vivendo a morte

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Entertainment & Humor


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Page 1: Vivendo a morte

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Vivendo a Morte Edimar Silva

Era quase dia, provavelmente. Não estava com muito sono durante a noite, estava

cansado, de fato, mas sem sono. Fiquei lendo algum livro, não me recordo o qual, a última vez

que olhei no relógio lembro que marcava, aproximadamente, quatro horas da manhã. Não sei

quanto tempo depois fui conseguir dormir, sei que ainda terminei de ler três capítulos após a

última conferida na hora.

Acordei, mas não abri os olhos. Sentia a claridade penetrar através de minhas

pálpebras, ouvia os pássaros cantando nas árvores e uma leve garoa batia em minha janela.

Fiquei alguns segundos admirando a suave batida da garoa. Juntamente com o cantar dos

pássaros, harmonizava um som ímpar, o qual poderia ser ouvido o resto do dia sem que eu me

cansasse. Enquanto meus ouvidos se deliciavam com tal bela melodia, tentei levantar-me. Mas

não consegui, estava imobilizado. Pensei em chamar meu irmão, para poder me ajudar,

mesmo sem saber que tipo de ajuda eu precisava. Era como se eu estivesse enclausurado

dentro de mim mesmo. Mas seria inútil qualquer tentativa de chamá-lo, era domingo e

certamente ele estaria na igreja, como de costume. O que me surpreende é que ele não havia

tentado me acordar para acompanhá-lo. Talvez ele tivesse desistido disso, pois sabia que era

em vão. Não estou dizendo que não acredito em um ser superior, tinha minhas dúvidas após

certos acontecimentos em minha vida. Mas, deixando isso de lado, e sem conseguir me mexer,

fiquei imaginando a situação em que eu me encontrava. Inerte, como uma rocha em forma

humana. Assustei-me ao perceber que não conseguia nem ao menos abrir os olhos. Meu único

contato com o mundo parecia ser através dos ouvidos. Sabia o que acontecia ao meu redor

graças à audição. Mas ainda não tinha tentado falar, mesmo que inutilmente, apenas para ter

certeza se eu ainda era capaz disso.

Mas foi em vão. Minha boca não se mexia, não conseguia emitir ruído algum, nem

mesmo com a garganta. O que teria acontecido comigo? Nada se esclarecia, pergunta alguma

era respondida. Estava atônito, impaciente, já não aguentava mais tal situação. E foi nesse

momento que ouvi a porta de meu quarto se abrir e passos se dirigirem em minha direção.

Fiquei pasmado ao ouvir meu irmão dizer que tinha levantado cedo, tomado seu banho e, ao

tentar me chamar para a missa, ter percebido que eu estava morto.

“Morto?”, pensei eu. Não era possível. Como pode alguém estar morto, mas ciente das

coisas ao seu redor? Como pode alguém morrer e ouvir as pessoas falando sobre sua própria

morte? Não fazia sentido. Mas enquanto essas dúvidas surgiam, senti que alguém tocava em

meu peito. Certamente era um médico, um pára - médico ou algo parecido, a julgar pela

conversa entre ele e meu irmão. Ouvi, desse homem, a confirmação daquilo que meu irmão

tinha dito anteriormente: eu estava mesmo morto.

Ao ouvir a confirmação, meu irmão sequer demonstrou alguma reação. Queria ter

visto o rosto dele naquele momento. Ouvi-o agradecendo ao médico e se despedindo. Disse

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que tomaria as medidas necessárias. Estranhei a reação de meu irmão. Talvez já tivesse

chorado antes, no momento em que percebeu que eu jazia em minha própria cama. Mas não

tinha certeza disso. Inúmeras dúvidas passavam por minha cabeça. Algumas delas eram

resolvidas, algumas se tornavam mais e mais intrigantes ao passar do tempo. Lembrei ter

sentido a mão de alguém tocando meu peito. Logo, eu poderia ouvir e sentir as coisas. Mas

por que eu continuava com apenas dois dos meus sentidos? Tato e audição. Audição e tato.

Ainda preferia a visão. Visão e audição seriam primordiais nessa ocasião. Tenho certeza que se

todos aqueles que morrem pudessem continuar com dois sentidos após a morte, esses seriam

os sentidos escolhidos. Poder ver e ouvir as outras pessoas. Ver quem chorou de alívio, quem

chorou de tristeza. Quem falou que sentiria falta, quem desdenhou. Esse talvez fosse um

sonho de muita gente. E eu fui escolhido para ser o detentor de tal bênção. Ou, melhor

dizendo, de tal maldição. Sem saber o que estava por vir, sentia a claridade atravessando

minhas pálpebras, dando noção de que o sol estaria nascendo. Ou seja, de certa forma eu

tinha, ainda, um outro sentido: a visão. Apesar de não enxergar nada por causa das pálpebras

cerradas, podia ter a certeza de que minha visão ainda funcionava, a julgar pelo modo como

eu sentia a claridade do sol penetrando por elas. Certamente, se alguém abrisse meus olhos

para verificar o estado deles, eu iria conseguir ver as coisas ao meu redor. Mas ninguém se deu

ao trabalho de fazer isso. Era empenho demais por alguém que nada valia.

Como não podia fazer nada além de esperar, tratei de inundar a mente com

pensamentos sobre a situação na qual eu me encontrava. Pensava nas possibilidades que teria,

mas saber o que falariam de mim no meu velório era o principal quesito em que pensava. Em

momento algum me deixei abater pelo sentimento de tristeza ou de desânimo. Eu estava

morto. E o que eu poderia fazer, senão aproveitar aquele momento único? Não posso dizer,

obviamente, que estava feliz. Mas ao analisar o fato de estar em uma situação da qual eu não

poderia mais sair e ter noção disso, sabendo que podia, pelo menos, ouvir os sons ao meu

redor, era maravilhoso.

Mas foi nesse momento que uma dúvida, como um estalo, surgiu: e se essa capacidade

que eu tinha fosse normal para os mortos? Digo, e se cada pessoa que morre partilhasse os

mesmos sentidos remanescentes? Como saber se as pessoas por quem chorei em seus velórios

não tinham consciência de que eu chorava por elas? E, pior: como saber se aquelas de quem

falei mal não me ouviram maldizer delas? Aquilo que antes me animava, agora, me assustava.

E pensamentos relacionados às ideias malucas que em minha mente passavam ficavam cada

vez mais frequentes. Senti meu corpo ser retirado da cama por algumas pessoas. Meu irmão

disse que não queria exames para saber a causa da morte, queria apenas que me deixassem

pronto, o mais rápido possível, para ser levado ao funeral.

Meu funeral. Eu estaria ciente das coisas ao meu redor. Isso ainda me animava. Já não

pensava mais nas outras pessoas que morreram e que, talvez, tenham tido essa mesma

experiência. O importante agora era que eu pudesse ter certeza de que escolhi as pessoas

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certas para fazerem parte de minha vida. E teria essa certeza quando essas pessoas se

aproximassem de meu caixão. Mas e se eu fosse cremado? Esse era meu desejo, ser cremado

para que não restasse muito de mim neste mundo. Todavia, não creio que meu irmão tenha

cogitado tal possibilidade. Eu não tivera tempo de expressar meu desejo. Era o que eu queria,

mas ninguém sabia. Talvez fosse melhor assim. Sendo um defunto ciente, ao ser levado à

minha cova, teria chance de acompanhar meus últimos momentos em cima desta terra. Isso

que eu chamo de ‘aproveitar ao máximo a estadia neste mundo’.

Enquanto infindáveis possibilidades se misturavam a incansáveis pensamentos, meu

corpo fora preparado para o funeral. A julgar pelo modo como meu corpo estava, posso dizer

que nesse momento eu já estava deitado em meu caixão. Nesse exato momento, o carro

fúnebre começa a se mover, levando meu corpo ao local de sua derradeira morada. No

cemitério onde eu seria enterrado havia uma pequena capela, e lá, certamente, eu seria

velado. Pelos solavancos durante a viagem, senti minha cabeça bater na tampa do caixão

algumas vezes. Pouco tempo depois, o carro pára. Sinto que algumas pessoas carregam meu

caixão em direção à capela.

Finalmente. Lá estava eu, deitado, inerte, ciente de tudo ao meu redor graças à minha

audição. A princípio, poucos passos podiam ser notados ao redor do local onde eu estava à

mostra. Sentia-me um frango numa vitrine. Dentre os burburinhos não consegui reconhecer

voz alguma. Na verdade, parecia que toda essa gente nem me conhecia. Mas aos poucos isso

começou a mudar. Não que eu fosse uma pessoa de muitos amigos, reconhecido, ou

altamente sociável. Muito pelo contrario. Algumas das vozes que lá ouvi eram de colegas de

serviço, patrões ou cobradores. Não sei por qual motivo cobradores iriam ao funeral de seus

clientes. Talvez apenas para ter certeza de que havia perdido um deles. Repentinamente, ouço

gritos histéricos e um choro compulsivo de uma mulher. Pelo que ela dizia, não acreditava que

eu estava morto. Mas durou pouco. Ao se aproximar, ela percebeu que estava enganada, não

me conhecia. Nunca pensei que coisas assim acontecessem. Logo após esse incidente, uma

calmaria. E, para quebrar o silêncio que se fez depois da saída de tal mulher, o homem que eu

considerava meu melhor amigo se aproximou de meu corpo. Sei que era ele pela respiração

ofegante, típica dele. Tocou em minhas mãos, tocou minha testa. Não disse nada. Talvez por

sempre ser um homem de poucas palavras, ou por estar demasiado emocionado naquele

momento, mas nada disse. Respirou profundamente, sussurrou algumas palavras que me

foram inaudíveis, e se afastou.

Isso me fez pensar que alguém sentiria minha falta. E que eu tinha feito a escolha certa

em relação àquele que seria meu melhor amigo. Mais tarde, ouço uma mulher tentando

convencer uma criança a se aproximar do caixão. A criança insistentemente dizia que não, que

tinha medo, mas era em vão. Por causa dessa discussão, um bebê começa a chorar. Não havia

bebê algum antes. Cheguei à conclusão de que essa mulher levava consigo sua filha, com

quem discutira, e o bebê em seu colo. Por prestar atenção demais na conversa das duas, em

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momento algum, exceto na hora em que se aproximou de mim, percebi que essa voz era,

simplesmente, da única mulher que amei na vida. Infelizmente, esse meu amor, para ela, nada

significou. Ela sabia que por causa da desgraça que foi tê-la amado, eu tinha ficado muito

doente. E pude perceber que ela, ali, ao meu lado, se culpava pela minha morte. Dizendo que,

caso ela não tivesse sido tão egoísta, ela poderia ter vivido uma vida feliz comigo e que, talvez,

naquele momento eu ainda estivesse vivo. Mas arrependimentos não matam. Nem

ressuscitam. Não adiantava chorar ou imaginar como tudo teria sido diferente. Sei que ela era

casada com um oficial da Marinha, tinha tudo do bom e do melhor. E tinha filhos para cuidar.

Ela ainda chorava. Entregou o bebê à sua filha e debruçou-se sobre mim. Senti as lágrimas dela

caindo em meu rosto quando, em um gesto desesperado, me beijou esperando que eu

acordasse. Foi necessário que outras pessoas ajudassem-na a sair, devido ao grande desespero

em que ela se encontrava. Após a saída dela, ouvi várias pessoas cochichando sobre ela. E

percebi que, na verdade, eu tinha sido alguém significante apenas para poucas pessoas. Mas

de forma intensa. Era o que me aliviava.

Todavia, isso tudo ficaria apenas na memória. Não poderia ser vivido novamente, nem

que fosse de forma diferente. Minha estadia na Terra havia acabado. E só restariam

lembranças àqueles que ainda permaneciam vivos. Repentinamente, veio-me à mente uma

dúvida que me deixou intrigado: por que nenhum de meus parentes sequer se deu ao trabalho

de ir ao meu velório? Digo isso por ter certeza que em momento algum pude notar a voz de

alguém de minha família ao meu redor. Nem mesmo a voz de meu irmão eu tinha notado até

então. Talvez eu não valesse nada para os demais. Talvez eu fosse apenas um estorvo que

agora seria despejado num buraco e coberto com terra, fazendo com que todos se livrassem

de um inútil ser humano que de nada servia. As dúvidas iam se acumulando ao passar das

horas. Não tenho noção de quanto tempo já havia se passado. Tinha ouvido alguém comentar

que iria almoçar e depois voltaria para poder ver o ‘último capítulo’. Sim, foi esse termo que a

pessoa usou. Não sei quem era, mas pela frase que havia proferido, dava a entender que meu

funeral, na verdade, era, para essa pessoa, um espetáculo.

Imagino o que eles fariam se soubessem que eu ouvia todos os comentários ao meu

redor. Houve quem dissesse que eu estava em um lugar melhor, longe das pessoas ruins do

planeta. Ledo engano, eu estava lá, misturado a todas elas. E pior: com a noção de que,

realmente, as pessoas, em sua maioria, não prestam. Com essa conclusão, senti-me bem por

ter passado minha vida afastado das pessoas. Ter tido poucos amigos, poucos contatos e raras

relações pessoais, havia feito de mim uma pessoa mais sensata. Admito que, dessa forma, me

tornei uma pessoa fria, mas isso era irrelevante. Sempre achei melhor ser frio do que ser falso.

A frieza, pelo menos, é sincera. Não me arrependo de ter tido a vida que tive. E mesmo que

me arrependesse, não poderia consertar mais. Uma voz masculina disse, rindo, que se eu não

tivesse morrido, ele me mataria, só pra poder participar de um funeral como o meu. Não sei o

que ele quis dizer com isso. Talvez tivesse conhecido alguém interessante (apesar de eu achar

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que se alguém chega a tal ponto, é uma pessoa extremamente sem escrúpulos), ou se dizia

isso se referindo à comida que naquele momento era servida. Na verdade, parecia que haviam

feito do meu funeral uma festa. Tornava-se mais comum perceber pessoas rindo, contando

piadas. A comida, certamente, era coisa do meu irmão. Somente ele teria uma mente sagaz o

bastante para sugerir que fosse servida comida aos “convidados”.

O tempo ia passando, minha paciência diminuindo e uma certeza aumentando: era

mesmo muito melhor partir desse mundo tão podre. Cercado de pessoas que misturavam o

riso ao choro, a tristeza à alegria, a dor e a vontade de ir embora. Nunca havia imaginado que

as pessoas chegariam ao ponto de cercar um corpo sem vida para falar tanta futilidade, como

se o morto fosse apenas um pequeno detalhe no cenário. Eu me sentia o coadjuvante do meu

próprio velório. Sentia uma vontade enorme de levantar daquele caixão e colocar toda aquela

gente numa cova bem funda. Afinal, gente tão desprezível como aquela não faria a menor falta

na face da Terra.

Repentinamente, ouço a voz de meu irmão, ecoando pela pequena capela, pedindo

licença porque ele tinha um pronunciamento a fazer. Assim sendo, fiquei curioso para saber

quais seriam as palavras direcionadas a mim, naquele último momento partilhado comigo. Ele

começou citando uma frase de Epicuro: “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos,

não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais”. Não sei como essa frase

acabou sendo dita por ele, já que meu irmão, pelo que me lembro, jamais utilizou algum livro

sem ter como propósito segurar papel ou calçar alguma mesa. Após essas palavras, um silêncio

sepulcral pôde ser notado. Então, para ‘quebrar o gelo’, meu irmão disse que citaria outra

frase, desta vez de Benjamin Franklin: “Nesse mundo nada é certo, além da morte e dos

impostos”. E todos começaram a rir. Se alguém olhou pra mim naquele momento, talvez tenha

conseguido ter uma pequena noção de que eu estava em tremendo desgosto por causa de

tudo aquilo. Meu funeral parecia um circo.

Ainda desgostoso com as coisas que acabara de ouvir, fui sentindo a tensão aliviar ao

passar do tempo. Sabendo que aquelas pessoas continuariam vivendo a vida miserável que

tinham enquanto eu partia rumo ao desconhecido, me fazia suportar aquele momento de

raiva. Eu estava deixando para trás aquelas pessoas. Pelos nomes que eu continuava a ouvir e

pelas vozes que eu insistia em tentar reconhecer, tenho certeza de que quase a totalidade

daquelas pessoas nunca tinha passado pela minha vida. Pelo menos não até aquele momento,

de morte-vida inexplicável.

Alguns minutos depois, ouço comentários de que o padre estava chegando. Não sei a

razão disso, talvez coisa do meu irmão. Aliás, certamente era coisa do meu irmão. Eu não era

católico. Após uma longa sessão de orações repetitivas, que de tanto ouvir, acabei decorando,

percebo que é hora da partida. Sinto que mais pessoas passam por mim, tocando em minhas

mãos e sussurrando palavras indecifráveis. Iriam fechar o caixão. A escuridão me esperava.

Ouço a tampa sendo colocada. Adeus, mundo cruel.

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Sou levado, sofrivelmente, até meu local de repouso eterno. Se eu estivesse vivo,

aquele balançar do caixão teria me deixado enjoado. O buraco estava aberto. Eu seria

enterrado numa cova comum. Nada de túmulo de família, gaveta ou o diabo a quatro. Eu ia

pro buraco. Mas isso não era o pior. A precariedade era tanta que a corda que me sustentava

rompeu e eu fui em queda livre, a sete palmos. Felizmente nada de ruim ocorreu. Aliás, nada

pior do que já tinha ocorrido até aquele momento. Ouvi a terra batendo na tampa do meu

caixão. Pronto. Eu estava isolado da iníqua sociedade.

Sem saber quando eu, finalmente, perderia os sentidos, tentei dormir, mas foi em vão.

Como poderia um morto dormir? Então resolvi relembrar os fatos de minha vida enquanto as

horas passavam e, lentamente, meu corpo era dissolvido pelo tempo.

Depois de muito tempo, algo diferente começou a acontecer. Senti que minha pele

começava a se desprender dos ossos. Eu estava deteriorando. Mas ainda lúcido o suficiente

para sentir meus pedaços se espalhando ao longo da superfície já dura do caixão. Meu cérebro

deveria ainda estar intacto, ou não seria possível perceber tudo aquilo. Mas que maldição seria

essa? Ser testemunha do próprio enterro e ainda ter que sentir o corpo se desfazendo? Pouco

a pouco fui me esvaindo. Pedacinho por pedacinho meu ‘eu’ foi deixando de existir. Não dava

mais pra ouvir o ranger da madeira do caixão. Eu sabia que aquilo estava perto de acabar.

Foi nesse momento que a claridade tocou aquilo que ainda restava de mim. O pouco

que havia sobrado dos meus olhos percebeu que eu estava sendo tirado da cova. Ninguém

havia se importado comigo durante os anos que lá passei. Não fizeram túmulo ou colocaram

lápide. Apenas me deixaram lá, como se eu fosse um estorvo. Eu achava que poderia

descansar em paz, mas o coveiro me levava, provavelmente num carrinho de mão, para um

outro lugar.

Eu ainda não estava completamente decomposto, mas o coveiro não pensou duas

vezes. O que restava de minha pele sentia que um calor enorme estava próximo. Eu iria ser

queimado vivo. Melhor dizendo, iria ser apenas ‘queimado’. Vivo eu não estava há tempos.

Não literalmente falando. Pude ouvir, precariamente, que o coveiro ria da situação. Falou algo

como “churrasco” ou “carrasco”, não consegui discernir. Provavelmente ele era o carrasco

encarregado do churrasco. Ou algo parecido. Mas tanto faz. Ele foi tirando meus membros e os

atirava na fornalha, pedaço a pedaço. Parecia que ele sabia do meu sofrimento. Deixou a

cabeça por último. Segurou minha cabeça numa mão, ergueu-a sobre a cabeça e falou, em alto

e bom tom, a célebre frase de Hamlet: “Ser ou não ser, eis a questão!”. E atirou minha cabeça

pra dentro da fornalha, como uma bola de boliche. Antes de terminar de ser consumido pelo

fogo, ainda pude ouvir um grito dele, algo como “strike”. Meu irmão adorava boliche...