vieira - seminario 5 de j lacan primeira part 1
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A CLNICA DA SIGNIFICAO
(o Seminrio 5 de Jacques Lacan) Clique aqui para ampliar
Primeira parte - O chiste e sua relao com as formaes do inconsciente*
Referncia:
Vieira, M. A. Sobre o Seminrio 5 de Jacques Lacan e sua teoria clnica da significao em MOTTA, M. JIMENEZ, S. (org.) O desejo o diabo, Rio de Janeiro Contra Capa, pp. 87-
100, 1999.
Marcus Andr Vieira
Em seu quinto ano de ensino aberto, ano fundamental em que se articulam inmeras
teses fortes de seu pensamento, Lacan d a seu seminrio o ttulo As formaes do inconsciente. Este artigo visa introduzir a leitura do seminrio a partir da discusso de alguns pontos que configuram seu horizonte e que esboam algumas de suas portas de entrada.
Comecemos pela expresso formaes do inconsciente. Ela cunhada por Lacan e no por Freud e interrogar as razes disto em si bastante esclarecedor. Freud se serve com
freqncia do termo Bildung, habitualmente traduzido por formao. No raro que ele
associe um outro substantivo a este, como comum em alemo, forjando um composto onde
o primeiro termo qualifica o segundo, como por exemplo em Ersatzbildung, formao de
substituio (ou substitutiva).
Poderamos imaginar ento que a expresso formao do inconsciente, respondendo mesma estrutura, fosse de uso corrente por Freud, mas tal no o caso. Ao contrrio do que
se poderia pensar, a associao entre formao e inconsciente em uma expresso como Unbewutseinbildung extremamente rara em Freud. Nas poucas vezes em que associa
inconsciente e formao no sentido acima, onde inconsciente um epteto de formao, Freud utiliza preferencialmente Unbewutsein Formation.1
Cabe ento a questo: j que esta no uma expresso de Freud, o que autoriza Lacan
a fazer de formaes do inconsciente um sintagma freudiano? Fica claro que ao tomarmos formaes do inconsciente como uma expresso legitimamente freudiana estamos admitimos que Lacan, extrai a a razo de Freud mesmo sem se manter totalmente fiel sua
letra (o que, mais do que o hbito, explica provavelmente porque o uso deste sintagma seja
to imediatamente incorporado). Resta-nos tentar demonstr-lo.
Vemos que preciso retornar a estas questes no detalhe porque estamos to
habituados com a fora da leitura de Lacan que perdemos algo de seu gesto iluminador. Ela
abre trilhas decisivas em Freud mas nem sempre deixa claramente indicado o tour de force
por ela empreendido para nos dar a razo do texto que deu origem a estas vias. Em outros
termos, Lacan nos ajuda a ler Freud mas no necessariamente a ler Lacan, ou ainda, a ler a
maneira como Lacan retoma Freud. Acredito que isto nos permitir descortinar o ponto de * Este texto rene uma boa parte das idias apresentadas e discutidas nos primeiros encontros de meu seminrio
na EBP-Rio em 1999. Agradeo aos participantes pelo seu papel fundamental tanto naquele quanto neste
trabalho.
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entrada de Lacan na obra de Freud quanto a nosso ponto e, dessa forma, melhor circunscrever
o que chamei de razo de Freud. A explicao para a presena desta expresso em Lacan e sua ausncia em Freud passa
a meu ver pelo fato que Lacan dispe de algumas ferramentas que permitem utilizar uma tal
expresso sem medo. Vejamos.
O inconsciente endiabrado
Podemos supor inicialmente que este novo termo, Formation, apesar de ter um campo
semntico bastante prximo ao de Bildung vem dar um lugar de exceo associao entre
formao e inconsciente. Podemos fazer a hiptese que este novo significante seja convocado para que, retirando-se esta expresso da srie de expresses forjadas a partir de
Bildung e evitando subordinar-se um termo a outro, mantenha-se a fora tanto de formao quanto de inconsciente (corrobora esta idia o fato que Freud mantm os dois termos independentes e no unidos em um substantivo composto). Isto distinguiria a associao entre
formao e inconsciente das outras formaes freudianas. Parece ento que explicitamente evitado por Freud o sentido de Unbewutseinbildung como formao inconsciente. Finalmente, se lembramos que Freud com Bildung tanto remete a um processo, como em formao de sintoma, quanto a um produto, como em formao de compromisso, percebemos que Freud afasta tanto a leitura apressada que colocaria a nfase em uma formao tida como inconsciente porque se situa no inconsciente, quanto a de um
processo de formao inconsciente porque se passa no inconsciente.
preciso que fique claro, entretanto, que a discusso sobre esta expresso nos serve
apenas como chave de leitura. No estamos descobrindo nenhum segredo que nos daria a
verdade oculta de Freud. Estamos escolhendo, com Lacan, um caminho de leitura que
contorna possveis ambigidades do texto freudiano. Neste, Freud fala, em sentido contrrio
nossa hiptese, at mesmo de uma formao do chiste no inconsciente (Bildung im Unbewutsein).
2 Apesar disto, a expresso cunhada por Lacan se sustenta a partir do que
estabelece claramente o texto de Freud. Basta conferir o captulo seis de seu livro onde fica
claro que estabelece-se uma estreita relao entre o chiste e o sonho.3 Isto explica porque
admitimos a expresso formaes do inconsciente sem pestanejar, o que s faz reforar a idia que ela aparece, uma vez revelada por Lacan, como algo que falta no texto de Freud,
criando nele um furo que justifica nossa interrogao.
Lacan, com sua expresso, vai assim no sentido de Freud, afastando o inconsciente
como adjetivo que introduziria a valorizao de uma localizao topogrfica como se
estivssemos diante de algo situado em uma regio inconsciente e que isto bastasse para
classificar a formao em questo. Freud afasta a noo de que esta alguma coisa, que j
existiria por si mesma, passaria a ser do inconsciente ao se esconder nas masmorras/pores da civilizao. Se tal fosse o caso, se a cada formao o que a definisse fosse apenas seu lugar
e no, digamos, sua especificidade formal, precisaramos conhecer os sinais que
acompanhariam esta formao e que indicariam sua origem, radicada nas profundezas
pulsionais. Algo como o odor de enxofre que acompanha o diabo e que certifica, nas histrias
do capeta, que sua apario no apenas uma brincadeira de mau gosto mas que alguma coisa
infernal vai acontecer. Ora, neste caminho necessitaramos de um saber extra-discursivo para
distinguir o discurso comum do discurso inconsciente, pois nada na formao em si nos
garante seu status inconsciente. Esta via conduz o analista a se interessar cada vez mais pelas
manifestaes tidas como pr-discursivas (afeto, signos corporais etc.) que acompanhariam o
discurso imprimindo-lhe um selo de verdade, chegando a extremos onde a descoberta de
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Freud completamente invertida. o que indica Lacan da seguinte forma: De fato, ao fugir do para-aqum da razo desse discurso, ele deslocado a um para-alm (...). Qualquer outra
manifestao da presena do sujeito logo parece dever ser-lhe preferida: sua apresentao na
chegada e seu andar, a afetao de suas maneiras e o cumprimento na hora da despedida (...).
Um acesso emocional ou um borborigmo visceral so testemunhas buscadas da mobilizao
da resistncia (...) e a parvoce a que chega o fanatismo da vivncia chega a descobrir na inter-
subodorao o auge do requinte.4
A estrutura
H mais. A traduo de Lacan contm ainda uma segunda manobra, a pluralizao,
que d expresso o estatuto de categoria. Neste plano, podemos compreender a ausncia da
categoria formaes do inconsciente de forma explcita em Freud pelas mesmas razes. Apesar de indicar a todo instante uma determinada relao entre as vrias produes do
inconsciente, Freud parece recusar-se a constituir uma categoria provavelmente porque,
mesmo introduzindo ou reforando o possessivo (como por exemplo com a expresso Bildung
des Unbewussustsein), estaramos dando margem a uma entificao, como se as coisas em
questo existissem per se no inconsciente donde sua articulao, o que parece ir na contramo
do que se destaca na experincia analtica.
Lacan, entretanto, no precisa evitar esta leitura pois seu trabalho justamente o de
instrumentar uma determinada relao entre as formaes do inconsciente que evita este
obstculo. Esta relao o que se depreende do clebre aforisma o inconsciente estruturado como uma linguagem. Com a noo de estrutura Lacan pode elaborar uma categoria fundada em uma determinada articulao de seus elementos, relativamente independente de suas
essncias. Uma categoria aqui no compreende uma mesma classe de objetos afins mas uma
mesma operao, ou melhor, uma srie de acontecimentos produzidos a partir das mesmas
leis. Neste caso, como dir Hjelmslev: as relaes definem a magnitude e no o inverso.5
Isto indica claramente como inverte-se a relao entre as essncias, agora relativas e no mais
absolutas, e as determinaes, agora fundamentais, a partir da noo de estrutura.
No poderei desenvolver aqui as conseqncias desta definio de estrutura, nem seus
limites. Podemos entretanto concluir que Lacan, a partir de seu aforisma fundamental, pode
reunir explicitamente estas formaes diversas sob a rubrica do inconsciente por ter constitudo um aparato conceitual capaz de inserir estas formaes em uma estrutura. Isto nos
desobriga de sup-las armazenadas no mesmo saco ou no mesmo poro assim como, mesmo
insistindo com Freud no inconsciente arteso, que forja, esculpe as formaes que tero sua
marca, afasta o risco de entificao, da figura do arteso incansvel e infernal dentro do
homem.
O mtodo freudiano
No basta entretanto dizer que quanto a este ponto Freud no to freudiano porque
no dispunha da noo de estrutura. Lacan demonstra tambm que esta noo est implcita
em seu mtodo. Isto j aparece quando Lacan repetidas vezes aproxima o trabalho de Freud
do trabalho do lingista. Trata-se a de seu mtodo para analisar as formaes do
inconsciente, que mais evidente nos chistes. Aparentemente simples, ele contm uma
verdadeira revoluo epistemolgica. Lacan o sintetiza da seguinte forma: Posto que estamos investigando o que se passa no nvel significante, para saber o que algo significa, no
perguntemos o que isto significa. Esta mesma posio metodolgica ser exposta adiante de
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maneira mais desenvolvida: Apesar de supor que exista o inefvel [a significao em si] nunca nos recusamos a apreender o que se demonstra como estrutura em uma fala, a pretexto
de existir o inefvel (...). Percebemos que infinitamente mais fecundo apreender a fala como
tal e procurar articular a ordem que ela instaura, desde que tenhamos referenciais seguros (...).
Se partssemos da idia que a fala essencialmente feita para representar o significado,
ficaramos imediatamente confusos, porque isto seria recair nas oposies precedentes, ou
seja, que no conhecemos o significado.6 Lacan sintetiza assim o que podemos observar desde as primeiras pginas do livro de
Freud sobre o chiste. Freud aborda o Witz do ponto de vista formal, interessando-se pelo
significante. Deste ponto de vista formal, lingstico, Freud j demarca-se de suas referncias.
Com efeito, Freud comea seu livro discutindo com toda uma srie de concepes que j
tinham sido aventadas para explicar o chiste. Lacan retoma este ponto restringindo-se a um
autor, Theodor Lipps, que incorrer no mesmo erro dos demais. Apesar de ter o mrito de
insistir no que o Witz tem de desconcerto e de esclarecimento, Lipps terminar supondo
alguma entidade psicolgica que se manifestaria no riso e que daria sua verdade. Bergson,
tambm retomado por Lacan neste seminrio, parece mais livre da obrigatoriedade da
suposio de um poro da humanidade no homem. Ocorre entretanto que, de certa forma,
Bergson incorre no mesmo erro ao opor uma fora primria, da vida, graa e beleza, ao
autmato social, vendo no riso a restaurao da harmonia.7
Aos partidrios do psicologismo Freud responde com a lingstica. Ele entretanto no
se restringe, como o lingista, a descrever a combinatria significante na origem do chiste.
Freud, como os autores acima, tambm se interessa pela satisfao especial do chiste mas ele
evita a circularidade denunciada por Lacan por preferir, em vez de considerar antes de
qualquer coisa alguma fora que se transmite e que extravasa, que se liberta da censura,
buscando em uma espcie de significao primordial o segredo do Witz, delimitar a lgica
prpria da combinao literal em jogo. A partir da ele abre-se a uma outra concepo deste
real primordial, a uma maneira original de lidar com o real, sem constitu-lo como um reino
fora da linguagem e oposto a ela. A formao no inconsciente pode ser entendida agora no como a estocada e nem como uma produo deste homenzinho dentro do homem que o
inconsciente mas como uma produo discursiva em uma Outra cena.
A Outra cena
preciso agora situar a expresso Outra cena neste novo universo que se abre. Uma vez que nos desvencilhamos do poro, que Lacan denomina por vezes de geometria do saco,
precisamos nos desembaraar do paralelismo essencialista inconsciente/conscincia pois este
nos remete novamente ao diabinho, no mais no poro, verdade, mas ainda imanente sendo
apenas deslocado para os bastidores. Neste sentido, Lacan vai indicar que a expresso de
Fechner, ao ser retomada por Freud, no traz a idia de um discurso inconsciente funcionando
permanentemente em um outro lugar onde uma outra vontade impera e onde a verdade viceja,
mas sim de uma lgica distinta operando nos ditos conscientes.8
Tomemos um exemplo de Freud para ilustr-lo (praticamente qualquer um da
psicopatologia da vida cotidiana nos serviria): De noite, em uma reunio social, (...) [um] senhor conversava com (...) [uma] senhora sobre os amplos preparativos para a pscoa em
Berlim. Ele perguntou: a senhora j viu a exposio na Wertheim? O lugar est
completamente decotado.9
Vemos que o lapso uma encruzilhada onde se articulam duas cadeias de pensamento,
o comentrio inocente e a observao picante. Nenhuma das duas mais verdadeira, no
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sentido em que uma seria mais primitiva que a outra. Podemos dizer que uma se articula
explicitamente ao eu e a outra no. No podemos, entretanto, dizer que existem dois eus
sendo um mais verdadeiro que o outro, nem dizer que existe um eu e um sujeito do
inconsciente. Existe um s eu que habitado por duas cenas que seguem lgicas distintas,
cada uma com um sujeito possvel.
Ao dizer que no lapso o inconsciente se intrometeu no conscincia Freud indica esta
encruzilhada. A partir da entendemos que a Outra cena, como a expresso diz, s tem sentido
articulada com a cena. somente na cena sobre a cena, como em Hamlet, que a verdade pode
se situar pois esta estrutura ambgua que remete impossibilidade fundamental do
significante de significar-se a si mesmo remetendo-nos, assim, sua ancoragem no real. Uma
outra cena precisa da cena para existir e s existe nesta relao. justamente isto que faz com que, nas formaes do inconsciente, o desejo, amarrado a alguns significantes, possa
mudar de circuito. Estes formaes significantes so formaes do inconsciente por
articularem novos sentidos que sero engendrados a partir da bscula promovida pelo
encontro com uma certa face do real que estes significantes representam.
Podemos assim pensar em um discurso Outro sem necessariamente nos referirmos a
um discurso eternamente produzido e estocado em um eu inconsciente, mas sim a um discurso
possvel na linguagem e atualizado pelo discurso consciente. O prprio da formao
inconsciente reside assim em uma certa funo de passagem de uma cena para outra. Esta
Outra cena ser ento materializada. Ela poder assim ser reconstruda no tratamento, com
efeitos sobre o real do sintoma pois este ser apreendido a partir de uma nova formao
significante.
Vemos ento que, parafraseando o Lacan da Instncia da letra, o sujeito do inconsciente insiste mas no consiste na cadeia significante.
10 Nem a cadeia consciente nem a
inconsciente so aptas a introduzir o sujeito do inconsciente se tomadas isoladamente.
Somente a partir de seu enlaamento, operao de amarrao de duas cadeias (que no fundo
so a mesma, a do eu a do Outro) que o grafo do desejo vem inscrever, temos a
presentificao da dimenso do sujeito e de seu desejo.11
Por isto Lacan dir que o desejo articulado, uma vez que est ligado presena do
significante no homem e que se diz na lngua do Outro. Isso no significa, entretanto, que ele
seja articulvel. Justamente por emergir da ligao dos significantes, ele nunca plenamente
articulvel num caso particular apesar de se vincular aos ditos do Outro.12
Aqui reside o ponto de divergncia entre o primeiro Witgenstein com seu clebre
sobre o que no pode ser dito deve-se calar13 e Freud. Vemos que, segundo Freud, isto que no pode ser dito no pode ser calado porque no pra de falar. Isso se articula em uma fala.
a parle. O real est para-alm da linguagem mas esta , ao mesmo tempo, sua morada. No
temos o dizvel e o indizvel mas sim o dito e, nele, algo que insiste em se dizer e, nisto, fala
sem parar, sem dizer-se inteiramente. No h um dito e um alm do dito mas um dito e um
para-alm de seu dizer.
O Witz
Aps estas consideraes e ainda nos mantendo em um plano introdutrio ao trabalho
do seminrio, podemos tentar apreender agora, uma vez que j situamos as coordenadas onde
se desenrola a investigao de Freud e de Lacan, o que est em questo no chiste. A primeira
pergunta seria: porque o chiste e no o sonho? O sonho, via rgia para o inconsciente, no
seria uma excelente via rgia para o inconsciente estruturado como uma linguagem? O chiste
introduz aqui sua especificidade, indicada por Jacques-Alain Miller.14
Ele preferido ao
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sonho porque no se trata somente de demonstrar a supremacia do significante mas de
circunscrever como, a partir do significante, se faz o novo, o escndalo da significao
anmala. Em outros termos, Lacan se interroga como, a partir do cdigo, da cadeia
significante dada para um sujeito, se faz a novidade, outro nome para o real.
A partir do Witz Lacan no s colocar as formaes do inconsciente em srie
demonstrando seu submetimento s mesmas leis como indicar, como j abordamos
lateralmente acima, sua articulao com o para-alm da linguagem. Para isto ele vai cotejar
inicialmente Familionrio com Signorelli observando que o esquecimento de nome no
corresponde simplesmente a um buraco, uma lacuna, mas sim a uma produo ativa, j que
outros nomes se apresentam no lugar do nome esquecido (Botticelli, Boltraffio). Ganha-se
Trafoi, cidade da histria do suicdio por impotncia de um dos pacientes de Freud, mas
perde-se Signor como substituto metafrico da morte. Para manter a equivalncia preciso
demonstrar que algo se perde tambm no Witz. o que indicar Lacan lembrando que em
familionrio perde-se famlia, oculta pelo brilho do milionrio. O tio milionrio de Salomon Heine, que proibiu-o de casar com sua filha por razes familionrias, est ao mesmo tempo
elidido e insistindo neste Witz. Como vemos, perde-se a idia de famlia, assim como perde-se
terra em aterrorizado, mas ganha-se uma criatura nova, um ser verbal que mantm o recalcado no horizonte.
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Nos dois casos, quilo que escapa ao dizer responde um dito que tanto vela como
desvela o impossvel do dizer. No familionrio, o milionrio vem para primeiro plano
enquanto que a famlia velada-desvelada. No esquecimento de nome, os nomes substitutos
tm em si pedaos do que no pode ser dito, runas metonmicas do objeto. Em ambos, o
significante que encarna o objeto velado e desvelado pelo recalque. A diferena que no
chiste constitui-se o que Lacan denominar uma elaborao escatolgica, como o caso do
Familionrio, enquanto que no esquecimento constituem-se nomes substitutos que guardam
um determinada relao formal metonmica com o Signorelli esquecido.
Vemos ento que o chiste e o esquecimento de nome vm ento responder esta
impossibilidade de se dizer um certo significante que aparece como nome do objeto. A
questo que se coloca sobre qual a articulao entre o objeto e este significante recalcado.
Que este significante venha no lugar do objeto seria j uma metfora uma vez que h a
substituio? Sim, mas uma metfora especial. o que conduzir Lacan, no prosseguimento
do seminrio, a isolar a metfora paterna como esta metfora que faz uma substituio muito
especial, no de um significante por outro, mas de um nome a um batimento, pulsao, um
aparece-desaparece da me, oscilao que introduz o desejo do Outro.
Trata-se ento de dois caminhos onde o desejo do Outro veiculado por um
significante: o milionrio da famlia realiza para Heine o mesmo que o julgamento final
pintado por Signorelli para Freud, ou seja, o desejo do Outro no que ele tm de perigoso,
impensvel, mortfero, que se manifesta, aqui como proibio e ali como morte. Trata-se de
operaes em que, a partir de propriedades especficas do significante, articulam-se duas
cadeias fazendo aparecer a dimenso do desejo em sua vinculao com o real do desejo do
Outro.
O Nome-do-pai
No poderemos examinar aqui a formalizao da estrutura da linguagem (j bem
conhecida em sua forma mais acabada, especialmente no que diz respeito metfora e
metonmia, tal como figura na Instncia da Letra...) desenvolvida por Lacan neste seminrio a partir do exame deste e de outros chistes selecionados. Resta, entretanto, indicar que torna-
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se necessrio para Lacan destacar o que permite que o chiste no seja um neologismo, aquilo
que permite tambm que os nomes substitutos no sejam puras runas e sim novas
construes. A novidade do Witz no est fora do sentido pois reconhecida e aceita no
cdigo, pelo riso neste caso. Em outros termos, preciso agora compreender como possvel
que as formaes do inconsciente digam e no digam o objeto e para tanto preciso saber o
que, no Outro, define se uma palavra uma palavra ou uma mera lalao. preciso haver, em
algum lugar da fala, alguma coisa que a fundamenta como fala, podendo ento ser verdadeira
ou no. preciso que alguma lei indique o que faz e o que no faz sentido (esta alguma coisa
no pode estar em algum poro pois seno voltaramos ao ponto de partida).
A partir destas noes somos conduzidos a indagar o que faz com que o Outro, de
mero depsito de significantes, torne-se um tesouro, uma cadeia ordenada. isto que permite
que o objeto seja ao mesmo tempo nomeado e elidido. o que permite que algo de verdade
seja possvel, mesmo que no-toda. Enfim o que garante a sustentao da realidade que
assim como a verdade tem estrutura de fico. Vemos que a suposio de um Outro inicial
no ordenado, um enxame, que Lacan desenvolver bem mais tarde aparece como momento
prvio possibilidade do Witz. Para que o Witz exista preciso que o Outro seja um enxame,
sem nenhuma ancoragem no real quanto significao, mas preciso tambm que o Outro, se
d como cadeia, permitindo que a criao seja reconhecida e incorporada no cdigo. Isto que
faz do Outro cadeia o que faz do caos do universo um texto, permitindo a Galileu dizer que
a filosofia est escrita nesse imenso livro que continuamente se acha aberto diante dos nosso olhos, falo do universo.16
Conhecemos a resposta de Lacan. preciso uma metfora fundamental que
hierarquize o mundo e ela se d a partir do Nome-do-pai. Esse um termo que subsiste no nvel do significante, que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. o significante que
d esteio lei, que promulga a lei. Esse o Outro no Outro.17 Deste modo somos introduzidos segunda parte do seminrio onde Lacan desenvolver a metfora paterna.
Paralelamente a este trabalho de desenvolvimento rigoroso da teoria da metfora
paterna e da foracluso do Nome-do-Pai, delinea-se a funo do falo como imagem, em jogo
na comdia, e do falo como significante, lugar-tenente da significao enquanto tal, solidrio
daquilo que no Outro marca um ponto de ancoragem dando lastro significao, e que se
apresenta como significante da possibilidade de significao da prpria significao enquanto
tal. Vemos desenhar-se assim uma teoria da significao, em que preciso que se suponha
tanto o Outro ordenado para que se possa falar/significar assim como preciso que alguma
coisa venha fundar, no Outro, o lugar da significao.
Compreendemos ento porque a interrogao sobre isto que no Outro garante que haja
significao, o Nome-do-pai, e suas conseqncias, constitua a segunda parte do livro.
Compreendemos tambm porque a seqncia de seu percurso leva Lacan, na terceira parte, a
interrogar, uma vez que o fundamento da significao j est situado, seu mecanismo em si.
neste mecanismo que o falo desempenha papel essencial como aquele significante que
significa que h algo a significar.
A articulao entre metfora paterna e significao flica que supe a articulao entre
Nome-do pai e falo, assim como sua distino, s se tornar explcita bem mais tarde,
especialmente no Seminrio XVII. No poderemos retom-la tal como aparece neste
momento, mas me parece essencial indic-la para que possamos acompanhar o trajeto deste
seminrio. Ela se apresenta de forma marcante na distino que empreende Lacan aqui entre o
Nome-do-pai como o significante indexador da significao (que diria algo como "pode-se
significar") e do falo como significante ndice da signifiance, valor de significao (cuja
frmula poderia ser "h algo a significar").18
Uma vez que a ordem do mundo est constituda,
preciso que algo indique que h um furo nesta ordem pois em torno deste que o mundo
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poder girar fazendo o mundo vivo, habitado pela metonmia da falta-a-ser. Esta a funo do
falo, segredo que o psictico desconhece. No lhe faltam elementos para construir uma
realidade consistente, ao contrrio, ele a faz slida demais e por isso mesmo incerta. Isto
porque para mant-la de p preciso um furo. Este furo, operado pelo significante flico no
caso do neurtico, confere perenidade realidade justamente por dar-lhe seu movimento
metonmico fundamental.
O portal e a chave
Para concluir, gostaria de indicar que somente aps vislumbradas todas estas etapas a
proposio lacaniana o falo um significante pode desenvolver-se em toda sua fora clnica. Trata-se de um leitmotif que atravessa todo o seminrio e que desloca a nfase da
imagem ao significante. Para que esta proposio seja eficaz preciso todo o percurso de
Lacan, onde o falo tem um papel fundamental em sintonia com o Nome-do-Pai sem se
confundir necessariamente com ele. A partir da o seminrio se abre para uma verdadeira
demonstrao clnica do que a reorganizao que vimos acima pode acarretar no campo
psicanaltico, at ento dominado, na melhor da hipteses, por uma anlise das fantasias em
sua vertente imaginria. A obsesso, a perverso, a histeria e a psicose sero revisitadas a
partir desta verdadeira teoria clnica da significao. O Nome-do-Pai, sua funo e teorizao,
juntamente com a topologia do grafo do desejo so as chaves-mestras para percorrer este
seminrio que constitui assim tanto o desenvolvimento de uma articulao conceitual rigorosa
quanto uma demonstrao das conseqncias na direo do tratamento da delimitao da
importncia fundamental do simblico. o que permite, ao mesmo tempo, desvencilhar a
psicanlise dos impasses de uma prtica calcada exclusivamente no imaginrio e permitir uma
aproximao do real.
Insisto. O falo como significante corresponde introduo, atravs do esquema R, da
topologia de uma articulao entre o imaginrio e o simblico que permitir em seguida uma
abordagem original do real. Neste sentido, temos aqui os alicerces da teoria do n borromeu
como desenvolvida bem mais tarde, em RSI por exemplo, pois vemos que a partir do
significante somos introduzidos a uma articulao entre os trs registros fundamentais de
Lacan e no somente ao simblico. Isto porque em suas dimenses fundamentais, do
significado, do nome prprio e da letra, o significante ao mesmo tempo a chave e o portal
que nos abre ao real.
1 Cf. por exemplo FREUD, S. Inibition, symptme et angoisse, (captulo II, 1), Paris, PUF, 1993, p. 7.
2 FREUD, S. O chiste e sua relao com o inconsciente, ESB vol. VIII, Rio de Janeiro, Imago, 1977, p. 183 e
seguintes; e Studienausgabe IV (Psychologische Schriften), Frankfurt, S. Fischer-Verlag, 1970, p. 157. 3 FREUD, S. ESB-VIII, p. 183 e seguintes e Studienausgabe-IV, p. 148 e seguintes.
4 LACAN, J. Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 1998, p. 339.
5 cf. HJELMSLEV, L. Le Langage, Paris, Gallimard, 1966, pp. 68 e 140, cf. tambm. MILLER, Strucdure,
Pas-Tant, no 8-9, Toulouse, 1988.
6 LACAN J, O seminrio livro V - As formaes do inconsciente , Rio de Janeiro JZE, 1999, pp. 56 e 159.
7 Cf. quanto a este ponto LACAN J, op. cit. pp. 24 e seguintes, assim como pp. 114 e seguintes.
8 A expresso uma outra cena psquica, que Freud retirou de sua leitura aprofundada de Fechner, sempre
correlacionada por ele estrita heterogeneidade das leis concernentes ao inconsciente com respeito a tudo o que
pode estar relacionado ao domnio do pr-consciente, isto ao domnio do compreensvel, da significao LACAN J, op. cit. p. 112. 9 FREUD, S. A psicopatologia da vida cotidiana, ESB vol. VI, p. 96.
10 LACAN J, A instncia da letra... Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 1998, p. 514.
11 Podemos propor, com Eidelstein, a inscrio do oito interior no grafo do desejo segundo a seguinte figura:
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Esta operao demonstra como as duas cadeias do grafo so distintas a cada ponto de basta e o mesmo tempo
provenientes, as duas, do Outro, estando conectadas pelo significante. Cf a esse respeito EIDELSTEIN, A. El
grafo del deseo, Buenos Aires, Manantial, 1995, pp. 32 e seguintes. 12
LACAN J, op. cit. p. 341. 13
Ce dont on ne peut parler, il faut le taire, WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosoficus, Paris,
Gallimard, 1961, p. 107. 14
MILLER, J.-A. Elseminario de lectura del livro V de Jacques Lacan, Barcelona, ECFB, 1998, p. 9 (este texto
est na origem de um bom nmero de idias apresentadas aqui). 15
Tive que alterar aqui o exemplo de Lacan, buscando o radical terra e no terrore em aterrorizado para manter a fora da operao indicada por Lacan. Cf. quanto a este ponto LACAN J, op. cit. p. 35 (nota de
traduo). Notemos, alm disso, que este ser verbal criado pela metfora do chiste tem uma essncia prpria
descrita por Gide em seu Promet mal enchan no personagem de Zeus, o banqueiro miglionrio. Cf. LACAN,
J. Op. cit. p. 54 e seguintes. 16
GALILEU, G. Saggiatore, 6, Os pensadores, So Paulo, Abril, 1978. Quanto ao Outro como enxame (essaim) cf. LACAN, J. Le Sminaire Livre XX , Paris, Seuil, 1975, pp. 251-252 e seguintes, assim como
SOLER, C. Los diagnsticos, Freudiana, no 16, Paids, 1996, pp. 21-33. 17
LACAN, J. Op. cit. p. 152. 18
Quanto a este ponto cf. o captulo IX deste seminrio, assim como BROUSSE, M. H. As interpretaes lacanianas do dipo freudiano, Arquivos da biblioteca no 1, Rio de Janeiro, EBP-RIO, 1998. Cf. tambm COELHO, T. As estruturas freudianas da psicose e sua reinveno lacaniana, Sobre a psicose, Rio de Janeiro, Contra Capa, 1999.
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