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Visita o site: www.ulyssesmoore.it FICHA TÉCNICA Título original: Viaggio nei Porti Oscuri Uma história de Pierdomenico Baccalario Ilustrações e projeto gráfico: Iacopo Bruno Copyright © 2014 Atlantyca Dreamfarm s.r.l., Itália Projeto editorial de Atlantyca Dreamfarm s.r.l., Itália Edição original publicada por Edizioni Piemme S.p.A. International Rights © Atlantyca S.p.A., Via Leopardi, 8, 20123 Milão, Itália [email protected] — www.atlantyca.com Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Filipe Guerra Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, julho, 2015 Depósito legal n.º 395 003/15 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt Copyright e licença exclusiva da marca Ulysses Moore são propriedade da Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados. Direito moral do autor certi- ficado. Todos os nomes, personagens e símbolos constantes deste livro, bem como copyright da Atlantyca Dreamfarm s.r.l., são licenças exclusivas da Atlantyca S.p.A. na sua versão original. Traduções e/ou adaptações são proprie- dade da Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados.

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Visita o site:www.ulyssesmoore.it

FICHA TÉCNICA

Título original: Viaggio nei Porti OscuriUma história de Pierdomenico BaccalarioIlustrações e projeto gráfico: Iacopo BrunoCopyright © 2014 Atlantyca Dreamfarm s.r.l., ItáliaProjeto editorial de Atlantyca Dreamfarm s.r.l., ItáliaEdição original publicada por Edizioni Piemme S.p.A.International Rights © Atlantyca S.p.A., Via Leopardi, 8, 20123 Milão, Itália — [email protected] — www.atlantyca.comTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015Tradução: Filipe GuerraComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, julho, 2015Depósito legal n.º 395 003/15

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 [email protected]

Copyright e licença exclusiva da marca Ulysses Moore são propriedade da Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados. Direito moral do autor certi-ficado. Todos os nomes, personagens e símbolos constantes deste livro, bem como copyright da Atlantyca Dreamfarm s.r.l., são licenças exclusivas da Atlantyca S.p.A. na sua versão original. Traduções e/ou adaptações são proprie-dade da Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados.

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Estimada redação,são negros estes dias em que vos estou a escrever. A Ingla­

terra está a ser flagelada pela tempestade mais terrível da sua história. Rajadas de vento que ultrapassam os cento e oitenta quilómetros por hora levantam os telhados das casas. Regiões inteiras, como esta donde envio este e-mail, estão submersas pelas cheias dos rios. Enormes buracos nas estradas, com­boios descarrilados e aldeias sem eletricidade. A Cornualha, onde se situam a aldeia de Kilmore Cove e a casa de Ulysses Moore, é a zona mais fustigada: as suas costas são varridas por ondas de dez metros de altura, como nunca se viu desde que há memória.

São dias escuros, como escura é a parte da história que acabei de traduzir e que agora vos envio, desajeitada­mente introduzida onde achei conveniente. Avanço len­tamente pelas páginas deste manuscrito, porque cada uma das suas frases remete para os outros diários de Ulysses Moore e para uma série de leituras que tentei localizar. O misterioso autor que ma fez chegar às mãos está, uma vez mais, a divertir­se comigo e com os seus leitores.

Olhando para o céu ameaçador da janela de minha casa, estou preocupado por Kilmore Cove e receio também que esta tempestade esteja, de algum modo, relacionada com a história que estou para vos expedir.

Deixámos Murray, Mina, Connor e Shane de volta à vida quotidiana, depois de terem conseguido reparar o Metis, o lendário barco de Ulysses Moore, e terem regres­sado a Kilmore Cove. Contrariamente, o professor Galippi,

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o genial e carrancudo especialista em línguas clássicas que os ajudou nesta empresa, decidiu permanecer na Vivenda Argo e não voltou ao seu apartamento da cidade, destinado à demolição.

Foi uma aventura sem precedentes, a destes jovens: desde o momento em que recuperaram o décimo terceiro livro de Ulysses Moore do barco encalhado num pântano e que des­cobriram a existência de Kilmore Cove, quiseram vê­la com os seus próprios olhos, fascinados pela ideia de encontrarem as Portas do Tempo: portas antiquíssimas, capazes de ligar entre elas lugares imaginários, de outro modo inacessíveis.

A viagem dos quatro amigos foi incrível: cavalgaram as ondas na companhia de baleias, atravessaram uma ilha de escombros flutuantes, ultrapassaram uma área de nevoeiro sussurrante... E, por fim, lá chegaram. Mas descobriram que Kilmore Cove era, agora, uma aldeia abandonada, um esconderijo de alguns rebeldes ocupados numa guerra desespe­rada contra uma misteriosa e impiedosa frota: a Companhia das Índias Imaginárias, que pretendia assumir o controlo de todas as Rotas da Imaginação. E que o comandante daquela frota se chamava Larry Huxley.

São tempos negros para Kilmore Cove e para os Viajan­tes Imaginários. Mas o único modo para sair da escuridão é afrontá­la, mesmo que isto signifique descer ainda mais fundo.

Boa leitura,Pierdomenico Baccalario

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No Castelo de Areia já não se conseguia respirar. O calor era sufocante. E as moscas eram um tormento.

Larry Huxley decidiu despir a camisa. Fê-la deslizar pelos cotovelos e deitou-a ao chão. Mas, mesmo em tronco nu, o calor do deserto era asfixiante.

Era muito magro, com as costelas salientes e os coto-velos pareciam dois nós de corda. Podiam-se-lhe contar as vértebras da coluna.

Os seus olhos, contudo, eram imperscrutáveis.Da grande janela do seu quarto, olhava fixamente

para fora, seguindo com muita atenção o trabalho de centenas de legionários que se deslocavam entre as dunas como insetos: enganchavam as estruturas de ferro que emergiam da areia a uma série de correntes que pendiam do céu, suspensas de uma frota de dirigíveis.

— O que é que achas, Whiskers*? — perguntou o ra-pa zinho ao coelho de pano caído aos seus pés. — Fun-cionará?

O coelho, naturalmente, não lhe respondeu.As dunas cintilavam ao sol, vorazes e insidiosas.Os legionários, homens silenciosos de tez cinzenta,

caminhavam, cambaleando, em filas ordenadas. Alguns caíam, estafados, e rebolavam na areia. Contudo, os ou-tros não se detinham para os ajudar.

* Whiskers é o nome de um coelhinho malvado nos contos da senhora Beatrix Potter. (NT )

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O quarto do vento

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— Está mesmo muito calor, Whiskers, tens razão. Mesmo muito calor...

O superintendente da Companhia das Índias Imagi-nárias encharcou de suor as costas da mão ao passá-las pela testa. Não gostava de suar. Detestava aquele clima asfixiante.

Mas queria assistir ao momento em que os seus homens, dirigidos pelos seus oficiais e arquitetos, fariam emergir das entranhas das dunas a lendária cidade de Zerzura.

Zerzura coberta pela areia. Uma cidade conhecida por mais de mil outros nomes: a Cidade Branca. O mis-terioso oásis dos pássaros. A cidade secreta de Dioniso. Um lugar lendário, sobre cuja existência os caravaneiros falavam em murmúrio e sobre cujos tesouros se delirava havia séculos.

Foram muitos os que a procuraram. Mas nenhum deles, antes de Larry, tinha desejado verdadeiramente encontrá-la.

E ali estava ela, prestes a emergir finalmente de baixo da manta dourada que a cobria.

— O grande defeito dos exploradores de lugares lendários, Whiskers, o grande defeito… — continuou a matutar Larry Huxley, observando as correntes que se estendiam entre o céu e a terra — é que nunca os pro-curam segundo as regras das lendas, não achas?

Whiskers manteve o seu recatado silêncio. O dono voltou a cruzar os braços sobre o peito nu, seguindo

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com o olhar a marcha das suas legiões. Depois, quando se aborreceu, saiu do quarto, atravessou o pequeno corredor e desceu as escadas que conduziam às salas mais frescas do Castelo de Areia. Andava à procura de água gelada.

— Senhor Huxley? — importunou-o uma voz atrás da colunata. Larry Huxley parou. O chão de maió-lica era fresco sob os seus pés. Num canto, uma fonte jorrava.

— O que é? — perguntou.Era Bellingham. Edward Bellingham, o seu oficial

encarregado dos Assuntos Africanos, que saiu da som-bra, arrastando os pés, com qualquer coisa de odioso na expressão, uma expressão que lembrava a de um réptil. Tinha os olhos esbugalhados, um rosto flácido e pálido e os seus modos eram fingidamente gentis*.

Pelo modo como o oficial caminhava, Larry Huxley percebeu logo que trazia más notícias.

— Algum problema, Bellingham? É outra... como é que lhe chamaste… «tempestade de areia imprevisível e repentina»?

— Não, não. Não me parece, senhor, não acho que seja… isso — apressou-se a responder o oficial. — Se bem que os indígenas...

— Os indígenas... o quê?

* Descrição quase idêntica de um personagem semelhante do conto «A Múmia», de Sir Arthur Conan Doyle. (NT )

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O quarto do vento

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Um criado aproximou-se de Larry e estendeu-lhe uma bandeja de prata com uma jarra de água fresca e um pequeno copo de chá de menta com açúcar.

— Os indígenas estão agitados, senhor. E os feiticei-ros deles...

— Os feiticeiros deles! — interrompeu-o Larry, antes de beber a água de um só trago e pegar na tacinha de chá. Voltou-se para o oficial com desdém. — Diz lá então, diz-me… o que pensam os feiticeiros?

— Pensam que estamos a atrair uma maldição ao querer desenterrar a Cidade Branca... — murmurou Bellingham. — Os dirigíveis, as correntes e todos aque-les legionários que temos... que... trouxe... uns homens que parecem não dormir nem comer... e que, agora, vêm aí os djinn.

— Os djinn?Larry Huxley bebericava o chá.— É o nome que dão aos espíritos do diabo... —

explicou Bellingham. Se bem que... naturalmente... os indígenas não usem esta palavra.

— Então qual usam? Moloch? Shayt.ān? E quem é esse tal diabo? Vós, se calhar? A Companhia? Ou... sou eu?

— Isso não posso dizer... — admitiu o oficial Edward Bellingham, com a garganta seca. — Mas… achei que era importante avisá-lo.

Larry devolveu o copo vazio ao criado, que virou costas e desapareceu nas salas do castelo.

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— Deixemos os feiticeiros falar. E que os indígenas digam e pensem o que quiserem dos meus legionários. Diz-me antes: já limparam a areia dos motores?

— Quase tudo, senhor.— E os dirigíveis?— Estão a voar de novo, senhor. Faltam-nos ainda

al guns ganchos, um último controlo dos gráficos de resistência, mas depois...

— Excelente.O oficial, contudo, hesitava. E Larry apercebeu-se.— Que mais aconteceu?— Quanto a essa tempestade do outro dia, senhor...

os feiticeiros deram-lhe um nome estranho.— E que nome é esse?— Chamaram-lhe Vento de Murray — sussurrou o

oficial, baixando os olhos para as pontas dos pés.Larry sentiu repentinamente uma dor no peito, pro-

vavelmente tinha bebido a água gelada e o chá quente demasiado depressa. Levou uma mão ao peito e sibilou: — Percebeste mal, Bellingham. Deviam querer dizer «vento de mar». Foi isso que disseram, vento de mar.

— É como diz, eles queriam dizer isso mesmo, senhor — replicou o oficial dos Assuntos Africanos. — Deve ter sido isso, senhor.

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—Mas tu, a esta hora, não devias estar na es-cola? — perguntou o polícia, apoiando--se à vedação do armazém de veículos

rebocados.— Acaba à uma — replicou Murray, em pé à frente

dele, do outro lado da rede.— E, se calhar, o teu amigo deu-te uma boleia até

aqui... — acrescentou o polícia, apontando com o queixo para a bicicleta de Shane.

— Foi mesmo assim.O polícia tirou as chaves do bolso e entreabriu o

portão, o suficiente para que o rapaz conseguisse passar.— Vieste por causa da tua bicicleta, não é verdade?Murray anuiu e entregou-lhe o recibo da multa.— É curioso, não é? — comentou o polícia, arras-

tando os pés no cascalho. O armazém propriamente dito era um barracão de chapa com o teto baixo que se encontrava poucos metros à frente deles.

Murray não disse nada. Shane seguia-os levando a bicicleta pela mão. CLA­CLANG! A porta do armazém das bicicletas rebocadas abriu-se fazendo um clique. Dentro, havia uma única bicicleta.

— Dizia eu: é curioso, não achas? — continuou o polícia. — Ainda há poucos dias, aqui dentro, estavam mais de cem bicicletas. E agora... só está uma. E por acaso é a tua.

— Que fizeram das outras? — perguntou-lhe Murray com ar inocente.

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A máquina a pedais

O polícia sorriu mordazmente, abriu o cadeado da corrente que prendia a bicicleta e entregou-lha. — Por-que tu e o teu amigo, naturalmente, não sabem de nada.

— Não, senhor, não sabemos absolutamente nada...Murray ajoelhou-se em frente da bicicleta e exami-

nou-a com atenção, acariciando o quadro com a palma da mão.

— Nós vimos tudo através das câmaras de segu-rança... — continuou o polícia.

— Não há nenhuma câmara de segurança — respon-deu Shane.

— E como é que sabes, hem? — replicou o polícia.Shane baixou os olhos para o guiador. «Estúpido»,

disse para si mesmo.— E quanto a ti, rapaz, salta para a tua bicicleta e

vai-te embora. E não tentes aldrabar-me outra vez, per-cebeste?

— Muito obrigado, senhor.— Ouviste o que te disse?Murray assentiu com a cabeça em silêncio.— Olha que sabemos quem é o teu pai — sussurrou-

-lhe o polícia enquanto o acompanhava ao portão.— Eu também, senhor — respondeu Murray, mor-

dendo os lábios para manter a calma. — E muito me-lhor que o senhor.

Mal saíram, os dois amigos puseram-se a pedalar a toda a velocidade ao longo da estrada que levava ao mar.

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— Uau!— Mas que polícia mais paspalhãããão!Riram-se e pedalaram ainda com mais força.Só pararam quando chegaram ao banco preferido de-

les, o que se debruçava sobre o porto. À sombra dos ramos de uma ameixoeira, apreciaram a chegada de um enorme cargueiro porta-contentores e o vaivém dos empilhadores e das gruas dos estivadores que descar regavam os porões.

Não demoraram muito. Tinham acabado de resgatar a bicicleta de Murray e deviam recuperar o atraso refor-çando as pedaladas.

— Para onde vamos? — perguntou Shane, quando viu a impaciência do amigo.

— Deixa-me pensar...Era Murray quem decidia onde ir. Shane limitava-se

a tomar conta dele e a fazer-lhe frente.O rapazinho de olhos azuis passou a mão pelos cabe-

los e reviu mentalmente os seus lugares preferidos: os que estavam assinalados por eles com um invisível botão de ouro no mapa imaginário do mundo.

— Vamos ao edifício? — propôs.Shane olhou para ele. — Tão longe?Murray anuiu. — Significa atravessar a cidade de

uma ponta à outra.— Mas nada de mercado.— Sim, nada de mercado.Shane concordou, acenando lentamente com a ca-

beça. — Sim, pode ser. Vamos.

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A máquina a pedais

Montaram nas bicicletas.Atravessaram a cidade de ponta a ponta, deixando

bem depressa o mar atrás de si. Seguiram por uma das duas estradas que conduziam ao interior e, passado um pouco, os passeios aos lados da estrada acabaram.

Pedalaram um atrás do outro enquanto grandes automóveis os ultrapassavam na estrada. Prosseguiram ao longo de subidas tão difíceis como não se recorda-vam de ter feito antes e, por fim, alcançaram a periferia. Era uma zona de casas degradadas com as fachadas cobertas de murais que incitavam à guerra e de terrenos selvagens delimitados por cercas em ruínas.

Quando viram algumas escavadoras de demolição, estacionadas no pátio de um grande edifício de cimento, pararam.

Tinham chegado.

— Não perderam tempo, hem? — observou Murray, apontando para as enormes viaturas.

Todo o perímetro do edifício fora vedado. Filas de cordões brancos e vermelhos e cartazes com a inscrição «Proibida a Entrada» tremulavam ao vento do princípio da tarde.

— Que estranho, não vejo ninguém a trabalhar — observou Shane.

— E quem te disse que não estão?Murray ignorou os cartazes e os obstáculos que rodea-

vam o velho edifício e introduziu-se na área de construção.

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— Murray?— Damos só uma vista de olhos.O edifício padecia de um mal incurável: tinha os

ossos velhos e os fundamentos frágeis e, por esse mo-tivo, fora considerado perigoso. O cimento dos pilares de suporte estava carcomido pela água infiltrada e, aqui e além, podiam ver-se as estruturas de ferro que os suportavam. Eram avisos evidentes do declínio ine-xaurível do prédio, ao qual se opusera somente o pro-fessor Galippi, recusando-se a abandoná-lo até que pôde.

Nas mãos do professor, aquele anónimo edifício em perigo transformara-se num laboratório de invenções que não consumiam energia nem poluíam o mundo. No teto ainda se podiam ver a estufa para a horta, os painéis solares construídos com garrafas de plástico e a tubagem disposta em forma de L, na vertical, que geravam a corrente elétrica. Agora, que tinham conse-guido mandar embora o professor, todas estas invenções estavam para ser destruídas.

— Na tua opinião, o que é que vão fazer? — pergun-tou Murray a Shane, que o seguia, titubeante, na área das obras de demolição.

— Não faço ideia. Um hotel?Murray fez uma careta.— Um campo de golfe? Um aeroporto?Era mais provável que abrissem um hipermercado

ligado diretamente à autoestrada mais próxima.

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A máquina a pedais

Entretanto, o velho edifício abandonado tinha um ar melancólico e as andorinhas esvoaçavam por entre as janelas partidas dos andares mais altos.

A porta de entrada tinha sido murada. Havia pe - gadas de botas na terra e três sinais negros no muro desenhados com spray. Seguiam-se outros sinais ao longo de toda a fachada que se intersetavam, for- mando setas, círculos e quadrados cheios de nú- meros.

— Olha, fizeram os trabalhos de casa… — comentou Shane, tentando seguir aquela linha de setas negras que trepavam ao longo da fachada.

— Sabe-se lá o que fizeram da pista... — murmurou, então, Murray.

Shane olhou para ele. — Qual pista?— Tens absolutamente de a ver, se ainda cá está —

decidiu Murray, dando a volta ao edifício.— Se calhar, é melhor não...— Parvoíces. Vem!

Por trás do edifício encontraram uma garagem em ruínas e enfiaram-se por debaixo da persiana dobrada. Murray tirou da mochila o seu inseparável canivete e uma lanterna elétrica que trazia quase sempre consigo. Acendeu a luz. No fundo encontrava-se uma porta en-treaberta que conduzia a uma escada estreita. Ajudou Shane a passar por baixo da persiana e depois subiram até ao rés do chão.

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— Deve ser por aqui... — murmurou Murray, mo-vendo a luz pelos muros. Os passos deles ressoavam de modo ameaçador.

— E se ainda lá estiver, que fazemos, Clarke? — per-guntou-lhe Shane, usando, na brincadeira, o apelido do amigo. — Jogamos com ela? Ou trazemo-la cá para fora?

— Talvez — sorriu Murray.— Se calhar devíamos ter chamado também o Con-

nor, como fizemos para as bicicletas...— Não tenhas medo, Shane. Já estamos quase

a chegar.— Eu não tenho medo — precisou o rapagão, sem

grande convicção. Não lhe agradava nada ter de cami-nhar por aquele enorme edifício murado, onde os canos ribombavam e se ouviam estranhos rangidos e gemi-dos suspeitos. Mas conhecia demasiado bem o amigo e sabia que não conseguiria demovê-lo das suas ideias.

Saltaram por cima de um feixe de fios negros que atravessava o corredor de ponta a ponta e, por fim, che-garam à entrada do prédio. Depararam com outras setas e linhas negras que se estendiam ao longo das paredes.

— Eh, Murray... — resmungou Shane, dando uma pequena corrida para alcançar o amigo.

— Olha só para isto — disse Murray. Fez dançar à sua frente o círculo mágico da lanterna.

Perante Shane surgiu a maior pista de carrinhos que jamais imaginara pudesse existir. Estava coberta por uma lona de plástico e deteriorada pelo gesso caído.

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Mesmo assim, podiam-se ver ainda as magníficas retas e as curvas parabólicas que se cruzavam umas com as outras e que desapareciam em verdadeiros túneis esca-vados nos muros.

— Mas por que diabo não a levámos antes? — pra-guejou Shane de boca aberta.

Deram alguns passos por entre os escombros.— Porque estávamos a consertar a quilha do Metis,

por exemplo... e a construir as velas... — Murray enco-lheu os ombros. — Se calhar, foi simplesmente porque o professor não nos disse nada e nós nos esquecemos...

Continuava a mover de um lado para o outro o círculo luminoso da lanterna de modo a focar aquela maravilha.

— Sim, mas... não podemos deixá-la aqui.Não havia dúvidas de que deviam desmontá-la peça

a peça e salvá-la da demolição.— E aquilo o que é? — perguntou então Murray,

levantando bruscamente a luz da lanterna.Depois baixou-a. Por detrás de um pilar da entrada

brilhava uma luzinha intermitente.— Será um alarme? — sugeriu Shane.— Se fosse um alarme, já teria tocado.Aproximaram-se. Murray ergueu a lanterna e enqua-

drou uma caixa castanha com riscas amarelas, mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos, que relampejava.

— Oh, oh — disseram em uníssono.

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Já tinham visto dezenas de caixas idênticas nos vi-deojogos. E, nos videojogos, estas normalmente explo-diam.

— Murray...?— Shane...?— Estás a pensar o mesmo que eu?— Não tenho a certeza. — A luz da lanterna moveu-

-se velozmente à volta da caixa, detendo-se alterna-damente num dos fios pretos que saíam de um lado, depois nas setas e nas inscrições feitas a spray e, por fim, numa antena que surgia por trás. — Tu também estás a pensar que pode ser comandada via rádio?

Shane engoliu em seco, sentindo-se estranhamente calmo. Imaginou que cada um dos cabos negros, por cima dos quais tinham saltado no corredor, estivesse ligado a uma caixa igual àquela e que as setas e os sinais a preto nas paredes fossem as indicações do sítio onde deveriam ser colocadas as cargas de explo-sivos.

Para fazer explodir o prédio.— Uma vez vi na televisão como se faz... — mur-

murou.Tratava-se de um documentário único sobre uma

equipa de sapadores capazes de demolir um arranha--céus de trinta andares sem fazer cair uma única pedra no pátio dos vizinhos.

Fosse como fosse, o problema era que se encontra-vam dentro do arranha-céus de trinta andares.

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A máquina a pedais

Durante o tempo que Shane levou a imaginar este cenário (dois, se calhar três segundos), Murray chegara à mesma conclusão.

— EMBORAAA DAQUI! — gritaram os dois e fugi-ram o mais velozmente que lhes foi possível.

Arremessaram-se para fora do compartimento, esquecendo-se da maior pista de carrinhos do mundo, desceram a correr pelas escadas, passaram pela garagem e finalmente...

Fora.Murray rebolou contra as botifarras de um homem

gigantesco que vestia um casaco cor de laranja, umas jardineiras e com um capacete onde se podia ler:

EMPRESA DE DEMOLIÇÕESCYCLOPS & CO.

O homem agarrou-o pela cintura e levantou-o como se fosse uma pena.

— Olha, olha, o que pescámos aqui!? — rugiu.

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