando, a faziam inexpugnável, proble-ma que Ciro contornou, desviando o rio Eufrates de seu curso normal.

V. 3 – Os antigos falam muito a respeito dos tesouros que Ciro conquistou,principalmente com a conquista da Lídia e da Babilônia, calculados emmais de 120 milhões de libras esterlinas. Eram tesouros escondidos e

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encobertos em câmaras subterrâneas que contribuíram para a elimina-ção dos babilônios (cf. Jr 51.39; Dn 5.1) e depois para o enfraqueci-mento moral dos próprios persas. Os objetivos das conquistas de Ciro,no entanto, tinham um fim tríplice, o primeiro mencionado neste versículoe os outros dois nos vv. 4 e 6: 1) que o próprio Ciro conheça a Javé esaiba que ele é o Deus verdadeiro; 2) que Israel seja libertada por ele;3) que todas as nações saibam que Javé é o único Deus. A conjunçãofinal ![ml (para que) encabeça cada uma dessas três orações, indican-do uma finalidade, objetivo ou propósito.

V. 4 – O v. 4 indica a segunda finalidade ou propósito do chamamento deCiro, que aconteceu por amor do servo de Deus, Jacó ou Israel. Peloseu chamado Deus intencionou libertar os judeus do cativeiro babilônicoe reconduzi-los a Sião, onde deveriam reedificar a cidade de Jerusaléme o templo, permanecendo como nação até a chegada de Siló, o Salva-dor das gentes, Jesus (Gn 49.10), que edificaria um reino para sempre(2 Sm 7.13).

Deus chamou a Ciro pelo nome, isto é, o encara direta e pessoalmente.O vocábulo empregado para o nome é ~v, no original, que indica seu nomeprincipal. Além de mencionar seu nome principal, Deus também lhe pôs osobrenome (hnk), um epíteto ou nome de honra adicional. Em Is 44.28,Deus o chama de meu pastor e em 45.1 de seu ungido.

A frase: ainda que não me conheces é repetida no v. 5 e soa como umestribilho. Deus chamou a Ciro pelo seu nome, ainda que este não o conhe-cesse. Chamar a Ciro pelo nome era a maior honra que lhe poderia aconte-cer. Somos informados que Ciro dava grande importância a conhecer aspessoas pelo nome e que ele sabia o nome de todos os seus soldados. Deuso chamara pelo nome muito antes de seu nascimento como o fez tambémcom algumas personalidades bíblicas (cf. Jr 1.5; Rm 9.11).

Não sabemos se Ciro se converteu. De acordo com uma inscrição ar-queológica no Museu Britânico, ele era politeísta. Segundo as Escrituras,sabemos que ele reconheceu ter sido chamado pelo Deus de Israel para atarefa de libertar os judeus e reconstruir o templo (cf. 2 Cr 36.22,23; Ed 1.1-4). Mas com isto ainda não é confirmada a sua conversão. Veja os exem-plos de Balaão, Faraó, Acabe e outros. Mas, de qualquer maneira, não dei-xou de ser um instrumento de Deus para conduzir os destinos da HistóriaUniversal de acordo com a sua vontade.

V. 5 – Para Senhor, no original, Deus usa seu nome próprio Javé (hwhyyyyy),no sentido de Êx 3.14: EU SOU O QUE SOU. Ele é o Senhor absoluto e

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além dele não há outro Deus, frase que é mais uma vez repetida no v. 6.Essa menção de sua unicidade e singularidade reforça a frase seguinte: “Eute cingirei”, oposta à frase do v. 1: descingir os lombos dos reis. Só o únicoDeus verdadeiro poderia cingir a Ciro, isto é, armá-lo a fim de desarmarmuitos reis poderosos.

Já vimos acima, no v. 4, que, de acordo com informações de passagensbíblicas, Ciro reconheceu ser instrumento chamado pelo Deus verdadeirode Israel para a sua tarefa libertadora do povo dos judeus. O mesmo tam-bém é atestado por Josefo em sua obra Antigüidades, XI, 2: “Quando Ciroleu isso (Is 44.28) e admirou o poder divino, foi imbuído de um sério desejoe ambição para cumprir o que estava escrito.”

V. 6 – O terceiro objetivo das conquistas e feitos de Ciro era que todasas nações do mundo, desde o oriente ao ocidente, reconhecessem que, alémde Javé, não havia outro Deus. Assim o propósito final, nas palavras de J.Ridderbos, vai além da redenção de Israel. Esse propósito é desvendar agrandeza do Senhor diante das nações, a fim de que elas possam reconhecê-lo como Deus (J. Ridderbos, Isaías, Edições Vida Nova, 1990, p. 374).Segundo Walter Roehrs, Deus, ao mesmo tempo que despertou a Ciro paralibertar Israel da servidão física, armou o palco para o qual estava conduzin-do os acontecimentos do mundo. Era seu propósito criar um Israel espiritu-al, uma comunhão dos santos, da qual participariam nações incorporadas noimpério persa. O Criador dos céus e da terra não deixaria fugir das suasmãos a direção da História para deixar o mundo mergulhado num caos deconfusão (Walter R. Roehrs, Concordia Self-Study Commentary, CPH,1979, p. 475). E Augusto Pieper conclui: “Ciro pertence às grandes perso-nalidades da História Universal, através das quais Deus realiza algo especi-al para a consumação do grande segredo que é Cristo e sua comunidade.Ele não pertence à mesma galeria de um Moisés, Samuel, Davi, Isaías,Paulo, Agostinho, Lutero. Ele não é um espiritualmente grande. Mas ele éum dos grandes que deveria dar à marcha dos acontecimentos exteriores domundo uma especial mudança para a concretização do plano divino da re-denção. Sem Ciro, nenhuma libertação de Israel da Babilônia, nenhumacontinuidade do povo judeu até Cristo, nenhum Cristo” ( Augusto Pieper,Jesaias II, Nortwestern Publishing House, 1919, pp. 221-222). A vinda dosmagos a Belém, em Mateus 2, é uma prova dessa mudança histórica.

V. 7 – Esse versículo nos lembra que Deus é o autor de todas as coisas.Ele é o autor da luz e das trevas, da paz e do mal. À primeira vista choca afrase: e crio o mal. O contexto, porém, indica que a frase não quer dizer queDeus deu origem ao mal, mas que ele, como um Deus justo, traz o mal sobre

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os homens e nações por sua má conduta. Assim a vara, nas mãos da Assíria,era o instrumento do furor de Deus (Is 10.5). Deus está pessoalmente atrásde toda a desgraça, como também move toda folha nas árvores e as batidasde nosso coração. Esta noção da presença de Deus em todos os grandes epequenos atos da vida dos homens o deísmo e o naturalismo quase queextinguiram no mundo ocidental e até no meio da cristandade. Para Luteroesta realidade era muito viva. Ele vê a ação imediata de Deus nos aconteci-mentos mais insignifcantes de sua vida. Confira seu sermão contra o turco.A Escritura está repleta desta visão. Confira o livro de Jó, especialmente oscc. 40 e 41, os Salmos 104 e 139; Rm 11.36; Am 3.6 etc. É preciso lembrare frisar esta realidade muito mais em nossos sermões.

PROPOSTA HOMILÉTICA

Se enfocarmos o texto do ponto de vista da marcha dos acontecimentosdo mundo, poderíamos estabelecer o seguinte tema com suas partes:

Deus sempre manteve o mundo sob controle no passado e nopresente

1. No tempo de Ciro controlou os acontecimentos da História a fim deestabelecer o reino do futuro Messias.

2. Em nosso tempo mantém o controle dos acontecimentos do mundo paraconsumar o seu reino eterno. Se quisermos dar ao texto um enfoquemais pessoal, poderíamos formular tema e partes assim:

Deus chama a todos os seus filhos pelo nome

1. A Ciro chamou pelo nome a fim de realizar grandes feitos para o bemde seu reino no Antigo Testamento.

2. A nós também ainda hoje chama pelo nome a fim de realizarmos seusdesígnios para o bem de sua igreja em o Novo Testamento.

Paulo F. FlorDois Irmãos, RS

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VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTESLevítico 19.1-2, 15-1827 de outubro de 2002

CONTEXTO

O texto encontra-se dentro do capítulo conhecido como o “sermão da mon-tanha do Antigo Testamento”. Concentra-se na santidade de comportamentopara com Deus e o próximo. Prescreve atitudes que buscam atingir um propó-sito muito claro, comum a todas, ou seja, cumprir o santo sereis, porque eu, oSenhor, vosso Deus, sou santo (v.2). A nossa atenção de imediato é desper-tada para o modo de cumprir o “santo sereis”. O texto não aponta para umcaminho de separação do mundo, de reclusão em lugares restritos para a prá-tica de uma santidade por afastamento de tudo e de todos. Não é o que retira-mos do texto. A perícope indica um outro caminho, pondo o filho de Deus emcontato diário e constante com o seu próximo. Os filhos do povo de Deus sãochamados a ser santos no convívio com os seus semelhantes.

Olhado dessa forma, o texto ganha novo sabor. Em vez de engoli-lo purae simplesmente como uma lei indigesta que exige algo em si impossívelpara seres pecadores, passamos a perceber nele um tempero muito especi-al. Por que não chamá-lo de tempero do sal? A santidade de vida não serestringe somente a uma questão no sentido vertical, entre o homem e Deus.Não, ela também se espalha no sentido horizontal. Nesse sentido ela favo-rece homens e mulheres a partir de atitudes coerentes com a vontade divi-na por parte daqueles que foram chamados para serem do povo de Deus.Homens e mulheres, também amados pelo Senhor, serão beneficiados porações muito bem temperadas, pois a “receita” foi dada por Deus. Por de-trás de tais ações há um duplo objetivo a ser atingido: que as criaturashumanas sejam valorizadas e amadas como tais, pois assim o quer o Cria-dor delas; que o testemunho deixado pelos filhos de Deus através do agirdeles aponte para o Senhor, a fim de que ele se torne conhecido, seja bus-cado por muitos e aceito na vida daqueles que antes, ou não o conheciam,ou não reconheciam nele a fonte de todas as bênçãos. A busca da práticada santidade nessa perspectiva dá ânimo diferente para nossa vida, poisnos coloca a oportunidade de servir de instrumentos pelos quais o amor de

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Deus chega graciosamente na vida de criaturas que, por criação, são ir-mãos nossos.

TEXTO

Vv. 1 e 2 - As palavras são dirigidas a toda a congregação dos filhos deIsrael. Estão, portanto, identificados os destinatários. São os que com-põem o povo de Deus. Ouvir como povo de Deus as palavras do Se-nhor tem um significado muito especial. Israel não escolheu ser povo deDeus. Foi o Senhor quem os elegeu. Foi tão-somente um ato graciosode Deus. Quem se dirigia à congregação naquele momento era o Deusgracioso. Não se tratava de um tirano a ditar leis e prescrever obriga-ções. Se assim fosse, o que viria a ser dito poderia receber uma reaçãode repulsa. Não era o caso, pois provinha da boca de quem se mostraraincompreensivelmente gracioso para com aquela raça. Unicamente porgraça era o SENHOR, vosso Deus. Poderá vir algo desagradável paraalguém da parte de quem se revelou gracioso? De forma alguma!

Santos sereis determina a característica principal da vida do povo daaliança do santo Deus. Aparece como um alvo na direção do qual o povodeve procurar seguir. Santidade de vida entende-se da seguinte maneira:consagração a Deus e a conseqüente separação de tudo aquilo que provocadesonra do santo nome do Senhor. Era necessário isso, visto que Israel haviasido escolhido para ser luzeiro em meio às trevas, a fim de que outros povosvissem o Senhor e passassem também a honrar o seu santo nome. A lem-brança da santidade a ser buscada mostra-se presente repetidamente nosversículos do capítulo 19, pois em vários deles aparece: Eu sou o Senhor,vosso Deus. Parece-nos que Deus se mostra preocupado em lembrar sem-pre de novo para os filhos de Israel que eles são o povo da aliança, justifican-do com isso a razão para requerer deles um procedimento de consagração.

Temos diante de nós um texto de lei? Evidentemente que sim! Há quese notar, todavia, que a vontade do Senhor é colocada diante de quem oconheceu como Deus gracioso. Só o povo de Deus (fruto da ação gracio-sa), poderá se sentir motivado corretamente a buscar a santidade de vida.Não procurará ser santo para buscar a aprovação do Senhor a fim de setornar povo dele. Não; porque já é povo dele e dá graças por isso, buscaráhonrar e servir o Senhor em santidade, em consagração, em renúncia da-quilo que ofende o Senhor, pois não existe outra maneira de viver parahonra e glória de Deus.

V. 15 - deste, até o versículo 18, final da perícope, encontramos recomen-dações quanto à maneira de exercitar a santidade no trato com o próxi-

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mo. No Israel antigo, se alguém era conduzido a julgamento, os juízeseram os anciãos do local. Naquele contexto, possíveis animosidadesinternas da localidade poderiam comprometer a justiça nos julgamen-tos. Por isso, a lembrança para o uso de justiça diante do próximo, nãoimportando quem fosse. Uma piedade não justificada para com o po-bre, bem como um favorecimento sem fundamento para com o grande,não espelharia a justiça de Deus, o que ocultaria a vontade do Senhordos olhos daqueles que tivessem conhecimento do fato.

V. 16 - Este versículo especifica um procedimento que visa a proteger aintegridade do próximo, tanto moral quanto física. Neste versículo apa-rece a lembrança: Eu sou o Senhor. O povo de Israel conheceu muitointimamente que o Senhor ama as suas criaturas. Logo, os do Senhornão terão outra coisa diferente a fazer do que pôr em prática aquilo quejá receberam de Deus: seu amor. O mexeriqueiro, o caluniador, nãoprocede em amor. Sua atitude é agressão ao próximo, mesmo que este-ja muito à distância dele. Ora, a agressão ao ser humano contraria ospropósitos Daquele que o criou. Por isso, nem a agressão por meio dalíngua, em forma de calúnia, nem através de outro recurso, que põe emrisco a vida de alguém, encontram aprovação por parte do santo Se-nhor.

V. 17 - Parece haver aqui, no início do versículo, uma recomendação queconduz a uma atitude franca para com o próximo. Em lugar de armaze-nar ódio contra o irmão, atitude que provocará um afastamento cadavez maior entre ambos, além de levar ao sofrimento, pois o ódio nãotraz felicidade, o versículo indica o caminho da aproximação em vez daseparação. Aproximar-se para repreender ... assim é a receita. Fácilde aplicá-la? De forma alguma, e bem sabemos por que razão não éfácil. Onde buscar forças para pôr em prática aquilo que não é fácil?Resposta: na identidade de cada um. As palavras do Senhor não estãosendo ditas para qualquer um, porém para aqueles que são seus filhos,povo da aliança. Como filho de Deus, quem é do povo da aliança age naconfiança de que o caminho indicado pelo Senhor sempre é o melhor,embora não pareça fácil. Nesta confiança também está presente a cer-teza de que o Senhor irá capacitar para a tarefa proposta. A repreen-são tem como alvo a recuperação do irmão e não sua condenação. É,portanto, também uma demonstração de amor.

A parte final do versículo apresenta dificuldades para se obter clara-mente seu significado. “... e, por causa dele, não levarás sobre ti peca-do” pode nos levar a pensar que a repreensão ao irmão por seu pecado noslivrará de compartilhar a sua culpa. Isso nos faz pensar em Ez 33.8,9. Éprovável, portanto, que as palavras se dirijam contra a omissão culposa.

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V. 18 - A vingança e a ira serão substituídas por um dos dois grandesmandamentos: mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Nova-mente aparece o Eu sou o Senhor, lembrando da identidade do povoda aliança. O amor ao próximo não é uma possibilidade remota de seconcretizar. Não, o povo de Deus pode amar, está capacitado paraamar pelo próprio Senhor. O mandamento, portanto, não é uma ordempara buscar algo impossível. É antes uma palavra para viver uma reali-dade, pois do amor de Deus brota o poder para amar uns aos outros.

APLICAÇÕES HOMILÉTICAS

1. Palavra de lei. Esta se volta contra um procedimento incorreto paracom o próximo. Tal modo de agir causa problemas. São problemas nãoapenas no relacionamento com o próximo, mas, especialmente, comDeus, porque fere criaturas que o Senhor ama com o mesmo amor quededica para nós. Em vez de sermos instrumentos de Deus para benefi-ciar o semelhante, opomo-nos a tanto com nossas atitudes destrutivas.Toda a influência que poderíamos e deveríamos ter como luz e sal napresença de outras criaturas, não acontece. Conseqüentemente, nãohaverá testemunho do amor de Deus e nem glorificação do seu nome.

2. Palavra de evangelho. O grande evangelho está presente na lem-brança da aliança de Deus com o povo. A causa para a aliança foi tão-somente a graça divina. A mesma graça manifestou-se abundantemen-te na nossa vida. Em Cristo, principalmente, vemos como Deus agecom as criaturas. Por nós, ele, Cristo, intercede para garantir perdãopara nossos pecados contra o próximo. Para nós, ele, Cristo, age, capa-citando-nos para viver o que somos pela fé nele: povo da aliança, talcomo o Israel antigo.

PROPOSTAS DE TEMAS

a) O sermão pode explorar um tema que aborde o relacionamento com opróximo que nasce da nossa identidade. Quem somos? Somos do Se-nhor; somos povo da aliança. Pelo Senhor e com o Senhor vivamosaquilo que somos.

b) Lembrança e sugestão. 27 de outubro assinala mais um aniversário doSeminário Concórdia de São Leopoldo. Completa 99 anos. Por que nãoincluir menção à data, como, por exemplo, uma obra graciosa de Deuspara fazer chegar às pessoas a palavra que chama e atrai para dentroda aliança com o Senhor?

Paulo Moisés NerbasSão Leopoldo, RS

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VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESAmós 5.18-24

3 de novembro de 2002

CONTEXTO

O contexto histórico de Amós é paradoxal, estranho, chocante e mereceatenção especial para que a perícope de 5.18-24 possa ser bem entendida.A pessoa do profeta Amós, a mensagem do Livro de Amós e a dramáticasituação religiosa, política, econômica e social de Israel apontam paramomentos e atitudes que causam profunda perplexidade. Antes de elaboraro sermão, é preciso ler todo o Livro de Amós.

O PROFETA

Há uma série de peculiaridades em Amós, muito diferentes dos outrosprofetas do AT. Vejamos. Seu nome significa “aquele que suporta o jugo” ou“aquele que levanta e carrega fardos”. O jugo ou o fardo é Israel em suaimpiedade. Nasceu em Tecoa, 16 Km de Jerusalém, no reino de Judá, bem noSul, mas foi chamado e enviado para o reino de Israel, bem no Norte do país.Não é descendente de sacerdotes ou profetas (não era filho de pastor) nemexercia o ministério sacerdotal ou profético quando foi convocado pelo Senhor.Suas afirmações mostram que era um “líder leigo” em Judá, que conhecia apalavra de Deus. Veio do interior. Era colono ou agricultor ou chacreiro oufazendeiro, um pastor de ovelhas e bois, e plantador de figos silvestres (7.14).Profetizou no século VIII a.C., época em que Roma era fundada. Na Bíblia,seu nome só aparece aqui no Livro de Amós. É classificado entre os “12 profetasmenores” – pela brevidade do livro em relação “aos maiores” (Isaías, Jeremias,etc.). É também chamado de “o grande profeta menor” – pela profundidade epropriedade de sua mensagem num momento histórico do povo de Deus.Querendo pregar sobre a mensagem do Livro de Amós, é preciso falar-setambém sobre a pessoa do profeta Amós.

1 - O povo – O profeta dirige seu discurso a um auditório hostil, um públicorebelde, um povo de Deus obstinado e hipócrita. E era uma época de gran-de progresso, prosperidade e riqueza – Israel crescia materialmente e fazianovas conquistas militares. Mas o povo vivia em idolatrias e hipocrisia, em

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luxúria e imoralidade, em falsidade e corrupção, em injustiça, suborno emassacre social – em pobreza espiritual. Eles viviam num grande engano:acreditavam que sua riqueza material fosse bênção de Deus e que, assim,podiam abusar de todos os bens e viver em extravagância e corrupção. Agrande tarefa de Amós era transmitir a mensagem que mostrava Deusestar descontente e insatisfeito com esta terrível situação do “povo escolhi-do”. Amós deveria tirar a máscara de todos, promovendo uma “campa-nha” de limpeza e purificação espiritual e social em Israel e Judá.

2 - A mensagem – A longanimidade e a paciência de Deus com seupovo estavam se esgotando. Era preciso repreender e punir, a não serque houvesse uma mudança radical e total. Deus, de fato, oferece umasegunda chance de arrependimento e retorno, enviando Amós comoseu profeta, pregador e arauto. E Amós vai e prega. O Livro de Amós,na verdade, é um grande e veemente discurso sobre o arrependimentoe juízo de Deus. O tema central é o chamado ao retorno e à mudançade vida. É julgamento e castigo. É restabelecer a aliança ou o protocoloque Deus havia feito. É pregação de lei! E Amós aponta, após odesmascaramento, o que Deus quer, isto é, uma vida regenerada e nova.Por isso as duas palavras: juízo e justiça ou justiça e honestidade(v.24). Detalhe importante: Amós sempre repete: “Assim diz o Senhor”!

TEXTO

Com este quadro colorido do contexto de Amós, apenas alguns destaquesespecíficos da perícope.

1 - Ai – É uma exclamação que aponta para a importância e a gravidadedo que será dito. Exprime um sentimento de preocupação, de espanto,de tristeza e de perplexidade. Também pode ser um gemido de dor, dedesastre, de juízo, de julgamento. Ainda pode ser um recurso retóricopara chamar a atenção do ouvinte/leitor, com o propósito de retorno, demudança, de melhoramento. Jesus usou muito a exclamação: “Ai devós...”. Amós repete o “ai de vós”, visando ao arrependimento e à sal-vação do “povo escolhido”.

2 - O Dia do Senhor – A expressão “dia do Senhor”, com algumasvariantes, é muito comum no AT e NT. Amós é, provavelmente, o livroprofético mais antigo e ele, assim, seria o primeiro profeta a usar “Diado Senhor” no AT. Há diversas interpretações sobre seu significado. Amais aceita é a que interpreta o “Dia do Senhor” com o que a Bíbliatambém chama de “Grande Dia”, “O Dia”, “Dia do Juízo, “NaqueleDia”, “Dia da Vinda”, “Consumação dos Séculos”, “Juízo Final”. Seriao dia da consumação deste mundo, dia da ressurreição, do juízo final, edo rompimento dos “novos céus e nova terra”. Conferir Is 2.12-22;

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13.6-10; Jr 46.10; Ez 7.19; Jl 1.15-20; 2.1-11; Zc 14.1; 2 Pe 3.10; Mt24.3; 24.36. Israel interpretava, erroneamente, o “Dia do Senhor” comoum dia de vitória total de Israel e destruição total das nações dos genti-os e pecadores – aqui e agora, em seu favor. Amós faz a correção,mostrando que este “Dia do Senhor” será o dia do juízo, de julgamento,de castigo, de tristeza, de trevas e de escuridão – e não de luz, detriunfo, de libertação e vitória geral de Israel. Por isso, antes da vindado “Dia do Senhor”, o chamamento ao retorno e mudança espiritual.

3 - Desprezo – Deus, na verdade, não é contra nem condena as festas, asalegrias, os cânticos, os sacrifícios, as ofertas do povo de Deus. Pelo con-trário, tais eventos, momentos e manifestações são valorizadas e desejadaspelo Senhor nosso Deus. Há centenas de textos bíblicos que falam sobre oassunto. Logo, Amós diz que Deus aborrece, despreza, afasta, odeia, de-testa a formalidade, a aparência, o abuso, a hipocrisia do povo nestas cele-brações e eventos. Amós não deixa “pedra sobre pedra” (vv.21-23). Deusperdeu o prazer, a alegria, a vibração com a religiosidade falsa de seu povo.Era tudo da boca para fora, só aparência, só faz de conta. Por isso o “Se-nhor estava cheio” de seu povo. É oportuno traçar um paralelo entre as“festas de Israel” e as “festas da IELB” – e então refletir!

APLICAÇÕES HOMILÉTICAS

Como auxílios para a mensagem de púlpito, alguns lembretes.

1 - Texto - Embora o Livro de Amós seja um grande discurso de chama-mento, de pregação da lei e de arrependimento, é possível sublinharalgumas afirmações muito edificantes ao longo do livro. Exemplos:

- “Assim diz o Senhor” - “O Senhor não fará coisa alguma, semprimeiro revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas” -“Apregoai ofertas voluntárias, publicai-as” - “Prepara-te, ó Israel,para te encontrares com o teu Deus” - “Buscai o Senhor, e vivei”- “Aborrecei o mal e amai o bem” - “O Senhor me tirou de apóso gado” - “Mudarei a sorte do meu povo Israel”.

2 - Perícope – Algumas idéias e sugestões que poderiam ser exploradase aproveitadas na anunciação da mensagem:

- Os ais do Senhor sobre o seu povo- O chamado, capacitação e envio do profeta – O pecado da hipocrisia- Amós, um líder leigo que é transformado em profeta- O que é e como será o Dia do Senhor- O desprezo do Senhor pelas cerimônias religiosas e eclesiásticas apa-

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rentes e artificiais- O Senhor olha o coração e não apenas o que é da boca para fora- O arrependimento diário – Deus tira as máscaras- A missão do profeta numa sociedade corrupta- Mudar antes do juízo ou “Dia do Senhor”.

MENSAGEMA retidão, a justiça, a honestidade, a moralidade são essenciais para

uma sociedade digna, humana e saudável. A verdadeira religião e o verda-deiro culto são mais que observâncias exteriores de reuniões, assembléias,cânticos, orações, sacrifícios e ofertas. Deus vê e conhece os corações. Ocristão ama a Deus e ao próximo. Cuidar dos pobres. Cuidado com a rique-za material; ela pode sufocar a riqueza espiritual e levar à corrupção religi-osa. Em tempo: é difícil o pregador explorar, num só sermão. todos os ladose enfoques que Amós aborda. Seria um “balaio muito grande”. Muita cau-tela com o equilíbrio entre a aplicação de Lei e Evangelho.

TEMAComo sugestão, algumas opções:COMO SERÁ O DIA DO SENHOR PARA OS IMPENITENTES(Como? Adversativa)

I – Não será um dia de luz- não de claridade, brilho, glória- não de triunfo, libertação, salvaçãoII – Mas será um dia de trevas- de escuridão, nuvens, negridão (Joel 2.2)- de julgamento, justiça, condenação

AI DE VÓS( Por quê?)I – Porque a vossa religiosidade é pura hipocrisiaII – Porque desprezais a justiça e a honestidadeOu:

PAREM COM ESTA OSTENTAÇÃO RELIGIOSA(Por quê?)I – Porque vocês estão mentindo para si mesmosII – Porque vocês não conseguem me enganarIII – Porque no dia do Senhor a máscara de vocês vai cair.

Leopoldo HeimannSão Leopoldo, RS

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ANTEPENÚLTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESJó 14.1-6

10 de novembro de 2002

- Sl 90. 1-12 - Expressa o cansaço e a fragilidade do ser humano dianteda vida. Único atribuído a Moisés (Bíblia de Jerusalém). Parece ser aoração de um Moisés que anseia por ver finalmente o alvorecer sobreuma vida (vv.14,15) que experimentou angústias e contratempos. Umdos recados que fica aponta para o absurdo de viver e agir como sehouvesse tempo para consertar erros e injustiças, fruto da inconsciên-cia de quem faz por ignorar que cada instante da vida é definitivo aosolhos de Deus.

- 1Ts 2.8-13 - Talvez um dos discursos mais “apelativos” do apóstolo.Uma linguagem marcadamente emocional que não permite ao leitor/ouvinte espaço a não ser para concordar com o apóstolo.

Entretanto, por isso mesmo, é um momento de grave reflexão para osmensageiros de Deus em todos os tempos a respeito da seriedade do com-promisso de quem escolheu ser mensageiro de Deus junto ao povo de Deus.Se Paulo tivesse alguma dúvida sobre a seriedade dos seus motivos e pro-cedimentos, ele próprio estaria se condenando.

Assim como a oração de Moisés, também estas palavras de Paulo po-dem ser entendidas como palavras-testamento de um obreiro de Deus.

- Mt 23.1-12 - Em contraste com o testemunho de Moisés e de Paulorecolhidos para esse domingo, Jesus mostra que Deus realmente estáatento e vigilante sobre a postura teológica dos que se dizem seus men-sageiros.

Ensinar e fazer o que se ensina é a coerência que Jesus esperava. Nãobasta ensinar corretamente a respeito do amor de Deus enquanto o povo éatormentado com cargas de culpa e leis sem nenhum esforço de repartir ascargas e ajudar a carregá-las com atitude de mensageiro do evangelho quealivia, liberta e fortalece.

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CONTEXTO (LITÚRGICO/HISTÓRICO)Sendo o antepenúltimo domingo do ano, é tempo de preparo para o ad-

vento. Visualizando a segunda vinda de Jesus, é tempo de também o pastore a liderança da igreja mostrar o que é estar preparado.

Quando vemos um gigante de Deus como Moisés expor toda a suafragilidade, é de se perguntar até que ponto mensageiros da palavra e guiasdo povo se identificam com Moisés enquanto buscam servir com a entregade Paulo e seus companheiros.

É tempo de líderes encararem a fragilidade da vida e a proximidade deDeus e dirigirem-se ao povo não como mestres e pais (Mt 23.7-9), mascomo servos que prestam serviço a alguém: Deus, o Pai, que certamenteestá no coração do povo esperando que este povo receba aquilo que ele, oservo maior, preparou para ser distribuído na palavra (Mt 24.45-51).

TEXTOO sofrimento físico de Jó é algo que por si só merece ser avaliado. Jó,

como qualquer ser humano, levanta a grande questão do por quê? Mesmoque houvesse uma resposta para essa questão, como os amigos de Jó aca-bavam de propor, resta ainda a pergunta mais crucial: Por que eu?

De modo muito simplório, muitos sermões entram nessa busca de explica-ção apelando para o atalho implícito na verdade de que o sofrimento humano éconseqüência do pecado. Não resta dúvida de que todo o sofrimento na criaçãode Deus é resultante do pecado. Mas o ouvinte tem o direito de ver respeitadae respondida a pergunta que lhe é mais própria e mais próxima: Por que eu?

No contexto, Jó desafia os seus amigos a provar que ele, Jó, havia peca-do a ponto de fazer por merecer um castigo diferente do castigo ou puniçãoque está reservado a qualquer pessoa. Jó está perfeitamente consciente dafragilidade humana e da sua insignificância diante de Deus. Entretanto, Jósabe que Deus não busca afirmar seu poder e glória sobre a sua criaturapor meio de punições. Jó desafia Deus a dar a conhecer a sua verdadeira eprópria natureza. Jó faz mais: ele apela a essa natureza de Deus: Sobre talhomem (frágil, sombra), terá Deus que mostrar a sua força? (vers. 3).

Se é Deus que impõe limites ao ser humano (v. 5), se do ser humanonada se pode esperar além de imundícia (v. 4), Jó pede que Deus ignoreessa criatura, pois não merece a sua atenção.

Ao confessar a absoluta perdição do ser humano, Jó está também can-celando o raciocínio dos amigos. Se Jó realmente fosse especialmente

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culpado, significaria que pessoas menos culpadas que ele estariam salvan-do-se da perdição por esforços próprios, disputando e merecendo uma gra-ça especial de Deus.

Quando Jó nega ao ser humano qualquer possibilidade de agradar aDeus ou merecer algum tratamento especial, Jó, na verdade, está demons-trando a fé mais profunda de que em havendo salvação para o ser humano,esta somente pode vir de Deus, e não do ser humano. A frase do vers. 6 éreveladora: se Deus desviar os olhos do ser humano, isto já é alívio suficien-te para quem se defronta com o seu juízo. Assemelha-se essa postura à dofilho perdido da parábola a quem Jesus atribui as palavras de que ser jorna-leiro na propriedade do pai era suficiente para quem sabia e tinha experi-mentado o que é querer merecer a vida com o esforço próprio, longe do pai.

De uma maneira inesperada, essas palavras de Jó são, na verdade, umhino de quem canta “Das profundezas” e se lança absolutamente indefesoà mercê de Deus porque nada temos a oferecer a Deus, a não ser esperarpor ele entregues ao seu juízo. “Levantar-me-ei”, diz o filho perdido. “Dasprofundezas clamo”, diz o salmista. “Volta-te Senhor”, canta Moisés nosalmo do dia. “Para que tenha repouso”, completa Jó. Jó crê que no con-fronto, Deus pode desviar os olhos do pecado. E somente, se Deus desviaros olhos, pode haver esperança de repouso para cada pecador.

E porque o pecado é tão grande e completo, Jó sabe que não será algosimples que fará Deus desviar o olhar. Assim podemos avaliar também oque terá significado para Jó exclamar: “O meu Redentor vive.”

TEMA

O repouso do ser humano está em Deus

1. O ser humano não encontra repouso para a inquietação que o consome.a. A inquietação que nasce do pecadob. A inquietação que nasce no seu confronto com Deus

2. Porque Deus “desvia dele os seus olhares” o ser humanoa. Encontra repouso para a inquietaçãob. Encontra prazer para os seus dias de vida na terra.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

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PENÚLTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESJeremias 25. 30-32

17 de novembro de 2002

CONTEXTO

No início do capítulo temos uma descrição bem apurada do contextohistórico no qual o texto está inserido, inclusive com datação. Provavelmen-te 605 a.C. A citação de Nabucodonosor na datação da profecia conecta-se à profecia do cativeiro (vv. 9 e 12). “É chamado o primeiro ano deNabucodonosor (v. 1), rei da Babilônia, porque sob o comando do seu velhoe decrépito pai Nabopolassar, Nabucodonosor tomara a condução da guer-ra contra o Faraó Neco do Egito.”1 Nesse ano Nabucodonosor começa aexigir tributos de Jeoaquim.

Dos vv. 3 a 14 há o anúncio de que as tribos do norte sob o comando deNabucodonosor trarão a ruína de Judá; depois de setenta anos, Babilôniacairá. Dos vv. 15 a 29, o cálice da ira de Deus é dado a Jeremias para queele o distribua entre as nações. Dos vv. 30 a 38 o julgamento de Deus sobreas nações é dado em discurso público e direto.

Jeremias claramente chama a atenção do povo para o fato de que du-rante 23 anos ele anunciou a palavra (v. 3). E o lamento do profeta e deDeus é: “vós não escutastes”. O texto dos vv.30 a 32 aponta para as conse-qüências diante da recusa ao chamado de Deus ao arrependimento. E essejulgamento atinge não somente Israel, mas toda a terra (v. 29).

Naturalmente haverá necessidade do uso dos textos do domingo e docontexto litúrgico para a aplicação do Evangelho.

TEXTO

O cálice da ira de Deus é colocado em ação na profecia; e em formapoética. Note a força das palavras do discurso: rugido, brados, estrondo,juízo, contenda, espada, mal e tormenta. Palavras que denotam batalha,embate, bem como violência (como a imagem das uvas sendo esmagadas).

1 KEIL, C. F., Commentary on The Old Testament in Ten Volumes. Eerdmans, Grand Rapids. V. III, pp. 370.

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V. 30 - “lhes profetizará”; “todos os moradores da terra”: a profecia épara todas as nações (cf. v. 29).

- “lá do alto rugirá”; “fará ouvir a sua voz”: uma imagem que apa-rece em Jl 3.16 e Am 1.2 (cf. Os 11.10 e Am 3.8). Mas aqui aorigem está no alto, no céu. Ou seja, atinge também Jerusalém eSião, a teocracia.

- “contra a sua malhada”: ou “contra a sua pastagem” (algumastraduções trazem “habitação”). O rugir como de leão atinge oseu próprio povo.

- “pisar as uvas”: na tarefa de pisar as uvas, bradava-se um “eia”para manter o ritmo do levantar e abaixar dos pés (cf. Is 63.3). Araiz é “esmagar”. Duas imagens se intercalam: o brado e o atode pisar, de esmagar: a força conjunta do grito/palavra e a açãode pisar.

V. 31 - “estrondo... terra”: (cf. Am 2.2). Esse estrondo é resultante daação do v. 30; o barulho de guerra (Is 66.6) contra toda “a carne”, ondea “espada” é usada na batalha para trazer a justiça de Deus. Novamen-te vemos a ênfase da universalidade da ação e do discurso de Deus emseu julgamento.

V. 32 - O “Senhor dos Exércitos” comanda também uma “tormenta”, umatempestade (cf. 23.19) que se espalha por todo o mundo trazendo o“mal” dos confins da terra, do horizonte (cf. Is 41.25).

APLICAÇÕES HOMILÉTICAS

É impossível escapar do juízo do Deus dos Exércitos. Quando a ira deDeus se derrama sobre a humanidade, sobre o ser humano, não há lugarseguro debaixo do céu. A força do brado de Deus atinge a todos. A desobe-diência diante da santa morada, do Deus perfeito, traz o juízo desse Deus. Enão há como escapar (Mt 25.41).

Com a mesma intensidade, em palavra e poder (1Ts 1.5), Deus bradapara todas as nações a sua salvação (1Ts 1.8,9), repercutindo no mundo aressurreição de Jesus (1Ts 1.10). Esse mesmo Jesus virá (Mt 25.31) para oúltimo julgamento e proclamará a salvação aos que creram e, conseqüente-mente, frutificaram em ações de amor, que tornam a anunciar o amor do Paiem Jesus.

Sugiro que o “meio” seja parte da mensagem usando-se algum recursopara que a voz tenha um volume mais alto que o normal no anúncio de Lei eEvangelho. Pode-se na introdução, por exemplo, usar uma narração drama-tizada (gravada, de preferência) de Jr 25.30-32 e, no final da mensagem,outra dramatização de Mt 25.34.

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SUGESTÃO DE TEMA

Deus está gritando!

A. Para mostrar sua justa ira1. diante da desobediência do ser humano (Judá e nações)2. que trará a espada no julgamento.a. Cativeiro Babilônico e ruína das naçõesb. Cativeiro Eterno (Mt 25.46a)

B. Para anunciar a solução/salvação1. Libertação do cativeiro e Nova Aliança (Jr 29.10, 13; 31.33c)2. Libertação da condenação eterna (Mt 25.34)

Fernando Henrique HufRecife, PE

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ÚLTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESEzequiel 34. 11-16, 23,2424 de novembro de 2001

CONTEXTO

O profeta Ezequiel prega aos israelitas exilados na Babilônia. O conjuntodo capítulo 34 traz mensagens de juízo e graça. Juízo contra os pastoresinfiéis de Israel (vv. 1-10). Graça da parte de Javé, que se dispõe a tomar olugar dos pastores infiéis para dedicar-se a seu povo em um pastoreio soli-dário e misericordioso (vv. 11-31).

O exílio babilônico aconteceu de 597 a 538 a.C. Em diferentes levas,foram deportados especialmente os integrantes da corte (militares, funcio-nários de Estado e sacerdotes) de Jerusalém, num total de 15 mil pessoas.Na Palestina permaneceu a maioria da população, cerca de 100 mil pesso-as, representantes da parcela mais simples e pobre do povo.

Na Babilônia, os exilados foram assentados junto ao Rio Quebar e a Tel-Abibe. Haviam sofrido terrivelmente durante as longas marchas, quandomuitos morreram. O sofrimento teve continuidade nos trabalhos forçadosexigidos pelo povo dominador. Trabalhavam no campo, produzindo cereaispara a própria subsistência e para o pagamento de tributos aos babilônios.Assim, a liderança judaica passou de uma situação de elite para a de agri-cultores primários. Tinham certas liberdades, por exemplo, para continuarpreservando sua língua, ritos, costumes e religião. Nesse sentido, a domina-ção foi menos brutal do que a sofrida em outras situações. Ainda assim, osexilados sentiam profunda depressão em razão de sua condição de dester-rados, do trabalho diferente, do fracasso dos valores, do fim de seu centrocultual e de Jerusalém e do fracasso do sistema monárquico, onde ocupa-ram funções privilegiadas. São apresentados por Ezequiel, no texto, comoovelhas dispersas, perdidas, desgarradas, alquebradas e enfermas.

Ezequiel é um dos exilados e foi vocacionado ao ministério profético naBabilônia. Era sacerdote e provavelmente tinha atuado como tal no temploantes da deportação. Sua profecia reflete bem a condição da gente no exí-

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lio, suas dores, fracassos, culpas e esperanças. Esta recebe a pregação deEzequiel como mensagem do próprio Senhor.

TEXTO

Vv. 11-15 - O próprio Javé passa a ocupar-se com seu rebanho. A ênfaseestá em sua intenção de acabar com sua dispersão (v. 12). No v. 13,abre-se mão da linguagem figurada, pois deve ficar claro, retomando20.34, que a referência fundamental é à dispersão de Israel entre ospovos e países e a Javé, que irá reuni-lo e levá-lo de volta. O v. 12assegura que também incluem-se aqui aqueles que foram dispersos “nodia de nuvens e de escuridão”, isto é, no dia do juízo de Javé sobreJerusalém (587 a.C.). A segunda parte do v. 13 e o v. 14 remetem a33.28, pois anunciam o repovoamento dos montes de Israel e o fim desua devastação, com a garantia de fertilidade dada pelo próprio Javé.Ao mesmo tempo, antecipando 35.12, assegura-se que a avaliação fei-ta pelos profetas de Edom não se fará realidade. O v. 15 ressalta umavez mais que o próprio Javé é e permanece responsável por seu reba-nho. É reforçada assim a idéia de que o Senhor quer efetivamenteredimir a parcela de Israel que se encontra na diáspora. A profecia deEzequiel quer animar os exilados com a esperança da libertação, doretorno e da nova reunião na terra de origem, além de exortar aquelesque permaneceram nela, a fim de que aceitem e promovam a integraçãodos que retornam.

Vv. 16, 23, 24 - O v. 16 faz a transição a um trecho, o qual explicita que,além da relação problemática entre pastores e seu rebanho, existe ain-da uma dificuldade inerente a este último: sua desordem. As imagensapresentadas a seguir (vv. 17-22) dão a entender que o povo de Javé seapresenta dividido em dois grupos. Um, de fortes e poderosos, que viveàs custas de outro, formado pelos mais fracos e humildes. Ezequiel fazreferência a uma situação marcada por graves distorções sociais, queNeemias procurou combater por volta de 445 a.C. A postura de Javé éclara em relação a isso: ele apascentará suas ovelhas com justiça.

Javé demite os pastores irresponsáveis e assume o ministério de apas-centar seu povo. Articula-se com isso a expectativa de uma teocracia ilimi-tada a ser concretizada na terra no futuro. Nos vv. 23s., põe-se a esperançana restauração da dinastia de Davi (cf. Jr 23.5s.; 30.8s.), antecipando o queserá exposto em 37.25-28. Interessante é que aqui Davi não recebe o títulode rei, mas uma função de pastor, igualmente de comando, como “príncipeem meio” às ovelhas. Quais serão concretamente suas tarefas? Isso per-manece em aberto. Certo é que o texto diferencia claramente entre o prín-cipe, que assume um ministério em Israel, e o próprio Senhor de Israel.

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APLICAÇÃO HOMILÉTICA

Na profecia de Ezequiel, Javé se apresenta como pastor. Nossas socie-dades urbanizadas não têm pastores de ovelhas. Mesmo no campo, a pecu-ária intensiva desenvolvida em espaços restritos não comporta mais a figurado pastor. Ainda assim, a imagem é tão conhecida da literatura, de obras dearte e de outras manifestações culturais, que a maior parte das pessoas nãoterá dificuldade de perceber o que expressa. O texto também é muito claroao caracterizar o contraste entre as ações de pastores infiéis e o pastoreiomodelar de Javé.

O ponto alto do texto é a mensagem acerca do Senhor, que volta-seamorosamente para seu povo e solidariza-se incondicionalmente com eleem sua deprimente condição de povo exilado e oprimido, dispondo-se a agircom decisão para reverter completamente esse quadro. Cabe ao pregadorexplicitar essa mensagem à comunidade reunida.

Muitas pessoas de nossas comunidades sabem muito bem o que é ter deviver em um lugar completamente diferente de onde nasceram e viveram osprimeiros anos de sua existência. São em boa parte migrantes, forçadospelas circunstâncias a deixar as próprias raízes e desvincularem-se das re-lações familiares, culturais, profissionais e de fé, a partir das quais constitu-íram sua identidade. Facilmente podem existir aqui sentimentos e percep-ções análogos aos de quem vive no exílio, no desterro.

Que consolo não trará, a essas pessoas, vivenciar o testemunho proféti-co de que o Senhor, tal qual um pastor, vai ao seu encontro, amparando-asem sua fragilidade, fortalecendo-as em sua enfermidade, conduzindo-as aolugar onde poderão sentir-se abrigadas e em casa?

Ricardo Willy RiethSão Leopoldo, RS

Os Auxílios Homiléticos para a Série B serão elaborados a partirda leitura do Antigo Testamento (ou 1a leitura).

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DEVOÇÕES

Em nome de Jesus, poder de Deus e sabedoria de Deus. Amém.

Uma leitura descuidada e rápida do texto pode dar a impressão de quecristãos se vangloriam de serem estúpidos e irracionais. Será a mensagemcristã uma apologia ao relaxamento na elaboração de uma mensagem? Seráela o esforço consciente dos pregadores cristãos em elaborarem um anún-cio sem sentido?

Vale a pena observar que Paulo não diz que nós tornamos a mensagemdo evangelho em escândalo e loucura; mas que ela o é ... para os que seperdem! É, porém, o que há de mais sábio e forte, mais do que qualquerpalavra dos sábios e vigor dos homens. Há algo no próprio evangelho que setorna escandaloso e louco diante do mundo; mas que é recebido como amais sublime sabedoria e poder entre os que crêem.

A mensagem é “escândalo” - uma pedra na qual se tropeça e cai. Assimo foi para os judeus, diz Paulo. E, convenhamos, eles tinham suas razões.Afinal, quem tem o Antigo Testamento como base, vai lembrar das pragasque assolam o inimigo, do mar que é aberto, da água que sai da pedra, doalimento que cai do céu, enfim, sinais que apontam para o Deus Todo-Pode-roso que está agindo. É de se perguntar, então: Será que Deus não vaicontinuar agindo assim, com poder, com sinais? E foi isso que os judeusexigiram de Jesus - “que sinal fazes para que o vejamos e creiamos em ti?”(Jo 6.30). Vale lembrar que ao lhe serem pedidos sinais, Jesus falou do queele chamou de “sinal de Jonas”, ou seja, sua própria morte e ressurreição.Um Messias crucificado? Não era o que se poderia esperar, na visão demuitos judeus. Messias significa rei, significa glória, poder ... não cruz, ver-gonha, sofrimento!

A mensagem é “loucura”. O estadista romano Cícero, que viveu no pri-meiro século antes de Cristo, falou sobre o horror que a cruz causava aosromanos, e que ela jamais deveria estar presente nem no corpo de qualquer

1 Coríntios 1. 22-25A LOUCURA DO EVANGELHO

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romano, nem em seu pensamento ou diante de seus olhos e ouvidos. UmDeus crucificado? Só pode ser uma “superstição perniciosa”, como disse ohistoriador romano Tácito. O evangelho do Cristo crucificado afronta ospadrões da sabedoria humana; e isto, para os gentios da época de Paulo,cheirava à vulgaridade. Mais grave ainda, ela afronta o que há de maishumano - a certeza, ou ao menos esperança, de que as pessoas podemresolver os problemas através da reflexão, análise e tomada de decisão.

É importante lembrar que Paulo havia dito, pouco antes, no v. 18, que “apalavra da cruz é loucura para os que se perdem”. Mas esta palavra é, defato, “poder de Deus e sabedoria de Deus” (v. 24). O próprio Deus já haviaalertado, pela boca de Isaías, que os seus caminhos e pensamentos são maisaltos do que os caminhos e pensamentos humanos (Is 55.9). É que o podere a sabedoria de Deus não se medem pelo seu impacto na razão e expecta-tiva humanas, mas se caracterizam pelo amor de Deus, que traz salvaçãode um modo contrário a toda expectativa humana.

Os judeus tinham seus motivos para desconfiar da mensagem da cruzcomo sendo de Deus. Afinal, a cruz os lembrava das palavras deDeuteronômio, “o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus” (Dt21.23). Sim, o evangelho é loucura e escândalo porque mostra um Deussanto e justo, diante de pecadores ímpios, que ao invés de castigo, propõe,no Seu Filho crucificado, perdão e vida incondicionais, totalmente imereci-dos. Ao justo ele condena na cruz; aos ímpios ele declara justos - que loucu-ra, que escândalo - ou, nas palavras do Hino 75: “Quanto amor! Oh! Quantoamor! Revelaste, ó meu Senhor!”

O Evangelho continua sendo e sempre será desafiador, não só para o mun-do, mas para a Igreja e para os pastores! Há propostas de poder e de sabedoriano caminho da Igreja neste mundo. Não faltam os planos, os projetos e progra-mas que, na sua proposta, irão resolver os problemas da Igreja, seja na área dasfinanças, seja no evangelismo, seja no envolvimento das pessoas no trabalho.Fórmulas do tipo “Como ter sucesso no ministério”, “Como tornar sua Igrejaeficiente”, “Como aumentar os números”, podem refletir a preocupação since-ra de pastores e congregações com o trabalho no reino de Deus. Mas a trajetó-ria do Evangelho nem sempre é aquela dos grandes resultados.

Esta não é nenhuma defesa do relaxamento, do descuido, do desleixo oudo despreparo com a obra de Deus. Paulo não anuncia que nós tornamos oEvangelho loucura e escândalo, mas ele o é, pela sua própria natureza; queconfronta o desejo humano de salvar-se a si mesmo. É preciso que pastor eIgreja deixem o evangelho ser escândalo e loucura.

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Ou, não é um escândalo dizer que um bebê, nascido em pecado, nascenovamente, como filho querido de Deus, nas águas do Batismo? E que nós,até o fim de nossos dias, em nosso batismo teremos fonte de consolo e deamparo - somos filhos de Deus! É ou não um escândalo, que um homempecador, parado diante de nós, diga, da parte do próprio Deus: “Eu vosperdôo”? É ou não é um escândalo e loucura que no pão e no vinho Jesusnos dê seu verdadeiro corpo e sangue, ao ponto de podermos sair daqui hojeexultantes com o perdão e vida eterna dados a nós no sacramento? Que“escândalo” e “loucura” benditos! Pois para nós, que fomos chamados porDeus, em Seu evangelho, esta palavra é poder e sabedoria de Deus, pelaqual vale a pena, sim, dedicar nossa vida, nosso tempo, nosso estudo, nossotrabalho. Amém.

Devoção proferida na Capela do Seminário Concórdiano dia 6 de março de 2002, pelo Rev. Prof. Gerson Luis Linden

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Perto das 10h de ontem eu aplicava a prova de Grau 2 para os alunos do40 ano na ULBRA, estes mesmos que aqui estão à nossa frente. Numa dasvezes que saio da sala pelo corredor para buscar um copo d´água, vejo umaluno que acabara a prova e saíra da sala. Ele levanta um dos braços, esmurrao ar e esboça um grito que pelo esforço dele faria inveja a qualquer lobo daspradarias americanas que se vê em filme de caubói. Era uma explosão dealívio, de liberdade, de alegria, de regozijo; acabou, finalmente acabou. Comoo aluno saíra da minha classe, eu deveria ficar um pouco magoado; maspensei um pouco e entendi o seu gesto que interpretei com simpatia e com-preensão.

Esta tarde fica na história como um dos momentos mais marcantes esignificativos para cada um de vocês formandos da ULBRA e do Seminá-rio. É marcante porque a designação que recebem hoje é instrumento peloqual vocês dão um passo a mais em direção ao ofício do santo ministérioque Lutero chama de “o mais elevado ofício no Cristianismo”. É um mo-mento significativo porque daqui a uns dias receberão um belo diploma, umdeles em latim, que provavelmente será emoldurado e pendurado na parededo gabinete pastoral. Mas, além de ser marcante e significativo, este mo-mento é, também, um momento de alegria e regozijo.

Alegria, regozijo. Que é alegria? Disse alguém que a alegria é uma jóiade múltiplas facetas. E uma dessas facetas é o sentimento de ter o devercumprido, de ter completado uma tarefa, concluído um projeto. Alegria eregozijo são o núcleo do texto de Isaías 65 porque ele fala de um passoadiante, de uma realidade à frente, de uma nova criação. Ele fala de coisaspassadas sim, que não serão mais lembradas. E ele fala de bênçãos futuras,ou seja, de momentos de Deus que ele antecipa para nós e se tornam imi-nentes, imediatos. Deus cria coisas novas. Na palavra “novo” está o para-doxo. “Novo”, especialmente em Isaías, significa “cumprimento” , cumpri-mento das coisas antigas, cumprimento das coisas profetizadas. Isaías 65 é

Isaías 65.17-25O DEUS QUE CRIA COISAS NOVAS

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um texto escolhido pela igreja para ser lido no último domingo do Ano Ecle-siástico, antes do Advento. Com este texto celebramos o cumprimento deoutro ano do Senhor como um tipo ou profecia do cumprimento de todas ascoisas no Messias quem vem, no Emanuel, no Deus que está conosco.

O objetivo da profecia em nosso texto evidentemente é apontar para océu, para a eternidade, uma realidade que é difícil de ser descrita a não serem termos opostos ao que nós conhecemos e vivenciamos neste mundo.Por isso também Deus neste texto fala de uma nova terra ao seu povo,oposta, especificamente oposta, ao exílio babilônico que parece ser a antíte-se imediata do novo céu e nova terra. O retorno do povo de Israel do exílioé um tipo de garantia, penhor, entrada do grande cumprimento, da gloriosaliberdade, da nova criação.

Numa realidade de antíteses não há espaço para a alegria e regozijo.Nem o povo de Deus e nem Deus podiam alegrar-se quando Jerusalémcaíra na mão do babilônios. Deus não se alegra senão quando a sua igreja,também está alegre e rejubila. Esta alegria mútua é impossível enquanto anatureza do pecado não for tratada. Mas o SENHOR assume esse trata-mento na pessoa do Messias que no cap. 61 vem para anunciar boas-novase trazer o ano da liberdade do SENHOR. E aí está o motivo da alegria eregozijo. Aí está a faceta mais brilhante da jóia.

“Folgareis”, “exultareis” - na tradução os verbos estão no futuro. Mas,no original os verbos são dois imperativos: “folgai, exultai” ou, como diz aNova Tradução na Linguagem de Hoje: “Alegrem-se”, “fiquem felizes parasempre com o que estou criando”. Imperativos são ordens. Podem alegria,regozijo, ser ordenados? É possível dar ordens a alguém para que seja ale-gre e se regozije? Claro que não! Na verdade este é o imperativo evangéli-co, o incentivo para que as novas criaturas, o povo de Deus, como nós,sejam o que efetivamente são: parte da nova criação de Deus. O imperativoconclama a que se comece logo a alegria porque a ação de Deus é imediata,a nova criação de Deus já começou, e está prestes a ser profetizada aoutros por meio de nós - e de vocês.

Prezados estagiários e formandos: daqui a dois meses você pendurou naparede do gabinete o seu diploma. A casa pastoral está em absoluto silên-cio. A família pastoral dorme. São 4 horas da madrugada. Você se vira dooutro lado na cama, aliviado com o sentimento de que não precisa ir às aulasno Seminário ou da ULBRA, não há hebraico para memorizar, nemmonografias a escrever - e você volta a dormir profundamente. Vinte minu-tos depois o telefone soa. Você dá um pulo na cama mas fica deitado imagi-

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nando que é um sonho. Telefones, campainhas, batidas à porta, perguntasque esperam respostas, respostas que esperam perguntas. Do outro lado dalinha está uma voz, talvez familiar talvez não. As únicas palavra que vocêconsegue ouvir é: “Pastor, aconteceu uma coisa”.

Em cinco minutos você está atravessando a escuridão para falar umapalavra de conforto, esperança, perdão, paz, alegria. E através de vocês oSENHOR Deus terá começado uma “nova criação” para a “nova criação”.Que Deus vos abençoe.

Devoção proferida no dia 21 de novembro de 2001 pelo Dr. AcirRaymann por ocasião da cerimônia de habilitação e designação de

estágio aos alunos do Quarto Teológico e indicação de locais para oministério na IELB aos alunos do Sexto Teológico.

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RESCENSÃO

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Oscar Cullmann (1902-1999) impressiona pelo conhecimento enciclopé-dico sobre o assunto, evidenciado não apenas pelo conteúdo exposto, maspelas notas de rodapé e a ampla bibliografia ali referenciada. Obviamente oleitor contemporâneo poderá ficar decepcionado, face à inexistência de bi-bliografia posterior aos anos 50. Mas este é o ônus de trabalhar com umaobra escrita há meio século e só agora traduzida para o Português. O con-teúdo do texto, a profundidade da pesquisa e a relevância das conclusões deCullmann (mesmo onde não se possa concordar com o autor) porém, supe-ram esta “deficiência”.

O livro está dividido em quatro partes, precedidas de uma Introdução,onde Cullmann discute “O pensamento cristológico no cristianismo primiti-vo”, e de uma Conclusão, com “Perspectivas da Cristologia do Novo Testa-mento.” As partes são organizadas tendo o tempo/história como base paraa divisão. A primeira parte trata dos “títulos cristológicos referentes à obraterrena de Jesus”: Jesus, o Profeta; Jesus, o Servo sofredor de Deus; Jesus,o Sumo Sacerdote. A segunda parte traz os “títulos cristológicos referentesà obra futura de Jesus”: Jesus, o Messias; Jesus, o Filho do Homem. Aterceira parte refere-se aos “títulos cristológicos referentes à obra presentede Jesus”: Jesus o Senhor; Jesus o Salvador. A quarta parte, com os “títulosreferentes à preexistência de Jesus”: Jesus, o “Logos”; Jesus, o Filho deDeus; Jesus chamado “Deus”.

Em cada um dos capítulos, Cullmann, após refletir sobre determinadotítulo de Jesus, a partir do contexto helenista, do Judaísmo, do próprio Jesuse da Igreja primitiva, pergunta-se em que medida o título estudado solucionao problema cristológico. Quanto à importância dos títulos cristológicos,Cullmann procura mostrar que era por meio deles que se dava resposta àquestão sobre quem era Jesus. Eles “buscam explicar o que há de úniconele.” (p. 23) “Se Jesus é designado no Novo Testamento de maneiras tão

Por Oscar Cullmann. Traduzido por Daniel Costa eDaniel de Oliveira. São Paulo: Líber, 2001. 427 páginas.

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diversas, deve-se que a nenhum destes títulos pode, por si só, abranger atotalidade de sua pessoa e de sua obra. Cada um deles indica só um aspectoparticular da pessoa de Cristo.” (p. 23)

Sobre seu método teológico, Cullmann mesmo afirma: “Renunciando a con-siderações metodológicas profundas ... nos limitaremos a sublinhar aqui que nãoreconhecemos outro método senão o histórico e filológico, este demonstradopela experiência; nem outra atitude com respeito ao texto além de uma inteiradisposição de escutá-lo honestamente, inclusive quando o que nos disser sejaestranho ou contradiga nossas, determinadas e muito queridas, concepções.Para compreender e explicar o texto, faremos, pois, abstração de nossas “opini-ões” filosóficas e teológicas pessoais e nos negaremos a desqualificar, comoagregados secundários, aquelas afirmações neotestamentárias que não se en-quadrem com ditas opiniões.” (Prefácio do autor, p. 16)

O “ranço” do método histórico-crítico (particularmente com o instru-mental da Crítica da Redação e da Crítica das Formas) está bem presenteem algumas discussões de Cullmann. Pode-se notar, por exemplo, na ques-tão a respeito da “autenticidade” de determinados textos, se são palavras deJesus ou não (veja-se, por exemplo, pp. 88ss). Isso fica bastante evidentetambém no método adotado por Cullmann. Ele considera separadamentecada assunto, no pensamento de Jesus e no que o autor denomina “cristia-nismo primitivo”, que se refere aos evangelistas (ou às comunidades queestão por detrás deles!).

Cullmann se revela, por vezes, um ardoroso crítico às idéias da teologialiberal; por exemplo, sobre a idéia de uma revelação geral, presente emtodas religiões, que se torna especial no cristianismo (p. 346). Ou entãoquando designa de “dogmatismo” uma atitude que a priori negue a possibi-lidade de Jesus e os primeiros cristãos terem dado aos termos conteúdocompletamente novo (p. 354). Tal observação se reveste de especial impor-tância quando se percebe que Cullmann não deixa de dialogar com a pes-quisa contemporânea (a ele).

Uma palavra interessante contra os críticos mais radicais: “Certamentedevemos evitar as tentações de harmonização que façam violência aos tex-tos e devemos deixar subsistir as dificuldades que neles se encontrem demaneira efetiva. Porém, como especialistas do Novo Testamento, não cor-remos o risco de sucumbir a um tipo de deformação profissional que consis-te em experimentar uma alegria quase insana ao constatar contradições e anos irritarmos contra toda tese que estabeleça um elo ou uma relação –ainda que fosse entre Jesus e Paulo?” (96).

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Em conclusão, podemos chamar a atenção do leitor para algumas refle-xões particularmente relevantes, feitas por Cullmann. Por exemplo, em con-traste com a crítica liberal, sua afirmação de que “O fundamento de todacristologia é a vida de Jesus”, em outras palavras, a ação de Jesus no mun-do, como Servo, Filho do Homem, etc. Outra questão interessante é a afir-mação, diversas vezes repetida, de que o docetismo é a “heresia cristológicafundamental” contra a qual o Novo Testamento se levanta. Além disso, ainsistência de Cullmann de que a idéia de “substituição” é uma das maisfundamentais na cristologia do Novo Testamento.

Dedicar um livro inteiro, com tamanha profundidade de pesquisa, ao temada Cristologia já é, por si só, elogiável. Isso é especialmente relevante tendoem vista que o lugar onde normalmente se estuda este tema na TeologiaSistemática (Dogmática) reserva bastante tempo para as controvérsiascristológicas e as questões envolvendo a pessoa de Cristo. Cullmann, po-rém, está especialmente interessado na obra de Jesus. É, portanto, um estu-do muito bem-vindo para todos quantos consideram Cristo e sua obra comoo centro da Teologia, sua fonte e seu conteúdo.

Gerson Luis Linden

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SEMINÁRIO CONCÓRDIADiretor

Paulo Moisés Nerbas

ProfessoresAcir Raymann, Clóvis Jair Prunzel, Ely Prieto, Gerson Luís Linden,

Leopoldo Heimann, Norberto Heine (CAAPP), Paulo Gerhard Pietzsch,Paulo Moisés Nerbas, Paulo Proske Weirich, Vilson Scholz.

Professores EméritosDonaldo Schüler, Martim C. Warth

IGREJA LUTERANAISSN 0103-779X

Revista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pelaFaculdade de Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja EvangélicaLuterana do Brasil (IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.

Conselho EditorialAcir Raymann (editor), Vilson Scholz

Assistência AdministrativaJanisse M. Schindler

A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografia BíblicaLatino-Americana e Old Testament Abstracts.

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