vieira - seminario 5 de j lacan primeira part 1

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A CLÍNICA DA SIGNIFICAÇÃO (o Seminá r i o 5  de Jacques Lacan) Clique aqui para ampliar Primeira parte - O chiste e sua relação com as formações do inconsciente *  Referência: Vieira, M. A. Sobre o Seminário 5 de Jacques Lacan e sua teoria clínica da significação” em MOTTA, M. JIMENEZ, S. (org.) O desejo é o diabo, Rio de Janeiro Contra Capa, pp. 87- 100, 1999. Marcus André Vieira  Em seu quinto ano de ensino aberto, ano fundamental em que se articulam inúmeras teses fortes de seu pensamento, Lacan dá a seu seminário o título “As formações do inconsciente”. Este artigo visa introduzir a leitura do seminário a partir da discussão de alguns  pontos que configuram seu horizonte e que esboçam algumas de suas portas de entrada. Comecemos pela expressão “formações do inconsciente”. Ela é cunhada por Lacan e não por Freud e interrogar as razões disto é em si bastante esclarecedor. Freud se serve com freqüência do termo  Bildung , habitualmente traduzido por formação. Não é raro que ele associe um outro substantivo a este, como é comum em alemão, forjando um composto onde o primeiro termo qualifica o segundo, como por exemplo em  Ersatzbildung , formação de substituição (ou substitutiva). Poderíamos imaginar então que a expressão “formação do inconsciente”, respondendo à mesma estrutura, fosse de uso corrente por Freud, mas tal não é o caso. Ao contrário do que se poderia pensar, a associação entre “formação” e “inconsciente” em uma expressão como Unbewußtseinbildung  é extremamente rara em Freud. Nas poucas vezes em que associa “inconsciente” e “formação” no sentido acima, onde “inconsciente” é um epíteto de “formação”, Freud utiliza preferencialmente Unbewußtsein Formation. 1  Cabe então a questão: já que esta não é uma expressão de Freud, o que autoriza Lacan a fazer de “formações do inconsciente” um sintagma freudiano? Fica claro que ao tomarmos “formações do inconsciente” como uma expressão legitimamente freudiana estamos admitimos que Lacan, extrai aí a razão de Freud mesmo sem se manter totalmente fiel à sua letra (o que, mais do que o hábito, explica provavelmente porque o uso deste sintagma seja tão imediatamente incorporado). Resta-nos tentar demonstrá-lo. Vemos que é preciso retornar a estas questões no detalhe porque estamos tão habituados com a força da leitura de Lacan que perdemos algo de seu gesto iluminador. Ela abre trilhas decisivas em Freud mas nem sempre deixa claramente indicado o tour de force  por ela empreendido para nos dar a razão do texto que deu origem a estas vias. Em outros termos, Lacan nos ajuda a ler Freud mas não necessariamente a ler Lacan, ou ainda, a ler a maneira como Lacan retoma Freud. Acredito que isto nos permitirá descortinar o ponto de *  Este texto reúne uma boa parte das idéias apresentadas e discutidas nos primeiros encontros de meu seminário na EBP-Rio em 1999. Agradeço aos participantes pelo seu papel fundamental tanto naquele quanto neste trabalho.

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  • A CLNICA DA SIGNIFICAO

    (o Seminrio 5 de Jacques Lacan) Clique aqui para ampliar

    Primeira parte - O chiste e sua relao com as formaes do inconsciente*

    Referncia:

    Vieira, M. A. Sobre o Seminrio 5 de Jacques Lacan e sua teoria clnica da significao em MOTTA, M. JIMENEZ, S. (org.) O desejo o diabo, Rio de Janeiro Contra Capa, pp. 87-

    100, 1999.

    Marcus Andr Vieira

    Em seu quinto ano de ensino aberto, ano fundamental em que se articulam inmeras

    teses fortes de seu pensamento, Lacan d a seu seminrio o ttulo As formaes do inconsciente. Este artigo visa introduzir a leitura do seminrio a partir da discusso de alguns pontos que configuram seu horizonte e que esboam algumas de suas portas de entrada.

    Comecemos pela expresso formaes do inconsciente. Ela cunhada por Lacan e no por Freud e interrogar as razes disto em si bastante esclarecedor. Freud se serve com

    freqncia do termo Bildung, habitualmente traduzido por formao. No raro que ele

    associe um outro substantivo a este, como comum em alemo, forjando um composto onde

    o primeiro termo qualifica o segundo, como por exemplo em Ersatzbildung, formao de

    substituio (ou substitutiva).

    Poderamos imaginar ento que a expresso formao do inconsciente, respondendo mesma estrutura, fosse de uso corrente por Freud, mas tal no o caso. Ao contrrio do que

    se poderia pensar, a associao entre formao e inconsciente em uma expresso como Unbewutseinbildung extremamente rara em Freud. Nas poucas vezes em que associa

    inconsciente e formao no sentido acima, onde inconsciente um epteto de formao, Freud utiliza preferencialmente Unbewutsein Formation.1

    Cabe ento a questo: j que esta no uma expresso de Freud, o que autoriza Lacan

    a fazer de formaes do inconsciente um sintagma freudiano? Fica claro que ao tomarmos formaes do inconsciente como uma expresso legitimamente freudiana estamos admitimos que Lacan, extrai a a razo de Freud mesmo sem se manter totalmente fiel sua

    letra (o que, mais do que o hbito, explica provavelmente porque o uso deste sintagma seja

    to imediatamente incorporado). Resta-nos tentar demonstr-lo.

    Vemos que preciso retornar a estas questes no detalhe porque estamos to

    habituados com a fora da leitura de Lacan que perdemos algo de seu gesto iluminador. Ela

    abre trilhas decisivas em Freud mas nem sempre deixa claramente indicado o tour de force

    por ela empreendido para nos dar a razo do texto que deu origem a estas vias. Em outros

    termos, Lacan nos ajuda a ler Freud mas no necessariamente a ler Lacan, ou ainda, a ler a

    maneira como Lacan retoma Freud. Acredito que isto nos permitir descortinar o ponto de * Este texto rene uma boa parte das idias apresentadas e discutidas nos primeiros encontros de meu seminrio

    na EBP-Rio em 1999. Agradeo aos participantes pelo seu papel fundamental tanto naquele quanto neste

    trabalho.

  • 2

    entrada de Lacan na obra de Freud quanto a nosso ponto e, dessa forma, melhor circunscrever

    o que chamei de razo de Freud. A explicao para a presena desta expresso em Lacan e sua ausncia em Freud passa

    a meu ver pelo fato que Lacan dispe de algumas ferramentas que permitem utilizar uma tal

    expresso sem medo. Vejamos.

    O inconsciente endiabrado

    Podemos supor inicialmente que este novo termo, Formation, apesar de ter um campo

    semntico bastante prximo ao de Bildung vem dar um lugar de exceo associao entre

    formao e inconsciente. Podemos fazer a hiptese que este novo significante seja convocado para que, retirando-se esta expresso da srie de expresses forjadas a partir de

    Bildung e evitando subordinar-se um termo a outro, mantenha-se a fora tanto de formao quanto de inconsciente (corrobora esta idia o fato que Freud mantm os dois termos independentes e no unidos em um substantivo composto). Isto distinguiria a associao entre

    formao e inconsciente das outras formaes freudianas. Parece ento que explicitamente evitado por Freud o sentido de Unbewutseinbildung como formao inconsciente. Finalmente, se lembramos que Freud com Bildung tanto remete a um processo, como em formao de sintoma, quanto a um produto, como em formao de compromisso, percebemos que Freud afasta tanto a leitura apressada que colocaria a nfase em uma formao tida como inconsciente porque se situa no inconsciente, quanto a de um

    processo de formao inconsciente porque se passa no inconsciente.

    preciso que fique claro, entretanto, que a discusso sobre esta expresso nos serve

    apenas como chave de leitura. No estamos descobrindo nenhum segredo que nos daria a

    verdade oculta de Freud. Estamos escolhendo, com Lacan, um caminho de leitura que

    contorna possveis ambigidades do texto freudiano. Neste, Freud fala, em sentido contrrio

    nossa hiptese, at mesmo de uma formao do chiste no inconsciente (Bildung im Unbewutsein).

    2 Apesar disto, a expresso cunhada por Lacan se sustenta a partir do que

    estabelece claramente o texto de Freud. Basta conferir o captulo seis de seu livro onde fica

    claro que estabelece-se uma estreita relao entre o chiste e o sonho.3 Isto explica porque

    admitimos a expresso formaes do inconsciente sem pestanejar, o que s faz reforar a idia que ela aparece, uma vez revelada por Lacan, como algo que falta no texto de Freud,

    criando nele um furo que justifica nossa interrogao.

    Lacan, com sua expresso, vai assim no sentido de Freud, afastando o inconsciente

    como adjetivo que introduziria a valorizao de uma localizao topogrfica como se

    estivssemos diante de algo situado em uma regio inconsciente e que isto bastasse para

    classificar a formao em questo. Freud afasta a noo de que esta alguma coisa, que j

    existiria por si mesma, passaria a ser do inconsciente ao se esconder nas masmorras/pores da civilizao. Se tal fosse o caso, se a cada formao o que a definisse fosse apenas seu lugar

    e no, digamos, sua especificidade formal, precisaramos conhecer os sinais que

    acompanhariam esta formao e que indicariam sua origem, radicada nas profundezas

    pulsionais. Algo como o odor de enxofre que acompanha o diabo e que certifica, nas histrias

    do capeta, que sua apario no apenas uma brincadeira de mau gosto mas que alguma coisa

    infernal vai acontecer. Ora, neste caminho necessitaramos de um saber extra-discursivo para

    distinguir o discurso comum do discurso inconsciente, pois nada na formao em si nos

    garante seu status inconsciente. Esta via conduz o analista a se interessar cada vez mais pelas

    manifestaes tidas como pr-discursivas (afeto, signos corporais etc.) que acompanhariam o

    discurso imprimindo-lhe um selo de verdade, chegando a extremos onde a descoberta de

  • 3

    Freud completamente invertida. o que indica Lacan da seguinte forma: De fato, ao fugir do para-aqum da razo desse discurso, ele deslocado a um para-alm (...). Qualquer outra

    manifestao da presena do sujeito logo parece dever ser-lhe preferida: sua apresentao na

    chegada e seu andar, a afetao de suas maneiras e o cumprimento na hora da despedida (...).

    Um acesso emocional ou um borborigmo visceral so testemunhas buscadas da mobilizao

    da resistncia (...) e a parvoce a que chega o fanatismo da vivncia chega a descobrir na inter-

    subodorao o auge do requinte.4

    A estrutura

    H mais. A traduo de Lacan contm ainda uma segunda manobra, a pluralizao,

    que d expresso o estatuto de categoria. Neste plano, podemos compreender a ausncia da

    categoria formaes do inconsciente de forma explcita em Freud pelas mesmas razes. Apesar de indicar a todo instante uma determinada relao entre as vrias produes do

    inconsciente, Freud parece recusar-se a constituir uma categoria provavelmente porque,

    mesmo introduzindo ou reforando o possessivo (como por exemplo com a expresso Bildung

    des Unbewussustsein), estaramos dando margem a uma entificao, como se as coisas em

    questo existissem per se no inconsciente donde sua articulao, o que parece ir na contramo

    do que se destaca na experincia analtica.

    Lacan, entretanto, no precisa evitar esta leitura pois seu trabalho justamente o de

    instrumentar uma determinada relao entre as formaes do inconsciente que evita este

    obstculo. Esta relao o que se depreende do clebre aforisma o inconsciente estruturado como uma linguagem. Com a noo de estrutura Lacan pode elaborar uma categoria fundada em uma determinada articulao de seus elementos, relativamente independente de suas

    essncias. Uma categoria aqui no compreende uma mesma classe de objetos afins mas uma

    mesma operao, ou melhor, uma srie de acontecimentos produzidos a partir das mesmas

    leis. Neste caso, como dir Hjelmslev: as relaes definem a magnitude e no o inverso.5

    Isto indica claramente como inverte-se a relao entre as essncias, agora relativas e no mais

    absolutas, e as determinaes, agora fundamentais, a partir da noo de estrutura.

    No poderei desenvolver aqui as conseqncias desta definio de estrutura, nem seus

    limites. Podemos entretanto concluir que Lacan, a partir de seu aforisma fundamental, pode

    reunir explicitamente estas formaes diversas sob a rubrica do inconsciente por ter constitudo um aparato conceitual capaz de inserir estas formaes em uma estrutura. Isto nos

    desobriga de sup-las armazenadas no mesmo saco ou no mesmo poro assim como, mesmo

    insistindo com Freud no inconsciente arteso, que forja, esculpe as formaes que tero sua

    marca, afasta o risco de entificao, da figura do arteso incansvel e infernal dentro do

    homem.

    O mtodo freudiano

    No basta entretanto dizer que quanto a este ponto Freud no to freudiano porque

    no dispunha da noo de estrutura. Lacan demonstra tambm que esta noo est implcita

    em seu mtodo. Isto j aparece quando Lacan repetidas vezes aproxima o trabalho de Freud

    do trabalho do lingista. Trata-se a de seu mtodo para analisar as formaes do

    inconsciente, que mais evidente nos chistes. Aparentemente simples, ele contm uma

    verdadeira revoluo epistemolgica. Lacan o sintetiza da seguinte forma: Posto que estamos investigando o que se passa no nvel significante, para saber o que algo significa, no

    perguntemos o que isto significa. Esta mesma posio metodolgica ser exposta adiante de

  • 4

    maneira mais desenvolvida: Apesar de supor que exista o inefvel [a significao em si] nunca nos recusamos a apreender o que se demonstra como estrutura em uma fala, a pretexto

    de existir o inefvel (...). Percebemos que infinitamente mais fecundo apreender a fala como

    tal e procurar articular a ordem que ela instaura, desde que tenhamos referenciais seguros (...).

    Se partssemos da idia que a fala essencialmente feita para representar o significado,

    ficaramos imediatamente confusos, porque isto seria recair nas oposies precedentes, ou

    seja, que no conhecemos o significado.6 Lacan sintetiza assim o que podemos observar desde as primeiras pginas do livro de

    Freud sobre o chiste. Freud aborda o Witz do ponto de vista formal, interessando-se pelo

    significante. Deste ponto de vista formal, lingstico, Freud j demarca-se de suas referncias.

    Com efeito, Freud comea seu livro discutindo com toda uma srie de concepes que j

    tinham sido aventadas para explicar o chiste. Lacan retoma este ponto restringindo-se a um

    autor, Theodor Lipps, que incorrer no mesmo erro dos demais. Apesar de ter o mrito de

    insistir no que o Witz tem de desconcerto e de esclarecimento, Lipps terminar supondo

    alguma entidade psicolgica que se manifestaria no riso e que daria sua verdade. Bergson,

    tambm retomado por Lacan neste seminrio, parece mais livre da obrigatoriedade da

    suposio de um poro da humanidade no homem. Ocorre entretanto que, de certa forma,

    Bergson incorre no mesmo erro ao opor uma fora primria, da vida, graa e beleza, ao

    autmato social, vendo no riso a restaurao da harmonia.7

    Aos partidrios do psicologismo Freud responde com a lingstica. Ele entretanto no

    se restringe, como o lingista, a descrever a combinatria significante na origem do chiste.

    Freud, como os autores acima, tambm se interessa pela satisfao especial do chiste mas ele

    evita a circularidade denunciada por Lacan por preferir, em vez de considerar antes de

    qualquer coisa alguma fora que se transmite e que extravasa, que se liberta da censura,

    buscando em uma espcie de significao primordial o segredo do Witz, delimitar a lgica

    prpria da combinao literal em jogo. A partir da ele abre-se a uma outra concepo deste

    real primordial, a uma maneira original de lidar com o real, sem constitu-lo como um reino

    fora da linguagem e oposto a ela. A formao no inconsciente pode ser entendida agora no como a estocada e nem como uma produo deste homenzinho dentro do homem que o

    inconsciente mas como uma produo discursiva em uma Outra cena.

    A Outra cena

    preciso agora situar a expresso Outra cena neste novo universo que se abre. Uma vez que nos desvencilhamos do poro, que Lacan denomina por vezes de geometria do saco,

    precisamos nos desembaraar do paralelismo essencialista inconsciente/conscincia pois este

    nos remete novamente ao diabinho, no mais no poro, verdade, mas ainda imanente sendo

    apenas deslocado para os bastidores. Neste sentido, Lacan vai indicar que a expresso de

    Fechner, ao ser retomada por Freud, no traz a idia de um discurso inconsciente funcionando

    permanentemente em um outro lugar onde uma outra vontade impera e onde a verdade viceja,

    mas sim de uma lgica distinta operando nos ditos conscientes.8

    Tomemos um exemplo de Freud para ilustr-lo (praticamente qualquer um da

    psicopatologia da vida cotidiana nos serviria): De noite, em uma reunio social, (...) [um] senhor conversava com (...) [uma] senhora sobre os amplos preparativos para a pscoa em

    Berlim. Ele perguntou: a senhora j viu a exposio na Wertheim? O lugar est

    completamente decotado.9

    Vemos que o lapso uma encruzilhada onde se articulam duas cadeias de pensamento,

    o comentrio inocente e a observao picante. Nenhuma das duas mais verdadeira, no

  • 5

    sentido em que uma seria mais primitiva que a outra. Podemos dizer que uma se articula

    explicitamente ao eu e a outra no. No podemos, entretanto, dizer que existem dois eus

    sendo um mais verdadeiro que o outro, nem dizer que existe um eu e um sujeito do

    inconsciente. Existe um s eu que habitado por duas cenas que seguem lgicas distintas,

    cada uma com um sujeito possvel.

    Ao dizer que no lapso o inconsciente se intrometeu no conscincia Freud indica esta

    encruzilhada. A partir da entendemos que a Outra cena, como a expresso diz, s tem sentido

    articulada com a cena. somente na cena sobre a cena, como em Hamlet, que a verdade pode

    se situar pois esta estrutura ambgua que remete impossibilidade fundamental do

    significante de significar-se a si mesmo remetendo-nos, assim, sua ancoragem no real. Uma

    outra cena precisa da cena para existir e s existe nesta relao. justamente isto que faz com que, nas formaes do inconsciente, o desejo, amarrado a alguns significantes, possa

    mudar de circuito. Estes formaes significantes so formaes do inconsciente por

    articularem novos sentidos que sero engendrados a partir da bscula promovida pelo

    encontro com uma certa face do real que estes significantes representam.

    Podemos assim pensar em um discurso Outro sem necessariamente nos referirmos a

    um discurso eternamente produzido e estocado em um eu inconsciente, mas sim a um discurso

    possvel na linguagem e atualizado pelo discurso consciente. O prprio da formao

    inconsciente reside assim em uma certa funo de passagem de uma cena para outra. Esta

    Outra cena ser ento materializada. Ela poder assim ser reconstruda no tratamento, com

    efeitos sobre o real do sintoma pois este ser apreendido a partir de uma nova formao

    significante.

    Vemos ento que, parafraseando o Lacan da Instncia da letra, o sujeito do inconsciente insiste mas no consiste na cadeia significante.

    10 Nem a cadeia consciente nem a

    inconsciente so aptas a introduzir o sujeito do inconsciente se tomadas isoladamente.

    Somente a partir de seu enlaamento, operao de amarrao de duas cadeias (que no fundo

    so a mesma, a do eu a do Outro) que o grafo do desejo vem inscrever, temos a

    presentificao da dimenso do sujeito e de seu desejo.11

    Por isto Lacan dir que o desejo articulado, uma vez que est ligado presena do

    significante no homem e que se diz na lngua do Outro. Isso no significa, entretanto, que ele

    seja articulvel. Justamente por emergir da ligao dos significantes, ele nunca plenamente

    articulvel num caso particular apesar de se vincular aos ditos do Outro.12

    Aqui reside o ponto de divergncia entre o primeiro Witgenstein com seu clebre

    sobre o que no pode ser dito deve-se calar13 e Freud. Vemos que, segundo Freud, isto que no pode ser dito no pode ser calado porque no pra de falar. Isso se articula em uma fala.

    a parle. O real est para-alm da linguagem mas esta , ao mesmo tempo, sua morada. No

    temos o dizvel e o indizvel mas sim o dito e, nele, algo que insiste em se dizer e, nisto, fala

    sem parar, sem dizer-se inteiramente. No h um dito e um alm do dito mas um dito e um

    para-alm de seu dizer.

    O Witz

    Aps estas consideraes e ainda nos mantendo em um plano introdutrio ao trabalho

    do seminrio, podemos tentar apreender agora, uma vez que j situamos as coordenadas onde

    se desenrola a investigao de Freud e de Lacan, o que est em questo no chiste. A primeira

    pergunta seria: porque o chiste e no o sonho? O sonho, via rgia para o inconsciente, no

    seria uma excelente via rgia para o inconsciente estruturado como uma linguagem? O chiste

    introduz aqui sua especificidade, indicada por Jacques-Alain Miller.14

    Ele preferido ao

  • 6

    sonho porque no se trata somente de demonstrar a supremacia do significante mas de

    circunscrever como, a partir do significante, se faz o novo, o escndalo da significao

    anmala. Em outros termos, Lacan se interroga como, a partir do cdigo, da cadeia

    significante dada para um sujeito, se faz a novidade, outro nome para o real.

    A partir do Witz Lacan no s colocar as formaes do inconsciente em srie

    demonstrando seu submetimento s mesmas leis como indicar, como j abordamos

    lateralmente acima, sua articulao com o para-alm da linguagem. Para isto ele vai cotejar

    inicialmente Familionrio com Signorelli observando que o esquecimento de nome no

    corresponde simplesmente a um buraco, uma lacuna, mas sim a uma produo ativa, j que

    outros nomes se apresentam no lugar do nome esquecido (Botticelli, Boltraffio). Ganha-se

    Trafoi, cidade da histria do suicdio por impotncia de um dos pacientes de Freud, mas

    perde-se Signor como substituto metafrico da morte. Para manter a equivalncia preciso

    demonstrar que algo se perde tambm no Witz. o que indicar Lacan lembrando que em

    familionrio perde-se famlia, oculta pelo brilho do milionrio. O tio milionrio de Salomon Heine, que proibiu-o de casar com sua filha por razes familionrias, est ao mesmo tempo

    elidido e insistindo neste Witz. Como vemos, perde-se a idia de famlia, assim como perde-se

    terra em aterrorizado, mas ganha-se uma criatura nova, um ser verbal que mantm o recalcado no horizonte.

    15

    Nos dois casos, quilo que escapa ao dizer responde um dito que tanto vela como

    desvela o impossvel do dizer. No familionrio, o milionrio vem para primeiro plano

    enquanto que a famlia velada-desvelada. No esquecimento de nome, os nomes substitutos

    tm em si pedaos do que no pode ser dito, runas metonmicas do objeto. Em ambos, o

    significante que encarna o objeto velado e desvelado pelo recalque. A diferena que no

    chiste constitui-se o que Lacan denominar uma elaborao escatolgica, como o caso do

    Familionrio, enquanto que no esquecimento constituem-se nomes substitutos que guardam

    um determinada relao formal metonmica com o Signorelli esquecido.

    Vemos ento que o chiste e o esquecimento de nome vm ento responder esta

    impossibilidade de se dizer um certo significante que aparece como nome do objeto. A

    questo que se coloca sobre qual a articulao entre o objeto e este significante recalcado.

    Que este significante venha no lugar do objeto seria j uma metfora uma vez que h a

    substituio? Sim, mas uma metfora especial. o que conduzir Lacan, no prosseguimento

    do seminrio, a isolar a metfora paterna como esta metfora que faz uma substituio muito

    especial, no de um significante por outro, mas de um nome a um batimento, pulsao, um

    aparece-desaparece da me, oscilao que introduz o desejo do Outro.

    Trata-se ento de dois caminhos onde o desejo do Outro veiculado por um

    significante: o milionrio da famlia realiza para Heine o mesmo que o julgamento final

    pintado por Signorelli para Freud, ou seja, o desejo do Outro no que ele tm de perigoso,

    impensvel, mortfero, que se manifesta, aqui como proibio e ali como morte. Trata-se de

    operaes em que, a partir de propriedades especficas do significante, articulam-se duas

    cadeias fazendo aparecer a dimenso do desejo em sua vinculao com o real do desejo do

    Outro.

    O Nome-do-pai

    No poderemos examinar aqui a formalizao da estrutura da linguagem (j bem

    conhecida em sua forma mais acabada, especialmente no que diz respeito metfora e

    metonmia, tal como figura na Instncia da Letra...) desenvolvida por Lacan neste seminrio a partir do exame deste e de outros chistes selecionados. Resta, entretanto, indicar que torna-

  • 7

    se necessrio para Lacan destacar o que permite que o chiste no seja um neologismo, aquilo

    que permite tambm que os nomes substitutos no sejam puras runas e sim novas

    construes. A novidade do Witz no est fora do sentido pois reconhecida e aceita no

    cdigo, pelo riso neste caso. Em outros termos, preciso agora compreender como possvel

    que as formaes do inconsciente digam e no digam o objeto e para tanto preciso saber o

    que, no Outro, define se uma palavra uma palavra ou uma mera lalao. preciso haver, em

    algum lugar da fala, alguma coisa que a fundamenta como fala, podendo ento ser verdadeira

    ou no. preciso que alguma lei indique o que faz e o que no faz sentido (esta alguma coisa

    no pode estar em algum poro pois seno voltaramos ao ponto de partida).

    A partir destas noes somos conduzidos a indagar o que faz com que o Outro, de

    mero depsito de significantes, torne-se um tesouro, uma cadeia ordenada. isto que permite

    que o objeto seja ao mesmo tempo nomeado e elidido. o que permite que algo de verdade

    seja possvel, mesmo que no-toda. Enfim o que garante a sustentao da realidade que

    assim como a verdade tem estrutura de fico. Vemos que a suposio de um Outro inicial

    no ordenado, um enxame, que Lacan desenvolver bem mais tarde aparece como momento

    prvio possibilidade do Witz. Para que o Witz exista preciso que o Outro seja um enxame,

    sem nenhuma ancoragem no real quanto significao, mas preciso tambm que o Outro, se

    d como cadeia, permitindo que a criao seja reconhecida e incorporada no cdigo. Isto que

    faz do Outro cadeia o que faz do caos do universo um texto, permitindo a Galileu dizer que

    a filosofia est escrita nesse imenso livro que continuamente se acha aberto diante dos nosso olhos, falo do universo.16

    Conhecemos a resposta de Lacan. preciso uma metfora fundamental que

    hierarquize o mundo e ela se d a partir do Nome-do-pai. Esse um termo que subsiste no nvel do significante, que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. o significante que

    d esteio lei, que promulga a lei. Esse o Outro no Outro.17 Deste modo somos introduzidos segunda parte do seminrio onde Lacan desenvolver a metfora paterna.

    Paralelamente a este trabalho de desenvolvimento rigoroso da teoria da metfora

    paterna e da foracluso do Nome-do-Pai, delinea-se a funo do falo como imagem, em jogo

    na comdia, e do falo como significante, lugar-tenente da significao enquanto tal, solidrio

    daquilo que no Outro marca um ponto de ancoragem dando lastro significao, e que se

    apresenta como significante da possibilidade de significao da prpria significao enquanto

    tal. Vemos desenhar-se assim uma teoria da significao, em que preciso que se suponha

    tanto o Outro ordenado para que se possa falar/significar assim como preciso que alguma

    coisa venha fundar, no Outro, o lugar da significao.

    Compreendemos ento porque a interrogao sobre isto que no Outro garante que haja

    significao, o Nome-do-pai, e suas conseqncias, constitua a segunda parte do livro.

    Compreendemos tambm porque a seqncia de seu percurso leva Lacan, na terceira parte, a

    interrogar, uma vez que o fundamento da significao j est situado, seu mecanismo em si.

    neste mecanismo que o falo desempenha papel essencial como aquele significante que

    significa que h algo a significar.

    A articulao entre metfora paterna e significao flica que supe a articulao entre

    Nome-do pai e falo, assim como sua distino, s se tornar explcita bem mais tarde,

    especialmente no Seminrio XVII. No poderemos retom-la tal como aparece neste

    momento, mas me parece essencial indic-la para que possamos acompanhar o trajeto deste

    seminrio. Ela se apresenta de forma marcante na distino que empreende Lacan aqui entre o

    Nome-do-pai como o significante indexador da significao (que diria algo como "pode-se

    significar") e do falo como significante ndice da signifiance, valor de significao (cuja

    frmula poderia ser "h algo a significar").18

    Uma vez que a ordem do mundo est constituda,

    preciso que algo indique que h um furo nesta ordem pois em torno deste que o mundo

  • 8

    poder girar fazendo o mundo vivo, habitado pela metonmia da falta-a-ser. Esta a funo do

    falo, segredo que o psictico desconhece. No lhe faltam elementos para construir uma

    realidade consistente, ao contrrio, ele a faz slida demais e por isso mesmo incerta. Isto

    porque para mant-la de p preciso um furo. Este furo, operado pelo significante flico no

    caso do neurtico, confere perenidade realidade justamente por dar-lhe seu movimento

    metonmico fundamental.

    O portal e a chave

    Para concluir, gostaria de indicar que somente aps vislumbradas todas estas etapas a

    proposio lacaniana o falo um significante pode desenvolver-se em toda sua fora clnica. Trata-se de um leitmotif que atravessa todo o seminrio e que desloca a nfase da

    imagem ao significante. Para que esta proposio seja eficaz preciso todo o percurso de

    Lacan, onde o falo tem um papel fundamental em sintonia com o Nome-do-Pai sem se

    confundir necessariamente com ele. A partir da o seminrio se abre para uma verdadeira

    demonstrao clnica do que a reorganizao que vimos acima pode acarretar no campo

    psicanaltico, at ento dominado, na melhor da hipteses, por uma anlise das fantasias em

    sua vertente imaginria. A obsesso, a perverso, a histeria e a psicose sero revisitadas a

    partir desta verdadeira teoria clnica da significao. O Nome-do-Pai, sua funo e teorizao,

    juntamente com a topologia do grafo do desejo so as chaves-mestras para percorrer este

    seminrio que constitui assim tanto o desenvolvimento de uma articulao conceitual rigorosa

    quanto uma demonstrao das conseqncias na direo do tratamento da delimitao da

    importncia fundamental do simblico. o que permite, ao mesmo tempo, desvencilhar a

    psicanlise dos impasses de uma prtica calcada exclusivamente no imaginrio e permitir uma

    aproximao do real.

    Insisto. O falo como significante corresponde introduo, atravs do esquema R, da

    topologia de uma articulao entre o imaginrio e o simblico que permitir em seguida uma

    abordagem original do real. Neste sentido, temos aqui os alicerces da teoria do n borromeu

    como desenvolvida bem mais tarde, em RSI por exemplo, pois vemos que a partir do

    significante somos introduzidos a uma articulao entre os trs registros fundamentais de

    Lacan e no somente ao simblico. Isto porque em suas dimenses fundamentais, do

    significado, do nome prprio e da letra, o significante ao mesmo tempo a chave e o portal

    que nos abre ao real.

    1 Cf. por exemplo FREUD, S. Inibition, symptme et angoisse, (captulo II, 1), Paris, PUF, 1993, p. 7.

    2 FREUD, S. O chiste e sua relao com o inconsciente, ESB vol. VIII, Rio de Janeiro, Imago, 1977, p. 183 e

    seguintes; e Studienausgabe IV (Psychologische Schriften), Frankfurt, S. Fischer-Verlag, 1970, p. 157. 3 FREUD, S. ESB-VIII, p. 183 e seguintes e Studienausgabe-IV, p. 148 e seguintes.

    4 LACAN, J. Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 1998, p. 339.

    5 cf. HJELMSLEV, L. Le Langage, Paris, Gallimard, 1966, pp. 68 e 140, cf. tambm. MILLER, Strucdure,

    Pas-Tant, no 8-9, Toulouse, 1988.

    6 LACAN J, O seminrio livro V - As formaes do inconsciente , Rio de Janeiro JZE, 1999, pp. 56 e 159.

    7 Cf. quanto a este ponto LACAN J, op. cit. pp. 24 e seguintes, assim como pp. 114 e seguintes.

    8 A expresso uma outra cena psquica, que Freud retirou de sua leitura aprofundada de Fechner, sempre

    correlacionada por ele estrita heterogeneidade das leis concernentes ao inconsciente com respeito a tudo o que

    pode estar relacionado ao domnio do pr-consciente, isto ao domnio do compreensvel, da significao LACAN J, op. cit. p. 112. 9 FREUD, S. A psicopatologia da vida cotidiana, ESB vol. VI, p. 96.

    10 LACAN J, A instncia da letra... Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 1998, p. 514.

    11 Podemos propor, com Eidelstein, a inscrio do oito interior no grafo do desejo segundo a seguinte figura:

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    Esta operao demonstra como as duas cadeias do grafo so distintas a cada ponto de basta e o mesmo tempo

    provenientes, as duas, do Outro, estando conectadas pelo significante. Cf a esse respeito EIDELSTEIN, A. El

    grafo del deseo, Buenos Aires, Manantial, 1995, pp. 32 e seguintes. 12

    LACAN J, op. cit. p. 341. 13

    Ce dont on ne peut parler, il faut le taire, WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosoficus, Paris,

    Gallimard, 1961, p. 107. 14

    MILLER, J.-A. Elseminario de lectura del livro V de Jacques Lacan, Barcelona, ECFB, 1998, p. 9 (este texto

    est na origem de um bom nmero de idias apresentadas aqui). 15

    Tive que alterar aqui o exemplo de Lacan, buscando o radical terra e no terrore em aterrorizado para manter a fora da operao indicada por Lacan. Cf. quanto a este ponto LACAN J, op. cit. p. 35 (nota de

    traduo). Notemos, alm disso, que este ser verbal criado pela metfora do chiste tem uma essncia prpria

    descrita por Gide em seu Promet mal enchan no personagem de Zeus, o banqueiro miglionrio. Cf. LACAN,

    J. Op. cit. p. 54 e seguintes. 16

    GALILEU, G. Saggiatore, 6, Os pensadores, So Paulo, Abril, 1978. Quanto ao Outro como enxame (essaim) cf. LACAN, J. Le Sminaire Livre XX , Paris, Seuil, 1975, pp. 251-252 e seguintes, assim como

    SOLER, C. Los diagnsticos, Freudiana, no 16, Paids, 1996, pp. 21-33. 17

    LACAN, J. Op. cit. p. 152. 18

    Quanto a este ponto cf. o captulo IX deste seminrio, assim como BROUSSE, M. H. As interpretaes lacanianas do dipo freudiano, Arquivos da biblioteca no 1, Rio de Janeiro, EBP-RIO, 1998. Cf. tambm COELHO, T. As estruturas freudianas da psicose e sua reinveno lacaniana, Sobre a psicose, Rio de Janeiro, Contra Capa, 1999.

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