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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO - PPGE MESTRADO EM EDUCAÇÃO MARIA DE LOURDES SOUZA FARIAS VIOLETA PARRA: IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA MODERNA CRICIÚMA, SETEMBRO DE 2007

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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO − PPGE

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

MARIA DE LOURDES SOUZA FARIAS

VIOLETA PARRA: IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA

MODERNA

CRICIÚMA, SETEMBRO DE 2007

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MARIA DE LOURDES SOUZA FARIAS

VIOLETA PARRA: IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA

MODERNA

Dissertação apresentada à Diretoria de Pós-graduação da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação sob a orientação do Prof. Dr. Gladir da Silva Cabral.

CRICIÚMA, SETEMBRO DE 2007

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Dedico este trabalho aos meus filhos, Vanessa e Ramon, meus melhores amigos, a minha mãe Anna Budny de Souza que, apesar do pouco acesso à formação acadêmica, incentivou-me incessantemente, pois, sempre compreendeu e priorizou a importância da formação superior e contínua.

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Agradecimentos

Agradeço muitíssimo ao meu orientador, professor Dr. Gladir da Silva Cabral, pelo

interesse, dedicação e paciência que lhe foram exigidos em meio aos caminhos da

pesquisa.

A todos os professores do PPGE, pelo comprometimento com nossa formação.

Ao secretário do PPGE, Walter Corrêa de Fáveri, pela prestatividade permanente.

A todos os colegas do Mestrado em Educação nesta Universidade – “primeira turma”:

Amalhene Baesso Reddig, Ana Lúcia Ioppi Zugno, Andréia Martins de Freitas, Ângela

Maria Zandonadi, Ariete Inês Minetto Fagundes, Aurélia Regina de Souza Honorato,

Aurélia Lopes Gomes Goulart, Cássio Pereira de Souza, Claudete Bonfante Vieira,

Daniel Skrsypesak, Eloir Fátima Mondardo Cardoso, Evelyn Cristina Mergener de

Arruda Calixtro, Isabel Conti Shilling, Isabel Scarabelot Medeiros, Luiz Donato Casteler,

Mágada Tessmann Schwalm, Maria Cristina Keller Frutuoso, Marlene Pires Amorim,

Nádia Regina Almeida Couto, Paula Rosane Vieira Guimarães, Paulo Sérgio Osório,

Vanilda Maria Antunes Bert e Viviane Raupp Nunes de Araújo, pela afetividade,

conselhos, sugestões, alegrias, ansiedades, leituras e textos compartilhados.

Especial agradecimento pelos momentos agradáveis de “intercâmbio de conhecimento”

à Nádia Regina Almeida Couto, Amalhene Baesso Reddig e Isabel Conti Shilling, por

dividirem comigo as angústias inerentes ao processo.

Aos meus muito amados filhos, Vanessa e Ramon, pelo permanente apoio e

entendimento de que às vezes necessitamos de momentos de refúgio, de recolhimento,

para poder expandir nossos projetos, nossos objetivos. Obrigada por compartilharem

de minha ansiedade durante todo o percurso, no labor das leituras e escrituras desta

dissertação.

Aos meus amados pais Pedro (in memorian), e Anna, pelo permanente carinho, afeto e

incentivo.

Aos meus queridos irmãos: Tereza, Sérgio, Sônia, Lourival, Iolanda, Ivan, Edson, Hélio,

José Paulo e Suzana, pela afetividade, interesse e torcida nesta minha caminhada.

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À professora Antônia Javiera Cabrera, pela importante e agradável companhia em

nossa viagem de pesquisa ao Chile, terra de Violeta e Nicanor Parra, nossos objetos de

estudos. Muita coisa ultrapassou nossas expectativas na ocasião.

Às Diretoras e amigas Maria Gricelda Guglielmi Coelho e Cleide Arent Warmling, da

Escola de Educação Básica Ignácio Stakowski, pelo interesse e compreensão nos

momentos mais árduos desta minha maratona, o meu Muito Obrigada.

“Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos. É porque não

ousamos que as coisas se tornam difíceis”.

Sêneca

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RESUMO:

O objetivo desta pesquisa é investigar e entender como se constrói a identidade. Procuro compreender o processo dessa construção na era moderna. Nesta pesquisa, explicito os cinco importantes movimentos universais que descentraram o pensamento humano e provocaram a fragmentação das identidades na modernidade. Também é objetivo deste estudo retratar a poeta e musicista Violeta Parra como sujeito representante da cultura latino-americana, seu percurso histórico, biográfico e artístico no Chile, na América Latina e na Europa, e – dada sua importância cultural –, inseri-la, por meio de sua obra musical no campo da Educação. Analiso várias de suas importantes composições, apontando nelas o caráter educacional enquanto críticas à sociedade moderna, que retratam a preocupação da autora em preservar o que é tradicional, para garantir um comportamento mais ético e saudável às gerações futuras. A fundamentação teórica abrange as questões que permeiam os Estudos Culturais, especialmente no território que trata da construção da identidade na modernidade, tendo como base a interlocução entre Nestor García Canclini, Stuart Hall, Anthony Giddens, Peter McLaren e Tomaz Tadeu da Silva. Textos de Katheryn Woodward, Mariza Vorraber Costa e Maria José R. F. Coracini foram a base para o presente estudo com referência à educação. Trazendo a obra de Violeta Parra para este campo, faço sua interlocução com alguns teóricos educacionais como Paulo Freire, Peter Mclaren e Tomaz Tadeu da Silva. Este estudo é embasado em pesquisa bibliográfica e documental. É uma reflexão a respeito da construção identitária nos atuais tempos modernos.

Palavras-chave: Cultura. Identidade. Educação. Modernidade.

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RESUMEN

El objetivo de esta pesquisa es investigar y entender como se construye la identidad. Busco comprender el proceso de esa construcción en la era moderna. En ella explicito los cinco importantes movimientos universales que descentraron el pensamiento humano, provocando la fragmentación de las identidades en la modernidad. También es objetivo de este estudio, poner a la poeta y musicista Violeta Parra como sujeto representante de esta cultura, su percurso histórico, biográfico y artístico en Chile, en América Latina y en Europa, y – por su importancia cultural –, inserirla, por medio de su obra musical, en el campo de la educación. Analizo varias de sus importantes composiciones, mostrando en ellas el carácter educacional de sus críticas a las sociedades modernas, donde retratan la preocupación de la autora con la preservación de lo tradicional, para garantizar un comportamiento más ético y saludable a las futuras generaciones. La fundamentación teórica abarca las cuestiones que hacen parte de los estudios culturales, especialmente en el territorio que trata de la construcción de la identidad en la modernidad, teniendo por base la interlocución entre Néstor García Canclini, Stuart Hall, Anthony Giddens, Peter McLaren e Tomaz Tadeu da Silva. Textos de Katheryn Woodward, Mariza Vorraber Costa y Maria José R. F. Coracini fueron el suporte para el presente estudio, en lo que se refiere a la educación. Trayendo la obra musical de Violeta Parra para este campo, hago su interlocución con algunos teóricos como Paulo Freire, Peter Mclaren y Tamaz Tadeu da Silva. Este estudio está embasado en pesquisa bibliográfica y documental. Es una reflexión respeto de la construcción de la identidad cultural en los actuales tiempos modernos.

Palabras-clave: Cultura. Identidad. Educación. Modernidad.

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SUMÁRIO

1 Introdução........................................................................................................... 2 Violeta Parra: trajetória biográfica, cultural e artística...................................2.1 A infância de Violeta Parra........................…………………...........……............. 2.2 O casamento com Luis Cereceda e a trajetória artística................................... 2.3 Violeta Parra como pesquisadora e divulgadora do folclore chileno..................2.4 Viagens ao exterior e viagens pelo interior do país........................................... 2.5 Uma artista multifacetada.................................................................................. 2.6 Dramas sociais, alegrias e dilemas pessoais.................................................... 2.7 Repercussões de sua obra e influência sobre as novas gerações.................... 3 Identidade: formação e transformação…….....................................................3.1 Cultura: berço da construção identitária.............................................................3.2 Identidade e identidade cultural: a complexidade dos conceitos……................3.3 Movimentos descentralizadores do sujeito……................................................. 3.4 A Identidade cultural latino-americana na modernidade....................................3.5 O discurso como instrumento que identifica...................................................... 3.6 O lugar da linguagem na identidade do sujeito.................................................. 3.7 Multiculturalismo e globalização.........................................................................3.8 Cultura popular e identidade.............................................................................. 3.9 Cultura, identidade e educação......................................................................... 3.10 A arte poética e musical de Violeta Parra como um projeto pedagógico......... 4 Violeta Parra e a música chilena no cenário da modernidade:

“El cantar la diferencia”.....................................................................................4.1 Pesquisa e divulgação do folclore chileno......................................................... 4.2 A identidade cultural presente nas canções.......................................................4.3 O caráter educacional da obra de Violeta Parra................................................ 4.4 Canções de celebração da vida e do amor........................................................4.5 Criticidade, denúncia: educação para a resistência cultural.............................. 4.6 A identidade pessoal e cultural nas Décimas de Violeta Parra.......................... 5 Considerações finais ........................................................................................ 6 Referências bibliográficas................................................................................. 7 Anexos.................................................................................................................

10 15 16 23 25 28 31 33 37 43 44 48 52 56 61 65 67 68 70 71 75 75 80 95 106 109 120 128 132 135

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1 Introdução

O território da pesquisa, da investigação – especialmente a região onde se

situam o sujeito, seu contexto e sua obra – sempre foi o “alvo” de minhas curiosidades,

de minhas “vontades de saber”, de conhecer, território onde me vejo começando a

caminhar agora, com esta Dissertação de Mestrado em Educação, da Universidade do

Extremo Sul Catarinense – UNESC.

Introduzo-me e começo a mover-me nele sem esquecer que tudo isso teve uma

pré-estréia quando fui aluna, também de pós-graduação em nível de Especialização em

Língua e Literatura Espanhola e Hispano-americana, na Universidade Federal de Santa

Catarina – UFSC. Na verdade, nessa época, em 2000, apenas “pisei” neste território

que ora começo a caminhar, objetivando satisfazer minhas curiosidades e vontades de

saber para, então, compartilhar esse conhecimento com outros curiosos e desejosos de

conhecer a latinidade. Minha aspiração é ampliar e compartilhar saberes no terreno dos

Estudos Culturais, onde o sujeito, sua identidade e representação, seu contexto e

discurso têm prioridade. Há em mim um interesse permanente em conhecer obra,

contexto e vida de figuras femininas e suas relações com a Cultura, História e

Educação.

Segundo Anthony Giddens (1991, p. 44):

Nas culturas tradicionais, o passado é honrado e os símbolos valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um modo de integrar a monitoração da ação com a organização tempo-espacial da comunidade. Ela é uma maneira de lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer atividade ou experiência particular dentro da continuidade do passado, presente e futuro, sendo estes por sua vez estruturados por práticas sociais recorrentes. A tradição não é inteiramente estática, porque ela tem que ser reinventada a cada nova geração conforme esta assume sua herança cultural dos precedentes. A tradição não só resiste à mudança como pertence a um contexto no qual há, separados, poucos marcadores temporais e espaciais em cujos termos a mudança pode ter alguma forma significativa.

Essa argumentação de Giddens, principalmente quando diz que a tradição “tem

que ser reinventada a cada nova geração conforme esta assume sua herança cultural

dos precedentes”, aguça minha curiosidade e meu querer saber, ao mesmo tempo em

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que impulsiona e provoca o surgimento desta pesquisa, que dá a Violeta Parra o seu

lugar de destaque como sujeito representativo da identidade cultural latino-americana

da era moderna. Violeta Parra foi uma artista chilena multifacetada que, especialmente

na poesia e na música, “reinventou a tradição”, depois de ter buscado, pesquisado e

ouvido dos mais antigos camponeses, a voz dos seus “nossos” ancestrais. Esse

argumento de Giddens tem relação com o sujeito, o contexto e a obra da folclorista

Violeta Parra, que nesta pesquisa figura como objeto de estudo.

O presente trabalho objetivou, num âmbito geral, identificar de que maneira a

identidade se forma e se transforma, de que maneira ela é construída. Além disso, foi

também objetivo geral da pesquisa destacar, na América Latina, a figura de Violeta

Parra, poeta e musicista chilena no território da identidade cultural, situando-a no

campo da educação.

Este trabalho tenta fazer entender o processo de formação e transformação da

identidade, dando especial enfoque à identidade na modernidade; traz conceitos de

identidade e cultura formados em diferentes perspectivas e na visão de diferentes

pensadores e autores; dá uma panorâmica sobre os três tipos de indivíduo, quanto à

sua evolução no terreno das idéias, do pensamento da humanidade; explica cada um

dos cinco importantes fatores que contribuíram para o descentramento do pensamento

humano na era moderna, e que interferiram diretamente na transformação da sua

identidade; evidencia Violeta Parra como sujeito representativo da identidade cultural

na América Latina; analisa a obra musical da poeta chilena, enfatizando seu importante

papel educacional e conscientizador.

Numa visão que compreende a identidade como algo não estático, maleável e

em constante transformação, e tendo como objetivo geral entender esse seu

dinamismo e essa sua maleabilidade, a presente pesquisa contemplou uma abordagem

qualitativa, bibliográfica e documental.

Iniciou-se com uma revisão bibliográfica referente aos temas da cultura, da

identidade e da educação. Depois, foram analisadas as canções de Violeta Parra. Com

leituras e releituras da crítica e dos estudos culturais, foi-se construindo a base para o

aprofundamento necessário ao desenvolvimento das idéias e à escritura desta

dissertação.

Faz parte dos objetivos da pesquisa identificar e situar Violeta Parra como figura

representativa da identidade cultural latino-americana na modernidade, evidenciando o

aspecto educacional de seu trabalho de compilação e recriação do folclore chileno.

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Para tanto, procedeu-se a uma seleção de suas músicas, na qual foram escolhidas

treze delas. O critério de escolha das canções foi o seu caráter educacional, a sua

referência ao contexto cultural, político e social do país. Foram selecionadas as

seguintes canções: Casamiento de negros, Yo canto la diferencia, Santiago penando

estás, Maldigo del alto cielo, Arauco tiene una pena, Arriba quemando el sol, Según el

favor del viento, Gracias a la vida, Volver a los diecisiete, Al centro de la injusticia,

Ayúdame Valentina, Me gustan los estudiantes, Violeta ausente. Essas composições

aludem à história do Chile e do povo chileno, trazendo também aspectos sobre a

identidade do campesino, além de elementos que evidenciam o trabalho educacional

da poeta e musicista Violeta Parra.

Acrescentou-se a essa seleção importantes estrofes de suas Décimas

autobiográficas, que evidenciam elementos mostrando a sua identidade pessoal e

representando a identidade do povo chileno. Em função da pesquisa, fez-se, também,

uma viagem ao Chile, de dezembro de 2005 a janeiro de 2006, com o intuito de,

primeiramente, conhecer “in loco” o espaço e a cultura, berço dessa importante poeta e

musicista que viveu entre 1917 e 1967. Em segundo lugar, intentou-se com a viagem

conseguir materiais autênticos que enriquecessem este trabalho de pesquisa. Nessa

viagem visitaram-se importantes lugares da quinta e da sexta região – centro do país –,

além do famoso Cemitério Geral de Santiago, onde está sepultada Violeta, e as

famosas casas do poeta Pablo Neruda, hoje transformadas em pequenos e importantes

museus históricos. Conhecer e conversar com Nicanor Parra, importante escritor e

poeta, irmão de Violeta, foi um acontecimento dos mais importantes nessa viagem,

além da aquisição de importante bibliografia sobre Violeta Parra, que foram relevantes

para minha pesquisa.

A presente escritura contempla os temas da cultura, da identidade e da

educação e leva o título: Violeta Parra: identidade cultural latino-americana

moderna. O texto está dividido em quatro capítulos, além das considerações finais,

referências e anexos.

Depois do capítulo primeiro, que introduz este trabalho, o segundo – Violeta

Parra: uma trajetória biográfica, cultural e artística –, permite um trânsito pela sua

biografia, em contraposição com o contexto histórico, político e cultural em que ela

vivia. Destaca-se, neste capítulo, a trajetória da poeta ao descobrir e divulgar o folclore

do povo indígena chileno e toda a diversidade cultural que fazia parte do mundo rural,

em contraponto ao mundo urbano da capital, Santiago. Este capítulo traz, com base em

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dois grandes estudiosos da literatura e da cultura chilena, a saber, Leonidas Morales T.

e Fernando Sáez, bem como o livro de Isabel Parra, filha de Violeta, El libro mayor de

Violeta Parra e o livro Toda Violeta Parra, de Alfonso Alcalde, a trajetória biográfica,

cultural e artística de Violeta, seu nascimento e pobreza, sucessos e desventuras, sua

juventude, alegrias e desilusões.

No terceiro capítulo, Identidade: formação e transformação, tenta-se explicar,

a partir do trabalho de alguns estudiosos e pensadores modernos da identidade e dos

Estudos Culturais, não só o processo que forma e transforma a identidade do indivíduo,

do grupo e da sociedade, mas os elementos desse processo. Inicia-se com uma breve

panorâmica sobre o tema da cultura, onde se apresentam alguns conceitos sobre

cultura, elaborados através dos tempos, segundo diferentes correntes de pensamento.

Na perspectiva cultural, e seguindo o que se entende sobre identificação, busca-

se conceituar os termos identidade e identidade cultural com base, principalmente, em

Stuart Hall (2004; 2003), Tomaz Tadeu da Silva (2005) e Anthony Giddens (1991), que

comungam da idéia da complexidade da constituição da identidade, sua natureza

discursiva, totalmente imersa nas relações de poder e sujeita a constantes mudanças.

Este capítulo esboça, também, os movimentos descentralizadores do sujeito da era

moderna, no paradigma estruturalista, desde os estudos e pensamento marxista do

século XIX, seguido da descoberta do inconsciente por Freud – considerados grandes

iconoclastas da cultura –, passando pela lingüística moderna de Saussure e pela

filosofia histórica e educacional de Foucault, culminando com os novos movimentos

sociais – especialmente o feminismo –, que emergiram na década de 1960. Situa-se

então a figura de Violeta Parra no seu tempo e no seu espaço social e como objeto de

estudos nesta pesquisa.

O quarto capítulo, Violeta Parra e a música chilena no cenário da

modernidade: “El cantar La diferencia”, é dedicado à análise de sua obra musical.

Faz-se uma releitura de treze de suas principais composições, a partir do ângulo

educacional, mostrando seu trabalho de resgate e re-dimensão do folclore, no afã de

fazer preservar a raiz cultural do povo chileno, sua verdadeira identidade. Transporta-

se, quase ao final do capítulo, sua obra para o campo educacional, em: Violeta Parra e

sua obra no território da educação, onde apontam-se pontos em comum no trabalho de

Violeta e de Paulo Freire, sua filosofia educacional, ressaltando-se a preferência de

ambos em ajudar o povo oprimido. Ao final, analisam-se alguns fragmentos das

Décimas, autobiografía en verso, de Violeta Parra, que traz importantes estrofes nas

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quais a poeta e compositora mostra sua identidade campesina, suas lutas e sacrifícios

para sobreviver ao “ninguneo”. Sua identidade que é a identidade do seu povo, o povo

chileno. Em 472 estrofes com 10 versos e cada verso com oito sílabas poéticas, Violeta

mostra-se, retrata-se de forma rara, bela e inteligente, inclusive em pontos menos

relevantes em uma biografia.

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2 Violeta Parra: Trajetória biográfica, cultural e artística

“Toda mi vida fui muy sola, por eso me he metido en tanto camino. Muchas espinas. Muy

oscuro. Muy seco todo y muy salado”. (Violeta Parra)

“Yo creo que todo artista debe aspirar a tener como meta el fundir su trabajo en el contacto directo con el público. Estoy muy contenta de haber llegado a un punto de mi trabajo en que ya no quiero ni siquiera hacer tapicería ni pintura, ni poesía, así, suelta. Me conformo con mantener la carpa y trabajar esta vez con elementos vivos, con el público cerquita de mi, al cual yo puedo sentir, tocar, hablar e incorporar a mi alma” (Violeta Parra). “Lo que expresaba Violeta en el párrafo inicial era también la culminación de un largo, tenso y fecundo período de trabajo, durante el cual se produjo una fusión admirable y aleccionadora: la de la vida con la obra” (Isabel Parra, 1985, p. 9)

Violeta en L’Escale, boite del barrio latino de París, 1953. Fonte: PARRA, 2005.

Neste capítulo apresenta-se a trajetória da artista, agitadora cultural, pesquisadora

e divulgadora do folclore chileno, Violeta Parra. Dedica-se um capítulo inteiro aos

aspectos históricos da vida de Violeta tendo em vista a importância de seu trabalho

educacional, entendendo-se aqui educação em seu sentido mais amplo, abrangendo

espaços não necessariamente escolares ou acadêmicos.

O capítulo segue uma ordem cronológica, a partir da qual alguns destaques e

comentários serão feitos à medida que for necessário explorar e enfatizar algum

aspecto da obra de Violeta. Primeiramente, tratar-se-á da infância da poeta, suas

origens campesinas e humildes e seus primeiros passos no campo da criação

artística. Em seguida, comentaremos suas primeiras atividades e apresentações

musicais, seu casamento com Luis Cereceda e seu progressivo engajamento

político, que se refletirá em suas canções. Na seqüência, destacaremos seu trabalho

de descoberta e pesquisa do folclore chileno, suas viagens pelo interior do país.

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Depois, fala-se de sua crescente popularidade, das viagens ao exterior e finalmente

de sua influência na vida cultural chilena e latino-americana.

2.1 A infância de Violeta Parra Violeta Parra nasceu na província de Ñuble, na comuna de San Carlos, situada na

oitava região do Chile, região de Biobío – o país é dividido em 13 regiões e 51

províncias. A oitava região possui quatro províncias: Arauco (capital Lebu), Biobío

(capital Los Ángeles), Concepción (capital Concepción) e Ñuble (capital Chillán),

onde está situada a comuna de San Carlos, um lugar de muita pobreza, 90 anos

atrás. Nesse lugar, ao sul do Chile, nasceu Violeta Parra, que enfrentou grande

precariedade durante boa parte de sua trajetória de vida familiar, cultural e artística.

Esse fator, porém, ao provocar uma resposta, uma resistência, pode tê-la

impulsionado ao desenvolvimento e ao sucesso de sua vida artística, transformando-

a na figura representativa da identidade cultural latino-americana da era moderna,

uma figura que, conforme comenta Fernando Sáez,

Detrás de ella, una historia impresionante de inteligencia y fuerza, de sacrificio y voluntad, que comienza el día cinco de octubre de 1917, a las once de la noche, fecha y hora del nacimiento de Violeta Parra Sandoval. (SÁEZ, 1999, p. 18)

Filha de campesinos pobres, Violeta nasceu e cresceu numa modesta casa em

meio a oito irmãos. O pai, antes de ser professor primário e de música, trabalhava

esporadicamente como inspetor de estradas e vigilante de presídio, embora fosse

dedicado, sobretudo, à boemia. A mãe, dona de casa e costureira, também gostava

muito de tocar violão e de cantar acompanhada pelo marido, exímio tocador de

violino, harpa e piano (NAVARRETE, 2005). Assim, os dois conservavam a alegria

na família por meio do canto e da poesia, embora vivessem na miséria e em meio ao

desemprego freqüente, que os obrigava a mudar de um lugar a outro, às vezes

pedindo favores a parentes. Segundo Sáez,

La tierra que la vio nacer era un pueblo pequeño, rural, de unos ocho mil habitantes. La casa de la familia, en la calle El Roble, número 5, quedaba a pocas cuadras de la estación y del camino que llevaba a Chillán, en el extremo sur de San Carlos. Han pasado demasiadas décadas y los cambios profundos hacen difícil imaginar la precariedad del lugar. La pobreza y sensillez de la vida de campo no variaban demasiado en ese pueblo, cuya existencia se sostenía em el movimiento agrícola de los alrrededores. El caserío sólo era un

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pasillo entre el campo y las ciudades más importantes. Nada del desarrollo incipiente de comienzos de siglo alteraba su calma. (SÁEZ, 1999, p. 18-19)

Um de seus irmãos, Eduardo Parra, igualmente poeta e musicista, descreve em

Décimas, suas lembranças sobre o nascimento de Violeta:

En el año diecisiete vino al mundo la Violeta, sin quejidos ni receta, sólo tiene su chupete. La madre merece un siete por el gran alumbramiento, el padre brinda contento por esta niña morena... “¡Si parece una azucena!” él grita a lo’ cuatro viento’. […] Su padre, gran profesor; su mamita, campesina; trinaban las golondrina ‘la Violeta es un primor’. Le gorgorió el ruiseñor, el aire la bendecía, sonríen las tres Marías como flor de la mañana, repicaban las campanas, el mundo se estremecía. (SANDOVAL, 1998, p. 12, 18-20)

Violeta cresce em meio à pobreza, enfrentando ao mesmo tempo muitas

enfermidades, inclusive a varíola, que deixou marcas profundas por todo o seu corpo

e rosto. Ela era dona de uma capacidade poética muito fecunda e um admirável

senso de observação do cotidiano. A semeadura, a colheita, os moinhos, as

brincadeiras infantis, os parreirais, a religiosidade do povo, tudo é um mágico

estímulo no seu mundo e no daquela família singularmente unida pela música. E

Violeta, “la niña vivaz”, quando não estava doente, fazia peraltices com os irmãos

mais velhos ou estava sempre no meio dos pais, assimilando tudo e cantarolando

junto. Já se manifestavam seus prodígios, e era muito querida por todos da família.

Nessa época, Violeta crê ser feliz e celebra a felicidade, aproveitando as ingênuas

alegrias de viver, cantando. Isso ela mesma conta em Décimas, neste belíssimo

fragmento de sua auto-biografia:

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Con mi abundante inocencia, poquito a mi se me daba, mi paire me acariciaba con su estimable paciencia. Mi maire de mucha ciencia, gracias da a Dios por su niña cuando me pierdo en la viña armando mis jugarretas; yo soy la feliz Violeta, el viento me desaliña.1

Violeta desenvolve, durante a infância e até a adolescência, seu gosto estético, ao

mesmo tempo em que vai formando sua consciência ética e social, em um ambiente

familiar regional marcado fortemente pela presença da cultura tradicional chilena,

principalmente na arte do canto e da música, a pesar da pobreza. Em 1923 inicia

seus estudos na Escuela Normal de Santiago e começa desde cedo a estudar o

violão e o canto junto a seus irmãos Hilda, Eduardo e Roberto (NAVARRETE, 2005).

Eles mesmos dão o seguinte depoimento:

“Fue muy perra la infancia de nosotros, poca alegria, éramos muy pobres. Vendí diários, lustré, vendí piñones, la Violeta cantaba...”, recuerda Roberto Parra. “Vivíamos todos en una sola pieza. Mi niñez transcurrió a pie pelado, jugando con los niños de la población en los basurales y el barro. De ahí nace todo el dolor, toda la protesta de mi poesía”, testimonia Nicanor. Sólo la belleza de las Décimas autobiográficas de Violeta aliegran esas condiciones, sin omitirlas. (SÁEZ, 1999, p. 29)

E numa entrevista que seu irmão, o poeta Nicanor Parra, deu ao escritor e

professor Leonidas Morales em 2 de maio de 1990, ele faz uma rápida panorâmica

de como era o ambiente doméstico da família Parra nos anos da infância de Violeta:

N.P. Fíjate tu. Esos detalles los recuerdo yo, que tienen que ver con ella. Y por cierto que ella desde muy chica era un personaje que tenía que ver con el espetáculo, ¿ah? Porque siempre en la casa el papá como profesor primário, músico y medio poeta, era muy aficionado a armar pequeños actos literários, en la casa, con sus hijos. Y la Violeta que se lucía evidentemente. Ella sabía las canciones que se cantaban.

1 Fragmento extraído do livro Décimas: autobiografía en verso, de Violeta Parra, publicado pela Editorial Sudamericana de Santiago do Chile (1998, p. 48), com apresentações de Pablo Neruda, Nicanor Parra e Pablo de Rokha.

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L.M. Así es que en los actos organizados por el padre, la Violeta intervenía con numeritos musicales.

N.P. Y ya con guitarra, eso sí. No, no, no, ella desde chica con guitarra. Y ella reproducía entonces las canciones que salían de las victrolas. Pero también, y eso era lo importante, las canciones de las hermanas Aguilera, en el campo. Cantoras campesinas, cantoras de trillas, de faenas agrícolas. (MORALES, 2003, p. 71-72)

No entanto, aos poucos Violeta foi percebendo que a pobreza e a simplicidade da

vida no campo não mudavam nunca, nada evoluía. Notava que a mãe impunha

ordem e autoridade entre os filhos, dando-lhes sempre uma atividade, cuidando para

que estivessem sempre ocupados com trabalho e com estudos, enquanto ela se

envolvia com costuras e bordados, com os quais ajudava na manutenção da casa e

no sustento da família. Esse fato, Violeta relembra com saudade, e sobre ele

escreve. Nas estrofes das décimas auto-biográficas, a seguir, notam-se algumas das

qualidades de dona Clarisa Sandoval:

Por suerte, la inteligencia a mi mamá la acompaña, haciendo mil musarañas con la costura, su ciencia, son finas sus reverencias; si llega la Pascualita, recibe la costurita y luego, cuando la entrega, un matecito le ceba mientras guarde una varita. […] Y no era cosa tan fácil seguir con estos milagros. Pa’ proteger nueve cabros exige de ser muy ágil, velando hasta en lo más frágil. Mi mama, qué gran orgullo, si aprovechaba hast’ el yuyo con muy claro entendimiento, y en los actuales momentos sabroso hace el cochayuyo. (PARRA, 1998, p. 53-54)

A vida difícil de Violeta Parra, obrigou-a a trabalhar muito prematuramente. Se a

situação financeira nunca havia sido boa, com o pai ficando desempregado, os filhos

são obrigados a enfrentar as ruas, os circos, no início vendendo doces, engraxando

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sapatos – atividade exercida por pouco tempo, pois Violeta logo percebeu que aquilo não

lhes daria futuro algum –, mais tarde atuando no picadeiro. Assim nos conta seu irmão

Eduardo (1998, p. 44-46):

La Violeta se alegraba de que se lustre la gente Charlaba con los clientes y la plata ella guardaba. Algún dinero gastaba en rico pan amasa’o; yo mirando para un la’o después me tocaba a mi; tortilla con mucho ají ¡con un cuarto de arrolla’o! […] Varios meses estuvimos con la Violeta lustrando; la vida sigue pasando y con eso no vivimos. Parecemos unos mimos o momias de un gran museo, Nos chuparemos el de’o si seguimo’ en el lustrín: ¡iremos al volantín esos son nuestros deseo’! […] De payasos escurciamos, hicimos función de circo; de tony se puso Mirco, a todos entusiasmamos. Nicanor sería el amo o mejor era el galán, Roberto de sacristán, La Hilda hizo ‘e clonesa... ¡la mamá desde una mesa nos aplaudía a rabiar!

Na década de 1930, por iniciativa do poeta Nicanor, seu irmão mais velho,

muda-se para Santiago, onde continua seus estudos com bastante dificuldades

financeiras, vivendo de favores em casa de parentes – conforme palavras de seu

irmão Eduardo –, e, sem parar de compor, se forma professora pela Escola Normal

de Santiago. Ser professora era uma das vocações que desde cedo se manifestava

em Violeta:

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La Violeta estudiaba en la calle Matucana; con las notas de la diana a las seis se levantaba. A su maestra adoraba esta niña prodigiosa; con alas de mariposa todo el mundo puede ver: ¡será famosa mujer entremedio de las rosa’! En la casa de unos tíos se ganaba la comida; era niña muy sufrida y no le temía al frío. Atendiendo a unos críos que eran medio parientes, siempre sigue la corriente sirviéndole a los demás; no descansa ella jamás, ‘ta mirando pa’l poniente. Enseñándome lectura lo pasa toda la tarde; lo digo sin un alarde, ¡es más clara que los cura’! Me da clases de cultura y cantos con sentimiento; que no me crea de cuento de los malos compañeros, Que a los que no son sinceros ¡los despida en el momento! (SANDOVAL, 1998, p. 54-55)

A vida escolar de Violeta Parra foi difícil, marcada por discriminações desde

os primeiros anos, devido não só à pobreza, como também pelas notórias marcas

deixadas pela varíola. Isso levou-a a sentir-se feia. Em algumas ocasiões chegou a

definir-se como “a mulher mais feia do planeta, que espantava aos que por acaso

aproximavam-se dela”, como mostra estas duas estrofes de suas décimas auto-

biográficas:

Aquí principian mis penas, lo digo con gran tristeza, me sobrenombran “ maleza” porque parezco un espanto. Si me acercaba yo un tanto, miraban como centellas, diciendo que no soy bella

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ni pa’ remedio un poquito. La peste es un gran delito. para quien tiene su huella. De llapa, mis compañeras eran niñitas donosas, como botones de rosa o flores de l’azucena. P’a más desgracia, docenas lucían su buena plata, la Viola, una garrapata menor d’un profesorcito de sueldo casi justito, se nos volvía ojalata. (PARRA, 1998, p. 49-50)

Há escritores e estudiosos de sua biografia que acreditam ter sido esse

sentimento que a levou ao desenvolvimento e paixão pela arte, não só da

composição e do canto, bem como, mais tarde, pela arte da tapeçaria, da cerâmica,

do bordado e da pintura. Como por exemplo, Fernando Sáez em La vida intranquila,

Violeta Parra – biografía esencial, assim argumenta:

Para Violeta comienza una época difícil. Las notorias marcas que la viruela dejó en su cara no pasan desapercibidas para sus compañeras. Éstas la señalan y le hacen burla de su defecto con todo ese envalentonamiento de la crueldad veraz de esa edad que no conoce de concideraciones ni lástima. Para sobreponerse a la vergüenza, ella se empeña en los estudios y saca a relucir creatividad y viveza, reconocida y alentada por su profesora, la señorita Berta, quien la distingue con su aprecio, ocupando su imaginación y sus cualidades de organizadora para los muchísimos festejos y celebraciones que se desarrollan durante el año: Fiestas Patrias, cumpleaños de la directora, cualquier fecha sirve de pretexto para revertir la apatia del ambiente. En esas actividades Violeta es la encarregada de los cantos, de inventar coplas alusivas que alguien todavia recuerda... la señora directora / piquito ‘e zorzal / será siempre feliz / debajo ‘el peral... y en esas ocasiones aparece actuando con un desconocido desplante que deja olvidados por algunos momentos los malos ratos con sus compañeras. (SÁEZ, 1999, p. 27)

Violeta foi, assim, tornando-se uma excepcional artista e criadora de seus

poemas, décimas e canções. Sua visão da cultura popular era, particularmente,

integral, como veremos adiante. Compôs aproximadamente 130 canções e poemas

originais e compilou, organizou e difundiu cerca de três mil temas.

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2.2 O casamento com Luis Cereceda e a trajetória artística

Em 1938, Violeta casa-se com Luis Cereceda, maquinista ferroviário e militante do

Partido Comunista chileno, e tem dois filhos: Isabel e Ángel, que seguem os mesmos

passos da mãe. Nessa época, Violeta cantava num restaurante chamado No me

olvides, em Llay-Llay, na Quinta Región (NAVARRETE, 2005). Na rotina diária, tinha

o perfil de mãe e esposa dedicada, e muito hábil na cozinha – como toda mulher

camponesa. Além disso, madrugava escrevendo poesias que fluíam naturalmente,

segundo Sáez (1999, p. 41-42):

(...) En la rutina de la casa, ella era madrugadora, obsesiva con la limpieza y hábil en la cocina. En ese tiempo es cuando comienza a llenar cuadernos con una poesía que le brota naturalmente y que, según describe su marido, es una habilidad superior a su empeño con la guitarra. Con seguridad, una veta descubierta por su hermano Nicanor quien, en su admiración, intentaba siempre darle tareas, ponerla a prueba, inventarle un aliciente que la obligara a descubrir nuevas posibilidades en la creatividad vislumbrada.

Esse casamento, porém, dura apenas dez anos. O cotidiano estreito e

sacrificante da vida familiar e proletária deixava-a triste, com a sensação de estar

condenada a viver na “mediocridade” e no esforço diário de sobrevivência. Esse

sentimento leva Violeta a mover-se em busca de uma realização íntima, a realização

de algo em princípio para ela indefinível, alguma coisa que normalmente a

inteligência intui, mas a realidade, muitas vezes, se encarrega de refutar.

Então, em meio a um emaranhado mundo de idéias, projetos e desejos, tem

início sua conturbada vida artística, tendo como marco sua participação e vitória num

concurso literário, pouco tempo depois do nascimento de Ángel, seu segundo filho,

em 1943.

Violeta seguía con la escritura y tuvo su primer reconocimiento aL presentarse a un concurso organizado para la Fiesta de la Primavera en el vecino pueblo de Quillota, donde obtuvo una mención honrosa por su poema titulado “A la reina”. (SÁEZ, 1999, p. 43)

Ainda nesse tempo Violeta canta canções espanholas e argentinas e une-se a

uma companhia de teatro que viaja por todo o país. Muda-se para vários lugares:

serra Los Placeres, rua Andes 3756. Também participa de um concurso de canto no

Teatro Baquedano em 1944. Ao lado do marido Violeta se envolve na atividade

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política e participa da campanha eleitoral de Gabriel González Videla.

Em 1945, fascinada pela música e a dança espanhola, em moda na época,

Violeta tornou-se exímia bailarina participante em concursos:

La moda de la música española – pasodobles, farrucas y sevillanas – se había introducido por la llegada de numerosos inmigrantes españoles y republicanos, al finalizar la guerra civil. Sus canciones y bailes entusiasmaron a Violeta quien llegó a ser una experta, tanto como para presentarse a un concurso de baile español en el Teatro Balmaceda donde inesperadamente sacó el primer premio, compitiendo con veinte españolas auténticas. (SÁEZ, 1999, p. 43)

Violeta começou a assumir compromissos de bailes e cantos. Em 1948 a

separação foi inevitável, diante de constantes exigências do marido que a queria

“dona de casa”, idéia da qual ela não compartilhava. Sobre a separação dos pais,

Isabel Parra diz em seu livro que, em certa ocasião, em que Violeta era entrevistada

e perguntada a respeito, ¿y el padre de sus hijos, su marido? Ela respondeu

enfaticamente, usando da sinceridade e naturalidade – qualidades que lhe eram

peculiar: “Estoy separada de él. No apreciaba mi trabajo y no hacía nada cuando

estaba con él. Quería una mujer que le limpiara y le cocinara” (PARRA, Isabel, 1985,

p. 34). A própria Violeta, em suas Décimas autobiográficas, escreve sobre o

casamento e a separação:

Anoto en mi triste diario: Restaurán el Tordo Azul; allí conocí a un gandul de profesión ferroviario; me jura por el rosário casório y amor eterno; me llega muy dulce y tierno atá’ con una libreta y condenó a la Violeta por diez años de infierno. [...] A los diez años cumplí’os por fin se corta la guincha, tres vueltas daba la cincha al pobre esqueleto mío, y p’a salvar el sentí’o volví a tomar la guitarra; con fuerza Violeta Parra y al hombro con dos chiquillos se fue para Maitencillo a cortarse las amarras.(PARRA, Violeta, 1988, p. 147-148)

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2.3 Violeta Parra como pesquisadora e divulgadora do folclore chileno

Em 1949 casa-se pela segunda vez, agora com Luis Arce, que também tinha

muitas afinidades com o mundo das artes, por isso Violeta teve todo apoio e

companheirismo de que precisava para pôr em prática seus projetos inerentes a

essa nova inspiração e aspiração: a de resgatar a tradição do povo campesino

chileno. Também em 1949, começa a cantar com sua irmã Hilda, gravando inclusive

discos pela RCA Victor (NAVARRETE, 2005).

Em 1952, o casal fundou a companhia cultural de variedades Estampas de

América, da qual Violeta era a diretora, além de vendedora dos ingressos e roteirista.

Tratava-se de uma companhia de circo popular. E assim percorriam inúmeras

províncias do país, distanciadas desse tipo de entretenimento cultural. Nessas

viagens, Violeta unia a arte do canto e da dança com o trabalho voluntário de

pesquisa e compilação do folclore. O interesse pelo folclore teve duas causas

principais: o contato direto com o povo campesino e sua riqueza cultural, e a

influência de seu irmão Nicanor, quem a estimulou a recopilar e pesquisar a música

folclore do Chile e seus mais variados ritmos e gêneros.

Es en el año 1953 cuando Violeta Parra comienza la ardua tarea de recopilar, sin medios, sin estudios, con la pura fuerza del empeño y la convicción. Meses de trabajo y conocimiento fueron dando un cambio radical que se percibía también en su aparência, como si se despojara y abjurara de toda banalidad y le fuera imposible aceptar la más pequeña impostura. Una especie de soberbia de quien posee una verdad se le fue encarnando. Era ella misma y a la vez no era más que una auténtica y absoluta representante de toda esa cultura que permanecia escondida. Y ese fanatismo y convencimiento la convertían en una monja de religión inventada a quien nada ni nadie doblegaría. (SÁEZ, 1999, p. 55)

Nesse trabalho de viajar por todo o país, resgatando o canto folclórico e

aprendendo novos ritmos e danças, Violeta encontrou a si mesma, assumindo a

identidade que lhe era verdadeira, tornando-se a autêntica representante da cultura

raiz do povo chileno. Mas, como argumenta Morales (2003, p. 28), às vezes se

entristecia por sentir que as tradições do povo chileno estavam desaparecendo:

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(...) A comienzos de la década del 50, cuando inicia sus viajes de recopilación del canto tradicional a lo largo de todo el país, “desterrando” folclor, como ella decía, llega a una conclusión, para ella, sin duda desastrosa: “la tradición es casi ya un cadáver. Es triste...

É curioso notar que desde o período compreendido entre as décadas de 1940

e 1950, tem início na vida de Violeta Parra um processo que a conduz à consciência

de que a cultura tradicional – de onde ela vinha e à qual se mantinha fortemente

unida – já começava a desaparecer por força da expansão do modernismo. Mas

esse processo, embora a entristecesse, não a faz desistir nem diminui sua

identificação com a alma da cultura folclórica, ao contrário reforça ainda mais sua

sede de transmitir seus valores a um público moderno. E, quanto mais anotava as

canções, quanto mais compilava, mais deslumbrada ficava com a riqueza da

tradição, que parecia esquecida e tão diferente do que se ouvia no radio naquele

mesmo tempo. Para Violeta, o que se ouvia no rádio não tinha a profundidade nem o

sabor da poesia e da música folclórica. Assim, além de anotar as canções, ela

também ia classificando os costumes, as comidas, as bebidas as roupas e

acessórios folclóricos. Violeta se convencia cada vez mais da grande distância

existente entre o tradicional e o moderno. Por isso, e por sua paixão pela tradição,

tornou-se uma pessoa obcecada, conforme os argumentos de Sáez:

Buscar las fuentes del folklore se convertió en una obsesión que la hacía interrogar hasta en la Plaza de Armas, en las micros, donde fuera, a qualquier cabeza blanca, preguntándoles si venían del norte o del sur, indagando por parientes, persiguiendo qualquier seña que la llevara a un hallazgo. (SÁEZ, 1999, p. 59)

Há uma fala de Hernán Godoy, historiador chileno, em seu livro Estructura

social de Chile (1971, p. 342 e seguintes), usada pelo Dr. Leonidas Morales T.

(2003, p. 36) para explicar que, da segunda metade do séc. XIX até a década de

1940, seu país, por força de um movimento de reprodução da sociedade burguesa

industrial, experimentou um processo de “erosión y desarticulación de la cultura

folclórica, esta cae en un estado crítico”: O campesino emigra para a cidade,

fascinado pelas “ofertas” e facilidades oferecidas pelas indústrias, e movido pelo

sonho de experimentar uma vida moderna:

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Son numerosos los factores que participan en ese proceso erosivo: la emigración del campesino a las ciudades (la población urbana supera a la campesina en la década del 40), el aumento de la presencia de escuela en los campos (en 1920 se había dictado la Ley de Introducción Primaria Obligatoria), la influencia de las radios y sus programaciones, la posibilidad de escuchar en las casas discos de música popular urbana mediante aparatos mecánicos de reproducción (“victrolas”), una comunicación más fácil con los centros urbanos por la construcción de nuevos caminos, la difusión del automóvil. Y en el trasfondo, una intensa industrialización del país, que pone al alcance de los sectores campesinos productos de consumo masivo, con el inevitable abandono de los tradicionales (alimentos, vestuario, decoración).2

E é nesse período, mais especificamente nas décadas de 1930, 1940 e 1950, que se

acentuam os estudos e as investigações sobre o folclore chileno, com o apoio das

universidades, incumbidas de resgatar e difundir a poesia e o canto folclóricos.

Violeta, então, começa a “despontar” com sua arte, como diz Morales T. (2003, p.

37):

El más importante de los trabajos en esta última área, es el de Violeta misma.3

Ainda nesse período, em 1952, Violeta oferecia recitais em universidades

chilenas, apresentada pelo escritor, editor e professor Enrique Bello Cruz. Assim

também vai à Escuela de Verano de Concepción e ministra cursos de folclore na

universidade em Iquique (NAVARRETE, 2005).

Em 1953, grava suas primeiras canções em um disco da EMI Odeón. Uma

delas está baseada num tema folclórico a partir do qual Violeta compõe:

“Casamiento de negros”. A outra canção é “Qué pena siente el alma”. Esse disco

deu a Violeta grande popularidade. Ao mesmo tempo, Violeta continua seus contatos

com músicos campesinos, que lhe ensinam a tocar o guitarrón, um instrumento de

25 cordas e outros instrumentos do folclore chileno (NAVARRETE, 2005).

Todo esse trabalho, esse descobrimento apaixonante impulsiona sua própria

criação, embora sem recurso financeiro, muitas vezes pedindo patrocínios. E sempre

acompanhada dos filhos que, mal caminhavam, já eram iniciados na arte da dança,

do canto e da guitarra, participando desde muito cedo nas apresentações de palco.

Como argumenta Sáez, gravidez e parto eram coisas naturais para Violeta e, 2 MORALES, T. Leonidas. Violeta Parra: la última canción. Santiago: Editorial Cuarto Propio, 2003, p. 36. 3 Op. cit., p. 37.

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literalmente, seus filhos eram parte dela mesma:

Los embarazos, el parto, la maternidad, resultaban para ella algo natural, propio de la vida corriente y cotidiana, sin que nada de esto impidiera ni npostergara sus labores. Sus hijos eran parte de ella, en un sentido muy literal. Isabel, Ángel y luego Carmen Luisa la acompañaban en su trabajo, participaban de sus proyectos y apenas caminaban cuando ya tomaban la guitarra para bailar y cantar. (SÁEZ, 1999, p. 75)

Não só seus filhos, mas seu segundo marido, Luis Arce, a acompanhava

ajudando em tudo e era o mais otimista com relação ao sucesso de suas canções,

principalmente quando Violeta inscrevia-se em concursos. Ela normalmente recebia

o primeiro prêmio.

2.4 Viagens ao exterior e viagem pelo interior do país

Em 1954, ano em que nasceu sua filha Rosita Clara, Violeta apresentava

programa na Radio Chilena. Esse programa alcançou grande popularidade,

chegando ao primeiro lugar na preferência nacional (NAVARRETE, 2005). Nesse

mesmo ano, Pablo Neruda dedica a Violeta Parra um poema, confirmando a

importância de sua obra na histórica da cultura chilena. E ainda nesse ano, Violeta

inicia um projeto de pesquisa folclórica que a faz percorrer todo o país, entrevistando

cantores populares, dançarinos, sábios, contadores de história. A tudo Violeta

registrava por escrito e em gravações sonoras. É então que recebe o Prêmio

Caupolicán como melhor folclorista do ano.

Esse período frutífero na vida de Violeta marca também suas primeiras

viagens ao exterior. Participa de um Festival de Juventude na Polônia, viaja pela

União Soviética, Suíça, Inglaterra, mora por dois anos na França e tem contato com

vários intelectuais europeus (NAVARRETE, 2005). No exterior, Violeta continua seu

projeto de gravação musical e de divulgação da cultura chilena. Esse contato com o

mundo europeu é extremamente importante para a confirmação da identidade

cultural tão marcadamente apresentada nas canções e na postura de Violeta Parra.

Fazendo um trocadilho com uma das canções mais famosas da cantautora,

Morales (2003) comenta que Violeta sofre, luta, cai, levanta e recomeça tudo de

novo, dando “gracias a la vida”. Então ela canta, dança e celebra a alegria de viver,

embora muitas vezes sentisse inexplicável tristeza e solidão que raramente

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externava. Seu canto é de resistência e teimosia pela preservação da cultura do

povo campesino chileno:

(...) la tradición, como fuente de los valores que alimentan la verdad artística, tiene su horizonte clausurado y se ha convertido en “casi ya un cadáver”. Por eso la “tristeza” no puede ser desalojada de las formas artísticas: “Mis trabajos son una verdad simple y alegre dentro de la tristeza que hay en cada uno de ellos. Yo soy un pajarito que puedo subir en el hombro de cada ser humano, y cantarle y trinarle con las alitas abiertas, cerca, muy cerca de su alma”. (MORALES, 2003, p. 29)

Essas palavras de Violeta nos permitem perceber não só a importância da tradição na sua trajetória de vida, cultural e artística, bem como a dimensão da tristeza que ela sentia ao vislumbrar um futuro fúnebre às raízes da sua cultura, da cultura chilena que, para ela são alicerces da verdade em qualquer criação artística.

A canção “Qué pena siente el alma”, gravada em 1953, retrata esses sentimentos de tristeza e solidão de que Violeta era acometida frequentemente, embora seja preciso separar obra de autor:

Qué pena siente el alma cuando la suerte impía se opone a los deseos que anhela el corazón. Qué amargas son las horas de la existencia mía sin olvidar tus ojos sin escuchar tu voz. Pero me embarga a veces la sombra de la duda que por mi mente pasa como fatal visión. Qué pena...

Em 1955, ao receber o Prêmio Caupolicán de melhor folclorista ela aceita,

também, o convite para participar do Festival da Juventude em Varsóvia. Violeta não

queria perder a chance de viajar para a Europa e divulgar seu trabalho, embora

admitisse que não seria fácil ausentar-se da família por tanto tempo. Ela lamentava,

principalmente, ter de deixar Rosita Clara, seu bebê de apenas nove meses. Ao seu

marido, Luis Arce e a Ángel, seu filho de treze anos, na época, coube a

responsabilidade de cuidar da bebê. Violeta parte com uma delegação de 70

pessoas entre chilenos, argentinos e uruguaios, em 3 de julho desse mesmo ano,

rumo a Buenos Aires e de lá para a Europa, no dia 7.

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Fernando Sáez conta que:

Durante quince días el festival se realizó en el enorme Palácio de la Cultura y la Ciencia Stalin recién donado por La Unión Soviética. Allí los países presentaban las distintas manifestaciones de teatro, ballet, marionetas, bailes y canciones típicas que luego repetían al aire libre en parques y calles donde había numerosos escenarios. También a orillas del Vístula por las noches continuaban las fiestas con fuegos artificiales, mientras en el estadio se realizaban competencias atléticas. En diversos teatros se representaban a su vez el Gran Circo de Moscú, la Ópera China y el ballet Bolshoi. La intensa vida social se daba en las calles, pero también en las recepciones oficiales en los Palacios de las Embajadas de Russia y China. (SÁEZ, 1999, p. 80-81)

Em meio a vários recitais nessa temporada e trabalhos intensos, almejando

sempre o sucesso, há menos de um mês de sua viagem a União Soviética, Violeta

recebe a notícia da morte da bebê Rosita, que a deixou desesperada, ainda mais

sabendo que qualquer esforço para voltar e interromper seu projeto imediatamente,

seria inútil diante da distância e a dura realidade.

Terminado o festival em Varsóvia, Violeta tratou de cumprir seus propósitos e

todos os compromissos assumidos na ocasião, viajando para a França, seu primeiro

objetivo.

Luego, por su cuenta y riezgo, se inscribió para actuar en el escenario del anfiteatro de La Sorbone donde se realizaba el Festival Internacional Folclórico, representando a Chile, sola con su guitarra, en medio a las numerosas y organizadas delegaciones de los otros países.

(...) Con cartas de presentación de Pardo y Cuto Oyarzún, emprendió viaje a Londres. Para su sorpresa, lo que en París le había costado meses, allí lo logro en diez dias. Tres casas grabadoras se interesaron por ella. Pero por sus obligaciones anteriores grabó solo con Odeon un disco larga duración con dieciocho canciones. Dejó su voz en los archivos de la BBC, actuó en dos programas de televisión, dió dos recitales en la Cunning House y fue invitada a casa de intelectuales y artistas donde también canto. (SÁEZ, 1999, p. 86)

Um ano e meio de separação e as conseqüências da morte de Rosita Clara,

afetando diretamente a relação conjugal, o segundo casamento também fracassa.

Violeta volta ao Chile no final de 1956, para junto de seus filhos. Mais uma vez

reunidos, ela recomeça sua infatigável divulgação do canto folclórico chileno, e as

tentativas de conseguir apoio para continuar seu trabalho de pesquisa e compilação

desse rico material.

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Em 1957 é convidada pela Universidade de Concepción, no Sul do Chile, para

fazer tal trabalho de pesquisa e oferecem-lhe moradia na casa onde funcionava o

Instituto de Arte. Finalmente, Violeta ganha a oportunidade de pôr em prática seus

grandes projetos:

No podía ser un lugar más auspicioso para los proyectos en grande que Violeta siempre soñaba para sus afanes. Comenzó su trabajo de recopilación en las zonas campesinas de Hualqui, Bellavista, Santa Juana, encontrando una impresionante variedad y cantidad de cuecas comunes, cuecas literarias, sólo para ser recitadas, cuecas valseadas, donde las parejas bailan tomadas, cuecas largas, y cuecas balanceadas, para cuando está la fiesta decaída y la cantora va introduciendo en el texto los nombres de los presentes como una manera de obligarlos a recomponer-se. (SAEZ, 1999, p. 96-97)

Nesse percurso de compilação, é presenteada com diversos instrumentos e

antigos livros de música. Isso a motiva a propor, à mesma Universidade, a criação de

um museu do folclore. Cedem-lhe mais duas salas e, no período de um ano, em

janeiro de 1958, é inaugurado o Museo Nacional del Arte Folklórico Chileno:

Con la celeridad con que ella hace las cosas, inaugura su flamante Museo Nacional del Arte Folklórico Chileno, el veintidós de enero de 1958, coincidiendo esta fecha con el inicio de los cursos de la Escuela Internacional de Verano que dirigía el poeta Gonzalo Rojas. En el museo juntó con gramófonos primitivos, arpas, guitarrones antiquísimos, charangos, panderetas, cultrunes y tomos centenarios de canciones españolas que había descubierto en perdidos rincones de la zona. (SAEZ, 1999, p. 97)

Durante esse período, Violeta compôs cerca de quarenta músicas, inclusive

musicou alguns poemas de Pablo Neruda: “No te quiero sino porque te quiero”,

“Canto General” e “El Pueblo”, e de seu irmão, o poeta Nicanor Parra, “Cueca de los

poetas” e “El hijo arrepentido”. Violeta chega a participar do II Encontro de Escritores

de Concepción (NAVARRETE, 2005).

2.5 Uma artista multifacetada

No ano de 1959, uma enfermidade a deixou de cama alguns meses e, por

ordem médica, necessitava repouso absoluto, idéia intolerável para ela, motivo pelo

qual deu início à arte do bordado, da pintura e da cerâmica. Ela mesma fala como

teve a primeira inspiração para a arte do bordado e tapeçaria:

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Un día vi frente a mí un trozo de tela y empecé a hacer cualquier cosa, aunque no pude producir nada esa primera vez, la segunda vez quise copiar una flor, salió como una botella, después quise poner un tapón me salió como cabeza, entonces dije, eso es una cabeza. Le puse nariz, ojos, boca. La flor no era una botella, era una señora y esa señora mira... El problema no es el más simple del mundo, no sé dibujar”, respondió tiempo después en una entrevista cuando sus arpilleras ya eran parte de ella misma. (SAEZ, 1999, p. 104-105)

Entusiasmada com a beleza e o colorido dos fios de lã, dedicou-se ao bordado

ponto por ponto, e sem desenho prévio. Em qualquer tecido, ela deixava as idéias

fluírem como numa canção ou num poema. Foi adquirindo prática à medida que se

recuperava da doença. Em pouco tempo, já estava voltando à vida cultural de

Santiago, no Café São Paulo, um ponto de encontro de escritores, artistas,

intelectuais, atores, jornalistas, poetas e dançarinos que iam chegando a uma hora

da tarde e se juntando ao grupo de interesse de cada um. Fernando Sáez conta que:

Nacían amores y amistades a esa hora del día en que la única bebida era el café, en medio de conversaciones y discusiones intensas, donde se comentaban libros y espetáculos del momento. Se organizaban también las fiestas para la noche, se intercambiaban datos de trabajos, se daban a conocer proyectos, se concertaban entrevistas para los diarios, conviviendo la política y el arte en el ir y venir constante del mediodía. Quien quería estar vigente, no podía faltar al São Paulo. Violeta era una clienta habitual. Allí encontraba a sus amigos y era su momento de recreo después de sus diligencias por el centro, cobrando derechos de autor, siempre escurridizos, comprando lana y géneros para su trabajo, moviendo sus contactos en radios y siempre con algún proyecto que necesitaba sacar adelante. (SAEZ, 1999, p. 105-106)

Nessa ocasião, aprende com a amiga Teresa Vicuña – famosa na época – a

arte da cerâmica, depois de insistentes palpites sobre o trabalho da escultora, que

sugeriu que ela mesma pusesse a mão na argila e produzisse também para si. O

resultado foi surpreendente, moldando figuras de homens e mulheres simples e

primitivos, inspirados em cenas de sua infância.

Também nessa mesma época a Universidade de Antofagasta a convida para

dar cursos sobre o folclore, o que Violeta desempenhou muito bem. De volta a

Santiago, hospeda Victor Jara, brilhante estudante de teatro da Universidade do

Chile, que conheceu no Café São Paulo.

A convite do Ministro da Educação, viaja à Ilha de Chiloé, para dar cursos de

folclore, pintura e cerâmica, além de fazer inúmeros recitais (NAVARRETE, 2005).

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Dessa viagem, Violeta trouxe vasto material sobre novas danças, que aproveitou

para apresentar em festivais organizados pela Faculdade de Música. Nesse mesmo

tempo escreve um livro de folclore, resultado de sua longa pesquisa, reunindo

fotografias, partituras de músicas e depoimentos. Participa em filmes documentários:

Mimbre, Casamiento de negros, La Tirana e La trilla. Grava o LP Toda Violeta Parra.

Em dezembro de 1959 participa da primeira Feira de Artes Plásticas, uma feira ao

ar livre com quase mil expositores, onde Violeta modelava figuras em argila e as

vendia, juntamente com suas telas bordadas ou pintadas. Sáez (1999, p. 113) traz

interessante detalhe sobre esse trabalho de Violeta:

A los artistas también se sumaron escritores y poetas, que ofrecían sus libros con el respectivo autógrafo: Pablo Neruda, con su característica tinta verde, agregaba a la firma un pequeño dibujo. Se mostraban además las técnicas de cada especialidad, trabajando todos a la vista del público. En un pequeño espacio, Violeta desplegó sus arpilleras, que hoy muchos se arrepienten de no haber comprado, y sus discos, distribuyendo su tiempo entre la interpretación de canciones y el modelaje de figuras de greda...

No ano seguinte, assina um contrato com a Radio Minería, para apresentar

os programas alusivos às Fiestas Patrias e, ao mesmo tempo, a Universidade do

Chile inaugura um importante canal de televisão, dando-lhe a oportunidade de ser a

apresentadora de vários programas pioneiros no país. Para tanto, preparou-se muito

bem, com o mesmo afinco e seriedade, sempre acima do que era exigido. Violeta era

naturalmente simples e ingênua, mas muito exigente consigo mesma, e minuciosa

quando se tratava de relação com o público.

2.6 Dramas sociais, alegrias e dilemas pessoais

Em 5 de outubro de 1960, dia em que completava 43 anos, Violeta conheceu

Gilbert Favré, um antropólogo suíço interessado em folclore, com quem viveu e

compartilhou intensamente sua paixão pela cultura, pela arte poética e pela música,

até pouco tempo antes de morrer. Nesse mesmo ano homenageia o poeta Thiago de

Mello com uma figura em bordado do poeta, que era diplomata do governo brasileiro.

Nos dois anos seguintes se apresenta algumas vezes na Argentina, onde

também expôs suas telas e esculturas. Ao mesmo tempo, cumpre um contrato de

três programas para o canal treze da emissora de televisão de Buenos Aires,

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aproveitando a oportunidade para gravar um disco para a gravadora Odeón, que

teve sua venda proibida por conter uma música com letra “corrosiva”: “Porque los

pobres no tienen”:

Porque los pobres no tienen adonde volver la vista, la vuelven hacia los cielos con la esperanza infinita de encontrar lo que su hermano en este mundo le quitan, ¡palomita! ¡qué cosas tiene la viday, zambita! Porque los pobres no tienen adonde volver la voz La vuelven hacia los cielos buscando una confesión ya que su hermano no escucha la voz de su corazón, palomitay, ¡qué cosas tiene la viday, zambitay! Porque los pobres no tienen en ese mundo esperanza se amparan en la otra vida como en justa balanza por eso las procesiones, las velas, las alabanzas, palomitay, ¡qué cosas tiene la viday, zambitay!

Essa canção traz a mais importante característica de Violeta Parra em sua arte

poética: o jogo, a combinação, a relação do homem com a natureza. O campesino

chileno em sua visão unitária do ser com a natureza, no seu labor oral de

transmissão de seu saber, perturbado pelo poder da sociedade urbana moderna.

De tiempos inmemoriables que se ha inventado el infierno para asustar a los pobres con sus castigos eternos y al pobre que es inocente con su inocencia creyendo, palomitay, ¡qué cosas tiene la viday, zambitay!

Ela manifesta o conflito campo-urbanidade e critica duramente o governo, que

ignora o campesino, “no lo escucha, no lo ampara, y él, entonces, vive ‘en ese

mundo de esperanza’, con su inocencia creyendo” em Deus e obedecendo as leis da

Santa Madre Iglesia. Outra crítica que Violeta faz à Igreja Católica e seus dogmas de

fé, que na sua opinião são ilusórios.

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Y pa’ seguir la mentira lo llama su confesor le dice que Dios no quiere ninguna revolución ni pliego ni sindicato que ofende su corazón, palomitay ¡qué cosas tiene la viday, zambitay! (PARRA, 2005, 95)

Era abril de 1962. Seu maior entusiasmo, nesse período que passou em Buenos

Aires, foi o convite para dar um recital no Teatro Popular Israelita, localizado no

bairro Once, com capacidade para quinhentas pessoas, no dia vinte e sete às vinte e

uma horas, onde Violeta pode cantar e expor sua “artesanía”.

Um mês depois, prepara-se para viajar a Helsinki, na Finlândia, para um Festival

da Juventude. É nessa oportunidade que ela realiza um dos seus maiores sonhos,

que era o de estar trabalhando em família, todos juntos, formando um grupo artístico

autêntico e incomparável:

A fines de mayo de 1962 se embarcan en el Yapeyú sumándose a la delegación de Chile y a las de Argentina y Uruguay que viajan al Festival. Al grupo de Violeta, formado por Angel, Isabel y su nieta Tita, se incorporo Quico Bello, bailarín y músico, hijo de Henrique Bello, un antiguo amigo de Violeta, de gran influencia en el mundo cultural chileno, creador de la Revista Pro Arte. Durante la travesía, Violeta enseñó cueca a la delegación y prepararon coreografías para la presentación del grupo, entre ellas una alegoría de Casamiento de Negros. (SAEZ, 1999, p. 127)

O grupo conseguiu o primeiro lugar no festival, o que lhe proporcionou

inúmeros convites. Apresentaram-se em várias cidades da União Soviética, seguido

de muitos recitais na Alemanha, Itália e França. Em meio a tanto trabalho, Violeta

tem uma forte crise de vesícula e é internada num hospital, onde, erroneamente,

operam-na de apendicite. O grupo segue cantando sem ela.

Recuperada da cirurgia, mas tensa pelos muitos problemas causados pela

separação inesperada do grupo – talvez sentisse que não mais conseguiria

acompanhá-los –, decide partir para Paris, onde se instala, sozinha, no Hotel de

Flandre, na rua de Cujas, número 17. Segundo Sáez (1999), Violeta buscava um

pouco de silêncio, buscava paz:

(...) convirtiendo rápidamente su habitación en un taller de trabajo donde se dedicaba a sus arpilleras y cuadros. Por las noches

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comenzó a actuar nuevamente en L’Escale donde, después de cuatro años, parecía que nada había cambiado, el mismo humo, las mismas batallas para conseguir silencio en medio de sus actuaciones. Este silencio que siempre exigía, no era un capricho, nacía del conocimiento cabal de lo que era su música. Cualquier ruido, cualquier interferencia, cualquier conversación, transgredía de inmediato la atención que esta música precisaba. El silencio es y sigue siendo el único requisito para escuchar las interpretaciones de Violeta Parra y compenetrarse con ellas, para poder apreciar su indudable valor y trascendencia. (SAEZ, 1999, p. 129)

Escreve muitas cartas ao marido, Gilbert Favré, que havia ficado em Santiago.

Mais um casamento em crise. Em 1963, Gilbert volta para a Suíça e retoma seu

trabalho. Violeta adoece novamente em Paris e ele a translada para Genebra.

Recupera-se e prepara um recital de cantos e danças latino-americanas a convite do

Departamento de Arte e Cultura da Universidade de Genebra. Gilbert, que já era um

exímio flautista, também se apresentou com o grupo dos Parra. Entretanto, Violeta

queria voltar para Paris, onde já havia combinado exposições em várias galerias.

Separou-se de Gilbert, prometendo-lhe cartas.

Sempre muito ocupada e preocupada em não perder tempo, quase não

participava dos grupos que se reuniam no Café Le Danton. Só se encontrava com

Diego Ortíz de Zárate, que transcrevia suas composições para o Francês e Frida

Sharim, que a acompanhava às editoras, conseguindo, assim, em 1965, a

publicação de Poésie populaire des Andes (NAVARRETE, 2005; SAEZ, 1999).

Em setembro de 1963, participou da festa anual do diário L’Humanité, junto

com Ángel e Isabel, para uma platéia de seiscentas mil pessoas. Em 1964, depois de

várias tentativas e três meses de preparação, expõe no Museu do Louvre, na

enorme sala del pabellón Marsan, inaugurando a exposição no dia dezoito de abril e

encerrando em onze de maio. Foi a primeira vez que um artista latino-americano

expõe nesse museu. Uma façanha histórica. Assim nos conta Sáez:

Hasta la fecha del cierre, el once de mayo, Violeta permaneció casi todo el tiempo en el lugar, cantando con su guitarra y trabajando en nuevas arpilleras frente al público que asistía, muchos de ellos interesados en comprar su obra. Por esos días vendió varias piezas de su trabajo. Los chilenos Arturo Prat y Elena Walker compraron El Guitarrista, la psiquiatra Françoise Dolto, la tapicería El Árbol de La Vida y la Baronesa de Rotschild, atraída por las favorables críticas aparecidas en los diarios, eligió Thiago de Mello que Violeta había hecho en 1961, en homenaje a su amigo agregado cultural del Brasil. (SAEZ, 1999, p. 136)

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No mesmo mês de encerramento da exposição no Louvre, Violeta se

apresenta num musical no Théatre de Plaissance, na Rue du Chateau, onde já havia

se apresentado em janeiro, num recital de poetas latino-americanos. Com todo êxito

obtido e sua arte num constante desenvolvimento, planejava comprar uma

caminhonete “Volkswagen tipo furgón” e percorrer a Europa na companhia de

Gilbert, levando a todos os lugares sua música e seus trabalhos de arte. Voltou para

Genebra, mas não convenceu o marido sobre seu projeto. Ele já não estava

suportando mais a vida noturna de Violeta. Ali mesmo, então ela continuou

trabalhando. Fez inúmeras esculturas em papier maché e ensinou a arte.

Apresentou-se algumas vezes e deu entrevistas para a televisão suíça, com toda a

simplicidade, que lhe era natural:

Vestida con un traje hecho por su madre, con pedazos de géneros de múltiples colores, recibió a Madelaine Rumain para una entrevista documental que, con una duración de veinte minutos, trasmitió la televisión suiza. En un francés simple, fluido y musical, Violeta contó de sus orígenes, de la imposibilidad de explicar su obra, que la razón de hacer todo eso provenía solamente de los sentimientos, de la sensibilidad. “Todo el mundo puede inventar, no es mi especialidad”, respondía con seguridad, aunque con cierta timidez, convencida de que lo que hacía nacía de la necesidad de comunicarse. Y que finalmente, los cuadros, sus composiciones, eran la manera de no quedarse con los brazos cruzados... (SÁEZ, 1999, p. 141)

2.7 Repercussões de sua obra e influência sobre as novas gerações

Segundo Sáez, nessa época, as notícias que recebia do Chile eram

animadoras, principalmente as referentes ao aparecimento de um movimento de

novas músicas chilenas interpretadas por Patricio Mans, Rolando Alarcón, Victor

Jara e a dupla Isabel e Angel Parra. Eles começavam a renovar o ambiente musical

chileno. E Violeta, sentindo-se ausente de tudo isso, dessa oportunidade de seu

trabalho ser acolhido como merecia – um trabalho de tantos anos e feito por amor à

história de seu povo, de sua terra, por amor à arte –, decide voltar e deixa sua obra

dividida e guardada por amigos, até sua volta, prevista para dali a seis meses, pois

pretendia viver seis meses em cada um desses dois países:

Todo lo que ella despreciaba estaba en desuso y además iba apareciendo, paralelamente, un movimiento de nuevas canciones chilenas en las voces de Patricio Manns, Rolando Alarcón, Víctor Jara y el duo de Isabel y Ángel Parra, comenzando a agitar y renovar

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el ambiente musical. Esas circunstancias decidieron su vuelta a Chile. Ella no podia estar ajena, ausente, si se vislumbraba, por primera vez, la posibilidad de que su empecinado trabajo de tantos años pudiera obtener la acogida que creia merecer. (SÁEZ, 1994, p. 142)

Chega com Gilbert no dia dezoito de agosto, depois de ter ficado uma semana

no Brasil – Rio de Janeiro – por motivo de perda de vôo, e escreve aos filhos o

seguinte telegrama:

Estoy en Rio de Janeiro, llego el miércoles via Varig. Abrazos, mamá Violeta. (apud SÁEZ, 1994, p. 143)

Como não parava “de brazos cruzados”, aproveitou esses dias para fazer um

novo bordado. Admirando a beleza do Cristo Redentor, teve a idéia que deu forma a

um de seus mais belos e importantes quadros: “un cristo crucificado al que un pájaro

le arranca los clavos”, conforme nos diz, Sáez:

En esos días de espera en Brasil, armó una nueva tapicería que mostró a los periodistas a su legada. Un cristo crucificado al que un pájaro le arranca los clavos. (SÁEZ, 1999, p. 143)

Em Santiago, instalados na “Pena de los Parra”, uma antiga casa onde viviam

diversos artistas, acompanharam o apogeu da chamada “nueva ola chilena”, eram as

interpretações de músicas norte-americanas, feitas em castelhano. E nesse

panorama, a dupla Angel e Isabel Parra alcançou os maiores sucessos.

Isabel Parra, em seu livro El Libro Mayor de Violeta Parra (1985), comenta

sobre a intensa atividade cultural de sua mãe e a grande aceitação de seu trabalho

pelo público chileno, e comenta que:

La Viola quiso convertirme en su secretaria y pretendió que yo respondiera las cartas que recibía. Eran miles, y llegaban de todos los puntos del país. Las poníamos en inmensos sacos y las llevábamos a la casa. Era imposible responderlas. Le pedían foto, y le agradecían el hecho de reencontrarse con su verdadera música, que muchos no oían desde su infancia. Eran cartas emocionantes y llenas de cariño.

Segundo Sáez, Violeta logo se integrou, embora impressionada com as

rápidas mudanças ocorridas em tão pouco tempo. Com orgulho confundido com

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estranhamento, custava aceitar a independência que haviam adquirido seus filhos, e

observa com nitidez, a invasão cultural norte-americana, que é – na sua concepção –

uma ameaça à tradicional cultura chilena, à identidade cultural de seu povo:

El enorme éxito de todos se reflejaba también en la aparición de un disco Peña 65 que se vendia por esos dias con las grabaciones de estos nuevos valores. Desde luego, Violeta se integró al grupo de artistas que actuaban en Carmen, muy impresionada de todos los cambios ocurridos con tanta rapidez y en tan poco tiempo. Observaba asimismo los logros de sus hijos con esa mezcla de orgullo y estrañeza con que los padres, dificultosamente, asimilan el proceso de crecimiento y realización de éstos, pareciéndoles que siempre van a seguir siendo dependientes y necesitados. (SÁEZ, 1999, p. 145)

Violeta e Gilbert apresentavam-se no Teatro Silvia Piñeiro, na rua Tamaracá,

todas as quartas-feiras, onde acontecia um festival de folclore, parte de um programa

dirigido por René Largo Farias chamado Chile Ríe y Canta. Em um mês de volta ao

Chile, grava dois discos, um com Gilbert: El tocador afuerino e outro sozinha:

Recordando a Chile: Canciones de Violeta Parra, com várias músicas feitas em

Paris.

Em setembro do mesmo ano (1965), constrói uma grande carpa (barraca) na

Feira Internacional do Parque Cerrillos, em sociedade com uma amiga alemã: Gretel.

Nesse mesmo local situava-se a Penha de los Parra, e Violeta passou a apresentar-

se nos dois espaços. Mas seu projeto era fundar ali um Centro de Arte Popular, algo

parecido com uma Universidad del Folklore. Conversou com o prefeito, Fernando

Castillo Velasco, que a apoiou e lhe deu a concessão – por trinta anos – de um

enorme terreno chamado Parque La Quintrala, na rua La Cañada nº 7.200. Com a

ajuda de amigos e parentes, com muito empenho, pois ela era minuciosa e exigente,

procederam à construção e transferência de todos os materiais e equipamentos. Em

dezessete de dezembro – três meses depois – ocorreu a cerimônia de inauguração

com todos os detalhes, seguido de uma grande festa (SÁEZ, 1999).

Ainda em 1965 Violeta viaja a Genebra, onde participa de um documentário

para a televisão sobre sua obra. O documentário leva o título Violeta Parra:

bordadora chilena (NAVARRETE, 2005).

Em janeiro de 1966, separada de Gilbert, que não mais suportou seu humor

instável e exigências, Violeta tenta o suicídio. Segundo Fernando Sáez, Violeta foi

levada às pressas a um posto de saúde por ter cortado os pulsos:

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Si la prensa no la había apoyado nunca como ella hubiera querido, cuando intentó suicidarse, estuvo en la primera plana de los diarios de esa tarde del viernes catorce de enero de 1966. Se había cortado las venas y fue llevada con urgencia esa mañana a la posta 4 del barrio Ñuñoa. Estaba arrepentida, pero agobiada. Se sentía perdida y sola, dijo a sus hijos y algunos amigos, como Héctor Pavez y Rubén Nouzeilles que la visitaron, prometiéndole apoyo y ayuda. Recibió a la prensa al día siguiente negando que hubiese intentado matarse. (1999, p. 152)

Nessa época, a Universidade do Chile patrocinava um programa de televisão

no canal nove de Santiago, dirigido pelo brasileiro Paulo Alberto Monteiro, Preto no

Branco, para o qual convenceram-na a participar como convidada especial. Violeta

aceitou, mas exigiu que não se fizesse nenhuma referência à tentativa de suicídio:

Violeta apareció con su pelo largo y enmarañado y la sencillez de su vestuario. Sin una gota de maquillaje, por supuesto. Con un estudiado temor a las cámaras y aparentando ingenuidad, respondió directamente a todas las preguntas deslizando ironías, sin detenerse en concesiones, planteando sus verdades. “Nunca tuve miedo de sentarme en el banquillo. En este mundo de pecadores todos debemos sentarnos un segundito en el banquillo de la conciencia. De todos modos creo que Negro en el Blanco es una maravillosa treta para hacer pisar el palito a los incautos y como yo no estoy ajena a ellos, me sometí tranquila”. Declaro después de su aparición. (SÁEZ, 1999, p. 153)

Em seguida, Violeta compõe e grava “Gracias a la vida” e “Volver a los

diecisiete”, suas mais nostálgicas canções nas quais, de forma direta, numa

linguagem muito simples, define a vida, o tempo e o amor com grandeza e dignidade

poética.

Em abril de 1966 viaja à Bolívia, na tentativa de reconciliar-se com Gilbert,

ocasião em que faz algumas apresentações na Peña Naira, em La Paz, mas retorna

sem Gilbert. Volta ao Chile com um grupo de músicos andinos e faz diversas

apresentações, inclusive na televisão. Grava então seu LP Las últimas

composiciones.

Violeta passou a se dedicar com mais afinco ao trabalho, convencida de que

os dezoito anos de diferença na idade dos dois estava estampada com todas as

letras e sinais.

Gilbert fazia sucesso com seu grupo boliviano Los Jairas. Em uma ocasião, nesse

mesmo ano, vieram apresentar-se em Santiago, quando ele anunciou seu

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casamento com uma jovem boliviana. Foram dias muito difíceis para Violeta, pode-se

dizer, decisivos para suas futuras tomadas de decisões.

Desde então ela tornou-se visivelmente inquieta, às vezes irracional, o que

chamava a atenção de seus parentes e amigos, embora aparentemente

demonstrasse firmeza nos planos de voltar à Europa, rever suas obras guardadas

por amigos e percorrer os países levando sua música e arte.

Com passagens compradas, de ida, para o dia oito de fevereiro, e de volta

para o mês de março, o que seria o remédio para distrair-se um pouco e tentar

esquecer Gilbert, havia inclusive postergado uma visita ao consultório da psiquiatra

Adriana Schnake para quando voltasse e, inexplicavelmente, no domingo, dia cinco,

ao final da tarde, suicida-se com um tiro no peito, usando um revólver de fabricação

brasileira, comprado na Bolívia para, segundo ela, defender-se dos assaltantes em

sua carpa.

Segundo Sáez, sempre que, em reuniões de amigos, se questionava sobre o

tema da morte, Violeta repetia:

Uno tiene que decidir su muerte, ¡mandarla! No que La muerte venga a uno. (apud SÁEZ,1999, p. 163)

E cumpriu, pois, o que para ela era uma “máxima”.

Muitos poeta e escritores, contemporâneos ou não de Violeta, têm

questionado, escrito e até poetizado sobre ela e sobre o impacto que sua morte

causou para a sociedade chilena:

¿Será necesario intentar desentrañar la desventura de esta determinación final? ¿Cómo hacer para recorrer el camino incierto de alguién que ha perdido el sentido objetivo de las cosas y su sensibilidad extrema le juega una mala pasada? ¿Cómo penetrar ese ensimismamiento que la dejó atrapada en el tormento del fracaso y la incomprensión? ¿Cómo darle sentido a esa sensación aplastante donde sólo emerge poderosa la soledad y la obsesión frente a una respuesta que no aparece?

[...] Faltando quince minutos para las seis de la tarde se escuchó la detonación. El mismo disparo que terminó con su vida, esparció su obra hacia todos nosotros. (SÁEZ, 1999, p. 163-164)

Camilo Rojas Navarro, em seu poema em décimas “Brindis por Literatura”,

resume em uma se suas estrofes o panorama dos últimos dias vividos por Violeta

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Parra, essa figura que representará por muito tempo a identidade cultural latino-

americana moderna:

Brindaba Violeta Parra por el arpa y el arpín por el piano y el violín el rabel y la guitarra. Y en una noche de farra brindaba por un cantor y ese brindis con dolor lo convirtió en un lamento brindando por el tormento de no conseguir su amor. (NAVARRO, 2005, p. 119)

Violeta foi uma artista de profundo conteúdo humano. Sua grande qualidade e

valor histórico-social e educacional está representado na sua criação folclórica

impregnada de sentimento e que transpõe fronteiras, transformando-a em um

verdadeiro mito a quatro décadas de sua morte.

O trabalho de Violeta Parra é de enorme importância não só para a educação,

como para a própria formação da identidade do povo latino-americano, na medida

em que representa as diversas culturas do seu país, as histórias, as festas, as

tradições, a linguagem e os mitos mais caros, questionando relações de poder,

motivando o pensamento e a reflexão sobre o que é ser chileno e latino-americano.

Uma defensora da paz ao mesmo engajada em diversas lutas pela liberdade de

expressão e manifestação cultural. Violeta vivenciou o exercício de professora, para

o qual havia estudado, mas fora do ambiente acadêmico. Desenvolveu a educação

em seu sentido mais amplo, ocupando espaços informais, como tablados, circos,

teatros, bares, programas de rádio e TV, até o cinema, e formais também, como

universidades, escolas e museus.

3 Identidade: formação e transformação

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Neste capítulo, tenta-se explicar, a partir do trabalho de alguns estudiosos e

pensadores modernos da identidade e dos Estudos Culturais, não só o processo que

forma e transforma a identidade do indivíduo, do grupo e da sociedade, mas os

elementos desse processo.

Inicia-se com uma breve panorâmica sobre o tema da cultura, berço da

identidade individual e coletiva e sua ligação direta com a educação. A seguir,

apresentam-se conceitos diversos sobre cultura e opta-se pela definição com a qual

se trabalhará nesta dissertação.

Na perspectiva cultural, e seguindo o que se entende sobre identificação,

busca-se conceituar os termos identidade e identidade cultural, com base

principalmente em Stuart Hall (2003; 2004), Anthony Giddens (1991), Kathryn

Woodward (2000) e Tomaz Tadeu da Silva (2005), que, dialogando entre si,

concordam quanto à complexidade que cerca o fenômeno da identidade, de

natureza marcadamente discursiva, totalmente imersa nas relações de poder e

sujeita a constantes mudanças.

Este capítulo esboça, também, os movimentos descentralizadores do sujeito

da era moderna, desde as suas origens no pensamento iluminista, passando pelas

alterações trazidas pela perspectiva sociológica, pelas contribuições do pensamento

marxista do século XIX, seguido da descoberta do inconsciente por Freud, passando

pela lingüística moderna de Saussure e pelos estudos filosóficos de Michel Foucault,

culminando com os novos movimentos sociais – especialmente o feminismo – que

emergiram na década de 1960.

Aborda-se também o tema da identidade latino-americana no mundo

globalizado, centralizando-se no tempo e no espaço social a figura da poeta,

musicista, tapeceira, pintora e folclorista chilena Violeta Parra, objeto de estudo da

presente pesquisa.

Um pressuposto importante dos Estudos Culturais, e levado em consideração

neste trabalho, é a noção do discurso como instrumento que identifica, tema que é

trabalhado neste capítulo, com base nas elaborações teóricas de Tomaz Tadeu da

Silva e Kathryn Woodward. Faz-se também, aqui, referência ao papel da linguagem

na construção da identidade, tendo como referência os trabalhos de Kathryn

Woodward (2000), Mariza Vorraber Costa (2000) e Maria José Coracini (2003).

Neste estudo, levam-se em consideração também as importantes constrições

e pressões trazidas pelo fenômeno da globalização e do entrechoque entre culturas

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nacionais, étnicas e regionais, agentes diretos na formação e transformação das

identidades na era moderna. Basilares são os estudos e idéias de Peter Mclaren

(1999; 2000) e Néstor García Canclini (1984; 2006), bem como Paulo Freire (1987)

referenciais importantes na discussão da educação e seus desdobramentos para a

construção da identidade cultural.

Finaliza-se o presente capítulo abordando a inter-relação entre identidade,

cultura e educação com base, principalmente, em Paulo Freire, Tomaz Tadeu da

Silva e Peter McLaren.

3.1 Cultura: berço da construção identitária

“No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma

das principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos

que somos ingleses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso estamos falando de forma metafórica.

Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes” (Stuart Hall,

2004, p. 47).

“A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível

optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de

subjetividade” (Kathryn Woodward, 2005, p. 18-19).

O tema da cultura é hoje um veio de intensas discussões que retratam

preocupações associadas, entre outras coisas, aos fenômenos históricos e sociais, à

educação e à identidade. Outrora compreendida como somatório de conhecimentos

técnicos, artísticos, filosóficos ou humanísticos revelados por indivíduos privilegiados

ou de destaque, a cultura precisa ser redefinida de acordo com critérios mais sociais

e politicamente pertinentes.

Entendida como “o modo de viver” ou como “a experiência vivida” de um grupo, de

uma sociedade ou de um povo, a cultura apresenta-se como um campo

independente, autônomo e dinâmico da vida social, pois é por meio dela que o

homem se define e se constrói social e individualmente. Stuart Hall, um dos maiores

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autores no campo dos Estudos Culturais, vem chamando a atenção para a

importância do fenômeno cultural, conforme testemunha Mariza Vorraber Costa

(2000):

[...] vem recorrentemente chamando a atenção para a “centralidade da cultura”, isto é, para a forma como a cultura investe, hoje, em cada recanto da vida social, não podendo mais ser concebida com o sentido estrito de acumulação de saberes ou de processo estético, intelectual e espiritual. Segundo ele, precisamos compreendê-la levando em conta a enorme expansão de tudo que está associado a ela. Sua penetração em nossas vidas é tão evidente que ela não pode mais ser estudada como uma variável secundária ou dependente. Ela não é um componente subordinado, ela é eminentemente interpelativa, constitutiva das nossas formas de ser, de viver, de compreender e de explicar o mundo. (apud CANDAU, 2000, p. 33-34)

Em seu artigo “A cultura antes do ciberespaço”, o professor Marcelo Bolshaw

Gomes (1997), da UFRN, traz diferentes definições para o termo “cultura”, que

literalmente significa “lavoura”, “cultivo dos campos”, mas que também pode

significar “instrução”, “conhecimentos adquiridos”. Cultura é uma palavra latina que

surgiu, segundo ele, em Roma no início do nosso milênio; antes disso, os grego

usavam o termo “máthêma” para designar “algo abstrato”, em oposição à concretude

do termo “natureza”. Num sentido antropológico, o termo “cultura” aparece pela

primeira vez em 1793, no dicionário alemão Adelung, no verbete “Kultur”, como: “A

cultura é o aperfeiçoamento do espírito humano de um povo”. Ainda, conforme

explicação do professor Gomes,

Assim, haveriam diferentes níveis de “aperfeiçoamento espiritual” entre as etnias e subentende-se que cada povo teria um determinado grau de desenvolvimento nesta escala. Desde o início a noção de cultura foi etnocêntrica porque desqualificava as sociedades ‘primitivas’ e tradicionais frente a sua própria e suposta superioridade cultural (na verdade: superioridade militar, tecnológica e científica). A partir da Revolução Francesa, com o aparecimento da CIVILIS ou do ideal de cidadania, o termo “cultura” será freqüentemente associado à idéia de um sistema de atitudes, crenças e valores de uma sociedade e posto à noção de “civilização”, geralmente visto como seu complemento material. Por volta de 1850, o termo “cultura” passou a ser utilizado para distinguir a espécie humana dos outros animais. Desde então, a noção de cultura passaria por diversas transformações e metamorfoses.

Ainda abordando as transformações da noção de ‘cultura’, vale lembrar da

proposta de E. Sapir, segundo a qual “cultura é o conjunto de atributos e produtos

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resultantes das sociedades que não são transmitidos através da hereditariedade

biológica” (apud GOMES, 1997). Gomes ainda destaca as diferentes abordagens,

como a do Positivismo, por exemplo, que tende a definir cultura em termos de

dominação e controle científico da natureza; a do Marxismo, que traz a idéia da luta

de classes e da relação dialética entre determinismo e ação social, com destaque

para os modos de produção; a psicanálise de Freud, que trouxe o reconhecimento

das forças ativas e destrutivas do inconsciente e seus desdobramentos para a vida

em sociedade; o Estruturalismo, representado por Claude Levi Strauss, que

aprofunda análise da tensão entre natureza e cultura, enfatizando agora a

impossibilidade de se impor uma cultura a outra; e o pós-estruturalismo de Michel

Foucault e Deleuze, que discutiram profundamente os processos e práticas do poder

na sociedade e seus vínculos com a produção do saber (GOMES, 1997).

Trabalha-se aqui com as noções estruturalistas e pós-estruturalistas de

cultura, que levam em consideração a diversidade cultural, as implicações e tensões

entre discursos, práticas e instituições sociais, bem como a íntima relação entre

saber e poder. Dessa maneira, entende-se que cultura não é propriedade exclusiva

de um indivíduo nem é algo que se possa simplesmente possuir, mas experiência

social e articulada com uma complexa rede de simbolismos, valores, relações,

discursos, práticas e instituições.

Ao mesmo tempo que essas idéias e noções sobre cultura vão sendo

construídas e reconstruídas, percebe-se quanto as constantes e rápidas

aproximações e encontros interculturais que acontecem no mundo atual têm

provocado interferências entre culturas, fenômeno diretamente relacionado com a

construção das identidades. Essas interferências têm gerado freqüentes conflitos e

questionamentos, propiciando interessantes estudos e intensos debates sobre a

identificação cultural das sociedades humanas e, mais recentemente, do indivíduo

moderno e pós-moderno.

Nessa perspectiva, e com a preocupação de atender a respeito da forma

como se dá a construção da identidade – num mundo cada vez mais complexo e

atravessado pelas tensões multiculturais causadas pela globalização – e entender a

produção da cultura, diante de uma vasta gama de diferentes possibilidades de

estruturação social, os Estudos Culturais vêm contribuir para o estudo do fenômeno

social das construções identitárias, afirmando que a identidade não é única e nem

fixa. Ela é múltipla e maleável. Múltipla no sentido de que ela pode ser nacional,

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étnica, de gênero, de idade, classe social e de indivíduo. Maleável porque ela não é

uma experiência pronta, acabada, mas um processo histórico, dinâmico sujeito a

ininterruptas alterações.

Relacionando a noção de cultura com a área da educação, Tomaz Tadeu da

Silva argumenta que a “cultura” apresenta-se com diferentes conotações e

diferentes sentidos nas várias vertentes da teoria educacional. Segundo ele:

Na teorização introduzida pelos Estudos Culturais, sobretudo naquela inspirada pelo pós-estrururalismo, a cultura é teorizada como campo de luta entre os diferentes grupos sociais em torno da significação. A educação e o currículo são vistos como campos de conflito em torno de duas dimensões centrais da cultura: o conhecimento e a identidade. (SILVA, 2000, p. 32)

Entretanto, é preciso que se diga também que, pensar em cultura e identidade

na modernidade transformada pelos avassaladores processos de globalização é

pensar nas relações multiculturais e no manejo das diferenças entre as diversas

formas de prática e organização social. As discussões sobre identidade são

diretamente afetadas pela fenômeno da globalização, próprio do mundo pós-

moderno (Hall, 2004), já que, como afirma Giddens: “A modernidade é

inerentemente globalizante” (GIDDENS, 1991, p. 69).

Ora, a globalização traz uma situação paradoxal na medida em que se

percebe uma tendência a minimizar a diversidade cultural por meio da difusão da

cultura de massa (televisão, jornais, rádio, música, Internet, cinema e revistas), o

que ocasiona os diversos descentramentos, as fragmentações culturais e as

múltiplas reações no sentido de se proteger a cultura local e regional. Entende-se

que esses e outros fenômenos – inerentes à cultura – contribuem para o processo

de formação e transformação das identidades.

3.2 Identidade e identidade cultural: a complexidade dos conceitos

“Em uma primeira aproximação, parece ser fácil definir ‘identidade’. A identidade é

simplesmente aquilo que se é: ‘sou brasileiro’, ‘sou negro’, ‘sou heterossexual’,

‘sou jovem’, ‘sou homem’. A identidade assim concebida parece ser uma

positividade (‘aquilo que sou’), uma característica independente, um ‘fato’

autônomo. Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é

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auto-contida e auto-suficiente. (Tomaz Tadeu da Silva, 2005, p. 74)

Ao longo da vida e das convivências que desenvolvemos, vamos construindo

a imagem que de nós fazemos. E essa construção, que é discursiva e

impermanente, se dá em meio a deslocamentos, em meio a novas e constantes

identificações provocadas por atitudes, comportamentos, valores e discursos

elaborados na interação com pessoas e instituições com as quais mantemos contato.

Disso resulta o que se pode chamar de “conjunto de características e circunstâncias”

que nos individualizam, que nos identificam.

A cada dia percebe-se quão difícil é afirmar uma identidade, tendo em vista as

constantes e aceleradas transformações que o mundo vem sofrendo, seja pelos

movimentos da modernidade e da globalização, de modo que tudo nos é

apresentado numa espantosa velocidade acompanhada pela transitoriedade, seja

pelo atravessamento da mídia. Quanto mais rápido as coisas, as notícias, as

informações nos chegam, mais provisórias elas se tornam.

Buscando entender melhor o termo identidade, vemos que Tomaz Tadeu da

Silva (2005) aborda-o como sendo a construção da subjetividade do indivíduo, que

está diretamente ligada ao seu currículo, portanto é formada no decorrer de sua

“corrida”, de seu percurso. Então, durante a vida, segundo o autor, o indivíduo

constrói sua identidade.

Acrescenta-se também que a identidade construída pelo indivíduo durante em

seu trajeto de vida esconde uma pluralidade de vozes em consonância e dissonância

na medida em que inclui elementos de identificação étnica, etária, de gênero e de

nacionalidade.

Também, em Identidade e diferença, a perspectiva dos estudos culturais,

Silva, ao nos dizer o que a identidade é e o que ela não é, reafirma o caráter

dinâmico e instável das construções identitárias. Isso nos permite maior clareza

sobre o termo e seu conceito:

Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente,

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inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (2005, p. 96-97).

Como também considera Stuart Hall (2004), o conceito de identidade é

demasiadamente complexo na modernidade tardia, além de pouco desenvolvido e

muito menos compreendido dentro da ciência social contemporânea, pois as

sociedades modernas têm passado por transformações muito rápidas em suas

estruturas. São sociedades de permanentes e rápidas mudanças, que ocasionam a

fragmentação das antigas e sólidas paisagens culturais de classe, gênero, etnia e

nacionalidade, o que afeta e transforma, também, nossas identidades pessoais.

Distinguindo três concepções de sujeito desenvolvidas ao longo da história da

modernidade, Stuart Hall delineia-nos a compreensão do conceito de identidade, a

saber: a do sujeito concebido pela perspectiva iluminista, a do sujeito na perspectiva

sociológica e a do sujeito na modernidade tardia. Segundo ele, o sujeito do

iluminismo era totalmente centrado, unificado em seu caráter racional e autônomo,

nascia e se desenvolvia, mas permanecia essencialmente o mesmo – “idêntico”. O

“eu” do sujeito iluminista era a sua identidade, dotada de razão, consciência e ação

(HALL, 2004, p. 10-11).

O sujeito concebido pelo iluminismo era, então, consciente de seus atos e

constituído de uma essência interior que definia – ou identificava – seu caráter e que,

supostamente, revelava sua identidade, até então tida como verdadeira e única.

Esse sujeito desenvolvia suas capacidades, mas sempre numa concepção

individualista, autônoma e auto-centrada.

A perspectiva sociológica do sujeito surgiu posteriormente como aquele cuja

essência interior era formada e modificada continuamente devido aos contatos com a

sociedade organizada, exterior. Estavam estampadas, na noção sociológica de

sujeito, a efervescência e a complexidade do mundo moderno, que passava a levar

em consideração os movimentos sociais e a inter-relação entre o indivíduo e a

comunidade a que pertencia. Já não mais auto-suficiente, esse tipo de sujeito tem

seu “eu” formado por meio de modificações constantes em decorrência do

permanente diálogo com identidades, instituições e práticas culturas as mais

diversas. No dizer de Hall, é um sujeito “suturado” e estabilizado pela identidade à

estrutura do mundo em que habita e com o qual se unifica:

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O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. (HALL, 2004, p. 11)

Essa noção de sujeito, o sociológico, rompia com a concepção do indivíduo de

identidade centrada, racional e unificada. Ele apresenta-se com uma identidade

construída pela interação com outros sujeitos, outras identidades. Isso resultou no

descentramento do sujeito cartesiano, que se tornou mais limitado e dependente

diante da complexidade do mundo moderno, embora conservando seu “eu real”, sua

essência interior. Assim, a identidade do sujeito sociológico alinhava-se – ou nivelava

– a subjetividade com a objetividade no mundo social e cultural, ao mesmo tempo

em que internalizava valores e significados que lhe eram apresentados pelos

mundos culturais “exteriores” (HALL, 2004, p. 11-12).

A terceira noção, a do sujeito na modernidade tardia, não tem identidade fixa,

permanente. Ela é móvel: forma-se e transforma-se continuamente na inter-relação

com os inúmeros sistemas culturais que a rodeiam. Antes unificada, “suturada” ao

seu mundo e com a identidade estável, hoje a noção de sujeito apresenta-se

fragmentada, o que faz do indivíduo um ser composto de identidades diversas. Essa

fragmentação, muitas vezes, coloca-o em situações contraditórias, confundindo-lhe

seu próprio “eu”. Essa concepção de sujeito marca o indivíduo da modernidade

tardia e seus “eus”, um sujeito que se metamorfoseia diante das repentinas

mudanças sociais, das influências multiculturais e das realidades transitórias do

mundo contemporâneo. Tudo isso faz do indivíduo da modernidade tardia um sujeito

marcado pela indeterminação e pela transitoriedade, mais reflexivo, conforme

argumenta Anthony Giddens em As conseqüências da modernidade. Ele diz:

A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter. (GIDDENS, 1991, p. 45)

As várias identidades que o sujeito pós-moderno interioriza durante o seu

percurso esbarram-se e “empurram-se” em direções incertas e diversas. Daí que

O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos

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em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL, 2004, p. 12)

Pelo exposto acima, percebe-se que Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall

comungam do mesmo raciocínio para definirem identidade, principalmente quando

afirmam ser, a identidade, uma construção, uma ação performativa, logo, inacabada.

Conforme palavras de Hall:

O sujeito e a identidade são apenas dois dos conceitos que, tendo sido solapados em duas formas unitárias e essencialistas, proliferam para além de nossas expectativas, através de formas descentradas, assumindo novas posições discursivas. (HALL, 2003, p. 111).

Convém dizer que essas concepções sobre identidade pessoal e cultural,

embora diferentes entre si, incluem a idéia de retrato, de identificação: o termo

“identidade” pode ser entendido, então, como a representação do que somos, do que

nos tornamos. Pode-se entender “identidade”, portanto, como uma questão de

conhecimento, uma questão de currículo – etimologicamente, a palavra “currículo”

vem do latim curriculum, que significa “pista de corrida” –, pois é nele que ela se forja

e porque ele é texto, é discurso, é território, trajetória, espaço, viagem, percurso, é

documento que identifica.

O sujeito concebido na modernidade tardia vivencia as incertezas quanto a

seus papéis relativos à sua nacionalidade, etnia, gênero e classe social, sentindo-se

um sujeito provisório, como tudo ao seu redor, fragmentado e em constante

transformação. Essa concepção de sujeito é fruto dos avanços na teoria social e nas

ciências humanas – assunto de que trataremos a seguir – a partir de Marx e sua

crítica do capitalismo, Freud e a descoberta da psicanálise, os estudos lingüísticos

de Saussure, as idéias de Foucault, além dos movimentos populares – o feminismo e

vários movimentos em luta pelos direitos civis –, que descentraram o sujeito

cartesiano.

3.3 Movimentos descentralizadores do sujeito

“Uma característica de deslocamento é nossa

inserção em cenários culturais e de informação globalizados, o que significa que familiaridade e

lugar estão muito menos consistentemente vinculados do que já estiveram.

(...) O correlativo do deslocamento é o

desencaixe. Os mecanismos de desencaixe

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tiram as relações sociais e as trocas de informação de contextos espaço-temporais

específicos, mas ao mesmo tempo propiciam novas oportunidades para sua inserção”.

(GIDDENS, 1991, p. 141-142)

A “interação” entre o indivíduo e a sociedade se dá por processos. Esses

processos acontecem por meio de estágios de mudança que geram crises,

deslocando as estruturas e as referências que antes ancoravam socialmente esse

indivíduo.

Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade (2004, p. 34-46),

chama de descentramento a todo esse movimento identitário do indivíduo moderno,

que torna as identidades “fragmentárias”.

A partir do paradigma estruturalista, que tem raízes na visão materialista do

mundo social – de bases fundamentadas nos estudos e idéias de Karl Marx –, que

por sua vez propõe uma crítica ao status quo e sugere ao homem uma prática mais

politizada de vida, a noção de indivíduo se fez mudar. Antes de Marx, a realidade da

vida humana era pautada no idealismo de Hegel, filosofia na qual o mundo material e

objetivo só pode ser compreendido plenamente através do aperfeiçoamento de sua

verdade espiritual ou subjetiva. Os estudos desenvolvidos por Karl Marx centram-se

em pontos fundamentais de análise da realidade: o modo de produção, a estrutura

econômica e o processo histórico das sociedades. O indivíduo, portanto, se vê

pressionado por forças e circunstâncias que estão além do seu controle e que na

verdade o constroem.

Conforme Hall, na modernidade ocorreram cinco grandes avanços na teoria

social e nas ciências humanas que modificaram o pensamento humano e

provocaram impacto, descentrando o sujeito cartesiano. Hall diz que o primeiro

movimento importante de descentramento se deu pelo impacto das idéias de Karl

Marx, segundo as quais os “homens fazem a história sob as condições que lhes são

dadas”, ou seja, Marx coloca as relações sociais de produção no centro de seu

sistema teórico, e isso afeta a filosofia moderna no que diz respeito à autonomia do

ser humano (HALL, 2004, p. 34-35). Embora os escritos de Marx sejam do século

XIX, na década de sessenta do século XX é que foram redescobertos e

reinterpretados a partir de sua máxima: “homens fazem a história, mas apenas sob

as condições que lhes são dadas”. A teoria marxista rejeita a “noção de essência

universal do homem, como alma, alojada em cada sujeito individual”, que surge com

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o nascimento e o acompanha intacta até a morte. Rejeita o indivíduo com faculdades

e necessidades definidas. A partir das idéias marxistas a noção de indivíduo, tida até

então, cai por terra, dando lugar à idéia do indivíduo construído ou produzido em

interação com uma variedade incontável de relações sociais. As idéias marxistas

tiram o ser humano da posição central que ocupava e colocam as relações sociais

(modos de produção, ou seja, os circuitos do capital). O anti-humanismo de Marx

“expulsou as categorias filosóficas do sujeito do empirismo” reinante até então. A

partir de Marx, a produção desempenha o papel central na base econômica da

sociedade moderna.

O segundo e grande movimento descentralizador do pensamento ocidental

moderno deu-se com a descoberta do inconsciente, por Sigmund Freud, que

questionou o “penso, logo existo” do sujeito cartesiano, causando profundo impacto

sobre o pensamento humano na modernidade. A teoria freudiana mostra que a

identidade do indivíduo não é fixa e unificada, ela é construída em meio a muitos

impulsos e forças do inconsciente (HALL, 2004, p. 36-39). Freud conectou a

psicanálise com a cultura, com o campo social. Nossa sexualidade, nossos desejos,

são formados no nosso inconsciente por processos psíquicos e simbólicos que não

se limitam aos ditames da razão. Na teoria freudiana o “eu” é o outro, é dividido, é

social. O sujeito freudiano é sempre posicionado em relação ao outro, é “alienado”,

separado, cindido. Segundo Hall, isso significa que

a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. As partes “femininas” do eu masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na vida adulta. (HALL, 2004, p. 38-39)

O terceiro movimento deu-se com o suíço Ferdinand de Saussure e sua

lingüística estrutural moderna, que sugere que os indivíduos não são os autores de

suas próprias afirmações, ou dos significados que expressam na língua, pois os

significados das palavras não são fixos em relação ao que existe fora da língua

(HALL, 2004, p. 40-41). Saussure argumentava que a língua preexiste a nós e, por

isso, ela é um sistema social e não individual que nos permite, por meio da utilização

de suas regras, produzir significados correspondentes a determinados sistemas

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culturais. Segundo Mikhail Bakhtin, em Marxismo e filosofia da linguagem, para

Saussure,

não há no nosso entender, senão uma solução para todas estas dificuldades (trata-se das contradições internas da “linguagem” como ponto de partida de sua análise): é preciso antes de tudo, instalar-se no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as demais manifestações da linguagem. Com efeito, em meio a tantas dualidades, só a língua parece suscetível de uma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito (F. de Saussure, Cours de linguistique générale, p. 24; itálicos de Saussure). (BAKHTIN, 1997, p. 85-86)

O quarto avanço que causa o descentramento da identidade e do sujeito

moderno vem por meio dos estudos do historiador e filósofo francês Michel Foucault,

que, realizando uma espécie de “genealogia do sujeito moderno”, destacou um novo

tipo de poder: o “poder disciplinar”, com base no poder dos regimes administrativos,

do conhecimento especializado dos profissionais e no conhecimento fornecido pelas

“disciplinas” das Ciências Sociais. Esse “poder disciplinar”, segundo Hall (2004, p.

41-43), ocorreu ao longo do século XIX e teve seu momento máximo no século XX,

trazendo consigo duas importantes preocupações: uma com a regulação, a vigilância

do indivíduo ou da população de um modo geral, e outra com o corpo e o indivíduo.

Foucault (apud HALL, 2004, p. 42-43) nos explica que tal poder disciplinador surgiu

juntamente com as modernas instituições que se desenvolveram durante o século

XIX e proliferaram-se, policiando e disciplinando as populações modernas. Quartéis,

escolas, igrejas, oficinas, hospitais, clínicas, etc. foram criados para

manter “as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os prazeres do individuo”, assim como sua saúde física e moral, suas práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina (...) (HALL, 2004, p. 42)

Comentando as idéias de Foucault, Stuart Hall chama atenção para a relação

que há entre poder e saber, do ponto de vista da história do sujeito moderno. Onde

há poder há resistência que individualiza cada vez mais o sujeito e envolve mais

intensamente seu corpo. O poder circula em uma relação com o saber, ao ponto de

motivar não só o isolamento e a individualização do sujeito – o que é um paradoxo,

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tendo-se em vista que esse poder é produto das instituições coletivas modernas –,

mas, ao mesmo tempo, o envolvimento intenso do corpo desse sujeito que se cerca

de um meticuloso volume de documentos que, aparentemente, o identificam nas

sociedades modernas (HALL, 2004, p. 42-43).

O quinto e último movimento é representado pelo feminismo como crítica ou como

movimento social feminista, juntamente com os outros movimentos: os estudantis, os

movimentos pela paz, as lutas pelos direitos civis e todos os movimentos sociais que

surgiram na década de sessenta e que marcaram a modernidade tardia. Esses

movimentos, na opinião de Hall (2004, p. 45), apelavam cada qual para a identidade

que o sustentava, e isso fez nascer, historicamente, o que conhecemos como a

“política de identidade”.

O feminismo, especialmente, descentrou o sujeito cartesiano e sociológico,

modificando a noção de que homens e mulheres eram partes da mesma sociedade,

a “Humanidade” (HALL, 2004, p. 44-46). O movimento feminista questionou o

“privado” e o “público”, usando o slogan: “o pessoal é político”, com o qual abriu

várias contestações sociais sobre a família, a divisão do trabalho doméstico, a

sexualidade – aqui, politizando a subjetividade, a identidade e o processo de

identificação (como homens e mulheres, mães e pais, filhos e filhas), incluindo a

formação das identidades de gênero e sexuais. O feminismo, ao afirmar que “o

pessoal é político”, traz para a discussão pública temas até então considerados de

âmbito estritamente privado, re-significando, assim, o poder político e abrindo novos

espaços aos assuntos domésticos.

Todos esses movimentos intelectuais e sociais, segundo o autor, que a era

moderna produziu e produz em dado momento são causas e também efeitos da

modernidade, quando se quer focalizar a questão do sujeito e da identidade nos

processos de sua construção.

Stuart Hall (2004) finaliza dizendo que, embora haja quem ainda não aceite as

implicações intelectuais desses avanços do pensamento moderno, seus efeitos são

inevitáveis e profundamente desestabilizadores sobre as idéias e sobre a forma

como a questão da identidade e do sujeito são vistas:

Deixem-me lembrar outra vez que muitas pessoas não aceitam as implicações conceituais e intelectuais desses desenvolvimentos do pensamento moderno. Entretanto, poucas negariam agora seus efeitos profundamente desestabilizadores sobre as idéias da

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modernidade tardia e, particularmente, sobre a forma que o sujeito e a questão da identidade são conceptualizados. (HALL, 2004, p. 46)

3.4 A identidade cultural latino-americana na modernidade

“As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em

declínio. Novas identidades estão surgindo, deixando o indivíduo moderno fragmentado”

(HALL, 2004)

Segundo Stuart Hall, a modernidade imprimiu no sujeito moderno – e se

evidencia ainda mais no sujeito pós-moderno –, várias identidades que são entre si

contraditórias e que tentam acomodar-se em direções diferentes. Nas condições

sociais modernas, o indivíduo forja a sua auto-identificação. Isso em meio aos

deslocamentos, aos descentramentos de que ele fala quando tenta explicar o

processo de formação da identidade do sujeito de hoje (HALL, 2004).

E é esse terceiro sujeito – o da modernidade tardia – o foco maior da presente

pesquisa, que se destina a estudar a atual identidade do sujeito latino-americano,

sua identidade cultural. A polêmica figura da poeta chilena Violeta Parra, já

apresentada e que conheceremos melhor no decorrer desta pesquisa, representa

claramente esse sujeito cultural da América Latina na era moderna. As canções de

Violeta Parra refletem suas experiências vivenciadas durante seu percurso, durante

sua vida, num tempo de polêmicos processos de modernização social, de

instabilidade política e de transformação educacional.

As palavras de Stuart Hall quanto às representações e interpelações nos

vários sistemas culturais nos asseguram de que, no mundo atual, globalizado, a

identidade encontra-se mergulhada em um processo de transformação e mudança

incessante, motivado pela prática das relações inter-culturais (HALL, 2004). Esse

processo teve início na segunda metade do século XIX, a partir do pensamento

materialista de Karl Marx, intensificando-se do século XX até hoje, com a

interpretação de seus textos, que tinham como idéia principal centralizar – no

pensamento humano – as relações sociais e de produção. Na doutrina filosófico-

materialista de Marx a produção desempenha o papel central na base econômica da

sociedade.

Segundo Abbagnano, em seu dicionário de filosofia,

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O pressuposto desse cânon é o ponto de vista antropológico defendido por Marx, segundo o qual a personalidade humana é constituída intrinsecamente (em sua própria natureza) por relações de trabalho e de produção de que o homem participa para prover às suas necessidades. A “consciência” do homem (suas crenças religiosas, morais, políticas, etc.) é resultado dessas relações, e não pressuposto. (ABBAGNANO 2003, p. 652)

Essas mudanças, essas transformações, acredita-se, continuam e

continuarão acontecendo, indefinidamente, enquanto houver interculturalidade.

No caso da América Latina – contexto imediato da presente pesquisa –, onde

a modernidade não se manifesta da mesma forma que na Europa, por exemplo, ou

nos Estados Unidos, torna-se difícil, porém muito importante, tentar traçar esse

cenário de mudanças e interferências, principalmente destacando-se o período e o

espaço em que viveu Violeta Parra – Chile, de 1917 á 1967 –, aqui objeto de

estudos e sujeito representativo da identidade cultural latino-americana.

Nós, latino-americanos, somos o resultado de uma mistura, de um hibridismo

étnico e cultural constante e, dessa maneira, demonstramos, hoje, ter nossa própria

trajetória, formada no interior do nosso próprio sistema social, mas sempre tendo

como fundo o outro, o estrangeiro, o europeu, o norte-americano, o oriental etc.

Essa autonomia latino-americana de produção cultural, essa “trajetória

própria” de nossos países começa a organizar-se, segundo Néstor García Canclini

(2006), por volta da década de 1930 com As camadas médias surgidas no México a partir da revolução, as que têm acesso à expressão política com o radicalismo argentino, ou em processos sociais semelhantes no Brasil e no Chile, constituem um mercado cultural com dinâmica própria. Em todos esses países, migrantes com experiência na área e produtores nacionais emergentes vão gerando uma indústria da cultura com redes de comercialização nos centros urbanos.Junto com a ampliação dos circuitos culturais que a alfabetização crescente produz, escritores, empresários e partidos políticos estimulam uma importante produção nacional. (CANCLINI 2006, p. 84)

Mas, entre as décadas de 1950 e 1970 é que a modernização socioeconômica na América Latina se mostra firme na literatura, nas ciências sociais e na arte.

Ainda conforme nos ensina Canclini, nesse período pelo menos cinco fenômenos podem ser apontados como agentes motivadores de mudanças estruturais:

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a) O início de um desenvolvimento econômico mais sólido e diversificado, que tem sua base no crescimento de indústrias com tecnologia avançada, no aumento de importações industriais e de emprego de assalariados.

b) A consolidação e expansão do crescimento urbano iniciado na década de 40.

c) A ampliação do mercado de bens culturais, em parte por causa das maiores concentrações urbanas, mas sobretudo pelo rápido incremento da matrícula escolar em todos os níveis: o analfabetismo se reduz a 10 ou 15% na maioria dos países, a população universitária sobe, na região, de 250.000 estudantes em 1950 para 5. 380.000 no final da década de 70.

d) A introdução de novas tecnologias comunicacionais, especialmente a televisão, que contribuem para a massificação e internacionalização das relações culturais e apóiam a vertiginosa venda de produtos “modernos”, agora fabricados na América Latina: carros, aparelhos eletrodomésticos etc.

e) O avanço de movimentos políticos radicais, que confiam que a modernização possa incluir transformações profundas nas relações sociais e uma distribuição mais justa dos bens básicos. (CANCLINI, 2006, p. 85)

Assim, vê-se que, basicamente, o desenvolvimento urbano e o avanço dos

meios de comunicação de massa foram os elementos propulsores da modernização

na América Latina, bem como da hibridação da nossa cultura, promovendo a fusão

entre a tradição e a modernidade.

Hoje, em meio à atual explosão das diferenças culturais, étnicas, nacionais,

sexuais, históricas, educacionais etc. que tão velozmente assistimos e que abrem

discussões sobre a construção e representação da identidade cultural, na

perspectiva latino-americana, emerge uma importante indagação: como se

apresenta o latino-americano moderno em seu percurso, enquanto sujeito exposto

ao multiculturalismo e à globalização?

Buscou-se, nos textos de Canclini, a resposta a partir de uma definição.

Canclini, antes de definir “hibridação”, diz que, ao sair da biologia para as ciências

sociais, a palavra “híbridação” ganhou polivocidade. Em questões religiosas, por

exemplo, continua-se usando “sincretismo”, em antropologia e história, “mestiçagem”

e em música usa-se “fusão”. Diz, ainda, que : A multiplicação espetacular de hibridações durante o século XX não facilita precisar do quê se trata. (CANCLINI 2006, p. XX)

Mas, ele explica que parte de uma primeira definição:

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Entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos ou práticas. (CANCLINI 2006, p. XIX)

Esses processos socioculturais de combinação de estruturas e geração de novas

é o nosso território contextual, pois somos oriundos de uma matriz colonialista e

imperialista, difundida desde o século XVI até meados do século XX, que trouxe

consigo práticas políticas, econômicas, educacionais e de organização social que

seguem o modelo capitalista europeu, que ao longo do tempo se institucionalizaram

e se mesclaram com elementos ameríndios e africanos. Essas práticas, construídas

inicialmente pela modernidade européia e norte-americana, proliferaram-se pelo

mundo afora, impondo-se, inclusive, onde havia sinais de resistência, criando ideais

de progresso e ao mesmo tempo de futuros desejos emancipatórios das nações

rumo à “modernidade”. Fronteiras apagaram-se no cenário cultural, favorecendo a

hibridação. O que anteriormente era considerado distinto e separado, hoje não mais,

conforme nos afirma Silva em Documentos de identidade: uma introdução às

teorias do currículo, no seu artigo “A pedagogia como cultura, a cultura como

pedagogia”:

O que caracteriza a cena social e cultural contemporânea é precisamente o apagamento das fronteiras entre instituições e esferas anteriormente consideradas como distintas e separadas. (SILVA, 2005, p. 141)

Além das matrizes colonialista e imperialista, as práticas européias e

estadounidenses delinearam os primeiros traços do perfil cultural da América Latina

de hoje. Um continente constituído de culturas híbridas, culturas resultantes de

misturas étnicas também chamadas mestiçagem. Além desse hibridismo, nosso

continente é lugar de sincretismos de crenças e religiões e outros matizes modernos

como o artesanato e a industrialização, o popular e o erudito.

Nas palavras de Canclini,

A mistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de ingleses e franceses, com indígenas americanos, à qual se acrescentaram escravos trasladados da África, tornou a mestiçagem um processo fundacional nas sociedades do chamado Novo Mundo. Na atualidade, menos de 10% da população da América Latina é indígena. São minorias também as comunidades de origem européia que não se misturaram com os nativos. Mas a importante história de

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fusões entre uns e outros requer utilizar a noção de mestiçagem tanto no sentido biológico – produção de fenótipos a partir de cruzamentos genéticos – como cultural: mistura de hábitos, crenças e formas de pensamento europeus com originários das sociedades americanas. (CANCLINI 2006, p. XXVII)

Para Canclini, o cenário da hibridação cultural atual se mostra tão fortemente

caracterizado que é impossível existir alguma identidade pura, dada a facilidade e

fluidez das comunicações, facilitando a apropriação de elementos de uma cultura

por outra:

De todo modo, a intensificação da interculturalidade favorece intercâmbios, misturas maiores e mais diversificadas do que em outros tempos; por exemplo, gente que é brasileira por nacionalidade, portuguesa pela língua, russa ou japonesa pela origem, e católica ou afro-americana pela religião. Essa variabilidade de regimes de pertença desafia mais uma vez o pensamento binário a qualquer tentativa de ordenar o mundo em identidades puras e oposições simples. (CANCLINI 2006, p. XXXIII)

Essa intensificação das relações culturais, esses intercâmbios e misturas

diversas são ao mesmo tempo território e contexto social e histórico que deram

origem ao sujeito latino-americano moderno, um sujeito mestiço, híbrido de

nacionalidade, cor e identidade.

3.5 O discurso como instrumento que identifica

“No contexto da crítica pós-estruturalista, o

termo é utilizado para enfatizar o caráter lingüístico do processo de construção do mundo social. Particularmente, o filósofo

francês Michel Foucault argumenta que o discurso não descreve simplesmente objetos que lhe são exteriores: o discurso ‘fabrica’ os

objetos sobre os quais fala. Assim, ele analisou, por exemplo, a sexualidade e a loucura como

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efeitos de certos ‘saberes’, vistos como formas particulares de discurso”.

(SILVA, 2000, p. 43)

Ao buscar-se a identidade de um grupo social ou de um indivíduo, caminha-

se pelo terreno das características que o definem e que o fazem diferente com

relação a outros grupos e a outros indivíduos.

Segundo Tomaz Tadeu da Silva, a identidade se constrói por meio das

relações e do discurso. Em seu artigo “Currículo e identidade social: territórios

contestados”, que fala sobre as políticas de identidade, regimes de representação e

currículos, Silva (2003) nos diz – e vemos que ele concorda com Foucault – que o

discurso dá significado às coisas no mundo social, cria representações. E essa

questão de representação, segundo ele, ocupa o principal lugar na política das

identidades.

Igualmente, Kathryn Woodward argumenta que tanto as práticas de

significação quanto os sistemas simbólicos fazem parte dos sistemas de

representação. Compreendidos como processos culturais, fornecem identidades e

ao mesmo tempo sentido àquilo que somos:

Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu queria ser? Quem eu quero ser? (WOODWARD, 2005, p. 17)

Nessa perspectiva, o discurso age produzindo significado, produzindo

identidades e sujeitos, estabelecendo uma forte ligação com as relações de poder.

Conforme nos diz Silva, “os significados não pré-existem como coisas no mundo

social” :

É através dos significados, contidos nos diferentes discursos, que o mundo social é representado e conhecido de uma certa forma, de uma forma bastante particular é que o eu é produzido. E essa “forma particular” é determinada precisamente por relações de poder. (SILVA, 2003, p. 199)

O que equivale dizer –, parafraseando Roberto Machado quando, na “Introdução” de

Microfísica do poder, faz uma análise essencial das obras e teoria de Foucault,

dizendo que,

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o indivíduo, na sua particularidade, é uma produção do poder. E, nas sociedades modernas, as relações de poder – principalmente as relações de poder disciplinar – são positivas e não negativas, dependendo da maneira como são trabalhadas e da tecnologia empregada. (MACHADO, in: FOUCAULT, 2005, p. XIX).

Continuando nossa análise da relação entre discurso e poder no terreno da

identidade cultural individual ou coletiva, vemos em Mariza Vorraber Costa que:

As sociedades e culturas em que vivemos são dirigidas por poderosas ordens discursivas que regem o que deve ser dito e o que deve ser calado e os próprios sujeitos não estão isentos desses efeitos.

(...) Quando se descrevem, explicam, desenham ou contam coisas, quando variadas textualidades falam sobre pessoas, lugares ou práticas, estes estão sendo inventados conforme a lógica, o léxico, a semântica vigentes no domínio que produz o discurso. (VORRABER COSTA, 2000, p. 32-33)

As relações de poder, assim, desempenham importante papel na construção da

identidade – coletiva ou pessoal –, enquanto produtoras de subjetividade, pois as

sociedades modernas operam, segundo Foucault, uma “economia política da

verdade” de onde emanam a forma de discurso científico e as instituições produtoras

deste discurso. Por isso, para ele

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela escolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2005, p. 12)

Se as relações sociais e o discurso constroem a identidade, constroem o

sujeito, ainda no campo da representação é importante dizer que a literatura assume

um dos importantes locais de manifestação identitária de qualquer sociedade.

Universalmente, as sociedades conservam entre si uma relação de

semelhança e de diferença, que vão sedimentando-se de acordo com seus

respectivos contextos históricos, políticos e sociais – de acordo com “o estatuto

daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro” (FOUCAULT,

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2005), permitindo-lhes assumir uma determinada identificação sociocultural. Essa

identificação se reflete em várias manifestações, inclusive na literatura que tais

sociedades produzem e/ou que as representam. Ora, a construção dessa

identificação é particularmente visível na literatura, por seu caráter altamente

discursivo e representacional.

É importante frisar, a partir do aparato crítico elaborado pelos Estudos

Culturais, que a própria identidade individual – a identidade do “eu” – resulta das

elaborações narrativas que se constroem ao longo do tempo, com base em hábitos e

conhecimentos que se adquirem por meio da interação entre o indivíduo e a

sociedade, bem como entre grupos sociais diversos e instituições estabelecidas nas

sociedades. Essa interação forma e transforma o sujeito, que assume identidades

diversas para diferentes lugares e situações, conforme nos explica Hall (2004, p. 12-

13):

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados e interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.

Assim, a interação entre os inúmeros sistemas culturais e suas respectivas

formas de representação e maneiras mútuas e diversificadas de interpelação influi

diretamente na formação e transformação cultural e identitária.

Silva (2000), repito, afirma que a “identidade cultural” é produzida

discursivamente e em conexão com a produção do “diferente”. É o que há de

marcante em um grupo social, que o faz diferente de outros:

(...) De acordo com a teorização pós-estruturalista que fundamenta boa parte dos Estudos Culturais contemporâneos, a identidade cultural só pode ser compreendida em sua conexão com a produção da diferença, concebida como um processo social discursivo. “Ser brasileiro” não faz sentido em termos absolutos: depende de um processo de diferenciação lingüística que distingue o significado de “ser brasileiro” do significado de “ser italiano”, de ser “mexicano” etc.

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(Silva, 2000, p. 69)

Podemos dizer que, quando afirmamos alguma coisa, estamos também negando

outra. Com isso estamos produzindo uma diferença, pois segundo Silva (2005, p.

76):

A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto das relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais.

Entende-se, então, que, no terreno da diversidade cultural, na presente era,

podemos compreender que “identidade” tem estreita relação com “diferença” e vice-

versa, e que ambas são, ao mesmo tempo, entidades independentes entre si,

segundo palavras de Tomaz Tadeu da Silva:

Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é concebida como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é: “ela é italiana”, “ela é branca”, “ela é homossexual”, “ela é velha”, “ela é mulher”. Da mesma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva, concebida como auto-referenciada, como algo que remete a si própria. A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe. (SILVA, 2005, p. 74)

Nessa perspectiva é que os termos identidade e diferença ganham relevância

nas teorias educacionais e pedagógicas atuais e no campo dos estudos sobre a

identidade. Nela eles são encarados como questões de conhecimento, embora

ainda sejam vistos como “temas transversais” nas propostas curriculares.

Por meio do diferente é que nos identificamos. Pode-se dizer que a

consciência que se tem de si mesmo vem depois da consciência que se tem do

“outro”. Por isso, embora distintas, a identidade e a diferença são inseparáveis e

dependentes entre si, pois é através do “outro” que o eu identifica-se a si mesmo.

É por meio de uma série de negações sobre o “outro” que se afirma o que se

é, conforme nos explica Silva em seu artigo “A produção social da identidade e da

diferença”:

Da mesma forma, as afirmações sobre diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade. Dizer que “ela é chinesa” significa dizer que “ela não é argentina”, “ela não é japonesa” etc., incluindo a afirmação de que “ela não é brasileira”, isto é, que ela não é o que eu sou. As

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afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declaracões negativas sobre (outras) identidades. Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis. (Silva 2005, p. 75)

Sob uma ótica multicultural, pode-se dizer que o sujeito só se afirma a si próprio, só

se reconhece, por meio da noção de alteridade, por meio das observações que ele

faz do outro, do “diferente”.

3.6 O lugar da linguagem na identidade do sujeito

“Se a linguagem existe é que, por sob identidades e diferenças, há o fundo das

continuidades, das semelhanças, das repetições, dos entrecruzamentos naturais.”

(FOUCAULT, 1999, p. 169)

Um dos fatores que definem tanto a diferença quanto a identidade é a

linguagem, é o discurso. Nosso discurso, bem como o discurso do outro, nos

identifica. Ele é a parte central do processo de construção da identidade. E essa

identificação só tem sentido em relação a outras identidades discursivas.

Vivemos em sociedade e é nela que reside a “heterogeneidade subjetiva”. É

na sociedade que se constrói o sujeito que atualmente apresenta-se heterogêneo,

complexo e conflituoso. Um sujeito tecido na cultura, na sociedade e enredado na

linguagem. Um sujeito polifônico, de identidade fragmentada.

O sujeito da modernidade não é mais homogêneo, logocêntrico, igual a si

mesmo, como era o sujeito na concepção de Descartes, segundo Maria José R.

Faria Coracini (2003). Ele é um sujeito heterogêneo perpassado – inconscientemente

– por desejos recalcados em função dos ditames da sociedade, recalques que se

irrompem via simbologia da linguagem. O sujeito mestre e dono de si mesmo e de

seu discurso, o sujeito cartesiano, transforma-se em sujeito psicanalítico, reflexivo,

complexo e heterogêneo, que tem na linguagem um instrumento para estabelecer

significações, para nomear e ser nomeado, para criar relações de poder e de saber,

para se identificar.

É por meio da linguagem que articulamos uma história pessoal em momentos

de identificação que se alternam e alteram-se constantemente, pois, conforme

Coracini:

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Ora, se considerarmos o sujeito enquanto constitutivamente cindido, heterogêneo, polifônico, atravessado pelo inconsciente e, portanto, pouco afeito ao controle de si mesmo e do outro, já que é habitado por outros – sujeito psicanalítico, em que o outro é visto como inerente à própria identidade do sujeito (ou à própria subjetividade) – e se considerarmos que a manifestação do inconsciente se dá via simbólico, através da linguagem... (Coracini, 2003, p. 150).

Assim, pensar em identidade e linguagem na perspectiva da modernidade

demanda perceber que ambas, identidade e linguagem, estão vinculadas ao poder e

ao saber e que a linguagem é um meio que torna acessível a realidade das coisas.

Mas, convém lembrar também que, segundo Silva em seu artigo A produção social

da identidade e da diferença,

A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (SILVA, 2005, p. 96-97)

Ora, a linguagem é permeada por regras históricas e anônimas que governam não

só o que deve ser dito, quando e quem deve dizer, mas o que deve ser calado,

quando e quem deve calar. Daí, também, o dizer que o sujeito da modernidade é

“assujeitado”, conforme Foucault:

(...) ”sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento” (p. 235) —, Foucault (1995) se refere a um sujeito capturado, que nas tramas históricas do poder e do discurso torna-se sujeito a. Em pronunciamento posterior, ele afirma que “as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento” (p. 8). (apud COSTA, 2000, p. 31)

Ainda, conforme o panorama teórico do pensamento foucaultiano sobre o

lugar “das palavras e das coisas”, o lugar “da ordem do discurso” em nossas

identidades culturais modernas, entende-se que a linguagem deve ser concebida

não somente como narrativa oral ou textual, não apenas como discurso, visto que a

própria língua está diretamente ligada à formação da identidade. A linguagem, aqui,

deve ser entendida como toda forma de expressão, toda manifestação criativa,

inventiva e que dá sentido às coisas. Essa forma de expressão, seja ela qual for,

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“representa” o seu sujeito e o outro, identifica-o, fala por ele, mesmo não sendo uma

expressão verbal.

3.7 Multiculturalismo e globalização

Segundo Stuart Hall (2003), o verdadeiro significado do multiculturalismo,

embora seja um termo já universalizado, se desconhece. Seu conceito é bem

complexo e permanece, todavia, obscuro:

Assim como outros termos relacionados – por exemplo, “raça”, etnicidade, identidade, diáspora – o multiculturalismo se encontra tão discursivamente enredado que só pode ser utilizado sob “rasura” (Hall, 1996a). Contudo, na falta de conceitos menos complexos que nos possibilitem refletir sobre o problema, não resta alternativa senão continuar utilizando e interrogando esse termo. (HALL, 2003, p. 51)

Essa obscuridade do termo talvez se deva à própria conexão entre os dois

fenômenos – multiculturalismo e globalização – e também à interconexão e à

interpenetração entre as diversificadas regiões e comunidades locais da era

moderna. A própria modernidade em si é inerentemente globalizante e globalizada.

Nessa esteira de raciocínio, chega-se às complexas relações entre

“envolvimentos locais e interação através da distância” (GIDDENS, 1991, p. 69),

oriundas da problemática do distanciamento tempo-espaço e da estrutura conceitual

desse distanciamento, cujo nível, na era moderna, é surpreendentemente maior do

que em eras precedentes. Daí o vínculo entre identidade, multiculturalismo e

globalização, representados pelos contemporâneos movimentos de defesa,

afirmação ou contestação identitária.

No contexto atual dos estudos sobre multiculturalismo, globalização e política

de identidade, que admite a diversidade de grupos sociais e culturais, de

características diferentes entre si, pode-se compreender “identidade cultural” como o

resultado de um processo social que produz tais diferenças por meio de discursos,

representações, práticas e instituições sociais. Ou seja, na perspectiva da

diversidade cultural, retrato da sociedade contemporânea, o discurso se produz pela

inter-relação.

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3.8 Cultura popular e identidade

A cultura popular ou folclórica, como uma das mais relevantes expressões

sociais na formação da identidade de um povo, carrega consigo um forte caráter de

construção identitária e educacional. Trata-se da memória das narrativas e práticas

seculares – às vezes milenares – de uma tribo, povo ou nação.

O grande dilema dos tempos atuais – tempos modernos e de globalização – é

justamente o de decidir entre preservar, abandonar ou reconstruir identidades

culturais, visto que a globalização que se nos apresenta como perspectiva de

progresso traz inevitavelmente desafios e ameaças a identidades tradicionalmente

estabelecidas.

O tema nos remete ao texto de Néstor García Canclini sobre a arte popular e

sua socialização, seu valor e representatividade cultural. Canclini nos faz entender,

inicialmente – e é relevante neste estudo sobre a identidade cultural latino-

americana moderna –, que arte popular não tem o mesmo significado de arte para

as massas. Esta é produzida à base da ideologia burguesa e com vistas ao lucro

dos que detêm os meios de difusão, enquanto a primeira, a arte popular, segundo

Canclini, é:

produzida pela classe trabalhadora ou por artistas que representam seus interesses e objetivos, põe toda a sua tônica de consumo não mercantil, na utilidade prazerosa e produtiva dos objetos que cria, não em sua originalidade ou no lucro que resulte da venda; a qualidade da produção e a amplitude de sua difusão estão subordinadas ao uso, à satisfação de necessidades do conjunto do povo. Seu valor supremo é a representação e a satisfação solidária de desejos coletivos. Levada às suas últimas conseqüências, a arte popular é uma arte de libertação. (1984, p. 49-50)

É preciso compreender que a cultura popular, ao mesmo tempo que é algo

que permanece vivo em nós e que tem fortes elementos do nosso passado histórico

que construiu nossa identidade primeira, é também uma recriação constante, pois

não há como segurar o tempo e impedir as mudanças históricas. Em outras

palavras, nossa identidade é marcada pelos saberes e fazeres da cultura popular,

tradicional, da cultura de nossos ancestrais, em constante releitura e atualização de

acordo com novos fenômenos históricos, econômicos, sociais e culturais.

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Ao dizer que a identidade se define historicamente e não biologicamente,

HALL (2004) confirma a idéia de que, em meio a fatos contextuais pouco aceitos e

às vezes “ameaçadores”, a identidade, durante seu trajeto e no exercício de

construção e reconstrução, muitas vezes invoca, no seu passado histórico, a origem

da qual ela parece não querer se desligar: a cultura popular, tradicional ou folclórica.

Nesse pensar, admite-se de fundamental importância a re-configuração e

preservação da cultura popular na construção identitária de um povo. Na verdade, a

cultura popular parece, em dado momento, misturar-se com a própria noção de

identidade nacional, ao mesmo tempo em que se mescla ao processo de construção

da identidade individual. A identidade individual se ancora na e por vezes se rebela

contra a identidade cultural

Em meio aos efeitos desestabilizadores provocados pelos deslocamentos e

descentralizações provocadas pela globalização, as identidades reagem na tentativa

de encontrar seu lugar de pertença e ancoragem no tempo e no espaço. Por isso, as

identidades inevitavelmente acabam procurando em suas raízes históricas como

forma de amenizar as sensações de pavor e ansiedade causados pela permanente e

veloz alteração de cenários sociais instalados nestes tempos de modernidade

globalizada.

Como nos fala Canclini em Culturas Híbridas, muitas vezes o culto ao

folclore, ao popular, surge como prática de defesa ou de resistência às contradições

contemporâneas.

Nessa época em que duvidamos dos benefícios da modernidade, multiplicam-se as tentações de retornar a algum passado que imaginamos mais tolerável. Frente à impotência para enfrentar as desordens sociais, o empobrecimento econômico e os desafios tecnológicos, frente à dificuldade para entendê-los, a evocação de tempos remotos reinstala na vida contemporânea arcaísmos que a modernidade havia substituído. A comemoração se torna uma prática compensatória: se não podemos competir com as tecnologias avançadas, celebremos nosso artesanato e técnicas antigas; se os paradigmas ideológicos modernos parecem inúteis para dar conta do presente e não surgem novos, re-consagremos os dogmas religiosos ou os cultos esotéricos que fundamentaram a vida antes da modernidade. (CANCLINI 2006, p. 166)

Pela cultura popular pode-se conhecer parte de uma nacionalidade, pois toda

nacionalidade é carregada de elementos populares, representados na culinária, nas

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roupas, na religiosidade, nas artes manuais e muito fortemente através da música,

da literatura, da dança, da pintura e das demais manifestações artístico-culturais.

A relação do indivíduo com o seu universo popular ou folclórico tem

significado muito profundo, embora às vezes determinadas práticas folclóricas sejam

mal interpretadas, consideradas apenas como entretenimento, uma amostra de

exotismo e peculiaridade. Essa relação, pois, dá sentido ao “existir” e gera identidade

não só ao participante, mas à comunidade na qual ele está inserido. Melhor dizendo,

a sensação que nos invade de “pertencer” a um lugar, a um grupo social, onde

fomos inseridos ou nascemos, essa sensação se cristaliza e nos dá identidade.

3.9 Cultura, identidade e educação

Um dos aspectos que não pode ser esquecido neste trabalho é que educação,

como parte integrante dos fenômenos culturais, também ajuda a construir

identidades e alteridades, seja pela representação de estereótipos, seja pela

disposição e arranjo do currículo, seja pelas vozes privilegiadas no ambiente escolar,

seja exatamente pelas vozes denegadas ou esquecidas no processo de ensino e

aprendizagem.

É preciso que se diga, no entanto, que a educação não está restrita ao que

ocorre dentro dos âmbitos escolares, na dimensão do ensino formal e acadêmico. A

cultura de uma sociedade constrói vários espaços em que a educação ocorre,

espaços não formais, espaços alternativos, instâncias não controladas pelo Estado

ou pela escola. E é nesse sentido que a obra de Violeta Parra reveste-se de

importância e caráter educacional.

A educação é também espaço contestatório e contraditório. Nela pode-se

perceber a presença dos órgãos oficiais do governo, mas também pode-se ouvir

vozes de resistência e discordância. Sob um processo educacional bastante rigoroso

e conservador pode mover-se um processo de crítica e rebeldia, um processo

revolucionário. A educação torna-se ao mesmo tempo veículo de ideologias

dominadoras e patrióticas ou de aspirações transformadoras e nacionalistas num

sentido mais popular e autêntico. Portanto, por meio da educação, formal ou

informal, criam-se posições de identificação cultural.

A cultura popular constrói saberes que muitas vezes passam ao largo da

escola ou da universidade − canções, histórias, épicos, poemas, pinturas, dramas,

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práticas sociais, familiares, artesanais. Dessa maneira, estudar o contexto, o

percurso histórico e social de um povo, estudar principalmente seu discurso e suas

produções culturais, como o fez Violeta Parra é, antes de tudo construir novos e

importantes saberes, que podem ser devolvidos ao povo ou transmitidos a outros

povos, a fim de que se preserve suas raízes históricas e identitárias.

Esse processo educacional não se dá no isolamento de uma nação, mas pressupõe

o contato e a interação com outras nações. No caso da América Latina, o processo de

modernização deu-se no contexto da “colonização” européia, que trouxe a imposição de

padrões e modelos já prontos. A influência norte-americana apenas deslocou o eixo

econômico e cultural, complicando ainda mais o processo e gerando uma espécie de crise

cultural, portanto identitária, que até hoje se faz sentir. Hoje esse processo torna-se ainda

mais complexo na medida em que a economia se torna globalizada.

Na América Latina contemporânea, os artistas, os compositores e escritores

dispõem de um diversificado e farto material advindo de diversas culturas

desenvolvidas ao longo da história. Matrizes indígenas, experiências rurais,

contribuições de migrações diversas − de África, da Europa, da Ásia − constituem

ingredientes valiosos nas múltiplas propostas identitárias para os povos do

continente. Nesse contexto, a educação pode se dar em vários níveis, sempre

agregando uma mistura de elementos díspares, heterogêneos e alógenos que estão

na base da cultura latino-americana e que se expandem ou se contraem. Poderia-se

pensar em “fusão” de culturas, no entanto trata-se de “convivência” das

manifestações culturais na contemporaneidade latino-americana, embora ela

apresente tendências ao sincretismo, dada a interação e a inter-relação de sistemas

culturais completamente diferentes dentro de um mesmo espaço.

3.10 A arte poética e musical de Violeta Parra como um projeto pedagógico

Nosso espaço latino-americano “pós-colonial” continua um território colonizado.

Agora, com esta diferença: colonizado pelo moderno imperialismo global das

grandes nações estrangeiras. Daí que estamos cada vez mais enredados em

sistemas globais de domínio e exploração. As construções identitárias culturais e

seus laboratórios educacionais se dão nesse contexto de presença, invasão e poder.

Ora, dentro dos múltiplos sistemas culturais que constituem a modernidade, o campo

da educação figura entre os mais delicados e cruciais, tendo em vista sua posição

estratégica na produção de identidades.

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Na América Latina, num tempo e num cenário em que se delineiam profundas

transformações, o século XX, surgem duas figuras de enorme relevância na

formação da identidade cultural do povo latino-americano: Paulo Freire e Violeta

Parra. Paulo Reglus Neves Freire, Paulo Freire, como é conhecido mundialmente.

Intelectual corajoso, um dos primeiros pensadores da educação que, conforme Peter

Mclaren (1999, p. 16),

(...) atentou integralmente para a relação entre educação, política, imperialismo e libertação. Considerado como o filósofo inaugural da pedagogia crítica, Freire conseguiu proceder a uma reorientação global da pedagogia, direcionando-a no sentido duma política radical de luta histórica, perspectiva que desenvolveu como projeto de vida.

Violeta Carmen Parra Sandoval, Violeta Parra, poeta, compositora e cantora,

importante folclorista, também conhecida internacionalmente e que, segundo

palavras do poeta Pablo Neruda e de Nicanor Parra, irmão mais velho de Violeta e

um dos maiores poetas chilenos:

Violeta Parra es un caso singularísimo en la creación artística chilena y latinoamericana. Compositora, cantante y poeta ella misma, pero además, pintora, bordadora, ceramista e investigadora del folclore, llevó a cabo, junto a Atahualpa Yupanqui, la renovación de la canción popular. Con ellos desaparece el pintoresquismo fácil, el melodramatismo vacío y las visiones estereotipadas de América Latina. Sin embargo, fue necesario que viajara al extranjero y trajinara allí su identidad para que su nombre obtuviera el reconocimiento que hoy merece.(contra-capa do livro Décimas, autobiografía en verso, de Violeta Parra).

Um nordestino brasileiro e uma sulista chilena, contemporâneos, unidos na

preocupação pela construção da uma identidade cultural, no interesse pelos

processos educacionais, embora jamais tendo-se encontrado pessoalmente e

vivendo em ambientes bastante distintos, ambos militaram por transformações

sociais em seus países, ambos lidaram com a educação popular, ambos foram vistos

como ameaças pelos governantes, ambos questionavam as desigualdades de uma

sociedade caracterizada pela opressão e pela exploração do trabalhador, seja do

camponês, seja do mineiro, seja do pobre nas ruas das grandes cidades, seja do

retirante, do índio, do pobre que vive na periferia.

As afinidades entre a filosofia pedagógica de Paulo Freire e a proposta

artístico-cultural de Violeta Parra se dão em muitos níveis: no desmascaramento de

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hipocrisias político-partidárias, religiosas e de discursos ideológicos, na denúncia da

injustiça, na valorização do conhecimento popular, do folclore, na luta pela

conscientização política das massas, no engajamento social, na importância que

deram aos aspectos econômicos e cotidianos da vida do trabalhador. Ambos

trabalhavam em favor dos oprimidos e buscavam dar voz aos calados, aos

silenciados pela história e pelas instituições políticas.

Segundo Peter Mclaren, em Utopias provisórias, as pedagogias críticas

num cenário pós-colonial,

A vida de Freire desvela veementemente as marcas duma trajetória vivida às margens do poder e do prestígio. Freire foi sempre objeto de controvérsia, pelo fato de seu trabalho centrar-se nas questões das mudanças sociais e políticas, especialmente em relação ao pensamento educacional dominante na Europa e América do Norte. (MCLAREN, 1999, p. 22) Unindo as categorias história, política, economia e classe aos conceitos de cultura e poder, Freire conseguiu desenvolver ao mesmo tempo uma linguagem de crítica e uma linguagem de esperança que trabalham conjunta e dialeticamente e que já mostraram ter obtido sucesso em ajudar gerações de excluídos a libertar-se. (MCLAREN, 1999, p. 24)

Violeta, com seu trabalho de compilação e recriação do folclore, seguido da

divulgação nos grandes centros urbanos, assume não só o papel de artista da arte

musical e poética, mas o importante papel de educadora, pelo caráter educacional

de suas pesquisas folclóricas e de suas composições autorais. Violeta preocupava-

se com o campesino pobre e marginalizado pela sociedade moderna, não admitia

que suas raízes fossem relegadas ao esquecimento. Daí sua preocupação em

investigar o folclore autêntico do povo do interior e também sua proposta de compor

canções que dialogassem com esse folclore, que o recriassem em sua versão

pessoal e única, que o atualizassem. Leonidas Morales, pesquisador e professor

chileno, lamenta que Violeta Parra também tivesse a vida marcada pela

marginalização por parte do poder e fosse objeto de desdém,

Pero algunas sombras se levantan y perturban la lectura. Cuando se propone divulgar el canto y la poesía recopilados, la mayoría de las radios de Santiago le niegan la oportunidad: no existe interés. el folclor, el de Violeta, el autentico, era una antigualla que no encaja en las expectativas del público urbano, cuyos gustos las mismas radios modelan y comercializan. (MORALES, 2003, p. 45)

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Assim como Violeta, Paulo Freire também foi perseguido como agitador

político e por causa de seus envolvimentos com as causas populares, por causa do

caráter político e integral de sua proposta educacional. Ambos demonstram

verdadeiro destemor em relação às ameaças dos governos autoritários de seus

respectivos países. Ambos fazem a leitura de seu momento histórico e propõem uma

leitura de mundo, uma leitura da vida a partir da ótica campesina e a partir das vozes

silenciadas do povo.

4 Violeta Parra e a música chilena no cenário da

modernidade: “El cantar la diferencia”

“Yo canto a la chillaneja si tengo que decir algo

y no tomo la guitarra

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por conseguir un aplauso yo canto la diferencia

que hay de lo cierto a lo falso

de lo contrario, no canto.”4 (Violeta Parra)

Este capítulo apresenta uma análise da obra de Violeta Parra, focando em

sua atividade como pesquisadora e divulgadora do folclore chileno, o caráter

educativo, crítico e conscientizador de suas canções e o aspecto identitário presente

em suas Décimas. No trabalho de folclorista, será enfatizado sua contribuição para a

reconstrução de uma identidade cultural nacional que levasse em conta as matrizes

indígenas e campesinas da cultura popular chilena. Na análise das canções será

focada a representação do papel da ciência, dos estudantes, das escolas e da

educação como crítica política e trabalho de conscientização social.

4.1 Pesquisa e divulgação do folclore chileno

O ruralismo chileno foi, durante todo o século XIX e início do século XX, o que

fundamentou a cultura no país, ancorado na idéia de um idealizado, porém defasado,

mundo rural, comparando-se à efervescente sociedade industrial que se avizinhava.

Esse ruralismo teve origem por volta dos séculos XVII e XVIII, quando já se

cantavam e se dançavam em comemorações populares, com acompanhamento de

viola, os “fandangos”, as “seguidillas” e os “zapateos”. Entretanto, a expressão

popular mais genuína do folclore chileno era o contraponto ou “trova”, apresentado

nas importantes festas religiosas e cívicas da época, onde se reuniam os mais

famosos trovadores (NAVARRO, 2005).

Mas, antes de tudo isto, segundo Lucy Lara Rocha em: Historia del folclore

chileno, houve, no Chile, episódios que tornam-se razões para a marcante

expressividade na música chilena:

Antes de la llegada de los españoles, en nuestro país los indígenas practicaban la música en sus distintas agrupaciones y en ella predominaba lo religioso, lo social, lo utilitário siendo por ello muy expresiva. Luego la música autóctona

4 Primeira estrofe da canção “Yo canto la diferencia”, uma toada ao estilo de sua terra natal, Chillán, composta em 1960 para as festas em comemoração aos 150 anos de independência de seu país (PARRA, Violeta, 2005).

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fue confinada a los reductos indígenas y poco a poco se va dejando de lado y entonces comienza a adoptar en forma predominante lo que la cultura que el conquistador conocía como música. (2007)

Nessa época no Chile, a música, como universo de identificação cultural, era

expressa, principalmente em toadas e cuecas típicas, na interpretação de alguns

pequenos grupos de músicos populares: os chamados “conjuntos urbanos”.

No período entre as décadas de 1930 e 1950, no Chile cantavam-se e

dançavam-se toadas, que são cantigas de melodias simples e monótonas, de textos

geralmente curtos que contam fatos da história, que falam de religião ou da natureza,

e cuecas, dança típica, tida como dança de assédio amoroso. Segundo Camilo Rojas

Navarro em Historia y teoría de la poesía popular chilena (vista por un cultor),

la cueca es de origen africano, que la habrían traído unos negros de Guinea que, acampados en Quillota, esperando ser vendidos a sus nuevos amos, bailaban entre hombres y mujeres dando vueltas en semi círculo al son de la guitarra y el canto y acompañados en el ritmo por las palmas de los asistentes que hacían rueda al rededor de los bailarines. Este baile se llamaba LARIATE y es el mismo que con los años se convierte en “Zamba Clueca” y que, debido a la dificultad de los negros en pronunciar la letra ele, se convierte en “Zamba Cueca”, para quedar definitivamente en “Cueca”. (NAVARRO, 2005, p. 54)

Violeta Parra, como grande pesquisadora, catalogadora e divulgadora do

folclore chileno, muito contribuiu para que os ritmos e gêneros musicais populares se

tornassem conhecidos nos grandes centros urbanos e por todos os países por onde

viajava. As capas e os encartes de seus discos, bem como os livros com as letras de

sua obra musical, não traziam apenas os nomes das canções e outras informações

técnicas como o tempo de duração da gravação, mas também o ritmo tradicional da

canção e a sua origem. Havia em sua obra uma grande preocupação didática, de

modo a formar um público conhecedor do folclore chileno.

Com o desenvolvimento turístico proporcionado pela instalação da estrada de ferro e

do aeroporto na capital chilena, Santiago, e com o crescimento das cidades, o Chile

passou a apresentar-se com uma imagem – social e culturalmente – mais

diversificada. Daí, rapidamente, o país chega ao “auge da modernização” das

sociedades urbanas e da entronização do mundo popular, favorecidos pelo

aparecimento do rádio, dos discos e do cinema sonoro – novos meios de

comunicação de massa – que, inevitavelmente, favoreceram a que Violeta Parra

tecesse sua própria e incomum arte musical.

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Iniciava-se uma época de grandes projetos político-sociais que marcariam por

muitos anos a história do país e do povo chileno. Nesse período, Violeta já se

identificava profundamente com a cultura campesina e tradicional, tendo absorvido e

interiorizado desde a infância suas raízes culturais, e se aventurava, cada vez mais,

a pôr em prática seu grande sonho de levar, através da música, um pouco do mundo

campesino para a cidade, uma experiência que, segundo Morales (2003, p. 39): lenta

y dolorosamente, reforça-lhe a consciência de sua identidade camponesa.

Violeta desde muito cedo entendeu que a vida no Chile necessitava de

mudanças. Entendeu que era preciso agir, pois os “grandes projetos político-sociais”

apresentados pelo governo tinham um certo grau de radicalidade que exigiam

adesões sem possibilidades de diálogo, e isto só faria aumentar a exclusão. Foi aí

que Violeta engajou-se na luta do seu povo, na preservação de suas raízes culturais,

levando para a cidade suas histórias, seus hábitos e o mais importante: suas

reivindicações, já que a modernidade estava “aniquilando” a tradição histórica do

chileno. Passou a trabalhar criativa e intensamente na compilação de canções e

cantos folclóricos, no afã de preservar a identidade de seu povo.

A poesia e a música escritas e cantadas pelo povo da terra – o camponês que vivia

nos lugares mais distantes da civilização urbana –, era o alvo principal de seu

projeto, era o ponto de chegada para suas inúmeras partidas, algumas delas

clandestinamente. Fernando Sáez em seu livro La vida intranquila: Violeta Parra,

biografía esencial, diz que:

Absorbida por esta nueva inspiración, desaparecia de su casa a veces por quince días, recorriendo algún campo, instalándose con paciencia en un caserío. Allí debía lograr que los más antiguos habitantes abandonaran sus aprehensiones, comenzaran a acompañarla en los cantos, se decidieran a soltar prenda y entendieran lo que ella venía a hacer. Violeta, cuaderno y lápiz em mano, anotaba posturas, rasgueos y letras, impregnándose de la manera profunda y simple del quehacer campesino, de sus gestos, de toda ese protocolo natural exento de pose.

Sus hijos recuerdan que partía sin plazo ni rumbo fijos, con El material a cuestas para Rancagua, San Carlos, Temuco. Ángel, a veces, la acompañaba, cargando la grabadora, andando kilómetros

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por caminos difíciles hasta un campo donde, por supuesto, no había electricidad... (SÁEZ, 1999, p. 56 e 59)

Violeta empreendia um verdadeiro trabalho de arqueologia da música

campesina, uma tarefa de pesquisa cultural, social, de contato direto com segmentos

diversos da população, um projeto também pedagógico na medida em que se

propunha a divulgar o folclore nacional. Ela percorria as diversas regiões dos

campos chilenos desde a década de 1950, conforme vimos no segundo capítulo

desta dissertação, e conforme palavras da própria Violeta “desenterrando folclor”,

descobria as raízes ancestrais do canto folclórico, corrigia, recriava, imitava, ou

geniamente compunha, musicava e ela mesma cantava, divulgando, assim, a poesia

e o canto do povo no seu espírito mais autêntico, um acervo folclórico muito diferente

do que era tido e oferecido como “folclore” pela arte popular urbana da época. Eis a

Violeta educadora, não no sentido escolar, certamente, mas no sentido mais amplo,

social, de pesquisa, formação e divulgação cultural.

No “auge” da modernização da sociedade chilena, Violeta Parra traz à tona o

canto tradicional ou folclórico, o canto nacional-popular, abrindo espaço para a

coexistência das duas modalidades de música: a urbana, moderna, e a rural,

tradicional ou folclórica, representações bem diferentes entre si que coexistiram em

meio a conflitos e rejeições.

Esse empreendimento de Violeta, essa “escavação”, esse trabalho

arqueológico da música e da cultura popular tradicional acabou por trazer-lhe o título

de ícone oficial da cultura nacional-popular chilena, por ser ela uma árdua defensora

de um canto novo, que revelava as diferenças culturais do país.

Segundo alguns estudiosos de Violeta Parra, como Ignácio Valente, o folclore

que ela levava para a cidade era dos mais expressivos, talvez pela autenticidade e

pureza da linguagem:

El folklore al que se adscribe Violeta Parra es otro, más subterráneo y profundo, más ligado a las verdaderas raíces del pueblo, más auténtico y, por supuesto, más arraigado a ese fenómeno cultural maravilloso que es la auténtica poesía popular, simple ingeniosa, mágica, heredera de tradiciones antiquísimas que se remontan, según algunos, nada menos que a la poesía de los trovadores provenzales de hace tantos siglos.5

5 Fragmento do texto “21 Son los Dolores”, escrito por Ignacio Valente, para o jornal El Mercurio, em 1977 e publicado no site: www.letras.s5.com/violeta110502.htm, Tu Salón de Lectura en Español – Proyecto Patrimônio, acessado em 7 de agosto de 2006.

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As palavras de Ignácio Valente confirmam a importância e a profundidade da

“escavação” feita por Violeta e trazem implícita a dimensão de seu sentimento

patriótico e do amor por sua terra e por sua gente campesina. Esse mesmo folclore

coletado e assimilado era divulgado em diversos canais, como o rádio e a televisão,

sem cair no comercialismo banalizante, sem virar souvenir ou exotismo para

satisfação da curiosidade de turistas. O programa de rádio Canta Violeta Parra, por

exemplo, era feito num ambiente todo caracterizado pelo mundo rural, em meio a um

cenário especialmente construído: [...] Canta Violeta Parra se transmitia los viernes a las ocho de la tarde y su grabación se reproducía los domingos en la mañana. Cada programa era una divulgación de aspectos del folclore que incluía canciones y como novedad incorporaba toda una ambientación para abordar temas referidos a costumbres, campesinas, diversas fiestas, como la trilla, la vendimia o los velorios de angelitos. Violeta hacía el libreto y se preocupaba de toda la producción, [...]

[...] Algunas veces grababa con doña Rosa Lorca en el restaurante de su madre, echándole trigo a gallinas y patos, haciendo balar a una oveja, obteniendo de este modo un cuadro campesino de total realismo. También invitaba a los personajes de quienes había recopilado textos y repetía ante la audiencia la forma en que trabajaba [...]

[...] El realismo de la ambientación se conseguía en medio de trifulcas para lograr que gallinas y patos, caballos y chanchos, lanzaran sus característicos gritos para que quedaran registrados. (SÁEZ, 1999, p. 67-71)

Tudo isso era feito no intuito de preservar a atmosfera campestre e invocar a

realidade em que vivia o povo interiorano. A vida campesina parecia, a Violeta, mais

autêntica e mais próxima da sua, pela característica simplicidade, dura labuta,

aspereza de linguagem e riqueza cultural. É claro que a aspiração ao resgate de

uma identidade fundante pura e “verdadeira” é na verdade uma ilusão, visto que

“todo cambia el momento”, como ela mesma diz em suas canções. Ela mesma

estava plenamente consciente disso e propôs em suas canções autorais uma

releitura possível do folclore chileno, uma apropriação toda pessoal e própria.

Violeta Parra tinha um cantar diferente não só pelo estilo trovadoresco de

interpretação e seu timbre rouco, que parecia brotar de múltiplas fontes sonoras –

fortalecendo ainda mais a marca folclórica de sua arte – mas pelo seu jeito de se

comunicar com o público de maneira direta e espontânea, um jeito despojado de

todo e qualquer artifício, sem a distância tão comum entre cantor e público. Suas

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canções falam de um comprometimento ético, de matiz mesclado de princípios

cristãos de solidariedade, verdade e esperança, juntamente com categorias oriundas

do materialismo histórico e dos movimentos latino-americanos de esquerda.

Rodrigues y Recabarren, uma de suas críticas sociais musicadas, estampa tais

afirmações enquanto alude a fatos históricos provocados pela injustiça do poder:

(...) qué vergüenza en el planeta de haber matado un poeta nacido de sus

entrañas. Un río de sangre corre por los contornos del mundo y un grito surge

iracundo de todas las altas torres, no habrá temporal que borre la mano de la

injusticia.

Violeta revelava profundo cuidado e respeito pelas pessoas que ia

conhecendo durante seu percurso afanado de restituidora de uma memória quase

dissolvida.

A popularidade do programa de rádio Canta Violeta Parra é atestada por

Fernando Sáez, que comenta que, quando Violeta apresentava o programa,

Aunque muchas personas que trabajaban en la radio consideraban esto una extrañeza sin destino y la figura de Violeta y sus canciones eran motivo de burlas que la obligaban a una posición desafiante y agresiva, el éxito del programa fue apabullante. Nadie podia dar crédito a los cientos y cientos de cartas que llegaban de los lugares más apartados del país agradeciéndole la difusión de todo ese material que despertaba en ellos recuerdos añejos, arrumbados y fragmentados en la memoria familiar. CANTA VIOLETA PARRA se fue convirtiendo en el programa más exitoso de la emisora.

Ese apoyo anónimo y masivo le confirmaba la validez e importancia de su labor y le otorgaba la confianza para seguir en ese camino porque había conseguido el respaldo de la gente que constituía para ella el verdadero pueblo de Chile, las personas con las que se identificaba y a quienes queria representar. (SÁEZ, 1999, p. 71)

4.2 A identidade cultural presente nas canções

Violeta Parra preocupou-se muito com a reconstrução da identidade do povo

camponês, invocando suas raízes ancestrais indígenas. Essa preocupação pode ser

evidenciada na canção “Casamiento de negros”, que se baseia em um tema

tradicional folclórico chileno (a primeira estrofe), um canto de saudação e parabéns,

com desenvolvimento autoral de Violeta e que representa a condição em que vive o

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camponês. Esta canção, do início dos anos 1950, já é fruto das pesquisas que ela

fez junto ao povo campesino e também uma reelaboração.

Conforme palavras de Claudio Rolle, da Pontifícia Universidade Católica do

Chile, no artigo: De yo canto la diferencia a Qué lindo es ser voluntario. Cultura de

denuncia y propuesta de construcción de una nueva sociedad (1963-1973):

En esa ciudad, la intérprete de la música tradicional chilena tuvo una experiencia decisiva, que cambió profundamente su vida. En esa capital llena de estímulos de toda índole, con ambientes muy creativos y con multiplicidad de espacios y ofertas artísticas de ámbitos culturales muy variados, ella pudo desarrollar su dimensión de cantautora, hasta entonces subordinada a su esfuerzo como recopiladora del folclore e intérprete. Ya había conseguido éxito con su Casamiento de negros y ya había compuesto canciones de enorme potencia crítica como Yo canto la diferencia. Sin embargo, será la distancia de Chile y de su familia, así como los sucesos de su país mirados desde lejos, lo que la empujaría a componer, a crear canciones que abrirán el camino a lo que luego se llamará la Nueva Canción Chilena. (ROLLE, 2005)

A ocasião que a canção apresenta é festiva, um casamento, mas a situação é

trágica:

Se ha formado un casamiento todo cubierto de negro, negros novios y padrinos negros cuñados y suegros, y el cura que los casó era de los mismos negros.

Já de início percebe-se que a cor negra traz a marca da etnicidade, uma

condição que iguala a todos os participantes da festa, e um paradoxo, já que espera

que o branco seja a cor prevalecento numa festa de casamento. Todos compartilham

da mesma condição, da mesma matriz cultural e social − noivos, padrinhos,

cunhados, sogros e até o padre − todos são negros. O qualificativo negro, é bom que

se diga, não guarda relação direta com a cultura africana, mas aponta para as

origens indígenas do povo araucano, de pele morena, queimada pelo sol, o índio

camponês. Embora a canção comece com esse tom festivo, a referência à cor negra

já pode sugerir uma nota de desconcerto, que vai se confirmando à medida que a

composição se movimenta:

Cuando empezaron la fiesta pusieron un mantel negro luego llegaron al postre se sirvieron higos secos

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y se fueron a acostar debajo de un cielo negro.

Nesta segunda estrofe, confirma-se uma metáfora que já aparece na anterior,

a metáfora da cobertura, da cor negra que cobre todos os rostos e tudo o mais.

Neste caso, a canção fala de um “mantel negro” que em espanhol quer dizer: toalha

preta, que vem cobrir a mesa onde estão dispostas as comidas – e aqui observa-se

que inclusive a sobremesa, “los higos secos” são negros ou bem escuros. Até os

noivos estão sob um céu negro que os cobre. Neste caso, a cor negra predominante

quer significar noite permanente, sinal de uma vida de sacrifícios desse camponês,

para quem tudo é escuro, inclusive sua festa de casamento. A própria vida do índio

camponês torna-se escura, pela privação que sofre:

Y allí están las dos cabezas de la negra con el negro, amanecieron con frío tuvieron que prender fuego, carbón trajo la negrita carbón que también es negro.

Para suportar o frio e a escuridão, a negra traz o carvão. Essa imagem de

desconforto vai se tornando mais forte na medida em que a canção se desenrola e

traz um fato novo: a doença. O médico é chamado e vem de longe, e sua receita é

um emplastro de barro, também negro. O emplastro reforça a metáfora do barro

escuro, negro, que cobre a pele negra do índio:

Algo le duele a la negra vino el médico del pueblo recetó emplastos de barro pero del barro más negro que le dieron a la negra zumo de maqui de cerro.

O fim trágico se aproxima. A figura da morte vem cobrir a negra com um

caixão pintado de negro. E o velório, uma cena que lembra a presença de velas

acesas e, que supostamente deveria trazer alguma luz à casa enlutada, torna-se um

momento desesperador e sombrio. Nas entrelinhas da canção está subentendido o

processo violento e injusto da colonização e do avanço da modernidade. O índio é

representado aqui como vítima de um destino atroz, de uma condição lamentável.

Ya se murió la negrita

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que pena pa’l pobre negro, la puso dentro un cajón cajón pintado de negro, no prenderon ni una vela ay que velório más negro.

Violeta descreve, num ritmo bastante descontraído e alegre, uma festa de

casamento que se transforma em velório, num tom que sugere bastante ironia e

criticidade. A identificação do povo latino-americano é aqui marcada pela cor negra,

camada sobre camada, tom sobre tom, negro sobre negro. Na vida do camponês as

alegrias são poucas e duram pouco, tamanha é a pobreza e a falta de perspectiva. A

falta de uma vela acesa, no velório da “negrita” também confirma a metáfora da

cobertura. A própria idéia da terra cobrindo o corpo é sugerida pela imagem do

velório.

A canção não se propõe a ser um “nonsense”, conforme o intérprete Les

Baxter sugeriu ao regravá-la com o título de “La melodia loca” (SÁEZ, 1999). O que

Violeta faz é uma crítica social muito lógica e bem articulada, tudo isso a partir de um

tema popular. Segundo Nicanor, seu irmão, a canção trouxe bons rendimentos

autorais a Violeta, configurando-se como seu primeiro grande sucesso (MORALES,

2003).

Em várias de suas canções, principalmente as de cunho social, ela se mostra

natural, espontânea e ao mesmo tempo ríspida e enfática, como se perceberá no

decorrer desta análise. Essas são características marcantes de Violeta e de sua

obra.

As canções de Violeta movem-se entre dois contextos opostos: o folclórico e o

urbano. Seu canto é el canto diferente, propondo que a cidade conhecesse de perto

o mundo rural, o seu berço histórico. Daí que, no território da indústria musical local,

ela desponta com uma nova versão do gênero da música popular baseada no

folclore.

Uma das canções de Violeta que exemplifica esses aspectos é “Yo canto la

diferencia”, composta no meado da década de 1950 em comemoração aos 150 anos

de independência do Chile. Nela, Violeta conserva o estilo folclórico regional – a

“chillaneja”,6 da região de Chillán, sua terra natal –, e se declara pubicamente uma

6 Percebe-se a preocupação pedagógica de Violeta Parra ao nomear cada ritmo de suas canções conforme os ritmos tradicionais chilenos, andinos. Dessa forma, ao ouvir seus discos, o público era levado a conhecer e apreciar a riqueza da diversidade cultural popular. O interesse de Violeta era por

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cantora preocupada com as diferenças sociais. Ela mesma diz: “no tomo la guitarra

por conseguir un aplauso”. Esse verso já revela uma Violeta engajada nas causas e

questões sociais, uma educadora, empenhada no objetivo de denunciar o erro, o

abuso político, indo muito além do querer ser aplaudida. Ela quer que sua canção

seja um instrumento de conscientização do povo humilde, do trabalhador, do

campesino, ao revelar o seu verdadeiro valor numa sociedade preocupada

unicamente com a modernização. Ela queria ser ouvida, em primeiro lugar: “atención

al auditorio, que va a tragarse el purgante”. Percebe-se que o tom irônico ainda se

faz presente na voz da poeta.

“Yo canto la diferencia” é uma canção meta-lingüística, pois trata da condição

do poeta num momento histórico crítico. Ela marca o início do movimento “La nueva

canción chilena”, contrastando de modo gritante com a música comercial daquela

época até pela extensão da letra, que ultrapassa o formato ligeiro exigido pelo

mercado fonográfico. Nela, o bucolismo do canto tradicional dá lugar à música de

protesto, de denúncia, típica dos ambientes urbanos, uma forma de resistir à força

envolvente da modernidade. Nessa canção, a questão da “diferença” abriga um forte

caráter moral – e pedagógico – ao apresentar duas perspectivas contrastantes da

realidade: o “certo” e o “falso”: “yo canto la diferencia que hay entre lo cierto y lo

falso”.

Yo canto a la chillaneja si tengo que decir algo. y no tomo la guitarra por conseguir un aplauso. Yo canto la diferencia que hay de lo cierto a lo falso, de lo contrario no canto.

O caráter ético da canção sugere que o papel do cantor não é o de mero

promotor de diversão, mas a defesa do que é correto. Sua música é um instrumento

à disposição da sociedade. Violeta almejava, acima de tudo, uma sociedade mais

consciente de suas raízes, de sua história, de sua identidade cultural. Nessa crítica

de caráter político, a ironia torna-se o grande instrumento da cantora, que faz de sua

canção um remédio indigesto, “un purgante”, e um lamento pelo amor não

correspondido entre povo e pátria.

preservar na memória coletiva do país e divulgar nos grandes centros urbanos os ritmos populares criados ao longo da história do Chile.

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Les voy hablar en seguida de un caso muy alarmante atención al auditório que va a tragarse el purgante ahora que celebramos el 18 más galante la bandera es un calmante.

Yo paso el mes de septiembre con el corazón crecido de pena y de sufrimiento de ver mi pueblo afligido el pueblo amando la pátria y tan mal correspondido la bandera por testigo.

O “eu” lírico da autora vem à tona “de pena y de sufrimiento de ver el pueblo

aflijido”, e sua voz – que na verdade encarna a voz do próprio povo campesino,

trabalhador, sofrido e menosprezado – denuncia o sentimento de revolta ao ver que

os poderosos fazem juramento falso à bandeira do país, e que os humildes

campesinos, os que realmente amam a pátria, apesar disso, não são

correspondidos. Aqui, a identidade do povo é construída como em meio a conflitos

de poder e hierarquia. Há uma voz que é excluída, silenciada, a voz do povo. A

poeta torna-se quase que uma profetiza na denúncia ao estado de injustiça e

banalidade. A tensão da canção é gritante, entre a identidade nacional representada

pelo patriotismo e pelo respeito aos símbolos nacionais e a violência patrocinada

pelo Estado. O Estado não é o povo e seus guardas vêm de outro planeta. A poeta

se dirige ao ministro da justiça. E sua canção vem carregada de um tom

denunciatório.

En comandos importantes juramento a la bandera sus palabras me repican de tricolor las cadenas con vigilantes armados en plazas y en alamedas y al frente de las Iglesias.

Los Ángeles de la guarda vinieron de outro planeta porque su mirada turbia su sangre de mala fiesta profanos suenan tambores clarines y bayonetas.

Afirmo señor ministro que se murió la verdad hoy dia se jura en falso

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por puro gusto no más engañan al inocente sin ni una necesidad y me hablan de libertad.

Violeta protesta contra a religião institucionalizada e sua passividade diante da

realidade social, diante desse cenário de diferenças tão evidentes. A cantora ironiza

a cena do vigário benzendo “banderitas y medallitas” e as distribuindo às crianças,

quando o que elas precisam é de comida e assistência social. A religiosidade aliada

à injustiça torna a situação particularmente insuportável.

Ahí pasa el señor vicario con su palabra bendita podría, su santidad, oírme una palabrita? los niños andan con hambre, les dan una medallita, o bien una banderita.

Por eso su señoria dice el sábio Salomón hay descontento en el cielo en Chuqui y en Concepción ya no florece el copihue y no canta el picaflor centenario de dolor.

As desigualdades sociais trazidas pela modernidade são evidentes em toda

parte, a começar pela negligêngia dos poderosos para com os trabalhadores

humildes e para com os campesinos. Com o crescimento e expanção das cidades,

os pássaros desapareceram, e “ya no florece el copihue” – a flor símbolo do Chile. E

Violeta externaliza a tristeza de ver “un Caballero pudiente”, um político “poderoso”

deslizando em seu “cadillac”, festejando os 150 anos de emancipação: “y viva la

libertad!” enquanto a maioria do povo chileno, o campesino morre de fome e de frio,

sem casa, sem roupa e sem comida: sem dignidade.

Un Caballero pudiente agudo como un puñal me mira con la mirada de un poderoso volcán y con relámpagos de oro desliza su cadillac. y viva la libertad!

De arriba alumbra la luna

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con tan amarga verdad la vivienda de la Luisa que espera maternidad sus gritos llegan al cielo nadie la puede escuchar en la fiesta nacional.

Esta canção guarda um caráter educacional que pode traçar paralelos com a

perspectiva da pedagogia freireana. A preocupação de Violeta Parra com as

discrepâncias entre a cidade e o campo, entre os valores tradicionais e os “valores”

da modernidade, com a tensão entre um Estado autoritário e um povo oprimido são

muito evidentes na canção. Peter Mclaren, em Utopias Provisórias, ao reportar-se

ao educador brasileiro Paulo Freire, argumenta que,

Freire lamentava a realidade brutal de que era testemunha, em que os oprimidos viviam sempre como apêndices destacáveis dos sonhos e desejos de outros. (MCLAREN, 1999, p.24)

Paulo Freire assemelhava-se a Violeta Parra na denúncia à opressão e no

engajamento pela conscientização da população rural e urbana. O contraste entre a

a exuberância da parada militar e a triste condição de uma mulher pobre chamada

Luisa, com seu filho recém-nascido, sem-teto, é excruciante.

No tiene fuego la Luisa ni una vela ni un pañal el niño nació en las manos de la que cantando está por un reguero de sangre va marchando un cadillac cueca amarga nacional.

La fecha más resaltante la bandera va a flamear la Luisa no tiene casa la parada militar y si va al parque la Luisa adonde va a regresar cueca larga militar.

O cantar de Violeta Parra tem efeito cortante, suas palavras criticam a

moderna sociedade e os abusos do Estado militarista. Ao final ela parece cantar a

um auditório e tem plena consciência do caráter “ofensivo” de sua canção:

Yo soy a la chillaneja señores para cantar

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si yo levanto mi grito no es tan sólo por gritar perdóneme el auditório si ofende mi claridad cueca larga militar.

Ao criticar o poder e os opressores Violeta Parra se harmoniza com os ideais

sociais e políticos presentes na filosofia de educacional de Paulo Freire, principalmente

no que se refere à contradição opressor/oprimido:

A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealisticamente opressores, nem se tormam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. [...] Quem, melhor que os oprimidos se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. (FREIRE, 1987, p. 30-31)

No aspecto musical ou melódico, segundo Juan Armando Apple em “Violeta

Parra: una memoria poético-musical”, artigo divulgado na página: Archivo Chile, web

de estúdios Miguel Enriquez – CEME historia político-social, movimiento popular7,

[...] las marcas del nuevo estilo están señaladas en el uso de estructuras y elementos del canto campesino tradicional, connotando una actitud de retorno a lo simple y austero. La figura ritmo-melódica del canto y su acompañamiento – con fluctuación entre 6/8 y 3/4 – son característicos de la tonada tradicional. Asimismo, la recurrencia de sonoridades y gestos armónicos característicos del canto a lo poeta – como ciertas inflexiones modales: acorde tónica – acorde II mayor. Su estructura es del tipo de canción sin estribillo, conformada por un único período repetido tantas veces como estrofas tiene el texto (ciclo de 17 compases,organizados en la secuencia de 4+(1)+4+4+2+2(2). Interesante, dentro de ese marco, es su dinámica interna flexible al fluxo de las palabras y su caráter épico-narrativo; también lo es el efecto del último verso como sentencia o remate a manera de su condensado estribillo.

7 Disponível em: www.archivochile.com/Cultura_Arte_Educacion/vp/s/vpsobre0066.pdf.

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Essa renovação no jeito de compor e cantar suas músicas, utilizando toda a

riqueza e recursos rítmicos e poéticos do acervo folclórico nacional, marca a

produção artística de Violeta Parra e solidifica sua maneira nova de expressão e

construção identitária como artista.

A partir daí, o Chile e a América Latina começam a se redescobrir por meio da

arte musical e a buscar uma nova representação, começam um novo percurso, uma

“reconstrução” da sua identidade cultural por meio da música, da composição e da

interpretação dos valores culturais nacionais.

Muitos compositores, cantores e intérpretes, até mesmo grupos de cantores,

mostravam-se claramente sensíveis a diversos temas sociais, usando discursos

denunciadores, talvez influenciados por Violeta Parra e seu cantar la diferencia.

Violeta via na cultura urbana uma espécie de agressor da cultura tradicional. Para

ela, a cultura da cidade – cultura moderna – de certa forma agredia os verdadeiros

valores humanos e artísticos, repletos de beleza e de dignidade. Violeta sentia que a

modernidade matava a cultura folclórica, a raiz cultural não só do povo chileno ou

latino-americano, mas de todo e qualquer povo. Esse processo em pouco tempo

alastra-se pelo continente, conforme palavras de Morales em Violeta Parra: La

última canción:

De modo inevitable, la intuición irá universalizándose en la conciencia: el agresor despoja, degrada culturalmente tanto al campesino como al obrero (que no há sido sino un campesino emigrado a las ciudades), y la misma agresión de cumple en Chile, en Latino-América, en todos los rincones del planeta. (p. 47)

No Chile, atravessava-se um período de crises políticas e sociais em função

do crescimento urbano acelerado e desordenado. De 1958 a 1964, o governo chileno

de Jorge Alesandri não conseguiu atender às necessidades básicas de um país que,

aceleradamente, tornava-se maior e mais urbanizado, empobrecendo o campo e

gerando muitas manifestações de descontentamento e revolta da população

trabalhadora, dos estudantes e dos intelectuais, conforme argumenta Claudio Rolle

em seu artigo: “De yo canto la diferencia a Qué lindo es ser voluntario. Cultura de

denuncia y propuesta de construcción de una nueva sociedad (1963-1973)”, do

Programa de estudios Histórico-Musicológicos da Pontificia Universidad Católica de

Chile (Cátedra de Artes, n. 1, p. 81-97, 2005).

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Somando-se a tudo isso, os enormes prejuízos causados por um terremoto de

alta escala, em 1960, que devastou importante região, e outros fatores como as

tensões provocadas pela revolução cubana, afetaram diretamente a vida dos

chilenos. Marcas dos acontecimentos desse período na vida do povo campesino

chileno estão presentes na obra poética e musical de Violeta Parra, a exemplo de

“Santiago penando estás”, que é uma crítica social na qual se misturam duas

atitudes: 1) denúncia contra os governos e seus discursos permeados de falsas

promessas e 2) queixa por tudo estar “diferente”, por tudo estar cada vez pior.

Na primeira estrofe, a canção usa a metáfora do jardineiro, ou do anti-

jardineiro que cultiva “flores de la traición” e “rencor”. É um lamento pela situação

social crítica em que vive o país. Os pássaros não têm onde pousar e cantar. Os

meninos viraram soldados, a alegria se perdeu. À medida que a cidade cresce e as

construções avançam, o “antigo” dá lugar ao “moderno”, provocando sérias

alterações, não só na natureza, mas na vida e na identidade do seu povo, a começar

pelas crianças. Violeta vê tudo isso com preocupação e assombro, e diz:

los pajaritos no cantan, no tienen donde anidar, ya les cortarán las ramas donde solían cantar, después cortarán el tronco y pondrán en su lugar una letrina y un bar.

El niño me causa espanto ya no es aquel querubín, ayer jugaba a la ronda hoy juega con el fusil, no hay ninguna diferencia entre el niño y el aguacil, soldados y polvorín.

Há nesta canção um pessimismo exacerbado com relação à situação da

capital chilena, Santiago, e à vida dos santiaguinos nas mãos do governo. Segundo

ela, o desenvolvimento acabou com Santiago e com o amor que se tinha pela

cidade:

Adónde está la alegría del Calicanto de ayer, se dice que un presidente lo recorría de a pie, no había ningún abismo entre el pueblo y su merced,

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el de hoy, no sé quién es. Santiago del ochocientos para poderte mirar, tendré que ver los apuntes del archivo nacional, te derrumbaron el cuerpo y tu alma salió a rodar, Santiago penando estás.

Por isso Violeta sofre e chora, como ela mesma diz ao iniciar a canção:

Mi pecho se halla de luto, por la muerte del amor, en los jardines cultivan las flores de la traición, oro cobra el hortelano que va sembrando el rencor, por eso llorando estoy.

E nesse cantar ela se faz bem explícita em seus lamentos e protestos, como

em “Maldigo del alto cielo” –, mostrando a evocação de uma ferocidade trágica,

decorrente das manifestações da alma dolorida de quem sofre crescentes e

sucessivas decepções com a sociedade moderna, maldizendo “los estatutos, la

bandera, la tierra, la cordillera, el ancho mar, la primavera, los desiertos, el blanco, el

negro, el amarillo”. Maldizendo, inclusive, a palavra amor, segundo ela própria:

“porque me aflige un dolor por culpa de un traicionero”.

Esta canção externaliza o sentimento de quem vê o descaminho político do

país como uma ameaça, o discurso da modernidade como uma arma de destruição

do que é raiz histórica, uma ameaça à identidade nacional de um povo. Demonstra o

sentimento de quem guarda na alma o luto e a tristeza pela morte do amor e o

respeito pela verdadeira nacionalidade, amaldiçoando tudo entre o céu e a terra,

desde o profano ao divino, tamanha é sua dor. As imagens transitam entre os altos

céus e as montanhas dos Andes e todo o país:

Maldigo del alto cielo la estrella con su reflejo, maldigo los azulejos destellos del arroyuelo, maldigo del bajo suelo la piedra con su contorno, maldigo el fuego del horno porque mi alma está de luto, maldigo los estatutos

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del tiempo con sus bochornos, cuánto será mi dolor. Maldigo la cordillera de los Andes y de la Costa, maldigo, señor, la angosta y larga faja de tierra, talvez la paz y la guerra, lo franco y lo veleidoso, maldigo lo perfumoso porque mi anhelo está muerto, maldigo todo lo cierto y lo falso con lo dudoso, cuánto será mi dolor.

A aflição da poeta é tanta que ela passa a maldizer as estações do ano, os

movimentos da natureza. Em seguida, ela maldiz a bandeira e os símbolos nacionais:

Maldigo la primavera con sus jardines en flor y del otoño el color yo lo maldigo deveras; a la nube pasajera la maldigo tanto y tanto porque me asiste un quebranto, maldigo el invierno entero con el verano embustero, maldigo profano y santo, cuándo será mi dolor

Maldigo la solitaria figura de la bandera , maldigo cualquier emblema, la Venus y la Araucaria, el trino de la canaria, el cosmos y sus planetas, la tierra y todas sus grietas porque me aqueja un pesar, maldigo del ancho mar sus puertos y sus caletas, cuánto será mi dolor.

Finalmente, volta à sociedade e passa a maldizer os reis, os nobres, a guerra,

as religiões institucionalizadas e, também, “las aulas”, isto é, a educação também é afetada pelo estado revoltante em que se encontra a nação. Um traidor político envenena o país.

Maldigo luna y paisaje, los valles y los desiertos, maldigo muerto por muerto y el vivo de rey a paje, al ave con su plumaje yo la maldigo a porfía, las aulas, las sacristías

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porque me aflige un dolor, maldigo el vocablo amor con toda su porquería, cuánto será mi dolor.

Maldigo por fin lo blanco, lo negro con lo amarillo, obispos y monaguillos, ministros y predicandos yo los maldigo llorando; lo libre y lo prisionero, lo dulce y lo pendenciero le pongo mi maldición en griego y en español por culpa de un tricionero, cuánto será mi dolor.

A perspectiva de Violeta Parra para com a modernidade era nítida e certa, era

a visão de quem previa péssimas conseqüências para a sociedade, a começar pela

perda de suas identidades culturais, que seriam seriamente afetadas.

Violeta, do seu modo, previa o que Anthony Giddens chama de “desencaixe”:

Por desencaixe me refiro ao “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço. (GIDDENS, 1991, p. 29)

Tendo em mente as conseqüências previstas – ou sentidas – por ela, pode-se

citar ainda Giddens quando diz que:

Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua intensionalidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos precedentes. Sobre o plano existencial, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em termos intensionais, elas vieram a alterar algumas das mais íntimas e pessoais características de nossa existência humana. (GIDDENS, 1991, p. 14).

Em “Mazúrquica modérnica”, Violeta usa de um tom sarcástico, pois se vê

muito desencantada e incomodada com tudo, inclusive com os questionamentos a

que é submetida, em razão de suas críticas cortantes à sociedade que se moderniza

sob um governo problemático e repressor. Nesta canção, Viola apresenta seu canto

como resposta a uma pergunta infantil sobre o perigo que representaria sua canção.

O ritmo da canção é referido no título, mazurca, uma dança de origem polonesa em

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ritmo ternário. Chama a atenção o curioso jeito de falar da cantora, como a inventar

uma língua nova, um jogo infantil que torna todas as palavras proparoxítonas.

Me han preguntádico varias persónicas si peligrósicas para las másicas son las canciónicas agitadóricas ay que pregúntica más infantílica sólo un peñúflico la formulárica pa’ mis adéntricos yo comentárica.

A poeta apresenta sua resposta mostrando que mais perigoso que tudo é a

fome que passa o povo e que é capaz de gerar grandes revoluções. Mais perigoso

são os políticos falsos, os partidários do governo, os que se revestem de autoridade

e assinam documentos e determinam a destruição do povo inocente.

Le he contestádico yo al preguntónico cuando la guática pide comídica pone al cristiánico firme y guerrérico por sus poróticos y sus cebóllicas no hay regiméntico que los deténguica si tienen hámbrica los populáricos.

Preguntandónicos partidirísticos disimuládicos y muy malúlicos son peligrósicos más que los vérsicos más que las huélguicas y los desfílicos, bajito cuérnica firman papélicos lavan sus mánicos como piláticos.

Caballeríticos almidonáticos almidonáticos mini ni ni ni ni… le echan carbónico al inocéntico arrellenádicos en los sillónicos cuentan los muérticos de los encuéntricos como frivólicos y bataclánicos.

De modo muito bem humorado, Violeta nos remete às páginas da história

cheias de matanza e injustiça. Ela dirige-se a um censor, a um fiscal do governo.

Sua arma principal é o humor, a ironia e a criatividade.

Varias matáncicas tiene la histórica en sus pagínicas bien imprentádicas para montárlicas no hicieron fáltica las refalósicas revoluciónicas el juraméntico jamás cumplídico es el causántico del desconténtico ni los obréricos ni los paquíticos tiene la cúlpica señor fiscálico.

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Violeta diz que está apenas respondento a perguntas de pessoas

inconvenientes e que está cansada. Seu canto é resposta a uma provocação,

portanto uma reação. Sua crítica tem como alvo a truculência do governo que aflige

o povo. O objetivo da canção é fazer pensar, fazer refletir, portanto seu caráter é

fortemente educacional no sentido freireano de conscientização e engajamento com

transformação social.

Lo que yo cántico es una respuéstica a una pregúntica de unos graciósicos y más no cántico porque no quérico tengo flojérica en los zapáticos, en los cabéllicos, en el vestídico, en los riñónicos y en el corpíñico.

O caráter didático, político e cultural do artista é explícito na canção. Violeta

não vê a arte popular como outra coisa senão a denúncia contra a injustiça e a

representação de um povo oprimido em busca de sua dignidade. Arte é linguagem e

declaração política. Mesmo quando usa um tom jocoso e um rítmo leve, como no

caso de “Mazúrquica modérnica”, a cantora desenvolve temas sérios e urgentes.

4.3 O caráter educacional da obra de Violeta Parra

Tendo-se educação como um processo reflexivo e amplo de atividades

envolvendo os vários aspectos e instâncias da cultura, que levam ao

desenvolvimento de saberes e ao estímulo à participação política para transformação

da condição de vida social, admite-se como educacional o trabalho de Violeta Parra,

que teve grande impacto não só na sociedade chilena, mas na América Latina

moderna em geral e até na Europa.

Para conceituar o termo “educação”, buscamos embasamento em Abbagnano

(2003, p. 305), que assim se expressa:

Em geral, designa-se com esse termo a transmissão e o aprendizado das técnicas culturais, que são as técnicas de uso, produção e comportamento, mediante as quais um grupo de homens é capaz de satisfazer suas necessidades, proteger-se contra a hostilidade do ambiente físico e biológico e trabalhar em conjunto, de modo mais ou menos ordenado e pacífico. Como o conjunto dessas técnicas se chama cultura, uma sociedade humana não pode sobreviver se sua cultura não é transmitida de geração para geração; as modalidades

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ou formas de realizar ou garantir essa transmissão chama-se educação.

Abbagnano usa o termo “técnicas culturais”, relacionadas às necessidades

básicas do ser humano e à sua sobrevivência, e relaciona a educação ao processo

de transmissão e preservação dessas técnicas. Embora não diretamente ligada ao

cultivo de alimento e satisfação de necessidades básicas, a música é também uma

dos elementos culturais importantíssimos à sobrevivência humana, assim como a

narrativa, a poesia, a dança, a pintura, a escultura ou qualquer outra arte. As

cavernas pré-históricas estão cheias de desenhos que não tinham outra função

senão a fruição estética e a reflexão. Arte é cultura. Arte é educação.

O educador brasileiro Paulo Freire, refletindo sobre a educação como um

processo emancipador, contrastou-a com o que chamou “educação bancária”, que é

metaforizada pela ação de “depósito” de informações, enquanto que a educação

libertadora

Refere-se a atividades educacionais ligadas a um projeto político mais amplo de luta contra a opressão e a dominação. De acordo com as implicações do conceito freireano de “conscientização”, a libertação relativamente às estruturas sociais de opressão e dominação está estreitamente conectada à libertação relativamente às formas ideológicas pelas quais aquelas estruturas são internalizadas na consciência, tornando-se aceitáveis. Utiliza-se também, no mesmo sentido, o termo “educação emancipadora” (apud SILVA, 2000, p. 48)

E, referindo-se ao termo “educação popular”, para Paulo Freire:

refere-se a uma gama ampla de atividades educacionais cujo objetivo é estimular a participação política de grupos sociais subalternos na transformação das condições opressivas de sua existência social. Em muitos casos, as atividades de “educação popular” visam o desenvolvimento de habilidades básicas como a leitura e a escrita, consideradas como essenciais para uma participação política e social mais ativa. Em geral, seguindo a teorização de Paulo Freire, busca-se utilizar métodos pedagógicos – como o método dialógico, por exemplo – que não reproduzam, eles próprios, relações sociais de dominação. (apud SILVA, 2000, p. 48)

Violeta Parra experimentou dois tipos de educação: a informal, adquirida na

família e na comunidade – e o mais importante, por meio do folclore, das estórias, da

tradição popular –, e a formal, oferecida pelas instituições escolares e adquirida por

meio dos livros, permitindo-lhe perceber a diferença entre a cultura rural, que era o

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seu berço, e a cultura urbana, vista por ela como coisa moderna, curiosa, mas, às

vezes, ameaçadora.

O compromisso de Violeta Parra com as raízes culturais e a identidade do

povo chileno, seu engajamento com a educação no sentido mais amplo está

evidente não só em suas canções, mas em todas as outras manifestações artísticas

que experimentou, incluindo a música, a poesia, a cerâmica, a pintura e a tapeçaria.

Conforme argumenta Morales,

[...] Diversos son los materiales primarios empleados: palabra, sonido, color, Lana, metal. Y diversas son las figuras e imágenes construídas com estos materiales [...]

[...] Los géneros, tópicos, motivos en que se apoya o de donde arranca la creación, tienen el mismo origen: todos pertenecen a la cultura folclórica y campesina chilena. El saber artístico y el saber del hombre que guían el movimiento creador, son los mismos en todos los casos: siempre se trata del saber de la cultura folclórica reelaborado desde el interior de una cultura urbana que condiciona la perspectiva de la reelaboración. Y también es el mismo el mensaje que de este saber plasmado se desprende: un mensaje profundamente latino-americano, a la vez de exaltación y de agonía, donde el canto y el lamento conviven o entremezclan sus tonos. (MORALES, 2003, p. 32)

Por meio de suas canções – que por si só já são um instrumento

representativo da educação e da cultura popular –, Violeta Parra estimula, em

consonância com os princípios de Paulo Freire, a participação política de grupos

oprimidos. Violeta propõe ao campesino – por meio da música – que repense sobre

a sua condição de vida às margens da sociedade moderna. Dessa forma ela propõe

a reflexão sobre a identidade cultural do seu povo, que é vista em sua perspectiva

histórica, social e política. Para tanto, Violeta invoca a memória dos valores culturais

antigos e a recriação de novos valores, aproximando folclore e modernidade, vida

camponesa e vida urbana.

Violeta Parra pode ser reconhecida como educadora na medida em que propõe

uma formação popular que ofereça uma problematização da realidade histórica, a

localização do povo dentro de um contexto social, o posicionamento. É Paulo Freire

quem comenta que

A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham.(FREIRE, 1987, p. 72)

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E Paulo Freire argumenta, ainda, que,

A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos – como “projetos” –, como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo. (FREIRE, 1987, p. 73)

Violeta foi uma pessoa extraordinariamente ativa e criativamente

comprometida com a educação de valores humanos, morais e sociais mais amplos,

baseados no direito à vida, na justiça, na busca da liberdade de expressão e na

solidariedade. Nessa perspectiva, admite-se relevante grau de identificação entre a

figura da poeta e musicista Violeta Parra e a do filósofo e educador Paulo Freire,

ambos incansáveis nos seus projetos em favor dos camponeses, dos trabalhadores

e dos oprimidos. Ambos acreditavam que, pela conscientização das massas, era

possível alterar a realidade social. Ambos sugeriam em teoria e prática que era

preciso aprender a ler a palavra e ler o mundo, isto é, interpretar os movimentos da

história e da sociedade, agindo com autonomia e criticidade.

Para Paulo Freire, segundo Peter Mclaren, – e vê-se que Violeta era solidária

à idéia –, é preciso oportunizar ao oprimido maneiras de solucionar seus problemas

sociais e de emancipação. Para isso é necessário encorajá-lo à busca do

conhecimento, é preciso alertá-lo quanto a sua condição, é preciso problematizar o

seu estar no mundo e o seu existir na história:

Freire ensinava que os oprimidos, para materializarem suas próprias ações em força revolucionária, devem desenvolver uma consciência coletiva da sua própria constituição ou formação enquanto classe subalterna, bem como um ethos de solidariedade e interdependência. (MCLAREN, 1999, p. 23)

A opção preferencial pela temática dos pobres e das classes oprimidas era

característica marcante em Violeta Parra, como pode ser observado em muitas de

suas composições, preferência que figura como base filosófica da pedagogia de

Paulo Freire. A sua Pedagogia do oprimido, por exemplo, é um grito que ecoa por

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entre as estruturas da exploração capitalista, uma vez que propõe alternativas à

reconstrução democrática em prol de uma vida melhor para os oprimidos e suas

gerações futuras. E as canções de Violeta Parra proporcionam, justamente, o

encorajamento do campesino oprimido, a sua conscientização, a sua politização,

favorecendo seu “crescimento” intelectual, cultural, social e humano.

Das composições de Violeta que explicitam essa postura pedagógica e

educacional freireana, pode-se citar “Arauco tiene una pena”, “Arriba quemando el

sol” e “Según el favor del viento”.

“Arauco tiene uma pena”, além de representar uma importante aula de

Geografia e História, é um convite a que se repense a história da conquista do país

pelos espanhóis. A saber, Arauco é uma das províncias de BíoBío, na oitava região,

ao sul do Chile. Era o lugar onde habitavam os Mapuches, os índios araucanos.

Como consta nesta composição de Violeta, o sofrimento do araucano, do

período da conquista, dura até hoje. Há ainda muitas injustiças sociais contra os

descendentes desses nativos Mapuches, os campesinos. A canção é endereçada

diretamente ao povo indígena.

Arauco tiene uma pena que no la puedo callar, son injusticias de siglos que todos ven aplicar, nadie le ha puesto remedio pudiéndolo remediar. Levántate, Huenchullán.

Un dia llega de lejos Huescufe conquistador, buscando montañas de oro, que el indio nunca buscó, al indio le basta el oro que le relumbra del sol. Levántate, Curimón.

Durante toda a composição a autora insiste para que as tribos, as

comunidades levantem-se, organizem-se e defendam-se das injustiças, da pobreza a

que são submetidos, da “pena más grande que su chamal”. Trata-se de um convite

ao levante, à resistência cultural e política, portanto à afirmação da identidade

cultural do povo indígena. O segundo verso sugere o choque cultural em relação ao

valor que os espanhóis davam ao ouro. Para os índios bastava o sol.

Antes eram os conquistadores que, “buscando montañas de oro, que el indio

nunca buscó”, aproveitavam-se da ingenuidade e pureza dos nativos explorando-os

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aos extremos. E, agora, “ya no son los españoles, los que los hacen llorar, hoy son

los propios chilenos, los que les quitan su pan”.

Esta composição é de grande efeito pedagógico e educacional, não só pelos

ensinamentos que traz, como também pelo seu efeito impulsionador às tribos

Mapuches para defenderem seus direitos de cidadãos chilenos, defenderem sua

identidade pessoal, sua identidade nacional e cultural. Tais efeitos aparecem muito

evidentes quando Violeta insiste conclamando aos chefes das diversas tribos, aos

antigos caciques para que encarem, enfrentem as injustiças e se defendam:

“levántate, Huenchullán”; “levántate, Currimón”; “levántate, Manquilef”; “levántate,

pues, Calful”; “levántate, Callupán”; “levántate, Pailahuán”. A insistência da autora

para que o campesino lute pelos seus direitos de certa forma encontra afinidade com

as idéias e princípios pedagógicos e educacionais freireanos, pois

Os escritos de Freire exibem uma percepção singular de que os oprimidos não reconhecerão sua opressão pelo simples fato de que alguém as apontou a eles. Reconhecê-la-ão através da própria experiência diária da luta pela sobrevivência. A luta cotidiana dá aos oprimidos uma razão para que levem a sério o tipo de auto-reflexão que confere autoridade a seus esforços diários pela satisfação de suas necessidades materiais e para serem tratados com dignidade e respeito. (MCLAREN, 1999, p. 26)

A identidade cultural do povo chileno – e em geral do povo latino-americano –

aparece estampada do início ao fim da composição. Ela mostra que a modernidade,

com a expansão da indústria, caminha junto da marginalização e até da extinção do

povo nativo ingênuo, humilde e desprotegido: o índio. Em “Arauco tiene una pena”

ele é um ser vencido pela urbanização. As relações de poder aqui são nitidamente

marcadas pelas “injusticias de siglos que todos ven aplicar”. Os governos, um após

outro, nada fazem em favor dos nativos, dos campesinos que há muito tempo vivem

à margem da sociedade urbana modernizada.

A canção conclama a uma revolução social que, segundo a autora, ninguém

consegue impedir. O branco “extrangeiro”, o “afuerino”, mata o índio, rouba-lhe a

terra e silencia-lhe a voz, que Violeta Parra consegue devolver por meio da música:

Entonces corre la sangre, no sabe el indio qué hacer, le van a quitar su tierra, la tiene que defender, el indio se cae muerto, y el afuerino de pie.

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Levántate, Manquilef.

Adonde se fue Lautaro perdido en el cielo azul, y el alma de Galvarino se la llevó el viento Sur, por eso pasan llorando los cueros de su cultrún. Levántate, pues, Calful.

Nesta canção, Violeta retoma, em poucas e fortes palavras, a memória

histórica do Chile na perspectiva do índio vencido pelo poder. Ela vê a verdadeira

identidade nacional indígena se perdendo, dando lugar a uma outra, construída à

base de violência. A ameaça de extinção cultural pelo extrangeiro (espanhol) é

substituída pela ameaça do compatriota chileno:

Del año mil cuatrocientos que el indio afligido está, a la sombra de su ruca lo pueden ver lloriquear, totoral de cinco siglos nunca se habrá de secar. Levántate, Callupán. Arauco tiene una pena más grande que su chamal, ya no son los españoles los que los hacen llorar, hoy son los propios chilenos los que les quitan su pan. Levántate, Pailahuán.

E Violeta tenta, a todo momento, despertar no índio a consciência de si

mesmo, usando inclusive um tom de rebeldia, sugerindo-lhe para aproveitar o

período de novas eleições governamentais para uniren-se contra a prepotência do

poder e a negligência que vêm sofrendo há muitos anos. A poeta, no entanto, sugere

que o processo supostamente democrático simbolizado aqui pelas eleições ignora a

voz dos índios, cuja queixa é totalmente ignorada.

Ya rugen las votaciones, se escuchan por no dejar, pero el quejido del indio por qué no se escuchará? Aunque resuene en la tumba la voz de Caupolicán. Levántate, Huenchullán

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Mesmo sabendo que os bravos líderes Mapuches já se foram há muito tempo,

ela invoca suas valentias: “Aunque resuene en la tumba la voz de Caupolicán”, um

dos mais valentes caudillos que lutou bravamente durante as conquistas españolas.

A canção revela plena consciência de que a construção da identidade se dá em meio

à luta pelo poder, pelo direito à voz. Não é um processo pacífico e unânime, mas

contestatório. Ela sabe que a construção da identidade passa pelo discurso

afirmativo de resistência.

“Arriba quemando el sol” é uma canção que condensa a representação

dualista dos opostos, tendo como pano de fundo a pobreza e a injustiça. Nela há

uma severa crítica social, motivada pela decepção que Violeta teve quando de sua

viagem à região dos pampas, onde presenciou uma grande pobreza e precariedade

na vida do povo daquela região. A forte comoção lhe causou tamanha tristeza que a

deixou perplexa e muda. Ela fala da perda da pluma e da voz, que quer dizer: ficou

sem jeito, desconcertada e emudeceu:

Cuando fui para la pampa llevaba mi corazón contento como un chirihue pero allá se me murió primero perdí las plumas y luego perdí la voz. Y arriba quemando el sol.

Violeta chega a comparar as minúsculas e toscas casas enfileiradas, às

conchas dos caracóis, que servem para abrigar precariamente apenas um morador,

e diz comovida:

Cuando vide los mineros dentro de su habitación me dije mejor habita en su concha el caracol o a la sombra de las leyes el refinado ladrón. Y arriba quemando el sol.

Las hileras de casuchas frente a frente si señor las hileras de mujeres frente al único pilón cada una con su balde com su cara de aflicción. Y arriba quemando el sol

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Curiosamente, ao falar do destino dos mineiros, um povo que supostamente

trabalha sob a terra, portanto à sombra, um povo que raramente vê a luz do sol,

Violeta enfatiza a metáfora do sol escaldante. O mesmo sol que os índios antes

adoravam se torna agora símbolo de tormento. Certamente ela viu um povo sofrido,

triste, embrutecido. Evidentemente, a percepção da realidade da opressão é tão

dolorosa quanto sair da escuridão da mina e ver a claridade, sentir o calor do sol. Um

povo, segundo ela, morto, pois um povo sem justiça e sem voz não existe, está

também enterrado. É um povo com a identidade perdida – o que Violeta Parra não

admite, e tenta estimulá-lo a resgatar –, e sem perspectivas de melhor futuro.

Paso por un pueblo muerto se me nubla el corazón aunque donde habita gente la muerte es mucho mayor enterraron la justicia enterraron la razón. Y arriba quemando el sol.

Ricos e pobres, patrões e trabalhadores são os pares que simbolizam, nesta

canção, a pobreza e a injustiça, conseqüências diretas da estrutura de poder de um

governo, representado pela figura do presidente. Essas desigualdades são

conseqüência da modernidade, de que fala Anthony Giddens:

Em condições de modernidade, uma quantidade cada vez maior de pessoas vive em circunstâncias nas quais instituições desencaixadas, ligando práticas locais a relações sociais globalizadas, organizam os aspectos principais da vida cotidiana. (GIDDENS, 1991, p. 83)

E sobre o semblante das mulheres sofridas, amarguradas, a canção descreve:

“las hileras de casuchas / frente a frente sí señor / las hileras de mujeres / frente al

único pilón / cada una con su balde / con su cara de aflicción”. A poeta discute a

condição em que vivem as mulheres dos mineiros e suas famílias.

Si alguien dice que yo sueño cuentos de ponderación digo que esto pasa en Chuqui pero en Santa Juana es peor. el minero ya no sabe lo que vale su dolor.

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Y arriba quemando el sol.

Para Violeta Parra, é inconcebível tanto sofrimento e desconforto para o

mineiro, que enriquece os mineradores com seu trabalho. Ao final, a poeta volta seu

olhar para a capital do país, onde estão os chefes das companhias mineradoras. A

questão que Violeta discute é a da opressão do trabalhador, do operário, o processo

de alienação em que vive o campesino, transformado em mineiro pela necessidade

que tem de trabalhar.

Me volví para Santiago sin comprender el color con que pintan la noticia cuando el pobre dice no. Abajo la noche oscura oro, salitre y carbón. Y arriba quemando el sol.

Em “Según el favor del viento”, ela descreve as condições de vida do povo

chileno pescador do sul do país e a submissão da qual eles são vítimas passivas. O

chileno, segundo ela, “vai vivendo”. Según el favor del viento significa, neste caso,

viver “com o que a vida oferece”, significa “viver conforme sua sorte”, “viver com o

pouco que tem”.

Según el favor del viento va navegando el leñero, atrás quedaron las rucas para dentrar en el puerto, corra Sur o corra Norte la barquichuela gimiendo, llorando estoy, según el favor del viento, me voy, me voy. Del norte viene el pellín que colorea en cubierta, habrán de venderlo en Castro aunque la lluvia esté abierta, o queme el sol de lo alto como un infierno sin puerta, llorando estoy, o la mar está revuelta, me voy, me voy.

Nesta canção, Violeta mostra que o chileno leva uma vida miserável e

alienada, agravada pela indiferença do governo. Tudo o que resta à poeta é chorar, é

lamentar tal sorte.

En un rincón de a barca

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está hirviendo la tetera, a un lado pelando papas las manos de alguna isleña, será la madre del indio, la hermana o la compañera, llorando estoy, navegan lunas enteras, me voy, me voy. Chupando su matecito o bien su pescado seco, acucurrado en su lancha va meditando el isleño, no sabe que hay outro mundo de raso y de terciopelo, llorando estoy, que se burla el invierno, me voy, me voy.

E esta não é a imagem do chileno que ela estava acostumada a ver. As cenas

que ela assiste são de sofrimento, de muita miséria e desolação. Nesta canção, a

educação aparece como falta, como ausência, como um direito que foi roubado ao

povo índio. Violeta percebe aqui que a educação é um privilégio ao qual os pobres

não têm acesso. E a educação mudaria radicalmente a realidade social a que

testemunha. Isso a faz sofrer e contestar:

No es vida la del chilote, no tiene letra ni pleito, tamango llevan sus pies, milcao y ají su cuerpo, pellín para calentarse, del frío de los gobiernos,llorando estoy, que le quebrantan los huesos, me voy, me voy.

Despierte el hombre despierte, despierte por un momento, despierte toda la patria antes de que se abran los cielos y venga el trueno furioso, con el clarín de San Pedro, llorando estoy, y barra los ministérios, me voy, me voy.

Violeta, então, convida-o a reagir, numa tentativa de encorajá-lo a mudar de

vida. Ela pede para que acorde, antes que seja tarde demais. Acorde, povo! Acorde

enquanto há tempo! Lute por seus direitos! Defenda o que é seu! Fique atento à

astúcia do poder e à frieza dos governantes! A seguir, Violeta lamenta também a

religião como fuga, como ato de desespero:

De negro van los chilotes más que por fuera, por dentro, con su plato de esperanza

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y su frazada de cielo, pidiéndole a la montaña su pan amargo centeno, llorando estoy, según el favor del viento, me voy, me voy.

Quisiera morir cantando sobre de un barco leñero y cultivar en sus aguas un libro más justiciero, con letras de oro que digan no hay padre para el isleño, llorando estoy, ni viento para su velero, me voy, me voy.

Para Violeta, é muito triste ver ou viver tal situação, principalmente entendendo

que é conseqüência de um projeto de modernidade que se revelou violenta e

opressora sob a forma de colonização e dominação e da má administração do país.

Por isso, nessa canção ela diz e repete: llorando estoy, según el favor del viento, me

voy, me voy.

4.4 Canções de celebração da vida e do amor

A cancão “Gracias a la vida” traz os mais radicais questionamentos sobre a

própria existência e nos faz refletir a respeito dos temas vida e morte, corpo e amor.

Ela traz uma visão de certa forma otimista, pois há motivos para se dar graças pela

experiência de viver. A canção é organizada de modo a destacar os sentidos e as

partes do corpo humano: os olhos, os ouvidos, os pés, o coração, o riso, o pranto − a

geografia do corpo. E cada estrofe termina com uma referência ao amado. Destaca-

se nela a importância dada à linguagem e ao domínio da escrita. A partir da

linguagem, a poeta nomeia o mundo ao redor. A partir da sua arte, ela reconstrói a

realidade, usando as matérias primas do riso e do pranto:

Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me dio dos luceros que cuando los abro perfecto distingo lo negro del blanco y en el alto cielo su fondo estrellado y en las multitudes al hombre que yo amo. Gracias a la vida que me ha dado tanto me ha dado el oído que en todo su ancho graba noche y día grillos y canarios; martillos, turbinas, ladrillos, chubascos, y la voz tan tierna de mi bienamado. Gracias a la vida que me ha dado tanto.

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Me ha dado el sonido y el abecedario con el las palabras que pienso y declaro madre, amigo, hermano, y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando. [...] Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado la risa y me ha dado el llanto, así yo distingo dicha de quebranto, los dos materiales que forman mi canto y el canto de ustedes que es el mismo canto, y el canto de todos que es mi proprio canto. Gracias a la vida que me ha dado tanto.

Tal perspectiva encontra grande afinidade com as idéias de Paulo Freire

quando lembra sua experiência de aprendizado da leitura da palavra, da leitura do

mundo e da leitura da palavra-mundo.

Além disso, Violeta assumia uma perspectiva que buscava definir a realidade

usando a linguagem poética, construindo imagens do mundo natural – típica do povo

campesino –, tanto quando falava de amor quanto quando expressava ódio, esses

dois pólos sempre presentes em Violeta e na sua arte. “Yo canto la diferencia” e

“Maldigo del alto cielo”, por exemplo, expressam de forma contundente a revolta e a

indignação que sente a poeta diante das injustiças que sofre o povo. “Gracias a la

vida” e “Volver a los diecisiete”, por outro lado, são composições que focam outros

aspectos da realidade, a relação amorosa, a celebração da vida e da ternura, que é

outro aspecto importante da construção identitária do povo latino-americano.

A canção “Volver a los diecisiete” traz uma belíssima celebração do amor

humano como uma experiência transformadora, engajada, responsável, muito além

do romantismo alienante. A canção nos leva a perceber o poder regenerador do

amor, que modifica a arquitetura do tempo, fazendo transitar o passado e o presente

por uma mesma porta. Por essa porta a autora resgata sua juventude, seus

dezessete anos, e ao mesmo tempo se volta ao presente:

Volver a los diecisiete después de vivir un siglo es como descifrar signos sin ser sabio competente volver a ser de repente tan frágil como un segundo volver a sentir profundo como un niño frente a Dios eso es lo que siento yo

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en este instante fecundo. Se va enredando, enredando como en el muro la hiedra y va brotando, brotando como el musguito em la piedra ay, sí, sí, sí. Mi paso retrocedido cuando el de ustedes avanza el arco de las alianzas ha penetrado en mi nido con todo su colorido se ha paseado por mis venas y hasta la dura cadena con que nos ata el destino es como un diamante fino que alumbra mi alma serena.

O caráter libertário do amor está presente na canção e envolve todas as coisas. Seu

caráter paradoxal e profundo torna as relações humanas em experiências de doação

e companheirismo, não apenas dominação e opressão. Para a poeta, o amor não

está em contraste ou conflito com a ciência, mas oferece um outro tipo de

conhecimento. O amor também constrói conhecimento, saber. E seu saber é

caracterizado pela ternura e pela sensibilidade em relação ao outro.

Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber ni el más claro proceder ni el más ancho pensamiento todo lo cambia al momento cual mago condescendiente nos aleja dulcemente de rencores y violencias solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes. El amor es torbellino de pureza original hasta el feroz animal susurra su dulce trino detiene a los peregrinos libera a los prisioneros el amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño y al malo solo el cariño lo vuelve puro y sincero.

O amor é descrito como uma experiência paradoxal, contraditória, que liberta ao

prender, que faz ascender a uma dimensão mais nobre da relação humana. Nesse

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momento, Violeta usa a linguagem religiosa como símbolo de pureza angelical.

De par en par la ventana se abrió como por encanto entro el amor con su manto como una tibia mañana al son de su bella diana hizo brotar el jazmín volando cual serafín al cielo le puso aretes mis años en diecisiete los convirtió en querubín. (PARRA, 2005, p. 147)

Se educar é proporcionar a construção de saberes, é permitir que essa

construção aconteça, é possibilitar o crescimento intelectual, cultural e social, como

vimos anteriormente, Violeta pode ser considerada, sim, uma grande educadora. Ela

pesquisou, resgatou e transmitiu os saberes do povo, contribuindo para a construção

de novos saberes, divulgando a cultura folclórica em ambientes urbanos, “ensinando”

ao povo chileno e ao sul-americano sobre suas raízes, seu folclore, sua tradição

histórica e cultural, por meio da arte poética e musical.

4.5 Criticidade, denúncia: educação para a resistência cultural

Como educação é cultura (ABBAGNANO, 2003, p. 306), pode-se considerar

Violeta Parra uma importante figura representativa da identidade cultural latino-

americana na modernidade, tendo em vista seu trabalho reflexivo, educacional,

criativo e politizado.

Embora durante toda sua trajetória de vida e profissional, ela sofresse,

também, os efeitos do ninguneo, da marginalização, do menosprezo político,

principalmente, Violeta foi importantíssima pela coragem de usar, em suas

composições, a voz do povo falando pela massa sofrida e explorada em favor de

poucos abastados; importantíssima pela coragem de dizer: “yo canto la diferencia

que hay entre lo cierto y lo falso, de lo contrario, no canto”.

Esse perfil de Violeta Parra é o maior testemunho de quem herda um contexto

social e político de inúmeros conflitos, como estampam estes fragmentos de um

discurso de Arturo Alesandri, candidato à presidência do Chile em 1920, proferido na

Convención Liberal de Santiago, em 25 de abril, segundo Hernán Godoy (1971):

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(...) El país atraviesa por uno de los momentos más difíciles de su historia. Vivimos desde hace años en medio de la anarquía y del desgobierno. Toda clase de angustias y de dificultades obstaculizan la marcha próspera de las actividades en esta patria tan cara a todos nosotros.

(...) La impotencia del gobierno ante la situación, es profundamente desastrosa para los altos y sagrados intereses sociales.

(...) En estos conflictos que, desgraciadamente, se van generalizando tanto entre nosotros, hay siempre una parte débil frente a la otra que es fuerte y poderosa;

(...) Las mujeres y los niños reclaman también la protección eficaz y constante de los poderes públicos que, cual padres afectuosos y vigilantes, deben defender a tan importante porción de sus vitales energías económicas

(...) En el mecanismo de nuestra organización administrativa falta el órgano adecuado para atender, desarrollar y fiscalizar todas las cuestiones relativas a los problemas económicos-sociales. (apud GODOY, 1971, p. 334-341)

Esse foi o contexto social e político chileno – e sul-americano, também –,

herdado por Violeta, menina, seguido de longo período de ditadura vivido pela

Violeta mulher, que vai permiti-la desde cedo, em sua arte, transcender ao que é

pessoal, para expor seus sentimentos e posição de defesa dos pobres, dos

trabalhadores mal remunerados, principalmente o povo camponês nativo,

descendente dos índios araucanos, os Mapuches. A própria Violeta Parra comenta

em versos, na sua autobiografia, a passagem desse período:

Por ese tiempo el destino se descargó sobre Chile; cayeron miles y miles por causa de un hombre indi’no. Fue tanta la dictadura que practicó este malvado, que sufre’ el profesorado la más feroz quebradura. Así creció la maleza en casa del profesor, por causa del dictador entramos en la pobreza. Le dieron, por mucha cosa, desahucio muy miserable,

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si no le gusta, hay un sable y un panteonero en la fosa. (PARRA, 1998, p. 73-75)

O caráter educacional na arte de Violeta Parra – a da música e da composição

–, se evidencia, primeiramente, por sua inserção no processo de erosão da cultura

folclórica no período da primeira metade do século XX com o advento da

modernidade. Em segundo lugar, por sua participação direta no processo de

formação e transformação da identidade cultural do povo chileno –, enquanto

investigadora da cultura tradicional de seu povo e de seu país e divulgadora dessa

cultura.

Uma outra evidência educativa e cultural da arte musical de Violeta Parra é a

multiplicidade de temas abordados e interpretados com a majestade típica e natural

da mulher camponesa. Enquanto a maioria dos cantores preocupava-se com o que

era “ditado” pela modernidade e com o retorno financeiro que a indústria cultural e

musical lhes proporcionaria, Violeta conservou a autenticidade e pureza do estilo da

mulher camponesa, rosto sem maquiagem, vestidos simples e comunicação direta

com seu público, na sua interminável lista de temas desenvolvidos.

As lições que nos são transmitidas através de suas canções são inúmeras e

vão desde política, sociologia, psicologia, filosofia, além de solidariedade e

patriotismo, tudo isso permeado de muita simplicidade e excepcional capacidade

propulsora da cultura de seu país.

Por tudo isso é que seu trabalho tem caráter educacional e pedagógico. E

bastaria somente citar suas incursões pelos vales chilenos, parte interior e esquecida

de seu país, nas primeiras décadas do século XX, ocasiões em que Violeta – por

conta própria, não só resgatou o folclore chileno da música e da dança, como

também reavivou a alegria e a inspiração do povo das regiões mais humildes e

distantes em seu país, que passou a ouvir, no rádio, as músicas da sua gente, os

sons da terra, da sua história, suas raízes folclóricas, que estavam sendo esquecidas

ou menosprezadas. E como ela mesma afirmou: “la tradición es casi ya un cadáver.”8

A partir do momento em que Violeta sentiu o folclore ameaçado de extinção,

em razão da cultura urbana, moderna, tratou de buscar sua fisionomia quase

perdida. Ela entendeu que, na diferença entre duas culturas, surgem problemas, pois

8 MORALES, Leonidas T. Violeta Parra: la última canción. Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2003, p. 46.

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uma tende a extinguir-se, se não for defendida ou protegida de possível

marginalização, possível menosprezo. Por isso decidiu ir para a cidade e levar o

discurso camponês. E por meio desse discurso, desse “diálogo”, divulgar e preservar

as raízes culturais de seu povo, principalmente do camponês que, por longos anos

de sua história, emigrou – como ela própria e sua família viveram essa experiência

diaspórica – e sofreu toda espécie de carência e perigos, afetando inclusive sua

identidade. Vê-se, também aqui, a atitude de educadora que pratica a “educação

dialógica” freireana, pois para Freire,

Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa da libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico. (FREIRE, 1987, p. 80)

As palavras melancólicas da própria Violeta a seguir (MORALES, 2003, p. 45)

registram sua intuição a respeito do futuro da cultura e da identidade campesina do

chileno em particular, e do latino-americano em geral:

Haciendo mi trabajo de búsqueda musical en Chile, he visto que el modernismo había matado la tradición de la música del pueblo. Los índios pierden el arte popular, también en el campo. Los campesinos compran nylon en lugar de encajes que confeccionaban antes en casa. La tradición es casi ya un cadáver. Es triste... Pero me siento contenta al poder pasearme entre mi alma, muy vieja, y esta vida de hoy.

Esse diálogo entre as duas culturas, a rural e a urbana, por ela promovido,

possibilitou o surgimento da ”nova canção chilena” – contendo a tradição com traços

da modernidade – que, reestrutura, reconstrói a identidade cultural chilena e latino-

americana.

Novamente admite-se que, não só a obra poética e musical de Violeta Parra,

mas tudo o que ela empreendeu em nome do povo chileno, suas incursões pelos

campos, suas pesquisas, tem caráter educacional. Seu trabalho é, na verdade, uma

proposta, um resgate e uma defesa da identidade cultural do povo chileno e latino-

americano. Logo, seu trabalho situa-se no campo da educação.

Violeta consegue realizar seu projeto que era justamente fazer o elo entre

essas duas culturas, entre o folclórico e o moderno. Com isso acaba conquistando o

povo chileno, o latino-americano e até grande parte do povo europeu, pela sua

peculiar oralidade, pela escrita, por meio do canto e das composições, e mais tarde,

também pelas pinturas, tapeçarias e esculturas em arame.

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Assim, um novo imaginário da cultura popular tradicional instala-se na

sociedade chilena e latino-americana com a arte de Violeta Parra – principalmente a

arte do canto. O que estava sendo, até então, uma cultura marginalizada, ganha

importância graças à força expressiva, singular e espontânea com que Violeta

trabalha a sabedoria popular.

A importância de Violeta Parra no campo social, bem como no campo da

educação, está na posição de investigadora e divulgadora de sua raiz cultural, que

ela assumiu desde cedo. Pode-se dizer que Violeta foi educadora e pesquisadora.

Violeta desenvolveu e educou, durante a adolescência, seu gosto pela estética e sua

consciência ética e social, num ambiente de forte presença da cultura tradicional.

Cedo passa a trabalhar no resgate do folclore chileno, motivo pelo qual algumas

universidades a convidam para dar cursos periódicos e incentivam-na no seu

trabalho de resgate cultural e na criação de museu da cultura folclórica. Por isso,

também, sua importância no território dos estudos culturais.

Reside aí, mais uma vez, o efeito educacional de seu trabalho. Sua arte

musical oferece inúmeras possibilidades como material didático e monográfico a

serem trabalhadas não só por pesquisadores, mas por professores em aulas de

língua e literatura, por exemplo, tamanho é o ensinamento que ela traz,

especialmente sobre a história sociocultural do Chile e da América Latina. E como a

prátida da interdisciplinaridade e dos temas transversais se consolida na educação

contemporânea, mais a arte de Violeta se torna relevante e viável como instrumento

pedagógico.

Aos quarenta anos de sua morte, Violeta Parra, artista universalmente

conhecida, foi uma compositora das mais criativas e prolíferas do continente latino-

americano, embora grande parte de suas composições tenham sido registradas por

autores e intérpretes chilenos, europeus, asiáticos e dos países nórdicos

(dinamarqueses, suecos e noruegueses), bem como em toda América Latina há

intérpretes de suas músicas.

Em 1965, compõe “Al centro de la injusticia”, musicado por sua filha Isabel

Parra, logo depois de sua morte. Considera-se uma reflexão e ao mesmo tempo uma

crítica social sobre o Chile, sua localização e limites geográficos. Descreve detalhes

da vida nos povoados da parte central do país, formados por famílias de “muchos

chiquillos”, que vivem na pobreza, enclausurados e alheios a tudo, multiplicando-se

espremidos nos vales, povo quase esquecido e marginalizado, pois, conforme ela

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mesma diz, “la papa nos la venden naciones varias cuando del sur de Chile es

originaria”.

Violeta faz duras críticas ao sistema económico chileno pois, “El minero

produce buenos dineros, pero para el bolsillo del extranjero”, por isso a fome e a

pobreza empurram as mulheres ao trabalho nas indústrias, ”y así tiene que hacerlo

porque el marido, la paga no le alcanza pa’l mes corrido”.

Ela se dirige ao turista dizendo-lhe que nem tudo é bonito e colorido na pátria

chilena, conforme sua bandeira, pois o dinheiro que se gasta em parques e

alamedas para impressionar os estrangeiros daria para salvar vidas nos hospitais e

para matar a fome dos miseráveis.

Esta é uma de suas canções que expressam um sentimento conflitivo com

relação ao trabalho dos governantes e ao mau uso do poder. Esta canção é também

um grito – como o de Paulo Freire – que ecoa e perpassa a cordilheira, chegando

aos lugares mais distantes, fazendo-se ouvir não só pelos turistas, pelos

estrangeiros, mas, desde as cidades até os campos.

Linda se ve la patria señor turista, pero no le han mostrado las callampitas. mientras gastan millones en un momento, de hambre se muere gente que es un portento

Por isso Violeta diz que “Chile limita al centro con la injusticia”, esboçando

assim, um negativo e pessimista discurso patriótico e nos remetendo a uma aula não

só de Geografia, mas de História e de Sociologia. Ali ela faz a crítica do abuso da

autoridade, da alienação política e do mercado internacional, que simboliza toda uma

dominação estrangeira que passa pela exploração do minério e do trabalho dos

mineradores. Violeta já discutia em suas canções os riscos da globalização, da

internacionalização da economia mundial.

La papa nos la venden naciones varias cuando del sur de Chile es originaria. Delante del emblema de tres colores la minería tiene muchos bemoles. El minero produce bueno dineros, pero para el bolsillo del extranjero...

A canção mostra como o drama econômico mundial e nacional se reflete na

vida familiar dos mineiros chilenos, como as políticas econômicas externas se

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tornam tragédia doméstica.

Y así tiene que hacerlo porque el marido la paga no le alcanza pa’l mes corrido. Pa’ no sentir la aguja de este dolor en la noche estrellada dejo mi voz.

A poeta questiona o olhar do turista, do estrangeiro que visita o país e que

busca apenas o exótico, o típico, e não enxerga a fome pela qual passa o povo que

está a visitar. Suas denúncias são explícitas e fortes.

Linda se ve la patria señor turista, pero no le han mostrado las callampitas. Mientras gastan millones en un momento, de hambre se muere gente que es un portento.

Mucho dinero en parques municipales y la miseria es grande en los hospitales. Al medio de la Alameda de las Delicias, Chile limita al centro con la injusticia.

“Ayudáme Valentina” é uma de suas várias composições de cunho filosófico e

científico, escrita entre 1960 e 1963. Nela, Violeta dialoga com a cosmonauta russa,

Valentina Wladmirovna Tereshkova – a primeira mulher na história a viajar no

espaço – sobre a grande quantidade de padres, pastores e profetas que têm surgido

nos últimos anos e que se valem da ignorância e da ingenuidade do povo para iludi-

lo com falsas crenças em falsos milagres. Falam de aparições, inferno, purgatório,

anjos e demônios.

Indiretamente, Violeta Parra critica o aparecimento de tantas religiões, tantas

igrejas, tantos pregadores que fazem tudo em nome de Deus, e pede à Valentina

que a ajude a resolver sérios problemas e sanar dúvidas com relação às instituições

religiosas, quando diz: “Qué vamos a hacer con tanto / tratado del alto cielo /

ayúdame Valentina / Ya que tú volaste lejos / dime de una vez por todas / que arriba

no hay tal mansión”.

Nesta composição, Violeta Parra deixa transparecer que, para ela, a figura de

Valentina é de uma representante dos céus, contrapondo-se à imagem de Maria.

Violeta aqui traça quase um paralelo entre a ciência e a religião, entre a verdade e a

mentira. Depois, convida-a a romper toda essa teia de discursos criada pelas

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instituições religiosas ou filosóficas “con tanta mentira desparramada”. Violeta

externaliza sua revolta e sua posição contrária à manipulação do discurso que

obscurece a verdade. Ela reivindica a ciência e seu poder desmitificador. Portanto, a

canção celebra a bravura da mulher e o caráter luminar e emancipatório da ciência.

Entre as canções de Violeta Parra, a que mais diretamente trata da questão

da educação e a que marca seu posicionamento a favor do conhecimento, da ciência

e do aprendizado é “Me gustan los estudiantes”, escrita entre 1960 e 1963. Trata-se

de uma de suas últimas composições de cunho social, que traz implícitos conceitos

pessoais sobre a importância das instituições de ensino, sobre os estudantes e sobre

a educação em si. Diante da injustiça dos poderosos, Violeta interpela contra a

manipulação da verdade e clama pela ciência para desmitificá-la:

Que vivan los Estudiantes, jardín de las alegrias! son aves que no se asustan de animas ni policías y no le asustan las balas ni el ladrar de la jauría. Caramba y zamba la cosa que viva la astronomia!

Para ela, o caráter da educação é de reconstrução social e política constante,

é sinônimo de luta, de revolução, que promove sempre uma mudança e uma

melhora social e política. Educação é instrumento de transformação histórica. Por

isso ela diz que os estudantes são a esperança na recuperação dos valores sociais,

“son aves que no se asustan de ánimas ni policías y no le asustan las balas ni el

ladrar de la jauría”.

Que vivan los estudiantes que rugen como los vientos cuando les meten al oído sonatas o regimientos! Pajarillos libertários, igual que los elementos. Caramba y zamba la cosa vivan los experimentos!

Sua canção mostra a importância do estudante, portanto da educação, para a

vida do pobre, para os quais a educação chega como um pão saboroso, que mata a

forme e que traz sabor, prazer. Aliás o saber está sempre muito próximo do sabor.

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Ademais, o conhecimento, para Violeta, está carregado de implicações éticas e

políticas. Não há conhecimento neutro, mas sempre historicamente localizado e

politicamente determinado

Me gustan los estudiantes porque son la levadura del pan que saldrá del horno con toda su sabrosura, para la boca del pobre que come con amargura. Caramba y zamba la cosa viva la literatura! Me gustan los estudiantes porque levantan el pecho cuando les dicen harina sabiéndose que es afrecho, y no hacen el sordomudo cuando se presenta el hecho. Caramba y zamba la cosa el código del derecho!

O caráter questionador do conhecimento e da educação se manifesta na

medida em que os estudantes aprendem a enfrentar o poder militar, político e

religioso (do confessório e das indulgências), a contestar versões deturpadas de

realidade. “Me gustan los estudiantes” mostra, não só o sentimento de amor que

Violeta tinha pelo povo, por sua nacionalidade, mas também sua preocupação com a

educação e a juventude. Nesta canção, ela não só proclama o valor da liberdade – a

liberdade proporcionada pelo saber, pela “educação libertária” –, como também

exalta a figura dos estudantes, que simbolizam a força da mudança social e

reconstrução nacional a partir das ruínas.

Em argumento de Peter Mclaren,

A pedagogia de Paulo Freire é antiautoritária, dialógica e interativa, colocando o poder nas mãos dos estudantes e trabalhadores. E, o mais importante, a pedagogia freireana situa a análise da vida cotidiana no centro do currículo. (MCLAREN, 1999, p. 25)

E a canção prossegue sua celebração, seu “viva”. Ao final de cada estrofe, a cantora

celebra e destaca um aspecto da educação: que viva a astronomia, que vivam os

experimentos, que viva a literatura, que viva o código de direito, que vivam os

especialistas, os libros explicatórios, que viva toda a ciência.

Me gustan los estudiantes

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que marchan sobre las ruínas. con las banderas en alto va toda la estudiantina: son químicos y doctores, cirurjanos y dentistas. Caramba y zamba la cosa vivan los especialistas!

Muitas de suas composições são assim, marcadas por um forte sentimento

patriótico, e é nessa perspectiva que ela vê a importância da educação,

representada na canção pelos estudantes, exaltando os futuros químicos, doutores,

cirurgiões, dentistas e demais “especialistas”.

A visão libertária de Violeta Parra, implícita nesta canção, se relaciona

diretamente com o conflito ideológico advindo da disputa pela importação de

modelos europeus e americanos, que sofreu e ainda sofre o Chile – e mais

amplamente a América Latina –, e que fazem parte do processo de modernização.

Esses conflitos interferem diretamente na educação e na identidade cultural de um

povo. E Violeta, que além de pesquisadora e divulgadora dos valores tradicionais da

cultura chilena e latino-americana – por isso educadora –, expõe seus sentimentos

de cidadã patriota e sensível aos problemas nacionais provocados pela

modernidade.

Me gustan los estudiantes que van al laboratorio, descubren lo que se esconde adentro del confesorio. Ya tiene el hombre un carrito que llegó hasta el purgatorio. Caramba y zamba la cosa los libros explicatorios! Me gustan los estudiantes que con muy clara elocuencia a la bolsa negra sacra le bajó las indulgencias. porque, hasta cuando nos dura señores la penitencia. Caramba y zamba la cosa que viva toba la ciencia!

Violeta estampa, em “Me gustan los estudiantes”, a crise gerada por essas

tensões sociais, como sintomas do contexto e do período em que viveu,

cuando los estudiantes rugen como los vientos

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y marchan sobre las ruínas con las banderas en alto y van al laboratorio y descubren, con muy clara elocuencia, lo que se esconde a dentro del confesorio.

Por isso sua bela exaltação aos estudantes “pajaritos libertários”: los químicos y doctores, cirurjanos y dentistas y todos los especialistas. Que viva toda la ciencia!

Assim reconhece-se Violeta Parra como educadora e construtora de conhecimento,

identidade nacional e consciência histórica e política.

Uma última canção a ser analisada é a que leva o título de “Violeta AusenteI”,

uma canção que retoma a experiência de exílio e distanciamento da pátria. Esta

canção foi selecionada porque traz a construção identitária a partir do estrangeiro, do

habitat do outro, do lugar da alteridade. Violeta está em Paris e lamenta sua saudade

da sua terra natal. Ela diz:

¿Por qué me vine de Chile tan bien que yo estaba allá? Ahora ando en tierras extrañas, ay, cantando como apenada. Tengo en mi pecho una espina que me clava sin cesar en mi corazón que sufre, ay, por su tierra chilena. Quiero bailar cueca, quiero tomar chicha, ir al mercado y comprarme un pequén. Ir por Matucana y pasear por la quinta y al Santa Lucía contigo mi bien. Antes de salir de Chile yo no supe comprender lo que vale ser chilena: ay, ahora sí que lo sé. Igual que lloran mis ojos al cantar esta canción, ay, así llora mi guitarra penosamente el bordón. Qué lejos está mi Chile, lejos mi media mitad, qué lejos mis ocho hermanos,

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ay, mi comadre y mi mamá. Parece que hiciera un siglo que de Chile no sé nada, por eso escribo esta carta, ay, la mando de aquí pa' allá. (composto entre 1954-1957)

A experiência da poeta é de sofrimento pela distância dos elementos de sua cultura,

os lugares familiares, seu povo, as canções, as festas, as danças, os irmãos. O

tempo do distanciamento parece arrastar-se por séculos, segundo a canção. De

qualquer forma, vale lembrar que nossa noção de identidade se intensifica a partir da

experiência da diáspora e do ser estrangeiro. Essa experiência contribuiu para que

Violeta percebesse ainda mais a importância de suas raízes culturais: “Antes de salir

de Chile / yo no supe comprender / lo que vale ser chilena: / ay, ahora sí que lo sé”.

4.6 A identidade pessoal e cultural nas Décimas de Violeta Parra

As décimas são um gênero lírico derivado da poesia culta espanhola do

século de ouro, que repercute na América Latina por ocasião da instalação de

colégios religiosos e das primeiras universidades. Caracterizam-se pela facilidade de

memorização que elas proporcionam aos poetas populares, bem como pela

facilidade de sua transmissão oral, de geração à geração (NAVARRO, 2005, p. 73).

Sobre sua definição, o dicionário Clave: diccionario de uso del español

actual, com prólogo de Gabriel García Márquez, traz o seguinte: Décimo, ma. En

métrica, estrofa formada por diez versos octosílabos de rima consonante y cuyo

esquema es abbaaccddc. Las primeras décimas aparecen en el siglo XVI, en un libro

de Vicente Espinel, titulado “Diversas rimas” (p. 545).

As Décimas são também chamadas de “espinelas”, por terem sido publicadas

pela primeira vez pelo escritor e poeta Vicente Espinel, segundo Navarro (2005 p.

72):

Fue así que a fines de siglo el escritor y poeta don Vicente Espinel presenta su décima, también octosilábica, pero que establece de cierta manera el orden de las rimas, dejándolas ABBAACCDDC y en consonantes [...]

Ainda segundo Navarro (2005 p. 72), no século XVI as Universidades promoviam

concursos literários de décimas:

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Así, la décima espinela se instala en pleno Siglo de Oro, repercutiendo en el Nuevo Mundo a medida que se iban instalando universidades y colégios religiosos. La Imperial Pontificia Universidad Mexicana hacía concursos para premiar a los poetas, y de uno de aquellos concursos resulto ganadora Sor Juana Inés de la Cruz, célebre poetisa mexicana que escribió muchas “espinelas”.

No século XIX, na América-hispânica as Décimas tomaram conta do

repentismo, da improvisação e da literatura, segundo Navarro.

Comentando sobre a importância da publicação das Décimas para a

popularidade de Violeta, Alfonso Alcalde, em seu livro Toda Violeta Parra, assim se

pronuncia: “La aparición de las ‘Décimas’, basfemante biografía escrita en versos

chilenos, la rescató definitivamente del olvido a donde estaba destinada por la crítica

oficial” (1981, p. 17).

Em tempos modernos, escrever e/ou cantar à moda dos poetas da

Antigüidade clássica requer inteligência, empenho, muita força – fuerza de gallo

castizo –, requer vontade e obediência à rima e métrica, o que Violeta Parra confirma

logo no início de sua narrativa:

Pa’ cantar de un improviso se requiere buen talento, memoria y entendimiento, fuerza de gallo castizo. Cual vendaval de granizos han de florear los vocablos con muchas bellas razones, como en las conversaciones entre San Pedro y San Paulo. (p. 23) También, señores oyentes, se necesita estrumento, muchísimos elementos y compañero ‘locuente; ha de ser güen contendiente, conoce’or de l’historia; pa’ entablar un desafío, pero no me da el sentí’o pa’ finalizar con gloria. (p. 23)

Nas suas Décimas, independentemente de serem ou não autobiográficas, há

um magnetismo que brota em cada verso e reveste toda a estrofe. Em se falando

das décimas autobiográficas, esse magnetismo vem acompanhado de uma

atmosfera de dramaticidade, sem interferir na imagem da autora e protagonista, cuja

personalidade forte e calorosa se sobrepõe, deixando o leitor satisfeito e encantado

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com tamanha habilidade e verossimilhança na composição de seus relatos. Em cada

verso que escreve, Violeta vai narrando a sua história, tecendo fios de sua própria

identidade pessoal e cultural, ligando-a com a de outras pessoas que vai

conhecendo pelo caminho. Como vimos no capítulo teórico, a identidade é de fato

construída pela narrativa, pelo discurso que fazemos de nós mesmos.

Violeta Parra se auto-biografa de maneira espontânea e com muita

autenticidade, além de fazê-lo poeticamente. A onisciência da autora/protagonista

possibilita ao seu eu lírico expor-se naturalmente, expor sua identidade feminina de

filha, de esposa e de mãe, descrevendo seus diversos estados emocionais e

sentimentais experimentados nas relações com as outras pessoas, queridas ou não,

além de experiências obtidas em momentos de solidão.

En este mundo moderno qué sabe el pobre de queso, caldo de papa sin hueso. Menos sabe lo que es terno; por casa, callampa, infierno de lata y ladrillos viejos Cómo le aguanta el pellejo? eso si que no lo sé. Pero bien sé que el burguês se pit’ al pobre verdejo. (p. 36) Los tiempos se van volando Y van cambiando las cosas; creció en el trigo melosa, la siembra fue castigando, fue la cosecha mermando, l’esperanza queda trunca, la gente no sabe nunca lo que mañana l’espera. Cayéndose l’escalera de manos se queda zunca. (p. 48) De nuevo yo solicito perdón por irme alejando. Lo que les iba explicando se me refala solito. El pensamiento infinito traicióname en cada instante, no puede ni el más flamante pasar en indiferencia si brilla en nuestra conciencia amor por los semejantes. (p. 48)

Em suas décimas ela conta e canta a vida com simplicidade e imaginação,

exaltando os mistérios e as surpresas cotidianas que permearam toda a trajetória,

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sua e de sua família, que representa, na verdade, a identidade do povo camponês

chileno de sua época. Predomina em seu texto das Décimas a descrição do mundo

da pobreza, do mundo da oposição entre pobres e ricos. Um mundo de sofrimento,

insegurança e medo, o seu mundo, com o qual ela se identificava por duas razões:

pertencimento e ideologia. Sua identidade está íntimamente ligada à identidade do

seu povo.

Ela resgata sentimentos e recordações, expressando-os artisticamente:

Presencian mis dos pupilas desfile muy singular de cosas para entregar cosidas por mi mamita. Camisas y camisitas, un traje pa’ levantarse, un biombo para ocultarse de ojos impertinentes, cotonas de dependientes y sábanas pa’ acostarse. Un día muy de mañana se acerca con su marido, en busca de su vestido una preciosa gitana. Yo misma por la ventana le paso aquel ancho traje, variado como plumaje de pavo chinesco real, más tarde la vi bailar con este hermoso ropaje. (p. 97)

Conforme descreve a Drª María Éster Martínez Sanz, da Pontifícia

Universidade Católica do Chile, as décimas de Violeta Parra são uma obra de arte: Las Décimas se transforman así en obra de arte por su peculiar proceso de enmarcamiento, por su audición curandera de la memoria del clan, por sus bosquejos fallidos de una patria madrasta, castigadora, que trascienden el territorio de lo evocado con un espacio propio, peculiar del diálogo familiar entablado por la protagonista con nosotros, sus lectores. En resumen, la veracidad poética de las Décimas: autobiografía en verso transforma el aquí y el ahora de una mujer llamada Violeta Parra, en un símbolo de lo femenino. El yo poético revela imágenes tan preñadas de significación, que las ideas y sentimientos devienen un discurso cultural y, claramente, una conciencia femenina heterosexual.9

9 Fragmentos do texto: Las Décimas de Violeta Parra: Del yo individual a lo universal, da professora da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Drª Maria Éster Martinez Sanz, publicado no site “Tu

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E, como já se afirmou em capítulos anteriores que “identidade” é percurso, é

viagem, é trajetória, as décimas autobiográficas de Violeta Parra apresentam a

construção da sua identidade, marcada pela opção artística, pela música, pela

poesia:

Toco vihuela, improviso, compongo mis melodías, las noches las hago días pensando si lo preciso; buscando el oro macizo salgo volando al camino, y el versear “a lo divino” es oro de gran quilate. Si pa’ vos es disparate pa’ mí no, pues, Secundino. (p. 38) Gracias a Dios que soy fea y de costumbres bien claras, de no, qué cosas más raras entraran en la pelea; donde llueve y no gotea se van pasando los años, “cuesta subir los peldaños si está apartando el amor”, dice un seños locutor a una artista en el escaño. (p. 158)

É a história do percurso de vida das mulheres que lutam, caem, levantam por

suas próprias valentias e voltam a lutar sem se deixarem abater diante de problemas

de qualquer espécie, sejam financeiros, sociais, políticos, amorosos ou familiares:

Yo siento cada mañana la voz del padre cura’o, no sabe ‘l mal que ha causa’o le están blanqueando las canas. Prosiguen las damajuanas su desfilar ordinario, ya no lo nombran los diarios; yo sufro la confusión de ver nuestra canción en la jaula del canario. Con la escasez del dinero mezquino es el alimento, son pocos los elementos que cuentan en el puchero.

salón de lectura em Español – Proyecto Patrimônio”: www.letras.s5.com/violeta121002htm, acessado e impresso em 28 de setembro de 2005.

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No vino más el lechero, de meditarlo no mermo, lo veo cuando me duermo, se me clavó en la razón, no piensen que con rencor, porque mi taita era enfermo. (p. 102) El mundo es una escalera el que no sube, pues baja al hoyo con la mortaja de la maldad pendenciera. Aquel de malas maneras, habrá de tener castigo, no ha de quedar abrigo, lo dice la Santa Biblia, y en sus palabras auxilia al triste y al perseguido. (p. 104)

Há, também, em suas Décimas, algumas evocações à infância e a momentos

felizes dessa época, como por exemplo, aqueles quando cometia travessuras com

seus irmãos:

Como nací pat’e perro, ni el diablo m’echaba el guante; para la escuela inconstante, constante para ir al cerro. Lo paso como en destierro feliz con los pajaritos, soñando con angelitos; así me pilla fin de año, sentada en unos escaños; quisiera ser arbolito! No allaba fiesta mayor que andar con Tito en las rosas cazando mil mariposas, sanjuanes y moscardón, palote y grillo cantor, luciérnagas relumbrantes, baratas y matapiojos, hasta el dañino gorgojo pa mi hermano estudiante. (p. 99)

Violeta, em sua auto-biografia em Décimas, descreve o mundo da pobreza em

que viva, seu sofrimento, medo e insegurança com relação ao futuro, na busca por

um trabalho:

No lloro yo por llorar sino por allar sosiego, mi llorar es como un ruego

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que naide quier’ escuchar, del ver y considerar la triste calamidá’ que vive l’humanidá’ en toda su longitú’; l’escasez de la virtú’ es lo que me hace llorar. Ayer buscando trabajo, llamé a una puerta de fierro, como si yo fuera un perro me miran de arrib’ abajo, con promesas a destajo me han hecho volver cien veces, como si gusto les diese al verme solicitar; muy caro me hacen pagar el pan que me pertenece. (p. 145)

Os casamentos, os amores doentios, as aventuras e desventuras, forjam na

identidade de Violeta Parra constantes indagações. E toda experiência adquirida a

orienta para a tomada de importantes decisões ao longo de sua vida:

Entré al clavel de amor cegada por sus colores, me ataran los resplandores de tan preferida flor; ufano de mi pasión dejó sangrando una herida que lloro muy conmovida en el huerto del olvido, clavel no ha correspondido, qué lágrimas tan perdidas. (p. 195) Este clavel lisonjero me causa tal confusión que deja mi corazón a mil grados bajo cero, quisiera que un relojero me acompasara el latido y me componga el sentido, que es tanta mi oscuridad por una loca maldad d’este clavel ofensivo. (p. 195) Empieza de nuevamente mi corazón la batalla, el hombre es una muralla de piedras omnipotente;

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¿por qué tu cuerpo consiente los golpes de tal martillo? Quien lo maneja es un pillo criado en los callejones, palabras de maricones y sangre de vinagrillo. (p. 202)

Ao tecer sua auto-biografia, Violeta constrói sua identidade e a contextualiza na

história do seu país e na cultura do seu povo. As Décimas são um precioso

documento da construção identitária pessoal e cultural de uma importante

cantautora, pesquisadora e educadora (em seu sentido mais amplo) chilena.

Violeta, enfim, foi grande pesquisadora e agitadora cultural, revelando

preocupação com as questões sociais, com as novas gerações, com o aprendizado

e o ensino da ciência, com a comunicação da informação, com ação justa, com o dar

voz aos excluídos e silenciados do seu tempo. Seu trabalho multifacetado envolve

arte, linguagem, filosofia política, consciência histórica e posicionamento ético. Ela

propõe uma leitura de mundo e de história que afina-se em muito com os

pensamentos avançados de nosso educador Paulo Freire. Para ela, a educação é

vista como prática social, como participação, como engajamento.

5 Considerações finais

As curiosidades, as “vontades de saber” que provocavam o meu ser e

impulsionaram-me a esta pesquisa, ao contrário de saciar-me, como ingenuamente

eu acreditava acontecer, levaram-me a perceber o quão imensurável é o território

dos Estudos Culturais, e o quão prolífero e amplo se nos apresenta seu cenário de

temas a serem estudados, pesquisados, investigados.

E nesse vasto cenário dos Estudos Culturais, fixar-me no lugar onde se

posiciona a identidade já era um sonho que, por muito tempo permaneceu indefinível

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em mim. Talvez por falta de coragem para “ousar” desvendá-lo, ou por medo mesmo,

do desconhecido. Hoje, concordando plenamente com Sêneca, também digo que

“muitas coisas tornam-se cada vez mais difíceis, cada vez mais indefiníveis, tantas

vezes quantas deixarmos de ‘ousar’ conhecê-las”. Se não investirmos na busca, na

descoberta, na investigação daquilo que nos inquieta, se não satisfizermos nossas

curiosidades, nossas vontades de saber, se não avançarmos em nossos saberes,

até quando suportaremos esta sede?

Das inquietudes advindas de minhas curiosidades e minhas “vontades de

saber”, emergiu-me um impulso – quase maior que eu – e, assim, avancei um pé,

depois outro, no terreno que ora caminho e que me traz até aqui. Um terreno de

pedras – preciosas –, um terreno onde pretendo fixar residência, o terreno da

pesquisa e do saber. Nele quero permanecer.

Lembro-me, nitidamente, dos dias e dos momentos de expectativas, quando

das etapas que enfrentamos para conseguir uma das vagas para o ingresso no curso

de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC.

Foram etapas vividas intensamente, uma a uma.

Devo confessar que já não sou a mesma desde que iniciei o curso de

Mestrado em Educação. Primeiro, porque a Universidade e o próprio curso

ofereceram-nos o que há de melhor na área de ensino e pesquisa em educação.

Desde o programa, a coordenação, o corpo docente, mantiveram forte

comprometimento com a nossa formação. E segundo porque, pesquisar a identidade

latino-americana foi – e está sendo – como banhar-me num lago fantástico, formado

por águas claras e correntes. E, por isso, não posso furtar-me de agradecer a Deus

por esse privilégio.

Nesta pesquisa, os estudos dos textos de Stuart Hall, feitos com a visão de

quem tenta compreender o processo de formação e transformação das identidades,

proporcionou-me imenso prazer, permitindo-me conhecer um pouco sobre a

“metamorfose” – roubando aqui o termo de Kafka – por que passam as identidades

no decorrer dos tempos. Em minha pesquisa sobre identidade na modernidade pude

perceber, pelos ensinamentos de Hall, Giddens, Mclaren e demais teóricos dos

estudos culturais, que o próprio processo de identificação está se tornando cada vez

mais provisório e, conseqüentemente, problemático. Sendo assim, pode-se dizer

que, nem sempre o moderno é o melhor. Giddens (1991), ao escrever dizendo que a

modernidade tem seu lado “sombrio”, quis referir-se às conseqüências que

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acompanham a modernização. Os descentramentos e a conseqüente fragmentação

das identidades são umas dessas conseqüências dos processos modernizadores.

Ao pensar o nosso continente e nossa identidade cultural na modernidade

globalizada, neste estudo compreendi que, à medida em que globalizam-se a

economia, cada vez mais complexo torna-se o processo de formação cultural e

identitária. E, conforme nos ensina Néstor García Canclini (2006), o território

contextual latino-americano é um lugar de constante processo social de mistura e

surgimento de novas estruturas. Dada a multiculturalidade latino-americana,

entende-se que as identidades, as culturas, quase se “diluem” enquanto se mesclam,

se entrelaçam e vão tomando conta umas das outras, acompanhando assim, os

movimentos evolutivos das sociedades e do pensamento humano, hoje provocados

pela globalização e pelo multiculturalismo. E, nesse raciocínio reporto-me a Violeta

Parra, ao estribilho da sua canção Volver a los diecisiete, que serve de metáfora a

esse processo de mestiçagem, de miscigenação, de “enredamento”: se va

enredando, enredando, como en el muro la hiedra, y va brotando, brotando, como el

musguito en la piedra.

O título desta pesquisa, Violeta Parra: identidade cultural latino-americana

moderna, levou-me à “hibridação das culturas”, de Canclini, e compreendi que o

sujeito latino-americano e a própria cultura encontram-se tão híbridos que, hoje é

quase impossível classificá-los quanto a sua pureza. Nós os latinos somos

constituídos de uma mistura étnica, uma mestiçagem e além disso há outros matizes

provocados pela modernidade. A fusão entre o popular e o erudito é um desses

matizes. Daí a impossibilidade , segundo Canclini (2006) de existir, ou pelo menos de

se separar uma identidade de outras. É quase impossível falar, hoje, em uma

identidade pura.

E Giddens, corroborando argumentos de Canclini, fala-nos sobre As

conseqüências da modernidade e sobre Modernidade e identidade e assim,

permite-nos saber que, as instituições modernas, no seu dinamismo e seu grau de

interferência que mantém com o que é tradicional, tornam-se diferentes de todas que

as antecederam. Concordo com Giddens quando diz que a modernidade modifica

radicalmente nossa natureza social, nosso cotidiano, afetando inclusive, aspectos

pessoais, tranformando nossas identidades. Além disso, foi possível entender que

caminhamos para um outro tipo de ordem social diferente.(Giddens 2002-1991).

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Ao pesquisar sobre educação, para fazer a inserção de Violeta Parra, seu

trabalho de folclorista e sua obra musical no território da Educação, recorri a Paulo

Freire, seu livro Pedagogia do oprimido e sua filosofia pedagógica que, em

inúmeros pontos foi podido relacionar o trabalho pedagógico de ambos, em prol do

oprimido, em prol do povo campesino. Além da latinidade de ambos, suas atividades

e idéias, em muitos pontos se identificam, como se mostrou no início desta

dissertação. De grande importância, para mim, foi constatar a relação entre a filosofia

educacional freireana e o trabalho de Violeta Parra no afã de conscientizar o povo

campesino de seu “ser” e de seu “estar” na sociedade. E é justamente esta posição

de Violeta que a faz educadora. Mas, além da constatação de pontos em comum no

trabalho de ambos, é relevante que se responda a seguinte indagação:

Qual a importância de Violeta Parra para a educação?

Bastaria o fato de ela ter sido uma pesquisadora, investigadora do folclore,

para lhe darmos a referida importância. Mas, Violeta não só investigou como também

compilou, reescreveu, redimensionou e divulgou a tradição cultural chilena.

Violeta por meio de suas canções, problematizou a realidade, iniciando um

processo de conscientização não só do povo campesino mas, do povo urbano

também. Violeta chamou atenção para as discrepâncias entre o campo e a cidade,

para os prejuízos que a modernidade vinha causando, não só na vida social do

chileno mas, na sua identidade pessoal e cultural.

Ao analisar suas canções, buscando “mirarlas” como importantes projetos

educacionais no sentido mais amplo – não apenas institucional – percebi que, na

realidade, sua importância como “técnica educacional” vai muito além do imaginado,

dada a riqueza de elementos históricos, educacionais, sociais e identitários de que

elas são constituídas. Muitos ensinamentos estão implícitos nas músicas de Violeta

Parra. Elas constroem uma identidade cultural, enquanto falam de política, história,

na exaltação aos “Estudiantes”, enquanto falam do “aprender”, do “abecedario” que

“con él las palabras que pienso y declaro” e que ele é “luz alumbrando”. Tudo isso dá

ao trabalho de Violeta Parra como folclorista o caráter educacional. A própria arte

musical que ela desenvolvia era verdadeiro projeto de restabelecimento, de

reconstrução de identidade. A identidade do campesino, a raiz da cultura chilena

que, como ela mesma constatou e disse, “parecía ya un cadáver”. Com suas

canções Violeta chamou o povo para a luta pelos seus valores, seus direitos, que se

perdiam velozmente, por pressão da economia mundial. Violeta encorajou o

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campesino à luta em defesa da sua dignidade. Violeta ensinou o povo campesino a

“ler” o mundo, a ler a realidade em que ele estava inserido.

Nesta pesquisa, além dos autores citados, foram utilizados importantes textos

virtuais, formando assim, a base para o desenvolvimento desta escritura e, ao

mesmo tempo, para o alento às minhas inquietudes e aos meus desejos de saber.

O resultado maior e melhor desta pesquisa é a satisfação de perceber-me

transformada, crescida, interior e intelectualmente e “desejosa de saber”, mais do

que antes, pois, habita em mim um interesse permanente em conhecer as “razões de

ser”, do comportamento, do discurso e das ações de determinados indivíduos, isto é,

um interesse em estudar o sujeito, seu contexto histórico e sua obra.

Eis o porquê da escolha desta linha de pesquisa: a do sujeito identitário latino-

americano da nossa era. Eis o porquê de eleger-se Violeta Parra como figura

representativa da identidade cultural na América Latina.

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ANEXOS

Casamiento de negros Se ha formado un casamiento todo cubierto de negro, negros novios y padrinos negros cuñados y suegros, y el cura que los casó era de los mismos negros. Cuando empezaron la fiesta pusieron un mantel negro luego llegaron al postre se sirvieron higos secos y se fureron a acostar

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debajo de un cielo negro. Y allí están las dos cabezas de la negra con el negro, amanecieron con frío tuvieron que prender fuego, carbón trajo la negrita carbón que también es negro. Algo le duele a la negra vino el médico del pueblo recetó emplastos de barro pero del barro más negro que le dieron a la negra zumo de maqui de cerro. Ya se murió la negrita que pena pa’l pobre negro, la puso dentro un cajón cajón pintado de negro, no prendieron ni una vela ay, que velório más negro. Yo canto la diferencia Yo canto a la chillaneja Si tengo que decir algo y no tomo la guitarra por conseguir un aplauso yo canto la diferencia que hay de lo cierto a lo falso de lo contrario no canto. Les voy hablar enseguida de un caso muy alarmante atención al auditorio que va a tragarse al purgante ahora que celebramos el dieciocho más galante la bandera es un calmante. Yo paso el mes de septiembre con el corazón crecido de pena y de sufrimiento de ver mi pueblo afligido el pueblo amando la patria y tan mal correspondido la bandera por testigo. En comandos importantes Juramento a la bandera sus palabras me repican de tricolor las cadenas con vigilantes armados

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en plazas y en alamedas y al frente de las Iglesias. Los ángeles de la guarda vinieron de outro planeta porque su mirada turbia su sangre de mala fiesta profanos suenan tambores clarines y bayonetas dolorosa la retreta. Afirmo señor ministro que se murió la verdad hoy día se jura en falso por puro gusto no más engañan al inocente sin ni una necesidad y me hablan de libertad. Ahí pasa el señor vicario con su palabra bendita. ¿Podría, su santidad oírme una palabrita? los niños andan con hambre, les dan una medallita, o bien una banderita. Por eso su señoría dice el sabio Salomón hay descontento en el cielo en Chuqui y en Concepción ya no florece el copihue y no canta el picaflor centenário de dolor. Un caballero pudiente agudo como un puñal me mira con la mirada de un poderoso volcán y con relámpagos de oro desliza su Cadillac. ¡Y viva la libertad! De arriba alumbra la luna con tan amarga verdad la vivienda de la Luisa que espera maternidad sus gritos llegan al cielo nadie la puede escuchar en la fiesta nacional. No tiene fuego la Luisa ni una vela ni un pañal el niño nació en las manos de la que cantando está

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por un reguero de sangre va marchando un cadillac cueca amarga nacional. La fecha más resaltante la bandera va a flamear la Luisa no tiene casa la parada militar y si va al parque la Luisa adónde va a regresar cueca larga militar. Yo soy a la chillaneja señores para cantar si yo levanto mi grito no es tan sólo por gritar perdóneme el auditório Si ofende mi claridad cueca larga militar. Santiago penando estás Mi pecho se alla de luto por la muerte del amor, en los jardines cultivan las flores de la traición, oro cobra el hortelano que va sembrando rencor, por eso llorando estoy. Los pajaritos no cantan, no tienen donde anidar, ya les cortarán las ramas donde solían cantar, después cortarán el tronco y pondrán en su lugar una letrina y un bar. El niño me causa espanto ya no es aquel querubín, ayer jugaba a la ronda hoy juega con el fusil, no hay ninguna diferencia entre niño y alguacil, soldados y polvorín. Adónde está la alegría del Calicanto de ayer, se dice que un presidente lo recorría de a pie, no había ningún abismo entre el pueblo y su merced, el de hoy, no sé quién es.

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Santiago del ochocientos para poderte mirar, tendré que ver los apuntes del arquivo nacional, te derrumbaron el cuerpo y tu alma salió a rodar, Santiago, penando estás. Maldigo del alto cielo Maldigo del alto cielo la estrella con su reflejo, madigo los azulejos destellos del arroyuelo, maldigo del bajo suelo la piedra con su contorno, maldigo el fuego del horno porque mi alma está de luto, maldigo los estatutos del tiempo con sus bochornos, cuánto será mi dolor. Maldigo la cordillera de los Andes y de la Costa, maldigo, señor, la angosta y larga faja de tierra, también la paz y la guerra, lo franco y lo veleidoso, maldigo lo perfumoso porque mi anhelo está muerto, maldigo todo lo cierto y lo falso con lo dudoso, cuánto será mi dolor. Maldigo la primavera con sus jardines en flor y del otoño el color yo lo maldigo de veras; a la nube pasajera la maldigo tanto y tanto porque me asiste un quebranto, maldigo el invierno entero con el verano embustero, maldigo profano y santo, cuánto será mi dolor. Maldigo la solitaria figura de la bandera, maldigo cualquier emblema, la Venus y la Araucaria, el trino de la canaria, el cosmos y sus planetas, la tierra y todas sus grietas porque me aqueja un pesar,

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maldigo del ancho mar sus puertos y sus caletas, cuánto será mi dolor. Maldigo luna y paisaje los valles y los desiertos, maldigo muerto por muerto y el vivo de rey a paje, al ave con su plumaje yo la maldigo a porfía, las aulas, las sacristías porque me aflige un dolor, maldigo el vocablo amor con toda su porquería, cuánto será mi dolor. Maldigo por fin lo blanco, lo negro con lo amarillo, obispos y monaguillos, ministros y predicandos yo los maldigo llorando; lo libre y lo prisionero, lo dulce y lo pendenciero le pongo mi maldición en griego y en español por culpa de un traicionero, cuánto será mi dolor. Mazúrquica modérnica Me han preguntádico varias persónicas si pelogrósicas para las másicas son las canciónicas agitadóricas ay que pregúntica más infantílica sólo un peñúflico la formulárica pa’ mis adéntricos yo comentárica. Le he contestádico yo al preguntónico cuando la guática pide comídica pone al cristiánico firme y guerrérico por sus poróticos y sus cebóllicas no hay regiméntico que los deténguica si tienen hámbrica los populáricos. Preguntandónicos partidirísticos disimuládicos y muy malúlicos son peligrósicos más que los vérsicos más que las huélguicas y los desfílicos, bajito cuérnica firman papélicos lavan sus mánicos como piláticos. Caballeríticos almidonádicos almidonádicos mini ni ni ni ni... le echan carbônico al inocéntico

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arrellenádicos en los sillónicos cuentan los muérticos de los encuéntricos como frivólicos y bataclánicos. Varias matáncicas tiene la histórica en sus pagínicas bien imprentádicas para montárlicas no hicieron fáltica las refalósicas revoluciónicas el juraméntico jamás cumplídico es el causántico del desconténtico ni los obréricos ni los paquíticos tiene la cúlpica señor fiscálico. Lo que yo cántico es una respuéstica a una pregúntica de unos graciósicos y más no cántico porque no quiérico tengo flojérica en los zapáticos, en los cabéllicos, en el vestídico, en los riñónicos y en el corpíñico. Arauco tiene una pena Arauco tiene una pena que no la puedo callar, son injusticias de siglos que todos ven aplicar, nadie le ha puesto remedio pudiéndolo remediar. Levántate, Huenchullán. Un día llega de lejos Huescufe conquistador, buscando montañas de oro, que el indio nunca buscó, al indio le basta el oro que le relumbra del sol. Levántate, Curimón. Entonces corre la sangre, no sabe el indio que hacer, le van a quitar su tierra, la tiene que defender, el indio se cae muerto, y el afuerino de pie. Levántate, Manquilef. Adónde se fue Lautaro perdido en el cielo azul, y el alma de Galvarino se la llevó el viento Sur, por eso pasan llorando los cueros de su cultrún. Levántate, pues, Calful.

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Del año mil cuatrocientos que el indio afligido está, a la sombra de su ruca lo pueden ver lloriquear, totoral de cinco siglos nunca se habrá de secar. Levántate, Callupán. Arauco tiene una pena más negra que su chamal, ya no son los españoles los que los hacen llorar, hoy son los propios chilenos los que les quitan su pan. Levántate, Pailahuán. Ya rugen las votaciones, se escuchan por no dejar, pero el quejido del indio ¿por qué no se escuchará? Aunque resuene en la tumba la voz de Caupolicán. Levántate, Huenchullán. Arriba quemando El sol Cuando fui para la pampa llevaba mi corazón contento como un chirihue pero allá se me murió primero perdí las plumas y luego perdi la voz. Y arriba quemando el sol. Cuando vide los mineros dentro de su habitación me dije mejor habita en su concha el caracol o a la sombra de las leyes el refinado ladrón. Y arriba quemando el sol Las hileras de casuchas frente a frente si señor las hileras de mujeres frente al único pilón cada una con su balde con su cara de aflicción. Y arriba quemando el sol. Paso por un pueblo muerto se me nubla el corazón aunque donde habita gente la muerte es mucho mayor

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enterraron la justicia enterraron la razón. Y arriba quemando el sol. Si alguien dice que yo sueño cuentos de ponderación digo que esto pasa en Chuqui pero em Santa Juana es peor. El minero ya no sabe lo que vale su dolor. Y arriba quemando el sol. Me volví para Santiago sin comprender el color con que pintan la noticia cuando el pobre dice no. abajo la noche oscura oro, salitre y carbón. Y arriba quemando el sol. Según el favor del viento Según el favor del viento va navegando el leñero, atrás quedaron las rucas para dentrar en el puerto, corra Sur o corra Norte la barquichuela gimiendo, llorando estoy, según el favor del viento, me voy, me voy. Del norte viene el pellín que colorea en cubierta, habrán de venderlo en Castro aunque la lluvia esté abierta, o queme el sol de lo alto como un infierno sin puerta, llorando estoy, o la mar está revuelta, me voy, me voy En un rincón de la barca está hirviendo la tetera, a un lado pelando papas las manos de alguna isleña, será la madre del indio, la hermana o la compañera, llorando estoy, navegan lunas enteras, me voy, me voy. Chupando su matecito o bien su pescado seco, acucurrado el su lancha va meditando el isleño, no sabe que hay outro mundo de raso y de terciopelo, llorando estoy, que se burla el invierno, me voy, me voy.

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No es vida la del chilote, no tiene letra ni pleito, tamango llevan sus pies, milcao y ají su cuerpo, pellín para calentarse, del frío de los gobiernos, llorando estoy, que le quebrantan, los huesos, me voy, me voy. Despierte el hombre despierte, despierte por un momento, despierte toda la patria antes que se abran los cielos y venga el trueno furioso con el clarín de San Pedro, llorando estoy, y barra los ministerios, me voy, me voy. De negro van los chilotes más que por fuera, por dentro, con su plato de esperanza y su frazada de cielo, pidiéndole a la montaña su pan amargo centeno, llorando estoy, Según el favor del viento, me voy, me voy. Quisiera morir cantando sobre de un barco leñero y cultivar en sus aguas un libro más justiciero, con letra de oro que digan no hay padre para el isleño, llorando estoy, ni viento para su velero, me voy, me voy. Gracias a la vida Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me dio dos luceros que cuando los abro perfecto distingo lo negro del blanco y en el alto cielo su fondo estrellado y en las multitudes al hombre que yo amo. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado el oído que en todo su ancho graba noche y día grillos y canarios; martillos, turbinas, ladrillos, chubascos, y la voz tan tierna de mi bienamado. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado el sonido y el abecedário con él las palabras que pienso y declaro madre, amigo, hermano, y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado la marcha de mis pies cansados;

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con ellos anduve ciudades y charcos, playas y desiertos, montañas y llanos, y la casa tuya, tu calle, tu patio. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me dio el corazón que agita su marco cuando miro el fruto del cerebro humano; cuando miro el bueno tan lejos del malo cuando miro el fondo de tus ojos claros. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado la risa y me ha dado el llanto, así yo distingo dicha de quebranto, los dos materiales que forman mi canto y el canto de ustedes que es el mismo canto, y el canto de todos que es mi proprio canto. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Volver a los diecisiete Volver a los diecisiete después de vivir un siglo es como decifrar signos sin ser sabio competente volver a ser de repente tan frágil como un segundo volver a sentir profundo como un niño frente a Dios eso es lo que siento yo en este instante fecundo. Mi paso retrocedido cuando el de ustedes avanza el arco de las alianzas ha penetrado en mi nido con todo su colorido se ha paseado por mis venas y hasta la dura cadena con que nos ata el destino es como un diamante fino que alumbra mi alma serena. Estribillo: Se va enredando, enredando como en el muro la hiedra y va brotando, brotando como el musguito en la piedra ay sí sí sí. Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber ní el más claro proceder ní el más ancho pensamiento todo lo cambia al momento

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cual mago condescendiente nos aleja dulcemente de rencores y violencias sólo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes. El amor es torbellino de pureza original hasta el feroz animal susurra su dulce trino detiene a los peregrinos libera a los prisioneros el amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero. De par en par la ventana se abrió como por encanto entró en amor con su manto como una tibia mañana al son de su bella diana hizo brotar el jazmín volando cual serafín al cielo le puso aretes mil años en diecisiete lo convirtió en querubín. Al centro de la injusticia Chile limita al norte con el Perú y con el Cabo de Hornos limita al sur, se eleva en el oriente la cordillera y en el oeste luce la costanera. Al medio están los valles con sus verdores donde se muitiplican los pobladores, cada familia tiene muchos chiquillos con su miséria viven en conventillos. Claro que algunos viven acomodados, pero eso con la sangre del degollado. delante del escudo más arrogante la agricultura tiene su interrogante. La papa nos la venden naciones varias cuando del sur de Chile es originaria. delante del emblema de tres colores la minería tiene muchos bemoles. El minero produce buenos dineros, pero para el bolsillo del extranjero, exuberante industria donde laboran por unos cuantos reales muchas señoras.

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Y así tiene que hacerlo porque el marido la paga no le alcanza pa’l mes corrido. Pa’ no sentir la aguja de este dolor en la noche estrellada dejo mi voz. Linda se ve la patria señor turista, pero no le han mostrado las callampitas. Mientras gastan millones en un momento, de hambre se muere gente que es un portento. Mucho dinero en parques municipales y la miseria es grande en los hospitales. al medio de la Alameda de las Delicias, Chile limita al centro con la injusticia. Ayúdame Valentina Qué vamos a hacer con tantos y tantos predicadores unos se valen de libros otros de bellas razones algunos de cuentos varios milagros y apariciones y algotros de la presencia de esqueletos y escorpiones mamita mía. Qué vamos a hacer con tanta plegaría sobre nosotros que alega en todas las lenguas de gloria de esto y del outro de infiernos y paraísos de limbos y purgatorios edenes de vida eterna arcángeles y demonios mamita mía. Qué vamos a hacer con tanto tratado del alto cielo ayúdame Valentina ya que tú volaste lejos dime de una vez por todas que arriba no hay tal mansión mañana la ha de fundar el hombre con su razón Mamita mía. Qué vamos a hacer con tanta mentira desparramada Valentina, Valentina rompamos la telaraña señores bajo la tierra la muerte queda sellada

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y a todo cuerpo en silencio el tiempo lo vuelve nada mamita mía. Me gustan los estudiantes ¡Que vivan los estudiantes, jardín de las alegrías! son aves que no se asustan de ánimas ni policías y no le asustan las balas ni el ladrar de la jauría. Caramba y zamba la cosa ¡que viva la astronomía! ¡Que vivan los estudiantes que rugen como los vientos cuando les meten al oído sotanas o regimientos! Pajaritos libertarios, igual que los elementos. Caramba y zamba la cosa ¡vivan los experimentos! Me gustan los estudiantes porque son la levadura del pan que saldrá del horno con toda su sabrosura, para la boca del pobre que come con amargura. Caramba y zamba la cosa ¡viva la literatura! Me gustan los estudiantes porque levantan el pecho cuando les dicen harina sabiéndose que es afrecho, y no hacen el sordomudo cuando se presenta el hecho. Caramba y zamba la cosa ¡el código del derecho! Me gustan los estudiantes que marchan sobre las ruínas. con las banderas en alto va toda la estudiantina. son químicos y doctores, cirurjanos y dentistas. Caramba y zamba la cosa ¡viva los especialistas! Me gustan los estudiantes que van al laboratorio, descubren lo que se esconde

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adentro del confesorio. ya tiene el hombre un carrito que llegó hasta el purgatorio. Caramba y zamba la cosa ¡los libros explicatorios! Me gustan los estudiantes que con muy clara elocuencia a la bolsa negra sacra le bajó las indulgencias. Porque, hasta cuando nos dura senores la penitencia. Caramba y zamba la cosa ¡que viva toda la ciencia! Violeta ausente ¿Por que me vine de Chile tan bien que yo estaba Allá? Ahora ando en tierras extrañas, ay, cantando pero apenada. Tengo en mi pecho una espina que me clava sin cesar en mi corazón que sufre, ay, por su tierra chilena. Quiero bailar cueca, quiero tomar chicha, ir al mercado y comprarme un pequén. Ir a Matucana y pasear por la quinta y a Santa Lucía contigo mi bien. Antes de salir de Chile yo no supe comprender lo que vale ser chilena. ay, ahora si que lo sé. Igual que lloran mis ojos, al cantar esta canción, ay, asi llora mi guitarra penosamente el bordón. Que lejos está mi Chile lejos mi media mitad, que lejos mis ocho hermanos, ay, mi comadre y mi mamá. Parece que hiciera un siglo que de Chile no sé nada, por eso escribo esta carta,

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ay,la mando de aqui pa`allá.

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