vera maria lanzellotti baldez boing a …livros01.livrosgratis.com.br/cp062016.pdfexperimentei o...
TRANSCRIPT
Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ
A Concepção Cristã de Ser Humano na Perspectiva de Adolphe Gesché
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Programa de Pós-graduação em Teologia
Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2008.
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ
A Concepção Cristã de Ser Humano na Perspectiva de Adolphe Gesché
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia pelo Programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio.
Orientador: Pe. Mário de França Miranda, SJ
Rio de Janeiro
27 de fevereiro de 2008
Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing
A construção da identidade cristã: a concepção cristã de ser humano na perspectiva de Adolphe
Gesché
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia
e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Mário de França Miranda Orientador
Departamento de Teologia – Puc-rio
Prof. Joel Portella Amado Departamento de Teologia – Puc-Rio
Prof. Marcus Barbosa Guimarães Instituto Paulo VI
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro
de Teologia e Ciências Humanas – Puc-Rio
Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2008
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.
Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing Graduou-se em Pedagogia, na Universidade Santa Úrsula, em 1985, e em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2004, defendendo a monografia “O ser humano: campo da experiência do divino”. Trabalha no Colégio de São Bento, como professora e coordenadora de Ensino Religioso. Atua, também, como professora horista da Cultura Religiosa, do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Ficha Catalográfica
Boing, Vera Maria Lanzellotti Baldez A construção da identidade cristã: a concepção cristã de ser humano na perspectiva de Adolphe Gesché / Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing; orientador: Mário de França Miranda. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Teologia, 2008. 136 f.: il.; 29,7 cm 1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia. Inclui referência bibliográficas
CDD: 200
In memoriam, à minha avó, Maria Luiza, que me fez perceber a presença de Deus na sua religião. Ao meu pai, Miguel, um ser humano incansável na luta pela justiça, que ultrapassa o limite da própria história. Com ele aprendi a amar, sem exceção, todo ser humano. À minha mãe, Dora, com uma sabedoria própria, profundamente humana, sempre, esteve atenta às necessidades dos filhos e do próximo, vindo de onde viesse. Com ela experimentei o amor de Deus e a vocação de mãe. Aos meus sogros, Julio e Zenir, que sempre testemunharam a possibilidade de uma vida existencial na fé. Ao Lula, que me ajuda a desvelar a presença de Deus na minha vida e a assumir o compromisso que temos com o projeto do Reino. Pela partilha e comunhão diária, que nos possibilita a superar obstáculos. E pela inteira amorosidade e disponibilidade na revisão constante do trabalho. Aos meus filhos, Maria Clara e Miguel, razão do reconhecimento do amor radical de Deus em nossas vidas e pelo tempo que não dispusemos juntos enquanto escrevia sobre o amor de Deus entre os seres humanos.
Agradecimentos Aos meus irmãos, que me ensinam a compreender as diferenças como um dom de Deus. Ao meu orientador, Pe. França, pela pedagogia cuidadosa de quem conduz um aprendiz por novos caminhos e a carinhosa paciência com que me ajudou a desenvolver este trabalho. Aos professores do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que me ajudaram a fazer teologia sem perder a perspectiva da história. À direção do Colégio de São Bento e à equipe de Ensino Religioso, pela compreensão e apoio nos investimentos no estudo. A Deus, por todas as possibilidades e pelo amor que me sustenta.
Resumo
Boing, Vera Maria Lanzellotti Baldez; Miranda, Mário de França. A construção da identidade cristã: a concepção cristã de ser humano na perspectiva de Adolphe Gesché. Rio de Janeiro, 2008. 136p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O presente trabalho procura discutir a identidade cristã no mundo atual,
marcado pela racionalidade, como possibilidade de diálogo da Teologia com as
ciências, especialmente a Antropologia. As discussões centram-se na visão de ser
humano pensada pelo teólogo Adolphe Gesché, que apresenta a perspectiva da
teologia antropológica, uma forma de pensar o ser humano a partir da revelação
dada por Deus, possível de ser lida na narrativa bíblica, onde a fé é resultado da
relação dialógica estabelecida entre o ser humano e Deus. O núcleo do trabalho
traz os elementos que constituem a condição humana, com destaque para a
liberdade e a alteridade, compreendidas já no ato da criação de Deus, oferecendo
ao ser humano a possibilidade de se tornar pessoa. Nesta perspectiva, a destinação
teologal é apresentada como possibilidade de plena realização humana.
Palavras-chave
Identidade cristã; ser humano e Deus; transcendência e imanência; liberdade,
alteridade, destinação, mal.
Résumé
Boing, Vera Maria Lanzellotti Baldez; Miranda, Mário de França. La construction de l'identité chrétienne: la conception chrétienne d'homme dans la perspective d'Adolphe Gesché. Rio de Janeiro, 2008. 136p. Mémoire de Maîtrise – Département de Théologie, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Ce mémoire de maîtrise a comme objectif mettre en lumière et promouvoir la
discution de l’identité chrétienne dans notre monde actuel marqué profondément
par la racionalité scientifique, ouvrant ainsi la possibilité de dialogue entre la
Théologie et les autres sciences, en particulier l’Anthropologie. Les discussions y
contenues sont centrées dans la vision humaine créee par le théologue Adolphe
Gesché, qui présente la perspective de la théologie anthropologique, c’est-à dire,
une façon de penser l’être humain à partir de la révélation donnée par Dieu, cette
façon est possible d’être comprise dans la narrative biblique où la foi apparaît
comme le résultat de la relation dialogique établie entre l’être humain et Dieu. Le
noyau central du travail apporte des élements qui constituent la condition
humaine, en particulier la liberté et l’altérité, comprises déjà dans l’acte de la
création de Dieu, ce qui permet à l’être humain la possibilité de devenir une
personne. Dans cette perspective, la destination théologal est présentée comme
une possibilité pleine de realisation humaine.
Mots-clés
Identité chrétienne; être humain et Dieu; transcendence et immanence; liberté;
altérité; destination; mal.
Sumário
INTRODUÇÃO .......................................................................................... 9
I – O SER HUMANO NA PERSPECTIVA DE ADOLPHE GESCHÉ ......... 14
1.1 – Introdução ...................................................................................... 14
1.2 - O ser humano: aspectos antropológicos e teológicos .................... 15
1.3 - Pressupostos fundamentais na compreensão do ser humano ...... 24
1.4 - A fé como resultado de uma realidade ........................................... 32
II – A CONDIÇÃO HUMANA ..................................................................... 41
2.1 – Introdução....................................................................................... 41
2.2 - A liberdade ..................................................................................... 43
2.3 - A alteridade .................................................................................... 53
2.4 - O mal .............................................................................................. 60
2.4.1 - Diferentes configurações do problema do mal ..................... 61
2.4.2 - Possibilidades de solução para o problema do mal ............. 67
2.4.3 - O pecado original e a culpa .................................................. 80
2.5 - A destinação ................................................................................... 85
III – A IDENTIDADE CRISTÃ .................................................................... 103
3.1 – Introdução ...................................................................................... 103
3.2 - Cristo como opção de vida ............................................................. 104
3.3 - O amor cristão: novo modelo de Igreja e de Homem ..................... 120
CONCLUSÃO ............................................................................................ 132
Referências bibliográficas ......................................................................... 135
Bibliografia do autor ................................................................................ 135
Bibliografia teológica básica ................................................................... 135
Bibliografia de ciências humanas ........................................................... 136
INTRODUÇÃO
Pensar o ser humano na sua relação com Deus, expressão de uma fé. Essa
foi a motivação inicial que me levou a refletir sobre o sujeito da fé no mundo atual,
repleto de diversidades e possibilidades. Falar do ser humano, inserido em sua
realidade histórica e tomado pelos discursos que legitimam as várias ciências, não
seria simples sem assumir uma visão teológica que pudesse responder às
exigências do mundo científico. Uma teologia que dialogasse com as ciências,
reconhecendo na razão uma mediação frutífera e capaz de oferecer a explicitação
da dimensão da fé, como realidade de expressão da relação entre Deus e o ser
humano. Mas a maior motivação se encontrava em sustentar a fé em Jesus Cristo
como opção de vida existencial. Para isso, um grande desafio se impôs: a
mediação da comunidade eclesial. Sabemos que as instituições, na modernidade,
sofrem um abalo no enfrentamento de um modelo globalizado, que se sustenta
numa lógica utilitarista e imediatista, configurando relações superficiais e
provisórias. Uma contradição à proposta do cristianismo, que se guia pelo amor ao
próximo e pela tradição.
Buscando enxergar caminhos, recorri à orientação do professor França
Miranda, com quem, no curso de graduação, aprendi a fazer teologia estudando os
desafios de abordar a Graça de Deus na história do ser humano. Foi, então, que fui
apresentada ao autor com quem faria uma longa parceria de trabalho, Adolphe
Gesché, que seria responsável por uma grande conversão humana em relação ao
mundo criado e sustentado por Deus. Aqui começa uma trajetória que desejo
realizar e partilhar, junto com o leitor, que, tenho certeza, encontrará muitos
outros caminhos além do que proponho como ponto de partida.
Primeiramente, faz-se necessário uma apresentação do autor e uma
justificativa das obras selecionadas para o desenvolvimento desse trabalho.
Adolphe Gesché nasceu em 1928, em Bruxelas, na Bélgica, vindo a falecer
recentemente, em 2003. Formado em Filosofia, Letras e Teologia, onde recebeu o
título de Doutor. Lecionava na Faculdade de Teologia da Universidade Católica
de Louvain e foi presidente da Sociedade Teológica de Louvain. Viveu, portanto,
o século das ebulições econômicas, sociais e culturais, o século XX, que suportou
o sofrimento de duas Grandes Guerras mundiais. Um século em que a humanidade
viu Deus sair e entrar, questionado e defendido, do cenário histórico dessa
10
realidade. A Igreja se encontrou, portanto, diante da necessidade de dialogar com
a modernidade, que, com as grandes transformações científicas e tecnológicas
trazidas a partir de meados do século XX, sofreu uma radical mudança em relação
à sua própria natureza. Uma mudança que gerou novas modalidades na relação
social, afetando diretamente a atuação da Igreja no mundo. As mudanças mais
sentidas foram nas famílias, que, por causa da guerra, tiveram as mulheres
ativamente presentes no mercado de trabalho, e na própria classe trabalhadora,
que se viu mais distanciada e expropriada de sua produção diante do fenômeno da
globalização. A Igreja se viu envolvida e comprometida com essa realidade, que
trazia o desafio de dar resposta de vida aos sinais de fragmentação. O Concílio
Vaticano II representa a resposta da Igreja a uma nova atuação no mundo. Gesché
tem um papel fundamental no pensamento teológico para esse diálogo.
Gesché foi, junto com outros grandes teólogos, uma referência no
resultado da teologia do Vaticano II, na Europa e no mundo. Como veremos nesta
apresentação, a base estruturante de seu pensamento se encontra na revelação de
Deus na história do Homem. Procurou compreender Deus e o Homem numa
relação existencial, pensar uma teologia que pudesse dialogar e apresentar
respostas ao novo mundo que emergia com maior racionalidade, mas,
simultaneamente, com necessidades de compreensão do sofrimento humano
deixado pelas Grandes Guerras que o mundo assistiu.
O autor deixou uma vasta obra escrita, em especial artigos de grandes
revistas teológicas. Reconhecendo a grande limitação do tempo e do objetivo do
trabalho de apresentar um estudo introdutório do pensamento de Gesché,
selecionei um pequeno número de suas obras para o trabalho. O limite
bibliográfico pode ter impedido um conhecimento mais profundo dos temas que
percorreu durante sua vida de escritor, principalmente a riqueza que apresenta no
diálogo com outras áreas de conhecimento, como a arte literária e a filosofia.
Realmente, Gesché elabora uma fértil articulação entre as ciências e, com muita
autoridade, soube aproveitar as pesquisas que vinham sendo desenvolvidas sobre
o ser humano. A partir da formação literária que trazia, buscou focar e relacionar
seu estudo sobre o ser humano com a arte, uma fonte inesgotável do mistério do
próprio ser. Dessa forma, atual e legítima, fez da teologia um instrumento de
trabalho. Com a apresentação da concepção antropológica e teológica, trazidas no
11
desenvolvimento do trabalho, esperamos alcançar o objetivo primeiro de
apresentar o pensamento do autor que fundamenta a sua teologia.
Os livros com os quais trabalhei fazem parte da série Deus para Pensar,
que trata, em cada volume da coleção, de diferentes temas desenvolvidos por
Gesché durante sua vida. Os dois primeiros volumes da série, O Mal e o Ser
Humano, receberam, em 1993, o prêmio Cardeal Mercier, concedido a obras de
filosofia e teologia. A Academia Francesa premiou, em 1998, os cinco primeiros
volumes da coleção, além daqueles, Deus, O Cosmo e A Destinação. Os volumes,
O Cristo (Volume6) e O Sentido (Volume 7), foram escritos, respectivamente, em
2001 e 2003, este último publicado no ano de sua morte. Selecionei aqueles
diretamente relacionados com a proposta do trabalho, uma abordagem do ser
humano como mediação primeira que nos revela Deus e que, através da
linguagem, torna a fé uma realidade possível de ser aderida como opção de uma
existência cristã. E Jesus Cristo, a revelação mediadora definitiva de Deus, que,
no evento da Encarnação, fez da história a mediação real para se construir a
identidade cristã. O Cosmo, mesmo estando entre os primeiros dos seus escritos,
não o incluimos diretamente, mas de forma implícita, já que buscamos delimitar o
tema no ser humano que adere ao seguimento de Jesus Cristo, optando por não
abordar essa temática, complexa o suficiente para ser pensada como um único
tema de trabalho.
No primeiro capítulo apresento uma abordagem geral que nos abre à
compreensão da teologia, nos aspectos antropológicos e teológicos, necessários ao
entendimento de todo corpo do trabalho, que se funda na perspectiva cristã do
autor com quem dialogamos para pensar o Homem de fé no mundo atual. Abro o
caminho percorrendo o que faz do ser humano um ser capaz de conhecer e desejar,
o enigma, que Gesché vai falar para desenvolver o mistério que habita o mais
íntimo do ser e que desencadeia uma busca incessante por se fazer conhecer. A
busca conduz o ser humano a uma plena realização, que Gesché deposita na
possibilidade de ser encontrada na salvação cristã. Passo, então, a ter como
referência a tradição judaico-cristã, que nos oferece as narrativas bíblicas como a
fundamentação de toda defesa pelo reconhecimento da identidade cristã. Dentro
dessa perspectiva, o capítulo é focado no ser humano “criado criador”, que tem
como ponto de partida, para a compreensão da dinâmica da revelação de Deus, no
ato da criação, uma criação feita com a liberdade de Deus, que concede o dom de
12
ser livre à sua criatura, criada à Imagem e Semelhança de Deus. O capítulo tem o
objetivo de apresentar essa dinâmica, destacando os elementos que constituem a
estrutura humana para serem pensados na teologia a partir da narrativa da criação.
Gesché trata de uma intrínseca relação entre Deus e o ser humano na criação. A
alteridade e a liberdade nascem como elementos fundantes dessa viva e atuante
dinâmica da criação de Deus, narrada no Gênesis. Concluímos o capítulo com a fé
como dado de uma realidade que expressa a relação estabelecida entre Deus e o
ser humano. Uma relação que nasce da alteridade, que constrói a confiança entre
os Homens e projeta para algo maior do que o próprio ser humano: a confiança
num Terceiro, que permite compreender aquela primeira intuição antropológica de
Gesché, o mistério atuando e desvelando no ser humano a capacidade e o desejo
que tem de Deus como parte constitutiva da sua estrutura humana.
Ainda percorrendo as veias que nos levam à compreensão do ser humano,
o segundo capítulo desenvolve outros elementos, apresentados como constitutivos
da condição humana, que são essenciais na antropologia que nos apoiamos para
defender a teologia no diálogo com o mundo moderno. Assim, falamos da
destinação, como a possibilidade teologal de uma vida existencial, e do mal.
Dedicamos uma parte à questão do mal pela necessidade da defesa de Deus, com a
qual o crente se depara nas dificuldades geradas pelo sofrimento, também pelo
pecado, tão difícil ao Homem moderno compreender. Recorremos, aqui, à
doutrina do pecado original, que o autor trata com muita atualidade na busca da
superação de uma visão equivocada na história do cristianismo. Da mesma forma,
coloca a defesa da vítima em contraposição às estruturas jurídicas da modernidade,
que acentuam a perseguição ao culpado mais do que se preocupam com a salvação
da vítima. Houve, portanto, uma necessidade de refazer o caminho da teologia,
que construiu, na sua história, uma visão pouco esclarecedora da atuação de Deus
na luta contra o mal, que distancia o Homem de seu destino último, a realização
em Deus. A liberdade, a alteridade e a destinação serão desenvolvidas dentro da
perspectiva teológica, que é o que pretendemos fundamentar na apresentação do
pensamento de Gesché. Sabemos que trabalhamos com elementos da antropologia,
mas vamos apresentá-los na perspectiva da teologia. Isso significa pensar que os
elementos podem ser vividos em diferentes lugares que dão o sentido próprio a
cada um. É isso que oferecemos para pensar: o sentido que o ser humano dá à sua
13
liberdade e alteridade de forma a conduzi-lo ou não à uma destinação como lugar
de um sentido, próprio da antropologia teologal.
Depois de percorrer as pegadas do autor, buscando construir o que
desejamos apresentar na sua perspectiva de ser humano, chegamos ao último
capítulo apresentando esse ser humano, já como Homem de fé, que proclama em
Jesus Cristo o motivo de sua identidade construída. Esta parte vem responder ao
convite que Gesché nos faz para pensar o Cristo da fé na sua realidade histórica.
Deslocar a centralidade da pessoa de Jesus para a sua mensagem de salvação, que
nos anuncia um Deus preenchido de humanidade. Anuncia a imagem de um Deus
que ama de forma incondicional e de um novo ser humano, a partir de sua
humanidade. Isso significa que faremos o caminho narrado pelos apóstolos para
chegar ao reconhecimento histórico do Cristo Glorificado. A partir das narrativas
bíblicas, buscamos chegar ao Cristo da fé como mensagem central da fé cristã.
Desenvolvemos essa idéia a partir do que o autor chama de identidade narrativa, o
elo que representa a articulação dinâmica entre o Jesus histórico e o Cristo
Glorificado. Por isso, seguimos o caminho dos apóstolos, procurando ouvi-los nos
testemunhos de fé do Cristo, reconhecido no Jesus de Nazaré, para nos
distanciarmos do risco presente na prática cristã de dissociar as duas dimensões de
Jesus Cristo, desfigurando qualquer tentativa de seguimento. Depois de
desenvolver a cristologia como proposta de uma adesão mais autêntica da fé cristã,
apresentamos a comunidade de fé como mediadora concreta do desenvolvimento
e construção da identidade cristã. Cristo como opção de vida, seguimento,
paradigma para realização de uma proposta de vida. Desejamos poder chegar a
esse resultado. Não que ele seja o único absoluto, mas se torna um convite aberto
às muitas possibilidades oferecidas por um Deus que, feito Homem e assumindo
as nossas limitações humanas, nos mostrou, na história, o caminho para uma
libertação que ultrapassa a própria história.
Iniciemos essa caminhada com a humildade de quem reconhece as
limitações do trabalho. Espero que o leitor possa ser provocado pelo desejo de
ultrapassá-las na mesma condição inicial de quem se propôs a escrever, com
disposição para pensar o reconhecimento do Homem de fé nos dias atuais.
1 O SER HUMANO NA PERSPECTIVA DE ADOLPHE GESCHÉ
1.1 Introdução
Iniciamos este trabalho buscando compreender o ser humano nas suas
condições de existência. O desenvolvimento do tema tem como centro a
concepção cristã e antropológica presentes na teologia. O objetivo é defender a
teologia como um lugar legítimo no debate entre as diferentes ciências que
transitam no mundo atual. Para isso, a antropologia tem destaque privilegiado na
estrutura do tema, pois a teologia, para se expressar, necessita das condições do
ser humano que é capaz de verbalizar aquilo que lhe é revelado. O que o autor
propõe é conhecer Deus através da expressão de fé do ser humano, mas
principalmente conhecer quem é esse ser humano para quem Deus se dirige.
Nessa perspectiva, Gesché nos apresenta a dinâmica da revelação de Deus,
referendada na Sagrada Escritura como fonte da tradição judaico-cristã, e
desenvolve os subsídios necessários à compreensão da construção da identidade
cristã. A partir da criação, desenvolve os fundamentos da estrutura do ser humano,
que pressupõe a realidade da revelação de Deus e da relação estabelecida com o
ser humano. A liberdade, a alteridade e a destinação são elementos que o autor
destaca como constitutivos da condição humana, que ganham, no ato da criação,
as condições do ser humano se reconhecer capaz de criar, de se relacionar, de
amar e de desejar Deus. O diálogo estabelecido entre Deus e o ser humano
encontra-se desenvolvido na temática da fé, realidade dada como resultado da
resposta do homem à revelação de Deus na história. Uma realidade fundamental,
pois é a partir dela que todo o trabalho se estrutura, entendendo como realidade de
expressão do crente que, diante do não crente precisa defender e legitimar essa
realidade que se diferencia diante do mundo não sagrado.
Damos, então, início a essa trajetória, de desvelamento do ser humano
diante de si e de Deus, assim como de Deus na vida. Apresentamos a nossa
peregrinação.
15
1.2 O ser humano: aspectos antropológicos e teológicos
“A riqueza do ser humano é infinitamente superior ao que ele supõe. É uma riqueza que nada pode tirar dele, e cuja onda ressurge sem cessar, a cada século. É isso que o ser humano quer saber. Esse é o centro de sua inquietação temporal. Essa é a causa da sua sede. Quanto mais ele ganha terreno, mais se torna consciente, todo poderoso, e mais ele espera com razão do teólogo que (este) tire a água da rocha.”1
A citação acima, trazida pelo autor na sua abordagem sobre o ser humano,
é uma tentativa de ilustrar a proposta de falar sobre alguns elementos que
estruturam o ser humano na perspectiva da teologia antropológica. O autor, ao
falar do ser humano, intrinsecamente, nos coloca em contato com a teologia, pois
tem como afirmação básica à compreensão dinamizada e dialética de como
concebe a expressão que vai acompanhar o desenvolvimento do seu pensamento:
o “ser criado criador”. Mais à frente o termo será melhor discutido, pois teremos
já exposto o tema de forma mais completa. Porém, antecipamos que o autor traz
no seu pensamento o fundamento de uma lógica interna à própria criação.
O ser humano é apresentado, pelo autor, como um enigma diante de si e no
confronto com a realidade, que permite seu desenvolvimento e crescimento. Um
enigma dinamizador, impulsionador, compreendendo o ser humano como um ser
capaz de sair em direção ao outro, que, consciente ou não, faz dele um
sobrevivente, cultural e socialmente. Um ser de alteridade.
A citação impõe uma reflexão na qual Gesché se apóia: a centralidade das
inquietações do ser humano, que caracteriza a presença do in-finito na sua finitude,
as inquietudes das indagações sobre o universo em que se reconhece como
Homem, sujeito ativo, carente de respostas. O autor utiliza o termo construção
para falar do processo que não cessa de se perguntar sobre ele, o mundo, os outros
e, por fim, Deus. O “enigma constrói”, possibilita transformar, portanto, criar e
descobrir. E Deus pode ser colocado nesse sentido humano, criador e de
descoberta. Como nos diz o autor:
“A parte da incerteza que habita entre nós não é um desastre. Essa zona ‘indiscernível’ no âmago de nós mesmos constitui nosso ser da mesma forma que a busca da racionalidade. Aquele que crê, porque pronuncia a palavra Deus, não escapa disso mais do que os outros”.2
1 JÜNGER, E., Traité du Rebelle ou les Recours aux Forêts. Paris, 1986, pp. 141-142. Apud GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 27. 2 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 9.
16
E é essa condição de inquietude que faz do ser humano um ser de
existência, um ser de sentidos, de buscas e anseios por seu reconhecimento
humano, que o diferencia dos outros seres vivos. É nessa perspectiva que o autor
fala da identidade humana, aquela que envolve todas as dimensões do nosso ser,
na relação com as circunstâncias dadas como mediadoras: o conhecimento, a
afetividade, o artístico, as instituições (família, religião), a sociedade, tudo que
envolve a individualidade de cada um. No entendimento do autor, existe o risco de
uma armadilha, a de ancorar-se com excesso na racionalidade e na ação, pois o
que vivemos na relação com o meio que nos forma nos garante o reconhecimento
como pessoa humana. Essa confiança, se exagerada, limita a construção de nossa
identidade humana, “pode nos deter de forma restrita a nós mesmos.”3 Toda a
possibilidade de iniciar o processo de construção de nossa identidade acontece
numa rede de significados, de sinais, que o ser humano recebe no mais íntimo de
seu ser, que o possibilita conhecer-se na sua identidade. O autor se remete à
Tradição como uma herança recebida, que nos conduz e nos coloca em direção à
construção dessa identidade. A Tradição, também, nos dá condição de aceitação,
re-criação e invenção de novos projetos que serão herdados e guardados na
memória da humanidade.
O ser humano é colocado na direção da aprendizagem, ele é conduzido,
educado, iniciado na sua história. É nessa iniciação que o Homem é capaz de
recriar, pois está sendo capaz de receber o futuro, a partir do passado presente na
sua herança. Isso significa que somos porque aprendemos, porque somos seres de
cultura. Fazemos história. “Ensinar é iniciar; e iniciar é recorrer aos sinais e aos
símbolos.”4 Somos nós, homens e mulheres, que portamos sinais e símbolos.
Somos, como diz Gesché, “seres ensinados e ensinantes.”5, portadores de sentidos.
É nesta perspectiva que compreendemos o sentido que a fé pode emitir. Deus,
finalidade de um sentido de vida, necessita de sinais, mediadores, para introduzir
o elemento da fé de forma a ser compreendida pela razão humana. O autor traz o
dado da revelação como elemento construtor de uma identidade: a identidade
cristã. O autor propõe pensar Deus dentro dessa investigação identitária.6
3 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 13. 4 Ibid., p. 26. 5 Ibid., p. 26. 6 Ibid, pp. 15-24.
17
Esse enigma constitutivo do ser humano, que permite construir sua
identidade, traz, então, a possibilidade de pensar Deus como existente na realidade
da trama de significados herdados pelo próprio Homem durante a evolução da
humanidade. Para tal fato é necessário que a racionalidade e a ação não ocupem o
lugar absoluto no processo de construção da identidade do ser humano. As
dimensões essenciais do ser humano que se relacionam com as mediações não
devem reduzir ou ignorar a existência do enigma, que é parte constitutiva do ser
humano. A própria possibilidade de se fazer ser é pelo constante vir-a-ser que o
ser humano tem na dinâmica de sua existência. Esse mistério é um dado da sua
realidade existencial. As dimensões fundamentais, como a razão, a afetividade, a
espiritualidade (fé), a técnica e a ação, devem convergir na contribuição desse
processo do vir-a-ser, que possibilita o crescimento do Homem, oferecendo-lhe
uma maior realização. Na relação com ele mesmo, com o mundo, com o outro e
com Deus, o Homem deve reconhecer o enigma como uma realidade própria à sua
existência. Nenhuma realidade é totalizadora dela mesma. Portanto, é na aceitação
de nossas sombras que temos a oportunidade de construir nossa identidade mais
segura e transparente.
A modernidade tentou absolutizar a dimensão da racionalidade, afirmando
a ciência como salvadora do Homem, o século das luzes como a completa
capacidade de tudo ser iluminado. Não foi o que aconteceu. Hoje já reconhecemos
a difícil tarefa de responder por situações não superadas pela técnica dos homens,
como miséria, violência, sofrimento. A diversidade cultural e religiosa também
sugere questões não tão simples de serem resolvidas. Assim também, o ser
humano não encontra a totalidade de seu conhecimento, nem no maior amor que
possa sentir pelo outro e por ele mesmo. E em Deus? O autor alerta para certo
cuidado em nossa resposta, pois, como diz, “Deus não deve servir para resolver
nossos enigmas”7. Muito interessante recorrer, como fez Gesché, ao relato do
Êxodo, que diz que “Deus de dia habitava numa coluna de nuvens e de noite
numa coluna de fogo para alumiá-los” (Ex 13,21). É nosso próprio mistério,
obscuro, também presente no mistério de Deus. Essa reflexão sobre o verdadeiro
sentido de Deus e de Cristo será mais à frente desenvolvida, pois é o amor gratuito
7 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 19.
18
de Deus que é a base do pensamento do autor para falar de sua compreensão
humano-divina.
O Deus revelado não se submete ao Homem como algo para ser
manipulado. Jesus Cristo mostrou a sua humanidade no enfrentamento de seus
enigmas, como diz Gesché, “Ele desceu a um inferno, ao seu inferno de morte, e
é somente porque aí entrou, porque não recusou o enigma, que Ele ressuscitou e
recebeu resposta.”9. Podemos, então, falar desse sentido que o ser humano dá à
sua vida quando reconhece nos enigmas a potencialidade de seu crescimento
humano. O ser humano, na sua relação com o outro e na descoberta de sua
responsabilidade é capaz de descobrir Deus. E, se fazendo um homem de fé,
descobrirá em Deus a luz que ilumina sua obscuridade. Ou seja, ao se deparar com
as grandes questões humanas, sentirá a constante necessidade de alargar seus
horizontes na busca de respostas, não definitivas, mas seguras de sentidos.
Adolphe Gesché falará de destinação e de finalidade, que é o que
fundamenta a estrutura existencial do ser humano, para onde a sua realização
encontrará resposta. Também é um tema que terá seu lugar no transcorrer desse
trabalho. A busca por respostas não deve representar um incessante desejo de
questionamentos. Isso acarretaria uma dificuldade para o ser humano, a de não se
satisfazer com nenhuma resposta. Não é esse o caminho mais sadio. Respostas são
encontradas e devem motivar outros questionamentos, relembrando que o ser
humano traz no seu âmago a herança tecida na história da humanidade, por isso,
sempre motivado por respostas. O ser humano, portanto, não é, uma tabula rasa,
como antes do desenvolvimento das ciências humanas se achava. Nisso
agradecemos a contribuição dada por toda ciência no conhecimento da estrutura
do ser humano. É o uso da razão humana que nos leva, além do diálogo com as
ciências, a poder nos expressar através de símbolos, palavras que ajudam a falar
do ser humano como ser integrado em todas as suas dimensões. Gesché se
utilizará dessa real oferta da racionalidade para falar da teologia como expressão
da fé, da relação fecunda entre Deus e o ser humano.
A teologia tem como objetivo Deus, mas, também, necessariamente, o
Homem, para o qual a palavra de Deus é dirigida. Nós podemos estudar a
antropologia separada da teologia, mas se desejamos conhecer a revelação de
9 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 20.
19
Deus devemos assumir o estudo antropológico como fundamento de sua revelação.
Mas, como diz o autor, “a teologia não pode transformar-se em antropologia”10,
perderia o lugar que lhe é próprio, reconhecido, de onde só ela pode falar sobre
Deus. Porém, a teologia necessita do lugar da antropologia.
Primeiro, porque Deus se revelou na história do Homem. É na dinâmica da
história que o Homem encontra Deus para falar d’Ele. O cristianismo tem em
Jesus Cristo a confirmação desse fato, no evento da Encarnação, em que o ser
humano torna-se a mediação mais importante para conhecer a Deus. A teologia
expressa esse “discurso sobre Deus, no qual o ser humano é constitutivo e
inseparavelmente compreendido numa relação”11. Na pessoa de Jesus, a relação
entre Deus e o Homem tornou-se inseparável. Podemos nos referendar na própria
fala de Jesus: “quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Relação confirmada e
legitimada no mais íntimo do ser humano. Expressar o nome de Deus passou a ter
um sentido, que é recolhido e oferecido pelo Homem. Para Gesché, conhecer
quem fala, como fala e de onde fala tornou-se essencial para o discurso teológico.
Por isso podemos compreender a necessidade da antropologia para o discurso da
teologia.
O segundo fator é que a teologia, ao se expressar pela fé cristã, traz, no seu
bojo, um discurso de que Deus pede algo ao ser humano. Esse é um dado da fé.
Ou seja, esse Homem deve escutar a Deus e responder, na sua vida, o que lhe é
solicitado em oração, por exemplo. Entendemos, então, que Deus, na verdade, ao
falar ao ser humano, emite uma visão de sua parte, pois o Homem, para respondê-
lo, buscará se definir, conformar-se à Imagem e Semelhança de Deus. É na
relação dialogada entre o pedido de Deus e a resposta do Homem que se
estabelece a legitimação da teologia antropológica.
A teologia vem requerer o seu lugar de poder falar do ser humano a partir
de Deus, “revelar o ser humano como Deus o concebe” 12. Como nos diz o autor,
a partir do olhar de Deus poderemos conhecer quem é o ser humano. A partir da fé
falamos e definimos esse Homem que crê em Deus, disso sabemos. Mas o que se
quer é poder falar do Homem a partir da concepção de Deus. Afinal, a fé cristã
possibilita essa afirmação. Deus, ao criar, na liberdade, dá condições ao ser
10 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 29. 11 Ibid., p. 31. 12 Id., O Cristo, p. 35.
20
humano para acolher ao seu projeto, através da sua liberdade criada. Deus ao se
revelar, estabelece um diálogo profundo e único com o ser humano. Revela-se um
Deus humano, de relações, portanto, capaz de comunicar o que pensa do ser
humano, numa absoluta condição de alteridade com esse Homem. Um elo de total
relação a ponto de o Homem recorrer, apelando por sua presença, em todas as
situações vividas. “É como aquele tribunal de apelação, que todo ser humano –
diante de qualquer um que o maltrate – pode invocar para reivindicar que é
inviolável.”13
Em Jesus Cristo esta relação se configura definitivamente, pois nos
convida a reconhecê-Lo naquele com quem nos relacionamos. O autor nos lembra
que no Evangelho de Mateus encontramos dito: “todas as vezes que fizestes isto a
um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.” (Mt
25,40). Dessa forma, temos a plena compreensão de que é no outro que reconheço
Deus. Mais. Que eu sou o que sou a partir desse Deus que se revela. Que quando
Deus fala ao ser humano já fala concebendo-o como ser, permitindo que o
Homem se reconheça humanamente em Deus, mas separado de Deus. A partir de
Deus me reconheço ser humano. A mesma relação acontece com o outro com o
qual me relaciono. Reconheço minha identidade a partir do outro, pois sei que não
sou o outro. E quando proclamamos, na fé cristã, Jesus Cristo como Filho de Deus
afirmamos que todo ser humano também é filho de Deus. Ao afirmar, atesto a
existência do outro e sou, pelo outro, atestado. Dessa forma, podemos
compreender a afirmação do autor, quando expressa a sacralidade do Homem a
partir do anúncio de Jesus Cristo: “anunciar esse elo entre Deus e o ser humano é
dar a este último o fundamento mais absoluto e mais derradeiro para respeitar e
fazer respeitar sua dignidade absoluta”14.
Recordamos, aqui, que é na pessoa do Filho que conhecemos o Pai.
Portanto, na relação com Jesus, Deus concede ao ser humano se conhecer e
conhecê-Lo. Na humanidade do Filho nos tornamos filhos de Deus e recebemos
por uma concreta mediação a possibilidade de reconhecer em nossas relações uma
dinâmica humano-divina. O cristianismo tem em seu fundamento essa existência
concreta, a Encarnação do Filho de Deus. Gesché falará também de uma
13 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 35. 14 Ibid., p..36.
21
antropologia cristológica ao abordar em Cristo uma “profecia do ser humano”15.
Deixaremos para o último capítulo essa abordagem.
Podemos, com legitimidade, a partir da Sagrada Escritura, que atesta a
revelação de Deus na dinâmica da história do ser humano, conhecer quem é esse
homem de fé. É aquele que se conforma à sua relação com Deus. O ser humano
torna-se conhecido na sua relação com Deus. Essa visão relacional que permite
conhecer o Homem a partir Deus traz uma grande exigência na concepção de ser
humano. É na fecunda relação com Deus que a humanidade do ser humano se
desenvolve. Isso significa afirmar que quanto mais perto de Deus o Homem se
coloca, mais humano ele se torna. À medida que o trabalho avançar teremos mais
clareza dessa afirmação, pois o desenvolvimento dos temas da alteridade e da
liberdade permitirá a confirmação dessa relação humana entre Deus e o ser
humano. E com menos possibilidade de manipulação, tanto do outro como do
próprio Deus, que sempre se encontra disponível às necessidades do Homem. É
uma relação de profunda dignidade humana, que se constrói através de relações,
pois nenhum ser humano se desenvolve sozinho, fora de qualquer relação pessoal.
Essa reflexão traz outra questão, a liberdade do ser humano, que deverá ser
desenvolvida no capítulo seguinte. Na afirmação que Gesché faz sobre liberdade,
“liberdade pessoal e relação com outro, longe de fazer guerra entre si, caminham
juntas.”16, já sinaliza a existência da liberdade diante daquele que crê em mim. Ou
seja, quanto mais acredito no outro e o outro em mim, mais vivo plenamente a
minha liberdade, e isso vale em qualquer relação do Homem, inclusive na sua
relação com Deus.
Perceber a concepção de ser humano em Gesché nos exige, ainda, abordar
a Encarnação como paradigma de toda compreensão de Deus em relação ao ser
humano. O autor fala da irracionalidade do amor, que foge ao entendimento da
razão, para expressar que Deus assumiu para si a loucura desse amor. A
Encarnação significa que Deus, pela sua absoluta fonte, que é o amor, nos revela
quem é esse ser humano.
Está claro que a tentativa do autor em falar do ser humano concentra-se no
Homem de fé. É a partir do crente que a teologia é convocada a se posicionar,
15 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 35. 16 Ibid., p. 35.
22
necessitando esclarecer qual é a sua antropologia. Torna-se, assim, diferente das
outras ciências antropológicas.
A teologia deve reconhecer nas ciências os discursos sobre o ser humano.
Reconhecer e aceitá-los como colaboradores no processo de entendimento do ser
humano crente, desde que nenhuma queira assumir para si um discurso único e
absoluto. Podem contribuir para melhor compreensão da fé, pois identificam e
revelam elementos que se articulam no contexto humano da fé, ajudando a
perceber o que é próprio e o que pode mascarar uma autêntica vivência da fé cristã.
Por outro lado, a teologia reconhece que nenhuma ciência “esgota o fenômeno da
fé”17. A linguagem da fé, que envolve a do amor, abarca a racionalidade, mas não
se reduz à lógica da razão de forma absoluta. O que é importante, na visão do
autor, é perceber que o logos da ciência não esgota sua universalidade, ou seja,
tem sua expressão em diferentes linguagens. Desse modo, afirma o autor, a fé tem
sua própria linguagem. Nenhum discurso pode abrir mão do seu logos porque tem
relação com um determinado tipo de racionalidade. Assim também com a fé, que
precisa de um discurso próprio que expresse a mediação, numa relação com a
lógica da racionalidade. Encontramos, então, na teologia a razão da antropologia.
Caberá à teologia ocupar-se com o discurso do Homem de fé.
“Cabe à teologia resgatar esse discurso que as outras ciências do ser humano não tornam compreensível. É aqui, portanto, que se encontrará o lugar próprio da teologia como discurso sobre o ser humano e que será justificada a sua tarefa no concerto antropológico.”18
O que interessa diretamente ao autor é mostrar que a teologia pode fazer a
mediação para falar do “Homem que fala de Deus”, e que, para isso, usa a
ferramenta da antropologia, como apoio na racionalidade da expressão da fé, que
emite uma mensagem antropológica dessa fé. Ela tem algo a contribuir como
ciência e, como tal, quer ocupar o seu lugar nessa realidade atual. Há, portanto,
uma necessidade urgente de expressão para que o Homem de fé possa ser ouvido
e legitimado no diálogo com as outras ciências.
O autor aborda três importantes aspectos que configuram o que a fé tem a
dizer e colaborar como discurso a ser legitimado no universo das ciências.
Primeiro, a existência do sagrado, do intocável, porque Deus assim o tornou. O
Homem de fé proclama e quer ser ouvido como um ser que é habitação de Deus, o
17 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 38. 18 Ibid., p. 40.
23
in-finito está contido no finito. Portanto, todo ser humano, em qualquer situação
que se apresente, “tem o direito imprescritível e inalienável de se fazer
respeitar.”19 O ser humano é sagrado diante de Deus porque recebeu, na sua
realidade histórica, a manifestação do próprio Deus, na condição de Homem.
Segundo, o fato de considerar que nada é irrevogável, fatal. A fé, ao tratar da
salvação como idéia central de sua afirmação, traz, em si, a própria afirmação de
que tudo tem salvação. Isso nos remete a um importante fato, a transgressão da
possível fatalidade histórica. Falamos da esperança cristã, que tanto é proclamada
pelo Homem de fé, mas muitas vezes pouco compreendida no seu sentido
histórico e escatológico. Trata-se de reconhecer, pela fé, que somos mais do que
imaginamos na nossa mediocridade. Como diz o Filho, na lembrança do autor,
“eu não vim julgar, mas salvar o mundo” (Jo, 12, 47). E, por fim, o terceiro
aspecto, a realidade, que dá sentido ao argumento anterior e que não se esgota
nela mesma. Ou seja, se a fé proclama a salvação traz o projeto de uma nova
realidade que vai além da história presente, sinalizando a possibilidade de um vir-
a-ser. A realidade é chamada a se mostrar em outra dimensão. “Aqui, é o
horizonte escatológico da fé que garante essa libertação da realidade: esta não se
limita ao que vemos e medimos, ela é chamada a algo mais, já misteriosamente
presente.”20
Acreditamos que dentro dessa abordagem o autor sinalizou a teologia
como fundamental mediação para expressão da fé, que sem essa sistematização
correria o risco de alienações, ilusões, permanecendo vulnerável às acusações das
outras mediações analíticas. Dessa forma, existe a real possibilidade do encontro
com as outras ciências, assim como, de ocupar um lugar legítimo na construção da
tradição dos conhecimentos herdados pela humanidade.
Buscando ser fiel à compreensão do autor, partiremos da abordagem
teológica de alguns conceitos que sustentam as diferentes concepções, tanto do
Homem comum, limitado à sua realidade histórica, como do Homem de fé, que vê
sua história como sinal realizável da salvação de Deus.
No início desse trabalho entramos em contato com a teologia, que nos fala
sobre uma nova lógica interna à criação, que Gesché expressa como “criado
criador”. O homem é descrito por ele como um ser desejoso por conhecer, um ser
19 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 42. 20 Ibid., p. 42.
24
nutrido pelo desconhecido e por fazê-lo conhecido. Um processo de descobertas
que subsiste à condição da liberdade humana, do desejo, de uma ação realizada
pelo Homem e, por isso, enredada por muitas circunstâncias de ordem pessoal,
social e cultural. Ação que possibilita ao Homem a construção de sua identidade.
Em especial, o ser cristão que, na busca de suas indagações, responde a Deus,
concretizando uma identidade cristã, mas também ocupando um espaço no campo
do fazer teológico. Num esforço de dar continuidade à temática anterior sobre a
legitimação do antropológico como centralidade teológica, iniciaremos esse
próximo trajeto expondo o fundamento da concepção de criação de Gesché.
1.3
Pressupostos fundamentais na concepção do Ser Humano
O maior desafio empreendido na compreensão humana do autor encontra-
se na explicitação das representações dos termos que são próprios do campo
teológico, sobre o qual todo o seu trabalho é desenvolvido. Um esforço que
necessita de novos sentidos para sua compreensão. O empenho do autor é ocupar
um lugar ao sol, onde as ciências, iluminadas pela razão, deverão incluir e
reconhecer a teologia com seu logos mediador da expressão do Homem de fé.
Mais, como possibilidade de pertença de um novo modo de viver em comunidade.
Um novo sujeito de fé, construtor de uma nova subjetividade e de uma nova
expressão eclesial da fé. Na verdade, uma nova época de relações sociais a ser
enfrentada e conhecida.
O termo criação, trabalhado pelo autor, funda um sentido próprio de uma
dada realidade que exige apresentação. Gesché vai tratá-la em comparação com
uma concepção cosmológica, para que se compreenda um conceito que implica
uma epistemologia própria para esta realidade trabalhada, o conceito da liberdade,
que remete ao conceito da verdade. Assim como a liberdade e a verdade se
apresentam a partir da criação, temos a presença de outras questões importantes na
concepção do ser cristão que desejamos elucidar em Gesché, que serão mais tarde
apresentadas, tais como: alteridade, subjetividade e destinação, entre outros. São
25
termos que surgem como desdobramentos do sentido originário da liberdade
humana.
Para fazer compreender a dinâmica da “criação criativa”, Gesché vai
utilizá-la em relação à tradição que trata da idéia primordial “do lugar, do espaço,
do receptáculo”, de onde as coisas terão sua origem, encontrando-se à espera do
que virá-a-ser. 21 Portanto, dentro dessa concepção, a origem das coisas acontece a
partir de três termos, que são essenciais para Gesché na formulação da sua
abordagem antropológica da criação: a natureza, a arte e o acaso. A tradição
privilegia a natureza e o acaso como produtoras das mais “belas realidades”,
enquanto as produzidas pela arte são consideradas menores, sem grandeza na
realidade das outras criadas. A natureza e o acaso “arrancam da indiferença
agitada do caos, segundo um processo de necessidade imanente.”22 Ou seja,
ambas saem a partir da mesma realidade, segundo as necessidades dadas por essa
realidade ou fruto do acaso da própria realidade. O terceiro termo da razão do
surgimento das coisas, vem pela arte, a techne. É a arte que, de forma secundária,
é produzida posteriormente, pois nasce a partir dos outros dois termos já
existentes. Isso significa que a arte produz algo que já se encontra dado na
realidade, portanto, menos verdadeira, mais artificial. Gesché utiliza o termo de
Aristóteles para expressar o sentido da arte, “imitação” da natureza, “artefato”.
Essa compreensão esquemática resulta, como diz Gesché, numa leitura
“cosmo-lógica da criação”, onde é a natureza que produz a realidade. Portanto,
uma realidade sem intervenção criativa. O autor quer, justamente, trazer à reflexão
uma outra concepção sobre a criação, a da tradição judaico-cristã, uma perspectiva
teológica da criação que se contrapõe à leitura a-histórica da criação grega. É a
partir dessa abordagem teológica que Gesché nos oferece pressupostos para a
compreensão do ser humano que nos confirmam a existência de Deus, ao afirmar
sua fé diante de sua realidade histórica.
A tradição judaico-cristã afirma que no “principio Deus criou o céu e a
terra” (Gn 1,1). O autor vai desdobrar o sentido teológico dessa afirmação para a
história. Ao afirmar no princípio a nomeação de alguém que dá a existir, subjaz a
idéia de uma liberdade. Se há liberdade, existe sujeito, portanto intenção. Eis o
primeiro e fundamental pressuposto antropológico da fé. A existência de uma
21 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 54. 22 Ibid., p. 55.
26
ação que atua na realidade. Criando-a, se contrapõe à concepção anterior, de que a
realidade nasce da necessidade e do acaso. Sendo algo que possa ser pensado
como ação de uma pessoa, essa ação pode representar um plano. Podemos
sinalizar uma articulação dessa reflexão do autor sobre Deus-sujeito com o ser
humano que, na alteridade, é capaz de conhecer a si e ao outro, desencadeando um
processo de crescimento e de identidade cristã. À medida que avançarmos,
retornaremos a essa reflexão, por agora continuaremos na trilha da tradição
judaico-cristã em que o autor caminha. 23
A realidade pode, então, ser afirmada como resultado de uma liberdade.
Mais uma vez, nos remete à idéia de um movimento, ou seja, de uma ação
provocativa, o que nos faz pensar numa realidade intrinsecamente dinâmica. E
nessa realidade temos a presença centralizada da pessoa, do sujeito, que, por ser
um ser inteligente, age fazendo, criando e re-criando. Um ser de cultura, inventor
criativo. Dessa forma, então, a arte deve ser concebida como anterior à natureza,
já que no esquema grego a natureza se colocava privilegiadamente anterior à arte,
desprezando o brilho inventivo. Assim, “a partir daí, é a techne (a criação) que
define aquilo que será a natureza”. 24 Gesché, ao destacar a liberdade como
fundamento de uma nova lógica – a perspectiva teológica – destaca, também, a
questão da verdade como pressuposto para pensar a temática do ser humano de fé.
Uma contraposição à concepção grega, em que a arte era considerada como uma
não verdade, pois era concebida como momento segundo, posterior à realidade
dada. Mas, se é o ato pessoal da liberdade que cria, ou seja, é a arte que se
encontra no princípio, a natureza terá o seu valor submetido ao ato criativo. Então,
a verdade torna-se um outro pressuposto a ser trabalhado na perspectiva teológica
da antropologia.25
Assim, Gesché afirma algo que se torna a base do seu pensamento
antropológico: “a prioridade da criação anuncia a prioridade da liberdade sobre
a natureza.”26. E também da verdade: dois conceitos recriados a partir da tradição
judaico-cristã. Este ponto merece uma maior apreciação, pois se refere a um novo
paradigma, onde a liberdade é o cerne da existência humana. Arriscamos afirmar,
a partir do autor, que esse paradigma torna-se o paradigma que pleiteamos para
23 GESCHÉ, A., O Ser Humano, pp. 56-61. 24 Ibid., p. 57. 25 Ibid., pp. 58-70. 26 Ibid., p. 59.
27
representar essa nova configuração do homem na sociedade pós-moderna. O ser
humano, aqui, é convidado a se colocar por inteiro, a compreender a sua vida
existencial como liberdade, ou seja, a liberdade sendo inerente ao existir.
Encontra-se inscrita no próprio ser, fez-se no ato criativo, na arte da criação
pessoal de Deus, portanto, intrínseca ao Homem. A concepção grega atribui uma
liberdade extrínseca à condição humana, pois o “ser humano não é estabelecido
na liberdade”27. Como diz o autor, os gregos construíram uma liberdade social e
política, mas não antropológica. A tradição judaico-cristã inaugurou na história do
homem a intervenção de Deus, trouxe a possibilidade do homem “desfatalizar” a
si próprio e a história. A compreensão de Deus, como princípio e criador do
universo, permitiu a construção do novo paradigma a partir da concepção de uma
intervenção e decisão como elementos essenciais na origem do processo da
criação. O ato de intervir coloca a realidade no âmbito da liberdade, que exige a
decisão do ato criativo. A intervenção comporta a idéia do fazer existir, da ação
que permite a realização. É fantástica a lógica dialética interna à narrativa da
tradição judaico-cristã. Outros elementos podem ser pensados, a partir dessa
lógica, como a alteridade e a destinação, compreendendo que estão em relação
direta com o uso da liberdade.
Ao abordar a alteridade como resultado da relação com Deus, Gesché
amplia sua concepção de ser humano, pois evidencia a transcendência como algo
que nos retira do reducionismo da imanência. Conceber a revelação de Deus como
princípio de um ato criativo é reconhecer não só a liberdade como premissa desse
ato, mas, inclusive, a alteridade como inerente ao próprio ato. Ou seja, a ação de
Deus como sujeito do ato criativo traduz na realidade a presença do transcendente,
pois o faz presente na relação com a criatura. Por isso, podemos falar que essa
perspectiva cria um processo de abertura, de superação do círculo vicioso
concebido na tautologia presente no pensamento grego. Essa possibilidade de falar
do transcendente presente na imanência torna-se, para Gesché, uma referência
para compreender a liberdade no âmago do ser humano, ou seja, uma liberdade
que ultrapassa o simples ato de escolher. Torna-se, nas palavras do autor, um
“direito ontológico.” 28 Representa para o ser humano a responsabilidade de
assumir o seu destino, tomar para si a responsabilidade histórica de sua vida, de
27 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 59. 28 Ibid., p. 61.
28
suas opções fundamentais, que ultrapassam a própria história. Nessa perspectiva, a
fé é colocada como resultado da resposta que o ser humano dá a Deus, tornando-a
uma opção fundamental de vida, um ato de liberdade-responsabilidade. O
próximo tema abordará a fé como resposta livre e de pertença a essa adesão do
Homem à revelação de Deus. Portanto, teremos oportunidade de ampliar essa
temática, tão importante como pressuposto na concepção de ser humano para
Gesché.
O que nos interessa muito, nesse momento, é compreender a liberdade na
essência ontológica, pois, assim, poderemos reconhecer na alteridade uma
exigência que é própria da liberdade. Por isso, Gesché insiste na presença de um
terceiro para a plena realização do uso da liberdade.
“A afirmação de um Terceiro, de uma Transcendência, de uma alteridade, longe de aviltar a liberdade, a anuncia significando que diante dela o ser humano tem direito e poder de decisão e de liberdade pelo fato de ser capaz de prestar conta, o que não se pode fazer no círculo fechado da imanência.” 29
É na relação com o outro, quando se vê diante do outro, que o ser humano
é capaz de assumir seus atos, tornando-o responsável diante desse outro diferente
que o interpela a sair de si e a superar o círculo da repetição presente na realidade
não criativa. É dentro dessa dinâmica da liberdade que o ser humano é
compreendido como um ser criativo, criado-criador, capaz de acolher a realidade,
transformado-a criativamente. Somente na permissão dessa alteridade, no interior
do processo criativo, é que a liberdade é construída. Poderíamos, então, afirmar, a
partir do pensamento de Gesché, que o ser humano, quando reduzido a si mesmo,
à sua imanência, está anulando sua condição de Homem livre. Parece paradoxal,
diante de um mundo regido pela racionalidade científica. Porém, na perspectiva
do autor, a liberdade não representa meramente atos de escolhas, mas uma
autorização que se constrói diante de uma relação da alteridade de um terceiro, o
Transcendente. Não seria, portanto, contraditório afirmar que a imanência sem a
transcendência enfraquece e anula o ser humano na sua condição de criador. Pelo
contrário, a transcendência fortalece e liberta o Homem de suas fraquezas e
pecados. Gesché associa essa reflexão à narrativa bíblica sobre a criação: “não é
bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18). Desta forma, defere toda sua reflexão
antropológica à criação de Deus, consolidando sua proposta de compreender o ser
29 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 61.
29
humano a partir da concepção de Deus. O Homem, na vertente judaico-cristã, é
um Homem criado para a liberdade, uma liberdade recebida como dom, não
podendo ser abordada como usurpação ou alienação.30 Para Gesché, a liberdade
pertence à natureza do ser humano, entendendo que se encontra inscrita desde sua
iniciação, ou seja, de sua criação. Por isso, podemos compreendê-la como dom,
chamado a desenvolver como continuidade de sua existência criativa.
Gesché inclui na representação do paradigma judaico-cristão a dimensão
da lógica da criação, que vai nos oferecer uma melhor compreensão da liberdade
como algo inerente à condição humana. É intenção do autor revelar, de forma
mais completa, a antropologia que está inserida na leitura judaico-cristão da
narrativa bíblica. A lógica da criação pertence à lógica da ação de Deus, portanto,
à teo-lógica, já apresentada como teo-lógica da criação, em contraposição à lógica
grega. Gesché, para consolidar sua representação da criação, estruturada no
paradigma judaico-cristão, apresentará, também, depois dessa lógica, a da
antropo-lógica. Dessa forma, configura sua visão de ser humano, que procura
demonstrar como um ser que, em constante dinâmica criativa, gera possibilidades
de defender a causa de Deus na luta pela sua própria causa. Ou seja, o direito à sua
liberdade inclui o direito à liberdade de Deus, pois não há distinção entre elas na
realidade existencial do ser humano.
Merece, ainda, uma reflexão mais profunda sobre a articulação que o autor
faz da lógica da criação, utilizando a ação de Deus, a teologia, a criação em si, e a
conseqüência, na antropologia, dessa perspectiva da criação judaico-cristã. Pois é
dessa articulação que sai o que Gesché diz ser preciso “insistir nesse
enraizamento da liberdade no alicerce da criação desde antes da emergência do
ser humano.” 31 . Retomando o que já foi dito, o processo da criação fez da
realidade uma existência criativa, que traz no seu bojo a alteridade como condição
do ato criativo. Foi na relação estabelecida por Deus na criação que o ser humano
pôde reconhecer seu estatuto de Homem livre diante da sua realidade existencial.
O verbo bará, que significa criar, presente na narrativa bíblica da criação, é
trabalhado por Gesché com duas noções muito interessantes, pois complementam
a visão antropológica da revelação de Deus ao Homem: as noções de fazer e
separar. São articuladas pelo autor de forma dinâmica, não podendo ser
30 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 63. 31 Ibid., p. 69.
30
dissociadas uma da outra. O autor vai especular sobre essa articulação provocando
uma releitura antropológica sobre a liberdade, a alteridade, a verdade, enfim
aqueles pressupostos possíveis de fundamentar sua compreensão do ser humano.
A primeira, concebendo a idéia de que Deus, ao criar, fez, ou seja, separou de sua
própria realidade: “é a apresentação de uma realidade querida inteiramente outra,
diferente, autônoma” 32. A segunda especulação é: se a criação é feita de forma a
ser separada, não existe o precedente que exija repetição: “Nenhum peso de
anterioridade virá onerar a ação do ser humano”33. Terceira: separando-se da
criação, promove a diferenciação. Percebemos, então, que o fazer e separar estão
intimamente ligados e presentes no ato da criação, tornando-os inseparáveis.
Devem ser compreendidos, dessa forma, na dinâmica da alteridade. Podemos,
agora, nos apropriar da afirmação de Gesché em relação à liberdade, representar o
alicerce da criação e conhecer com propriedade o sentido antropológico dado à
liberdade. A diferença, presente na alteridade, foi dada na liberdade do ato da
criação, o que significa compreender que toda criação é subsidiada pela liberdade
e, necessariamente, pela alteridade, o que nos sugere imaginar toda realidade em
movimento, em criação e renovação. “Assim, colocar a alteridade, a diferença
dentro da própria criação é dizer que escolhas são possíveis. É dizer que nem
tudo já está pronto.” 34
A título de maior exemplificação, recorremos à citação que Gesché faz de
Rm 8,19: “A criação espera com impaciência a revelação dos filhos de Deus.” O
ser humano precisa redescobrir-se na sua humanidade, na potencialidade de seu
ser, que se encontra inserido nessa dinâmica divina da criação. Deus convoca o
Homem a agir, livremente, para realizar sua confirmação humana diante do
criador. Deus espera a intervenção do Homem na sua realidade divina. O autor
quer nos conduzir a essa revelação cristã, do direito inato, desde sempre dado ao
Homem, de falar e defender a existência de Deus a partir da sua própria criação.
Essa realidade desvelada possibilitaria ao Homem compreender a realidade na sua
condição antropológica, ou seja, reconhecer na criação a fonte da liberdade, de
onde ela nasce e se faz, como diz Gesché, o “alicerce” da própria criação. Pois a
realidade seria, então, percebida como inseparável do Homem e, necessariamente,
32 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 65. 33 Ibid., p. 65. 34 Ibid., p. 65.
31
dependente do ser humano. Essa realidade, que é dada ao Homem e por ele é
criada e recriada, deve ser concebida “como um lugar de liberdade, como um
lugar de criação.”35
Aqui poderíamos fortalecer a importância do diálogo da teologia com a
ciência, como nos sugere o autor. O esforço é defender a presença da teologia
como discurso que tem seu lugar na universalidade dos diferentes logos presentes
na realidade. É reconhecer na teologia que a antropologia, já uma ciência presente,
atuante na criação, torna-se porta aberta para esse diálogo, que traz na sua
especificidade termos próprios, como criação e revelação. Termos que exigem
presença do ser humano, pois não há como revelar se não houver destinatário.
Olhando ao redor da realidade, arriscamos afirmar que o tempo atual favorece
esse diálogo, pois tem sua centralidade no ser humano, que não cessa suas
indagações e desejos por conhecer, integrando, sempre, as novas realidades
surgidas na criação. Voltando ao pensamento de Gesché, lembramos que sinaliza,
após a lógica da criação, a antropo-lógica, que possibilita enxergar no ser humano
o cerne da criação. Aqui nos dá a perspectiva mais completa sobre a sua
compreensão de ser humano. Vimos na compreensão da lógica da criação a
possibilidade de aprofundar a liberdade e a alteridade como alicerces da criação,
portanto inerentes ao Homem. Agora, na antropo-lógica, temos a leitura da
integração do Homem com o cosmo, a criação. Concebendo-o com estatuto de
Homem livre, só podemos compreender esse ser humano, integrado e criador, em
relação às diferentes direções: “ao cosmo, a si mesmo e a Deus.”36
Essa última abordagem, que totaliza a relação do Homem com a criação,
ressaltando a antropologia, nos oferece uma leitura abrangente e mais completa da
visão de ser humano que o autor nos oferece como possibilidade de repensar a
teologia no diálogo com o mundo atual. Tem como ponto de partida o cosmo
nessa relação estabelecida livremente por Deus. Aprende, na relação, a ser livre e,
sendo livre, percebe que pode ser ao construir seu universo, ou seja, sua realidade
histórica. E então Gesche vai mais longe e articula seu pensamento com a idéia
fontal da narrativa bíblica, sobre a tradução do verbo bará: “O princípio da
diferenciação é um princípio da liberdade”37. Foi na perspectiva judaico-cristã
35 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 69. 36 Ibid., p. 71. 37 Ibid., p. 82.
32
que o ser humano se viu diante do outro, do Criador, que o fez separado, por isso,
na alteridade, também na liberdade criativa, potencialmente capaz de re-unir os
elementos criados na realidade que Deus fez existir. Assim podemos resumir a
compreensão desses pressupostos que nascem na íntima existência de Deus com o
ser humano.
“Ele é criado criador, pois o próprio princípio que preside a sua instauração no ser o quer assim e o coloca aí como em sua própria vocação e definição. Ele é liberdade criadora e inventiva por direito de nascimento e de essência. Por constituição. Por vontade – e é o sentido da palavra Deus aqui pronunciada –, que assim institui e o coloca no mundo.” 38
Acreditamos que a perspectiva trabalhada por Gesché nos possibilitou
levantar alguns pressupostos fundamentais para o desenvolvimento do trabalho.
Até aqui nos limitamos a esse propósito, de elencá-los para desenvolvê-los no
capítulo seguinte, reconhecendo que ainda terão cada um, assim como outros, seu
espaço próprio na estrutura do texto sobre o ser humano. Sempre na perspectiva
de Adolphe Gesché.
Agora, temos como propósito, após destacar a centralidade antropológica
como pressuposto fundamental na compreensão da fé teologal, desenvolver essa
fé como resultado da realidade apresentada na perspectiva da tradição judaico-
cristã. É o que faremos.
1.4
A fé como resultado de uma realidade.
Reconhecemos nos termos criação e revelação a liberdade como ato
primeiro da ação criadora de Deus. A tradição judaico-cristã legitima a presença
da antropologia como fundamento do ato da criação divina, pois compreende que
Deus age como sujeito na criação, ou seja, gerando a existência da liberdade,
elemento essencial em qualquer ação realizável. Deus sustentou sua liberdade na
criação, em especial na criação do Homem, concedendo-lhe a sua própria
liberdade. Também nos concedeu a necessidade da alteridade no exercício da
liberdade. A liberdade e a alteridade são pressupostos fundantes da narrativa
38 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 88.
33
judaico-cristã da criação. Justificam a condição antropológica da tradição judaico-
cristã.
A criação criativa, já desenvolvida por Gesché como movimento
dinâmico da criação do mundo na tradição judaico-cristã, é destinada ao ser
humano como plano da realização salvífica de Deus para o mundo criado. Assim,
podemos entender a liberdade como dom, possibilidade de aceitação ou rejeição
de Deus por parte do Homem, pois ele, ao assumir a criatividade da criação,
assumiu a dinamicidade da sua história na transformação da realidade vivida.
Nessa perspectiva, Gesché fala da realidade criada e transformada, uma realidade
que o cristianismo tornou possível na defesa de Deus: a transcendência presente
na imanência desfatalizou o Homem em sua história pessoal e cultural. A
realidade foi criada na ação primeira de Deus, quando criou o céu e a terra, e
recriada na realização histórica de sua presença humana, no evento da Encarnação.
A revelação cristã desfatalizou a nossa história e criou condições para a teologia
dialogar com os diferentes logos legitimados pela ciência da razão, assim como
possibilitou ao Homem construir uma identidade cristã, fundamental para a
consolidação do diálogo com as ciências. Neste sentido, podemos entender a
dimensão da fé como realidade concreta na construção desse diálogo entre as
ciências e a própria identidade cristã.
“O ser humano traz em si um mapa do céu, cujas jeiras o Logos-Verbo de Deus mediu: in principio, ‘como agrimensor’. Deus abriu e cobriu esse mapa. E o ser humano aí se reconhece, porque ao propor nele as rotas, seu Deus, ele mesmo, para o provar, as percorreu.”39
A citação nos introduz nessa nova realidade de íntima relação entre o ser
humano e Deus, estabelecida no momento de seu nascimento, criação única de
Deus para cada ser humano. Uma relação de alteridade que lhe foi dada no ato da
criação. Neste ato já se encontra toda possibilidade do Homem reconhecer as rotas
de sua direção. Ao se interrogar sobre sua própria vida, buscando confirmar sua
existência e seu reconhecimento no mundo, o ser humano possibilitou a revelação
da existência de Deus. Na verdade, a realidade passa a ser uma busca pela
resposta de um sentido que o ser humano procura dar à sua vida. Essa dimensão se
torna cada vez mais perceptível ao Homem quando ele permite vivenciar, com
profundidade, sua relação com o outro. Mas não basta. O outro deve despertar a
39 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 110.
34
necessidade de um Terceiro, que lhe dê a razão última do sentido de sua vida.
Sabemos que ninguém, por mais que ame o outro, não esgota sua razão de vida
nesse outro. O ser humano, então, ao se permitir viver intensamente a relação com
o outro, estará construindo sua liberdade existencial e, dessa forma, criando
condições de se colocar na direção do Transcendente, o Terceiro da relação entre
os Homens. A alteridade torna-se, portanto, elemento constitutivo da existência
do Homem. 40
Toda alteridade corre o risco de se perder na redução ao outro, ou seja,
quando o outro é visto como espelho do próprio sujeito, ou quando o outro não
tem a preocupação em se abrir, fazendo com que a relação seja limitada e fechada
nela mesma. Neste caso, o ser humano perde a possibilidade de acesso ao Terceiro,
que lhe cria as condições para o crescimento humano. Mas durante sua incessante
busca em compreender-se e na formação de sua identidade, o Homem foi além de
sua própria imagem: buscou, de forma mais completa, compreender-se em relação
ao mais alto de si mesmo. Gesché faz, a partir dessa reflexão, a construção de sua
abordagem sobre a identidade do ser humano. É a busca incessante do ser humano
em se reconhecer que permitiu que fosse invertida a apologética, inversão esta
exigida pela modernidade, a de provar a existência de Deus. Agora, não seria mais
preciso reunir provas para Deus, pois o Homem, na busca de compreender seu
enigma, de entender-se diante dos desafios, compreendeu que sua identidade
necessitaria de confirmações, e, por que não, de falar em provas? Para a
construção da identidade precisaria confiar em si e no outro. Uma confiança que
nasce da relação com o próximo, que faz brotar a fé, “a prova de nossa identidade:
essa fé em si mesmo, sem a qual nada é possível” 41 Podemos afirmar
legitimamente que a fé em si mesmo e no outro é ponto de partida para a
descoberta da existência de Deus na história do Homem. A confiança que se
consolida num simples gesto de entrega, acolhimento, de apoio e de confirmação.
Aquele que, como diz Gesché, ultrapassa a questão moral, “que restitui nossa
dimensão ontológica e teologal”42, nos oferecendo uma confortável absolvição
humana.
40 GESCHÉ, A., O Ser Humano, pp. 95-98. 41 Ibid., p. 95. 42 Ibid., p. 96.
35
A fé é sinalizada como atitude de escuta e de resposta, tornando-se
elemento constitutivo do ser humano na medida em que corresponde a um ato de
liberdade diante de Deus, passando a compor uma dimensão dentre outras
existentes na constituição do ser humano. Gesché aborda, concomitantemente,
três elementos para fundamentar a fé como construção do Homem e defesa de sua
afirmação no mundo atual: a construção da identidade que o Homem busca
encontrar, a proposta de Deus e a resposta do Homem.
Afirmamos, anteriormente, que o próximo deve desencadear a necessidade
de um Terceiro, aquele que ultrapassa minha presença visível diante de mim
mesmo e do outro. Aquele a quem o Homem dirige um olhar para o mais alto e se
indaga. O ser humano foi feito para o diálogo, traz consigo a matriz da alteridade.
Recordando o exemplo de Nicodemos (Jo 3, 1-21), lembrado pelo autor, que
diante do Senhor procurou compreender sua existência de fé, o ser humano indaga
se é ouvido por Deus e cuidado por Ele. O Homem pede confirmação de sua
existência. Aqui, Gesché sustenta o convite que Deus faz ao ser humano, de
partilhar o seu amor trinitário. Fomos capacitados por Deus para amá-lo e desejá-
lo. É simples para o cristão que vive a fé mais explícita compreender que o
Homem foi criado para Deus diante da aceitação do batismo, onde é mergulhado
na vida de Cristo e convidado a partilhar a divindade com Cristo. Por Ele e com
Ele torna-se co-herdeiro de sua divindade, convite concreto de Deus para o
Homem. A salvação, portanto, se faz realidade ontológica, ou seja, intrínseca à
condição humana. Deus oferece uma destinação para o Homem: o seu infinito
amor, o amor divino. A radicalização da sua proposta se deu no evento da
Encarnação: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), confirmada
na revelação de Deus o amor visibilizado na pessoa do Filho, “Ninguém jamais
viu Deus. O Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou” (Jo,1,18).
Deus “mapeou” as rotas que propôs ao Homem percorrer e, para confirmá-lo,
realizou o caminho em direção a Deus. Ele mesmo, na condição humana, trilhou o
caminho que demarcou para os Homens, concretizando sua proposta, feita na
criação: partilhar o seu amor pessoalmente conduzindo o ser humano à plenitude
da ressurreição.
A tentativa dessa reflexão não é apenas convencer com palavras que o
Homem é capaz de Deus, mas indagar se as palavras que convergem, no
Evangelho, para afirmar essa capacitação, são verdadeiramente cridas. Não basta
36
apenas compreendê-las e reconhecê-las como autênticas, como revelação de Deus.
É necessário acreditar, crer no Deus que nos fez porque nos deseja, acreditar na
sua criação humano-divina. Fez-nos à sua semelhança quando, ao se revelar,
abriu-se ao diálogo com o Homem, moldando-nos à sua forma de nos conceber.
Isso é algo de muita profundidade e intensidade. Deus deu o primeiro passo
provocando o diálogo e configurando-o à sua iniciativa, pois emitiu uma imagem
do ser humano ao convidá-lo para essa parceria compartilhada, assim como
fazemos ao propor ao próximo uma aproximação, uma convivência mais íntima
que pode resultar em uma grande amizade ou mesmo em um projeto comum de
vida. A relação vai sendo moldada de acordo com as realizações dos Homens. Isso
porque acreditamos e confiamos no outro, porque descobrimos no amor do outro
o nosso próprio amor, um amor que se realiza no ato amoroso, na aceitação de si
mesmo e do próximo. É esse o convite que Deus nos faz, o de conviver e partilhar
o seu projeto de vida criado: o desejo e o amor na realização humana. Nas
palavras de Gesché: “porque sou amado, não tenho mais o direito de não me
amar, nem de não mais amar os outros, por mais duro e difícil que isso seja...” 43.
Esse é o sentido cristão do amor de Deus. Essa é a sua proposta: a destinação do
homem à radicalidade do seu amor. À medida que o amor entre os Homens é
descoberto como humanização, o ser humano ascende na direção de sua
destinação, sentido último de sua felicidade: Deus.
“Deus proclama que, quem quer que eu seja, ninguém (até mesmo eu) pode me atingir, porque sou à sua imagem e semelhança. Esteja eu vestido com roupa de reis ou com farrapos dos últimos e miseráveis. Talvez esse seja o único verdadeiro tabu da Escritura: ‘A vocês eu entrego tudo...Entretanto...vou pedir contas da vida do seu irmão” (Gn 9,3.5)”44
Nesse momento é necessário precisar a resposta do Homem ao convite de
Deus. Sabemos que a modernidade explicitou a possibilidade da rejeição como
resposta à proposta de Deus, como diz Gesché “essa época é, sobretudo, a
suspeita que deu forma a esse mal-estar.”45 A dúvida da anulação do ser humano
diante de Deus. Seria possível ao Homem reconhecer em Deus sua liberdade? De
que maneira, se Deus poderia retirar do Homem sua liberdade de, inclusive, não
aceitá-lo como opção de vida? Seria o ser humano, como afirmava a religião,
punido pela sua não aceitação. Porém, o autor não se preocupa em desenvolver 43 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 105. 44 Ibid., p. 105. 45 Ibid., p. 111.
37
respostas a essas rejeições. A sua preocupação é sinalizar que, assim como há um
movimento de rejeição, há também um de aceitação. Não há porque imaginar um
único movimento, muito menos movimentos de exclusão. Essa leitura traria uma
contradição à criação do mundo na perspectiva da tradição judaico-cristã, que
fundou uma antropologia de destinação, evidenciando elementos próprios dessa
ciência, como liberdade e alteridade. Mais. O cristianismo revelou a
desfatalização do Homem diante da história. Por isso, não há como conceber um
único movimento do ser humano, que recebeu de Deus a liberdade como realidade
concreta, de desenvolver sua existência. A liberdade dá as condições de aceitar a
rejeição como possibilidade. Isso pertence ao amor de Deus pela sua criação. O
Homem, ao consentir a ação de Deus na sua vida, faz da fé uma atitude
mobilizadora em defesa de Deus e do Homem, construindo a identidade cristã.46
Gesché vai utilizar o termo “visitação” para explorar esse consentimento
que o ser humano é capaz de dar à presença reveladora de Deus na sua vida.
Aquele movimento que atrai e fascina, provocando no Homem a grandeza de se
sentir vivo e pleno diante de Deus.
“E, paradoxalmente, não seriam os crentes que têm uma concepção elevadíssima do ser humano? Da parte deles, então, esse ‘espanto incrédulo’ (o de Tomé), essa ‘suspeita às avessas’ é prova de que o espanto ‘passou pelo fogo’ (cf 1Pd 1,7) e, que desta vez, leva a responder positivamente a Deus. E essa resposta, desde que não tenha querido ignorar a objeção, é uma resposta que eleva o ser humano.”47
No desenvolvimento de seu pensamento, o autor indica que é no outro que
o ser humano atesta sua existência. É na alteridade que o ser humano encontra a
sua identidade confirmada, com a possibilidade de refazê-la constantemente
diante das novas relações vivenciadas. O texto citado acima nos confirma que o
ser humano precisa do outro nessa auto-descoberta. Uma necessidade movida pelo
desejo, pois sem ele o Homem se esvazia e se isola do que lhe é fundamental na
sua vida, reconhecer-se como ser humano na relação com o outro, com o mundo e
com o Transcendente. O ser humano provavelmente não sobreviveria isolado, é
um ser criado para a alteridade. Ao se desvelar diante do outro, o Homem se sente
invadido pelo desejo de permanecer no outro. Ou seja, como o autor aborda, o ser
humano se sente visitado, “na qual ele se encontra a si mesmo, não sendo pura
ação, mas sendo também recepção, ser ao qual advém alguma coisa: o ser-
46 GESCHÉ, A., O Ser Humano, pp. 113-115. 47 Ibid., p. 114.
38
visitado.”48 Dessa forma, podemos aludir à tradição cristã como expressão dessa
realidade que o Homem necessita. A tradição judaica sinalizou, na narrativa do
Gênesis, essa integração do Homem com o seu criador e o cristianismo explicitou,
em Jesus Cristo, o convite do Pai ao ser humano para realizar sua participação no
projeto de salvação, concretizando a visitação do mistério na realidade histórica
do Homem. Esse desejo que mobiliza o ser humano pelo outro, que desencadeia a
realização do amor, faz o Homem construir e consolidar sua identidade. O
contrário, o seu distanciamento do outro, reduzindo-o a si mesmo, faz desse
Homem um ser sem identidade. É na relação com o outro que a confiança é
estabelecida como fundante da permanente relação de troca entre os Homens. É
nessa relação que o ser humano percebe que a sensação experimentada na relação
com o próximo vem de algo maior, que escapa à sua própria imanência, de algo
que nos faz sentir desejosos por uma realização maior, de algo que nos atrai para o
outro além dele mesmo, que conduz a um infinito alcançável pela finitude que se
anuncia infinita de desejos e realizações.49
Podemos, agora, compreender melhor o sentido da fé na realidade do
Homem. Da confiança humana, nascida entre os Homens ao se relacionarem,
nasce a fé em algo além do próprio ser humano. Gesché defende a fé como
afirmação da existência do ser humano, a partir dessa realidade da confiança
estabelecida entre os Homens. Se entendermos que o Homem recebeu o dom da
liberdade como ato originário da sua criação, podemos, como diz o autor, “falar
da fé que Deus tem em nós” 50 . O Homem, ao receber de Deus, na sua criação, a
alteridade como elemento essencial na realização de sua liberdade, recebeu
também a confiança de Deus na sua existência humana. Assim como Deus é o
primeiro a convidar o ser humano para o diálogo, é também o primeiro a
manifestar a fé no Homem. Isso tem, no cristianismo, uma particularidade
singular: Deus confia no ser humano independentemente de sua condição pessoal.
Isso significa que o Homem é visitado por Deus, que o possibilita descobrir o
fascínio das alturas, que o faz romper com suas limitações e medos condicionados
pela finitude da história humana. O ser humano é capaz de se libertar de tudo o
que lhe aprisiona na sua tentativa de realização. Por isso, podemos defender que o
48 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 115. 49 Ibid., p. 117 passim. 50 Ibid., p. 118.
39
ser humano foi criado para construir sua liberdade. É na realização de sua
existência humana que a liberdade é construída, pois ao responder ao desejo por
Deus cria as condições para a ação de Deus na sua vida, o que significa
concretizar a fé como atitude livre diante desse Deus revelador da consciência
humana.
A fé representa, portanto, um exercício de liberdade do ser humano. Assim
como os não crentes defendem, em nome de uma liberdade não cristã, a ausência
da resposta, Gesché sustenta sua compreensão de ser humano incluindo a fé como
uma das dimensões constitutivas do ser humano. Inclusive, é diante dos que não
crêem que pode afirmar a sua crença em Deus. Aqui Gesché se utiliza de uma
convicção pessoal sobre sua fé para estender aos leitores a possibilidade de uma
reflexão útil a respeito de todos os que afirmam crer em Deus. Dando
continuidade às suas avaliações pessoais, levanta outras possibilidades que
poderiam se tornar verdadeiras se não fossem de leituras mais superficiais.
Destaca o fato de se nascer em ambientes e lares cristãos. Certamente, como
afirma, todo ambiente em que o ser humano se encontra torna-se parte de sua
condição, afinal o ser humano é um ser de cultura e, como tal, mergulhado em
tradições. “Trata-se das condições de nossa identidade e de nossa liberdade; o
homem ser cultural, é um ser que é nascido”.51 Mas isso não basta para que o
Homem se torne um cristão. A fé tem um significado muito mais profundo. A fé
se encontra no exercício da liberdade, o que representa, para a tradição cristã, uma
construção do ser humano, com toda a presença da cultura desse Homem. É na
realização dos atos da fé que o Homem conforma sua identidade Àquele que se
revelou como paradigma de sua fé, Jesus Cristo. É na pessoa de Jesus que Gesché
vai afirmar a fé de todo cristão. Nele, o autor vai defender a radicalidade da
dimensão da fé para o cristão. Toda a sua abordagem sobre o ser humano
desembocará nessa compreensão de fé que o Homem cristão, diante dos outros
não cristãos, deverá assumir como identidade de um novo sujeito de fé. Teremos
oportunidade de desenvolver essa temática no último capítulo desse trabalho,
quando abordaremos a opção da livre adesão pelo Cristo Ressuscitado.
A fé deverá representar na vida do cristão o despertar de um Deus
histórico, “Deus interrogando seu Cristo como homem”.52.Isso nos faz pensar em
51 GESCHÉ, A., Deus, p.118. 52 Ibid., p. 127.
40
toda a condição humana de Jesus. Ou seja, no rosto do outro um encontro humano,
de trocas e de construções. A fé, compreendida como processo de crescimento, de
desvelamento de Deus, que se apresenta de forma humana diante do Homem. A
história possibilita re-descobrir um Deus humano, pois nos faz reconhecer que
teve um tempo e um lugar para sua definitiva revelação. Diz Gesché: por isso
“Deus também precisa de tempo e quer oferecer e dar à minha história a
dimensão de uma presença que se mede” 53 . Nessa perspectiva da revelação
histórica de Deus, a fé torna a realidade favorável ao diálogo entre diferentes
logos, pois desfaz a idéia de um Deus que ocupa um lugar absoluto na vida do fiel.
Na verdade, ocupa, mas não de forma desmedida, pois correria o risco da
instrumentalização de Deus, reduzindo a relação entre o Homem e Deus à imagem
de si próprio, o que permitiria uma relação de posse que não deixa espaço para o
crescimento, mas leva à alienação de si mesmo.
Deus nos criou para que, diante d’Ele, pudéssemos responder com nossa
humanidade, limitada, mas superável na busca de nossas realizações humanas.
Deus é, sim, absoluto, mas diante do Homem cede para que ele possa, em seu
tempo, responder à confiança de Deus.
Diante do sentimento de admiração pela presença de Deus, revelada em
sua vida, o ser humano se vê na obrigação de confiar em si e no outro como
possibilidade de sua própria realização pessoal. Esse movimento revelador de
fascínio e confiança vem primeiro da parte de Deus, manifestado desde a criação
do Homem na liberdade de aceitá-lo ou negá-lo. Portanto, é Graça de Deus. O
segundo movimento vem da parte do Homem, aquele que o conduz em direção ao
projeto de Deus. Gesché resume que a realidade da fé é, antes de tudo, um ato de
confiança de Deus no Homem para, então, se tornar um ato livre do Homem de
consentimento da presença de Deus em sua vida. O ser humano descobre a
confiança depositada por Deus na sua pessoa a partir da confiança em si e no
outro. Portanto, não seria impróprio afirmar que a resposta a Deus exige confiança
em si mesmo de forma evidenciada, para que se transborde em confiança no
próximo. A realidade manifestada pela fé é prenha de realizações transformadoras.
Traz no seu bojo a ação salvífica de Deus, a realização do projeto de salvação do
ser humano. 54
53 Ibid., p. 130. 54 Ibid., pp. 119-121.
2 A CONDIÇÃO HUMANA
2.1 Introdução
Faremos, iniciando este novo capítulo, uma pequena introdução para
reconduzir o leitor à centralidade do tema desenvolvido até aqui. Muitas são as
questões levantadas e especuladas por Gesché, em especial sobre as que são a
razão do nosso trabalho: o ser humano em sua relação com Deus.
Percorremos o capítulo anterior procurando conceituar a compreensão de
Gesché sobre o ser humano, sempre na perspectiva do homem cristão. Interessa-
nos reconhecer, hoje, a legitimidade do ser cristão. Isso o autor desenvolve com
muita propriedade: na defesa do Homem, o reconhecimento de Deus e, desta
forma, a possibilidade de se proclamar cristão. Podemos defender sem receios,
atualmente, o espaço da teologia no diálogo entre as ciências ditas racionais. É
justamente nesse âmbito que o trabalho veio sendo desenvolvido.
Primeiramente, procuramos levantar aspectos antropológicos e teológicos
que fundamentassem a presença de elementos antropológicos na criação.
Realizado isso, reconhecemos a antropologia como ciência indispensável para
abordagem teológica. Gesché vai expressar sua reflexão a partir de uma teologia
antropológica, invertendo os termos como forma de evidenciar na teologia a
necessária atuação da antropologia. É dentro dessa perspectiva que o autor destaca
o elemento da liberdade como fundante do ato da criação de Deus na tradição
judaico-cristã. Associada ao elemento da liberdade, Gesché aprofunda a alteridade
como outro elemento essencial na compreensão da dinâmica da criação, que
possibilita uma realidade integrada ao transcendente, a partir da imanência da
história, que foi desfatalizada com essa ação de Deus na criação. Outros
elementos também foram destacados, como a destinação, que trouxe, juntamente
com a liberdade, a discussão do sentido existencial do ser humano, e a salvação,
intimamente ligada à compreensão da liberdade cristã e o mal, como atributo não
constitutivo do ser humano. Na verdade, este tema se destaca não só pela
42
atualidade antropológica, como também pela direta relação com o tema da
responsabilidade, que se encontra associado de forma imediata ao da liberdade.
Por fim apresentamos a fé como uma realidade possível de ser criada. Foi
discutida, a partir da compreensão da liberdade, da responsabilidade e da
alteridade, a fé como elemento fundamental na construção da confiança entre os
Homens. Ela foi dada como atitude imprescindível do uso da liberdade humana,
uma liberdade compreendida na dimensão existencial do ser humano. Isso
significa que a liberdade foi pensada para além da imanência, ou seja, uma
liberdade transcendental, que dá um sentido diferente à vida do ser humano.
Aqui precisamos nos deter em uma explicação para seguir os passos
propostos neste capítulo. Gesché se preocupa em explicitar o conceito de sentido,
pois, muitas vezes, nos apropriamos do termo como última realidade atingida em
Deus. Como diz o autor, “não vamos fazer de Deus o funcionário do sentido.
Como se ele fosse sua última e única chave” 55 O autor não atribui ao sentido uma
condição de submissão a Deus. Isso nos faz entender que o sentido tem suas
condições próprias, independentes de atribuições, assim como Deus independe
dele, em si, caso contrário poderia ser visto como reduzido ao sentido, sendo
equivalente ao sentido56. Na verdade, Gesché deseja aprofundar a idéia de que
Deus não se reduz a nada, nem ao sentido, caso contrário Deus teria um papel
funcional, mesmo que a teologia contribua para conceituar o sentido, dando
sentido à experiência sensível.
O autor afirma que o sentido é um lugar que precisa ser vivido, portanto,
“ele é vivido onde é vivido. Não pede outra justificação”57. Gesché vai chamar de
“lugares do sentido” alguns daqueles temas desenvolvidos, tais como liberdade,
alteridade e destinação. Inclui também uma abordagem que faz sobre o imaginário
para completar sua compreensão sobre o ser humano da fé. Evoca a necessidade
de, a partir desses elementos, deixar que o sentido apareça como sentido em si
mesmo, ou seja, que possa ser anunciado. É dessa forma que o autor propõe
trabalhar a liberdade, a alteridade e a destinação como elementos trazidos pela
55 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 5. 56 Ibid., p. 5. 57 Ibid., p. 6.
43
teologia, que podem contribuir para os diferentes caminhos que conduzem a
manifestação do sentido. Ou seja, reconhecer para cada um seu lugar existencial.58
Dentro dessa perspectiva, o sentido é trabalhado como cenário de
diferentes lugares possíveis de serem vividos. Portanto, não o destacamos como o
fizemos com os outros temas. Ele terá seu lugar em cada elemento trazido pela
teologia na elucidação do sentido. Representará, a partir das reflexões de Gesché,
uma compreensão de onde se manifesta e não como uma condição a priori, ou
seja, já determinada, à espera de ser alcançada. Essa apresentação de Gesché traz
uma reflexão profunda que completa a compreensão do tema da liberdade, que
trataremos a seguir. Faz-nos consolidar a idéia de que a liberdade tem um
movimento processual, de construção individual e coletiva, pois o sentido não está
dado de forma acabada, para ser alcançado como meta final. Mas, atualizado
permanentemente diante das circunstâncias cotidianas.
Seguiremos, então, a partir de Gesché, nossa proposta de desenvolver e
aprofundar os elementos da condição humana, dando-lhes o sentido próprio em
cada um desses lugares que o Homem deve ocupar em desenvolver para o
exercício de sua existência humana e de Homem de fé.
2.2
A Liberdade
“Eu sou quem sou” (Ex 3,14)
A citação nos remete à narrativa do Êxodo, onde Deus se apresenta a
Moisés. Uma apresentação que dá condição de entender a ausência de uma
anterioridade. Deus é princípio, fez existir, como a tradição judaico-cristã afirma.
É a partir dessa afirmação, onde Deus se faz conhecer em sua identidade, como
veremos adiante, que o tema da liberdade vai ser aprofundado por Gesché.
Logo de início, Gesché vai diferenciar o desenvolvimento do tema da
liberdade entre aqueles que puderam pensar sobre sua compreensão, os não
cristãos e os cristãos. Assim como o fez quando abordou o tema da criação, tanto 58 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 5-14.
44
na perspectiva grega, como na tradição judaico-cristã, trabalhada no capítulo
anterior. É contrapondo uma concepção à outra que Gesché vai defendendo e
esclarecendo a perspectiva do Homem de fé. O autor, neste caso, também vai
contrapor este pensar sobre a liberdade entre a teologia e as outras áreas que
contribuíram para este debate.
O autor percorre, de forma muito breve, o trajeto da liberdade ao longo da
história. Três grandes figuras são destacadas pelo autor como momentos em que a
história foi favorável ao desenvolvimento do pensamento sobre a liberdade. Num
primeiro enfoque, a liberdade é vista como conquista. Vem identificada com o
pensamento dos gregos, que pensaram uma liberdade moral e política; com a
modernidade, que enfatizava a liberdade da consciência e da razão; com o século
XIX, que desenvolveu uma liberdade individual e econômica; e com o século XX,
que aprofundou uma liberdade social e da interioridade do sujeito. A segunda
imagem, que o autor chama de liberdade como essência, um pensamento presente
nas filosofias clássicas. A liberdade pertence ao ser humano, este não precisaria
conquistá-la, pois já é algo que pertence à sua própria essência. A terceira
perspectiva refere-se à liberdade dada como existência59 A filosofia existencialista
desenvolveu essa compreensão, principalmente a partir de Sartre. A existência,
nesta compreensão, se sobrepõe ao indivíduo. O existencialismo defende que a
liberdade é anterior ao indivíduo. Portanto, já se encontra presente na realidade
que deverá ser vivida pelo sujeito, que é local privilegiado para o Homem
desenvolver sua liberdade. “O ser humano deve conquistar sua essência existindo,
ele deve fazer sua liberdade”.60
Em contraposição, a partir da tradição judaico-cristã, Gesché desenvolve o
tema da liberdade pensada pelos cristãos na intenção de afirmar a liberdade como
criação. As representações não-cristãs da liberdade, sistematizadas por Gesché,
não excluem a abordagem sobre a liberdade que os cristãos desenvolveram, pois o
autor defende o lugar da teologia como uma ciência desenvolvida na história da
humanidade. Na verdade, nenhuma abordagem é excluída necessariamente. A
perspectiva da liberdade cristã nos remete àquela primeira compreensão da
criação: no princípio Deus criou o céu e a terra. Essa será nossa fundamentação.
Falamos a partir da fé, da compreensão de que a base da realidade é Deus.
59 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 16 passim. 60 Ibid., p. 16.
45
Reconhecemos, portanto, que a narrativa da Sagrada Escritura sobre a origem do
mundo nos dá subsídios para compreender a liberdade como criação. Foi lá que a
teologia encontrou suporte para legitimar a antropologia como ciência presente na
revelação de Deus. Essa reflexão, já desenvolvida anteriormente, nos ajudará a
mergulhar mais profundamente no tema.
Como é uma realidade que considera Deus presente como fundamento,
partiremos, então, desta compreensão: a liberdade é dada na criação. Não de
forma extrínseca, mas intrínseca à própria criação. Ou seja, o ser humano, ao ser
criado por Deus, já o é de forma livre. Gesché desenvolve esse dado específico da
liberdade como criação a partir de algumas referências que ajudam a consolidar e
legitimar o fundamento dessa concepção.
O fato de ser criado subtrai do ser humano a possibilidade de que tenha
arrancado de algo sua liberdade para que existisse. Dessa forma, aquela primeira
idéia levantada por Gesché sobre a conquista ficaria, aqui, superada. Uma segunda
referência seria mais complexa: Deus, ao criar, dá as possibilidades para que o
Homem continue a criar, fazendo-o criador criativo de uma realidade iniciada por
Ele. E, ao criar o Homem, o criou à sua imagem e semelhança, portanto, emitindo
a imagem que tem de ser humano. E o Homem, ao voltar-se para Deus, dialogará
formando essa imagem em semelhança. O que significa afirmar, como atesta
Gesché, que “o ser humano nasceu imagem (é o ato de Deus), deve tornar-se
semelhança (é o ato do ser humano).” 61 Isso nos faz perceber que a criação tem a
dinâmica de um movimento de construção, de que nada está acabado e pronto. É
dada ao Homem a tarefa de colaborar na criação não acabada. Gesché vai atribuir
a essa liberdade uma referência de vocação, ou seja, o ser humano é chamado à
sua vocação humana. É a liberdade que deve ser construída na história do Homem.
A vocação, portanto, é entendida como desenvolvimento da condição de Homem,
de ser humano. Aqui incluímos uma outra referência, bem próxima à da vocação:
o ser humano criado criador. Uma idéia já bastante desenvolvida em tópicos
anteriores, mas importante destacar, pois é estruturante da idéia de liberdade
criada. A liberdade, neste aspecto, associada à idéia da vocação, assume a plena
realidade de se tornar responsável pela construção da história pessoal e coletiva do
sujeito que está atuando. Mais uma vez, voltamos à origem da criação como
61 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 18.
46
desfatalização do ser humano, pois coloca o Homem dentro da dinâmica da re-
criação, da transformação de sua realidade. O ser humano torna-se responsável,
diante de sua liberdade, pela vida criada. Seria bastante pertinente afirmar que o
ser humano é, diante de Deus, um ser muito valioso, pois é tomado por Deus em
toda sua realidade, ou seja, em toda sua existência. 62
Outra referência destacada, que vem ao encontro das anteriores,
completando a percepção dinamizadora da criação, é o fato do ser humano, ao
assumir sua vocação de construir sua liberdade, assumir, também, a construção do
Reino. Ou seja, assume a construção do projeto de salvação de Deus para o
Homem, o desígnio de Deus. Na verdade, a consciência dessa vocação vem
quando o Homem responde ao convite de Deus, saindo de si em direção ao
próximo. Na confiança das relações humanas, estabelecidas no cotidiano da vida,
o Homem encontra a presença reveladora de Deus. É na alteridade, na relação
com o outro, que Deus emerge diante do Homem. Lá, na criação, quando fez
existir, concedeu a alteridade ao Homem para que pudesse se comunicar e, assim,
chegar até Deus de novo. Voltamos à afirmação de que o ser humano constrói a
liberdade na criação de sua existência, mas com a presença inevitável da
alteridade, que possibilita o sair de si em direção ao Transcendente. O ser humano
é o único ser capaz de superações, de reunir na sua finitude o infinito, numa
permanente auto-superação. Por fim, Gesché destaca um aspecto que considera
mais complexo: da liberdade acidentada. Uma liberdade que precisaria ser
reconquistada porque foi perdida posteriormente à criação.63 Neste caso caberia a
idéia da liberdade conquistada, porque poderia representar uma libertação ou uma
conquista de algo perdido. Estaríamos, aqui, falando do mal, que não se encontra
na essência das coisas, muito menos que possua alguma anterioridade, mas algo
que provenha da própria história. Assim dito, pode ser combatido justamente em
qualquer situação que prejudique a imagem e dignidade do Homem. O mal é
concedido como contrário à vocação humana, ou seja, desfigura e escraviza o ser
humano com falsos valores, que conduzem ao isolamento e ao individualismo.
Gesché lembra São Paulo na Carta aos Gálatas: “é para a liberdade que Cristo
vos libertou” (Gl 5,1). Torna-se uma proclamação à libertação de tudo que reduz e
62 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 18-20. 63 Ibid., p. 19.
47
aprisiona o ser humano. Portanto, livre do pecado o ser humano é convocado a se
libertar de todo o resto, tornando-se livre para Deus.
“Poder-se-ia falar de liberdade incessantemente a ser libertada para mantê-la em seu direito e em seu estado verdadeiros. De liberdade de libertação. O ser humano volta a tornar-se o que é”.64
A partir das referências abordadas por Gesché na consolidação da
compreensão cristã sobre a liberdade, podemos afirmar que a tradição judaico-
cristã inaugurou um lugar para ser revelada a compreensão da liberdade cristã.
Esse é o caminho que o autor propõe. Na verdade, Gesché utiliza-se da religião
para afirmar que ela teria um estatuto próprio que desvelaria essa liberdade cristã
ao mundo do pensamento. Acredita que a religião, por trabalhar com a tradição,
tem uma contribuição importante no desvelamento da liberdade, que deseja ser
compreendida na sua existência humana. Para expressar com mais exatidão esse
desvelamento, o autor se vale de três situações que envolvem a liberdade: a
liberdade que é ampliada na adesão de Deus pelo ser humano, a ética, que envolve
as relações humanas e com Deus, e a liberdade reconquistada, que retoma a
questão do Homem “voltar a ser o que é”, apesar das rupturas causadas pelo mal.
A complexidade do tema exige um aprofundamento para que a dimensão do ser
humano possa ser amplamente conhecida na sua maior significação. 65
Em relação à primeira situação abordada, ela vem responder às
inquietantes indagações que o próprio Homem faz sobre a idéia de que Deus
inibiria a sua liberdade. Ora, já vimos que a tradição judaico-cristã não traz
nenhum elemento que impeça a autonomia do Homem. Pelo contrário, é a sua
liberdade criada que lhe dá condições de se tornar mais livre diante de Deus,
porque existe a possibilidade da escolha e do Homem ser construtor de sua
história. Deus, portanto, não inviabiliza a liberdade do Homem, mas torna-a mais
completa ao criá-la, comprometendo o Homem com a sua própria história. Gesché
nos lembra que a problemática de fundo recai na concepção que se tem de Deus e
do ser humano. Mais que isso, entre os que têm fé e os não crentes. O cristão
entende que Deus, ao criar o Homem em liberdade o criou criador, criativo,
portanto, livre diante de seu próprio criador. Dessa forma, Deus, na concepção
cristã, não pode ser concebido como manipulador, pois deu ao ser humano o pleno
64 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 20. 65 Ibid. Entre as páginas 21 e 34 o autor trabalha as diferentes maneiras de possibilidades da liberdade
48
direito de afirmar sua autonomia. Como afirma Gesché, Deus se distanciou para
que essa liberdade humana existisse sem riscos de manipulações.
“Jamais se engrandecerá a Deus, tornando-o grande do modo como nós acreditamos que deva sê-lo – e, de modo muitas vezes bem infantil, projetando em Deus os sonhos de nossa imaginação e negando, assim, o que ele próprio quis ser. A grandeza de Deus está, antes, no dom e na certeza de liberdade que ele nos dá. Longe de toda fusão alienante e destrutiva, é preciso, mesmo diante de Deus, distanciamento para que eu seja eu mesmo. Mais uma vez essa distância está na própria lógica da criação de um ser livre e diferente.” 66
Deus, de modo tênue, discreto e sem violência, se mostra ao Homem de
forma que não ocupe o lugar de controlador, muito menos de violador. Deus
respeita o tempo e as limitações da condição histórica do ser humano, pois sabe
que ele não suportaria uma presença que lhe retirasse possibilidades de escolhas.
Porém, também, o Homem reduzido a si mesmo não se suportaria, pois a total
invisibilidade de Deus conduziria a ausência de alteridade, seria como o próprio
espelho sem reflexo, logo, também sem as possibilidades. Aqui se encontra um
enigma da própria condição do Homem e da sua relação com Deus: algo que nem
sempre se mostra por inteiro, tanto entre os Homens como na relação com Deus
existe um não des-velado. Isso revela, da parte de Deus, um absoluto respeito pela
liberdade do ser humano, mostra-nos um Deus que não quer se fundir no Homem
anulando-o, mas estar diante de si provocando surpresas ao próprio ser humano,
como também na relação com Ele. Diante dessa concepção, a teologia, ao dialogar
com as ciências, reconhece que, dependendo da forma como se apresenta, pode
significar um falseamento antropológico. A teologia que transfigura o ser humano,
falseando sua imagem, é uma teologia que representa um falso deus.67 Ou mesmo,
o Homem, que impede Deus de ser Deus, manipulando-o, colabora para o “erro
teológico que é, antes de tudo, um erro antropológico”.68
A rica contribuição que a teologia vem prestar, ocupando seu lugar à luz
da razão, é colocar diante do ser humano a possibilidade de um futuro diferente,
que transcende sua história finita, transformando-a numa realidade de infinitas
esperanças. Nessa perspectiva, a liberdade é dada como completude, abrange a
totalidade da vida do Homem. A liberdade tem aqui um lugar para ser vivida: o
sentido que pode ter em Deus, o sentido de vivê-la integralmente, repleta de
66 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 22. 67 Ibid., pp. 21-25. 68 Ibid., p. 25.
49
significações. O sentido que tem seus diferentes lugares para ser vivido, um deles
a liberdade. Essa é a primeira certeza que a tradição judaico-cristã nos apresenta:
o ser humano diante de Deus não morre, é tomado por uma nova existência, a
possibilidade de construir, na liberdade, uma identidade cristã. Confirmando o que
já dissemos, a identidade cristã deve colaborar para o desvelamento da liberdade
cristã afirmada pela tradição religiosa.
O Homem, na busca de sua confirmação, constrói sua identidade, que tem
valor individual e coletivo, pois é na relação com o outro que é capaz de se
reconhecer e confirmar sua identidade. Podemos, dessa forma, compreender
quando Gesché também apresenta a liberdade cristã desvelada na relação com o
outro, ou seja, na dinâmica da alteridade, a partir da contribuição da religião. Essa
é a segunda abordagem que o autor faz pra mostrar o desvelamento da liberdade
cristã pelo religioso. Neste momento relembra que as partes desenvolvidas
filosoficamente para confirmar e legitimar a teologia que aborda a liberdade como
criação não exclui a presença daquelas interpretações dadas pela filosofia. A fé
cristã pode ter pleno reconhecimento nesse debate sobre a liberdade,
especificamente a liberdade cristã. Gesché vai denominar liberdade ética essa
sustentada pela e na alteridade.
“A fé cristã diz também que a liberdade é conquista quando vê a liberdade como vocação e invenção; ela a vê também como pertencendo à essência do ser humano quando diz que a liberdade se encontra dada no próprio gesto criador, como direito de nascença constitutivo do ser humano; ela vê também como questão da existência quando a vê como acabamento da imagem (dom original) por semelhança (esforço de configuração) e como libertação.” 69
Ou seja, a teologia e a filosofia são simultaneamente colaboradoras no
entendimento da liberdade pensada pelo Homem, mas desejamos que seja, aqui, a
partir de Gesché, afirmada como uma liberdade cristã que tem sua existência na
teologia transcendental. A religião vai desvelar essa liberdade cristã calcada na
certeza de que o ser humano não se encontra reduzido à imanência. Porque é um
ser de alteridade, encontra em Deus o fundamento dessa relação que lhe foi dada,
constitutivamente, na criação. A liberdade cristã, desvelada e desenvolvida na
relação entre os Homens, exige a presença de outro aspecto tratado pela tradição
judaico-cristã, a responsabilidade. Na criação Deus sustenta a liberdade do
Homem, entregando aos seus cuidados a criação para que seja recriada por ele, a
69 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 27.
50
idéia do ser humano criado criador presente na tradição judaico-cristã. Podemos,
portanto, conceber a liberdade cristã associada diretamente à responsabilidade
com o outro, com a liberdade do outro. A ética, acentuada pelo autor como uma
situação real de desvelamento da liberdade, encontra sua compreensão absoluta no
profundo respeito pelo próximo, o outro presente na alteridade. O ser humano,
convocado a exercer a sua vocação humana, é chamado à sua liberdade, a
desenvolvê-la em relação ao outro, a assumir diante do outro a responsabilidade
de ser livre, ou seja, de criar possibilidades de respostas ao Transcendente. Essa
condição é atribuída à alteridade transcendente, àquela em que Deus suscita a
capacidade da liberdade desejar o outro, necessitar do outro como condição da
existência do próprio Homem. É a beleza do rosto desse ser humano que se vê
capaz de querer o outro na sua gratuidade, pois vê neste outro o sentido de sua
liberdade. Não há possibilidade de entender essa relação que brota de algo fora do
Homem como uma relação de dependência. Essa relação que vem de Deus, a da
transcendência, se conforma numa alteridade plenamente livre de culpas e de
submissão. Portanto, não seria nenhum absurdo afirmar que a relação com Deus
proporciona uma relação entre os homens mais humana e edificante. Dessa forma,
estar perto de Deus também possibilita ao Homem desenvolver mais sua liberdade
pessoal e coletiva. 70
O sentido, abordado como vontade própria, mais uma vez, é revelado na
atuação de um lugar vivido, a liberdade. É concedido à liberdade cristã, desvelada
pela mediação da religião, o sentido de sua existência. Viver a liberdade cristã na
dimensão ética nos faz compreender com segurança a afirmação de que Deus não
se submete ao sentido, mas que a religião é que deve dar o sentido à presença de
Deus no desvelamento da liberdade cristã. A liberdade cristã possibilita viver a
experiência da gratuidade entre os Homens e Deus. Gesché, para falar dessa
absoluta doação diante do outro, remonta à citação bíblica, “eis-me aqui”, uma
atitude de disponibilidade e de construção do outro, da identidade do outro. Essa é
a alteridade que Deus concedeu ao Homem desenvolver quando, diante dele, se
dispôs para que o ser humano se encontrasse como Homem na sua humanidade,
possibilitando-o construir uma identidade cristã. Alteridade ancorada na liberdade
de Deus para os Homens, realizada na criação, aquela que, na tradição judaico-
70 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 27-34.
51
cristã, desfatalizou Homem e a história, que inaugurou a idéia de Deus como
Sujeito, que fez existir uma ação na origem de tudo. Nesse sentido, a liberdade
pode ser pensada como original e combate a idéia de algo extrínseco ao ser
humano, possível de manipulações, sujeita a não ser nem desejada ou
compreendida. É necessário que o sujeito da fé tenha consciência cristã de sua
liberdade para que possa, de forma transparente, desvelar o que é próprio da vida
doada por Deus. Na defesa que Gesché faz da liberdade cristã, afirmamos juntos:
“a liberdade está também no princípio das coisas”,71 por isso deve ser desejada e
amada como condição no reconhecimento de nossa humanidade. O cristão deve
proclamar a ética de Deus inaugurada na criação do mundo, em especial do ser
humano, criado em liberdade para ser um livre criador.
Retornamos à citação inicial desse item para legitimar a liberdade cristã
como fundante do ato da criação de Deus: “eu sou quem sou” (Ex3,14). Aqui se
encontra a síntese do pensamento sobre a liberdade cristã desenvolvida para
defender o discurso sobre o desvelamento da liberdade (cristã) diante dos outros
pensamentos. Gesché vai recorrer à idéia do irracional e do racional para
expressar o Deus da tradição judaico-cristã que, compreendido como Princípio de
tudo, foge à lógica da racionalidade do Homem, de ser fundado. O Deus cristão,
como afirma a tradição, é um Deus que faz existir, ou seja, cria no Princípio,
portanto não é criado, por isso incompreensível à lógica da razão. Nesse sentido,
irracional, uma irracionalidade referente à anterioridade, não há possibilidade de
ser expressado e comunicado, já que no fundamento foi dado a condição de
conhecê-Lo a partir do Homem criado criador, livre na sua existência a partir da
existência de Deus. O Homem é capaz de inaugurar criando, livremente, a criação
recebida. É capaz porque é um ser racional. O irracional tem a sua racionalidade
posterior presente naquele que possibilita afirmar a inauguração, o ser humano. 72
“Ou, para dizer as coisas ainda de outra forma: o irracional é irracional como antequam (não sem anterioridade), mas é racional como postquam (porque funda o racional e, desse ponto de vista, é, pois, eminentemente racional).” 73
Por isso, Deus é também racional, quando, no Homem, inaugurou a
liberdade criativa e a alteridade, dando-lhe a plena condição de se comunicar e
criar e, a partir da imanência, do real e de sua racionalidade, se relacionar com o
71 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 32. 72 Ibid., pp. 35-40. 73 Ibid., p. 40.
52
Transcendente, expressando a construção dessa relação na identidade que vai
sendo configurada. Essa perspectiva nos dá todas as condições para compreender
a liberdade na sua existência humana. A liberdade deve ser, portanto,
compreendida como racional, em que o Homem deve ao mesmo tempo construir,
conquistando-a, como desvelar, pois se encontra intrínseca à própria condição de
ser humano, de um já vir-a-ser. O ser humano precisa desenvolver a vocação de
ser livre, descobrir, desvelando sua existência divina, a liberdade cristã. A teologia
quer falar sobre essa liberdade, oferecendo ao cristão o seu espaço na defesa de
sua realidade de fé. A religião, na compreensão de Gesché, é mediadora do
desvelamento da liberdade, colaborando na autêntica imagem do Deus cristão, um
Deus que nos respeita e ama a ponto de nos ter partilhado sua criação, nos fazendo
criadores de sua criação. Se compreendermos, dessa forma, a liberdade fundada
na nossa criação, entendemos que somos chamados a exercê-la com criatividade,
o que significa, um “trabalho de refundação da liberdade”, pois coloca o ser
humano na direção da transformação, da ação inventiva. Nesse sentido, a
liberdade cristã é desenvolvida na compreensão da responsabilidade. É uma
liberdade construída na resposta responsável do Homem diante de sua vida e de
Deus. Diante da sua realidade, o ser humano se coloca disponível para criar a
partir de sua relação com o outro, uma nova possibilidade de existência, ser
cristão. O “eis-me aqui”, narrado na tradição judaico-cristã, representa essa
gratuidade disponível que dá ao Homem a condição de exercer e construir sua
liberdade existencial. 74
Recorrendo ao texto sobre a liberdade fundante: “a criação é acesso à
liberdade, e esta, apelo à criação” 75, podemos concluir essa etapa da reflexão
sobre o ser humano afirmando que necessitamos conhecer e desenvolver outras
condições humanas para conceber que o Homem cristão não pode ficar reduzido a
simples ações de escolhas. A liberdade cristã exige relacionar o elemento da
alteridade como um elo construtor da liberdade responsável. É nessa relação que o
Homem pode ou não construir com integridade sua identidade cristã. Buscaremos,
então, desenvolver o tema da identidade a partir da resposta do ser humano à
convocação de co-participante da criação.
74 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 41-43. Cf. reflexão sobre a racionalidade da liberdade. 75 Ibid., p. 43.
53
2.3 A Alteridade
Até o momento procuramos direcionar a atenção para o aspecto fundante
da liberdade no ato da criação de Deus. Havia a necessidade de aprofundar o
elemento da liberdade como construção da identidade cristã. Essa é a preocupação
e a defesa do trabalho: reconhecer a real exigência de dialogar a partir de uma
identidade construída pela tradição cristã. Ou seja, falar da possibilidade de ter
Deus incluído entre outros temas pertinentes ao ser humano. Vimos que para
realização desse caminho é necessário o desvelamento da liberdade cristã, como
revelação da identidade construída na existência do ser humano. Reconhecemos a
ética como uma forte referência no desvelamento da liberdade cristã, pois se
desenvolve, necessariamente, na alteridade. Uma alteridade Transcendental que
possibilita a liberdade existencial do Homem, nascida da relação de Deus diante
da sua criação, em especial do ser humano, criado à Sua imagem. É ter a
possibilidade de reconhecer no outro a condição para minha existência. É a partir
do diálogo estabelecido entre Deus e o Homem, na liberdade desse encontro, que
a alteridade encontrou lugar para dar sentido à sua existência diante da realização
do Homem. Nesse sentido, aquela idéia de dependência em relação a Deus,
sustentada pela racionalidade dos não-cristãos, pode estar superada, pois a
alteridade transcendental originou o exercício da liberdade humana, como
realidade a ser construída existencialmente.
A partir desse momento, daremos continuidade ao estudo sobre a
alteridade entre os Homens, até chegar à alteridade de Deus, a teológica, intenção
central do desenvolvimento dessa reflexão sobre o ser humano na formulação de
sua identidade cristã.
De antemão, lembramos a pergunta de Moisés ao Senhor, sobre sua
apresentação, caso o povo lhe perguntasse sobre o seu nome. Deus responde, de
forma a não só reconhecê-Lo pelo nome, “eu sou quem sou”, mas também pelo
valor que terá na vida daquele povo. A Sagrada Escritura guarda a forma como
Deus se revelou: apresentando-se nominalmente e se dispondo a permanecer entre
os Homens, protegendo-os e amando-os. Na verdade, Gesché, ao exemplificar no
livro do Êxodo uma original alteridade dada ao ser humano, traz uma reflexão
54
bastante atual, a dúvida sobre Deus, não mais na existência, mas no significado de
sua presença na vida do ser humano. Há uma relação construtiva ou destrutiva
com a presença de Deus? Muito interessante reconhecer que essa indagação se faz
a partir da concreta existência do ser humano, como se Deus, presente na vida do
Homem, subtraísse parte dessa vida, reduzindo a sua capacidade de autonomia,
compreendida pela ciência como conquista das relações únicas entre os Homens.
O Homem histórico estaria ameaçado na sua existência dada pela modernidade,
caso permitisse a presença de Deus na sua vida. Viveria como ser alienado,
contrário à sua própria condição de sujeito histórico. Encontramos presente aqui a
força da característica moderna, a autonomia. Anteriormente foi demonstrado, na
construção da liberdade cristã, que Deus não anula, muito menos submete o ser
humano às suas vontades. Pelo contrário, a presença de Deus liberta o Homem da
escravidão de sua história que, muitas vezes, reduz a sua humanidade. É no
desvelamento de sua liberdade cristã que o ser humano oportuniza sua capacidade
de amar e desenvolver sua humanidade. Mas, deixemos um pouco de lado essa
concepção porque já a reconhecemos como realidade possível. Exploraremos a
defesa da autonomia do Homem a partir do elemento da alteridade que é
reconhecido pela antropologia como constitutivo da estrutura do ser humano. 76
Acreditamos já não ser possível abrir mão da alteridade como construtora
da identidade do ser humano. Na verdade, é parte constitutiva de sua identidade.
Na relação com o outro, o Homem emerge na sua estrutura humana, vê-se como
ser de existência. É diante do outro que o Homem torna-se reconhecido, portanto
identificável. O outro é aquele que nomeia, que traz para fora de si mesmo o
nomeado, fazendo-o existir como ser. Essa idéia da nomeação revela a
necessidade, não só do reconhecimento do Homem, mas de sua confirmação
diante do outro. Eu necessito da confiança do outro para seguir em frente, o outro
me coloca em movimento, me fornece a consciência de minha existência. É na
confiança demonstrada que esse movimento acontece, de forma dinâmica e
dialética, favorecendo uma consciência relacional, em que me percebo existindo a
partir do outro e vice-versa. Nasce uma consciência individual, de um
reconhecimento pessoal de identidade, e outra social, que promove a construção
da liberdade e da identidade desenvolvida no contexto histórico do ser humano. 77
76 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 45-50. 77 Ibid., p. 50 passim.
55
A consciência da identidade construída a partir do outro é o que também
possibilita construir a pertença a uma determinada cultura, a uma tradição, que
nos faz ser reconhecidos como seres históricos. Isso significa afirmar que a
identidade formada na alteridade remete sempre a um outro, terceiro, pois as
relações não se esgotam nelas mesmas, necessitam de um alcance maior fora da
própria relação imediata. Podemos chegar à reflexão que a construção da
identidade cristã assenta-se, como desenvolve Gesché, na antropologia, que vai
tratar a alteridade como construtora da autonomia, rejeitando a idéia de alienação.
“Diferentemente ocorre quando o outro se apresenta não como alienus, mas como alter. Este não se apresenta como adversário, mas como estando face a face, como terceiro, como testemunha. Ele é aquele que me nomeia, identifica, anuncia.”78
A alteridade promove uma integração das dimensões do ser humano,
tornando-o mais humano, possibilitando-o descobrir-se para além dele mesmo,
dispondo-o diante do Outro Terceiro, o Criador. A alteridade, então, se torna
reconhecida na sua maior expressão antropológica teológica. Torna-se uma
expressão de pleno reconhecimento de si a partir do Outro, assim como da
superação de suas limitações. Para o reconhecimento de si e a superação das
limitações acontecerem, muitas vezes, precisamos ser nomeados para oficialmente
sermos reconhecidos e então, existirmos individual e coletivamente na sociedade.
Esse reconhecimento é fundamental na construção da identidade, é o alteros que o
ser humano necessita para se construir existencialmente. A identidade cristã tem
seu terreno próprio na comunhão, que nasce da dinâmica da alteridade. Uma
dinâmica que revela a necessidade, que o Homem traz dentro de si, de ser
atendido nos seus anseios e desejos. A alteridade, nesse sentido, deve ser afirmada
como integração e crescimento do ser humano, uma relação que conduz o ser
numa direção mais elevada, possibilitando-o construir sua identidade cristã.79
Já podemos afirmar algo em resposta à indagação do Homem em procurar
saber se Deus representaria em sua vida uma anulação ou um crescimento. A
comunhão, manifestada e vivenciada como expressão natural da alteridade, nos
faz acreditar que a presença de Deus junto ao Homem é uma presença
emancipatória, de liberdade e crescimento. Se o outro me provoca reconhecimento
gratificante, o Outro maior, a quem reconheci a partir do próximo, que me
78 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 52. 79 Ibid., pp. 52-55.
56
projetou para além da relação, certamente me provocará um maior envolvimento
de integração e descobertas. É a realidade do infinito presente na finitude humana
que provoca uma grandeza misteriosa na existência da alma humana. “Esse outro
que se faz hóspede é aquele que, ao receber-me, permite-me receber-me.” 80
Diante de Deus o ser humano é reconhecido e apresentado como ser na sua vida.
Resta ao cristão encorajar-se diante do outro, disponibilizando-se a desvelar a sua
liberdade construída na alteridade intrínseca à própria liberdade. Na superação dos
medos, diante de Deus, é possível viver a experiência concreta do inefável, aquele
que provoca fascínio e temor, duas realidades que não se excluem, mas revelam o
mistério da relação entre Deus e o Homem, uma alteridade de comunhão.81 É
dentro desse dinamismo, o êxodo de si e o encontro com o Outro, que cresce e se
promove a possibilidade da realidade da fé. O Homem que rejeita seu próprio
êxodo está confinado à sua morte, pois fechado em si mesmo só pode sucumbir à
existência. Ao contrário do Homem que fez sua saída e encontrou, diante disso, a
razão de sua existência.
“O Terceiro faz explodir a tautologia. Arranca-me de alienação em mim mesmo, que é, talvez, ainda mais perniciosa do que alienação externa. Alienação interna, em que me precipito, afundo-me, perco-me em mim mesmo e por mim mesmo, daí então totalmente perdido.”82
Na citação acima percebemos, talvez, a razão pela qual o Homem não
excluiu de vez Deus de suas relações. Porque viu em Deus a radicalidade da
autonomia do Homem. Isso o homem cristão vem mostrando na afirmação de sua
identidade: Deus é o fundamento de nossa autonomia, do exercício de nossa
liberdade, que na alteridade nos faz poder existir. O Gênesis, lembrado pelo autor,
descreve essa radical presença da alteridade como fundamento da existência do
ser humano, quando Deus afirma que não é bom que o homem esteja só, limitado
em si mesmo, muito menos fechado na relação entre si. Dessa forma, em Deus
encontramos a nossa salvação comunitária, coletiva, ou seja, a liberdade de não
nos perdermos em relações solitárias, sem rumo e sentido para além do próprio
grupo. Essa reflexão nos sinaliza pensar sobre as comunidades cristãs, que têm o
papel mediador de desvelar a liberdade como perspectiva de garantir e legitimar a
80 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 53. 81 Ibid., pp. 55-59. 82 Ibid., p. 59.
57
presença de Deus na vida dos Homens. Deixemos para o capítulo seguinte essa
reflexão que merece maior aprofundamento.
Vimos que, no dinamismo da construção da identidade cristã, o
movimento do êxodo, estabelecido no diálogo entre o ser humano e Deus, nos
oferece a possibilidade da realidade da fé. Uma realidade que nasce da dinâmica
da alteridade. Abordamos anteriormente essa realidade como resposta do Homem
ao Deus que convoca e interpela. Resposta que nasce da confiança entre os
Homens e dos Homens com Deus. Uma confiança criada nas relações geradas
pela necessidade da existência do Homem. O ser humano se faz existir na
descoberta de sua liberdade transcendental, calcada na alteridade. O ato da fé
encontra-se intimamente presente na dinâmica da alteridade, pois representa, na
relação, atitudes de confiança no próprio Homem, que se descobre como sujeito, e
no outro, em quem deposita a confiança de se fazer existir como sujeito de fé.
Portanto, podemos afirmar com Gesché que “a alteridade, presente no ato da fé, é
constitutiva de nós próprios e de nosso avanço na aventura da existência”83, de
uma existência construída na identidade cristã. O autor explora o desdobramento
da palavra fé nas suas dimensões profanas, fora do contexto religioso, para que o
leitor compreenda que existe naturalmente uma confiança fundante, que
possibilita a sobrevivência dos Homens entre si, caso contrário, implodiriam
dentro de seus próprios labirintos. Lembra-nos da passagem de Jesus, que diz:
“aquele que procurar ganhar sua vida, com suas próprias forças, a perderá, e
aquele que perdê-la ganhará” (Lc 17, 33). Aqui entendemos o perder como
colocar-se diante do outro disponível, numa mútua relação de confiança. Na
verdade, é esse Outro que sustenta as relações entre os Homens, pois, como já foi
dito, os Homens, fechados em si mesmos, correriam o risco da contínua projeção
pessoal, de um ciclo vicioso sem saídas. Terminariam numa redução e numa perda
de suas identidades. 84
A alteridade tem, nessas condições, sua existência na afirmação de Deus.
Afirmar Deus não seria, portanto, nenhum absurdo, compreendendo que o
Homem fechado e reduzido à sua própria relação correria o risco de se perder
como sujeito criativo, transformador de sua realidade existencial. É Deus que
permite, nas relações, a continuidade da alteridade, de não fazer do outro um
83 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 63. 84 Ibid., pp. 60-63.
58
instrumento de manipulação, de projeções pessoais, muitas vezes não conscientes,
mas reais. Encontro Nele a alteridade de comunhão, de integração, aquela que
oferece a construção de uma identidade cristã possível de ser visibilizada e
afirmada socialmente. O outro, próximo, passa a ser mais que essencial e
fundamental, também desejado, pois a minha existência necessita de sua presença,
de sua visitação, para que o eu possa ser cada vez mais eu nas relações que
estabelece com os demais. O outro deixa de ser instrumento ou um acaso na vida
da pessoa para se tornar uma necessidade, um bem inesgotável de crescimento da
própria identidade e da fé, que se alimenta dessa presença próxima e de Deus. A
alteridade só pode ser entendida assim: na comunhão com o outro, que faz de cada
ser humano um ser amado e desejado, pelos Homens e por Deus. Somos criados à
sua Imagem e Semelhança, o que significa que podemos sempre recorrer a Deus,
solicitando auxílio, quando somos ignorados e humilhados em nossa identidade e
existência.85 Assim define o autor, a partir do Gênesis, quando expressa que toda a
grandeza do ser humano vem de Deus e por Ele é garantida, portanto, ninguém
tem o direito de retirar do Homem suas capacidades e desejos, aquilo que atesta
sua existência, a identidade, mais propriamente a identidade cristã, na nossa
perspectiva.
“Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento; eu vos dou tudo isto como vos dei a erva verde. Eu pedirei conta de vosso sangue, por causa de vossas almas, a todo animal; e ao homem que matar o seu irmão, pedirei conta da alma do homem. Todo aquele que derramar o sangue humano, terá o seu próprio sangue derramado, porque Deus fez o homem à sua imagem” (Gn 9,3.5-6)
Existe uma dialética presente em toda a compreensão da alteridade: a
afirmação que o homem faz de Deus o faz pela autorização dada por Deus,
quando, na sua nomeação, o fez existir. O Homem é nomeado para existir e, dessa
forma, convocado a continuar, na sua relação, a existir. É na alteridade, portanto,
que o ser humano constrói com responsabilidade a sua liberdade, pois, ao se
dispor diante do outro, o faz se responsabilizando por si mesmo e pelo outro, a
quem deve a construção de sua identidade, e, por último à realização na relação
com Deus. Então, podemos entender que a autonomia proclamada pelo Homem
tem possibilidade de existir, verdadeiramente, na relação com Deus. Uma
construção livre e responsável, que faz seu movimento de saída da heteronomia
85 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 54 passim.
59
para a autonomia.86 Assim, com coragem, podemos afirmar sobre Deus que, ao
contrário dos que proclamaram a destruição do Homem diante Dele, somos
engrandecidos em nossas capacidades humanas, elevados em nossa existência à
uma vida digna na liberdade comprometida com o outro, que representa o Homem
na sua individualidade e na sua coletividade. Somos chamados a viver em
comunhão e não na solidão dos grupos humanos. Essa é a razão da existência da
identidade cristã: ser vivida na relação, sempre construída na radical alteridade do
Outro, que faz mediação concreta no próximo, o outro imediato.
É a partir dessa radicalidade que queremos acentuar a ação contínua de
Deus, nos fazendo existir, ainda como criaturas criadas, dia-a-dia. Reconhecemos
no ato da criação o dom da liberdade, que nos colocou no movimento dinâmico da
construção da nossa identidade cristã. Deus, ao criar o ser humano, fazendo-o
existir, colocou-se diante de sua criação, possibilitando, na alteridade, a relação do
seu amor Trinitário. Deus nos colocou no caminho de sua existência, mostrou-nos,
através do Filho, como viver esse amor revelado na história dos homens. A
resposta do Homem a Deus, na fé, é a resposta a si mesmo como ser humano, pois
nos compreendemos a partir de nossa identidade. Deus se revela para confirmar o
seu sim à existência do Homem. Deus se faz Homem na história do Homem,
efetivando a máxima revelação da alteridade, afirmando-nos “que a teonomia é o
fundamento último da autonomia.”87 Deus se despoja, assume a condição limitada
do corpo humano, da dor, do sofrimento, dos desejos, da liberdade condicionada.
Mas, no seu serviço ao outro, na sua radical alteridade compreendeu a missão e
foi obediente até a morte. Por todo desprendimento em relação ao outro, não foi
anulado, mas elevado e lhe foi “conferido o Nome que está acima de todos os
nomes” (Fl 2,9). Ao Homem foi certificado sua identidade, cristã, pautada na
prática do amor-serviço, um amor de gratuidade e disponibilidade, lugar de
sentido para a o desenvolvimento da verdadeira autonomia vivida por Jesus Cristo,
uma autonomia construída na alteridade da comunhão dos Homens e de Deus.
“O nome que pedia Moisés é dado em sua plenitude, aí onde há ‘abandono’, nessa plenitude ‘abandonada’, da qual nós todos recebemos, (cf. Jo 1,16), pela qual somos e na qual encontramos ‘movimento e ser’(cf. At 17,28).”88
86 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 69-71. 87 Ibid., cf. pp. 65-67. 88 Ibid., p. 69.
60
Buscando uma síntese para o tema, podemos recorrer à raiz da identidade
cristã, ao Deus que se revelou, esvaziando-se do seu poder divino e preenchendo-
se de humanidade. O que representa para o Homem a revelação de um Deus
preenchido de humanidade? Um Deus que, ao criar o Homem, concedendo-lhe o
dom da liberdade, relacionou-se com ele e, junto com ele, caminhou pelas mesmas
estradas humanas, construindo e desvelando a existência da liberdade cristã.
Portanto, esse Deus, cristão, não aniquilou o Homem, mas o elevou quando o Pai
o elevou após sua morte na cruz. A alteridade pode, portanto, ser dita e
proclamada como uma realidade de sentido, onde através do outro e de Deus, o
Homem pode desejar e construir o seu destino último voltado para esse Deus,
revelado Criador e Salvador. O Deus que, ao criar, salvou-nos da angústia da
prisão de nossas almas, da morte diante da ausência da alteridade que nos faz
reconhecer no diferente a nossa própria existência.
2.4 O Mal
“Ouvi os gemidos dos filhos de Israel que os egípcios estão oprimindo e lembrei-me da minha aliança” (Ex 6,5)
Tendo já enfrentado o desafio de falar dos elementos fundantes da criação
do ser humano, a liberdade e a alteridade, na perspectiva da construção da
identidade cristã, abraçaremos, agora, a questão mais inquietante para o Homem e
para a racionalidade moderna, o mal. Desejamos, antes do seu desenvolvimento,
reafirmar a defesa de Deus como real existência de libertação do ser humano. Esse
aspecto teve seu lugar desenvolvido nas páginas anteriores, quando abordamos os
sentidos da liberdade e da alteridade como construtoras da existência histórica do
Homem a partir da criação de Deus e de sua identidade cristã. A importância
dessa afirmação será compreendida no desenrolar do tema, pois falaremos sobre o
mal na perspectiva antropológica e da teologia, ou seja, na relação do Homem
com Deus, na forma como essa relação se processa na história.
O mal sempre foi uma questão pensada como algo que o próprio Homem
não deseja aceitar, sobre o qual está sempre se indagando e buscando respostas. A
modernidade se encarregou de acentuar essa busca e de procurar suas respostas a
61
partir da secularização. E Deus vai ser tratado pelos não crentes como uma
possível resposta à questão do mal, indagações que proporcionarão um horizonte
de desafios aos crentes que desejam defender sua existência diante de um Deus
revelado (histórico). Um Deus que se deparou com os sofrimentos do Homem
quando se fez Homem. Portanto, também um sofredor, solidário com aqueles que
choram, com os pobres, os perseguidos, com todos acometidos por algum mal. O
próprio Jesus, no seu sofrimento, se coloca diante de Deus e indaga o porquê do
mal, pedindo pelo seu afastamento.
2.4.1 Diferentes configurações do problema do mal
Gesché fará a abordagem do tema a partir da relação do Homem com Deus,
de como foi construída pelos crentes e não crentes essa compreensão da existência
do mal na realidade do ser humano. A perspectiva do autor, como sempre tem
sido, é aceitar o desafio de colocar a teologia ao lado da razão, utilizando-se dela
para não fugir ao desafio de desvelar o autêntico Deus da tradição judaico-cristã.
Dessa forma, o autor percorrerá um caminho que nos trará cinco configurações do
problema do mal e do Homem em relação a Deus.89 A primeira, em que o Homem
se dispõe contra Deus, este se evidencia no ateísmo; uma segunda, em que os
crentes argumentam a defesa de Deus; uma terceira, em que o mal é colocado
como possibilidade de ser algo de preocupação por parte de Deus. Como veremos
mais a diante, acusar ou defender Deus, diz o autor, revela uma “preocupação
maior com Deus do que com o mal e com o homem”90, e não traz solução para o
Homem. A quarta, em que, a partir da compreensão que o mal seja uma questão
para Deus, a legitimidade de, diante Dele, falar e indagar, “meu Deus, meu Deus,
porque me abandonastes?” (Mt 27, 46). O Homem, então, dialoga com Deus,
colocando-se em direta relação com Ele na questão do mal. A quinta configuração,
por fim, traz a culminância de que a questão do mal é questão de Deus. Vai
ocorrer uma inversão: o Homem, diante de Deus, percebe que a questão é dada
pelo próprio Deus. É Deus mesmo que se rebela contra o mal quando percebe essa 89 GESCHÉ, A., O Mal, cf. pp. 14-34. 90 Ibid., p. 21.
62
adversidade no caminho da realização do seu plano de salvação. Vê-se, então, a
necessidade de se combater o mal como algo que não pertence à sua realidade
criada. É Deus que toma a iniciativa desse combate. O Homem assume junto a
Deus a luta pela derrota do mal. É o que Gesché denomina, na compreensão desse
combate, o mal como questão de Deus.
A argumentação de que há uma responsabilidade de Deus diante do mal é
muito comum de ser ouvida, pois é uma acusação simples, mas, pautada na
racionalidade e, aparentemente, difícil de ser defendida, porque coloca a reflexão
a partir de um Deus fora do Homem, o Deus que os ateus proclamaram tutelar a
vida do Homem. Porém, a argumentação favorece a idéia de que Deus está
presente no raciocínio, pois acusar ou afirmar a sua não existência nos leva à idéia
de que algo só pode ser negado porque se fez existir. Gesché, a partir dessa crítica
vai trabalhar a acusação com o raciocínio de que esta é feita a partir de uma idéia
de Deus e não da existência de Deus, porque, se assim fosse, haveria uma
contradição dentro do próprio ateísmo, que nega a existência de Deus.91 Mas a
reflexão proposta vai mais além do que a imagem que se tenha de Deus na luta
pelo entendimento do mal. A grande contribuição desse debate está em aceitar “o
direito do homem de expressar, mesmo de maneira chocante e além dos limites,
de maneira ilógica, o escândalo do mal, gritando o mais forte que puder.” 92
Esse grito nos consola, pois o Homem se nega a aceitar o mal como realidade.
Portanto, é mais um grito de revolta contra o mal do que, na verdade, contra Deus.
Um olhar de humildade, atitude necessária ao diálogo com as ciências, faria ao
cristão um bem enorme, pois permitiria reconhecer nessa luta, também, as suas
próprias lutas e dúvidas. Reconhecemos que seria muito mais fácil falar de Deus
sem a realidade do mal, que, além de nos questionar nos interpela para dar
respostas que não nos sentimos preparados racionalmente para lidar com esse
mistério.
Essa contestação deve, portanto, ser considerada como favorável à nossa
percepção cristã de Deus: um Deus que permite o sofrimento não é o Deus cristão.
Portanto, gritamos, aliados aos ateus, contra esse mal que destrói o ser humano. O
ponto de partida para os não crentes é o mesmo dos cristãos: como falar de Deus
diante de uma realidade tão desumana? Podemos, então, afirmar que essa
91 GESCHÉ, A., O Mal, p. 14 passim. 92 Ibid., p. 16.
63
acusação possibilitou, para o crente, o desafio de seguir mais a fundo nessa
reflexão, de buscar, autenticamente, uma resposta dada pela teologia. Mais uma
possibilidade na defesa da teologia como ciência. A oportunidade de falar sobre
algo que foi dito por outro olhar que não o teológico, por isso, enfraquecido em
argumentos. E a teologia vai, justamente, ocupar esse lugar, preenchendo o que
não foi dito, sob o olhar teológico. Faremos, mais adiante, a teologia falar, sempre
na voz de Gesché.
Por outro lado, diante das acusações, uma vasta realidade de defesa de
Deus diante do mal aparece como reação às investidas dos ateus contra Deus. É
uma defesa válida, mas não suficiente, pois todas as argumentações conhecidas
não consideram a responsabilidade de Deus no processo do mal, principalmente
quando recorremos àquela sobre o respeito à liberdade que Deus nos dá, por isso a
“permissão da existência do mal”.93 O autor vai propor uma sincera reflexão
sobre esses argumentos, indagando se não contribuem para “fechar a questão em
seu impasse, em vez de abri-la para a esperança que no mesmo instante parecia
prometer.” 94 Muito interessante essa abordagem, pois nos questiona, como
cristãos, a rever os argumentos que recorremos, sem pensar muito, para defender
Deus contra as acusações do mal trazidas pelos não crentes. Muitas vezes, de
forma rápida e impensada, refutamos uma idéia que venha do não crente, por se
mostrar contrária a Deus, e não nos damos conta de sua contribuição no
desvelamento do Deus humano que proclamamos na fé. Como tamém para
defendê-Lo, com muita razão, pois reconhecemos o Deus criador na nossa
salvação e não damos conta de que apenas trocamos os lados. Um recusa e o outro
defende, mas ambos mantêm, como diz Gesché, Deus fora do Homem,
esquecendo de lhe dar o verdadeiro sentido de sua existência. Aqui o mal fica sem
nenhuma solução, pois a questão do mal permanece fora de Deus na medida em
que a abordagem do mal torna-se uma interrogação sobre Deus. Não há
implicação de Deus na questão do mal nessa via de argumentação.
A esperança que essa defesa poderia ter suscitado, como nos fala o autor,
ficou fechada em si mesma, sem a possibilidade de se perceber sequer o grito que
se ouvia na acusação dos não crentes. Sem dúvida alguma, o cristão fez a defesa
de Deus com muita habilidade apologética, mas correu o risco de se limitar à
93 GESCHÉ, A., O Mal, p.17 passim. 94 Ibid., p. 18.
64
própria questão de Deus, como aconteceu, pois, na ansiedade pela defesa,
esqueceu-se de recorrer à tradição bíblica, que nos fala de um Deus que ouve o
grito de seu povo. A citação do livro do Êxodo, feita no início desse tema, nos
relata o desespero do povo que, ao sentir-se abandonado por Deus, clama por sua
intervenção. E Deus não somente ouve como responde ao clamor do povo.
“O discurso sobre Deus e o mal não pode impedir o grito que o homem dirige a Deus, manifestando, aliás, maior confiança do que talvez demonstre aquele que quer muito depressa sufocar o clamor.” 95
Reconhecemos que na defesa de Deus contra o mal fica a desejar um
aprofundamento do envolvimento de Deus na questão. Voltamos ao dilema: se
acusar seria mais fácil ou defender mais difícil, diante da realidade dessacralizada
do mundo contemporâneo? Não há intenção em responder a essa indagação,
apenas de reconhecer que o mundo hodierno, colocando Deus à margem do
Homem, colocou-o à margem de seus problemas, configurando uma idéia
extrínseca da relação do Homem com Deus. Parece contraditório afirmar que,
mesmo sem Deus, o Homem continuou com Deus, porque nunca deixou de se
questionar como Homem na relação com Deus quando, por exemplo, continuou
buscando respostas às questões incompreensíveis, como o próprio mal. Na
verdade, falou-se mais de Deus do que do próprio Homem durante a tentativa de
esclarecer o mal. Mesmo os cristãos, quando abordavam a defesa de Deus,
falavam de Deus e não deles com Deus, do Deus para o Homem como se encontra
na narrativa da tradição judaico-cristã. Diz Gesché que o Homem expressou mais
o Deus em si (Deus da filosofia) do que o Deus para nós (Deus da fé). O autor
provoca uma radical reflexão quando convoca o crente a pensar em Deus crendo e
não num Deus não crendo. Isso significa colocar todas as questões humanas
dentro de Deus, compreender que falamos de nossa humanidade quando queremos
falar de nossas questões com Deus.96 É permitir que a alteridade, já tão trabalhada,
seja plenamente exercitada na liberdade cristã. Só a partir dela podemos nos fazer
livres para lutar contra toda escravidão, principalmente a do mal, que nos esvazia
de forças e esperanças. Na alteridade, na relação com o Tu, Deus, passa a ser
incluído no problema do mal. Deus mesmo não buscou se excluir dos nossos
problemas, pois, ao se revelar como homem, assumiu a limitação de sua condição
95 GESCHÉ, A., O Mal, p. 20. 96 Ibid., pp. 20-23.
65
humana, do sofrimento e do mal. Foi humilhado e viveu a realidade da morte,
descendo à mansão dos mortos. Deus, como diz o autor, “não procurou ser
poupado”.97
Compreendendo o mal vinculado a Deus, a teologia dá um passo a mais na
sua afirmação junto às demais ciências, pois envolve o Homem numa relação
intrínseca com Deus, tratando o tema a partir do enfoque antropológico da
teologia. Destaca, no debate sobre o mal, a presença do Homem e de Deus numa
contínua relação de salvação. A teologia deve explicitar a preocupação de Deus
com os problemas do Homem, um Deus que, na perspectiva da fé cristã, nunca
abandonou sua criação, pelo contrário, salvando permanece criando e
possibilitando ao Homem criar na sua existência. Essa compreensão exige
reconhecer um Deus histórico, por isso, preocupado com os problemas do Homem.
Um Deus que, ao criar, desfatalizou a história, pois concedeu ao ser humano todas
as condições para recriar a criação, o que significa colaborar na sua salvação.
Ainda pensando em Deus na relação do mal com o Homem, Gesché vai
continuar a exigir um mergulho mais profundo: sabendo que Deus se coloca
dentro da questão, como o Homem pode e deve se colocar diante de Deus?
Primeiramente, a atitude de falar, de poder, diante de Deus, expressar o
que lhe aflige, já traduz uma nova relação. O Homem fala dele, de seus problemas,
reconhecendo como sendo um problema também de Deus, diferentemente do ateu,
que também colocava o problema em Deus, mas sem o diálogo, dirigindo-se a
Deus numa relação de fora do processo, como se Deus não pertencesse à realidade
do homem. Essa é uma grande diferença para os cristãos que continuaram sua
busca em compreender o mal com Deus. Afinal, não teríamos muita saída, pois o
mundo atual exige respostas e os cristãos não podem se ausentar dessa
responsabilidade histórica diante de Deus, sob o risco de serem infiéis ao projeto
salvífico de Deus.98 Então, é preciso gritar, junto com os não crentes, contra o
mal, mas crendo em Deus, provocando e ocupando o debate necessário para a
teologia atuar no seu lugar próprio. Como diz Gesché, “essa lógica do crente
poderia, aliás, ter um alcance incalculável no debate com os ateus.”99 Muitas
vezes nos recolhemos diante da racionalidade dos ateus. É necessário ousar
97 GESCHÉ, A., O Mal, cf. p. 22. 98 Ibid., pp. 25-28. 99 Ibid., p. 27.
66
aceitando o desafio da razão, que, em última instância, é sustentada por Deus.
Portanto, não há o que temer. Reconhecendo a profundidade desse compromisso,
o autor nos alerta a tomar o devido cuidado para que não ouçamos da parte de
Deus o “por que você me abandonou?” Dessa forma, chegamos ao desfecho da
busca de compreender a questão do mal no processo da relação do Homem com
Deus. 100
O cristão, ao dialogar com Deus sobre o mal, ao poder gritar e lutar, se
depara com uma extraordinária situação teológica: antes dele mesmo, a primeira
preocupação em combater o mal é de Deus. A realidade da fé se dá plenamente
nessa compreensão, há uma integração ativa entre a vida do Homem e Deus. Aqui
a teologia tem o seu lugar para preencher o vazio deixado na argumentação dos
ateus contra Deus. É necessário e urgente que seja assumido esse lugar, a teo-
lógica, a lógica da fé, pois assim criamos a oportunidade para avançar no debate
com as ciências.
A tradição judaico-cristã atesta que a primeira preocupação com o mal
veio da parte de Deus. Algumas passagens bíblicas poderiam confirmar a reação
de Deus e até a sua indignação diante do mal, quando expressa sua aflição com a
maldade existente na sua criação (Gn 6, 6-7). Das citações bíblicas podemos
trazer como evidenciadora dessa realidade o grito de Jesus na cruz e a descida à
mansão dos mortos. O Filho de Deus grita por nós e conosco, diante de Deus e, no
confronto com esse mal, na luta contra o mal, Deus se manifesta, na Ressurreição,
vitorioso diante da morte. “A questão do homem torna-se uma questão que pode
muito bem ser chamada de divina”.101 A compreensão dessa perspectiva teológica
só é possível dentro de uma experiência de fé. O cristão deve caminhar para
assumir seu crescimento de fé, aceitando os desafios da razão, que lhe são
impostos pelas necessidades de justificar e defender sua existência cristã. Portanto,
a questão do mal não pode ser considerada, nessa perspectiva, como algo simples.
Exige seriedade e fidelidade ao projeto de Deus. É reconhecer o projeto de criação
de Deus como projeto de salvação da criação. Não existem duas realidades, a
histórica e a de Deus, a realidade é única e integrada, feita por Deus e para Deus.
Dessa forma, podemos afirmar, com o autor, “que é a minha luta que Deus trava
100 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 24-26. 101 Ibid., p. 31.
67
e é a luta de Deus que eu travo”.102 O Deus do cristão é um Deus que o Homem
conheceu na luta de sua história. Portanto, um Deus que nunca se ausentou dos
conflitos humanos. Pelo contrário, lutou com o Homem e abriu caminhos na
superação do mal. Junto com os Homens tornou-se vítima do mal, mas venceu e
trouxe a certeza e a esperança de que é possível a destruição do mal.
Buscando finalizar este item, seria coerente reforçar a importância do
aprofundamento dessa perspectiva, pois percebemos que todas as questões
pertinentes ao Homem são, em última instância, questões de Deus. Portanto, todos
os nossos apelos podem e devem se dirigir a Deus. A teologia deve sustentar,
antes de tudo, essa defesa de Deus em relação ao Homem, antes mesmo do
próprio Homem tomar para si a defesa de seus problemas. Nesse sentido, Gesché
reforça a oração como uma ação que deve ser pedida, pois é inspiradora para a
teologia. “A oração é uma con-fiança, o pedido para que a desgraça seja
compartilhada”.103
2.4.2 Possibilidades de solução para o problema do mal
Após as diferentes abordagens que o autor propôs para pensar sobre o mal,
reconhecemos que o grande salto não foi em dar solução para o mal, pois este
permaneceu sem resposta. Não há como, racionalmente, responder ao mal, porque
este pertence ao campo da irracionalidade. Mas é possível tentar pensá-lo na
perspectiva teológica, a partir de Deus, do Deus cristão. Sem querer limitar a
reflexão à idéia da justificação da liberdade permitida, a “teoria da permissão do
mal”,104 Gesché buscou caminhar na direção de um pensamento mais profundo,
colocando a questão em Deus. Uma tentativa de fazer a teologia ocupar o seu
lugar, o que vem sempre sendo sinalizado no seu pensamento, oferecer um
instrumento aos crentes que os torne reconhecidos e legitimados junto às ciências.
Por exemplo, no aspecto antropológico, pensar o mal teologicamente trouxe uma
rica contribuição: o Homem reconhecer que não está sozinho no combate contra o
102 GESCHÉ, A., O Mal, p. 33. 103 Ibid., p. 33. 104 Ibid., p. 34.
68
mal, não correndo o risco de cair nas armadilhas de uma culpa sem fim, podendo
dividir com Deus o peso da existência do mal.
Na verdade, o autor propõe que o Deus salvador possa ser compreendido
não apenas a partir do tratado da Cristologia, que aborda a relação de Deus com o
mal através do comportamento visível de Jesus Cristo na história. “É preciso
fazer isso desde o início e situar esse movimento em Deus como pertencente desde
sempre e ontologicamente à sua definição”.105 É compreender a salvação como
realidade absoluta de Deus, não havendo nenhuma possibilidade de algo no
mundo não ser alcançado pela ação salvadora de Deus. Isso significa que a
teologia, para enfrentar o mal, necessita afirmar Deus, pois é em Deus, seu objeto
de existência, que pode ser compreendido e combatido radicalmente a existência
do mal, tão irracional à nossa racionalidade.
Esta é a proposta de Gesché para esse tema: pensar teologicamente sobre o
mal. Esse será o caminho que seguiremos, acompanhados pelo autor. Primeiro
abordando o teológico e, depois, pensando de que forma a doutrina do pecado
original contribuiu para a culpabilidade do mal, atribuída ao Homem do ocidente,
mas também a verdade libertadora contida na narrativa bíblica do pecado.
Seguiremos, então, a idéia-chave do autor de pensar o mal dentro de uma
visão mais teológica, o que requer compreender o mal como uma questão de Deus.
Ocupar a teologia com esse tema traz, como já dito, um novo olhar, o da lógica da
fé, para algo considerado diante do mundo como inexplicável, irracional, portanto
injustificável. Vimos o quanto foi motivo de busca para compreender o mal
recorrer a acusações e defesas de Deus. Nesse momento a teologia toma para si o
desafio de enfrentar o mal como um enigma, dado como realidade presente.
O trabalho desenvolverá uma trajetória que possa oferecer ao leitor uma
compreensão crescente dos elementos que se encontram envolvidos no tema do
mal. Logo de início, nos deparamos com a “surpresa de Deus diante do mal”106,
como nos diz Gesché. Uma surpresa que confirma a idéia do mal não pertencer
aos planos de Deus. A tentativa do autor é trabalhar o aspecto da surpresa como
uma leitura do não-dito da narrativa, mas presente por outros ditos. Não há uma
preocupação em descrever as soluções já dadas sobre o texto, mas sim em se ater
a um primeiro sentido, provocado pelo texto diante do contexto da própria
105 GESCHÉ, A., O Mal, p. 39. 106 Ibid., p. 43.
69
narrativa. E o mal se encontra como algo não previsto, porém vindo de algum
lugar, desconhecido ou não, fazendo-se presente como um fato. Aqui temos o
primeiro deslocamento que o autor sinaliza como mudança de paradigma para o
enfrentamento do mal: estando fora do plano da criação, o mal não se encontra
nem do lado de Deus e nem do Homem. 107 “O Senhor disse à mulher: ‘por que
fizeste isso?’ – ‘A serpente enganou-me, – respondeu ela – e eu comi’.” (Gn 3, 13)
Essa reflexão, a partir da narrativa bíblica, já nos deve provocar uma visão
transformadora sobre a existência do mal. Toca-nos de modo muito especial a
proposta do autor em desvincular o mal da natureza humana e acentuar a
perplexidade de Deus diante dele, quando docemente faz a indagação a Eva sobre
o que havia feito. A culpabilidade, a responsabilidade e a liberdade, presentes na
doutrina do pecado original, e muito conhecidos pela maneira que foram
trabalhados na história do cristianismo, às vezes de forma absolutizadas, serão
tratados dentro dessa nova visão teológica com novos deslocamentos, essenciais
para o enfrentamento teológico do mal.
Este primeiro e importante deslocamento, que se encontra no fato de o mal
ser considerado fora da criação, mobiliza Deus e o Homem a procurarem saída
para esse combate, pois existe a responsabilidade de salvar a situação e a pessoa
do enredamento do mal. Não há uma culpabilização direta, porque, se houvesse, o
mal não estaria fora do Homem, como reflete o autor. É esse entendimento que
colabora para ativar a reação do Homem contra o mal. É o que Gesché chama de
responsabilidade ativa. A possibilidade do Homem não ser julgado e culpado
prematuramente ajuda a compreender a raiz da salvação no plano de Deus: ajudar
a vítima e não acusar, de forma tão rápida, a ponto de condená-la, sem
possibilidade de sua salvação. Veremos mais à frente, que existe sim um
consentimento que torna o Homem responsável pelo ato, o que permitiu ser
compreendido como uma culpabilização de fato, e que não é de todo ruim, mas
corremos o risco de, ao absolutizar o culpado na condenação, retirar do Homem a
possibilidade de reagir e de ser salvo. Na verdade, a culpa foi um recurso para a
tentativa de explicar uma situação inexplicável, muito mais fácil, como diz
Gesché, do que aceitar o elemento da surpresa do fato, que é um elemento
teológico. Sabemos que receber a absoluta culpa pelo mal poderia provocar no
107 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 42-44.
70
Homem uma reação desanimadora, passiva, de enfraquecimento. Nesse caso,
teríamos o Homem derrotado pelo mal, subjugado e condenado a uma
subjetividade fechada.108
Se o mal é reconhecido como uma surpresa, a teologia vai enfrentá-lo no
campo da irracionalidade, ou seja, da idéia de que teve uma origem, que não vem
de Deus, mas de um outro lugar, fora da ação criadora de Deus, por isso
impossível de ser racionalmente justificável. Esse mal desvia o Homem da origem
do destino para o qual foi criado: Deus. Dessa forma, podemos abordar o mal
como um desvio de destino, uma desorientação do ser humano. Gesché define
essa realidade como demoníaca, um termo nomeado teologicamente como mal,
sendo dito como tal para designar o estatuto do mal, uma ordem que não abarca
racionalidade alguma e nem apologias, por isso afeta o sentido dado ao Homem
na sua criação. Afeta, no entanto, diretamente o destino do Homem. “Essa
qualificação inaugural do mal não é simplesmente de ordem ética, mas de ordem
de destino.” 109
Ainda dentro desse aspecto do mal, como algo não constitutivo do ser
humano, podemos abordar a importância que foi dada, na cultura do ocidente, em
se preocupar muito mais em encontrar culpados do que atender às vítimas. Gesché
relembra que o Evangelho traz a preocupação muito maior com a vítima do que
com o culpado. Essa leitura foi muito acentuada, com certeza, como forma de
racionalizar o incompreendido, pois encontrar um culpado amenizava a
irracionalidade do mal e, aparentemente, facilitava o seu enfrentamento. A
teologia, sob este novo olhar, convida a deslocar a preocupação acentuada pelo
culpado para o lugar da vítima como possibilidade de salvação. Como trata o
autor, a preocupação deve ser com a derrota do mal, mais do que com a
condenação. Não que esta não seja uma mediação para a salvação, mas que não
representa o lugar absoluto da luta contra o mal. Assim fez Jesus quando atuou,
devolvendo à Samaritana à sua dignidade de vida. A sua vida havia sido atingida,
na sua existência, pelo mal. Objetivamente o seu destino estava comprometido.
Jesus, sem se preocupar com a culpa, oferece a salvação, destruindo o mal com a
única força capaz de derrotá-lo: o amor de Deus. Se fizermos uma leitura do
Evangelho, perceberemos nas atitudes de Jesus esse ensinamento, inclusive nas
108 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 43-46. 109 Ibid., p. 49.
71
Bem-aventuranças, onde proclamou o sentido do Reino de Deus. A preocupação
é com a realidade objetiva do mal, que pode estar alojado na pessoa ou na
condição social e econômica da sociedade, mas em qualquer dos casos é lá que se
encontram as vítimas.110
Reconhecemos no mal um fato objetivo, que não sendo parte da criação,
também não é parte constitutiva do ser humano. Mas identificamos, a partir do
mal, o pecado, que tem seu lugar no consentimento do Homem à ação efetiva do
mal. O pecado nasce do consentimento do mal, da tentação que caracteriza a
fragilidade humana. Uma fragilidade que deve ser considerada com muito carinho
para que o ser humano tenha consciência de sua vulnerabilidade diante da
realidade do mundo. É nessa fraqueza humana que o mal se aloja e se transfigura
na aparência do belo, capaz de seduzir e comprometer o Homem. O cuidado se
deve, principalmente, porque o resultado do pecado é mais reconhecido nas
conseqüências objetivas do que naquela “subjetividade inicial” descrita na
narrativa bíblica sobre o pecado original. 111 Gesché aborda o tema com
profundidade quando se trata de defender o ser humano e dar à teologia a
oportunidade de se pronunciar. O autor destaca que a culpabilidade não vem na
origem primeira do ato do Homem, ou seja, ao Homem cabe, sim, a culpa, mais
pelo consentir do que ter originado esse mal. A protoculpabilidade, diz o autor,
pertence à serpente.
“Há deuteroculpabilidade que consiste, naquele que foi surpreendido, vítima (da tentação), em ter consentido no mal, em ter aceito que essa ‘ordem’ demoníaca tomem o lugar da ordem divina. O que é certamente grave (e sobretudo em seus resultados), mas que mostra que o pecado não é uma perversidade verdadeiramente imanente ao homem.” 112
Podemos, então, confirmar, na perspectiva de Gesché, que o Homem não
criou o mal, mas consentiu a realização do mal, permitiu a realidade do pecado.
Isso é muito importante, pois essa culpa o Homem pode carregar sem, contudo,
tomá-la como absoluta, pois reconhece sua responsabilidade no momento do seu
consentimento. Mais. Podendo reconhecer o pecado e a sua culpa como um
segundo momento da realidade do mal, ele tem a possibilidade de lutar de frente
contra o mal. O mal se encontra à frente e não dentro dele. Isso permite o combate
ao mal e o perdão do mal cometido. Nessa perspectiva, a salvação volta a ter seu 110 GESCHÉ, A., O Mal, p. 49 passim. 111 Ibid., p. 50. 112 Ibid., p. 51.
72
sentido absoluto na vida do Homem, pois lhe devolve a possibilidade de se abrir
em direção ao próximo e ao Terceiro, retomando, dessa forma, a destinação última
de sua vida, desviada com o pecado. O Homem, na verdade, volta a viver o
exercício de sua liberdade. Ele é libertado das correntes de seus próprios pecados.
O Homem, criado para a liberdade, ficou condicionado pelo seu pecado. Por isso
precisa da libertação para o pleno exercício dessa liberdade.
A fragilidade do ser humano permite compreender a ação sedutora do mal
e evidencia, sem dúvida, a existência de uma relativa culpabilidade do Homem em
relação ao mal. Toda sedução leva ao estranhamento do próprio Homem. A
sedução arranca do Homem a possibilidade de construir seus próprios desejos,
introjetando-lhe um desejo que não lhe pertence, o do outro, o que Gesché vai
denominar de alienação inconsciente. 113 Aqui se instala a raiz do mal,
imperceptível aos olhos do Homem, que desorienta seu caminho, provocando o
desvio de destinação. A Bíblia denomina esse mal que arranca o Homem do seu
destino como a sedução, o pai da mentira, como nos fala o evangelho de João.
“Vós tendes como pai o demônio, e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele era homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira.” (Jo 8,44)
Essa realidade da tentação e da sedução não deve retirar do Homem a
culpabilização do ato, pois o seu consentimento fez dessa realidade a existência do
mal. Deve, portanto, servir para amenizar a absolutização da culpa e permitir uma
luta mais transparente contra o mal.
Falamos já que a teologia, a partir da leitura judaico-cristã, reforça e
defende a salvação das vítimas mais do que uma absolutização da acusação do
culpado. Isso não significa que essa leitura abdique de uma mediação legítima de
responsabilidade do culpado pelo mal que causou. Mas reforçamos a idéia central
de Gesché, para quem o primeiro movimento deve se dirigir às vítimas, inclusive
ao culpado, também vítima de sua própria realidade, condenada, no contexto, ao
rompimento de sua destinação. No capítulo seguinte teremos a oportunidade de
abordar esse tema, com suas conseqüências práticas na vida do cristão e da Igreja,
sempre na leitura do ser humano de Gesché e da teologia, que propõe pensar Deus
hoje.
113 GESCHÉ, A., O Mal, p. 55 passim.
73
Seguindo na reflexão do autor, assumindo para si a questão do mal, a
teologia trabalhou, primeiramente, no desvelamneto da surpresa de Deus diante do
mal. Ainda com o apoio da narrativa bíblica, que permitiu reconhecer a
perplexidade de Deus com o mal, nos orientaremos para um enfrentamento mais
decisivo da elaboração dessa luta com o mistério do mal: trata-se do depoimento
do próprio Deus contra o mal. Nesse caso, a teologia torna-se instrumento
fundamental na estruturação do pensamento de Gesché. Inicialmente, a
necessidade de desfazer o entendimento da questão do mal a partir da sua
moralização para, a seguir, colocar o mal, mistério, dentro da sistemática da
teologia. Ou seja, dar-lhe o lugar que lhe cabe para o mal ser assumido como tema
da teologia dogmática.
O mal, ao ser desenvolvido no seu aspecto de culpabilização, trouxe
conseqüências positivas e negativas à realidade do Homem. Sem dúvida, quando
associada ao aspecto da responsabilidade, define a riqueza do entendimento da
criação de um Deus que desfataliza a história do Homem. O Homem é capacitado
a transformar a criação salvífica de Deus, reagindo a tudo que é contrário à
salvação. Ou seja, quando há culpabilização relacionada à responsabilidade há
possibilidade de reação. Essa reação é positiva, pois cria, também, condições de
desfatalizar a presença do mal. Seria o agir não moralizante do mal, aquele que
permite enxergar o problema do mal como destinação mais do que na ordem
moral. Na perspectiva do autor, não há dúvida da importância da abordagem
moral do mal, pois deu ao Homem possibilidades de descobrir-se em processo de
transformação, sujeito atuante e construtor de sua existência. O risco é quando a
moral se transforma em moralismos de culpabilidade, culpabilização e justificação,
que são moralizações exclusivas, portanto não colaboram para superação do
mal.114
O mal não se limita à intenção de realizá-lo como ato. Ele, quando se torna
concreto, extrapola seus próprios limites, provocando resultados que fogem do
alcance do Homem, tornando-o independente da ação direta do próprio Homem. É
o caso do mal desgraça, do mal trágico. É o mal em processo de encadeamento do
próprio mal. Por isso, um aspecto negativo seria, como diz Gesché, “pensar que a
culpabilidade ocupa todo lugar do mal”. 115 Isso nos conduziria a conceber uma
114 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 59-63. 115 Ibid., p. 59.
74
visão moralizante sobre o mal. Na perspectiva do autor, podemos conceber a
responsabilidade sobre o mal de forma indireta, retirando, então, essa abordagem
moralizante de culpabilidade que imobiliza, muitas vezes, a luta contra o mal.
Sabemos, porém, que essa visão pertence à tradição da teologia. Talvez, por isso,
a facilidade de propor sua integração à teologia dogmática. Essa atitude da
responsabilidade sobre o mal, mesmo não atuando como agente direto, culpado ou
vítima, possibilita ao Homem de fé desenvolver uma nova relação entre os
Homens, de solidariedade, e contribuir no debate sobre o mal, testemunhando sua
luta contra essa misteriosa força que desfigura o ser humano diante de Deus.
Um segundo aspecto negativo se encontra em outro extremo, o de se
perceber com excessiva culpa diante do mal, o que conduziria a um imobilismo
fatal. O Homem, diante da acusação e da consciência pesada pela culpa, não
encontraria sustância na luta contra o mal. Facilmente se entregaria à sua derrota,
dando a vitória à perpetuação do mal. Essa atitude moralista torna-se um
agravante quando procuramos o culpado dentro de nós mesmos. O autor, na sua
aguda reflexão, exige que reconheçamos o peso escravizante destruidor da culpa
na vida do Homem. É destruidora de sentidos. O ocidente, na tradição religiosa,
pautou essa realidade na busca pelos culpados, e vimos as conseqüências dessa
acentuada culpabilidade.116 Agora, a teologia oferece ao cristão uma revisão no
foco de sua abordagem: recuperar, a partir da narrativa bíblica, o acento na vítima.
Mais, des-moralizar o mal, concebendo-lhe como um problema objetivo, de
destinação. Fugir do peso da tradição que permitiu ao Homem responsabilizar-se
de forma absoluta por sua culpa diante do mal.117 Gesché nos lembra que a moral
sexual sofreu graves distorções e rendeu acusações aos cristãos pela forma
obsessiva com que fora abordado na história da Igreja. Lembra o risco de outro
extremo atual, a obsessão pela justiça diante dos sofrimentos deixados pela guerra,
assim como pela exclusão de um sistema global. Toda mediação é fundamental na
busca pela superação do mal. O problema está em não reduzir o mal à
culpablização absoluta, pois, como já foi dito, esvazia a força da luta contra o mal,
destrói esperanças e imobiliza a libertação do Homem na sua salvação.
Uma última abordagem negativa é a tentativa de justificar o mal
inexplicável, o mal desgraça, aquele que não se encontra razão porque não é
116 GESCHÉ, A., O Mal, p. 61. 117 Ibid., pp. 59-61.
75
culpável para se fazer entendido. A teologia tratou como o mal de castigo. Na
verdade essa abordagem dificulta bastante, na perspectiva de Gesché, a luta contra
o mal, pois estabelece uma passividade do Homem diante da realidade, assim
como colabora na construção de uma mentalidade fatalista, de um ato de justiça
divina. O que pretende o autor é tratar a desmoralização do mal dentro do seu
lugar próprio: “situá-la de forma correta, não a colocando como único lugar da
tragédia e da estratégia do mal”.118
Compreendemos, então, a proposta do autor em reintegrar o mal na
teologia dogmática, a partir da superação da visão limitada do mal e do pecado
como problemas de consciência. Reconhecemos que a teologia não deixou de lado
o pecado da rejeição a Deus como uma questão de destinação do Homem, apenas
se ocupou com a moral de forma acentuada. Dessa forma, toda apresentação da
relação de Deus com o Homem ficou comprometida moralmente: o Homem, no
aspecto moralizante do pecado e do mal diante de sua consciência carregada pela
culpa; e Deus, desconhecido para o Homem diante da luta contra o mal.
Reconduzimos, então, a questão do mal ao lugar pretendido por Gesché, ao trazer
Deus para a questão. Tratar o mal inserido na teologia dogmática numa nova
relação entre Deus e o Homem.
O deslocamento é proposto a partir do esforço de desmoralizar o mal para
reintegrá-lo na dogmática.119 Esse esforço permite algumas boas reflexões sobre o
tema. Primeiramente, em superar a ofensa a Deus no discurso da justificação,
colocando Deus mesmo dentro da luta contra o mal. Deus rejeita e repugna o mal
e, na sua oferta de amor e salvação, assume a centralidade diante da criação no
combate pela destruição do mal. Deus coloca-se como radical adversário do mal.
Também, em segundo lugar, Deus, ao agir na sua e em nossa defesa, nos mostra a
figura irracional e temível do mal, o demônio, aquele que seduz e desvia o
Homem do seu destino, aquele que permite ao Homem reconhecer uma culpa
parcial, quando permite sua ação, e não absoluta. A figura do mal, portanto, não
pertence ao Homem e muito menos a Deus, pois algo tão demoníaco não faz parte
da criação salvífica de Deus. É fundamental insistir nessa afirmação, pois é isso
que nos cria condição do combate, da reação, de identificar e nomear o mal
colocando-o como algo extrínseco à realidade criada.
118 GESCHÉ, A., O Mal, p. 63. 119 Ibid., p. 69 passim.
76
Gesché nos recorda que na tradição judaico-cristã o demônio sedutor
utiliza um recurso que possibilita reconhecer o mal como algo objetivo e não
meramente subjetivo, corroborando a idéia da responsabilidade e não da
culpabilidade absoluta do Homem. O demônio se prevalece da promessa do Deus
cristão em partilhar com o Homem a vida divina. Na criação, o Homem foi feito à
sua Imagem e Semelhança, uma promessa já oferecida. Gesché destaca justamente
a malícia do demônio, por isso mesmo perverso, em oferecer um outro caminho, o
do mal, da sedução, o pecado, para chegar até Deus.120 A narrativa deixa claro, na
dúvida proclamada pela serpente, que Deus não cumpriria o prometido. Provoca,
seduzindo e gerando a incerteza, de que o caminho possível e seguro é o desejo do
Homem. Na verdade, não o do Homem, mas o da serpente, que introduz o seu
desejo no Homem, tornando-o um desejo alienado, por isso mesmo, inconsciente.
Como diz o autor, “...de nos fazer crer que o pecado é o meio de ter acesso ao
bem. É exatamente assim que o pecado nos faz mal, ele nos afasta de nossas
metas.”121 Por isso, o mal desvia o Homem do seu destino, seduz a um caminho
diferente do proposto por Deus.
Nessa perspectiva, o mal dogmatizado pela teologia permite vê-lo em toda
sua dimensão e alcance, o que significa afirmar que não há limite na atuação do
mal. Torna-se elemento estruturante da realidade histórica. Ou seja, abrange o
pessoal, o social, o econômico, enfim a existência do Homem. Diz Gesché, com
muita convicção, que a justiça passa a ser um imperativo na luta contra todas as
injustiças, uma necessidade da libertação do pecado que aliena o Homem de sua
condição real humano-divina. O mal entrou como erro de destinação do Homem,
de sua vocação. Essa é a contribuição que a teologia deu ao recolocar o mal dentro
da dogmática, pois deu oportunidade de percebê-lo na raiz do contra-destino do
Homem, assim como reconhecer em Deus o primeiro aliado na luta pela libertação
do Homem, acolhendo a salvação oferecida por Ele. Diante disso, o cristão tem o
compromisso de desmascarar essa realidade, rejeitando a leitura moralista do mal
e a mera atitude sentimentalista diante da salvação. A salvação requer uma
profunda e sincera análise da origem e repercussão do mal a partir da teologia. A
salvação acontece na mediação dessa história, enredada pelo amor de Deus e da
ação diabólica do mal. A luta parte do amor de Deus contra o mal. Portanto,
120 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 65-67. 121 Ibid., p. 68.
77
compreender o amor como constitutivo da existência do Homem na construção de
sua relação histórica e do seu destino.122 Ser humano, alma, corpo e destino
devem pertencer a uma única realidade de existência na luta contra o mal. Dessa
forma, qualquer mal que desvia o Homem de seu destino divino deve ser
combatido, pois, mais do que algo moral, torna-se, como diz Gesché, um erro de
destinação. Daí, a compreensão do termo perdição, que traz a idéia central da falta
de rumo, onde o Homem, sem saída, cai nas armadilhas de uma existência
reducionista, por isso fechada no próprio indivíduo. Nessa realidade, o mal faz
habitação e estende seus tentáculos na estrutura social. Essa é a razão da
necessidade urgente da luta contra o mal por mediações, como a justiça, que tem
alcance nas estruturas da sociedade. A justiça e a caridade são dois elementos
destacados por Gesché para mediar a luta contra o mal.
Procurando cada vez mais compreender a perspectiva cristã como caminho
no enfrentamento e na superação do mal, indicaremos definitivamente a relação
teológica estabelecida entre a salvação e o mal como realidade dada
existencialmente. Vimos que o mal age como perdição do ser humano, o que
conduz às conseqüências de uma realidade existencial limitada. Podemos afirmar,
então, que o mal, nessa perspectiva, tem alcance existencial, ou seja, configura-se
de forma pessoal, apesar de surgir como realidade misteriosa, sem lugar real, sem
imanência, como afirma o autor. Sendo o mal uma realidade desordenada,
destruidora de sentidos, há a necessidade, então, na lógica da teologia, de uma
outra realidade para além do Homem, contrária à desorientação produzida pelo
mal. Uma realidade que o oriente para além de si mesmo, para horizontes maiores,
sentido o último de sua razão existencial. Nesse sentido, o autor fala de uma
alteridade, um Outro capaz do enfrentamento: Deus. Aqui definimos a presença da
teologia, capaz de falar de uma ação concreta de salvação.123 O mal configurando-
se na existência, utilizando-se de mediações para agir, molda uma concepção
pessoal de sua ação. E é a salvação que fala e exige da pessoa atos,
comprometimento criativo com a vida, transformador de sentido. Por isso a
teologia apresenta a salvação como única resposta de combate ao mal. Só a
salvação proposta por Cristo foi capaz de destruir o mal e dar ao Homem a
sustentação para sua luta pessoal e social contra a configuração desse mistério.
122 Ibid., pp. 68-70. 123 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 75-78.
78
Gesché dá a oportunidade aos crentes de explicitar com segurança que Deus luta,
impede que o mal saia vitorioso da realidade que o fez. Ao contrário da afirmação
dos não crentes, de que o mal representa uma objeção à realidade de Deus, é Deus
que faz barreira, objeção visível ao mal. Em Jesus Cristo Ressuscitado, Deus
derrotou e fortaleceu o Homem na sua luta contra o mal.124
“Somente esse Ab-soluto é de tal modo (completamente) inocente, isto é, des-ligado de toda cumplicidade, para poder vencer o mal. Talvez seja esse um dos sentidos profundos, ao lado de outros, é claro, do dogma de Cristo sem pecado. Essa exceção antropológica da cristologia não depende apenas de uma verdade hipostática e ontológica. Ela não possui todo o seu sentido se não houver o aspecto soteriológico. É por não ter nenhuma parte com o mal que Cristo pode assim, suportar e tirar esse peso do mundo. Não é precisamente por não ter pecado que ele pode, segundo São Paulo, ‘ser feito pecado por causa de nós’, tornar-se ele próprio maldição por nós’”. 125
Como o texto afirma, somente Deus seria capaz de derrotar o mal, porque
no Filho, feito homem histórico, pôde encarar e enfrentar esse mistério
personalizado no mal na história humana. Jesus, Deus pleno e homem pleno, sem
pecado, se faz pecado na luta contra o mal, deixando-nos o único caminho
possível para vencer a morte, a sua ação salvadora. O crente encontra na teologia
o fundamento do debate para defender sua fé em um Deus Salvador-Criador e
afirmar concretamente o significado central de sua fé: Jesus Cristo morreu para
salvar o Homem do pecado. Dessa forma, podemos falar com segurança do
sentido da responsabilidade e da liberdade construídas na história da existência do
Homem, porque é na ação concreta que Jesus propõe que o Homem possa se
reconhecer responsável e livre para dar sentido à sua existência. Vimos no
primeiro capítulo a abordagem antropológico-teológica que Gesché desenvolve
para falar do ser humano. É nessa perspectiva do Homem, criado criador, que o
cristão vai abordar o enfrentamento do mal diante da proposta da salvação.
Evidentemente, esta é a primeira defesa do cristão: falar da salvação como única
realidade radical contra o mal. Mas isso não basta, diante da história, onde o mal
se fez nomeado. É preciso mediações concretas, como Jesus sinalizou, construídas
pelo Homem na sua relação social. Até porque o mal também fez morada nessas
relações e Jesus salvou utilizando-se dessas mediações. Aqui o autor fala da ética
124 GESCHÉ, A., O Mal, p. 80 passim. 125 Ibid., p. 79.
79
e da moral, ou seja, dos elementos da justiça e da caridade, como uma mediação
purificadora da justa medida existente entre os Homens.126
O autor desdobra a reflexão dessas mediações mostrando algumas
conseqüências que nascem das suas próprias limitações. A justiça nasce, sabemos,
da necessidade de não se praticar a injustiça. Mas reconhecemos que, por si só,
não dá conta da luta contra o mal. É importante pelo limite que impõe à realização
do mal. Mas não basta, pois corremos o risco de absolutizar o culpado e limitar a
salvação à mediação histórica do próprio Homem. Jesus sinalizou esse risco na
relação da lei judaica, que considerava justos aqueles que cumpriam os preceitos
da lei. Aqui é necessária a vigilância. O critério da salvação ultrapassa o da justiça
humana. É fundamental e até essencial que se lute pela sua efetivação, mas com a
permanente indagação cristã: estamos mais preocupados em condenar o culpado
ou em salvar a vítima condenada? A justiça do Homem não é a justiça do Reino.
Todo cuidado se faz necessário ao assumir a razão teológica da luta contra o mal
diante das acusações dos não crentes de que Deus, permitindo o mal, tenha
oferecido o argumento de sua anulação.127
Portanto, para ser fiel à justiça de Deus, é importante fugir dos riscos de
uma moralização na luta contra o mal, tornando a mediação um instrumento
absoluto no combate ao mal. Essa realidade moralizante seria possível de
acontecer porque é simples crer que a justiça corrige o mal fazendo o bem. Mas
sabemos que o mal tem sua origem fora do alcance desse mundo e, por isso, só
outra realidade, transcendente, poderia dar conta de sua derrota. Mais. O bem não
se limita no seu próprio fim, portanto, como afirma Gesché, “a salvação não pode
ser conquistada com essa única medida.”128 Assim como a liberdade, a salvação
tem mediações a serem desenvolvidas e construídas como metas, cada uma com
lugar e sentido próprios. Fundamentais na relação humana com o outro, mas
ambas existindo para além do imediato, destinadas a um sentido maior, à
existência em Deus, que, na realidade, permite a construção da identidade cristã.
Para essa identidade ser desenvolvida, a caridade se destaca na relação de uma
ação justa, atenta aos critérios da não moralização.
126 GESCHÉ, A., O Mal, p. 82. 127 Ibid., pp. 82-85. 128 Ibid., p. 88.
80
Neste caso, o amor (caridade) é um elemento purificador das relações entre
os Homens. Foi o caminho sinalizado por Jesus na salvação, um gesto radical de
doação, de gratuidade, de paixão que levou Jesus Cristo à cruz. A radicalidade do
amor de Deus, na Encarnação e na cruz, permite Gesché defender, mais uma vez,
uma des-moralização da ação no combate ao mal. A caridade é o caminho de
Deus, não simplesmente um ato moral. Ao contrário, encontra-se numa lógica
diferente da ação moral: a lógica do excesso e de gratuidade, foge à lógica da
justiça dos Homens, que se limita a uma correção do mal.129 “O mal não clama
unicamente por vingança (é o olhar que se dirige ao culpado), ele clama
sobretudo por compaixão (é o olhar dirigido à vítima)”.130 Mais uma vez o autor
acentua a perspectiva cristã a partir do próprio Evangelho, que se preocupa mais
com a vítima do que com o culpado. São Paulo, no hino à caridade, confirma a
redução do Homem à sua finitude: “...se não tiver a caridade, de nada valeria!”
(1Cor 13, 3). Provavelmente, seria um Homem sem rumo, vulnerável à escravidão
do pecado. Radicalizando ainda mais o entendimento da prática da caridade
encontrada no Evangelho, vale recordar que é ato do amor ao outro, esquecido na
lembrança da memória que caracteriza o excesso, que não se reduz a um simples
ato de justiça, mas por um excesso de amor. São Mateus, no capítulo 25, confirma
a entrega sem medidas ao outro, o próximo. Portanto, poderíamos afirmar, sem
pudores, que a caridade, critério da salvação, não se limita apenas aos cristãos,
mas a todos os que se dispõem a realizar a justiça pela caridade, no amor vivido
de forma absoluta pelo outro. Aqui o absoluto tem lugar para existir. Porque foi
assim que conhecemos o caminho que Deus fez na história do Homem: amou com
absoluta humanidade o ser humano. Um absoluto que consome o Homem para
além dele mesmo, o ato de amor.
2.4.3 O pecado original e a culpa
Uma síntese para o tema seria a proposta que o autor faz de reinventar a
caridade, buscando os sentidos para sua realização. Esse seria o ato de salvação
cristã, de um Deus que ao permanecer criando, permanece oferecendo ao ser 129 GESCHÉ, A., O Mal, p. 86-88. 130 Ibid., p. 88.
81
humano atos criativos, atos de libertação. Estamos falando da Salvação que Cristo
ofereceu ao ser humano, portanto, da salvação cristã.
O esforço de Gesché, em desenvolver seu pensamento sobre o ser humano
e a construção de uma identidade cristã que seja legitimada teologicamente,
encontra-se fundamentada na Sagrada Escritura. É na narrativa bíblica da tradição
judaico-cristã que encontramos a revelação para respostas teológicas sobre a
existência do ser humano. Por isso, o autor alinhava aquele final da Escritura,
sobre a prática da caridade, como ação máxima da radical revelação do amor de
Deus. Revelação de salvação presente em toda a existência histórica de Jesus
Cristo. E, agora, finaliza a reflexão sobre o mal, retornando ao início de tudo, de
onde as acusações surgiram: o pecado original. Seguiremos nessa finalização
acentuando elementos importantes no reconhecimento do pensamento teológico
sobre o mal, assim como de todos os temas fundamentais que envolvem o Homem
na sua realidade histórica e que dizem respeito a Deus.
Temos, agora, a tarefa de afirmar e reconhecer a doutrina do pecado
original como uma verdade libertadora. Sabemos da dificuldade, diante de uma
leitura histórica do cristianismo que exagerou na acentuação do mal em relação à
culpabilidade. O exagero depositado no Homem gerou a absolutização dessa culpa
e desse mal sobre Deus e o Homem. Reconhecer isso nos ajuda a melhor situar a
verdade sobre a disseminação do mal. Por isso, não negamos o que foi construído,
mas desejamos anunciar o que verdadeiramente se encontra como proposta da
criação: a salvação do ser humano, a libertação do Homem de todas as culpas que
impedem de sua realização humana, de sua destinação.131
Essa compreensão necessita da primeira afirmação de que a mensagem
cristã de salvação é da salvação mesmo. Portanto, não pode ser entendida a partir
de uma falsa idéia de pecado. Não teria lógica, na perspectiva da salvação, essa
idéia gratuita do mal. A idéia presente na narrativa, ao contrário, é de combate
radical contra a existência do mal. Há, na doutrina do pecado original, uma
verdade de salvação. Como diz Gesché, uma verdade e verdade de salvação.132
Recordando o que já abordamos sobre a existência do mal, a serpente deve ser
destacada simbolicamente como um elemento paradigmático do mal como
mistério, como algo de anterioridade, extrínseca à criação. Assim, teríamos algo
131 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 94-96. 132 Ibid., p. 95 passim.
82
para olhar e compreender, antes de responsabilizar Deus e o Homem diretamente
pelo mal.
Esta é a proposta: perceber o mal como algo dado, realidade
incompreensível, mas real. A teologia bíblica não pretende negar, nem justificar,
mas encarar a realidade do mal de frente, uma realidade que diz respeito a Deus e
ao Homem. É o cristão que deve assumir para si essa responsabilidade de desvelar
a origem do mal, desmoralizando a ação moral exagerada produzida pela Igreja
historicamente.
Confirmando o mal como realidade não criada, recorremos, mais uma vez,
à narrativa bíblica ao recordar que Deus mesmo condenou o mal com indignação:
“porque fizeste isso, serás maldita...” (Gn 3,14). O mal, então, não pertence à
natureza das coisas, deve ser compreendido como acidente, uma desgraça. Por
isso Deus assume o combate contra o mal, que só na Graça da salvação pode ser
derrotado e destruído, como foi vencido diante da morte de Jesus na cruz. Deus
ressuscita o Filho, vencendo a morte e salvando o Homem do pecado, da
possibilidade do ser humano sucumbir com o peso do pecado.
Destacamos, ainda, mais dois elementos importantes nessa sistematização
sobre o mal: a sedução e o castigo simbolizado no arcanjo na porta do paraíso.134
Vimos que a serpente, com a força simbólica de colocar o mal fora da criação, traz
a realidade da amenização da culpa do Homem. Se o mal antecede, o Homem não
pode ser culpado de todo o peso dessa responsabilidade. Mas a Bíblia não nega
que haja uma real responsabilidade do Homem na existência do mal. Aqui entra a
sedução como resposta a essa responsabilidade. Anteriormente já abordamos que
o desejo do outro, introjetado na pessoa, provoca o maior mal na raiz da história
do Homem: a alienação dos seus próprios desejos. Isso foi o que a serpente
desencadeou. Gesché reconhece, no elemento da tentação, o caráter libertador da
doutrina do pecado original, pois retira do Homem o peso absoluto de sua
culpabilidade. Libertador, porque o Homem, não carregando esse peso exagerado,
encontra forças para lutar contra o mal e não se deixa vencer pela fatalização que
ele provoca na vida do Homem. O Homem tem com quem dividir a sua culpa, que
não lhe isenta da responsabilidade do consentimento. Por isso, a teologia fala da
herança e transmissão, pois, apesar da incompreensão e da polêmica existente
134 GESCHÉ, A., O Mal, p. 100 passim.
83
sobre o seu significado, oferece o conforto de que você ao nascer já recebera esse
mundo de pecado, ou seja, algo já ocorrera que não tenha sido você unicamente o
responsável. O que lhe encoraja a participar da luta pela destruição do mal,
evitando sua colaboração na extensão desse pecado. É o que o autor destaca, à
frente, ao abordar a responsabilidade de solidariedade e de liberdade.135
Outro importante elemento é o castigo. A idéia do arcanjo na porta do
paraíso é uma concepção de que o Homem não será eternamente atormentado pela
culpa que, porque ele próprio se julga, torna-se mortal para ele. A
hiperculpabilização é provocada pelo julgamento que o Homem faz de si mesmo,
um julgamento que sozinho não teria um fim. O Homem precisa do outro para
esse fim, um outro que possa afirmar a absolvição. Por isso, tão sabiamente a
tradição judaico-cristã apresenta a figura do arcanjo, o outro, aquele “que põe fim
a um processo de destruição”.136 Podemos, dessa forma, anunciar que a tradição
bíblica faz do mal uma realidade dada, portanto, cultural, como afirma o autor. E,
sendo assim, para o Homem, de liberdade e de domínio. A verdade da
responsabilidade do Homem está dita e reconhecida pela tradição. Outros
discursos também afirmaram essa responsabilidade, cada um a seu modo. A
teologia fala, com o seu discurso, sem negar essa parte responsável que cabe ao
Homem, mas anunciando uma participação partilhada com uma realidade que não
lhe pertence, misteriosa aos olhos do mundo criado. A partir dessa visão, a
Sagrada Escritura oferece uma rica leitura de valor quando se refere, por exemplo,
à existência do mal das catástrofes naturais. Muitas vezes a responsabilidade vem
da ação dos Homens.137
Nesse sentido, a doutrina do pecado original sinaliza que a
responsabilidade é de solidariedade e de liberdade. Aqui retomamos o que foi dito
acima sobre a importância da herança e da transmissão, quando permite uma nova
leitura para a compreensão mais racional do pecado. Ao Homem foi transmitido
por herança. Portanto, ao receber torna-se responsável, mesmo sem desejá-lo. Ele
se vê inserido numa realidade que lhe foi dada sem participação direta. Mas agora,
de forma direta, se torna responsável por essa mesma realidade herdada, que será
por ele deixada como herança aos outros. Encontramos o pleno sentido da
135 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 101-103. 136 Ibid., p. 100. 137 Ibid., pp. 102-104.
84
liberdade responsável que Gesché trata dentro da doutrina do pecado original.
Compreendemos, dessa maneira, a riqueza dos elementos da tradição bíblica que a
teologia tem disponíveis para construção de um entendimento racional sobre a
relação de Deus e do homem de fé com o mal.
Buscando finalizar a relação estabelecida pela teologia no debate sobre o
mal, destacamos o que já está dito, tanto de forma explícita como implícita: a
doutrina do pecado original é uma doutrina da salvação. Este aspecto é de muita
significação para o debate sobre o mal e o pecado, porque nos colocará na direção
do nosso destino. A realidade da salvação dá ao Homem a condição de se
reconhecer livre, capaz de libertação. Essa concepção de que o mal, não sendo
parte do Homem, do seu ser, mas podendo levá-lo a não ser, nos remete à
possibilidade da salvação. O mal é atingível, há um domínio existente sobre o mal.
Podemos olhar para a doutrina do pecado original e perceber a abundância da
Graça de Deus.138 Existe, na doutrina, a presença intrínseca da salvação, nada
permanece fora do alcance da Graça de Deus. A Sagrada Escritura define, de
forma muito clara, o caráter salvífico ao tratar o tema do pecado na sua origem. Se
existe lugar originado, pode ser combatido, não pertence à ordem da destinação.
“Penso que, desse importante ponto de vista, não há nenhum traço, na tradição judaico-cristã, de ‘mal escatológico’, de ‘pecado escatológico’, mas somente de pecado original. Se o mal fosse uma grandeza escatológica, estaríamos destinados a ele. Mais uma vez, não haveria nada a fazer. (...) O mal, em princípio, não terá a última palavra.” 139
Essa compreensão consolida a idéia de que a responsabilidade e a carga da
culpabilidade relacionam-se e revelam ao Homem a sua capacidade de libertação,
à medida do grau do seu envolvimento e do amadurecimento, na luta contra o mal.
É uma relação adulta diante da falta. O tema já nos ofereceu essa compreensão
sadia de uma reconhecida culpabilidade. Isso faz um enorme bem ao ser humano.
O problema se encontra quando a culpabilidade se torna mórbida, como denomina
o autor, o Homem é tomado por um “culpabilismo permanente”, imobilizador de
qualquer ação libertadora. Essa condição é perversa diante do próprio indivíduo,
porém mais grave diante de Deus, pois a anulação do Homem ofende a criação. O
Homem se enreda numa aparente forma de combate, mas de fato imóvel diante de
uma ação efetiva de luta. Na verdade, o culpabilismo age numa superfície de
138 GESCHÉ, A., O Mal, p. 105 139 Ibid., p. 105.
85
tentativas que acomoda a consciência uma responsabilidade. Porém, não coloca a
meta do futuro transformador e exigente de ações no presente, o que desencadeia
frustrações e uma autodestruição constante.140
A tradição cristã tem no perdão o sentido norteador da retomada do destino
do ser humano. Vai permitir o recomeço do caminho, a continuidade na luta
contra o mal. Dessa forma, vai mais além, dá ao Homem a certeza da Graça de
Deus. A salvação é possível e não é o Homem quem o afirma. É Deus, quando
rejeita e impede a derrota do Homem pelo mal.141
Aproveitamos a citação bíblica de Mateus, trazida por Gesché, e
concluímos com a ponte entre o Antigo e o Novo Testamento, revelada como
surpreendente na abordagem sobre o debate do mal na história salvífica da
criação:“o que desligardes na terra será desligado no céu” (Mt 16,9). O esforço,
a partir do ponto seguinte, é aprofundar o entendimento da salvação, hoje, para
que o debate teológico tenha, cada vez mais, recursos no espaço da racionalidade
do mundo real. Seguimos com o entusiasmo do autor.
2.5 A Destinação
Após o estudo da abordagem teológica de Gesché, defendida como
solução para o problema do mal, conseguimos reconhecer, na existência histórica
do Homem, os elementos possíveis na luta contra o mal. Reconhecemos na
construção da identidade cristã a Sagrada Escritura como fonte reveladora da ação
salvífica de Deus, a partir do entendimento sobre a verdade salvadora contida na
doutrina do pecado original e, o amor de Deus, na ação libertadora de Jesus contra
o pecado. Enfim, podemos afirmar a possibilidade de uma nova relação entre o
Homem e Deus na luta pela derrota do mal, possibilitando ao Homem reencontrar
o seu destino: a plena realização humana. Essa realização que, antecipamos,
afirmamos representar a Salvação proposta pelo cristianismo como único caminho
de resposta ao mal configurado na existência histórica. Esse é o tema que
desenvolveremos, buscando dar os contornos finais à compreensão teológico-
140 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 105-108. 141 Ibid., p. 109.
86
antropológica que fundamenta a construção da identidade cristã, necessária ao
reconhecimento do Homem da fé no discurso das ciências.
Gesché não desvincula seu pensamento teológico sobre Deus e o ser
humano como existências separadas. Há uma intrínseca relação que não permite
falar de um sem a presença do outro. Deus criou, fez existir sua criação nesse
processo intrínseco e dialético que O une à sua criação através do elo da alteridade.
Vimos no início desse capítulo os elementos estruturantes do ser humano que
possibilitam fundamentar e inaugurar essa visão entre Deus e o Homem.
Propomos, neste tema sobre a destinação, fechando o capítulo, já embebidos e
plasmados pelo pensamento do autor, falar, simultaneamente, do ser humano e da
salvação de Deus. Assim como nos ensina Gesché, no próprio dinamismo de Deus
reconhecer o dinamismo do Homem em direção à sua destinação. Sem dúvida
alguma, essa relação precisa ser reconquistada na vida do Homem. Deus está lá, à
espera da abertura da porta. Não invade se não for pelas mãos do próprio Homem.
Por isso, insistimos na beleza dessa intrínseca relação, somente percebida quando
o Homem dá o sinal verde para Deus avançar. Uma citação bíblica, trazida por
Gesché, elucida essa compreensão: “eu estou à porta, e se me abrem, entro” (Ap
3,20). “Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém: não acordeis, não desperteis quem
eu amo antes de ele querer” (Ct 2,7).
Compreendemos, dessa forma, que Deus reconhece a necessidade do
desejo do Homem na mobilização de sua ação a favor de sua realização humana,
essencial para reencontrar sua destinação. Recorrendo à estrutura humana, Gesché
mergulha no âmago do Homem e faz indagações que, esclarecidas, conduzem à
sua realização, ou seja, à destinação em Deus. Primeiramente, há no Homem uma
busca que o faz ser reconhecido na sua identidade de ser humano, o seu próprio
destino, que pertence unicamente a ele como indivíduo, pessoa reconhecida.
Reconhece que a sua liberdade o faz construir ou destruir essa possibilidade.
Muito interessante o que o autor nos faz rever sobre a palavra destino. Ao
contrário do que o senso comum trabalha como anônimo ao homem, existe a
marca de sua ação na construção desse destino, pois é isto que permite seu
reconhecimento pessoal dentro da sua vida social, ou seja, comunitária. Aqui
identificamos uma busca pela superação da limitação do ser humano, pois, ao se
87
perceber capaz de fazer, se vê, também, agindo pelo outro e com o outro, que
colabora nessa construção final de sua identidade. Ou seja, a auto-transcendência
se torna necessária no processo dessa construção. O Homem se vê limitado pelas
condições de sua finitude e só consegue superá-las quando se abre numa mútua
relação com o outro. Essa reflexão sobre o destino nos leva para mais longe na
compreensão desse Homem que tem o desejo de ser reconhecido como ser. Diz
Gesché:
“...a idéia de que algo, de alguma forma, talvez nos seja proposto, oferecido, outro aspecto um tanto paradoxal, mas real da liberdade, e que é acolher algo que nos vem ‘de outro lugar’, de uma alteridade.”143
Essa idéia comporta a presença da realidade afetiva do ser humano. O
Homem é um ser de desejo, por isso receptivo às orientações externas que criam
os sonhos e a realidade sonhada. O Homem se percebe enredado na construção de
algo maior, que não se limita unicamente à sua pessoa, mas abrange um universo
que não chega a alcançar. É essa dimensão de abertura, que constitui o ser
humano, que o faz despertar em seus desejos e, que Deus espera acontecer para se
pronunciar. Na verdade, como afirma Gesché, a busca do Homem na construção
de seu destino revela uma mobilização em toda a sua existência, a sua realização
pessoal está comprometida em relação à realização pessoal do outro. Isso significa
dizer que o ser humano, necessariamente, se encontra voltado para dar sentido à
sua liberdade, à existência de sua vida. A teologia traz, aqui, a sua colaboração: o
sentido último que o Homem deve dar à sua existência. Cada vez mais
encontramos na teologia o fundamento para pensar Deus e o Homem na
perspectiva de uma recriação da identidade cristã.
Gesché continua nas suas indagações do ser humano sobre essa busca pela
construção de seu destino. Agora, recorre às conhecidas afirmações fatalistas,
corriqueiras, mas significativas, que contradizem sua afirmação sobre o desejo da
construção do destino do Homem. Por exemplo, sobre o próprio destino ser de
Deus, já determinado por Deus. O que impede o Homem de transpor alguns
obstáculos e de interpretá-los como fatalidade? Os obstáculos intransponíveis são
tratados, pelos Homens, como algo de ordem diferente às suas possibilidades
humanas. A predestinação, lembrada por Gesché, contribuiu na consolidação da
mentalidade fatalista, quando deu ao destino um lugar: Deus. Não temos, aqui, a
143 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 82.
88
pretensão de desdobrar essa concepção, apenas de recordar os efeitos que teve na
história do cristianismo, contribuindo para os medos e culpas diante dos
obstáculos (situação) incompreensíveis e difíceis de superação. Na busca de
responder essa indagação, Gesché considera três vias importantes: a de reconhecer
a atração que a fatalidade provoca no Homem; a vantagem de sua existência
diante da irracionalidade do efeito do mal; e a de enfrentar o fatalismo como dado
real na nossa formação existencial (histórica, cultural e psíquica), superando-o
quando possível.144
Segundo o autor, o Homem também traz dentro de si, por questões
históricas, circunstanciais à sua liberdade vivida, o desinteresse, a falta de
motivação e de desejo em responder a essa realidade apresentada. Por outro lado,
essa acomodação pode sabiamente reter energia necessária à superação do que
venha a ser fundamental na mudança da direção de sua existência. Nesse aspecto é
destacada pelo autor a contribuição que o cristianismo tem como valor para
oferecer: “entre o ser humano tal como deveria ser e o ser humano tal como é, há
espaço para o ser humano como pode ser.” 145 Nesse trecho, evidenciamos a
liberdade dada na criação do ser humano e respeitada na realidade do Homem. É,
justamente, a ação histórica do Homem que deve ser considerada na salvação
proposta pelo cristianismo. Teremos oportunidade, mais adiante, de aprofundar o
tema da salvação como processo de construção da liberdade do ser humano. A
dinâmica acontece na história do Homem, que é história da salvação.
Compreendemos, então, a terceira via indicada por Gesché: trabalhar os
condicionamentos, transformando-os em realidades possíveis, ou seja, reconhecer
a realidade como dada, objetivamente limitada por seus condicionamentos
histórico-culturais. Assim, os riscos do fatalismo histórico são reduzidos e as
chances do ser humano superar os obstáculos em direção à sua felicidade se
tornam maiores. Já podemos falar da salvação cristã como um processo de
liberdade atuante do Homem na sua situação histórica. A existência do ser
humano é tomada pelo dinamismo da salvação, que deve inseri-lo, sempre, na
construção de seu destino, desejo de reconhecer-se diante de si e do outro. Daí,
144 Cf GESCHÉ, A., O Sentido, pp.86-91. O autor trata das vias de forma a conduzir-nos a uma maior reflexão sobre as possibilidades da desfatalização proposta na tradição judaico-cristã. 145 Ibid., p. 89.
89
também, podemos falar na direção de sua destinação, o Outro, a quem o Homem
abriu a porta quando seu desejo foi despertado.
Essa compreensão da salvação como processo nos remete a uma indagação
mais profunda de Gesché, de que o ser humano deve ousar no excesso para
encontrar razões suficientes que despertem paixões e desejos por mudanças
concretas. O Homem só poderá exceder-se considerando a realidade e superando
as mediações imediatas que vêm como solução da própria realidade. Ou seja, o
Homem precisa ousar, ir além do que lhe é apresentado como solução. Sem se
esvair da realidade, encontrar respostas, novas formas de viver em liberdade sua
existência, que transcende à realidade condicionada. As mediações são
fundamentais como referências da realidade, mas insuficientes para uma
libertação mais profunda do ser humano, que dê o sentido último do seu destino
criado e construído. Nas palavras de Gesché, “um combate para a liberdade e
para a libertação requer práticas econômicas, políticas e técnicas. Não se
instaura o Reino chamando ‘Senhor, Senhor’”.146 Essa abordagem mais concreta
sobre a reflexão do ser humano em relação à sua existência cristã será discutida no
terceiro capítulo. Enfocaremos, no entanto, o excesso, porque é nele que o autor
sustenta a chave da estrutura antropológica do ser humano, a chave que possibilita
ao Homem criar consciência para agir, colaborando na sua salvação. É o excesso
que vai possibilitar a superação dos obstáculos “intransponíveis”. Gesché aborda,
nessa reflexão, a questão das finalidades, os sentidos que o ser humano precisa dar
às suas realizações, para encontrar o sentido último de sua destinação.147
É nessa perspectiva que o autor convoca o ser humano a se deixar tomar
pelo excesso da paixão, onde a razão cederia espaço à emoção e, juntas,
aflorariam a sensibilidade pelo belo, pela arte, que desvela o desejo de amar e a
capacidade de se doar. Dessa forma, o Homem estaria participando da descoberta
de uma nova lógica na sua realidade histórica, a dinâmica da gratuidade do amor.
A essa convocação, Gesché destaca a rica possibilidade que o cristianismo trouxe
para além da história. Reconhecemos a importância do processo histórico,
construído e transformado pelos Homens, mas rejeitamos a concepção limitada
dos projetos que, mesmo novos, a serem realizados, são dos Homens, portanto,
sempre limitados na sua apresentação. Nesse caso, da absolutização do projeto
146 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 92. 147 Ibid., pp. 92-97.
90
realizado, corre-se o risco de compreender o excesso como aplicação de um fim
atingível, realizável.
“Há insuficiência ‘ontológica’ da história em pretender satisfazer a esperança e a capacidade do ser humano, colocando-as nos limites de seu horizonte neste mundo. E cabe lembrar que a tradição cristã, ao mesmo tempo que é teologia da Encarnação e do tempo, sempre contou com sua escatologia.”148
Acreditamos que a citação nos esclarece quanto ao sentido maior do ser
humano como um ser de desejo, onde o lugar da história se torna inesgotável para
sua absoluta realização. Mesmo considerando uma sociedade que tenha atingido
uma realidade de justiça e igualdade, sempre haverá a necessidade do excesso, ou
seja, da prática do amor como garantia da realização humana. É essa necessidade
que alimenta a alteridade constitutiva do ser humano, o que faz dele um ser de
possibilidades além de suas limitações e esforços pessoais, um ser da auto-
transcendência. É nesse entendimento, teológico e antropológico, que o
cristianismo traz a novidade escatológica, com diz o texto, presente na ação de
Jesus, quando anuncia a chegada iminente do Reino de Deus. Deus fez do tempo
da história um tempo de esperança escatológica quando, na Encarnação, o
transcendente se fez imanente.
Gesché se propõe, ao fim de suas indagações sobre o destino que o
Homem vai construindo na sua existência, falar da teologia da destinação, melhor
definindo, da antropologia de destinação teologal. Na verdade, é a defesa pela
teologia como algo possível, por isso, seguro de ser vivenciado, pois já existe
como dado e ofertado nos escritos dos Evangelhos. O autor defende a
possibilidade do Homem aceitar uma destinação teologal como realidade a ser
aceita, vivenciada e defendida.149
Nessa perspectiva, retoma sua compreensão sobre o ser humano “visitado”,
que, como ser de alteridade, permite ir além de suas forças físicas e reconhecer-se
um ser de acolhimento de visitação, um ser capaz de se apaixonar e de se doar
sem limites.150 Um ser humano compreendido, como já estudamos, como um ser
de abertura, de diálogo, de receptividade, que, se não o fosse, estaria condenado à
sua finitude, num vazio de sentidos, portanto, um ser sem destino, perdido na falta
148 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 101. 149 Ibid., pp.102-106. 150 Ibid., p. 106.
91
de um rumo, um ser alienado. Aqui Gesché levanta a distinção entre alienação e
alteridade.
“Essa idéia de um dom que nos é oferecido, vindo de fora e com o qual nos encontramos, não deve ofender-nos. É preciso, também, acrescentar isto: se nada disso a que aspirávamos não nos fosse em parte oferecido, e de onde isso vem, perderíamos a coragem numa solidão espantosa. O amor não nos é oferecido e dado? Que nos tornaríamos se não recebêssemos nada?” 151
A alienação condena o ser humano à anulação, pois não permite que os
próprios desejos sejam despertados como seus. Não há construção e, sim,
apropriação do desejo de outro, relembrando o paradigma da serpente, que
introduz no Homem o seu desejo, alienando-o e desviando-o de sua destinação.
Ao contrário do dom recebido, que também vem de fora, mas provoca
perplexidade de algo novo, paixão, permitindo ao Homem construir, na alteridade,
a sua identidade, se reconhecendo como sujeito histórico, social e cultural. O autor
nos remete ao Evangelho de São João, na passagem da samaritana, em que Jesus
diz: “se conhecesses o Dom de Deus...” (Jo 4,10). Certamente, como a samaritana,
nos surpreenderíamos sempre diante do que nos é dado como Dom revelado.
Essa distinção se torna singular na construção da identidade cristã, pois
compreende a liberdade como um dom, oferecido por Deus na criação do Homem,
para que se constitua um ser de destinação, preocupado com os sentidos que dá à
sua existência. Na verdade, um ser que, no processo de suas descobertas, se
surpreende com as possibilidades criadas e oferecidas por Deus. É dentro dessa
compreensão antropológica, reforçada pelo autor no aspecto do excesso, da paixão,
do ser visitado, que é oferecido o dom da salvação. A destinação teologal tem sua
fundamentação nessa antropologia. Uma proposta pautada na liberdade, pois
como acabamos de dizer, o Homem é criado livremente para amar e participar do
amor de Deus. É dentro desse movimento que Deus respeita e espera pelo tempo
entre o anúncio e a resposta do Homem. Aqui falamos de outro aspecto da
destinação teologal, aquele já dito, que se encontra afirmado no Evangelho.152
Gesché sustenta que a destinação teologal já se encontra afirmada na
Sagrada Escritura como anúncio, independente de ser ou não fundamentada como
se exige de qualquer ciência. O anúncio, querigma, como é compreendido nos
escritos do Novo Testamento, se refere a um tempo de esperança escatológica.
151 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 108. 152 Ibid., pp. 104-106.
92
Jesus anuncia a promessa desse novo tempo, de “partilha da própria vida de Deus
num único destino.”153 A sua pessoa representa esse novo tempo inaugurado na
história do Homem, mas que não se limita ao tempo cronológico, pois a promessa
é de uma destinação teologal, de uma eternidade. Isso é fundamental no
entendimento dessa destinação afirmada no Evangelho, pois nos é dado, nesse
sentido, uma possibilidade real de uma existência destinada a Deus. O
cristianismo inaugura essa realidade de transição histórica e de eternidade, ou seja,
a eternidade irrompe na história da humanidade, unindo o destino do Homem à
eternidade como possibilidade de construção existencial.
A narrativa do Evangelho, afirmando e anunciando uma verdade, é uma
linguagem diferente da exigida pela ciência, que pede verificações e
comprovações. A linguagem bíblico-teológica tem como premissa a fé, que traz
como ponto de partida a afirmação do anúncio, indiferente à preocupação em
fornecer provas. Assim foi no anúncio da chegada do Salvador (Lc 2,11) e da
Ressurreição de Jesus Cristo (Mc 16,7). O Homem tem, entre este tempo
anunciado e a sua resposta de aceitação e verificação, a sua existência histórica
para ser vivida. Aqui, o autor caracteriza a destinação teologal como algo
oferecido e afirmado, portanto, possível de ser assumido como opção de
construção de um destino. Para que essa realidade seja visível em atitudes,
significativa em ações pautadas nos valores cristãos, é imprescindível reconhecer
a dimensão ética presente, não só nessa atitude humana, “mas também no próprio
seio da transcendência divina.”154.
O Deus de Jesus Cristo, o Deus cristão, é um Deus ético, irrompeu na
história, assumindo todas as exigências humanas, indo ao encontro do ser humano
com todas suas imperfeições, amando-o radicalmente até na cruz, e, quando
glorificado, também glorifica o ser humano. Portanto não podemos falar de um
Deus desencarnado, fora da história, pairando acima das dificuldades e
sofrimentos do Homem. A grande diferença do cristianismo é que o Deus cristão
encontra o ser humano e revela um destino para ser assumido em comunhão com
o Transcendente.155
153 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 104. 154 Ibid., p. 109. 155 Ibid., pp.109-111.
93
Acreditamos, junto com Gesché, que a destinação teologal contém uma
antropologia que evidencia uma vocação maior, sem anular nenhuma outra
dimensão do ser, a de ter sido criado para construir uma existência humano-divina.
Sem pretensão de significar uma divindade favorecida por um deus qualquer, mas
de assumir para si a mesma condição de Jesus Cristo, a do servo sofredor, que
viveu na maior expressão de amor e de paixão por todos os homens e mulheres.
“Deus não veio até nós para fazer alarde da grandeza de um Ab-soluto. Veio até nós, ‘sem ter ciúmes de sua divindade’ (Fl2,6), por amor ao ser humano: como um infinito de não-indiferença. O que talvez seja a mais bela definição de Deus. Deus começa descendo. “Quem sobe ao céu, se não aquele que primeiro desceu?’ (Jo 3,13)156
Parece-nos que, diante de tudo que foi dito, ainda mereça desdobramentos
a destinação defendida na perspectiva teologal como possibilidade de existência
humana. Aqui, acreditamos estar a centralidade que Gesché vem trabalhando pela
defesa da identidade cristã. O diferencial se encontra em crer que o Deus cristão
traz essa proposta de existência humana. Não um convite para ser vivido
individualmente, mas em comunhão com o Transcendente. Mais do que
reconhecer é assumir que esse Deus se revela na história e apenas na história pode
ser reconhecido, compreendido e defendido. Para isso, Gesché nos oferece os
subsídios teológicos e, com eles, procuramos reler, aprofundar e recriar novos
paradigmas necessários à nossa atuação como cristão. Nessa compreensão,
precisamos, ainda, desfazer algumas antigas imagens que comprometem a
compreensão da salvação oferecida como destinação teologal.
Primeiramente, a necessidade de desfazer a idéia da salvação diretamente
vinculada à do pecado. Saber identificar na palavra o significado fundante na vida
do ser humano, o de se sentir a caminho de realizações e de sua felicidade. O
autor vai recolocar a palavra dentro do seu sentido próprio que a teologia, bem ou
mal, sempre buscou falar: o fim do ser humano, a sua destinação. Assumindo essa
trajetória, Gesché explora os sentidos da palavra salvação que sugeriram, sempre,
indagações e dúvidas, por isso necessário revê-las para devolvê-las ao lugar de
origem. Do quê a salvação nos salva? Por quem somos salvos? Para quê e
baseados em quê? Indagações estruturantes para o pensamento do ser humano,
pois o coloca como ser de reflexão e de alteridade, diferenciando-o dos outros
seres criados. Nessas indagações podemos reconhecer presente no Homem a
156 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 111.
94
possibilidade de relação com o transcendente, porque é lá que ele vai buscar
respostas não encontradas na sua existência histórica. É, então, que a religião, o
pensamento teológico, ocupa o seu lugar, e com legitimação, pois vem responder
às próprias indagações do ser humano.157
“Eu vim para que tenham vida e tenham em abundância” (Jo 10,10). É
verdade que encontramos no Novo Testamento uma proposta clara de realização
humana, a partir da fé, do que se crê atingir como meta para o qual fomos criados.
A citação de São João confirma e convida o ser humano de fé a essa realidade de
plenitude. O cristão encontra essa mensagem positiva e real de vida, um convite à
sua realização plena em Jesus Cristo. Esta é a salvação contida na Sagrada
Escritura. Porém, sabemos que subsiste no imaginário do senso comum uma
contraposição entre salvação e pecado, associando-os de forma direta, como se
houvesse intenção dos cristãos, interessados na Evangelização, impor uma adesão
em troca da própria salvação. Encontramo-nos diante de uma resistência e
distorção do sentido da palavra salvação. O processo histórico do cristianismo
também não colaborou para a evolução da palavra, pois o seu sentido recebeu um
aspecto mais moralizante que acabou por acentuar a relação mais imediata com o
pecado. Esse processo tem começo quando o Homem, diante dos obstáculos que
impedem essa realização maior, não consegue transpô-los a fim de atingir a meta
para o qual fora criado, ser feliz e um ser humano realizado. Entendemos que todo
ser humano tem como meta sua realização e não, ao contrário, sua infelicidade.
Portanto, os Homens sempre lutarão pra encontrar a felicidade. A questão é como
e onde a encontrão. Na verdade, a luta pela superação das dificuldades para se
alcançar a felicidade é positiva. O problema se concentra quando se absolutiza
esse aspecto como questão-chave para a salvação, levando a uma oposição
excludente com o pecado. Gesché quer justamente recolocar a importância desse
mecanismo de defesa do Homem na luta pela sua realização no seu lugar de
origem, de estar em segundo plano, pois o primeiro é a finalidade de sua
realização humana. Lutar pela sua felicidade, superar os obstáculos da meta de
viver sua realização pessoal e social, faz parte de um momento da salvação, que
representa a sua plena realização. Portanto, não são momentos excludentes, mas
pertencentes a um mesmo processo, o da salvação. É nessa perspectiva que o autor
157 GESCHÉ, A., A Destinação, pp. 21-60.
95
defende a revisão da palavra e compreensão do sentido da salvação. À medida que
superamos os obstáculos, estamos vivenciando a salvação, pois nos libertamos do
que nos afasta de nossas realizações humanas. Colocamo-nos na dinâmica do
enfrentamento entre ser e não ser, ou seja, na defesa dos nossos desejos de
realizações, porque sem eles somos seres vulneráveis à desorientação, perdidos
em nossa própria identidade. Dessa forma, a salvação pode ser dada como parte
constitutiva do ser humano, pois se torna parte da existência humana o desejo pela
plena realização. Assim, passamos a compreender a salvação dentro do
dinamismo da história, identificando uma resposta positiva à primeira indagação
feita sobre de que somos salvos. 158
Reconhecendo o dinamismo da salvação como parte integrante da
existência do Homem, Gesché nos oferece uma ampla compreensão ao destacar os
obstáculos mais determinantes, que configuram o ser humano na luta pela
superação de suas dificuldades. A consciência da finitude na morte, o mal e a
fatalidade. Porém, paradoxalmente, são esses obstáculos que permitem ao Homem
construir sua identidade como sujeito histórico, ou seja, sua existência de vida. Do
mal, como já teve seu lugar de destaque na reflexão do autor, destacamos apenas a
idéia de que nos é possível combatê-lo, identificá-lo como algo que nos foi
imputado por alguma realidade não criada, mas dada a existir, porque foi, na
limitação humana, permitida.
De todos os obstáculos, a morte oferece o que a teologia tem como sua
legítima propriedade para abordar o tema da salvação no sentido teologal. Isso,
porque, mesmo sendo de difícil compreensão racional, a sociedade moderna
permitiu ao Homem reconhecer, nas lutas contra as doenças e a favor de uma vida
mais saudável, sua finitude como dado real e de fim.
“Ao lembrar-nos continuamente de nossa finitude, a perspectiva da morte nos permite dar à nossa vida um contorno histórico, que não lhe daríamos se vivêssemos na ilusão do infinito.”159
É essa consciência limitada de nossa história que nos possibilita falar do
que só a teologia pode: numa vida após a morte física. Essa realidade pertence à
dimensão da fé. Vislumbramos, nesse momento, o âmbito em que a identidade
cristã se encontra localizada e a importância do Homem de fé se apropriar dessa
158 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 23-25. 159 Ibid., p. 28.
96
realidade para uma legítima apresentação na sociedade atual. A salvação cristã
fala da morte como possibilidade de um novo sentido da vida. Porém, a morte, na
perspectiva cristã, não tem o sentido da existência do Homem. Pelo contrário, o
sentido é o da vida em abundância, como vimos no evangelho de João. “A morte
não constitui sua finalidade, não pertence ao desígnio de sua vinda ao mundo, ao
seu destino”.160 Esse é o sentido que vemos na abordagem de Gesché sobre a
limitação e abertura que a morte oferece como perspectiva na vida do ser humano.
A fatalidade é o outro obstáculo destacado como impedimento ao pleno
exercício da liberdade humana. Vimos, anteriormente, o sentido da palavra
destino, representado no senso comum como fatalidade, como algo que não
dependesse de suas próprias forças e possibilidades, pois tem um lugar que lhe
fora dado: Deus. Reconhecemos, nessa visão, algo de positivo, que o cristianismo
tem como mensagem, que é o acolhimento, o silêncio, diante de uma força maior,
do mistério que o Homem não alcança, e uma energia poupada para o possível
combate aos obstáculos quando for possível fazê-lo. Esse obstáculo apresenta,
portanto, uma tensão entre a não superação e a sua real possibilidade. O ser
humano deve se reconhecer condicionado por muitas fatalidades, umas de ordem
intransponíveis, como o físico, o biológico, o cultural, mas outras possíveis de
serem transformadas. Para isso, é importante relembrar que o cristianismo, na
doutrina da criação e do pecado original, inaugurou a desfatalização da história,
que traz ao ser humano a perspectiva de transformar e (re)criar a realidade criada
por Deus. O ser humano recebe, na criação o dom da liberdade, que constrói na
alteridade com o outro e com o Transcendente. Isso lhe confere a capacidade e a
possibilidade de intervenção na história, que recebeu e vai deixar como herança
para a humanidade. A salvação cristã, diante desse obstáculo, afirma que há a
possibilidade de mudança, de interferência, de reconstituição da dignidade do
Homem. A fatalidade deve ser denunciada para que a salvação possa ser
reconduzida ao pleno sentido da palavra, libertação de tudo que reduz as
possibilidades do Homem se realizar humanamente.161
Essa é a mensagem encontrada nos Evangelhos, que nos falam da ação
libertadora que Jesus promoveu nos homens e mulheres. Uma ação de salvação,
devolvendo ao ser humano as condições necessárias a uma vida plena e abundante,
160 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 29. 161 Ibid., pp. 30-34.
97
uma vida vivida na liberdade, para ser vivida na história, a partir da experiência de
cada ser humano. Como diz Gesché, é preciso recuperar a coragem de desfatalizar
a história, de se livrar do maior obstáculo que impede o ser humano de viver suas
realizações: o medo.
Essa defesa pelo esclarecimento do sentido da salvação é fundamental,
pois oferece a possibilidade de perceber no Jesus histórico a ação salvífica de
Deus. Abordar a salvação como superação de obstáculos e, com isso,
possibilidades de realização pessoal, torna o caminho da realização mais tangível,
em harmonia com o próprio desejo das pessoas. Mas, expressar que a salvação
acontece em Jesus Cristo torna esse caminho mais árduo para os cristãos.
Encontramos, aqui, outra indagação, surgida diante dos valores de uma sociedade
estruturada na autonomia do sujeito. A idéia de uma salvação independente do
próprio ser humano sugere uma contradição com o termo auto-nomia, em que o
sujeito é capaz de se fazer por si mesmo, bem como com a percepção do
historicismo, fica comprometida diante da ação de um ser transcendente.162
“Por quê? Exatamente porque toda idéia de que se possa recorrer a um outro além de si, sobretudo se se trata de Deus, apresenta-se como uma confissão – e uma confissão injustiçada – de fraqueza e de impotência. Sobretudo, como uma alienação, porque se não sou eu mesmo por mim mesmo, sou despojado de meu ser.”163
Na verdade, conhecemos essa realidade em que Deus é tomado como
objeção à construção da autonomia e da identidade do ser humano. O autor sugere
que a defesa contra a idéia dessa autonomia ferida seja assumida pelo cristão a
partir da teologia, que nos oferece recursos claros e legítimos para defender a
alteridade em Deus, porque é na alteridade que o problema se situa. Gesché fala
do mal-entendido sobre a alteridade. Vimos, em páginas anteriores, a importância
da alteridade para o reconhecimento da identidade do ser humano. A pessoa não
se constrói na solidão. Pelo contrário, morre fechada em si mesma. É a partir do
outro que nos reconhecemos como seres e sujeitos de nossas próprias vidas. O
outro nos possibilita conhecer-nos. Esse outro, que nos convoca e permite
conhecer-nos e sermos conhecidos, cria a possibilidade de irmos para mais longe,
além do universo da relação entre as pessoas. Dá-nos a possibilidade de
reconhecer a alteridade de Deus, uma alteridade que, ao contrário da dependência
162 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 35. 163 Ibid., p. 36.
98
e da anulação, nos joga para uma maior plenitude de existência. Podemos atuar
construindo a nossa liberdade de existência histórica. Estamos salvos de não nos
reconhecer na nossa humanidade, salvos da falta de rumo na nossa existência.
Descubrimos o Outro, o Terceiro-Transcendente, aquele que nos conduz ao
infinito, que, ao nos colocarmos diante de Dele, nos faz existir e nos concede uma
identidade.164
A fé cristã afirma que Jesus Cristo é a ação salvadora de Deus na história.
São Paulo nos fala, na carta aos Filipenses (Fl 2,6), que Jesus não se prevaleceu de
sua condição divina, mas aniquilou-se a si mesmo, assemelhando-se aos Homens,
o que nos faz ter a certeza de uma alteridade de Deus, que é construída na
liberdade para a salvação do ser humano. Uma salvação acontecida na história do
Homem. O cristão deve, cada vez mais, se sentir convocado a assumir sua
identidade, desvelando a alteridade de Deus como princípio absoluto de
autonomia do ser humano e refutando a idéia de dependência, de um Deus fora do
mundo e da história construída pelos Homens. Um Deus que desce ao encontro de
sua criação, que se humilha, não pode ser compreendido como um Deus opressor
e manipulador de sua criação. 165 O Deus cristão se fez Homem, como
encontramos no prólogo de São João: “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).
A Sagrada Escritura atesta e afirma a mediação de Jesus Cristo como salvação
para o ser humano. É o Transcendente que vem ao auxílio do Homem para elevá-
lo à maior condição de sua realização, de sua plenitude humana, para que não
termine em sua imanência como um ser sem orientação. O Deus de Jesus Cristo
nos libertou de nossas limitações, nos concedeu abundância de vida, oferecendo-
nos a possibilidade de nos transformar em nós mesmos, o que não somos sem a
presença do Outro, do infinito na nossa condição de ser finito.
“A salvação talvez seja finalmente isso, e não tem outro nome. A face daquele que é nosso Outro se mostra a todos não para nos desorientar e nos ameaçar, e sim como aquele cujo sopro, desde o princípio do mundo, se mistura com o nosso e o reaviva.”166
Afirmamos, com o autor, que a alteridade de Deus não deve ser temida,
mas despertada para o desejo por Deus, presente no Homem como constitutivo de
sua condição humana. Isso no remete a outra indagação sobre a salvação. Gesché
164 GESCHÉ, A., A Destinação, pp. 35-43. 165 Ibid., p. 43. 166 Ibid., p. 42.
99
nos conduziu a responder a temática da salvação, identificando, primeiro, como
constitutivo da condição limitada do ser humano, o desejo de ser salvo. Segundo,
que a salvação cristã não significa a perda de sua autonomia diante da alteridade
de Deus. Diante disso, há outra indagação que se desdobra em duas, o conteúdo
dessa salvação, sua concreta contribuição na vida do Homem e que garantias
recebemos quando falamos da salvação cristã. 167
“Em nós se encontra uma dimensão escondida, que gostaria de chamar de ‘um mapa do céu’, como se diz ao ver os pássaros que migram em busca de sua rota. E, que sem o sabermos, faz-nos viver, depositada em nós, como a trêmula, mas indubitável, lâmpada do santuário. Lâmpada vacilante, mas cujo tremular talvez esteja mostrado a sua importância. Foi colocada em nós por aquele que fez de nós uma maravilha quase inacreditável aos nossos olhos, mas com o direito de crer e o dever de amar.”168
No primeiro capítulo utilizamos essa mesma imagem da rota que o ser
humano segue na busca do mapa traçado no céu. Uma imagem que Gesché
recorre para falar da dimensão da transcendência como constitutiva do ser humano,
mesmo que ele a rejeite como uma possibilidade a alteridade de Deus. Essa
terceira indagação amplia e completa as duas anteriores, pois vai tratar de
reconhecer e aceitar o que é perceptível à vida cotidiana do ser humano, o de
buscar superar os obstáculos que impedem sua felicidade. Sabemos que a pessoa
tem necessidade ontológica de conhecer o sentido dos sentidos de sua vida, ou
seja, de ir além do conhecimento e do que pode fazer com esse conhecimento.
Tem necessidade da finalidade de suas ações, de saber em que direção caminha
sua existência. Portanto, podemos confirmar que a existência do ser humano se
torna muito mais significativa do que imaginamos, pois busca compreender o
sentido último dessa existência, razão de sua vida, que ultrapassa o cotidiano de
suas tarefas e descobre sua infinitude.169
É dentro desse mistério que o ser humano se vê envolvido com o
Transcendente e que procura conhecer o sentido de sua existência, que não se
reduz apenas às circunstância históricas de sua realidade. Algo que vai ao
encontro de uma maior elevação, que se desprende em direção ao infinito. Aqui
Gesché reforça a antropologia cristã ao afirmar “que o ser humano é um ser
transcendido pelo alto”.170 O cristão não pode duvidar, apesar de, em muitos
167 GESCHÉ, A., A Destinação, pp. 45 e 51. 168 Ibid., p. 47. 169 Ibid., pp. 46-51. 170 Ibid., p. 50.
100
momentos, ter vivido essa dicotomia entre a salvação na terra ou no céu. Muito
bem abordado pelo autor, desde o princípio de seu trabalho, a unidade do ser
humano e de Deus, que o criara para participar de sua divindade, para que tomasse
parte da criação criada. Por isso, não há como imaginar uma salvação inscrita no
ser humano como destinada apenas para o céu. Deus não teria enviado seu Filho
se não quisesse participar da humanidade do ser humano. Diz Gesché, “teríamos
consciência dessa perturbadora e infinita grandeza?”.171 Deus nos deseja e temos,
no nosso interior o desejo por Deus. O ser humano, ao reconhecer e permitir
desenvolver as dimensões da imanência e transcendência como dimensões
articuladas intrinsecamente na sua existência, dará início ao processo de sua
salvação. Essa unidade dá condições do ser humano conhecer verdadeiramente o
sentido para o qual fora criado, que é desenvolver sua humanidade. Descobrirá em
Deus sua plena realização e, então, sua destinação será construir o caminho nessa
direção, superando os obstáculos e consolidando a teologia como proposta de uma
existência de salvação teologal. “Nessa salvação ele encontrará o infinito do seu
ser”.172
Defrontamo-nos, aqui, com a última indagação que nos dará a visão mais
completa sobre o sentido da salvação na perspectiva teologal. Como garantir a
salvação como realidade concreta? Gesché trata a questão como a mais difícil na
abordagem da salvação, pois não há provas concretas. E, quando questionada, se
torna suspeita, dificultando ainda mais a sua defesa. A questão, na verdade, se
apresenta como existencial, pois vai tocar naquilo que é essencial à vida do ser
humano e em que se sustento para ver realizado seus projetos, ou seja, a garantia
do sucesso ou do fracasso de sua vida. O autor inicia essa reflexão trazendo,
justamente, a idéia de que a única prova existente é a de que não estamos salvos.
É a partir dessa perspectiva concreta que o ser humano experimenta, de que nem
tudo é garantido, que Gesché desenvolve a dimensão da fé como necessidade de
sobrevivência para o ser humano na sua existência de vida. Afirmação
fundamentada no principal elo da relação humana, a confiança. “Não se tem
garantia do amor ou da fidelidade de alguém, de uma vocação ou de grandes
171 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 49. 172 Ibid., p. 51.
101
opções de vida, como se tem garantia de coisas mensuráveis e quantificáveis. Por
acaso se verifica um ser?”173
Verificamos, então, que o ser humano não possui condições de verificação
total de sua existência. Existem questões não verificáveis. Apenas a confiança
pode garantir experiências necessárias à própria vida humana. Falamos, nesse
aspecto, da fé. Essa confiança depositada no outro, no futuro, que cria as
condições da garantia de uma realização mais plena, como nos fala o autor, nos
leva a “superar a incerteza paralisante, para poder realizar algo e realizar-
nos.”174 Essa realização dos atos e fatos acontecida a partir da fé, da confiança
demonstrada, de modo geral na vida, é que nos dá a garantia da verificação.
Retomando a vida de Jesus Cristo, Gesché reúne o verdadeiro sentido da
salvação e da mediação dessa salvação na pessoa de Jesus, pois foi com Ele que o
ser humano conheceu a salvação associada à fé, uma confiança na Sua pessoa. A
confiança é a condição para fé e para a realização dos atos. Mesmo aquela fé
cotidiana, depositada nas atividades e na relação entre os homens e mulheres. A
partir dessa relação entre confiança e fé Gesché faz uma afirmação teologal que
exige atenção: “A salvação estaria confiada à fé”. 175 Primeiramente, uma
confiança não visível, portanto, de crença mesmo. Crença em alguém que possa
visibilizar uma realidade não visível. Alguém capaz de transformar essa realidade
em nova. Assim fez Jesus Cristo. Neste segundo momento temos a visibilidade:
na ação de Jesus Cristo a realização de Deus. Gesché trata a confiança depositada
e construída pelos discípulos em Jesus como alguém “digno de fé”. A confiança
em alguém que se deixou conhecer na vida e agiu libertando o ser humano de seus
obstáculos, dentre os quais o maior deles, o mal, desencadeado da falta de
esperança e da fé. A confiança de que há esperança, de que o mal pode ser
combatido e o Homem se libertar da angústia de não ser salvo. Em Jesus Cristo
foi dada a certeza da vitória sobre a morte, sobre o mal que destrói o Homem das
possibilidades de se conhecer humanamente. Vitória dada em vida e confirmada
na Ressurreição. A verificação da salvação, portanto, se encontra nos fatos que
transformaram a realidade daqueles que testemunharam e creram.176
173 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 53. 174 Ibid., p. 54. 175 Ibid., p. 55. 176 Ibid., pp. 55-57.
102
Dessa forma, podemos afirmar que é na pessoa de Jesus Cristo que o
cristão deve viver o testemunho de visibilizar a salvação, a libertação de todos os
males que paralisam o agir humano, que impedem a realidade do Reino entre os
Homens. A salvação mobiliza a fé, possível de verificação na realização da
dignidade dos homens e das mulheres. A visibilidade de uma nova realidade
humana de justiça, fraternidade, paz e caridade. Uma realidade que contagia e
permeia toda a estrutura do ser humano, permitindo-lhe viver constantemente uma
abertura para a visitação, a dialética de ser visitado e visitante, do outro e de Deus,
da Graça de poder construir a sua salvação. No capítulo seguinte teremos a
oportunidade de ampliar a compreensão da salvação na mediação da comunidade
de fé, que também significa uma comunidade marcada pelas circunstâncias da
vida pessoal de cada um de seus membros. Desejando ser, o mais possível, fiéis
ao pensamento de Gesché. Não seria demais, no entanto, concluir essa etapa
afirmando que é legítima a defesa de uma salvação teologal, construída com
concretas realizações e infinitas consumações de vida plena.
3 A IDENTIDADE CRISTÃ
3.1 Introdução
Tendo abordado o tema da destinação como conclusivo do capítulo sobre a
condição humana, iniciamos este dentro da mesma perspectiva dos anteriores, de
buscar elucidar a construção do caminho da identidade cristã na atualidade. Uma
ocupação que vem sendo destacada diante da realidade do Homem de fé e do não
crente.
Propusemo-nos, ao falar da destinação, o dinamismo da revelação de Deus,
presente e atuante na vida do ser humano. Um dinamismo que se traduz na relação
do ser humano com Deus, orientando-o na direção de sua destinação, que é a
realização em Deus. Dessa forma, o ser humano possui a chance de sair de si
mesmo, libertando-se de tudo que o impede de viver a sua existência. Ao ser
humano é dado conhecer a salvação, essa realização incessante que o Homem
busca de felicidade, superando as dificuldades apresentadas contra essa realização.
Chegamos até aqui compreendendo que o ser humano, pensado e
defendido por Gesché, é um ser livre, criado e criador. A tradição judaico-cristã
nos atesta esse ser humano, capaz de ao criar transformar sua realidade. Há uma
distinção entre o Homem de fé e o não crente que é preciso ser feita. O não crente
imagina poder, sozinho, alcançar a transformação e realizar o projeto de igualdade
e justiça pelo qual luta. Compreende sua história limitada a essa ação. Mas o
cristão, Homem de fé, crê, como diz Gesché, que os seus desejos não se esgotam
na realidade histórica e, por isso, necessita do excesso para autenticar a sua fé. O
cristianismo possibilitou ao ser humano conhecer esse excesso e desejar, pois
inaugurou a desfatalização da história. Por isso, dizemos que o ser humano é um
ser criado criador, capaz de desejar Deus e transformar a história e a si mesmo na
realização desse desejo. Iniciamos revendo a perspectiva do trabalho. Agora,
continuamos, ainda, sobre o capítulo a ser desenvolvido.
104
Adentrando mais sobre o ser humano e Deus, iniciaremos esse capítulo, na
intenção de estreitar a relação com Deus desvelando, enfim, a identidade cristã. A
tentativa é demonstrar a razão da existência de uma comunidade de fé como
possibilidade de construção de uma identidade cristã, sempre na perspectiva de
Gesché. Depois de falar do ser humano nas suas condições e dimensões,
pretendemos tratá-lo na dimensão que nos interessa para o qual todo trabalho se
dirigiu, o Homem de fé, o que deseja ocupar um lugar à luz da sociedade,
discutindo e defendendo sua existência. O Homem que, na sua existência, se
relaciona com todas as dimensões: pessoal, social, cultural e econômica. Aquele
capaz de testemunhar o Deus vivo, o Deus de Jesus Cristo.
Diante da proposta do tema temos a necessidade de investigações, aliás,
sempre trazidas pelo autor como metodologia para uma nova inserção naquilo que
já conhecemos, mas precisamos recriar. Nesse caso, a necessidade se coloca na
cristologia. Um dos propósitos do capítulo é recolocar o lugar de Cristo na fé
cristã, ou seja, descentralizá-lo da pessoa de Jesus para evidenciar a mensagem
salvadora anunciada por Jesus. 177 Revisitar essa afirmação é importante para que
o cristão assuma mais autêntica e plenamente sua crença no Cristo Glorificado,
sem o risco de minimizar as dimensões da história ou da ressurreição por
desconhecimento. Para que, com confiança e discernimento, possa assegurar
Cristo como opção de vida, dando-lhe o lugar na fé proclamada. Com palavras de
Gesché, damos iniciação à investigação.
3.2 Cristo como opção de vida
“Gostaríamos de exprimir esse princípio dizendo que, embora o Cristo esteja bem no centro da fé cristã, ele não é o centro. Está no centro porque o cristão vê nele a ‘pedra angular’, aquele ao redor do qual se articula sua fé.”178
Gesché propõe, a partir de Cristo, pensar o ser humano, para então pensar
aquele que sempre se encontra presente para o ser humano, Deus. A partir de
Cristo, compreender o ser humano e Deus. Nada mais atual para enfrentar a
177 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 17-20. 178 Ibid., p. 17.
105
sociedade moderna e garantir uma identidade de fé. Uma cristologia que se propõe
a anunciar, não Jesus, mas quem Ele anuncia: Deus e o ser humano. O Novo
Testamento nos confirma que a mensagem de Jesus está centrada no anúncio de
Deus, que por ele age salvando. Jesus anuncia o novo ser humano na sua
humanidade. Jesus é o centro porque foi anunciado, mas também porque trouxe a
mensagem da salvação. João apresenta Jesus como aquele que é o caminho,
portanto, aquele por quem os cristãos se colocaram seguindo. Gesché recorre,
mais uma vez, à tradição bíblica e aponta o seguimento como aquele que é
conduzido, que se coloca atrás, não face a face para não correr o risco de perder o
sentido da direção. Jesus é o condutor, que leva ao Pai, inicia o caminho da fé, da
salvação. Sendo assim, podemos abordar o seguimento de Jesus e compreender
essa relação com Cristo de forma a vê-lo, mas sem fixá-lo somente no face a face.
A alteridade do ser humano exige chegar ao seu destino último, o Pai, sem perder
a alteridade com o Espírito e com o próximo. Ao permanecer fixados na face de
Jesus corre-se o risco de desfigurar o próprio Jesus, reduzindo-o a uma
perspectiva cristológica fechada, infrutífera diante do mundo. Portanto, ser fiel ao
seguimento exige que façamos uma cristologia que compreenda a teologia e a
antropologia presentes no discurso de Jesus.179 “Lendo-se o Evangelho, prestou-
se menos atenção a sua teologia do que a sua cristologia.”180
A idéia principal que se pretende abordar é a revelação de Deus que Jesus
anuncia em sua mensagem, a concepção de Deus que Jesus proclama em gestos e
palavras. Como diz o autor, foi muito pouco desenvolvida a teologia presente na
cristologia. Pouco se deu atenção ao que Jesus falava sobre Deus, quando a
história precisou explicar e confirmar plenamente a divindade de Jesus. Temos,
então, a apresentação de um Deus mais filosófico do que cristão. Isso traz uma
séria dificuldade para a compreensão do Deus cristão. Não temos intenção de
estender essa discussão, mas sinalizá-la é importante para situar o crente diante da
abordagem cristológica que tem da sua fé. Essa compreensão compromete a
atuação do cristão. Aderir a Cristo na fé é reconhecê-lo no Deus de Jesus Cristo,
histórico e glorificado.
Como descreve o autor, o Deus cristão é um Deus que se ocupou com o ser
humano. O Deus de Jesus fez a experiência da paixão, desceu e assumiu a
179 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 18-23. 180 Ibid., p. 24.
106
condição humana. Um Deus que assumiu as circunstâncias históricas e, por isso,
revelou o radical amor que tem pelos seres humanos. A Encarnação aconteceu
num gesto de profunda compaixão pelo ser humano, pelo sofrimento que se abatia
na sua criação. Um Deus que confirmou a identidade do ser humano na relação de
alteridade mantida através do Filho. Se desejamos resgatar a imagem que Jesus
nos traz de Deus e assumi-la em nossa prática de cristão, devemos recorrer com
toda profundidade a essa reflexão, investigar as Escrituras, mas essencialmente
não negligenciar nenhum discurso sobre o ser humano, pois onde ele está se
encontra o Deus de Jesus Cristo. 181 Desenvolveremos um pouco à frente a
Encarnação como realidade de encontro da construção da identidade cristã.
No primeiro capítulo desse trabalho falamos que Deus é tema da teologia,
mas também afirmamos que o ser humano é imprescindível para a teologia, pois é
quem pode ouvi-lo e responder, realizando o lugar da existência visível de Deus
entre os homens. Buscamos, durante o trabalho, desenvolver elementos que, na
dinâmica da relação entre Deus e o ser humano, pudesse desvelar a construção da
identidade cristã. A partir do ser humano conhecemos Deus, mas porque nos foi
por Ele permitido conhecê-Lo. Portanto, a teologia não se perde na antropologia,
mas não prescinde dela para se fazer conhecida. Por tudo isso, Gesché propõe ao
cristão revisitar sua fé, conhecer a centralidade da fé para também oferecer aos
que não crêem a oportunidade de conhecê-la e até, se possível, investigá-la. Nesse
sentido, o cristianismo se torna uma referência para o ser humano se este se
conhecer como ser de relação a partir de Deus, portanto, como Homem de fé.
Dessa forma, reconhecemos a necessidade de falar da antropologia presente na
cristologia, como defende Gesché, que para conhecer a autenticidade de nossa fé é
necessário saber que Cristo anunciou um Deus e um ser humano na sua relação
pessoal. Um Deus que se relacionou, amorosamente, se fez conhecer, descendo e
convivendo humanamente entre os Homens. Essa é a teologia que proclamamos,
que anuncia um Deus, o Transcendente, atuante na imanência. Por isso, o ser
humano pode tornar presente o discurso da fé, entre tantos outros existentes na
racionalidade das ciências.182
Se afirmarmos que esse Deus anunciado por Cristo, que a teologia nos fala,
é um Deus que se relaciona, podemos identificar nessa relação o ser humano
181 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 27-31. 182 Ibid., p. 35 passim.
107
anunciado, pois é ele que nos fala de Deus a partir de sua própria compreensão
dessa relação. Mais adiante veremos com maior clareza que os apóstolos
anunciaram a ressurreição a partir da relação experimentada com Jesus histórico.
E que foi a partir desse testemunho que a realidade se tornou autenticada e
atestada. Isso significa, como já falamos na abordagem sobre a fé, que Deus atesta
o ser humano. Portanto, vamos cada vez mais ampliando nossa compreensão de
que a cristologia nasce como teologia e antropologia.
“Quão mais verdadeiro o é se a testemunha é Deus, esse Terceiro transcendente que nos permite tanto não nos confundirmos uns com os outros como nos reconhecermos em relação a ele. Deus apresenta-se, assim, como a prova e atestação do ser humano. É aquele que, ao dizer ‘Eu sou’, diz por isso mesmo e no mesmo movimento: ‘você é’.” 183
Dessa maneira, na perspectiva cristã, o ser humano é reconhecido e
compreendido a partir de sua relação com Deus. Isso significa que nos
reconhecemos a partir do outro, que nos coloca diante de um outro maior, o
Terceiro, o que nos permite afirmar que também conhecemos Deus a partir da
nossa relação pessoal, essencialmente humana. Aqui Gesché nos oferece o tema
da Encarnação como chave conceitual para pensar o ser humano. Um Deus que se
revela num radical gesto de abandono e de esvaziamento de si para o outro. O
encontro definitivo entre Deus e o Homem, onde prevalece o amor incondicional
pelo outro, irracional, como fala Gesché, tão necessário na luta contra o mal que
desfigura o ser humano de sua vocação humano-divina. Somos chamados a amar
loucamente o outro como Deus nos amou ao assumir a nossa condição humana.
Portanto, o cristianismo referendou a condição de existência do ser humano, da
forma como ele se apresenta, seja o pobre, o doente, o faminto, o rejeitado, aquele
sem a mínima dignidade de vida. Esse, o outro necessitado, precisa ser
reconhecido para que nos reconheçamos como pessoas, como seres de identidade,
com rosto e nome para que possamos nomear e sermos nomeados. Assim Deus
faz conosco e fez no evento da Encarnação, o que nos faz sempre retomar a idéia
de que o cristianismo desfatalizou a história, nos fez conhecer um Deus que luta e
assume, paradoxalmente, com a força do amor e do sofrimento que brota da
condição limitada do ser humano.184
183 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 36. 184 Ibid., pp. 37-39.
108
Precisamos, como cristãos, mais do que compreender, assimilar a realidade
da Encarnação como opção de vida. São muitos os desafios do cristão, a começar
pela cristologia. Gesché nos conduziu à compreensão de uma revelação de Deus e
de ser humano que Jesus anunciou e que os apóstolos, mais tarde, vão anunciar
como mensagem de salvação. Há uma verdade anunciada, uma possível relação
entre Deus e o homem que desperta para uma nova realidade, o Reino de Deus, as
Bem-aventuranças de um Deus que se revela e permite o reconhecimento da
história como a história da salvação. Portanto, todos podemos ser salvos de nossas
limitações que nos impedem de amar com a mesma loucura com que somos
amados por Deus. O Deus de Jesus Cristo é um Deus que ama, diz São João. Um
Deus que é contra todo tipo de violência, inclusive aquela que O aprisiona dentro
dos interesses do próprio Homem. Acreditamos, aqui, ter aberto a porta para a
visitação cristológica de nossa fé.
Iniciamos esse tema sinalizando, a partir do autor, a necessidade do
descentramento do núcleo da fé de Jesus como pessoa para a mensagem
anunciada, a revelação de um Deus que irrompe na condição humana, convidando
o ser humano a participar de sua salvação. Inaugurando, dessa forma, uma nova
relação entre Deus e o Homem. Torna-se, agora, possível indagar sobre a
cristologia, sem receios de reduzir a mensagem da salvação a uma falsa
compreensão de Deus e do ser humano. Podemos compreendê-la na pessoa de
Jesus Cristo, única realidade histórica.
Reconhecemos na Ressurreição o fato e a centralidade da fé cristã,
palavra-chave para a formação da primeira comunidade de fé. A comunidade
cristã tem sua fé proclamada no Cristo Ressuscitado, morto e crucificado na cruz.
Vimos, anteriormente, o significado teológico e antropológico da cristologia, que
deve nos dar maior clareza da adesão da nossa fé à pessoa de Jesus Cristo. O
Cristo, que anunciou um Deus e um ser humano e propôs uma nova relação
humano-divina, criou uma nova forma de existência, a opção teologal, a que
propomos desvelar e defender durante a trajetória feita com Gesché. Ainda nesse
processo de desvelamento, continuamos nos passos do autor para a plena absorção
da compreensão do significado da Ressurreição como presença atuante na
existência da comunidade de fé. Esse aspecto se torna essencial para a visibilidade
da comunidade que testemunha Jesus ressuscitado. Por isso, é importante clarear
as dimensões, conhecidas, mas muitas vezes dissociadas, do Jesus histórico e do
109
Cristo da fé. Gesché propõe falar de um elo capaz de articular as duas dimensões,
a identidade narrativa.185 Essa noção deve ser bem desenvolvida, pois oferece ao
cristão uma nova compreensão e atuação de sua fé. É o que pretendemos para ao
desafio do mundo atual.
A fundamentação do autor se estrutura nas diferentes áreas do
conhecimento que a ciência desenvolveu, como o próprio conhecimento da
estrutura humana, de que “o ser humano é um ser narrado”, 186 e sabemos que
toda narrativa expressa uma história e uma destinação. O próprio Evangelho nos
dá o testemunho dessas narrativas. É a partir dos relatos bíblicos que Gesché
desenvolve a noção da identidade narrativa. Teremos oportunidade de aprofundar
esse entendimento mais à frente. Nessa perspectiva, não há como compreender
Jesus Cristo sem retomar o dado histórico, muito menos falar da fé sem
dimensioná-la na história. Seria um grande risco para o cristão que proclama o
Deus de Jesus Cristo.
Dos muitos aspectos que conferem autenticidade histórica, o ensinamento
de Jesus dá uma configuração diferente à sua existência. Gesché se detém naquela
que envolve o Reino de Deus. É no anúncio do Reino que Jesus realiza a ação
salvadora de Deus. É Deus agindo em cada um de modo único. Cada um é
convocado a participar do Reino, interpelado a responder o chamado de Deus. Na
relação com Deus acontece a revelação de uma nova forma de viver a fé e de se
relacionar. Um encontro que conduz a mudanças de atitudes e comprometimento,
dando novo sentido à vivência religiosa. A salvação se desloca das atribuições
legais para ser entendida como gesto de amor pelo próximo, único critério
relacionado à salvação de Deus, que extrapola, inclusive, a idéia do puro e do
impuro diante das prescrições legais ou do sofrimento.187 O anúncio do Reino é
tão marcante na vida dos discípulos com Jesus que todo o Novo Testamento
encontra-se estruturado na perspectiva de uma nova relação entre Deus e o ser
humano e entre os Homens. A realização de algo que já começara no tempo, o já
trazido por Jesus e o ainda não sinalizado na fala de Jesus em relação ao tempo
que pertence a Deus conhecer. Mas Jesus inicia a chegada do tempo na sua pessoa.
Por isso, a alegria e a certeza da espera já pode ser sentida e vivida. Esse é o novo
185 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 49-51. 186 Ibid., p. 51. 187 Ibid., p. 56 passim.
110
sentido que Jesus dá à existência humana. Nele encontramos o caminho da
realização do Reino.
A atuação diferente de Jesus no seu tempo histórico marcou de forma
definitiva sua legitimidade, manifestando plena liberdade e confiança estabelecida
na sua íntima união com o Pai. Uma relação que se estendeu aos outros, com a
mesma confiança e liberdade diante do que aceitavam ou não essa nova realidade
da expressão de Deus. Diante dos que o rejeitaram, Jesus enfrentou conflitos e
tensões, sendo perseguido e condenado à morte de cruz. Morto ao lado de ladrões.
O grupo formado por Jesus era composto por doze discípulos, pessoas diferentes e
simples, que se defrontaram com a dura realidade de uma morte que,
aparentemente, pusera fim à esperança da realização do Reino anunciada por
Jesus.
Esse grupo viveu experiências marcantes com Cristo, que determinaram
uma primeira visão da realidade de Jesus, a partir da fé, após a sua morte.
Realidade marcada pela história pessoal de cada um, mas também conjuntural, de
forma especial religiosa. Isso é importante, pois permite reconhecer uma realidade
histórica de fé. As descobertas feitas, a partir das experiências de vida com Jesus,
permitiram ultrapassar a própria realidade, construindo uma identidade cultural,
que mais tarde, após a morte na cruz, vai permitir afirmar e confirmar a identidade
de Jesus Cristo. 188
O reconhecimento de Jesus como Cristo a partir da fé dos apóstolos
marcou a história e fez história. Todo acontecimento se faz na história, nada vem
do nada, todos os fatos são marcados também por interpretações, que nascem
dentro da própria história. Mas reconhecemos que a existência histórica de Jesus
foi sustentada por uma transcendência, isso os apóstolos testemunharam. A
identidade histórica de Jesus está centrada no evento da Encarnação, no encontro
promovido entre Deus e o ser humano. O encontro entre a Transcendência e a
imanência.189 É Deus mesmo que se preenche de humanidade, afirma o prólogo de
São João, “e o verbo se fez carne” (Jo 1,14). O ser humano pode reconhecer sua
humanidade em Jesus, Deus revelado, que, na alteridade com o ser humano, atesta
ambas identidades, de Jesus e do ser humano. A alteridade é o elemento fundante
188 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 64. 189 GESCHÉ, A., O Cristo. Encontramos nas páginas 61-64 o entendimento do autor sobre a identidade de Jesus a partir da concepção histórica de que todo ser humano existe não para si, mas historicamente para o outro.
111
e constitutivo da relação entre Deus e o ser humano. Relação que revela o
Transcendente presente na imanência. É disso que a cristologia trata: “se Deus é
um para-nós, e é toda teologia inferida pela cristologia, eis que o ser humano é
um para-o-outro, e é toda a antropologia inferida pela cristologia.” 190
É essa identidade, reconhecida no Cristo Jesus, que a cristologia deve
apresentar com legitimidade de uma única realidade histórica. Para isso, Gesché
segue os relatos narrados no Evangelho.
A Sagrada Escritura é fonte primeira na construção da identidade de Jesus.
Deus sempre foi nomeado na relação com o outro, o que significa dizer que
sempre foi narrado, conferindo uma relação pessoal entre Deus e o ser humano.
Gesché lembra no livro do Gênesis, a fala de Abraão: “O Senhor disse: ‘acaso vou
ocultar a Abraão o que faço?’. Abraão disse: ‘vou tomar a decisão de falar com
meu Senhor, eu que sou apenas pó e cinza’.” (Gn18,17) Da mesma forma os
Evangelhos conferem a Jesus uma identidade narrativa, pois lemos na própria
mensagem de Jesus que ele não fala de si. Ao contrário o outro O narra ao indagar:
“quem dizeis que eu sou?” (Mc 8, 27). Aqui temos a estrutura da narrativa
necessária para reconhecer a identidade de Jesus. É dessa forma que o Evangelho
apresenta Jesus, pois o testemunho é da fé dos discípulos, nascida a partir da
identificação do Ressuscitado com o Jesus que acompanharam. Responderam à
indagação de Jesus com o testemunho dos acontecimentos ocorridos para que
todos, como eles, também pudessem crer.
“Dando-nos, para que por nossa vez creiamos também nós, sua leitura teologal e cristológica de Jesus, os evangelistas oferecem o que poderíamos chamar de epifania de Jesus: manifestação, revelação do que ele é e representa os olhos deles, ou seja, de ser Salvador e Senhor.”191
A idéia de compreender o elo entre o Jesus histórico e o Cristo da fé,
através da narrativa que nos é oferecida pelos apóstolos, nos exige relembrar que
existe um contexto histórico, como já foi dito, como parte constitutiva de toda
narrativa. Nenhum acontecimento narrado nasce sem realidade histórica. Mas, não
se prendem à história, transgridem a realidade. Porque são organizadas para uma
comunicação, há uma interpretação, no caso, diríamos, teológica, e ela será
190 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 67. 191 Ibid., p. 84.
112
reinterpretada, sem perder a origem da realidade narrada. “O Evangelho trabalha
a história (o Jesus da história) e a abre ao destino (o Cristo da fé)”192
Temos, aqui, uma realidade que transgride a própria história. Essa
realidade é dada pela fé, que cria a possibilidade de transgredir o real e reconhecer
o não visível no visível. Ou seja, a fé desvela a realidade oferecendo ao ser
humano uma nova possibilidade, a existência teologal. Recordamos o tema
anterior da destinação, onde pudemos falar sobre o sentido teologal inaugurado
pelo cristianismo.
Podemos, com legitimidade, afirmar a identidade de Jesus Cristo na
narrativa que os apóstolos fazem de Jesus transfigurado. Jesus não falou de si, mas
sobre essa realidade. Ela foi narrada e descrita pelos que a viram. Jesus, ao pedir
para ser falado e narrado, nos entregou a possibilidade de autenticá-lo, dar-lhe
identidade. A força dessa revelação, a da identidade percebida pelos apóstolos
vem da grandeza de Deus, que permite ser reconhecido e identificado para que o
ser humano se torne responsável pela vida narrada. Essa responsabilidade, que
nasce da alteridade entre os Homens com Deus, nasce no campo da liberdade da
palavra poder ser dita. Ao Homem foi dada a possibilidade de expressar Deus,
conhecê-Lo e falar, dar-Lhe identidade, de fé histórica. Podemos ousar, afirmando
que, na alteridade com Jesus, também construímos e somos reconhecidos em
nossa identidade como cristãos. 193 Deixamos para o item seguinte essa
abordagem, que encontra na Sagrada Escritura a estrutura da identidade cristã.
Na beleza da expressão do salmista, rezamos, com Gesché, a afirmação
dessa identidade: “não são os mortos que te louvarão, Senhor; somos nós, que
vivemos, que podemos te bendizer.” (Sl 113,118) 194
Retomando a idéia central de fazer da prática cristã o testemunho do Cristo
vivo, revistamos o eixo proposto pelo autor para compreender o reconhecimento
da identidade de Jesus Cristo, uma experiência de fé anunciada pelos discípulos.
Buscamos compreender, na narrativa dos relatos, o elo de ligação entre o Jesus da
história e o da fé, sem ter falado muito sobre essa última dimensão. Mas
reconhecemos que não há como falar de uma sem a outra, a articulação entre elas
é o que permite a identidade crística de Jesus. Ainda, sentindo a necessidade de
192 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 88. 193 Ibid., pp. 89-92. 194 Ibid., p. 91.
113
esclarecer essa dimensão que deu a razão à existência da comunidade de fé,
seguiremos um pouco mais sobre o tema, agora a partir da ressurreição.
O que significa crer na Ressurreição e atuar na comunidade crendo na
Ressurreição? O que isso significa e que sentido tem para a vida pessoal e da
comunidade que se reúne em nome do Senhor Ressuscitado? Gesché propõe, mais
uma vez, a visitação ao termo que já conhecemos, mesmo sabendo que pode nos
parecer óbvio indagar sobre o que consideramos conhecido. Partiremos, juntos,
para essa investigação a partir daquilo que, como os discípulos, também nos
mobilizou e ainda mobiliza: a morte de Jesus e o nascimento da comunidade cristã.
Considerando a lingüística como o primeiro meio que nos chega à realidade dos
acontecimentos, o trabalho da investigação é proposto, então, partir da linguagem
expressa para anunciar o acontecimento da ressurreição. Anteriormente, já
seguimos esse mesmo passo. Focaremos, agora, mais precisamente, essa estrutura
da linguagem narrativa. A teologia já nos confirma que, se o ser humano é capaz
de expressar é porque, antes, lhe foi nomeado (1Cor 14,10). Sabemos, bem ou mal,
que a estrutura da linguagem nasce no berço da experiência do ser humano. Não
há nenhuma experiência que brote de forma pura, sem interpretação. São
realidades que se integram, fazendo com que uma dependa da outra para existir.
Por isso, o autor, sem querer correr o risco da dissociação, propõe investigar o
termo ressurreição para nos conduzir a essa rica experiência que nasceu junto com
a expressão para, então, com discernimento suficiente, clarear o sentido do termo
para os dias de hoje.195
É a palavra Ressurreição que provoca a força do acontecimento. Gesché
recorda que o texto da narrativa bíblica não se centra na relação ou no fato em si,
mas na força da proclamação da palavra que expressa o fato. É fundamental
compreender essa força que transforma e provoca temor, pois na Tradição Bíblica
o gênero narrativo expressa uma revelação divina, que suscita a presença
reveladora do divino. O autor nos conduz à narrativa do anjo que se dirige às
mulheres e mostra-lhes o túmulo vazio. É diante do túmulo, que não terá lugar de
destaque, mas onde são solicitadas a anunciar a realidade da ressurreição. São
postas no movimento do acontecimento, que não se esgota no túmulo vazio, mas
195 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 116-118. Essa reflexão se encontra na justificação que Gesché dá ao trabalho de sua defesa de uma cristologia visitada.
114
pelo que provocou o acontecimento. 196 As palavras têm a força dos
acontecimentos, são carregadas de experiências de vida. Exploraremos essa
afirmação mais adiante ao falar da história como lugar da ressurreição.
A força da palavra proclamada, carregada da certeza de que algo
acontecera com Jesus, que uma revelação havia sido dada, se encarrega de gerar
testemunhos. Testemunhos da fé na Ressurreição. Assim, certamente, a
comunidade primitiva se constituiu proclamando e aderindo a uma forma de
existência individual e coletiva. A linguagem comunicando o testemunho e
criando sinais que apontam para uma realidade que se manifesta, agora, na força
que a palavra provoca nessa realidade. Gesché mostra-nos que muitas outras
expressões foram usadas para designar a realidade da ressurreição, como, por
exemplo, Exaltação, Glória, Senhor.197 Reconhecendo a importância da exegese
na elucidação das expressões narrativas para compreensão da fé, nos estendemos
um pouco sobre o tema, na tentativa de aproximar o acontecimento da
ressurreição com a vivência da fé no mundo atual. A indagação inicial que reúne a
experiência e o anúncio proclamado, que permite perceber como os apóstolos
chegaram à certeza da ressurreição, ainda merece reflexão. Para nós esse tema é
importante, pois se torna o ponto de partida da existência da comunidade que
confessa sua fé no Senhor ressuscitado. Esse trabalho tem sua razão na defesa de
uma comunidade de fé que responda, hoje, o sentido de sua confissão.
Antes, porém, de abordar a realidade da ressurreição no aspecto histórico,
há necessidade de explicar a metáfora como recurso da linguagem bíblica
narrativa. Até então, não a abordamos nesse sentido, mas reconhecemos sua
presença, já que se trata de expressar realidades que fogem à compreensão da
razão. A ressurreição traz no conteúdo todo sentido que quer expressar essa nova
realidade de Jesus. Afirma-nos Gesché “Diz admiravelmente e de maneira muito
evocadora essa idéia de despertar da morte para a vida, esse pôr-se novamente
de pé.”198 A metáfora, então, nos auxilia, dando-nos a direção de um sentido que
transpõe a própria realidade. Todas as palavras utilizadas na Sagrada Escritura
buscam representar essa realidade revelada como continuidade de outra realidade.
Relembramos, aqui, que a fé tem essa propriedade de transpor a realidade
196 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 118. 197 Ibid., pp. 118-124. 198 Ibid., p. 124.
115
histórica. Todas expressam a grandeza de não nos deixar presos, sem mobilidade,
acreditando que uma única palavra possa dar conta absoluta de todo sentido que
carrega na sua linguagem. Além de nos fazer entender que cada palavra diferente
carrega uma experiência única da comunidade que a utilizou. A comunicação, que
tem intenção de uma mensagem, permite a interpretação existir como parte da
estrutura da própria expressão lingüística. Assim, reconhecemos a riqueza da
Sagrada Escritura que, mesmo tendo enfocado o termo ressurreição como o maior
dentre todos, os outros termos também buscaram expressar essa mesma realidade
que ultrapassa a própria realidade que quer ser expressa.
Voltando à comunidade dos cristãos que se constituíram a partir da
afirmação proclamada, Ele Ressuscitou! Aquele com quem os discípulos viveram
uma experiência de vida nova, anunciada e realizada em ações transformadoras.
Essa realidade não mais presente dessa forma, mas na ressurreição anunciada,
agora pelos discípulos, traz uma marca diferente na linguagem narrativa. Uma
linguagem de atestação, nos diz o autor, seguindo na afirmação de que se trata de
uma linguagem que sinaliza duas condições: acontecimento cristológico e
apostólico. Os apóstolos, então dão testemunho em relação ao Cristo, Jesus, que
eles conheceram em vida, ressuscitou, e, que agora, eles viram, aparecer a eles sob
outra forma. Algumas citações bíblicas nos confirmam essa realidade que o autor
procura explicitar para nos conduzir ao valor histórico da ressurreição. A narrativa,
como já falamos, que confere a identidade de Jesus Cristo representa o elo entre o
Jesus histórico e o Cristo da fé, o que permite uma clara articulação entre as duas
dimensões. Recordamos a idéia da nomeação, já trabalhada no tema da alteridade,
em que o outro ao me nomear, permite o meu reconhecimento, fazendo-me existir,
sair de mim, construir identidade. Também lembramos que Jesus nunca falou de si,
ao contrário, foi sempre atestado. A indagação que não nos abandona, sempre,
“quem dizeis que eu sou?” (Mc 8, 27). Essa reflexão se torna fundante na
construção da identidade cristã, que tem em Jesus Cristo sua referência de Deus e
de Homem. Conhecimento fundamental para o reconhecimento de nossa
identidade cristã.
A narrativa nos diz, também, que nem todos viram e isso é o que permite
que os relatos sejam autenticamente legitimados e reconhecidos. Não se trata de
algo que fosse comum à realidade histórica daquela época, muito menos comum a
ponto de todos perceberem e o acontecimento perder a sua força ou de representar
116
uma banalização. Nesse sentido não é histórico, mas não deixa de ser quando
testemunhado por alguns recebe a força da proclamação da palavra. Isso significa
que o acontecimento se associa a uma experiência particular, pessoal e de
comunidade. As pessoas que viveram com Jesus fizeram a experiência do
ressuscitado, onde Jesus se deixou aparecer para aqueles que o reconheceriam à
luz do encontro pessoal. 199
Gesché vai tratar a experiência com o ressuscitado como um
acontecimento de revelação a partir da idéia de que toda revelação na Sagrada
Escritura vem acompanhada de uma epifania ou uma teofania, que provocam
reações de terror, ao mesmo tempo que atração e admiração. Assim foi com as
mulheres diante do túmulo vazio e com o grupo nas aparições. Apoiando-se
nesses dois pontos, o autor desenvolve o acontecimento como revelação. Sem
querer estender muito esse aspecto, destacamos duas situações importantes que
envolvem diretamente objetivo do trabalho, assim como permite seu
desenvolvimento. Primeiramente, na narrativa do túmulo vazio, o que nos é dito
como sentido e lugar próprio de uma revelação divina. A narrativa trata, em si, de
uma revelação, sem ênfase alguma ao lugar como espaço físico. Ao contrário,
afirma que não é ali que se deve procurar Jesus, mas entre os vivos (Lc 24,5). A
segunda situação importante acontece nas aparições, que são manifestações do
Ressuscitado, ou seja, manifestações teofânicas. 200 . “Deus lhe concedeu
manifestar sua presença” (At 10,40). São realidades expressas por vocabulários
de revelação. As aparições não trazem Jesus na mesma forma que os discípulos o
conheceram, mas de uma maneira diferente, como manifestação, possível de ser
reconhecido, porém, através de um olhar único, diferenciado, inclusive, entre os
discípulos. Podemos recordar que Maria não percebeu de imediato Jesus no
jardim, pensava ser o jardineiro.
“Não é tanto uma questão de medo físico, mas daquele ‘temor’, daquele ‘terror sagrado’ que o ser humano – presume-se – experimenta diante de uma manifestação divina, diante de um acontecimento no qual Deus está implicado.”201
A citação nos reconduz à indagação sobre nossa adesão de fé, que se
transforma em existencial diante do anúncio da Ressurreição. Existencial porque
199 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 129. 200 Ibid., p. 159. 201 Ibid., p. 134.
117
nos conduz à salvação cristã, que já investigamos como uma proposta possível de
ser assumida. Voltaremos em breve a esse ponto. Somos ou não tomados pelo
mesmo temor e admiração em que somos envolvidos na revelação de Deus, que
num primeiro momento sentimos medo, depois fascínio e atração? Podemos nos
tornar testemunhos de sua ressurreição. Aqui podemos traduzir o sentido que
desejamos dar à comunidade de fé, responsável pela construção da identidade
cristã que tanto foi abordada durante o desenvolvimento do trabalho. As narrativas
são indicativos que não devemos nos deter, nem perder o tempo onde o
ressuscitado, Jesus Cristo, não se encontra, mas onde indicam o caminho de sua
presença, entre os homens. Cristo permanece, não no túmulo nem preso às
aparições, mas lá onde mostrou aos discípulos, na continuidade de sua missão. Na
ascensão, sua última aparição, Cristo informa sobre a continuidade de sua missão,
agora assumida pelos que testemunharam sua história como Jesus Cristo, homem
e Deus, plenamente reconhecido na comunidade de fé. É em Pentecostes que os
apóstolos recebem a confirmação dessa missão, iniciando, então, a missão da
Igreja, anunciar o evangelho aos novos tempos. 202
Seria oportuno ampliar a reflexão sobre a Ressurreição como ação que
completa a obra salvadora de Deus. Como diz Gesché, “não é simples
coroamento ou recompensa”203 , mas a vitória sobre a morte, a afirmação do
combate e derrota do mal, combate vitorioso contra todo impedimento da plena
realização de sua existência. Lá se deu o encontro, o retorno à casa do Pai, após
uma vida assumida na obediência de sua missão e de um tempo de permanência
junto aos mortos, de onde conduz todos à nova vida, junto ao Pai. A Ressurreição
representa a afirmação de uma existência teologal, proposta na vida de Jesus, que
culmina na cruz e se transforma na Ressurreição. Uma transformação de glória,
mas também de combate, pois foi na descida à mansão dos mortos que a derrota
definitiva contra o mal aconteceu. Após um tempo, a vitória, assim como foi
necessária a cruz para enxergar a Glória, também na Glória da Ressurreição
devemos enxergar o combate, a agonia.204 É a riqueza do caminho da salvação de
Deus, o mesmo que o ser humano precisa enfrentar para chegar à salvação. Um
caminho de combates e conquistas, de luta, que o ser humano pode assumir, pois
202 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 158-161. 203 Ibid., p. 168. 204 Ibid., pp. 168-170.
118
sabe que Deus tomou para si mesmo esse combate diante do mal que aflige o ser
humano. Não precisamos temer, pois já recebemos a possibilidade da
Ressurreição em Nosso Senhor Jesus Cristo. Concluímos essa pequena reflexão
colocando-nos no caminho em direção ao ressuscitado, com o texto que Gesché
nos oferece.
“A Ressurreição pertence a partir de então à capacidade teologal do ser humano criado. Levando ao extremo, poder-se-ia dizer que é o pecado, erro de destinação, que modificou a ordem da Criação, mais do que a Ressurreição que, de alguma maneira, apenas faz retomar o antigo voto criador para fazer novamente dele dom ao ser humano.”205
Desenvolveremos, a partir da missão compreendida pelos primeiros
cristãos, a compreensão da revelação tratada por Gesché e que nos ajuda a
reconhecer o sentido de ser Igreja hoje, sentido que deve ir além de nós mesmos.
O autor recorre à imagem da criança, que retira do pensamento da psicanalista
Julia Kristeva, do seu livro Acontecimento e Revelação, para utilizar o momento
do encontro que ocorre entre a criança e o mundo que passa a conhecer ao nascer
e que lhe é apresentado. Intitula um momento de abertura em que a criança sai do
seu mundo para ir ao encontro daquele que, provavelmente, lhe provocou medo,
perigo, mas também crescimento. Poderíamos fazer uma rica leitura dessa
imagem que traduz descoberta, abertura, criação, um nascimento que tem um
movimento dinâmico entre o mundo interno e externo.206 Ambos atuando na
direção de um crescimento. Vimos, já na condição humana da liberdade e da
alteridade, apresentada por Gesché, que o ser humano é visitado por um Terceiro,
que o criou e lhe deu as condições de construir sua liberdade na alteridade com
esse Terceiro. É assim que a revelação pode ser percebida, a partir de uma
experiência pessoal de alteridade, em que o ser humano se reconhece no outro e,
dessa forma, permite que o outro o reconheça atestando sua identidade, cristã.
Falamos, aqui, do já muito dito, o infinito na realidade do finito, essa visitação
que só o ser humano pode experimentar. “Abordagem tanto mais interessantes
quanto mais vêem na revelação não uma pura inspiração interior, mas um
acontecimento, ‘exterioridade’”. 207 É essa visitação que permite dizer que o ser
humano é um ser integrado nas suas dimensões física, biológica, psíquica, afetiva,
espiritual. Por isso, permite a visitação porque é capaz de sentir através de todos 205 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 171. 206 Ibid., pp. 137-138. 207 Ibid., p. 139.
119
os diferentes sentidos. Um ser sempre aberto, capaz de acolher e responder à sua
vocação humana. Essa capacidade se encontra no exercício de sua liberdade, que
representa um vasto campo de experiências, mais do que atos isolados de uma
determinada liberdade de ação. Nessa perspectiva a revelação poderia ser
compreendida como algo sempre presente, atuando, em nossa liberdade. Bastaria
que fizéssemos a experiência da abertura ao próximo, nos aproximando da
alteridade com Deus.
“Talvez a palavra ‘revelação’ assim entendida designe menos uma revelação do que está oculto no invisível, e bem mais uma revelação daquilo que está escondido no visível, daquilo a que o visível dá guarida invisivelmente.”208
A revelação, nesse sentido, poderia ser identificada como uma
confirmação de algo já experimentado, a espera apenas de um encontro, de um
acontecimento mais definitivo que provoque a transformação a partir da revelação.
Foi o que aconteceu com os discípulos, tanto no túmulo vazio como nas aparições.
A realidade anterior, da cruz, não teria nenhum sentido se não houvesse a
ressurreição. O sentido nasce com a revelação da ressurreição. Os discípulos
puderam ver e confirmar que aquele morto na cruz era o Cristo Ressuscitado. O
que haviam vivido com Jesus de Nazaré passou a ter sentido. A cruz se torna o
elemento revelador, mas é a ressurreição que revela o sentido da cruz. Lembrando
o simbolismo da criança, nascer é crescer, em constante revelação.209 A revelação
não nasce do nada, senão estaria no campo da magia, mas de algo iminente,
revelador. O ser humano é um ser sempre em transformação, porque traz dentro
de si a dinâmica da própria revelação. De novo, retomamos a questão para pensar,
a partir de Gesché, o sentido da ressurreição que o cristão assume para expressar a
sua fé. Talvez fosse melhor dizer a cristologia assumida.
Sendo essa a perspectiva assumida de ser humano capaz de Deus, livre e
de alteridade, construtor de sua identidade, desejamos responder, como cristão, à
indagação de Jesus feita aos discípulos: “e vós, quem dizeis que sou?” (Mc 8, 27).
Temos muitos elementos da reflexão de Gesché para nos situar diante de Jesus e
responder como quem deseja caminhar junto, como discípulo, desvelando a
revelação de Deus na existência de nossa história. Transformando-se em
testemunhos de sua presença no meio de nós. A dificuldade está em não perder a
208 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 141. 209 Ibid., p.141 passim.
120
direção olhando o túmulo vazio ou à espera de aparições transformadas em
espetáculos de revelação. Acreditamos, com Gesché, que o ser humano precisa,
primeiramente, conhecer a centralidade de sua fé, o Deus de Jesus Cristo. Isso foi
mostrado na nossa apresentação. Segundo, permanecer como um ser visitado, ser
capaz de desvelar o Deus desconhecido, tornando-o presente, diante da razão, ao
lado de todos os conhecimentos que integram e desvelam o ser humano para a
sociedade. Permitir ao ser humano a realização de sua plena condição de
existência humana, o que significa lutar por uma legítima existência de fé.
3.3 O amor cristão: novo modelo de Igreja e de Homem
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada. Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria!” (1Cor 13, 1-3)
Desejando a legitimidade do crente, presente sempre como fio condutor de
todo o trabalho apresentado, buscaremos sinalizar o sentido, hoje, da Igreja,
proclamada e constituída pelos apóstolos diante da confirmação da existência
histórica do Cristo ressuscitado. Somos discípulos de Cristo, portanto,
missionários da Igreja, compreendendo que, como seguidores de Jesus,
assumimos a missão de dar continuidade à realização do Reino, iniciada e
proclamada na Sua pessoa. A perspectiva dessa abordagem terá como cenário o
ser humano, desenvolvida e compreendida por Gesché. Não teria outro sentido, se
não tivéssemos peregrinado nos diferentes recôncavos da estrutura humana, de
modo especial na relação entre Deus e o ser humano.
A confissão feita pelos apóstolos, do ressuscitado, encontra-se na própria
confissão que Jesus faz de si quando se dispõe diante de Deus e do outro: “eis-me
aqui”.210 Jesus é confessado quando, no silêncio de sua apresentação, espera a
afirmação. Isso os apóstolos fizeram. Confirmaram a sua entrega obediente à
210 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 93.
121
missão do Pai. Apresenta-se como servo humilde que cumpre a missão de
anunciar o Deus salvador. Também, dialeticamente, o novo ser humano que deve
nascer de uma nova relação com Deus. Jesus Cristo, no exercício de sua plena
liberdade e respeito pela liberdade do homem, provoca no ser humano a
responsabilidade e o compromisso do que deve ser pronunciado a partir o seu
silêncio. Pede para que seja narrado, assim desvela o mistério divino de sua
presença na estrutura do próprio ser humano, que atesta e é atestado diante de
Deus. O silêncio pela espera da narração é compreendido por Gesché como
“aquele que deixa aos outros, a quem confia, a palavra que identifica.”211 Jesus,
ao declarar o “eis-me aqui”, se dispõe como alguém que foi enviado e convocado
e, assim, age pedagogicamente, à espera de que, narrando-O, nos coloquemos
também à disposição do outro, na missão de servos. Jesus se faz presente
apresentando-se e se dispondo ao pobre, ao doente, ao excluído que vivia à
margem da sociedade de sua época. Agia restituindo-lhes a dignidade da vida. É o
que nos narra o evangelho de São Mateus: “quem é Ele?” (Mt, 8, 27). “De onde
lhe vem tudo isso?” (Mt 13, 56). Toda ação salvífica de Deus conduz à
confirmação de quem é Jesus de Nazaré. 212 Assim Jesus foi narrado, na sua
relação de disponibilidade com o pobre.
A partir da idéia de identidade narrativa, desenvolvida neste capítulo e que
foi apresentada por Gesché como elo dinâmico que faz a unidade do Jesus
histórico e do Cristo da fé, poderíamos apontar algumas reflexões sobre as
possíveis conseqüências de uma opção tendenciosa por uma ou outra dimensão. A
identidade narrativa surge como eixo dialético dessa unidade, onde não cabe
dilema entre o Jesus histórico e o Cristo da fé e não comporta uma prática que
reduza uma das dimensões a ponto de excluir uma delas.
Poderíamos, de imediato, assinalar o que, anteriormente, Gesché destacou
como prioridade para pensar a prática do cristão, a cristologia. Conhecer com
propriedade o que Jesus nos apresenta, “não anunciar Jesus, mas anunciar quem
Ele anuncia. Jesus morreu e ressuscitou por causa de uma determinada idéia de
Deus e do ser humano, e é isso que importa antes de tudo.” 213 Tendo já
apresentado o caminho percorrido na teologia e na antropologia presentes na
211 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 93. 212 Ibid., pp. 97-99. 213 Ibid., p. 23.
122
cristologia, podemos abordar diretamente a prática do cristão que queremos
defender no mundo atual, no processo de construção de sua identidade.
Uma prática que enfatize somente o Cristo da fé perde, na história, o lugar
de construção da identidade cristã. É na dinâmica da história que o processo de
transformação acontece, lugar do encontro entre Deus e o ser humano. Recusar a
dimensão histórica de Jesus é correr o risco da idolatria. Sabemos o quanto, no
mundo atual, essa tendência tem lugar. Não são poucas as correntes que, ou por
ingenuidade ou má fé, aderem ao fideísmo como proposta religiosa. Então, nesse
caso, a religião, que deveria desvelar o divino presente na realidade histórica,
acaba servindo de ópio, motivo, já presente na história do cristianismo, de muitas
acusações contra os cristãos. 214 Outra grave conseqüência, diante da negação
histórica, recai no comprometimento do seguimento de Jesus, pois prevalece a
contemplação como identificação de uma autêntica realidade cristã. Na verdade,
há um falso entendimento do que representa o seguimento. Gesché abordou essa
idéia ao falar sobre “uma cristologia em que a face de Cristo arrebate toda
atenção”. 215 A construção da identidade cristã fica comprometida, pois a
alteridade, que possibilita o reconhecimento da identidade, não acontece.
Recordando, ainda, sobre a exigência do seguimento, caberia a indagação do autor
acerca de nossa relação com Cristo. Precisamos abandonar a contemplação que
nos impede de enxergar o caminho à frente e, “pelas costas”, 216 fazer o
seguimento, a fim de identificar a direção tomada para chegar à salvação. E essa
direção exige uma nova relação com o Cristo, olhar para frente e reconhecer os
diferentes caminhos durante o percurso da história. A contemplação tem a grande
riqueza de permitir, no silêncio, embebido pelo mistério da revelação, a
interpelação que Jesus nos faz para retomar o caminho de volta, como fizeram os
apóstolos no monte da transfiguração.
O cristão precisa ter clareza sobre a cristologia assumida para que
promova, no mundo em que vive, a verdadeira realidade de fé expressa em Jesus
Cristo. Só assim, poderá representar, com legitimidade, o discurso da fé,
assumindo a identidade narrativa como elo dinamizador entre a realidade histórica
e de fé de Jesus Cristo. Isso significa reconhecer na história o caráter dialético
214 Essa reflexão do papel da religião se fundamenta no 2º capítulo desse trabalho 215 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 23. 216 Ibid., p. 23.
123
entre as duas dimensões. Mais. Significa afirmar que a história é processual e o
cristianismo manifesta no tempo essa historicidade. O cristão expressa no “hoje” o
que foi no “ontem”, anunciado por Jesus, para que o “amanhã” possa acontecer na
dinâmica revelada por Deus, onde um futuro foi antecipado como realidade
possível. Dessa forma, o cristão tem a possibilidade de produzir uma prática fértil,
onde não há lugar para a dogmatização, mas para um reencontro com a
autenticidade da fé dos apóstolos, aquela que deu origem à narrativa de Jesus
Glorificado. O cristão pode, então, confessar a fé em Jesus ressuscitado e não ter
receios da falta de instrumentais teóricos, pois a força do anúncio carrega a
compreensão de uma autêntica cristologia, que não foi dada do nada, mas da
narrativa dos primeiros discípulos. Assim nasceu e se multiplicou a comunidade
de fé, mantendo aquilo que traz na sua origem, “o dogma”, “a confissão de fé”.217
O Concílio Vaticano II tem, em uma das suas formulações, a seguinte
preocupação pastoral: “Na origem: que a apresentação doutrinária seja
revivificada nas fontes da fé, na palavra viva de Deus, no Evangelho de Jesus
Cristo, na tradição viva da Igreja, na própria vida da Igreja”.218 Reconhecemos
que a preocupação levantada por Gesché se encontra na mesma perspectiva do
Vaticano II, quando salienta a importância de uma eficaz articulação entre a
história e o evento da ressurreição de Cristo, encontrada na fonte dos relatos do
evangelho, configurando a identidade do Cristo da fé e, por meio Dele, a
possibilidade da construção da identidade cristã. Assumimos, na história, o que
nos legitima a partir da narrativa evangélica, de que algo a mais, na própria
história, foi inaugurado, sem que representasse uma visão reduzida da história. Há
uma intrínseca relação das narrativas com a história, por isso a importância do seu
reconhecimento para não cair na tentação de uma apologia histórica reducionista,
que impeça de assumir o Reino como realidade escatológica. A opção de uma
existência teologal precisa do amadurecimento da fé, ou seja, uma atitude
responsável que nos é solicitada por Jesus diante do seu “eis-me aqui”.
Poderíamos, sem exageros, afirmar que a história representa o termômetro
para inferir a fidelidade do segmento de Cristo. Reconhecer na história uma fonte
que nos oferece a dinamicidade da Palavra de Deus, como nos diz Gesché, é
“reencontrar a fonte sempre viva e original do que se tornou a experiência
217 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 107. 218 Compêndio do Vaticano II, Introdução Geral, p. 10.
124
cristológica.”219 De toda a nossa reflexão, o maior resultado para a legitimidade
do cristão se encontra em fortalecer a atualização do anúncio presente no dogma
de fé. Um enunciado cristalizado, a-histórico, perde o sentido de sua afirmação,
tornando a fé uma resposta esvaziada de conteúdo e uma religião passível de
manipulações. Todo o ritual perde seu sentido, contribuindo para práticas míticas,
mágicas e esotéricas.220 É, portanto, fundamental que o cristão esteja atento à
cristologia que envolve sua prática religiosa. Aqui, ao falar da religião estendemos
à Igreja um papel essencial na construção da identidade cristã. A Igreja, na sua
genuína missão evangelizadora, é responsável pelo desvelamento de nossa
identidade cristã, pois é nela que encontramos a mensagem viva da Boa Nova para
todos os seres humanos. Uma Igreja que não realize essa dinâmica integradora
entre o mundo e o Evangelho traz, em si, a cristalização dogmática de Cristo.
Recorremos ao Documento de Aparecida, recente, que nos fala da preocupação
dos bispos da Igreja da América Latina e Caribenha com a missão da nossa Igreja.
Como afirma o Documento, algumas sombras existem na vida eclesial, apesar de
muitas esperanças.
“Lamentamos, seja algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II, seja algumas leituras e aplicações reducionistas da renovação conciliar; lamentamos a ausência de uma autêntica obediência e do exercício evangélico da autoridade, das infidelidades à doutrina, à moral e à comunhão, nossas débeis vivências da opção preferencial pelos pobres ...” 221
Portanto, o desafio está em superar essas sombras que nos impedem
fidelidade aos ensinamentos de Cristo, que significa promover a vida e a
dignidade a todos os homens e mulheres subjugados a um sistema de exclusão. A
Igreja, animada pelo Espírito, deve responder aos sinais dos tempos, porque só
assim poderá realizar o que Jesus fez e nos deixou como missão: a concretização
do Reino.
Ainda na perspectiva de Gesché sobre a identidade narrativa como
impedimento na cristalização do dogma, relembramos a importância da fé para a
legitimidade do cristão na realidade atual. Expressar uma fé sem conteúdo
teológico, alienada de racionalidade, sem fundamento histórico ou por demais
reduzida à história, institucionaliza a Igreja, fazendo com que perca sua força
219 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 107. 220 Ibid., p. 109. 221 CELAM, Documento de Aparecida, n. 100b.
125
mediadora na realização do Reino. No pior dos casos, permite que se identifique
com o próprio Reino, trazendo conseqüências à sua aceitação diante de um mundo
que tende a rejeitar as grandes tradições institucionais. Como cristãos “não
devemos encarregar o dogma de pensar por nós. É a própria fé que nos pede
para permanecermos sempre intrigados.”222
Essa realidade nos traz um grande desafio: conhecer as novas relações que
o mundo descortina pelo acelerado índice de informações tecnológicas que
transformam a cultura, a arte, a política, a economia, enfim, tudo que envolve o
ser humano. A religião não está isenta do alcance dessa devastação, que gera
instabilidade e desequilibro nas relações pessoais. O Concílio Vaticano II tem, nos
seus documentos, muitas afirmações sobre a urgência de uma nova eclesiologia e
atuação pastoral. Uma preocupação em responder às exigências do mundo atual e
em promover um diálogo frutífero com a modernidade. Na introdução do
Compêndio do Vaticano II há um indicativo que nos fala sobre a apresentação
pastoral da doutrina ao mundo atual:
“Deve a doutrina estender-se aos problemas reais e que são a preocupação constante, não raro angustiante, dos homens de hoje (e não de outros tempos). O que implica um conhecimento exato e uma análise precisa desse mundo que importa salvar. O bom pastor conhece suas ovelhas.”223
Reconhecemos, com Gesché, que a identidade narrativa nutre,
positivamente, cada dimensão refletida, dando à cristologia uma autêntica
expressão para o mundo atual, que, cada vez mais, exige diálogo entre as
diferentes possibilidades de vida. E a perpectiva religiosa, presente na proposta
teologal, apresentada pela Igreja, queremos que seja parte reconhecida nesse
diálogo, pois tem sua estrutura antropológica e teológica bem organizada.
A partir da compreensão de uma cristologia autêntica, portanto fiel à
identidade de Jesus, reconhecida pelos discípulos, podemos relacionar o tema ao
próprio crente que assume, como membro da comunidade, o anúncio da Boa Nova,
nesta visão cristológica. Vimos exaustivamente quem é o ser humano para Gesché,
integrado em todas as suas relações fundamentais, que o permitem poder
reconhecer-se como filho de Deus, capaz de Deus e de um destino para Deus. Um
ser humano que é criado para amar. Portanto, capaz de responder, na fé, à
interpelação de Deus. Esse ser humano, único diante de Deus, dá a sua resposta
222 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 111. 223 Compêndio Vaticano II, Introdução Geral, p. 11.
126
individual, mas vive a sua fé inserida na comunidade, participando como membro
da Igreja de Cristo. “Evangelizar não é para quem quer que seja um ato
individual e isolado, mas profundamente eclesial”. 224
Nesse sentido não há como desvincular o ser humano, que proclama sua
fé em Jesus Cristo, da Igreja, comunidade que é depositária da missão de Jesus
Cristo. Na verdade, não há como dissociar o ser humano de uma intrínseca relação
com Deus, na perspectiva do pensamento de Gesché. Estamos, agora,
preocupados em sinalizar o conteúdo de fé que expressa uma visão de mundo, de
Igreja e do cristão, que tanto procuramos defender para uma legítima existência
teologal. Precisamos focar o tema do capítulo que perseguimos como um possível
resultado da prática cristã, o amor cristão como construtor de uma nova prática
eclesial e humana.
Fizemos, até então, uma reflexão voltada para as conseqüências práticas de
um enfoque, maior ou menor, em uma das dimensões da identidade de Jesus, a
histórica e da fé, caracterizando a importância da identidade narrativa como
equilíbrio positivo para a vivência da fé cristã. Desejamos, agora, dando
continuidade às reflexões práticas, abordar, antes mesmo de falar sobre o amor
cristão, falar da missão de anunciar o Evangelho de Jesus Cristo. Porque temos a
certeza de que, ao falar da mensagem do Evangelho, vinculamos o Cristo e a ação
gratuita do amor de Jesus à Boa Nova que anuncia. Também, ao falar do ser
humano que opta por Cristo, estaremos falando do amor de Jesus que deve ser
resgatado com maior visibilidade na vida do cristão, para compreender a missão
que o mundo exige. Essa reflexão está relacionada ao pensamento que Gesché
desenvolveu do olhar sobre a vítima presente no Evangelho, que é considerada
prioridade na ação de Jesus. E a justiça, importante, mas limitada como ação
jurídica, pois não tem a preocupação com a salvação da vítima, prioridade no
Evangelho de Jesus Cristo. Seguiremos, ainda, no esforço de explicitar a autêntica
vida que o cristão deve assumir na adesão que fez ao seguimento de Jesus Cristo.
Abordamos, acima, novas relações impostas pelo mundo, referendadas por
uma avançada e acelerada transformação tecno-científica. O Documento de
Aparecida, já citado, sinaliza, na apresentação missionária do anúncio, que o
missionário deve proclamar a “boa nova da dignidade humana, da vida, da
224 PAULO IV, Evangelii Nuntiandi, n. 60.
127
família, do trabalho, da ciência e da solidariedade com a criação.”225 Portanto,
pensemos no ser humano explicitado por Gesché, integrado, em toda a sua
plenitude, à criação de Deus. Lá no primeiro capítulo abordamos esse ser, criado à
Imagem e Semelhança de Deus, conferindo-lhe uma existência livre para amar e
desejar Deus. Uma liberdade, permitida na alteridade, que lhe dá muitas
possibilidades, diferentes opções, mas sempre fundada na sua dignidade de ser
humano, de responder à vocação humana. O ser humano recebe o mais precioso
dom, o da liberdade em Deus, de poder optar por uma existência em Deus, que o
torna capaz de responder, na fé, a essa vocação.
Da mesma forma, em relação à vida e à família. Reconhecemos, na
alteridade, a necessidade de construir relações. É na relação com o outro que o ser
humano descobre a dignidade da vida, pois identifica, na confiança estabelecida
na relação, uma exigência do relacionamento e crescimento entre os Homens.
Assim, o relato do Gênesis descreve que Deus criou o homem e a mulher numa
relação de igualdade e cooperação, não de dominação. Aqui acontece a riqueza do
respeito às diferenças, que só é possível viver quando o ser humano sai de si em
direção ao outro, superando as dificuldades de um individualismo, tão comum nos
dias atuais. Na relação com o outro temos a possibilidade de Deus, da experiência
do amor, dom recebido e partilhado por Deus na criação dos seres humanos.
Temos a concreta manifestação de uma relação de amor, de viver uma comunhão
no amor de Deus com o próximo. Mais. De constituir, no amor entre o homem e a
mulher, a comunhão trinitária, configurando a comunhão esclesial.
Na outra dimensão das relações fundamentais, a relação com o mundo,
encontramos a mediação do trabalho, que Deus ofereceu como dom para que o
Homem fosse colaborador, co-participante de sua criação, criando-o criador. O ser
humano é capaz, na produção do trabalho, transformar a realidade que o cerca. O
trabalho dignifica o homem e a mulher, dando-lhes a possibilidade de desenvolver
o dom da criação, enaltecendo-os, assim, diante de Deus, pois constroem cultura,
contribuindo, na criação, para o desenvolvimento humano. É pelo trabalho que o
ser humano se reconhece criado criador, em comunhão com uma vida mais
integrada. Da mesma forma, a ciência, fruto do desenvolvimento do trabalho do
Homem. Desenvolvê-la representa uma preocupação com a vida de toda uma
225 CELAM, Documento de Aparecida, n. 103.
128
humanidade, com a criação cultural, recebida e desenvolvida para um futuro mais
completo de possibilidades.
Por fim, a solidariedade, considerada, hoje, essencial na convivência entre
os Homens. Um aspecto que o ser humano desenvolveu como exigência da
modernidade e vem sendo assumida como constitutiva de sua condição humana.
Foi desenvolvida no uso da liberdade do ser humano. Uma solidariedade que se
estende ao cosmo. O ser humano não foi feito para viver isoladamente. O homem
e a mulher foram feitos à semelhança de Deus, por isso chamados a participarem
da criação, responsáveis pelo cuidado, pela preservação e integração entre as
criaturas. Existe, hoje, uma séria preocupação com a preservação da natureza, de
modo geral com a ecologia.
A nova geração vem sendo educada na perspectiva dessa preocupação,
mas sabemos o quanto a cobiça do ser humano ainda desrespeita e destrói a
relação do Homem com o cosmo. Não apenas na interrupção da vida gerada pela
natureza, mas na dominação que isso gera do Homem pelo Homem e,
principalmente, na impossibilidade de uma contemplação da natureza como
presença reveladora de Deus. Esta abordagem se encontra na tradição judaico-
cristã, que sempre manifestou a unidade do ser humano com o cosmo, numa
integrada relação, sem a falsa idéia, que prevaleceu na história, de que Deus
entregou ao Homem a criação para que a dominasse, como o fez, explorando-a.
Com essa equivocada compreensão do texto bíblico o ser humano submeteu a
natureza à sua dominação, destruindo-a e manipulando-a em função de seus
interesses econômicos e de poder. O Homem cristão precisa, pautado na
perspectiva bíblica, retomar a unidade rompida na modernidade, quando o ser
humano, em busca de sua autonomia, distanciou-se da realidade sagrada. O que
trouxe a grave conseqüência da crise ecológica.226
Relacionando à perspectiva de Gesché, a ação salvífica de Deus atua em
toda dimensão da vida existencial do ser humano. No capítulo que abordamos a
destinação, falamos do empenho do ser humano na superação dos obstáculos em
busca da sua realização, ou seja, a aceitação que faz da oferta salvífica de Deus
em sua vida. O crente tem, na adesão à pessoa de Cristo, a possibilidade de
226 MIRANDA, M. F., A Salvação de Jesus Cristo, p. 191.
129
participar de sua salvação. Essa realidade foi, de fato, manifestada na história da
humanidade, na Encarnação do Filho de Deus.
“Desse modo, integra Deus a multiplicidade das criaturas na felicidade eterna da comunhão do Filho e do Pai. Como conseqüência fundamental desse desígnio divino toda criatura não é apenas meio, mas tem seu sentido enquanto intrinsecamente ordenada à manifestação do Filho na história.Cada criatura participa da finalidade salvífica do Criador.” 227
O que nos é confirmado pela teologia é que toda a criação tem seu papel
na salvação do ser humano em Deus. E Gesché tratou, na defesa do cristão, de
trazer à luz elementos fundamentais na construção de um novo sujeito que possa
atuar, de forma integrada com o cosmo, pensando as circunstâncias de sua
liberdade histórica.
A partir de Gesché, sinalizamos uma possibilidade de pensar o tema a
partir da criação, compreendendo todo seu esforço de oferecer à teologia recursos
para um diálogo que o mundo atual exige. Assim fez o autor, nos temas propostos,
para pensar o ser humano e Deus, sempre a partir da criação, como fez com a
questão do mal. É necessário revisitar a criação para pensar a relação da
solidariedade do ser humano com o cosmo, melhor dizendo, da integração do ser
humano com o cosmo, desde sempre presente na tradição, sem que nenhum
elemento seja absolutizado diante do outro.
“A idéia de criação implica que Deus quer algo de novo e de diferente. Que tenha consistência própria e seja querido como tal e, por isso mesmo, em sua diferença, pelo ato divino que a presidiu. É aí que teremos um princípio de inteligibilidade do cosmo que não seja uma redução a si mesmo, nem uma redução ao homem, nem muito menos uma redução a Deus. Isso poderia ser novo.”228
Uma outra reflexão prática exige destaque maior no presente trabalho: o
amor cristão. De tudo o que foi apresentado neste capítulo, a atuação do cristão no
mundo, sem o envolvimento desmedido do amor, não resultaria numa ação
diferente da dos não crentes, que também são capazes de amar sem medidas um
projeto, por exemplo, revolucionário. Onde, então, estaria a diferença, insistida
por Gesché, para o reconhecimento e legitimidade do cristão no mundo atual?
Em Gesché, vimos a caridade como núcleo central do cristianismo, sendo
ponto de partida e chegada para o desenrolar dos muitos aspectos trabalhados. Na
227 MIRANDA, M. F., A Salvação de Jesus Cristo, p. 194. 228 GESCHÉ, A., O Cosmo, p. 9. 230 Toda essa reflexão sobre o amor cristão se encontra no segundo capítulo, na abordagem sobre o mal. Cf. GESCHÉ, A., O Mal.
130
apresentação de alguns relatos bíblicos, o autor mostrou Jesus atuando em defesa
da vítima, revelando a prática da justiça do Reino. A ação salvadora de Deus é
apresentada na pedagogia de Jesus Cristo. Podemos relembrar o bom samaritano,
onde Jesus se preocupa mais com a vítima do que em perseguir os culpados. Essa
diferença o cristão precisa fazer na sua prática, dar testemunho do amor de Cristo,
que tem a preocupação com a salvação e não com a condenação. O tema já teve o
seu lugar neste trabalho, quando tratamos da problemática do mal. Precisamos,
apenas, reforçar que o autor não desconsidera a preocupação com a punição, em si,
daquele que desencadeou o mal. Apenas defende que o amor de Jesus,
manifestado na realização do Reino, não se reduz à justiça do Homem, que enfoca
mais a condenação. A justiça do Reino não corresponde à justiça dos Homens.
Com o mesmo amor que Jesus transformou as relações entre os Homens e Deus,
sem medidas, gratuito, misericordioso, o cristão deve assumir a sua prática. É o
que Gesché chamou de excesso do amor, que só Deus poderia oferecer como
caminho na superação de nossas limitações humanas.230
Vimos os elementos da alteridade e da liberdade como fundantes na
construção da identidade. Vimos que o ser humano é confirmado a partir do outro,
portanto um outro desfigurado fere a condição humana, reduzindo as
possibilidades da identidade poder ser reconhecida e legitimada. A identidade
cristã precisa, para se fortalecer diante do mundo, assumir como condição de sua
legitimidade a luta pelo fim de todo tipo de exclusão que impede o ser humano de
ter uma vida plena. A comunidade de fé é responsável por fortalecer a comunhão
desse amor entre os Homens, pois tem no sacramento da Eucaristia a doação do
Corpo de Cristo, onde sempre podemos rememorar a práxis de Jesus, que nos
salvou convidando-nos a participar dessa salvação. “Na Eucaristia, nutrem-se as
novas relações evangélicas que surgem do fato de sermos filhos e filhas do Pai e
irmãos e irmãs em Cristo”.231
A sociedade atual exige, por parte do cristão, criatividade na sua prática,
principalmente na Igreja, que é mediadora dessa ação pastoral. É importante que
se reconheça que a ação voltada à construção de um novo sujeito de fé exige um
conhecimento dessa fé, que possibilite uma verdadeira práxis de sua inserção
eclesial. Acreditamos que a criatividade encontra-se no preceito atualizado por
231 CELAM, Documento de Aparecida, n. 158.
131
Jesus: “amai-vos uns aos outros como eu vos amo. Ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 12-13). Amar na mesma
intensidade e gratuidade com que fez na sua época. Revisitar todos os conceitos e
expressões que a teologia ofereceu, como propôs Gesché ao tratar de temas bem
conhecidos, pode significar para o cristão uma criatividade, novidade necessária
às novas exigências de novos tempos. O núcleo central do cristianismo, “o amor
fraterno”, na verdade, exige sempre criatividade, pois a dinâmica do amor rejeita
relações cristalizadas. Entendemos, aqui, o que falamos da doutrina como fonte
viva de vida para que a comunidade de fé, movida e sustentada pelo Espírito,
produza e permaneça com os frutos (Jo 15, 16).
Juntos com Gesché, reconhecemos que o cristão, cada vez mais, precisa
testemunhar, na prática do amor, o novo sujeito que deseja ser diante do mundo
em que se encontra. A sociedade da época de Jesus trazia outras exigência e foi lá
que nos foi anunciado esse novo Homem de fé, na Encarnação, no encontro
definitivo do Transcendente com a imanência, unindo todas as possibilidades do
finito se lançar ao (in)finito, tornando-se um em todos e todos em um (Jo 17, 21).
Por isso, o cristão deve viver a sua fé na realidade concreta que o cerca, tornando
viva e atual a ação de Jesus.
Podemos entender que o cristão precisa amar o próximo como critério de
sua salvação, reconhecendo que só podemos proclamar o nosso amor a Deus
através outro, o próximo, sem rejeição alguma (1Jo 4, 20). A prática do fiel e de
sua compreensão eclesial não podem vir dissociadas, sob o risco de desmoralizar a
prática ou a visão eclesial que apresenta. A prática do cristão representa um
testemunho eclesial, pois não temos como afirmar a fé em Jesus Glorificado sem a
mediação da comunidade cristã. Reconhecemos que o amor de Deus pelo próximo,
que se revela no amor entre os Homens, não se limita a um espaço físico. O
critério absoluto do amor de Deus é o próximo, ele estando ou não no espaço da
comunidade. 232
232 MIRANDA, M. F., A Salvação de Jesus Cristo, pp.131-133 O autor desenvolve o tema com muita propriedade e profundidade. Importante conferir.
CONCLUSÃO
Um bom começo para conclusão desse trabalho seria ter como ponto de
chegada a indagação feita por Jesus aos discípulos: “quem dizeis que eu sou?”
(Mt 16, 15). Ou mesmo, iniciar pela apresentação que Jesus faz de si com o “eis-
me aqui”. Ambas as narrativas permitem a construção da identidade cristã. Para
alcançar esse resultado caminhamos juntos com Gesché na compreensão de quem
é o ser humano que proclama a fé no cristo Glorificado. Afirmar, como Pedro o
fez, a identidade de Jesus Cristo, reconhecendo-O como o Filho de Deus, é
possível quando assumimos, na nossa condição humana, a responsabilidade do
sentido que damos à nossa afirmação. Atestamos a existência da identidade de
Cristo como resultado de uma práxis de vida. Reconhecemos as dimensões,
histórica, de Jesus de Nazaré e, da Ressurreição, que deu sentido à confissão de fé
que Pedro fez, ainda diante de Jesus, “Tu és o Filho de Deus” (Mt 1, 22).
A identidade narrativa, elo apresentado como articulador da unidade da
práxis de Jesus, permitiu representar a realidade histórica como realidade de fé.
Lembramos o que foi dito anteriormente sobre o conteúdo da fé: servir ao
reconhecimento legítimo do cristão presente no mundo e autenticar a fé
proclamada no seguimento de Jesus Cristo. Não há como ser cristão, seguir Jesus
Cristo, sem conhecer a fé proclamada. A alteridade, que permitiu o desabrochar da
fé como resposta individual do diálogo entre o ser humano e Deus, não pode
permanecer fechada nela mesma, pois tem o sério risco de se esvaziar num
reducionismo de uma lógica utilitarista de Deus. A fé em Jesus Cristo exige a
práxis vivida por Cristo. Isso é o que queremos evidenciar na prática do cristão,
não uma prática que evidencie somente uma das dimensões da realidade
existencial de Jesus em detrimento da outra, trazendo à tona todas as dificuldades
elencadas neste trabalho, que impedem o diálogo da teologia com as outras
ciências presentes no mundo atual. Principalmente, a dificuldade do cristão de ser
reconhecido e legitimado, na sua prática, se desconsiderar somente a história
como possibilidade de uma vida cristã ou mesmo uma fé ativista que rejeita ou
minimiza a oração como suporte da espiritualidade cristã.
A cristologia, como conteúdo de fé, precisa ser defendida e vivenciada
como revelação de um Deus humano que anunciou, antecipadamente, uma nova
133
realidade existencial, a teologal. O Reino é a antecipação da construção dessa
nova realidade que testemunhamos na fé proclamada. Portanto, a práxis de Jesus
Cristo é condição fundamental para a identidade cristã ocupar o seu lugar como
possibilidade de uma existência construída livremente. Reconhecemos a
identidade do cristão quando narramos, juntos com os apóstolos, o Cristo
Ressuscitado, morto e crucificado. Podemos, então, fazer outro importante
questionamento para o cristão, depois de ter destacado a práxis como critério do
seguimento de Jesus Cristo: como anunciar a mensagem do Cristo Ressuscitado
nos tempos atuais, de modo a provocar o desejo de uma adesão apaixonada pela
pessoa de Jesus? Já destacamos no último capítulo, os sinais dos tempos, a
história como processo, dinamizada pelo Espírito, portanto, atualizada e à espera
de que o Homem saiba discernir, com os critérios da justiça do Reino, os
caminhos que o cristianismo inaugurou na sua história. A primeira herança
recebida é a desfatalização dessa história, que permitiu Jesus agir e, por isso, ser
condenado, porque assumiu a luta pela libertação de tudo que impedia o ser
humano de ter vida digna, tanto no âmbito individual como social e econômico.
Temos, a partir daí, um critério que já foi reconhecido como critério para salvação:
o compromisso com o outro desfigurado na sua humanidade, com o pobre que
pode estar presente no sujeito ou mesmo na estrutura invisível da sociedade, com
aqueles que não enxergamos, mas existem nos porões da humanidade.233
A comunidade de fé, herdeira da mensagem cristã da salvação, deveria ser
responsável pela criação de ações pastorais que promovam uma prática
transformadora, assentada na vivência do amor cristão. Devemos reconhecer na
Igreja a mediação fundamental da expressão desse amor. Bento XVI, na Encíclica
“Deus é Amor”, escreve a todos os cristãos.
“O amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de tudo para cada um dos fiéis, mas o é também para a comunidade eclesial inteira, e isso, em todos os seus níveis: desde a comunidade local, passando pela Igreja particular, até a Igreja universal, na sua globalidade.”234
Torna-se bastante pertinente acentuar o que a Encíclica afirma como dever
de todo crente e de toda comunidade de fé o amor ao próximo, como amor
radicado em Deus. A nossa indagação é a de muitos que buscam atuar com a
233 Cf. MESTERS, C., Seis dias nos porões da humanidade. 234 BENTO XVI, Deus é amor, n. 20.
134
mesma fidelidade e obediência que Jesus atuou em relação à sua missão. Quem é
o meu próximo? Em toda a apresentação de Gesché fomos conduzidos pelos
relatos bíblicos, que mostravam a opção de Jesus pelo excluído como exigência
absoluta da possibilidade de construção da identidade essencialmente cristã.
O cristão tem na Eucaristia sua maior fonte de riqueza, pois é nela que
Jesus estendeu o amor de Deus a todos os seres humanos, concedendo-nos parte
no Reino. Quando abordamos a destinação como realidade existencial, vimos que
Gesché trabalhou a perspectiva escatológica como uma opção teologal que o
cristianismo trazia como novidade e realidade concreta, construída no exercício da
liberdade existencial do ser humano. Sabendo que toda ação do cristão representa
um testemunho de vida, registramos, então, que a prática da justiça do Reino pode
ser uma possível ação criativa para o diálogo com o mundo atual, que vem
sinalizando um distanciamento cada vez maior da comunhão entre os seres
humanos, evidenciando um individualismo exacerbado nas relações sociais.
Buscando exprimir a unidade do Evangelho na vida do cristão, lembramos
o texto da carta de São Paulo aos Coríntios, citado no início do terceiro capítulo, e
a narrativa de São Lucas, nos Atos, desejando realizar na prática o que Deus fez
conosco ao se revelar na condição humana, amando-nos perdidamente.
“ Perseveravam eles na doutrina dos Apóstolos, nas reuniões em comum, na fração do pão e nas orações. Todos os fiéis vivam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e os seus bens, e dividiam-nos por todos, segundo a necessidade de cada um.” (At 4, 42. 44)
Esperamos que as intuições de Gesché, que trouxemos neste trabalho,
ajudem o leitor a responder com mais fundamento à pergunta de Jesus: “e vós,
quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). E desejamos que as respostas – tantas
quantas as experiências pessoais com Ele – se concretizem num generoso “eis-me
aqui” frente aos desafios do mundo atual.
4 Referência bibliográficas
4.1 Bibliografia do autor GESCHÉ, Adolphe. O mal. São Paulo: Paulinas, 2003. (Deus para pensar 1) _____. O ser humano. São Paulo: Paulinas, 2003. (Deus para pensar 2) _____. Deus. São Paulo: Paulinas, 2004. (Deus para pensar 3) _____. O cosmo. São Paulo: Paulinas, 2004. (Deus para pensar 4) _____. A destinação. São Paulo: Paulinas, 2004. (Deus para pensar 5) _____. O Cristo. São Paulo: Paulinas, 2004. (Deus para pensar 6) _____. O sentido. São Paulo: Paulinas, 2005. (Deus para pensar 7) _____. Est si Dieu n’existait pás? Paris: CERF, 2001. _____. Sauver le bonheur. Paris: CERF, 2003. _____. Le mal et la lumière. Paris: CERF, 2003. (Pensées pour penser 1) _____. Les mots et les livres. Paris: CERF, 2004. (Pensées pour penser 2) _____. Le corps, chemin de Dieu. Paris: CERF, 2005. 4.2 Bibliografia teológica básica BENTO XVI. Deus é amor. Vaticano, 2005. (Encíclica papal) _____. A Esperança Cristã. Vaticano, 2007 (Encíclica papal) BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Alteridade & vulnerabilidade: experiência de Deus e pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993. _____. Um rosto para Deus? São Paulo: Paulus, 2005. COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, 2ª ed.. São Paulo: Paulus, 1998. _____. O neoliberalismo: ideologia dominante na virada do século, 3ª ed.. Petrópolis: Vozes, 1999. GIRARD, René. A violência e o sagrado, 2ª ed.. São Paulo: Paz e Terra, 1998. LIBANIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade, 2ª ed.. São Paulo: Loyola, 1992. _____. Eu creio, nós cremos: tratado da fé. São Paulo: Loyola, 2000. MESTERS, Carlos. Seis dias nos porões da humanidade, 2ª. ed.. Petrópolis, Vozes, 1977. MIRANDA, Mario de França. Igreja e pluralismo religioso no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1996. _____. O cristianismo em face das religiões. São Paulo: Loyola, 1998. _____. Inculturação da fé: uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001. _____. Verdade cristã e pluralismo religioso. Atualidade Teológica, ano IX, fasc. 13. Rio de Janeiro: PUC, 2003, p. 32-49. _____. A salvação de Jesus Cristo: a doutrina da graça. São Paulo: Loyola, 2004. _____. Igreja local e sociedade moderna. Atualidade Teológica, ano IX, fasc. 19. Rio de Janeiro: PUC, 2005, p. 9-28.
136
_____. A Igreja no atual pluralismo cultural e religioso. Atualidade Teológica, ano IX, fasc. 21. Rio de Janeiro: PUC, 2005, p. 345-352. _____. A Igreja numa sociedade fragmentada. São Paulo: Loyola, 2006. QUEIRUGA, Andrés Torres. Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé, 2ª ed.. São Paulo: Paulus, 1989. RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo: preleções sobre o Símbolo Apostólico. São Paulo: Loyola, 2005. RÚBIO, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão, 3ª ed.. São Paulo: Paulus, 2001. _____. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de cristologia para nossos dias, 8ª ed.. São Paulo: Paulinas, 2003. _____. Elementos de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para quê?. Petrópolis: Vozes, 2004. SOBRINO, Jon. Cristologia a partir da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1983. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia I: problemas de fronteira, 2ª ed.. São Paulo: Loyola, 1986. 4.3 Bibliografia de ciências humanas BAUMANN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. _____. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa, 8ª ed.. Petrópolis: Vozes, 2006. _____. A Interpretação das culturas. LTC. 2000 KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia, empresa. Porto Alegre: Sulina, 2004. _____. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. PALÁCIO, Carlos. Novos Paradigmas ou fim de uma era teológica? In FABRI, M. (Org.) Teologia aberta ao futuro. São Paulo: Soter/Loyola,1997. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo, 3ª tir.. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 1999. VATIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, 2ª tir. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo