vinho & guerra don e petie kladstrup

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Numa narrativa de tirar o fôlego, Vinho & guerra acompanha a saga de tradicionais famílias de vinicultores franceses que impediram os nazistas de roubar um de seus símbolos mais genuínos: o vinho. Usando de incríveis artimanhas – como a construção de paredes com teias de aranha para esconder safras preciosas, sabotagem de trens que transportavam vinho para a Alemanha -, os produtores de vinho formaram uma espécie de Resistência paralela a fim de proteger a economia da França e preservar um de seus prazeres mais inebriantes e diletos.Baseado em três anos de pesquisas e de entrevistas com testemunhas que sobreviveram a esses fatos, o livro lança luz sobre um capítulo comovente e pouco conhecido da história, prestando tributo a pessoas extraordinárias que, num sentido muito real, salvaram o espírito da França.

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Listadeilustrações

1: Usando osmétodos de seus avós e bisavós, vinicultores de St. Émilionfazem uma colheita na década de 1940. “Tínhamos uma maneiratrèsancienne de viver e de fazer vinho” (Robert Drouhin, vinicultor daBorgonha).CortesiadePatrimoinePhotographique,Paris

2:FamíliadonortedaFrançafugindodecasa,partedeumêxododemaisdedezmilhõesdepessoasprovocadopelainvasãoalemã.“Elesnãosabem,ninguém sabe, para onde estão indo” (do diário de Paul Valéry, 1940).CortesiadeRoger-Viollet,AgencePhotographique,Paris

3: Rótulo de champanhe como aviso “Reservado para aWehrmacht” emfrancêsealemão.CortesiadoDomainePolRoger

4:AdegadevinhoemBordeaux.Vinicultoresportodoopaísemparedarampartedesuascavesparaesconderseumelhorvinhodosnazistas.CortesiadePatrimoinePhotographique,Paris

5: Sopa servida ao ar livre em Paris. Cortesia de PatrimoinePhotographique,Paris

6:RuaprincipaldeRiquewihremseguidaàanexaçãodaAlsáciaem1940.“Quasedanoiteparaodia, tudoquetinhasidofrancêstornou-sealemão”(JohnnyHugel).CortesiadeA.Hugel

7: “Esta noite nos dará ensejo para relembrar com regozijo um dostesourosmais puros da França, nosso vinho, e paramitigar o sofrimentoem que tivemos de viver por tanto tempo” (mensagem a prisioneiros deguerra,doprogramadafestadovinhodeGastonHuet,1943).

8: Pracinhas, pouco depois do desembarque na Normandia, fazem umbrevedescansoantesde seguir em frente. “Nossa trincheiraparaanoitefoi uma adega. Haviabeaucoup barriletes lá, mas estavam vazios. Cara,demosazarcomogatunos”,disseumsoldado.NationalArchivesfotoIII-SC-192224

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9: Refúgio de Hitler em Berchtesgaden, nos Alpes bávaros. Cortesia deBettmann/Corbis

9: LouisEschenauer, à esquerda,numacorridade cavalos comumo icialalemão.CortesiadeHeinzBömersJr.

10: Na madrugada de 5 de dezembro de 1944, moradores da aldeiaalsaciana de Riquewihr se deparam pela primeira vez com seuslibertadoresquandoumaunidadedetexanosfezumaparadaemfrenteàlojadevinhosdosHugel.CortesiadeA.Hugel

11: Para celebrar a libertação, osprodutoresde champanhedeixaramdeestampar em suas garrafas “Reservado para a Wehrmacht”. Agora elasvinham com a marca “Reservado para os Exércitos Aliados”. Cortesia deDomainePolRoger

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A

Introdução

portadeaçonãosemexia.Ossoldadosfrancesestinhamusadodetudo,degazuasamarretas,

na tentativa de abri-la. Nada funcionara. Resolveram então experimentarexplosivos.Aexplosão sacudiuopicodamontanha, arremessandoumacascatade

pedras e entulho no vale lá embaixo. Quando a fumaça e a poeira sedissiparam, os soldados descobriram que a porta estava ligeiramenteentreaberta,exatamenteobastanteparaqueBernarddeNonancourt,umsargento do exército de vinte e três anos, da Champagne, conseguisse seenfiarporela.Oqueviuodeixousemfala.Diantedeleestavaumtesouropeloqualosconnaisseursdariamavida:

meio milhão de garrafas dos mais excelentes vinhos jamais fabricados,vinhos como Château La ite-Rothschild e Château Mouton-Rothschild,ChâteauLatour,Châteaud’YquemeRomanée-Conti,empilhadosemcaixasde madeira ou repousando em prateleiras que tomavam praticamentecada centímetro da cave. Num canto havia portos e conhaques raros,muitosdoséculoXIX.Uma coisa, contudo, saltou aos olhos de de Nonancourt: centenas de

caixasdechampanheSalonde1928.Cincoanosantes,quandotrabalhavaem outra casa de champanhe, presenciara estupefato soldados alemãeschegaremàaldeiazinhadeLeMesnil-sur-OgerecarregaremcaixasemaiscaixasdasadegasdaSalon.Agoratinhadiantedesiomesmochampanhequeviraserroubado.Ojovemsargentosentiu-seeletrizadoeincrédulo.Era di ícil acreditar também que todo aquele vinho precioso —

depositadonumacavepertodotopodeumamontanha—pertenciaaumhomem que não teria podido se interessar menos por ele. De fato, nemsequergostavadevinho.EssehomemeraAdolfHitler.

A abertura da cave de Hitler naquele dia foi algo que Bernard deNonancourt jamais teria imaginado; até então,não sabianemmesmoqueela existia. No dia 4 de maio de 1945, o sargento de Nonancourt, umcomandante de tanque da 2a Divisão Blindada Francesa, do generalPhilippeLeclerc,sópensavanoquantoerabomestarvivo.Apenasalguns

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dias antes, de Nonancourt ouvira as boas novas: as últimas unidadesalemãs na França haviam se rendido. Seu país, inalmente, estavacompletamente livre. Agora os Aliados estavam investindo contra aAlemanha, seus aviões despejandomilhares de toneladas de bombas emfábricas, campos de aviação e estaleiros alemães. Embora restassembolsões de resistência, as tropas alemãs estavam em plena retirada ehaviam começado a se render em grande número. Todos sabiam que aguerralogoestariaterminada.Naquele delicioso dia de primavera, quando a luz radiante do sol

rebrilhava nas folhas novas das árvores, a unidade do exército de deNonancourt viu-se sedutoramente próxima de seu destino: a cidade deBerchtesgaden nosAlpes bávaros, o “Valhala para os deuses, senhores echefes nazistas”, como a chamou o historiador Stephen Ambrose. Hitlertinha uma casa ali, a Berghof, assim como um retiro de pedra no alto damontanha chamado Adlershorst, ou o Ninho da Águia. Outros nazistas,comoGöring,Goebbels,HimmlereBormann,tambémtinhamcasasali.ForaaBerchtesgadenqueoslíderesdaEuropatinhamvindono inalda

décadade1930paraserhumilhadosporHitler,líderescomoSchuschnigg,daÁustria,eChamberlain,daGrã-Bretanha.Foraparaali tambémqueosnazistashaviamenviadograndepartedoprodutode suapilhagem:ouro,jóias, pinturas e outros tesouros que tinham roubado de outros paísesocupados.OcoraçãodesseValhalaeraaBerghof,amoradadeHitler,que,ajulgar

por todas as aparências externas, parecia um típico chalé aninhado nasaliênciadeumamontanha.Eratudomenosisso.Comodisseumvisitante,“atrás daquelas agradáveis paredes brancas e das lores a crescer emjardineirasnas janelas, haviauma fortaleza suntuosa, amedrontadora emsuas estranhas proporções internas e magni icência medieval e em suaostentação de riqueza e poder”. A sala de estar da Berghof tinha dezoitometrosdecomprimentoporquinzedelargura,“tãograndequeaspessoaspareciamperdidasdentrodela”.Umapesadamobíliademadeira,típicadoAlpes,estavadispostadiantedeumaimensalareiradejadeverde.TapetesGobelins e pinturas italianas decoravam as paredes. Na verdade, eramtantasobrasde tantas escolasdiferentesque “a salapareciaumagaleriadepinturanummuseuexcêntrico”.OquepoucosviamoujamaistinhampermissãoparavisitareraoNinho

daÁguia,umafortalezasituadamaisdedoismilmetrosacima.Diz-sequeo próprio Hitler só foi lá três vezes, queixando-se de que eramuito alto,que o ar era rarefeito demais e que tinha di iculdade para respirar.

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Contudo,oNinhodaÁguiaeraumaobra-primadaengenharia.Construídaao longodetrêsanoseprojetadapararesistirabombardeiosea fogodeartilharia, só se podia chegar à casa por um elevador que havia sidotalhadonarochaduradamontanha.Agora,comsuacolunaestacionadanosopédamontanha,deNonancourt

itava o pico, perdido em pensamentos enquanto tentava imaginar oshorrores que haviam sido urdidos a partir daquele cenário bucólico. Derepente, seus pensamentos foram interrompidos por um grito de seuoficialcomandante.“VocêédaChampagne,nãoé,deNonancourt?”AntesqueBernardpudesseresponder,oo icialcontinuou: “Nessecaso

deveentenderalgumacoisadevinho.Desçaaqui imediatamenteevenhacomigo.”Bernardsaltoudeseutanqueeseguiuoo icialatéojipedele,ondeum

grupinhodeoutrossoldadoshaviasereunido.“Láemcima”,disseoo icial,apontandoparaoNinhodaÁguianotopodamontanhaObersalzburg,“háuma cave, na verdade uma adega de vinho. Foi lá que Hitler guardou ovinho que roubou da França. Vamos pegá-lo de volta e você estáencarregadodisso,deNonancourt.”Bernard icou estupefato. Sabia que os alemães haviam carreado

milhões de garrafas de vinho de seu país; chegara a ver parte dele serroubada da aldeia em que trabalhara antigamente, mas uma adega devinhonotopodeumamontanhapareciainacreditável.Seraquelequeiriaabri-laeraumaemoçãoquaseavassaladora.Bernard sabia que sua missão não seria fácil. A montanha de 2.438

metrosdealturaeraíngremeeminasterrestreshaviamsidoplantadasemalguns de seus taludes. Perguntava a si mesmo se a própria cave nãoestariaarmadilhada.Enquanto tentava imaginar como conseguiria chegar lá no alto e o que

encontraria dentro da cave, Bernard foi tomado por uma sensação deeuforia.Desde1940,quandoasforçasdoTerceiroReichtinhaminvadidoaFrança de roldão e ocupado o país, Bernard, comomuitos outros jovensfranceses, alimentara a esperança de que a guerra durasse tempobastante para que ele pudesse participar da libertação e ser parte dahistória.Aquela,elesedavaconta,eraasuachance,poisacavedeHitlereramuitomais queumaadegade vinho; eraum símbolode crueldade ecobiça,daânsiadaAlemanhanazistaporopulênciaeriqueza.A história de como um rapaz da Champagne foi até Berchtesgaden e

tornou-seumadaspoucaspessoasajamaisterpostoosolhosnostesouros

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que Hitler acumulara para si mesmo é uma das mais fascinantes daguerra.Eumahistóriaqueouvimosquaseporacaso.

Começoucomumjogodeadivinhação.EstávamosnovaledoLoireentrevistandoGastonHuet,deVouvray,para

um artigo sobre planos do governo de cavar um túnel através da regiãopara o TGV, o trem de alta velocidade da França. Vinicultores, entre osquaisHuet,queeranaépocaoprefeitodeVouvray,estavamindignados.Otrem, eles advertiam, destruiria seus vinhedos e estragaria seus vinhos,queestavamarmazenadosnascavesdecalcáriodasredondezas.“Há centenas de milhares de garrafas nessas caves”, disse Huet, que

estava à frente do protesto. “O barulho e as vibrações do trempoderiamprovocarumacalamidade.”Subitamente,Huetpediulicençaedesapareceudasala.Voltoucomuma

garrafa e três copos. “Esta éumadas razõesporque sou contrao trem”,disse,estendendoagarrafasemrótuloparanós.Elaestavaraiadadeteiasde aranhas e coberta de poeira. O vinho era de um dourado brilhante.Olhamos um para o outro em nosso antegozo e depois para Huet. Umsorrisodébilseestamparanoseurosto.“Vamos,experimentem”,eledisse.O primeiro gole não nos deixou nenhuma dúvida de que estávamos

experimentando algo extraordinário. O vinho era esplêndido. Eradeliciosamentedoceenoentantotãofrescoeintensoqueseteriapensadoqueforafeitonavéspera,elhedissemosisso.“Entãodequeanopensamqueé?”Huetperguntou.Arriscamos 1976, ano excelente para os vinhos do vale do Loire, mas

Huet apenas sacudiu a cabeça e insistiu para que tentássemos de novo.1969?Mesmareação.1959?Erradodenovo.Huet, parecendo estar se divertindo mais a cada minuto, estava

claramente se deliciando. Decidimos arriscar mais um palpite. “Que tal1953?” Tentamos fazer nosso palpite soar mais como uma a irmação doque como uma pergunta, mas Huet não se deixou enganar. O sorriso noseu rosto se alargou quando nos deu mais alguns segundos para tentaradivinharoqueestávamossaboreando.“1947”, ele disse inalmente. “É provavelmente o melhor vinho que

jamais iz.” Disse isso com afeição e orgulho, quase como se estivesse sereferindoaumfilhofavorito.Quandogiramosovinho,umbuquêcelestialdemeledamascoselevou-

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sedenossoscopos.PerguntamosaHuet,entãonacasadosoitenta,seumdia já experimentara alguma coisamelhor. Embora nossa pergunta fossequaseretórica,Huetparoueficousério.“Sóumavez”,elerespondeu.“FoiquandoeuestavanaAlemanhacomo

prisioneiro de guerra durante a Segunda Guerra Mundial.” E ele foiadiante para nos contar uma das histórias mais assombrosas que jáouvimos, uma história de coragem, solidão, desesperança e, no inal, decomo um nadinha de vinho ajudou Huet e seus colegas prisioneiros deguerra a sobreviver a cinco anos de encarceramento. “Nem me lembroexatamente o que foi que bebi”, disseHuet. “Não foimais que um dedal,masaquelefoioúnicovinhoquetomamosemcincoanos,efoiglorioso.”Gloriosopara ele, intriganteparanós.Até ouvirmos a história deHuet,

nuncatínhamospensadoem“guerraevinho”.Logo icamossabendoqueaconexãotemumalongahistória.NoséculoVIa.C.,Ciro,oGrande,daPérsiaordenouquesuastropastomassemvinhocomoantídotocontrainfecçãoedoença. Júlio César e Napoleão Bonaparte tinham essa crença também.Napoleão chegava a transportar carradas de champanhe em suascampanhas, pelomenos namaioria das vezes. A razão por que perdeu aBatalha de Waterloo, dizem alguns, foi que não teve tempo de arranjarnenhumchampanheetevedelutarmovidosóacervejabelga.Talvez com isso emmente, na Segunda GuerraMundial distribuíam-se

caixas de champanhe aos soldados franceses para que as mantivessemperto de si nas trincheiras e conservassem seu moral alto. Quando aguerra foi de lagrada, o governo francês enviou ao front utensílios ereceitas para o preparo de vinho quente. Comoumo icial explicou, “umaração de vinho quente não é cara, e é de muita ajuda para prevenirepidemiaseanimarsoldados”.Mas o apogeu do vinho como tática militar talvez tenha ocorrido

trezentos anos antes, quando ele foi usado para salvar a bela cidademuradaalemãdeRothenburgdadestruiçãoduranteaGuerradosTrintaAnos. Segundo o especialista em vinhos Herbert M. Baus, “Rothenburgestava à mercê dos 30.000 homens vitoriosos de Tilly quando aquelemarechal-de-campo, num momento de clemência, prometeu poupar acidadeseumdeseusedisconseguisseesvaziarumcopodevinhodetrêslitrosemeionumgole só.OBurgermeisterNuschmostrou-seàalturadodesa ioeolocaldesuafaçanhaépicaéatéhojechamadoFreudengässlein,ouTravessadaAlegria.”Paranós,aalegriadovinhosempreestevetantoembebê-loquantoem

partilhá-lo.Umdosmais excelentes vinhos que já tomamos foi umGrand

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Vin de Château Latour de 1905. Era primoroso, absolutamente do outromundo, mas o que tornou a experiência ainda mais especial foi poderpartilhá-la com Gertrude de Gallaix, uma amiga querida que morou emParisduranteaSegundaGuerraMundialequenasceunomesmoanoemqueovinhoforafeito.Houvetambémumagarrafaderoséquetomamoscertavezeque,para

falar a verdade, não era grande coisa como vinho, mas partilhá-la comamigos num dia tépido de verão tornou esse dia especial e o vinho tãoinesquecível,decertomodo,quantooLatourde1905.André Simon, o famoso especialista em vinhos francês, de iniu o vinho

como “um bom conselheiro, um amigo verdadeiro que não nos aborrecenemirrita:nãonosfazdormir,nemnosmantémacordados…estásempreprontoparanosalegrar,nosajudar,masnãoparanosprovocar.”Entretanto, na verdade os vinhos fascinantes que provamos nos

“provocaram”vezporoutra, levando-nosa fazerperguntas.AhistóriadeGastonHuet despertara nosso interesse e aguçara nossa curiosidade. Aolongo dos anos seguintes, conhecemos outros vinicultores que noscontaram suas histórias da guerra, algumas engraçadas, outrascomoventes. À medida que ouvíamos, fomos pouco a pouco nos dandoconta de que aquelas histórias, como uma boa garrafa de vinho, eramcoisasquequeríamospartilhar.Eramhistóriasquemereciamsercontadaselembradas—numlivro.Recolher as histórias nem sempre foi fácil. Algumas pessoas tinham

medo e se recusavam a falar sobre um tempo manchado pelos quecolaboraram como inimigo e tentaramganhar dinheiro com a guerra. “Édelicado demais”, disse uma pessoa que se recusou a ser entrevistada.“Melhordeixarqueosmortosdescansemempazequeosvivosvivamempaz.”Muitos documentos que tratavam de colaboracionistas foram lacrados

sob uma lei francesa destinada a proteger a privacidade de pessoas.Outrosdocumentos foramdestruídosno imdaguerraporordemdoaltocomandoalemão.Outrosproblemasqueencontramosincluírammemóriasesmaecidaseo

fatodequemuitaspessoastinhammorrido.Emváriasocasiõesrecebemosum recado ou telefonema dizendo que a pessoa com quemmarcáramosentrevistaacabaradefalecer.Embora fosse, literalmente, uma corrida contra o tempo, de vez em

quando tínhamos de avançar lentamente. As pessoas da geração quelutaranaguerranemsempresedispunhamafalarsobreela.Suaprimeira

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reaçãoera:“Oh,meuDeus,issofoihátantotempo.Nãoestoubemcerto…”—eentãosuavoziaseapagandoeosilênciocaía.Masdepois,derepente,eleouelapodiamdizer:“Masháumacoisadequemelembro…”—eentãonosencontrávamosouvindoumahistóriamaravilhosa.Pessoasmaisjovensqueprocuramosporvezessemostravamhesitantes

também. “Por favor, eu era só uma criança”, diziam, “não me lembro denada.”Mas com freqüência lembravam-se, e suashistóriasestavamentreas mais reveladoras, dando-nos instantâneosmuito claros de uma épocacomplicada.Porexemplo,Jean-MichelCazes,proprietáriodoChâteauLynch-Bagese

doChâteauPichon-BaronemBordeaux,mostrou-nosqueobarômetrodaguerra estava tanto no campo de batalha quanto no pátio de recreio. Nooutonode1940,lembrouCazes—quetinhaentãooitoanos—,quandoelee os amigos voltaram para a escola, todos queriammuito brincar de seralemães. “Os alemães pareciam tão fortes e sagazes que todos nósqueríamos ser eles emnossas brincadeiras”, disse. Dois anosmais tarde,com a face da França já alterada pela ocupação alemã, os interesses dascrianças tinhammudado também. “Nessa altura”, disse Cazes, “todos nósqueríamosserosmaquis,osclandestinosquecombatiamosalemães.Eramuito mais romântico.” Quando mais tempo passou e os alemãesapertaram o controle sobre Bordeaux, o romantismo cedeu lugar aorealismo. “Costumávamos espiar os alemães marchando e eles pareciamnãoapenasfortescomotambémmuitoassustadores.”Nosúltimosanosdaguerra, quando a sorte dos alemães começou a mudar, mudaramigualmente as brincadeiras nos pátios. “Todos queríamos ser americanosnaquele tempo”, disse Cazes. Na altura do im da guerra, a mudança desentimento foi completa; as crianças nos pátios de recreio da Françaestavambrincandodecaubóiseíndios.Muitasdaspessoasqueentrevistamospertenciamafamíliasquehaviam

fabricadovinhoporgerações.Nãosósabiammuitobemoqueeraovinhocomo sabiam muito bem o que era a guerra. Haviam passado por ela,algunsmaisdeumavez,etinhamagudaconsciênciadoqueéprecisoparasobreviver.ParaosRothschilddoChâteauLa ite-RothschildemBordeaux,ela signi icou fugir do país antes que os alemães lhes tomassem apropriedade.ParaHenriJayerdoVosne-Romanée,naBorgonha,signi icoutrocar seu vinho por alimento para que sua família pudesse sobreviver.ParaopríncipePhilippePoniatowski,deVouvray,signi icouenterrarseusmelhores vinhos no quintal de modo a ter alguma coisa com querecomeçarosnegóciosdepoisdaguerra.

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A sobrevivência, contudo, nem sempre exigiu medidas desesperadas;algumasvezesaspessoassimplesmentetinhamsorte.ParaRenéCouly,deChinon, foi um pneu furado que o salvou. “Meu pai acabara de serconvocadopeloexércitoetinhamfeitodelemotoristadecaminhão, jáquetinhaenormeexperiênciadirigindoosnossoscaminhões”, contou-nosseuilho. “Ele estava em seu veículo, seguindo sua companhia para o front,quando icoucomumpneuvazio.Enquanto icouparadoparaconsertá-lo,as outras tropas seguiram em frente e deram direto numa emboscada.Foram todos feitos prisioneiros.” Isto é, todos exceto Couly. “Depois detrocar o pneu, meu pai deu meia-volta e foi para casa cuidar de seuvinhedo.”Emboraamaiorpartedas informaçõesque reunimos tenhamvindode

entrevistas, ocasionalmente foi o próprio vinho que “falou”. Um La Tâchede 1940 que degustamos com Robert Drouhin, um dosmais respeitadosvinicultores enégociants da Borgonha, falou eloqüentemente sobre asdi iculdades que os vinicultores tiveram de superar para fazer um bomvinho durante a guerra. Naquele ano, a maior parte dos borgonhas foidizimadapelaputrefaçãoeomofoporqueosalemãeshaviamrequisitadotodososmetais, inclusiveocobre,parasuamáquinadeguerra industrial.Sem cobre, os vinicultores não tinham sulfato de cobre para tratar seusvinhedos.OLaTâchedoDomainedelaRomanée-Conti,noentanto,foiumdos sobreviventes e um clímax apropriado para um maravilhoso jantarcomDrouhin.Sobreovinho,nossosapontamentosdizem:“Boacor,buquêpicante,desvanecendoumpoucomasaindaassimeleganteeencantador.”Outra garrafa que partilhamos com Drouhin em outra ocasião contou

uma história completamente diferente. Era um Clos desMouches brancode 1940, extremamente raro e um dos primeiros Clos des Mouchesbrancos que o pai de Robert fez. Ai, o vinho era intragável. Era de umpardo baço e estava totalmente oxidado. “Uma porcaria”, disse MadameFrançoiseDrouhin, fazendoumapequena careta e pousando seu copo.Areação do seumarido foi um pouco diferente. “Interessante”, disse ele. Etinha razão. Podíamos sentir literalmente, quase experimentar, osproblemasqueosDrouhin tinhamenfrentadoao fazerovinho.Haviaumquêdefungoeumtraçodemorteaoolfato.Ehouvealgomaisquepercebemos.Agarrafaemqueeleveioeradeum

azul-esverdeadopálidoemvezdoverde-acastanhadodecostume,umacorque os borgonheses de inem como defeuilles mortes, ou folhas mortas.“Este vinho foi provavelmente engarrafado em 1942”, disse Drouhin,“quando todos tinham de reciclar suas garrafas ou arranjá-las onde

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pudessem,oquesigni icouqueasgarrafaseramfeitascomqualquertipodecomposiçãodevidroquesepudesseconseguir.”Masondequerque fôssemosecomquemquerqueconversássemos,o

pontosempreenfatizado—aquelequenuncapodíamos ignorar—eraoquanto o vinho é importante para a França.Não se trata apenas de umabebidaouprodutocomercialaserdespejadodeumagarrafa.Émuitomaisqueisso.Comoabandeira,atricolore,eleenvaideceocoraçãoeaalmadopaís. “O vinhonos faz orgulhardenossopassado”, disseuma autoridade.“Elenosdácoragemeesperança.”Dequeoutraformaexplicarporqueosvignerons da Champagne correram para os seus vinhedos para colher asafrade1915nomomentomesmoemqueprojéteisdeartilhariaestavamcaindo por toda parte à sua volta? Ou por que o rei Luís XI, em seuprimeiroatoapósconquistaraBorgonhaem1477,con iscoutodaasafradeVolnaypara simesmo?Ouporque, nãomuito tempoatrás, umpadrenuma aldeiazinha da Champagne lembrou à sua paróquia: “Nossochampanhe não tem a ver apenas com ganhar dinheiro. Tem a ver comlevaralegriaparaaspessoas.”E talvez tenha algo de espiritual. “Nossos vinhos evoluem lenta e

nobremente,carregandoconsigoesperançasdeumavida longa”,explicouumvinicultor.“Sabemosquenossaterraestavaaquiantesdechegarmoseque estará aqui muito depois de termos partido. Com nosso vinho,sobrevivemos a guerras, à Revolução e à iloxera. Cada colheita renovapromessasfeitasnaprimavera.Vivemoscomocicloincessante.Issonosdáumgostodeeternidade.”Recentemente o governo francês encomendou um estudo sobre o que

torna os franceses “franceses”, ou, como um intelectual expressou, “paraavaliaroqueconstituiamemóriaea identidadehistóricas francesas”.Foiumtrabalhovasto,emsetevolumes.Partedeleéumlevantamentoemquepessoas foram solicitadas a de inir as qualidades que as tornavamfrancesas.Astrêsrespostasmaisfreqüentesforamoqueseriadeesperar:ter nascido na França, defender a liberdade e falar francês. Logo atrásdelas,porém,emquarto lugar, vinhaovinho, especi icamente conhecereapreciar “bom” vinho. Issonão foi nenhuma surpresapara os autoresdolevantamento,queconcluíram:“Ovinhoépartedenossahistória;éoquenosdefine.”Em 1932, um ano antes de Adolf Hitler se tornar chanceler da

Alemanha, Hubert de Mirepoix, presidente da Associação Francesa deVinicultores, fez umdiscursona convenção anual da organização emqueexpôs como o vinho “contribuiu para a raça francesa dando-lhe espírito,

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alegria e bom gosto, qualidades que a diferenciam profundamente depovosquetomamgrandequantidadedecerveja”.Embora este livro trate de vinho e guerra, não é um livro sobre vinho,

realmente não, e tampouco é um livromeramente sobre a guerra. É umlivro sobre pessoas, pessoas que verdadeiramente transpiramespirituosidade, alegria e bom gosto, e cujo amor à uva e devoção a umgênero de vida as ajudou a sobreviver a umdos capítulosmais negros emaisdifíceisdahistóriadaFrançaeatriunfarsobreele.

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E

UM

Amarasvideiras

Usandoosmétodosdeseusavósebisavós,vinicultoresdeSt.Émilionfazemumacolheitanadécadade1940.“Tínhamosumamaneiratrèsanciennedeviveredefazervinho.”(RobertDrouhin,

vinicultordaBorgonha)

ra im de agosto de 1939 e os vinicultores francesesestavama litosporcausadacolheita.Doismesesantes,

asperspectivastinhamsidobrilhantes.Otempoestavabome havia a promessa de uma excelente vindima. Depois otempo mudou. Choveu durante seis semanas a io e astemperaturascaíramrapidamente.Assim também caiu o ânimo dos vinicultores que

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participavamdoCongressoInternacionaldaVideiraedoVinhonaestânciadeBadKreuznach, naAlemanha.Não conseguiampensar emoutra coisasenãono tempo— istoé, atéqueoorador seguinte fosseanunciado.EraWalter Darré, ministro do Abastecimento Alimentar e da Agricultura doTerceiroReich. Os vinicultores tinham tido um choque quando, ao entrarpelaprimeiraveznosalãodeconvenções,divisaramumgranderetratodopatrãodeDarré,AdolfHitler, dominandoa sala. Comoo restodomundo,tinham visto com crescente alarme Hitler anexar a Áustria, retalhar aTchecoslováquiaeassinarumacordomilitarcomoditadordaItália,BenitoMussolini.Muitos,temendoqueaguerratotalestivesseapenasaumpasso,estavam convencidos de que Darré teria algo a dizer sobre os últimoseventos.MasquandooReichsministersubiunatribuna,nãofalousobreaguerra.

Não falou nemmesmo sobre vinho. O que fez foi pedir aos delegados docongresso que fossem além das preocupações com vinho e viniculturapara,emvezdisso,“promoveracompreensãomútuadospovospací icos”.Quemestavanoauditórioficoucompletamenteconfuso.O que eles não sabiam era que, quase naquele mesmo momento, o

próprioHitlerestava fazendoumaespéciemuitodiferentedediscurso—esteparaseualtocomando—emoutraestânciaalemã,Berchtesgaden,olocal favorito da liderança nazista para suas férias. O Führer estavainformando a seus generais o que aconteceria a seguir e exortando-os alembrar que “nossos adversários são vermezinhos … O que importaquandosecomeçaesefazguerranãoécorreção,masvitória.Cerremseuscoraçõesparaacompaixão.Procedambrutalmente.”EmmenosdeumasemanasuasforçasinvadiramaPolônia.Adatafoi1 o

desetembrode1939.Osvinicultoresfrancesesqueestavampresentesnaconferênciaforamprontamentechamadosàpátria.Doisdiasmaistarde,aFrança, juntamente com a Grã-Bretanha, a Austrália e a Nova Zelândia,declarouguerraàAlemanha.

Pela segunda vez em pouco mais do que uma geração, os vinicultoresfrancesesenfrentavamadolorosaperspectivadetentarfazersuacolheitaantesqueosvinhedosfossemtransformadosemcamposdebatalha.Comoem 1914, o governo montou uma campanha extraordinária para ajudar.Asseguraram-seaosvinicultoresadiamentosnaconvocaçãoparaoserviçoativo,enviaram-sedestacamentosmilitaresdemão-de-obraaosvinhedosedecidiu-senãorequisitaroscavalosusadosporpequenosvinicultoresatéqueacolheitativesseterminado.

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Lembrançasdaquelaguerraanterior,“aguerraparapôr imatodasasguerras”aindaosperseguiam—abrutalidade,asagruraseemespecialaterrívelperdadevidas.Numapopulaçãode40milhões,quaseummilhãoemeioderapazestinhamsidomortos,homensqueteriamentradoemseusanos mais produtivos caso tivessem sobrevivido. Outro milhão perderamembrosouficaratãogravementeferidoquenãopuderamaistrabalhar.Fora uma sangria que não deixara quase nenhuma família na França

intocada: não os Drouhin da Borgonha, os Miaihle de Bordeaux, os deNonancourt da Champagne, osHugel daAlsácia, nem osHuet do vale doLoire.O pai de Gaston Huet voltara para casa inválido, seus pulmões

dani icadosparasempredepoisquesuaunidadedoexércitoforaatacadacomgásdemostarda.O pai de Bernard de Nonancourt também sofrera as devastações da

guerrade trincheiraemorreraemconseqüênciadeseus ferimentos logoapósaguerra.AmãedeJeanMiaihleperderatodaasuafamíliaquandotropasalemãs

atacaramsuaaldeianonortedaFrança.A família Hugel, que perdera sua herança e nacionalidade francesas

quando a Alsácia fora anexada pela Alemanha após a Guerra Franco-Prussiana de 1870-71, mandara o ilho para longe para que pudesseescapardorecrutamentopeloexércitoalemão.Maurice Drouhin, um veterano da guerra de trincheira, escapara de

danos ísicos mas não dos pesadelos que o perseguiram depois duranteanos.Como quase todo mundo na França, essas famílias de vinicultores

assistiram com medo à aproximação do espectro de uma outra guerra.Emborativessesidoavencedoraantes,aFrançapagaraumpreçoterrível.Poderia se permitir mais uma vitória como aquela? Muitos no paísduvidavam disso, em especial Maurice Drouhin, que testemunhara oshorroresdaguerradeperto.Pensar na família e no vinhedo fora tudo que o consolara quando se

acotovelavacomseushomensnastrincheirasbarrentaseencharcadasdesanguedonorteda França, perscrutandoo inimigo atravésdeuma faixade terra de ninguém. Embora o inverno de 1915 ainda tivesse aquelaparte do país em suas garras, Maurice sabia que em sua casa, naBorgonha,osvinhedos jáestariamematividadee trabalhadoresestariamocupados na poda. Se fechava os olhos, podia quase ver isso, os homenscom suas podadeiras avançando lentamente pelos longos renques de

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videiras; epodiaquaseouviros sinosda igrejaqueos chamavamparaotrabalhocadadia.Esses sinos eram os primeiros sons que Maurice ouvia cada manhã

quando despertava em sua casa emBeaune. Para ele, eram amúsica defundo da vida nos vinhedos. Eles ressoavam através das aldeias e dostrigais,despachavamcriançasatodapressaparaaescolaemãesparaosmercadosàprocuradas frutas e verdurasdodia.Anunciavamahoradoalmoço,do jantar, e chamavamaspessoasparao serviço religiosoeparacelebrar.Poucoapouco,porém,àmedidaqueaPrimeiraGuerraMundialavançava,elesestavamcadavezmaischamandoaspessoasparaprantear.Agora, nos campos de batalha do norte da França, os sons que

envolviamMauriceeramadescargadaartilhariaedasmetralhadoraseosgritosa litosdos feridos.Nocalordeumabatalha,viuumsoldadoalemãodesabarnochão,incapazdesemoverapóslevarumtiro.Comossoldadosalemãesamedrontadosdemaisparaseaventurarnatempestadedebalaspara buscar seu companheiro, Maurice ordenou a seus homens queparassem de atirar enquanto erguia uma bandeira branca. Depois, numalemão impecável, gritou para os alemães: “Venham buscar seu homem.Vamos interromper nosso tiroteio até que vocês o levem.” Os alemãestrataramdesalvarrapidamenteocamaradaabatido.Antesdevoltarparatrásdaslinhas,noentanto,fizeramumaparadabememfrenteaMauriceebateramcontinência.Maistarde,numacartaàmulher,Mauricedescreveuoepisódio.Pauline

icoutãocomovidaqueenviouahistóriaparaojornallocal,queapublicou.Como título “Ashoras gloriosas”, o artigodizia: “Ashoras gloriosas soamnão só para a ação heróica no campo de batalha, mas também paraaquelasatividadesqueocorremnavidacotidiana,poiséquandoaguerraacabaqueocoraçãoeocaráterdeumsoldadosãotambémrevelados.”Maurice recebeu importantes condecorações por sua atuação militar.

EntreseusgalardõesesteveaMedalhaporServiçoNotável,concedidapelogoverno dos Estados Unidos, para a qual foi indicado por DouglasMacArthur.Maspormaisqueseorgulhassedessamedalhaedesuavidano exército, sua vida nos vinhedos encerrava um signi icado aindamaiorpara ele — um signi icado que o chamou de volta para casa quando a“guerraparapôrfimatodasasguerras”finalmenteterminou.

...

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Aquelaeraumavidadelendaemito,umavidaque,demuitasmaneiras,pouco mudara desde a Idade Média. “Era um tempo mais simples nosvinhedos”,Robert, ilhodeMaurice,relembrouanosmaistarde.“Tínhamosumamaneiradeviver,umamaneiradefazervinhoqueeranaturale trèsancienne.”O vinho era feito damaneira como avós e bisavós o haviam feito. Não

havendo especialistas a quem recorrer, cada um seguia as tradições queconheciaecomquecrescera.Aaraduraerafeitacomcavalos.Oplantio,acolheitaeapodaeramfeitosdeacordocomasfasesda lua.Pessoasmaisvelhaslembravamcomfreqüênciaaosmaisjovensqueosméritosdapodaforam descobertos quando o burro de são Martinho se soltou nosvinhedos.Isso acontecera, contavam elas, em 345 d.C., quando são Martinho,

vestido com peles de animais e cavalgando um burro, saiu parainspecionar alguns vinhedos que pertenciam a seu mosteiro, perto deTours,novaledoLoire.Eleeraumamantedovinhoemuitofizeraaolongodosanosparainstruirosmongescomrelaçãoàspráticasmaisrecentesdavinicultura. Nessa ocasião, são Martinho amarrou seu burro junto a umrenque de videiras enquanto ia tratar do seu serviço. Ficou ausente porváriashoras.Aovoltar, descobriupara seuhorrorque seuburro andaramascandoasvideirasequealgumastinhamsidomastigadasatéotronco.No ano seguinte, contudo, os monges tiveram a surpresa de ver queexatamente aquelas videiras tinham voltado a crescer com maisabundânciaeproduzidoasmelhoresuvas.Osmongesaprenderambemalição e, século após século, a poda tornou-se parte da rotina de todovinicultor.Odiacomeçavacedoeduravaatéqueotrabalhotivesseterminado.Não

havia horasmarcadas. Àmedida que podavam as videiras, examinavam-nasembuscadedoençaseamarravambrotosquesedesprendiam—diaapós dia, semana após semana, mês após mês —, os trabalhadorespassavam a conhecer intimamente cada videira. Era uma ligação quasemística,poisdeixavamqueasvideirasdeterminassemoritmoeamarchadavida.Após a colheita, esmagavam-se as uvas compésdescalços.Omosto, ou

suco da uva, era então derramado em tanques gigantescos, ao que seseguia um processo chamadopigeage, em que trabalhadores nusmergulhavamnolíquidoespumoso.Segurandocomforçacorrentespresasa vigas sobre suas cabeças, os trabalhadores se erguiam e se abaixavamrepetidamente, agitando o mosto com seus corpos inteiros para arejar a

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mistura e intensi icar a fermentação. Era um exercício perigoso.Di icilmente se passava uma colheita sem que alguns trabalhadores sesoltassemeseafogassem,oufossemas ixiadospelogáscarbônicoemitidopelo suco fermentante. As vítimas eram quase sempre homens, pois asmulheres,emalgumaspartesdaFrança,eramexcluídasdo chai,ou lagar,duranteo tempodacolheita.Apresençadelas, segundoumasuperstição,azedariaovinho.Apesar disso, o tempo da colheita era sempre o mais feliz do ano.

Quandoasúltimasuvaseramcolhidaseamontoadasnumacarroçapuxadaacavalo,ostrabalhadorescolhiam loressilvestresparadecorarocarroefazerumbuquêpara a senhorada casa. Ela penduravaobuquê sobre aentradadacave,ondeele icariaatéapróximacolheitapara trazer sorte— e bom vinho — para a casa. Outros chegavam a espalhar folhas devideiranopisoparaincitaros“bonsespíritos”anãoirembora.O tempo, então, era quase mágico; parecia nunca acabar, relembrou

RobertDrouhin.Durantecaminhadaspelosvinhedos,eleeopaiparavamfreqüentementeparalongasedivagantesconversascomostrabalhadores.“Aspessoaspareciamtermaiscaráternaqueletempo.Nuncahesitavam

emdizeraomeupaioquepensavamoucomoacreditavamqueascoisasdeveriam ser feitas, e meu pai estava sempre disposto a ouvir. Foinaquelesmomentosqueaprendiaamarasvideiras.”

Infelizmente,aquelasvideirasestavamemmíseroestado.Osanosentreasguerras haviam trazido sobretudo adversidade para os vinicultores, quetiveramdesuportarumasériedevindimashorríveis—enãosóporcausado tempo. Batalhas que haviam grassado durante a Primeira GuerraMundial haviam deixado os vinhedos, especialmente os da Champagne,praticamente mortos. Eles haviam sido fatiados por trincheiras eexplodidos pela artilharia e por projéteis de morteiros, que deixaramcraterasenormesnochão.Pioreseramosprojéteisquímicos,quevazavamnosolo,envenenandoosvinhedospormuitosanos.APrimeiraGuerraMundialchegaraexatamentequandoosvinicultores

estavam começando a se recuperar de uma outra crise. A iloxera, umminúsculo inseto que ataca as raízes das videiras, invadira a França emmeados do século XIX, reduzindo vastas áreas de vinhedo ao que umvinicultor chamou de “ ileiras de tocos nus — parecendo imensoscemitérios”. Ao longo dos trinta anos seguintes, a doença iria se alastrarpor todososvinhedosdopaís,movendoogovernoaoferecerumprêmio

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de 300.000 francos a quem conseguisse encontrar um remédio. Foramsugeridasidéiasdetodosostipos,queiamdoestapafúrdio—enterrarumsapovivodebaixodecadavideira—aoesperançoso—regarosvinhedoscomvinhobranco.Algunsvinicultoresinundaramseusvinhedoscomáguado mar; outros borrifaram suas videiras com vasto rol de produtosquímicos,ousimplesmenteasqueimaram.Nadapareciafuncionar.O remédio, como iria se revelar, era algo totalmente não francês.

Vinicultores descobriram que enxertando suas videiras em cepasamericanas, naturalmente resistentes à praga, podiam salvá-las. Era umprocessolongoedispendioso.Vinhedosinteirostinhamdeserarrancadospela raiz e replantados. Depois os vinicultores tinham de esperar váriosanosparaque suasvideiras começassemadar frutoe aindamais tempoparaqueatingissemaplenamaturidade.Exatamente quando as coisas começaram a melhorar, depois da

PrimeiraGuerraMundial,odesastreveiodenovo.DessavezfoiaGrandeDepressão, e seu efeito sobre a indústria do vinho foi devastador. NaChampagne, casas importantes não tiveram mais condições de compraruvas de seus produtores. Na Alsácia, um número enorme de vinicultoresfaliu. Os de Bordeaux foram obrigados a aceitar preços abaixo damédianacional—aprimeiraveznahistóriaque issoaconteceu.NaBorgonha,aproduçãodevinhocaiu40%,enquantoquasemetadedosvinhedos icavasem cultivo. Até o excelente Domaine de la Romanée-Conti icouclaudicante,mas a famíliaqueopossuía estavadecidida anão abrirmãodele. “Meu pai achava que era como uma bela jóia que uma mulherconserva em seu escrínio”, lembrouAubert de Villaine. “Ela não a usariatodo dia, mas estaria decidida a conservá-la para poder legá-la aos seusfilhos.”Paraisso,opaidedeVillainefezoquemuitosoutrosvinicultoresforam

obrigados a fazer para sobreviver: arranjou outro emprego. Era o seuterceiro. Já administrava a granja da família e dirigia o Romanée-Conti;agora começou a trabalhar num banco também. “Meu pai estavaconstantemente ocupado; nunca parava”, disse de Villaine, “mas isso eraporamartantooRomanée-Conti;passavacadamomentolivretrabalhandolá.”EmboraoDomainedelaRomanée-Continãofossecomeçaradaralgum

lucro até 1959, continuava sendo considerado o emblema do melhorborgonha, uma propriedade que nunca facilitou as coisas ou sacri icou aqualidade no interesse de ganhar dinheiro. Isso era algo que MauriceDrouhinadmiravaerespeitavaprofundamente.

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Comode todomodoninguémestavaganhandomuitodinheiro,Mauriceresolveu correrumgrande risco e criar umnegócioque se concentrassenuma única coisa: borgonha de primeira. “Meu pai tinha um ideal dequalidade”,disseRobert, “umdesejodecriarvinhosque fossemumpuroreflexodoterroir.”Maurice herdara umamaison du vin classique, o que signi icava que

vendiaumpouquinhodetudoefaziaelepróprioumpouquinhodevinho,masissoestavaprestesamudar.“Deagoraemdiante”,eledeclarou,“nãohaveránaminhacasaumagotaquenãosejadeborgonha.”Efaziaquestãode que todas essas gotas fossem boas. Considerou os excelentes vinhosque o Domaine de la Romanée-Conti estava produzindo a tanto custo epensou. “Isto é o futuro.”Assim, emmeadosdadécadade1930,Mauricecomeçouacomprar60%daproduçãododomaineacadaanoeadistribuí-la.Aomesmo tempo,estimulouseusvinicultoresaaprimoraraqualidadedos vinhos de sua própria casa, a Maison Joseph Drouhin, adotando ailoso iadeMonsieurdeVillaine,doRomanée-Conti,queacreditavaqueofabricante de vinho não passava de um intermediário entre o solo e ovinhoequedeviainterferirtãopoucoquantopossível.Ao optar por qualidade naquele momento, Maurice se pusera, sem o

saber,à frentedeummovimentoque introduziriamudanças importantesnaviniculturafrancesa.Atéentão,afabricaçãodovinhoforaincerta,maisinstintiva que cientí ica. Havia poucas regras — nenhum limite, porexemplo,paraoaçúcarqueosvinicultorescostumavamacrescentarparaelevaroteoralcoólicodeseusvinhosquandoasuvasnãotinhamchegadoa amadurecer por completo. Com demasiada freqüência, no entanto,vinicultores se valiam dessa possibilidade para colher suas uvas cedodemais. Quantidade, não qualidade, era seu moto e o meio mais seguro,acreditavam, de ganhar dinheiro. Plantavam videiras de grandeprodutividade que davam uvas inferiores e, previsivelmente, vinhoinferior.Paraesconderas falhas,despejavamneleaçúcarexarope,oqueresultava emvinhos espessosdemais, feitosmaispara sermascadosquebebidos.Com freqüência,umbomborgonhanão tinhanadadeborgonha,porquetinhasido“arranjado”,oumisturadocomvinhosdovaledoRódanoedaArgélia.Alguns, entre os quais Maurice Drouhin, decidiram que isso não era

maisaceitável.A solução, concluíram,estavaem trêspalavras: Appellationd’OrigineContrôlée (AOC),ou“localdeorigemcontrolado”. Issosigni icavaqueovinhodeviadizeroqueera.Oborgonhadeviaser feitounicamentecomuvascrescidasnaBorgonha;omesmoseaplicavaaobordeauxeaos

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vinhosdeoutrasregiões.Elesnãodeviamsermisturados.Mas a AOC abarcavamuitomais do que geogra ia. Estipulava também

quandoasvideiraspodiamserplantadas, comodeviamserpodadas,quefertilizantes e produtos químicos podiam ser usados e quando a colheitapodia ser iniciada. Estipularam-se regras também para a vini icação, oufabricodovinho.Nada disso aconteceu da noite para o dia. Como assinala Remington

Norman, um Mestre do Vinho que escreveu extensamente sobre oborgonha, o sistema da AOC “não brotou já feito da mente de algunslegisladores iluminados, mas evoluiu ao longo de quase quatro décadasantesdeserprogressivamentecodificadodadécadade1920emdiante”.Aaplicaçãoe icaz foiadordecabeçamaior.Comapenasumadúziade

inspetores,erapraticamenteimpossívelmantersobvigilânciamilharesdevinicultoresquetrabalhavamcriativamente,senãoescrupulosamente,emsuas adegas,misturandoumbocadinhodisso comumbocadinhodaquilo.Como o famoso escritor francês sobre vinhos André Simon ressaltou,misturar“éatécertopontocomobeijar—podeserinteiramenteinocente,mas pode desviar uma pessoa do caminho estreito do dever e dadecência”. Isso era particularmente verdadeiro em Bordeaux, onde, emalgunsanos,apenasumterçodovinhovendidocomobordeauxeradefatoproduzidonaquelaregião.Pararefrearpráticascomoessas,Drouhineoutrosvinicultorescriaram

em 1935 o Comité National des Appellations d’Origine, precursor doInstitutNationaldesAppelationsd’Origine,ou INAO,oórgãoqueregulaovinho francês. De início, contudo, muitos vinicultores, mesmo os quetendiamaapoiaro INAO, resistiram, temendoqueelepudesseprejudicá-los, forçando-osapagarmais impostosoua ixarpreçoselevadosdemais.Ninguém queria afugentar seus clientes, especialmente não naquelemomento, mas fazer propaganda para granjear outros era anátema.“Anunciar é errado”, disse um vinicultor. “Não deveríamos fazerpropagandanunca.Senossovinhoforbom,aspessoasvirãoanós.”

Semelhante iloso ia pode ter funcionado na Borgonha, onde os vinhedoseram pequenos e a maior parte do vinho produzido era consumidolocalmente, mas jamais teria funcionado para os produtores daChampagne, que dependiam maciçamente de mercados internacionais esabiam que tinham de fazer publicidade. Tinham aprendido à custa depenosa experiência com que rapidez a efervescência pode desaparecer.

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Tinhamvisto,porexemplo,comoosgostosmudaramrapidamentequandoos parisienses descobriram os coquetéis durante os Exuberantes Anos1920. Tinham visto também com que rapidez mercados se extinguiam:primeiro na Rússia, quando o czar foi derrubado durante a RevoluçãoBolchevique;maistardenosEstadosUnidos,quandoaleisecadespontou.Marie-Louise Lanson de Nonancourt, entretanto, tinha preocupações

mais urgentes: sua família. Seu marido morrera de ferimentos após aPrimeiraGuerraMundial eela icara com três ilhospara criar,umdelesumbebêchamadoBernard.“Minhamãesentiu-seperdida;nãosabiaoquefazer”,lembrouBernard.

Apesar disso, ela estava prestes a demonstrar que era mais uma dasviúvas resolutas e talentosas da Champagne, como as famosas VeuveClicquoteVeuvePommery.Marie-LouisepassaratodaasuavidanaChampagnee,comomembroda

famíliaproprietáriadaLansonPère&Fils,umadasmaisantigascasasdechampanhe,conheciaonegóciopeloavesso.QuandoconsideravaaLanson,no entanto, via um negócio com herdeiros demais. Dois de seus irmãos,VictoreHenri,estavamencarregadosdeadministrá-la,mashaviacercadedezoutrosirmãoseirmãsnafamília,bemcomovinteeseisouvinteesetesobrinhos e sobrinhas. Sob as leis da sucessãodaFrança, a Lanson seriafragmentada em pedaços minúsculos quando cada membro da famíliarecebesse seu quinhão. “Ela nunca será su iciente para nos sustentar atodos”,pensavaMarie-Louise.Como Maurice Drouhin, ela estava se defrontando com uma situação

econômicadi íciledecidiuarriscar.Em1938,Marie-Louiseencontrouumacompanhiade champanhena bancarrota, aVeuve Laurent-Perrier&Cie,cujoproprietáriomorreraalgunsanosantessemherdeiros.Elaestavaemcondições extremamente ruins e à beira da falência. Havia poucoequipamentoeaindamenoschampagne.Entrecemcasas,foraclassi icadaquaseemúltimolugar,comonúmero98.Marie-Louisenãosedeixoudesanimar.Aocontrário, icouempolgada.“É

exatamente o que estava procurando”, disse. Para susto de todos,especialmente de seu irmão Victor, despejou as economias de sua vidatodanacompradacasa.“Você perdeu a cabeça?” ele exclamou. “Todomundo está enfrentando

di iculdades! Como você, uma mulher sozinha, espera ganhar algumdinheiro,especialmentenumlugarcomoesse?”Marie-Louise acreditava que a resposta estava bem ali na sua frente,

seus três ilhos. Eram rapazes altos e fortes, que já haviam começado a

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aprender sobre o negócio do champanhe. Ela insistira em queaprendessem todos os aspectos dele, a começar de baixo, embalandocaixasecarregandocaminhões.“Isso não basta”, advertiu Victor. “Não se dá conta de que vem aí uma

guerra?Seus ilhospoderiamserconvocadosaqualquermomento,evocê,maisqueninguém,devesaberoqueissosigni ica.MeuDeus,vocêjápodeouvirosomdelaàdistância!”De fato,Marie-Louiseouviraossons.Ela tremeraquandoHitler,depois

de anexar a Áustria mais cedo naquele ano, jurara “estraçalhar aTchecoslováquia pela ação militar”; vira quando ele cumprira a ameaça,tomando os Sudetos para em seguida fazer suas tropas marchar sobrePraga.Apesar disso,Marie-Louise estava convencida de estar fazendo a coisa

certa. Como disse mais tarde seu ilho Bernard, “minha mãe sempreacreditou que, se a guerra acontecesse, a França e seus aliadosvenceriam”.Mas ela teve dúvidas.Na primavera de 1939, compreendeu como todo

mundo que a Conferência de Munique fora um fracasso. Hitler não seacalmara quando a Grã-Bretanha e a França lhe cederam os Sudetos naTchecoslováquia; isso apenas lhe abrira o apetite. Quando as forças deHitler marcharam sobre Praga, a Grã-Bretanha, em resposta, iniciara oprimeiro recrutamento em tempo de paz de sua história. As indústriasfrancesasaumentaramasemanadetrabalhodequarentaparaquarentaequatro horas (as alemãs já estavam trabalhando sessenta), enquanto oprimeiro-ministro francês Daladier pedia aos Estados Unidos queenviassem aviões de combate. Em Washington, o presidente FranklinRoosevelt,asmãosatadaspeloAtodeNeutralidadedosEUA,mandouparaHitler uma lista de vinte e seis países, pedindo que sua integridadeterritorial fosse respeitada. Hitler pronunciou sua resposta em Berlim. OFührer leuacartaparaoReichstag,avozsaturadadesarcasmoeamãosubindoedescendo comoummartelo enquantoele enumeravaospaísesum a um: Hungria, Albânia, Iugoslávia, Polônia … A cada nome lido, aaudiênciacaíanagargalhada.Cincomesesmais tarde,Hitler enviou seuexércitoparaaPolônia.Dois

diasdepoisaguerraaoTerceiroReichfoideclarada.

Era um pano de fundo sinistro para mais uma crise que grassava nosvinhedosfranceses.Acolheitade1939estavaapenascomeçandoeeratão

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má quanto todos haviam temido. Na Borgonha, Robert Drouhin lembrouuma“vendage sous la neige”, ou uma vindima sob ummanto de neve. EmBordeaux,oproblemafoiachuva,queresultouemvinhosralos,diluídos,oque levou um vinicultor a se queixar: “Isto não é vinho, é lavadura.” NaChampagne, Marie-Louise de Nonancourt não teve nenhuma uva paracolher. Seu novodomaine havia sido postoen sommeil, literalmente “paradormir”, tendo ela decidido que era melhor deixar sua nova irma emestado de letargia a tentar começar a operar em plena guerra. Oschampanheses que colheram uvas tiveram de fazê-lo com mulheres ecrianças inexperientesporqueamaioriadosrapazesforamobilizada.Boapartedos frutos colhidosnãoestavamadura.A regiãomais atingida foi aAlsácia, onde um vinicultor quali icou as uvas de “completa porcaria”.Nosso melhor vinho, disse ele, tinha apenas 8,4 graus de álcool, quasequatro grausmenosdoque o normal. “Era omesmoque tê-lo entornadopelobueiro.”Paramuitos,pareciaquea lendadoscamponesessobreguerraevinho

estava se tornando realidade. Para anunciar a chegada da guerra, oSenhormandaumamásafradevinho,diziamoscamponeses.Enquantoaguerra perdura, manda safras medíocres. Para marcar seu im, concedeumasafraótima,festiva.Em 1939, quando a guerra assomava no horizonte, os vinicultores

enfrentaram uma colheita que praticamente todos acabariam porqualificardeapiordoséculo.

...

No imdas contas, os vinicultores não teriamprecisado se preocupar emterminar sua colheita antes que as batalhas começassem. Depois que aguerra foi declarada, dia 3 de setembro, nada aconteceu. Não houvebatalhas, nenhuma ameaça de retaliação de Berlim, nada exceto algunsaviõesalemãesvoandopachorrentamentesobreParis.Asforçasfrancesasiniciaram uma desanimada arremetida em direção ao front alemão, masrecuaram rapidamente para posições mais seguras atrás da LinhaMaginot, certas de que aquela série de forti icações de concreto que seestendiadaSuíçaatéLuxemburgoeafronteirabelgalhesproveriatodaaproteçãonecessária.Considerada intransponível, fora construídaentreasduasguerrasparadeterumaofensivaalemãcontraaFrança.Eratambémumsímbolo,umlembreteestáticodopensamentodefensivofrancês.

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Duranteosoitomesesseguintes,atéaprimaverade1940,aFrançaseextenuariaatrásdaLinhaMaginot—noqueJanetFlanner,doNewYorker,chamoudeuma“curiosaformadeletargia”—,esperando,conjeturandooque a Alemanha poderia fazer e se comportando como se tudo estivessenormal. O período de inação foi chamadola drôle de guerre , ou a guerraesquisita.“Esta é uma guerra esquisita até agora”, ela escreveu. “Não fosse pela

existênciadaguerra,peloconhecimento,porexemplo,dequeécontraaleiiràruasemsuamáscaradegás,estedomingoseriasimplesmenteumbelodiadeveranicodeoutono…Comcertezaestadeveseraprimeiraguerraque milhões de pessoas de ambos os lados continuaram a achar quepoderiaserevitadamesmodepoisdetersidooficialmentedeclarada.”

MauriceDrouhin,entretanto,nãotinhailusõesdessetipo.NosanosqueseseguiramàPrimeiraGuerraMundial,elesemantiveraemestreitocontatocom seus amigos do exército, inclusive alguns dos Estados Unidos, porexemplo Douglas MacArthur. Ocasionalmente, o governo francês lhesolicitara que acompanhasse uma delegação do exército aos EstadosUnidos para estimularWashington a encerrar sua política de isolamento.Essas viagens eram algo que ele temia que o serviço de informaçõesalemãopudesseestarmonitorando.Comoprecaução,Mauricecomeçaraaensinaràsuamulher,Pauline,um

códigoqueaprenderanaPrimeiraGuerraMundial.Eleconsistiaemfazerminúsculos pontos a lápis em volta de letras ou palavras num livro paracriar mensagens. “O que quer que aconteça”, ele disse a Pauline, “nãodeixe Beaune. Se a guerra chegar e eu tiver de partir de repente, iqueaqui;sempreencontrareiumamaneiradeentraremcontatocomvocê.Oslugares abandonados são os mais vulneráveis, os que serão saqueadosprimeiro.”Por todo o país, vinicultores como Maurice estavam começando a se

preocuparcomavulnerabilidadedeseusestoquesdevinho.Comdezenasdemilharesdegarrafasemsuaadega,Mauriceresolveuqueiriaprotegerpelo menos parte disso, em especial seu estoque completo de Romanée-Contide1929a1938,queaseuverrepresentavaasegurançadafamília.AadegadeMauricecompunha-sedeumlabirintodecavessobBeaune,

algumas das quais haviam sido escavadas no século XIII. Todas aquelascurvas e meandros irregulares tornavam-na perfeita para escondergrandes quantidades de vinho. Numa seção, ele decidiu erguer uma

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parede e ocultar atrás dela suas garrafas de vinho mais valiosas. “Nãofalemumapalavraaninguémsobreisto”,disseàsuafamília.Aconstruçãoda parede foi umprojeto da família, e umprojeto que pareceu a Robert,ilho de Maurice então com oito anos de idade, tremendamenteempolgante. “Enquantopapaiassentavaostijolos,minhamãe,minha irmãe eu corríamos pela adega catando aranhas para pôr sobre a parede.Depoiselasfariamteiasedeixariamaparedeparecendomaisvelha.”Esforços semelhantes já haviam começado na Champagne, só que em

escala muito maior. Com quilômetros e mais quilômetros de caves decalcário calçando a região, os produtores esconderam não só imensasquantidades de champagne como também ri les de caça, mobília e atécarros.NaLaurent-Perrier,Marie-LouisedeNonancourtnãoprecisoudemuito

espaço pois não tinha muito o que esconder, somente 400pièces, oequivalenteacercade100.000garrafas,oquenãopassariadeumagotapara a maioria das casas de champanhe, mas fora tudo que ela tiveracondiçõesdecustearaocomprarodomínio.Aocontráriodoquesefezemoutras casas de champanhe, no entanto, Marie-Louise não apenasconstruiu uma parede; invocou também uma ajuda extraordinária: suaxará,aVirgemMaria.Depoisdeemparedarseuchampagne,Marie-LouiselevouaestátuadaVirgemdesuadevoçãopessoalecimentou-adentrodeumnichonaparede,numlocalbemvisível.“Agoraestánasmãosdela”,disseaos ilhos. “Nãohámaisnadaqueeu

possafazerparaprotegernossofuturo.”

...

NaAlsácia-Lorena,prevaleciaumaatmosferade fatalismo. “Lávamosnósoutravez”,pensavamaspessoas.Essas disputadas províncias, na fronteira oriental da França com a

Alemanha, haviam se tornado território francês no inal do século XVII.Entre1870e1945,mudaramdemãosquatrovezes,passandodaFrançapara a Alemanha, para a França, para a Alemanha e de volta para aFrança.Entre os que testemunharam cada uma dessas mudanças estavam os

Hugel de Riquewihr, uma família de vinicultores estabelecida na Alsáciadesde1639.“Somosespecialistasemguerraevinho”,disseJohnnyHugel.“Em1939,estávamosacabandodenossentarparacomemoraro terceiro

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centenáriodenossafamílianonegóciodevinhosquandoalgoaconteceu:aguerrafoideclarada.”Afestafoicancelada.AhistóriadosHugel é, sobmuitos aspectos, ahistóriadaAlsácia. “Meu

avôtevedetrocardenacionalidadequatrovezes”,contouAndré,irmãodeJohnny. O avô Émile nasceu em 1869. Nasceu francês, mas dois anosdepois, em 1871, a Alsácia foi tomada pela Alemanha após a GuerraFranco-Prussiana, e ele se tornou alemão. O im da Primeira GuerraMundialofezfrancêsdenovo.Em1940,quandoaAlsáciafoianexada,foiobrigadoaviraralemão.Em1950,quandomorreuaosnoventaeumanos,Émileerafrancêsnovamente.O constante vaivém entre nacionalidades resultou numa espécie de

esquizofreniaregional,umsentimentodeserparte francês,partealemão,massobretudoalsaciano.Vender vinho em condições como essas era freqüentemente uma

batalha; signi icava adaptar-se subitamente a situações econômicasdiferentes. Como Jean Hugel escreveu certa vez: “É muito fácil mudar alinha da fronteira no mapa da noite para o dia … mas com muitafreqüênciaonovosistemaestavaemcontradiçãodiretacomoanterior.Omercado doméstico tornava-se o mercado de exportação, inacessível porforça das restrições tarifárias, e vice-versa. Contatos bem estabelecidosdeixavam de estar disponíveis, e novos mercados tinham de serpenosamenteconquistados.”No outono de 1939, a repetição de todo aquele doloroso processo

parecia inevitável. Com a declaração de guerra, o governo francês,temendo um ataque, ordenou que a cidade de Estrasburgo, separada daAlemanhaapenaspelorioReno,fosseevacuada.Algumassemanasdepois,nada tendo acontecido, muitos dos 200.000 residentes da cidadecomeçaramavoltaraospoucos,imaginandoqueforaumalarmefalso.OsHugeltinhamoutraopinião.Estavamconvencidosdequeerasóuma

questão de tempopara que aGuerra Falsa se tornasse uma guerra real.Tinhamvistocomoapaci icaçãofracassaraemMunique,comoHitler izerade bobos os primeiros-ministros Daladier e Chamberlain. Quando Hitlerassinou um pacto de amizade e não-agressão com a União Soviética emagostode1939,osHugelficaramquasecertosdequeaguerraaconteceriaaqualquermomento.Comprovou-sequetinhamrazão.“Naquelemomento,sentimos que a únicamaneira de deter a Alemanha seria a entrada dosEstados Unidos na guerra”, disse Johnny Hugel. Mas essas esperançasforamfrustradasquandoopresidenteRoosevelt,emoutubro,rea irmouopropósitodeseupaísdepermanecerneutro.

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Por toda a Alsácia, havia uma sensação de calamidade iminente, umpressentimento tão ameaçador quanto as nuvens que pairavam sobre aregião durante aquele novembro frio e cinzento. No mês seguinte, àmedidaquea temporadade festasseaproximava,aatmosferadealegriaquegeralmenteexistianãopodiaservistaemlugaralgum.Emsuamaiorparte, as aldeias da Alsácia, que pareciam saídas da história de João eMaria,permaneciamescuras.Nadade luzespiscando,nadademúsicaouriso,nadadascoisasquenormalmenteacompanhamaestaçãodoNatal.Na véspera do Natal, os Hugel se reuniram em Riquewihr como de

costume,masfoiumaocasiãosombria.Emanosanteriores,acasasempreestivera decorada, todos trocavam presentes e depois se sentavam paraumaceiasuntuosaqueincluíaalgunsvinhosmaravilhosos.Masnãonesseano.Ninguémestava comdisposição.Todos temiamque aquele fosse seuúltimoNatalcomocidadãosfranceses,eoavôEmile,umanciãodeoitentaanos,nãoqueriamorrercomoalemão.“Minhamãe chorou a noite inteira”, lembrou André. Com dois de seus

ilhosquasecomidadeparaserrecrutadospeloexércitoalemãoeumdeseus irmãos morando na Alemanha, não havia nada que a pudesseconsolar.

Odesalentopairoutambémsobreoutrafamília.Fora um ano ruim para os Miaihle, uma proeminente família de

vinicultores de Bordeaux. Com propriedades que incluíam ChâteauxPichon-Longueville,Siran,Coufran,DauzaceCitran,osMiaihlehaviamsidoumdosmaioresprodutoresdevinhodaFrança.Mas não em 1939. “Todos os homens tinham sido convocados para o

serviçomilitarehouveumatremendafaltademão-de-obranosvinhedos”,disse May-Eliane Miaihle de Lencquesaing, que tinha quatorze anosquando a guerra foi declarada. Ao contrário dos Hugel, ela e sua famíliaicaram otimistas quando o acordo de Munique foi assinado. “Pensamosquetalveztudoficassebem,masestávamosenganados.”Um dos primeiros indícios veio no verão de 1939, quando receberam

uma visita inesperada de alguns amigos judeus da Itália, amigos quetambémestavamnonegóciodevinhos.“Elescontaramqueogovernoitalianoestavaescorraçandojudeuseque

não sabiam o que iria acontecer”, disse May-Eliane. “Eram dois casais etrês crianças e perguntamos: por que não icam aqui conosco atéconseguirmosterumaidéiadoquefazer?”

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Desde que Hitler chegara ao poder em 1933, um luxo constante dejudeus apavorados estivera deixando a Alemanha e a Europa Oriental,alguns buscando refúgio na Grã-Bretanha e na França enquanto outrosemigravam para os Estados Unidos, a Argentina e a Palestina. Emnovembrode1938,o luxoseacelerouquandonoventaeumjudeusforamassassinados na Alemanha durante uma noite de pilhagem e queimaconhecidacomoKristallnacht[NoitedeCristal].Era uma tragédia que a tia de May-Eliane, Renée Miaihle, podia

entender. Ela própria fora uma refugiada após icar órfã na PrimeiraGuerraMundial.Oresultado foique,quandoseusamigos judeusda Itáliachegaram,elanãopestanejou.“Minhatianãomandarianinguémemboraeo resto da família concordou com ela”, disse May-Eliane. Ofereceu-seespaçoparaasduas famíliasnoChâteauPalmer,dequeosMiaihle eramco-proprietários. Ainda assim, restava a questão: que fazer em seguida eporquantotempoasfamíliasestariamseguras?Elas estavam lá havia menos de um mês quando forças alemãs

invadiramaPolônia,entregando-seaumaorgiadecarni icinaquecustoumais de 10.000 vidas civis, inclusive 3.000 judeus poloneses, alguns dosquaisforamforçadosaentraremsinagogasequeimadosvivos.ObarãoRobertdeRothschild, umdosproprietáriosdoChâteauLa ite-

Rothschild, estivera observando os acontecimentos com crescente alarmedesde o início da década de 1930. Como chefe do consistório da GrandeSinagoga de Paris, sentiu-se consternado quando outros no templocomeçarama se queixar que umnúmero excessivo de refugiados judeusestavaa luindoàFrançaequedeviasermandadoembora.“Vocês icamaícom suas Legiões de Honra e seus passaportes franceses”, ele lhesrespondeu, colérico, “mas quando chegar a hora vamos estar todos nomesmosaco!”Numesforçoparaatenuarasrestriçõesimpostasaosimigrantesjudeus,

o barão Robert entrou em contato com um velho amigo seu da PrimeiraGuerra Mundial, o marechal Philippe Pétain, um herói de guerra queestavaentãoservindocomoembaixadordaFrançanaEspanha.Pediu-lhequeusassesuain luênciaparaconvencerogovernoamudarsuasnormas.Pétainrecusou-seaajudar.“Acho que, naquela ocasião, Pétain considerou meu avô um judeu

importuno”,lembroumaistardeÉricdeRothschild.Naalturado invernode1939,amarchadeHitler rumoaumaSolução

Final estava bem encaminhada. O que começara no início da década de1930 com a expulsão de judeus alemães de suas cidades e aldeias

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continuou com emigrações forçadas. Na Polônia, os judeus foramescorraçados de suas casas e obrigados a morar em áreas restritas, ouguetos.O pesadelo que estava se desdobrando não passou despercebido aos

Miaihle ou a seus amigos judeus. Havia momentos, contudo, em quetentavam pôr seus medos de lado. Um dos italianos era um primeiro-violino da Orquestra Sinfônica de Trieste e os outros eram tambémmúsicos. Todos os dias, havia música de câmara, com os Miaihleparticipando. “Lembro demaravilhosos concertos de Schumann, Fauré eBach”,disseMay-Eliane.“Elesserealizavamdascincoàssetetodososdias,mesmoquandootempoesfriou.”Comohaviapoucoaquecimento,aquelesconcertos“faziamcomquenossentíssemostodosmaisaquecidos”.

Para os soldados franceses na LinhaMaginot, os friosmeses de invernonão ajudaram muito a levantar os ânimos. Quatro meses haviam sepassadodesdequeaFrançadeclararaguerraenadaaconteceraainda.Ofront continuava calmo. Paramatar o tempo, os soldados se dedicavam àjardinagem e plantavam roseiras ao longo da Linha Maginot. Outrospegavambinóculoseespiavamooutro ladoda fronteira, fazendoapostasemjogosdefuteboldesoldadosalemães.A inatividade de seus “combatentes” não escapou ao povo francês. Um

dos soldados, um comerciante na vida civil, recebeu uma carta irada damulher que lhe pedia para tratar de alguma papelada. “Já que você nãotemnadapara fazer, tratevocêdeescreverparao freguês.Estouatoladadetrabalho.”Enquantoisso,emParis,osrestaurantesestavamrepletosehavialongas

ilas diante dos cinemas. “Paris deve continuar Paris”, explicou MauriceChevalier, “paraqueossoldadosde licençapossamencontrarumapitadadocharmeparisienseapesardetudo.”Amaioriadaspessoas tinha certezadeque, se aAlemanha atacasse, a

Françaestariaplenamentepreparada.“Acon iançaéumdever!”diziamosjornais.Masessenãoeraoúnicodever.Odepartamentodepublicidadedeumagrandelojadescobriuoutronaqueleoutonode1939:“Madame,éseudeverserelegante!”,proclamou.Ogovernotentavaapresentarumafacecon iantetambém.Emmarçode

1940, debates parlamentares sobre o preparo militar francês forampontuadospordeclaraçõesgrandiloqüentesdepatriotismoefanfarronice,bemcomoporpanegíricosin lamadosdasvirtudesdovinchauddusoldat,

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ou o vinho quente com especiarias dos soldados. O maior aplauso foireservadoparaEdouardBarthe,umrepresentantedogovernoelobistadovinho, que reivindicou a abertura de tabernas em todas as estaçõesferroviárias importantes onde os soldados se reuniam. Instou tambémpara que 50 milhões de hectolitros extras de vinho fossem distribuídoscomoraçãoparaossoldadosnofront. “Ovinhoéobomcompanheirodossoldados”,disse.“Dá-lhescoragem.”Mas a con iança era um verniz ino e nos bastidores havia incertezas

profundas. No governo, eram muitos os que achavam que seus líderesestavampassandomaistempobrincandodepolíticadoquesepreparandopara a guerra. Alguns, ante o pacto de não-agressão irmado pelaAlemanha com a União Soviética, tinham a impressão de que a Françahavia mirado o inimigo errado. “Hitler é mau, mas Stalin é pior”, diziam.Quaseninguémtinhaalgodebomadizersobreapolíticaexternafrancesaque, segundo um historiador, oscilava “constantemente entre o pânicoderrotistaeoexcessodeconfiançaagressivo”.Oprimeiro-ministroDaladier—excessivamentecauteloso—acreditava

irmementequeumaestratégiadefensiva,simbolizadapelaLinhaMaginot,era a melhor maneira de proteger a França. Rejeitava as idéias de umcomandantedetanquechamadoCharlesdeGaulle,quesustentavaqueasesperanças da França dependiam da criação de um exército pro issionalbaseadoemforçasblindadaspoderosasemóveis.AsopiniõesdedeGaulle,contidas emdois livrosque escreveuno iníciodadécadade1930, foramrejeitadas por Daladier e a maioria das altas patentes militares. Mesmoquando Daladier foi substituído por Paul Reynaud, de disposição maisagressiva, a estratégia de de Gaulle continuou sendo em grande parteignorada.Mas outros estavam prestando atenção. Jovens comandantes militares

alemães haviam lido os livros de de Gaulle de ponta a ponta e estavamincorporando rapidamente sua estratégia de orientação ofensiva a seupróprioexército.Sobalgunsaspectos,arelutânciadogovernofrancêsemfazeromesmo

era compreensível. Como disse o historiador Robert O. Paxton, “qualquerfrancês com mais de trinta anos lembrava o desperdício irracional demoços em 1914-18, que havia feito da França uma nação de velhos einválidos. Esse fato cruel era evidenciado todos os dias pela visão deveteranos mutilados na rua. Ele assumiu particular importância emmeados da década de 1930 com o advento dos ‘anos vazios’, omomentoem que, como os demógrafos haviam previsto, o contingente recrutado

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anual caiupelametade, tão reduzido foraonúmerodemeninosnascidosem 1915-19. Mais um banho de sangue, e continuaria ainda existindoalgumaFrança?”Esses temores resultavam por vezes emmedidas que pareciam quase

paranóides. As remessas de vinho para soldados, por exemplo, eramconsideradasumsegredodeEstado.Oso iciaistemiamqueseosalemãesdescobrissem a quantidade de vinho que era enviada para o front— ossoldados tinham direito a um litro de vinho por dia— o inimigo poderiacalcularfacilmenteonúmeroealocalizaçãoexatadastropasali.Mais preocupante era a contínua luta pelo poder entre o primeiro-

ministroReynaude ohomemque ele substituíra, EdouardDaladier, umaluta que contaminava os níveis mais altos do governo e induzia umaespécie de paralisia na tomada de decisões. Os dois homens tinhamopiniõescategóricassobrecomoaguerradeveriaserconduzida,Reynauddefendendo uma abordagem mais agressiva, enquanto Daladier, agoraministro das Relações Exteriores, insistia numa abordagem defensiva.Lamentavelmente, ambos os homens tinham também amantes que eramigualmente teimosas, desprezavam-seumaà outra e eramextremamentechegadasaumaconversadebaixodoslençóisquandosetratavadedizeraseus homens comoelaspensavamqueaguerradeveria ser feita.WilliamBullit, o embaixador dos Estados Unidos, icou tão exasperado ao tentarnegociar com o governo francês que enviou um telegrama ao presidenteRoosevelt dizendo: “Veneno injetado na posição horizontal éparticularmentepeçonhento.”

Agora era abril de 1940, haviam se passado sete meses desde que aguerra fora declarada. O inverno dera lugar à primavera e os cafés nascalçadasdeParisestavamseenchendo.Começavaaparecerquese teriaoutro verão tal e qual o de 1939, quando, como Janet Flanner escreveu,Parisexperimentou“umsurtodeprosperidade,alegriaehospitalidade”.Masissotudoestavaprestesaterminar.

No dia 9 de maio, Hitler disse ao seu estado-maior: “Senhores, logo irãotestemunharavitóriamaiscélebredahistória.”Nodiaseguinte,forçasalemãs,empregandoalgumasdasmesmastáticas

queCharlesdeGaulleadvogara,transpuseramorioMosaearremeterampelasdensamentearborizadasArdenas,contornandoaLinhaMaginot.Oito

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meses depois de a França declarar guerra ao Terceiro Reich, o combatefinalmentecomeçara.Oexércitofrancês,poderosonopapel, foiesmagado.Defato,tinhamais

tanques que os alemães, mas eles estavam distribuídos de maneiraesparsaeine icaz,“prontos,comoumaporçãodepequenasrolhas,ataparburacosnalinha”,comentouumhistoriador.Apesardisso,asforçasfrancesascombaterambravamenteosinvasores.

“É bom que esteja começando inalmente”, disse um soldado. “Podemosderrotarosbocheseacabarcomistoatéooutono.”Naverdade,acabariamuitomaiscedo,masnãocomoeleesperava.

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Q

DOIS

Nômades

FamíliadonortedaFrançafugindodecasa,partedeumêxododemaisdedezmilhõesdepessoasprovocadopelainvasãoalemã.“Elasnãosabem,ninguémsabe,paraondeestãoindo.”(Dodiáriode

PaulValéry,1940)

uando os últimos barcos de resgate desapareceram,foram-setambémtodasasesperançasdeGastonHuet

dequeeleeseushomensfossemsalvos.Era 24 demaio de 1940 e no porto de Calais, na costa

noroeste da França, dezenas de milhares de soldadosfranceses e britânicos tinham caído numa armadilha dasforças alemãs, de costas para o mar. Naquele momento

Huet, um tenente do exército francês de trinta anos, teria dado qualquercoisa para estar de volta ao vale do Loire, cultivando seu vinhedo emVouvray.

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AguerrajáforalongaparaHuet.UmanoemeioanteseleestiveraentreosprimeirosaserconvocadosduranteacrisedeMunique.Desdeentão,sóestiveraemcasaumavez,paraoprimeiroaniversárioda ilha.Agora,comas forças inimigasapertandoo cerco,Huet seperguntavaquandoveria afamíliadenovo,eatéseaveria.Huetcomandavaumacompanhiadetransportequeforaenviadaparaa

Bélgica pouco antes da invasão para buscar suprimentos de gasolina dequeas forças francesas estavamextremamentenecessitadas.Porémessamissão se revelou impossível quandounidadesmotorizadas da infantariaalemã coadjuvadas por tanques e apoio aéreo precipitaram-se sobre aFrança,invadindotambémaHolandaeaBélgica.“AochegaraFlandres, icamossabendoqueosbelgastinhamexplodido

oreservatórioparaimpedirquecaísseemmãosinimigas”,disseHuet.Com as comunicações interrompidas e os alemães se deslocando com

incrível velocidade, era di ícil saber que rumo tomar. Huet decidiu fazersua companhia avançar para o sul e tentar voltar para a França. Comoocaminho, segundo logo descobriu, tinha sido interceptado por tanquesalemães, ele regressou para o norte na direção de Antuérpia, só paradescobrir que praticamente todas as estradas estavam bloqueadas porumamaciçaconfusãoderefugiados.Emdesespero,HuetconcluiuqueeleeseusduzentoshomensdeviamseguirrapidamenteparaoportodeCalais,no canal da Mancha, onde, ele esperava, poderiam encontrar um barcocapazdeevacuá-losparaaInglaterra.“AcercadetrintaquilômetrosdeCalais,deiordemameushomenspara

começaradispersarnossoscaminhõeseprovisõesparaquenãocaíssemnasmãos dos alemães”, disseHuet. Alguns dos caminhões foram levadospara dentro dematas enquanto outros foramempurrados emvalas,masnãoantesquealgunssuprimentosessenciaisfossemdescarregados,comocomida,águaetrintacaixasdeVouvray,vinhoqueHuettrouxeradecasa“para fortalecer os homens sempre que necessário”. Depois de meteralgumas garrafas em suas mochilas, a companhia pôs-se a caminho denovo.A visão que os saudou em Calais foi um pesadelo. A praia estava

coalhadademilharesdesoldadosbritânicose francesesnaesperançadeser evacuados. Mas não havia uma embarcação à vista, nem sequer umúnicobarcodepesca.Huetcomeçouaperderoânimo.“Eunãosabiaoquefazer”, contou. “Não havia absolutamente nenhum lugar para ondepudéssemos ir. De um lado estava o canal da Mancha, do outro, osalemães.”

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Umaevacuaçãoemmassaestavacomeçandonaquele instanteaapenasquarenta quilômetros dali, em Dunquerque, mas “não sabíamos nada arespeito”, disse Huet, “e, mesmo que soubéssemos, não nos teria sidopossível chegar até lá”. Todas as rotas de fuga tinham sido fechadas eagora, de repente, caças-bombardeiros estavam começando a atacar astropas na praia. E não eram os únicos; aviões britânicos os estavambombardeandotambém.“Pensavamqueosalemães játinhamassumidoocontroleequeéramosalemães”,disseHuet.Em meio ao fogo e à fumaça, apareceram vários barcos pequenos da

marinha britânica. As multidões presas na praia foram avançando aospoucos para mais perto da arrebentação, com alguns dos homensmergulhando na água, tentando nadar emdireção aos barcos. Os barcos,contudo, eram pequenos demais e só podiam levar poucas centenas depessoas.Comaprioridadecabendoaosbritânicos,Hueteseushomensnãotiveramamenor chance. Alguémde umdos barcos gritou que tentariamvoltar,masissonuncaaconteceu.“Fiquei estupefato”, disse Huet. “Estávamos completamente

abandonados.”Comeles,milharesdeoutrossoldados.Quando o bombardeio icou mais intenso, Huet levou sua companhia

para se abrigar em um dosbunkers de concreto construídos como umalinhadedefesaao longodacosta.Dali,puderamverosúltimosbarcosderesgate sumirem de vista. Desesperados e frustrados, contemplaram osenormes canhões montados em seubunker, todos presos no lugar eapontados para o mar. Segundo Huet, “mesmo que tivéssemos podidoapontá-losparaosalemães, issodenada teriaadiantado.Seualcanceeralongodemais;teríamosapenasatiradosobreascabeçasdeles.”Dando-se contadeque sua captura era apenasumaquestãode tempo

— pouco tempo—, Huet e seus homens izeram a única coisa possível:sentaram-seeabriramsuasúltimasgarrafasdeVouvray.Minutos depois, o bombardeio começou a amainar. Na curiosidade de

saberoque estava acontecendo,Huet espioupara foradobunker e icouestarrecido. Nobunker à sua direita, a bandeira francesa, a tricolore,estava sendo baixada e, no seu lugar, uma bandeira alemã estava sendohasteada.Huetcorreuatéooutroladodeseubunkereviuamesmacenasendo repetida em cada um dos outrosbunkers ao longo da costa. Umaúnicabandeira francesa ainda tremulava, a que estava sobre seu bunker.Comlágrimasnosolhosesoboolhardeseushomens,Huetaproximou-sedo mastro e baixou lentamente a bandeira. Rasgou-a em pedacinhos,distribuiu-osentre todososseushomenseen iouumnoprópriobolso.O

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restoelequeimou.Depois, todos se sentaram, resignados com a sorte que os aguardava.

“Nãohaviamaisnadaquepudéssemosfazer”,disseHuet.“Nãoestávamosarmados para lutar; éramos uma companhia de transporte. Quando osalemãeschegaram,tivemosdenosrender.”

Menosdeummêsdepois,aprópriaFrançarendeu-seformalmente—masnão antes que 10 milhões de pessoas, um quarto da população do país,tivessemsetransformadoemnômades,fugindoparaosul,paralongedosalemãesqueavançavam.FoiamaiormigraçãodepessoasvistanaEuropadesdeaIdadedasTrevas.“Elesnãosabem,ninguémsabe,paraondeestãoindo”,disseuma testemunha.Sobumsolescaldante interrompidoapenaspor violentos temporais, crianças se desgarravam dos pais; centenas devidas se perdiam em bombardeios cerrados de aviões alemães em vôorasante.Masninguémparava;ninguémseatrevia.“Praticamente todosos franceses tinhamsido criadosouvindohistórias

das atrocidades alemãsdurante a PrimeiraGuerraMundial”, considera ohistoriador Robert O. Paxton. Um deles, o vinicultor Henri Jayer, daBorgonha, lembrou como seu pai o prevenia, “Você deve partirimediatamente; os alemães são bárbaros! Vão lhe cortar asmãos se nãofizeroquequerem.”Omesmomedo levouopaido fabricantede champanheHenriBilliot a

insistirparaquesuafamíliafugissetambém.OpaideBilliot,que“perderaa saúde” na guerra anterior, estava convencido de que a família inteiraseriamassacradasenão fosseembora. “Emmeioàcorreriaeàconfusão,umdemeusavós icoudesgarradoeentrouempânico”,contouHenri.“Elecaminhou todo o dia e toda a noite à nossa procura, mas foi inútil.Finalmente, desistiu e voltou para casa, onde sofreu um derrame. Tenhocerteza de que foi causado pelo medo, a incerteza quanto ao queaconteceracomorestodenossafamília.”Muitos dos refugiados eram soldados que antes haviam guardado a

Linha Maginot. Agora, as únicas linhas que ocupavam eram as que seestendiamporquilômetros, afastando-seda fronteiradeque fugiam. “Foiuma retirada sem glória”, disse René Engel, um vinicultor da Borgonha.Engel, que lutara na Primeira Guerra Mundial, lembrou soldadosdesfazendo-se de suas armas ao passarem por sua casa, fugindo atravésdosvinhedosporqueasestradasestavamcongestionadasdemais.“Foiumquadro que nós, veteranos de Verdun, contemplamos com o coração

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apertado.”Paraalguns,noentanto,elefoi“bastanteempolgante”.Robert Drouhin, que tinha oito anos, lembra de ver pessoas

sobrecarregadascomcomida,colchões,atégaiolasdepassarinho.“Devezemquando,minhasirmãseeunoslevantávamoseacenávamos”,disseele.“Nãocompreendíamosoquantoasituaçãoeragrave.”Ouquãodramaticamenteavidaestavaprestesamudar.Os alemães tinham avançado espantosamente depressa. No dia 12

junho, já tinham ultrapassado a Champagne. Dois dias mais tarde,entraram em Paris. Outras unidades foram em frente, descendo pelarodovia que cruza os vinhedos da Côte d’Or na Borgonha. No dia 28 dejunho, seu avanço chegou aos Pireneus e inalmente foi sustado. Seudestinoprimordial, contudo,eraa cidadeportuáriadeBordeauxnacostaatlântica,ocentrocomercialdocomérciodevinhofrancês.“Os alemães chegaram como anjos da morte”, disse um morador,

lembrandocomoa luzdosol faiscavaemseusóculosdemotociclistas.Empoucas horas estavammontando barreiras, requisitando casas e prédiosde escritórios e assumindo o controle do porto. Para saudá-los, tinham aseu dispor o governo francês, que fugira de Paris duas semanas e meiaantes e transformara a cidade em sua capital temporária.As autoridadeslogoentraramemdiscussõesacercadofuturodaFrança.Quase da noite para o dia, praticamente tudo nessa antiga cidade

portuária mudara. Estava eriçada de plataformas de canhão; bandeirascom insígnias nazistas tremulavam por toda parte. O próprio porto, umpontodeembarquevitalparaosprodutoresdevinhobordeauxpormaisde duzentos anos, estava agora repleto de soldados armados e sendoconvertidonumabasenavalalemã.A mudança mais dramática, contudo, foi a da população. Mais cedo

naquele mês, a cidade tinha 250.000 habitantes. Agora, abarrotada derefugiados que haviam tentado escapar da invasão alemã, sua populaçãochegavaaquaseummilhão.Como Robert Drouhin, Hugues Lawton achou o drama que se

desdobrava incrivelmente fascinante. O pai de Hugues, um dos maisdestacadoscomerciantesdevinhodeBordeaux,eraveteranodaPrimeiraGuerraMundiale lhecontarahistóriasdaguerra.“Eununcasonharaqueveria um dia algo tão interessante, demodo que estava decidido a ver aação”,disseHugues,quetinhaquatorzeanosnaépoca.Felizmente,calhoudeeleestarolhandopelajanelaquandoosalemãeschegaram.“Viprimeiroos tanques alemães entrando e foi realmente emocionante.”Mas,mesmo

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emsua empolgação,Hugues sentiuumarrepiodemedo, “Lembrodeverum soldado alemão passar numa motocicleta; suas narinas lamejavam,estavatãoorgulhoso.Eunãoconseguiaentenderaquilo.”

O que muitos não conseguiam entender era como um exército que atéalguns generais alemães consideravam omais forte da Europa podia serderrotado com tamanha rapidez e facilidade. As baixas foram tãoassombrosas — 90.000 mortos, 200.000 feridos, mais de meio milhãofeitos prisioneiros— que quando um velho soldado da Primeira GuerraMundial exortou seus compatriotas a se render todos se mostraramdispostosaconcordar,comumsuspirodealívio.OmarechalPhilippePétain, o “heróideVerdun”, estava servindo como

embaixador na Espanha quando o primeiro-ministro Reynaud chamou-odevoltaàFrançaparaelevaromoraldopaís.QuandoReynaudrenunciou,nodia16de junho,Pétain,comseusoitentaequatroanos,concordouemassumiro cargoe formarumnovogoverno.Nodia seguinte, aomeio-dia,estavafalandoparaopovodaFrançapelorádio.“Contristado,eulhesdigoqueénecessáriopôr imàluta.”Prometendodoar-seaopaís( ledondemapersonne), o velhomarechal declarou que assinaria um armistício com aAlemanhaequeaFrança,sobsuadireção,retornariaàsuaglóriaanterior.Sualógicafundava-senacrençadequeseupaísestavasozinho,queaGrã-BretanhanãosobreviveriaaumataquealemãoequeaFrança,assinandoum tratado de paz com Berlim, emergeria da derrota mais forte e maisunidaquenuncanumaEuropadominadapelaAlemanha.As promessas de Pétain foram como um bálsamo e 95% do povo as

apoiaram. Ele foi aclamado uma Joana d’Arc de calças, “o líder que nossalvou do abismo”. Entre os que ouviram a radiotransmissão da fala dePétain no dia 17 de junho estava May-Eliane Miaihle de Lencquesaing.“Suas palavras foram exatamente o que queríamos ouvir”, disse ela.“Éramostodospétainistas.”Os que estavam no comércio de vinhos icaram especialmente

entusiasmados. Sabiam que Pétain possuía um pequeno vinhedo naRiviera. Lembravam-se também do que ele escrevera sobre o papel dovinho durante a Primeira Guerra Mundial: “De tudo que se despachavapara as tropas, o vinho era com certeza o item mais esperado e maisapreciado.Paraconseguirsuaraçãodevinho,osoldadofrancêsencaravaperigos, afrontava projéteis de artilharia e desa iava a polícia militar. Aseus olhos, a ração de vinho tinha um lugar quase igual ao dos

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suprimentosdemunição.Ovinhoeraumestimulantequemelhorava seumoraleseubem-estar ísico.Ovinho,portanto,foiumimportanteparceironavitória.”Emboradessa veznãohouvessenenhumavitória, os franceses em sua

maioriaencontraramalívionacrençadequetinhampelomenosescapadodocaosqueumaoutraguerraemtodasasfrentesenvolveria.Paramelhoramortecer o golpe da derrota, Pétain a irmou que, sob a TerceiraRepública, o povo da França “não fora conduzido honestamente paraguerraem1939,masdesonestamenteinduzidoàderrota”.Eradelaçãonasua pior forma. Como o historiador H.R. Kedward ressalta, “ninguémadmitia responsabilidade; todos acusavamalgumaoutrapessoa. Soldadosrasos culpavam seus o iciais, o estado-maior culpava os políticos, ospolíticos da direita culpavam os comunistas, os comunistas culpavam osfascistas internos e os fascistas culpavam os judeus.” “Havia”, Kedwardacrescenta, “fragmentação su iciente aqui para depauperar os políticosfrancesesporumageração”.Oqueninguémcontestavaeraqueessa foraumaguerraqueaFrança

desejaraardentementeevitar.Aoserdeclarada,areaçãoforaummistodesurpresa, consternação e resignação. Embora as pesquisas de opiniãopública no verão de 1939 indicassem que a maioria das pessoas era afavor da guerra caso a Alemanha atacasse a Polônia, houve poucoentusiasmomanifestoquando isso inalmenteaconteceu—especialmenteno campo de batalha. Marc Bloch, um historiador que era capitão doestado-maiornoPrimeiroGrupodoExércitofrancês,censuroua“absolutaincompetência do alto comando” e sua passividade diante da ameaça deuma derrota da França para os alemães. Descreveu como seu própriocomandante permaneceu “em trágica imobilidade, sem dizer nada, semfazer nada, apenas contemplando omapa espalhado sobre amesa entrenós, como se esperasse encontrar nele a decisão que era incapaz detomar”.O fato de a França ter o tipo errado de tanques não ajudou. A maior

parte deles fora projetada para apoiar a infantaria, não para a guerra-relâmpago que Charles de Gaulle defendera e que as forças alemãsusavamcom tanta e icácia.O exército foi tolhido tambémporum sistemade comunicações antiquado. Um o icial queixou-se a seus superiores dequeumsistemadepombos-correiosteriasidomaise iciente.Nãosófalavaasério,comoprovavelmenteestavacerto.“Ninguémqueviveuduranteadébâcle francesademaio-junhode1940

conseguiujamaissuperarinteiramenteochoque”,dizohistoriadorRobert

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O. Paxton. “Para os franceses, que acreditavam ter um papel especial nomundo, a derrota em seis semanas para as tropas alemãs foi um traumadesnorteante.”

Foi especialmente desnorteante para André Terrail, proprietário dofamosorestauranteLaTourd’Argent,emParis.Ele icouterri icadoàidéiadequeosalemãespoderiamdescobrirsuaadegadevinho.“Para meu pai, aquela adega signi icava tudo e ele icou arrasado”,

contou seu ilho Claude. “Era a sua paixão, o trabalho de sua vida, suaprópriaalma.”AndréTerrailhaviapassadoanos formandoumadasmaisesplêndidas

adegasdomundo,quenasvésperasdaSegundaGuerraMundialcontinhamaisde100.000garrafas,muitasdelasdoséculoXIX.Areputaçãodelaeratãograndeque,mesmoantesdaSegundaGuerra,os ricoseglamourosos— de inancistas como J. Pierpont Morgan à maior parte da nobrezatituladadomundo,passandoporastrosdocinema—eramatraídosparaoTourtantopelasriquezasdesuacavequantoporseufamosopato.AidéiadeperdertodaaquelaadegaeramaisdoqueAndrépodiasuportar.Ele já sobrevivera aduas guerras, a Franco-Prussiana em1870-71e a

Primeira Guerra Mundial, em que fora ferido e aprisionado. Quando aguerra foi declarada de novo, André icou tão desalentado que deixouParisepôsorestaurantenasmãosdeseugerenteeamigodelongadata,GastonMasson.SeufilhoClaude,queestavacomaforçaaéreafrancesaemLyon,vooudevoltaparaajudar.“Ser um francês signi ica lutar por seu paíse pelo vinho do seu país”,

disseele.ClaudechegouaParisnodia12demaiode1940,exatamentedoisdias

depois que os alemães haviam cruzado o rio Mosa a partir da Bélgica.Estava tépido e ensolarado, o tipo de dia que faz de Paris omais bonitolugar da Terra. Na verdade, pairava uma atmosfera quase festiva nacapital francesa. Havia longas ilas diante dos cinemas e a maioria doscafés estava cheia. Claude deve ter icado chocado com a atitudeparisiense. Sabia comoa força aérea francesa era fraca epercebiaqueoavançoalemãoeraumgrandegolpe.Comosmilitaresemalertamáximo,Claudesóconseguiraumalicençade

seis horas, e ela estava expirando rapidamente. Ele e Masson já haviamconcordado que a melhor maneira de proteger o vinho do restaurantenum tempo tão curto era emparedá-lo. Com tanto vinho, no entanto, logo

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ficouóbvioquenãopoderiamescondertudo,demodoqueseresignaramaescolher 20.000 das garrafas realmente melhores, especialmente as de1867,orgulhoealegriadeAndréTerrail.O ritmo foi furioso, o ânimo quase frenético, quando Claude e Gaston,

comaajudadopessoaldo restaurante, começarama selecionargarrafas.Caixasderótulosesafras famososeramcarregadasdeumladodaadegaparaooutroenquantoumtijoloapósoutroeraassentado.“Só nos restavam cinco horas para fazer o trabalho”, lembrou Claude,

“masconseguimoscompletá-lo.”Ummês depois, no dia 14 de junho, sob um céu carregado da fuligem

vinda das reservas de petróleo que o governo francês em retiradamandara queimar, forças do Terceiro Reich marcharam sobre a cidadeagoradeserta.Comelesvinhaumemissárioespecialdosucessorescolhidode Hitler, o marechal-de-campo Hermann Göring. A primeira escala doemissário foi no Tour d’Argent. “Quero ver suas adegas, suas famosasadegas”,eleanunciou,“eespecialmenteasgarrafasde1867.”Compreendendooqueestavaemjogo,GastonMassonconvidouoo icial

para entrar e tentou manter a calma. Respirando fundo, informou seuvisitantedequetodososvinhosde1867tinhamsidoconsumidos.“O quê? Não é possível! Tem certeza? Falaram-me sobre esse vinho

maravilhoso”,disseoalemão.Massondesculpou-se,mascon irmouquerealmenteacabaratudo.“Mas

éclaro,seosenhorquiserconferir…”,disse.Assim, acompanhado de um pequeno contingente de seus soldados, o

alemão entrou comMasson no elevador e desceram até as adegas, cincopavimentos abaixo. Por mais de duas horas abriram caixas, reviraramgarrafas e examinaram rótulos. Revistaram cada canto, cada recesso ecada fresta, mas foi em vão. Nem uma única garrafa de 1867 pôde serencontrada.Porém,quandoosalemães inalmentedesistirameforamembora,nãoo

izeram de mãos abanando. Todas as 80.000 garrafas de vinho querestavamforamconfiscadas.Eraumapequenaprovadoqueestavaporvir.

Nodia22de junho,umvagãode trem foiempurradoparaumapequenaclareiranamatanonordestedaFrançaerestaurado.Eraoprópriovagãoemque aAlemanhahavia sido obrigada a se rendernaPrimeiraGuerraMundial. Agora, com Hitler e seus generais assistindo, a França era

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obrigadaa fazerexatamenteamesmacoisa—assinarumarmistícioqueimpunha muitas das mesmas condições severas que tanto haviamhumilhado a Alemanha em 1918. O exército francês estava reduzido a100.000 homens; suas tropas, antes orgulhosas, estavam relegadas àmanutençãodasegurançainterna;custosdeocupaçãoastronômicosforamimpostos;emaisdametadedopaís foipostasobocupação formal.Azoneoccupée,queincluíatrêsquintosdaFrançanaregiãonortebemcomoumafaixa de terra que corria da costa Atlântica até a fronteira espanhola,continhaamaiorpartedariqueza industrialedapopulaçãodaFrança.Azonanãoocupada,ouzonelibre,eradelongeapartemaispobredopaísefoialiqueomarechalPétainrecebeuordensdeinstalarseugoverno.Separando as zonas, estabeleceu-se uma Linha de Demarcação, uma

fronteiramilitar interna que os alemães podiam abrir ou fechar quandobem entendiam. Eram necessários passes para transpô-la e os viajantesestavamsujeitos abuscas.Nasprimeiras semanasdepoisdoarmistício, aLinha foi aberta apenas para trabalhadores e administradoresselecionados, aqueles que os alemães consideravam essenciais para arecuperação de indústrias básicas e serviços no norte. Milhões derefugiados que haviam tentado escapar da invasão foram impedidos decruzá-la. Foi um lance calculado dos alemães. Ao forçar o governo dePétain a conservar os refugiados por dois ou três meses, enquantoestabeleciamumaocupaçãoe icientenonorte, “issopermitiuaosalemãesparecerorganizadosegenerosos”,segundoohistoriadorKedward.Assim,queixas relativas a comida e outros problemas eram dirigidos àsautoridadesfrancesasenãoàsalemãs.Ainda assim, naquele primeiromomento, os franceses em suamaioria

não icaram demasiadamente preocupados com a divisão. Era umasituação temporária, pensavam, e o novo governo de Pétain tambémacreditavanisso.Nodia 29de junho, quandoosmembrosdo governo setransferiram de Bordeaux para a estância termal de Vichy, umministrodisse aos proprietários do Hôtel du Parc, na cidade: “Não se preocupemcomaquecimento,estaremosdevoltaaParisatéooutono.”

Esseotimismojovialmurchoudepressa.O marechal Pétain acreditara que, se fosse um “bom colaborador” e

cooperassecomosalemães,Hitler icariasatisfeitoeaocupaçãologoseriasuspensa.Estavaenganado.Hitlernãoestavainteressadoemcolaboração;estavainteressadoembutim,emextrairdaFrançatudoquepudesse.

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“Osverdadeirostubarõesnestaguerrasomosnósmesmos”,disseHitler,“evamossairdelaarrebentandodegordura!Nãodaremosnadaemtrocae arrancaremos tudo que nos possa ser útil. E se os outros protestarem,poucomeimporta.”AgorduraaqueHitleraludiu incluíaacimade tudoumacoisa,oqueo

antigo primeiro-ministro francês Edouard Daladier chamou de “a maispreciosa jóia da França”: vinho. Sua importância não residia somente emlucrosnomercado;eleeratambémumsímbolodeprestígio,so isticaçãoepoder.Com o estabelecimento da Linha de Demarcação, a maior parte dos

melhoresvinhedosdaFrança,os grandscrus, icaramsobcontrolealemãoeasautoridadesnãoperderamtempoemdeixarclaroparaosvinicultoresquemestavano comando.Menosdeuma semanadepois da chegadadosalemães aBordeaux, osMiaihle, no ChâteauPichon-Longueville-ComtessedeLalande,foramcomunicadosdequedeviamacharumoutrolugarparamorar.“Cercadeduzentosecinqüentasoldadosapareceramderepente,eum

dos o iciais nos disse que nos queriam fora dali, juntamente com toda anossamobília”,contouMay-Eliane. “Ele foipolido,mas irme,e insistiuemque tínhamosdenosmudar imediatamente.”Ocasteloeramobiliadocomuma coleção de móveis Carlos X e objetos de arte que remontavam aoinício do século XIX, reunidos pela primeira condessa de Lalande. FoiprecisoaparticipaçãodafamíliaMiaihle inteiraparaarrastartudoparaosótãodocastelo.Uma peça foi deliberadamente deixada para trás. Era um armário

pesado que guardava provisões da cozinha. Os Miaihle decidiram usá-lopara proteger seu vinho, empurrando-o de um lado da cozinha para ooutro de modo a pô-lo exatamente em frente à porta que abria para aescadaquelevavaàadega.QuandoosMiaihle inalmentedeixaramseucastelo,soldadosalemãesjá

estavam jogando enxergas de palha nos assoalhos de parquete paradormir e incando pregos nasboiseries, os painéis demadeira entalhada,parapendurarsuasarmas.Comoconfiscodesuacasa,osMiaihlemudaram-separaoChâteauSiran

navizinhaMargaux,ondemoravamosavósdeMay-Eliane.EncontraramoSiran apinhado de refugiados do norte da França, entre os quais algunsprimos distantes de Verdun. “O lugar estava transbordando, masrealmentenãotínhamosnenhumoutrolugarparair”,disseMay-Eliane.Estavam lá havia apenas umas duas horas quando o o icial que

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requisitara o Pichon chegou subitamente. “Estava furioso e ordenou quefôssemos todos com ele”, disse May-Eliane. “Ficamos assustadíssimos.” Oo icialmandouqueentrassemnocarrodeleseoseguissemdevoltaatéoPichon.Quandochegaram,mandouque fossemparaacozinha.Elaestavacheia de soldados armados. Horrorizados, os Miaihle descobriramrapidamente por quê: o armário que escondia a porta para a adega devinhoforaremovidoeelaestavaescancarada.“Pensam que somos ladrões?” berrou o o icial. “Pensaram que iríamos

roubar seu vinho?” Antes que os Miaihle pudessem responder, elecontinuou:“Muitobem,nãosomosladrõesenãovamostocarnumagarrafadoseuvinho!”EmandouostrêmulosMiaihleembora.Seus temores, contudo, haviamapenas começado.A tirada do o icial os

fez compreender que era preciso fazer alguma coisa imediatamente comrelação a seus amigos judeus italianos que continuavam no ChâteauPalmer.“Sabíamosquenãoestavammaisseguroslá”,disseMay-Eliane,“eassim resolvemos, comoumamedida temporária,mudar as duas famíliasparaumpequenoanexodocastelo.”Umapassagemqueligavaosprédiosfoientãomurada.Nos fundosdoanexo,escondidaporumasebeespessa,haviaumajanelinha.OsMiaihleacrescentaram-lheumapequenaescotilha,demodoapoderpassarporali comida,mensagenseoutrossuprimentosparaseusamigosjudeus.Mas então algo de horrível aconteceu: os alemães anunciaram que

estavamrequisitandooChâteauPalmer.“Quandoouvi isso,meu coraçãoparou”, contouMay-Eliane. “Realmente

nãosabiaoque iríamos fazer.TudoquesabíamoseraquenossosamigosnãopodiamficaremPalmerpormuitotempomaissemserdescobertos.”

Sob um aspecto, os Miaihle tiveram sorte. O o icial que requisitou seucastelo cumpriu sua promessa: seu vinho icou intacto. Outros, contudo,não foram tão afortunados. Durante doismeses de pesadelo, produtoresde vinho através de grande parte da França sofreram em meio a umaorgia de pilhagem enquanto os alemães se fartavam com o triunfo e asdelíciasdasadegasdevinhodaspessoas.NaBorgonha,soldadospunhamabaixoasportasdascasasdegenteque

tinhafugidoepilhavamsuasadegas.Na Champagne, quase dois milhões de garrafas foram roubadas e

levadas. “Eles empilhavam tudo no centro da nossa aldeia — comida,roupas e, é claro, champanhe — depois metiam tudo em caminhões”,

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relembraummorador.“Issodeixouaspessoasnumasituaçãomuitomá.”Na aldeia de Le Mesnil-sur-Oger, Bernard de Nonancourt, rapaz de

dezessete anos, estava trabalhando como irmão e vários primos na casadechampanheDelamotte,embalandoecarregandocaixasdechampanhe,quando ouviram o ruído de caminhões se aproximando. Minutos depois,umcomboiodequinzeveículosparouedeles saírambandosdesoldadosarmados. Com eles estava um o icial de semblante carrancudo que disseestaralidapartedomarechal-de-campoGöring.“OsquetrabalhavamparaGöring eram sempre mais jovens, mais duros e mais brutais”, disseBernard. “Tra icavam no mercado negro e nunca hesitavam emtransgredir regras quando isso lhes convinha.” Com seu jovemcomandanteàfrente,ossoldadosmarcharamsobreaSalon,umadascasasmais prestigiosas da Champagne, e começaram a carregar caixas dechampanhe para fora. “Isso continuou por vários dias”, disse Bernard.“Todasasmanhãselesvoltavameretiravammaischampanhe.Lembro-meparticularmentedevercaixasdeSalonde1928sendocarregadas.”Para a maioria dos franceses, aqueles primeiros meses da ocupação

foram desnorteantes. Tudo parecia desgovernado. Até os alemãespareciamumpoucoconfusos.“Umacoisa icouclaradeimediato”,escreveuohistoriadorPhilipBell.“A

política alemã não estava seguindo um projeto. A velocidade das vitóriaspegoutodomundodesurpresa—oaltocomandoalemão,osministrosdegoverno, até o próprio Hitler. Assim, longe de haver qualquer programadetalhadoprontoparaserpostoemoperação,nadaestavapreparado.”EmBordeaux, o ChâteauHaut-Brion, que fora convertido numhospital

para soldados franceses por seu proprietário, o banqueiro americanoClarenceDillon, foicon iscadoe transformadoemcasaderepousoparaaLuftwaffe.Os vinhedos do Château Montrose foram convertidos em polígono de

tiro.NoChâteauCosd’Estournel,ossinosdecorativospenduradosnastorres

da renomada propriedade vinífera começaram a tocar de repente. Ossoldadososestavamusandoparapraticartiroaoalvo.No Château Mouton-Rothschild, tropas mal haviam se instalado nessa

jóia de propriedade quando começaram a atirar em várias pinturaspenduradas na parede. “É totalmente absurdo”, disse a baronesaPhilippine de Rothschild. “Lembro que me contaram sobre uma velhacozinheira a correr de um lado para outro tentando retirar os quadrosantesquefossemdestruídos.”

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Outras vezes, no entanto, os alemães eram corteses e disciplinados. AmãedeHuguesLawtonestavaacabandodesesentarparaocháquandoacriadaentrounosalãoeanunciou:“Madame,osalemães.”Logoatrásdelavinham vários o iciais. “Foram perfeitamente polidos, mas icou tambémperfeitamenteclaroqueestavamtomandonossacasa”,disseHugues.Na Borgonha, contudo, os alemães ajudaram a destruir a colheita de

1940 quando impediram os trabalhadores de entrar nos vinhedos paratratar as videiras contra o oídio e omíldio. O problema foi registrado nodiáriodosvinhedosdomarquêsd’Angerville,deVolnay: “17juin1940,Pasde travail aujourd’hui, occupation par les Allemands.” (Nenhum trabalhohoje,ocupaçãopelosalemães.)No Château do Clos de Vougeot, um ponto de referência na Borgonha

desde que monges plantaram vinhas ali no século XIII, soldados seinstalaram abruptamente, transformando os belos salões do térreo emdepósito de munição e rachando madeira no assoalho, marcando omonumento medieval para sempre. Haviam planejado também rachar omagní icopressoir do século XV do castelo para fazer lenha, mas foramdissuadidos no último minuto por dois proeminentes vinicultores quealegaramqueaprensadelagareraumapeçademuseu.Um dos piores episódios de banditismo alemão aconteceu em

Sézanneen-Champagne, numdos restaurantesmais famososdaFrança, oHôtel de France. Quando as tropas chegaram, descobriram que a adegaestava quase vazia e todos os seus vinhos famosos tinham desaparecido.Tomadosporumacessodefúria,passaramaquebrarmóveis,recortarastelas nas paredes, estilhaçando as vidraças com o cabo dos seus fuzis ecarregandoparaforaoquevinhoquesobrara.Certamente teriam icado ainda mais furiosos se soubessem que o

proprietário, apenas algumas semanas antes, escondera seus melhoresvinhosatrásdasparedesqueestavamgolpeandocomtantaviolência.

Pelo inaldejulho,asautoridadesalemãshaviampercebidoquetinhamdeencontrar uma maneira de controlar suas tropas. Elas não estavamroubando apenas dos franceses; estavam roubando também bensrequisitados pelo Terceiro Reich. Mercadorias que enchiam pelo menosduzentosecinqüentatrensdestinadosàAlemanhatinhamsidosaqueadas.Para pôr im a isso, as autoridades resolveram castigar exemplarmentedois jovens soldados que haviam sido presos após invadir as adegas dairma de champanhe Perrier-Jouët em Epernay. Um dia depois de sua

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prisão, uma corte militar sentenciou-os à morte. Embora mais tarde asentença tenha sido revogada e os homens mandados para o front, amensagemfoiclara:saqueepilhagemnãoseriammaistolerados.

O marechal-de-campo Göring, que tivera sua autoridade ampliada,passando a ditar a política econômica de todos os países ocupados, tinhaaguda consciência de que os tempos haviam mudado e que manter aordemeraessencial;massuas instruçõesparaaAutoridadedeOcupaçãorevelavam também uma duplicidade característica: “No passado a regraera pilhar”, disse ele, “agora, as formas exteriores tornaram-se maishumanas.Apesardisso,pretendopilhar,epilharcopiosamente.”Seu primeiro gesto foi desvalorizar bruscamente o franco francês,

tornandoomarcoalemãoquase trêsvezesmaisvaliosodoqueeraantesda guerra e as compras de vinho ino ou de qualquer outra coisapechinchasformidáveisparaosalemães.Paraosfranceses,foiumgolpeterrível.Quandoalgunssequeixavamde

queembreveo franconãovaleriamaisnada,Göring tinhaumarespostapronta: “Ótimo, espero que isso aconteça. Espero que,muito em breve, ofranconãotenhamaisvalorqueopapelusadoparacertopropósito.”Foi di ícil engolir a réplica de Göring, especialmente para um irascível

padrezinhochamadoFélixKir(quedeuseunomeadeterminadoaperitivofrancês). Pouco depois que os alemães mudaram a taxa de câmbio, Kiravistou um lojista vendendo vinho a soldados alemães emDijon. “Quantoestá cobrando deles?” perguntou. O comerciante disse trinta francos. Kirgritou:“Essessujeitosacabamdemudarataxadecâmbio;cobresessentadeles! Se não pagarem, não venda.” Os soldados pagaram. Uma horadepois,olojistatinhavendidooestoquetodo.

O governo de Vichy foi menos franco. Seus poderes estavam apenasvagamente de inidos, ixados no acordo de armistício que fora costuradoemmenosdequatrohorasporredatoresetradutoresquetinhamtidodetrabalharàluzdevela.Na teoria,aautoridadeadministrativadeVichyabarcavaopaís inteiro.

Ogovernopodianegociarpreços,atédiscutirtaxasdecâmbio,masestavasujeitoàinterferênciaeaovetoalemãesnazonaocupada.Apenasnazonanão ocupada, ouzone libre, Vichy exercia o pleno poder executivo, mas,mesmo nesse caso, dentro das restrições do armistício, que os alemães

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podiaminterpretaraseubel-prazer.Anuviandoaindamaisoquadro,haviaumaacerba lutadepoderentre

Göring, que acreditava que a França devia ser tratada como um paísconquistado, uma vaca leiteira, e saqueada semmisericórdia, e o pessoaldoMinistério das Relações Exteriores, encabeçado peloministro Joachimvon Ribbentrop, que via com bons olhos uma abordagemmais sutil, quepermitiriaaBerlimintroduziraFrançanumaNovaOrdemdominadapelaAlemanhanacondiçãodeumpodersubordinado,mascapazdeconservarumgraulimitadodesoberania.“CasoaFrançadevasertratadacomoumavaca leiteira”, sustentou um o icial, “é preciso lhe dar um pouco deforragem.”Umaquantidade limitadade forragem, foimais oumenos issoqueVichyjamaisconseguiu.Apesar disso, a maioria dos franceses, naqueles primeiros seis meses,

acreditava que o regime, em seu cenário modorrento e encabeçado poruma iguradeavôqueprofessavaquererapenasomelhorparaaFrança,eraexatamenteoqueconvinhaaopaís.EleexaltavaastradiçõesdavelhaFrançaprovincial,anecessidadedoretornoàvidaruraleasantidadedafamília segundoaqualo lugardamulhererano lar. Sobomoto “Travail,Famille,Patrie” (“Trabalho,Família,Pátria”),Vichypassoua seempenharem rejuvenescer a França mediante a promoção de organizações dejovens, da prática de esportes e de uma vidamais saudável, ao ar livre.Incentivou tambémas “boasobras” e reclamouumpapelmaiorda Igrejacatólicanaeducação.Mashaviaumladomaissombrio,maissinistro.OgovernodeVichyera

autoritário,patriarcalemessiânico.“Desdeoinício”,segundoohistoriadorKedward,“foiumregimedesagregadorepunitivo,queatuavasobailusãodequeaveneraçãogeneralizadaaPétainindicavaumconsensosimilaremtornode seu programapolítico e social.” Contra os valores da Liberdade,Igualdade e Fraternidade, Pétain pregava uma sociedade em que aspessoas conheciam o seu lugar — e eram mantidas nele. As mulherescasadas foram proibidas de ter empregos. Seu verdadeiro trabalho eraficaremcasaeterfilhos;eraumdeverpraticamentesagrado.Para outros, foi muito pior. Menos de dois meses após empossado, o

governodeVichypublicouoprimeirodeumasériededecretos tornandoosjudeuscidadãosdesegundaclasse.Judeusimigrantesforamdespojadosde seusdireitos, constantementemolestados e ameaçadosdedeportação.A meta de Vichy era tornar a França uma nação homogênea. “A Françapara os franceses”, diziam. Comunistas e maçons foram perseguidos;assembléiaslocaiseleitaseprefeitosdecidadesmaioresforamdestituídos

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e substituídos todos por pessoas nomeadas pró-Vichy. Nesse contexto,segundo Kedward, Vichy “apareceu como uma força não de integraçãonacional,masdevingançapolítica”.Emboraoapoioaogovernoestivesseprestesadeclinar,afénohomem

que o liderava permanecia elevada. Para a maioria dos franceses, haviauma distinção clara: por um lado, havia Vichy; por outro, Pétain. Até omarechal traçou umadistinção, dizendo considerar-se um tutormoral danação, que moldava mais atitudes corretas que política. As massas oadoravamea Igrejaovenerava: “AFrançaéPétain,ePétainéaFrança”,declarouGerlier,ocardealprimazdaFrança.Nasestradas,oscamponesesformavam alas ao longo dos trilhos quando seu trem passava; mulhereserguiamseusbebêsparaqueeleos tocasse.Emumcaso,umamulhersejogou na frente do seu carro para detê-lo, na esperança de ter umaoportunidadedelhetocaramão.Segundoumrelatórioo icialdoepisódio,oprefeitosevirouparaPétainparapedirdesculpas,masdescobriuqueomarechaldormia serenamente (tinhaoitentae cincoanos), “sem”,disseorelatório,“perderadignidadeouoportesoberano”.

Ocaosdosprimeirosdoismeses chegoucomoumdurodespertarparaamaioria dos franceses, que tradicionalmente tinham os alemães na contadedisciplinadosesempre“corretos”.Na alturade agosto, porém, amaiorpartedadesordem foraposta sob

controle, o sinal mais claro estando em Paris, onde os soldados secomportavammuitocomoturistas.Visitavamospontosdemaiorinteresse,iam ao cinema e enchiam restaurantes. As autoridades chegaram a criarumaorganizaçãochamadaJedereinmalinParis(TodosemParisumavez)paraproporcionaratodosossoldadosumasfériasnaCidadeLuz.Um o icial, que declarou considerar a França uma “segunda pátria

espiritual”, descreveu Paris como “ainda mais brilhante durante aocupaçãodoqueantes”.OpróprioHitler fezumaturnêpelacidadecomoum pé-de-vento, sua viagem de um dia tendo tido seu ponto alto numabrevevisitaaotúmulodeNapoleão.Para amaioria dos alemães, no entanto, a atração primordial de Paris

não eram os monumentos históricos, mas os gastronômicos, osrestaurantes, que, como disse um soldado, “permitem-lhe viver como umDeusnaFrança”.UmdessesrestauranteseraoLaTourd’Argent,queumjovem o icial chamado Ernst Jünger visitou para descrever mais tarde a“sensaçãodiabólicadepoderquechegavaenquantosecomialinguadoeo

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famosopato”.ClaudeTerrail,quetrêsmesesantesajudaraaesconderosvinhosmais

preciososdorestaurante, contouqueosalemãesque jantavam lásempresecomportavamcorretamente.“Podiamserassassinosláfora,masànoitevinham bem vestidos, se comportavam e pagavam tudo.” No tocante aovinho, os alemães sempre pediam o melhor. “Tentávamos empurrar abebida mais barata”, disse Terrail, “mas não trapaceávamos. Não valia apenamorrerporisso.”Essa era uma atitude que os Hugel de Riquewihr compreendiam. Ao

contrário dos Terrail e de tantos outros, não se deram ao trabalho deesconder seu vinho. “Éramos Alemanha de novo”, disse André, “e osalemãeseramdenovonossosclientes,nossosúnicosclientes.”EmboranãohouvessemençãoàAlsácianoacordodearmistício,aregião

foi imediatamente anexadanodia 7 de agosto e tudoque era francês foiproscrito.Asplacasnaruaforamtrocadasporoutrasemalemão,HugeletFils tornou-se Hügel und Söhne e o uso de boinas foi proscrito. “Se vocêdissesse um simplesbonjour podia ir para um campo de concentração”,lembrou Johnny, o irmão de André. Um primo dos Hugel, de fato, foimandadoparaumcampoporserecusaraassinarumadeclaraçãodequeeradeorigemalemã.“Você tinhadeobedecer às regras,nãohavia alternativa”, disseAndré.

“Para poder me matricular no liceu, tive de entrar para a JuventudeHitlerista.” Os irmãos Johnny e Georges viram-se diante de umaperspectivamaissinistra:tinhamdeingressarnoexércitoalemão.Georges foi o primeiro, porque era omais velho. Não foi ummomento

feliz, “mas iz o que tinha de fazer”, disse Georges. “Tinha medo de queminha família pudesse ser enviada para um campo. Vi outros rapazesfugindoeasfamíliasdelesforammandadasparaaPolônia.”Ao contrário de outros, o povo da Alsácia tinha pouca con iança no

marechalPétain.“Eraumhomemfraco”,disseGeorges.“Claro,erao‘heróide Verdun’ e tudo isso, mas era fraco. Os soldados só gostavam deleporqueachavamquehaviamenoschancedesermortoquandoeleestavano comando; isso porque ele nunca fazia muita coisa. Muitos o iciaisachavamqueeleprecisavadeumbompontapénotraseiro.”Agora que eram parte da Alemanha novamente, os Hugel tiveram de

decidircomomanterseunegóciodevinhosemfuncionamentoe,comopai,Hugeldizia, “adaptar-se ànova situaçãoeconômica”. Sobumaspecto,nãoera terrivelmente complicado: a Alemanha era o único cliente. “Todo onossovinho,comoodetodososdemais,estavabloqueadopelosalemães”,

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disseAndré.“NãopodíamosvenderparanossosclientestradicionaiscomoaGrã-Bretanha;sópodíamosvenderparaaAlemanhaepelospreçosqueosalemãesestipulassem.”“Osalemães”,disseele,“podemnãoterroubadoseu vinho no sentido usual do termo,mas roubaram-no legalmente e emgrandequantidade.EsvaziaramaAlsáciadeseuvinho.”MadameMarieHugel,contudo,tinhapreocupaçõesmaisimediatas.Três

semanas após a anexação, ela recebeu ordens para se apresentar aoquartel-general alemão. Ninguém sabia ao certo o porquê, embora nãofosse segredo que as autoridades estavam contrariadas com a recusa deMonsieurHugelaingressarnoPartidoNazista.Cartaseavisoshaviamsidoenviados instando os moradores de Riquewihr a entrar no partido, masMonsieurHugeloshavia ignoradoresolutamente.Agoracorriamrumoresdequeseunegóciopoderiaserfechadoeafamília,deportada.“Minhamãeestavaapavorada”,disseAndré.“Nãosabiaoqueesperar.”Quandoelachegouaoquartel-general,umo icialainformoudequesua

lealdade à Alemanha estava em questão. “Temos conhecimento de quesemprefalaemfrancêscomseu ilhos”,disseoalemão.“Porqueodeiaosalemães?”MadameHugel,momentaneamenteconfusa,logoserecobrou.“Quequer

dizer?”perguntou. “Comopodedizerqueodeio os alemães?Meupróprioirmãoéalemãoe tenhotambémdois ilhosqueestãoprestesa lutarpeloseuFührer!”Sua resposta pegou o o icial de surpresa, mas ele pareceu satisfeito.

Algunsminutos depois, ele a dispensou. Quando ela se virou para sair, oalemão a deteve e acrescentou uma advertência gentil: “Madame, nóssomos a Wehrmacht; não somos os maus e não terá mais problemasconosco,masquandoosamarelosvierem,vaiserterrível.”Referia-seàGestapo.

Ninguém,naquelasprimeirassemanas,personi icouadordaderrotamaisqueGastonHuet.Quando as tropas alemãs chegarama seubunker, ele eseus homens se renderam imediatamente. De armas em riste, eles lhesordenaram que se levantassem e começassem a andar, “mas um o icialmuito cortês nos disse para não termedo, que logo seríamos libertados”,contouHuet.EleeseushomensforamobrigadosacaminhardeCalaisatéaBélgica.A

cada quilômetro, mais e mais prisioneiros se juntavam à coluna. EmBastogne, foram apinhados em vagões de trem usados para transportar

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gadoparaoabate.“Estávamos completamente exaustos”, disse Huet. “Havíamos andado

mais de trezentos quilômetros e tínhamos nos transformado em purasmáquinas, não mais capazes de pensar.” Houvera pouca comida, só umpouquinho de pão, e a água estava contaminada. Cadáveres de animais,mortosnasbatalhasquehaviamgrassadoali,estendiam-seportodaparte.“Sabíamos que estavam poluindo a água das valas, que era a única quetínhamospara beber”, disseHuet.De vez emquando, ele e seus homensencontravamruibarboàbeiradaestradaeomisturavamàáguaparalhedar um gosto melhor, mas “havia sempre o cheiro de estábulo”. Todosadoeceram.Quandoseaproximaramdafronteiraalemã,otamanhodesuacolunase

multiplicara.Agoracontavamilharesdehomens.“Fiqueiestupefato”,disseHuet. “O simples número de soldados franceses feitos prisioneiros eraassombroso;eraalgoqueeununcatinhaimaginado.”Huet ainda conservava um io de esperança de que as forças aliadas

poderiam salvá-lo, mas essas esperanças se desvaneceram quando elescruzaramafronteiradaAlemanha.Nodia17dejunho,trêssemanasapóssuacaptura,elesentraramnoO lag IVD,umcampoparaprisioneirosdeguerraoficiaisnaSilésia,ondepassariamoscincoanosseguintes.“Noinstanteemqueviaquelelugar”,disseHuet,“soubeimediatamente

queaguerraestavaterminadaparamim.”

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E

TRÊS

Osweinführers

Rótulodechampanhecomoaviso“ReservadoparaaWehrmacht”emfrancêsealemão.

mbora estivesse terminada para Huet e outrosprisioneiros, a guerra estava apenas começando num

outrofront—ofrontdovinho.Ovinho eraoúnicoproduto comque a liderança alemã

estava estreitamente envolvida — pessoal, pro issional esocialmente.HomenscomooministrodasRelaçõesExterioresJoachim

von Ribbentrop e o antigo vice-chanceler Franz von Papen, agoraembaixador na Áustria, haviam chegado a cargos de autoridade no

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nazismovindosdiretamentedocomérciodevinho.Omesmoseaplicavaalíderesmilitares, entre os quais o capitãoErnstKühnemann, comandantedoportodeBordeauxe comerciantedevinhosquepassaramuito temponaquela região antes da guerra. O general Moritz von Faber du Faur, oo icial mais graduado em Bordeaux, era um eminente economista quetambémnutriauminteresseespecialporvinho.Outros nazistas de alta patente, como omarechal-de-campoGöring e o

ministroJosephGoebbels,orgulhavam-sedeseuconhecimentodevinhoepossuíamvastascoleções.EnquantoosgostosdeGoebbelspendiamparaorequintadoborgonha,Göringpreferiaonobrebordeaux, especialmenteoChâteauLa ite-Rothschild.SegundoAlbertSpeer,umarquitetoqueserviucomo ministro para Armamentos e Munições do Terceiro Reich, poucascoisas davammais prazer a Göring que sentar-se tarde da noite e abrirumaexcelentegarrafadeLa ite-Rothschild.Speercontouqueaúnicavezque se aproximou de Göring como pessoa foi numa ocasião em que omarechal-de-campopartilhoucomeleumagarrafaespecialdeLafite.Ribbentrop, oministrodasRelaçõesExteriores, eraumgrandeamante

de champanhe, gosto que adquiriu quando representou as casas dechampanhedeMummePommerynaAlemanha.Havia feito uma fortunano comércio de vinho após cortejar e depois desposar Anneliese Henkel,ilha de Otto Henkel, “o rei do champanhe alemão.” (Henkel era o maiorprodutor alemão de vinho espumante, embora conste que o “vinho” quefazianadamaiseraquesucodemaçã“incrementado”porumaequipedeengenheiros emHamburgo.) Coma fortunaque acumulou—edesposou—,Ribbentrop não teve di iculdade em inanciar suas ambições políticas.Para acrescentar um toque aristocrático à sua linhagem, intitulava-seJoachimvonRibbentrop.Seuvernizdecharmeeelegância logochamouaatençãodeHitler,queolevouparaconheceropresidentevonHindenburg.Este, umvon de verdade, não se impressionou. “Poupe-me do seumascatezinho de champanhe”, ele disse a Hitler. Mas Hitler icouimpressionado. Ribbentrop parecia-lhe “mais notável que Bismarck”, eacreditou que ele era a pessoa ideal para superintender a Comissão doArmistício,ocorporesponsávelpeloestabelecimentodapolíticaeconômicadaAlemanhaparaaFrança.Praticamente o único na alta liderança que não estava interessado em

vinhoeraopróprioFührer.Conta-seque,apósprovarumexcelentevinhofrancês, Hitler o teria empurrado, chamando-o de “nada senão vinagrevulgar”.Oshistoriadores,noentanto,dividem-sequantoàextensãodoascetismo

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deHitler.Enquantoalgunsdizemqueeleabsolutamentenãobebia,outrosa irmamqueeletomavacervejaevinhodiluídofreqüentemente.Segundoum biógrafo de Hitler, Robert Payne, “seu ascetismo era uma icçãoinventada por Goebbels para enfatizar sua total dedicação, seuautocontrole,adistânciaqueoseparavadeoutroshomens”.IssonãocontribuíaparanoitadasmuitoagradáveisquandoHitlerreunia

s e uentourage diante da lareira de jade verde em sua casa deBerchtesgaden.ComoSpeerescreveu,“paraanimaressesserõesbastanteenfadonhos, servia-se vinho espumante e, depois da ocupaçãoda França,champanhe con iscado de marca barata; Göring e seus marechais-do-arhaviamseapossadodasmelhoresmarcas.Deumahoradamadrugadaemdiante, algunsmembrosdo grupo, apesarde todos os seus esforçosparase controlar, não conseguiam mais reprimir os bocejos. Mas a reuniãosocialsearrastavamonotonamente,umvazioentedianteporoutrahoraoumais,atéque,finalmente,EvaBrauntrocavaalgumaspalavrascomHitlereera autorizada a ir para o andar de cima. Cerca de um quarto de horadepois, Hitler se levantava para dar boa-noite a seus convidados. Os queicavam, liberados, freqüentementearrematavamaquelashorasdetorporcomumaanimadafestinharegadaachampanheeconhaque.”Ascético ou não, contemplando os homens que o cercavam Hitler

compreendeu rapidamente o quanto o vinho podia ser prestigioso elucrativo.DecidiuqueaAlemanhadeveriaobteroquehouvessedemelhoremmatériadevinhosfranceses,eGöringseapressouemreforçarogesto,dizendo aos comissários da ocupação que a França estava “tãoempanzinada de comida que era uma vergonha”. Incitou os soldados doReichnaFrançaase“transformarnumamatilhadecãesdecaça,eaestarsempreàespreitadoqueseráútilparaopovodaAlemanha”.Para conseguir o melhor vinho, contudo, a liderança nazista não

precisava de uma matilha; precisava depointers, homens queconhecessem não só vinho como também as pessoas que o fabricavam evendiam. Assim, os planejadores econômicos do Reich voltaram-sediretamenteparaonegóciodevinhosalemãoparacriarumcorpodoquealgunschamaramde“comerciantesdevinhofardados”.Osfrancesestinhamumoutronomeparaeles:osweinführers.Sua função comoBeaufragter für den Weinimport Frankreich (agentes

paraa importaçãodevinhosdaFrança)eracomprar tantovinho francêsbom quanto possível e enviá-lo para a Alemanha, onde seria vendidointernacionalmente com enorme lucro para ajudar a custear a guerra doTerceiroReich.

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Parafazeraseleçãoeascompras,oTerceiroReichdecidiumandarparaa Champagne Otto Klaebisch, da Matteüs-Müller, um produtor de vinhoespumanteeagentenaAlemanhadevárias casasde champanhe.AdolphSegnitz, presidente da A. Segnitz e Companhia e agente na Alemanha doDomaine de la Romanée-Conti, foi para a Borgonha. O mais importantedeles todos, Heinz Bömers, que dirigia a maior irma importadora daAlemanha,Reidemeister&Ulrichs,foidesignadoparaBordeaux.As autoridades alemãs, no entanto, haviam cometido um erro. Os

weinführerseram,defato,comerciantesdevinhoeperitosemvinho,maseram muito mais. Eram também amigos de muitos produtores ecomerciantes de vinho franceses. O vínculo entre eles, formado pornegócios feitos em comum ao longo de gerações, já transcendera osassuntoscomerciaishaviamuito;eleshaviamestagiadonas irmasunsdosoutrosefalavam luentementealínguaunsdosoutros.Porvezes,eramatépadrinhosdosfilhosunsdosoutros.OsweinführerstinhamtambémagudaconsciênciadealgoqueMaurice

Drouhin frisou para seu ilho no início da guerra: “Umdia, seja em cincomeses ou em cinco anos, esta guerra estará terminada e a FrançacontinuarávizinhadaAlemanha.Continuaremosaterdeviverjuntos.”

Heinz Bömers estava atrasado e seus ilhos mal podiam acreditar nisso.Seupainunca,nuncaseatrasava,nempermitiriaqueeleso izessem,emespecial para atividades de família como o jogo regular de croquet dastardesdedomingo.Quando inalmente saiu de casa, Bömers se desculpou, explicando que

estiveraouvindoasnotíciaspelorádio.Eraodia3desetembrode1939eele acabara de ouvir que a Grã-Bretanha e a França tinham declaradoguerra àAlemanha. Levando o ilhomais velho,Heinz Jr., para longe dasoutras crianças, Bömers disse: “Creio que serei convocado para a guerraem breve, e depois não sei se conseguirei falar de novo com você emparticular,por issovoulhedizerhojequenósperdemosestaguerra.Nãofale sobre isso comninguém, nem com seus irmãos e irmãs, e sobretudocomseusamigosnaescola.Seriaperigosopara todaa família.”AntesqueHeinzJr.pudesseresponder,seupaiacrescentou:“Éimportanteparamimquevocêcompreendacomomesinto.Queroqueestejapreparadoparaoquevirá.”Embora tivesse então apenas treze anos, Heinz Jr. nunca esqueceu

aquelemomento. “Sempre guardei nomeu coração aquelas palavras e a

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certeza dele de que a Alemanha iria perder. Meu pai me disse que osEstados Unidos certamente interviriam para ajudar os britânicos. Elesentia que a Alemanha, embora estivesse muito poderosa naquelemomento, jamaispoderiaderrotarumpaís tão grandequantoosEstadosUnidos.”Nessaocasião,a famíliaestavaemsuacasadeverão,pertodeBremen.

Bömersolhouemvolta comtristezaquando fecharamacasanaquele imde semana para voltar para sua residência permanente. “Não sei seteremosoportunidadedevoltaraquinopróximoano”,disseàfamília.Seusreceioseramfundados;elesnãovoltariamporseteanos.Quando a família Börmers chegou em casa, um visitante inesperado

estavalápararecebê-la.EraodiretordaescoladojovemHeinz.“Porfavor,ajude-me,HerrBömers”,ele implorou.“Seu ilhoéoúnicoalunodanossaescola que não pertence a uma organização nazista. Se não permitir queingresseemuma,haverámuitosproblemasparaaescola.”Bömers,queserecusara invariavelmente a assinar papéis inscrevendo o ilho naJuventude Hitlerista, perguntou que outros grupos nazistas havia naescola.Odiretor lhedeuuma lista eBömersnotouaorquestrada escolaentreosgrupos.“Comquefreqüênciaaorquestraensaia?”perguntou.Aosaber que ela se reunia três vezes por semana, disse: “Está bem. ComoHeinztocaflauta,vaientrarparaaorquestra.”Depois que o diretor saíra com os papéis assinados, Bömers disse ao

ilho que ele deveria ir ensaiar apenas uma vez por semana. “Se alguémlhe criar problemas e disser que deve ir commais freqüência, respondaque está obedecendo a seu pai e que eles devem vir falar comigo.”Ninguémjamaisofez.A família Bömers já tinha a reputação de discordar dos nazistas, e

especialmente de Hermann Göring. Em 1930, Göring fora primeiro-ministro do estado alemão da Saxônia quando o pai de Bömers erasenadorporBremen.O senadorBömersnão izeranenhumesforçoparadisfarçar seu desprezo por Göring e sua política e, quando o primeiro-ministro foi a Bremen, Bömers se recusou a vê-lo. Göring icou furioso enãoesqueceuadesfeita.Quatro anos depois, após a morte do senador, Heinz Bömers foi

informadodequeperderiaonegócioda famíliaamenosque ingressasseno Partido Nazista. Com relutância, acedeu. “Ele tinha de pensar em suafamília,emprotegê-la”,disseHeinzJr.“Tinhadefazerconcessõeseseiquesofreu por isso. Mas ele sempre teve a convicção de que a época donazismo era transitória, de modo que era preciso fazer o possível para

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sobreviver.”Foi por isso que, emmaio de 1940, quando recebeu um telegrama do

Ministério da Economia da Alemanha oferecendo-lhe o cargo deBeaufragteremBordeaux,Bömers,queestavacomquarentaeseteanosefora dispensado do serviçomilitar ativo por razões de saúde, concordouem ir. “Eraum cargoque elepoderia ter recusado, eu acho”, disseHeinzJr.,“mastenhoaimpressãodequesentiuqueaquelaeraumaposiçãoemque poderia ajudar, tornando as coisas mais fáceis para todos. Ele tinhamuitos,muitosamigosemBordeaux.”Bömersaceitouocargocomváriascondições:quenãoseriapagopelos

nazistase arcaria comasprópriasdespesas;que icaria livrepara trocaremfrancosquantosmarcosdesejasse;quenãoteriadeusar farda;equeteriaopoderdeintervirse lheparecessequeasaçõesdastropasalemãseraminadequadas. “Ele temiaquealgunsdaquelesnazistas, comoGöring,fossem gostar de ter alguns excelentes Mouton-Rothschilds antigos, eimaginava que alguns dos soldados pensariam que poderiamsimplesmenteapanhá-losparaeles”,disseHeinzJr.BömerschegouaBordeaux logodepoisdaassinaturadoarmistício.De

certomodo,eracomovoltarparacasa.AntesdaPrimeiraGuerraMundial,suafamíliapossuíraoChâteauSmith-Haut-La ittee izeravinhoaliatéqueo governo francês o con iscara juntamente com as demais propriedadespertencentesaalemães.Nosanosseguintes,Bömers,trabalhandoemseusescritóriosemBremen,importaravinhosfrancesesedesenvolveraestreitarelaçãocomprodutores-chave.Assimfoique,paramuitoscidadãosdeBordeaux,suachegadaem1940

suscitou um dilema cruel: seu velho amigo e parceiro de negóciosrepresentavaagoraoinimigo.Paraaplacartemores,umdosprimeirosatosde Bömers como weinführer foi reunir o pessoal do ramo de vinhos easseguraratodosqueaindaeraseuamigo.“Vamoslevarnossonegócioàfrente tão normalmente quanto possível”, disse, “mas quando eu forembora um dia, espero que tenham estoques de vinhomelhores do quetêm agora.” Era sua maneira de dizer que estava comprometido com osinteresses deles e que, quando a guerra terminasse, esperava continuarfazendonegócioscomeles.“Eleveioànossacasaedissealôatodosnós”,disseMay-ElianeMiaihle

de Lencquesaing. “É claro que todos nós o conhecíamos de antes daguerra,quandovinhaaqui,porissolhedissemos:‘Contantoquenãoestejadefarda,podeaparecerànoiteejantarconoscocomodecostume’.”Muitos,noentanto,estavamapreensivos.“Bömerseraumhomemmuito

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poderoso”, disse Jean-Henri Schÿler, do Château Kirwan. “Se você nãoquisesselhevenderseuvinho,elepodiaobrigá-loafazê-lo.”Até Daniel Lawton, que estagiara na irma de Bömers em Bremen e

dirigiaumadascasasdecorretagemmaisantigasdeBordeaux,sentiunapeleotemperamentodeBömers.Quando icousabendodasdemandasdevinhodeBömersedospreçosqueosalemãespagariam,LawtonnãotevenenhumahesitaçãoemfazerfrenteaBömerserecusar.Bömers icou furioso.FulminandoLawtoncomosolhos,avisou: “Senão

concordaremnosvendervinhonosnossostermos,haverásentinelascombaionetasnafrentedetodasasadegasdevinhodeBordeauxamanhã!”“Váemfrente,façaisso”,Lawtonrespondeu.A ameaça não se concretizou. Os comerciantes de vinho de Bordeaux,

contudo,praticamentenãotinhamalternativasenãonegociarcomBömers.“NãopodíamosmaisvendernossosvinhosparaaGrã-BretanhaouparaosEstados Unidos”, disse Schÿler. “Estava tudo bloqueado. Não tínhamosescolha:ouvendíamosnossosvinhosparaosalemãesouteríamosdejogá-losnorioGironde.”HuguesLawton,cujopaidesafiaraBömers,concordou:“Eraprecisolidar

comumasituaçãoquenão sedesejara.Quandovocêéderrotado, temdefazeroquelhemandam.”Embora muitos deles considerassem Bömers duro, até autocrático, os

cidadãos de Bordeaux o respeitavam. Haviam temido que ele fosse embuscadosmelhoresvinhosdaregião,tesourosque,segundoumprodutor,constituíamum“inestimávelmuseudovinho”.Outroexpressouseumedo:“Será que esta parte integral da civilização francesa vai ser con iscada,pilhada,enviadajuntocomosRenoirs,osMatisses,osGeorgesdeLaToursparaooutroladodoReno?”Bömers prometeu que isso não aconteceria, embora seus senhores na

Alemanhaoestivessempressionandofortemente.Emvezdisso, ele fezum favor à cidade: livrou-ados grandes estoques

de vinho de baixa qualidade acumulados após as colheitas da década de1930.Umadesuascomprassozinhaequivaleuaummilhãodegarrafas.Bömers faziaamaiorpartedesuastransaçõescomnégociants,homens

que compravam vinho a granel dos produtores, engarrafavam-no erevendiam-no.UmdeleseraLouisEschenauer,cuja irmaseespecializaraem exportar para a Alemanhamuito tempo antes da guerra. “Tio Louis”,comoerachamado,eraquasetãoafamadoporsuasamizadesíntimascomlíderes alemães, como Ribbentrop, quanto por seu extraordinárioconhecimento de vinho. Com setenta anos quandoBordeaux foi ocupada,

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ele havia feito vastos negócios com todos os líderes alemães, bem comocom Heinz Bömers, nos anos anteriores à guerra, e agora, emconseqüência, seu negócio estava lorescendo. “Eschenauer era um dosmelhoresamigosdemeupai”,disseHeinzJr.,“eseiquetrabalharammuitojuntos,experimentandovinhoseescolhendovinhosparacomprar.”Mas Eschenauer era apenas um de muitosnégociants que estavam

disputando a atençãodeBömers e tentando abocanhar amaior parte deseus negócios que pudessem. Segundo a secretária de Bömers, GertrudeKircher, o comportamento dos négociants de vinhos deBordeaux variava“do cinismo comercial absoluto à bajulação absoluta. O modo como seinclinavamdiantedelee lhe faziamrapapéseraembaraçoso.”Promoviamgrandes festas, uma após a outra, e faziam tudo que podiam paraassegurarapresençadoweinführer.“Costumavamtelefonaremedizerosnomes de todos os outros convidados importantes”, contou Kircher.“Contavamoqueplanejavamservir,oqueestavanomenu; alegavamquequeriamconversarcommeuchefesobremúsicaeliteraturaalemãs.HerrBömersachavatudoissoridículo.”Bömers tinha suas próprias listas de compras e de fornecedores.

Preferia trabalhar com as velhas ligações que ele e sua família haviamestabelecido ao longo dos anos, pessoas como os Miaihle, que possuíamvárioschâteauxevinhedosemtornodeBordeaux.“Ele era um homem muito honesto”, disse May-Eliane Miaihle de

Lencquesaing. “Meus pais costumavam me dizer: ‘Graças ao sr. Bömers,ainda temos nosso vinho.’ Ele fez o que podia para manter um bomequilíbrio,nãoenfurecerosalemãesecuidardeseusamigosfranceses.”Porvezes,porém,aqueleeraumtrabalhoperigoso.SegundoJean-Henri

Schÿler,“Bömerstinhadeandarnacordabamba.Eraumcertojogoduploqueeletinhadejogar.”Para ajudá-lo a jogar esse jogo, havia um comerciante chamado Roger

Descas,representantedeVichyjuntoàsededoServiçoEconômicoalemãoemParis.ComoLouisEschenauer,DescaseraumvelhoamigodeBömers.Era também o homem com quem Bömers negociava preços e cotas devinho.Descas,noentanto,estavaemdesvantagem.Se ixassepreçosmuitoaltos, arriscava-se a estimular a in lação ou, pior ainda, a retaliação porpartedasautoridadesalemãs.Poroutro lado, seospreços fossembaixosdemais,osprodutoresdevinhofrancêsfariamumtumulto.Bömers compreendia e se solidarizava. “Tenho uma idéia”, disse o

weinführeraDescasnumtelefonema.“Porquenãojantacomigo?Voulheexplicartudopessoalmente.”

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Os dois se encontraram aquela noite no La Crémaillère, um dosmelhores restaurantes de Paris. Ali, enquanto comiam ilet de boeuf encroûte eturbot en sauce champagne, Bömers esboçou o que tinha emmente.“Acoisavairequererumpoucodeencenação”,eledisse.“Vocêeeunos encontraremos aqui à noite, na véspera do dia em que deveremoscomparecer ao Serviço Econômico; combinaremos todos os detalhes edecidiremos então quanto vinho posso comprar e quanto você deveriareceber por ele. Na manhã seguinte, no entanto, quando apresentarmosnossospareceres, ingiremosestarematrito,eesperemosqueissodissipequalqueridéiadequeestamosemconluio.”Descas não precisou pensar muito sobre a idéia. “Vamos fazer isso”,

disseaBömers.QuandoosdoishomenschegaramaoHôtelMajestic,ondeselocalizavao

Serviço Econômico alemão, passaram pelas formalidades de praxe. Cadaumfezumpequenodiscursoexpondooqueconsideravajusto.Emseguidaoverdadeiroteatrocomeçou.BömersacusouDescasdetentarextorqui-loe pediu que baixasse seus preços. Descas sustentou que os preços eramjustos e a irmou que era o weinführer que estava extorquindo. Bömersingiu um acesso de fúria e a discussão icou mais acalorada. Quando amanhã terminava, chegaram inalmente a umacordoquanto a uma sériedenúmeros.Eramexatamenteosnúmerosquehaviampreparadonanoiteanterior.“Aquilo funcionoumuito bem”, disse Heinz Jr. “Meu pai contou que os

representantesdogovernogeralmenteaceitavamseusnúmerosdesaídaeficavamconvencidosdequeeleestavalevandoamelhor.”Masnemsempre.Emváriasocasiões,BömersfoichamadoaParispara

se explicar diante de queixas de que estava sendo benevolente demaiscomoscomerciantesdevinhofranceses.Esses encontros, entretanto, não eram nada comparados com os que

enfrentouquando foi convocado, em três ocasiões, ao gabinete deGöringem Berlim. Ali, Bömers sentiu o pleno impacto da fúria do marechal-de-campo.“Fiquei apavorado”, Bömers lembrou mais tarde. “Ele disse que eu

estava sendo camarada demais com osnégociants de vinhos franceses epraticamentemeacusoudetraição.Eulherespondi:‘Senãoestásatisfeitocomomeutrabalho,encerroevouparacasa.’Mascomoelesabiaqueeuera um especialista em vinho bordeaux e omelhor homempara o cargo,acabou por não fazer nada. Mas não posso lhe dizer o quanto essesencontrosforamdesagradáveiseatéaterrorizantes.”

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Duasvezesporano,BömerstinhaumalicençaparavoltaràAlemanhaepassar algum tempo coma família.Quando voltoupara oNatal em1941,ocorreraumamudançadrástica:aRAF(RoyalAirForce)britânicaestavafazendo bombardeios noturnos de surpresa sobre a Alemanha, e osEstados Unidos tinham acabado de entrar na guerra. Pior ainda, Hitlerlançarauma“guerradeextermínio”contraaUniãoSoviética,umaofensivaque, segundo ele previa, estaria terminada em seis semanas. Agora, seismeses já se haviam passado e não havia nenhum desfecho à vista. Oinverno russo entrara e as tropas alemãs, já esparsas de tão esticadas,estavammorrendonofrioparalisante.EssesacontecimentosdeixaramBömersmais convencidodoquenunca

dequeaAlemanhaperderiaaguerraeolevaramatransferirsuafamíliapara a Baviera, onde esperava que icasse mais segura. “Todo dia vocêouviaqueesseouaquelerapaz,alguémquevocêconheciamuitobem,foramorto”,disseHeinzJr.“Eraterrível.Todanoiteouvíamososbombardeirosindo para Munique, onde minhas duas irmãs freqüentavam auniversidade.Terrível,terrível.Mesmoagora,quandotentoexplicaroquefoi,bem,éalgoquesimplesmentenãoseconsegueexplicar,mastínhamosdevivercomaquilo.”No verão do ano seguinte, em visita à sua casa, Bömers icou sabendo

que seu cunhado, um pastor luterano, fora preso depois que os SSdescobriram que ele estava dizendo uma prece pelos judeus no inal decadaserviço. “Minhamãe icou transtornada;eramuito ligadaao irmãoepediuameupaiparatentarajudar”,disseHeinz.Bömers foi ao quartel-general da SS em Berlim para interceder pelo

cunhado.Oo icialencarregadolhedisseque“expusesseseucaso”.QuandoBömersterminou,oo icialfalou:“Muitobem,acabouagora?Porquequerolhedizerumacoisa.Sabemosqueseucunhadoéumbomalemão;sabemostudosobreasmedalhasqueeleganhounaPrimeiraGuerraMundial.Maselenãoéumbomnazista.Merecepenademorte.”Bömers voltou do encontro tão abalado que não conseguia nem se

lembrar do que havia dito ao o icial da SS. O o icial, no entanto, acabouconcordandoemlibertarseucunhado,mandando-otrabalharnocorreioeproibindo-odecontinuarsuasatividadespastorais.“Vocêtemsorte”,disseo o icial a Bömers. “Eu devia tê-lo mandado para um campo deconcentração.”“Meu pai odiava os nazistas”, disse Heinz Jr. “Era totalmente contra

Hitlereoconsideravaumcriminoso.”Mas Bömers reservava um ódio especial por Göring. Via-o como um

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bandidopretensiosocujaperversidadesóeraigualadaporsuacobiça.EraemGöring que estava pensandoquandodisse aos cidadãos deBordeauxque se algum alemão, fosse qual fosse seu posto ou posição, seaproximassedelesepedisseseuvinho,deveriamchamá-loimediatamentee ele viria e poria um basta naquilo. “Isso aconteceu, certamenteaconteceu”,disseHeinz Jr. “Elepegouocarroepartiu—nãoseiaocertoonde foi isso—e ordenou às tropas que se retirassem imediatamente. Eelasobedeceram.”No entanto, Bömers não podia estar em toda parte e sempre havia

aqueles que conspiravam para contornar o sistema. Trabalhando comcomerciantes franceses que reduziam seus preços ilegalmente, algunso iciais alemães, sem documentos ou autorização o icial, iam com seuscaminhõesmilitaresdiretamenteparaosvinhedose carregavamgrandesquantidadesdevinho.Bömers suspeitava que Göring estivesse por trás de muitos desses

episódios.Tinhacertezadequeomarechal-de-campoqueriapôrasmãosem tantas garrafas de bordeaux de primeira quanto possível. Certa feita,recebeu de Göring um pedido de várias caixas de Château Mouton-Rothschild. “Mouton é bom demais para gente da laia dele”, pensouBömers, e assimpediu aos trabalhadores do château, umdospoucosqueengarrafavamseuprópriovinho,queoajudassemnumapequenatrapaça.Mandou-lhesgarrafasdevinordinaire coma instruçãodecolaremrótulosde Mouton nelas. Os trabalhadores obedeceram com muito gosto. AsgarrafasdevinhoforamentãodespachadasparaogabinetedeGöringemBerlim. Bömers nunca ouviu uma palavra de queixa do marechal-de-campo.Havia um limite, no entanto, para as ações doweinführer. Quando um

grupo denégociants sugeriu que a liderança alemã jamais descobriria adiferençaseelecomprassevinhobaratodosuldaFrançaemvezdosseusgrands crus para atender a encomendas, Bömers icou furioso. Algumasgarrafas para enganar sua nêmesis era uma coisa; uma falcatruaindiscriminada que comprometeria sua reputação pro issional era outrabemdiferente.Amaioriadosbordelesespareciarespeitarisso.Erampoucososqueoconsideravamumnazista.Bömersconfessouaum

produtorqueestavaansiosopara “jogar foraaquela farda”enegociardasua maneira usual. “Ele evitou prejudicar o vinho francês tanto quantopossível”, disse um comerciante. Até a autoridade britânica em vinhos,Harry Waugh, que negociou amplamente com produtores de vinho emBordeaux tanto antes quanto depois da ocupação, quali icou Bömers de

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“sensível”.Outrosforammuitoalém.“Elesalvounossovinho”,declarouMay-Eliane

MiaihledeLencquesaing. “Assegurouqueninguémtinhadevendervinhodemais e assegurou que ele fosse sempre pago. Depois que chegou, nãohouvemaisvinhoroubado.”

No inal de outubro de 1940, pouco depois de chegar a Beaune, AdolphSegnitz, o recém-designadoweinführer da Borgonha, recebeu um bilheteanônimo. “Por favor, esteja avisado”, ele dizia, “de que alguns aqui estãotentando lhe enganar. Estão escondendo seus melhores vinhos evendendo-lheoutrosnãotãobons.”Algunsdiasdepois, Segnitz convocouos vinicultoresparauma reunião.

Como bilhete namão, informou-os: “Tenho algo aqui que gostaria de lerparaossenhores.”Quandoterminou,fez-seumsilênciocontrafeito.Algunsna audiência se contorceram de nervoso em seus assentos. Após váriossegundos, Segnitz continuou: “Pois bem,quero lhesdizeruma coisa. Paramimestebilhetenãosigni icanada.Noquemedizrespeito,elenãoexiste.”Comisso,rasgou-o.Oalíviofoiquasetangível.“Ele detestava vira-casacas”, disse Mademoiselle Yvonne Tridon,

secretária do Syndicat des Négociants en Vins Fins de Bourgogne. “Nãoaprovavafrancesesquedelatavamfranceses.”OsvinicultoresqueouviramSegnitzoconsideramumhomemdehonra,

com quem podiam fazer negócios. “Ele nunca nos ameaçou ou acusouqualquer pessoa de tentar trapacear”, disse Louis Latour, négociant evinicultordeBeaune. “Eraoúnicoalemãocomquempodíamosconversarporquevinhadonossomundo.”A família de Segnitz dirigia uma irma de vinhos em Bremen que

importara vinhos inos franceses desde sua fundação em 1859. AlgunsanosantesdaSegundaGuerraMundial,AdolphSegnitzassumiraa frentedaA.SegnitzeCompanhiaecomeçaraaseespecializaremborgonha.Erafascinado pela região, sua história e cultura, e amava especialmente osvinhosláproduzidos.“Ele era um verdadeiro francó ilo”, recordou Mademoiselle Tridon.

“Nunca pensávamos nele como um estranho ou um estrangeiro porqueestava sempre por aqui. Trabalhava bem com a gente daqui e ninguémtinhamedodele.”Segnitz estava na casa dos sessenta anos quando autoridades nazistas

lhe ofereceram o cargo deBeauftragter na Borgonha. Como seu amigo

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Heinz Bömers em Bordeaux, desprezava os nazistas e não sentia prazeremtrabalharparaeles.Concordouemfazê-lo,contudo,comacondiçãodeter carta branca para fazer seu trabalho e a garantia de que Berlim nãoiria interferir. “Meupai foi claro quanto a isso”, disse seu ilhoHermann.“Estavadeterminadoasercompletamenteindependente.”Desde o início, Segnitz procurou demonstrar aos membros da

comunidade do vinho borgonha que compreendia seus problemas e secondoíadosrevesescausadospelaocupação.“Masvamostrabalharjuntose tentar tirar omelhor proveito da situação, demodo a ter alguma coisaquandoestaguerraterminar”,disse.Segnitzprometeuquenenhumatáticaviolentaseriausadaequeosvinicultorespoderiamdecidirporsimesmossedesejavamnegociarcomele.“Estouaquiparacomprarvinho”,disse,“sedesejaremvendê-loparamim,ótimo,masnãoosforçareiaisso.”UmdosquepreferiunãoofazerfoiaMaisonLouisLatour.“Meupaise

recusoucategoricamenteanegociar comqualquercomerciantedevinhosalemão após a Primeira Guerra Mundial”, disse seu neto Louis. “AAlemanha havia sido ummercado importante para nós antes da guerra,masmeu avô icou tão contrariado que jurou que nuncamais voltaria afazer negócio com quem quer que fosse da Alemanha.” O Avô Latourmorreupoucodepoisda chegadadeSegnitz,mas seu ilho teveamesmaatitude. “Meu pai gostava de Segnitz pessoalmente,mas era tal qualmeuavôeserecusoualhevenderqualquervinho”,disseLouis.Segnitzaceitouissoenãotentouforçá-lo.Embora Segnitz tivesse vindo para Borgonha “com muito dinheiro no

bolso”, não havia muito vinho que pudesse comprar. As colheitas entre1939e1941tinhamsidominúsculas.Oclimaestiverahorrível,comverõessecosdemaisno início,aoqueseseguiachuvapesadaeàsvezesgranizo.Em 1939, ano que não passou de medíocre, houve tão pouca uva paracolherqueacolheita levoudezdiasemvezdasduasou trêssemanasdecostume. Mesmo que a estação de crescimento tivesse sido perfeita, asituaçãoteriasidodi ícilporqueamaiorpartedosrapazesquecolhiamauvaforaconvocadapeloexército.Em1940ascondiçõesforamaindapiores.Dessavez,acolheitadurousó

três dias. Como a uva não amadurecera inteiramente, os vinicultoresquiserammisturaraçúcaraomostoparaelevarseuteoralcoólico,masissofoi impossível por causa da escassez de açúcar. Foi di ícil também paravinicultores clari icar seu vinho— isto é, remover a matéria particuladaquecomfreqüênciadeixaovinhotintoturvo.Normalmente,aclari icaçãoera feita mediante a adição de clara de ovo, que adere às minúsculas

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partículas e as arrasta para o fundo. Os ovos, no entanto, estavam aindamaisescassosqueoaçúcar.Emconseqüência,muitosvinicultorestiveramde apelar para o que seus pais e avós faziam. Usaram carvão paraclarificarseusvinhos.Segundoomarquêsd’Angerville, umdosmais importantesvinicultores

daBorgonha,“nossovinho icoutãoruimem1940quenãonosdemosaotrabalhodevinificá-lo;simplesmenteodespejamosnochão”.Oanoseguintenãofoimuitomelhor.Amaioriadoshomensválidosque

teriamestado trabalhandonosvinhedosencontrava-seagoranoscamposalemães de prisioneiros de guerra. Além disso, segundo o órgão dogovernoRevuedeViticulture,os fertilizantesquímicoseram“praticamenteinexistentes”easraçõesdeinseticidas,“inadequadas”.Conseqüentemente, o pouco vinho que Segnitz conseguiu comprar era

namelhordashipótesesmedíocre.Algunsdosmelhores,contudo,vinhamdeMauriceDrouhin.EleeSegnitzhaviamfeitonegóciosantesdaguerraeeram bons amigos. Na opinião de Drouhin, Segnitz não só entendia devinhocomoeratambémsensívelaossentimentosdaspessoas.Condoía-sede seu desespero por ser um país ocupado e compreendia comoimpacientavam-se sob a escassez de produtos, os toques de recolher eoutrasrestrições.Apesar disso a ocupação de Beaune, pelo menos no início, “não foi

terrível”, segundo Mademoiselle Tridon. “Desagradável sem dúvida, masfazíamos o necessário para sobreviver.” Como a correspondência estavacensurada, Tridon, na condição de secretária do sindicato dosnégociantsdevinho,recorreuaumoutrosistemadeentrega:espetavaascartasquenãoqueriaqueosalemãesvissematrásdaportadotoaletedasmulheres.“Osalemãeseramelegantesdemaisparairespiarlá”,contou.Porcausadotoquederecolher,geralmenteàsoitodanoite,emboraos

alemãespudessemmudarahoraa seubel-prazer, osnegócios e amaiorparte das demais atividades terminavam cedo. Os faróis das bicicletasforam pintados de azul e os moradores eram obrigados a pendurarcortinasdeblecautesobresuasjanelas.“Ficavatãoescuroqueatéeu,quemoreiaquiavidatoda,podiameperder”,disseTridon.Mais perturbadoras eram as patrulhas militares, que se moviam

constantementepelasruascalçadasdepedras,conferindoosdocumentosde identidade das pessoas e às vezes revistando-as à procura de armasescondidas. “Faziam-nos perguntas, mas era ridículo, porque nenhumdeles sabia falar muito francês”, disse Tridon. “Todo mundo ria porque,semprequeos alemães faziamumapergunta, respondíamos comalguma

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coisatotalmentegrosseira.”Segnitz, que falava francês, tinha aguda consciência do quanto os

alemães eram desprezados e fez o que pôde para se entrosar. Antes daPrimeiraGuerraMundial,suafamíliapossuíaduaspropriedadesviníferasem Bordeaux, o Château Chasse-Spleen e o Château Malescot-Saint-Exupéry.QuandoaPrimeiraGuerraMundial foide lagrada, asadegasdoChasse-Spleen foram pilhadas por moradores do lugar, que se viraramcontra os colheiteiros de uva, acusando-os de trabalhar para o inimigo.Ambos oschâteaux foram depois con iscados como propriedade inimigapelogovernofrancês.Dados esses precedentes, Segnitz era infalivelmente polido e nunca

usava sua farda militar em público. Lamentavelmente, mesmo assimcontinuavadestoandoechamandoaatenção. “Segnitzandavapelacidadenumpaletó verde-oliva, e parecia o ator alemão Erich von Stroheim, semtirar nem pôr”, declarou Louis Latour. “Ele devia icar um pouquinhofrustrado, porque sempre perguntava: ‘Como as pessoas sabem que soualemão?’ Falo francês perfeitamente,mas todomundo sempre diz: ‘Ah, osenhordeveseralemão.’”Embora a opinião pública fosse intensamente antigermânica, na

Borgonha, como em outras partes da França, a maioria continuava pró-Pétain e apoiavaoprogramade estreita colaboração comaAlemanhadomarechal.AreverênciaporPétaineratalqueosindicatodosnégociantsdeborgonha resolveumandar aomarechal sessenta e seis caixas de vinho,algumas delas engarrafadas em 1856, ano em que ele nascera.Mademoiselle Tridon foi despachada para Vichy para fazer a entregaformaldopresente.Lendoumacartado sindicato, eladisse: “Oferecemosestepresentecomoumsinaldenossorespeitoeprovadenossa idelidadeàs suas determinações e à unidadenacional.”Mais tardeTridon lembrouquePétain “foimuito gentil,masoquemaisme lembrodaqueledia édoquantoeleparecia incrivelmentevelhoedo fatodeummédico ter icadopostadoaoseuladootempotodo”.Pouco depois de seu tributo a Pétain, comerciantes e produtores de

vinho tiveram o choque de saber que Maurice Drouhin fora preso. Emagosto de 1941, ele ia a pé para uma reunião nos Hospices de Beaune,sociedadefilantrópicadacidade,quandoumapatrulhaalemãoprendeu.“A notícia caiu como um raio”, disse Louis Latour. “Como todos sabiam

que Maurice e Segnitz trabalhavam em estreita colaboração, todos aquificarammuitosurpresosquandoosalemãesoprenderam.”Praticamente o único que não icou surpreso foi o próprio Drouhin.

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Como reservista do exército francês, ele acompanhara generais aWashington durante o intervalo entre as guerras e assumira missõesespeciaisperiódicas.“Meupainuncadisseoqueeramessasmissões,masencontrava-se freqüentemente com o general Douglas MacArthur”, disseseufilhoRobert.Oserviçosecretoalemãomonitoravaatentamenteessasviagensetinha

certeza de que Drouhin estava envolvido em atividades antigermânicas.Quando o prenderam, alegaram ter encontrado uma arma em sua casa.Era um velho e enferrujado revólver das forças armadas da PrimeiraGuerra Mundial, que fora deixado por Maurice numa gaveta e depoisesquecido.Maseratodoopretextodequeosalemãesprecisavam.Maurice foi encarcerado em Fresnes, nos arredores de Paris. Como

falavaalemão,deu-serazoavelmentebemcomseusguardas.Duranteumaconversa, contou-lhes algumas de suas experiências de guerra, entre asquaisoepisódioemqueajudaraasalvaravidadeumsoldadoalemão.“Ah, então não odeia a Alemanha ou os alemães?” perguntou um dos

guardas,surpreso.“Não,sóapolíticaeogovernodevocês”,Drouhinrespondeu.Poucodepoisdesuaprisão,oguardadeDrouhindeu-lheumlápispara

quepudesseescreverparasuamulher,Pauline.

14 de agosto de 1941: Minha querida mulherzinha, antes de mais nadaquero lhe assegurar que minha saúde está ótima. Sofro apenas de umacoisa, e essa é estar longe de você e longe dos nossos queridos ilhos. Atéagoraninguémmeinterrogou,masesperocomimpaciênciaporquetenhocerteza de que estou aqui em conseqüência de um simples engano.Coragem,minhaquerida,osbelosdiashaverãodevoltar.

Com o passar dos dias,Maurice foi icando cada vezmais preocupado,não só com sua própria sorte mas com seu negócio de vinhos e com odesempenhodePaulinenasuaausência.

7 de setembro de 1941: Se eu não estiver de volta para a colheita, con ienosconselhosdeoutros.Tenhamuitocuidadoemvoltadosbarrisquandoo mosto começa a fermentar; os vapores podem ser perigosos. Não sepreocupeseperdermosdinheiroenquantoestoulonge.Omelhorépôrumfreio em novos negócios e continuar apenas com nossas encomendasregulares, especialmente com aqueles clientes que possam ajudá-la aconseguirgarrafasvaziasquepossamosusar.Depoiscomeceaengarrafar

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aos poucos o Romanée-Conti de 1938. Comece com os melhores vinhos efaçatudoquepuderparamanteropessoal.

Numacartade cercadeumasemanadepois,Maurice contouaPaulinequeacabaradecomparecerperanteumtribunalmilitar.

Fui interrogado ontem e devo render homenagem à perfeita lealdadedaquelequepresidiumeuinterrogatório.Sentidurantetodootempoqueestava diante de juízes que não buscavam nada senão a verdade.Permaneço irmenaesperançadequeminha inocência será reconhecida,demodoquenossaseparaçãodurarámuitopouco.

Perfeitamentecientedequeosalemãesestavamlendocuidadosamentetudo que escrevia, Maurice voltou a falar desses sentimentos em váriasoutrascartasasuamulher.

1o deoutubrode1941:FizpartedoConselhodeGuerrademinhadivisãoem1939, por isso sei que éa lealdadequemotivaos juízesmilitares.Nãopossoacreditarqueelesconsiderariamcomoarmaaquelerevólvervelhoeimprestável que esqueci em minha gaveta e que me puniriam por umsimples ato de esquecimento. Seja como for, estou totalmente inocente enadatenhoaesconder.No imdecadadia,digoamimmesmoque tenhoumdiaamenosdessaprovaçãoparaatravessar.

Mas Maurice estava apavorado. Isso era algo que não conseguiaesconderdesuamulher,pormaisquetentassetranqüilizá-la.

Oquequerquevocêfaça,nãosedeixecairemmelancoliaoutristezapormim.Vocêdevegarantirquenadamudenavidadenossos ilhos,emsuasbrincadeiras, em sua alegria. Deve fazer isso por mim, pois isso me darácoragemparaseguiremfrente.

Seus momentos de maior consolo aconteciam quando Pauline tinhapermissão para visitá-lo. Numa dessas visitas, ela lhe contou quemetadedoDomainedelaRomanée-Contiforapostoàvenda,eque,comoaMaisonJoseph Drouhin era o maior distribuidor dos vinhos daquela famosapropriedade,Mauriceteriachancedecomprá-la.Pormaisquesesentissetentado, Maurice sacudiu a cabeça. “Isso signi icaria tomar dinheiroemprestado”, disse. “Não quero fazer isso.” Tomar dinheiro emprestadoera algo que os vinicultores raramente faziam naquela época e, com seu

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própriodestinoincerto,Mauriceficouaindamaisrelutante.Percebendo o quanto o marido estava preocupado e tendo plena

consciênciadoperigoemqueeleseencontrava,Paulineentrouemcontatocomochefedaprisãoepediuumaentrevista.“Meumaridoéinocente”,elalhedisse.“Certamenteaquelapistolavelha

que seus soldados encontraram ao revistar a casa não faz dele umcriminoso.Elanemfunciona.”O o icial alemão ouviu polidamente. Elogiou sua devoção ao marido e

depois se desculpou. “Lamento, mas não há nada que eu possa fazer”,disse.Paulineficoudesesperada.Assim, icou surpresa quando, não muito depois, recebeu uma carta

daqueleo icial.“Comolhedisse,hámuitopoucoqueeupossafazer”,diziaele.“Nemmesmoseunobreespírito,quetestemunhei,podeserlevadoemconsideração, pois isso iria contra todas as normas. Mas posso lhe dizerqueessepesadeloqueMonsieurDrouhinestáatravessandonãovaidurarmuitomais.Porfavor,sejapaciente.Fareitudoqueestiveremmeupoderparaabreviartantoquantopossívelocursodessasformalidades.”Apaciência,contudo,estavaseesgotando.NosHospicesdeBeaune,que

Drouhindirigiacomovice-presidente,oscolegassequeixavamdequeeradifícilcontinuarsemseulíder.OsHospiceseramapedraangulardavidaemBeauneetinhamtidoesse

papeldesde1443,quandoNicolasRolin,chancelerdoduquedaBorgonha,fundouumhospitaldecaridadecomessenome,doando-lhetodososseusbensmateriais e dotando-o com alguns dosmais excelentes vinhedos daregião. Ao longo dos séculos, outros borgonheses legaram seus vinhedosaosHospicesparasustentarsuaobra.Agora,asautoridadesadvertiam,todoessetrabalhoestavaemrisco.Os

vinhedos precisavam de atenção e assim também as instituiçõesilantrópicasqueosHospicesdirigiam,comoohospital,umorfanatoeumasilo para homens idosos. Numa carta ao chefe do tribunal militar, oconselhodiretordissequeaprisãodeMauriceestavaprejudicandotodaaorganização.“Suaausênciaestápondotodososserviçosqueprestamosemgrandedi iculdade.Instamosparaquefaçatodoopossívelparaacelerarasoluçãodessecaso.”O que poucos percebiam era que as atividades de Drouhin iammuito

além dos Hospices e de seu negócio de vinhos. Ele estava, na verdade,profundamente envolvido com a Resistência, algo de que os alemãessuspeitavam havia muito, mas nunca tinham sido capazes de provar.Mesmo da prisão, Maurice continuava a dirigir as atividades da

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Resistência. Com livros comoO conde de Monte Cristo e outros deAlexandre Dumas que Pauline enviara para a prisão, os doismantinhamumacorrespondênciasecretausandoocódigoqueMauriceensinaraaela.AcorrespondênciacontinhamensagensparaaResistênciasobreaposiçãode tropas alemãs e conselhos sobre como fazer passar pessoasclandestinamentepelaLinhadeDemarcação.Pouco antes do Natal, os alemães anunciaram que Maurice iria a

julgamento. Seu amigo e coleganégociant Louis Latour correu à prisãoparaversehaviaalgumacoisaquepudessefazer.Oencontrodosdoisfoibreve,maslongoobastanteparaconvencerLatourdequeMauriceestavaem séria di iculdade. “Ele estava apavorado”, disse Latour. “Estava commedodeserexecutado.”Pauline,desesperadaparasalvaromarido,lembrou-sedacartaqueele

lheescreveraduranteaPrimeiraGuerraMundial,emquedescreviacomosalvara a vida de um soldado alemão. Sabia que a guardara, mas onde?Finalmente,encontrou-aenfiadanumagaveta,comoutrosobjetospessoais.Pondo a carta num envelope, meteu-a numa sacola com um número dojornalemqueelaforareproduzidaerumouparaaprisão.Lá,entregouoenvelopeaocomandantealemão.Eleprometeuqueleria

acartaeoartigoeoslevariaemconsideração.No dia 13 de fevereiro de 1942, o inesperado aconteceu: os alemães

libertaramMaurice.Nãoderamnenhumaexplicação.Semdúvidaacartaeo jornal ajudaram,masmuitos emBeaune icaram convencidos de que aamizadedeMauricecomoweinführerAdolphSegnitzfoitambémumfatorimportante.Emboraestivesse livre,Mauricesedavacontadequeosalemãesainda

descon iavam dele e que, mais dia, menos dia, tentariam prendê-lo denovo.Aovoltarparacasa,aprimeiracoisaquefezfoiprepararumamaletade roupaseoutrosobjetosdeusopessoal e escondê-ladebaixoda cama.Depois voltou suas atenções para o reinício das operações na MaisonJoseph Drouhin, negócio em que dissera a Pauline para “pôr um freio”durante osmeses que passara na prisão. Retomou também seu trabalhonosHospicesdeBeaune.Maurice estava em casa havia três meses quando os Hospices

receberam uma carta dopréfet regional, em Dijon. A autoridade queriasaberseosHospicessedisporiamadoarumapartedeseusvinhedosparaomarechalPétain.Maurice convocou os membros do conselho diretor dos Hospices para

pedir sua opinião. Cabeças se inclinaram e houve murmúrios de

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aprovação.Todosconcordaramque,nãotivessesidoPétain,aFrançateriatido um destino muito mais cruel nas mãos dos alemães do que o queagora enfrentava. Quando se procedeu à votação, ela foi unânime. Elesescolheram uma seção de vinhedo de primeira qualidade numa encostasobranceira a Beaune, terra que izera parte dos vinhedos dos Hospicesdesde 1508. Em homenagem ao marechal, resolveram mudar seu nomeparaClosduMaréchal.Alguns dias depois, trabalhadores de vinhedos, pedreiros e outros

convergiram para o local para construir ummuro de pedra à sua volta.Ergueramtambémumarcodepedraornamentado,emqueentalharamosímbolodePétain,umamachadinhafrâncicacombinadacomumbastãodemarechal. Quando o arco estava quase pronto, os trabalhadoresremoveram uma das pedras perto da base e izeram uma cavidade.Dentro,puseramumacópiadodocumentoquetransferiaapropriedadeaPétain.Uma semana mais tarde, no dia 29 de maio de 1942, uma delegação

encabeçadaporMauriceDrouhinchegouaVichyparaentregaraescrituraoriginal de doação ao marechal em pessoa. Pétain recebeu-oscalorosamenteeosintroduziuemseugabinete.Oancião,emseus86anos,estavaradiante.Ogestodeles,disse,otocaraprofundamente.“Ossenhoreslisonjearamumaantigapaixãominha,meuamorpelaterraemeuinstintodevinicultor”,disse.“Graçasaossenhores,souagoraoproprietáriodeumdosmelhoresvinhedosdaBorgonha.Senãodoumaiorpublicidadeaestepresente,éporquequeropreservarocaráter íntimoemqueme foidadopelos senhores. Estou especialmente grato por saber que estarãoadministrando as videiras para mim. Penso com prazer na primeiracolheitaqueestáporvir.”Não era só isso que estava por vir. A cada mês de novembro, após a

colheita, os Hospices de Beaune promovia um espetacular leilão de seusvinhos. Com o passar dos anos, aquela se tornara uma das maioresfestividadesdoanoborgonhês,comdignitáriosestrangeiros,compradoresde vinho de dúzias de países e milhares de outros amantes do vinhoa luindo a Beaune para delas participar. Havia degustação de vinhos,pródigosbanqueteseopróprioleilão.Em 1943, o evento foi aindamais importante. Era o quinto centenário

dos Hospices de Beaune. Infelizmente, havia um problema: ninguémdesejava os alemães por perto. Encarregado do programa, coube aMaurice Drouhin comunicar aos alemães que não eram bem-vindos. Elenãoestavamuitoansiosoparacumpriressedever.

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Nos últimos meses, os soldados alemães da área haviam se tornadonervosos emais agressivos. Com as perdas no front russo, assolado pelaneve, elevando-se, milhares de soldados em toda a Borgonha estavamsendo transferidospara servir ali. Soldadosde expressão sorumbática, jáusando os chapéus brancos de inverno, deslocavam-se pelas cidades ealdeiasenquantosepreparavamparapartir.Osque icavamnaBorgonhaeramconcentradosemáreasmaisurbanizadasemqueoso iciaisalemãesacreditavamqueestariammenosvulneráveisaataquesdaResistência.Com compreensível preocupação, Drouhin telefonou para Adolph

Segnitzdizendoterumassuntodegrandeurgênciaparadiscutircomele.O weinführer pronti icou-se a vê-lo imediatamente. Maurice tentouexplicar, usando palavras que, esperava, não feririam os sentimentos doamigo. “Não é nada contra você pessoalmente”, disse. “A celebração, noentanto, é uma tradição local que não envolve política; é uma espécie defeiraruraldestinadaprimordialmenteparafranceses.”Segnitzrecebeuanotíciacalmamente.“Compreendooqueestátentando

dizer”, disse. Claramente, o weinführer estava profundamentedecepcionado. Mais do que ninguém, estivera esperando pelaacontecimento. Em seguida, declarou: “Devo lhe avisar que isso podemepôr numa posição desconfortável junto ameus superiores.” Segnitz teriapodidofacilmenterecusaropedidoeMauricenãoteriatidoescolhasenãoaceitar.Masoqueelefezfoiselevantardesuacadeira,estenderamãoedizersimplesmente:“Vouveroquepossofazer.”Alguns dias depois, Segnitz fez uma visita a Maurice. “Tenho boas

notícias para você”, disse. “Podem fazer seus festejos e nenhum alemãocomparecerá.Temminhapalavra.”Paraasurpresadoweinführer,Drouhinrespondeu:“Estáenganado,um

alemão estará presente.” E lhe entregou um ingresso. “Isso é para você.Será o único alemão lá, mas posso lhe pedir mais um favor? Tenha abondadedeviràpaisana,nãodefarda.”OquintocentenáriodosHospicesdeBeaune foiumsucesso.Apesarda

ocupaçãoedaincertezadaquelesdias,escritores,atores, igurasreligiosasbemcomoautoridadesdeVichycompareceramàcelebração.NinguémsedeleitoumaiscomelaqueAdolphSegnitz.Nãomuito tempo depois, Maurice Drouhin recebeu dele uma carta de

agradecimento: “Comosabe”, eledizia, “souumgrandeadmiradorda suaculturaedassuas tradições,e todasasvezesqueentreinosHospices fuitocadopelapazdeespíritodequetodosprecisamosnestemedonhotempode guerra.Nestequinto centenário, émeudesejo fazer umadoaçãopara

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osHospicesdeBeaune; talvezvocês tenhamalgumanecessidadeespecialou haja alguma coisa que ainda não puderam fazer por uma razão ououtra.”Presoàcartahaviaumchequede100.000francos.

Nenhuma região teve seu vinho mais pilhado que a Champagne. Quasedois milhões de garrafas foram raptadas por soldados alemães apenasduranteasprimeirassemanasdaocupação.Foicomimensoalívio,portanto,queoschampanheses icaramsabendo

que as autoridades alemãs iriam enviar alguém para superintender ascompras de champanhe e, esperava-se, pôr im à pilhageme restaurar aordem.Ficaramaindamaisaliviadosquandodescobriramquemseriaessapessoa:OttoKlaebisch,daMatteüs-Müller, irmavinícolaeimportadoradaRenânia. “Ficamos felicíssimos porque teríamos um homem do ramo devinhos, não um cervejeiro”, disse Bernard de Nonancourt. Os deNonancourt conheciambemKlaebisch porque antes da guerra ele fora oagente na Alemanha de várias casas de champanhe, inclusive a Lanson,quepertenciaàfamíliadamãedeBernard.A experiência original de Klaebisch, no entanto, fora o conhaque. Ele

nascera em Cognac, onde seus pais haviam se dedicado ao comércio deconhaqueantesdaPrimeiraGuerraMundial.QuandoaFrançacon iscaratodas as propriedades do inimigo durante a guerra, a família KlaebischperderaseunegócioevoltaraparaaAlemanha.Otto, no entanto, conservara seu gosto pelas coisas mais re inadas da

vida, entre elas champanhe de primeira qualidade. Desenvolvera umacarreira na indústria do vinho e bebidas destiladas, fazendo bom uso desuaexperiênciafrancesa.EssaexperiênciatornouadesignaçãodeKlaebischcomoweinführerda

Champagne uma decisãomais fácil de aceitar. “Se íamos icar recebendoordensatortoeadireito,eramelhorquefossemdadasporumvinicultordo que por algum nazista grosseirão bebedor de cerveja”, disse umprodutor.Klaebischcomeçoua“darordens”quaseimediatamente.Aocontráriode

Heinz Bömers em Bordeaux, que alugara um pequeno apartamento,Klaebischquisalgomaisimponente.Umcastelo,porexemplo.Encontrouoque queria ao ver onde morava Bertrand de Vogüé, diretor da Veuve-Clicquot-Ponsardin.Apósumaolhada,Klaebischexpediuordensparaqueocastelo fosserequisitado.UmdeVogüéenfurecidoesua família tiveram

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defazerasmalas.“Klaebisch sentia-semuito feliz aqui”, lembroudeNonancourt. “Elenão

gostava de combate e a última coisa que queria era ser enviado para ofrontrusso.”Dadas suas ligações de família e seus contatos pro issionais, Klaebisch

conseguira seu agradável posto sem di iculdades. Seu cunhado eraninguémmenos que oministro dasRelações Exteriores, Ribbentrop, cujosogro, Otto Henkel, era um grande amigo de Louis Eschenauer, deBordeaux.Eschenauer,por suavez, eraprimodocomandantedosportosalemão, Ernst Kühnemann. Eschenauer era também sócio da champanheMumm,outrapropriedadeque fora con iscadadosproprietários alemãesna Primeira Guerra Mundial. Ele havia contratado Ribbentrop pararepresentaressamarcanaAlemanha.Sóumgenealogistadovinhoseriacapazdedesemaranharacomplicada

árvore familiar e pro issional que enredava vinicultores e comerciantespor toda a França e a Alemanha. Nela estava, em grande parte, aexplicação do fato de Klaebisch ter se tornado o weinführer daChampagne.Klaebisch,noentanto,eradiferentedosoutrosweinführers.Gostavada

aparência exterior da vidamilitar e andava quase sempre de farda. Eratambémimpressionadocomtítulos.QuandoconheceuocondeRobert-Jeande Vogüé, o homem com quem iria negociar compras de champanhe,mostrou-sedeferentenas raiasda subserviência, ou, naspalavrasdeumprodutor,“ansiosodemaisporagradar”.De Vogüé, diretor da Moët & Chandon, tinha ele próprio uma árvore

genealógica complicada. Tinha laços de parentesco com muitas famíliasreais européias, bem como commuitos dosmais importantes produtoresde vinho da França. Chegava a ter conexões até com o Vaticano. Vinha aser também irmão de Bertrand de Vogüé, da Veuve Clicquot, a quemKlaebischacabaradeexpulsardecasa.Klaebisch enfrentou problemas praticamente desde o instante em que

se mudou para a Champagne. A colheita de 1940 foi um desastre. Aproduçãofoi80%abaixodamédia.CientedequeBerlimesperavaqueelefornecesse certa quantidade de champanhe todos os meses, Klaebischvisitouascasascomque izeranegóciosantesdaguerraepediu-lhesquecompensassemadiferençacomsuasreservas.A de Vogüé isso pareceu má idéia. Temeu que outras casas icassem

irritadas e enciumadas. Comosmercados internacionais bloqueados e asvendas a franceses civis proibidas, essas irmas poderiam facilmente ter

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defecharasportas.Mesmo as casas com que Klaebisch queria fazer negócios icaram

insatisfeitas. Sim, seu mercado estava “garantido”, mas elas tinhamtambémde aceitar o que os alemães queriampagar, e não eramuito.Osprodutores temiam que as enormes quantidades de champanhe queKlaebisch estava exigindo logo esgotassem seus estoques, deixando-ospresos no mesmo atoleiro econômico em que haviam estado durante adécadade1930.Aquelesanos,maisdoquequalquercoisa,haviamgeradooânimoquase

militante que ainda prevalecia na Champagne quando Klaebisch chegou.Em 1932, as casas de champanhe haviam conseguido vender apenasquatromilhões emeio de garrafas dos 150milhões que tinham em suasadegas.Oânimoentreosprodutoresquevendiamsuauvaparaas casasestava azedo também. Em 1933 e 1934, receberam não mais que umfranco pelo quilo de sua uva, quando em 1931 tinham recebido onzefrancos;umaperdade rendaqueprejudicou severamente seusnegócios.Oquadromelhorouem1937e1938,masturvou-serapidamentedenovoquando a guerra foi declarada em 1939. Em desespero, produtorescomeçaramamurar seu champanhee adespacharoutros estoquesparaosEstadosUnidoseaGrã-Bretanhacomosalvaguarda.Agoraelesestavamenfrentandoenormesrequisições.APolRoger,casa

que fazia o champanhe favorito do primeiro-ministro Winston Churchill,recebeuordensdeenviarimensasquantidadesdesuasafrade1928paraBerlim todos os meses. “Foi uma safra excepcional”, disse Christian deBilly, presidente da Pol Roger, que nasceu naquele ano. “Nunca tivemosmuito,etentamosesconderoquepudemos,maselaeratãoconhecidaquefoiimpossívelmantê-laforadasmãosdosalemães.Klaebischsabiaqueelaestavaali.”Quando as demandas de champanhe dos alemães aumentaram— por

vezesKlaebisch exigiameiomilhão de garrafas por semana—deVogüétemeu,maisdoquenunca,quecasascomoaPolRogernãosobrevivessem.No dia 13 de abril de 1941, convocou os produtores e vinicultores paracriar uma organização que iria representar os interesses de todos osintegrantes da indústria do champanhe. “Estamos todos juntos nisso”, deVogüélhesdisse.“Vamosmorrerousobreviver,mashaveremosdefazê-loigualmente.”AorganizaçãoquecriaramfoichamadaComitéInterprofessionelduVin

de Champagne, ou CIVC, que ainda hoje representa a indústria dochampanhe. Na época, a meta do CIVC era permitir aos produtores

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apresentaruma frenteúnicae falaratravésdeumaúnicavoz.DeVogüé,foi decidido, seria o ponta-de-lança. “Ele tinha coragem e audáciasu icientespararepresentarosinteressesdochampanheeparasernossoúnico delegado junto aos alemães”, disse Claude Fourmon, que foiassistentededeVogüé.“ElenuncaduvidoudequeosAliadosvenceriamaguerra; assim, sua meta era manter tudo num nível aceitável. Queriaassegurar que todos tivessem algo com que recomeçar quando a guerraterminasse.”Klaebisch icou descontente com o CIVC e não quis negociar com ele;

preferiu se ater a seus contatosde antesda guerra. Sabia que era assimque Bömers operava e queria emular o weinführer de Bordeauxassumindocontrolecompletosobreonegóciodochampanhe.ConvocoudeVogüéaseuescritórioemReims.Ali, foi direto ao ponto. “Aqui estão as regras básicas. Vocês podem

vender para o Terceiro Reich e seus militares, e também pararestaurantes, hotéis e clubes noturnos controlados por alemães, e paraalguns de nossos amigos como o embaixador italiano na França e omarechal Pétain em Vichy. O marechal, aliás, gosta de ter uma boaquantidadeparaseuusopessoal.”De Vogüé ouviu sem interromper enquanto o weinführer resumia as

condições.“Ninguémrecebeamostrasgrátis,nãohánenhumdescontosejaqual for o tamanho da encomenda, e nenhuma garrafa cheia dechampanhe pode ser vendida a menos que garrafas vazias sejamdevolvidasprimeiro.”EmseguidaKlaebischdisseadeVogüéaquantidadedechampanhequequeriaacadamêseoqueestavadispostoapagarporela. “Pode difundir a ordem entre as principais casas de champanhe damaneiraquedesejar,contantoqueeuconsigaomeuchampanhe”,disse.DeVogüé icoupasmo.“Nãohánenhummeiodeconseguirmosatender

aessasexigências”,disse.“Doismilhõesdegarrafaspormês?Comoesperaquefaçamosisso?”“Trabalhemaosdomingos!”,Klaebischretorquiu.DeVogüé recusou.Épreciso reconhecerqueosdoishomenspareciam

terumsenso inatodamedidaemquepodiamsepressionarumaooutro.Após outras trocas de palavras acaloradas, de Vogüé disse que osprodutoresdechampanhefariamjornadasmaislongasparacumprirsuascotas, mas só se o weinführer ampliasse o número de horas em quepodiamtereletricidade.Klaebischconcordou.De Vogüé não era, porém, a única pedra no sapato de Klaebisch. Em

Berlim,omarechal-de-campoGöringestavaexigindoquantidadescadavez

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maiores de champanhe para sua Luftwaffe. A marinha também estavafazendorequisiçõesenormes.Imprensadoportodososlados,oweinführerprocurou de Vogüé novamente. Dessa vez, foimais conciliador. “Tivemosnossasdivergências”,disseele,“masestoutendoumproblemacomBerlime espero que você se disponha a me ajudar.” Descreveu como Göring oestava pressionando para fornecermais champanhe. Em seguida propôsque, seoCIVCmantivesseo enviode champanhe, ele assegurariaqueosprodutores tivessem todos os insumos de que precisassem, como açúcarpara suasdosages, fertilizantes para seus vinhos, até feno para seuscavalos.DeVogüédissequeeraumbomnegócio.Foi umnegócio especialmentebompara aPolRoger.Nãomuito tempo

depois, umporta-vozdaPolRoger entrouemcontato comoescritóriodoweinführer para dizer que estavam fazendo alguns reparos em suasadegas e precisavam de cimento. Klaebisch providenciou a entregaimediata do material. A Pol Roger usou o cimento para emparedar eesconderseumelhorchampanhedosalemães.“Ascasasdechampanhe izeramopossívelparapraticarumapequena

escamoteação”, admitiu Claude Taittinger, diretor da TaittingerChampagne.“Amaioriatentoupreservarseusmelhoresvinhoseimpingirasmisturasinferioresaoinimigo.”Elassabiam,porexemplo,quegarrafascujos rótulos tinham amarca “Reservado para aWehrmacht”, que eramfreqüentemente cruzados por uma barra vermelha, tinham poucaprobabilidadedecairnasmãosdeseusclientesregulares.Oresultadoeraqueamaioriadas casasnãohesitava emusá-laspara suaspiores cuvées.“O que elas esqueciam”, disse Taittinger, “é que Klaebisch era umconnaisseur e capazde falar grossode vez emquandoparamostrar quenemsemprecaíanasnossastrapaças.”Um dia, na hora do almoço, Klaebisch telefonou para Roger Hodez,

secretário do Syndicat des Grandes Marques de Champagne, umaassociação que representava as principais casas de champanhe, e oconvidouparaumaperitivo. “Nunca tomamosumdrinque juntos”,disseoweinführer. “Por que não vem até meu escritório para tomarmos um?”Hodezsentiuquenãopodiarecusar.Quando ele chegou, Klaebisch o convidou para sentar e serviu-lhe um

copo de champanhe. Depois serviu para simesmo. Oweinführer pareciaestardebomhumoreHodez começoua relaxar.Então, subitamente, seunariz franziu-se a um odor horrível que subia do copo. Corajosamente,tomouumgole.Ogostoerasóumpouquinhomelhordoqueocheiro.Não

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houvesinaldequeKlaebischperceberaodesconfortodeHodez.“Quelheparece?” perguntou afavelmente. Antes queHodez pudesse responder, oweinführerdebruçou-sederepentesobresuamesae icoucomorostoacentímetrosdodeHodez.“Voulhedizeroquemeparece”,rosnou,avozseelevando num crescendo. “Isso tem cheiro demerda! E isso é que vocêsquerem que eu dê para aWehrmacht beber? Quero que a casa que fezestamerdasejacortadadalistade irmasquefornecemchampanheparaaAlemanha.NãomeatreveriaamandarabeberagemdelesparaBerlim!”Hodezseencolheuemsuacadeira,procurandopalavrasnatentativade

apaziguarKlaebisch.“Tenhocertezadequefoisóumacidente”,gaguejou,“umacaixadegarrafas sujas, talvez,ouquemsabe…”Antesquepudessedizermaisumapalavra,Hodez recebeuordemdese retirardoescritóriodeKlaebisch.O perturbado representante de produtores de champanhe foi direto a

deVogüée lhecontouoquesepassara.DeVogüéentrou imediatamenteemcontatocomacasadechampanheeinformouaseusadministradoresoqueKlaebischdissera.Odiretorda irmadeudeombros,dizendoquenãose importava. “De todomodo, não estamos ganhandomuito dinheiro comosalemães.Vamos icaremmelhorsituaçãovendendoumpoucodonossochampanhenomercadonegroeguardandoorestoatédepoisdaguerra.”De Vogüé sacudiu a cabeça. “Não se trata disso”, ele disse. “Estamos

todosjuntosnissoevocêtemdefornecersuacotajusta.”Instruiua irmaaenviarsuacotadechampagneparaváriasoutrascasas,queconcordaramemengarrafá-lasobseusprópriosrótulos.Klaebisch,noentanto,passouadescon iarmaisdoquenuncadequeos

produtoresdechampanheestavamtentandopassá-lopara trás.Começoua fazer checagens aleatórias do champanhe destinado à Alemanha,retirando garrafas, estourando suas rolhas, cheirando seu conteúdo edepoisprovando-o.FoiassimqueFrançoisTaittingerfoipararnacadeia.Françoistinhavinteanosquandofoilevadoparaajudaradirigira irma

da família depois que seu tio icara totalmente surdo. Como outros, elesubestimava o conhecimento de champanhe de Klaebisch e pensou quepodia passar a perna no weinführer mandando-lhe champanhe dequalidademanifestamente inferior. Quando Klaebisch descobriu, chamouFrançoisemseuescritório.“Comoseatreveanosmandaressaáguachocaespumante?”berrou.François, conhecido por seu gênio irascível, berrou de volta: “Que

diferença faz? Vai ser tomado por gente que não entende patavina dechampanhe!”

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Klaebisch jogou François na cadeia. Na mesma cela estavam váriosoutrosprodutoresde champanheque tambémhaviam tentado empurrarvinhoruimparaKlaebisch.Alguns dias depois, omais velho dos irmãosTaittinger foi ao escritório

deKlaebisch interceder por François. GuyTaittinger era umex-o icial dacavalaria eumdiplomatanato.Regalouoweinführer comhistórias sobreseu tempo no exército francês. Contou como certa vez tivera que “tomaruma garrafa de champanhe que tinha sido decapitada com um sabre eentornada numa espaldeira de armadura”. Klaebisch divertiu-se, tantoassim que acabou por sacudir a cabeça, estender a mão e dizer: “Muitobem,vocêvenceu.Seuirmãopodeir.”A maioria das pessoas na Champagne via Klaebisch menos como um

reacionário nazista do que como um mediador entre a comunidadefrancesadovinhoeBerlim.Issonunca icoumaisevidentedoquequandoVichy lançou um programa de trabalhos forçados, o Service du TravailObligatoire,ouSTO,paraforneceràAlemanhaoperáriosparasuasusinase indústrias. Numa única semana, a Pol Roger teve dez de seustrabalhadores transportadospara aAlemanha; na semana seguinte,maisdezessete.“Desse jeito não temos como continuar”, de Vogüé advertiu Klaebisch.

“Não temos pessoal su iciente para nosso trabalho regular, muito menospara a colheita. Se você não trouxer alguns de nossos trabalhadores devolta, não vai ter champanhe nenhum no próximo ano.” O próprio CIVCtentou manter as casas em funcionamento promovendo um rodízio detrabalhadorestarimbadosentreascasasprodutorasdechampanhe.Aindaassim, as companhias não estavam conseguindo preencher suas cotasobrigatórias.Oweinführer, que se orgulhava de sua e iciência, entrou rapidamente

emcontatocomasautoridadesdeBerlim.Tendodeescolherentremenoschampanheemenosmão-de-obraemsuasfábricas,osalemãespreferirama segunda opção e permitiram que alguns dos trabalhadores maisexperientesemaisvelhosvoltassemàssuasadegas.CadaconcessãodeKlaebisch,entretanto,pareciagerarmaisumdecreto.

Deagoraemdiante,disseele,umo icialalemãodeveriaacompanharcadatrabalhadorqueentrassenascaves.Osprodutoresacharamissoabsurdoe completamente impraticável. Quando o weinführer voltou atrás, houveum grande suspiro de alívio, pois as adegas de greda, as crayères daChampagne, estavam sendo usadas pela Resistência tanto comoesconderijoquantoparaarmazenararmasesuprimentos.

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Naverdade,aResistênciaestavafazendomuitomaisqueisso.Elahaviaatinado com o fato de que as remessas de champanhe forneciamrelevantesinformaçõesmilitares.Atravésdelas,erapossívelsaberquandoos alemães estavam preparando uma ofensiva militar de vulto. Seusmilitantes deram-se conta disso pela primeira vez quando, em 1940, osalemães encomendaram dezenas de milhares de garrafas a seremenviadas para a Romênia, onde, o icialmente, só havia uma pequenamissãoalemã.Dentrodepoucosdias,aRomêniafoiinvadidapeloexércitoalemão. Em seguida, garrafas de champanhe foram distribuídas entretodos os soldados, uma maneira de lhes dizer que “o Führer pensa nosseushomensemprimeirolugar”.Desse momento em diante, a Resistência, com a ajuda das principais

casasdechampanhe,acompanhoumeticulosamenteodestinodasgrandesremessasdechampanhe.Oalarmesooupertodo imde1941,quandoosalemães izeram uma encomenda enorme e pediram que as garrafasfossem especialmente arrolhadas e embaladas de modo a poderem serenviadaspara“umpaísmuitoquente”.EssepaísvinhaaseroEgito,ondeRommel estava prestes a iniciar sua campanha da África do Norte. AinformaçãofoiretransmitidaparaoserviçosecretobritânicoemLondres.Com a continuação da guerra, as relações entre Klaebisch e de Vogüé

deterioraram-se.Klaebischtinhaaimpressãodeestarsendocadavezmaisusado e “injustiçado” por de Vogüé. Aborrecia-o que este sempre sereferisseaelecomoKlaebisch,nuncaHerrKlaebisch,MonsieurKlaebischoupelomenoscapitãoKlaebisch,sóKlaebisch.Masissoeramerairritação.MuitomaissérioeraqueKlaebischeoutras

autoridades alemãs estavam icandomais emais convencidos de que deVogüéeseuscolegasdaMoët&ChandonestavamajudandoativamenteaResistência.Suassuspeitaseramfundadas.Nosprimeirosdiasdaocupação,aMoët&Chandonforamaissaqueada

do que qualquer outra casa de champanhe. O château Chandon, nosterrenosdaabadiaDomPérignon,foradestruídopelofogoemuitosoutrosprédios pertencentes à Moët haviam sido tomados para alojar tropasalemãs.Parasomarinsultoàinjúria,acompanhiarecebeutambémordensdeforneceraoTerceiroReich50.000garrafasdechampagneporsemana,ou cerca de um décimo de todo o champanhe que os alemães estavamrequisitando.“Naquelas condições, eueoutrosnaMoët, todooprimeiroescalão,não

podíamos senão resistir”, disse o diretor comercial da Moët, ClaudeFourmon.

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O próprio de Vogüé encabeçava a ala política da Resistência na regiãoleste da França. Nos primeiros estágios da guerra, ele se opusera a umaresistência armada que poderia pôr vidas inocentes em perigo. Com oavanço da guerra, contudo, seus sentimentos começaram a mudar e eleacolheu a Resistência em vinte e quatro quilômetros de adegas daMöet.“No mínimo”, disse seu ilho Ghislain, “meu pai fez vista grossa àsabotagem e ao ardil, bem como à adulteração do champanhe e suaexpedição.”No dia 24 de novembro de 1943, Robert-Jean de Vogüé pediu a seu

primoRenéSabbeparaservirdetradutornumareuniãoqueeleeClaudeFourmon teriam com Klaebisch, já marcada. A colheita recém-terminadahaviasidotãopequena—etãoboa—queelesestavamcomesperançadeconvencer Klaebisch a reduzir a quantidade de champanhe que estavaplanejandorequisitar.Pouco depois que chegaram, o telefone tocou numa sala vizinha à de

Klaebisch. Um jovem o icial interrompeu a reunião para dizer aoweinführerqueachamadaeraparaele.Klaebischpediu licença.Minutosdepoisestavadevoltaesentou-seàsuamesa,cruzandoosbraçossobreapança.“Cavalheiros”, disse, “era a Gestapo. Estão todos presos.” No momento

certo, vários o iciais com pistolas em punho irromperam pela porta elevaramostrêshomenssobcustódia.“Ficamos totalmente estupefatos”, Fourmon lembroudepois. “DeVogüé

acabaradeconvencerKlaebischapermitirqueas casasvendessemmaischampanhe para civis franceses. Não sei exatamente o que provocou otelefonema, mas acho que a Gestapo queria tirar de Vogüé da linha decomando.”AprimeirareaçãodedeVogüéfoidizer:“SoltemFourmon,elenãosabe

de nada.” Pediu também a soltura de Sabbe, dizendo que ele estava aliapenasparatraduzir.Seusapelosdenadavaleram.Todosos três foramacusadosdeobstruir as requisições comerciais da

Alemanha e presos. Sabbe foi solto alguns dias depois por causa de suaidade, mas Fourmon foi mandado para Bergen-Belsen, um campo deconcentraçãonaAlemanha.DeVogüéfoicondenadoàmorte.A sentença irradiou ondas de choque pela Champagne. Pela primeira

vez na história, toda a indústria — cultivadores e produtores,trabalhadoreseadministração—entrouemgreve.Klaebisch icouatônitoe,deinício,nãosoubeoquefazer.Tachouagrevede“atodeterrorismo”e

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avisou que haveria uso de força a menos que ela terminasseimediatamente. Os champanheses izeram ouvidos moucos e levaramadianteseuprotesto.Diantedeumaaçãotãosemprecedentes,Klaebischpareceuparalisado.

Temiaquea convocaçãode tropaspudesse resultarnumaagitaçãoaindamaior e obrigar os alemães a assumir o controle da produção dechampanhe,algoparaoque,elesabia,nãoestavampreparados.Klaebisch temia também mais uma coisa: a notoriedade. Chamar a

atenção sobre simesmo era o quemenos desejava, especialmente agora,quando tudo parecia estar caindo aos pedaços. Para piorar a situação, ocunhado ementor deKlaebisch, Joachim vonRibbentrop, havia caído emdesfavoreelepodiamuito facilmente se imaginar congelandode repentecomoutrossoldadosnofrontrusso.Após outros apelos infrutíferos aos champanheses para que

encerrassem seu protesto, Klaebisch e os alemães entregaramos pontos.Concordaramem“suspender”asentençadedeVogüémasdisseramquesóoestavamfazendoporqueeletinhacinco ilhos.Suapenafoicomutadaparaprisão.Apesar de seus embates com de Vogüé, não fora isso que Klaebisch

esperaraoudesejara.“Nãoédi ícilparamimimaginarqueKlaebisch icouincomodadocomaprisãodemeupai”,disseGhislaindeVogüé.“Descon ioqueestavaapenascumprindoordens.”Masapuniçãodaindústriadochampanheapenascomeçara.Ascasasde

champanhe que haviam apoiado a greve foram arrastadas perante umtribunalmilitar epostasdiantedeumaescolha.Pagarumapesadamultade600.000 francos (cercadeummilhão emeiode francosnamoedadehoje), ou ter o diretor da casa na prisão por quarenta dias. Quase todaspagaramamulta.A Moët & Chandon foi a que mais sofreu. “Eles decapitaram a Möet”,

ClaudeFourmondissemais tarde.Quase toda a cúpula administrativa foienviadaparaaprisãoouparacamposdeconcentração.Na esperança de desestimular mais desobediências e justi icar sua

repressãoàMöet,Klaebisch eoutras autoridades alemãsproduziramumilme de propaganda. Mostrava falsas caixas de Möet & Chandon sendoapreendidas e abertas, todas cheias de ri les e outras armas. O ilme foidistribuído pelos cinemas de toda a França e da Alemanha. Os alemãesobrigaramtambémjornaisfrancesesapublicarumartigoquediziaquedeVogüéestiveraajudando“terroristas”.Em poucos meses, a Autoridade Alemã de Ocupação havia assumido

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inteiramente a direção daMoët. O homem que puseram à sua frente foiOttoKlaebisch.

Sob muitos aspectos, os weinführers realizaram exatamente o que oTerceiroReichqueria.Ajudaramadeterapilhagem,restauraramaordemeabasteceramaAlemanhacomumprodutoextremamentelucrativo.Maisdedoismilhõesemeiodehectolitrosdevinho,oequivalentea320milhõesdegarrafas,foramexpedidosparaaAlemanhaacadaano.Mais importante, os weinführers mitigaram uma situação que teria

podido ter conseqüênciasmuito piores para a França. Serviramde pára-choquenumabatalhaquecampeoudentrodaliderançaalemãcomrelaçãoaomododelidarcomaFrança,batalhaqueopunhanazistascomoGöring,que queriam “prender e arrebentar” e tratar a França como paísconquistado, e os que preferiam uma abordagem menos implacável, emqueseincorporariaaFrançanumanovaEuropadominadapelaAlemanhae“sedariaaelaumpoucodeforragem”,demodoasepoderextrairdelatudoquevalesseapena.Acimade tudo,osweinführers reconheciama importânciaeconômicae

histórica da indústria de vinho da França e izeram tudo que estava emseu poder para assegurar sua sobrevivência. Fizeram-no também embene íciopróprio, pois compreendiamquequandoa guerra terminasse eelesvoltassemaseupaísea seusnegócios, seriaessencial teralguém—istoé,osfranceses—comquefazernegóciosnovamente.Enquanto a guerra continuava, contudo, e especialmente quando ela

começouasevoltarcontraaAlemanha,amaioriadaspessoasnaFrançaiase convencendo de que a melhor garantia de sobrevivência estava emcon iaremsimesmos,nãonosweinführersecertamentenãoemPétaineseugovernodeVichy,queestavasetornandomaisfascistaacadadia.Issosigni icava encontrar métodos não convencionais e ter a coragem decontornarouviolarregrasestabelecidas.ComoJanetFlannerpreviuassimqueaguerracomeçou:“Dadaamania

dosalemãesporpilhagemsistemática—porarrebanharelevardaFrançaroupa de cama, máquinas, tapeçarias Gobelins, instrumentos cirúrgicos,leite, carneiro, champanhe doce— os franceses terão de se transformarnuma raça de mentirosos e trapaceiros para poder sobreviverfisicamente.”

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O

QUATRO

Esconder,mentiretrapacear

AdegadevinhoemBordeaux.Vinicultoresportodoopaísemparedarampartedesuascavesparaesconderseumelhorvinhodosnazistas.

chefedeestaçãoHenriGaillardestavasuando.Jásuportaraaocupaçãoalemãporquaseumano,e

ela lhederaumadordecabeçaatrásdaoutra.Seusalárioestava atrasado;dinheiropara seupessoal nunca chegavaàestaçãodeSt.Thibaultemdia;sumiaumpacoteatrásdooutro. Ele preenchia zelosamente os formulários que aAutoridadedaOcupaçãoemDijon lheenviavaerespondia

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às suas intermináveis perguntas sobre o que sua estação ferroviáriaestavafazendo.Mas agora estava enfrentando mais do que uma dor de cabeça

burocrática:seuempregoestavaemrisco—etalvezmaisdoqueisso.Naquela manhã, ao chegar ao trabalho em sua estação na Borgonha,

soubera da má notícia. Um trem descarrilara em sua seção porque umaagulha fora acionada na direção errada e agora toda a sua carga estavaperdida. E não era uma carga qualquer. O trem fora carregado com osmelhores vinhos da Borgonha, todos destinados à Alemanha e a pessoascujosnomesfaziamHenritremer—Göring,Himmler,quemsabeopróprioFührer.Queiriafazer?Apenas alguns dias antes, Henri pedira con iantemente a seu chefe

alemãonaAutoridade deOcupação, o comandante do 3o ArrondissementdeDijon,umpasseparacruzaraLinhadeDemarcaçãoeiraLyon,visitara ilhaqueestavaprestesaterumbebê.Tiveraesperançadeconseguirapermissãodemodoapoderestarlálogoapósonascimento.A inal,eraseuprimeiro neto e ele lembrara ao comandante que ainda lhe restava umasemana de férias. Ressaltara também que era um veterano condecoradoda Primeira Guerra Mundial (talvez não a melhor coisa a dizer paraalguémqueestavadoladoderrotadonaqueleconflito).Que fariam os alemães agora? Henri se perguntava. Conseguiria ir a

Lyon?Perderiaoemprego?Acabarianaprisão?Mergulhando a caneta na tintamarrom o icial, Henri Gaillard começou

nervosamenteseurelatório:

LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT,CÔTED’OR,BORGONHA:Tenhoahonradeinformá-losdequehouveumacidentena linha férreadeSt.Thibault.Foiaprimeiravezquealgo semelhante aconteceu desde que assumi a che ia da estação váriosanos atrás. Não tenho absolutamente nenhuma idéia do que poderia teracontecidocomascargasdosvagões.Muitohumildemente,peçodesculpaspelo transtorno e espero sinceramente que isso não se re litanegativamente sobremeu caráter ou carreira. Seumui humilde servidor,HenriGaillard.

SeGaillardnãosabiaoqueaconteceracomovinho,eraprovavelmenteoúnico nessa situação. Ao longo das vias férreas da França, agricultores,vinicultores e, especialmente, ferroviários, ou cheminots, estavamsaqueando sistematicamente vagões cheios de mercadorias destinados à

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Alemanha.“Era quase um esporte”, disse Jean-Michel Chevreau, um vinicultor do

valedoLoire.“Nossadiversãofavoritaeralograrosalemães.”O“logro”deChevreaucomeçouemjulhode1940,depoisqueumatropa

desoldadosalemães,depassagemporsuaaldeia,insistiuempernoitaremsua adega. Na manhã seguinte, depois que tinham partido, Chevreaudescobriu quemais de cem garrafas tinhamdesaparecido. Decidiu dar otroco.Algumasnoitesdepois,eleealgunsamigos,armadoscomlatasdevinte

litros emangueiras, escapuliramdepoisdo toquede recolher e rumaramparaaestaçãoferroviáriadacidadevizinhadeAmboise,ondeosalemãesestavam carregando barris de vinho destinados à Alemanha. Quando osguardas estavam olhando para o outro lado, eles extraíram rápida esilenciosamente todo o vinho dos barris, um exercício que repetiram aolongodeváriassemanas,atéqueautoridadesemBerlimcomeçaramasequeixardequeosbarrisqueláchegavamestavamvazios.AutoridadesemAmboise postaram prontamente mais guardas em torno da área decarregamento da estação ferroviária. Puseram também bóias nos barrisparapoderemsaberseestavamcheios.Mas isso não deteve Chevreau e seus amigos. “Continuamos a extrair

vinhoedepoisenchíamososbarrisdeágua”,disse,rindo.

LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT:Porfavormeinformemdoquegostariamqueeu izessecomograndecontêinerdebarrisdevinhoquechegouaqui.Osbarrisestãotodosvazios. Permaneço seu mais respeitoso servidor, Henri Gaillard, chefe daestação.

Chevreau e outros por todo o país estavam empenhados num tipoespecial de resistência — nãoa Resistência, mas uma que, como JanetFlanner de iniu, consistia em “esconder, mentir e trapacear”. Não sóenormes quantidades de vinho eram escondidas dos alemães, como osfranceses, segundo Flanner, também “mentiam patrioticamente comrelação à qualidade da bebida que entregavam ao inimigo, queencomendava borgonhas de boa safra e, inadvertidamente, aceitavapiquette (vinho ralo e acre impróprio para venda)”. “Trapaceavam” osconquistadores também empurrando-lhes vinhos e conhaque batizadoscomágua,vendendo-lhesgrandscrusdiluídos,champanheaguado,e“eau-de-vie a sessenta graus em vez do conhaque a oitenta graus pelo qual

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haviampago”.Na Champagne, os produtores engarrafavam seus piores vinhos e os

marcavam como “Cuvée especial para a Wehrmacht”. Em seguidaacrescentavam insulto à injúria, usando rolhas de má qualidade quenormalmenteteriamsidojogadasfora.Quandoosalemãeschegavamparainvestigar uma irma que supunham os estar trapaceando, aadministração, segundo Patrick Forbes, “ icavamuito, muito sentida, masum cano acabara de estourar, ou o rio Marne subira, e os alemães, nãodesejandoenlamearsuasbelaselustrosasbotasdecanoaltonumaadegainundada, iamembora.Nãoquejamaismanifestassemgrandeentusiasmopor visitar as imensas adegas de greda e calcário em que as casas dechampanhearmazenavamseuvinho:tinhammedodequelhescoubesseasorte de Fortunato, o herói de ‘The Cask of Amontillado’ de Poe, que foiemparedadovivonassinistrascatacumbasdosMontresors.”Grandepartedo“esconder,mentire trapacear”eraresultadode lições

aprendidas em guerras anteriores. Após a batalha de Waterloo, tropasprussianas haviam pilhado adegas por toda a Champagne. Antes de irembora,algunsgravaramnasparedesseusnomeseunstantos dankeshön,bemcomoalgunsgrafitesmenospolidos.Na Primeira Guerra Mundial a mesma coisa voltou a acontecer, mas

dessa vez os alemães não foram os únicos culpados. Tropas francesas acaminho do front também passaram a mão em numerosas caixas dechampanhe.Delasfezparteumjovemsoldadoquemaistardesetornariaumdosmaisfamososartistasfranceses.Maistarde,quandorecordouesseepisódio,MauriceChevalierriu:“Foiquaseumatopatriótico”,disse.“Oquesentimosfoi:‘Assimsobrammenosparaosprussianos.’”Freqüentemente, os alemães tornavam fácil para franceses trapacear.

“Eleseramincrivelmentedesleixadosquandofaziamsuasencomendasdevinho”, disse Johnny Hugel, da Alsácia, com uma risadinha. “Recebíamosumpedaçodepapeldizendoquemandássemosdezmilgarrafasparaesseou aquele lugar,mas nunca indicavam precisamente que vinho queriam,demodoquemandávamos sempreopior, comoode1939, que eraumacompletaporcaria.Seosalemãesnãotivessemchegado,atéhojeteríamosessasafraencalhadanasnossasadegas.”Alguns vinicultores e produtores interpretavam encomendas

deliberadamentemaleasmandavamparaodestinoerrado,demodoqueovinhodaWehrmacht,porexemplo,pedidoparaHamburgo, iapararemHomburg.

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LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT:Tenho a honra de informar que recebi vários grandescontêineresdevinhocomendereços ilegíveis.EmboraadestinaçãopareçaserSt.Thibault,nãoéespeci icadoqualSt.Thibault.Nenhumcomerciantenesta área conhece o nome do remetente. Aguardando uma respostainstrutiva,souseuservidor,HenriGaillard,chefedaestação.

Um dos exemplos mais inusitados do que os vinicultores izeram natentativadeprotegerseusvinhosdosalemãesduranteaPrimeiraGuerraMundialocorreuemBordeaux.Oproprietáriodeumchâteau,aosaberqueas tropas do Kaiser estavam vindo em sua direção, optou por escondersuas preciosas garrafas num pequeno lago em sua propriedade. Tudocorreu sem percalços até a manhã seguinte, quando um dos o iciaisalojados no castelo decidiu fazer um passeio em volta do lago.Contemplandoabelezadaágua,parouderepente,osolhosarregaladosdeespanto:asuperfícieestavajuncadaderótulosflutuantes.Na Segunda Guerra Mundial, os vinicultores franceses haviam

descoberto algumas novas manhas. André Foreau, um vinicultor deVouvray, enterrou suas melhores garrafas sob as vagens, tomates erepolhosdesuahorta.GastonHuet,cunhadodeForeau,usouascavernasnaturais do vale do Loire para esconder seus estoques de vinho. Depoisplantouervasearbustosdiantedascavernasparaesconderasbocasdascavidades.Apesardisso,osvinicultoresdeVouvray icarama litosaosaberqueum

contingentedesoldadosalemãesestavasedirigindoàcidadeepretendiapernoitar lá.MasoprefeitoCharlesVavasseur, ele próprioumvinicultor,teveumaidéia.Procurouumartistaseuamigoelhepediuparatentarumafalsi icação. Juntos, produziram alguns documentos, de aspecto bastanteo icial,quediziamquetodoovinhodeVouvrayhaviasido“reservadoparaa Wehrmacht”. Quando um representante da Autoridade de Ocupaçãochegou para fazer os preparativos para os soldados alemães, Vavasseurmostrou-lhe os documentos “o iciais” e explicou que os únicos lugaresgrandesobastanteparaabrigartodosossoldadoseramascavesdevinho.“Claro que pode acomodá-los lá”, disse Vavasseur, “mas, bem, não possogarantir que os soldados não vão tocar no vinho da Wehrmacht. Possoapenas esperar que apareçam sóbrios de manhã.” O funcionário alemãoresolveu que o melhor era encontrar um outro lugar para os homensdormirem.Essa precaução não prevaleceu em Aloxe-Corton, onde um outro

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contingente de soldados pernoitou. “Eles passaram a mão em muitasgarrafas da minha adega”, lembrou Daniel Senard, um vinicultor daBorgonha cuja casa fora requisitada pelos alemães. Senard haviaescondido a maior parte do seu vinho, deixando porém um poucodeliberadamentebemàvista.“Nãopodíamosescondertudo”,disseele.“Seo izéssemos, os alemães iriam descon iar. Na verdade, provavelmenteteriamlevadomaisdomeuvinhosenãotivessemdescobertooutracoisa.”Essa “outra coisa” era um esconderijo com garrafas de faiança cheias deum líquido claro, que os soldados pensaram ser gim engarrafado àmaneiraholandesatradicional.“Puseram-se a consumi-lo com grande entusiasmo”, recordou Senard

comuma risinhadinhamarota, pois o que alemães estavambebendo nãoeragim,maságuapurgativa,eau-de-Santenay,umpoderoso laxante. “Eraotipodacoisaqueaavódetodomundosempretinhaàmãopara‘limparosistema’.”Naquela noite o quintal icou cheio de soldados a andar de umlado para outro, alternando o passo de ganso com a corridinha damaçãverde.

Segundo um escritor americano que estava na França na época, osalemães “sentiam que estavam sendo constantemente logrados e alvo dechacota”.NaAlsácia,porexemplo,quandoosalemãessouberamquenacasados

HugelhaviaumporcochamadoAdolf,enviaramváriossoldadosàcasadafamília. Ao chegar, os soldados encontraramo jardineiro trabalhando e oporco cochilando ali perto. O o icial no comando aproximou-se. “Você”,disse em tomameaçador, “emque estavapensandoquando chamouesteporco de Adolf?” O velho jardineiro, contudo, não se intimidou nempestanejou. “Por que pergunta?” respondeu. “No que osenhor estápensando?” O o icial, embaraçado, icou sem fala. Deumeia-volta e levouseushomensembora.AtéemParis,quandoiamjantarnosrestaurantesmais inos,osalemães

sentiam muitas vezes que se estava armando alguma coisa contra eles.Fora-lhes servida a comida que tinham pedido? Era aquela garrafa devinho realmente de tal safra famosa? Apesar de sua descon iança, osalemães não tinham como saber que vários restaurantes haviam de fatomaquinadoumbocadoparamascararseuvinho.Issofoifeitocomaajudadeumacompanhiadetapetesmuitoespecial.A Chevalier era uma elegante irma de tapetes que operava havia

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gerações. Comprava e vendia apenas os mais inos tapetes, comoAubussonsantigosepersasdamaisaltaqualidade.Todosqueprecisavammandar limpar um tapete valioso, até museus, geralmente recorriam àChevalier. Embora ninguém se lembre quem foi, alguém teve a idéia deque aquela poeira era boa demais para ser jogada fora. Não demorou eChevalier estava enfardando sacosdepoeira antiga edistribuindo-osporalguns dosmelhores restaurantes de Paris. Ali, a poeira seria polvilhadasobregarrafasdevinhonovobarato,paraqueparecessemvelhaseraras.Depois seriam apresentadas a clientes alemães que pensavam estarobtendoalgodeextraordinário.Assim como os proprietários de restaurantes de Paris, Madame

GombauddoChâteauLoudenne, emBordeaux, estavadecididaanãodaraos alemães o que eles queriam. Quando soube que estavam planejandousarpartedeseucastelocomobordel, icoufuriosa.Correuatéosceleirose começou a catar excrementos de rato para em seguida espalhá-los àvontadeportodoocastelo,particularmentenosquartos.Alguns dias depois, chegou uma turma de inspeção para fazer uma

avaliação inal.Nãoprecisaramdemuito tempopara concluirque a idéiadobordelnãoeradasmelhores,elogoelafoiabandonada.“Sabíamos que certas coisas estavam acontecendo”, um o icial alemão

lembrou mais tarde. “Sabíamos, por exemplo, que vinicultores estavamerguendoparedeseescondendovinhopor trásdelas.Sabíamoscomtodacertezaqueelas estavamsendo construídas,masnão tínhamos tempodeinspecionaraadegadetodomundo.”Claramente, não tiveram tempo para dar um piparote nas teias de

aranha que disfarçavam a nova parede na adega de Maurice Drouhin.Tampouco tiveram tempoparaderrubar apilhade lenhaqueescondia aparederecém-erguidanoDomainedelaRomanée-Conti.Ecertamentelhesteria sido impossível estudar todos os papéis e documentos queconfundiamaverdadeirapossedecertaspropriedadesviníferas.NinguémfeztrabalhomelhorparaanuviaroquadroqueosBarton,uma

famíliaanglo-irlandesacominteressesemBordeauxdesdeoséculoXVIIIeque possuía os Châteaux Langoa-Barton e Léoville-Barton. Quando aSegundaGuerraMundialfoide lagrada,RonaldBarton,quedirigiaasduaspropriedadesmasnuncaadotaraacidadania francesa, compreendeuqueseus dias na França estavam contados. Mesmo assim, estava decidido acuidar de seus interesses pelo tempo mais longo possível. Toda noite,quandosesentavaparajantar,Bartontinhaocostumedetomarumaboagarrafa de Langoa ou Léoville, seu brinde pessoal fazendo eco ao de

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Maurice Chevalier. “Aqui vai uma a menos para os alemães se elesvencerem,umaamenosparaosmeusherdeirossenósvencermos.”Quando o marechal Pétain assinou um armistício com os alemães

naquelemêsde junho,Barton,queerabritânico, compreendeuque tinhadefugireporpouconãoperdeuoúltimonavioazarpardeBordeaux.Foiumapartidaemocionada,comBartonperguntandoaosberrosaosamigos“seeleiriaumdiaverdenovoseuamadoLangoa”.Seus temores eram bem fundados. Pouco depois que Barton chegou à

Inglaterra e ingressou no exército britânico, os alemães anunciaram queestavam con iscando seus castelos e vinhedos como propriedade inimiga.Mas depois aconteceu algo de inusitado. O sócio de Barton nos negócios,DanielGuestier, foi aos alemães emBordeaux e sustentouqueo con iscoerailegalporqueBartonerairlandês.LembrouaosalemãesqueaIrlandaestavaneutranaguerraeque,portanto, elesnão tinhamnenhumdireitode con iscarapropriedade.A irmãdeBartonemDublin,queerade fatoumaverdadeiracidadãdaRepúblicadaIrlanda,desfechouumacampanhade cartas. Amigos, parceiros de negócios e até estranhos completosbombardearam as autoridades alemãs com correspondência, toda elatrazendo selos e carimbos irlandeses e enfatizando as origens irlandesasdeRonald.Atéoembaixador irlandêsemBerlim juntou-seà conspiração,frisando a neutralidade irlandesa e sustentando que Ronald Barton erarealmenteirlandês.A manobra funcionou. Embora tenham usado os Châteaux Langoa e

Léoville-Barton para aquartelar suas tropas, os alemães não con iscaramasduaspropriedadescomohaviampretendido.OsBartonnão foramosúnicos a frustrar os alemães sob esse aspecto.

Surpreendentemente,ogovernofrancêsdeVichydesempenhouumpapeltambém.Não era segredo que omarechal-de-campoGöring era um amante dos

excelentes vinhos do Château La ite-Rothschild e que cobiçava a famosapropriedadehaviamuito. ConstaqueHitlerplanejou apossar-sedoLa itecomo “espólio de guerra” e dá-lo de presente ao seu sucessor escolhido.Paraimpedirqueissoacontecesse,Vichy,quenãotinhanenhumdesejodever as mais excelentes propriedades francesas caírem em mãos alemãs,empregouumestratagemalegalecon iscouocasteloeseusvinhedos.ComoLa itepertencendoagora legalmenteaoEstado francês, os alemãesnãomaispuderamconfiscá-locomobemjudaico.Mas, comonocasodoLangoa-Barton,osalemães instalaramumcentro

deoperaçõesnocasteloealojaramalgumasdesuastropasali.Issodeixava

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aguarda-livrosdoLa ite,GabyFaux,muitonervosa.MadameGaby, comoerachamada,moravanoLa iteeconcordaraemempenhar-seaomáximoparazelarpelocastelodepoisqueosRothschildfugiramdaFrança.Haviaaceitado atéos objetosmais sagradosdaGrandeSinagogadeParis, a elacon iados por Robert de Rothschild, chefe do Consistório da sinagoga, eescondera-osdebaixodesuacamaeemseubanheiroparaprotegê-los.Elatinhacertezadequeosalemãesnuncaentrariamnosaposentosprivadosde uma senhora solteira. Mas não estava tão certa quanto à adega doLafite.Poucoantesdachegadadastropasalemãs,comaajudadeváriasoutras

pessoasque trabalhavamnoLa ite,MadameGabycomeçoua transportarpartedasgarrafasmaispreciosas,entreelasasdasafraclássicade1797,paraasadegasdechâteauxvizinhosquehaviamconcordadoemescondê-las emmeio ao seu próprio vinho. Como precaução adicional, fez algo deaindamaisextraordinário:começoua“maquiaroslivros”.Noiteapósnoite,sentava-se em seu pequeno apartamento no castelo, transferindocuidadosamente a propriedade do vinho La ite da velha geração dosRothschild, que fugira da França, para os irmãos Alain e Elie. Esses doisRothschild, que estavam no exército francês, haviam sido feitosprisioneirosquandoosalemães invadiramaFrança.Ela sabiaque, sendoeles prisioneiros de guerra, sua propriedade estava protegida pelasconvençõesdeHaiaeGenebraenãopodiamsertocadaspelosalemães.

LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT:Os senhores a irmam que havia gado faltando em minhaúltimaremessa.Eramtourosouvacas?Seuservidor,HenriGaillard.

Osalemãespercebiamaobstruçãoeatramóia,maspoucopodiamfazera respeito, exceto redobrar sua segurançae vigilância.AtéHenriGaillardsentiu a pressão. Comovinho, comida e gado continuavama desaparecermisteriosamentedetrensquepassavamporsuaestação,Gaillardpassouaser bombardeado com cartazes enviados pelas autoridades alemãs,lembrando-lhe de que estava sendo atentamente vigiado. “O país está deolho em você,cheminot”, advertia um deles. Gaillard recebeu ordem dependurarocartazemseuescritórioemantê-loláporummês.Mas tramóia e obstrução não eram o quemais inquietava os alemães.

Eraacrescentesabotagem,especialmenteaolongodaslinhasferroviárias.Em retaliação, os alemães começaram a obrigar os próprios franceses aajudaramelhorarasegurança.Oqueforamincapazesdeperceberéque

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muitas das pessoas que alistaram para ajudá-los eram exatamente asmesmas que estavam causando os problemas, gente como Jean-MichelChevreau,queandaraesvaziandoseusbarris.“Foiumtempodedramaintensoaliviadopormomentosdetravessuras

intensas”,disseChevreau.Algumas dessas travessuras intensas ocorriam durante as patrulhas

noturnas que Chevreau e outros eram obrigados a fazer. “Tínhamos depercorrer todas as noites o caminho entre nossa aldeia e Amboise ereportarquaisquer acidentes”, disse ele. “Os alemãesnosderam tambémbastõesdemadeiracomquedeveríamoscutucarobjetossuspeitos.”NumesforçodeassegurarqueChevreaueoutrosestavamfazendoseu

trabalho,autoridadesdeChançay,aaldeiadeChevreau,carimbavamseuspapéis, registrando a hora em que partiam; os papéis eram novamentecarimbados em Amboise, registrando o momento em que terminavam.“Masnunca izemos trabalhoalgum”,disseChevreau. “Tudoque fazíamoseracalcularotempoqueserianecessárioparaandaraolongodostrilhosentre nossa aldeia e Amboise; depois pegávamos nossas bicicletas, íamospara Amboise e fazíamos hora por algum tempo antes de levar nossospapéisparasercarimbadoslá.Depoispedalávamosparacasa.”

LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT:Respondoàindagaçãodossenhorescomrespeitoaoparadeirodeumaremessadevinhoperdida.Nãofoifeitanenhumaremessadevinhodeminhaestaçãoestemês.HenriGaillard.

NãofoisurpresaparaGaillardreceberumoutrocartaz,esteexortando-oalembraroslogandaRevoluçãoNacionaldomarechalPétain:“Trabalho,Família, Pátria”. Era um slogan com relação ao qual Gaillard e muitosfranceses estavam icando cada vez mais cínicos. Trabalho? Ele sóbene iciavaosalemães, aspessoaszombavam.Família?ComummilhãoemeiodefrancesesagoracomoprisioneirosdeguerranaAlemanha,muitasfamílias estavam sem pais, maridos e ilhos. Pátria? Nada além de umavacaleiteiraparaosalemães.ApesardaspromessasdePétain, amaioriados franceses compreendia

que não havia um tratado de paz com os alemães à vista, que osprisioneiros de guerra não estavam prestes a voltar para casa e que aocupaçãonãoiriaacabartãocedo.A cada dia que passava, a ocupação, com seu racionamento, suas

barricadaseseustoquesderecolher,pareciainfectarmaisumaspectoda

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vida francesa. Autoridades abriam rotineiramente correspondênciaprivada para controlar a opinião pública. Os cinemas eram obrigados aexibircinejornaisalemães.Os ilmesamericanosestavambanidoseouvirojazz americano era proibido. Mas, à medida que as normas e restriçõescresciam,cresciatambémagenuínaresistência.De início ela semanifestou demaneiras sutis, com o que o historiador

H.R. Kedward chamou de “gestos mínimos de rebeldia, praticados paraparecer acidentais ou impensados: derrubar o drinque de um alemão,informar o caminho errado a um turista alemão, ingir não ouvir oucompreender ordens dadas na rua, ou usar combinações de roupas quecompunhaoproibidotricolorazul,brancoevermelho.”Amulherdeumvinicultorlembraterpasseadopelaruaemsuacidade

no14dejulho,odiadaTomadadaBastilha,debraçodadocomamãeeacunhada. Todas as celebrações do dia nacional da França tinham sidoproibidas por Vichy, mas aquelas mulheres encontraram sua própriamaneiradecomemorardebaixodosnarizesdasautoridades.Elausavaumvestidoazul,suamãeestavadebrancoeacunhadausavavermelho.Na Champagne, uma jovemmanicure também encontrou umamaneira

de protestar contra a presença alemã. Ao ver entrar no salão em quetrabalhava um o icial que vinha regularmente fazer as unhas, ela selevantou, vestiu o casaco e foi embora. “Eu não conseguiriame obrigar atocarnasmãosdele.”Esses“gestosderebeldia”obedeciamaumdiscursoquequaseninguém

ouviu. No dia 18 de junho de 1940, apenas um dia depois que a Françaconcordou em se render, um general-de-exército francês de quarenta enove anos falou pelo rádio, de Londres, para instar seus compatriotas aresistir. Seu nome era Charles de Gaulle. Ele disse que a França nãoperderaaguerra,apenasumabatalha.“Conclamoosfranceses,homensemulheres, em toda parte a resistir e continuar a luta.” Muito poucos, noinício,ouviramseuapelo.Poucas horas depois, no entanto, um pan leto clandestino intitulado

Conselho aos ocupados exortava o povo a obedecer ao toque de recolherporqueissolhespermitiriaestaremcasaatempoparaouviraBBC.Todos,diziaopan leto,deviam“aparentarperfeitaindiferença,masmanteracesaachamadasuaira;elavaisetornarútil”.MuitoslevaramoconselhoemcontaepassaramaouviraBBCnãopara

recebermensagens ou ordens secretas,mas para obter notícias precisasemcontraposiçãoàpropagandao icialalemãedeVichy.“Haviaumaauraespecial naquilo e em sussurrar todas as notícias”, disse May-Eliane

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Miaihle de Lencquesaing. “Quando as transmissões terminavam, todomundosintonizavaseusrádiosnumaestação francesaounaRádioVichy.Era algo que todos fazíamos automaticamente, por precaução, caso osalemãesviessembisbilhotar.”Nodia11denovembrode1940,houveumboletimespecial: emParis,

estudantes haviam entrado em choque com a polícia alemã no Arco doTriunfo quando tentavam comemorar a vitória da França sobre aAlemanha na Primeira Guerra Mundial. Segundo a transmissão, tiroshaviam sido disparados e estudantes tinham caído sangrando. Quandoseus colegas correram para apanhá-los, policiais com cassetetesinvestiram.Oembateproduziuuma“mudançapalpável”naatmosfera.“Muitopouco

tempo atrás, a opinião pública estava fraca emole, disposta a concordarcom qualquer coisa”, escreveu um memorialista francês. “Agora Vichy eBerlimconseguiramtornaropaísinteiroconscientedessaservidão.”Eaconsciênciadeulugaraumcinismomordaz.“Setivéssemossido ‘ocupados’,parausarotermopolido,pelossuecos”,

comentou um parisiense, “teria nos sobrado pelo menos uma dança, umgosto por itas azuis e amarelas; se tivessem sido os hotentotes, ou ositalianos, ou os húngaros, teríamos icado com uma canção, um sorriso,certamaneiradesacudira cabeça…Masnocasodeles, todomundosabeperfeitamente que não vão nos deixar nada. Nem mesmo uma melodia,umacareta.Nenhummolequederuasonhariaemimitaraquelepassodeganso.”Apesar do seu temor das repercussões, o chefe de estação Henri

Gaillardtambémestava icandoirritado,esuasmensagensàsautoridadesalemãs em Dijon re letiam isso. Elas haviam se tornado mais concisas emais cínicas. No que é especialmente revelador, ele não estava maisusando os fechos formais, estilizados — as chamadaspâtisseries, que osfranceses tanto amam—, em suas comunicações com os alemães. Agora,Gaillardestavasimplesmenteassinandoseunome.

LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT:Conviriaqueossenhoresse lembrassemdequesuasremessasde vinho não podem chegar tão rapidamente quanto seus pedidos. Nãoreceberãoas remessasatéquemeenviemospapéis corretos. Já lhesdisseisto antes.Há tambémumassunto adicional.Meu toalete está quebrado.Seriabomtê-loreparadoantesdoinverno,especialmenteporqueagoraeleestavazandonaminhaadegadevinho!HenriGaillard,chefedaestação.

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Naalturade1941, adesilusãodeGaillarderapartilhadapraticamenteportodomundonopaís.Haviamaparecidojornaisclandestinosexortandoos franceses a desa iar os alemães. Também haviam aparecido gruposativosdaResistênciatantonazonaocupadaquantonanãoocupada.Umdosprimeirosgrupos foioCombat, criadoporo iciaise reservistas

militares franceses. Jean Monmousseaux, um vinicultor enégociant deTouraine,eraumdeseusmembros.Monmousseauxserviranoregimentode blindados de de Gaulle e era um dos poucos que haviam ouvido atransmissão do discurso que izera em Londres. Ficara profundamentecomovido.“Meupaiachavamuitodi ícilaceitaraderrotadaFrança”,disseseufilhoArmand.Monmousseaux encontrava-se freqüentemente com seus colegas do

exército, dizendo: “Deveríamos estar fazendo alguma coisa, mas o quê?”Umdiaa respostaapareceuà suaportanapessoadeumde seusvelhoscamaradas.“Venhacomigo,Jean,vamosprecisardevocê”,eledisse.ComomoravapertodaLinhadeDemarcação,Monmousseauxsetornara

umavisãofamiliarparaosalemães,semprecruzandodeumazonaparaaoutra com seusbarris de vinho.Aquelesbarris, seus amigos salientaram,eram grandes o bastante para conter um homem. Jean compreendeuimediatamentee,cheiodeentusiasmo,concordouemajudar.En iarumapessoanumbarril,noentanto,nãoéfácil.Osbarrisdevinho

são feitos para ser estanques. Suas duas extremidades eram lacradas eixadas sob as pontas curvas das aduelas, e cada aduela é feita para seajustarperfeitamenteàsvizinhas.Parameteralguémnumbarriléprecisoprimeiro remover os anéis de metal que o envolvem e desmembrá-locompletamente, aduela por aduela, e inalmente montá-lo de novo damesmamaneira, em tornodapessoa. “Nãohá outro jeito”, disseArmand.“Vocênãopodesimplesmenteenfiarumapessoaporaqueleburaquinho.”Jeaneseu tanoeiro izeramalgumasexperiências.Omelhor tempoque

conseguiram fazer em todas as tentativas foi de duas horas, duas horaspara desmontar o barril, pôr um homem dentro e montá-lo de novo emtorno dele. Depois havia a viagem propriamente dita e a espera junto àLinhadeDemarcação,quepodiamdemandarhorasamais.Eraumtempolongoparaumhomem icar espremidonumespaço tãominúsculo, quasesemar,maserapossível.“Vale a pena correr o risco”, Monmousseaux anunciou a seus colegas.

“Vamosfazeracoisa.”Assim, durante os dois anos seguintes, Monmousseaux conduziu um

tráficodesereshumanos,transportandolíderesdaresistênciaparadentro

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e para fora da Zona Ocupada no bojo de seus barris de vinho. A cadamissão realizada, ele remontava seusbarris, enchia-osdevinhoevoltavaparacasa.Osalemãesnuncadesconfiaramdoqueestavafazendo.A essa altura, incidentes ao longo das linhas férreas eram uma

ocorrência quase diária. Vagões descarrilavam, remessas de vinho,alimento e outras mercadorias para a Alemanha desapareciam ou eramdestruídas.Praticamentetodasemana,ochefedeestaçãoGaillardtinhadenoti icar

seus chefes alemães em Dijon de que um outro carregamento demercadorias estava faltando. Em uma semana, ele relatou que umengradado de vinho que chegara à sua estação pesava substancialmentemenos do que quando fora embarcado no trem. Na semana seguinte oinforme de Gaillard foi ainda pior. “Estou lhes devolvendo um caixote defardos de alimentos embrulhados mas totalmente vazios”, ele escreveu.“Elesdeveriamconter trinta e setequilosdealimentos,masnãoo fazem.Faltatambémumsacodecinqüentaquilosdesal.”Incidentes de furto e logro aos alemães haviam se tornado tão

freqüentes que por vezes os envolvidos se viam tropeçando uns nosoutros.EmBordeaux,porexemplo,umgrupo localdaResistênciaavistouum trem com vinho para Berlim e resolveu afanar sua carga. “Nãodeixaramumagarrafaparacontarahistória”,lembrouumbordelês.Uma vez em casa, icaram empolgados ao descobrir que as garrafas

furtadas vinham de algumas das melhores safras e dos mais excelenteschâteaux. Imediatamente, começaram a abrir algumas delas paracomemorar seu sucesso. Então, um por um, seus rostos foram tomadospelaconsternação.Ovinhoeraintragável.NégociantsdeBordeauxhaviampassado a perna nos alemães, colando rótulos de primeira classe emgarrafasquecontinhamsimplesmentezurrapa.

LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT:Umgrandecontêinerdegarrafasdevinhoacabadechegaràminhaestação.Por favor,digam-meoquegostariamde fazercomele.Asgarrafas estão todas vazias. Aguardando uma resposta instrutiva, HenriGaillard.

Afrontarosalemãeseraumjogoperigoso.EmBordeaux,umhomemfoimortoatiroaoerguerumpunhofechadoquandosoldadosalemãesfaziamumaparada.Umoutrofoiexecutadoporcortarfiostelefônicos.Até os Hugel da Alsácia, que impingiam vinho de má qualidade aos

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alemães sempre que possível, compreenderam que deviam ter cuidado.“QuandorecebíamosumaencomendadaPlatterhof,acasadehóspedesdeHitler,sempremandávamosnossomelhorvinho”,disseGeorgesHuet.“EmgeralrecebíamosduasencomendasporanodaPlatterhofenamaioriadasvezes elas eram muito precisas. Havia lá muitas pessoas — não Hitler,porém—queapreciavambomvinho.Nãoousávamosfrustrá-las.”Outros, especialmente os que eram jovens como Gerald Boevers, de

dezessete anos, eram mais atrevidos. Boevers, que morava na aldeiaprodutoradechampanhedeLouvois,estavaaborrecido.Era14dejulho,odia da Tomada da Bastilha, mas autoridades de Vichy haviam proibidotodas as celebrações tradicionais, temendo que pudessem levar ademonstraçõesantigermânicas.Boeversetrêsamigosresolveramcelebrarde todo modo. Encontraram vários contêineres de metal e os encheramcom pólvora de munição de caça que haviam escondido dos alemães.Depoisalguémacendeuumfósforoenquantoosoutroscorriamembuscadeabrigo.“Foiumaexplosãodebomtamanho”,disseBoevers,“grandeobastante

para trazer a polícia e um punhado de soldados para cima de nós.”Boevers e os outros foram levados imediatamente ao quartel-general daGestapoonde,pelorestodaquelediaeduranteanoite,foraminterrogadose severamente surrados. “A certa altura”, disse Boevers, um homem daGestapomedisse: ‘Sevocê tivessedezoitoanos, teríamos lhemetidoumabala.’ Foi a única vez em que iquei feliz por ser jovem demais paraingressarnoexércitofrancês.”Umoutrojovemfrancês,MarceldeGallaix,tambémresolveusearriscar.

Marceleraumadvogadoespecializadoemdireitosdepropriedade.Apesardos temores de sua mulher, concordou em representar vinicultores daBorgonhaquequeriamcontestar requisições e con iscos alemães. Para iraoencontrodeseusclientes, elemuitasvezes tinhadecruzaraLinhadeDemarcação, um exercício que, além de exasperante, consumia tempo.Trenspodiamserdetidosporhorasenquantoserevistavampassageirosevagões. Quando Marcel inalmente chegava a seu destino, descobria umoutroproblema: ninguém tinhadinheiro. “Está certo”, ele dizia. “Podemepagarcomvinho.”Assim, a cada viagem, ele voltava para casa com uma sacola cheia de

bons borgonhas— todos em garrafas sem rótulo. “Assim ele podia dizeraosalemãesqueeraumvinhodemesaqualquerquearranjara”,dissesuamulherGertrude. “Diasou semanasdepois, talvez, recebíamosumpacotede rótulos, às vezes pelo correio, às vezes trazido por alguém ao nosso

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apartamento. Meu Deus, que maravilha aquele vinho sempre fazia poraquelasmedonhasrefeiçõesdaguerra!”Noinvernode1941,quefoiumdosmaisfriosdequesetemnotícia,as

condições de vida em ambas as zonas da França “haviam declinado daausteridadeparaaescassezsevera”,segundoohistoriadorRobertPaxton.Com as importações interrompidas, as provisões de petróleo e carvãominguaram. Segundo Jean-Bernard Delmas, do Château Haut-Brion, “agente sentia tanto frio que não conseguia pensar em mais nada”. Jean-Bernard estava na escola primária naquele tempo. “Nunca vou esquecerdo quanto nossa classe era fria. Usávamos o sobretudo o dia inteiro. Aprofessora nos fazia correr em torno da sala a intervalos de poucosminutos,sóparanosaquecermos.”

LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT:Gostaria de lhes lembrar que já estamos emdezembro emeutoaleteaindanão foi consertado.Estou tambémanexandominha listadecargas perdidas nesta semana: sete pacotes de artigos demercearia numtotal de 210 quilos. Favor investigar isto o mais rápido possível. HenriGaillard,chefedaestação.

Comida se tornara a preocupação primordial de todos. As requisiçõesalemãshaviamcriado terríveis carências,não sóparaaspessoas comunscomo para os militantes da Resistência que estavam se escondendo nasmatasemontanhas.Felizmente,havia gente como JeaneMadeleineCasteret, trabalhadores

de vinhedo transformados em ladrões de gado.Os CasteretmoravamemSt. Yzans, nãomuito longe do Château Loudenne, que os alemães haviamemcertaalturapensadoemusarcomoumbordel.Agoraestavamcriandogado e plantando alimentos para os soldados deles aquartelados nocastelo.“Fazíamosnossorouboànoite,depoisqueosalemãestinhamidoparaa

cama”, disse Jean. “A Resistência nos mandava um sinal codi icado pelorádio e partíamos.” Iam sorrateiramente até o Loudenne e,silenciosamente, conduziam o maior número possível de animais até asmatas próximas, onde osmaquis estariam esperando. “Era perigosoporque nunca sabíamos quando um dos guardas poderia nos avistar eacordar todo mundo, mas era um enorme prazer narquer les allemands(passarapernanosalemães).”

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TalvezatéHenriGaillardtenhasentidoumapontadesatisfaçãodevezemquando.

LIVRO DE OCORRÊNCIAS DO CHEFE DA ESTAÇÃO, ESTAÇÃO DE ST.THIBAULT:Tenhoahonradeinformá-losdequeotrem9.305,quedeveriachegaràs14h30min,foidetidonoquilômetro45porcausadapresençadeduasvacassobreostrilhos.Aoqueparecealguémabriuasportasdeváriosvagõesesoltouosanimais.Algunsdesapareceram.HenriGaillard,chefedaestação.

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CINCO

Oroncodoestômago

SopaservidaaoarlivreemParis.

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Gertrude de Gallaix estava afobada. Era poucomais deseishorasdamanhã,maselasabiaquelongas ilasde

mulheres e crianças já deviam estar se formando na feiravizinha.Agarrando sua cesta de compras e o carnê de

racionamento, Gertrude deixou a toda pressa seuapartamento no terceiro andar de um prédio em Paris,desceuaescadaemespiraleganhouarua.Levavanacesta

umaembalagemparaovos(nenhumcomerciantetinhacaixasdepapelão),e umfilet, uma sacola de rede, para colocar todas as verduras queconseguissecomprar.Haviatambémduasgarrafasvaziasdovinhoqueelaeomaridohaviamterminadoduranteasemana.Porcausadaescassezdegarrafas,Gertrudesabiaquenenhumcomerciantelhevenderiamaisvinhoamenosqueelativessegarrafasvaziasparadevolver.Deixando seu prédio, Gertrude virou à esquerda e seguiu pela rue

Boissière na direção sul, rumo à Place d’Iéna, a dois quarteirões dedistância. Embora houvesse apenas uma sugestão de aurora, as ruas jáestavammovimentadas. Um gari empunhandouma vassoura de gravetosabria um hidrante para empurrar o lixo que varrera da calçada para asarjeta. Um a iador de facas, parado junto à esquina com seu carrinho esuapedradeamolar,tocavaumasineta,gritando:“Facas,tesouras,algumacoisaparaamolar?Baratinho!”SeguindoemfrentepelarueBoissière,Gertrudeolhouàdireita.Narue

du Bouquet de Longchamp, dois soldados alemães estavam de sentinela.Gertrude sentiu um leve estremecimento. Era ali que se localizava oComissariadodePolíciaeeraaliqueela,umaamericana,eraobrigadaaseapresentar pelomenos uma vez todos os dias. Embora fosse casada comum francês, os alemães a consideravam uma estrangeira inimiga einsistiamemsaberseuparadeiroemtodososmomentos.Gertrude havia quase chegado ao cruzamento junto à Place d’Iéna

quando se deu conta de que alguma coisa estava errada. Embora aquelafosse a maior feira do 16o Arrondissement, não havia nenhuma ila,nenhuma aglomeração de fregueses alvoroçados tentando fazer suascompras antes da hora de levar os ilhos para a escola, nenhuma avó ouavô guardando lugar na ila para os ilhos e ilhas. Ninguém. Ao chegarmais perto, descobriu o porquê. Não havia comida. Às seis e cinco damanhã,oquequerque tivesse sido trazidodo camponaqueledia já foraescolhidoedesaparecera.E,oqueeraaindamaischocante,nãohaviaumagotadevinho.Oespaço

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em que o vendedor de vinhos costumavamontar sua barraca estava tãovazioquantoasgarrafasnacestadeGertrude.“Comidaeraumacoisa,masescassezdevinho?NaFrança?Issoeraalgo

queeununcatinhapensadoqueveria”,Gertrudelembroumaistarde.A faltade vinho, que estava sendo sentida em toda a França em1941,

era apenasumadasmuitas causadaspelosnazistas em seu esforçoparatornar a Alemanha auto-su iciente e independente de importações.Requisitandoamaiorpartedasmatérias-primasedosprodutosacabadosfranceses,emespecialalimentosevinho,HitleracreditavaqueaAlemanhaestaria numaposiçãomais forte para vencer a guerra. O Führer pôs seuherdeiro presumido, omarechal-de-campoHermannGöring, à frente dasrequisições. Göring, que pesava quase cento e quarenta quilos e erachamado pelas costas de “traste gordo”, não teria podido icar maissatisfeito. “Os franceses estão tão empanzinados de comida que érealmenteumavergonha”,eledisse.“Esseéosegredodasagacidadeedaalegriadeles.Semessafarturadecomida,nãoseriamtãofelizes.”Imediatamente, Göring começou a despojar a França de sua fartura:

trigo da Île de France, queijo e verduras do vale do Loire, frutas dospomaresdaNormandia,carnebovinaCharolaisdaBorgonhae,sobretudo,trensemais trensrepletosdevinho,milharesdegarrafasque iampararnaadegapessoaldomarechal-de-campo.Como chefe do Planejamento Econômico para Territórios Ocupados,

Göring gozou na prática de uma onipotência econômica. Uma de suasprimeiras medidas no novo cargo foi vedar a entrada de franceses nosrestaurantesde luxodeParis,que isentaradamaiorpartedasrestriçõesque incidiamsobreo vinhoe cujas adegashaviamsidoguarnecidasparaatenderàsexigênciasdesuaclientelaalemã.“ÉparanósqueoMaxim’seoLaTourd’Argentdevemfazeramelhorcozinha”,disse.“Trêsouquatrorestaurantesdeprimeira classe reservadosparaoso iciais eos soldadosalemães será perfeito, mas nada para os franceses. Eles não precisamdessetipodecomida.”Tivesseeleparadoporaí,poderiatersidoapenasumtapanacara.Mas

deu tambémum chute no estômago, declarando que os franceses teriamde se contentar com uma dieta de 1.200 calorias diárias,metade do queumapessoanormal precisa para sobreviver. Pessoas idosas, aquelas queos alemães consideravam menos produtivas, recebiam carnês deracionamentoqueaslimitavama850caloriaspordia.As medidas de Göring geraram profundo ressentimento, em especial

entre vinicultores, vinhateiros e outros ligados ao ramo do vinho. Léon

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Douarche, vice-presidente da Associação Francesa de Vinicultores,queixou-se de que Göring estava arrancando o vinho de quem maisprecisava dele. “Os velhos e os doentes precisam de vinho”, declarou. “Éum alimento excelente para eles; é de fácil digestão e uma fonte vital devitaminaseminerais.Éomelhorelixirparaassegurarumavidalongaquejamaisseinventou.”AmensagemdeDouarchesensibilizou.Médicosportodoopaíspediram

àsautoridadesalemãseàsdeVichyqueestabelecessemumadistribuiçãomaiseqüitativadovinhodemodoacompensaraperdadecalorias.Osquese dedicam a “trabalho intelectual”, disseram eles, deveriam ter direito ameio litro de vinho por dia; trabalhadores manuais deveriam ter pelomenosumlitroe,emalgunscasos,umlitroemeio(duasgarrafascheias)desde que fosse consumido às refeições; as mulheres deveriam receberumterçoamenosqueoshomens.Para enfatizar o quanto a situação era crítica, osmédicos citaram uma

visitaquehaviamfeitoaumabrigopara idosos,ondeencontraramváriospacientesdeidade ingindoestaràbeiradamorte.“Perguntamosporquefaziam isso: ‘Não querem icar bons, não querem ir para casa?’ Elesresponderam, ‘Não, aqui, quando o pessoal da casa acha que você estámorrendo,lhedávinhonoalmoçoduasvezesporsemana.”Os médicos concluíram seu relatório com uma advertência: “Seria um

erro recusar vinho aos que estão verdadeiramente doentes. Isso podelevaraumdesequilíbrio.”Suasadvertênciaserecomendaçõesforamignoradas.PelaprimeiravezdesdeosítiodeParisem1870,indíciosdedesnutrição

grave apareceram na França. Embora ainda produzisse mais alimentosque qualquer outro país europeu, o país era agora omaismal nutrido, etodos sentiam isso. “Éramos obcecados por comida”, disse Gertrude deGallaix,“nãoconseguíamospensaremoutracoisa.”Gertrude jogou foraosseusgerâniosecomeçouacultivarverdurasna

suasacada.“Algumasdasminhasvizinhascriavamgalinhasecoelhosnasdelas. Uma tinha até uma cabra amarrada na arca para ter leite para obebê.”Nazonarural,asituaçãoeraligeiramentemelhor.NoChâteauSiran,por

exemplo, sempre houvera uma horta, mas à medida que a escassez dealimentosseagravou,elaassumiuumaimportânciamuitomaior,segundoMay-Eliane Miaihle de Lencquesaing. “Além dos vinhedos, nossas vidaspassaram a girar cada vez mais em torno do jardim. Nossa maiorpreocupaçãoerasempreojardim.”

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Levantamo-nos todasasmanhãsàs6h30min,nemumminutodepois [elaescreveu em seu diário] . Após fazer nossas camas e antes do café damanhã, regamos a horta. Nossa vida cotidiana émarcada por uma faltatotal de produtos básicos, pouco aquecimento, uma dieta muito restritasem nenhum açúcar, pouco pão, quase nenhuma carne, manteiga nãoexiste…Vivemosdeacordocomoritmodasestações.Acolheitadeameixaspara geléia levou muito pouco açúcar; é amarga e não dura muito.Raspamosmilhoparafazerumafarinhagrossaqueservedebaseàmaiorpartedanossacomida.Torramoscevadaparafazercaféfalso.

Era esse tipo de dieta e de estilo de vida que prevalecia por todaBordeaux.Muitosvinicultoresplantavammilhoemilheteentreosrenquesdevideirasparateralgumacoisacomquealimentarseusanimais.Parasealimentarem, alguns arrancaram videiras para abrir espaço para hortasmaiores.Masosolocascalhento,queeraperfeitoparaasvideirasporqueproporcionavaboadrenageme forçava as raízes a se aprofundarem, erainóspitoparaverduras.Enquantoasvideirascresciammelhorquantomaissofriam,asverdurastinhamdesermimadas.Umdia,aavóMiaihleresolveuquesuafamília,queandaratrabalhando

longos dias em seu vinhedo e na horta, merecia um pouco de mimotambém. Anunciou que iriam fazer um piquenique. Havia colhido algunstomateserabanetesnaquelamanhãeguardaraumpoucodepãodemilhoda noite anterior. Agora arrumou tudo numa cesta, com um pouco degeléiatambém.May-Elianeeasoutrascriançasmalpodiamesperarahoradecomeçar.Saltandoemsuasbicicletasseguiramumaestradasinuosaeempoeirada

que os levou além dos vinhedos e através de matas sombreadas depinheiros até o Château Cantemerle, a quase cinco quilômetros dedistância.Foiumpasseioagradável.Osolbrilhava,passarinhoscantavame, o melhor de tudo, não havia um alemão à vista. Meia hora depois,quando chegaram a Cantemerle, uma das mais antigas propriedades deBordeaux, todos estavam animados. Ochâteau era o local ideal para umaexcursão como aquela, cercado por altos carvalhos e um parque grande,adorável.Osadultostagarelaramsobreotempo,seusvinhedoseaguerra,enquanto as crianças brincaram decache-cache (esconde-esconde) eoutrosjogos.Atéoalmoçofoiumaespéciedebrincadeira.

Começamos correndo para todo lado atrás de rãs [May-Eliane escreveuemseudiário].Foiissoquecomemos:rãs.Bastoucorrerporalieapanhá-

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lasdochão.

Algumasbrincadeiraserammaissériasqueoutras.Noverãode1940aFrança foi invadida uma segunda vez, agora por uma praga da batatachamadadorífero.A“invasão”foiespecialmenteagudanaBorgonha,ondeimensos campos de batata foram atacados. Os alemães, que estavamexpedindobatatasfrancesasparaapátria, icaramirritadoscomofatodeos franceses ainda não terem erradicado a praga. Para resolver oproblema, os professores das escolas primárias receberam ordem deenviar seus alunos para catar insetos nos campos. Robert Drouhin selembradesuaprofessoradandofrascosparaeleeseuscolegasedizendo:“Vamosverquemcatamais.”Paraascrianças,eraumafestasaircorrendoda salade aulaparao campoe sepôr a arrancar os insetosdasbatatas.“No im de cada dia, nossa professora tinha de entregar os insetos quehavíamoscolhidoparaumsoldadoalemão”,disseRobert.“Nãoseioqueosalemãesteriamfeitosenãotivéssemoscolhidoinsetossuficientes.”Não demorou e os franceses, que chamavam os alemães de les Boches,

tinhamumnovoapelidoparaseusopressores: lesdoryphores.“Ja”,zombouum soldado ao ouvir o nome pejorativo, “somos mesmo osdoryphores.Vamoscomerasbatatastodasevocêsnãovãocomernenhuma.”Ou quase nenhuma. Na altura de 1942, disse um historiador, a

verdadeiravozdaFrançasetornara“oroncodoestômago”.Para aplacar a besta, lançava-se mão de quase tudo. Em Bordeaux, o

repórterdeumjornallocalestavaatravessandoaPraçaLaf iteacaminhodo trabalhoquandoparoude repente.Tudoparecia extraordinariamentequieto.Ondeestavamospombos?Começouacontar.Maistarde,escreveuno jornal: “A população de pombos despencou de 5.000 para 89.” Pigeonrôtihaviasetornadoapeçaderesistênciaemmuitasmesasbordelesas.Eissonãofoitudo.“Estávamos tão famintos que comemos os peixinhos dourados do

tanque”, lembrou um jovem americano que chegou à França em 1940.Varian Fry, que tinha trinta e dois anos, fora enviado para o porto deMarselha, na costa do Mediterrâneo, numamissão humanitária. A tarefaque lhe fora dada pelo Emergency Rescue Committee de Nova York eraajudarartistaseintelectuaisaescaparaosnazistas.Anotíciadesuaoperação,comapromessadedocumentosdeidentidade

falsos e fuga para o exterior, espalhou-se rapidamente, e pessoascomeçaram a fazer ila na escada que levava ao seu escritório.Mas tiraralguém do país clandestinamente levava tempo, e logo Fry tinha a casa

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cheia de pessoas para alimentar e proteger até que os arranjosnecessários pudessem ser feitos. Entre seus “hóspedes” estiveram MarcChagall, Marcel Duchamp, André Breton, Hannah Arendt e Max Ernst.Haveriaumtotaldemaisde1.500antesqueopróprioFrytambémtivessededeixaraFrança.“Oqueajudavamuitoeraovinho”,elecontou. “Àmedidaqueacomida

ia escasseando, nós o tomávamos cada vezmais. De vez em quando, nasnoitesdesábado,comprávamosdezoudozegarrafasdeChâteauneuf-du-Pape, Hermitage, Mercurey, Moulin-à-Vent, Juliénas, Chambertin, BonnesMaresouMusignyepassávamososerãobebendoecantando.”Ao longodos trezemeses seguintes, a situaçãodeteriorou-se. “Durante

váriosdias,nãotivemosnenhumpãoepraticamentenenhumacarne”,Fryescreveu num relato de suas experiências. Foi então que se lembraramdospeixinhosdouradosdo tanque. “Masopiorde tudo foiquese tornoutambémcadavezmaisdifícilencontrarvinho”,elelamentou.IssoestavaacontecendoatéemBordeaux,amaiorregiãodevinhosfinos

da Terra. “Os bordeleses pararam de tomar seu vinho!” exclamou umjornal.Elesnão tinhammuitaescolha.Comtantovinhosendorequisitado,muitos restaurantes limitaram a quantidade que serviam aos clientes.Alguns pararam de servir qualquer vinho, levando um cliente a dizer:“Temos de beber tanta água hoje emdia que istomais parece a Arca deNoé!”Masasrequisiçõesalemãseramapenasempartearazãodaescassezde

vinho.Muitosvinicultoresnãoestavammaisconseguindopôrseuvinhonomercado porque os alemães haviam con iscado seus caminhões. Os queaindatinhamveículosnãopodiamirmuitolongeporqueagasolinaestavaseveramenteracionada.Novas leis também reduziram a quantidade de vinho disponível. Os

vinicultores receberam ordem de destilar parte de seu vinho para fazercombustível e álcool industrial, de que os alemães precisavam comosolventeeanticongelanteparaseusveículosamotoretambémcomobaseparaseusexplosivos.Osqueproduziammaisde5.000hectolitrosdevinhoporanoforamobrigadosadestilarmetadedesuacolheita.Essasnormas—deparcomclimadesfavorável, faltademão-de-obrae

escassez de produtos químicos para o tratamento das videiras —asseguraram que a produção de vinho iria cair, e cair bruscamente. Em1940, aproduçãobaixouquase30%.Em1942, elamal chegou àmetadedoqueforaem1939.

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PRODUÇÃODEVINHOERENDIMENTODURANTEASEGUNDAGUERRAMUNDIAL(emhectolitros)

Ano Produção Rendimentoporhectare1939 69.015.071 46,21940 49.427.910 33,61941 47.585.638 32,71942 35.022.362 24,4

Entre os que foram drasticamente afetados estavam os Miaihle, quepossuíamcincovinhedosemBordeaux:osChâteauxSiran,Palmer,Pichon-Longueville-ComtessedeLalande,Ducru-Beaucaillou(até1943)eCoufran.“Mas há um velho ditado aqui”, relembrou May-Eliane anos depois.“Quantomaischâteaux você tem,maispobrevocêé.Comcertezanaqueletemponinguémtinhanenhumdinheiroeissonosincluía.”Mesmo antes da guerra, os vinhedos dos Miaihle, como tantos outros,

estavamempéssimascondiçõesporcausadarecessãodadécadade1920edascolheitasdemáqualidadedadécadade1930.Naprimaverade1942,EdouardMiaihle,paideMay-Eliane, informouà

famíliaqueelesnãoteriammaiscondiçõesdepagarseustrabalhadoreseteriam de vender um de seus vinhedos. Avisou também que teriam deextirparmuitasdesuasvideirasporquenãotinhamcomocuidardelas.Mas isso foi apenas o começo. Naquele ano, os alemães requisitaram

dezenasdemilharesdecavalos—30.000deumaúnicaregiãovinífera—para transportar soldados e material para o front. Louis, irmão deEdouard, recebeu ordem de levar todos os cavalos dos Miaihle para apraça em frente à prefeitura. Ficou transtornado mas engoliu em seco.Comduas famíliasde judeus italianosescondidasemumdoschâteaux dafamília,aúltimacoisaquequeriaerachamaratençãosobresi.Ao chegar, Louis achouapraça cheiade cavalospertencentes aoutros

vinicultores, os animais arremetendo e rinchando em seudescontentamentoporestaremapertadosnumespaçopequeno.Enquantovinicultores desconsolados seguravam as rédeas, alemães de canetas epranchetas em punho examinavam os animais cuidadosamente,inspecionando-lhes os dentes, batendo-lhes nos lancos, decidindo quaisdeles valia a pena tomar. Alguns tentaram enganar os alemães pondopedrasnoscascosdeseuscavalosparafazê-loscoxear.Finalmente o nome deMiaihle foi chamado. “São seus?” perguntou um

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o icial, dando uma olhadela nos seis cavalos que Louis segurava. Miaihleassentiu. O alemão começou a dar voltas, parando a certa altura paralevantar os cascos de um dos cavalos. Após fazer algumas anotações,observou:“Sãobons”,efezsinalaumoutrosoldadoparaqueoslevasse.“Aquilo quase matou tio Louis. Ele era apegadíssimo a seus cavalos”,

disse May-Eliane. Seu tio havia trabalhado longas horas com aquelesanimais,treinando-osparaandaremlinharetaentreasvideiraseapuxarcomaforçaexataparaquealâminadoaradopenetrasseosolopedregosoosu icienteparaarrancaraservasdaninhas,masnãotãoprofundamentequeasraízesdasvideiraspudessemserdanificadas.Enquantooutrosvinicultorestinhammulasouboisparasubstituirseus

cavalos,aosMiaihlesórestaramvacas.Eraumavisãolamentável.Asvacasresistiam às suas cangas, mugindo em protesto enquanto se esfalfavamparapuxaroaradoentreasvideiras. “Ah,aquelaspobresvacas, levavamumavidaterríveletinhamdedarleitetambém!”lembrouMay-Eliane.A perda de seus cavalos, no entanto, não foi o único problema que os

Miaihle tiveram de enfrentar. Não havia também sulfato de cobre. Asubstância pulvérea, por vezes chamada de vitríolo azul porque deixavatrabalhadores e vinicultores azuis quando pulverizada de maneiradescuidada,erausadaparacombaterooídioeomíldio,doenças fúngicasque atacavam videiras em anos úmidos. O produto químico praticamentedesaparecera do mercado depois que os alemães requisitaram cobre eoutrosmetaisparasuaindústriabélica.FoientãoqueLouisMiaihlepediuaseu ilho Jeanparadeixaraescola.

“Preciso da sua ajuda”, explicou. “Quero que ique em casa e trabalhecomigo.”Jean, com dezesseis anos, olhou bem para o pai e viu um homem

cansado que estava envelhecendo depressa demais, sua doença cardíacaexacerbadapelatensãodedoisanosdeocupaçãoalemã,doisanosdelutaparamanterafamíliaalimentadaeosvinhedosproduzindo.Pormaisquegostassedaescola,especialmentedasaulasdeciências,Jeansabiaquenãopodiarecusar.“Quequerqueeufaça?”perguntou.Seupairespondeu:“Descubraummeiodefazersulfatodecobre.”Noiníciodaocupação,osalemãeshaviampermitidoaosvignerons trocar

produtos de cobre por sulfato de cobre. Os vinicultores reviraram suascasas e adegas em busca de tudo quanto pudessem encontrar, ios decobre,potes epanelasvelhas epor imaté enfeites, quearrancavamdasparedes.Masessesistemadetrocatornara-serapidamenteimpraticávele

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osulfatodecobreacabara.Jeandebruçou-sesobre livroseoutraspublicaçõesàprocurade idéias.

A maior parte do que encontrou era risível. “Eis aqui como enfrentar aescassezde sulfato de cobre”, dizia o Bulletin InternationalduVin . “Trateas videiras com menos freqüência, reduza a dose, evite desperdíciodirigindoos pulverizadores commais cuidado, deixemulheres e criançasfazeremotrabalhoparacompensarafaltadetrabalhadoreshomens.”Frustrado,Jeanfezumavisitaaseuex-professordequímica,explicando

queprecisavaencontrarumamaneiradefazerdeztoneladasdesulfatodecobreacadaquatromeses.“Meuprofessorconheciatodotipodefórmulae icouanimadoparaexperimentá-las.”Antesquequalquercoisapudesseserexperimentada,porém,elestinhamdeacharcobre.Osalemãeshaviamcon iscado todo o metal em que haviam conseguido pôr as mãos emBordeaux, inclusive um grupo de estátuas de bronze comemorativas daRevolução Francesa, que icavam na Place Quinconces. Elas haviam sidofundidaseometalforaenviadoparaaAlemanha.Felizmente,a famíliadeJeantinhaumgrandeamigonocônsul-geralda

BélgicaemBordeaux.QuandoJeanlheexplicoudoqueprecisava,ocônsulconcordou em ajudar. A Bélgica ainda estava recebendo cobre de suascolôniasnaÁfrica.Emtrocadevinho,ocônsulassentiuemcontrabandearalgumcobreparaBordeauxemcaminhõesquetransportavamvinhoparaaBélgicaedelávoltavamcomgarrafas.Agora Jeaneseuprofessordequímicaestavamprontos.Montaramseu

“laboratóriomuito simples, primitivo” no Château Coufran, onde a famíliado menino morava. O velho galpão que usaram era longe o bastante dacasa principal para icar a salvo dos olhares curiosos de qualquerpassante.Foiumamáescolha.Em 1943, Coufran tornou-se de repente parte da zone interdite , uma

terra de ninguém que os alemães estabeleceram ao longo da costa deBordeaux como defesa contra uma invasão dos Aliados. Ordenaram aosMiaihlequedeixassemseu castelo e lá instalaramsoldados.De agora emdiante,disseramasautoridades,precisarãodeumpasseespecialparaviràpropriedade,atéparacuidardeseusvinhedos.MascomolaboratóriojámontadoemCoufraneosseusimplementoslá,

Jeanresolveuiradiantedequalquermaneira,transpondoaslinhasalemãsàsescondidasànoiteouseescondendono imdodiaemvezdeiremboraquandoo trabalhonosvinhedos terminava.O trabalhonoturnoajudavaaescondera fumaçaquesedesprendiado laboratórioeesteestavaauma

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distânciasu icientedacasaparaqueocheirodeenxofrenãochegasseaosnarizesalemães,contantoqueoventoestivessesoprandonadireçãocerta.Por algunsmeses, tudo correu tranqüilamente.Debruçado sobre tubos

deensaioeoutrosequipamentos,Jeanmisturavaácidosnítricoesulfúricoeaplicava issoaocobrequeacumulara.Empouco tempohavia feitoumanotávelquantidadedesulfatodecobre.Seupaiestavaimpressionado.Masentão, abruptamente,o fornecimentodecobrebelga foi sustado.O

cônsuldisseaJeanqueaquilosetornaraperigosodemais,queosalemãesestavamficandodesconfiadosequeocontrabandotinhadeserencerrado.Jean não sabia o que fazer — até que um dia avistou na rua um

ambulante que comprava ferro velho. O homem admitiu que conseguiaalgummetal“aquieali”e icariafelizemfornecercobreaJeanseestelhefornecessevinho.“Foinossopequenotratopegue-e-pague”,Jeanrecordoumaistarde.“Nãofiznenhumaperguntaenãodemososnossosnomes.”Oprincipalproblemadeleseralevarocobreparaolaboratório.Aúnica

saída era usar carros de gasogênio, carros comuns que, por causa daescassez de combustível, tinham sido convertidos para rodar com o gásproduzido por lenha em combustão. “Entrávamos em nossos carros emBordeauxepartíamosparaCoufran.Acadaencosta,mesmoaspequenas,tínhamos de sair para empurrar o carro”, disse Jean. “Não sei quantasvezesemcadaviagemtínhamosdepararepegarapicaretaparaquebrarocarvãoqueestavabloqueandoomotor.Aquelescarrosagasogênioeramhorríveis.Eramlentosdemaiseestávamossemprenervosos,temendoserparados e revistados pelos alemães,mesmo tendo passes para trabalharnosvinhedos.”Embora tivesse consciência dos riscos, Jean achava emocionante, até

empolgante, fazer sulfato de cobre debaixo do nariz dos alemães. “Naverdade eu queria estar envolvido na guerra e daquelamaneira tinha aimpressãodeestarmesmo.”Mas aconteceram duas coisas, quase simultaneamente, que levaram a

realidade da guerra para muito perto de Jean. Uma noite, quandotrabalhavanolaboratório,foiavisadoporumamigoqueseuambulantedeferro velho havia sido preso. Descobrira-se que o cobre que o homemvinhafornecendoaJeanhaviasidoroubadodeumdepósitodosalemães.Jean icouaterrorizado, semsaberoqueaconteceriaemseguida. Iriao

ambulante falar?Viriamosalemãesatrásdele?Haviasidopresoumavezpor estar na rua depois do toque de recolher e só fora solto porque umamigodeseupai,queeradeuma famíliaalemã, intercederaporele. “Foium momento de pânico absoluto”, disse Jean. “Não consegui dormir por

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váriosdiasefiqueiextremamentenervoso.”Quandosemanassepassaramenadaaconteceu,elecomeçouarelaxar.

Masnãopormuito tempo.Numdiademanhãzinha, quandoaindaestavano laboratório, Jean foi sobressaltado por uma explosão de bateriaantiaérea, seguida por um estrondo ensurdecedor. Após fecharrapidamente seu laboratório, saiu. Ali, no meio do vinhedo, estavam osdestroços em chamas de um avião americano.Minutos depois, latidos decães revelaram que patrulhas alemãs estavam saindo do castelo ecomeçandoaprocuraratripulaçãoabatida.Jeancorreudevoltaparao seu laboratórioe começouadesmontá-loo

mais rápido possível, escondendo peças no celeiro de feno e onde maispôde, chegando a enterrar partes no vinhedo. Depois partiusilenciosamenterumoaBordeaux.AcarreiradequímicodeJeanMiaihlechegaraaofim.

Deusfezohomem—Frágilcomoumabolha;Deusfezoamor—Oamorfezadesdita,Deusfezavideira—EstariaohomemapecarQuandofezovinhoParasuadesditaneleafogar?

Anônimo

Agoranãohaviavinhobastantenemparaisso,etudoqueogovernodeVichyfezsóagravouasdesditasdosvinicultores.Cada vez mais, eles viam o regime colaboracionista de Pétain como

intrometido e manipulador, mais ansioso por saciar a sede de vinho deBerlimdoqueemsatisfazerasnecessidadesdeseuprópriopovo.Para esticar as reservas cada vez mais minguadas de vinho, Vichy, a

pretexto de promover uma vida mais saudável, lançou uma cruzadaantialcoólica. Em certos dias, designados “sem álcool”, os bares erestauranteseramproibidosdevenderdrinquesalcoólicos.Apropagandadebebidaalcoólicafoiproibidae,pelaprimeiravezemtodosostempos,foiestabelecida na França uma idademínima para se beber; ixaram-na emquatorze anos. Quando o povo se queixava, Vichy, de maneira poucoconvincente, procurava justi icar suas medidas mostrando que uma dasrazõesporqueaFrançaperderaaguerraeraqueelatinhabaresdemais,

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umparacada80pessoas,enquantonaAlemanhahaviaumparacada270.Pressionado a satisfazer a demanda de vinho da Alemanha, Vichy

enredou-senumterrívelnó.Aomesmotempoemquetentavaconvenceropúblico francês a bebermenos, estava fazendo um enorme esforço paraconvenceros vinicultores aproduzirmais. Eles foram informadosdequepoderiam agora fazer vinho com variedades de uva “indesejáveis” ou“proibidas”.Foramtambém incentivadosaadicionaráguaaseuvinho.Osquetinhamcompromissocomaqualidadeficaramhorrorizados.Um novo esquema de arrecadação de receita foi igualmente

perturbador.DesesperadopordinheiroparapagaroscustosdaocupaçãoexigidospelaAlemanha,ogovernodeVichyimpôsumataxade20%sobretodoo vinhoqueos vinicultores vendiam.As lojas tinhamde acrescentaroutros20%quandorevendiamessevinhoaofreguêscomum.Comonãoédesurpreender,cadavezmenosvinhoeravendidonaslojasporqueagoraele estava caro demais para a maioria das pessoas. Os comerciantes devinhoperdiamdinheiroeosvinicultorestambém.Emconseqüência,ovinhocomeçoua luirnumanovadireção,paraum

lorescente mercado negro em que comerciantes e vinicultores podiamvender seu vinho “por baixo do pano”. Os amantes do vinho francêsapressaram-seemtirarvantagemeosalemãesnão icaramatrás.Apenasentre julho de 1942 e fevereiro de 1943, os alemães, cheios dos seusmarcossupervalorizados,comprarammaisdedezmilhõesdegarrafasdevinhonomercadonegro.O governo de Vichy icou furioso com a atividade domercado negro e

retaliou assumindo o controle total de tudo que se relacionava com acomercializaçãodovinho.Deagoraemdiante,advertiramasautoridades,nós decidiremos como, quando e onde o vinho deve ser expedido edistribuído.Oscidadãos individuaisreceberãocarnêsderacionamentoaopassoquecomercianteseexpedidoresreceberãocerti icadosdeaquisiçãoespeci icandoquevinhospodemcomprar.Parataparqualquerbrecha,asautoridades declararam também que os vinicultores perderiam umaprerrogativa de que desfrutavam desde tempos imemoriais: o direito deconservar grandes quantidades de vinho para “consumo familiar”, isentodeimpostos.Essevinhoerageralmentevendidoaamigos,proporcionandoaosprodutoresumapequenarendaextra.O negócio de vinhos francês estava em polvorosa. Quanto maior a

pressão de Vichy, maior a reação de vinicultores. O mercado negro narealidade cresceu. Em resposta, o governo desencadeou seu “Esquadrãoda Fraude”. Inspetores prenderam dúzias de suspeitos de conduzir

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operações fraudulentas com o vinho. Muitos outros foram postos sobinvestigação. Um único vinicultor foi acusado de pôr rótulos falsos em50.000garrafasdevinho.Claude Carrage, um vinicultor dos Mâconnais, no sul da Borgonha,

observoucomcrescenteconsternaçãooagravamentodarepressão.CarrageeradonodeumpequenovinhedopertodeVinzelles,umaárea

conhecida sobretudo por seu vinhos brancos secos, inclusive o Pouilly-Fuissé. Foi ali, entre os declives e aclives dosmontes gredosos da regiãoqueosmongesausteroseintelectuaisdomosteirodeCluny,noséculoXII,ensinaram pela primeira vez aos camponeses como plantar videiras ecuidardosseusvinhedos.Naquele tempo, os vinhos dos Mâconnais eram desconhecidos fora da

região e quase todo ele era consumido localmente. Por volta de 1660,porém, um vinicultor ousado e imaginativo chamou Claude Brosse edecidiumudarisso.Pondonumacarroçadoisbarrisdeseumelhorvinho,partiu de Mâcon com destino a Paris, a quatrocentos quilômetros dedistância,porumcaminhodescritocomo“aestradadaespadaàmão,ondeuma lutanada custava, e amortemuitasvezes acompanhavaaquedadeumlençoderenda”.BrossefezseutrajetoatéParisemsegurança,esuachegada,apósuma

viagem de ummês, despertou a atenção do Rei Sol da França. Luís XIVficoucuriosoacercadeumvinicultorqueseaventuraratãolongedecasaeaindamais curioso sobre o vinho dele. Quando Brosse lhe ofereceu umaprova, o rei aceitou de bom grado. Depois de alguns goles, o rei disse aBrosse que o vinho era muito bom, talvez não tão excelente quantoChambertin, ogrand seigneur da Borgonha, mas ainda assim muitosaboroso. “Acha que pode trazer mais dele a Paris?” o rei perguntou aBrosse.Quandoesterespondeuquepodia,omonarcafezumaencomendapara suas adegas. Desde então, os vinhos dos Mâconnais tornaram-seextremamenteconhecidosemuitoprocurados.EstaeraumahistóriaqueClaudeCarrageconheciabem.Queironia,ele

pensava;BrossefeztodoocaminhoatéPariscomseuvinhoecáestoueu,quatroséculosdepois, incapazsequerdelevarmeusvinhosatéafeiradeDijon,sóacentoevintequilômetrosdaqui.Emvezdesalteadores,tenhoosalemãesparameamedrontar.Paraprotegerseuvinho,Carrageescondeusuasmelhoressafrasnuma

minúscula cabana no meio de seu vinhedo. “Ninguém jamais teriaimaginadoquanto vinhopodia ser guardado atrásdas ferramentas edosfeixes de gravetos naquela cabaninha”, disse seu sobrinho. “Eu lhe

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asseguroqueelapareciamuitomaiorpordentrodoqueporfora!”Ovinhoestavaacondicionadoemsetepipas,“vinhosbrancosmaravilhosos,secosefrescos”, lembrouo sobrinho. “Eramdeumamarelopálido comummatizde verde. Ele me fez provar cada um deles. E a cada vez, brindávamos:‘EsteémaisumquePétainnãovaidarparaosboches!’”Masa fanfarronadadeCarrage logodeu lugaràcóleraeaodesespero.

“Ele icou forade si”, lembrou sua sobrinhaLucieAubrac. “SeumarechalPétain,‘vitoriosoemVerdun’,otraíraignominiosamente.”Aconteceu quando os inspetores do vinho de Vichy chegaram para

requisitar o estoque de vinho de Carrage para a produção de álcoolindustrial.“Quandoterminaram,derramaramumcopodeóleocombustívelemcadabarrilparaadulterarovinhoetorná-loimpróprioparaconsumo.Dessemodo,asseguravamsuaentrega.”Carrage icou em lágrimas. “O vinho na realidade não é nada”, disse.

“Mas as pipas! Elas estão aqui desde o tempo do meu pai. Quanto maisvelha a pipa,melhor o vinho. Elas estão perdidas. Aquele óleo fedorentodeixa um cheiro que não sai nunca. Agora elas só servem para lenha! Epensar — tudo isso só para mandar vinho para ser destilado e virarcombustívelparaosboches.Elespodemterosu icientepara fazertodoocaminho até a Rússia, mas não vai lhes sobrar nada para voltar — vãomorrer todos. Ah— aquele marechal é um ótimo homem! Merece levardozetiros.”Para Vichy e os alemães, esse incidente e outros parecidos tiveram

conseqüências imprevistas. “Mais do que qualquer argumento racional,maisdoquequalquerexplicaçãopatriótica”,disseasobrinhadeCarrage,“aqueles copos de óleo combustível adulterando um excelente Pouilly-FuisséjogaramosvinicultoresdosmontesMâconnaResistência.”

E não só os do Mâcon. Por toda a França, dos dois lados da Linha deDemarcação, grupos da Resistência brotavam como ervas daninhas novinhedo.Damesmamaneira,brotavaumahostilidadegenuínaaPétain.Atéentão,

a reprovação pública se dirigira sobretudo a seu governo e aosofregamente pró-nazista primeiro-ministro Pierre Laval. Agora, era opróprio velho chefe de Estado que estava sendo coberto de desprezo.Corriampiadassobresuadevassidão.(“Asúnicascoisasqueimportamsãosexo e comida”, ele havia dito.) Sua tendência a adormecer durantereuniõeseratambémridicularizada.ApóssuadesignaçãoparaaEspanha,

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Pétain fora apelidado “o conquistador”. Agora faziam-se referênciassarcásticasa“leconquisedort”(oidiotaquedorme).IrritadocomaspiadasealarmadocomumaResistênciamaismilitante,o

marechal de oitenta e seis anos voltou-se para os vinhedos do sul daFrança para desancar vignerons. Acusou-os de violar a lei e de afrontarsuaspolíticas,advertindoqueum“vento frio”estavasoprandoatravésdaFrança.Suaspalavrassurtirampoucoefeito.Opovoprestouatenção,contudo,quandoemnovembrode1942forças

alemãscruzaramaLinhadeDemarcaçãoeocuparamtodoopaís.Falandopelo rádio, Pétain convocou seus compatriotas a permanecerem unidos.Souseuguia,seuverdadeirolíder,disse-lhes.Ascoisasvãoseresolversetiveremféemmim.Masquandoaspessoasouvirama transmissãoseguinte,o resquíciode

fé que pudessem ter começou a murchar e a morrer. Desta vez, era oprimeiro-ministroLavalfalando.ComaguerraindomalparaBerlim—suaauradeinvencibilidadehaviasidoabalada,primeironocéu,naBatalhadaGrã-Bretanha,depoisnasareiasdaÁfricadoNortee agorana lamaenaneve da Rússia—, Laval viu uma oportunidade para si e a agarrou. Elesabiaqueasindústriasdeguerraalemãsestavamdesesperadaspormão-de-obra e que o povo francês estava ansioso pela devolução dosprisioneirosdeguerra.Pelorádio,Lavalanunciouque izeraumtrato:porcada três trabalhadores que se apresentassem voluntariamente para irparaaAlemanha,umprisioneirodeguerraseriatrazidodevolta.O planode Laval foi um iasco. Praticamente ninguém se ofereceu. “Eu

nãoqueriairtrabalharparaosalemães”,disseumvinicultor,expressandoos sentimentosdamaioria. “Aúltimacoisaqueeuqueriaera ir trabalharnaAlemanha.”Laval icou melindrado e os chefes nazistas em Berlim icaram

espumando. Laval resolveu lançar mão de todos os meios. No início de1943, anunciou a formação de batalhões de trabalhos forçados, umprogramachamadoServiceduTravailObligatoire,ouSTO.Peloprograma,homensentreasidadesdedezesseisasessentaanosseriamobrigados—nãoconvidados—airparaaAlemanha.Quemresistisseoutentassefugirseriaperseguidoeseveramentepunido.Pararespaldarsuaameaça,Lavalcriou uma força policial paramilitar chamada Milice. Armada pelos SS evestidaaoestilodaGestapo, suaespecialidadeeraa capturae torturaderecalcitrantes.Avisãodeseuspróprioscompatriotasenvergandocamisascáqui, boinas e gravatas pretas espalhava medo e ódio por toda apopulação.

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Quase 700.000 franceses se apresentaram para o STO quandoconvocados,entreelesumrapazdeVosne-Romanée,Henri Jayer,queiriase tornar um dos mais importantes vinicultores da França. “Eu tinhamulher e uma ilha bebê. Temi pelo que pudesse acontecer com minhafamília se não me apresentasse”, ele explicou. Jayer foi mandado paratrabalharnumafábricademotoresdesubmarinoemViena.(VáriosmesesdepoiselefugiuepassouorestodaguerraescondidonacasadeumprimopertodeVosne-Romanée.)Noinício,ostrabalhadoresdosvinhedosrecebiamdispensadoSTO,mas,

quando a necessidade de mão-de-obra da Alemanha aumentou e maispessoasfugiramparaaResistência,asdispensasforameliminadas.Foi então que Bernard de Nonancourt, seu irmão Maurice e vários

primos foram chamados comurgência ao escritório de seu tio na LansonChampagne,emReims.“Acreditamosqueogovernoestáprestesaconvocartodomundoparao

STO”, ele disse. “Vou falsi icar suas datas de nascimento para podertransformá-lostodosemaprendizes,jovensdemaisparaserconvocados.”Vinte outros trabalhadores na Lanson, idosos demais para serem

transformados em aprendizes, receberam ordem de se apresentar paraSTO. Maurice, o irmão de Bernard, que já estava envolvido com aResistência, decidiu ajudá-los. Por meio de seus contatos, icou sabendoqueumtremseriaenviadoparaosulparabuscarcarne.Os cheminots,ouferroviários,haviamconcordadoemdesligararefrigeraçãoemalgunsdosvagõesatéqueotremtivessecruzadoaLinhadeDemarcação.No dia marcado, pouco antes do alvorecer, Maurice transportou os

trabalhadoresatéaestaçãoferroviária,ondeosvagõesestavamàespera.Reuniu-os ali junto aos trilhos, e assegurou-lhes tranqüilamenteque tudoestavaorganizadoequeestavamemboasmãos.“AResistênciaestaráláeabriráasportas”,disse.“Elesjáprovidenciaramesconderijos.”Os homens subiram rapidamente os degraus e entraram nos vagões

aindagélidos,mas,no instanteemqueo tremestavaprestesapartir,umdelesentrouempânico.“Não,nãopossofazeristo”,disseeleaMaurice.“Oquevaiserdaminhafamília?”Mauriceimplorouquereconsiderasse,maslogo todo o grupo icara acovardado. “Temos ordem de nos apresentarpara o STO, temos de ir”, diziam. Um por um, saltaram do trem, algunsparando para se desculpar com Maurice, outros tão apavorados quecorreramparacasa.Maurice icou perturbado. A história daquela missão abortada iria

certamente transpirar e toda a sua família icaria em perigo. A única

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maneira de preservá-los e de salvar a própria pele, concluiu, era dar ofora, esconder-se e, com sorte, fugir para a Espanha. Mas a Gestapo foimaisrápida.Encontrouseurastroquaseimediatamenteeprendeu-o.

FoiummomentodecisivoparaBernard; soubeentãoque teriade entrarnalutacontraosalemães.“O Grande Charles já me havia inspirado”, ele disse. “Maurice e eu

ouvimosoapeloquedeGaullefezdeLondrespelorádio”,suaexortaçãoaopovodaFrançaem1940,dizendo-lhequeaguerranãoforaperdidaequeeledeveriaresistir.“Masagoraeusabiaquenãopodiaesperarmais.Tinhadevingarmeuirmão.”A meta de Bernard era ir para Londres e ingressar nas Forças

Francesas Livres. Sua mãe, contudo, estava atormentada. Seu maridomorrera em conseqüência da Primeira Guerra Mundial, depois Mauriceforacapturado.Aidéiadeperderumsegundo ilhoeramaisdoquepodiasuportar.“Elame implorou que não fosse,mas após algum tempo compreendeu

que era inútil”, disse Bernard. “Deu-me o endereço de alguns primosdistantes,duassolteironasmuitoidosas,quemoravamlogoaosuldaLinhadeDemarcação. Sabiaque elasmeacolheriamemeajudariam.”Umavezlá,seuplanoeraprosseguiratéGrenoble,deonde,aoquelhehaviamdito,aResistênciapoderialevá-loatéLondres.Era inverno quando partiu, primeiro escondido num caminhão

carregado de garrafas de champanhe vazias, depois andando a pé,evitandoestradasprincipaissemprequepossível.Quando inalmente se aproximou da Linha de Demarcação, Bernard

ouviuumapatrulha alemã se aproximando.Para se esconder,mergulhouno rio Creuse, mas a corrente era mais forte do que havia imaginado.Agarrandoumgalhoqueseprojetavadamargem, lutouparaseagüentarali até que os alemães tivessem passado. Por im, quando eles tinhamsumidodevista, soltou-seeavançoucuidadosamenteatéaoutramargemdo rio. Chegou, porém, sem as calças e os sapatos; tinham sidocompletamente arrancados. “Eu estava congelado e imundo dos pés àcabeça”,disseBernard,“masumacoisamesobrava:ofrascodeconhaquequemeu tio Victor Lansonme dera. Pensei: ‘Nunca haverá ummomentoemqueprecisemaisdisso’.”Umavezfortalecido,continuouseuestirão.Foi no meio da noite que Bernard chegou à cidadezinha onde suas

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primas idosasmoravam. “Aúnicapessoaquevi foi oboboda aldeia, queestava perambulando pelas ruas. Com a aparência que eu tinha, isso foiprovavelmente uma sorte. Perguntei-lhe: “Onde ica a casa das irmãs St.Julien?”Comalgumesforço,Bernardobteveainformaçãoeencaminhou-separa a casa, na orla da cidade. Eram três da madrugada quando elecomeçouabateràporta.“Asduasvelhinhasforamatéaporta,agarradasuma à outra e tremendo que nem varas verdes, terrivelmenteapavoradas”,lembrouBernard.“PensaramqueeueraomonstrodaLagoaNegra.”Depois de deixá-lo entrar e de lhe preparar um banho, as mulheres

foramaosótãoprocuraralgumacoisaparaBernardvestir.Aovoltar,tudoque traziameraumparde calções de sua avó. “‘Então este é o preçodaliberdade’,pensei,eosvesti.”Ao raiar do dia, o de Nonancourt de dois metros estava montado na

bicicleta de suas primas, pedalando rumo a Grenoble, ainda vestindo ocalçãodavovó.

Para Georges e Johnny Hugel, ingressar na Resistência nunca foi umaopção. Com aAlsácia anexada pela Alemanha, os dois irmãos não tinhamcomo escapar da sorte que aguardava todos os rapazes alsacianos: oingressonoexércitoalemão.Osque tentavamescapareramapanhadoseexecutados. Os poucos que conseguiam escapulir às mãos alemãs viamsuasfamíliaspresasedeportadasparacamposdeconcentração.“Nenhumdenósdesejavaserumsoldadoalemão,masnossa família já

estava em apuros com a Gestapo”, disse Georges. “Nunca teríamos feitoalgumacoisaquepudessepô-lanumasituaçãopior.”Os problemas dos Hugel haviam começado em 1936, quando as

Olimpíadas de Verão se realizaram em Berlim. O pai de Madame Hugel,Albert Zoll, cuja companhia o mandara a trabalho para a Alemanha,marcouaocasiãohasteandoasbandeiras francesaealemãdiantedesuacasa.Poucoamigodosnazistas,pôsabandeira francesadeliberadamenteacima.EmmenosdeumahoraaGestapochegou,advertindoqueamenosque as bandeiras fossem invertidas ele poderia ser levado ao quartel-general. Albert aquiesceu, dizendo que não pretendera fazer nenhuminsultoequesuasaçõesnãopassavamdeumgestodeboas-vindasparaosvisitantesdaOlimpíada.AGestaponãoprendeuAlbert,mas registrouemseus arquivos que aquela família de alsacianos era “francesa demais” edeviaseratentamentevigiada.

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Três anos depois, os Hugel tornaram-se objeto de uma vigilância maisrígida.Dessavez, foiduranteumacerimôniaemfrenteaoMonumentauxMorts em Riquewihr, em homenagem aos mortos na Primeira GuerraMundial. A data foi 14 de julho de 1939, dia da Tomada da Bastilha. AFrança e aAlemanha aindanão estavamemguerra,masHitler já estavaaquecendo os músculos, tendo devastado a Áustria e estando agora aameaçar o resto da Europa. Alguns de Riquewihr haviam expressadoabertamente suaadmiraçãopeloFührer,queixando-sedequeaTerceiraRepública francesaera fracaequeaFrançamereciaum lídermais forte.EssetipodecomentárioirritouoavôHugel,queeraprefeitodeRiquewihr.Quando chegou a hora de fazer seu discurso, ele investiu violentamente.Dardejando com os olhos a multidão reunida diante do monumento,apontou para o rio Reno e declarou: “Para aqueles de vocês que nãogostamdaFrança,aponteestáaberta!”Eles deixaram de ser vistos apenas como “franceses demais”; agora

eramconsideradostambémantinazistas.Atéo tempopareciaestarolhandodeesguelhaparaeles.Naquelemês

de setembro, quando a colheita começou, icou patente para os Hugel epara praticamente todo mundo que a safra de 1939 seria desastrosa.Chovera na maior parte do verão e as uvas, embora abundantes, nuncatinhamchegadoaamadurecer.TransportarasuvasparaoslagaresnãofoifácilporquesobraraaosHugelapenasumcavaloenenhumveículo.Seusoutros cavalos e todos os seus caminhões tinham sido requisitados peloexércitofrancês,queestavasemobilizandoparaenfrentarosalemães.Ao longo dos dois meses seguintes, Jean Hugel vigiou seu vinho

atentamente, registrando seu progresso enquanto ele fermentava empipas de madeira. No dia 21 de dezembro, foi novamente à adega parainspecionarseuvinho.Ficouhorrorizado.Estavamuitopiordoquetemia:a melhor pipa tinha apenas 8,4% de álcool, muito menos que o padrãomínimode11%elongedoníveldesejávelde12,5ou13%.“Ovinhoestavapéssimo”,disseJohnny.“Eraralo,diluído,opiorquejamaistínhamosfeito.”No ano seguinte, quando a Alsácia foi anexada, as autoridades alemãs

tornaramavidaaindamaisdi ícilparaosHugelao “bloquear” seuvinho,proibindo-os de vendê-lo até para comerciantes de vinho alemães. Comexceção de uma minúscula quantidade que foram autorizados a venderparaamigoserestauranteslocais,todoovinhotevedeserreservadoparao exército e amarinha alemães oupara certos líderes doTerceiroReich.Oso iciais nazistas, no entanto, não izeramnenhumapromessaquanto àdata em que comprariam o vinho, não especi icando sequer que

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quantidade desejariam. “Se eles nos diziam para enviar algumas caixasparao front russo, tínhamosde fazê-lo”,disse Johnny. “Mas foiassimquenos desembaraçamos da horrível safra de 1939. Como os alemães eramdesleixados ao redigir suas encomendas e nem sempre especi icavam asafraquequeriam,sempremandávamosode1939.”Esse foi o único vinho que tentaram vender. Com outros mercados

fechados eospreços ixados emníveis tãobaixosquemal compensavamos custos, os Hugel resolveram fazer um esforço e segurar seu vinho.“Começamos a inventar desculpas sempre que recebíamos algumaencomendados alemães”, disse Johnny. “Dizíamos: ‘Não temos rolhas’, ou‘Nossas garrafas acabaram’, ou ‘Não temos transporte’.” Na maioria dasvezes,asdesculpasfuncionavam.Mas os problemas dos Hugel com os alemães não terminaram por aí.

QuandoasautoridadesenviaramprisioneirosdeguerrapolonesesparaaAlsáciaafimdeminoraraescassezdemão-de-obranosvinhedos,osHugelforamdeixadosdefora.Comisso,Johnnyeseupaitinhamdefazeramaiorparte do trabalho. “Eu estava passando todo o meu tempo no vinhedo,trabalhando atrás de um cavalo e um arado. Naqueles dias quentes deverãoemqueocavalonãoqueriasemexerehaviamoscasportodolado,eraumpesadelo.”Pesadelo ainda pior ocorreu quando os alemães noti icaram o pai de

Johnnyquesua irmafamiliardevinhosdetrezentosanosdeidadeestavaprestesaserfechada.Nenhumarazãofoidada,masissotambémnãoerasegredo: Jean Hugel nunca ingressara no Partido Nazista. Os nazistashaviamenviado carta após carta,mas Jean sempre aspuserade lado, naesperança de poder manter o negócio de vinhos da família emfuncionamentosementrarparaopartido.Eledesejavatambémpreservara irma para seus ilhos. Agora, no entanto, dois deles haviam sidoconvocadosparaoexércitoalemão.Johnny tentou adiar sua convocação matriculando-se numa escola de

medicina,masfoidesignadoparaumaunidademédicanonortedaItália.AGeorges,queforaenviadoparaumaescoladetreinamentodeo iciais

depoisdeseu ingressonoexército, coubeumdestinomaisaterrador,umlugarparaondenenhumsoldadoalemãoqueriair:ofrontrusso.Mais de um milhão de alemães já haviam perecido lá e outros três

milhões estavam agora atolados numa guerra de atrito que cobrava altopreço em vidas humanas. Alguns dos sobreviventes haviam prevenidoGeorgesquantoaoqueesperar.“Comomeutreinamentoforabom,eumesentiapreparado”,Georgesdisse.“Nãoestavacommedo.”

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Sua família, no entanto, estava apavorada. Na véspera da partida dorapazsuamãesoluçouincontrolavelmente;seupaimaleracapazdefalar.Por im, seu avô se levantou de sua cadeira. Cruzando a sala lentamenteaté sua escrivaninha, abriu a gaveta e tirou a faixa tricolor que usaraquando, como prefeito de Riquewihr, pronunciara sua censura aosalsacianos pró-germânicos. “Tenho uma coisa que quero lhe dar”, disse.Pegando uma tesoura, cortou um pedaço da faixa com as cores azul,branco e vermelho da bandeira francesa e disse: “Isto é a coisa maisimportante que tenho. Leve-a sempre com você. Caso se veja em algumapuro,diga-lhesquevocêé francês,nãoalemão.”OHugelmaisvelhodeuainda a Georges duasmoedas de ouro. “Isto é tudo que posso fazer porvocê”,dissetristemente.GeorgeschegouàUcrânianodia15dejulhode1943.Emcontrastecom

a guerra no Ocidente, em que as regras militares convencionais seaplicavam, as coisas ali eramcompletamentediferentes.Hitler a chamarade “guerra de extermínio”. Conquistar a Rússia, ele declarara, seriamaisfácil do que conquistar a França.Mas havia subestimado a determinaçãodoExércitoVermelho.“Hitlerestavademente”,disseGeorges.“Haviaumpunhadodefanáticos

no nosso grupo que acreditava no que ele dizia, mas a maioria de nóspensava que ele estava demente. Não estávamos lutando por Hitler.Estávamosapenasesperandonosmantervivos.”Desde o dia em que chegaram, Georges e sua unidade se viram na

defensiva,quasesemprerecuando.Nadaeramotorizadoe tudo, inclusivecomidaemunição,tinhadesertransportadoporcavalo.Diaapósdiaelescaminhavam, grande parte do tempo encharcados sob uma chuva quetransformava as vastas planícies da Ucrânia num interminável mar delama. “Eram sessenta centímetros de lama, chegando-nos aos joelhos”,disse Georges. “Mal conseguíamos andar. Nossos cavalos e carroçasestavamsempreatolando.”Eportodaparteàvoltadeles,quaseemtodolugar,espalhava-seofedor

damorte.Atrocidadesetáticasdeterraarrasadapraticadasporambososexércitos haviam transformado a paisagem num ermo relegado acadáveres em putrefação. As piores atrocidades eram cometidas pelosEinsatzgruppe, comandos alemães que seguiam na esteira do exércitoalemão, arrebanhando metodicamente eslavos, judeus, ciganos ecomunistas ematando-os. “Era pior do que você imagina”, disse Georges,“aspessoas,osanimaisestiradosali…”“Você tinha de ter alguma coisa a que se agarrar, senão enlouquecia.”

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ParaGeorges,eraumamotonetaqueseupailhecompraracomopresentedeformaturaquandoterminaraocursosecundárioem1939.“Eutentavanãopensarsobreminhacasa,minhafamília,osvinhedos; issoerapenosodemais.OqueeufaziaerameconcentrarnamotonetaenumaviagemqueizeraaosAlpescomela.Reviviacadaquilômetro,visualizava tudoquevi.Asmontanhas,asflorestas,eranissoquetentavapensar.”Masnadapodiacancelaroshorrorescomqueelesedefrontouàmedida

que avançava a custo com seus homens para o oeste: as aldeiasincendiadaseabandonadas,oscorposdevítimaspendendodeárvoresoucadafalsosaquetinhamsidopenduradospelosSS.Aqueleseramospioresmomentos.Quandooscorposnãoestavammuitoaltos,Georgesordenavaaseushomensqueosapeassem.“Não sentíamos coisa alguma”, disseGeorges. “Estávamos entorpecidos,

incapazes de sentir qualquer emoção. Tínhamos andado tanto, mais de1.500quilômetros,eestávamosalémdaexaustão.”Mas conscientes o bastante para ouvir os gritos obsedantes de

guerrilheiros russos armados com alto-falantes, chamando-os deassassinoseincendiáriosporqueimarsuasaldeias.Quando possível, Georges e seus homens seguiam atrás de tanques,

atendo-se às trilhas que os veículos blindados sulcavam através da lama.Georgesaconselhouseushomensanãoseguirostanquesmuitodeperto,porque eles eram freqüentemente alvos de armas russas. Apesar de suaadvertência,muitossoldadoseramdescuidadosepagavamcomsuasvidas.Chegou setembro e a tepidez do verão desapareceu.Mas não a chuva.

Nunca a chuva. Se houve alguma diferença, é que ela se tornou maispesadaealamamaisprofunda.UmaúnicacoisamantinhaGeorgeseseushomens avançando: o conhecimento do que aconteceria se caíssem emmãos russas. “A rendição nunca foi uma escolha. Sabíamos o que elesfaziamcomosalemãesquecapturavam”,disseGeorges.Umatarde,Georgessentiuumaardêncianospés.Tentouignoraraquilo,

masadorpersistiueelefoiobrigadoaparar.Tirandoasbotas,descobriuque estavam cheias de sangue. Seus pés haviam sido perfurados porfragmentos de projéteis e infeccionado, e, em resultado das semanas decaminhadaatravésdeáguaelama,elefoitambémtomadoporsepticemia.Incapaz de andar, Georges foi deixado à beira da estrada. Sua unidadeseguiuemfrente.“Aquelefoimeumomentomaisapavorante.Umsoldadoferidonãotinha

nenhuma serventia para os russos e eu sabia que, seme encontrassem,estavamorto.”

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Georgesacaboutendoomaiorgolpedesortedesuavida.Umcaminhãoda Cruz Vermelha passou por ele e parou. Omotorista estava perdido eperguntouseelesabiaonde icavacertacidade,explicandoqueseucarroestava cheiode soldados feridosque estava levandoparaumhospital decampanha.Georgesrespondeuquesabiaonde icavaacidadeemostrariaocaminhosepudessepegarumacarona.OmotoristaconcordoueergueuGeorgesparaajáapinhadaambulância.Depois de algumas semanas num hospital de campanha, Georges foi

enviado de volta para a Alemanha, onde passou, recuperando-se, seusúltimosmesescomosoldadoalemão.NuncavoltouàRússia.

BernarddeNonancourtestavaentusiasmado;seupapelcomosoldadonasForçasFrancesasLivresestavaprestesacomeçar.Pelomenos,eraoqueesperava. Depois de dois meses na estrada, o jovem produtor dechampanhedeReimsfinalmentechegaraaGrenoble.Bernard olhou em volta, tentando se orientar. Antes que deixasse a

Champagne, alguns amigos de seu irmão lhe haviam dado o nome e oendereçodeumpadrequeeracontatodaResistência.Como não é de surpreender, o padre só teve uma coisa a dizer a

Bernard:“Váseconfessar,meurapaz,masváàcatedraldeNotre-Dameecerti ique-se de escolher o confessionário do Abbé Pierre Goundry.” EmseguidaopadredeuaBernarduma senhaqueeledeveria introduzirnalitaniadaconfissão.Ao chegar à Notre-Dame, Bernard percorreu rapidamente a catedral

gótica, con irmou que encontrara o confessionário certo e entrou na ilaatrásdeváriasoutraspessoasqueesperavamparaseconfessar.Quantasdelas, pensou, estão aqui pelamesma razão? Bernard repetiu sua senhamuitasemuitasvezesnasuamente,suaemoçãocrescendoàmedidaquese aproximava do confessionário. “É aqui que tudo realmente começa”,pensou.“EmapenaspoucosdiasestareinaInglaterracomdeGaulle.”Finalmente chegou a sua vez e ele entrou de mansinho na pequenina

cabine. “Padre,eupequei”, recitoudecor, “fazseisdiasquemeconfesseipelaúltimavez…”Eentãochegouomomentoeeleintroduziusuasenhanalitania:“Vamosnosencontrardenovo.”O Abbé Pierre inclinou-se, chegando mais perto da tela, e sussurrou

para Bernard que fosse vê-lo em sua casa naquela noite. Depoissurpreendeu Bernard continuando com a con issão, deixando o jovemprodutor de champanhe confuso, a procurar as palavras certas, e

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impacientando-sepelofimdoritual.Já estava escuro quando Bernard chegou à casa do Abbé Pierre, as

sombrasdanoitetornandoomomentoaindamaiseletrizanteaosolhosdeBernard.O padre, contudo, era um homem prático, sem queda pelas fantasias

românticasquedominavamdeNonancourt.“Muitobem”,eledisse,“agoradiga-meoquequer.”“Quero ir para a Inglaterra para lutar com de Gaulle”, Bernard

respondeuimediatamente.“Alto lá, vamos comcalma”, disseoAbbéPierre. “Queexperiência você

tem?Qualéseutreinamento?Queachaquepode fazer lá?”AsperguntasforamsesucedendoeBernardcomeçouaseinquietar.Teriacometidoumerro?Seriaesseopadrecerto?Poderiaelefazeralgumacoisaparaajudá-lo?SeriapelomenosdefatomembrodaResistência?OqueBernardnãosabiaeraqueoAbbéPierre,que iria se tornarum

dos principais cruzados humanitários da França, izera parte daResistênciadesdeaprimeirahora.Eraumdeseusorganizadoresoriginais,traçandoestratégias, trabalhandoparatirarpessoasdopaíserecrutandonovosmembros.“Veja,nãopretendodesencorajá-lo”,disseopadre, “masdeveentender

que é mais necessário aqui na França. Há muito trabalho a fazer eprecisamosdejovenscomovocê.”FoiummomentodesalentadorparaBernard.Elesentiuqueosonhoque

vieraalimentandodesdeafaladedeGaulletransmitidadeLondresestavase despedaçando, mas inalmente assentiu. “Certo, o que quer que eufaça?”perguntou.“Ésimples”,respondeuopadre. “Combaterosalemães.Vamostreiná-lo

parasermembrodeumcomando.”

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A

SEIS

Lobosàporta

RuaprincipaldeRiquewihremseguidaàanexaçãodaAlsáciaem1940.“Quasedanoiteparaodia,tudoquetinhasidofrancêstornou-sealemão.”

(JohnnyHugel)

ntigamente, na Borgonha, os lobos viviam às soltas.Rondavam pelas lorestas e, em tempos de escassez,

erravam pelas ruas de cidades e aldeias. Consta que, noséculoX, suas alcatéias eram tão grandes e selvagens queforçaram os duques da Borgonha a trocar Auxerre, suacapital fustigada pelo vento, pelo clima mais resguardadodeDijon.Eraamaldiçãodoslobos,declararamosduques;o

infortúnioseemboscavaondequerqueasferasfossemencontradas.

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Hojeemdia,muitoszombamdessashistórias,masosvelhos juramquesãoverdadeiras.MonsieurLeBrun,queviveuemAuxerrepoucoantesdaSegunda GuerraMundial, contou: “Os lobos costumavam nos importunarumbocado.Sempre foiassimnasregiõesdevinicultura.Comoosanimaisselvagens aprendem a comer tudo que encontram, tínhamos de vigiar asuvas.”Issoeraespecialmenteverdadeiroemtemposdeescassez.Aolongodos

séculos, as regiões pedregosas em que a uva é cultivada na França, cujosolo é impróprio para outros tipos de cultura, foram com freqüênciaassoladas pela fome e tornaram-se uma atração irresistível para lobosesfaimadosquesobreviviamcomendouvas.Masaspessoasnotavamalgode estranho. Segundo Monsieur Le Brun, as uvas tinham um efeitoeuforizantesobreoslobos.“Suspeitoqueoestômagodoloboéformadodetal modo que a fermentação dos sucos da fruta tem lugar rapidamentedepois que o animal come as uvas. Seja como for, o resultado éfreqüentementeaembriaguez.”Cenas como essas são raramente vistas hoje, já que amaior parte dos

lobos foiexterminada,masMonsieurLeBruncontaquese lembrade tervisto uma alcatéia bêbada correndo junto à sua casa. “Entraramexatamenteporesta rua”,disseele, apontandoa ruela calçadadepedrasque corria pelo meio da cidade. “Poucos dos que viram a cena irãoesquecê-la.”“Os lobos estavam todos embriagados. Era isso, para começar, que os

fazia entrarna cidade, e era tambémoque salvavaosmoradoresdepoisqueentravam.Estavambêbadosdemaisparalembrarqueeramlobos.”Omoradores,encolhidosemsuascabanas,espreitavamaparvalhadosos

animais que corriam pelas ruas, uivando e babando, antes de cair emletargia.“Elessimplesmentesedeitavamnarua,estuporadosdebêbados”,disse

MonsieurLeBrun.Então a gente da cidade, facas de caça em punho, deixava

cautelosamentesuascasas.Quandoos lobos tinhamcessadodesemover,matavam-nos todos. Aquele, segundo Le Brun, foi o último susto causadoporlobosnaBorgonha.Anãoser,talvez,pelasnoitesdetempestade,quandoachuvatamborila

nos telhados e o vento sibila chaminés abaixo. É nessas ocasiões que osmais velhos dizem ainda poder ouvir o uivar dos lobos àmedida que seaproximam cada vezmais dos portões das cidades e das portas dos quenelasvivem.

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...

A porta da casa na rue d’Enfer no 7, em Beaune, estremeceu. Ainda nãoeram seis da manhã e a família Drouhin dormia. Quando as pancadascomeçaram,todosacordaramimediatamente;sabiamquemera.Maurice não hesitou. En iando a mão debaixo da cama, agarrou uma

maleta.Elaforapreparadadoisanosantesnotemordesseexatomomento.Nãohouve tempoparadespedidas.Mauricemurmurou “Eu te amo”parasua mulher, que assentiu, e deixou o quarto, apressado. Desceusilenciosamente a escada, atravessando a casa fria, e entrouna adegadevinho.Suamulher,Pauline,foiatéajanela,abriuasfolhaseolhouparaarualá

embaixo. Vários o iciais da Gestapo acompanhados por uma dúzia desoldadosestavamparadosemfrenteàporta.“Queé?”elaperguntou.“Queremos falar com seu marido”, um deles gritou de volta. “Abra a

porta!”“Elenãoestáaqui”,Paulinerespondeucomtodaconvicção.“Bem,nessecaso,ondeestá?Precisamosvê-loimediatamente.”“Estáviajandoanegócios.AchoquedissealgumacoisasobreiraParis”,

respondeu Pauline, tentando ganhar omáximo de tempo possível para afuga domarido. Os alemães não acreditaram nela e pediram novamentequeabrisseaporta.Robert, deoito anos, quedormiranoquartodospais, nãoperdeuuma

dessaspalavras.Aoouviroqueamãedissera, saiudacamadegatinhas,avançoudemansinhorenteàparededoquarto,transpôsaportaeentrounoquartodasirmãs,queficavaaolado.As meninas já estavam acordadas e tentando ouvir o que estava

acontecendo. Afobado, Robert contou o que transpirara: “Mamãe disse àGestapo que papai foi a Paris a negócios”, contou ofegante. Depois, maisumavezdegatinhas,voltouàspressasparaoquartodospaiseseen iounacama.Aessaaltura,suamãehavia inalmenteconcordadoemdesceraotérreo

e deixar os homens da Gestapo entrar para revistar a casa. “Fique nacama”, admoestou Robert. A Gestapo andou pela casa, vasculhando cadaquarto, abrindo cada armário, empurrando as roupas para o lado,arrancandoos lençóis,espiandodebaixodascamaseatrásdasportas.Aoentrarnoquartodas ilhasdeDrouhin,perguntaram-lhesondeestavaseupai.“FoiparaParis”,elasresponderamnervosamente.

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Em seguida invadiram o quarto vizinho, onde Robert ingia estardormindo. “Onde está seu pai?” um deles perguntou, sacudindo-lhe oombro.Robert sentou-se, esfregou os olhos e olhou para aqueles homens

enormes à sua frente. Baixinho, respondeu: “Foi a Paris a negócios.” Oshomens da Gestapo icaram confusos. Um garotinho adormecido, queacabaradeacordar,comcertezadeviaestardizendoaverdade,pensaram.Vexado, o o icial fez um gesto de cabeça em direção à porta. “Estamosperdendoonossotempo,vamoscairforadaqui”,disse.Láembaixo,sobacasa,Mauriceacendeuumavelaecomeçouaavançar

pelo labirintode túneisquecompunhamsuaadega.Séculosantes,aqueleimensodédalosubterrâneo,cavadonarochadura,guardaraosvinhosdosduques de Borgonha e dos reis da França. Agora, esperavaMaurice, irialhe fornecer ummeio de fugir. Desde que fora libertado de uma prisãoalemã em 1941,Maurice tivera a certeza de quemais dia,menos dia, osalemães,queestavamconvencidosdequepertenciaàResistência, viriambuscá-lodenovo.Movidopelaterrívelcertezadequeseriamortoseopegassem,Maurice

procurou freneticamente certa portinha de madeira que o levaria àsegurança. Apesar da vela e de seu conhecimento da vasta adega, tinhadi iculdade em se orientar na escuridão. Em um dos quatro níveis decorredores que compunham sua adega, encontrou inalmente o queprocurava. Espanou as teias de aranha e se en iou atrás das pipas devinho; depois segurou a maçaneta da porta e puxou. Ela se abriu comfacilidade. Abaixando-se ligeiramente ao transpô-la, Maurice desceurapidamente os vários degraus que levavam à rua lá fora, a rue duParadis,ouruadoParaíso.Parouporalgunssegundos,observandoeouvindoatentamente.Nadase

mexia. Nenhum alemão à vista. Só o tênue clarão da aurora nomomentoemqueosprimeirosraiosdeluzpincelavamostelhadosantigosdacidadeadormecida.Mauricedesapareceunaquietudedoamanhecer.

...

OsMiaihlesearrepiavamaopensarnoqueaconteceriaseosjudeusquehaviam escondido no Château Palmer fossem descobertos. SabiammuitobemqueosalemãeshaviaminstaladoumcampodetrânsitoemMérignac,naperiferiadeBordeaux, eque trensabarrotadosde judeusde todasas

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idades e nacionalidades estavam agora sendo despachados da Gare St.JeandiretamenteparaAuschwitz.Sabiam também mais alguma coisa: não tinham mais tempo. Com

soldados alemães ocupando a parte principal do Palmer, tinham de tirarseusamigosdoanexoondeoshaviamescondidopoucoantesdachegadadeles.Como a maioria dos bordeleses, os Miaihle tinham esperado que as

coisascorressemdemodointeiramentediferente.Tinham icadoaliviadosquando o marechal Pétain assumira o poder como chefe de Estado e sesentidotranqüilizadoscomsuaspromessasdeavôdequeiriaprotegê-losservindo de pára-choque entre os franceses e os piores excessos dosalemães.Seussentimentostinhamcomeçadoamudar,porém,aover5.000judeus de Bordeaux sendo obrigados a usar a estrela-de-davi amarela.Tinham se sentido aindamais desalentados quando o governo de Pétaindespojara os judeus imigrantes e refugiados de seus direitos epropriedadesecomeçaraadeportá-los.Mas foi um episódio em 1942 que convenceu os Miaihle de que não

tinhamtempoaperder.Naquelemêsdejulho,osalemães,comaajudadapolíciafrancesa,desfecharamseuprimeirocercoemmassaaosjudeusemParis. Quatro mil crianças judias foram arrancadas dos pais earrebanhadasnumestádiodeParis,oVélodromed’Hiver.Foramdeixadaslá por cinco dias sem água, comida ou instalações sanitárias adequadas.Quando líderes eclesiásticos, pela primeira vez, se levantaram contra ocolaboracionismo de Vichy e pediram ao primeiro-ministro Laval queinterviesse, ele se recusou. O sofrimento das crianças não o afetava emnada.“Todaselasvãopartir”,disse.As crianças foram deportadas para o campo de trânsito de Drancy

juntamentecomoutras70.000vítimasjudias.Atéessemomento,osMiaihleeseusamigosjudeushaviamtidosorte.Os

alemãesnuncahaviamsuspeitadodequebemali,dooutroladodaparededacozinhadoChâteauPalmer,escondiam-seduasfamílias:quatroadultosetrêscrianças.As providências para a fuga deles icaram a cargo de Edouard e Louis

Miaihle. Os alemães estavam acostumados a ver os dois irmãos,especialmenteLouis,quevisitavaapropriedadequase todososdiasparainspecionarovinhoesupervisionarotrabalhonosvinhedos.Agora, no entanto, eles passaram a amiudar as visitas e a fazê-las em

horas variadas, a pretexto de inspecionar o vinhedo. Na realidade, suaintenção era assegurar que os alemães se acostumassem às suas idas e

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vindas.Freqüentemente, Louis caminhava para cima e para baixo entre os

renquesdevideiracomsuapodadeira, ingindopodarasplantas,parandoaquiealipara catar lagartosouexaminarasuvasembuscade sinaisdemíldio. Edouard geralmente estava junto, carregando o que as sentinelasalemãssupunhamserumacestadeferramentasdovinhedo.Debaixodasferramentas, no entanto, havia comida, roupa e outros itens necessáriosparaseusamigosjudeus.Quandoosalemãesdesapareciamdevista,LouiseEdouardatravessavamfurtivamenteasebee iamatéoanexo,en iandoasprovisõesparaosjudeusporumaescotilha.Transmitiamtambémasúltimasnotícias,enosúltimostemposamaioria

delasforamá.ExplicavamoqueestavaacontecendocomoutrosjudeusemBordeaux e aconselhavam os amigos a serem extremamente cautelosos,nãofazerembarulhoalgum.Omenorgritodeumacriançaosdenunciariaatodos.Edouardassegurava-lhesqueestavamelaborandoumplanoparatirá-los da França, mas isso demandaria algum tempo. “Procurem terpaciência”,dizia.Finalmente, um dia, os irmãos Miaihle tiveram algumas notícias boas

para dar. Tinham encontrado uma pessoa para falsi icar documentos deidentidadeparaseusamigos.TinhamtambémconseguidopassagensparaelesnumnavioquedeixariaaFrança.Isso fora conseguido graças à ajuda de um vizinho, um velho inválido,

con inadoàcadeiraderodasporumaartrite.Oupelomenoseraissoqueelequeriaqueosalemãespensassem.Narealidade,ogeneralBrutinel,umfranco-canadense e o icial do exército reformado, estava operando umarede de fuga a partir de sua casa no Château Lascombes, ajudandoaviadores britânicos cujos aviões tinham sidoderrubados a voltar para aInglaterra.EdouardMiaihle travara conhecimento comBrutinel logo depois que o

general adquirira Lascombes, no início da década de 1930. Seu mútuointeresse em vinho logo levou a uma estreita amizade. Muitas noites, osdois se reuniam na grande biblioteca do Château Lascombes paracomparar as características de vinhos e grandes safras que haviamtomado.Quasesempreessaconversaeraregadaporumagarrafaespecialdevinho.Com freqüência, no entanto, suas discussões iammuito além do vinho,

para incluir assuntos como arte, política, guerra e as últimas notícias daBBC.Emmuitasdessasocasiões,Edouarderaacompanhadoporsua ilhaMay-Eliane.ElaselembradeouvirmaravilhadaogeneralBrutinel,“aquele

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homembrilhante,extremamenteculto”,descreversua iloso iadevidaeacrueldadecomqueossereshumanosporvezessetratamunsaosoutros.“Muitasvezesohomemsecomportacomoloboparacomoutroshomens”,elaselembradetê-loouvidodizer.“Issopodeserverdade?”May-Eliane sussurroupara seupai. “Sim”, ele

respondeucomtristeza.Afugados judeus italianosdoChâteauPalmeraconteceuànoite.Louis,

quemorava no Château Coufran, encontrou-se com Edouard no ChâteauSiran,ondeorestoda famíliaMiaihleestavamorandonaépoca.Tomandodois carros, os irmãos transpuseram os três quilômetros até o Palmer eestacionaram na sombra, a alguma distância do castelo. Em seguida osMiaihle rastejaram pelo terreno até o anexo e bateram na escotilha. Asduas famílias estavam prontas. Rápida e silenciosamente, começaram apassarsuabagagematravésdapequeninaabertura,antesdeseen iaremelesmesmosporela.Embora houvesse guardas alemães patrulhando o perímetro da

propriedade,nãohavianenhumàvista.Comgestosesussurros,osMiaihleguiaramositalianospeloterrenoatéosvinhedos,ondeoscarrosestavamestacionados. Com vozes abafadas, os irmãos contaram rapidamente aosseus amigos que seu destino era o porto de Bayonne, perto da fronteiracom a Espanha, onde providências haviam sido tomadas para queembarcassemnoúltimonaviocomdestinoàArgentina.Emseguidapartirame,avançandolentamenteedefaróisapagadospor

umaestradadeterraquecruzavaovinhedo,deixaramoChâteauPalmer.“Sempreme lembrarei daquelesdois carrospartindo edesaparecendo

na noite”, disse May-Eliane. “Pensávamos que talvez não conseguissem,quehavia80%dechancedequepapaietioLouisfossempresoselevadosparaumcampo.”

No inalde1943,os “lobos”estavamnovamentechegandomaisperto.Osalemães, dando-se conta de que a Resistência estava se tornando maiscombativa,estavamdecididosaesmagá-la.Exasperadoscomemboscadasquepareciamaguardaremcadaesquina,

retaliavamsempiedadenãosócontraaResistência,mascontraqualquerpessoa suspeitade apoiá-la.A guerraque a França conseguira evitar em1940 agora estava dentro do país. Fazendas eram queimadas, aldeiaseram arrasadas emilhares de pessoas eram executadas por pelotões defuzilamento.

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Nemmesmo os vinhedos estavammais a salvo. “Todos os dias quandocuidávamosdasnossasvideirasouvíamosocliquedori le”, contouAndréForeau, de Vouvray. Vignerons como Foreau, e amaioria das pessoas nazonarural,haviamsedesiludidocompletamentecomogovernodePétainesuas promessas não cumpridas. Ele fora incapaz de aliviar as condiçõesimplacáveis impostas pela ocupação e pouco izera para controlar asrequisiçõesdeumexércitoalemãocadavezmaispredatório.A“paciênciaheróica do camponês”, que omarechal Pétain certa vez louvara, havia seesgotado.Os vinicultores intensi icaram sua ajuda à Resistência permitindo que

suas propriedades fossem usadas para lançamento por pára-quedas,durante a noite, de dinheiro, armas e suprimentos, itens que estavamassumindo importância vital à medida que um número crescente defrancesesserecusavaaseapresentarparaoSTO.Entreabriledezembrode1943,cercade150.000homensestavamfugindodoSTO.Menosdeseismesesdepois,essenúmeromaisdoquedobrara.Muitosprocuravamrefúgiojuntoaosmaquis,escondendo-senasmatase

nos morros. Muitos outros eram acolhidos por vinicultores e outrosagricultores,queosescondiamemseusceleiroseadegas.Quando a Resistência icou mais arraigada na zona rural, os alemães

começaram a enviar patrulhas para vilas e aldeias que até então malhaviamsidotocadaspelaocupação.Jean-MichelChevreau,vinicultordeChançay,novaledoLoire,percebeu

issoimediatamente.Em1940,noiníciodaocupação,osalemãesraramentepassavam por sua aldeia. Quando o faziam, Jean-Michel e seus amigostratavamaquilocomobrincadeira,saindosorrateiramentedepoisdotoquede recolher e extraindo o vinho dos barris nos trens com destino àAlemanha. “Adorávamos estar sempre um passo à frente deles”, disseJean-Michel. “Cada vez que pensavam que tinham nos apanhado,aparecíamoscomalgumacoisanova.”Naalturade1943,tudomudara.Agorapatrulhaspesadamentearmadas

invadiam com regularidade Chançay e aldeias semelhantes. “Esses nãoeramosmesmos alemães que tínhamos conhecido em1940”, disse Jean-Michael. “Eramcruéis, imprevisíveis.”Praticamentecada francêsconheciaalguémquesofreranasmãosdosalemães,eummedoarraigadopassouafazerpartedesuasvidas.Os franceses inalmente se deram conta de que estavam enfrentando

um poder onipresente, disposto a esmagar o que não pudesse controlar.Segundo o historiador H.R. Kedward, “a cada semana que passava, a

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realidade de ser um país derrotado e ocupado forçava os franceses areavaliar suas reações iniciais aos alemães. Se antes havia sido comumreconhecer que os alemães se comportavam bem, agora a frase queexpressavaessefato, ‘lesAllemandssontcorrects’, tornava-serapidamenteumapiadademaugosto,eumressentimentosoturnotomouseulugar.”Ressentimento, emuitomais.Havia agora a convicção de que um erro,

um passo em falso, poderia resultar em tortura ou até em morte.“Tentamosvivernassombras”,disseJean-Michel.

Naquele ano, na escuridão de uma noite de dezembro, um caminhãosolitário serpenteou cautelosamente pela Montagne de Reims, naChampagne, rumo à cidade de Reims. O motorista, que conhecia bem aestrada,sevaliaomenospossíveldeseusfaróis.Passavamuitodahoradotoquederecolher.De repente, uma luz brilhou diante dele. Pestanejou várias vezes na

tentativa de ver o que estava acontecendo, mas a luz estava apontadadiretamente para ele. Depois veio um grito, num francês carregado desotaque,ordenando-lhequeparasse.Elepisounofreio.Um soldado alemão abriu a porta com um safanão e empurrou o

motorista para fora. Aonde você vai? Que está fazendo? As perguntas sesucediam rápida e furiosamente enquanto outros soldados convergiamparaocaminhãoecomeçavamarevistá-lo.Antesqueomotoristapudessedizerumapalavra,veioumgritodatraseiradoveículo.Umsoldadopulounochão,segurandoumabraçadadearmas.“Oqueéisto?”perguntouoo icial.Oaterrorizadomotoristaserecusoua

falar. Com um soco no seu estômago, o alemão repetiu a pergunta. Omotorista,sustentadoempépordoisoutrossoldados,dissequenadasabiasobreasarmas.Elesoarrastaramparaumoutroveículoeolevaramparao quartel-general da Gestapo emReims. Outros soldados os seguiram nocaminhãoqueelevieradirigindo.Sob tortura, o motorista disse que nada sabia sobre as armas, mas

confessouqueseupatrãoomandara“fazerumaentrega”equeestavasócumprindoordens.SeupatrãoeraomarquêsSuarezd’Aulan,quedirigiaaChampagne Piper-Heidsieck. A entrega consistia num enorme sortimentode armas, incluindo ri les, pistolas e granadas, que haviam sido lançadasde pára-quedas pela Resistência. As armas tinham sido jogadas numvinhedoqueaPiperpossuíapertodeAvize,naCôtedesBlancs, cercadetrintaquilômetrosdeReims.

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Comomuitosoutrosprodutoresdechampanhe,omarquêstransformarasua vasta adega num refúgio para a Resistência. Criara também ali umdepósito em que estocava armas que eram lançadas pelos Aliados e quedeveriamserentreguesaosmaquisquandoabatalhaparaalibertaçãodaFrançacomeçasse.Haviamuito que os alemães descon iavam que alguma coisa estava se

passando, mas nunca tinham sido capazes de prová-lo, em grande partegraças à natureza disciplinada e extremamente secreta das organizaçõesdaResistêncianaChampagne.Comadetençãoecon issãodomotoristadaPiper-Heidsieck,tinhamagoraaprovadequeprecisavam.Bemcedonamanhã seguinte, soldados e aGestapo, transportadospor

um comboio de veículos, tomaram de assalto a sede da Piper-Heidsieck.Nãosederamaotrabalhodebateràporta;entraramderoldão,querendosaber onde estava Monsieur Suarez d’Aulan. Um empregado da Piperrespondeu que o marquês não estava lá, fora fazer montanhismo nosAlpes. Os alemães começaram a revistar o prédio. Descobriram grandequantidade de armas escondida nas adegas,mas nem sombra de Suarezd’Aulan.Furiosos, os homens da Gestapo correram à casa do marquês, na

esperança de capturar outrosmembros da família,mas alguém da Piperforaatéládezminutosanteseavisaraàfamíliaoqueestavaacontecendo.Quandoosalemãeschegaram,todos,inclusiveamulherdeSuarezd’Aulan,Yolande,tinhamfugido.Os alemães, no entanto, não estavam dispostos a desistir. Alguns dias

depois a mãe de Yolande morreu, e eles viram nisso uma novaoportunidade. Decidiram cercar a igreja durante o serviço fúnebre eprenderafamíliaquandoelasaísse.O serviço começou como planejado. Enquanto as preces se sucediam,

soldadostomaramposiçãoemtornoda igreja,guardandotodasasportas.Quando as exéquias terminaram, porém, apenas um membro da famíliadeixou o templo: Ghislaine, a ilha de quinze anos de idade de Suarezd’Aulan. O resto da família não comparecera, suspeitando que a Gestapopoderiatentaralgumacoisamasacreditandoquenãoimportunariamumamocinha.Mas a Gestapo icou tão irada que agarrou Ghislaine como refém,

advertindoquesóserialibertadaemtrocadospais.Ameninainsistiuquenão tinha idéia de onde eles estavam. O o icial respondeu que iriamesperar.GhislainefoijogadanaprisãodeChâlons-sur-Marne,ondeoutrasfigurasdaResistênciadaChampagneestavampresas.

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Toda a comunidade da Champagne icou revoltada. Assediaram osalemãescomcartasdeprotesto.Alguns,arriscando-seapunição imediataepossívelprisão,foramàGestapoeexpressaramsuasqueixasdevivavoz.Até o prefeito de Paris, Pierre Taittinger, envolveu-se no caso, pedindo aintervençãodoreidaSuécia.Trêssemanasdepois,emfacedoscrescentesprotestosesemqualquer

pistadafamíliadeGhislaine,osalemãesfinalmenteasoltaram.Nessaaltura,seupai,umpilotoexperiente,foraparaArgeleingressara

numesquadrãodecombate.AmãeencontrourefúgiojuntoaosmaquisnaregiãodeVercours,nolestedaFrança.Acasadechampanhedafamília,contudo,foipostasobocontroledireto

dos alemães. A pessoa encarregada de sua direção foi oweinführer OttoKlaebisch.

Até pequenos produtores comoHenri Billiot estavam sentindo a pressão.Billiot, que possuía uma vinha de cerca de dois hectares perto deAmbonnay,vendiasuasuvasparaasgrandescasasdechampanhe.Comopaidoenteeoavôparalisadoporumderrame,Henri,quetinhadezesseteanos,tinhadecuidardafamíliatoda.Issoincluíaseuscincoirmãoseirmãsmenores,seuspaisedoiscasaisdeavósidosos,alémdeumatiacomtrêsilhos.Seutio,umo icialdoexércitofrancês,foramandadoparaumcamponaAlemanhaapósserecusaratrabalharparaosalemães.“Minha juventude não foi nada divertida”, disse Henri. “Eu trabalhava

vinteequatrohoraspordianoesforçodealimentarminhafamília.Nuncatinhaferiadosoufinsdesemana.”Mastinhaumcavalo.PoucosprodutoresdaChampagnepossuíamtanto,

pois a maioria dos cavalos fora requisitada pelos alemães. Os Billiot sócontinuavamcomoseuporcausadoavôparcialmenteparalíticodeHenri.Quando os alemães foram requisitar o animal, o avô Billiot havia seplantado em sua cadeira de rodas na frente do estábulo e se recusado aarredarpé.Brandindosuabengalanacaradoo icialalemão,oavôBilliotberrou: “Não vão pegar meu cavalo. Caiam fora daqui!” A explosãosurpreendeu o o icial, que rosnoude volta: “O senhor é francês demais!”Dandomeia-volta,eleeosoutrosalemãesatravessaramoquintalpisandoduroebateramagrandeportademadeiraaosair.Graças à obstinação do avô, Henri teve condições de reunir seus

recursosaosdeumvizinhoquetambémconseguiraconservarumcavalo.Comdois cavalos, o trabalho no vinhedo icoumais fácil. Outras áreas da

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vidadeHenri,porém,estavamficandomuitomaiscomplicadas.Os alemães, que haviam aberto uma escola de treinamento de o iciais

pertodeAmbonnay,anunciaramqueestavamrequisitandopartedacasadeBilliotparaalojaralgunsdeseussoldados.Maisoumenosnamesmaépoca,Denise,irmãdeHenri,revelou-lheque

vinhatrabalhandocomaResistência.Agora,disseela,aResistênciaestavaquerendo saber se Henri estaria disposto a se envolver, ingressando noService des Renseignements, ou Serviço de Informação. Em outraspalavras, tornar-se um espião. Denise disse a Henri que a Resistência oconsiderava bemquali icado, pois conhecia os vinhedos e passava longashoras trabalhando neles todos os dias ou percorrendo as picadas paracimaeparabaixodebicicletapara inspecionar as videiras. Seria simplespara Henri, sugeriu Denise, ir apenas um pouco adiante e veri icartambémasidasevindasdosalemães,edepois,umavezporsemana,subirdebicicletaaencostadaMontagnedeReimsepassarsuas informaçõesaumcontato.Pareceu empolgante. Como muitos de seus amigos, Henri queria se

envolvernaguerraefazeralgumacoisaparaajudarseupaís.Aocontráriodeles, não pudera fugir para ingressar nas Forças Francesas Livres porcausa de suas obrigações em casa. O serviço de espião parecia perfeito.Henriaceitoucomentusiasmo.Etudocorreubematéoinvernode1944.Nevascaspesadascon inaram

praticamentetodomundoemcasae impediramHenrideseaventurardoladodeforaparamonitorartropasalemãseseencontrarcomseucontato.Parapiorarascoisas,soldadosalemãeshaviamsemudadoparaacasadosBilliot.Henri fazia um grande esforço para esperar o momento propício e se

concentrounoseunegócio.Comooutrosprodutores,andavapensandoemfazer seu próprio champanhe. Suas uvas eram de excelente qualidade esemprehaviamsidovendidasabompreço,portanto,porquenão?Antes que pudesse experimentar, porém, sua irmã chegou com outra

mensagem da Resistência. “Vá a Bouzy imediatamente”, ela disse. “Seucontatoquervê-lo.”Apesar da escuridão e da neve profunda, Henri pegou sua bicicleta e

pedalouváriosquilômetrosatéolocaldoencontro,umterrenobatidopeloventonomeiodeumvinhedo.Alioaguardavamseucontato,umcaminhãoe uma pequenamontanha de sacos de aniagem cheios de batatas. Perto,estavam quatro aviadores americanos cujos aviões haviam sido abatidos.Cadaumdelesseguravaumsacovazio.

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Antes que Henri pudesse perguntar o que estava acontecendo, seucontato apontou para os americanos e disse: “En ie esses camaradas nosseussacosevamoscarregarestecaminhãoantesquealguémnosveja.”Osquatro americanos subiram na carroceria e, com a ajuda de Henri, seen iaramdentrodos sacos.DepoisHenri e seu contatopuxaramos sacoscombatataparacimadocaminhãoeosempilharamsobreosaviadoresatéescondê-losporcompleto.Henrifoiinstruídoalevá-losparaAmbonnayeescondê-lospordoisdias.

UmaoutrapessoadaResistênciachegariaentãoeosajudariaafugirparaaEspanha.Henri jogou sua bicicleta na traseira do caminhão e deu partida no

motor.Pararadenevareestavacomeçandoaclarear.Quandoocaminhãodescia lentamente um monte de gelo, o rapaz avistou um acampamentoalemão.Essa foiapartemaisperigosadaviagem.SeHenri tivessedeserparadoemalgumlugar,eranaquele.Apesardeumimpulso fortíssimodeacelerar para passar pelos alemães, temeu não ter coragem. Prendeu ofôlego e continuou. Dois minutos depois, soltou um suspiro de alívio. Oacampamentoalemãoficaraparatrás.HenriseguiudiretoparaacasadeseuavônosarredoresdeAmbonnay

e explicou a situação. “É só por uns dois dias”, disse. O avô permitiu quedoisdosaviadoresficassememsuacasa.Aparada seguintedeHenri foi numcafépertencente aumamigo, que

concordou em esconder outro dos americanos num quarto bem em cimadoestabelecimento.Nessaalturaosol já iaaltoedeviahaversoldadosalemãesporali,mas

Henri ainda tinha outro aviador para esconder, um bombardeadorchamado Edmund Bairstow. Henri resolveu se arriscar. Fazendo a voltacom seu caminhão, rumou direto para casa. Sua mãe estava lá quandochegou. “Há algum alemão por aqui?” ele perguntou, apressando-se emexplicar que havia um aviador americano escondido em seu caminhão.Quandoelalheassegurouqueelestinhamsaído,Henricorreudevoltaaocaminhão, ajudouBairstow a sair do saco e o levou para dentro de casa.Pôsoamericanoemseuquarto,advertindo-oparaguardarsilêncioporquehaviasoldadosalemãesmorandonoquartoaolado.Deinício,Bairstownãocompreendeu. “Não havia ninguém que falasse inglês em Ambonnay eBairstow não falava francês”, lembrou Henri, “de modo que iquei umpouco apreensivo, mas imaginei que conseguiríamos nos virar por doisdias.”As apreensões de Henri, porém, haviam apenas começado. Dois dias

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depois,alguémdaResistênciachegouàsuacasaparadizerqueapessoaque deveria dar sumiço nos americanos tinha sido capturada pelosalemães e mandada para um campo de concentração. Henri recebeu aincumbência de tomar conta dos aviadores até que outras providênciaspudessemsertomadas.Era quase a pior notícia que Henri podia imaginar. Continuar

escondendoumamericanoemseuquartocomsoldadosalemãesalojadosna mesma casa era impensável. Ele resolveu entrar em contato com aúnica outra pessoa daResistência que conhecia, um cirurgião, que talvezpudesse ajudá-lo. Antes que pudesse chegar à casa do cirurgião, porém,Henri icou sabendo que a Gestapo chegara lá antes, arrastara o homemparaforadesuacasaeofuzilara.Henrientrouemdesespero,temendoqueaGestapoestivessefechando

o cerco e fosse, em seguida, chegar à suaporta.Aomesmo tempo, comopassar dos dias, os quatro americanos estavam icando perturbados,frustrados por estarem con inados em espaços tão exíguos, sem terninguém com quem falar. Ed Bairstow era o que mais sofria. “Estavaincrivelmentedeprimidoechoravaotempotodo”,disseHenri.“Temiaquetodososhomensemseuaviãotivessemsidomortoseestavadesesperadopornotícias.”Henrisentiuquenãotinhaescolha.Comaajudadeumamigo,arranjou

roupas civis para os aviadores e os acompanhou até a aldeia, para quepudessem se encontrar, recomendando que tivessem cuidado e nãofalassem inglês. Emgeral, eles seguiamas instruções.Devez emquando,como amigo deHenri servindode olheiro, os americanos se demoravamconsumindodrinquesefumandocigarrosnocafélocal.Vezporoutra,paragrandeconsternaçãodeHenri,umdelesescapuliaparaassistiràspartidasdefuteboldaaldeia.Certafeita,convenceramHenrialhestirarumretrato,posando na frente da casa dele e fazendo todo o possível para parecermuitofranceses.AquilonãoajudouaacalmarosnervosdeHenri.Uma noite, ele concluiu que a coisa mais segura a fazer era trazer os

homenspara jogarcartasemsuacasa.Osalemãeshaviamplanejadosair.TudocorreubematéqueDenise,airmãdeHenri,chegoucorrendo.“Vocêtem de tirá-los daqui”, disse ela, frenética. “Os alemães estão voltando!”Henri indicouaosamericanosqueo seguissem,opânicode sua irmãnãodeixando nenhuma dúvida em suas mentes de que alguma coisa estavaerrada. À frente dos homens, Henri saiu da casa, atravessou o quintal eentrouemsuaadegadevinho.Depoisvoltoucorrendoparacasa.Quase ao mesmo tempo, um grupo de soldados alemães entrou no

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quintal e rumoupara a casa. Eramarço e aviões aliadoshaviamacabadodefazerseusprimeirosbombardeiosàluzdodiaemBerlim.Os alemães comunicaram a Henri que dali a pouco Hitler faria um

importante pronunciamento e que pretendiam ouvi-lo no rádio da casa.Henri icouconsternado.Sabia-seláporquantotempooFühreririafalar?Por quanto tempo ele conseguiria manter os aviadores tranca iados naescuridãodasuacave?Espantosamente, sua irmã Denise estava sorrindo, serena. “Volto já”,

disseela.Os alemães, cerca de uma dúzia, puseram suas cadeiras em volta da

mesa e começaram a tentar sintonizar a transmissão. Tudo queconseguiramfoiestáticaeruídosestranhos.MinutosdepoisDeniseestavadevoltaedeuumapertotranqüilizadornamãodeHenri.Osalemãesestavamperplexos.Nãoconseguiampegar coisaalgumano

rádio. Henri, também perplexo, dizia que ouvira rádio apenas cerca deuma hora antes. Um dos soldados era especialista em comunicações ecomeçouaexaminaroaparelho.“Nãohánadadeerradocomele;parece-meemperfeitoestado”,disse.Os alemães consultaram seus relógios. O discurso de Hitler estava

prestesacomeçar.Depoisderemexerosbotõesdorádioumaúltimavez,os alemães se levantaram e anunciaram que iriam ouvir o discurso emoutro lugar. Quando estavam saindo, Henri ouviu um deles dizer: “A inalqueimportânciatemisso?OFührerémaluco.”“Não consigo entender”, Henri disse a Denise. “O rádio estava

funcionandoperfeitamente.”“Estava”, disse ela, “mas isso foi antes que eu retirasse uma peça de

chumbo do contador de eletricidade. A gente aprende algumas coisas naResistência.”Nodia seguinte,Henri foi ao café paradizer a seu amigoque a tensão

estava sendo excessiva. Seu vinhedo precisava de sua atenção e erapreciso fazer alguma coisa com relação aos quatro americanos; eles jáestavamláhaviamaisdeummês.Oamigorespondeuquesouberaqueumcerto Monsieur Joly, de Reims, estava trabalhando para a Resistência;provavelmenteelepoderiaajudar.HenrieoamigopegaramsuasbicicletaserumaramparaacasadeJoly,

acercadetrintaquilômetrosdedistância.Quandochegarameexplicaramseuproblema, Jolydissequenãosabiadoqueestavamfalando.Recusou-searecebê-losebateu-lhesaportanacara.Quandoestavamsevirandoparasair,umoutrohomemsaiudacasade

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Jolye,aopassarporeles,sussurrou-lhes:“Eleosreceberáestanoite.”Oencontronãofoisatisfatório.Jolyfoievasivo.Henrieoamigosentiram-

se desalentados ao fazer a longa e perigosa viagem de volta paraAmbonnaynoescuro,depoisdotoquederecolher.Menosdeumasemanadepois,contudo,umferroviáriobateuàportade

Henri e declarou que estava lá para buscar os americanos. Eles tinhampassadoquarentaedoisdiasemAmbonnay.Depoisquepartiram,oexaustoBilliot foiparaseuquartoparadesabar

na cama. Lá, sobre seu travesseiro, achou duas notas de cem francos.Numa delas havia umamensagem escrita amão: “Caro Henri, a você eudevo muitíssimo mais do que as palavras podem expressar. Possa seufuturosertãoluminosoquantoosdiasquepasseicomvocê.”EstavaassinadaEdmundN.Bairstow.

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G

SETE

Afête

“EstanoitenosdaráensejopararelembrarcomregozijoumdostesourosmaispurosdaFrança,nossovinho,eparamitigarosofrimentoemquetivemosdeviverportantotempo.”(Mensagema

prisioneirosdeguerra,doprogramadafestadovinhodeGastonHuet,1943)

aston Huet sentiu vontade de vomitar. Se tivessealgumacoisanoestômago,provavelmenteoteriafeito.

A lorando do prato de sopa à sua frente, um percevejogigante o itava. Sentiu-se tentado a empurrar a tigela,depois pensou melhor. Mergulhou a colher na substânciarala e leitosa e jogou o inseto no chão com um piparote.Depoisfechouosolhosetomouasopa.

O que não teria dado por um suculentopoulet rôti ourillettes de porcpara comer, regadosporumagarrafado seupróprio fragranteVouvray!Mas depois de mais de dois anos num campo de prisioneiros de guerraalemão,afantasiachegavaaserquaseinsuportável.

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Desdeodia17de junhode1940,quandoosportõesdoO lag IVD,naSilésia, se fecharam atrás dele após sua captura emCalais, a vida para ovinicultor de Vouvray não cessara de se deteriorar. Ele pesava setenta edoisquilosaochegar;agora,estavareduzidoaquarentaeoito.Quase o mesmo acontecera com os mais de 4.000 prisioneiros,

apinhados em vinte prédios de blocos de cimento, duas ileiras de dezdivididasporumaestreitafaixadeterraqueosprisioneiroschamavamdeHitlerstrasse, ou rua Hitler. Todo o complexo era cercado por torres devigilânciafortificadasecercasdearamefarpado.Correndopelocentrodecadaumdosprédioshaviauma iladepiasde

cimento.Dosdois ladosdelahavia ileirasemais ileirasdebeliches, comtrêscamascadaum.Oenchimentodoscolchõeseradeaparasdemadeirae,aforaumcobertorporcama,nãohaviaoutrascobertas.Asjanelaseramnuas,eassimtambémochãodecimento.UmdiaantesdachegadadeHuetao campo, os alemães haviam distribuído papel higiênico, um rolo porcaserna. Com cento e oitenta homens em cada uma, isso equivalia a umquadradoporpessoa.OO lag IVD era o que seunomedizia, umOffizier-Lager, ou campode

oficiais.PelaConvençãodeGenebra,osoficiaisqueeramfeitosprisioneirosdeviam ser abrigados e alimentados “não pior” do que as tropas que oscapturavam. Podiampraticar qualquer religião, estavamdesobrigados detrabalhoárduoepodiamse corresponder comsuas famílias e amigos. Sefossempegostentandofugir,nãodeveriamsersujeitosanadaalémdeummêsnumasolitária.Soturnoscomoeram,oscamposdeo iciaiserammuitomelhoresqueos

camposcomunsparaprisioneirosdeguerraenadaquesecomparasseaoscampos de concentração onde judeus, eslavos, ciganos — os que osnazistas chamavam deuntermenshen, ou subumanos — eram jogados.Uma vez livre de interrogatórios, um o icial prisioneiro de guerra nadatinha a fazer senão esperar pelo im da guerra. O tédio entorpecedor damente era o pior inimigo, mas a fome vinha logo atrás. Comida era umapreocupaçãoincessante.Gaston Huet acordou um dia com o café da manhã na cabeça. Mal

conseguia tragar a idéia: “panzermilch de novo”, um leite de soja diluídoqueeleeosoutrosprisioneirosrecebiamindefectivelmenteacadamanhãjunto com um bocadinho de pão. O almoço não seria melhor: caldo decarne,talvez,comumpoucodebatatacozidaesmagadanele.Aatraçãodojantar seria um nada de patê, carne moída de origem desconhecidaconsolidadaporumbocadodebanha.

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Amonotoniadodia foi interrompidaquandoumguardaalemãoentrouna caserna de Huet pouco antes do meio-dia e anunciou que chegaracorrespondênciaparaalgunsdosprisioneiros.Emboraasregrasdaguerraestipulassem que os o iciais podiam se corresponder com suas famílias,muitas vezes elas eram convenientemente ignoradas. Fazia semanas quenenhuma correspondência, que era sempre censurada, era entregue noO lagIVD.Dessavez,elaincluíaváriospacotes,todososquaishaviamsidorasgadoseinspecionadospelasautoridadesalemãs.Huet icou radiante quando seu nome foi chamado. Havia uma carta e

umpacotedesuamulher.Eleen iouacartanobolso,guardandoomelhorpara o im, e abriu a caixa. Dentro havia três ovos, envoltos em farinhapara não quebrar, a provisão que os prisioneiros de guerra maisapreciavam,poispodiaserusadadediversasmaneirasparafazerrendero parco alimento que recebiam. Huet esquadrinhou a farinha com osdedos,nãoquerendoperdernenhumaoutra coisaquepudesse tervindonopacote,comoumabarradesabãoouumcubodecaldo.Esseúltimoitemera algo que os censores alemães vigiavam com cuidado depois dedescobrir que vários prisioneiros tinham recebido mensagens secretasescritasnoversodopapelqueembalavaoscubinhos.Convencido de que não haviamais nada na farinha,Huet guardou sua

caixade comidanumadespensa trancada e se recolheu a seu catreparaler a carta.“Meu querido marido…” , começava ela, e Gaston foitransportado para um outro mundo, o mundo do lar, da família e dosamigos. Saboreou cada palavra e se demorou na descrição da ilha, queestava crescendo, tentando imaginar como estaria. Vira-a pela última vezemseuprimeiroaniversário.Nãopuderaverseusprimeirospassos,suasprimeiras palavras. Agora a menina tinha quase quatro anos e ele iriaperdermaisumaniversário.Notíciasdovinhedodafamíliaagravaramsuamelancolia.Poucoantesde

reconvocadoparaoserviçoativoem1938,Huetassumiraporcompletoadireção de Le Haut Lieu quando a saúde de seu pai, já frágil emdecorrência da Primeira Guerra Mundial, se deteriorara ainda mais. “Éuma trabalheira,mas as videiras estão bem”, escrevia amulher deHuet.Entre frases que o censor borrara de preto, Huet icou sabendo quechovera em Vouvray. A expressão mauvaises herbes, ou ervas daninhastambém sobressaía. Apesar das passagens censuradas, que eliminavampalavrasdamulher,Huetpodiaimaginarfacilmentequeaparênciateriaovinhedo. Como era o início do verão, sabia que as uvas ainda estariamverdesepequeninas,mas, senão tivesse chovidodemais,haveria chance

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de se colher uma safra decente. Ele ansiava por estar em casa para acolheita,masbemsabiaqueissoeraimpossível.En iando a carta de volta nobolso,Huet foi procurar seu amigoDaniel

Senard.Encontrou-oesticadoemseucatre.“Algumanotíciadecasa?”Huetperguntou. Senard, vinicultor de Aloxe-Corton, na Borgonha, sacudiu acabeça. Ao contrário de Huet, Senard não recebera nada. De cartasanteriores, contudo, ele sabia que soldados alemães haviam ocupado suacasa,pilhadosuaadegadevinhoeatéqueimadoalgunsmóveisantigosdafamíliaparaseaquecer.HuettransmitiuaSenardasnotíciasqueacabarade receber. A conversa logo se voltou para os problemas que osvinicultoresestavamenfrentandoemtodaaFrança.Nãodemoroueoutrosvigneronsdocampohaviamsejuntadoaeles.Do milhão e meio de soldados franceses que estavam de inhando em

campos de prisioneiros de guerra alemães, a maioria vinha de áreasrurais, o que signi icava que muitos, inclusive centenas no O lag IV D,estavam direta ou indiretamente ligados ao negócio de vinhos. Paraenfrentar os dias longos e entediantes, os vinicultores que estavam nocampohaviamformadogruposparapartilharnotíciasdeseusvinhedosecompararnotassobrepráticasdeviticultura.Foi durante um desses encontros de grupo que Huet surgiu com uma

idéiaque surpreendeua todos. “Vamos fazerumbanquetedevinho”, elepropôs.Aprincípio,ninguémdissenadaederepentetodomundofalouaomesmo tempo. Por im, alguémperguntou o óbvio: como vamos fazer umbanquete de vinho sem vinho? Huet confessou que não tinha nenhumarespostaimediata.“Mastenhoumaidéia.Deixem-mepensarsobreela.”Mais tarde, explicou o que tinha em mente para Senard e um outro

vinicultor amigo, André Cazes, proprietário do Château Lynch-Bages emBordeaux. “Posso resumi-la em duas palavras”, disse Gaston. “Mercadonegro.”Ele icara sabendo por uma equipe de operários da prisão que num

campopróximopara criminosos circulavam vinho e bebidas destiladas, oque era contra os regulamentos. “Vamos ameaçar dar o alarme”, disseHuet.“VocêssabemtãobemquantoeuqueocomandantedonossocampomorredemedodaGestapo.Talvezelenosdeixe trazeralgumvinhoparanósseprometermoscalarobico.”SenardeCazesconcordaramquevaliaapenatentar.Alguns dias depois os três prisioneiros enfrentaramo comandante. Ele

reagiunervosamente. “Onde conseguiramessa informação?Pelo amordeDeus,nãodigamaninguém!”Huetrespondeuqueelepoderiacontarcom

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o silêncio deles a um preço e passou a resumir o que ele e seus amigostinhamemmente.Deinícioocomandanterelutou,masaúltimacoisaquequeriaeragerar

problemaouchamaratençãosobresi.“Poderão ter esse vinho”, disse, “mas não vou ceder nem mais um

milímetro.Terãodeusarseusticketcolispararecebê-lo.”Estava se referindo às etiquetas que eram distribuídas entre os

prisioneiros franceses para que pudessem receber comida ou outrasprovisõesdecasa.Eramcomolicençasdeexpediçãoecadaprisioneirodeguerra recebia uma por mês para mandar para casa. Nenhum pacoteenviado de volta podia ter mais de cinco quilos, e tinha de vir com aetiqueta. Mesmo assim, não havia nenhuma garantia de que os pacoteschegariam aos destinatários e, quando chegavam, sempre tinham sidoabertoseinspecionadosantes.Huet e seus amigos saíram correndo do gabinete do comandante,

extasiados comomeninos no circo, cumprimentando-se uns aos outros eexclamando: “Conseguimos, vamos ternossovinho!”E voltarammaisquedepressaasuascasernasparadarasboasnovasecomeçaraplanejar.A notícia de sua vitória espalhou-se pelo campo mais depressa que

rumores de libertação. “É verdade?” perguntaram outros prisioneiros.Muitos icaram céticos e pensaramque fosseumabrincadeira.No imdodia, porém, a pergunta que quase todos estavam fazendo era: “Podemosajudar?”Huetnomeouumcomitê compostode representantesde cadaumadas

regiões viníferas. Foi calculado que precisariam de setecentas garrafas.Desse modo, cada prisioneiro receberia um copo. A meta era ter tudopronto até o outono de 1942, marcando sua festa de modo a quecoincidissecomacolheitadauvanaFrança.O trabalho passou a monopolizá-los. Depois de meses de tédio

implacável, agora tinham uma festa para planejar. Huet e os outrosmembros do comitê trabalhavam todo santo dia, anunciando que cadaprisioneiro com ligações com o negócio de vinhos deveria pedir que lhesenviassemtrêsgarrafasdecasa.Apóscálculosmeticulosos,convenceram-se de que um pacote com três garrafas icaria dentro do limite de cincoquilosimpostopelosalemãesparacadaum.Quando os primeiros pacotes de vinho começaram a chegar no inal

daquele verão, houve euforia no campo. “Isso vai mesmo acontecer”,pensaramosprisioneirosdeguerra.Foientãoqueascoisascomeçaramadesandar.

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A primeira dor de cabeça resultou de champanhe demais. Na época, amaior parte do champanhe era engarrafado em garrafas de oitentacentilitros,cincocentilitrosmaisqueasdosoutrosvinhos,oquesigni icavaquetodosospacotesdechampanhedestinadosaosprisioneirosexcediamligeiramenteolimitedecincoquilos.Ocomandantealemãoprometeraquenenhum pacote seria aberto, contanto que correspondesse àsespeci icações. Os que vinham da Champagne não o faziam, e guardasinflamadosdezelocaíamsobreeles.Coube a Huet dar a notícia. “Perdemos a maior parte do nosso

champanhe”, ele disse aos prisioneiros. “Os alemães que se apoderaramdos pacotes provavelmente beberam tudo que havia dentro.” Huetacrescentou que, sem o champanhe, não teriam vinho su iciente a tempoparaafesta,demodoqueteriamdeadiá-laporunsdoismeses.A comunicação foi um duro golpe. Fez-se um silêncio momentâneo

enquanto os outros prisioneiros absorviam o impacto de suas palavras.Todas aquelas etiquetas desperdiçadas. Conseguiriam vinho bastantealgumdia?Mashaviamuitomaiscoisasenvolvidasnaquilo.“Afestasigni icavatudoparanós”,Huetlembrouanosmaistarde,“ede

repentepareciaquetudonosestavasendotirado.”Esse sentimento de perda foi exacerbado por notícias chegadas da

França:asforçasalemãshaviamcruzadoaLinhadeDemarcaçãoepostoopaís inteiro sob ocupação. A correspondência vinda de casa, que fora nomelhordoscasosirregular,tornou-seaindamaiserrática.Àmedidaqueomoral afundava, a raiva começava a subir. Prisioneiros estendiam osbraços e gritavam “Heil Hitler!” para cada guarda que passava por eles.Construíram também uma Tombe d’Adolph, Túmulo de Adolf, e realizamum simulacro de serviço fúnebre junto a ele. Temendo uma escalada deproblemas,asautoridades jogaramcentenasdeprisioneirosdeguerranobloc des isolés, ou bloco de isolamento, acusando-os de alimentarsentimentos“antigermânicos”.Huetestavapreocupadotambém.Reunindoseucomitêda fêtedovinho,

declarou: “No interesse de todos, temos de seguir em frente com a festa.Mesmoquenão tenhamos tanto vinho comoqueríamos, temosde fazê-la.Vamosmarcarumadataemantê-la.”Adataqueescolheramfoiodia24dejaneirode1943,diadesãoVicente,opadroeirodosvinicultoresfranceses.Foi uma escolha inspirada, pois o inverno alemão chegara furioso. A

neve caía pesadamente e as temperaturas foram abaixo de zero, masquase ninguémnotou.Os prisioneiros de guerra estavamobcecados peloplanejamento do grande evento e todos queriam participar. Artistas se

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oferecerampara fazer cartazes emapas das diferentes regiões viníferas.Um grupo de teatro se propôs a encenar esquetes humorísticos sobrevinhos e até a fazer os trajes. Um padre que dirigia um coral do campodisse que iriam pôr seus hinários de lado e começar a ensaiar cançõesbáquicas.Um dia, quando Huet estava trabalhando no programa, um

representantedogrupodoscarpinteirosaproximou-sedele. “Quetalumaprensadelagar?Podemosconstruiromodelodeumaparavocê”,eledisse.Huetachouqueeraumaidéiaexcelente,masocorreu-lhequepoderiasercomplicado demais. A inal, onde conseguiriam a madeira? O carpinteirorespondeu que isso não era problema e que Huet estaria fazendo umgrande favor para eles permitindo que construíssem uma prensa. “Eles”,como Huet descobriu, eram cinco prisioneiros de guerra que haviamdecididofugir.Estavamcavandoumtúnelsubterrâneoeusandoripasdascamaspara escorá-lo.Aprensade lagar, disse o carpinteiro, iria explicarparaqualqueralemãodescon iadoporqueestavamdesaparecendoripasde todas as camas. Além disso, o barulho produzido na construção daprensaabafariaossonsdaescavaçãodotúnel.Huet achou graça,masnão se surpreendeu.Houveramuitas tentativas

de fuga do O lag IV D, várias delas bem-sucedidas. Como o diário doprisioneiro registrava, “tantos túneis estão sendo cavados que se tem aimpressãodeestarvivendonumformigueiro”.Atentativamaismemorávelocorrera quando cento e cinqüenta o iciais cavaram sob as latrinas umtúnel que ia até a mata, além do campo, mas não antes de assegurar acolaboração dos outros prisioneiros, que teriam de deixar de usar asinstalaçõesatéquetivessemescapado.A fuga era algoqueHuetnunca considerara. Comomuitosprisioneiros

deguerra,tinhamedodoqueosalemãespoderiamfazercomsuafamília.Osquetentavamfugireramgeralmentehomenssolteiros,semfamíliacomquesepreocupar.O oferecimento dos carpinteiros, no entanto, despertou o interesse de

Huet.Eledeudeombros.“Porquenão?Vãoemfrenteefaçamaprensa”,disse.Nessa altura, a noite de degustação de vinhos de Huet já havia se

transformadonum festival, comexposiçõese semináriosparacelebrarasglórias dos vinhos da França. Um pan leto distribuído por vignerons docampoproclamava:

Queremoscantarosoleabrisaquesopraatravésdosvinhedos.Queremos

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cantar o que os olhos não podem ver por trás do arame farpado e dosmurosdeste campo, e o quenão se pode imaginarque cresçaaqui, nestaterra dura, estéril, da planície silesiana. Queremos cantar o vinho paraestômagosobliteradoseinchadosportrêsanosdeáguaapenas.Queremosque nossa celebração seja como a uva que cresceu, amadureceu e foicolhidaembelezaegenerosidade.

Poucos dias antes da grande festa, os mais de 4.000 prisioneiros deguerradoO lag IVD foramsolicitadosa listar, emordemdepreferência,os vinhos que mais gostariam de tomar. Um borgonha? Bordeaux? Umvinho perfumado do Loire? As opções percorriam toda a gama, e logo osprisioneiros estavam trocando histórias sobre os vinhos que já tinhamtomado, perguntando aqui e ali quais eram as melhores safras e queregiãodaFrançaproduziaomelhorvinho.Todoshaviamsidosolicitadosaindicartrêsescolhas,paraocasodeaprimeiranãoestardisponível.Enquanto isso, Huet e seu comitê organizador foram para a despensa

trancadaecomeçaramacontarasgarrafasdevinho.Aoterminar,estavamdesolados.Haviaapenasseiscentasgarrafas,cemamenosdoquehaviamesperado. “Isto signi ica que uma garrafa terá de ser dividida entre setehomens”,Huetdisseaosoutros.“Vaiserumcopodevinhobempequeno.”Nodia24de janeiro, tudoestavaprontoparaa aberturadaQuinzaine

des Vins de France, as duas semanas de celebração do vinho. Enquantovignerons demonstravam como as prensas de lagar recém-construídasfuncionavam, cartazes coloridos retratando as glórias do vinho erampenduradosnasparedesdascasernas.Umatrupedeatorescomtrajesdepapel fazia o último ensaio do esquete que haviampreparado. O coro docampo se aquecia com algumas escalas e compassos da canção báquicaquehaviamaprendido:“Adeus,cestas,acolheitaterminou…”Sob toda essa atividade, cinco prisioneiros preparavam-se para fazer

suas despedidas. Dias de tempo excepcionalmente cálido em janeirohaviampermitidoqueterminassemseutúnelantesdoprevisto.Enquantocolegas vigiavam junto às janelas, os cinco homens arrastaram uma dascamasparaoladoeseen iaramnumburaconopiso.Cadaumapertavanamãoumpequeno jogodedisfarcesaoengatinharpelo túnelemdireçãoàmata, a cerca de cento e quinze metros de distância. Ali chegando,escondidos pelas árvores, os homens vestiram seus disfarces, fardasalemãsfeitasnocampo,quehaviamsidomoldadascomopapelãoemqueo vinho viera embalado.Na retaguarda, nas casernas, outros prisioneirosinspecionaramo terreno uma última vez pelas janelas para se assegurar

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dequenãohavia nenhumalemãopor perto e depois arrastarama camadevoltaparaolugar.Ao cair da noite, a atenção geral se voltou para omomento que todos

estavam antecipando. Um Gaston Huet jubiloso, dominado pelo alívio e aemoção, reuniu osmembros de seu comitê para lhes passar uma últimamensagem.“Chegouahora”,dissesimplesmente.AfêtedovinhofoirealizadanochamadoHalld’Information,nomedado

àcasernaondeosprimeirosplanosparaa soiréehaviamsidoconcebidos.Comooespaçoeralimitado—oprédiosópodiaconterduzentasetrintaecinco pessoas por vez —, decidiu-se que a celebração seria realizadadezessete vezes ao longo de vários dias de modo a acomodar todos osprisioneirosdeguerra.Naquela primeira noite, a atmosfera foi surrealista. Muitos dos

prisioneiros mal conseguiam acreditar no que estava acontecendo. Cadahomem,aochegaraseulugar,encontrouumpedacinhodepapelcomumamensagemdatilografadapresaàcadeira.

Esta noite nos dará ensejo de relembrar com regozijo um dos tesourosmais puros da França, nosso vinho, e a mitigar o sofrimento em quetivemosde viverpor tanto tempo.Uma festapara celebraro vinho?Não,não é apenas isso. É também uma celebração de nósmesmos e da nossasobrevivência.Comessepequenocopodevinhoquetomaremosjuntosestanoite, saborearemos não só um fruto raromas também a alegria de umcoraçãosaciado.

O fruto raro, no entanto, viria mais tarde. Primeiro, um dos oradoresdisse que gostaria de corrigir algum mal-entendido. “Alguns de vocêsalimentam a convicção de que não há sommais bonito nomundo que oespocar de uma rolha de champanhe”, ele disse. “Estão enganados. Ochampanhedeveserabertonãocomumestouroouestrépito,mascomumsussurro.”Quandooabrimosdeoutramaneira,advertiu,permitimosqueodióxido de carbono escape prematuramente e o resultado, “emboraespetacular,éemgeralumaporcaria.”Apresentando uma falsa garrafa de champanhe que havia sido

preparada para a demonstração, o orador anunciou que passaria a lhesmostrarcomosedeveriaabrirumagarrafadechampanhe.Sobosolhosdaatônita audiência, removeu cuidadosamente a cápsula de metal,desprendeuo aramequemantinha a rolhano lugar e passou a afrouxarsuavementearolha.“Lembrem-se”,repetiuparaosouvintes,“semprecom

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umsussurro.”Em instantes, contudo, era a audiência que estava sussurrando, depois

rindo alto. A rolha se recusava a se mover. Ele tentou de novo. Nadaaconteceu.Percebendoquenãohaviaoutro jeito,ele imprensouagarrafaentre os joelhos, agarrou o gargalo com a mão esquerda e empurrou arolhacomtodaasuaforça.Oestouromaispareceuumdisparodearmadefogo. Se houvesse alguma coisa na garrafa, teria sido preciso distribuirtoalhas à audiência. Encabulado, o orador disse: “Bem, vocês pegaram aidéia.”Osrisoseosaplausosaumentaramquandoogrupodeteatroentrouem

cena e começou a apresentar esquetes que retratavam a vida nosvinhedos. Os esquetes provocaram tantas gargalhadas que os guardasalemães foramveroqueestavaacontecendo.Felizmenteelesnãosabiamfrancêssuficienteparaentenderagíriaeopatoáregionalqueosvigneronsestavam usando, porque os esquetes eram muitas vezes rudes ezombavam dos alemães. Na maioria das vezes, os guardas apenassacudiamacabeçaeseafastavam.Averdadeiraestreladanoite,ovinho,veiono intervalo,masnãoantes

dealgumasobservaçõesintrodutóriasedepanegíricosdovinho.“Éfrancêssorrirecantar”,exclamouumorador.Outrodisseàaudiência:“Muitosdevocêsnãovêmderegiõesviníferas,

por isso esta noite queremos apresentá-los a toda a beleza e pureza dovinho.” Começou então a tecer loas às diferentes regiões viníferas daFrança. “Nós nos orgulhamos de cada uma delas”, disse. “Esta noiteviajaremoscomRabelaisatéasmargensdoLoire,visitaremosos chais deBordeaux e Cognac, espreguiçaremos às ondas luminosas de luz quebanhamosmontesdoLanguedocedoRoussillon,eocéuazuldaProvença,saborearemos os prazeres da Borgonha, o Reino dos Tastevins,caminharemos pela Champagne, a terra do Dom Pérignon, e sobre osmontes de Jurançon. Iremos mesmo até Suresnes, que não deveria seresquecidaemnenhumaturnêdovinho.”Gaston Huet, no entanto, não se esquecera do que todos estavam

esperandoeavançouatéocentrodopalco.“Jáchega”,disse. “Falarsobrevinhoéumacoisamaravilhosa,mastomá-loémuitomelhor.”A essas palavras, que foram quase abafadas por vivas, mesas foram

montadasegarrafasdevinhoforamtrazidas,cadagarrafaaserrepartidaentresetepessoas.Oshomenstinhamlevadoseuspróprioscopos,muitosdeleserambempequenos,embalagensdemostardaenviadadecasa.Huetinstouoshomensaacharemrapidamenteseusrespectivosgrupos,

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aqueles a que tinham sido destinados segundo os vinhos que haviamescolhido. “Tentamos fazer aquilo corretamente”, disse Huet. “Os vinhosquedeviamsergeladosforamdeixadosdoladodefora.Osquedeviamserservidos à temperatura ambiente foram levados para dentro umas duashorasantes.”Com tãopoucovinho, no entanto,Huet aconselhouoshomens anão se

afobar. “Dêem-se tempo de apreciar o que têm à sua frente”, disse.“Admire-o antesde levá-lo aos lábios, esse copodemostarda agora cheiodenéctar,edêem-setempoparalembrarquenestanoitenossointuitonãoéoutrosenãoglorificarumdenossosmaiorestesouros.”Poruminstante,foiquasecomoseosprisioneirosdeguerraestivessem

numacatedral, tãoprofundo,atéreverente, foiosilêncio.Depoisumgritode aplauso espontâneo se ergueu. “Não sei se alguma vezme sentimaisemocionado”,disseHuet.Depois que todos tinham sido servidos e a alegria estava no auge, o

padreeseucorotomaramcontadopalco,conduzindoosprisioneirosporanimadascançõesbáquicasealgumasáriasmelancólicasdaFrança.Huet se retirou para um canto da sala para saborear seu copinho de

mostarda de vinho. Deu um suspiro de satisfação. Era um vinho brancoseco do vale do Loire; não vinha do seu vinhedo,mas ainda assim traziaum gosto de casa. Olhou fundo sua cor esverdeado-dourada, depois sedeteveparaaspirar seuaroma, seubuquê loral comsugestõesde limão,pêra,maçãemel.Quandolevouocopoaos lábios,ovinicultorHuet faloumaisalto. “Hum,

umpouquinhoacidífero”,pensou.“Verdenopalatomédioeo inaléfraco.DuvidoqueasuvasdeCheninBlanctenhamficadobemmaduras.”Essa análise, contudo, durou apenas alguns breves segundos, pois de

repenteemergiuoHuetamantedovinho,eossaboresearomasdabebidaoenvolveram.Anosmaistarde,Huetrecordariaaquelemomentoetodootrabalhoque

tivera planejando e organizando o evento. “Ele salvou nossa sanidade”,disse. “Nãoseioque teríamos feito semaquela festa.Elanosdeualgumacoisaaquenosagarrar.Deu-nosumarazãoparalevantardemanhã,paraenfrentarcadadia.Osatosdeconversarsobrevinhoepartilhá-lo izeram-nossentirmaispertodecasa,emaisvivos.”Huetnãose lembrouexatamentedequevinhobebera,oudequesafra

era. “Não era nada de especial e enchia só um dedal”, contou, “mas eragloriosoeomelhorvinhoquejamaistomei.”

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“Omelhorvinhoquejamaistomei?Deixe-mepensar.”RogerRibaud estava esticado em seu catre noO lagXVIIA, um campo

deprisioneirosdeguerrapertodeEdelbach,naBaixaÁustria.EraodiadeNatalde1940eeleeseuscompanheirosdeprisãonãoconseguiampensaremoutracoisasenãosuascasasetudodequesentiamfalta.“TomamosumborgonhamaravilhosocomoperunoNatalpassado”,ele

contouaseuamigo,queestavasentadonaoutrapontadocatre. “EraumEchézeaux de 1937, claro na cormas de aroma pungente.Mas omelhorque já tomei? Não, não acho que tenha sido. Houve um…” E a conversarolavaenquantoosdoishomenspensavamsobreosvinhosquejátinhamtomadoeasocasiõesemqueissosedera.“Éissoqueconta”,disseRibaud.“Tudodependedecomquemecomque

você os toma. Nunca lhe aconteceu de tomar um rosé barato com umagarotaespecialepensar:‘Istoéomáximo!’?”Depoisqueseuamigoodeixou,Ribaudcontinuoudeitadoemseucatre,

itandootetoepensando.EraseuprimeiroNatallongedecasaeasolidãopareciaquaseinsuportável.Sonhar,contudo,nãoeraobastanteparalhepermitiratravessaraquele

melancólicodiadeinverno;assim,eleen iouamãoemseusacodeviagemepuxouumlápis.

Neste Natal de 1940, comecei a escrever um livrinho, num esforço paradissiparumpoucodatristezaemqueestamosvivendoepartilharalgumasdasesperançasaqueaindanosagarramosemnossocativeiro,deretornaraosnossoslareseàspessoasamadas,eaosvaloresquenossãomaiscaros.

Ribaud começou a fazer uma lista de vinhos franceses, todos em queconseguiapensar:algunseletinhaexperimentado,outrostinhaesperançadeexperimentar.Dividiu-osporregião:Borgonha,Bordeaux,Champagne,Alsácia,Loire.Classificou-ossegundosuafinura,ocorpoeobuquê.Nessa altura, o amigoestavadevolta espiando sobre seuombro. Ficou

impressionado,masdisse aRibaudque ele cometera alguns erros. “Vocêestá errado com relação aoNuits-Saint-Georges”, disse. “Ele émuitomaisencorpado.”A in lamadadiscussãodosdois logochamouaatençãodeváriosoutros

prisioneiros da Caserna IV, entre os quais o marquês Bertrand de Lur-Saluces, proprietário do famoso Château d’Yquem. Todos icaramfascinadoscomoqueRibaudestavaescrevendo.Enquanto a neve continuava a cair e o vento daqueles frios dias de

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inverno assobiava pelas frestas da parede de suas casernas, os homenspassaram a se reunir com freqüência cada vezmaior em torno da toscamesademadeiraemqueRibaudescrevia.Naausênciadequalquer livroou outro material de referência, as discussões por vezes icavamacaloradas.“Quero este livro para todo mundo”, Ribaud disse aos outros, “não

apenasparaosricos.Querosercapazdemostrarque,comtodasascoisasmaravilhosasquenossaFrançaproduz,todospodemviverbemeterumaadegadecente.Issoéresponsabilidadedomaîtredemaison.”O que começou a tomar forma à medida que Ribaud continuava

escrevendo foi uma espécie de guia gastronômico em que ele, advogadoporformação,registravaoquehaviacomidocomosváriosvinhoseselhepareciaqueacombinaçãofuncionava.Ao mesmo tempo, porém, ele se preocupava com o que os alemães

estavam fazendo e temia que muitos dos melhores vinhos fossemcon iscados e “prematuramente sacri icados”— isto é, consumidos antesde estarem prontos. Podia facilmente imaginar um grupo de jovenssoldados regando um prato de repolho e salsicha com um Margauxfragranteeaveludado.Aidéialhedavaarrepios.

Espero,caroleitor,parasuaprópriasatisfaçãoeadesuafamíliaeamigos,que,ao imdestaguerra,vocêaindadescubraqueaquelasvenerabilíssimasgarrafas que escondeu dos alemães continuam em segurança, que terãoescapado ao tormento destes anos e estarão prontas para festejar suaressurreição.

Agora,maisquenunca,Ribaudsesentiuconvencidodequeo livroqueestavaescrevendoeraimportante.Ele o intitulouLe maître de maison, de sa cave à sa table . “Este é um

ensaiosobrecomidaevinhoexcepcionaisesobrecomopodemserpostosemperfeitaharmonia”,escreveunaintrodução.Derepente,osdias longose solitáriospassaramaparecermais curtos.

Ribaudjuntavacadapedaçodepapelqueconseguiaencontrar,inclusiveoque embrulhava os pacotes que vinham de casa, para ter algo em queescrever.Eemcadaminutolivreeraissoquefazia,trabalharemseulivro.Perguntava a outros prisioneiros quais eram suas combinações favoritasde comida e vinho, que uvas cresciam melhor em suas regiões e comopreparavamcertospratos.Como correr do tempo, compilou uma enormemassa de informação e

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conhecimento, não apenas sobre os vinhos mais famosos como sobrepequenos vinhos locais que mal eram conhecidos fora de suas aldeias.HaviaoCrépy,umvinhobrancosemi-espumantedaHaute-Savoie,noladofrancês do lago de Genebra, o Vic-sur-Seille, um vin gris da Lorena, e oIrouléguy,umvinhoquepodesertantotintoquantobrancoouroséevemdas encostas dos Pireneus. O Crépy, disse Ribaud, é maravilhoso commariscos cozidos e pratos muito condimentados. Leve e agradavelmentefrutado, oVic-sur-Seille é o acompanhamentomagní icoparaumatourte-chaude, um pastelão recheado com presunto e queijo. O Irouléguy, poroutrolado,combinamelhorcomanchovasesardinhas,comidassalgadaseoleosasdopaísbasco.Ribaudenfatizouquenãoeranecessárioserumexpertparasaberessas

coisas,quesepodiaaprenderamaiorpartedelaslendo,experimentandoeconversandocomoutraspessoas.Tampoucoeranecessárioterumaadegade vinho abastecida com todos os vinhos domundo.Mais valia, disse ele,ter uma cave com vinhos que você apreciasse e que estivesse de acordocom seu orçamento. Para ajudar nesse processo, Ribaud montou umatabelaparaacombinaçãodevinhosecomidas.“A escolhadovinhodependedoquevocêquerque ele faça”, explicou.

“Ele pode realçar as características de cada prato, ou estabelecer aimportânciaquevocêatribuiacadaum.”Para umhors-d’oeuvre comoaspics de foie gras, Ribaud sugeria um

champanhebrut,umHermitagebrancoouumvinhobrancodaCórsegaouda Provença. Ostras, por outro lado, pediam um Graves branco deBordeaux. Caso não o tivesse em sua cave, porém, você deveriaexperimentarumVouvray,umPouilly-FuisséouumCérons.Ribaud advertia que as características regionais deviam ser

cuidadosamente consideradas. Um foie gras do Périgord devia seracompanhado por um Sauternes branco doce porque ali o ganso,alimentadobasicamentecommassadefubáepapadefarinhademilho,émaior e mais gordo. O ganso de Estrasburgo, alimentado com massa detrigoemenor,produzum foiegrascommenosgorduraeportantodeveriaseracompanhadoporumvigorosoPommardtinto.Ribaud compreendia que, por causa da escassez de comida na França,

nada seriadesperdiçado e teve idéiaspara vinhosque combinariam comtodos os pratos concebíveis. Para os famintos bordeleses que tinhamandado capturando pombos na praça da cidade, recomendou umMoulis,umMargauxouvinhodoChâteauBeychevelle.Paraosquetrocavamvinhoporalgumalimento,costeletasdeumporco

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recém-abatido,porexemplo,RibaudsugeriuumSantenayoualgumoutrovinhotintolevedaBorgonha.Para orelhas de porco empanadas, propôs um Arbois lenhoso e com

aroma de palha ou um vinho negro de Cahors. Para rabos de porco,recomendouumJoigny,umobscurovinho tintodonortedaBorgonha,ouum Bouzy, um vinho tinto não espumante da Champagne. Pés de porcorequeriam um champanhe inacabado ou um robusto vinho branco daArgélia.Miolos,disseRibaud, requeremséria re lexão.Muitodependedomodo

como são preparados. Para os que são servidos num molho escuro demanteiga,sugeriuumgloriosoMontrachetouumMercureybranco,vinhosque realçariam, sem esmagá-lo, o sabor suave, ainda que inusitado, dacervelle.Nocasodemiolos fritos,porém,umvinhomais rústico, comoumViréouumMâconbranco,seriamaisapropriado.O livro de Ribaud cobriu tudo, da entrada à sobremesa. Ele explicou o

que tomar com uma toranja (um Condrieu), com repolho recheado (umvinho de Chassagne-Montrachet) ou com carpa recheada (Chablis ouCassis).Comrãs,RibaudserviriaumSaumurdovaledoLoireouumSylvanerda

Alsácia.EscargotsiriambemcomumChablisgelado,umHermitagebrancoeatécomumbrancodaArgélia.Oqueeraessenciallembrar,disseele,équeovinhopodeconferiruma

qualidadeespecialaqualquerrefeição,tenhaelaporcentrobelascostelasde cordeiro (um vinho de Pauillac ou Saint-Estèphe) ou um croque-monsieur,umsanduíchegrelhadodequeijoepresunto(umChinonouumAxey-Duresses).“É uma arte escolher o melhor momento para saborear os grandes

vinhoseescolherospratosqueharmonizarãoartisticamenteosaromasesaboresdovinhoedacomida”,eleescreveu.Emborasópudessemsersaboreadosnasua imaginação,osvinhosque

Ribaud escolheu durante seus dias na prisão lhe traziam consolo. “Eramcomoumaárvore emquepodíamosnos segurar”, ele disse. “Umaárvorecujas raízes estavam profundamente ancoradas no solo de nosso país ecujosgalhosseestendiampelomundotodo.”Depois da guerra, seu livro foi publicado e saudado como uma das

primeirasobrasadedicarsériaatençãoavinhosecomidasregionais.RogerRibaudenviouumexemplarparacadaumdeseuscompanheiros

nocampodeprisioneirosdeguerra.“Esperoqueissoajudeaapagaradordenossaprisãoe servir tambémcomouma lembrançadeamizadeedos

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anosquecompartilhamos.”

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E

OITO

Oresgatedotesouro

Pracinhas,poucodepoisdodesembarquenaNormandia,fazemumbrevedescansoantesdeseguiremfrente.“Nossatrincheiraparaanoitefoiumaadega.Haviabeaucoupbarrileteslá,masestavam

vazios.Cara,demosazarcomogatunos”,disseumsoldado.

SCONDERIJODECHAMPANHEEMTRINCHEIRACom o Terceiro Exército Americano, oeste de

Bastogne, Bélgica, 8 de janeiro (AP) — O tenenteWilliamT.McClelland,daForestAvenue318,BenAvon,Pa.,poderáescavarmuitastrincheirasemsuaáreadecombate,maséduvidosoqueconsigamanteropadrãoestabelecido

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pelaprimeira.Aoescavarumatrincheiraindividualparaserseuprimeirolar na zona de combate, ele descobriu um esconderijo de quatrocentasgarrafasdechampanheeoutrosvinhos.

—TheNewYorkTimes,9dejaneirode1945

O tesouro estava por toda parte: em adegas de vinho, depósitos, portos,bemcomoemtrenseaviões.Partedeleforaenterradanosolo.Mas quando os líderes aliados, em 1943, começaram a traçar planos

para a Operação Overlord, codinome da invasão do noroeste da EuropapelosAliados, aúltima coisaque tinhamemmenteera tesouro. SuametaeraderrotarHitlerepôroTerceiroReichdejoelhos.Apesardisso,salvarotesouro,“a jóiamaispreciosadaFrança”,comoo

definiuumlíderfrancês,tornou-seumobjetivoprimordial.Chovera pesado amaior parte da noite. Embora os campos estivessem

enlameadoseo céucontinuasseameaçador, Jean-MichelChevreauestavaansioso para começar a trabalhar. Suas videiras estavam começando aflorirequeriavercomohaviamresistidoàtempestade.Vestindoum suéter, o vinicultor do vale do Loire deuumaolhadapela

janelaeparou.Paraseuespanto,nãohaviaumsósoldadoalemãoàvista.As tropasqueestavam lánavésperaequeocuparamsuaaldeiadurantequatro anos tinham desaparecido completamente, quase como se nuncahouvessemestadoali.Arazãologo icouclara.EraoDiaD,6dejunhode1944.Atãoesperada

invasãodaEuropa jáse iniciara.HitlereseusgeneraisestavamretirandotropasdovaledoLoireedeoutraspartesdaFrançaeenviando-asparaaNormandia.Para Georges Hugel, os desembarques não foram uma surpresa total.

Naquele dia de im de primavera, ele estava em sua casa na Alsáciarecuperando-se de ferimentos recebidos no front russo. Havia dispostotrês rádios juntoà suacama,aoalcancedamão,umdeles sintonizadonaRádioBerlim,outronaRádioVichyeoterceironaBBCdeLondres.Ficavaalternandoentreeles;sentiaquealgumacoisaestavaacontecendo.Duranteváriosdias,arádiodeLondresviera transmitindoumnúmero

crescente demensagens cifradas, como “Asmacieiras estão lorescendo”,“Jean,ponhao seuchapéu”e “Ogatomalhadomiou trêsvezes”.Nodia5dejunhode1944,houveraoitohorasdessas“mensagensdeação”.No dia seguinte, a dor nos pés acordou Georges muito cedo.

Automaticamente, ele esticou o braço e ligou os rádios, um após o outro,

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girando os botões para melhorar a recepção. Alguma coisa, um tom deurgência na transmissão da BBC, atraiu seu ouvido e ele aumentou ovolume.“Estamanhã,àsseisetrinta,asforçascombinadas…”Georgescaiudevoltanacama.“Estáquasenahora”,pensou.Era a maior ofensiva por mar e ar jamais montada. Cinco divisões

aliadas,7.000naviosebarcaçasdedesembarque juntamentecom24.000pára-quedistas americanos e britânicos estavam envolvidos. Os pára-quedistas chegaram primeiro, pouco depois da meia-noite, e tomaramposiçõesnos lancosdaspraiasaser invadidas.Seishorasdepois,a forçadeassaltoprincipaldesembarcounaspraiasdesignadaspelos codinomesUtah, Omaha, Gold, Juno e Sword. Enquanto navios e barcaças dedesembarque bombardeavam posições alemãs, milhares de soldadosforamlançadosemterra.Durante todo o dia, Georges icou grudado aos seus rádios, conferindo

umapós o outro na busca das últimas notícias. Ouviu quandoCharles deGaulle falou para o povo da França: “A suprema batalha começou! Apóstantas batalhas, tanta fúria, tanta dor, chegou a hora da confrontaçãodecisiva,portantotempoesperada.”Ninguémacompanhouo dramamais atentamente que omilhão emeio

de prisioneiros de guerra que tinham estado de inhando em camposalemães pormais de quatro anos. Um deles, Gaston Huet, ouviu falar doDia D num rádio que ele e outros prisioneiros haviam montado econseguido esconder dos guardas. “Foi um momento de grande alegriaparanós”,disseHuet. “Pensamosque logoestaríamosvoltandoparacasa,talvezatéemtempoparaacolheita.”A euforia foi partilhada por vinicultores de toda a França.Notícias dos

desembarquesdespacharammuitosdelesdiretoparaseusvinhedosparaavaliarsuascondiçõeseespecular:“Senãochoverdemais,senãohouvernenhummíldio,seconseguirmosfertilizantes,se,se,se…”Eomaior“se”detodos: “se vencermos e a guerra terminar até o outono, talvez possamosfazeralgumbomvinho.”Suas esperanças eram prematuras, porque os alemães não foram

embora sossegadamente. De fato, incaram pé e se desforraram maisferozmentequenuncadetodosqueosafrontavam.Foi o que aconteceu em Comblanchien, uma minúscula aldeia de

vinicultores e mineiros no coração da Côte d’Or, na Borgonha. Durantemuitotempo,osalemãeshaviamestadoconvencidosdequeaqueleeraumbaluartedaResistência.Umtremapósoutroforadinamitadonaregiãoea

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sabotagemeratantaqueasunidadesalemãs icaramnervosas,recusando-se a permitir a passagem de trens antes que os tanques de água dasestações tivessem sido cheios. Freqüentemente,maquisards se escondiamneles para atacar de emboscada. Embora muitos tenham se afogadoquando os nazistas enchiam os tanques de repente, os ataques e asabotagemcontinuaram.Nodia21deagosto,porvoltadenoveemeiadanoite, JackyCortot,de

onze anos, estava terminando de jantar quando de repente ouviu umtiroteio.Aeletricidadefoiinterrompida,depoisvoltou.Jackycorreuàjanelada cozinha e, com a mãe, espiou pelas venezianas fechadas. Chamasestavam se elevando de uma casa e um celeiro que icavam logo abaixonaquelarua.Umminutodepois,ouviramosomdegarrafasdevinhosendoquebradasegritosde“Socorro,socorro!”“Osalemãesestãoqueimandoaspessoasvivasemsuascasas”,gritoua

mãe de Jacky. Ela correu para outra janela. Várias outras casas estavamem chamas também. “Corra, esconda-se no vinhedo”, ela disse a Jacky.En iando-lhealgumdinheiroedocumentos importantesnamão,advertiu:“Fiqueláenãosemexaatéqueeuvábuscá-lo.”Jacky esgueirou-se da casa e rumou para as videiras próximas. Não

estava sozinho. Uma dúzia de outras crianças, algumas com as mães, jáestavamlá.Agachadoentreasvideiras,ogrupinhoespreitava,vendoumacasaapós

outraserincendiada.Durantetodaanoite,ouviramorelógioda mairiedaras horas, “cada hora vindo aumentar nosso medo e ansiedade”, Jackyescreveunumrelato.“Estaríamosaindavivosaoalvorecer?”Porvoltadecincodamanhã, Jackyviusuacasaincendiada.Duashoras

depois, começou a sair fumaça da igreja. “O próprio campanário pegoufogo,deixandoapenasasquatrovigassustentandoosino”,Jackyrecordou.“O sino esquentou tanto que icou vermelho, até que inalmente toda aestruturadesabou.Aúnicacoisaqueficoudepéfoioconfessionário.”Quando aquilo inalmente terminou, oito pessoas haviam sido mortas,

cinqüenta e duas casas haviam sido completamente destruídas pelo fogo,alémdaigreja,epelomenoscentoesetentaecincoaldeãoshaviam icadosemteto.Entreelesestavaovice-prefeitodeComblanchien,ErnestChopin,esuafamília,queestavamescondidosemsuaadegadevinhoquandosuacasaforaincendiada.Chopinsaiudoseuesconderijonamanhãseguintee icousabendoque

vinte e três de seus vizinhos haviam sido presos e levados para Dijon.Temendo que fossem ser executados, correu até lá e chegou no exato

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momento em que os alemães os estavam alinhando contra uma parede.Chopin implorou aos alemães que os poupassem. Onze foram inalmentelibertados,osmuitojovenseosidosos.OrestofoideportadoparacamposdetrabalhoforçadonaAlemanha.

Pierre Taittinger sabia do que os alemães eram capazes. Lembrava doquanto icara apavoradoquando seu ilhoFrançois fora jogadona cadeiapor mandar champanhe adulterado para o weinführer Otto Klaebisch.Lembrava também do quanto ele e outros produtores de champanhehaviam icado preocupados ao ser ameaçados de prisão por protestarcontraadetençãodeRobert-JeandeVogüé.Agora, porém, Taittinger estava realmente aterrado. Temia que sua

amadacidadedeParisestivesseprestesaserdestruídaeninguémpareciamaisdecididoafazerissoqueogeneralDietrichvonCholtitz.Von Choltitz era um o icial prussiano da velha escola que

superintenderaadestruiçãodeRotterdamem1940eadeSebastopolem1942. Chegara a Paris em agosto de 1944, com as ordens de Hitlerreverberando em seus ouvidos: “TransformeParis numa linha de frente;melhordestruí-laqueentregá-laaoinimigo!”Taittinger, prefeito de Paris designado por Vichy, sabia que tinha de

fazeralgumacoisa—qualquercoisa—parasalvaracidade.Ospoliciaiseosfuncionáriosdocorreio,dacompanhiatelefônicaedasferroviashaviamentrado em greve. Barricadas apareciam nas ruas à medida que aResistência intensi icava suas convocações para uma insurreição.Compreendendo que poderiam estar diante de uma sublevação total, osalemães decidiram deixar a cidade para as tropas de combate ecomeçaramaremovertodoorestodopessoal.Sentados nos terraços dos cafés, os parisienses assistiram a um

espetáculo surrealista, que um residente, Jean Galtier-Boissière, chamoudelagrandefuitedesFritz ,ouagrandefugadosFritz.Comoeleescreveuem seu diário no dia 18 de agosto: “Vi dúzias, centenas de caminhões,carrosabarrotadoseveículospuxandocanhões;haviaambulânciascheiasde feridos; iam uns atrás dos outros, cruzavam uns pelos outros etentavamultrapassarunsaosoutros.Generaisdemonóculo,debraçodadocommulheres louras elegantementevestidas, saíamembandosdehotéissuntuosos perto da Étoile e entravam em seus reluzentes carrosconversíveis, dando a todomundo a impressão de que estavam partindoparaumapraiadamoda.

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Avisãomaissurpreendente,porém,foiocaudaldepilhagemdescobertocomosocupantesdepartida.SegundoLarryCollinseDominiqueLapierree mIs Paris Burning?, a cidade estava sendo esvaziada aos magotes.Banheiras,bidês, tapetes,móveis, rádios,caixasemaiscaixasdevinho—tudoissofoicarregadosobosolhosiradosdeParisnaquelamanhã.Um dia depois irromperam lutas de rua esporádicas, orquestradas

principalmente por comunistas da Resistência, cujo slogan,Chacun sonBoche(“Acadaumoseuboche”),logosetornouumgritodebatalha.AtentoaessegritoestavaFrédéricJoliot-Curie.Em1939,eleencabeçara

umaequipedefísicosqueforaparcialmentebem-sucedidanaproduçãodaprimeira reação atômica em cadeia. Agora, porém, Joliot-Curie estavapreocupado com um tipo diferente de reação, aquela produzida pelamistura de ácido sulfúrico e potássio dentro de garrafas. Estava fazendocoquetéis molotov para a Resistência. Só havia um problema: faltavamgarrafas.Joliot-Curiehaviaencontradoalgumasnolaboratórioemquesuasogra,MarieCurie,descobriraorádio,masprecisavademais.Comaajudadeamigos,encontrou-asnaadegadaPréfecturedePolice:dúziasdecaixasde champanhe, todas as garrafas cheias e todas com o rótulo da casa dechampanhedePierreTaittinger.Após uma hesitação apenas momentânea, e com uma ponta de pesar,

Joliot-Curie e seus colegas começaram a desarrolhar as garrafas eentornarseupreciosoconteúdopelobueiro.Nesse meio tempo, Taittinger inalmente conseguira a entrevista que

solicitara com von Choltitz. O prefeito de Paris entrou no Hôtel Meurice,percorreu seu corredor com piso de mármore e subiu a escada até osuntuosoquartoqueabrigavaoquartel-generaldocomandanteemParis.A tinta mar im naboiserie estava descascando e as cornijas douradasestavamesmaecidase lascadasaquieali,mas, comseuenorme lustredecristal, o aposento ainda era imponente. Von Choltitz, em seu uniformeesmeradamente bem passado, suas medalhas reluzentes, condiziaperfeitamentecomolugar.O general foi direto ao ponto. Paris, ele advertiu, teria a sorte de

Varsóvia se a Resistência promovesse uma insurreição. Se algum alemãofosse baleado, ele iria “queimar todas as casas daquele quarteirãoparticulareexecutartodososmoradores”.Taittinger implorou-lhe que reconsiderasse. “Paris”, disse, “é uma das

poucas grandes cidades da Europa que permanecem intactas; deve meajudarasalvá-la!”Von Choltitz respondeu que tinha ordens a cumprir. Ato contínuo,

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contudo,admitiunãoternenhumdesejodedestruiracidade.Levandoseuvisitante até a varanda, confessou que umde seus grandes prazeres eracontemplaracidadeláforaeobservaromovimentodaspessoas.‘Oscomentáriosre lexivos,quase ilosó icos,dogeneralsurpreenderam

Taittinger,que tentou tirarpartidodoque lhepareceuserumamudançano ânimo dele. Virando-se para von Choltitz, disse: “Generais raramentetêm o poder de construir, mais comumente têm o poder de destruir.”InstouvonCholtitzaimaginarcomoseriavoltaraParisumdiaesepostarnaquela mesma varanda. “O senhor olha à esquerda, para a colunataPerrault, com o grande Palais du Louvre à direita, depois o Palais deGabrieleaPlacede laConcorde”,disseTaittinger.“Eentreessesedi íciosmagníficos,cadaumcarregadodehistória,podedizer:‘Fuieu,DietrichvonCholtitz,que,certodia,tiveopoderdedestruiristomasopreserveiparaahumanidade.’Issonãovaletodaaglóriadeumconquistador?”AeloqüênciadeTaittinger teveumefeitonotável. “O senhoréumbom

advogado de Paris. Fez bem o seu trabalho”, von Choltitz disse,mas nãocomunicouaopolíticooqueiriafazer.Taittinger voltou a seu gabinete para esperar. Sabia que haviam sido

plantados explosivos pela cidade inteira. Além disso 22.000 soldados, amaioriaSS,cemtanquesenoventabombardeirosestavamdeprontidão,àespera do sinal para arrasar a cidade. Esse sinal, no entanto, nunca foidado.Pela primeira vez em sua vida, Choltitz desobedeceu a uma ordem.No

dia25deagosto,quandoa2aDivisãoBlindadafrancesa,sobocomandodogeneralLeclerc,avançousobreParis,ogeneralalemãoentregouacidadeintacta.No dia seguinte Charles de Gaulle fez uma entrada triunfal em Paris,

comumaparadanosChamps-Elysées.Eufóricos, soldados franceses,umagarrafanumadasmãoseumri lenaoutra,corriamsobreos telhadosdacidadeprocurandoatiradoresalemãesdetocaia.Umdeles,YvesFernique,estava inspecionando o telhado do Hôtel Continental quando omaîtreapareceu com uma bandeja de prata, um copo de cristal e uma garrafageladadeSancerre.Mas os alemães ainda queriam algo de Paris. Embora não tivessem

tentadodestruir aTorreEiffel, oArcodoTriunfoouqualquerdosoutrosgrandesmarcosdacidade,a luíramaumtipodiferentedemonumento:oHalleauxVinsdeParis,ocentrodevendadevinhoporatacadodacidade.Mais cedo, antes de vonCholtitz se render, os alemães haviam tentado

semsucessocon iscarosestoquesqueosprincipaiscomerciantesdevinho

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mantinhamali.Agora,enquantocelebraçõesocorriamemoutraspartesdacidade, aviões alemães atacaram de repente o mercado de vinho elançaramváriasbombas.Rolhasde champanheespocaramemilharesdevaliosasgarrafasdeconhaqueeoutrasbebidasexplodiramcomobombasao calor do fogo. Enquanto bombeiros lançavam jatos d’água sobre osescombros,garrafascontinuavamaexplodir,lançandosaraivadasdevidrono ar. Logo, só restavam as paredes do Halle aux Vins. Dentro haviamontes de vidro derretido que haviam sido depósitos de vinho deextraordináriaqualidade.Umatacadistatentoutiraroproveitopossíveldasituação.Salvandoduas

grandespipasdebordeauxdaqueleinferno,prendeu-lhesumamangueiradeborrachae,comoumatestemunhalembrou,“começouaservirovinhoemcuriosas taçasrasasdeprataparabombeirosequemmaisparecesseestar com sede. Despejava-o como água, e caíamais no chão do que nastaças”.Provavelmenteoúnicoquenãoergueuumcopoaqueledia foiCharles

de Gaulle. No Hôtel de Ville, a prefeitura de Paris, um alto funcionáriodesignado por Vichy ofereceu ao general uma flûte de champanhe; deGaullerecusou-a,declarandoquenãobebiacomquemcolaboravacomosnazistasoueraindulgentecomeles.

O bombardeio do Halle aux Vins provocou arrepios na espinha doscomerciantes de vinho em Bordeaux. Podiam facilmente imaginar seuspreciososestoquessofrendosortesimilar.Bordeaux ainda estava ocupada por 30.000 soldados, mas todos,

inclusive os alemães, sabiam que a partida deles era só uma questão detempo. Como em Paris, o que se perguntava era se deixariam sobraralguma coisa atrás de si. Em grande parte da cidade, especialmente seuporto, haviam sido plantadas bombas de 770 quilos, que deveriam serdetonadasquandoossoldadosabandonassemacidade.Commilhõesdegarrafasdevinhoacumuladasemarmazénsemvoltado

porto e milhões de outras escondidas, a destruição do porto signi icariacalamidade para o negócio de vinhos de Bordeaux. O pior pareciainevitável, com os Aliados avançando irmemente e a atividade daResistênciacrescendo.

Na noite passada reservatórios foram bombardeados. Os tiros demetralhadora são constantes [escreveu May-Eliane Miaihle de

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Lencquesaing em seu diário].Mas estou remendando a bandeira! Osanglo-americanos estão vindo para Bordeaux e estamos esperando poreles!

Louis Eschenauer também estava esperando— com apreensão. O “reide Bordeaux” ganharamuito dinheiro vendendo vinho para seus amigosdo peito do Terceiro Reich. Temendo pelo que pudesse lhe aconteceragora, fez alguns apelos inais a seus amigos alemães. “Não destruamBordeauxaopartir”,implorou.Um dos primeiros que procurou foi o capitão Ernst Kühnemann,

comandante do porto. Caberia ao capitão promover a destruição quandotalordemfosseemitida.ComcomerciantesdevinhoeoutrosemBordeauxinstigando-o a usar sua in luência, Eschenauer convidou seu primodistanteparaalmoçar.Kühnemann,elemesmoumcomerciantedevinhos,nãosesurpreendeu.Gostavatantodeboacomidaedebomvinhoquantoopróprio Louis e os dois costumavam jantar juntos regularmente, muitasvezesnorestaurantedesteúltimo,LeChaponFin.Eschenauer suplicou ao primo que salvasse o porto, descrevendo em

detalhe a agonia e amiséria que sua destruição provocaria. Kühnemannouviu com simpatia. Disse que não queria destruir o porto, que umamedida como essa agora não passaria de um ato absurdo de vingança.“MasseBerlimmederordemparaisso, icareinumaposiçãomuitodi ícil”,disse.Nodia19deagosto,umaordemcoma rubrica “ultra-secreto” e como

número 1-122-144 chegou ao quartel-general de Kühnemann. Adestruiçãodoportodeveriaseriniciadadentrodecincodias,precisamenteàs17:00h.AatmosferaemBordeauxmudousubitamente.

A cidade foi isolada, cercada por tropas alemãs. Era como um estado desítio. Não havia água, gás ou eletricidade, não se via absolutamentenenhuma comida e também nenhum tráfego. (Diário de May-ElianeMiaihledeLencquesaing)

Enquanto Kühnemann se torturava, sem saber o que fazer, umsubordinado que partilhava os sentimentos de seu comandante resolveutratarelemesmodoassuntoeexplodiua forti icaçãoondeseguardavamosdetonadores.Aexplosãomatouquinzesoldadosalemãese foiouvidaaquilômetros de distância. Equivocadamente, as autoridades alemãsacusaramaResistência.

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24deagosto:Noitepassada,umaterrívelexplosãonadireçãodeBordeaux.EmboraosmaquistenhamlibertadooChâteauBeychevelleeoutraspartesdeBordeaux,aindahesitamosemhastearabandeiraporqueháapenasumgrupo da Resistência perto de nós. Apesar disso, às 5h30min desta tardecantamosaMarselhesa comnossopessoal.Osamericanos estãoaapenasquinze quilômetros de Bordeaux! (Diário de May-Eliane Miaihle deLencquesaing)

Naverdade,osamericanosaindaestavammuitolongedeBordeaux,masos alemães não sabiam disso e começaram a fazer os preparativos parasua evacuação. Temendo que a Resistência estivessemuitomais forte doque estava, os alemães resolveram blefar, avisando que ainda tinhamexplosivos su icientes para destruir Bordeaux se suas tropas fossemalvejadasdurantearetirada.AResistênciaconcordoucomumcessar-fogo.Na noite de 27 de agosto, as tropas alemãs começaram a se retirar de

Bordeaux.OúltimoasairfoiErnstKühnemann.

LUTAPORFAMOSAREGIÃOVINÍFERARoma, 10 de setembro — Os franceses e os americanos vêm lutandocom os alemães pelo que talvez sejam os vinhedos mais famosos domundo—a região daBorgonha. A extensão dos estragos feitos a essaherança ainda não foi con iavelmente avaliada, mas, segundo muitosrelatos, os alemães já foram muito longe na destruição completa doinvejadoterritório.

—TheNewYorkTimes,11desetembrode1944

Sóhavia umproblema comesta notícia. Estava errada.Os vinhedos daBorgonhasobreviveram.AlemãeseAliadospodemter lutadoporela,masnãolutaramnela.Elafoichamadade“aCampanhadoChampanhe”,nomecunhadoquase

noinstanteemquetropasfrancesaseamericanasdesembarcaramnaCôted’Azur, no sul da França. “Havíamos derrubado uma barragem terrívelantes de nos lançar à praia”, escreveu o correspondente de guerrabritânicoWynfordVaughan-Thomas.“Estávamosesperandoserdizimadospor metralhadoras, mas nenhuma só bala chispou por nós: os alemãeshaviamfeitoumaescapadatáticaalgumashorasantese,emseulugar,umfrancês imaculadamente vestido emergiu da poeira da guerra. Carregavauma bandeja com ummagnum de champanhe e dez copos. ‘Bem-vindos,cavalheiros,bem-vindos’,elenossaudou,radiante;‘massepossofazerum

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pequeninoreparo,ossenhoresestãoquatroanosatrasados!’”A meta da Campanha do Champanhe, o icialmente conhecida como

OperaçãoAnvil,eraavançarparaonorteatravésdovaledoRódanoedaBorgonha e ligar-se às forças que haviam desembarcado na Normandia.Porvezesfoidifícilmanteressametaemmente.Haviadistraçõesdemais.Entre elas estava o suntuoso Hôtel Negresco, que os americanos

transformaram em seu quartel-general. O Negresco, situado em Nice, naRiviera,eraconhecidoporsuaexcelentecozinha,seusvinhosprimorososetinhaa famadeserumdosmelhoresclubesnoturnosdomundo.Umdosque lá “batiamponto”semprequepossíveleraosargento-ajudanteVirgilWest.“Saíamosempatrulhaduranteodia”,elecontou,“àsvezesentrandonuma pequena troca de tiros, às vezes icando completamenteensangüentadoseenlameadosnoprocesso,depois,cincohorasmaistarde,lá estávamos, sentados numdosmaiores clubes noturnos domundo comumagarotaeumagarrafadechampanhe.”Mas nem tudo eram garotas e champanhotas. Segundo um outro

soldado, “o impressionante era o caráter estranho do combate ali. Eraduro,eraárduoeperdíamosmuitoshomens.ComonãodestruímosabelaRiviera, voltávamos e tomávamos uma garrafa de vinho e um banho,depois subíamos de novo as montanhas para mais uma batalha”. Noentanto, mesmo quando as balas estavam voando, descreveram ossoldados,“mulheresinsistiamemnosdarvinhoseflores”.Outros presentes lhes eram oferecidos também. Logo após chegar, o

correspondentedeguerraVaughan-Thomasestavasentadonoterraçodeumcafé tomandovinho,enaltecendoomodocomoabebida lhe lembravauma bela mulher, quando foi subitamente abordado por “uma senhoracorpulenta e imponente acompanhada de cinco garotas encantadoras”.Vinha a ser a madame damaison de tolérance local. Apontando suasgarotas, ela disse: “Para você, o bravo libertador.” Quando Vaughan-Thomas se retraiu, ela apressou-se em acrescentar: “Não tenha medo.Minhasdamasforampatrióticas.Sóaquelavesgadormiucomalemães.”EmboranuncatenhaconquistadoaimaginaçãodopúblicocomooDiaD,

aCampanhadoChampanheassinaloupelaprimeiravez,eprovavelmentea única, que considerações gastronômicas tinham relação direta com oplanejamentomilitar. Não foi por acaso que o general francês Lucien deMonsabert,queajudouaplanejaracampanha,tratoudeassegurarqueastropas francesas avançassem pela margem oeste do Ródano, ondecresciam os melhores vinhedos. Os americanos subiram pela outramargem,ondehaviamenoscultivo.

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MaistardeogeneralfrancêsexplicousuaestratégiaaVaughan-Thomas:“A missão deles era vital”, disse Monsabert a respeito de seus aliadosamericanos, “mas o historiador atento ao vinho vai notar que ela não osaproximoudeumúnicovinhedodequalidade.Agoraacompanheoavançodoexércitofrancês.RapidamenteelesseapossaramdoTavele,depoisdese assegurar que tudo estava bem com um dos melhores vins rosés daFrança, investiramferozmentesobreoChâteauneuf-du-Pape.OCôteRôtiecaiuaumbemplanejadoataquedeflanco.”Vaughan-Thomas captou o espírito da Campanha do Champanhe num

delicioso livro de reminiscências intituladoHow I Liberated Burgundy(Como liberteiaBorgonha).Emcertaaltura,descreveuseuencontrocomumoficialamericanoqueestavaclaramenteperturbadocomalgumacoisa.“Thomas”, ele lhedisse, “pelo que ouvi dizer, você vai voltar para falar

com os franceses esta tarde. Bem, há um probleminha que está nosdeixandomeio amolados. Estou com a impressão de que esses francesesestão nos segurando um pouco. Tenho o palpite de que nossos amigosestão demorando um pouco demais nesse lugar, Chalon ou coisa que ovalha.”“Chalonoucoisaqueovalha”eranaverdadeChalon-sur-Saône,oportão

sul das famosas encostas da Côte d’Or, onde se estendiam os maisexcelentesvinhedosdaBorgonha.Eoamericanotinharazão;osfrancesesestavam procurando ganhar tempo para evitar transformar os vinhedosnumcampodebatalha.“Nempreciso lhedizer”,umo icialdoserviçosecretofrancêscomentou

naquela tarde comVaughan-Thomas, “as conseqüências terríveis de umadecisãocomoessa.Elasigni icariaguerra,guerramecanizada,emmeioaosgrands crus! Iria a França nos perdoar se permitíssemos que tal coisaacontecesse? Não devemos esquecer 1870.” Foi nesse ano que uma dasúltimas batalhas da Guerra Franco-Prussiana teve lugar em torno deNuits-Saint-Georges, comas tropas alemãsdevastandoos vinhedosde LaTâche,Romanée-ContieRichebourg.“Nãosepodejamaispermitirqueissoaconteçadenovo”,disseooficial.Momentos depois, um jovem o icial irrompeu, bateu continência

apressadamentee,comumsorrisoiluminando-lheorosto,declarou:“Boasnovas,mon colonel, descobrimos o ponto fraco das defesas alemãs. Estãotodasnumvinhedodequalidadeinferior.”O general Monsabert foi rapidamente informado e o ataque começou.

Em menos de vinte e quatro horas os alemães foram “escorraçados daBorgonha”, disseVaughan-Thomas. “Umaponte explodida aqui, uma casa

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demolida ali, que importância podia ter isso ao lado do fato portentoso ecapitaldequevinhedosincólumesestendiam-seànossafrente,quilômetroapósquilômetro?”Dez anos mais tarde, Vaughan-Thomas escreveu: “O tempo abranda a

controvérsia e a história de guerras distantes suaviza-se como umborgonhade1949.”Acontrovérsiaaquealudiaenvolviaumpresentequeos militares franceses deram a seus aliados americanos quando seuavançoRódanoacimachegouaofim.Para mostrar seu apreço, os franceses decidiram presentear os

americanoscomumsortimentodosmelhoresvinhosqueaBorgonhatinhaa oferecer. Vaughan-Thomas ofereceu-se para angariar vinhos para aocasião, missão que o levou a pelo menos vintes adegas de vinho e lhepermitiuencherseujipecomalgunsdostesourosmaisrarosdaBorgonha.Emseguida,tratoudeentregá-losaosamericanos.“Todos eles? Permitam-me ser franco”, Vaughan-Thomas escreveu.

“Alguns, por um explicável acidente do transporte de guerra, acabaramindopararemminhaadegaumanoapóso imdaguerra.”Orestanteeleentregoudevidamenteaumjovemoficial.“Estes são os melhores vinhos da França”, disse. “Guarde-os com

cuidado; ponha-os deitados; certi ique-se de que estão à temperaturaambienteantesquesejamservidos.”“Nãosepreocupe”,oamericano respondeu. “ODoutor sabe tudosobre

essabebidafrancesae,porfalarnisso,vouconvidá-losparavirtomá-la.”A festa foi realizada num palácio do século XVIII, com os convidados

franceses entrando por uma escadaria enquanto o comando americano,comoVaughan-Thomasregistrou, “osaguardavanumsalãodignodeumarecepçãoparaMadamedePompadour”.Aosomdetrombetas,umacolunadegarçonsadentrounoaposentocarregandoasgarrafasembandejasdeprata. Imediatamente,Vaughan-Thomaspercebeuquealgoestavaerrado.“Senti um baque no coração — as garrafas de borgonha estavamborbulhando suavemente. “Estamos com sorte”, meu coronel americanosussurrouaomeuouvido. “ODoutor incrementouestenegóciocomálcooletílico!”Como Vaughan-Thomas descreveu mais tarde, “uma expressão de

horror incrédulo estampou-se nos rostos dos franceses. Todos os olhosestavam voltados para o general de Monsabert. Ele os havia conduzidopelosdesertosdaÁfricadoNorteesobreasmontanhascobertasdeneveda Itália. Como se comportaria diante dessa crise, a maior já havida nasrelações franco-americanas? O general encarou seu estado-maior com o

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olharferozdocomando.‘Senhores,peguemseuscopos.’Comrelutância,osfranceses estenderam as mãos. ‘Aos nossos camaradas em armas, lesbravesAméricains’, ordenou num tom ressonante. Esvaziou seu copo comostentação—atéaúltimagota.Depois,numtommaistranqüiloquesóosfranceses mais próximos e eu pudemos ouvir, murmurou, ‘Libertação,libertação,quecrimesforamcometidosemteunome!’”

Apesardesseengasgo,nãohácomonegarqueaCampanhadoChampanhefoi uma das operações mais bem-sucedidas da guerra. Encontrandoapenas pouca resistência, os exércitos francês e americano subiram pelovaledoRódanomaisdepressadoqueseteriajulgadopossível.Aolongodopercurso, foram auxiliados por um tipo inusitado de sistema de avisoantecipado:sevilasealdeiasestavamdecoradascom loresebandeiras,eas pessoas alinhadas na beira da estrada segurando garrafas de vinho,sabiam que os alemães tinham fugido e que o caminho à frente estavalimpo.“Claro que tomamosmuito vinho bom,mas não tanto quanto teríamos

desejado,porqueestávamosmuitoocupadoseavançandomuitodepressa”,disseJeanMiaihle.Algunsmesesantes,Jeanestiverafabricandosulfatodecobre debaixo do nariz dos alemães. Quando Bordeaux foi libertada,ingressou no exército francês nomomento em que ele avançava Ródanoacimaesorviaseuvinho.Algumasvezes,pessoasconvidavamJeaneseuscamaradas para suas adegas e abriam algumas garrafas que haviamescondido.“Umacoisadequemelembrofoideencontrarumlotedemásgarrafascombonsrótulos”,Jeandisse.“Aqueleeraovinhoqueaspessoastinhamimpingidoaosalemães.Haviamguardadoabebidaboaparanós.”

Durante a noite de6 de setembro,RobertDrouhin foi acordadopor algoquehaviaváriosdiasnãoouvia:silêncio.Ele,suamãeesuasirmãsvinhampassandoamaiorpartedotempoemsuaadegadevinhoporcausadeumpesadobombardeioecanhoneiopertodeChalon-sur-Saône.Naquelanoite,contudo, o bombardeio parou subitamente. Todos se sentaram em seuscolchões estendidos no piso da cave e ouviram. Não havia dúvida. Obombardeio cessara. Depois de se certi icar de que era seguro, a famíliasaiudaadegaesubiuaopavimentosuperiorparadormir.Por volta das seis horas damanhã, foram despertados de novo, dessa

vezporumsomdiferente.Robertpuloudacama, foiatéa janelaeespiou

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lá fora. Viu um jipe americano fazer uma volta emU na praça diante daigreja e ir embora. Pouco depois, chegou outro veículo e dele saíramsoldados. Usavam fardas americanas. Robert observou-os enquantodesenrolavam uma grande peça de tecido branco sobre as pedras docalçamento, formando uma cruz com ele. A cruz era um sinal parainformaraosaviõesaliadosqueBeaunehaviasidolibertada.Era o começo do que Robert chamariamais tarde de “um dia em que

tudo foi extraordinário”. Os sinos das igrejas começaram a repicar,enquanto Beaune se enchia de tanques e outros veículos militares. Aspessoas saíamparaas ruasaosborbotõespara celebraroqueos jornaislocais chamaramde “esta abençoada emagní ica hora da libertação. Dasjanelas, bandeiras francesas e aliadas loriam. Escondidas nos sótãos pormuitotempo,agoraemergiamparatremularaoventodalibertação”.Garrafas e barris de vinho também vieram à tona enquanto os

moradoresdavambrindesevivasaseuslibertadores.Osvivas,disseumapessoa,podiamserouvidosaquarentaquilômetrosdedistância.“Beaune foi libertada com equipamento americano e chiclete

americano”, recordouRobertDrouhin. “Foiuma scèneclassique,comoalgosaídodocinema.”Enquanto as celebrações aconteciam numa praça, porém, ainda havia

luta em outra. Mademoiselle Yvonne Tridon, secretária do Syndicat desNégociantsdeBeaune,estavadançandonaruacomumsoldadoamericanoquandoalguémparoue sepôsa censurá-la. “Não temvergonhadeestarcomemorando quando ainda há gente lutando?” a pessoa perguntou.Tridonficousurpresa.Nuncalheocorreraqueaguerraaindacontinuava.Menos de vinte quilômetros ao norte, tropas alemãs estavam tentando

escapardoChâteauduClosdeVougeot,umpontodereferênciaborgonhêsque haviam con iscado no início da guerra para nele armazenar suamunição. Haviam carregado a munição num trem e estavam tentandoenviá-lodevoltaparaaAlemanha.Apoucascentenasdemetrosdocastelo,a Resistência abriu fogo contra o trem, in lamando a munição que elecarregava.Aexplosãofezotelhadodocastelovoarpelosares,espalhando200.000 telhas antigas por uma área de doze quilômetros quadrados. OsomfoiouvidodeBeaune.MasédosomdeumapequenabatidanaportaqueRobertDrouhinmais

se lembra. Ele desceu a escada correndo para ver quem era. Ali paradoestavaseupai.Novemesesdepoisde fugiratravésde suaadegapara selivrar da Gestapo, Maurice Drouhin, que obviamente estivera escondidonosHospicesdeBeaune,voltaraparacasa.

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“Correaqui,Al!Precisamosdevocênesteinstante.”AlRicciuti,umrapazdeBaltimoree torcedordosOriolesavida inteira,

era um tradutor do Terceiro Exército de Patton. Havia sido alistado edesembarcado na praia Utah logo após do Dia D. Agora, estavaparticipando da libertação da França. Sua unidade estava acampada naperiferia de Avenay-Val-d’Or, na Champagne, uma vila que seu paiatravessaranaPrimeiraGuerraMundial.Al estava planejando visitar alguns pontos pitorescos e tirar algumas

fotogra ias para o pai, quando de repente seus camaradas gritaram porele. Correu para ver o que queriam. “Essas meninas estão tentando nosdizeralgumacoisa,enãoconseguimosentenderoqueé.”Láestavamtrêsmeninas, todas falando aomesmo tempo e apontando para uma casa. Al,cuja mãe era francesa, ouviu e depois explicou, “Elas são irmãs. Estãodizendo que esconderam dois aviadores americanos de umB-17 em suacasa.”Al e os outros seguiram as meninas até a casa delas para buscar os

aviadoresquetinhamsidoabatidos.Depoisqueelesforamlevadosparaoacampamentoamericano,Alvoltouparaconversarcomasmeninaseseuspais. Eles descreveram como tinham encontrado os homens e tomadocontadelesnosúltimosdiasdaocupaçãoalemã.OsRevolte, famíliadepequenosprodutoresdechampanhe,convidaram

Al a icar para o jantar. Paulette, uma das ilhas, o levou para uma voltapelosvinhedos.“Estamoscomsortedestavez”,eladisseaAl.“Nãotivemosbatalhas de verdade aqui, não como na Primeira Guerra Mundial, masaindaestamospreocupados.”ComomuitagenteportodaaChampagne,osRevolte tinhamouvido falarqueosalemães tinhamplantadodinamiteemalgumas das adegas das grandes casas de champanhe. Paulette queriasaberseaquiloeraverdade.Al confessou não saber ao certo. Disse que alemães tinham minado

algumas das pontes mas não tinham tido tempo de explodi-las porquePatton chegara muito depressa. Patton, ele disse rindo, icaria muitoirritadosevissealgumchampanheserestragado.“Eleéumhomemdeumtremendo paladar”, disse Al. “Em geral toma os melhores uísques, masgostadechampanhetambém,eentendedoriscado.”Já o próprio Al não entendia nada de champanhe. Admitiu que nunca

provara nenhum.No jantar, a família Revolte providenciou para que nãomais pudesse dizer isso, oferecendo-lhe toda a gama do champanhe, domaisdoceaomaisseco.FoiumarevelaçãoparaorapazinhodeBaltimore,que até então se considerava um amante da cerveja. “Experimentei um

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pouco,epensei:‘Ei,istoéparamim.’”Mas ele teve pouco tempo para saborear a bebida. Patton estava se

deslocando rapidamente e, na manhã seguinte, o Terceiro Exército dosEUA estaria em marcha de novo. Paulette foi se despedir de Al. “Vouescrever”,eleprometeuaopartir.

Quando se deram conta da rapidez com que os Aliados estavam sedeslocando, os alemães na Alsácia começaram a fazer ataques-surpresanas adegas dos vinicultores. Pessoas como Georges Hugel observaramconsternados soldados irem de uma adega a outra, enchendo caminhõescomtodoovinhoquepodiamcarregare transportando-oparaumapistadepousonascercaniasdeRiquewihr.Acargaeraentão transferidaparaaviõescujosmotoreseramimediatamenteacionados.Oprimeiroaviãodeuuma arremetida de cinqüenta metros à frente, depois parou, como sealguém tivesse lançado uma âncora. Nenhum dos outros aviões, seusmotoresgemendosoboesforço,conseguiudecolartambém.“Osaviõeseramlevesdemais”,disseGeorges,“enãotinhamcombustível

su icienteparadecolarcomcargatotal;assim,felizmente,amaiorpartedonossovinhopermaneceunopaís.”AAlsácia foi a última parte da França a ser libertada e isso aconteceu

exatamenteemplenacolheita.“Foiumacolheitaenorme,mastambémmuitotriste”,disseAndré,irmão

de Georges. Seu pai estava escondido da Gestapo após se recusar aingressar no Partido Nazista e seu irmão Johnny continuava no exércitoalemão. O próprio Georges ainda estava se recuperando dos ferimentosquesofreranaRússiaesóconseguiaandardemuletas.Levar as uvas para o lagar era quase impossível. Muitos vinhedos

tinhamsidocosturadoscomminasantitanquesparaocasodeumataquealiado. Havia também bombas não explodidas que tinham sido lançadaspelos Aliados, algumas das quais detonavam quando trabalhadores dosvinhedos pisavam nelas. Enquanto a colheita da uva avançava, aviõesaliadoscomeçaramaatacarcomboiosalemãesdepartida.GeorgeseAndréestavamtransportandoumcarregamentodeuvasparaolagarquandoumavião, suas metralhadoras disparando, passou bem por cima de suascabeças.GeorgesempurrouAndréparaochãoecaiuaoladodele.Uvasepedaçosdeterravoaramparatodososladosenquantobalaslançadaspeloaviãopeneiravamovinhedo.Quandose levantaram,aprimeira coisaqueosdoisirmãosviramfoiumcaminhãoalemãoemchamasapoucadistância

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dali.Quandoafumaçasedissipou,porém,deram-secontasubitamentedequeváriosdosseustrabalhadorestinhamsidomortos.QuandoGeorgeseAndrévoltaramparacasa,suamãelhesdissequeum

o icialalemãoestiveraláhaviapouco.Elacontouquerelutaraemdeixá-loentrar,maseleinsistira.“Tenhoumamensagemparaasenhora”,dissera-lhe. “Madame, pode dizer ao seumarido que é seguro voltar para casa.”Temendo uma cilada, Madame Hugel respondeu que não compreendia oqueoo icialestavadizendoeque,detodomodo,nãotinhanenhumaidéiade onde o marido pudesse estar. O alemão deu um sorriso sinistro.“Madame, a senhorame compreendeu perfeitamente. Ele não corremaisriscodeserpreso.Oarestápuroagora.Tudoaquimudou.”Quandooroncodaartilhariaaliada icoumaisalto,osHugeleoutrosse

amontoaramemsuasadegasdevinhoembuscadeproteção.Nanoitede3dedezembro,projéteisdemorteiroeartilhariacomeçaramaaterrissaremRiquewihr.Dois dias depois, as ruas de Riquewihr estavam cheias de texanos,

alguns em tanques, alguns conduzindo alemães e outros fazendo buscascasaacasa.“Ficamos pasmos com o quanto os americanos eram descontraídos e

comaausênciadebarulho”,disseAndréHugel.“Osomdassuasbotasdesola de borracha fazia um contraste tão grande com o das botas comcravosqueosalemãesusavam.”Eramseteemeiadamanhãquandoosamericanos,parteda36aDivisão

deInfantaria,comquartel-generalemSanAntonio,chegaram.OavôÉmileHugel tinha acordado uma hora antes. Quando compreendeu queRiquewihr fora libertada,resolveuvestirseumelhorternopara irsaudaros americanos. Quando estava vestindo a calça, contudo, um pracinhajovemenervosoirrompeuquartoadentroàcaçadealemães.Aprincípio,oavô Hugel, que com seus oitenta anos tinha a vista fraca, não percebeuquemeleera,mas seunetoAndré,queacompanhavao soldado, explicoudepressa. O velho icou tão radiante que atravessou o quarto correndo eabraçou o americano. Nisso, sua calça caiu no chão. O soldado icou tãoassustado que ergueu sua arma para Hugel. O mal-entendido foirapidamente esclarecido e o agora impecavelmente vestido Émile nãodemorouasejuntaràsmultidõesexultantesláfora.A celebração foi aindamais especial para a família Hugel porque Jean

Hugel saiudo seuesconderijo.Eleestavanumhotel emColmar, aliperto,fazendo-sepassarpormembrodopessoal,quandoumoperadortelefônicoamigoligouparaeleedisse:“MonsieurHugel,podeparardeseesconder

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agora.Osamericanosestãoaqui.”Uma vez de volta, começou a praticar um pequeno escambo, trocando

vinhoporcombustível,cincogalõesdevinhopordoisdecombustível.Paraos texanos, pareceu um ótimo negócio. Jean, que agora podia dirigir seucarroeseucaminhãodenovo,foidamesmaopinião.Uma semana depois da libertação de Riquewihr, os alemães iniciaram

um contra-ataque para retomá-la. Enquanto corriampela vila, os texanosatiraram neles das janelas de casas e prédios. Logo as ruas calçadas depedrasestavamcheiasdemortoseferidos.Asvítimasforamlevadasparao pátio do lagar dos Hugel, convertido pelos americanos em posto deprimeirossocorrosenecrotério.Osvinhedostambémsofreram.Tanquesamericanosesmagaramcercas

e videiras, alguns explodindo minas e projéteis não detonados, em suatentativaderechaçarosalemães.Enquantobatalhasgrassavam,umaviãoamericanocaiunovinhedodeHugel,matandotodosabordo.Cenas semelhantes estavam acontecendo em vilas e aldeias de toda a

Alsácia.EmAmmerschwihr,obombardeiopesadodeaviõesaliadosforçouos moradores a correrem para suas adegas de vinho em busca desegurança.Dúzias encontraramabrigona adegada irmavinícolaKuehn,cujo nome, ironicamente, era Cave de l’Enfer. Eles não estavam sozinhos,porqueacave jáestavacheiadeestátuasdesantosretiradasdeumadasigrejas de Ammerschwihr. Também elas tinham sido postas ali porsegurança. (Até hoje as pessoas se referem à época em que os santosforamparaoinferno.)O verdadeiro inferno estava lá em cima. Surgiram incêndios por toda

partequandoosaviõesamericanos, tendoavistadodois tanquesalemães,bombardearamrepetidamenteacidadedoséculoXVInacrençadequeosalemães ainda a controlavam. Os americanos não perceberam que ostanquestinhamsidoabandonadosequetodososalemãestinhampartido.Enquanto moradores, apavorados, tentavam extinguir os incêndios, a

águaacabouderepentequandoospoçossecaram.Umabombaatingiraoreservatório. Em desespero, pessoas começaram a carregar garrafas ebarris de vinho das suas adegas, a prender mangueiras nas pipas eesguicharoconteúdonofogo.JeanAdamtinhatrezeanosquandoajudouamãeeopaiasalvaro lagardafamília. “Ovinhoqueusamoserabastanteordinário, de teor alcoólicomuito baixo por causa dasmás colheitas, porisso não causava nenhuma explosão”, Jean disse. “Mas teria podido serdiferentesetivéssemosusadoGewürztraminer.”Comseuvinho,osAdamconseguiramsalvarseuestábulo,seusanimais,

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masmuitopoucoalémdisso.OmesmosepassouemtodaAmmerschwihr.Nadamenos que 85%da vila emuitos dos vinhedos circundantes foramdestruídos.Em Riquewihr, Georges Hugel contemplou a destruição com tristeza e

dor. Ele testemunhara a brutalidade da guerra como soldado alemão nofront russo, e nada, sentia, poderia ser jamais tão terrível quanto aquilo.Mas ao ver sua própria cidade natal ameaçada e seus amigos e vizinhossob ataque, convenceu-se de que tinha mais alguma coisa a fazer. “Vouvoltar para a guerra”, comunicou à família. “Vou entrar no exércitofrancês.”Eraapiornotíciaqueseuspaispoderiamterimaginado:um ilhoainda

lutandoparaosalemães,eagoraumcomosAliados.

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O

NOVE

ONinhodaÁguia

RefúgiodeHitleremBerchtesgaden,nosAlpesbávaros.

ndeestãoosfranceses?Esta era a pergunta que quase todo soldado

americano estava fazendo enquanto as forças aliadas sedeslocavampelaAlemanha.Coma guerranos seus últimosdias, osAliados estavam

avançandorapidamenterumoaBerlim.Todos,americanos,britânicos, canadenses e russos queriam chegar lá

primeiro.Umaoutracorridaestavasendodisputada também,estaatravésdosul

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da Alemanha em direção a Berchtesgaden, o retiro de Hitler nos Alpesbávaros. Para os franceses, o trajeto encerrava profunda signi icaçãohistórica. Era o mesmo caminho tomado por Napoleão em 1805 quandoseus exércitos conquistaram uma grande vitória sobre os austríacos emUlm. Por um breve tempo, de 1809 a 1810, a região, inclusiveBerchtesgaden,estiverasobdomíniofrancês.Ahistória,noentanto,erasópartedarazãoporqueBerchtesgadenera

tão importante. De importância muito maior era o tesouro que todossabiamestar lá. Ele incluía ouro,moedade umadúzia de países, jóias devalorinestimável,obras-primasdaarte,automóveisdeluxoealgoemqueosfrancesesmalpodiamesperarparapôrasmãos:centenasdemilharesde garrafas do melhor vinho do mundo, vinho que fora roubado de seupaís.Berchtesgaden podia ter sido o esconderijo de Hitler e o lugar a que

Himmler,Göring,Goebbelseoutrosdaliderançanazistaa luíamparasuasférias,maseratambémumdepósito,umverdadeirolabirintodeadegasepassagens subterrâneas cavadas comominas de sal no século XII. Agoraessedédaloserviacomoumvastoarmazémparaobutimqueosnazistashaviamrecolhidoduranteaguerra.Acorridapararecuperaressetesourocomeçouem22deabrilde1945,

quando o general Philippe Leclerc recebeu luz verde para levar sua 2 a

DivisãoBlindadadevoltaàAlemanha.Maiscedonaquelemês,elerecuaraparaaFrançapordeterminaçãodedeGaulle,quedecidiraquenãoqueriater nenhuma parte do país nas mãos dos alemães quando a Alemanhafinalmenteserendesse.Aindahaviaváriosbolsõesderesistência,oprincipalemtornodeRoyan,

na ponta da península do Médoc, onde tropas alemãs tinham ordens deresistiratéaúltimabala.RoyaneraumaparceladeterritóriovitalporquecontrolavaotráfegoqueentravaesaíadoportodeBordeaux.Semele,osbordeleses não teriam como expedir seu vinho para o resto do mundo.Leclercrecebeuordensdeesvaziá-lo.Ficou furioso. Não era ali que queria estar; a ação principal estava na

Alemanha.Leclerc,quehavialibertadoPariseEstrasburgo,queriaestarláparaonocaute.Conseguiu fazerdeGaulleconcordarque,assimquesuasforçascapturassemRoyan,eleseriaenviadodevoltaparaaAlemanha.Royan rendeu-senodia18deabril.Quatrodiasdepois, Leclerc e seus

homens estavam a caminho. Sua arremetida através da França foi semprecedentes. Numa carta àmulher, Leclerc escreveu: “Será terrível parameus homens se perdermos este momento épico por apenas alguns

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metros.”Estavadecididoanãodeixarissoacontecer.Emapenascincodias,ele e sua divisão cobriram mais de mil quilômetros e cruzaram o Reno,entrandonaAlemanha.Para entrar na ação o mais depressa possível, Leclerc concordou em

desmembrar sua divisão em unidades separadas e ligá-las a forçasamericanas. Seu 5o Grupo Tático foi reunido ao 21 o Corpo do Exércitoamericano,cujodestinoeraBerchtesgaden.Lado a lado, como cavalos na largada, partiram para a cidade bávara,

cadaladodecididoachegarláprimeiro.Temendo que os franceses viessem a levar a melhor sobre eles, os

comandantesamericanos ixaramparao5 oGrupoTáticoumobjetivomaisdistante,Salzburgo,que icavaadiantedeBerchtesgaden,dooutroladodorio.Paraquenãolhepassassemaperna,Leclercsimulouaceitarasordens,

mas dividiu seu grupo em três subgrupos. Dois foram enviados paraSalzburgo como os americanos haviam instruído. O terceiro continuouavançando em direção a Berchtesgaden. Suamissão: chegar lá antes dosamericanos.Não demoroumuito para que os americanos percebessemque alguma

coisaestavaerrada.Aunidade francesaquedeveriaestaravançandoemseu lanco direito, o terceiro subgrupo, icava aparecendo e sumindo devista.Depois desapareceu por completo.Quando os americanos tentaramfazercontatoporrádio,houvesósilêncio.“Depoisdeimplorarparase ligaranós,simplesmentedesapareceram”,

rosnou um pracinha. “Num minuto estavam aqui, no outro tinhamdesaparecido.”Quandoosamericanosentenderamoquetinhaacontecido,osfranceses

estavam duzentos quilômetros adiante deles e se aproximando do seudestino.No dia 4 de maio, com Berchtesgaden angustiantemente próxima —

estava a apenas cinqüenta quilômetros de distância —, os americanosinalmente alcançaram os franceses. Estes, como viram, haviam sidodetidosnumaravina,encurraladosporumfogodelongoalcancedaSS.Erasuagrandechance,pensaramosamericanos.Dandomeia-volta,decidiramtomarcomseucomboioumcaminhomais indiretoparaBerchtesgaden,aAutobahn, apostandoque a nova via expressa queHitler construíra paraconduzir suas tropasao frontmais rapidamente lhespermitiria chegar láprimeiro.Foi uma decisão errada. Horas depois, naquela tarde, deram com uma

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ponte que havia sido explodida e foram forçados a passar a noite alienquantoosengenheirosseesforçavampararepararaestrutura.Osfranceses,nãoquerendoterbaixasnaqueleestágiotardiodaguerra,

mantiverampacientemente sua posição e esperaram.Quando os alemãesficaramsemmuniçãoesedispersaram,puseram-seemmarchadenovo.No inal daquela tarde, uma coluna de tanques francesa entrou em

Berchtesgaden sem disparar um tiro. À sua frente ia um rapaz daChampagne.BernarddeNonancourtmalpodiaacreditarqueestavaali.Sua primeira visão deBerchtesgaden naquele 4 demaio deixou-o sem

fôlego.Eraexatamentecomoumoutrovisitantedescrevera,“umaterradecontode fadas commontanhasdebruadasdeneve,matas verde-escuras,friosregatoscantantesecasasdepãodemelqueeramumdeleiteparaosolhos”.Segundoalenda,emalgumlugarnaquelasmontanhas,Barba-Roxae seus cavaleiros dormiam um sono encantado. Um dia, dizia-se, Barba-Roxa acordaria e inauguraria uma eradouradadepazpara aAlemanha.Esse tempo ainda não chegara. Enquanto Barba-Roxa dormia, Hitlermergulharaopaísnaguerraenaruína.Foi em Berchtesgaden que ele começou a conceber muitos de seus

planosparaumReichdeMilAnos.Comocorrerdosanos,ocenárioidílicofoiconvertidonumafortaleza.Seuchalezinhorústicotransformou-senumrefúgio monumental, eriçado de canhões antiaéreos, dotado até de umamáquina geradora de fumaça que envolvia a área numa vasta nuvemsempre que havia algum perigo de ataque aéreo. Árvores foramderrubadasparaque trilhasna lorestapudessemser transformadasemestradas pavimentadas. Pequeninas capelas votivas e casas de campoforam derrubadas para dar lugar a feias construções de concreto quealojavamtropas,convidadoseumafrotadecarrosfantásticos.A fantasia mais extravagante de Hitler, porém, foi um elevador que o

pudesse transportar para o Ninho da Águia, seu retiro privado quase2.500metrosacimadeBerchtesgaden. SegundoobiógrafoRobertPayne,“ocorreu a Hitler que seria possível cavar um túnel na montanha de talmodo que ele poderia ser impelido até o topo num elevador, o que lhepermitiriaexaminarapaisagemcomoumdeusaobservartodososreinosdaterra.”Os operários precisaram de três anos para entalhar o poço na rocha

dura. O elevador que instalaram tinha uma porta laminada a ouro, pisoatapetado e assentos acolchoados. Um jogo de fones o ligava a Berlim,Paris,Londresetodasasdemaiscidadesimportantesdomundo.Emboraoprojetotivessecustado30milhõesdemarcos,Hitler icousatisfeito.Foium

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presente que deu a si mesmo por ocasião de seu qüinquagésimoaniversário.Lamentavelmente, quando Bernard de Nonancourt e seus homens

chegaram,oelevadorestavaenguiçado.Osalemãesemretiradaohaviamsabotado.Empoleirado na beirada de seu tanque, Bernard contemplou o pico da

montanha,mesmerizadoporsuabeleza.Águiasvoavamemcírculoslentosacimadopicodequase2.500metros,suasasasreluzindoàluzdeclinantedosol.Foraumlongodia,masaindanãoestavainteiramenteterminado.“Você, de Nonancourt, venha cá!” Era seu o icial comandante. Bernard

escorregou do seu tanque e se apressou a se apresentar. “Você é daChampagne, não é? Nesse caso deve entender alguma coisa de vinho.”Bernardassentiueestavaprestesaresponderquandooo icialcontinuou,“Temos uma missão especial para você. Vai praticar montanhismoamanhã.” O o icial explicou que o serviço secreto militar acreditava quegrande parte do vinho que os nazistas tinham roubado da França foraescondida no Ninho da Águia. “Quero que leve uma equipe até a casa evejaoquehápor lá.Tratededescansar, porquevai partir cedo.Nãovaiserumaescaladafácil.”Bernard levou alguns momentos para assimilar as palavras do o icial.

Emseguidadeu-se contadequeestavaprestes a entrarnum lugarondepoucosoutroshaviampisado.Ninguémsabiaaocertooquehavialáouemquecondiçõesestava.OsSS,emsuaretirada,jáhaviamalagadoasadegasdeváriascasasdecampocomgasolinaeasincendiaram.QueteriamfeitonoNinhodaÁguia?eleseperguntou.Embora Berchtesgaden tivesse sido alvo de bombardeios aliados em

dias recentes, Bernard e vários outros soldados encontraram um chaléainda intactoecomeçaramadescarregarseuequipamento.Pelaprimeiravezemsemanas,dormiriamemcamas.Mas Bernard não conseguiu dormir. O que fez foi pegar uma folha de

papelecomeçaraescreverumacartaparaamãe.Tantacoisaaconteceraque lhe fora di ícil se manter em contato com ela. Agora descobria quehavia coisas demais que não podia lhe contar. Como poderia explicar ascoisasque tiverade fazer comomembrodeumcomandonaResistência?Comopoderia jamaisdescreveroshorroresqueviraemDachau,quandosua unidade ajudara a libertar aquele campo? “Sei como você se sentedepoisqueperdemosMaurice”, escreveu. “Não sepassaumdia semqueeu pense emmeu irmão e no que essa luta nos custou a todos nós,masagora posso dizer com certeza que lutar nesta guerra era, para mim, a

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coisacertaafazer.”Bernard acordou seus homens antes do alvorecer. O general Leclerc

chegara durante a noite e tinha mais uma ordem para os homens queiriamescalaramontanha.QueriaabandeiradaFrançahasteada sobreoNinhodaÁguia.A primeira parte da jornada foi a mais fácil. Bernard e sua equipe

dirigiramdeBerchtesgadenatéumacasadechámaisacimanamontanha,aunsvinteminutosdali.Láhaviaumestacionamentoeumaentradaparao elevador que Hitler construíra. Bernard checou a situação comengenheirosquehaviamsidoenviadosparalámaiscedoparaversehaviaalgummeiodeconsertá-lo.Éimpossível,eleslhedisseram.Bernardesuaequipecomeçaramasubir.Atemperaturaestavacálidae

o avanço era lento à luzdasprimeiras horasdamanhã. Freqüentementeoshomenstinhamdepararenquantoumgrupoavançado inspecionavaaencostaàprocurademinasearmadilhas.Duashorasdepois,oshomensestavamtendodi iculdadepararespirar.

EssaeraumadasqueixasdeHitlerearazãoporqueraramentevisitavaoNinhodaÁguia.Oar,eledizia,erararefeitodemais.A uns cem metros do topo, o caminho icou mais íngreme. Bernard

enviouumaturmadealpinistasà frentepara lançarcordas.Depois,umaum,oshomensseguindarampelafacedopenhasco.Quando chegaram ao topo, estavam todos exaustos. Mesmo a uma

altitude de 2.438 metros a temperatura continuava amena. A vista, poroutro lado, era deslumbrante e os homens izeram uma pausa paracontemplá-laenquantotentavamrecobrarofôlego.De fora, o Ninho da Águia era sem graça, quase insípido, não muito

diferente de umbunker. Bernard percebeu de imediato que não seriamuito fácilentrarali.Aentrada,umaportadeaço,estavaemperrada.Foiinútil empurrá-la emalhos tampouco funcionaram.Bernard icoude ladoenquanto engenheiros armavam uma pequena carga de explosivos.Quando a fumaça e a poeira se dissiparam, a porta estava ligeiramenteaberta.Todosseenfiarampelafresta;Bernardrumouparaacave.Maisumavez,haviaumaportaaabrir.Comoaprimeira,elaserecusou

aceder,masfinalmenteBernardconseguiutranspô-la.O interior estava escuro. Bernard ligou sua lanterna. Não precisou de

mais de alguns segundos para compreender o que havia ali. Gritou,chamando os outros. “Vocês não vão acreditar nisto!” disse. Para ondequer que apontasse sua lanterna, havia garrafas, algumas em caixas demadeira,outrasemengradadosdeferro.

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Os outros homens entraram correndo com suas lanternas; a visão quetinhamdiantedesieraarrebatadora.Eraumcômodoenormeabarrotadodevinhodopisoaoteto.“Haviatodososgrandesvinhosdequeeuouvirafalar, cada safra legendária”, Bernard contoumais tarde. “Tudo que forafeitopelosRothschildestava lá,osLa ites,osMoutons.Osbordeauxeramsimplesmenteextraordinários.”Bernardfezumcálculorápido.Deviahaveralipelomenosmeiomilhão

degarrafas,muitasdelasmagnums.Os bordeaux, contudo, eram só uma parte da história. Havia também

borgonhas notáveis, bem como portos raros e conhaques datados doséculoXIX.Garrafasdetodasascasasdechampanheimportantesestavamali também: Krug, Bollinger, Moët, Piper-Heidsieck e Pommery, todas asmarcasdeprimeiraqualidade.FoientãoqueBernardavistouoLanson,dacasa que pertencia a seu tio. “Ajudei a fazer esse champanhe”, pensouconsigomesmo.Masnãofoiissoquemaisosurpreendeu.“Oquerealmenteme icouna

lembrança foi o Salon de 1928, aquele champanhe inesquecível. Eraexcelente, e só havia quantidadesmínimasdele.”Quase cinco anos antes,quando trabalhava na Delamotte, uma casa de champanhe que icavadefronteàSalon,deNonancourtpresenciaraoshomensdeGöringlevandoessechampanheembora.Bernard tocou algumas das garrafas, como que para se convencer de

que aquilo era verdade. Depois começou a rir. Parte do champanhe, eleviu,erapoucomaisquezurrapa.Haviaenormesnúmerosdegarrafascoma indicação “ReservadoparaaWehrmacht”;outras tinhamsuaqualidadeindicada apenas por categoria, A, B ou C. Representavam um terço detodas as vendas de champanhe de 1937 a 1940, uma quantidade que aWehrmacht requisitara para “manter o moral de suas tropas”. Essasgarrafas,Bernardsabia,eramasqueosprodutoresusavamparaselivrardeseupiorchampanhe.Agora Bernard tinha um problema para resolver: como transportar

meiomilhãodegarrafasmontanhaabaixo?Chamouosengenheiros.“Têmcertezadequeesseelevadornãofunciona?Émesmoimpossívelconsertá-lo?”Elessacudiramacabeça,explicandoqueoestragoeratãoamploqueseuconsertoexigiriamaisequipamentosdoqueestavamcarregando.Então Bernard se lembrou de certo grupo de homens que sabia

manipular as coisas com cuidado, especialmente nas circunstâncias maisdifíceis.Mandouumamensagempelorádioparaocorpomédico.“Etragamtodasaspadiolasqueconseguiremachar”,disse.

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O que aconteceu em seguida constituiu uma das mais esdrúxulasevacuações jamais armadas em tempo de guerra, um exercício queenvolveria mais de duzentos soldados e levaria vários dias para serconcluído.AscaixasdevinhoeramarrastadasparaforadoNinhodaÁguiaeamarradasamacas.Comaajudadaturmadealpinistas,asmacaseramcuidadosamentebaixadasporalgumascentenasdemetrosdopicoaolocalonde duplas de padioleiros esperavam. Em seguida as padiolas eramcarregadas lentamentemontanha abaixo, até onde tanques, caminhões eoutros veículosmilitares aguardavam. Bernard esforçou-se para tomar adianteira, parando de vez em quando para contemplar a estranhaprocissão de padiolas, todas carregadas com vinho, avançando encostaabaixo.Alcançouseutanquepoucoantesdaprimeirapadioladevinho.“Tragam

issopara cá”, ordenou,mostrandoo veículoparaospadioleiros. “Faites leplein [encham até a borda]”, disse. Os homens ergueram uma caixa dapadiola e a entregaram a Bernard em sua torre. Era uma caixa dechampanheSalonde1928.À medida que mais padiolas chegavam, a mesma cena espantosa se

repetia.Soldadosdespojavamseustanquesdetudoquenãoeraessencial,atirando fora roupas, ferramentas e até munição extra para abrir lugarpara a nova carga. Alguns esvaziaram seus cantis e os encheram commaravilhaslegendáriascomoLatourde1929,Moutonde1934eLa itede1937.Foiumafestaetanto.Quandoabandeira francesa foihasteadasobreo

Ninho daÁguia, Bernard abriu sua primeira garrafa de Salon de 1928 eergueuumbrinde.Ossoldadoschamaramaquilodelereposduguerrier.Uma última escaramuça ainda os esperava. Seus “primos” americanos

tinham acabado de chegar a Berchtesgaden e não estavam lá muitosatisfeitos de ver que os franceses haviam levado a melhor sobre eles.Sempre haviam tido por certo que chegariam a Berchtesgaden primeiro.Serem passados para trás, logrados, por um punhado de sujeitos queoficialmenteestavamsobseucomando,osvexava.Bernard e seus homens não icaram terrivelmente preocupados.

Naquela altura, estavam na maioria em plena comemoração e poucodispostosadeixarumpunhadodeperdedorescondoídosestragarafesta,sobretudo porque havia bebida mais do que su iciente para todos. Osamericanosnãolevarammuitotempoparaperceberisso.Haviaadegasdevinhoportodaaparte.Praticamentecadacasadecampotinhasuaprópriacavebemabastecida.Osrecém-chegadosencontraramumaquepertencia

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ao marechal-de-campo Göring. Estava abarrotada com mais de 10.000garrafas. Logo, quase o único som que se podia ouvir era o espocar derolhas.Um americano, no entanto, não estava com ânimo para celebrar. O

general Wade Haislip, comandante do 21 o Corpo do Exército, haviaacabado de chegar a Berchtesgaden e a primeira coisa que viu foi atricolore francesa tremulando sobre o Ninho da Águia. Ficoudesconcertadoeraivoso.“O senhor estava sob nossas ordens e ainda está”, vociferou para o

generalPhilippeLeclerc.“Baixeaquelabandeiraehasteieaamericana!”Leclerccumpriuaordem,depoisdeudeombros.Queimportânciatinha

aquilo?Elesabiaquemganharaacorrida.Não muito depois, ele topou com um dos comandantes de seu grupo,

generalPauldeLanglade.“Bem,terminou”,disseLeclerc.“Foiumacaminhadalongaepenosa,mas

terminoubem,vocênãoacha?”Langladeassentiuesorriu.“Deusamaosfranceses.”

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DEZ

Ocolaboracionista

LouisEschenauer,àesquerda,numacorridadecavaloscomumoficialalemão.

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EraimpossívelignorarLouisEschenauer.“Eraumhomemcorpulento comumcharuto grande

e uma personalidade ainda maior”, disse Jean Miaihle.“TodomundoconheciaotioLouis.”TioLouiseraomaisdestacadocomerciantedevinhosde

Bordeaux, umnégociant infatigável, que comprava vinho agranel, engarrafava-o e depois o vendia para clientes

espalhadosmundoafora.Era luenteem inglês, francês,alemãoerussoeescreviasuasprópriascartascomerciaisnessas línguas.Sabiamaissobreo negócio de vinhos que qualquer um em Bordeaux. Um dia típico oencontraria visitando várioschâteaux, experimentando seus vinhos enegociandooquelhepareciaserumpreço“justo”,bemcomolidandocompilhas de correspondência e encomendas e supervisionando oengarrafamento, o empacotamento e a expedição. Tio Louis era tão bem-sucedido e ganhava tanto dinheiro que raramente tinha de pedirempréstimosabancos.Costumavacomprarasafrainteiradeumvinicultorepagaremdinheirovivonatampadobarril.“Eschenauer era muito talentoso, um verdadeiro expert”, disse Heinz

BömersJr.,que,comoseupai,oweinführerdeBordeaux,conheceraLouise trabalhara com ele. “Era capaz de detectar as mais ligeiras nuances eimperfeiçõesnumvinho.Duranteaguerra,eleemeupaicostumavamsaire experimentar dúzias de vinhos juntos. Con iavamno julgamento umdooutroeerambonsamigos.”Foi essa amizade e seus estreitos laços com a liderança alemã que

permitiram a Eschenauer aumentar incrivelmente sua fortuna durante aguerravendendovinhoparaoTerceiroReich.Mas isso também o meteu em apuros. Depois da guerra, foi preso e

levadoajulgamentoporcolaboracionismoeconômico.Emborao julgamento tenhaocorridoem1945,muitosnaFrançaainda

consideramdelicadoouembaraçosodemaisfalararespeito.Éumcapítulodahistóriaquepreferemesquecer, umperíodoemquemaisde160.000pessoas foram levadas a julgamentoou investigadaspor colaborar comoinimigo.AtéopresidenteCharlesdeGaullesepreocupoucomesseperíodoe,embene íciodaunidadenacional,procurouretrataraFrançacomouma“naçãoderesistentes”.O caso Eschenauer, no entanto, suscita questões incômodas sobre esse

retrato, questões que ainda estão sendo debatidas. Foi ele umcolaboracionista? Usou suas ligações com os alemães para enriquecer

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ilegalmente? Ou foi apenas um dos muitos na França que simplesmentefizeramoquetinhamdefazerparasobreviver?OsqueconheciameadmiravamtioLouissustentamqueéinadequadoe

desagradável icar esquadrinhando o passado de um homemquando elenão tem mais condições de se defender. Deixem que descanse em paz,dizem,equenósoutrosvivamosempaz.Essa atitude é partilhada pelo sistema jurídico francês. Os documentos

relativosao julgamentodeEschenauer,partedosquaiseramantidaatrásdeportas fechadas, foramseladosporuma leiqueprotegeaprivacidadedaspessoas,restringindooacessoadocumentosparticularesporsessentaanosapósasuamorte.Eschenauermorreuem1958.

Ele nasceu em1870. Sua família, quemorava emEstrasburgo, exploravaaliumbem-sucedidonegóciodevinhosatéqueaGuerraFranco-Prussianafoi de lagrada. Com a Alsácia prestes a ser anexada pela Alemanha, afamília fugiu para Bordeaux, onde esperava estar mais segura, e ondeLouisnasceunaquelemesmoano.Foi uma mudança propícia. O porto de Bordeaux e outras facilidades

comerciais forneceram à família o cenário ideal para a retomada dosnegócios.Emumano,aMaisonEschenauersetornaraumdosnomesmaisconhecidosnaregião.No domínio pessoal, contudo, a história era muito diferente. O pai de

Louis era um mulherengo, algo que a mãe tratou de deixar muito claropara ele. Uma das primeiras lembranças de Louis era ver a mãe aosprantos porque seu pai estava com outra mulher. Muitas vezes, elaarrancavaomeninodecasapara ir atéoporto,ondevasculhavabareseespeluncasàprocuradomarido. “Queroquevocêvejaoqueseupaiestáfazendo;quero lhemostrarohorrorda libertinagem”,Louis lembravadeouvir damãe. Para umgarotinho, fora uma experiência traumática, dissemais tarde a amigos, uma experiência que carregaria com ele e afetariaseusrelacionamentoscommulheresportodaasuavida.Umdiaarranjouuma amante,mas nunca se casou com ela nem reconheceu legalmente ofilhoquetiveram.Nãopodiafazê-lo,dizia,porquesuamãenãoaprovaria.Em1900, quando seu paimorreu, Louis, então com vinte e nove anos,

assumiuadireçãodaMaisonEschenaueretransformou-anumadasmaisimportantes irmas negociadoras de Bordeaux, especializando-se emvinhos inos, osgrandcrus. Era astuto e exigente e dirigia sua irma com

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discernimento e engenhosidade. Durante a lei seca, na década de 1920,conseguia remeter vinho para seus clientes nos Estados Unidosengarrafando-o em frascos de perfume. Os melhores vinhos, como oChâteauAusoneeoChâteauSuduiraut,eramenviadosemcristalgenuíno.Vinhosbrancossecoslevavamorótulo“águadastermasromanas”.Em círculos sociais, tio Louis, como era popularmente conhecido, era

consideradouman itriãoafávelegeneroso.Asmulheresoadoravameosamigos praticamente imploravam reservas no Le Chapon Fin, orestaurantequeEschenauerpossuía.“Nãoseconseguiaentraraliamenosque se tivesse uma pitada de humor britânico, uma roseta da Legião deHonra ou um convite pessoal do tio Louis”, recordou um bordelês. Orestaurante ostentava os melhores vinhos da França e uma clientela àaltura. O rei Alfonso XIII da Espanha e o príncipe de Gales eram apenasdoisdosfregueseshabituais.Alfonsotinhaespecialpredileçãopelastrufasservidasemtaçasdeprataacompanhandopratosdecarnedelicadamentepreparados. O príncipe de Gales gravitava entre écrevisses à la nage(camarões-d’água-doce lutuandoemseumolho)e lièvreà laroyale (lebrecozidaaoestiloreal).ComoEschenauererachamadoo“reideBordeaux”,anobrezasesentiaperfeitamenteemcasaali.Na condição de mais in luente comerciante de vinhos da região,

Eschenauerpresidiaumasociedadeque,sobmuitosaspectos,erasecretae fechada. Os Chartrons— cujo nome derivava doQuai des Chartrons, afaixaao longodoportoondeviviametrabalhavam—eramnégociantsdeorigem inglesa e alemã, protestantes cujos ancestrais haviam seestabelecidoeiniciadoocomércionoportodacidadeduzentosanosantes.Tinham nomes como Lawton, Johnston, Kressman e Schÿler. Casavam-seentresi, jogavamtênisegolfe, falavaminglêsealemão,alémdefrancês,efaziam um esforço diligente para manter contato com seus países deorigem, realizando peregrinações anuais a suas pátrias ancestrais paradepositar loresnotúmulodeparentes.AtrásdasportasfechadasdoQuaides Chartrons, viviam em apartamentos suntuosos de elegância discreta,cercadospormognoantigoepratariadefamília.Embora Eschenauer se considerasse “um deles”, aquele não era seu

estilo.MoravaforadoQuai,numacasadecoradacompinturasmodernas.Agolfeetênis,preferiacorridasdecavalo;possuíavárioscavalospremiadosque,diziaele,supriamumpoucoavidadefamíliaquenãotinha.Uma outra paixão eram os carros. Foi o primeiro a possuir um em

Bordeauxeteveváriosfabricadosparasisegundosuasespeci icações.Oscarrosvistososatraíamgrandeatenção,especialmentequandoelerodava

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litoralabaixorumoaobalneáriodeBiarritz,ondeinstalarasuaamante.“Louis tinha um verdadeiro amor ao luxo”, disse FlorenceMothe, uma

vinicultoraeescritoradeBordeaux.“ComsuaslimusinessuntuosaseseusinvernospassadosnoEgito,pareciaumpersonagemdeF.ScottFitzgerald.”Eschenauer era igualmente lamejante em sua vida de negócios,

alardeando seus clientes alemães famosos e seus contatos no mundointeiro.UmdeseusassociadosmaispróximoseraJoachimvonRibbentrop,o ministro das Relações Exteriores do Terceiro Reich, que Eschenauercontratara antes da guerra para vender alguns de seus vinhos naAlemanha. Quando a França declarou guerra à Alemanha em 1939,Eschenauer, que faziamaisdametadede seusnegócios comaquelepaís,viu-se numa posição desconfortável: alguns de seus melhores amigos eclientes eram agora “o inimigo”. Com as exportações para a Alemanhainterrompidas,Eschenauerviu-sederepentecomumenormeestoquedevinhosencalhado.A crise durou pouco. Em junho de 1940, depois que as forças alemãs

derrotaram a França, um velho amigo e cliente foi bater à porta deEschenauer. Era Heinz Bömers, presidente da Reidemeister & Ulrichs, amaior companhia de vinhos da Alemanha. Bömers disse a Louis queacabaradeaceitarumanovamissão:comprarvinhoparaoTerceiroReich.“Pode ser lucrativo para nós dois porque não estou representando aquiapenasoTerceiroReich;tenhopermissãoparacomprarvinhoparaminhaprópria companhia também”, ele disse, “de modo que podemos levaradiante nosso negócio regular como de costume, e além disso você podevender diretamente para o governo alemão.” Bömers explicou que, antesdeaceitarocargodeweinführer,insistiraemtotalindependência,ouseja,liberdade irrestrita de trocar dinheiro para seus negócios pessoais.AcrescentouqueaFrança,agoraumpaísocupado,sóteriapermissãoparavender seus vinhos para a Alemanha; todos os outros mercados usuaispara exportação como a Grã-Bretanha, a Rússia e os Estados Unidosestavamsendointerrompidos.Louis não precisou ser persuadido. Compreendeu que o arranjo que

Bömers estava propondo era não apenas prático, como potencialmentelucrativo—paraosdois.Umtrato foi logoselado,paraa invejadeoutroscomerciantesdevinho.As novas realidades políticas e econômicas que governavam a França

pareciam convir a Eschenauer, apesar dos traumas da ocupação. Como amaioria dos outros Chartrons, ele era politicamente conservador edescon iado de tudo que pudesse obstruir os negócios. O que mais o

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assustavaeraoespectrodocomunismo,dasublevaçãosocialedaagitaçãooperária.Foi quase com um suspiro de alívio que ele saudou o retorno do

marechalPhilippePétainem1940àche iadoEstado.AaversãodePétainao comunismo e sua decisão de colaborar com a Alemanha, Louis sentia,ofereciam a melhor garantia de que a França iria evitar o tipo deestagnaçãoeconômicaqueestropiaraopaísnosanosanterioresàguerra.A palavra “colaboração”, naqueles anos, tinha poucas conotações

sinistras. Signi icava as relações de trabalho que Pétain desejavaestabelecercomBerlimporquepoderiamajudaraFrançaasereconstruir.Nesse espírito, Eschenauer ingressou no Groupe Collaboration, umaorganização que apoiava o programa de Pétain e cujo nome vinha dosdiscursosdomarechalemdefesadacolaboração franco-germânica.Entreseus membros — como Louis viria a lamentar — contavam-se tambémcentenasdepessoascujassimpatiaspolíticaseramclaramente fascistasepró-nazistas.TioLouisdoou10.000francosaoGroupe.Na altura de 1942, o signi icado da palavra colaboração mudara

drasticamente. Agora signi icava perseguir e deportar imigrantes judeus,prendercomunistaseoutrosvistoscomoinimigosdoEstado—signi icavafazer tudo que Berlim quisesse na esperança de que seria assegurada àFrançaumaposiçãofavorávelnumaEuropadominadapelaAlemanha.Teria Eschenauer compreendido o que estava acontecendo? Se tivesse

compreendido,teriaissofeitoalgumadiferença?“Suaprioridadenúmeroumeramosnegócios”,explicouFlorenceMothe,

queconheceraEschenauerecujopadrasto trabalharaparaele. “Masnãoera um anti-semita. Nunca o ouvi dizer uma palavra contra judeus.” Defato, era amigo do barão Philippe de Rothschild, que mais tarde iriadefendê-lo.Quando os alemães tentaram requisitar o vinho dos Châteaux La ite-

Rothschild e Mouton-Rothschild, Eschenauer instou Bömers a intervir eevitar que aquilo se concretizasse. O weinführer concordou. Ele jágarantira aosbordelesesque faria tudoqueestivesse a seu alcanceparaproteger os melhores vinhos deles. O vinho de Rothschild permaneceuintacto. Mais tarde, o barão Philippe, que conhecia tanto EschenauerquantoBömerse trabalharacomeles, con irmouahistóriaparaFlorenceMotheesereferiuatioLouisemseulivrocomo“umgrandeamigomeu”.Apesar disso, como os alemães estavam con iscando outras

propriedades viníferas para vendê-las em seguida para não-judeus,Eschenauer apressou-se em tirar proveito. Fundou uma companhia, a

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SociétédesGrandsVinsFrançais,quelhepermitiucomprardiscretamentepropriedadesdessetipo.“Eleerasemdúvidaalgumaumoportunista”,disseMothe,“masnãoera

pró-nazista; era simplesmente pró-Louis. Para Louis, os negócios vinhamsempreemprimeirolugar.”MuitosnacomunidadedosnegóciosdeBordeaux,porém,consideravam

o comportamento de Eschenauer provocativo. Ressentiam-se do modocomoeleexibiasuasamizadesalemãs.Freqüentementeconvidavao iciaisnazistas como Heinz Bömers para uma tarde no hipódromo. ErnstKühnemann, o icial alemão que comandava o porto da cidade e a basesubmarina ali, além de ser seu primo distante, era um convidado aindamais freqüente. Os dois erammuito ligados porque Kühnemann tambémestava no negócio de vinhos e dirigia a companhia de vinhos berlinenseJulius Ewest. Muitas vezes, os dois podiam ser visto passeando de braçodadoao ladodavia férrea,umavisãoquemuitosespectadores francesesconsideravamprovocativaerepulsiva.Foradostrilhos,osprimospodiamservistosnorestaurantedetioLouis,

onde outros o iciais alemães,muitos enviados peloministro das RelaçõesExterioresRibbentrop,seentretinhamtambém.Parapodersatisfazersuaclientela alemã, Le Chapon Fin obtivera várias prerrogativas. Foiautorizadoaservirvinhovinteequatrohoraspordia;nãoestavarestritoa certos horários como outros restaurantes por causa do racionamento;tampoucoeraobrigadoaoferecerdiariamentequatrocardápiosdiferentesaospreços ixosde18,50,70e100francos.Podiacobraroquedesejasse.Emboraemoutroslugaresfossequaseimpossívelconseguircarneepeixe,continuava-sepodendojantarmuitobemnoLeChaponFin.Esses privilégios deixaram um travo na boca de outros bordeleses.

Enquantolutavamparasobreviver,tioLouiscontinuavavivendoàlarga.

Noverãode1944,praticamente todospercebiamqueaAlemanhaestavaprestesadesmoronar.AtéHeinzBömers,queestavavisitandoafamílianaBaviera, sabia que o im da guerra se aproximara, recusando-se a voltarparaBordeaux.Após o Dia D, quando uma cidade após outra estava sendo libertada,

suásticas começaram a aparecer nas portas de suspeitos decolaboracionismo.Oagouroestavalá,masLouisEschenauerpareceunãootervisto.ApesardasadvertênciasdedeGaulledequeosquecolaborassemcom

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o inimigo seriam punidos, o estilo de vida glamouroso de Louispermaneceuinalterado.ContinuaramasviagensaBiarritzemseuscarrospersonalizados (ao contrário de outros, ele ainda parecia conseguircombustível),astardesnohipódromocomosamigosalemãeseosalmoçosquasediárioscomocapitãoErnstKühnemann.Provavelmente foi durante um desses almoços que Kühnemann

informouaEschenauerque,comosAliadosentrandonaFrançaderoldão,nãodemorariamuitoeasforçasalemãsqueocupavamBordeauxestariampartindo. Foi talvez naquele momento que tio Louis inalmente se deucontadequeamarérealmentemudaraequeelepoderiaestaremsériosapuros.Observoucomcrescenteansiedadequandoastropasalemãs,pegasem

debandada,promoveramatrocidadeseexecuçõesemmassa,eviucomoaResistência retaliou, perseguindo não só alemães, como suspeitos decolaboração.Naquele mês de agosto, Eschenauer icou sabendo que os alemães

planejavamexplodiroportodeBordeauxpoucoantesdeevacuaracidade.Quando um político local com conexões com a Resistência lhe pediu queusassesuain luênciaparatentasalvaroporto,Louisseagarrouàchance.Eraumamaneira dedeixar claro que estavado lado vencedor e poderiaaté lhe salvar o pescoço. Além disso, essa era sem dúvida a melhormaneira de proteger os negócios. Precisava daquele porto para expedirseuvinho.Imediatamente, Eschenauer entrou em contato com Kühnemann para

organizar uma reunião de emergência com outros o iciais alemães. Nela,sustentouquedestruiroportoseriaumgrandeerro,queelenãoserviaanenhumpropósitomilitarequemuitos inocentespoderiamserferidosoumortos. O que nem Eschenauer nem a Resistência sabiam era que osalemãesprovavelmentenãoteriamsidocapazesdedestruiroporto,poisamaiorpartede seusdetonadoreshavia sido sabotadaapenasalgunsdiasantesporumsoldadoalemãocontrárioaoplano.Masesseeraumsegredoque os alemães estavam guardando para si mesmos. Blefando,prometeramnãoexplodiroportosefossepermitidoàssuastropasdeixarBordeauxpacificamente,semseremalvejadas.AResistênciaconcordou.Kühnemannfezaindaumaoutraexigência:quetioLouisnadasofresse;

deveriaserdeixadoempazdepoisqueastropaspartissem.Àsseisemeiadatardedodia26deagosto,bandeirasfrancesasforam

içadas por todo o porto para sinalizar que se chegara a um acordo.Naquele momento, Kühnemann estava com Eschenauer na casa deste,

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regandosuasdespedidascomumagarrafadevinho.No dia seguinte os alemães tinham partido. Eschenauer suspirou

aliviado.Quatrodiasdepois,foidetidopelaResistência.

A detenção de Eschenauer seguiu a do marechal Philippe Pétain, querenunciaraumasemanaemeiaantes.Postosob“custódiaprotetora”pelosalemães,quetalvezestivessemtentandomanterogovernodeVichyvivo,omarechaldeoitentaeoitoanosfoitransportadoàforçaparaaAlemanha,avançandodeumcasteloparaoutro.Issoeraparticularmentehumilhanteporqueomarechalhaviajuradojamaisdeixarosolofrancês.Antesdesuapartida,foi-lhedadaumaúltimaoportunidadedefalaraopovofrancês.“Quando estamensagem vos chegar, nãomais estarei livre”, ele disse.

“Eutinhaumaúnicameta,proteger-vosdopior.Àsvezesminhaspalavrasou atos vos devem ter surpreendido. Podeis estar certos de que foramaindamaispenososparamimdoqueparavós.Masnuncacesseide lutarcomtodomeupodercontratudoquevosameaçava.Desviei-vosdecertosperigos; houve alguns, porém, de que lamentavelmente não vos pudepoupar.”Embora o novo governo francês sob Charles de Gaulle preferisse ter

Pétain longe da França, o velhomarechal estava decidido a voltar. DissequequeriadefenderseupapelàfrentedogovernodeVichy.Emjunhodoanoseguinte,defatovoltou.Foiimediatamentepreso,acusadodetraiçãoelevadoajulgamento.Ao comparecer perante a Suprema Corte, Pétain, que havia sido

ignorado por de Gaulle quando se oferecera para lhe transmitir seuspoderes, apresentou uma defesa vigorosa, a irmando que tentara agircomo um escudo para proteger o povo francês. “A cada dia, adaga nagarganta, lutei contra as exigênciasdo inimigo”, declarou. “Ahistóriadiráque eu vos poupei, embora meus adversários pensem apenas em mecensurar pelo inevitável… Enquanto o general de Gaulle conduzia a lutafora de nossas fronteiras, eu preparei o caminho para a libertaçãopreservandoaFrançaemsofrimento,masviva.”Muitosconcordaramcomeleeaindaconcordam.May-ElianeMiaihlede

Lencquesaing é um deles. “As pessoas dizem que foi de Gaulle quemlibertouaFrança,massemosamericanoselenãoeranada”,disseela.“FoiPétain que permaneceu, que se deu ao país e evitou que sofrêssemosmuitomais.Algunsdizemqueeleestavadoladoalemão.Não;eleodiavaos

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nazistas.”Sejacomofor,Pétainfoideclaradoculpadoesentenciadoàmorte.Várias

semanasdepois,deGaullecomutouasentençaemprisãoperpétua.Outrosmembros do governo de Vichy, como o primeiro-ministro Pierre Laval,foramjulgadoseexecutados.

Aperspectivadepassar o restoda vidanaprisão, oupior, deixaraLouisEschenauer profundamente abalado. Após ajudar a salvar Bordeaux dosalemães, a prisão lhe viera como um grande choque. Se o tribunal sedispuseraacondenaromarechalPétainàmorte,oquefariacomele?Enquanto de inhava numa cela de prisão aguardando o julgamento, o

comerciante de vinhos de setenta e cinco anos icou sabendo dosjulgamentos sumáriosqueestavamsendo realizadosporvários tribunais.Mulheres que haviam se consorciado com alemães estavam recebendo oqueGertrudeSteinchamoua“coiffure’44”—tinhamascabeçasraspadas.Homensdenegócios,especialmenteosdonoroestedaFrança,quehaviamcometido exatamente o crime de que Eschenauer era acusado —colaboracionismo econômico — estavam sendo en ileirados diante deesquadrõesdefuzilamentoeexecutados.Foiumtempodevingança,deajustedevelhascontas.Pelomenos4.500

pessoasforamsumariamentecondenadasàmorteportribunaisinstituídospelaResistência.“Nenhum historiador da Resistência deveria tentar minimizar os

incidentes de injustiça, acusação malévola e vingança pessoal”, disse ohistoriador H.R. Kedward. “Nos meses que se seguiram à libertação,di icilmente se passava um dia sem alguma nova revelação dos horroresda tortura, deportação e execução por que a Gestapo e a Milícia haviamsido responsáveis. À medida que covas rasas de resistentes mutiladoseramencontradasemáreas ruraisnosarredoresdamaioriadas cidadesgrandes, e os porões da Gestapo revelavam seus segredos desumanos, aexigênciapopulardevingançacontraoscolaboracionistas foise tornandomaisinsistente.”Em Bordeaux, segundo um vinicultor que conheceu Louis Eschenauer,

“houveuma ‘saudável’denúnciadeoutraspessoas.Ninguémpodiasaberaocertoparaondeodedoiriaapontaremseguida”.Com a continuação dos expurgos, cerca de 160.000 pessoas foram

formalmente acusadas de colaboracionismo pelo novo governo francês.Maisde7.000foramcondenadasàmorte,emboraasentençasótenhasido

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levadaacaboem800casos;outras38.000receberampenasdeprisão.Em março de 1945, temendo que a situação estivesse escapando ao

controle,umporta-vozdoministrodaJustiçafoiaorádiopara lembraraopovo da França que fazer negócios com o inimigo não constituíanecessariamente um crime. “Nem todas essas transações têm o mesmocaráter”, ele disse. Parte delas pode ser interpretada como “normal” e“legítima”.Aleicontraocolaboracionismoeconômico,a irmouoporta-voz,“destina-seapunirosculpadosenãoamolestarosinocentes”.Emsetembro,odiretorregionaldaSupervisãoEconômicaemBordeaux

foi ainda mais longe. Numa carta aos tribunais de justiça de sua área,exortou-osa“concluirseuscasoseinvestigaçõesomaiscedopossível”.Foi nessa atmosfera crescente de “deixemos isto para trás” que o

julgamento de Louis Eschenauer teve início em 9 de novembro de 1945.Fazia pouco mais de um ano que fora preso. O réu parecia nervoso edebilitado.Umpsiquiatraqueoexaminouatestouqueestavasofrendodegravedepressão.AúnicaboanovaparaotioLouis foiadequenãoseriaexecutado.UmmagistradohaviadeterminadoqueocrimedeEschenauer,de “trá ico com o inimigo”, não afetara a segurança do Estado, e que, emconseqüência, ele nãodeveria ser julgadoporuma cortemilitar nemporqualqueroutrocorpocomcompetênciaparaaplicarapenademorte.Eschenauer foi denunciado com base em três itens da lei contra o

colaboracionismoeconômico:primeiro, teria“entradovoluntariamenteemcorrespondênciaerelaçõescomagentesdo inimigo”; segundo, “conduzirailegalmente comércio” que fornecera ao inimigo “importante apoioeconômico”; e, terceiro, “dera intencionalmente àAlemanha auxílio diretoouindiretoquepoderiaserdanosoàunidadedanação.”No banco dos réus, Eschenauer negou as acusações. “Não sou um

colaboracionista”,disse.“Negocieicomosalemãesporquetinhadefazê-lo.Tinha de salvar meu negócio. Queria também proteger os interesses deoutrosnégociantsevinicultores.”Eschenauerdeclarouqueseu“relacionamentoíntimo”comoweinführer

HeinzBömerspermitira-lheevitarqueosalemãespusessemasmãosnosmelhores vinhos de Bordeaux, como os Châteaux La ite-Rothschild eMouton-Rothschild.SuaamizadecomErnstKühnemann,disse,oajudaraaconvencerosalemãesanãodestruiroportoeoutraspartesdacidadedeBordeaux. “Admito queme dava bem commuitos dos alemães aqui,massabia também como lográ-los e trapaceá-los”, disse. “Desprezava osnazistas;nuncaosajudei.EramosAliadosqueeuestavatentandoajudar.”Ele lembrou também à corte seu papel num comitê para ajudar

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refugiados em Bordeaux durante a drôle de guerre de 1939-40. Suaatuação,contudo,nãoforamuitoalémdeaceitarumchequedobanqueiroamericanoClarenceDillonedestiná-loacertasobrasdecaridade.O depoimento de Eschenauer parecia ser a fala desesperada de um

homemcansadoeapavorado,umhomemque,nummomentodefraqueza,estavadispostoadizerqualquercoisaparasalvarseupescoço,mesmoqueisso signi icasse voltar-se contra Heinz Bömers, a quem, pouco antes deseujulgamento,descreveracomoum“amigoíntimodefamília”.No tribunal, Eschenauer quali icou Bömers de “abutre”, um “homem

violento”quetentaratomarseunegócioequequaseolevaraaumcolapsonervoso.“Elepensavaque,porsereuumsolteirão,meunegóciodeveriairparaele.Sonhavatornar-seodonodaMaisonEschenauerdepoisdaminhamorte.”Eschenauer queixou-se de que Bömers o mantivera sob constante

pressão para que lhe fornecesse mais vinho. “Prometeu que comprariatudodemim,maseudissequeerainjustoequedeveriacomprartambémdosoutrosnégociants.”Retratando-secomoumheróique“salvouosvinhosdeBordeaux”,Louis

explicou que tentara agir como um amortecedor entre Bömers e acomunidade do vinho. “Eu o impedi de se apossar dosmelhores vinhos”,disse.“Noseulugar,dei-lheporcarias,rebotalho.”Rebotalho?Segundoregistrosforenses,entreosvinhosqueEschenauer

vendeu a Bömers em 1944 estavam: Château Margaux de 1939 (2.400garrafas), ChâteauMouton-Rothschild de 1939 (3.000 garrafas), ChâteauAusonede1939(3.600garrafas),ChâteauRausan-Ségla(4.500garrafas),Château La Lagune (6.000 garrafas), Château Cos d’Estournel de 1937(2.400 garrafas), Château Brane-Cantenac de 1937 (2.000 garrafas),ChâteauTalbotde1939(8.000garrafas).Emboranem1939nem1937tenhamsidograndesanos(de fato,1939

seprovariapéssimo), essesvinhosdi icilmentepoderiamserquali icadoscomo “porcarias”. Vinham de algumas das mais excelentes propriedadesde Bordeaux. Na época em que Eschenauer os vendeu, constituíam umabebidamaisdoquesatisfatória.O depoimento de Eschenauer foi ainda menos coerente e convincente

quandolheperguntaramsobreumacompanhiaquefundara,aSociétédesGrands Vins Français. Seu objetivo, disse ele, era comprar propriedadesparaBömers.Na primavera de 1941, a companhia comprou os ChâteauxLestage e Bel-Air, duas propriedades viníferas que haviam sidoconfiscadase“arianizadas”pelogovernodeVichy.

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Quando perguntado por que comprara os châteaux, Eschenauerdeclarou de início que o izera por querer “evitar a pressão” de Bömers,que estava tentando se apoderar de seu negócio; conseguindo aqueleschâteaux,talvezBömersdesistissedetomaraMaisonEschenauertambém.Comacontinuaçãodointerrogatório,porém,Eschenauerdeclarouquea

verdadeirarazãoporquecompraraasduaspropriedadeseraqueestava“tentandopreservá-las”paraseuslegítimosproprietáriosjudeus.“EusabiaqueaAlemanhaperderiaaguerraequequalquerpromessaque izesseaBömersduranteaguerraserianuladepois.”Os juízes mostraram-se céticos. Quando pediram a Eschenauer

documentos que comprovassem seu depoimento, tio Louis disse que nãohavianenhum,quetodosostratoshaviamsidoverbais.“Bömerstinhatotalcon iança emmim”, disse.Depois acrescentou: “A verdade é que, de fato,eu tinhamuito pouco envolvimento com a companhia; erameu contadorquecuidavadetudo.”Ocontadorafirmouqueissoerafalso.Florence Mothe disse que esteve entre os que icaram pasmos com o

depoimento de Eschenauer. “Por que um homem a quem a vida nadanegara, da mínima coisa até o luxo mais requintado, haveria de secomportardaquelamaneira?Virar-secontraosquetrabalhavamcomele?Foiissoquenãoconseguientender.”Desde seu primeiro instante, o julgamento fora acompanhado com

crescente ansiedade por toda Bordeaux. Outros négociants que haviamvendidovinhoparaaAlemanhasabiamquefacilmentequalquerumdelespoderiasevernobancodosréus.Alguns,defato,játinhamsidomultadosetidosuasmercadoriascon iscadas.Outrostinhamcompetidoativamentepela atenção de Bömers, no afã de fazer negócios com ele, convidando-opara festas e tentando demonstrar interesse pela música e a literaturaalemãs. Segundo anotações mantidas pela secretária de Bömers, oweinführer achava tudo aquilo “ridículo”. Agora os Chartrons estavampreocupados,porquepropornegóciosaoinimigoeramotivobastanteparaque uma irma ou uma pessoa fossem acusadas de colaboracionismoeconômico.Conseqüentemente, emboramuitos no negócio de vinhos emBordeaux

tivessem se ressentido das ligações comerciais de Eschenauer durante aguerraeasinvejado,agoraamaioriacerrou ileirasemsuadefesa.Algunsescreveram cartas quali icando-o de “patriota” e “homem íntegro”. Umdefensora irmouqueEschenauerajudaraaResistência,emprestando-lhecaminhões para transportar alimentos e armas. Um outro disse que eleajudara judeusaescapardaGestapo.AtéobarãoPhilippedeRothschild,

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doChâteauMouton-Rothschild,escreveuumacartaemseufavor.Quandoseujulgamentodetrêsdiasestavachegandoao im,Eschenauer

negou qualquer transgressão e reiterou não ser um colaboracionista. Sóingressara no Groupe Collaboration, disse, “para agradar a um amigo”,acrescentando que nunca tivera realmente nada a ver com o grupopropriamentedito.Admitiu,contudo,terfeitoumadoaçãoparaaentidade.Seu serviço mais importante, declarou, fora salvar Bordeaux da

destruição. “Graças às minhas boas relações com Ernst Kühnemann eoutroso iciaisalemães,pudeconvencê-los,apósmuitasnegociaçõeslongase intensas, a não levar a efeito seus planos de destruir o porto e outraspartesdacidade.”

OjulgamentodotioLouisterminounoDiadoArmistício,diaqueassinalouavitóriasobreaAlemanhanaPrimeiraGuerraMundial.FoioprimeiroDiado Armistício a ser celebrado após a guerra.Mais uma vez foi declaradoferiado nacional e extensas comemorações foram planejadas. Nenhumjornal seria publicado. Essa era amelhor parte, no que dizia respeito aotribunal.Quandoovereditofosseanunciado,apublicidadeseriamínima.Àumahoraequinzeminutosdamadrugadaocorpodejuízesseretirou

para considerar seu veredito. Às três horas estavam de volta à sala dotribunal.Overedito:culpadodetodasasacusações.Os juízes rejeitaramaa irmaçãodeEschenauerdeque tentara resistir

às demandas de vinho de Heinz Bömers. “Concordou de bom grado emfornecer a Bömers o que este queria e em momento algum recusou.” Otribunal descartou também a declaração de Eschenauer de que suacompanhia, a Société des Grands Vins Français, havia comprado doischâteaux pertencentes a judeus e “arianizados” para preservá-los paraseus legítimos donos judeus. “A companhia”, disse o tribunal, “foi criadacomúnicopropósitodecomerciarcomoinimigo.”(Bömersnãotinhafeitonenhum segredo do fato de que desejava voltar a possuir umapropriedadeviníferaemBordeauxapósterperdidooChâteauSmith-Haut-La itte na Primeira GuerraMundial. Vários anos após a Segunda GuerraMundial, ele comprou o Château du Grand Mouëys, que ainda épropriedadedasuafirma.)TioLouisfoisentenciadoadoisanosdeprisãoemultadoemmaisde62

milhõesdefrancosporespeculaçãoilegal.Eleadmitiuterfeitonegóciosnovalorde957milhõesdefrancosduranteaguerra,masfoiamaneiracomo

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os fez que mais incomodou as autoridades. Os rapapés de que cercavao iciais alemães em seu restaurante e no hipódromo e o modo comoostentava essas relações izeram dele um alvo natural. Como disse umbordelêsqueoconhecia:“Louissimplesmentefoilongedemais.”Seus bens foram con iscados e ele foi proibido de fazer negócios em

Bordeaux.Perdeutambémtodososseusdireitoscomocidadãofrancês.Ao ser retiradodo tribunal, tio Louis caiu empranto. “Depoisde1918,

deram-me uma medalha por vender vinhos para os alemães, agora mejogamnaprisãoporfazeramesmacoisa”,soluçou.“Semamãepudessemeveragora!”

DeGaulle pretendia que o processode expurgo fosse rápido, que após apunição dos colaboracionistas mais notórios o processo derestabelecimento, de restauração da ordem e uni icação do país pudessecomeçar. Estava especialmente ansioso para ver isso acontecer emBordeaux, região cujo apoio político considerava importante e cujosrecursos econômicos — seu vinho e seu porto — eram vitais para arecuperaçãodanação.Paraesse im,seugovernosancionouem1951umaleideanistiaquepermitiuamuitoshomensdenegóciosquehaviamsidocondenadosporlucrosexcessivosretornaraseusescritórios.LouisEschenauerfoianistiadoem1952.Passouorestodeseusdiasem

seuchâteauemCamponac,nacidadedePessac,bempróximoaBordeaux.AntesqueotioLouismorresse,HeinzBömersJr., ilhodoweinführerde

Bordeaux,estevenacidadeparaaprendermaissobreonegóciodevinhos.Tio Louis estava lá para lhe dar as boas-vindas e levá-lo à corrida decavalos.“Tenhoalgoparalhefalar”,disseele,tomandoHeinzpelobraço.“Quero

quesaibaquesemprefuiamigodoseupai.Eraamigodeleantesdaguerraefuiamigodeleduranteaguerra.Econtinuosendoamigodelehoje.”

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A

ONZE

Volteiparacasanãomaisumjovem

Namadrugadade5dedezembrode1944,moradoresdaaldeiaalsacianadeRiquewihrsedeparampelaprimeiravezcomseuslibertadoresquandoumaunidadedetexanosfezumaparada

emfrenteàlojadevinhosdeHugel.

manhã já ia adiantada quando surgiu um homemcurvado, com a aparência de um ancião, umamochila

feita em casa às costas, arrastando-se pela lama e a nevederretidadeumquentemêsdefevereiro.GastonHuetestavaacaminhodecasa.Após cinco anos como prisioneiro de guerra, Huet e os

homens do O lag IV D haviam inalmente sido soltos.Acontecera inopinadamente. Eles haviam sido despertados de manhãmuito cedo por sons que nunca tinham ouvido antes e uma visão que

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jamais teriampodido imaginar. Cossacos a cavalo e de espada empunhoestavam investindo direto contra o campo, gritando a plenos pulmões.Assustados, Huet e outros prisioneiros de guerra viram os cavaleiroscruzaremagalopeosportõeseultrapassaremascasasdaguarda,pondoos apavorados alemães para correr. Seria a liberdade, pensou Huet, oumaiscativeirosobsenhoresdiferentes?Emmeioàconfusão,umdoslíderescossacos inalmentesefezentender.

“Vão embora”, disse aos franceses. “Peguem apenas o que puderemcarregar.”Para Huet, não seriamuito. Havia cartas de casa, cartas que o haviam

ajudado a se sustentar em alguns dos pioresmomentos de seu cativeiro.HaviatambémopedaçodabandeirafrancesaquerasgaraemCalaispoucoantes de ser capturado em 1940. Contemplara-o muitas vezes,perguntandosealgumdiahaveriadenovoumaFrança.AúltimacoisaqueHuet pôs em sua mochila foi uma cópia do programa da celebração dovinho que organizara, coisa que contribuíramais do que qualquer outraparatornarsuavidacomoprisioneirodeguerrasuportável.Huet lançouumúltimoolhar sobreo campo. Fitou as casernas emque

tinhavivido,depoisascasasdaguarda;asmetralhadorascontinuavamnolugar.Tambémnolugarestavaoaramefarpadoquecircundavaocampo.Huet olhou também para a Tombe d’Adolph, o sepulcro de Hitler que osprisioneiroshaviamconstruídoporzombaria.AvidanoO lagIVDforaumpesadelo: o frio paralisante do inverno, o calor medonho do verão eespecialmente a falta de comida. Ele tinha calafrios ao lembrar daquelesdiasimplacáveisdejaneiroemqueosprisioneirostentavamapanharratosparao jantar.Apesarde tudo, algumasamizades incríveis foram forjadasduranteaquelesanos.Ele pensou naqueles amigos enquanto avançava pela Hitlerstrasse,

nomedadoaocaminhodeterraquecortavaocampopelomeioelevavaaoportãodafrente.Huetpassoupeloportãoecomeçouaandarparaoeste,paraaFrançae

paracasa.Não estava sozinho. As estradas estavam cheias de homens doentes e

débeis,todosparecendomuitomaisvelhosdoquedefatoeram.Devezemquando,procuravamseajudareencorajarunsaosoutrosquandoa lamatragavaseussapatosebotassurrados.Estavamtãofracosapósseusanosdecativeiroquecadapassoerapenoso.Tudoqueosmantinhaavançandoerampensamentosdecasa.Queiriamdizerparasuasfamílias?Iriamseusamigos reconhecê-los? Que teria acontecido nos cinco anos de sua

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ausência?Pormais de cem quilômetros Huet continuou avançando, topando com

estradas que tinham sido rasgadas por tanques e esburacadas porbombardeios repetidos. A guerra não estava de todo terminada; aAlemanha ainda não se rendera. Huet e outros prisioneiros de guerratinhamdesejogarnochãoúmidoefrioparaseprotegerquandoaviõesdecombateebombardeirosvoavamsobresuascabeças.Quando estavam se aproximando da fronteira franco-germânica,

encontraram tropas aliadas vindo em sua direção. Os soldados seapressaram a ajudá-los. “Por aqui, por aqui”, diziam, escoltando osprisioneirosdeguerraparatrensqueiamparaaFrança.Era imdefevereiroquandoHuet inalmentechegoudevoltaaVouvray.

Teve uma acolhida que dispensou palavras. “Simplesmente caímos nosbraçosumdooutro,minhamulhereeu”,elelembrou.“Estávamosrindoechorandoaomesmotempo.Tantasemoções…”E então ele viu sua ilha. O bebê que vira pela última vez em seu

primeiro aniversário era agora umamenininha de quase sete anos a seesconder envergonhada atrás da saia da mãe. Ela deu uma espiadanaquele homem que só conhecia por cartas e pelas histórias da mãe eperguntou se ele queria brincar. A pergunta o fez chorar. “Ela era tãolinda,eumalpodiaacreditarnaquilo”,disseHuet.Elelevariaalgumtempoaté icarprontoparabrincar,contudo.Perdera

mais de um terço do seu peso corporal. Antes de ser capturado, pesavaquase setenta e três quilos. Quando foi libertado, estava com quarenta ecinco.Antes de adormecer naquela primeira noite em casa, teve uma última

pergunta:“Easvideiras?Comoestãoasvideiras?”Alguns dias depois, Huet descobriu a resposta por si mesmo e quase

chorou de novo. Cinco anos de guerra e abandono haviam cobrado seupreço.Nenhumapoda fora feitaeasvideirasestavamdesconjuntadas,osgalhospendendoem todas asdireções.Nãohavia sinaldos renquesbemarrumadosqueoutroraeramtãocuidadosamenteescoradoseamarradoscom capricho aos ios de arame. E as ervas daninhas estavam por todaparte, emboraainda fossemaio. Fora impossível arar, porqueos alemãestinhamrequisitadoos cavalos.Huetpôdever claramenteoquea faltadefertilizanteesulfatodecobretinhasigni icadoaocontemplaronúmerodevideirasdoentesevelhasdemaisqueprecisavamsersubstituídas.Praticamente todos os vinicultores estavam se vendo nesse mesmo

apuro e os problemas se estendiam também a suas adegas. Vinhos que

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tinham permanecido em tonéis de madeira por cinco anos precisavamdesesperadamente ser engarrafados, mas isso era impossível, dada aescassez de garrafas. Para muitos vinhos, já era tarde demais. Tinhamsecado, perdido o sabor e estavam intragáveis. Os tonéis em que tinhamenvelhecido estavam igualmente arruinados. Alguns haviam mofado porexcessodeuso,enquantooutros icaramestragadosquandoinspetoresdeVichy, excessivamentezelosos,derramaramóleonelesparaevitarqueosvigneronsretivessemsuacotadeálcoolindustrial.Exatamente quando parecia que o quadro não podia icar pior, a Mãe

Naturezaconspiroucontraosvinicultores.Nodia1 odemaio,atepidezdoinício de primavera desapareceu e a França foi tomada por um friointenso. As temperaturas caíram abaixo de zero. Videiras com novosrebentos já germinando icaram congeladas. Um velho vinicultor deBordeauxdissequenuncavira geada tãopesada comaprimavera já tãoadiantada.Muitosprodutoresperderamtodaasuasafra.Não foi muito diferente em outras regiões viníferas. Na Borgonha,

contudo,opioraindaestavaporvir.MauriceDrouhinsentira-seanimadoquando, após a geada, as temperaturas voltaram a subir rapidamente esuasvideirasderamnovossinaisdevidaecomeçaramaflorir.Agora, ao olhar para o céu com seu ilho Robert, via nuvens escuras

avançando ameaçadoramentedonordeste. Eram cincohoras da tardedodia 21de junho.Noquedeveria ter sido o diamais longodo ano, toda aBorgonhafoisubitamentemergulhadanaescuridão,quasecomoseanoitetivesse caído. Soprou um vento forte e a casa começou a tremer. Depoisveio o granizo. Bolas de gelo arrasaram vinhedos por toda a Côte deBeaune.Dezdasprincipaisaldeias,dePulignyaCorton,foramdevastadas.TudoqueMauricepôdefazer foisacudiracabeça.Comotodososdemais,perguntava-sesehaveriauvabastanteparafazeralgumvinho.Namanhã seguinte, ele e Robert saírampara avaliar o estrago. Folhas

de suas videiras pareciam ter sido cortadas a faca. Flores pareciam tersidoesmagadasnochãoporumestourodaboiada.Maurice foiconversarcomoutrosvignerons,mashaviapoucoadizer.Eraamesmacoisaemtodaparte.Todoscompreendiamqueteriamsorteseconseguissemsalvarnemquefosse5%desuasafra.Maurice decidiu que era hora de fazer algo que estivera adiando para

depoisquearendiçãoalemãtivessesidoassinadaeeletivessecertezadequeaguerraterminara.“Pegueumavassoura”,disseaRobert.“Vamosnoslivrardealgumasteiasdearanha.”Juntos, desceram à cave e começaram a varrer as teias e a sujeira

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acumuladas na parede construída por Maurice cinco anos antes. “Essassuas aranhazinhas izeram um bom trabalho”, disse a Robert. Depoiscomeçaram a derrubar a parede. Os vinhos que tinham sido escondidosatráspareciamestaremperfeitoestado,inclusiveumsortimentocompletodoDomainedelaRomanée-Contide1929a1938.Maurice levou uma das garrafas para o jantar daquela noite e disse a

Paulinequeeraumacomemoração.Comestesvinhos,disse,vouconseguirpagarnossascontasepôronegócioparafuncionardenovo.Era uma estratégia quemuitos outros estavam adotando ao reaver os

vinhos que tinham escondido dos alemães. Gaston Huet recuperou seusvinhos de uma caverna junto ao rio Loire. Agora as ervas daninhas e asmoitas que plantara escondiam completamente a abertura, mas ele nãotevedificuldadeemencontrá-la.Seu cunhado, André Foreau, outro vinicultor de Vouvray, escavou seu

jardim para desenterrar as garrafas que ali escondera. Omesmo fez umvizinho,opríncipePhilippePoniatowski.MasPoniatowski,preocupadocomo que aquele tempo debaixo da terra poderia ter feito ao seu vinho,chamou algunsexperts em vinho para acompanhá-lo numa prova. Overedito foi unânime: todos os vinhos estavam em excelentes condições,atéode1875.Na Champagne, Marie-Louise de Nonancourt levou consigo seu ilho

BernardparaderrubarsuaparedenaLaurent-Perrier.Houveumavítima.SuaestátuadaVirgemMaria,queelacimentaraàparedeparaprotegeroestoque escondido, despedaçou-se quando as marretas golpearam ostijolos.Marie-Louise, no entanto, viu nisso um sinal de boa sorte, dizendoqueaVirgemcumprirasuamissãoeagoraeraavezdosdeNonancourt.Em junho de 1945, o marquês d’Angerville, da aldeia de Volnay, na

Borgonha,teveasurpresadereceberumacartadeumcertoJ.R.Swan,dacidadedeNovaYork.A cartadizia: “Escrevopara lheperguntar se aindaestádepossededezcaixasdeVolnayChampansde1934edezcaixasdeMeursault Santenots de 1934 que o senhor comprou para mim e foramdeixadas aos seus cuidados. Seria muito esperar que não tenham sidotomadaspelosalemães,mashásempreumachancedequeasorte tenhasorridoparamim.”O vinho que Swan encomendara representava apenas pequena

quantidade das garrafas que haviam passado a guerra escondidas eintactas atrás de uma parede na adega de d’Angerville. Numa carta aSwan, o marquês o informou de que o vinho ainda estava lá e lhe seriaremetidoimediatamente.

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Mas essa foi uma tarefa de que omarquês se desincumbiu compesar.Seu Volnay Champans de 1934 era um dos melhores vinhos que jamaisizera e detestou ter de se desfazer dele. A safra de 1934 tinha sidoexcelente,certamenteamelhordadécada,eproduziravinhos fragrantes,aveludados e harmoniosos. Seu Volnay Champans de 1934 não eraexceção. Foi o vinho que ele e a família tomaram para celebrar o im daguerrae,setivessehavidoalgummeio,eleteriaconservadoalgum.D’Angerville porém compreendeu que não havia alternativa. A menos

que abrissemão do vinho, não teria como reiniciar seus negócios. Assim,embalou-o.

30MILHÕESDEGARRAFASDECHAMPANHEQUEOSALEMÃESDEIXARAMESCAPARAGUARDAMEXPORTAÇÃO

Paris, 13 de setembro (UP) — Mais de 30 milhões de garrafas dechampanheestãoemadegasfrancesas,àesperadeserexportadasparaos Estados Unidos, porque os alemães tinham medo de penetrar nascavernassubterrâneaspararemovê-las. LéonDouarche,ex-diretordoInternationalWineOf ice,dissehojequeosalemãessólevaramumapequenapercentagemdaproduçãodevinhoe champanhe deste ano, que estimou em 3,7 bilhões de litros, emconfrontocomamédiaanualde5,5bilhões.

—TheNewYorkTimes,14desetembrode1944

Em julho de 1944, Otto Klaebisch, oweinführer da Champagne, fez aoCIVC uma grande encomenda de champanhe para as forças armadasalemãs. Três semanas depois, cancelou-a abruptamente e fugiu para aAlemanha.Com o Terceiro Exército de Patton avançando rapidamente rumo à

Champagne,osalemãestiveramdepartirdepressa, tãodepressa,de fato,que não tiveram tempo sequer de detonar os explosivos que haviamplantado sob pontes. Tampouco destruíram as vastas adegas daChampagne,comoHimmlerameaçarafazer.Ainda assim, a ocupação alemã deixara a vida de companhias e de

pessoas em frangalhos. As contas não pagas por champanhe que osnazistas tinham expedido para a Alemanha montavam a milhões defrancos. Casas de champanhe, em especial a Moët & Chandon, estavamcomoqueperdidasdepoisque seus executivos tinhamsidopresos e elasprópriaspostassobcontrolealemãodireto.

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Foi com alívio, portanto, que os champanheses receberam a notícia deque Robert-Jean de Vogüé, que encabeçara tanto a Moët quanto a CIVC,aindaestavavivoapósumanoemeionumcampode trabalhos forçados.Ficaramhorrorizados,contudo,aoverseuestado.Não se supunha que de Vogüé tivesse sobrevivido. Os nazistas haviam

aposto a seu nome as letrasNN—NachtundNebel (Noite e Neblina)—que signi icavam que pretendiammatá-lo de trabalho e despejá-lo numacovaanônima.Poucodepoisde sua chegadaao campo,umguarda sádicolhe disse: “Sabe o que dizem sobre Ziegenhain, não é? Quem vem paraZiegenhainvemparamorrer.”DeVogüéquasemorreu.Certamanhã,aoacordar,descobriuqueumainfecçãoquetinhanodedo

mínimo da mão direita piorara muito. Ao examiná-la mais atentamente,percebeu que a gangrena começara. Quando pediu um médico, asautoridades o ignoraram. De Vogüé sabia que iria morrer a menos queizesseelemesmoonecessário.Encontrouumpedaçodevidroea iou-oomelhorquepôde.Depoiscomeçouacortar.Semnenhumanestésico,adorfoi insuportável, mas de Vogüé continuou cortando até remover o dedointeiro.Usandoostraposdeseutrajedeprisioneiro, inalmenteestancouosangramento.Arudeoperaçãolhesalvouavida,masfoiquaseinútil.Quando seu campo foi libertado, de Vogüé começou a caminhar. Tinha

feito apenas alguns quilômetros quando desfaleceu. Estava deitadoinconscienteàbeiradaestradaquandoumo icialbritânicopassouporalie parou. De Vogüé havia trabalhado outrora na Champagne com essemesmo homem. O inglês saltou do seu jipe e carregou-o; em seguidanotificouafamíliadeledequeoestavalevandoparacasa.Para os cinco ilhos de de Vogüé, foi um momento eletrizante. Não

tinham amenor idéia do estado do pai e decoraram a sala com cartazesquediziam“Bem-vindo,papai”.Quando de Vogüé chegou, toda a alegria desapareceu. Ninguém

reconhecia a igura fraca, esquelética, que não era mais capaz de semanter de pé. Não tinha nenhuma semelhança com o homem elegante edinâmicoquedirigiraacasadechampanheMoët&ChandoneenfrentaraOttoKlaebisch.Agoraelesedependuravaentreosombrosdoo icialbritânicoedeseu

cunhado. Seu cumprimento foi tão débil que as crianças nem mesmotiveram certeza de que o pai havia falado. Suamulher começou a chorarenquantoconduziaoshomensaoquartodedormirparaqueaajudassemapôromaridonacama.Pormuitosdias,nãosesoubeaocertoseeleiria

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serecobrar.O assistente de de Vogüé, Claude Fourmon, que fora preso com ele no

escritório de Klaebisch, voltou à Champagne num estado igualmenteprecário.Fourmonhavia sidoenviadoparaBergen-Belsen,onde cadadiaeraumaprovadesobrevivência.Elemarcavaumadataatéaqualviveredepois, quando esta passava, escolhia uma outra. “Se eu puder agüentaraté13dejaneiro”,diziaparasimesmo,“entãovouresistir.”Quando13dejaneirochegava,escolhiaumaoutradata.Essas datas se esticaram pelo inverno de 1943-44. O frio era

insuportável. “Eu cantava”, disseFourmon. “Cantavapara espantaro frio.Cantavahinos,cançõesinfantis,qualquercoisa.Ascançõespareciamseraúnicacoisaqueajudava.”Quando inalmente voltou para casa, Fourmon, como de Vogüé, estava

mais morto que vivo. Havia sido torturado e não era mais o jovementusiastaqueaGestapoprenderaemReimsdoisanosantes.“Volteiparacasa,nãomaisumjovem”,disseFourmon.Tinhatrintaanosdeidade.

...

May-Eliane Miaihle de Lencquesaing estava chorando. Ela e a famíliatinham acabado de voltar ao Château Pichon-Longueville-Comtesse deLalande. Os alemães o haviam deixado apenas na véspera, e os Miaihle,pela primeira vez em quatro anos, estavam dando uma olhada em seuinterior.“Osalemãeseramunsbrutos”,contouela. “Secavamsuas fardasdiante

daslareirasevoavamfagulhasparatodolado.Asbonitas boiseries icaramarruinadasetodasasvidraçasforamquebradas.Atélareirasdemármoree portas icaram aos pedaços. Janelas eram deixadas abertas e a chuvaentrava,estragandooparquete.Asenxergasdepalhanosassoalhos,ondeossoldadosdormiam,pareciamlama.”“E o cheiro! Levamos anos para tirar do castelo o cheiro da graxa que

elesusavamemsuasbotas.”Omesmo aconteceu em toda Bordeaux quando produtores de vinho e

vinicultores tentaram apagar as cicatrizes deixadas pela ocupação:suásticasentalhadasnacantaria,grafitesnasparedes,buracosdebala.OChatêauMouton-Rothschildhaviasidoocupadoedani icado,masnão

con iscado pelo Terceiro Reich. Como izera com o Château La ite-

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Rothschild,ogovernodeVichyseqüestraraoMoutonparaimpedirqueosalemães o declarassem um bem judaico e o transformassem empropriedadealemã.Quando voltou ao Mouton, porém, o barão Philippe de Rothschild já

carregavaumfardopesadodesofrimento.FugiradaFrançaparasejuntaràs Forças Francesas Livres em 1942, deixandomulher e uma ilha bempequena. Durante a maior parte da guerra, as duas conseguiramsobreviver, vivendo primeiro no sul da França e depois em Paris. Acondessa Elizabeth de Chambure, mulher do barão, acreditava que, nãosendojudia,osalemãesasdeixariamempaz.Masestavaerrada.PoucoantesdalibertaçãodeParis,aGestapochegou

aseuapartamento.Diantedosolhosaterrorizadosdesua ilha,Philippine,acondessafoiarrastadaparaforadecasaeen iadanumdosúltimostrenscomdestinoaoscamposdeextermínioalemães.Foimortanascâmarasdegás de Ravensbrück poucos dias apenas antes que o campo deconcentraçãofosselibertado.Ao ver seu bem-amadoMouton, o barão icou aindamais entristecido.

Emboraseusvinhosestivessem intactos,ocasteloeseus terrenos tinhamsido seriamente dani icados pelos nazistas, que tinham transformado apropriedadenumcentrodecomandodecomunicações.Haviaatéburacosdebalanasparedesdealgunsdosaposentosemqueos alemãeshaviamusadoquadrosparaapráticadetiroaoalvo.ObarãoPhilippeestavadecididoaerradicartodosossinaisdapresença

nazista. Descobriu que alguns dos soldados que tinham ocupado suapropriedade estavam sendo mantidos como prisioneiros num campopróximo. “Quem melhor para refazer o castelo, onde havia devastação,tudo estava para ser limpo, consertado, repintado?” ele relembrou maistardeemsuasmemórias.Pediuentãopermissãoparapôrosalemãesparatrabalhareasautoridadesconsentiram.Durante dias, os prisioneiros de guerra labutaram para reparar o

estragoquetinhamfeito,removendoquilômetrosdecabosdecomunicaçãoque tinham estendido em volta do castelo e demolindo plataformas decanhões antiaéreos no terreno. Tiveram também de tapar os buracos debala.Mas o trabalho deles estava longe de ter terminado. Durante anos o

barão Philippe sonhara criar um parque em volta doMouton, bem comouma estrada que o ligaria diretamente a Mouton d’Armailhac, umapropriedadeviníferaquecomprara.Equipouosalemãescomancinhos,páse outras ferramentas e os mandou pôr mãos à obra. Sob um sol

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causticante, os prisioneiros começaram a plantar árvores, lores earbustos,limpandoterrenoparaumparqueeescavandoumatrilhaparaaestrada.O projeto demandou meses de trabalho, mas, quando foi concluído, o

barãosedeclarouplenamentesatisfeito.“Nuncapossoolharparaaestrada”,disseele,“sempensarnelacomoa

‘EstradadaVingança’.”

Osvinicultoresfrancesesestavamdesoladoscomaquantidadedetrabalhoque tinhampela frente e com a quantidade de dinheiro que ele custaria.Dinheiro para reparos, dinheiro para tratores novos e outrosequipamentos,dinheiropara fertilizantee sulfatodecobre,dinheiroparasubstituirvideiras.Ondeiriamconsegui-lo?Felizmente, encontraram um ouvido compreensivo no homem

encarregadodoprogramaderecuperaçãoeconômicadopaís.EleeraJeanMonnet, que logo iria esposar a idéia de uma Comunidade EconômicaEuropéia.Monnet crescera entre as videiras de Cognac, onde sua famíliaproduzia conhaque. Compreendia os problemas dos vinicultores e tinhaaguda consciência de que um milhão e meio de famílias francesasdependiadovinhoparasuasubsistência.Masonovogoverno,pressionadopelasdemandasdeauxíliodetodosos

setores,nãopodiairmuitolonge.Suaprincipalmetanoquediziarespeitoaovinhoera assegurarumabastecimento adequado.Graças à insistênciadeMonnet, inalmenteconcordouemfornecerdinheiroparaasubstituiçãodevideirasvelhasedoentes.Onovoprograma foi especialmentebem-vindonaAlsácia, onde, apósa

Guerra Franco-Prussiana de 1870-71, a maioria dos vinhedos foraplantadacomhíbridosdealtaprodutividademasbaixaqualidade.Depois da Primeira Guerra Mundial, o governo francês ordenara aos

vinicultores que arrancassem suas videiras híbridas e as substituíssempelas variedades de uva tradicionais da Alsácia. Os vinicultores izeramcorpomole, queixando-se de que aquilo era caro demais. O governo nãoforçouocumprimentodaordem.QuandoaAlsáciafoianexadapelaAlemanhaem1940,novapressãofoi

exercida,dessavezporBerlim.“Livrem-sedoshíbridosouarquemcomasconseqüências”,advertiramasautoridades.Maisumavez,nadaaconteceu.Um dia, em 1942, os alsacianos acordaram ao som de serras. Olhando

pela janela, viram que seus vinhedos estavam cheios de rapazes da

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Juventude Hitlerista, vindos de Baden, Alemanha. O Terceiro Reich haviamandado caminhões lotados deles para a Alsácia, commapas detalhadosdos vinhedos, podadeiras e serras. De um só golpe, os híbridos, quehaviamcomposto75%dosvinhedos,desapareceramdaregião.Na opinião da maioria dos alsacianos, foi a única coisa boa que os

alemãesfizerampelaAlsácia.Agoranãohaviaescolhasenãoreplantar.O trabalho, contudo, começou lentamente. A maior parte dos vinhedos

estava tomada por minas e projéteis de artilharia não detonados. Haviatambém escassez de mão-de-obra; quase todos os rapazes da Alsáciatinhamsidorecrutadospeloexércitoalemão.Amaioriaforaenviadaparaofront russo e uma grande percentagem fora morta. Os que tinhamsobrevividosomenteagoraestavamacaminhodecasa.Aesperatinhasidoparticularmentedi ícilparaosHugel.Seu ilhomais

velho, Georges, estava lutando agora no exército francês; o segundo,Johnny,aindaestavanoalemão.Johnny voltou para casa primeiro. Estava numa unidade alemã que

lutavapertodo lagodeConstança, na fronteira austríaca, quando avistouumacolunadetanquesfrancesesseaproximando.En iando-senacasadeuma granja próxima, tirou rapidamente sua farda alemã e trocou-a comum granjeiro por algumas roupas velhas. “Tome cuidado”, o granjeirogritouquando Johnny correupara ir ao encontrodas tropas.Algunsdiasdepois,eleestavadevoltaaRiquewihr.Nodiaseguinte,Georgesretornoutambém.Foientãoquedescobriramqueestiverampresentesnamesmabatalha.

GeorgestambémlutaranolagodeConstança.Com os Hugel reunidos e a Alsácia agora completamente libertada, a

verdadeira celebração pôde inalmente começar. “Fomos de adega emadega.Ficamoscobertosderebocopor trêsdias”,disse Johnny. “Tododiamais alguém, um de nossos amigos, estava chegando em casa. Todo diamaisalguémvoltava.”Masmuitosnãovoltaram.Pelomenos40.000 rapazesalsacianos foram

mortos lutando no exército alemão, a maioria deles na Rússia. Antes dalibertação, exigia-se que as listas de baixas declarassem que a vítimaGefallen für Führer, Volk und Vaterland (morta pelo Führer, o povo e apátria). Agora as famílias enlutadas podiam dizer sem medo que seusfilhoshaviammorridonofrontoriental.Quando os alsacianos recuperaram sua identidade francesa, tornou-se

segurotambémfalarfrancês.Emvezdeterdecumprimentarosamigosnarua dizendo “Heil Hiltler”, as pessoas agora podiam dizer “bonjour”. Os

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homenspassaramapoderexibirboinas.Osnomesdaruas,dasempresas,dascidadesealdeiastambémforamrestaurados.Richenweïer tornou-seRiquewihr.Hügel und Söhne voltou a serHugel

etFils.

Umoutronomeestavaprestesasertrocadotambém.Desde que haviam dado uma dasmelhores parcelas de seus vinhedos

para o agora desacreditadomarechal Pétain, os vinicultores borgonheseshaviamsesentidocadavezmaisconstrangidos.Tododiaquando iamparao trabalho,o imponenteportãodepedrado

Clos du Maréchal parecia zombar deles. Deve haver alguma coisa quepossamosfazerquantoaisso,pensavam.Procuraramumamigoadvogadoembuscadeconselho.Todososbensdomarechalhaviamsidocon iscadospelogoverno,salientaram.Nãohaveriaalgummeiodeconseguirovinhedodevolta?O advogado concordou em levar seu pleito ao tribunal e pedir que o

presente do Clos duMaréchal fosse considerado nulo. Para grande alíviodos vinicultores, o tribunal decidiu a seu favor, e a parcela dos vinhedosretornouàsmãosdosHospicesdeBeaune.Um dia depois da decisão, vinicultores armados com marretas e

picaretas convergirampara o vinhedo e começaram a derrubar o portãodepedraqueumdiahaviamtãoorgulhosamenteerigido.Mademoiselle Yvonne Tridon, que entregara a Pétain vinhos a ele

presenteados pelo Syndicat des Négociants de Beaune, admitiu que tudoaquilo foraumpouquinhoesquisito. “Nós francesesàsvezessomosmuitodi íceisdeentender”,disseela. “Umdiaestamoscantando ‘Maréchal, nousvoilà’,enooutronãoqueremosmaissaberdele.”Emmenos de uma hora o portão de pedra virou escombros. Mas não

todo ele. Enquanto as marretas trabalhavam, Maurice e seu ilho Robertderamsumiçonumdospilares.A destruiçãodoportãodoClos duMaréchal, no entanto, nãopôs im à

controvérsia. Havia ainda os vinhos feitos pelos Hospices de Beauneespecialmente para o marechal. Os vinhos tinham o direito de serengarrafados e rotulados com o nome de Pétain e uma imagem dosHospices.IssoeraextremamenteembaraçosoparaosqueoutrorahaviamaclamadoPétaincomoumsalvador.Assim, os vinicultores icaram alarmados ao saber que o governo, que

con iscaraosbensdePétain,decidirapôrosvinhosemleilão.Porém,antes

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queestepudessecomeçar,olocalondeserealizariafoitomadoporváriosgruposqueseopunhamàvenda.Entreelesestavamveteranosdeguerra,veteranosdaResistência, aFederaçãodosTrabalhadoresDeportadoseaFederaçãodosDeportadosPolíticos.Todos sequeixavamveementementedequeavendaeraimpatriótica.O leiloeiro, Georges Rappeneau, um novato na pro issão que só

conduzira um outro leilão na vida, não sabia o que fazer. Chamou osmanifestantesa seuescritórioe tentouconvencê-los.Eles se recusaramaouvireexigiramqueoleilãofossesuspenso.DerepenteRappeneause lembroudeondeestavaedecomoascoisas

eram feitas no coração da Borgonha. “Só um minuto”, disse aosmanifestantes,“voltojá”.Deixousuasalaepediuaumdeseusassistentespara arranjar copos e um saca-rolha. Uma vez distribuídos os copos,começou a enchê-los. O vinho era o Clos du Maréchal. “Senhores”, disse,“bebamos a uma decisão feliz.” Não demorou para que o problema fossesolucionadoeoleilãopôdeserealizar.Equemcomprouovinho?Osprópriosveteranos!ElesengarrafavamovinhocomrótulosdoClosduMaréchal,revendiam-

nocom lucroeodinheiro iaparaamanutençãodesuaorganização.Umapessoa sugeriu que os Hospices poderiam fazer melhor ainda,engarrafandoovinhodoantigovinhedodePétaincomosvelhosrótulosdoClosduMaréchal,mascomum“ex”impressonafrente.“Umaboamaneiradeangariaralgumapublicidadee levantarumdinheiroextra”,propôs.OsHospiceslevaramaidéiaadiante.Feliz por ver o vinhedo de Pétain devolvido aos Hospices de Beaune,

Maurice Drouhin também se sentia satisfeito por ter conseguido, comRobert,salvaropilardoportãodoex-ClosduMaréchal. “Éumpedaçodenossa história”, disse a Robert. “Deveríamos aprender com ela, nãodestruí-la cegamente como se fôssemos capazes de mudar tudo queaconteceu.”Foinesseespíritodeolharahistóriade frentequeMaurice respondeu

rapidamenteumacartarecebidadodr.ErichEckardtlogoapósaguerra.Odr. Eckardt era o juiz alemão que presidira o julgamento deMaurice em1942 e ordenara sua soltura da prisão. Agora, ele estava pedindo ajuda,dizendo que as autoridades aliadas na Alemanha haviam lhe negado odireitodeexercersuapro issão.“Háalgumacoisaquepossafazer,algumacoisa quepossadeclarar parame ajudar?” perguntava.Maurice lembroucomoEckardtsedispuseraaouvirsuadefesano julgamento.NãohesitouemrespondercomumadeclaraçãolavradaemcartóriodequeEckardera

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um “homem decente queme julgou com justiça e imparcialidade”. Poucodepois,osAliadosreintegraramEckardtcomojuiz.Robert-Jean de Vogüé também recebeu uma carta. Estava sendo

convocado ao tribunal como “testemunha de acusação” contra OttoKlaebisch. O antigoweinführer da Champagne havia sido levado peranteum tribunal do pós-guerra que investigava crimes econômicos. A corteicouatônitaquandodeVogüé,aoinvésdecondenarKlaebisch,falouaseufavor. Admitiu que ele e o weinführer haviam tido muitas desavençasacerbas mas enfatizou que Klaebisch sempre fora correto. “Ele estavanumasituaçãodi ícil”,deVogüédisseaotribunal.“Nãoacreditoumminutoqueeleprópriotenhaordenadominhaprisãoouademeuscolegas.FoiaGestapo.”Klaebischfoiabsolvido.

ObarãoPhilippedeRothschildsentiuumapertonocoraçãoaoveroseloalemão numa carta que recebeu. Abriu-a. “Caro barão Philippe”, dizia,“sempre amei os vinhos do Mouton e gostaria de saber se há algumachancedequemepermitarepresentá-losparaosenhornaAlemanha.”AcartaestavaassinadaHeinzBömers,oex-weinführerdeBordeaux.Emboraosanosdaguerrativessemtrazidotristezaedorparaobarão,

sua resposta foi imediata. “Sim, por que não?”, escreveu. “É uma novaEuropaqueestamosconstruindo.”

“Os ventos do apocalipse que sopraram do leste por sessenta meses,afugentando o riso e a felicidade do reino das videiras, e deixando só osilênciodamorte, inalmentecessaram.”Comestaspalavras,ogrão-mestreGeorges Faiveley declarou aberta a 32 a reunião da Confrérie desChevaliers do Tastevin. Chamaram-na de o Chapitre de Résurrection. Afraternidade do vinho da Borgonha fora posta “de molho” durante aguerra.No dia 6 de novembro de 1946, porém, ela ressuscitou com toda a

pompa e circunstância que a comunidade do vinho era capaz de gerar.Autoridades do governo, dignitários estrangeiros, chefes militares e osmais importantesprodutoresdevinhodaBorgonhasereuniramparaumfestim de comidas e vinhos e para ouvir o escritor Georges Duhamel,membrodaAcadémieFrançaise,exaltarasvirtudeseosvaloresdovinho.Comotodososdemais,Duhamelsefartaranumarefeiçãodesetepratos

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e forapresenteado commeiadúziade vinhos, entreosquaisumBeauneClos des Mouches de 1938, por Maurice Drouhin, um Clos Blanc deVougeotde1940,umNuitsClosdeThoreyde1942eumNuitsChâteau-Gris de 1929. Nessas circunstâncias, não foi surpresa que Duhamelrealmentesederramasseemsualouvação.“Ovinhofoiumdosprimeiros indíciosdecivilizaçãoaaparecernavida

dos seres humanos”, disse. “Está na Bíblia, está em Homero, fulguraatravésdetodasaspáginasdahistória,participandododestinodehomensde talento. Ele dá espírito aos que sabem como saboreá-lo, mas pune osqueobebemsemcomedimento.”WilliamBullitt,queforaoembaixadordosEstadosUnidosnaFrançano

início da guerra, também tinha uma mensagem para a confraria. “Comotodos,quandometorneiembaixador, fuiaconselhadoamanterosolhoseouvidos abertos e a boca calada”, disse ele. “Agora, cá estou fazendoexatamente o contrário, abrindo a boca para cantar suas canções efechandoosolhosparasaborearseuvinho.”Foi uma noite de prazeres e reminiscências partilhados. O tempo já

começaraasuavizaralgumasdaslembrançasdaguerra.Enquantoovinhocontinuavaa luir,aspessoascomeçaramacontarhistórias.Umconvidadorelembrouasexperiênciasdeumamigo,umhomemdeChantillyquehaviaservidonoexércitofrancês.Seu amigo, ele contou a seus companheiros de mesa, era um grande

amantedovinhoque icaralongedecasaporquatrodesalentadoresanos.Quandoaguerraterminou,elenãoviaahoradevoltaràsuaadega,ondetrancaravárias centenasdegarrafasdevinho.Comgrandeexpectativa ealguma apreensão, inseriu na fechadura a chave que carregara consigodurante quatro anos. Ela girou.A porta continuava trancada!Alvoroçado,abriu-aeentrounorecintoescuro.Tirandoumalanternadobolso,girou-aàsuavolta.Por todaparte,viuacintilaçãodovidrodasgarrafas.Estava tudocomo

ele deixara. Cuidadosamente, puxou uma das garrafas do lugar. Aindaestavaarrolhada.Asegundatambém,eaterceira.Levando-asparaa luz, foradacave,viuqueasgarrafasestavamtodas

emperfeitoestado.Excetoporumpequenodetalhe—estavamtodasvazias.De fato,soldadosalemães tinhamarrombadoaadega, forçandoaporta

semquebrarafechadura.Devemter icadoextasiadosaodescobriroquehavia lá. Após consumir todo o vinho que podiam, tinham arrolhado denovo as garrafas e posto todas de volta no lugar. Antes de sair, um dos

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soldados se deu ao trabalho de deixar na cave um bilhete deagradecimento:“CaroSenhor,nossoscumprimentos.Seugostoparavinhoséimpecável!”Quando as risadas na mesa haviam se extinguido, o grão-mestre da

Confrérie chamou Duhamel para encerrar a noite. O velho acadêmico eamantedovinhovoltouàtribunacomsatisfação.“Esta celebração nos deu otimismo e con iança”, disse. “Ela prova que

nossa bem-amada França, tão posta à prova e tão infeliz, ainda temrecursoscomquepodecontar.Aoviraquiestanoite,provamosquenossaFrança,estereinodovinho,sobreviverá.”

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C

Epílogo

alor intenso,temperaturasglaciais,granizo,depoismaiscalor—1945pareciaumdesastregarantido.

Mas os camponeses que cultivavam as videiras acreditavam naexistência de uma relação especial entre a guerra e as uvas. Sempretinham dito que o Bom Deusmanda uma safra de vinho ruim quando aguerracomeçaeumaexcelente,festiva,paramarcarseutérmino.E tinham razão. Em 1939, o ano em que a Segunda Guerra Mundial

começou,asafrafoihorrível,aopassoqueade1945, l’annéedelavictoire ,foiumadasmelhoresjamaisregistradas.Faltaram superlativos aos críticos de vinho: “Dou-lhe seis estrelas em

cinco!”disseum.“Estesvinhossóestarãoprontosparasertomadosdaquiacinqüentaanos”,previuumoutro.Veteranoscompararamasafracomasde1870,1893eoutraslegendáriasdopassado.Embora a colheita de 1945 tivesse sido minúscula, só metade do que

fora colhido em 1939, os vinhos eram incrivelmente fragrantes econcentrados, “umarecompensa”, comoexpressouumobservador, “pelosanosdesofrimento,guerraeprivação”.AMãe Natureza fez amaior parte do trabalho. Como faltavam açúcar,

enxofreeoutrosprodutosquímicosaosvinicultores,osvinhostiveramdeserfeitosdemaneiraextremamentenatural.Parasubstituiroaçúcar,elesaumentaram o tempo em que o mosto, ou suco em fermentação,permaneceu em contato com as cascas das uvas. O tempo quente tinhaconferido um açúcar natural extra a essas cascas. Em razão de umaescassezdegarrafas,osvinhospermanecerampormaistemponostonéis,desenvolvendoumcarátereumacomplexidadeaindamaiores.Num certo sentido, 1945 foi a última grande safra do século XIX. Para

vinicultores e vinhateiros, o im da guerramarcou o início do século XX,quando tratores substituíram os cavalos e máquinas de engarrafarsubstituíram as mulheres que tradicionalmente faziam o serviço, nãodeixandonenhumadúvidadequeumanovaeranaviniculturacomeçara.Avidanosvinhedosmudoutambém.Otemponãoeramaisditadopelos

sinos das igrejas; as videiras nãomaismarcavam o ritmo e amarcha davida. “Antes os trabalhadores eram parte da família; agora sãoempregados”, disse Robert Drouhin. “Em vez de um festival e de umgrandebanqueteapósacolheita,nósospagamos,damos-lhesumcopode

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vinhoedizemosatélogo.”“A melhoria do bem-estar econômico acarretou uma mudança na

mentalidade. Cada vezmais pessoas estão pensando na lucratividade dovinho e não na qualidade. Penso que costumava haver muito maisorgulho.”Robert relembra afetuosamente as caminhadas que ele e o pai faziam

pelosvinhedose tudoqueMauriceprocurava lhe transmitir. “Elesempredizia que, quando se está contratando alguém, deve-se olhar para aqualidadedapessoa.Émuito fácil encontrarumbom técnico;muitomaisdifícilemaisimportanteéterumaboapessoa.”Em1957,quandoMauricesofreuumderrame,Robert,queestavacom

vinte e quatro anos, foi obrigado a abandonar a escola de enologia paraassumiradireçãodosnegócios.Foiumcomeçodi ícil.“Comcertezacometiumbocadodeerros”,disse.Mademoiselle Tridon, que nessa altura estava trabalhando como

secretária de Maurice, lembra de Robert entrando no escritório pelaprimeira vez após o derrame do pai. “O rapaz estava muito triste, masouvia atentamente tudo que eu tinha a dizer sobre o negócio, e ouviaoutraspessoas também. Isso erauma coisa emqueMaurice sempre foramuitobom.”Maurice morreu em 1962. Alguns anos mais tarde, examinando os

papéis do pai, Robert descobriu uma carta que ele escrevera da prisãoparaamulherem1941:

Emminhasmeditações,nãoencontronadanavidaque contemaisqueafelicidade que podemos dar aos outros, o bem que podemos fazer. É istoquedevemosensinaraosnossos ilhos,apensarmaisnosoutrosqueemsimesmos,poisédessamaneiraquevãoencontraramaisnobredetodasassatisfações.

A Segunda Guerra Mundial foi o momento decisivo nas vidas dos queiriam gerir os vinhedos franceses. Ela moldou não só quem eram, comoquemiriamsetornar.Como no caso de Robert Drouhin, para May-Eliane Miaihle de

Lencquesaing foi seu pai quem instilou nela os princípios de trabalhoárduoecompromissocomaqualidade.“Devo tudo a meu pai. Ele acreditava que a disciplina era a chave da

educação,eoprincípiomaisimportanteeratreinarascrianças,sobretudoasmeninas,parasabercomolidarcomtodasastarefasqueenfrentariam

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navida.”Hoje, Madame de Lencquesaing dirige o Château Pichon-Longueville-

Comtesse Lalande, uma propriedade que foi seriamente dani icadadurante a ocupação e estava à beira da ruína inanceira quando ela aassumiu. Sob sua direção, essa propriedade de produção de segundacategoria, tal como de inida pela classi icação de 1855, produziu vinhosbrilhantesquerivalizamcomosdepropriedadesdeproduçãodeprimeiracategoriacomooChâteauLafite-Rothschild,oChâteauMouton-Rothschildeo vizinho Château Latour, chegando por vezes a superá-los. Os vinhospossuemgrandedelicadeza, riquezaeprofundidadedesabor,qualidadesacentuadas graças a investimentos signi icativos que Madame deLencquesaingfezemPichondesdeoiníciodadécadade1980.“Aqueles anos durante a guerra deram-me todos os fundamentos”, ela

disse.“Tínhamos,comocrianças,asensaçãodequeéramosheróis,dequemesmosobasbombasestávamosajudandonalibertaçãodenossopaís.”BernarddeNonancourttinhadezoitoanosquandopartiuparaaguerra,

inspirado por Charles de Gaulle. Ao longo dos quatro anos seguintes,porém, seu entusiasmo juvenil seria temperado pelas realidades cruéisqueenfrentounaResistência.Quando a guerra terminou, Bernard se viu diante de um desa io

completamente diferente: ressuscitar a casa de champanhe moribundaque sua mãe comprara. Em 1945, a Laurent-Perrier foi classi icada narabeira de uma lista das cemprincipais casas de champanhe— icou no98olugar.Hoje, sob a direção de Bernard, está entre as dez melhores, com

trezentos e sessenta empregados e uma produção anual de quase 11milhões de garrafas. Bernard atribui seu sucesso diretamente ao queaprendeunaResistência:“oconhecimentodeorganizaçãoedecomofazerumaequipetrabalharjunta”.Houvemaisumacoisaqueaprendeutambém.“Mantenhaumamoraos

riscos”,elediz.“Nãofiquesatisfeitodemaisconsigomesmo.”Alguns anos atrás, quando estava tentado inventar um nome para a

linha de champanhe de luxo que planejava produzir, Bernard mandouumalistadenomespossíveisparaopresidentedeGaulle.Arespostaveioimediatamente:“GrandSiècle,éclaro,deNonancourt!”Anosmaistarde,quandoaGrandSièclehaviasetornadoanaucapitânia

daLaurent-Perrier,Bernarddisse: “Aindapossoouvir a vozdele semprequeleioessamensagem.”DouglasMacArthuro inspirou também.Háumaplaca comumacitação

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dogeneralamericanosobresuamesa.“Olhoparaelatodososdias”,contouBernard. Ela diz, ‘Seja jovem’. Estou com setenta e oito anos agora, masquando olho para trás, descubro que tenho saudade daquele tempo.Embora tenha sido horrível para o mundo, a guerra foi o mais belomomentodaminhavida.Eumesentiatãocheiodepatriotismo.”Após cinco anos como prisioneiro de guerra, Gaston Huet se

transformou rapidamente num dos mais importantes vinicultoresfranceses. Tornou-se também prefeito de Vouvray, cargo em que semanteveporquarentaeseisanos.Aos noventa anos, ainda é ativo. Passa grande parte de seu tempo

visitandoescolasdeenologiae falandoparaaspirantesavinicultores.Seuconselho: “Esqueçamtudoqueaprenderamnaescola.Livrem-sedemaushábitos.Retornemàstradições.”Atérecentemente,aúnicaoutracoisaespecialmentevaliosaparaeleera

a reunião anual com seus companheiros de prisão doO lag IVD. Após aguerra, os homens passaram a se reunir todos os anos para partilharrecordaçõeseselembraremunsaosoutrosdeque,sim,tinhamrealmentesobrevivido.Acadaano,contudo,umnúmerocadavezmenorcompareciaao encontro. Os homens tinham envelhecido; um a um, começaram afalecer.Em 1997, pela primeira vez, não houve reunião. “Não sobrara um

númerosuficientedenós”,disseHuet.A crença de Gaston Huet na tradição foi algo que Jean Hugel abraçou

ardorosamente.Muitas emuitas vezes, ele disse a seus ilhos que “vinhobem-tratado é vinho não tratado”, e que o vinicultor deveria permitir àNaturezaseguirseuprópriocursotantoquantopossível.Osvinhosqueelefazianuncaforammaisbemexibidosdoqueemjunho

de1989.FoientãoqueosHugel inalmente izeramsuafesta—cinqüentaanosdepoisdoplanejado.Aprimeira,marcadaparacomemorarseu300 o

aniversário como produtores de vinho, em 1939, tivera de ser canceladaquando a guerra fora declarada. Agora estavam celebrando seu 350 o

aniversário.Foi um evento encantador que incluiu até a degustação de alguns dos

mais excelentes vinhos da adega dos Hugel. Entre eles estava oGewürztraminer Sélection des Grains Nobles de 1945, um vinho deextraordinária doçura, complexidade e concentração. “É um vinho comsabordequevaiviverparasempre”,disseJohnnyHugel.AdegustaçãoseguiuumplanotraçadoporseupaiJeanHugelem1967.

“Esses vinhos”, ele escreveu, “só deveriam ser saboreados nas seguintes

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circunstâncias:porsimesmos,foradocontextodeumarefeição,comseusmelhores amigos amantes do vinho, numa atmosfera de respeito e semmenor referência a seu preço. Dessa maneira, vocês prestarãohomenagemàarteeàhonestidadedovinicultor,eigualmenteàNatureza,semaqualaproduçãodejóiascomoessasseriaimpossível.”Lamentavelmente,JeanHugel,quemorreuem1980,nãoestavalápara

acelebração.

Alguns anos depois da guerra, o jovem Armand Monmousseaux voltoucorrendodaescolaparacasabrandindoaliçãodehistóriaàsuafrente.“Papai,papai”,elegritou,“eramesmovocê?”AturmadeArmandestava

estudando a Resistência francesa quando o menino deu com umapassagem que descrevia como um certo JeanMonmousseaux usava seusbarrisdevinhoparaajudaraResistência,transportandoclandestinamentearmasepessoasatravésdaLinhadeDemarcação.Seu pai olhou o artigo. Ele falava de um vinicultor da Touraine que

ingressounoCombat,umdosprimeirosgruposdaResistência,earriscousuavidaescondendoarmas,documentose líderesdaResistênciaemseusbarris de madeira e depois transportando-os em carroças puxadas acavaloatravésdospostosdecontrolealemães.Quandoterminoualeitura,Jeanolhouparao ilhoe,bastantetimidamente,admitiuqueahistóriaerarealmentesobreele.A mulher de Jean, que era inglesa e havia tentado viver “muito

sossegadaduranteaguerra”,ouviuporacasooqueacabaradeserditoeicoufuriosa.“Essetempotodoevocênuncacontouparamim?”exclamou.“Comopôde?Achavaquenãopodiaconfiaremmim?”“Não, não”, Jean respondeu. “Apenas não quis preocupá-la ou pôr

qualqueroutrapessoaemperigo.”

Al Ricciuti estava preocupado; tinha ummonte de trabalho à sua espera,mas, em vez de enfrentá-lo, começou a escrever uma carta. Era uma dasdúziasqueescreveraparaPauletteRevoltenosanosdesdequeaguerraterminara. “Estou pensando em voltar à França”, escreveu. “Gostaria derefazermeuspassosduranteaguerra.Possopassarporaíparavervocêesuafamília?”ArespostadePaulettefoientusiástica.“Adoraríamosvê-lodenovo;por

favor, planeje hospedar-se conosco. Temos um montão de champanhes

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novosparavocêprovar.”Al fezasmalas.EmdoisdiasestavadevoltaàpraiaUtah,dezoitoanos

depoisdedesembarcarcomoTerceiroExércitodePatton.As lembrançasvoltaram aos borbotões, algumas penosas, outras que o izeram rir alto.Como poderia jamais esquecer seu primeiro encontro com o generalPatton?“Éramoscercadecem,todosnuseem ila,àesperadeentrarnumchuveiro portátil, quando alguém gritou: “Barraca dez!” Pusemo-nos emposição de sentido mais que depressa, ainda com as nossas barras desabão namão, enquanto Patton passava solenemente. Ele parou bem emfrente ao sujeito que estava ao meu lado e vociferou: ‘Soldado, quandotomou seu último chuveiro?’ O cara respondeu: ‘Há cerca de um mês,senhor.’ ‘Bom’, disse Patton, ‘continue tomando suas chuveiradasregularmenteassim.’”Apósseusegundo“desembarque”naNormandia,Alpartiuparaonorte

da França e a loresta das Ardenas na Bélgica. Finalmente chegou àChampagne.“Foi então queme dei conta, quando voltei e a vi. Foi amor à segunda

vista”,elecontou.AlePaulettecasaram-seem21dejaneirode1963,emAvenay-Val-d’Or.

Depoisdeumacurtalua-de-mel,foramparaBaltimore,ondeAltrabalhavapara o National Guard Armory e Paulette lutava contra as saudades decasa.Setemeses depois receberamuma carta do irmão de Paulette dizendo

quenãopodiamaisdirigironegóciodechampanhedafamília.SePaulettenãooquisesse,iriavendê-lo.Maisumavez,Al fezasmalase,destavezcomPaulette,partiudevolta

paraaFrança.Planejavaconseguirumempregonoserviçocivilamericanoali enquanto Paulette dirigia o negócio da família, mas as coisas não sepassaramassim.AFrançafechouderepentetodasasinstalaçõesmilitaresamericanosnopaís.Paulette não poderia ter icado mais feliz. “Preciso de ajuda”, ela lhe

disse.“Vocêpodetrabalharaquicomigo.”Eleconcordouemtentar.ComeçouseguindoPauletteportodaparte.“Tomavanotassobretudoe

mantinha um diário”, ele contou. E provava tanto champanhe quantopossível.“Naverdadeeunãosabiacoisaalgumasobrechampanhe,masoquemeatraíaeraveroproduto inal.Nãoeracomooutrasatividadesemquevocêtrabalha,trabalha,enuncavêoquefez.”Foi assim que Al Ricciuti se tornou o primeiro americano a fazer

champanhe. Isso não aconteceu da noite para o dia, porém. Algumas

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pessoas do lugar o olhavamde cima para baixo e se perguntavamo queum americano podia saber sobre produção de champanhe. “Nãodemonstravam isso claramente,mas eu sabia como se sentiam”, disse Al.“Houvealgunscomentáriossarcásticos.”Comopassardosanos,ainvejaeosarcasmoderamlugaràadmiração.

“Ele era um bom aluno”, disse Paulette. “As pessoas icavamimpressionadas com o quanto trabalhava duro e com sua ânsia deaprender.” Um porta-voz da Mumm, que comprava 25% das uvas dele,dissequeAlfaziapartedacomunidadetantoquantoqualquerfrancês.“Acomunidade do champanhe é uma malha muito cerrada”, disse GeorgeVesselle.“Penetrarnocírculoédi ícil,sobretudoparaumestrangeiro,masAlconseguiu.”Al, no entanto, é mais modesto quanto ao seu feito. “Gosto de tomar

champanhe,masnãotenhooquesechamariadeumbompaladar.Minhamulheréquetempaladar.”Pauletterespondeuaissocomumarisada,dizendo:“Nãoprecisoprovar

champanhe.Estánomeusangue.”Muitos dos melhores clientes de Al são ex-camaradas do exército. Em

geralelessesentamnacozinha,trocandohistóriassobosolhosatentosdopresidente Truman e do general Eisenhower, cujos retratos adornamcerti icadosqueelogiamPauletteesuafamíliaporteremsalvoasvidasdeaviadoresamericanos.

Em1959,obarmanchefedoHôtelMeuriceemParisobservouumhomembaixinho e rechonchudo “com uma postura implausivelmente correta”perambulando pelo bar. Parecia aturdido, quase como se estivesse numoutromundo.“Possoajudá-lo?”obarmanperguntou.“Sim”, o homem respondeu. “Tempos atrás morei aqui por um breve

períodoegostariadesabersepossovermeuantigoquartonovamente.”O barman, Pierre Lévéjac, reconheceu o homem e lhe pediu que

aguardasse enquanto telefonava para a gerência do hotel. “O senhor nãovai acreditar,masDietrich von Choltitz está aqui e gostaria de ver o seuquarto.”Ogerentecorreuaobar,ondevonCholtitz,elegantementevestidonum

terno azul-escuro, apresentou-se e repetiu seu pedido. “Eu icariaencantado em lhe mostrar seu antigo quarto”, disse o gerente. “Tenha abondadedemeacompanhar.”

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Os dois subiram ao quarto andar, onde o ex-comandante alemão deParismorara.VonCholtitzpassouváriosminutosolhandotodooquarto,amaiorpartedo tempoemsilêncio,antesdeabrirumaportaesairparaobalcãoquedavaparaasTulherias.“Ahsim,édistoquemelembro”,disse.EmalgunsminutosogerentehaviaescoltadovonCholtitzdevoltaaobar

e sugeriu que abrissem uma garrafa de champanhe. “Devemos assinalarestaocasiãodoseuretorno,mongénéral.”MasvonCholtitzdeclinou.“Fizoquequeriafazereagoratenhodeirandando”,disse.Von Choltitz tinha um outro compromisso, desta vez com Pierre

Taittinger, oprefeitodeParisdurantea guerra.Taittingerorganizaraumalmoço em homenagem a ele, mas o velho general, que desobedecera aHitler entregando Paris intacta, se recusou a ser tratado como um heróiconquistador. “Von Choltitz não era um homem fácil”, disse o ilho deTaittinger,Claude,quecompareceuaoalmoço.“Eraumprussianoetalvezse sentisse constrangido com o fato de ter desobedecido uma vez a seucomandante-em-chefe.Maistarde,porém,quandoestávamostomandocafénoterraço,elemedissealgoquenuncaesquecerei:‘Eucompreendioqueseu pai estava me dizendo. Tomei minha decisão de não destruir Parisdepoisdeconversarcomseupai.’”Trêsanosdepois,em1962,osparisienses icaramsurpresosaoavistar

bandeiras alemãs tremulando ao ladodas francesasnosChamps-Elysées.Pelaprimeiravezdesdeaguerra,umpresidentefrancêsestavadandoasboas-vindasaumchefedeEstadoalemão.Naquelanoite,Robert-JeandeVogüésentou-separaassistiraonoticiário

na televisão com seu ilho Ghislain. Quando as câmeras focalizaram opresidenteCharlesdeGaullenomomentoemqueele apertavaamãodochancelerKonradAdenauer,Ghislain levantou-sedeumpuloedisse: “Ei,deixe-medesligar.Tenhocertezadequevocênãoquerveristo.”Seu pai estendeu o braço para detê-lo. “Não, ique onde está, deixe

ligado”,disse.“Foiparaveristoquetrabalheiminhavidainteira.”

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Glossário

APPELATIOND’ORIGINECONTROLÉE(AOC)•lugardeorigemcontrolado.Nocasodovinhofrancês,garantequeovinhonãosóprovémdolugarindicado(comoBorgonhaouBordeaux),mascorrespondeaospadrõesdequalidadeparaaquelaregião.

ARRONDISSEMENT•distritooubairrodeumacidade.

CHÂTEAU (PL: CHÂTEAUX) • literalmente, castelo, mas usado em geral paradesignar toda uma propriedade vinífera, com sua casa (seja ou não umcastelo),vinhedos,adegaseoutrasconstruções.AmaiorpartedovinhodeBordeauxvemdechâteaux.

CHEMINOTS • funcionários das estradas de ferro, derivado da palavrafrancesaparaestradadeferro,chemindefer.

CHEVALIERS • literalmente, cavaleiros; hoje freqüentemente usado paramembrosdesociedadedovinho,emfrancêsumaconfrérie,ouconfraria.

COMITÉINTERPROFESSIONELDUVINDECHAMPAGNE(CIVC) •órgãointerpro issionalesemi-governamentalqueregulaaindústriadochampanhe.

COMITÉ NATIONAL DES APPELATIONS D’ORIGINE • órgão do governo para acertificaçãodolugardeorigemedaqualidadedovinhofrancês.

CÔTE D’OR • literalmente, o Talude ou a Escarpa Dourada; a área daBorgonha entreDijon e Santenay emque são feitos alguns dosmelhoresborgonhas,tantotintosquantobrancos.

CUVÉE•conteúdosdeumtoneldevinhoouloteespecialdevinho.

DORÍFOROS • insetos que atacam a batata, provavelmente levados para aEuropa em cargas expedidas da América do Norte na década de 1930.Tornou-seumtermodepreciativoparasoldadosalemães.

DOSAGE • xarope feito de champanhe e açúcar que é adicionado aochampanhe antes de seu arrolhamento inal. A quantidade adicionada

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determina a doçura do champanhe. Quanto menor adosage usada, maissecoochampanhe.

EAU-DE-SANTENAY•umlaxante;águapurgativa.

EAU-DE-VIE • nome genérico para bebidas alcoólicas destiladas, inclusiveconhaque.

FEUILLES MORTES • literalmente, folhas mortas; usado para descrever acortradicional,verde-acastanhada,dasgarrafasdevinhoborgonha.

GRANDSIÈCLE•literalmente“grandeséculo”;nomedochampanhedeluxodeBernarddeNonancourt.

GRANDSCRUS•osvinhedosdeprimeiraqualidade.

HOSPICESDEBEAUNE•hospitaldecaridadeemBeaune,naBorgonha,fundadoem 1443. O hospital é inanciado pela venda do vinho de seus vinhedos,que foram doados à instituição por proprietários de vinhas da área aolongo dos séculos. O leilão anual de seus vinhos, em novembro, éconsideradoumindicadordepreçosparaasafra.

INSTITUT NATIONAL DES APPELATIONS D’ORIGINE (INAO) • órgão administrativo queatesta o lugar de origem e a qualidade do vinho francês. É baseado emParis, mas possui peritos técnicos em cada uma das regiões viníferas daFrança.

LATOURD’ARGENT •umdosmaisrenomadoseantigosrestaurantesdeParis,especialmente famosopor seupato.Um favorito entre os o iciais alemãesbaseados em Paris durante a Segunda Guerra Mundial. Pertencia então,comoagora,àfamíliaTerrail.

MAIRIE•palavrafrancesaparaprefeitura.

MAISONDETOLÉRANCE•casadetolerância,bordellicenciado.

MAISONDU VIN • negóciode vinhos, emgeral deumatacadista que compravinho de produtores e o engarrafa sob o rótulo da própria casa ou quecomprauvasdosprodutoresedepoisfazeengarrafaovinho.A maisonduvin pode também possuir alguns vinhedos e fazer vinho com essas uvas,

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vendendo-osobseuprópriorótulo.

MAQUIS• literalmente,avegetaçãoespessadaCórsega.DuranteaSegundaGuerra Mundial, termo genérico para o movimento clandestino daResistênciafrancesaeseuscombatentes.

“MARÉCHAL, NOUS VOILÀ” • canção composta em homenagem ao marechalPhilippe Pétain, chefe de Estado da França durante os anos de Vichy.Especialmente popular entre as crianças nos primeiros anos da SegundaGuerraMundial, quando era regularmente cantada nas escolas e até nosencontrosreligiososdejovens.Otítulosignifica“Marechal,cáestamos”.

MÍLDIO • o falso míldio, que é a mais danosa das doenças fúngicas queatacam as videiras. Originou-se nos Estados Unidos e é espalhado pelovento, sendopor issodedi ícil contençãoumavezatacadoumvinhedo.Aumidade elevada e o calor são fatores-chave em seu desenvolvimento. Amaiorpartedasvideirasamericanaséresistenteaomíldio,nãoprecisandoportanto ser tratadas como sulfatode cobre tãonecessárioaosvinhedosfranceses.

MONUMENT AUX MORTS • monumento aos mortos de uma comunidade naguerra. Na França, cada aldeia, pormenor que seja, tem um, geralmentetrazendomais nomes de vítimas da Primeira GuerraMundial do que daSegunda. Os soldados mortos em batalha são os queont mort pour laFrance,morrerampelaFrança.

MOSTO • o suco da uva antes de fermentar completamente e tornar-sevinho.

NACHTUNDNEBEL•“Noiteeneblina”emalemão,mastambémotermoqueoTerceiro Reich usava para designar prisioneiros que não desejava quesobrevivessem, que queria eliminar. Deveriam desaparecer dentro dosistema, ser enterrados em massa ou em covas não identi icadas, semnenhumainformaçãoàfamília.

NARGUERLESALLEMANDS•debocharouzombardosalemães.

NÉGOCIANTS • comerciantesdevinhoporatacadoquecompramvinhoe/ouuvasemquantidadedeprodutoreserevendemovinho.Secompramuvas,fazem o vinho e vendem sob o nome da casa. Antes da Segunda Guerra

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Mundial, também engarrafavam amaior parte do vinho que compravam,freqüentemente vendendo-o com o nome do vinicultor nas garrafas. Issoocorria particularmente em Bordeaux, onde a maiora dos châteaux sóiniciou o engarrafamento na propriedade depois da Segunda GuerraMundial.

OFLAG IVD • campoalemãoparaprisioneirosdeguerradestinadoao iciaisfranceses na Silésia, Alemanha, onde Gaston Huet e mais 4.000 outrosforammantidosduranteoscincoanosdaSegundaGuerraMundial.

OÍDIO•overdadeiromíldio,maisumadoençafúngicadasvideirasqueveiodaAméricadoNorte.Enxofrefinamentemoídoéusadoparacombatê-la.

OXIDADO • condiçãodevinhosmaisvelhosquere leteagradual in iltraçãode oxigênio nas garrafas àmedida que o espaço entre a rolha e o vinhoaumenta.

PANZERMILCH • termo pejorativo para a beberagem de soja servida aosprisioneirosdeguerraemvezdecaféouchá.Literalmente,leite panzer,ospanzers sendo os tanques alemães que tão e icazmente puseram osfrancesesemdebandadaem1940.

SÃO VICENTE • o santo padroeiro dos vinicultores franceses. Sua festa écelebrada perto de 24 de janeiro. Foi escolhido como padroeiro dosvinicultores porque a primeira sílaba da forma francesa de seu nome,Vincent, évin, vinho em francês. Para os vinicultores, há um outro pontoemseufavor:janeiroéoúnicomêsemquepraticamentenãohátrabalhoafazernosvinhedos,oquelhesdátodotempoparacelebrar.Geralmenteofazemcomumaprocissãoatéaigreja,depoisumamissaemqueopadrelocal abençoa o vinho e por im a estátua do santo é passada para ovinicultorquecuidarádelaatéoanoseguinte.

SERVICE DU TRAVAIL OBLIGATOIRE (STO) • programa de trabalhos forçadosimplantadoporVichyem1942paraatenderasexigênciasdemão-de-obrada Alemanha. Fez mais para recrutar membros para a Resistência quequalqueroutracoisa.OsconvocadosparaoSTOgeralmentepreferiamsejuntaraosmaquisnaclandestinidadeatrabalharparaoTerceiroReich.

SULFATO DE COBRE • sal de cobre, por vezes chamado de vitríolo azul oupedra-lipis,usadoparatratarvideirascontrafungos.

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TERROIR • todas as condições naturais que in luenciam a videira e a uva(clima,solo,topografia).

TRÈSANCIENNE•literalmente,muitoantigo.Antiquado.

TRICOLORE • abandeira tricolor francesa, comsuas largas listrasnas coresazul,brancoevermelho.

VIGNERONS•vinicultores.

VIN CHAUD DU SOLDAT • literalmente, vinho quente do soldado, geralmenteservidoemcantinasespeciaisduranteosmesesdeinvernoeconsideradoumpreventivocontradoençassoboclimafrio.Materialparaopreparodovinhoquenteeraenviadotambémasoldadosnaslinhasdefrente.

VINORDINAIRE•vinhocomum,semnadadeespecial,tomadoemcasacomasrefeiçõesderotina.

VINIFICAÇÃO•fabricodevinhos.

WEINFÜHRERS •palavrade sonoridadealemãcunhadapelos francesesparadesignaroshomensenviadospelosnazistasparacomprarvinhofrancêsesupervisionarsuadistribuição.

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Notas

Amaiorpartedasinformaçõesemnossolivroveiodeentrevistascompessoasqueparticiparamativamentedosacontecimentosdaépocae cujas famílias estiveramdiretamenteenvolvidasneles.Materialtomadodefontespublicadasquenãopôdeserincluídonotextoécitadonasnotasqueseseguem.AsreferênciasbibliográficasrelativasaessasfontesestãonaBibliografia.

Introdução

10Berchtesgaden…o“Valhalaparaosdeuses,senhoresechefesnazistas”:StephenE.Ambrose,BandofBrothers;ECompany,506thRegiment,101stAirbone,fromNormandytoHitler’sEagle’sNest,p.271.

10“Atrásdaquelasagradáveisparedesbrancas”:RobertPayne,TheLifeandDeathofAdolfHitler,p.351-4.

13OusodovinhonaguerraporCiro,oGrande,JúlioCésareoutrasfigurasligadasàguerraédescritoporHerbertM.Baus,HowtoWineYourWaytoGoodHealth,p.182.

13“Umaraçãodevinhoquentenãoécara”:BulletinInternationalduVin,outubro/novembro1939,p.109.

13oapogeudovinhocomotáticamilitar:Baus,HowtoWineYourway,p.183.14Ovinhocomo“umbomconselheiro”:AndréL.Simon,AWinePrimer,p.11.16Oestudosobreaimportânciadovinhoparaocaráterfrancêsédescritonoartigo“Lavigneet

levin”,vol.2dotomo3deNoraPierre(org.),LesLieuxdemémoire,quefoipartedeumlevantamentopromovidopelogovernofrancês,p.796-7.

17Mirepoix…fezumdiscurso…emqueexpôscomoovinho“contribuiuparaaraçafrancesadando-lheespírito”:citadoporRobertO.Paxton,FrenchPeasantAgainstFacism:HenryDorgères’sGreenshirtsandtheCrisisofFrenchAgriculture,1929-1939,p.22.

UM|Amarasvideiras

20AinformaçãosobreoCongressoInternacionaldaVideiraedoVinhovemdeCharlesK.Warner,TheWinegrowersofFranceandtheGovernmentSince1875,p.157,edoBulletinInternationalduVin,agosto1939.

20“Nossosadversáriossãovermezinhos”:PaulJohnson,ModernTimes:TheWorldfromtheTwentiestotheEighties,p.360.

24Afiloxera,umminúsculoinseto:tópicoextensamentediscutidoporAlexisLichineemNewEncyclopaediaofWinesandSpirits,p.31.

24-5Remédiosesquisitoseumarecompensade300.000francossãodescritosporWarner,WinegrowersofFrance,p.4.

25AscondiçõesdosvinhedossãoamplamentediscutidasporWarner,WinegrowersofFrance,p.vii-x,70-9.TambémporFrançoisBonalemLeLivred’OrduChampagne,p.4-5,174.

26OnascimentodaAOCédescritoporRemingtonNorman,TheGreatDomainesofBurgundy,p.244.

27misturar“éatécertopontocomobeijar”:AndréL.Simon,AWinePrimer,p.71.30alendadoscamponesessobreguerraevinho:JanetFlanner,“LetterfromFrance”,TheNew

Yorker,15desetembro,1945,p.72.30“Estaéumaguerraesquisitaatéagora”:artigodeJanetFlanneremTheNewYorkWarPieces,

Londres1939toHiroshima1945,p.6.

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35OplantioderoseirasejardinsnaLinhaMaginotvemdeJean-PierreAzema,FromMunichtotheLiberation,1938-1944,p.27.

35“Jáquevocênãotemnadaparafazer”:citadoporHerbertR.Lottman,TheFallofParis:June1940,p.6.

36“Aconfiançaéumdever!”eareaçãodaFrançaaumainvasãoalemãiminentesãorelatadosnumartigodeA.J.LieblingemTheNewYorkerWarPieces,p.40.

36“Ovinhoéobomcompanheirodossoldados”:ÉdouardBartheécitadoporJean-LouisCrémieux-BrilhacemLesFrançaisdel’an40,t.II,p.463.

37“Qualquerfrancêscommaisdetrintaanoslembravaodesperdício”:RobertO.Paxton,VichyFrance:OldGuardandNewOrder,1940-44,p.11-12.

37AremessadevinhoparaofrontcomosegredodeEstadoécitadanumrelatóriodoMinistériodaGuerrafrancêsde26dejaneirode1938.

37“Senhores,logoirãotestemunhar”:TheOxfordCompaniontoWorldWarII,p.408.38“comoumaporçãodepequenasrolhas,ataparburacosnalinha”:doensaiodeAlistairHorne

sobrearendiçãodaFrança,ibid.,p.411.38“Podemosderrotarosboches”:artigodeLieblingemTheNewYorkerWarPieces,p.39.

DOIS|Nômades

42maiormigraçãodepessoasvistanaEuropadesdeaIdadedasTrevas:TheOxfordCompaniontoWorldWarII,p.392.

42“Elesnãosabem,ninguémsabe,paraondeestãoindo”:dosCahiersdePaulValéry,citadoporRobertO.PaxtonemVichyFrance:OldGuardandNewOrder,1940-1944,p.13.

42“Praticamentetodososfrancesestinhamsidocriadosouvindohistóriasdasatrocidadesalemãs”:ibid.,p.15.

43“Foiumaretiradasemglória”:RenéEngle,Vosne-Romanée,unmémoire,p.24.43“Osalemãeschegaramcomoanjosdamorte”:FlorenceMothe,Touteshontesbues,p.147.44“Asbaixas…assombrosas—90.000mortos,200.000feridos”:citadoemOxfordCompanionto

WorldWarII,p.408.44“ledondemapersonne”:PétaincitadoporPaxton,VichyFrance,p.37.44“olíderquenossalvoudoabismo”:ibid.,p.14.44“Detudoquesedespachavaparaastropas”:deumensaioescritoporPétainparaaobrade

GastonDery,Mondocteurlevin,1935.45“Ninguémadmitiaresponsabilidade”:H.R.Kedward,ResistanceinVichyFrance:AStudyofIdeas

andMotivationintheSouthernZone,1940-1942,p.11.45AdesilusãodeMarcBlochcomoaltocomandofrancêsédescritaporPaulJohnson,Modern

Times:TheWorldfromtheTwentiestotheEighties,p.364.45“Ninguémqueviveuduranteadébâclefrancesa”:Paxton,VichyFrance,p.3.48“issopermitiuaosalemãesparecerorganizadosegenerosos”:H.R.Kedward,OccupiedFrance:

CollaborationandResistance,1940-1944,p.3-5.48“Nãosepreocupemcomaquecimento”:Paxton,VichyFrance,p.19.48AânsiadeHitlerporbutim:ibid.,p.xii.48“Osverdadeirostubarõesnestaguerra”:GordonWright,TheOrdealofTotalWar,1939-1945,

p.117.51AconversãodoChâteauHaut-Brionemhospitalparasoldadosfrancesesedepoisnumacasa

derepousoparaosalemãesnosfoidescritaduranteumaentrevistacomJean-BernardDelmas,administradordapropriedade.OpaideDelmasfoioresponsávelpelaproduçãodevinhonoHaut-Brionduranteaguerra.

51OusodesinosemCosd’Estournelparapráticadetiroaoalvo:deumaentrevistacomBrunoPrats,ex-proprietáriodochâteau.

51AtomadadoChâteauduClosdeVougeotpelosalemãesnosfoirelatadaporJacques

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Chevignard,secretárioexecutivodaConfrériedesChevaliersduTastevin,fraternidadedovinhoborgonhesa.

52AviolênciadosalemãesemSézanne-en-ChampagnefoidescritaporMaîtreAntoinePetitnocatálogoparaoleilãodealgunsdosvinhosHôteldeFrance,em29denovembrode1998.Eledetalhouadestruiçãoduranteumaentrevistaconoscoapósavenda.

52MercadoriasqueenchiampelomenosduzentosecinqüentatrensdestinadosàAlemanhatinhamsidosaqueadas:Wright,OrdealofTotalWar,p.119.52“Nopassadoaregraerapilhar”:ibid.,p.117.CitadotambémporJacquesDelarue,Traficetcrimessousl’Occupation,p.80.52AsugestãodeGöringdequeofrancofrancêsfosseusadocomopapelhigiênico:Delarue,ibid.,p.80.

53AhistóriadeFelixKirfoidescobertanumasériedeartigosqueeleescreveuparaojornaldeDijonLeBienPublique.Asérie,Dijonsousl’Occupation,foipublicadaemjaneiroefevereirode1965.53ApressadeVichyemcosturarumacordodearmistícioéobservadaporPaxton,VichyFrance,p.7-11.

53AlutadepoderdentrodocomandoalemãocomrelaçãoaomodocomoaFrançadeveriasertratadaédiscutida,entreoutros,porWright,OrdealofTotalWar,p.116-20.

54AadoraçãoaPétainécitadaporinúmerasfontes,entreelasumensaiodeKedwardemOxfordCompaniontoWorldWarII,p.392.

54AfilosofiaeapolíticadeVichysãoextensamentediscutidasporPaxtoneKedwardnodecorrerdeseuslivros.

54AhistóriadosonodePétainénarradaporJohnson,ModernTimes,p.365.55SoldadosalemãessecomportandocomoturistasemParisesuafascinaçãoporseus

restaurantessãodescritosnoensaiodeAlistairHornesobrearendiçãodaFrança,OxfordCompaniontoWorldWarII,enoartigodeBertramM.Gordon,“IstGottFranzösisch?GermanTourismandOccupiedFrance,1940-1944”,publicadoemModernandContemporaryFranceem1996.

TRÊS|Osweinführers

60Oslaçosdemembrosdaliderançaalemãcomonegóciodevinhosfrancêsvieramdeentrevistasedeoutrasfontes,entreasquaisFlorenceMothe,Touteshontesbues,p.148-58.

60OscomentáriosdeAlbertSpeersobreoamordeGöringpeloLafitesãoencontradosemseulivroInsidetheThirdReich.

61“Poupe-medoseumascatezinhodechampanhe”:Mothe,Touteshontesbues,p.157-8.61“seuascetismoeraumaficção”:RobertPayne,TheLifeandDeathofAdolfHitler,p.346.61“paraanimaressesserõesbastanteenfadonhos”:Speer,InsidetheThirdReich,p.91.61“transformarnumamatilhadecãesdecaça”:JacquesDelarue,Traficetcrimessousl’Occupation,

p.80.65“Seráqueestaparteintegraldacivilizaçãofrancesavaiserconfiscada”:Mothe,Touteshontesbues,

p.153-4.66“Omodocomoseinclinavamdiantedeleelhefaziamrapapéseraembaraçoso”:ibid.,p.160-1.69AreaçãodeSegnitzaosaberquealgunsprodutoresdeborgonhaestavamtentandoenganá-lo

nosfoicontadaporseufilho.73AscartasescritasporMauriceDrouhinnaprisãoforampartilhadasconoscoporseufilho

Robert.77“Graçasaossenhores,souagoraoproprietário”:BulletinduCentreBeaunoisd’ÉtudesHistoriques,

no37,novembro1990,p.90.78Adescriçãodesoldadoscomexpressãosorumbáticapreparando-separapartirparaofront

russoveiodeumaentrevistaquetivemoscomomarquêsd’Angerville.78AcartadeagradecimentodeSegnitzveiodosarquivosDrouhin.79AperdadedoismilhõesdegarrafasdechampanheécitadaporFrançoisBonal,LeLivred’or

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duchampagne,p.192.81GrandepartedainformaçãosobreoencontrodeRobertdeVogüécomKlaebischvemde

entrevistascomseufilhoGhislainecomClaudeFourmon.82“Trabalhemaosdomingos!”:CynthiaParzycheJohnTurner,PolRoger,p.14.84“Comoseatreveanosmandaressaáguachoca”:ClaudeTaittinger,ChampagnebyTaittinger,

p.87.84AseduçãodeKlaebischporGuyTaittingernosfoidescritaporClaudeTaittingernuma

entrevistaeconstatambémdeseulivro,ibid.,p.86-8.86UsodeinformaçãosobreremessasdechampagnepelaResistênciaeoserviçosecretoinglês:

ParzycheTurner,PolRoger,p.36.88“Dadaamaniadosalemães”:JanetFlanner’sWorld:UncollectedWritings,1932-75,p.51.

QUATRO|Esconder,mentiretrapacear

90AhistóriadeHenriGaillardfoicoligidaapartirdedoislivrosdeocorrênciasencontradosnadécadade1990noarmáriodoantigochefedaestação.

91“esconder,mentiretrapacear”:JanetFlanner,“LetterfromFrance”,TheNewYorker,15desetembro,1945,p.72.

92aadministração…“ficavamuito,muitosentida”:PatrickForbes,Champagne:TheWine,theLandandthePeople,p.215.

92“Foiquaseumatopatriótico”:lembradoporClaudeTaittingernumaentrevistaconoscoeemseulivroChampagnebyTaittinger,p.36-7.

93AhistóriadovinicultorqueescondeuseusvinhosnumpequenolagofoicontadaporAndréL.SimonaWynfordVaughan-ThomasemHowILiberatedBurgundy,p.155.

93OencontrodoprefeitoVavasseurcomosalemãesnosfoidescritonumaentrevistacomGastonHuet.

94osalemães“sentiamqueestavamsendoconstantementelogrados”:A.J.Liebling,TheNewYorkerWarPieces,p.349.

95OusodeexcrementosderatoporMadameGombaudécontadoporNicholasFaith,VictorianVineyard:ChâteauLoudenneandtheGilbeys,p.146.

95“Sabíamosquecertascoisasestavamacontecendo”:deumaentrevistacomoprofessorHelmutArntz,ex-soldadoalemãoemParis.

95AhistóriadeRonaldBartonnosfoicontadaporseusobrinho,AnthonyBarton,quehojeéproprietárioediretordosChateauxLangoa-eLéoville-Barton.

96AsproezasdeGabyFauxnosforamdescritaspelobarãoEricdeRothschildesãocitadasporCyrilRay,Lafite,p.61-4.

98“gestosmínimosderebeldia”:H.R.Kedward,OccupiedFrance:CollaborationandResistance,1940-1944,p.8.

99“Eunãoconseguiriameobrigaratocar”:deumaentrevistacomSuzanneDumbrillnaChampagne.

99OchoqueentreestudantesfranceseseapolíciaalemãédescritoporDavidSchoenbrun,SoldiersoftheNight:TheStoryoftheFrenchResistance,p.88-96.

99“Setivéssemossido‘ocupados’,parausarotermopolido”:JeanPaulhan,Summerof‘44,p.91.100AsfaçanhasdeJeanMonmousseauxforammencionadasporSchoenbrun,SoldiersoftheNight,

p.134,edescritasparanósemmaiordetalhenumaentrevistacomofilhodeMonmousseaux,Armand.

101“Nãodeixaramumagarrafaparacontarahistória”:deumensaiodeRobertAron,“Bordeauxsauvéparsonvin”.

103ascondiçõesdevida…“haviamdeclinadodaausteridadeparaaescassezsevera”:RobertO.Paxton,VichyFrance:OldGuardandNewOrder,1940-1944,p.237.

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CINCO|Oroncodoestômago

107“Osfrancesesestãotãoempanzinados”:JacquesDelarue,Traficetcrimessousl’Occupation,p.79.107AdecisãodelimitaraingestãodecaloriasérelatadaporMichelCépède,Agricultureet

alimentationenFrancedurantlaDeuxièmeGuerreMondiale,p.151.108“Osvelhoseosdoentesprecisamdevinho”:doRelatórioparaoVCongressoNacionaldoVinho

daFrança,p.12.108“Perguntamos:‘Nãoqueremficarbons’”:ibid.,p.67.108AFrançacomoopaísmaismalnutridoentreospaísesocidentaisocupados,averdadeiravoz

sendo“oroncodoestômago”:RobertO.Paxton,VichyFrance:OldGuardandNewOrder,1940-44,p.238.

110“Ja,somosmesmoosdoryphores”:IrvingDrutman,org.,JanetFlanner’sWorld:UncollectedWritings,1932-1975,p.52.

110OdesaparecimentosdospombosdeumparquedeBordeauxfoirelatadopelojornalSud-Ouest,setembro1997,comopartedeumacoletâneadeartigosintitulada“ProcésPapon:l’histoired’uneépoque”,querelembravaBordeauxduranteaguerra.

110“Estávamostãofamintosquecomemosospeixinhosdourados”:VarianFry,SurrenderonDemand,p.182.

110“Oqueajudavamuitoeraovinho”:ibid.,p.121.111Leisrestringindoaquantidadedevinhoquesepermitiaaosprodutoresfazer:CharlesK.

Warner,TheWinegrowersofFranceandtheGovernmentSince1875,p.160-1.111Quadrodeestatísticasreferenteàproduçãodevinho,ibid.,p.168.115“Godmademan”:deumlivrodepoemaseensaioscompiladoeorganizadoporJoniG.McNutt,

InPraiseofWine,p.218.116InformaçãosobreasleisantialcoolismodeVichypodeserencontradaemPaxton,VichyFrance,

p.146-8.116OsproblemascomomercadonegrosãocitadosemRenéTerrisse,Bordeaux1940-1944,p.160.117AhistóriadeClaudeBrosseéencontradanaNewEncyclopaediaofWines,deAlexisLichine,

p.317.118“Ninguémjamaisteriaimaginado”:LucieAubrac,OutwittingtheGestapo,p.52.118“Quandoterminaram,derramaramumcopodeóleocombustível”:ibid.,p.51.119“Asúnicascoisasqueimportamsãosexoecomida”:PaulJohnson,ModernTimes:TheWorldfrom

theTwentiestotheEighties,p.365.119“leconquisedort”:atribuídoaGeorgesMandel,ministrodasColônias,porváriasfontes.119AinvestidadePétainpelosuldaFrançaparacriticarvinicultoresédescritaporWarner,

WinegrowersofFrance,p.162.119OplanodeLavalparamandartrabalhadoresparaaAlemanhaéexplicadoporH.R.Kedward,

OccupiedFrance:CollaborationandResistance,1940-1944,p.61-2.124“guerradeextermínio”:Johnson,ModernTimes,p.380.

SEIS|Lobosàporta

130AlendadoslobosécontadaporRobertJ.CaseyemTheLostKingdomofBurgundy,p.21-3.133AperseguiçãoaosjudeusporVichyédescritaporH.R.Kedward,OccupiedFrance:Collaboration

andResistance,1940-1944,p.28.133“Todaselasvãopartir”:ibid.,p.63.136AfugaderapazesdoSTOéexplicadaporRobertPaxton,VichyFrance:OldGuardandNew

Order,1940-1944,p.292,eKedward,OccupiedFrance,p.62.136“acadasemanaquepassava”:Kedward,OccupiedFrance,p.9.137AhistóriadaPiper-HeidsieckfoicontadaporPatrickForbes,Champagne:TheWine,theLandand

thePeople,p.215,eampliadaporClaudeTaittingernumaentrevista.

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SETE|Afête

148FoiatravésdeumasériedeentrevistascomGastonHuetquemontamosahistóriadobanquetedevinho.Huetemprestou-nostambémumdiárioqueeleeoutrosprisioneirosdeguerramantiveram,oquenosajudouacompreendermelhoroquantoafêtesignificouparaaquelesencarcerados.

155AhistóriadeRogerRibaudderivainteiramentedolivroporeleescritonaprisão,LeMaîtredemaison,desacaveàsatable,publicadopelaprimeiravezapósaguerra.

OITO|Oresgatedotesouro

162“ajóiamaispreciosadaFrança”:estaexpressão,usadapeloministrodaDefesaDaladier,foicitadapeloBulletinInternationalduVin,julho/agosto1938.

164“Osalemãesestãoqueimandoaspessoasvivas”:partedeumahistóriaquenosfoicontadaporJackyCortot,quelembrouduranteumaentrevistacomoossoldadosalemãessedesforraramdaResistênciaateandofogoàsuaaldeiadeComblanchien.

165“TransformeParisnumalinhadefrente”:LarryCollinseDominiqueLapierre,IsParisBurning?,p.38.

166OpapeldeFrédéricJoliot-Curie,ibid.,p.117.166OusodechampanheTaittingerparafazercoquetéismolotovfoiconfirmadoporDominique

Lapierre.166Numaentrevistaconosco,ClaudeTaittingerdescreveucomoopaisuplicouaogeneralDietrich

vonCholtitzquenãodestruísseParis.166eleiria“queimartodasascasas”:DavidSchoenbrun,SoldiersoftheNight:TheStoryoftheFrench

Resistance,p.439.166“Pariséumadaspoucasgrandescidades”:ibid.168ObombardeiodoHalleauxVins:NewYorkTimes,27deagosto,1944.169OsesforçosdeLouisEschenauerparaconvencerErnstKühnemannanãocumprirordens

paradestruiroportosãodescritosporváriasfontes,entreasquaisPierreBécamps,LaLibérationdeBordeaux,p.57-75.

169Aordem“ultra-secreta”1-122-144émencionadaporFlorenceMothe,Touteshontesbues,p.164.

170“Havíamosderrubadoumabarragemterrível”:WynfordVaughan-Thomas,HowILiberatedBurgundy,p.3.

170“Saíamosempatrulha”:RobertH.AldemaneGeorgeWalton,TheChampagneCampaign,p.III-16.174Oinusitadosistemadeavisoantecipadoemqueosfrancesesomitiamgarrafasdevinhoé

descritoporStephenE.Ambrose,TheVictors:EisenhowerandHisBoys,TheMenofWorldWarII,p.229.

175OdanosofridopeloChâteauduClosduVougeotnosfoidescritoporJacquesChevignardnumaentrevista.

175AlRicciutinosfaloudesuasaventurasduranteaguerranumaentrevistaemsuacasanaChampagne.

176AafirmaçãodeRicciutidequeosalemãesnãotiveramtempoparadetonarexplosivosfoiconfirmadaporPatrickForbes,Champagne:TheWine,theLandandthePeople,p.216,quedissetersabidoqueHimmlertambémplantaradinamitenasadegasdeEpernay.Osexplosivosdeveriamserdetonadosseosalemãesfossemobrigadosaevacuaracidade.OmotivodeHimmlereradarumavantageminicialaosprodutoresdeSekt(vinhoespumante)daAlemanhadepoisdaguerra.

176AlibertaçãodaAlsáciafoidescritaemdetalheporGeorges,JohnnyeAndréHugelduranteentrevistas.

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NOVE|ONinhodaÁguia

183“Seráterrívelparameushomens”:deumacartacitadaporAndréMartelemLeclerc:LeSoldatetlePolitique.

183“Numminutoestavamaqui”:StephenAmbrose,BandofBrothers:ECompany,506thRegiment,101stAirborne,fromNormandytoHitler’sEagle’sNest,p.272.

184AdecisãodosamericanosdetomaraAutobahn,ibid.,p.273.184“umaterradecontodefadascommontanhasdebruadasdeneve”:ibid.,p.273.184AlendadoBarba-RoxaécontadaporRobertPayne,TheLifeandDeathofAdolfHitler,p.354.184OsesforçosdeHitlerparatransformarBerchtesgadennumafortaleza,ibid.,p.351-4.184“ocorreuaHitler”:ibid.,p.352-3.185AsfaçanhasdeBernarddeNonancourtnosforamdescritasporeleduranteumalonga

entrevistaemsuacasanaChampagne.186ArelutânciadeHitleremvisitaroNinhodaÁguia,Payne,LifeandDeathofAdolfHitler,p.353.188AiradogeneralHaislipaoservencidopelosfrancesesérelatadaporMartelemsuabiografia

deLeclerc.189“Foiumacaminhadalongaepenosa”:ibid.

DEZ|Ocolaboracionista

192GrandepartedasinformaçõessobreavidapessoaldeLouisEschenauerveiodeumaentrevistacomajornalistaevinicultoradeBordeauxFlorenceMothe,cujopadrastotrabalharacomtioLouis.Eladesenvolveuessasinformaçõesementrevistasconoscoecomodr.J.KimMunholland,daUniversidadedeMinnesota.Descreveu-atambémemseulivroTouteshontesbues.

194“Nãoseconseguiaentraraliamenos…”:citaçãodeMothe.197GrandepartedasinformaçõessobreapartidadosalemãesdeBordeauxfoidescobertanos

arquivosdoSud-Ouest.199“Eutinhaumaúnicameta”:RobertO.Paxton,VichyFrance:OldGuardandNewOrder,1940-1944,

p.368.199“coiffure‘44”:deGertrudeStein,quefoicitadaporCorinneVerdetemSummerof‘44,p.70,

comotendodito:“Hojeaaldeiaestádepernasparaoarporquevãorasparacabeçadasmoçasqueseenvolveramcomosalemães.Éoquechamamcoiffure44eéterrívelporquesãoraspadasempúblico.”

200“NenhumhistoriadordaResistênciadeveriatentar”:H.R.Kedward,OccupiedFrance:CollaborationandResistance,1940-1944,p.77.

200Estatísticasreferentesaoacusadosdecolaboracionismo,ibid.,p.77.200“Nemtodasessastransaçõestêmomesmocaráter”:dedocumentosgovernamentaisobtidos

pelodr.J.KimMunholland.201AsacusaçõescontraEschenaueresuaafirmação“Nãosouumcolaboracionista”estãocontidas

nasediçõesde10e12denovembrodoSud-Ouest,1945.201DetalhesdojulgamentofechadodeEschenauerforamdescobertosemdocumentos

governamentaisobtidosporFlorenceMothe,cópiasdosquaisforampartilhadascomodr.J.KimMunholland.

ONZE|Volteiparacasa,nãomaisumjovem

206AlibertaçãodeHuetdocampodeprisioneirosdeguerranosfoidescritaporelemesmonumaentrevista.

208AconspiraçãodaMãeNaturezacontraosvinicultoresédescritanumdiáriodostemposde

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guerramantidopelosirmãosLawton,deBordeaux.211AsobrevivênciaeavoltaparacasadeRobert-JeandeVogüénosforamdescritasporseufilho

Ghislain.211ClaudeFourmonficouaindavisivelmenteabaladoemalconseguiufalaremseuesforçopara

noscontarcomosobrevivera.212OretornodobarãoPhilippedeRothschildaoMoutoneadetençãodesuamulherpela

GestaponosforamcontadosporsuafilhaPhilippine.213“Nuncapossoolharparaaestrada”:barãoPhilippedeRothschild,Vivrelavigne:Dughettode

FrancfortàMoutonRothschild,1744-1981,p.70.214JeanMonneteoprogramaderecuperaçãoeconômica:PaulJohnson,ModernTimes:TheWorld

fromtheTwentiestotheEighties,p.590-1.214AerradicaçãodehíbridosporbrigadasdaJuventudeHitleristafoidescritaporGeorgesHugel

numaentrevista.216AaçãojudicialquedeclarouadoaçãodoClosduMaréchalnulaécitadanoBulletindoCentre

Beaunoisd’ÉtudesHistoriques,no37,novembro1990.216SoubemoscomooportãodoClosfoipostoabaixonumaentrevistacomRobertDrouhin.216OleilãodosvinhosdePétain,conduzidoporGeorgesRappeneau,écitadopelaSociedade

HistóricadeBeaune.218AmaiorpartedasinformaçõessobreoChapitredeRésurrectionveiodosarquivosda

ConfrériedesChevaliersduTastevin.

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SOBREOSAUTORES

DONEPETIEKLADSTRUPsãoescritoresquedividemseutempoentrePariseaNormandia. Don é um ex-correspondente jornalístico de televisão erecebeuinúmerosprêmiosporseutrabalhonoexterior.Suamulher,Petie,ex-funcionáriadoprotocoloaserviçodoembaixadordosEUAnaUnesco,éumaescritora freelancequejáescreveuextensamentesobreaFrançaeavida francesa.Quandonãoestãoescrevendo,osKladstrup seocupamemrestaurar uma quinta do século XVIII e em replantar um pomar comvariedades raras demaçãs que estão ameaçadas de extinção. De vez emquando, encontram tempo tambémpara umou outro leilão de vinhos nazonarural.Sãopaisdeduasfilhas.