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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
ANDRÉ LUIZ MAGALHÃES BOTELHO
Urbanização na Grande São Pedro,
Vitória/ES e a conservação do manguezal:
palco de contradições
Niterói 2011
ANDRÉ LUIZ MAGALHÃES BOTELHO
Urbanização na Grande São Pedro,
Vitória/ES e a conservação do manguezal:
palco de contradições
Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Geografia do Instituto de
Geociências para obtenção do título de Doutor em
Geografia.
Niterói 2011
B748 Botelho, André Luiz Magalhães
Urbanização na Grande São Pedro, Vitória (ES) e a conservação do manguezal: palco de contradições / André Luiz Magalhães Botelho. – Niterói : [s.n.], 2011.
191 f.
Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal Fluminense, 2011.
1.Urbanização. 2.Conflito socioambiental. 3.Manguezal –
conservação. 4.Vitória (ES). I.Título.
CDD 333.7098152
ANDRÉ LUIZ MAGALHÃES BOTELHO
Urbanização na Grande São Pedro,
Vitória/ES e a conservação do manguezal:
palco de contradições
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Geografia
do Instituto de Geociências para obtenção do título de Doutor em Geografia.
Aprovado em__________________________
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Luiz Renato Vallejo Universidade Federal Fluminense Orientador
Prof. Dr. Jorge Luiz Barbosa Universidade Federal Fluminense
Profª. Dra. Cristina Pessanha Mary Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Gilberto Fonseca Barroso Universidade Federal do Espírito Santo
Drª. Denise Kronemberger Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
AGRADECIMENTOS
A Deus, que proporcionou-me forças e clareza para obter as informações e
concatená-las de maneira concisa.
Ao professor Luiz Renato Vallejo, pela amizade, paciência, valiosos
esclarecimentos e sugestões durante toda elaboração deste documento.
Aos amigos Walace Conti e Liliana Barbosa, moradores e ex-companheiros de
trabalho que estiveram sempre prontos a me receber e proporcionaram
contatos valiosos para a finalização deste trabalho.
Ao Sr. Antonio Fernando Ribeiro, Gerente da Regional 7 que, por mais de uma
vez abriu as portas para mim, fornecendo dados valiosos para o
enriquecimento do estudo.
Ao Sr. Edivaldo Damaceno, um dos mais antigos moradores de São Pedro, que
enriqueceu o trabalho com informações históricas da ocupação e indicou-me
outras valiosas fontes de informações.
Aos pescadores de Resistência, sobretudo Manoel Ferreira e Alexandre Souza,
que foram pacientes durante as conversas e mostraram-se dispostos a
contribuir com mais informações e visitações dentro do bosque.
Aos funcionários da Prefeitura Municipal de Vitória, que me forneceram mapas,
fotos, filmes e informações valiosas para a descrição histórica da ocupação.
Aos funcionários do IEMA, pela disponibilização de mapas cartográficos das
bacias hidrográficas.
Aos funcionários do IBGE, Mauro e Evandro, que foram solícitos em me
receber e disponibilizaram imagens de cartas topográficas do município.
A todos aqueles que de uma forma ou de outra contribuíram para a realização
deste.
Ainda que o trabalho árduo nos tome a mente e o ânimo,
Ainda que o relógio simule uma disputa contra nós
Se os meus olhos por minutos perderem o brilho
E se - como quase sempre - desistir parecer o mais
apropriado...
Por cima das nuvens sabemos que ainda brilha um sol,
Que brilhará para sempre
E veremos que por detrás da tempestade esconde-se um
lindo dia...
Dani Cabrera
…O teu trabalho é a oficina
Em que podes forjar a tua própria luz."
Emmanuel Kant
RESUMO
O município de Vitória/ES foi palco de um processo de urbanização muito
semelhante ao que ocorreu em diversas metrópoles brasileiras em que áreas,
consideradas nobres, são beneficiadas com investimentos e projetos
urbanísticos enquanto outras, de menor interesse imobiliário, são destinadas à
deposição dos resíduos produzidos na cidade. A região noroeste de Vitória/ES,
objeto deste estudo, representa uma destas áreas periféricas, onde a ocupação
ocorreu de forma espontânea e desorganizada. É nesta área também que se
encontra, um vigoroso ecossistema de manguezal mesmo após profundas
modificações estruturais resultantes das demandas da população excluída por
moradia e descaso das autoridades para com a preservação ambiental.
Embora a área já esteja ocupada desde a década de 1940, a taxa de ocupação
intensificou-se a partir da década de 1960 como conseqüência, principalmente,
de alterações no quadro econômico brasileiro e internacional estimulando o
movimento migratório campo-cidade. A ocupação da região alcançou seu ápice
na década de 1980 e expandiu-se urbanisticamente de maneira vertiginosa até
o inicio do século XXI. Após diversas alterações nas políticas públicas desde o
início da ocupação, na década de 1990 o poder público iniciou a
implementação de projetos co-participativos, que culminaram na atual
conformação urbana dos bairros integrantes da Grande São Pedro.
Atualmente, embora a malha urbana dos bairros da região esteja estruturada
por meio de diversas ações e políticas implementadas, ainda existem
problemas, sobretudo na interface meio urbano-natureza, a serem corrigidos. A
despeito da importância da conservação do exuberante manguezal
remanescente na área, os instrumentos para garantir sua preservação são
frágeis e o saneamento da malha urbana adjacente é ainda ineficaz, causando
impactos neste ecossistema.
Palavras-chave: Urbanização, Conflitos socioambientais da ocupação e
Conservação do manguezal
ABSTRACT
The municipality of Vitória/ES was the scene of an urbanization process very
similar to what occurred in several Brazilian metropolis in which areas,
considered nobles, benefit with investments and urban designs while other, less
real estate interest, are intended for deposition of waste produced in the city.
The region Northwest of Vitória/ES, object of this study, represents one of these
peripheral areas where the occupation occurred spontaneously and
disorganized. It is in this area too, that is, even after profound structural
changes resulting from the demands of the population excluded by housing and
neglect of the authorities towards environmental preservation, a vigorous
ecosystem of mangrove swamp. Although the area is already occupied since
the Decade of 1940, the occupancy rate has intensified from the Decade of
1960, mainly as a result of changes in Brazilian and international economic
framework encouraging migratory movement field-city. The occupation of the
region reached its Apex in the late 1980 and expanded urbanistic spectacularly
until the beginning of the 21st century. After several changes in public policy
from the beginning of the occupation, in the Decade of 1990 the Government
began implementing co-participativos projects, culminating in the current urban
conformation of integral neighbourhoods of greater São Pedro. Currently,
although the urban fabric of neighborhoods of the region is structured through
various actions and policies implemented, there are still problems, especially in
the urban interface-nature, to be fixed. Despite the importance of conservation
of lush mangrove remaining in the area, the instruments to ensure its
preservation are fragile and the improvement of the urban fabric adjacent is still
ineffective causing impacts in this ecosystem.
Keywords: Urbanization, Environmental conflicts of the occupation and
Mangrove Conservation
10
1. Introdução .................................................................................................................. 13
2. Métodos e Técnicas .................................................................................................... 24
3. Fundamentos conceituais e Teóricos ......................................................................... 28
3.1 ESPAÇO URBANO E URBANIZAÇÃO ................................................................................................................. 28
3.2 TRANSFORMAÇÕES INERENTES AO CRESCIMENTO URBANO ................................................................................. 30
3.3 POLÍTICAS PÚBLICAS, COMPETÊNCIAS E O ORDENAMENTO URBANO ...................................................................... 35
3.4 MANGUEZAIS E OS SERVIÇOS AMBIENTAIS ....................................................................................................... 46
3.5 O AUMENTO POPULACIONAL E A PRESSÃO SOBRE OS MANGUEZAIS ..................................................................... 52
3.6 CONSERVAÇÃO DOS MANGUEZAIS NO BRASIL .................................................................................................. 59
4. A Urbanização em diferentes escalas ......................................................................... 63
4.1 BREVE HISTORICO GLOBAL DA URBANIZAÇÃO ................................................................................................. 63
4.2 HISTÓRICO NACIONAL DO CRESCIMENTO URBANO ........................................................................................... 65
4.3 PROBLEMAS GERAIS DO CRESCIMENTO URBANO NO BRASIL ............................................................................... 70
4.4 URBANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO ......................................................................... 72
4.5 URBANIZAÇÃO DA CIDADE DE VITÓRIA ........................................................................................................... 77
5. Os manguezais em Vitória (ES) e sua conservação legal ............................................ 85
5.1 OS MANGUEZAIS DA BAÍA DE VITÓRIA ........................................................................................................ 85
5.2 INSTRUMENTOS LEGAIS DE CONSERVAÇÃO DOS MANGUEZAIS EM VITÓRIA ............................................................. 92
6. Conflitos entre crescimento urbano e a conservação dos manguezais em Vitória . 104
6.1 DESTRUIÇÃO E DEGRADAÇÃO DOS MANGUEZAIS EM VITÓRIA ............................................................................ 104
6.2 URBANIZAÇÃO DO MANGUEZAL DA REGIÃO NOROESTE ................................................................................... 112
6.3 A QUESTÃO SOCIAL E OS MANGUEZAIS ......................................................................................................... 141
7. As grandes contradições entre a urbanização e a conservação do manguezal na
Grande São Pedro ......................................................................................................... 150
8. Conclusões ................................................................................................................ 156
9. Referências Bibliográficas ......................................................................................... 163
ANEXOS ......................................................................................................................... 179
11
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Distribuição das florestas de manguezal no globo...................................................... 47
Figura 2 - O emaranhado de raízes dos manguezais ajuda na retenção de sedimentos fluviais e
protegem a costa dos processos erosivos causados pela hidrodinâmica (foto inferior - Baía de
Bengala, África). .......................................................................................................................... 49
Figura 3 - Modelo ilustrativo do sistema de manguezal. ............................................................ 50
Figura 4 - Os manguezais abrigam elevada biodiversidade ........................................................ 51
Figura 5 - População costeira mundial ........................................................................................ 55
Figura 6 - Supressão de manguezais entre 1980 e 2005 no mundo. .......................................... 58
Figura 7 - Evolução demográfica do Estado do ES (1872 – 2009) ............................................... 73
Figura 8 - Principais indústrias da microregião de Vitória e municípios vizinhos ....................... 75
Figura 9 - Mapa das Indústrias da microregião de Vitória e municípios vizinhos ....................... 76
Figura 10 - Planta do Projeto Novo Arrabalde. ........................................................................... 79
Figura 11 - Traçado da estrada de ferro Vitória-Minas. .............................................................. 79
Figura 12 - Mapa Ferroviário Brasileiro. ...................................................................................... 80
Figura 13 - Embarque de carvão no Porto de Vitória na década de 1950. ................................. 81
Figura 14 - Evolução demográfica de Vitória/ES. ........................................................................ 84
Figura 15 - A região Noroeste da Baía de Vitória insere-se na malha urbana de dois municípios,
Vitória (delimitado pela linha vermelha) e o município de Serra (ao norte). Destacam-se os
bairros da grande São Pedro (na porção inferior) e ao centro a área do manguezal exposto aos
impactos urbanos. ....................................................................................................................... 86
Figura 16 - Bacia do rio Santa Maria de Vitória. .......................................................................... 87
Figura 17 - Foz do rio Santa Maria de Vitória .............................................................................. 87
Figura 18 - Área intensamente urbanizada em Resistência, com destaque para a exuberante
vegetação do manguezal em seu entorno. ................................................................................. 89
Figura 19 – Manguezais em frente à ilha das Caieiras, porção noroeste, preservados. ............. 90
Figura 20 - Unidades de Conservação existentes no município de Vitória. Destaque para o
Manguezal da UFES (3), a Ilha do Campinho (9), a Ilha do Crisógono (29), Estação Ecológica Ilha
do Lameirão (54), Parque Nat. Mun. Vale do Mulembá-Conquista (56) e Parque Dom Luis
Gonzaga Fernandes (Baía Noroeste) (61); todos em interface direta com a Grande São Pedro.
..................................................................................................................................................... 91
Figura 21 - Unidades de Conservação do Espírito Santo ............................................................. 95
Figura 22 - Grande São Pedro em 1988. ..................................................................................... 96
Figura 23 - Pier na Ilha das Caieiras, com restaurantes (abaixo à direita) e passeio público
(abaixo à esquerda) para contemplação da natureza. ................................................................ 98
Figura 24 - Parque Municipal Baia Noroeste de Vitória. ........................................................... 101
12
Figura 25 - Praia do Canto no início da década de 1970 ........................................................... 105
Figura 26 - Av Cesar Hilal, bairro Praia do Canto ao final da década de 1980 .......................... 105
Figura 27 - Inicio da ocupação da Grande São Pedro (1985). ................................................... 107
Figura 28 - Estação Rodoviária recém construída ..................................................................... 108
Figura 29 – Condições de moradia no inicio da ocupação em São Pedro (1985) ..................... 109
Figura 30 - Uso do bairro São Pedro como lixão municipal na década de 1970. ...................... 110
Figura 31 - Lixão de São Pedro (1986) ....................................................................................... 113
Figura 32 - Lixão como fonte de renda em São Pedro .............................................................. 114
Figura 33 - Caminhões levando terra destinada a cobrir o lixo em São Pedro (1989) .............. 116
Figura 34 - Caminhão aterrando o lixão sobre o manguezal em São Pedro. ............................ 116
Figura 35 - Grande São Pedro (1986) ........................................................................................ 118
Figura 36 - Ocupação inicial do manguezal em São Pedro (1980) ............................................ 120
Figura 37 – Área aproximada (em laranja) dos atuais limites dos bairros São Pedro III e
Conquista .................................................................................................................................. 121
Figura 38 - Usina de tratamento de Lixo, São Pedro (1991) ..................................................... 124
Figura 39 - Inicio da urbanização em Resistência (1991). ......................................................... 125
Figura 40 - Invasão anterior à delimitação da área de Preservação (1988) .............................. 127
Figura 41 - Retomada da área pelo bosque de mangue após remoção das casas e delimitação
da área a ser preservada (1997). ............................................................................................... 127
Figura 42 - Bairros formadores da Grande Sâo Pedro. ............................................................. 128
Figura 43 - Mapa atual dos bairros do município de Vitória dividido em regionais. ................ 128
Figura 44 - Manilhas de saída dos efluentes da Elevatória de Água Tratada da Cesan em
Resistência ................................................................................................................................. 135
Figura 45 – Efluentes oriundos da Elevatória lançados no manguezal ..................................... 135
Figura 46 - Drenagem do esgoto dos bairros Ilha das Caieiras, Nova Palestina e adjacentes e
seu lançamento no mangue. ..................................................................................................... 138
Figura 47 - Demarcação de lotes em área subjacente ao manguezal (1977) ........................... 144
Figura 48- Demarcação de lotes no manguezal (1986) ............................................................. 144
Figura 49 - Ilha das Caieiras em 1970 (área elevada à esquerda) ............................................. 147
Figura 50 - Ilha das Caieiras em 1980 (dimensão aproximada da área atual, delimitada em
preto) ......................................................................................................................................... 147
Figura 51 - Ilha das Caieiras em 2009 (delimitada em laranja) ................................................. 148
Quadro 1 – Síntese das contradições entre conservação e ocupação/degradação dos
manguezais na Grande Vitória/ES (instrumentos políticos e processos)…………………………..151
13
1. INTRODUÇÃO
Desde que o ser humano aglomerou-se para viver em sociedade, o ritmo
do uso dos recursos naturais existentes à sua volta, os quais serviram para
suprir suas necessidades de crescimento demográfico, acelerou-se
geometricamente (STERN, 1993). Esta situação está diretamente relacionada
com a crescente necessidade de bens de consumo pela sociedade humana,
comportamento notado já a partir das primeiras culturas milenares na China,
Índia, Mesopotâmia, Egito, Roma e mesmo dos povos das culturas americanas
que nasceram às margens dos grandes cursos de água, utilizando-se deste
recurso para atender suas necessidades primárias de vida e subsistência
agrícola e pecuária (SCHNIFF, 1996).
Como consequência da aglomeração humana, os ecossistemas
explorados foram paisagisticamente alterados de forma profunda, para atender
às necessidades geradas pelo aumento populacional. O exemplo mais evidente
de tais alterações, a nível global, numa ampla escala temporal, foi a intensa
exploração agrícola que contribuiu para a desertificação da região norte da
África com o objetivo de atender a demanda por grãos do crescente “mundo
romano” (WRI, 1997).
Embora, historicamente os locais de origem e crescimento das cidades
estivessem intrinsecamente relacionados aos corpos de água doce para sua
utilização direta, estas áreas não são necessariamente as mais produtivas do
planeta. Isto, certamente, contribuiu para impulsionar a espécie humana em
direção às regiões costeiras, já que um percentual superior a 60% da
14
população mundial vive numa faixa estreita de terra de até 50 km de distância
do mar e se utiliza de seus recursos de forma direta ou indireta (UNEP, 1997)1.
Em regiões tropicais os diversos ecossistemas, tanto terrestres como
aquáticos, apresentam elevada taxa de produtividade primária líquida2. Dentre
os mais produtivos destacam-se os manguezais, que também detem uma das
maiores biodiversidades do planeta (FONSECA; DRUMMOND, 2002). Estes
ecossistemas contêm os elementos primordiais para atender, com relativa
eficiência, as necessidades biológicas básicas e, por isso, se constituíram em
alvos de assentamentos de uma grande parte da população humana.
Contudo, esta biodiversidade tem diminuído, à medida que a população
humana se expande. Estudos, como o realizado por Wilson (1989), indicam
que nada menos que 40% da produtividade primária líquida total do ambiente
terrestre é usada ou desperdiçada, de alguma maneira, por populações
humanas.
Como exemplo desta assertiva, o citado autor estimou, de maneira
otimista, que 1% das florestas tropicais do mundo é destruído anualmente.
Além disso, cálculos realizados sugeriram uma perda anual entre 0,2% e 0,3%
de todas as espécies (20.000 a 30.000 espécies, baseando-se num total de 10
milhões). A estimativa do autor dificilmente seria projetada para os
manguezais, devido à elevada gama de funções associadas a estes sistemas.
Os manguezais são considerados áreas de transição, onde ocorrem
intensos processos de reciclagem de nutrientes e de elementos geoquímicos,
1 United Nations Environment Programme
2 Produtividade primária líquida é a taxa de armazenamento de matéria orgânica nos tecidos da
planta que excedam o uso respiratório durante certo período (ODUM; BARRETT, 2007).
15
além se se constituírem em áreas de reprodução, crescimento e alimentação
para diversas espécies de importância ecológica e econômica. Também
servem como áreas de descanso para espécies migratórias (SCHAEFFER-
NOVELLI; CINTRÓN, 1986). Quantificar a perda da biodiversidade e recursos,
sofrida por esses ecossistemas em escala global, torna-se extremamente difícil
diante da complexidade dos processos envolvidos e suas interações com as
interferências humanas.
Esses aspectos conferem aos manguezais extrema importância para os
povos costeiros dos trópicos, tanto que esta relação é denominada como
„simbiose‟ entre as comunidades tradicionais e estes ecossistemas; um modo
de vida em que atividades econômicas, sociais e culturais dependem
fundamentalmente da existência do manguezal (DIEGUES, 1993).
As análises sobre a destruição da biodiversidade também devem
considerar as desigualdades econômico-sociais. Desde a década de 1970 as
relações entre a desigualdade social e perda de biodiversidade têm sido
assinaladas nos trabalhos de Dasmann, Milton e Freeman (1973), Kummer e
Turner (1994) e Skole e colaboradores (1994). Estes pesquisadores defendem
a hipótese de que, em muitas situações, as pessoas de menor poder
econômico que vivem no meio rural, ou em áreas de maior riqueza biológica,
são naturalmente levadas a explorar comunidades biológicas e caçar espécies,
mesmo aquelas ameaçadas de extinção, por força das necessidades de
sobrevivência.
Entretanto, a destruição de manguezais também tem como responsáveis
a implementação de atividades de alta rentabilidade como no caso de resorts e
construção de condomínios de luxo (BOTELHO; VALLEJO, 2001)
16
exemplificados no município de Angra dos Reis. Além disto, existem muitos
casos em que os assentamentos populacionais não significam a sobre-
exploração ou esgotamento dos recursos ou de qualquer de seus elementos
(peixes, crustáceos, árvores, etc). Prova disto são as comunidades
tradicionais3 que mantém suas atividades de origem respeitando as limitações
dos recursos naturais de que dispõem (DIEGUES, 1983; PRIMARCK;
RODRIGUES, 2001).
Contudo, com a consolidação do capitalismo e das sociedades
modernas materialistas houve uma aceleração na demanda por recursos
naturais, de forma a atender ao novo modelo de desenvolvimento e os
interesses de determinados grupos dentro da sociedade. Desta forma, as
atividades comerciais em grande escala e a especulação imobiliária, se
expandiram vertiginosamente (MEYER; TURNER, 1994).
O ápice destas demandas concretizou-se na metade do século XX com
o ritmo de expansão desenfreada das cidades que, segundo Dias (2002) são
“uma das maiores criações do homem”. O citado autor sugere ainda que, entre
as principais causas deste crescimento estão a má administração, a corrupção,
a pressão populacional e o colapso ambiental.
A aglomeração nas cidades continua causando profundas modificações
nas paisagens naturais e promovendo um aumento no consumo, ocasionando
pressões ecológicas até então não registradas na evolução humana, porém
com consequências já apontadas no ano de 1962 por Fritz Kahn ao assinalar,
3 Povos e Comunidades Tradicionais no contexto do Art. 3º do Decreto Lei 6040 de 07 de
Fevereiro de 2007 são descritos como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007)
17
em sua obra “O Livro da Natureza”, que “a cidade transformou-se em aranha
cujas pernas são as estradas, com a Terra como sua presa, os fios do telégrafo
e os trilhos da estrada de ferro são as teias” (KAHN, 1962, p.283).
Acompanhando os processos de desenvolvimento da sociedade
ocidental, o Brasil industrializou-se e urbanizou-se ao longo do século XX
(ROCHA; PIZZOLATTI, 2005), passando de uma sociedade fundamentada na
vida e na produção agrária para o modelo urbano-industrial no contexto das
transformações internas e externas (GRAHAM; HOLANDA FILHO, 1973).
Estas mudanças geraram relações urbano-rurais diretas, em função das
transformações técnicas e sociais no campo, resultantes da revolução
tecnológica das práticas agrícolas e da industrialização do território,
estimuladas pela urbanização (ROCHA; PIZZOLATTI, 2005). A configuração da
urbanização, segundo os autores, estimulou cada vez mais a preferência pela
cidade em relação ao campo, tanto pela disponibilidade de diversas estruturas
e equipamentos urbanos, como também por sua função catalisadora,
possibilitando a incorporação dos moradores de áreas rurais ao mercado de
trabalho das cidades.
Admitindo a forte relação entre crescimento urbano e a migração
interna associada ao processo de urbanização e a complementaridade dos
processos, Graham e Holanda Filho (1973) argumentam que, a princípio, o
crescimento urbano ocorria de forma quase indistinta. No entanto, quando se
consolidou o processo de desenvolvimento industrial no sudeste do Brasil, a
força concentradora dos investimentos produtivos colaborou para o
crescimento das cidades de médio e grande porte e, especialmente das
metrópoles.
18
A evolução do processo de urbanização no município de Vitória-ES não
foi diferente. Até 1890, o município convivia com a ausência de tratamento de
esgoto, escasso abastecimento de água e péssimo serviço de iluminação a gás
(OLIVEIRA, 1975).
A expansão da lavoura cafeeira, aliada ao aumento dos preços no
mercado externo, impulsionou o crescimento da receita, acentuando a função
comercial da cidade. Embora esse tenha sido um período de expansão urbana
e econômica, não existem registros de crescimento populacional urbano e sim
de um maior adensamento nas regiões rurais cafeeiras, portanto, os
aterramentos que ocorreram neste período vieram atender ao mercado
emergente em regiões próximas à Baía de Vitória (CAMPOS JÚNIOR, 1996).
O crescimento populacional mais intenso só veio ocorrer a partir da
década de 1960, devido à crise no mercado do café que ocasionou maiores
taxas de migração da zona rural para a região urbana, pela busca de empregos
nos setores portuário, industrial e da construção civil; atingindo seu auge na
década de 1980. Neste período, a população do município de Vitória aumentou
em 363% (de 194.311 para 706.138 habitantes), o que acarretou problemas
sociais graves, tais como o surgimento de subempregos e submoradias. Este
novo contingente populacional de desempregados distribuiu-se em áreas
menos valorizadas e pouco seguras, tais como encostas de morros e
manguezais (FERREIRA, 1989).
A Ilha de Vitória com sua face ocidental quase totalmente ocupada pelo
Maciço Central, de relevo acidentado e escarpado, com cotas de 130 metros e
declividades acentuadas, foi palco, ao longo do tempo, de intensa ocupação da
face noroeste, composta principalmente, por manguezais.
19
Contudo, o assentamento da população nestas áreas exigiu uma série
de aterramentos, que foram intensificados em 1977 e estenderam-se até o ano
de 1989, quando a Prefeitura Municipal iniciou um projeto de contenção às
invasões e proteção dos remanescentes de manguezais (NUNES, 1998). A
despeito da importância que se atribui hoje às áreas de manguezal, o Brasil
apresenta diversos problemas e contradições flagrantes associados com a
urbanização e gestão territorial dessas áreas.
No contexto do uso do solo, se consideradas a propriedade da terra e
inexistência de programas para atender o público local e das áreas limítrofes,
os ecossistemas protegidos tornam-se suscetíveis à ocupação,
desmatamentos, agricultura ilegal, poluição dos recursos hídricos e solo,
turismo desorganizado, mineração e manejo pelo uso do fogo (OLIVEIRA;
PANITZ; POMPÊO, 2002).
Entretanto, em geral as iniciativas no sentido de envolver as
comunidades próximas na conservação de áreas naturais, incluindo a
possibilidade de implantação de Unidades de Conservação4 (UCs), acabam se
transformando num fator de conflito, gerando na população um sentimento de
rejeição às próprias áreas preservadas. Isso explica, em parte, as práticas de
vandalismo e crimes ambientais cometidos em muitos parques, reservas, etc
(HARRIS; FELLOWS, 1994).
Paralelamente aos conflitos resultantes das estratégias utilizadas para
preservação de áreas-chave incluindo os manguezais, também ocorreram
4 As Unidades de Conservação (UCs), conforme o disposto na Lei nº 9.985, de 18 de julho de
2000, são espaços territoriais e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção. (BRASIL, 2000)
20
embates associados com a expansão urbana, envolvendo a perda de recursos
naturais e uso das áreas pelas comunidades tradicionais, principalmente
porque a preocupação em planejar, de forma coerente, a ocupação e o uso do
espaço costeiro é recente no Brasil (MORAES, 2007).
Quando as pressões da expansão da malha urbana sobre áreas de
preservação permanente são constantes, sobretudo quando exarcebadas pela
indisponibilidade de espaço, como no caso da Ilha de Vitória, são necessários
estudos de viabilidade que forneçam subsídios às propostas alternativas de
desenvolvimento.
Dentro deste contexto conflituoso envolvendo o crescimento urbano e
a conservação ambiental em manguezais, a presente proposta se volta para
análise do crescimento histórico da malha urbana do município de Vitória -
Espírito Santo, considerando a forma de ocupação desordenada das
populações instaladas nos limites de áreas naturais do município. Para esse
fim, foi selecionada a floresta de manguezal localizada no setor noroeste da
Baía de Vitória inserida na Região Metropolitana, portanto, constituinte de
áreas que sofrem continuamente pressões decorrentes do crescimento urbano.
Em face das contradições socioespaciais apresentadas, emergem
várias questões, dentre as quais destacamos como central para o projeto em
tela a seguinte:
De que forma as ações do poder público interferiram na supressão do
manguezal na região noroeste, em Vitória/ES, visando a urbanização da
Grande São Pedro?
A partir da questão central, apresentam-se subquestões que se
complementam:
21
Quais foram as contradições socioespaciais do processo de expansão
sócio-econômica da cidade de Vitória que responderam pela ocupação das
áreas naturais selecionadas para o presente estudo?
Em que medida a ocupação do solo e o uso de recursos naturais foram
responsáveis pela degradação das áreas naturais selecionadas para o
presente estudo?
A partir desses questionamentos busca-se analisar as contradições
socioespaciais inerentes à gestão territorial aplicada à cidade de Vitória, tendo-
se como hipótese central:
“Considerando que a expansão urbana é um dos processos responsáveis
pela degradação dos espaços naturais, supõe-se que o mesmo modelo
contraditório tenha ocorrido na região Noroeste da Baía de Vitória/ES em
relação aos manguezais”
Objetivos Geral e Específicos
Geral
Identificar as contradições socioespaciais do processo de produção e
expansão territorial da malha urbana dos bairros constituintes da Grande São
Pedro sobre o ecossistema de manguezal anteriormente existente na área e de
outros manguezais circunvizinhos à cidade de Vitória/ES.
Específicos
1. Descrever o processo histórico de urbanização da Grande São Pedro e seus efeitos na distribuição espacial do manguezal da região Noroeste da Baía de Vitória
2. Avaliar os conflitos de uso do solo durante a urbanização da Grande São Pedro sobre o manguezal circunvizinho
3. Identificar as políticas públicas voltadas à urbanização da Grande São Pedro e suas conseqüências acerca da ocupação populacional sobre o manguezal
22
Esta tese está estruturada em quatro capítulos. Inicialmente foram
abordados os grandes temas e conceitos fundamentais que respaldam o
debate teórico, tais como: espaço urbano e urbanização; impactos ambientais
do crescimento urbano; políticas públicas, competências e ordenamento
urbano; manguezais, serviços ambientais e os conflitos do aumento
populacional; e a conservação dos manguezais no Brasil.
No capítulo seguinte, o tema principal é o histórico da urbanização e do
crescimento urbano, tratados em múltiplas escalas (do mundial ao local)
buscando-se estabelecer padrões no processo de crescimento, descrevendo-
se os processos de estruturação urbana associados à evolução econômica e
social nestas esferas, possibilitando a comparação entre o processo nas
diferentes dimensões.
A seguir, são descritos os processos ecológicos do manguezal e a
importância deste ecossistema na região noroeste da Baía de Vitória. De
maneira geral, buscou-se estabelecer as relações com o modo de vida das
comunidades tradicionais locais e os vínculos entre as atividades de extração
sustentáveis e a importância do ecossistema. Além disso, são discutidas as
ações tomadas pelos diversos atores e os instrumentos legais existentes e
criados para a conservação dos recursos naturais deste ecossistema, ao longo
do período estudado.
No último capítulo, são apresentadas as consequências do processo de
urbanização do manguezal da região noroeste da baía de Vitória cristalizados
na forma de conflitos territoriais, degradação ambiental e as influências sobre
as comunidades tradicionais. Também são explorados a criação e a
implementação de instrumentos de política urbana que visaram ordenar a
23
urbanização equilibrando-a com os pressupostos da conservação aplicados
aos manguezais, principalmente em função do potencial produtivo da área.
Nas conclusões, procurou-se associar os processos sócio-históricos que
ocorreram ao longo da ocupação e que conduziram a urbanização da área,
relacionando-os com as políticas públicas implantadas e suas conseqüências,
tanto sobre a população local quanto sobre o manguezal remanescente.
24
2. MÉTODOS E TÉCNICAS
O recorte espacial da pesquisa é a porção noroeste da Baía de Vitória -
ES, contudo, o objetivo do estudo não foi entender a situação territorial dos
manguezais e sua relação com o complexo urbano da Grande São Pedro com
base apenas nas realidades imediatamente visíveis. Enquanto método de
investigação científica, acredita-se que essas realidades são extensões do que
já ocorreu ou continua ocorrendo localmente, além de estarem relacionadas,
direta ou indiretamente, aos contextos nacionais e internacionais. Assim sendo,
a escala geográfica emerge enquanto instrumento analítico da realidade social
em questão. Para tanto, o método de investigação implica o entrecruzamento
de políticas e práticas sociais nas mais diversas escalas geográficas, visando
destacar aspectos gerais e singulares do objeto de pesquisa em questão.
De um modo geral, as características e problemas sócio-ambientais
contemporâneos originam-se em processos sócio-históricos, como apontado
por Milton Santos em sua reflexão sobre a relação espaço-tempo. O autor
destaca a heterogeneidade das formas existentes no espaço; “os objetos
espaciais não são todos do mesmo período e possuem idades diferentes
perfazendo o espaço como uma acumulação desigual de tempos” (SANTOS,
1978, p. 209). Com base nesta argumentação, a pesquisa orientou-se por uma
abordagem eminentemente geográfica, já que as realidades espaciais foram
entendidas como produtos de dinâmicas temporais. Cabe lembrar que a
criação de espaços naturais protegidos surge como resultado de um esforço
internacional no sentido de resguardar o que restou dos ecossistemas nativos.
25
Em linhas gerais, a investigação promove o entrecruzamento de escalas
geográficas, acumulação desigual de tempos, isto é, a presença de
territorialidades distintas nos manguezais circunjacentes à malha urbana das
cidades e, por fim, os conflitos territoriais. Neste contexto, a dialética, enquanto
método de investigação das realidades sociais torna possível resgatar o
território enquanto expressão das contradições sociais.
Para fins de operacionalização, no primeiro momento a pesquisa
considerou os aspectos históricos mais importantes que levaram à expansão
urbana em escala mundial e nacional. Buscaram-se elementos sobre a
evolução do processo considerando as suas origens mais remotas e o
conhecimento das diretrizes atuais. Quais as contradições e motivações que
conduziram à ocupação e urbanização da área? Quais as políticas públicas
implantadas? Essa demanda foi atendida através de pesquisa bibliográfica,
priorizando-se a compreensão da evolução conceitual; e de campo observando
as vivências locais e comparando o panorama real com as propostas
institucionais.
O crescimento urbano acelerado em uma região originalmente rica em
recursos naturais, assim como na região da Grande São Pedro em Vitória/ES,
pode causar alterações irreversíveis aos ecossistemas existentes na área e
trazer consequências severas à população dependente destes sistemas.
Assim, a análise, tanto do crescimento da malha urbana quanto dos processos
sociais associados, poderá ser útil para futuras tomadas de decisão visando a
um desenvolvimento equilibrado em cenários similares.
A busca por informações que pudessem testar a hipótese proposta no
estudo foram realizadas no âmbito de órgãos públicos e privados que detêm
26
dados acerca do desenvolvimento urbano da cidade. Para tanto foram
coletadas informações sobre a ocupação e expansão da malha urbana da área
no Arquivo Público Estadual, no Arquivo Público Municipal, no Instituto Jones
dos Santos Neves, na biblioteca central da Universidade Federal do Espírito
Santo e na Prefeitura Municipal de Vitória.
Dados cartográficos, sob a forma de imagens de satélites,
aerofotogramas e mapas que pudessem elucidar a evolução temporal da malha
urbana e sua relaçao direta com a supressão do manguezal, foram obtidos
junto ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Instituto Estadual
de Meio Ambiente do Espírito Santo, o Instituto de Defesa Agropecuária e
Florestal do Espírito Santo e junto a Subsecretaria de Tecnologia da
Informação (GEO) da Secretaria de Fazenda da Prefeitura Municipal de Vitoria.
Analisar as alterações e processos que ocorrem durante a
transformação de um sistema natural em área urbana, considerando as
diversas dinâmicas sociais envolvidas, é utilizar-se de um método empírico já
que decorre de tentativa de enquadramento dos processos observados em
seus arcabouços teórico-conceituais
Na prática a técnica de coleta de dados utilizada foi, em sua maior parte,
a pesquisa documental e bibliográfica, e em menor monta a observação direta
intensiva assistemática e individual na forma de entrevistas qualitativas
despadronizadas e não dirigidas que permitiram estabelecer um contraponto às
informações fornecidas pelos órgãos públicos a partir da percepção de atores
sociais locais.
27
A análise comparativa entre cenários prévios da área estudada e sua
condição atual foi realizada adotando a lei da mudança da dialética, ou seja,
pela observação das alterações estruturais socioambientais que ocorreram
tanto de maneira contínua quanto por meio de saltos.
Para atender aos objetivos estabelecidos e testar a hipótese aqui
proposta buscou-se descrever o processo de crescimento da malha urbana da
região noroeste da baía de Vitória com destaque para o período entre os anos
de 1980 quando inciou-se a ocupação, e 2000, período considerado como
ápice da urbanização dos bairros formadores da região.
28
3. FUNDAMENTOS CONCEITUAIS E TEÓRICOS
3.1 ESPAÇO URBANO E URBANIZAÇÃO
O „espaço urbano‟ pode ser abordado de diversas maneiras de acordo
com suas múltiplas características. Segundo Corrêa (1997), ele pode ser
fragmentado e justaposto de inúmeras paisagens e usos do solo, que na
cidade originam um mosaico urbano constituido pelo núcleo central, a zona
periférica do centro, áreas industriais, subcentros terciários e áreas residenciais
distintas em termos de formas e conteúdo, tais como áreas de lazer,
condomínios exclusivos e favelas.
O „espaço urbano‟, para o autor, é fragmentado, desigualmente
produzido e apresenta diferentes arranjos espaciais desta fragmentação,
contudo, é articulado com as diversas partes mantendo relações entre si e,
graças à articulação, o „espaço urbano‟ conquista unidade e manifesta-se
através de fluxos de pessoas e produtos.
Além disto, o espaço urbano é uma condicionante social que se
materializa através das condições e relações de produção reproduzindo as
diversas classes sociais e suas funções (SANTOS, 1996), tornando-se então
um campo simbólico de dimensões e significados variáveis, conforme as
classes e grupos etários e étnicos; portanto, estruturado pela confluência de
processos sociais e espaciais.
A concepção de espaço urbano, estruturado a partir de uma
convergência dos processos sociais e espaciais, coincide com o conceito
adotado por Lefebvre (1991) para descrever a urbanização como parte
integrante e essencial da produção do espaço pelo capitalismo. Desta forma,
29
adotando o conceito de espaço como algo mais do que uma área geográfica
física a ser preenchida por populações organizadas social, econômica e
politicamente, pode-se considerar a concepção ampliada de urbanização de
Giddens (1989) caracterizada por processos sociais de maior significação na
estruturação do território.
Assim a urbanização pode ser compreendida como a concatenação e
concretização espacial de movimentos, de reprodução e distribuição das
atividades produtivas e da população, em disputa pelo espaço, que no
capitalismo traduzem-se nas estratégias do capital e do trabalho para garantir
suas respectivas reproduções. As diferenças de intensidade e de articulação
entre tais processos variam historicamente e conformam a estruturação da
produção e do território.
Em uma análise contemporânea, não se pode enfocar a questão urbana
sem destacar a história do processo de urbanização, que, por sua vez, introduz
a problemática do desenvolvimento das sociedades (CASTELLS, 1974). Para o
autor, o termo urbanização tem dois sentidos distintos: concentração espacial
de uma população, a partir de certos limites de dimensão e de densidade e
difusão de sistema de valores, atitudes e comportamentos denominado “cultura
urbana”.
Sob esta ótica, o termo urbanização se refere tanto à constituição de
formas espaciais particulares que tomam as sociedades, caracterizadas pela
concentração de atividades e de população sobre um determinado espaço,
quanto à existência de um sistema de organização cultural particular
denominado „cultura urbana‟.
30
O processo de urbanização contém uma dinâmica própria na qual uma
população se concentra em um determinado espaço e estabelece relações
sociais que se materializam e conformam o espaço físico-territorial urbano. São
as aglomerações urbanas que se apresentam funcionalmente e socialmente
interdependentes, com uma relação de articulação hierarquizada, formando
redes urbanas de cidades.
Considerando a análise de Castells (1974) para o termo urbanização, é
possível então adotar a concepção de crescimento urbano proposta por Mello e
Silva (1989). Este autor considera que, há uma correspondência direta entre a
concepção de crescimento urbano e a idéia da expansão urbana, com suas
repercussões nos padrões de povoamento e organização de uma determinada
sociedade.
De acordo com esta ótica, o crescimento urbano deve ser associado
principalmente ao crescimento em tamanho elou em número dos centros
urbanos e à complexidade de suas funções, havendo, portanto, a necessidade
de especificação das suas mensurações.
3.2 TRANSFORMAÇÕES INERENTES AO CRESCIMENTO URBANO
Quanto às forças impulsionadoras da urbanização, Irwin (1999) e
McNeill (2000) sustentam que um grande número de pessoas reúne-se nas
cidades em busca de trabalho e melhores serviços, representados por
empregos e educação de melhor qualidade, oferecidos nas áreas urbanas
como resposta à demanda de mão de obra qualificada no campo em função da
mecanização das fazendas. Além disso, os autores assinalam a importância
31
dos conflitos sociais, da degradação da terra e do esgotamento dos recursos
naturais como fatores catalizadores da urbanização.
A globalização da economia também é considerada uma mola
propulsora a partir do momento em que as cidades são consideradas centros
de força econômica (WRI, 1997). Neste contexto, a United Nations Centre for
Human Settlements (UNCHS, 2000) sugeriu que as cidades desempenham um
importante papel, cumprindo as funções tanto de provedoras de emprego, de
moradia e serviços, de centros de desenvolvimento cultural, educacional e
tecnológico, como de centros industriais de processamento de produtos
agrícolas e manufaturados.
Portanto, as cidades são locais onde se gera renda havendo, sob esta
ótica, um forte e positivo vínculo entre os níveis de desenvolvimento humano e
os níveis de urbanização. Existe ainda, a percepção geral de que a „vida
urbana' representa alta “qualidade de vida” e por isto o citadino tem uma vida
tranquila se comparada a de seus vizinhos de áreas rurais.
Entretanto, é de conhecimento comum que os benefícios não são
universais, Satterthwaite (1996) aponta que, entre um quarto e a metade da
população de cidades em desenvolvimento vive em bairros em condições
precárias e mesmo miseráveis e aglomerados em comunidades com extremas
limitações no que diz respeito aos serviços urbanos.
Condições precárias de estrutura sanitária promovem o aparecimento de
epidemias e doenças expansivas (SARRETA, 2009), além da degradação
ambiental. Esta assertiva é corroborada pela UNCHS (2001) que indica como
consequências do crescimento urbano acelerado o desemprego crescente, a
32
escassez de serviços urbanos, a sobrecarga da infraestrutura existente e falta
de acesso à renda e à moradia adequadas.
A cristalização do capitalismo, processo apontado pela ONU (1996), é
denominado por Castells (1999) “cidade dual”. Segundo análise do autor é um
processo descrito como paradoxal e individualista, na medida em que o
atendimento às demandas por serviços urbanos não acompanha o crescimento
cada vez mais acelerado das cidades e de suas populações. Neste contexto,
os pobres das cidades, impedidos de ter acesso aos escassos recursos
naturais do meio urbano ou de se proteger das condições ambientais adversas,
são mais afetados pelos impactos negativos da urbanização.
A dualidade entre território e poder no meio urbano, pode ser percebida
no processo de fragmentação do espaço para a comercialização imobiliária
(LEFEBVRE, 1991) destacando-se o fato de que, nas cidades capitalistas,
existem várias maneiras de apropriação do espaço urbano para moradia
(FERREIRA, 2007), nas quais a terra é apropriada, vendida e comprada em
“pedaços”, logo compartimentada.
O „marco‟ divisório dessa apropriação é a capacidade diferenciada de
pagar pela terra e pela casa, expressa pelas classes ou parcela de classes.
Esta apropriação, relativa a um espaço vivido, ou a um sistema percebido no
seio do qual um sujeito se sente 'em casa' (GUATARI; ROLNIK, 1996), permite
considerar a territorialização do espaço urbano, como um conjunto dos projetos
e de representações que definem uma diversidade de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais e estéticos, de
maneira a determinar funções a estes espaços.
33
Adotando esta conceituação para análise aqui proposta, a
territorialização do espaço é caracterizada pelo local de moradia, necessidade
biológica e necessidade social, a terra e a habitação onde alguns ainda obtêm
renda, juros, lucro e, a maioria dos demais, dispendem esforços e dinheiro para
obter um abrigo. Complementarmente a este conceito cabem ser destacadas
as argumentações de Holzer (1997) ao sugerir a visão de território como um
conjunto de lugares, onde se desenvolvem laços afetivos e de identidade
cultural de um determinado grupo social, dissociando a obrigatoriedade do
território como área geográfica fechada obedecendo uma delimitação rígida de
fronteiras.
A ênfase na análise da terra e/ou habitação nela edificada, é uma forma
de tornar explícito o processo de produzir e consumir a cidade e a concorrência
entre as diferentes “necessidades” de moradia, e entre as necessidades de
reprodução do capital e de reprodução da força de trabalho.
Em função da elevada taxa de urbanização, o espaço necessário para
moradia também conflita com diferentes usos urbanos (HARVEY, 1982) e,
grande volume de urbanização gera grande diversidade, seja dos espaços
apropriados, seja de localização das habitações, tanto em locais bem
aparelhados por equipamentos urbanos como em áreas caracterizadas pela
segregação espacial.
Esta multiplicidade de processos privados de apropriação do espaço
urbano capitalista, determinados pela propriedade privada da terra foi analisada
por vários autores (CASTELLS, 1974; MARICATO, 1979; HARVEY, 1982;
SEABRA, 1983), que buscaram demonstrar as formas como esta produção
34
ocorre no circuito imobiliário urbano e discutiram a lógica do capital na
produção do espaço urbano e da miséria humana.
Uma análise panorâmica do capitalismo realizada por Rodrigues (1988
p.161) aponta que, além deste provocar “a expropriação no campo, provoca
também a super exploração na cidade e cria uma população excedente para as
necessidades médias de acumulação”. A urbanização para Takács-Sánta
(2004) é acompanhada desde sua gênese da piora e do aumento de diversos
problemas urbanos ambientais locais. A rápida expansão urbana, durante o
último meio-século, mudou a fisionomia da Terra mais do que, provavelmente,
qualquer outro resultado da atividade humana em toda a história.
Os habitantes do planeta esqueceram-se da sua profunda dependência
da natureza; natureza que foi vista como uma simples coleção de serviços e
benefícios gratuitos e à disposição de todos (SATTERTHWAITE, 1996). Assim,
a aglomeração populacional, os padrões de consumo, os padrões de
deslocamento e as atividades econômicas urbanas causam diversas alterações
e impactos sobre o meio ambiente em termos de consumo de recursos e
eliminação de resíduos (UNPD, 2001), com reflexos sobre a própria população
que se utiliza destes serviços.
Como consequência dos impactos socioambientais resultantes da
aglomeração humana centralizada nas cidades, algumas análises sugerem que
as áreas urbanas, com um pouco mais da metade da população mundial e
ocupando apenas entre 1 e 5% da superfície, são responsáveis por 80% das
emissões de carbono, 75% do uso da madeira e 60% do consumo de água
(O‟MEARA, 1999).
35
Embora Satterthwaite (1996) tivesse sugerido que as cidades param seu
crescimento ao se tornarem ineficientes e desagradáveis, na medida em que
os problemas de congestionamento e poluição superam os benefícios do
desenvolvimento, para a ONU (1996), mesmo com uma pequena queda, o
ritmo da urbanização deverá continuar intenso nas próximas décadas.
3.3 POLÍTICAS PÚBLICAS, COMPETÊNCIAS E O ORDENAMENTO URBANO
No Brasil, para Pechman (2002) o urbanismo fugiu à política e travestiu-
se de pura técnica de controle dos problemas produzidos pela “disfunção”
urbana; revestindo-se de uma forma de dominação, fundada exclusivamente na
técnica. Desta forma, continua o autor, o processo de formação da “cidade
desejada”, fruto do trabalho e participação coletivos de uma sociedade, lugar
onde se materializa a história de um povo, pela via das suas relações sociais,
políticas, econômicas, artísticas e religiosas, passou despercebido para os
gestores e urbanistas.
Por mais utópica que seja a idéia de “cidade desejada” ela integra e
carrega em si a definição de aplicação prática das políticas públicas que estão
ligadas, fortemente em essência ao Estado, já que este determina como os
recursos são usados para o beneficio de seus cidadãos. Souza (2006)
classifica a política segundo três visões. Primeira como um equilíbrio no
orçamento entre receita e despesa, segunda como uma nova visão do estado,
evolução da política keynesiana para uma política restrita aos gastos, e terceira
na relação que existe entre os países desenvolvidos e os que iniciaram a sua
caminhada democrática recentemente. De um modo particular os países da
América Latina, que ainda não conseguem administrar bem os seus recursos
36
públicos e equacionar os bens em beneficio de sua população, de modo a
incluir os excluídos.
Sob esta ótica cabe um maior detalhamento conceitual do que é política.
No entendimento de Jenkins (1978, p. 15), política é um ”conjunto de decisões
interrelacionadas, concernindo à seleção de metas e aos meios para alcançá-
las, dentro de uma situação especificada”. Entretanto, Heclo (1972) propõe
outro conceito, segundo o qual, uma política seria o curso de uma ação ou
inação (ou “não-ação”), considerando-a mais do que decisões ou ações
específicas. Além disto, à conceituação do termo política pode-se agregar o
produto do processo de tomada de decisões como sugere Wildavsky (1979).
Dagnino e colaboradores (2002) discutem a amplitude das aplicações do
termo política; os autores sugerem que política é gerada por uma série de
interações entre decisões mais ou menos conscientes de diversos atores
sociais (e não somente dos tomadores de decisão). Para eles, política envolve
tanto intenções quanto comportamentos, logo, tanto ação como não-ação; além
disso, é um processo que se estabelece ao longo do tempo e envolve relações
intra e inter-organizações, além de ser estabelecida no âmbito governamental
em várias escalas, envolve múltiplos atores, e é definida subjetivamente
segundo as visões conceituais adotadas.
Dentro desta ótica inter escalar e de multiplicidade de atores para a
produção de políticas, vale destacar a concepção de política local sugerida por
Cox (1998), que se integra e interage com a política global e reconhece uma
integração em processos que ocorrem em níveis mais altos e mais baixos de
abstração e da realidade. Para o autor, localidades, como tipos específicos de
37
espaços podem ser distinguidos em duas maneiras fundamentais: como
espaços de dependência e espaços de engajamento.
O autor define os espaços de dependência como as relações sociais em
que empresas, povos e agências dependem para a realização de suas
atividades, incluindo aí condições específicas do local. Desta forma, pessoas,
empresas e agências estatais organizam-se a fim de garantir as condições
para a manutenção dos seus espaços de dependência, porém, essa ação os
obriga a interagir com outros centros de poder social; seja governo local, a
mídia, e de forma mais ampla, a comunidade internacional. Esses espaços
extra-dependentes são, de acordo com o autor, denominados espaços de
engajamento, que característicamente são mais variáveis do que os espaços
de dependência; e ainda podem ser mais extensos e/ou restritivos.
A tensão que existe entre os espaços de dependência e envolvimento
cria uma política de escalas em que algumas localidades são mais ou menos
envolvidas em redes de associação além de seus limites imediatos do que
outras. Tais redes de associação podem esticar-se em diferentes escalas.
Portanto, atores situados localmente, através de redes de associação,
constroem espaços de participação. Por fim, Cox (1998) sugere que se deva
pensar a escala além de uma área ou espaço circunscrito, mas sim
compreender a politica em escalas como uma rede ou estratégia que relaciona
conflitos e contradições locais, regionais ou eventos globais.
Para Verza (2000) a política pública associa-se fortemente à
globalização já que é um fenômeno que atinge todas as sociedades,
manifestando-se, no entanto, de forma excludente pela geração de
desemprego, exclusão social e causando danos socioeconômicos e
38
socioambientais. Nesta visão, cabe salientar que “a pressão da globalização
cria a necessidade do governo buscar alternativas novas do contato direto com
o cidadão, superando a forma tradicional de fazer política” (VERZA, 2000, p.84-
87).
Segundo Moraes (1994), as políticas públicas podem ser agrupadas em
três grandes segmentos: políticas econômicas, incluindo neste grupo as
políticas cambial, financeira e tributária; políticas sociais, englobando as
políticas de educação, saúde e previdência; e, políticas territoriais, compostas
por políticas de meio ambiente, urbanização, regionalização e de transportes.
Em termos gerais, política pública pode ser definida como "tudo o que o
governo faz". No entanto, Pal (1987) distingue decisões de políticas; para o
autor, decisões são tomadas todos os dias e em grande quantidade, muitas
vezes como simples reação às circunstâncias. As políticas públicas estão
acima das decisões, e em geral são produtos de planejamento. Contudo vale
lembrar também que, para Reis e Motta (1994) o acúmulo de decisões no
tempo pode também vir a se constituir numa política.
O Brasil, com suas dimensões continentais, apresenta complexas
distinções para além da condição multifacetada do espaço enquanto territórios
e poderes locais, o que faz com que instrumentos normativos tradicionais como
as leis disciplinadoras do parcelamento do solo urbano, leis de zoneamento,
códigos de edificação e outras disposições de ordem urbanística, e até de
preservação do meio ambiente, não sejam suficientes para a solução de muitos
dos grandes problemas que afligem as cidades.
39
O processo de urbanização, ao final do século XX, marcadamente
desigual, propiciou uma grande concentração espacial de pobreza, com
diversas consequências socioambientais, dentre as quais destacam-se para o
tema em tela: o crescimento desigual, a exclusão social e a insustentabilidade
social e ambiental (MARICATO, 2001).
A necessidade de ordenar o uso do solo urbano e minimizar os
problemas acima descritos, além de diversos outros, está contida no Capítulo
de regulamentação da Política Urbana, no âmbito da Constituição Federal, com
os artigos 182 e 183. Nesses estão estabelecidas diretrizes que visam “ordenar
o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar
de seus habitantes”. Contudo, em função da complexidade das funções da
cidade, o Governo Federal promulgou, em 2001, o Estatuto da Cidade, que
regulamenta os artigos acima citados e estabelece, segundo descrito na Lei,
diretrizes gerais de “ordem pública e interesse social que regulam o uso da
propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos
cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (BRASIL, 2001).
Embora tendo sido criado com objetivo de ordenar o desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, o Estatuto da Cidade e
suas diretrizes gerais, esbarram em várias dificuldades de operacionalização.
Tais obstáculos podem ser cristalizados ao considerar a precária qualidade de
vida urbana, a insustentabilidade nos processos sociais, econômicos,
ambientais, culturais e institucionais decorrentes de ações urbanas
implementadas (SILVA, 2006).
O estabelecimento dessas condições não se deu a partir de um
processo recente, ele é fruto de meio século de crescimento desorganizado
40
das cidades, desarticulado de um planejamento urbano eficaz e
complementado pela migração maciça do campo para a cidade, políticas
públicas ineficientes, distribuição desigual de riqueza, entre outros fatores; e
pode ser caracterizado pela configuração de duas cidades distintas. A “cidade
legal”, caracterizada pela implementação de parcelamentos oficiais localizados,
em geral, em áreas mais centrais, destinados à moradia das classes médias e
altas; e a “cidade ilegal”, destinada à moradia das classes baixas, caracterizada
pela implantação de loteamentos ilegais ou irregulares nas porções periféricas
dos municípios e pela consolidação de favelas em diversas áreas das regiões
mais centrais (SILVA, 2000; MARICATO, 2001).
Mesmo nas áreas em que existe uma redução acentuada das taxas de
crescimento da população como um todo, assentamentos espontâneos,
principalmente favelas, vêm se desenvolvendo (IBGE, 2002). Esta forma de
expansão urbana coloca, em algumas cidades, quase a metade do espaço
construído na esfera do irregular e do informal, o que envolve questões que
vão desde a insegurança do morador até a forma de ocupação „físico-territorial‟
das favelas e dos loteamentos.
A irregularidade fundiária teve, e ainda tem uma forte implicação nos
obstáculos ao acesso ao crédito e aos programas habitacionais oficiais, que
exigem a regularização como condição para a obtenção dos financiamentos
(IPEA/PNUD, 1996). Sob este olhar, Freitas (2000) argumenta que
parcelamentos ilegais do solo são considerados um dos problemas mais
graves estudados atualmente, no direito urbanístico e no direito municipal, com
reflexos no âmbito dos direitos ambiental, econômico e penal. Esses
parcelamentos proliferam-se nas periferias urbanas e nas zonas rurais, como
41
resultado da carência de oferta imobiliária de baixo custo, da especulação e,
ainda, como resultado da ocupação de terras públicas.
A implantação ou regularização de um loteamento demanda o
cumprimento de diretrizes urbanísticas junto ao município, tais como
elaboração de planta, memorial descritivo e projeto, contratação de técnicos,
execução de obras conforme padrões técnicos, incluindo demarcação dos lotes
e áreas, abertura de ruas, implantação de rede de distribuição de água, de
energia elétrica e de coleta e disposição de esgoto, pavimentação, implantação
das galerias de escoamento de águas pluviais, guias e sarjetas;
comercialização dos lotes considerando profissionais, marketing e propaganda;
recolhimento de impostos; manutenção de elemento de empresa e
consequentemente encargos correspondentes, entre outras.
Além disso, parte da gleba é transferida ao patrimônio do município5
gratuitamente, para a formação das vias de circulação, espaços livres, áreas
verdes e de lazer, praças e prédios públicos, e assim por diante. Todo esse
quadro eleva os custos do empreendimento, o que, obviamente é repassado ao
comprador, inviabilizando a flexibilização econômica desse mercado.
Segundo Bezerra e Fernandes (2000), à questão fundiária mal resolvida
associam-se as limitações decorrentes da fragilidade dos processos e
instrumentos de regulação e controle do uso do solo e do planejamento e da
gestão urbana, sem que o governo disponha de meios de intervenção sobre a
propriedade da terra, capazes de efetivamente, assegurar a função social da
propriedade e proteger o interesse coletivo no uso e na ocupação do solo
urbano.
5 Art.4 da Lei 6.766/79 Parcelamento do solo urbano no Registro Imobiliário. (BRASIL 1979)
42
Ocorre então a segregação socioeconômica e o aumento da
informalidade nos padrões já inadequados de uso e ocupação do solo urbano
ocasionando o aumento de riscos ambientais para a população. Esta situação
de irregularidade traduz-se, na grande maioria das vezes, por grande
concentração populacional vivendo em áreas consolidadas com pouca ou
nenhuma infraestrutura urbana e carente de serviços públicos, nas áreas
periféricas das cidades.
A população destas áreas, devido à inexistência de infraestrutura, está
exposta a inundações e deslizamentos de encostas; agravados pelas formas
de ocupação sem planejamento e/ou assistência técnica na consolidação da
estrutura habitacional e associados a doenças (CORDEIRO, 1995). A autora
afirma também que as inundações são, em geral, acompanhadas de
enfermidades, tais como a leptospirose, doenças diarréicas, febre tifóide e as
hepatites virais A e E que, nestes casos, chegam a acometer cerca de
seiscentas mil pessoas anualmente. Além destas doenças, recorrentes na
época de inundações, outras já controladas, transmitidas através de vetores
reaparecem, como a dengue, a leishmaniose e o cólera.
Pode-se sugerir que a ocupação irregular do solo é um dos elementos de
maior relevância na gênese dos principais problemas urbanos, em áreas tão
distintas quanto segurança, saúde, transportes, meio ambiente, defesa civil e
provisão de serviços públicos. Esses problemas não afetam apenas a
população residente das áreas ocupadas irregularmente, mas estendem-se
para toda a população, seja pela ampliação desnecessária dos custos de
urbanização ou ainda pelas externalidades negativas decorrentes de
43
fenômenos como a contaminação e o assoreamento dos recursos hídricos e a
disseminação de doenças contagiosas.
Segundo determinado pela Constituição Federal (BRASIL, 2010), em seu
artigo 30, VIII, compete ao Município a responsabilidade pelo controle do uso
do solo. Embora os municípios tenham competência para planejar, regular e
controlar o uso e a ocupação do solo urbano e executar a política de
desenvolvimento urbano, lançando mão de vários instrumentos, tais como as
normas de parcelamento e construção compulsória, a concessão do direito real
de uso, a urbanização consorciada, entre outros; são poucos aqueles que
avançaram adequadamente na sua formulação e aplicação (BEZERRA;
FERNANDES, 2000). Além disso, não está claro, no contexto da Constituição,
a competência municipal para a repressão às infrações urbanísticas.
A despeito da crescente descentralização das ações governamentais,
torna-se patente que nem todos os problemas urbanos e ambientais são
gerados e podem ser resolvidos exclusivamente na esfera local. Nesse sentido,
as cidades ressentem-se da ausência de formas mais adequadas de
cooperação governamental (vertical e horizontal), indispensáveis para
equacionar os problemas ligados ao solo urbano, agravados pela ausência de
uma regulamentação que defina mais claramente a competência e os papéis
de cada esfera de governo (CAVALCANTI, 1997).
Em função destas deficiências, é comum as empresas concessionárias
preferirem oficializar a combater as ligações clandestinas. No caso do
saneamento, é comum que se faça a ligação de água, mas não a de
esgotamento, o que cria o chamado “esgoto a céu aberto”, uma das principais
fontes de transmissão de doenças.
44
Ocorre que o fornecimento oficial de água e energia elétrica consolida
irreversivelmente o assentamento e até contribui para sua expansão, uma vez
que viabiliza a implantação de novas ligações clandestinas a partir das oficiais.
As ligações oficiais em assentamentos ilegais representam, em última
instância, o próprio Poder Público contribuindo para o desenvolvimento urbano
desordenado (PINTO, 2007).
O mais grave é que, uma grande parte desses assentamentos localiza-se
em áreas de risco ou de preservação ambiental e não podem ser
regularizados. Tomam-se como exemplo os assentamentos comuns, em todo o
país, em áreas de proteção de mananciais, em encostas sujeitas a
desmoronamentos ou em várzeas alagáveis, realizados clandestinamente,
porém totalmente eletrificados.
Esta condição representa o perfil da demanda por serviços de
saneamento no Brasil, que guarda relação histórica com a exclusão social e a
segregação espacial (CORDEIRO, 1995), vivenciando-se, atualmente, um
modelo de gestão urbana excludente, segundo classes sociais, desigual para
homens e mulheres, e competitivo em relação aos recursos naturais.
O modelo acima descrito tem como conseqüência patente, os conflitos
socioambientais envolvendo classes sociais e grupos distintos. Apoiando-se
nesta assertiva é possível conceituar conflitos socioambientais como disputas
entre grupos devido às suas relações distintas com o meio natural (LITTLE,
2001).
Os conflitos ambientais podem expressar contradições dos modelos de
desenvolvimento, envolvendo populações tradicionais, ocupação de ambientes
45
urbanos e mercantilização de recursos naturais, dentre outros (ACSELRAD,
2004). Para o autor, sob o ponto de vista econômico, o conflito pode ser de
dois tipos: conflito por distribuição de externalidades, em que o responsável
pelo impacto não assume as suas conseqüências e; conflito pelo acesso e uso
dos recursos naturais, devido à dificuldade de definir a propriedade dos
recursos. Em função deste último aspecto os recursos naturais são
frequentemente classificados como de propriedade comum, de
responsabilidade do governo, do poder público e da comunidade
(DRUMMOND, 2001).
Na ótica de Nascimento (2001) é possível caracterizar o conflito à partir
de um conjunto de elementos, tais como a natureza do conflito, atores sociais
diversos, campo específico, objeto de disputa, dinâmica de evolução,
mediadores ou observadores. Para o autor, o conflito pode ser de natureza
econômica, política, social, ambiental, cultural, geracional, geográfica, dentre
diversos outros. Os atores articulam-se entre si ou se opõem uns aos outros e
nem sempre seus discursos são coerentes, existem também os mediadores ou
observadores que presenciam o conflito, defendendo ou não uma posição. O
objeto pode ser material ou simbólico, real ou irreal, e o campo é o espaço de
movimento dos atores. A dinâmica é o modo pelo qual o conflito se manifesta e
evolui.
O autor sugere que os conflitos evoluem em três fases, a preparação,
fase em que os atores se estudam e estabelecem estratégias; o embate,
quando os atores se enfrentam; e a conclusão, quando há uma resolução.
Caso não haja resolução, o conflito persiste de forma crônica, podendo gerar
novos embates (NASCIMENTO, 2001).
46
Apesar de Brody e colaboradores (2004) sugerirem que a resolução de
um conflito ocorre quando é alcançado o melhor resultado para todas as partes
interessadas, para Little (2001) só há resolução de qualquer conflito com o fim
das causas originárias da contenda, e não apenas com a eliminação das
divergências das partes. Portanto, com a intensificação do desenvolvimento
econômico e da escassez de recursos naturais, conflitos latentes podem se
transformar em disputas longas, de alto custo e sem resultados satisfatórios
(BRODY et al., 2004).
3.4 MANGUEZAIS E OS SERVIÇOS AMBIENTAIS
Conforme a Figura 2, os manguezais distribuem-se no globo, por mais
de 18 milhões de hectares cobrindo um quarto da linha costeira intertropical
mundial estendendo-se eventualmente ao norte do Trópico de Câncer e ao sul
do Trópico de Capricórnio (WALSH, 1974). Dominam deltas e enseadas do
sudeste asiático desde a Tailândia, Bruma e Vietnam através da Malásia até a
Indonésia, com mais de 5 milhões de hectares ao redor das ilhas habitadas da
Nova Guiné e Bornéu (HINRICHSEN, 1996).
O maior sistema contínuo cobre 570.000 hectares em Bangladesh, onde
está instalado o porto de Tigre de Bengala que sustenta 300.000 pessoas. São
ecossistemas que contribuem para a ampla biodiversidade de grande parte do
globo e assumem funções vitais na manutenção desta diversidade e de
variadas atividades antrópicas.
47
Figura 1 - Distribuição das florestas de manguezal no globo. Fonte: National Geographic Magazine (2007)
O manguezal em geral, sempre foi desconsiderado sob a ótica de objeto
de valorização imobiliária e de importância sanitária, principalmente por sua
associação (indevida) como área dispersora de doenças e de aspecto
degradante. A partir dos anos sessenta do século vinte, uma série de trabalhos
de autores de renome, tais como Eugene e Howard Odum foram produzidos,
subsidiando uma mudança de percepção sobre a importância de tais habitats,
uma vez que estes apontavam para uma alta produção de biomassa e
aparente relação direta com a produtividade das águas costeiras.
A partir de então, estabeleceu-se grande importância ecológica a este
ecossistema, sobretudo para o espaço urbano; contudo a compreensão do
papel ecológico do mangue passa por uma análise conceitual mais ampla, que
esclareça seus aspectos mais relevantes, permitindo descrever o mangue
como um ecossistema costeiro e de transição entre os ambientes terrestres e
marinhos característicos de regiões tropicais e subtropicais e sujeitos ao
regime das marés. É constituído de espécies vegetais lenhosas típicas, além
de micro e macroalgas, adaptadas às alterações de salinidade e caracterizadas
48
por colonizarem sedimentos predominantemente lodosos, com baixos teores
de oxigênio (NOVELLY, 1995).
A autora completa apontando que os manguezais ocorrem em regiões
costeiras abrigadas e apresentam condições propícias para alimentação,
proteção e reprodução de muitas espécies animais, sendo considerados
importantes transformadores de nutrientes em matéria orgânica e geradores de
bens e serviços.
Apesar da grande relevância das funções acima descritas, tais aspectos
não encerram as possibilidades funcionais deste ecossistema tão complexo.
Assim, outras definições, tais como a proposta por Soares e colaboradores
(2003), que descreve elementos e processos existentes num contexto cíclico,
também devem ser destacadas a fim de buscar um melhor entendimento da
importância deste sistema.
Apropriando-se destes conceitos, dentre os vários existentes, pode-se
afirmar que os manguezais são compostos de árvores e arbustos tolerantes à
variabilidade salina, crescem em águas rasas que sofrem ação das marés de
áreas costeiras e estuarinas da região intertropical, requerem correntes lentas,
quentes e ricas em sedimentos finos onde fixam suas raízes e abrigam uma
alta diversidade de organismos aquáticos e semi-aquáticos durante parte ou
todo periodo da vida destes organismos (CHOUDHURY,1997).
49
O papel do mangue originalmente ecológico funde-se a funções
econômicas a partir do momento em que se torna claro o fornecimento de
serviços de alta relevância para o equilíbrio ambiental e para a manutenção da
vida (WALSH, 1974). Ademais, este ecossistema fixa terras e controla a
erosão, já que, ao colonizar o espaço, sua elevada biodiversidade e sua
estrutura geomorfológica, são capazes de atenuar a energia do mar, com suas
ondas e marés (Figura 2).
Figura 2 - O emaranhado de raízes dos manguezais ajuda na retenção de sedimentos fluviais e protegem a costa dos processos erosivos causados pela hidrodinâmica (foto inferior - Baía de Bengala, África). Fontes http://www.mbgnet.net/salt/sandy/mangroots.html http://www.printsngs.com/natgeo/
O mangue também atua como um bloqueador eólico, reduzindo a força
dos ventos marítimos e evitando a erosão eólica. Considerando a dinâmica
fluvial natural, a descarga de sedimentos continentais carreados através dos
rios encontra uma verdadeira malha retentora nos manguezais, desta forma,
50
enquanto as áreas sedimentadas, em torno destes ecossistemas e banhadas
por marés são colonizadas por eles, a estrutura uma vez constituída fixa tais
áreas.
Tal como qualquer ecossistema natural, o manguezal é uma
geobiocenose6 aberta (ODUM, 1985) caracterizando-o por sua contínua troca
de elementos e energia com ambientes de entrada e de saída circunvizinhos,
tais como florestas, fonte de água doce e o mar, organizando os elementos das
três macro-esferas e reunindo-os numa estrutura singular que o distingue dos
demais ecossistemas naturais (Figura 3).
Figura 3 - Modelo ilustrativo do sistema de manguezal. Fonte: Adaptado de Odum e Barret (2007)
Por fim, o volume de matéria orgânica processada pelos organismos
decompositores que a remineralizam e disponibilizam seus nutrientes para os
demais organismos, garantem o equilíbrio cíclico da cadeia alimentar em vários
níveis. Por isto a relação direta da produção pesqueira em alto mar com a
6 Termo expandido por Sukachev (1944) englobando o ambiente ao redor dos organismos, a
partir de “biocenose” – descrição de uma comunidade de organismos. (MÖBIUS, 1877)
51
produção de biomassa proveniente dos manguezais, já foi apontada em
diversos estudos (HEALD, 1971; LUGO; SNEDAKER, 1974; RODRIGUEZ,
1975).
Contudo, os serviços oferecidos pelo mangue não se limitam à esfera
ecológica, enquanto produtor primário que subsidia atividades exploratórias,
como a pesca e coleta de caranguejos, existe grande diversidade de usos
comerciais para esses sistemas (CHOUDHURY, 1997). Eles fornecem grandes
quantidades de alimento, combustível, materiais para construção e
medicamentos, além de servirem às atividades turísticas e educativas. Os
autores supracitados afirmam ainda que, a estrutura vegetal heterogênea dos
manguezais proporciona abrigo para diversos animais, tanto endêmicos quanto
migradores (Figura 4).
Figura 4 - Os manguezais abrigam elevada biodiversidade Fonte: Fotos Nunes (1998)
52
3.5 O AUMENTO POPULACIONAL E A PRESSÃO SOBRE OS MANGUEZAIS
Até os últimos cem anos, a taxa de crescimento populacional humano
era relativamente baixa, com uma taxa de natalidade apenas um pouco
superior à taxa de mortalidade (MEYER; TURNER, 1994). Para os autores
citados, a grande destruição de comunidades biológicas ocorreu durante os
últimos 150 anos, quando a população humana cresceu de 1 bilhão em 1850,
para 2 bilhões em 1930, chegando a 6 bilhões em 1998 (PRIMARCK,
RODRIGUES, 2001).
O crescimento populacional associado ao modo de vida consumista,
intensamente explorador e apropriador de recursos naturais, tem diminuído nos
países industrializados, mas ainda é elevado em muitas regiões da África
Tropical, América Latina e Ásia, áreas onde é encontrada a maior diversidade
biológica do planeta (WRI/UNEP/UNDP, 1994). O uso dos recursos naturais
para diversos fins, impulsionado pelo intenso crescimento populacional a
passos largos, é parcialmente responsável pela perda da diversidade biológica,
o que leva alguns cientistas a argumentarem que a proteção da biodiversidade
depende do controle do tamanho da população humana (HARDIN, 1993;
MEFFE; EHRLICH; EHRENFELD, 1993).
A desigualdade econômico-social relativa à distribuição de riquezas
também é outro aspecto relevante para a análise da destruição da
biodiversidade. Pesquisas do Banco Mundial (1995) e de Rocha (1997)
indicaram a existência de 18,0 a 25,5 milhões de pessoas em estado de
pobreza absoluta ou miseráveis.
53
No contexto brasileiro, a pesquisa de Peliano (1993), chamada de o
“Mapa da Fome no Brasil” demonstra que pobreza e fome são fenômenos
presentes em todo o país e são caracterizados tanto como fenômeno rural
como urbano, e que as regiões metropolitanas que polarizam o
desenvolvimento econômico são tão afetadas como as cidades pequenas e
médias. Informações deste tipo permitem argumentar que as pessoas do meio
rural são forçadas a destruir comunidades biológicas e caçar espécies, mesmo
as ameaçadas de extinção, porque são pobres e não possuem terra e recursos
próprios (DASMANN; MILTON; FREEMAN, 1973; KUMMER; TURNER, 1994;
SKOLE et al., 1994), embora caiba apontar que o ecossistema de manguezal
é constantemente alvo de degradação originada por populações de alta renda,
tais como sua supressão como consequencia da apropriação de espaços para
construção de casas e hotéis.
O destino dos manguezais mostra-se incerto frente à crise existente nas
regiões costeiras mundiais onde tem havido elevação das taxas de
urbanização e crescimento populacional. Estima-se que a metade da
população mundial, cerca de 3 bilhões de pessoas viva até 200 quilômetros de
distancia da costa (CREEL, 2003). Sob o prisma sistêmico, esta aglomeração
humana cria um sistema denominado socioecossistema urbano (DIAS, 2002),
que como qualquer ecossistema, tal como definido por Odum (1985, p.18)
“representa a interação indissociável e inter-relacionada entre seres vivos e o
seu ambiente não vivo”.
O socioecossistema urbano é do ponto de vista biológico, um sistema
aberto cujas propriedades globais de funcionamento (fluxo de energia e
ciclagem de matéria) e auto-regulação (controle) derivam das relações entre
54
todos os seus componentes, tanto pertencentes aos sistemas naturais, quanto
os criados ou modificados pelo homem (HURTUBIA, 1980; DIAS, 2002).
Contudo, ainda sob esta ótica, os socioecossistemas urbanos exibem
uma baixíssima capacidade produtiva, um elevado apetite por energia e uma
grande fragilidade e instabilidade ambiental e social, o que faz deles
extremamente dependentes de outros sistemas, já que não são capazes de
produzir os insumos que necessitam para sustentar suas atividades,
consumindo um volume de recursos muito superior à sua área fisica (REES,
1996; GIRARDET, 1996).
Devido a sua incapacidade de processar e reintroduzir no ciclo
sistêmico, as sobras energéticas e de material, os socioecossistemas geram
residuos e produzem poluentes que são lançados no ecossistema natural mais
próximo a eles, exercendo uma enorme pressão sobre estes sistemas naturais
(HARWOOD, 1998, CHAMEIDES, 1999).
Entretanto, a característica mais singular dos socioecossistemas
urbanos é seu humanismo, com todos os aspectos intangíveis inerentes à
população humana, os quais são difíceis de qualificar e quantificar, mas que, a
eles estão atrelados a alta produtividade de informações, conhecimento,
tecnologia e desenvolvimento industrial e que, quando são negligenciados
incorrem em erros sérios de planejamento e manejo do sistema (UNESCO,
1996).
55
Com base na Figura 5, pode-se constatar que as áreas de manguezal
são frequentemente consideradas locais estratégicos para assentamentos
humanos densos, portanto, sujeitas a uma alta pressão populacional
(MACINTOSH; ASHTON, 2005). Entretanto, durante grande parte da história, a
sociedade considerou os manguezais áreas funcionalmente inúteis, assim
estes sistemas foram degradados ou convertidos em áreas para agricultura,
aquicultura, indústria ou expansão urbana.
Figura 5 – Distribuição mundial da população na faixa costeira Fonte: Burke e colaboradores (2001)
Os dados da Tabela 1 mostram as principais formas de intervenção
humana em áreas costeiras pelo mundo.
56
Tabela 1 – Degradação costeira devido à ação humana. () comum e importante causa de degradação, (+) presente, mas não a maior causa, () ausente ou excepcional.
Causa da degradação Estuários Manguezais mar aberto
Drenagem para agricultura, desmatamento e
controle de doenças (mosquito) +
Dragagem e canalização para navegação e proteção
contra inundações
Área para disposição de resíduos sólidos,
construção de estradas e desenvolvimento
comercial, industrial ou residencial
+
Conversão para aquaculture
Construção de diques, represas e quebra-mar para
controle de inundações e furacões, como
suprimento de água e irrigação
Descarga de pesticidas, herbicidas, resíduos
industriais e domésticos, deposição de sedimentos
Mineração das áreas úmidas para extração de
turfa, carvão, cascalho fosfato e outros materiais + +
Aterramento e alterações para implantação de
cultivos +
Queimadas + +
Desvio de sedimentos para represamento,
afundamento de canais e outras estruturas
Alterações hidrológicas para, afundamento de
canais, construção de estradas e outras estruturas
Rebaixamento devido à extração de água de lençol
freático, óleo, gás e outros minerais +
Fonte: Adaptado de UNEP (2006)
57
A escala do impacto humano sobre estes ecossistemas aumentou
dramaticamente nos últimos anos, causando a muitos países, perdas de 50% a
80% ou mais no volume vegetal dos bosques, em comparação com a cobertura
florestal existente 50 anos antes.
Nas Filipinas, por exemplo, a perda foi da ordem de 75% da área de
manguezal em relação à existente na década de 1950 (PRIMAVERA, 2000).
Como conseqüência, muitas comunidades locais costeiras tiveram seus meios
de vida, dependentes deste ecossistema, comprometidos ou totalmente
perdidos.
A supressão de manguezais para implantação de variados
empreendimentos em diversas regiões do globo terrestre ao longo da história
humana é bem documentada (Figura 6). Para exemplificar estas perdas, no
decorrer dos anos, podem ser apontadas diversas intervenções humanas entre
as décadas de 1960 e 2000.
No período de 1967 a 1990, ocorreu a supressão de 185.000 hectares
na Tailândia, a derrubada de 269.000 ha na Indonésia, o desmatamento de
170.000 ha entre 1967 e 1976 nas Filipinas. A derrubada de 74.000 ha, desde
1975, em Bangladesh e 95.000 ha entre 1965 e 1984 na Guatemala e, por fim,
de 1980 e 1990, a Malásia, que implantou agricultura e carcinocultura em áreas
de manguezal (OIMT/ISME, 1997; SATHIRATHAI, 1998; GOSS; SKLADANY;
MIDDENDORF, 2001).
58
Figura 6 - Supressão de manguezais no mundo entre 1980 e 2005.
Fonte: UNEP (2009)
Outras atividades humanas altamente impactantes para alguns
manguezais do mundo foram os conflitos bélicos, tais como o travado no
Vietnam. Ali o uso de desfolhantes como armas químicas pelas tropas
americanas suprimiu 170.000 hectares de bosques entre 1960 e 1974
(OIMT/ISME, 1997). Vale lembrar que a utilização de produtos químicos em
áreas de mangue também ocorreu no Brasil para atender ao mercado
imobiliário na região de Angra dos Reis (BOTELHO; VALLEJO, 2001).
Contudo, não foram apenas demandas por espaço e produtos os únicos
motivos do descaso e degradação dos manguezais. No Brasil, as expedições
realizadas ao interior do país, desde fins do século XIX por médicos-cientistas,
como Oswaldo Cruz, Belizário Penna, Carlos Chagas e outros, resultaram na
divulgação do quadro de enfermidades em que se encontravam, tanto as
59
populações sertanejas, quanto às litorâneas. Esta situação ocorria, segundo os
citados expedicionários, em função da existência de ambientes alagadiços que
produziam vetores transmissores das doenças que assolavam as populações.
A partir dos resultados destas incursões, o higienismo sanitarista
estabeleceu o combate aos vetores das doenças endêmicas como meta
primordial. Para atingir seus objetivos o modelo propunha drenar, dessecar e
aterrar as áreas alagadiças, corrigir as imperfeições da natureza por meio de
instrumentos e técnicas adequadas, e assim resolver o maior problema da
época: o saneamento (CUNHA, 2002). Esse modelo, fruto da „revolução
pasteuriana‟7 (BENCHIMOL, 2000), significava, antes de tudo, a proposição de
um projeto político de viabilidade e integração do Estado-Nação.
As endemias que, de acordo com o paradigma do higienismo sanitarista
eram geradas pela falta de saneamento das regiões alagadiças e pantanosas
eram consideradas entraves ao desenvolvimento do país. Sob esta ótica as
ações, tais como aterramentos que visassem suprimir o ambiente dos vetores,
eram consideradas benéficas à população (MELLO; VOGEL, 2004).
3.6 CONSERVAÇÃO DOS MANGUEZAIS NO BRASIL
Ao longo dos 7.408 km de costa brasileira, os manguezais perfazem
cerca de 25.000 km, estendendo-se desde a latitude norte de 2º, na foz do rio
Oiapoque, Estado do Amapá, até a latitude sul de 29º, na foz do rio Araranguá,
em São Francisco do Sul, Estado de Santa Catarina (LAMBERTI, 1969).
7 Mudanças nos conhecimentos e práticas médicas e alterações na abordagem dos problemas
relacionados à saúde graças às investigações do químico francês Louis Pasteur sobre o papel dos microorganismos como causadores de diversas doenças. (INSTITUTO ADOLPH LUTZ, [s.d.])
60
O primeiro Código Florestal Brasileiro de 1934 (Decreto no 23.793 de
23/01/1934) não fazia referência direta aos manguezais, referindo-se apenas
indiretamente como „florestas protetoras‟ (Art. 3º) que, por sua localização,
serviriam para conservar o regime das águas e evitar a erosão das terras pela
ação dos agentes naturais (Art. 4º, itens a e b).
Foi através do Novo Código Florestal (Lei 4.771 de 1965, Art 2º, item f),
que os manguezais passaram, objetivamente, a ser considerados como Áreas
de Preservação Permanente (APPs). Na referida Lei as estruturas florestais
são descritas segundo sua localização geográfica e proximidade de recursos
vitais, tais como fontes de água e de acordo com suas funções ecológicas.
Vale apontar também a menção, no parágrafo único do art.1º, sobre a
obediência ao disposto nos planos diretores e leis de uso do solo em se
tratando destes ecossistemas em áreas urbanas. Mais tarde com a instituição
do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei 9.985 de
2000), os espaços naturais protegidos e suas normas de uso ficaram melhor
definidos determinando-se que qualquer atividade e alteração só poderá
ocorrer após elaboração de estudos e obtenção de autorizações dos órgãos
fiscalizadores sem os quais serão aplicadas sanções sempre voltadas à
prevenção e reparação do dano ambiental.
O tratamento legal dispensado aos manguezais no Brasil é
padronizado, apesar das diferenças existentes e do grau e tipo de pressões
antrópicas exercidas sobre eles (LACERDA, 2002). Cabe destacar que os
maiores impactos ambientais ocorrem precisamente nas regiões onde os
manguezais são mais frágeis e escassos em virtude da elevada densidade
demográfica. Entretanto, segundo Martin e Lana (1994), a exagerada
61
importância e fragilidade conferidas aos manguezais são as bases de uma
legislação ambiental extremamente restritiva e não é surpreendente que todo o
aparato legal existente tenha tão pouca eficiência, pois se dissocia do tecido
social do qual deveria fazer parte, afastando-se da realidade física e ecológica
do ecossistema sobre o qual se normativa.
A partir da década de 1980, o modelo de exclusão da população parecia
sepultado, passando a vigorar, mesmo dentro das agências responsáveis pela
criação e gestão de áreas de conservação, a idéia de que o sucesso da
conservação dependeria diretamente da criação de alternativas (LIMA, 2001).
Nesse período, nenhum documento oficial, de entidade ambientalista ou de
instituição financeira internacional autorizava a utilização de meios visando a
expulsão sumária das populações de áreas específicas como condição para
criação de Unidades de Conservação (RIOS, 2001).
Karina Brandon e Kent Redford, co-editores de dois livros
paradigmáticos sobre o uso sustentável da biodiversidade em áreas prioritárias
para conservação, vieram a público com a coletânea “Parks in peril: people,
politics and protected area”, que promove o diálogo entre as ciências sociais e
as naturais, sob abordagens em diversas escalas de parâmetros políticos,
ecológicos e sociais e é resultado do Programa de Conservação da ONG
americana The Nature Conservancy (TNC), que envolve nove parques na
América Latina e Caribe.
A tese amplamente sustentada na coletânea acima citada pode ser
resumida na ideia de que, as áreas protegidas são o substrato da conservação
adequada da biodiversidade e não podem ser responsabilizadas pelo
62
refreamanto do desenvolvimento sustentável, ou em outras palavras a
manutenção da biodiversidade exige seu isolamento da espécie humana.
Ainda segundo Brandon e colaboradores (1998), os usos sustentáveis
dos recursos naturais devem ser incentivados e implementados no entorno de
parques e reservas e nos corredores que compõem as redes de UCs, mas
espécies protegidas devem ser mantidas a salvo em áreas onde a interferência
humana sobre os processos naturais seja altamente controlada e vise
preferencialmente sua conservação e não o bem-estar social dos povos que
nelas habitam.
Fortificam-se novamente os adeptos do modelo de conservação em
mosaico (IBAMA, 2002; GARAY; DIAS, 2001; MACNEELY, 1995; HUSTON,
1994; ROUGHGARDEN; MAY; LEVIN, 1989), segundo o qual áreas
estritamente protegidas são interligadas por espaços com uso controlado como
florestas nacionais, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável ou
projetos agroflorestais (JANZEN, 1994; OLMOS et al, 2001).
Para Cunha e Almeida (2000; 2001), o conservacionismo não se resume
a um conjunto de práticas, mas é também uma ideologia; embasados neste
conceito os autores apontam que existem muitos grupos sociais que mantêm
regras de restrições de usos de recursos por razões práticas, e outros agregam
a estas, razões ideológicas fortalecidas por valores e tabus reproduzidos por
rituais costumeiros. Os autores também ressaltam que o termo tradicional pode
63
ser utilizado como categoria analítica, distintiva de sujeitos políticos, capazes
de se comprometer com práticas associadas à noção de sustentabilidade8.
Operacionalmente, isso significa uma motivação desses grupos a aderir
a uma organização local associada a tradições de uso sustentável dos
recursos, habilitando-os à negociação pela permanência em áreas protegidas e
às técnicas de baixo impacto para a manutenção da biodiversidade.
4. A URBANIZAÇÃO EM DIFERENTES ESCALAS
4.1 BREVE HISTORICO GLOBAL DA URBANIZAÇÃO
O aparecimento das primeiras cidades na Mesopotâmia a cerca de 5.500
anos, impulsionadas pelo crescimento populacional marca o nascimento da
civilização e o início do emprego da tração animal para auxiliar a urbanização
(TAKÁCS-SÁNTA, 2004). Neste período a escolha do local para
estabelecimento das cidades estava fortemente condicionada a fatores do
ambiente natural (LE BOURLEGAT, 1997), exigindo que os agrupamentos
humanos desenvolvessem técnicas para exploração e controle dos recursos à
sua volta.
Portanto, populações assentadas às margens de corpos hídricos, como
no Rio Amarelo na China, por exemplo, tiveram que desenvolver métodos para
controlar enchentes. Já nas regiões costeiras era comum o aprimoramento de
técnicas de pesca e de construção de embarcações. Como resultado das
diversas técnicas desenvolvidas pelas populações para sobreviver às
condições impostas pela natureza, foi montada uma rede comercial que
8 Conceito criado no começo da década de 1980 por Lester Brown, que definiu a sociedade
sustentável como aquela que é capaz de satisfazer suas necessidades sem comprometer as chances de sobrevivência das gerações futuras (CAPRA, 2002).
64
estreitava as relações entre povos próximos, tal como entre egeus e fenícios,
que permitia uma divisão social do trabalho. A expropriação do excedente
produtivo destinava-se aos grupos dominantes.
Desta forma na antiguidade, a sobrevivência da cidade dependia de seu
papel funcional político (LEFEBVRE, 1991), por meio do qual organizava,
controlava, protegia, administrava e explorava um território com seus
camponeses, aldeões, pastores etc.
Na idade media, diferentemente do que acontecia na antiguidade a
sociedade estava concentrada em pequenos espaços e em locais onde a
produção e o escambo entrelaçavam-se nutridos por uma economia monetária
(LE GOFF, 1988). Tal peculiaridade econômica, segundo o autor, estreitou a
similaridade entre as cidades da idade média e as cidades modernas,
proporcionando nas primeiras, o desenvolvimento e características de um
sistema dominante que culminou no capitalismo.
Após estes períodos houve uma aceleração da urbanização, causada por
três grandes eventos ocorridos de forma conjugada na segunda metade do
século XVIII de acordo com White Jr. (1967). O primeiro deles foi o
desenvolvimento da ciência na Europa seguido de um crescimento acumulativo
da tecnologia e por fim a descoberta dos combustíveis fósseis. Este processo
estendeu-se até a metade do século seguinte quando as pesquisas científicas
propiciaram o suporte tecnológico para a atual economia.
Entretanto, McNeill (2000) postula que apenas a partir da explosão
tecnológica no século XX, que demandou grande quantidade de mão de obra
nas cidades e estimulou um acentuado êxodo de populações rurais para áreas
65
urbanas foram registrados crescentes níveis de urbanização mundial. Estudos
estatísticos do crescimento urbano nos últimos anos do citado século,
realizados pela United Nations Environment Programme, corroboram a
assertiva de McNeill (2000) quanto ao período de ocorrência do “boom” da
urbanização mundial, ao indicarem que o crescimento registrado neste recorte
temporal supera qualquer outro indicador demográfico (UNEP, 2002). Estes
estudos mostraram ainda que a proporção da população mundial de habitantes
citadinos aumentou de 29% em 1950 para 47% em 1998, permitindo projetar
um percentual de 55% até 2015.
Os dados produzidos pelo citado estudo apontam também que, embora
dois terços dos moradores de áreas urbanas vivam em cidades com menos de
1 milhão de pessoas, megalópoles com uma população superior a 10 milhões
de pessoas são as que estão crescendo mais e se multiplicando; e completam
estimando que na velocidade em que se encontra o crescimento numérico das
megalopolis, as atuais 15 atingirão a quantidade de 26 até 2015.
4.2 HISTÓRICO NACIONAL DO CRESCIMENTO URBANO
Segundo dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), durante 400 anos a rede urbana ou sistema de cidades
brasileiras somente existia em função de sua relação com o exterior,
assumindo um caráter colonial de exploração econômica (LODDER, 1977).
O espaço citadino foi construído para atender às demandas de ocupação,
domínio e extração máxima dos recursos disponíveis da área colonizada.
Neste contexto, a rede urbana foi estruturada sob a égide de dois fatores
principais; a localização do poder político-administrativo com centralização dos
66
agentes ou atravessadores que repassavam os bens e a localização das
atividades econômicas (SANTOS, 1967).
De meados do século XIX estendendo-se até o primeiro terço do século
XX, o rumo da estruturação do sistema urbano foi influenciado por diversos
eventos, dentre os quais podem ser destacados: o aumento acelerado da
população total do país, os efeitos induzidos e reflexos da Revolução Industrial
enquanto processo, e o incipiente crescimento industrial no país (BAERR;
GEIGER, 1976). Estes eventos ocasionaram a reorganização estrutural dos
sistemas político e econômico e a consequente reorganização estrutural da
rede urbana caracterizada por sua interiorização e sua hierarquização.
No plano político as mais sensíveis alterações ocorreram no âmbito
ideológico e nas bases de sustentação do regime até aquele momento no
poder, afirma Sader (2000). O sistema político sustentava-se em três
elementos: o latifúndio, em geral de produção cafeeira; a chamada economia
primário-exportadora alicerçada nas atividades econômicas voltadas para
produção, comercialização e exportação de alguns produtos primários, em
geral também o café; e por fim, o controle do poder político pela oligarquia
rural.
Com as transformações em curso estes elementos tiveram sua
composição estrutural e sua relação com os demais níveis de poder alterados.
Assim, Furtado (2006) indica como razão direta para tais mudanças, sob o
prisma estritamente econômico, a continuidade da procura interna por bens e
serviços, enquanto a procura externa mantinha-se incipiente como resultado da
Grande Guerra de 1914. Desta maneira, continua o autor, já no setor
econômico produtivo que atendia ao mercado interno, preponderantemente
67
urbano e manufatureiro, passou a oferecer melhores oportunidades de
investimentos que o setor primário-exportador, predominantemente
agropecuário levando a emergência da burguesia industrial e comercial, e ao
crescimento do mercado urbano de bens e serviços os quais exerciam
influência sobre a urbanização.
Em 1920, o Brasil contabilizava uma população de 27.500.000 pessoas e
contava com 74 cidades maiores do que 20 mil habitantes, nas quais residiam
4.552.069, ou seja, 17,0% do total da população (VILELA; SUZIGAN, 1973).
Contudo, a população urbana se mantinha bastante concentrada, já que 58,3%
destas cidades estavam na região Sudeste, em São Paulo, Minas Gerais, Rio
de Janeiro e no Distrito Federal.
Foi a partir dos anos de 1930 e 1940 que a urbanização incorporou-se às
profundas transformações estruturais, conduzidas pelo processo de
centralização de decisões políticas, pelas quais passavam a sociedade e a
economia brasileira (LODDER, 1977). Desta forma, o grau de centralização
político-administrativa do Estado relacionava-se de maneira direta com o modo
de atuação do setor público nas esferas econômica e social afetando o
processo de desenvolvimento e consequentemente o sistema urbano em áreas
a ele associadas.
O sistema urbano no Brasil pós 1930, em função da configuração
centralizadora do Estado de forças políticas e sociais, concentrou em uma
única cidade: o Rio de Janeiro, nesta época então metrópole nacional, uma
série de funções e atividades urbanas. Lodder (1977) afirma ainda que esta
ação possibilitaria executar o exercício de controle da distribuição do poder
entre grupos em que se decompunha a coalizão do poder na época, entretanto,
68
o processo de industrialização em curso manteve a dinâmica do processo
urbano apesar da estagnação política imposta pelo Estado.
Apesar da vocação industrial da cidade de São Paulo, a dualidade
hierárquica funcional em duas cidades apresentava-se como um contra-senso
(SMOLKA; LODDER, 1975), contudo, a ênfase cada vez mais marcante na
industrialização da economia como saída para o subdesenvolvimento
brasileiro, associada a uma recomposição entre grupos do poder político,
provocou outra reestruturação do sistema urbano no país, definindo-se então
uma nova metrópole nacional.
Assim, a cidade do Rio de Janeiro, segundo os autores supracitados,
deteve a função político-administrativa, permanecendo a função industrial com
São Paulo. Esta dualidade manteve-se até a década de 1960, quando foi
criada a cidade de Brasília, que ascendeu ao longo da mesma década como
centro político-administrativo nacional recompondo o sistema urbano e
consolidando a cidade de São Paulo como única metrópole nacional.
Além do acelerado processo de urbanização do território, também a
sociedade brasileira torna-se cada vez mais urbana. Este “grande ciclo de
expansão da urbanização” que se iniciava, coincidia com o “grande ciclo de
expansão das migrações internas”. Estas migrações cristalizavam o elo maior
entre as mudanças estruturais pelas quais passavam a sociedade, a economia
brasileira e a aceleração do processo de urbanização.
No Brasil, a intensificação da urbanização se deu de forma mais
acentuada a partir da década de 1950, principalmente com o advento da
indústria nacional que serviu de atrativo para o estabelecimento de um grande
69
contingente populacional nas cidades em busca de trabalho e melhores
condições de vida. Em meio século, o Brasil sofreu um dos mais rápidos
processos de urbanização do mundo; a taxa de urbanização, que em 1940 era
de apenas 26,35%, atingiu o patamar de 77,13% em 1991. De acordo com
Santos (1996) a evolução da população brasileira, principalmente urbana,
ocorreu significativamente nos últimos 60 anos do século XX.
Ainda, entre o período de 1940 a 1980 a população total do país triplica
(de 41.326.000 para 119.099.000 habitantes) ao passo que a população
urbana multiplica-se por sete vezes, variando de 10.891.000 para 82.013.000
habitantes (FRANÇA, 1997). A partir da década de setenta, houve um
acentuado declínio do ritmo de crescimento da população urbana, que foi
suavizado nos anos noventa. A expansão urbana atingiu seu limite no início
dos anos oitenta, associado tanto a redução das taxas de fecundidade urbana
como a uma evidente diminuição da migração rural-urbana.
O aumento da população urbana a partir de meados do último século foi
fruto de modificações sócio-econômicas que ocorreram ao longo do período,
resultantes de uma série de políticas econômicas e tornaram as cidades pólos
de serviços, comércio e informações, um espaço passível de territorialização e
oportunidades para o homem do campo. Contudo, estes projetos, sobretudo
aqueles voltados à industrialização em larga escala, geraram também
desigualdades sócio-econômicas e elevados custos sócio-ambientais.
70
4.3 PROBLEMAS GERAIS DO CRESCIMENTO URBANO NO BRASIL
No caso brasileiro, o intenso processo de urbanização e o crescimento
espontâneo das cidades têm gerado consequências desastrosas para o meio
ambiente (SOUZA, 2003). Este problema decorre, fundamentalmente, da
omissão do poder público em promover um planejamento e gestão municipais
democráticos e comprometidos com a melhoria da qualidade de vida nas
cidades, que limitem os exageros cometidos no exercício da relação de
propriedade em benefício dos interesses sociais, dentre os quais figura a
promoção da conservação dos ecossistemas naturais.
O crescimento intensivo das cidades brasileiras, desde a década de
1930, vem provocando mudanças fundamentais na ordem socioeconômica
brasileira, bem como importantes consequências culturais e ambientais
(FERNANDES, 2001). O autor comenta que, embora a legislação urbanística e
ambiental tenha avançado significativamente desde então, até a promulgação
da Constituição Federal de 1988 tal avanço se deu de forma pouco sistemática
em meio a controvérsias de várias ordens.
Entretanto, com mais de 80% da população vivendo atualmente em
cidades, a necessidade de se pensar o marco jurídico-teórico aplicável ao
processo de desenvolvimento urbano é urgente.
Até a promulgação da constituição de 1988, não havia um tratamento
constitucional adequado às questões urbana e ambiental, por esta razão as
cidades brasileiras cresceram sem um marco jurídico apropriado que
permitisse o controle do processo de desenvolvimento urbano (MUKAI, 1988).
71
Mesmo que tecnicamente presente desde 1934 em todos os textos
constitucionais brasileiros, pode-se dizer que o princípio da função social da
propriedade apenas foi consolidado, como marco jurídico, na Constituição de
1988. O autor supracitado aponta ainda que o crescimento urbano, no período
entre as décadas de 1930 e de 1980, ocorreu sob inúmeras controvérsias
jurídicas acerca da possibilidade de intervenção estatal no domínio dos direitos
individuais de propriedade e, especialmente, quanto à competência dos
municípios para agir em matérias urbanísticas e ambientais, já que, na visão
dominante, somente uma lei federal poderia regulamentar os direitos de
propriedade privada diferentemente do Código Civil.
Além disso, enquanto as cidades cresciam em ritmo acelerado, gerando
todo o tipo de problemas sociais, os poucos juristas que se ocuparam da
questão se deixaram envolver em uma longa discussão estéril acerca da
própria existência ou autonomia do Direito Urbanístico.
Em um contexto de planejamento municipal fortemente influenciado
pelas forças do mercado imobiliário e total ausência de políticas públicas e
habitacionais voltadas à diminuição da exclusão social, o crescimento das
cidades acontece em parte dentro da ilegalidade (FRANCO, 2001). Tal
ilegalidade está estruturada de acordo com os interesses deste mercado e, em
parte de forma informal; caracterizada pela construção de habitações precárias
e sem condições mínimas de infraestrutura de saneamento em lugares
ambientalmente inadequados (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2002;
FRANCO, 2001).
72
4.4 URBANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
Durante o período compreendido entre 1850 e 1960, o café determinou,
de maneira quase plena, a vida sócio-econômica do Espírito Santo, os
movimentos demográficos e a infraestrutura (DERENZI, 1975). Contudo, a
cafeicultura no Estado não chegou a estruturar-se sob a forma de “complexo”,
limitando-se a prática no interior da pequena produção familiar, deixando
espaço para que o estado de São Paulo se tornasse o “complexo cafeeiro
capitalista” brasileiro (CANO, 1985).
No contexto do Espírito Santo, a atividade cafeeira não produziu uma
economia urbana e industrial, mas foi capaz de levar a ocupação de território,
gerar correntes migratórias e formar e desenvolver núcleos urbanos, estes
reduzidos e poucos complexos, porém, contendo uma nítida hierarquia. O
esgotamento do café e sua substituição parcial pela pecuária no sul do estado,
além da apropriação capitalista de parte da fronteira norte, inicialmente para
exploração madeireira, seguida pela criação extensiva de gado de corte,
impuseram nova dinâmica à apropriação e uso do solo.
Nas décadas de 1940 e 1950, iniciou-se uma reversão nos movimentos
demográficos vigentes desde o século XIX (Figura 7). Neste período registra-se
uma aceleração na taxa de crescimento da população urbana e um saldo
migratório negativo como resultado de um intenso êxodo rumo a outras
unidades da federação (FERREIRA, 1987). Para o autor esta situação tem
como principais razões o esgotamento de terras, o fechamento da fronteira e a
crise do café no estado, que impuseram obstáculos intransponíveis à
continuada reprodução da produção familiar.
73
Figura 7 - Evolução demográfica do Estado do ES (1872 – 2009) Fonte: Adaptado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Demografia_do_Esp%C3%ADrito_Santo
Na década de 1950, a melhora no preço do café e o aumento da área
plantada, o desenvolvimento da extração madeireira e o cultivo de cacau,
somados ao desenvolvimento da indústria e das atividades portuárias em
Vitória foram fatores que contribuíram para redução da evasão demográfica no
período. No mesmo periodo elevou-se significativamente a taxa de
urbanização, o número de núcleos, cidades e vilas emancipados e o tamanho
médio dos núcleos urbanos (CAMPOS JR, 1998).
A taxa de crescimento das cidades foi maior que a das vilas, o que aponta
para uma acentuação da evasão do campo, porém, com retenção do fluxo
rural-urbano nas principais cidades do estado com uma taxa média entre 1960
e 2000 de 1,27% (Figura 8) (RIOS, 1966; I. S. J. N. 1985a, 1985b).
Essa urbanização satelitizou e incorporou núcleos próximos aos principais
centros urbanos, tais como Cachoeiro de Itapemirim e Colatina, contudo
ocorreu de forma mais intensa nos arredores da Capital em centros como
Cariacica. (RIOS, 1966) Esta forma de urbanização, na opinião do autor,
74
ocorreu desequilibradamente sem originar uma rede harmônica de centros
urbanos onde deveria haver um escalonamento de recursos.
Inicia-se, na visão de Siqueira (2001), um novo padrão urbano onde o
contingente residente urbano perde proporcionalidade direta com as atividades
produtivas urbanas localmente desenvolvidas. O autor comenta ainda que as
atividades urbanas limitavam-se ao comércio dinamizado pelas atividades
cafeeiras, inexistindo uma dinâmica regional que permitisse a expansão do
capital face às antigas relações de produção no campo e a frágil estrutura
industrial. No Espírito Santo o processo de industrialização já se fazia presente
desde os engenhos de açúcar em 1535, porém, o acelerado avanço industrial
só veio acontecer a partir de meados da década de 1970 (KILL, 2002).
Após a crise econômica da indústria do café, o estado estruturou-se e
voltou sua economia para o setor de exportação, utilizando-se de sua vocação
portuária e inaugurando grandes projetos industriais (Figuras 8 e 9) tais como a
implantação do porto de Tubarão, em 1966, a instalação do Centro Industrial
de Grande Vitória (CIVIT) em 1975, e a instalação das usinas de pelotização,
entre 1969 e 1979 da Cia. Vale do Rio Doce em Vitória; além de uma usina de
pelotização da Samarco em Anchieta, em 1977 e no ano seguinte (1978) a
inauguração da Aracruz Celulose; mais tarde, em 1983, a inauguração da
Companhia Siderúrgica de Tubarão no município de Serra.
75
Vitória
Porto de Vitória CVRD - Porto de Praia Mole
Siderúrgica Tubarão
Aracruz Celulose
Samarco
Figura 8 - Principais indústrias da microrregião de Vitória e municípios vizinhos Fontes: http://www.revistafator.com.br/ver_noticia.php?not=78114, http://wwwhttp://www.brasil-turismo.com/espirito-santo/mapas/mapa-politico.htm http://www.arcelormittal.com/br/tubarao/ http://www.sefaz.es.gov.br/painel/econo01.htm
76
Figura 9 - Mapa das Indústrias da microrregião de Vitória e municípios vizinhos Fonte: Kill (2002)
77
4.5 URBANIZAÇÃO DA CIDADE DE VITÓRIA
O estabelecimento das condições de urbanização da metrópole não se
deu a partir de um processo recente, ele é fruto de meio século de crescimento
desorganizado das cidades, desarticulado de um planejamento urbano eficaz e
complementado pela migração maciça do campo para a cidade, políticas
públicas ineficientes, distribuição desigual de riqueza, entre outros fatores e
pode ser caracterizado pela configuração de duas cidades distintas. A “cidade
legal”, caracterizada pela implementação de parcelamentos oficiais localizados,
em geral, em áreas mais centrais, destinados à moradia das classes médias e
altas; e a “cidade ilegal”, destinada à moradia das classes de baixa renda,
caracterizada pela implantação de loteamentos ilegais ou irregulares nas
porções periféricas dos municípios e pela consolidação de favelas em diversas
áreas das regiões mais centrais (SILVA, 2000; MARICATO, 2001).
Similarmente a outras capitais litorâneas, a cidade de Vitória teve sua
trajetória de urbanização impulsionada pela expansão da navegação e da
colonização portuguesa (BITTENCOURT, 1987). Em termos de espaço para
ocupação, o sitio físico da ilha no final do século XIX, apresentava limitações
geomorfológicas que dificultavam a urbanização. Com objetivo de determinar
uma área adequada à expansão da cidade o governo Muniz Freire, em 1895,
criou a Comissão de Melhoramentos da Capital, encarregando como
responsável o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, responsável por
projetos de saneamento e expansão urbana em diversas cidades do Brasil
(MENDONÇA, 2000).
Neste período o projeto Novo Arrabalde (Figura 10) propunha a
expansão do território ocupável, em uma dimensão variável entre cinco e seis
78
vezes o tamanho do núcleo original, projetando-se para a orla nordeste
composta por manguezais. A ocupação urbana estabelecida no projeto do
Novo Arrabalde ocorreu sobre o terreno plano existente e aterrado
considerando os elementos naturais. Entretanto, em função do pequeno
volume de fluxo migratório da época as expectativas em relação ao projeto não
foram atendidas e a parcela noroeste só veio a ser ocupada a partir da década
de 1960 (CAMPOS JR, 2002).
A cidade de Vitória, até os anos de 1960, esteve apoiada na economia
agroexportadora da monocultura cafeeira e se apresentava como uma região
periférica e subdesenvolvida, com pouca integração ao mercado nacional
(SIQUEIRA, 1987). Contudo, a partir de 1942, com o início das operações da
Companhia Vale do Rio Doce, a estrada de ferro Vitória-Minas (Figura 11) foi
ampliada e renovada e o porto aparelhado, conferindo então à cidade, o status
de importante hinterlândia de distribuição do minério de ferro
79
Escala 1:16.000
mangue
área drenada e aterrada (estimativa)
Figura 10 – Adaptação da planta do Projeto Novo Arrabalde. Fonte: Campos Jr. (1996)
Figura 11 - Traçado da estrada de ferro Vitória-Minas. Fonte: Cia Vale do Rio Doce
80
Ainda, segundo Siqueira (1987), as consequências do binômio ferrovia-
porto para a urbanização da cidade foram evidentes. Na década de 1950 estes
processos combinados capacitaram a cidade de Vitória a monopolizar
determinadas funções urbanas necessárias à expansão da cafeicultura por
todo o Estado, tornando-se importante no contexto das exportações de café
efetuadas pelo Brasil (Figuras 12 e 13).
Figura 12 - Mapa Ferroviário Brasileiro. Fonte: Ministério dos Transportes (1999)
81
Figura 13 - Embarque de carvão no Porto de Vitória na década de 1950.
Fonte: Acervo do Instituto Jones dos Santos Neves.
Entretanto, a desagregação da economia primário-exportadora do
estado do Espírito Santo, cristalizada no processo de crise do café e a
implantação de grandes indústrias produtoras de bens de capital abriram um
enorme mercado de trabalho na cidade e trouxeram para Vitória milhares de
pessoas desempregadas (BITTENCOURT, 1987).
Nesse contexto, o poder público estadual fez-se presente através da
criação do Instituto do Bem-Estar Social do Espírito Santo (IBES) visando
implantar uma política social no campo imobiliário, ao iniciar a construção de
habitações populares para o estabelecimento de um proletariado urbano. Outra
ação representativa da presença do Estado neste período foi a transferência de
propriedade de terrenos urbanos, pelo mecanismo de aforamento, a qualquer
um que se interessasse (CAMPOS JR., 2002).
82
As transformações estruturais que conferiram à Vitória o status de
metrópole, pautaram-se nos objetivos da política econômica e territorial do
Governo Federal vigente em 1975, ao inserir o Espírito Santo no chamado
desenvolvimento nacional com a implementação de quatro grandes grupos de
projetos: o complexo siderúrgico, o complexo naval, o complexo paraquímico e
o complexo portuário, denominados Grandes Projetos (ABE, 1999).
Estes processos dirigiram os fluxos migratórios para as cidades,
especialmente para a Grande Vitória, estimulados pelas perspectivas da
industrialização. Somados a estes eventos é importante lembrar que, na fase
de erradicação do café entre 1962 e 1966, foi injetado na economia local um
total de Cr$ 70.254.000,00 (ROCHA; MORANDI, 1991) referentes ao
pagamento pelos cafezais erradicados, equivalente a 100,38% da receita bruta
do Estado em 1967.
Como 180 mil pessoas deixaram o campo a partir deste período
(BUFFON, 1992), dirigindo-se para a Grande Vitória em conseqüência da
adesão dos produtores locais a essa política, os autores supracitados
postularam que esses recursos tenham sido direcionados prioritariamente,
também, para a Grande Vitória. A região metropolitana da Grande Vitória
apresentou destacado crescimento demográfico entre 1970, período em que
moravam na região 133.019 habitantes, e 1980 com uma taxa de crescimento
demográfico da ordem de 4,6% no período, evoluindo para 207.747 habitantes.
Nas duas décadas seguintes houve aumento populacional de 84.557
habitantes com uma taxa de evolução de 10,5% no período (Figura 14),
decorrente da evolução dos processos produtivos com ênfase na redução dos
custos de produção e de transporte criando desta forma, a necessidade de
83
postos de trabalho para atender a modernização de seus sistemas
tecnológicos, sobretudo da indústria portuária gerando um dinamismo
demográfico e econômico diferenciado (STROHAECKER, 2008).
Outra ação do Governo Estadual como estímulo à migração em direção
a região metropolitana, foi o investimento de 56,7% de um montante de U$
165.384.102,60, na Grande Vitória, entre as décadas de 1970 e 1980,
provenientes do Fundo de Recuperação Econômica do Espírito Santo (Funres).
Este recurso originou-se de parte do imposto de renda devido por pessoas
físicas e empresas, cedido pela União como compensação à desigualdade de
condições existentes entre os estados do Sudeste.
Estes fatos indicam uma ampla expansão da malha urbana, constatada
inicialmente no volume de licenças de construção emitidas pela Prefeitura
Municipal de Vitória entre 1971 e 1975 autorizando um total de 846.473 m2 de
obras (IBGE, 1985) e ao considerar o privilégio tributário de isenção do imposto
de renda, ao qual gozavam as incorporações durante este período até o ano de
1977 (CAMPOS JR., 1998).
A construção, durante a década de 1970 foi, além dos fatores acima,
fundamentalmente impulsionada pelas iniciativas do Instituto de Orientação às
Cooperativas Habitacionais no Espírito Santo (Inocoop-ES) e da Companhia de
Habitação e Urbanização do Estado do Espírito Santo (Cohab-ES) (CAMPOS
JR; SANTOS NEVES, 1998). Neste período foi significativa a promoção pública
de moradias para atender as demandas ocasionadas pela instalação dos
grandes projetos nos limites da metrópole, naquela época em formação.
84
Figura 14 - Evolução demográfica de Vitória/ES no período de 1872 a 2009. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/vitória_(espírito_santo)#demografia
85
5. OS MANGUEZAIS EM VITÓRIA (ES) E SUA CONSERVAÇÃO LEGAL
5.1 OS MANGUEZAIS DA BAÍA DE VITÓRIA
No Espírito Santo os manguezais se distribuem ao longo de quase toda
a costa, encontrados nos municípios de Itaúnas, Conceição da Barra, São
Mateus, Aracruz, Nova Almeida, Serra, Vitória, Cariacica, Vila Velha,
Guarapari, Piúma, Anchieta, Itapemirim e Presidente Kennedy (SILVA;
BERNINI; CARMO, 2005).
Ao todo, o litoral capixaba possui 30 mil hectares de manguezais
distribuídos desde Itaúnas, ao norte, até Presidente Kennedy, no sul do Estado.
No limite com Linhares está o município de São Mateus, que possui a segunda
maior área de mangue do Estado, estimada em 11,85 km², sendo que a maior
área, de 15,8 km², encontra-se no município de Aracruz, na bacia do rio
Piraquê-Açu.
Considerando a dimensão dos manguezais, o ecossistema da região
noroeste do município de Vitória ocupa o 3º lugar. O mangue da região
Noroeste possui uma área de 8.918.350 m² e é o mais importante da baía de
Vitória (Figura 15), onde desembocam os rios Santa Maria de Vitória, Bubu,
Marinho e Aribiri.
86
Área de estudo
Figura 15 - A região Noroeste da Baía de Vitória insere-se na malha urbana de dois municípios, Vitória (delimitado pela linha vermelha) e o município de Serra (ao norte). Destacam-se os bairros da grande São Pedro (na porção inferior) e ao centro a área do manguezal exposto aos impactos urbanos.
O Estuário da foz do Rio Santa Maria de Vitória (Figuras 16 e 17) forma
um delta, com 25 ilhotas cobertas de mangue que, além de manter o equilíbrio
de assoreamento na Baía de Vitória, fornece água ao município, atendendo
conjuntamente com o Rio Jucu a uma população aproximada de 1.300.000
habitantes (GUZZO, 1996).
87
Figura 16 - Bacia do rio Santa Maria de Vitória. Fonte: IEMA (2010)
Figura 17 - Foz do rio Santa Maria de Vitória Fonte: Imagem adaptada do Programa Google Earth Pro (2009)
As terras emersas ao longo da Baía de Vitória são ricas em contrastes e
já foram divididas por diversos autores em Afloramentos9 Cristalinos,
9 Surgimento de rocha-mãe à superfície da Terra após ter sofrido algum processo erosivo,
facilitando o estudo e mapeamento geológico. (WICANDER; MONROE, 2009)
88
Tabuleiros10 pouco elevados de sedimentos terciários e planícies costeiras11
resultantes de depósitos quaternários de origem marinha ou flúvio-marinha
(FERREIRA, 1989). Cada conjunto destes três compartimentos fisiográficos,
associados à aspectos da cobertura vegetal e às peculiaridades climato-
hidrológicas compõe um geossistema.
Segundo a classificação geossistêmica adotada pela autora supracitada
a área é dividida em três tipos: Geossistema de Escarpas, Geossistema de
Tabuleiros e Geossistema de Planície Costeira Sul, onde enquadram-se os
manguezais encontrados a oeste e à leste da Baía de Vitória. No Geossistema
de Planície Costeira Sul, descrito conforme classificação da vegetação do
Espírito Santo de Ruschi (1950) podem ser observados três geofaceis
diferentes: Geofaceis de Mata Pantanosa Litorânea, Geofaceis de Restinga e
Geofaceis de Mata Pantanosa Marinha ou manguezal.
O Geofaceis de Mata Pantanosa Litorânea corresponde ao trecho de
ocorrência de um tipo de mata entre a restinga e a Mata de Tabuleiros,
tipicamente alagável. Grande parte da Baía de Vitória, que era dominada pelo
Geofaceis de Mata de Restinga, foi quase totalmente urbanizada, restando
como testemunho da existência desta vegetação, pequenas áreas como na Ilha
do Lameirão, a mata de restinga preservada próximo à praia de Camburi e de
outras áreas dispersas, de cobertura insignificante.
Por fim o Geofaceis de Mata Pantanosa Marinha interliga-se aos demais
Geossistemas e geofaceis, e ocorre nas desembocaduras dos rios Aribiri, Bubu
10
Forma de relevo constituída por pequenos platôs, de altitude em geral modesta, limitados por
escarpas abruptas, denominadas barreiras. (AB‟SABER, 1979) 11
Grande área geográfica com leve ou nenhum tipo de variação de altitude. (WICANDER;
MONROE, 2009)
89
e Santa Maria, ao longo dos Canais dos Escravos, da Passagem e do
Lameirão.
Os manguezais da região apresentam-se, em alguns setores, vigorosos
e em bom estado de conservação (Figuras 18 e 19), constituindo assim a área
mais representativa da Baía, contudo, a região noroeste está severamente
antropizada à semelhança dos dois geossistemas anteriores.
Figura 18 - Área intensamente urbanizada em Resistência, com destaque para a exuberante vegetação do manguezal em seu entorno. Fonte: Fotos do Autor (2009)
A ocupação humana no manguezal não é o único impacto sobre este
ecossistema, a ação antrópica nos Geossistemas de Tabuleiros e de Escarpas
também acarreta impactos ao manguezal. No caso do Geossistema de
Tabuleiros o impacto ocorre por desmatamento, erosão e consequente
deposição de sedimentos transportados pelos rios e córregos até a área de
planície. Além disso, o manguezal da porção noroeste funciona como receptor
90
da poluição industrial proveniente de pólos industriais e agroecossistemas
instalados ao longo da bacia hidrográfica do rio Santa Maria.
Figura 19 – Manguezais em frente à ilha das Caieiras, porção noroeste, preservados. Fonte: Fotos do Autor (2009)
Apesar de toda a interferência antrópica sobre as áreas naturais, ao
longo do processo de urbanização da Baía de Vitória, 23% do território do
município contêm 68 Unidades de Conservação (Anexo A), constituídas de
floresta atlântica e ecossistemas associados ao manguezal e a restinga; dentre
as quais seis adjacentes aos bairros da Grande São Pedro (Figura 20) (VALE;
FERREIRA, 1998).
91
Figura 20 - Unidades de Conservação existentes no município de Vitória. Destaque para o Manguezal da UFES (3), a Ilha do Campinho (9), a Ilha do Crisógono (29), Estação Ecológica Ilha do Lameirão (54), Parque Nat. Mun. Vale do Mulembá-Conquista (56) e Parque Dom Luis Gonzaga Fernandes (Baía Noroeste) (61); todos em interface direta com a Grande São Pedro. Fonte: Núcleo de Informação e Geoprocessamento da Secretaria de Meio Ambiente de Vitória (SEMMAM) (2009)
92
5.2 INSTRUMENTOS LEGAIS DE CONSERVAÇÃO DOS MANGUEZAIS EM VITÓRIA
Ao longo da história do Brasil os manguezais foram considerados
ambientes insalubres e pouco importantes, a ponto de sofrerem extensa
supressão para atender às demandas públicas de diversas esferas, tais como a
implantação de projetos regionais de pavimentação de estradas interestaduais
e projetos sanitaristas urbanos. Os manguezais foram objetos de vasta
legislação que por diversas razões regulamentavam seu corte e supressão.
Embora os manguezais já estejam protegidos no Brasil pela legislação
como Áreas de Proteção Permanente (APPs), conforme determinação da Lei
federal 4.771/65, por serem constantemente expostos às pressões do aumento
populacional em áreas urbanas a eles adjacentes, faz-se necessária a
regulamentação de normas que disciplinem a expansão urbana e minimizem
suas consequências sobre estes ecossistemas (SANTOS, 1993).
Na esfera da legislação ambiental, tanto Estadual como de Vitória, em
1986 criou-se uma Política de Meio Ambiente para o Estado do Espírito Santo
e o Município de Vitória, com legislação específica e órgãos competentes, tais
como o Instituto Estadual de Meio Ambiente (IEMA) e a Secretaria Municipal de
Meio Ambiente (SEMMAM). Esses órgãos, além do IBAMA e da Policia
Ambiental, passaram a atuar de forma contundente no espaço urbano e nas
reservas naturais declaradas áreas de proteção permanente, como é o caso
dos manguezais (DINIZ, 2006).
As atribuições da SEMMAM promulgadas através da Lei nº 3315/86,
contemplavam a proteção, conservação, recuperação, controle e fiscalização
dos recursos naturais de Vitória. A preservação da forma atual dos contornos
93
do Município e suas ilhas foi determinada pela Lei nº 3338/86 (Anexo B), uma
das mais importantes do município na área da preservação dos manguezais,
praias, baías e enseadas, pois a partir dela os contornos municipais não mais
puderam ser alterados por aterros.
Embora a lei supracitada visasse a proteção de recursos naturais do
município, outros setores do poder público continuavam de forma contraditória
a estimular a urbanização em áreas de proteção permanente, já que também
no ano de 1986 foram sancionadas duas Leis, 3.333 e 3.336 (Anexos C e D),
autorizando o poder executivo a abrir, por meio de decretos, crédito especial
adicional para atender as obras de aterro hidráulico no bairro São Pedro com
recursos oriundos do Ministério de Desenvolvimento Urbano e de Meio
Ambiente, no contexto do Programa de Infraestrutura e Habitação – Prioridades
Sociais.
Os destinos urbanísticos da cidade passaram a contar com a análise e
poder de voto da SEMMAM, a partir de sua inclusão no Conselho Municipal do
Plano Diretor Urbano (CMPDU), pelo Decreto nº 7317/86 (Anexo E), garantindo
maior proteção aos recursos naturais do município (DINIZ, 2006; P. M. V.,
1997), principalmente no que se referiu ao zoneamento e normas de uso da
porção costeira nordeste.
O controle sobre estas áreas foi definido já em 1985 pela Lei 3267
(Anexo F) discriminando as áreas da praia de Camburi, do aterro da enseada
do Suá e aterro da enseada do Frade como zonas balneares de lazer do
município; mais tarde, a delimitação deste zoneamento foi acurada com a
alteração da redação da Lei 3267/85 pela Lei nº 3312/86.
94
De acordo com Ferreira (1989) o estuário do Rio Santa Maria e Vitória
foi transformado em Reserva Biológia12 Municipal com a publicação da Lei nº
3326 de 1986 (Anexo G) tendo sua categoria de manejo modificada pela Lei nº
3377 no mesmo ano (Anexo H) para Estação Ecológica13 Municipal Ilha do
Lameirão (EEMIL). Ao ter sua categoria de manejo modificada de Reserva
Biológica para Estação Ecológica Municipal (EEMIL), pela Lei 3377/86, a Ilha
do Lameirão passou a ser administrada e fiscalizada pela Prefeitura Municipal
de Vitória.
Num contexto mais amplo, foi promulgada em 1988 a Lei Estadual nº
4.119 (Anexo I) que instituiu a preservação permanente dos manguezais
remanescentes do Espírito Santo. Esta Lei foi de grande importância porque
com base nela, foram criadas seis Unidades de Conservação de manguezais
(Figura 21), sendo quatro Estações Ecológicas Municipais, uma Reserva
Ecológica e ainda uma Área de Proteção Ambiental (APA).
Estas Estações Ecológicas estão localizadas nos municípios de Anchieta
(Estação Ecológica do Papagaio), de Guarapari (Estação Ecológica Concha
D‟Ostra), de Vitória (Estação Ecológica Ilha do Lameirão) e de São Mateus
(Estação Ecológica de Barra Nova). A única Reserva Ecológica pertence ao
município de Aracruz (Reserva Ecológica de Piraquê-Açu e Piraquê-Mirim) e a
APA encontra-se na área de Conceição da Barra.
12 Tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em
seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos. (BRASIL, 2000)
13 Tem como objetivo a preservação da natureza e a realização de pesquisas científicas. É
proibida a visitação pública, exceto com objetivo educacional e a pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável. (BRASIL, 2000)
95
Atualmente existem 16 Unidades de Conservação no Estado, contudo,
as criadas sob a égide da Lei 4.119, visam a proteção de mangues e restingas.
Entretanto, nenhuma delas possui Plano de Manejo, ou qualquer outro
documento técnico que estabeleça o zoneamento e suas normas de uso,
segundo os objetivos para os quais a UC foi criada.
Figura 21 - Unidades de Conservação do Espírito Santo Fonte: Adaptado de Século Diário (2005)
96
A Lei Estadual nº 4.119, de 22 de julho de 1988 assegurou a
preservação dos mangues da Baía de Vitória como um todo, obrigando os
municípios vizinhos de Vitória (Serra e Cariacica) a protegerem todo o mangue,
embora a maior porção da Grande São Pedro já estivesse aterrada. (Figura 22)
Figura 22 - Grande São Pedro em 1988. Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
A implementação da EEMIL conduziu a novas relações de força entre os
órgãos responsáveis pela fiscalização e os catadores de caranguejo, uma vez
que o poder público estabelecia „em gabinetes‟, as regras da extração dos
recursos naturais e convocava os grupos para informar-lhes das decisões,
desconsiderando o direito não-escrito das populações tradicionais que, apesar
97
de presente em suas práticas sociais, foi desconsiderado na efetivação ou
criação da política ambiental aplicada na área. Esta prática resultou em uma
primeira ruptura do cotidiano desse grupo social, pois uma nova forma de gerir
os recursos naturais lhes foi imposta por uma instância heterônoma, dentro de
seu território de trabalho costumeiro (DINIZ, 2006).
Em 1989 o município, por meio do Decreto nº 8.060, declarou proibida a
pesca de arrastão nos canais da baía de Vitória e baía de Camburi, reprimindo
a pesca predatória prejudicíal ao desenvolvimento da fauna, presente tanto no
estuário como no mar, nos limites da jurisdição municipal.
Em 1990 foi promulgada a Lei Orgânica do Município de Vitória, com um
capítulo dedicado à conservação e ao controle do meio ambiente. No ano
subsequente, por Ato Constitutivo do COMDEMA (Conselho Municipal de
Defesa do Meio Ambiente de Vitória) foram estabelecidos critérios e padrões
para o controle da poluição dos recursos hídricos do município de Vitória
através da Resolução nº 02, de 05 de janeiro de 1991.
Nos anos 90, os espaços urbanos de Vitória foram redefinidos segundo
o novo Plano Diretor Urbano instituído pela Lei nº 4.167, através de diversos
projetos, visando proporcionar à cidade melhor infraestrutura para o
desenvolvimento sustentável do turismo. Neste contexto espaços capazes de
agregar valores paisagísticos, de tradição e culinários, representativos de
símbolos de preservação, como a Ilha das Caieiras, localizada na região
noroeste da baía de Vitória, detentora de uma história de formação vinculada
às atividades pesqueiras (ZIPPINOTTI, 1985; TURNER, 2005) tornaram-se de
grande importância para a prefeitura municipal. Desse modo, áreas com
98
vocação para a preservação de valores culturais tradicionais foram inseridas no
projeto de modernização turística da Prefeitura de Vitória e neles foram criados
novos espaços sociais, tais como cooperativas, e edificadas estruturas
arquitetônicas, como o píer e pavimentação para melhoria do acesso de
turistas à contemplação paisagística da natureza (Figura 23) (SILVA, 2003).
Figura 23 - Pier na Ilha das Caieiras, com restaurantes (abaixo à direita) e passeio público (abaixo à esquerda) para contemplação da natureza. Fonte: Fotos do autor (2009)
Embora estivesse ocorrendo um despertar para a importância de valores
complementares à qualidade dos recursos ambientais, os ecossistemas
naturais associados à malha urbana continuavam sofrendo consequências de
um modo de vida consumista associado ao aumento populacional, lembrando
que segundo a Lei, manguezais já eram ecossistemas protegidos e deviam ser
99
preservados (BRASIL, 1965, 1979), independentemente dos benefícios que os
usos da área pudessem proporcionar.
Em um contexto mais geral, buscando determinar os estágios de
regeneração da Mata Atlântica de maneira a controlar a exploração de seus
recursos, a Superintendência do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em decisão conjunta com a Secretaria
para Assuntos de Meio Ambiente do Espírito Santo (SEAMA) e o Instituto de
Terras Cartografia e Florestas (ITCF) implementou a Resolução Conama nº 29
em 1994, proibindo o corte, exploração e supressão de vegetação secundária
no domínio de Mata Atlântica no Estado.
Já em um plano de manejo ambiental urbano, durante a década de 1990
foi proposta uma nova agenda pública no Brasil, visando à adequação de
políticas públicas ao “desenvolvimento sustentável” centrado no paradigma
ecológico-social voltado para as demandas locais, a Agenda 21 (P.M.V., 1996).
A Prefeitura Municipal de Vitória, em consonância com os objetivos da
Agenda, propôs o Plano Estratégico da Cidade: Vitória do Futuro 1996-2010,
esse desdobrava-se em diversos subprojetos, tais como o „Projeto Terra‟14,
„Projeto Rota Manguezal‟15, „Projeto Caranguejo‟ e o „Projeto Mangue Vivo‟16
14
O objetivo mais abrangente do Projeto Terra é o de incorporar ao tecido urbano da cidade as áreas ocupadas por população de baixa renda, dotando-as de infraestrutura e serviços e assegurando aos seus moradores adequada qualidade de vida e garantia da cidadania pelo pleno direito à cidade 15
Tem como objetivo promover o ecoturismo na baía noroeste de Vitória, preservando e
conservando o manguezal, os valores históricos, culturais e humanos da região, além de promover o desenvolvimento social das comunidades, visando a geração de emprego e renda, fortalecimento das comunidades locais, diminuição da poluição da baía e ordenamento das atividades pesqueiras. 16
Os objetivos propostos pelo projeto são a mobilização e sensibilização da comunidade em geral para a problemática do lixo no ecossistema manguezal, avaliando seus impactos negativos nesse ecossistema com relação afauna e flora. Intensificando o trabalho já realizado pelo Departamento de Educação Ambiental (DEA) ações educativas para alunos das escolas do entorno dos manguezais no Parque Municipal Baía Noroeste.
100
visando, entre outros objetivos, a gestão racional do uso dos espaços da
cidade de Vitória, incluindo as áreas de mangue.
Ao final da década de 1990, em um cenário de apelo à conservação dos
espaços naturais do município de Vitória, em particular da região noroeste da
baía, dois instrumentos surgiram para sedimentar a proteção aos manguezais e
definir a interelação entre poder público e instituições privadas no que concerne
a preservação, conservação, defesa, melhoria, recuperação e controle do meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem como de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida.
Estes instrumentos foram, respectivamente, o Código Municipal de Meio
Ambiente, instituído pela Lei nº 4438/97, um dos primeiros do Brasil, e mais
tarde a criação por meio do Decreto nº 10179/98, do Parque Municipal Don
Luiz Gonzaga Fernandes na Baía Noroeste de Vitória (Figura 24), com área de
638.858m². A criação deste Parque Municipal veio agregar numa Unidade de
Conservação os manguezais que não estavam delimitados como parte da
Estação Ecológica Municipal Ilha do Lameirão (DINIZ, 2006).
101
Figura 24 - Parque Municipal Baia Noroeste de Vitória. Fonte: Foto do autor (2009)
Contudo, tanto as alterações na legislação, quanto as representações e
práticas relacionadas à gestão do território do mangue, agora centradas na sua
conservação, ainda se depararam com os limites presentes na legislação
brasileira.
A legislação brasileira, no período de 1998, inspirava-se na concepção
norte-americana de uma natureza intocada (DIEGUES, 2004), na qual o
homem é caracterizado como agente eminentemente destruidor. Perspectiva
oposta àquela dos naturalistas de fins do século XIX, que viam no homem um
ser perdido na imensidão do ambiente natural. Neste sentido, as normas em
102
vigor no Brasil priorizavam o „interesse da natureza‟ à custa de uma atenção
secundária aos seres humanos.
A maioria das políticas voltadas à conservação das áreas naturais da
região, foi parcialmente implementada. Muitas das áreas protegidas foram
delimitadas com a instalação de cercas, mas os órgãos não investiram em
ações administrativas e práticas necessárias à proteção integral ou
sustentabilidade dos recursos existentes.
A maioria das áreas protegidas não contempla a legislação vigente no
que se refere às suas potencilaidades e fragilidades, pois não têm Plano de
Manejo17 ou qualquer outro instrumento norteador das atividades a serem
conduzidas ou coibidas. Existem apenas alguns estudos paralelos
individualizados, porém inconclusivos, de atendimento dos objetivos de um
plano de manejo.
Como parte do processo de criação de áreas de proteção ambiental é
necessária a elaboração e execução de estudos prévios como Estudo de
Impacto Ambiental (EIA) e de estudos de controle e monitoramento dos
processos naturais e antrópicos já existentes e de implantação de novos
processos no âmbito de lei. No caso da região de São Pedro em Vitória, ES, os
processos de uso e ocupação das áreas e seus recursos ocorreram de maneira
árbitrária em relação à legislação ambiental e, só tardiamente, as
determinações legais foram observadas e consideradas, na maioria das vezes
17
Documento técnico mediante o qual, com fundamentos nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabeleceseu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação de estruturas físicas necessárias à gestão da unidade. (BRASIL, 2000)
103
como resultado de ações mal conduzidas que culminaram no esgotamento ou
na degradação de recursos e após a ocupação já estar totalmente estruturada.
Além disto, os órgãos responsáveis pela gestão e monitoramento
demonstram dificuldades em demandar esforços na manutenção das parcelas
legalmente protegidas, seja pela falta de efetivo técnico destinado à área, ou
pela ineficiência em sensibilizar a população ou ainda pelo desequilíbrio destes
aspectos associado à imposição da legislação aos grupos que se utilizam dos
recursos sem oferecer uma opção substitutiva ou complementar à proibição da
extração dos recursos.
104
6. CONFLITOS ENTRE CRESCIMENTO URBANO E A CONSERVAÇÃO DOS
MANGUEZAIS EM VITÓRIA
6.1 DESTRUIÇÃO E DEGRADAÇÃO DOS MANGUEZAIS EM VITÓRIA
Nas vilas do Espírito Santo, entre as décadas de 1940 e 1960, a
territorialização do espaço sofreu alterações de sua forma fundiária que passou
por descentralização e fragmentação das grandes propriedades cafeeiras no
sul do Estado em função do esgotamento do café (BUFFON, 1992). Com a
diminuição da atividade cafeeira no Estado houve um intenso movimento
migratório para a capital impondo uma nova dinâmica à apropriação e uso da
terra e à absorção de mão-de-obra (ZANOTELLI, 2000).
Desta forma, segundo os autores supracitados, a partir da década de
1960, estendendo-se pela década subsequente, Vitória tornou-se o centro
polarizador das atividades econômicas e políticas do Estado. Contudo,
acomodar o contingente populacional imigratório no espaço do município, de
reduzida extensão, sem suporte para grande contingente habitacional, foi um
problema.
A industrialização de grande porte, enquanto principal atividade
econômica na década de 1970 serviu de base para a apropriação da renda
através da terra (CAMPOS, 2004), já que foi um processo catalisador da
imigração populacional para a cidade; porém, esta apropriação ocorreu de
forma desigual se comparadas às regiões nordeste e noroeste do município.
Enquanto a região nordeste da baía, principalmente a orla (Figuras 25 e 26),
sofria intensa verticalização, a porção noroeste era relegada à segundo
105
plano sob o aspecto da infraestrutura urbana necessária ao desenvolvimento
imobiliário.
Figura 25 - Praia do Canto no início da década de 1970 Fonte: Acervo da Biblioteca do Centro de Artes da Ufes
Figura 26 - Av Cesar Hilal, bairro Praia do Canto ao final da década de 1980 Fonte: Acervo do Jornal A Gazeta
106
Os projetos industriais implantados após 1970 foram implementados de
forma muito brusca e promoveram rapidamente a decadência das atividades
econômicas tradicionais, descaracterizando, por conseguinte, os traços rurais
da região urbana de Vitória (ROCHA; MORANDI, 1991). Além disso, os
projetos industriais atraíram para a cidade tanto a população rural capixaba que
ficou desempregada depois da erradicação dos cafezais improdutivos quanto
um formidável contingente de migrantes de outras localidades do país, o que
contribuiu para agravar ainda mais o quadro caótico que se instalara em Vitória
e na Grande Vitória (SIQUEIRA, 2001).
A década de 1970 foi também o período no qual as desigualdades
espaciais existentes no município de Vitória cristalizavam-se na individualidade
de cada prédio, racionalizadoras do espaço produzido de acordo com
interesses de grupos dominantes historicamente definidos que conferiam valor
à natureza agora escassa (MENDONÇA, 1999). Bairros localizados nas
regiões insular e continental, tais como Praia do Canto e Jardim da Penha
foram os primeiros a apresentar uma representativa verticalização. Isto ocorreu
porque tais áreas consideradas nobres possuíam grandes residências, ruas
arborizadas e infraestrutura instalada, as condições consideradas propícias
para o citado processo (CASER; CONDE, 1994).
A intensificação da verticalização ocorreu na década de 80 graças à
criação do Plano Diretor Urbano de Vitória em 1984 (ABE, 1999). Neste
sentido, pode-se afirmar que os Planos Diretores de Vitória, no período, foram
grandes aliados dos grupos empresariais ao ignorar a natureza determinando
índices construtivos que permitiram a edificação de projetos verticais em áreas
inadequadas.
107
Assim, com a contínua valorização do espaço na orla, as áreas de
manguezal na face noroeste tornaram-se o destino dos imigrantes em busca de
melhores condições de vida na capital. Enquanto o mercado imobiliário era
intensamente promovido na porção nordeste, a apropriação do espaço da baía
noroeste de Vitória ocorreu de forma desordenada (Figura 27).
Figura 27 - Inicio da ocupação da Grande São Pedro (1985). Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
Concomitantemente, o esforço de ordenação espacial urbana de outras
áreas da cidade por parte dos órgãos públicos, tais como aquela destinada a
implantação do terminal rodoviário da cidade (Figura 28), exigiu o
remanejamento de famílias que, sem opções dirigiram-se aos mesmos espaços
de pouca valorização que os imigrantes.
108
Figura 28 - Estação Rodoviária recém construída Fonte: Acervo do Instituto Jones dos Santos Neves
Todo este contingente populacional passou a utilizar-se do espaço para
moradia, lançando mão dos recursos naturais disponíveis para construção de
barracos e palafitas (Figura 29) podendo facilmente enquadrar-se no modelo
de „cidade ilegal‟ proposto por Silva (2000) e Maricato (2001). A exemplo de
grande parte do Brasil, em Vitória, o poder público transfere renda na forma de
investimentos para o mercado imobiliário de alto padrão em áreas selecionadas
e pouco ocupadas, priorizando-as em detrimento de áreas intensamente
ocupadas e com carências básicas.
109
Figura 29 – Condições de moradia no inicio da ocupação em São Pedro (1985) Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
Assim, os esforços para atender às demandas da ordenação urbana das
áreas mais valorizadas da cidade, associados à falta de infraestrutura e
planejamento fizeram com que a porção noroeste, depósito de lixo do
município desde 1970 (Figura 30) tivesse aumento do volume de resíduos e
passasse por novo processo de territorialização. Já que o direito ao material
despejado passou a ser disputado, como recurso financeiro, pela população
residente (DINIZ, 2006).
110
Figura 30 - Uso do bairro São Pedro como lixão municipal na década de 1970. Fonte: Acervo do Jornal Gazeta On Line
O poder público instaurado na cidade no fim dos anos 70 e durante parte
da década de 1980 sempre respondeu de forma clientelista e pontual, por um
lado, e por outro, através da repressão policial, sem que fossem gestadas
políticas para aquela realidade de degradação humana e ambiental. Esse
quadro, onde o mangue era palco de disputas, seja como espaço de moradia,
seja como espaço para o exercício da atividade extrativista, originou a
destruição de muitas riquezas oriundas deste ecossistema, afetando
principalmente a pesca, levando à extinção de algumas árvores nativas e na
perda de extensa área vegetacional.
Nos anos seguintes, com a intervenção do estado na tentativa de
urbanizar a área através da implantação de projetos de desenvolvimento
urbano, ocorreu acelerado aumento populacional associado a uma intensa
territorialização onde diversos atores, tais como associações de classe e
lideranças comunitárias faziam-se presentes e ativas. Neste contexto, a região
foi tomada por especulação imobiliária que ocasionou uma reestruturação no
uso do solo (DIGRAZIA, 1997), fazendo com que recursos naturais disponíveis
111
ficassem inacessíveis, à partir da ocupação da área por construções que
levaram à diminuição dos recursos do mangue e à graves limitações de suas
atividades tradicionais contribuindo para a emergência de conflitos entre os
diversos atores.
A intervenção pública sobre estas áreas ocorreu inicialmente de
maneira arbitrária, ignorando, na maioria das vezes, os diferentes grupos que
ali viviam, transformando o território que utilizavam para seu sustento em áreas
naturais protegidas, mantendo-os, em geral, alienados do processo, isto
quando não são usurpados de seus direitos
A história de formação dos bairros da Grande São Pedro, vinculada às
atividades pesqueiras e extrativistas, agrega valores paisagísticos e de tradição
à localidade. Assim a área se tornou importante para a prefeitura municipal de
Vitória, que direcionou, ao longo das décadas de 1980 e 1990, uma série de
investimentos no local, tratado como reduto do desenvolvimento e da
manutenção da „tradição‟ (SILVA, 2003).
Neste cenário, a região da baía noroeste tornou-se palco de disputas e
de conflitos envolvendo o poder público e os grupos que têm sua história de
vida vinculada a esses espaços, colocando em jogo as identidades criadas a
partir das atividades tradicionais associadas ao ecossistema do manguezal,
tais como os catadores, os pescadores artesanais, as desfiadeiras de siri e os
baloeiros18.
18
O termo baloeiros faz referência aos pescadores integrantes de barcos de arraste, equipados com “rede de balão”, direcionados à captura de camarões. Os barcos fazem uso de tangones, estruturas de madeira que se mantêm presas nos dois lados da popa da embarcação, possibilitando a operação de pesca com duas redes em simultâneo, além do uso de correntes espantadeiras, que vão batendo no fundo para espantar os camarões e tornar a captura mais eficiente. (nota do autor)
112
6.2 URBANIZAÇÃO DO MANGUEZAL DA REGIÃO NOROESTE
Enquanto ocorria o boom imobiliário na região nordeste, a parcela
noroeste era palco de alterações de ordem física e social, cristalizadas na
degradação estrutural de seus sistemas natural e humano. O maciço Central
situado no centro da Ilha faz o papel de barreira natural física que comprime o
centro histórico, limitando a expansão da parte noroeste, enfatizando
contrastes e dividindo geograficamente o município.
Associado a este cenário vale lembrar que o mangue foi desconsiderado
ao longo dos sucessivos planos de urbanização, sobretudo pela política
sanitarista, que o considerava área insalubre e foco de doenças. Este
posicionamento desvalorizador, simbólico e material por parte da sociedade e
do poder público ocasionou grande devastação deste ecossistema na cidade
de Vitória.
O manguezal, em contraste com o mar, até recentemente não era
considerado objeto de valorização e atenção imediata para qualquer dos atores
sociais envolvidos na expansão da malha urbana em Vitória, fossem eles a
sociedade em geral ou empreendedores, contudo o manguezal é um
ecossistema facilmente eliminável para atender às demandas da sociedade.
No caso da cidade de Vitória as áreas planas próximas à baia foram preferidas
para implantação de loteamentos e infraestrutura urbana (CAMPOS JR;
SANTOS NEVES, 1998), enquanto o manguezal existente na porção noroeste
da baía teve suas maiores parcelas aterradas nas décadas de 1970 e 1980.
113
Nos últimos anos da década de 1970 até meados da década seguinte, a
área do manguezal da região noroeste, utilizada como depósito do lixo urbano
produzido na metrópole (P. M. V., 2009), originalmente ocupada por uma
colônia de pescadores, foi intensamente ocupada por famílias de baixa renda,
inicialmente 500, oriundas de regiões rurais e excluídas socialmente sob o
aspecto habitacional (Figura 31). Estas famílias tinham no lixo, constantemente
despejado para aterro da área, sua fonte de renda e alimento (Figura 32)
(NUNES, 1998).
Figura 31 - Lixão de São Pedro (1986) Fonte: Nunes (1998)
114
Figura 32 - Lixão como fonte de renda em São Pedro Fonte: A Gazeta (1978)
Este início de ocupação do manguezal em resposta a uma ação popular
de demanda por moradias foi um processo consentido pelo poder público, mas
sem apoio, já que omitiu-se à propor alternativas de ocupação da área
(ANDREATTA, 1987). Na ocasião havia um conjunto de posições divergentes
entre diferentes atores locais e o poder publico a respeito da questão
ambiental, envolvendo posseiros de terras devolutas, ambientalistas e a
Capitania dos Portos de Vitória (P. M. V., 1989).
Quando o poder público fracassou em retomar a área de manguezal de
São Pedro dos posseiros estabelecidos, intensificou o uso da área como
depósito de lixo como uma solução que afastasse os ocupantes ilegais. Porém,
esta ação só serviu de estímulo para que esses permanecessem na área. Esta
ação da prefeitura começou a ser apontada como „de risco‟ pela Capitania dos
Portos do Espírito Santo e por ambientalistas que alertavam que o lixo poderia
ser arrastado para dentro dos mangues pelas águas da maré cheia e durante a
vazante, levado pelo canal da baía de Vitória e principalmente ao longo do
115
estuário do rio Santa Maria, provocando o assoreamento do seu leito (A
GAZETA, 1980).
Vale lembrar que, desde 1967 a União proíbe por meio da Lei 5.357, o
lançamento de resíduos e óleo em águas brasileiras, incluindo aí no âmbito de
seu Artigo 1º, todo o litoral brasileiro, ou nos rios, lagoas e outros tratos de
água. A fiscalização desta Lei fica a cargo da Diretoria de Portos e Costas do
Ministério da Marinha, em estreita cooperação com os diversos órgãos federais
ou estaduais interessados. Embora o problema da destinação do lixo urbano
estivesse sendo destaque desde 1978, como assunto em pauta discutido
durante reunião da Comissão Nacional das Regiões Metropolitanas e Política
Urbana (CNPU) em Brasília, o problema era desconsiderado no município, que
produzia e depositava uma média diária de 90 toneladas de lixo, na área do
atual bairro Maria Ortiz nos últimos anos da década de 1970 (P. M. V., 2001).
Importante enfatizar que somente depois de 12 anos utilizando a área como
destino final do lixo do município é que o mangue, já totalmente aterrado com
lixo, foi coberto com terra (Figuras 33 e 34) (BANCH, 1998).
116
Figura 33 - Caminhões levando terra destinada a cobrir o lixo em São Pedro (1989) Fonte: Foto de Vitor Nogueira (NUNES, 1998)
Figura 34 - Caminhão aterrando o lixão sobre o manguezal em São Pedro. Fonte: Foto de Vitor Nogueira (NUNES, 1998)
117
Uma das consequências da reunião da CNPU foi a aplicação de multas
a quem implantasse lixões e isso ocorreria através da Capitania dos Portos
(DINIZ, 2006). Também foi defendida a construção de uma usina de
beneficiamento de lixo, proposta sem apoio político ou popular, mas apenas
técnico. É importante destacar que, no período, prevalecia o regime militar
contrapondo-se ao surgimento de projetos nacionais populistas e ao
fortalecimento das oposições nos centros urbanos desde as eleições de 1974
(NUNES, 1998).
Na região de São Pedro a igreja católica, através de seus
representantes da Comissão de Justiça e Paz, foi um instrumento eficiente da
conscientização popular. A demanda por habitação levou à descentralização
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) para facilitar a atuação dos grupos
de ação social, ocasionando o surgimento de organizações religioso-sociais
(MENDONÇA, 1985; MARTINS, 1993), tais como o Conselho de Mulheres da
Igreja de São Pedro que ajudou a formar a associação de classe MUSP
(Mulheres Unidas de São Pedro), a Pastoral da Criança e a Paróquia Santo
Antônio, que dentre vários objetivos auxiliava o desenvolvimento e a gestão da
Fábrica Escola de Alimentos, destinada à produção e venda de salgados e
doces.
A partir da ocupação em larga escala da região da Grande São Pedro
(Figura 35) o poder público, representado na ocasião pela ARENA19, se
mobilizou frente às pressões da sociedade e comunidades locais organizadas e
iniciou a implementação de projetos de urbanização com o Programa Nacional
19
Aliança Renovadora Nacional (ARENA) foi um partido político brasileiro criado em 1965
com a finalidade de dar sustentação política ao governo militar instituído a partir do Golpe Militar de 1964. (nota do autor)
118
de Erradicação de Subhabitações (PROMORAR) na área, atraindo diversas
pessoas pela nova possibilidade de moradia (MENDONÇA, 1999).
Este processo desencadeou ações de apropriação ilícita de terrenos
acrescidos da Marinha, devido à valorização da área e conflitos entre
proprietários e invasores de áreas adjacentes (P. M. V., 2009).
O PROMORAR atuou sobre a primeira ocupação durante a formação de
São Pedro I, mas de maneira contraditória a um de seus princípios, já que não
permitiu a participação popular no processo de implementação (DI GRAZIA,
1997). O programa foi politicamente organizado e tecnicamente elaborado por
engenheiros, arquitetos e assistentes sociais do governo, sendo implementado
de forma padrão segundo diretrizes determinadas por Brasília.
Figura 35 - Grande São Pedro (1986) Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
119
O primeiro passo para implementação foi a contratação de uma empresa
para organizar o cadastramento da área delimitada pelo projeto. Esta ação
gerou desconfiança e boatos de um novo zoneamento, expansão da área, e
não atendimento às famílias, o que ocasionou novas ocupações irregulares em
áreas fora do limite previsto no projeto, entretanto os boatos não se
concretizaram (ANDREATTA, 1987).
A proposta de urbanização pautava-se na definição de largura de ruas,
criação de novas vias e apontamento da localização de pontos de instalação de
equipamentos urbanos, medidas que implicavam remanejamento de famílias e
controle do número e tamanho dos lotes, portanto, desagradáveis à população
(P. M. V., 1996).
A infraestrutura existente na área era composta de luz, canos
assentados que eventualmente traziam água, ruas abertas e inicio de
drenagem e pavimentação (VILAS NOVAS, 2003). A reordenação urbana
prevista não ocorreu de forma plena porém, ações arbitrárias, como a tomada
unilateral de decisões e a derrubada dos barracos, levaram à realização pela
população local de protestos que atraíram a atenção da mídia. O
descontentamento com a condução do programa PROMORAR pelo poder
público, deu início a uma discussão que culminou na elaboração de um projeto
alternativo (P. M. V., 2009). Assim, a população, apoiada pelo Instituto dos
Arquitetos, criou Comissões de Rua e o Movimento Comunitário e desta forma
organizada conseguiu modificar o programa PROMORAR amplamente, antes
deste ser parcialmente implantado em São Pedro I.
Antes da ocupação da área equivalente ao bairro São Pedro II, que
aconteceu em dezembro de 1980 (Figura 36), a população solicitou ao poder
120
público municipal que adquirisse a área para a criação do bairro. Em resposta,
o legislador municipal sugeriu a invasão e declarou que efetuaria a aquisição
caso o proprietário se apresentasse (ANDREATTA, 1987).
A autora descreve o início da ocupação e formação de São Pedro III,
como um processo que ocorreu de forma organizada e dirigida pelos
representantes do Movimento Comunitário. Estes demarcaram 90 lotes em
uma área de 150.000m2, porém, o processo foi divulgado pela mídia na época,
e, diferentemente das 90 famílias previstas, surgiram entre 300 e 500 (VILAS
NOVAS, 2003).
Figura 36 - Ocupação inicial do manguezal em São Pedro (1980) Fonte:Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
121
Conquista
Redenção
São José
Ao chegarem ao manguezal os grupos demarcavam a área e, no dia
seguinte, caminhões transportando madeira para os barracos a serem
montados, eram descarregados. Este processo desencadeou a ocupação de
outras áreas de manguezal originando quatro novos bairros: Santo André, São
José e Redenção (São Pedro III) e Conquista (Figura 37).
Figura 37 – Área aproximada (em laranja) dos atuais limites dos bairros São Pedro III e Conquista Fonte: Imagem adaptada do Programa Google Earth Pro mapas (2011)
Outra ação da administração municipal em 1980 foi o deslocamento do
lixão para Carapina, no município da Serra, local proposto pela administração
para construção de um aterro sanitário (ZECHINELLI, 2000). Assim que
executada esta ação, completa a autora, uma empresa imobiliária local,
autodenominando-se proprietária da área de manguezal, solicitou apoio policial
122
para proibir a entrada de catadores oriundos de São Pedro, que se deslocavam
acompanhando o trajeto do lixo, gerando nova ação judicial por parte destes.
Paralelamente ao processo judicial movido pelos catadores, a prefeitura
municipal de Serra protestou judicialmente contra a instalação do lixão no seu
município e este retorna a São Pedro III. O lixo como produto comercializável
pela população carente dos bairros da Grande São Pedro foi uma realidade
sempre presente durante todo o processo de ocupação. O lixo, principal fonte
de renda para grande parte da população local, era motivo constante de
conflitos, sobretudo em razão das diversas ações públicas tomadas sobre ele
(DINIZ, 2006). No ano de 1982 o lixo tornou-se uma vez mais, objeto de
protesto, pois o poder público determinou que as atividades comerciais a ele
ligadas, cessassem.
Houve intenso embate, chegando mesmo ao confronto corporal. Na
esfera judicial a população abriu um processo contra a Prefeitura, pleiteando
indenização por nove meses de paralisação de suas atividades de catação
(ANDREATTA, 1987; ZECHINELLI, 2000). Como resultado, a justiça entendeu
que a reinvidicação da população era procedente e determinou a posse do lixo
ao povo.
Mais tarde, ainda em 1982, em função do acelerado processo de
degradação do lixo causado por chuvas intensas, houve diminução do preço do
produto pelos atravessadores, o que acarretou como retaliação, por parte dos
catadores, o início de uma greve. Neste contexto é então criada a Associação
Cooperativa dos Catadores de Vitória Homero Mafra (ACCATAV) visando
representar os catadores legalmente (GURGEL; PESSALI, 2004).
123
Em 1986, o lixo passa a ser um problema inicialmente sob o aspecto
estético, já que ao ser enfardado e empilhado para ser transportado por
caminhões da prefeitura municipal, as pilhas ultrapassam a altura dos barracos
em função de seu volume (BARBOSA, 2004). Contudo, o problema adquire
dimensões sanitarias porque a matéria orgânica contida nos fardos, exposta ao
calor e à umidade da chuva sofria fermentação e aceleração em seu processo
de degradação, exigindo ações imediatas.
Diante deste quadro a construção da usina de beneficiamento de lixo
(Figura 38), a ser viabilizada com recursos do BNDES, torna-se prioridade para
a prefeitura, embora ainda sendo repudiada pelos moradores que tinham no
lixo sua fonte de renda (ZECHINELLI, 2000).
Tendo em vista a urgência em suprir necessidades básicas da
população, a defesa do manguezal sempre foi ignorada, desta maneira a
conquista do espaço, no contexto do processo de urbanização da Grande São
Pedro, sob a ótica social, tem sido considerada como processo positivo, ainda
que através do aterramento de manguezal, considerado crime em lei como já
mencionado (VANNUCCI, 2003; WAINER, 1999).
124
Figura 38 - Usina de tratamento de Lixo, São Pedro (1991) Fonte:Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
No ano de 1987 foi iniciada a urbanização nos bairros São Pedro I,
Santo André e Lixão, atual São Pedro III, com obras provenientes de recursos
de empréstimos à Prefeitura Municipal de Vitória disponibilizados pela Caixa
Econômica Federal. Os bairros, Nova Palestina e Resistência, não foram
beneficiados devido à suspensão da verba e então passaram a receber o lixo e
a população de catadores que invadiram novas áreas de mangue
(ANDREATTA, 1987; ZECHINELLI, 2000).
Até 1989, a atuação do poder público ocorria apenas emergencialmente,
em resposta à mobilização popular que preocupava-se em produzir espaço
urbano às custas da destruição do manguezal, e em sobreviver através do
comércio do lixo, embora a criação da Unidade de Conservação Municipal Ilha
do Lameirão tenha ocorrido em 1986. A partir do ano de 1989 o poder público
do municipio passa a atuar de forma integrada buscando solucionar problemas
125
que envolviam vários aspectos e questões, utilizando-se de uma estratégia co-
participativa em consonância com as demandas da população (Figura 39)
(SOARES, 1998).
O autor supracitado enfatiza ainda que através destas ações a
prefeitura, neste primeiro período de gestão, produziu uma política pública co-
gestada, pautada em diversos encontros com a comunidade representada
pelas associações de moradores, pelo movimento de mulheres e por outros
atores para definir as metas básicas do projeto a ser implantado.
Figura 39 - Inicio da urbanização em Resistência (1991). Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
A administração pública do município no período de 1993 a 1996,
completa Soares (1998), deu seguimento ao estabelecido pela gestão anterior
realizando a integração de políticas e rotinas, gerais e localizadas dos setores
da prefeitura. Também promoveu a integração destas políticas e rotinas à
atuação dos conselhos de participação temáticos, tais como o Conselho do
PDU, Conselho de Meio Ambiente de Vitória (COMDEMA), o Conselho
126
Municipal de Tributos Imobiliários, o Conselho Municipal de Habitação, entre
outros que proporcionam o debate e deliberação acerca de várias questões
envolvendo as políticas públicas municipais, em função da concepção social do
projeto.
A citada administração, também procurando afinar-se com as
preocupações ambientais destacadas no evento ECO92 realizado no Rio de
Janeiro, em destaque naquele momento, anunciou a implantação de um projeto
de delimitação e preservação da área não devastada de manguezal e da
urbanização dos locais já ocupados, o Projeto São Pedro (DIGRAZIA, 1997).
Ainda, segundo a autora, estavam previstas obras de aterramento,
abertura de ruas, calçamento, instalação de sistema de esgoto, água e luz,
construção de creches e de áreas de lazer bem como sua extensão a outros
cinco bairros. A primeira ação foi a orientação dos moradores sobre a
importância da preservação e sobre os benefícios do projeto para a qualidade
de vida da comunidade.
Após a delimitação da área de preservação, verificou-se que 450
famílias estavam dentro da área demarcada e precisavam ser removidas. Em
conjunto com as lideranças comunitárias locais decidiu-se pela permanência de
todas as famílias nos bairros beneficiados pelo Projeto São Pedro que, no
entanto, já estava com todo espaço ocupado (Figura 40) (ZECHINELLI, 2000).
A remoção só foi possível a partir de uma proposta para parcelamento
do solo, com adoção de critérios tais como limitações no tamanho dos lotes e
indenização de benfeitorias (Figura 41). Desta forma o Projeto incorporou
127
também as áreas dos bairros Estrelinha, Inhanguetá, Grande Vitória e
Resistência.
Figura 40 - Invasão anterior à delimitação da área de Preservação (1988) Fonte:Foto de David Protti (NUNES, 1998)
Figura 41 - Retomada da área pelo bosque de mangue após remoção das casas e delimitação da área a ser preservada (1997). Fonte:Nunes (1998)
128
Atualmente a Administração Regional de São Pedro (Região VII) é
composta pelos bairros São Pedro, Ilha das Caieiras, Redenção, Nova
Palestina, Resistência, Condusa, São José e Santos Reis (Figuras 42 e 43). Os
bairros Estrelinha, Inhanguetá e Grande Vitória, apesar de terem sido palco do
processo de ocupação do manguezal e de integrarem o Projeto São Pedro,
constituem a Administração Regional de Santo Antonio (Região II) (Figura 42)
devido a sua identidade e descontinuidade territorial.
Figura 42 - Bairros formadores da Grande Sâo Pedro. Fonte: Imagem adaptada do Programa Google Earth Pro (2011)
Figura 43 - Cartograma atual do município de Vitória dividido em regionais. Fonte: Prefeitura Municipal de Vitoria [s.d]
129
Na análise de diGrazia (1997, p.9) o Projeto São Pedro “reúne
qualidades que faltam a uma grande parte dos projetos urbanos e ambientais”.
Sua implementação só foi possível face sua realização em duas
administrações, ambas priorizadoras de políticas sociais que, de maneira geral,
visavam o desenvolvimento e realização de campanhas de educação ambiental
e sanitária, de utilização adequada das redes de água e esgoto e de fixação da
população no local, a implantação de programas de geração de emprego e
renda, e implantação do programa família cidadã, visando a contribuir na renda
mínima; e também àqueles voltadas à urbanização, tais como estabelecimento
de critérios para uso do solo, conclusão da construção da Usina de Lixo, e dos
direitos de cidadania, permitindo articular políticas públicas20 sob a égide da
gestão participativa.
O trabalho social proposto neste cenário buscava promover a mudança
de entendimento cultural e de comportamentos como suporte às necessidades
da população local e com seu apoio, estimulando sua compreensão e
valorização de sua trajetória dentro de um novo contexto na sociedade. O
resultado direto desta ação pode ser observado com a multiplicação das
associações de moradores e outros movimentos que participam intensamente
das políticas sociais da região. Assim, a autora postula que o Projeto São
Pedro potencializou processos de construção de políticas públicas
propriamente ditas e neutralizou a compartimentação e desarticulação da
estrutura administrativa.
20
No caso de São Pedro, políticas sociais educacionais, de saúde pública, de esporte e lazer,
de assistência social, de geração de trabalho e renda e de transporte.
130
Foram realizadas políticas sociais substanciais que contribuíram para a
construção da cidadania da população em geral e dos atores sociais, em
função da metodologia de atuação aplicada na região favorecendo a
multiplicação de atores no âmbito urbano.
O Projeto São Pedro também apresentou deficiências ao não destacar a
regularização fundiária entre suas prioridades, vulnerabilizando a população
local aos processos especulativos, já que a regularização da propriedade das
áreas para os moradores não foi realizada, embora já pertencessem ao
domínio municipal.
Atualmente o complexo urbano Grande São Pedro está intensamente
ocupado, a ponto de não ser possível registrar imagens panorâmicas atuais de
pontos anteriormente fotografados pelos órgãos urbanos com a finalidade de
registrar o processo de urbanização.
Segundo informações divulgadas pela prefeitura municipal (P. M. V.,
2010) a região administrativa VII, Grande São Pedro, continha uma população
de 28.718 habitantes domiciliados em 7.525 imóveis, perfazendo 3,82
habitantes/m2. As informações indicam ainda que 99% destes domicílios são
abastecidos com água tratada, 92,8% tem seu esgoto coletado (condição
referente estatísticamente aos domicílios ligados ao sistema com esgoto
tratado ou não) e 98,9% tem seu lixo coletado. Em termos de equipamentos de
saúde a região contém 12 unidades, desde módulos de Serviço de Orientação
ao Exercício (SOE), Farmácia Popular, até Centro de Controle de Zoonoses.
Em entrevista cedida em 16/07/2009, o gerente da Regional VII, Sr A. F.
B. R., apontou as melhorias urbanas realizadas até aquele momento na região,
131
dentre as quais destacou várias obras de drenagem e pavimentação de ruas,
construção de escadarias e praças e pavimentação de galeiras a céu aberto.
Indicou a existência de sete escolas de ensino fundamental e seis de educação
infantil, além da presença da FAESA (Faculdades Integradas São Pedro) e de
tres instituições de geração de renda, a Cooperativa das Desfiadeiras de Siri, a
Fábrica de Alimentos de São Pedro e a Peixaria Comunitária. No contexto de
saneamento apontou a melhoria quanto à coleta de lixo urbano, destacando
que a população foi beneficiada com a desativação da usina de lixo que criava
transtornos, tais como a presença de urubus e o mau cheiro constante. Já em
relação ao saneamento de esgoto indicou a presença de duas estações de
tratamento, uma em Resistência e outra em Nova Palestina.
Ainda segundo a Prefeitura Municipal de Vitória (2010), desde maio de
2008 está em funcionamento a Unidade de Transbordo, que recebe os
resíduos coletados na cidade de Vitória e pelos caminhões compactadores
diretamente para carretas basculantes, de 50 toneladas, que fazem o
transporte do material para o aterro sanitário. Ainda, segundo a prefeitura, no
local foram realizadas obras de captação do chorume, drenagem superficial e
pavimentação com asfalto, além de paisagismo e proteção, com replantio de
plantas nos taludes e enriquecimento da cortina vegetal, eliminando o forte
odor e os urubus, que incomodavam a comunidade do entorno da área.
Contudo, diversos depoimentos demonstram a insatisfação da
comunidade com o processo de desativação da Usina. Para o Sr. E. D., de 52
anos de idade, natural de Linhares, morador de São Pedro desde 1978 e Vice-
presidente do Movimento Comunitário do bairro Resistência, a desativação da
Usina não foi realizada com o planejamento necessário para atender a
132
demanda da população e preservar a qualidade ambiental da área. Durante a
entrevista por ele cedida em 14/01/2011, apontou que houve uma reunião no
período da implantação da Unidade de Transbordo, na qual questionou aos
dirigentes da Usina e ao representante do IBAMA, a eficiência da metodologia
de tratamento do lixo depositado, principalmente no que se referia à drenagem
do chorume. Na oportunidade, os representantes presentes questionaram seu
conhecimento acerca do assunto e não permitiram a continuidade da discussão
sobre o tema. Segundo ele, o lixo depositado na caçamba de 50 toneladas
para ser transportado fica a céu aberto e produz chorume que drena
naturalmente para o solo sem nenhum tipo de filtragem.
No âmbito da produção, destinação final e manejo de lixo na região,
pelos diversos atores cabem estudos complementares que objetivem
compreender a dinâmica das diversas ações públicas, suas conseqüências e
desdobramentos no âmbito da saúde pública e sócio-economico-ambiental
sobre os moradores da região.
Ele lembra que as ações do poder público sempre foram contraditórias e
aponta a visita do Papa João Paulo II em função do documentário “Local de
toda pobreza” como exemplo. Na época da realização do documentário o
manguezal estava aterrado com lixo do município e o tema abordado na
vídeoprodução era o uso deste lixo como meio de vida. Foi exatamente esta
situação que trouxe o Papa à Vitória, porém, quando o poder público soube da
vinda do pontíficie correu para cobrir o lixo com terra; e quando o papa chegou
à área, a condição apresentada e que atraiu sua atenção não existia mais.
133
De toda forma E. D., tal como todos os demais entrevistados,
confirmaram que hoje há coleta de lixo domiciliar de segunda a sábado nos
bairros, porém desconhecem o destino do lixo depositado nas grandes
caçambas dentro da Usina. As modificações na destinação final do lixo do
município não foram inteiramente benéficas para a população, de acordo com
F. de 45 anos de idade e morador há 2 anos no bairro. Para ele, desde o
fechamento da usina muitas pessoas ficaram desempregadas. Conversando
sobre este assunto, na entrevista cedida em 18/01/2011, declarou que a
desativação da usina foi uma perda para o bairro e que o lixo é uma ótima fonte
de renda. Apontou também que o lixo que se vê na orla é apenas resultado do
mau comportamento da população que, no momento de deposição nas caixas
de coleta, jogam os sacos e mesmo que no durante a coleta normal este
material não seja apanhado, a prefeitura realiza coleta manual na orla ao
menos uma vez ao mês.
Entretanto, quando abordados sobre o problema de lançamento
inadequado de lixo no mangue, os pescadores deixaram claro que a
preocupação principal não é com o lixo lançado na orla. Para A. S., pescador
de 33 anos de idade e morador do bairro há 25 anos, o problema reside no lixo
levado pela „maré‟ para o interior do bosque, pois este não é coletado e
„apodrece dentro dos canais‟. Quando questionados, em 18/01/2011 sobre o
que, para eles, é maior problema para o mangue e seus recursos, diversos
pescadores, além de A. S., apontaram o lançamento de esgoto „in natura‟ como
maior problema urbano, seguido da falta de sensibilização para com o
ambiente e desrespeito às leis de preservação por parte de alguns pescadores.
134
Em todas as entrevistas realizadas21 percebeu-se um consenso geral
sobre a poluição gerada pelos efluentes da Estação de Tratamento da Cesan
(pós-tratamento), bem como de sua Elevatória. Ambas estão localizadas na
entrada do bairro Resistência e os efluentes são lançados diretamente no
mangue e das águas provenientes da lavagem de caminhões de coleta de lixo
das empresas de saneamento. Seu aspecto leitoso e o mau cheiro denunciam
o que foi colocado pelos entrevistados (Figuras 44 e 45). F. complementa, em
concordância com A. S., que estas águas alcançam pontos distantes dentro do
manguezal e causam danos à pesca, principalmente em período de lua
minguante, quando a maré estabiliza por até seis dias e o mau cheiro
permanece.
21
Entrevistas cedidas por pescadores de Resistência e Ilha das Caieiras em 18/01/2011.
135
Figura 44 - Manilhas de saída dos efluentes da Elevatória de Água Tratada da Cesan, em Resistência (Vitória/ES) Fonte: Fotos do Autor (2011)
Figura 45 – Efluentes oriundos da Elevatória lançados no manguezalFonte: Foto do Autor (2011)
136
O comentário sobre a alteração da condição sanitária do mangue
cristalizada em seu aspecto leitoso e mau cheiro vai ao encontro das
declarações de E. D. e do Sr M. A. F. de 56 anos de idade, morador do bairro
há dez anos, também pescador, que reside em frente à estação de tratamento.
Ele contou, em entrevista no dia 14/01/2011, que a água do mangue na maré
cheia, fica leitosa e na maré vazante pode-se ver o sedimento branco pela nata
lançada pela ETE. Apesar das informações oficiais, todos os entrevistados
foram enfáticos ao declararem que, na verdade, apenas um cano de coleta de
esgoto passa pelo bairro e não uma „rede de esgoto‟; logo, não é possível que
todos os moradores se conectem a ele, por isto a maioria lança seus esgotos
diretamente no mangue ou na galeria pluvial que deságua entre os bairros da
Ilha das Caieiras e Nova Palestina (Figura 46). Esta ação permite sugerir que
estudos com objetivos de compreender as interelações fisico-químicas entre os
elementos lançados no manguezal e seus impactos devam ser realizados para
uma melhor compreensão dos processos que estão ocorrendo nesta área e
possibilitem apontar medidas a serem tomadas.
A. lembra que „pisar‟ na água despejada no mangue por estas fontes,
causa coceira imediata (certamente micose), porém a cobrança pelo
fornecimento de água tratada chega normalmente, e a população por
desconfiança da qualidade da água fornecida, só consome água mineral
comprada.
Ainda de acordo com A. S., que já trabalhou na Empresa de saneamento
Ambiental “Corpus” foram elaborados documentos destinados a empresa e à
Cesan pelos pescadores, solicitando medidas de controle e reparação das
águas lançadas no manguezal. Porém, esta solicitação não foi atendida.
137
Segundo A. a parte do bairro urbanizada referindo-se sobre a parcela com
pavimentação está totalmente poluído (Figura 46), embora a empresa de
saneamento alegue que o bairro tem todo seu esgoto tratado.
138
Figura 46 - Drenagem do esgoto dos bairros Ilha das Caieiras, Nova Palestina e adjacentes e seu lançamento no mangue. Fontes: Fotos do Autor (2011) Imagem adaptada do Google Earth Pro (2011)
A
A
139
Quanto à presença e ao papel do poder público no contexto do uso dos
recursos do manguezal e mesmo das ações nos bairros, todos os entrevistados
demonstraram a mesma percepção, de que os órgãos atuam apenas de forma
punitiva, sem se preocuparem com o desenvolvimento de políticas
educacionais ou de orientação à população quanto às ações que afetam o
meio urbano e o manguezal. Estas ações por parte dos órgãos fiscalizadores
remetem a um período em que o poder público considerava os „usuários‟ dos
recursos do manguezal como potenciais depredadores do meio ambiente, o
que pode vir a provocar a invocação de direitos e valores distintos criando uma
situação de reinicio de um processo de acusações mútuas por direitos e
identidades.
Neste aspecto E. D. fez questão de frisar o fato de que na prefeitura
existem profissionais de diversas áreas. Ele sugeriu que o poder público
deveria desenvolver um programa que orientasse a população ou mesmo as
lideranças dos movimentos comunitários para que estas se tornassem
multiplicadoras, indicando “o que pode ser feito, o que é proibido e porquê, o
que deve ser conservado” e não apenas multassem quando percebem
comportamentos incorretos da população.
Segundo os entrevistados, o grande problema da pesca é o desrespeito
à legislação e apontaram como grandes „vilões‟ os baloeiros, barcos de arraste
que capturam camarões. Além disto, denunciaram que os órgãos fiscalizadores
fazem “vista grossa” à sua presença. Em depoimento A. S. lembrou que já viu,
numa madrugada 27 destes barcos e que são provenientes da Ilha das
Caieiras. Segundo A., outra ameaça é a presença dos desempregados,
140
extraindo os recursos sem respeitar qualquer norma estabelecida, ou a biologia
dos animais.
De acordo com estes pescadores o IBAMA está pretendendo proibir a
pesca na área pelo menos temporariamente para que os estoques possam ser
restabelecidos. Eles apontaram também a „produção‟ de pesqueiros em braços
do manguezal que tem grande profundidade (6 metros) onde só é possível a
pesca de linha devido a presença do material formador do pesqueiro. Não é
possível „produzir‟ pesqueiros, onde circulam os barcos de arraste, o que seria
uma forma de proteger a fauna e flora destes locais. W. lembrou que houve
época em que após uma „tarrafada‟ o volume de manjuba capturada lotava o
barco. Segundo ele “poderia ser capturado um cardume fechado, depois da
pesca de arraste com baloeiro não há mais peixes disponíveis”.
Por fim, todos os entrevistados também concordam que não há
possibilidade de crescimento do bairro já que não é mais possível ocupar áreas
preservadas do manguezal, todavia existe grande especulação imobiliária no
bairro. Em conversa com J. M., um aposentado de 65 anos de idade, morador
há vinte anos; ele apontou que um imóvel de 2 andares atualmente tem um
valor venal superior a R$ 200.000,00 e um terreno de 150 m2 não sai por
menos de R$ 40.000,00, valores segundo ele, exorbitantes se comparados a
dez anos atrás. A. S. concorda com J. M. quando aponta que a dificuldade de
vida é grande, mas “se o cidadão consegue uma casa por aqui ele quer mais é
saber de vender bem rápido, só fica no bairro se amar o mangue”.
As razões alegadas pelos entrevistados na ocupação das áreas
confluem principalmente para a facilidade de conseguir moradia, em função do
141
baixo valor dos terrenos durante alguns anos atrás. Contudo, eles alegaram
que parte da população veio em busca de emprego e acabou por instalar-se na
área por falta de dinheiro.
6.3 A QUESTÃO SOCIAL E OS MANGUEZAIS
A ocupação da região noroeste da baía de Vitória causou alterações na
estrutura social dos grupos já residentes na área. A população que inicia a
nova ocupação é formada por um contingente de mão de obra vindo do interior
do Estado para trabalhar na instalação dos grandes projetos industriais e, após
a conclusão das obras, grande parte deste contingente estava desempregado e
sem moradia.
Os novos residentes nada sabiam sobre este ambiente que começaram
a ocupar e só o viam “como um pedaço de terra, lama ou lixo onde podiam
iniciar vida nova na capital” (NUNES, 1998). Entretanto, para os já residentes
este ambiente representava uma fonte de renda à mão, considerando que a
coleta do caranguejo era realizada a poucos metros “de casa” e sem
concorrência, já que poucas eram as famílias que sobreviviam da cata do
caranguejo.
Com o aterramento e expansão dos bairros, os caranguejeiros
precisaram deslocar-se cada vez mais para longe em busca de áreas
biologicamente ricas e agora sofriam concorrência dos novos moradores que
frequentemente estavam desempregados e viam na cata do caranguejo uma
fonte de renda alternativa (PEREIRA FILHO; ALVES, 1999).
142
Além disso, o conhecimento e uso de técnicas tradicionais de coleta
demanda tempo e, para estes novos e despreparados atores, tornou-se tarefa
difícil. Em situações como esta, em geral, acabam sendo empregados métodos
mais simples, porém, extremamente predatórios (DINIZ, 2006; NUNES, 1998).
No caso da coleta de caranguejos, a introdução do método da “redinha”22 em
São Pedro foi a mola propulsora para diminuição deste recurso e abandono da
atividade por parte, principalmente dos catadores mais antigos (NUNES, 1998).
Entre os impactos gerados pelo emprego deste método de captura,
constam: a não seleção das presas, capturando fêmeas ovadas e "caranguejos
de leite" (quando realizam a muda), pois, quando o catador usa o braço ou o
tampão, não retira da lama essas formas de caranguejo, enquanto a redinha
não seleciona as presas; e a poluição provocada pelas redinhas não
recolhidas, visto que os catadores chegam a espalhar por dia mais de 100 e,
nem sempre, têm tempo de voltar a todas elas, e os caranguejos presos na
armadilha acabam devorados pelos predadores naturais, lontras, guaxinins e
gaviões, e os emaranhados de fios ficam no ambiente por muito tempo
(AVESUI, 2008).
O movimento popular do bairro São Pedro surgiu juntamente com o
próprio bairro em 1977. Naquele período com apenas 5 barracos iniciou-se a
ocupação e logo foram necessários mutirões para organização estrutural e
social do bairro. Foi necessária a formação de comissões, visitações nas casas
22
Método da “redinha” – trata-se de um emaranhado de fios desfiados de saco de polipropileno que é colocado na entrada da toca do caranguejo, de forma que o animal fique preso quando subir em busca de oxigênio e alimento. Esse método, embora proibido na região Sudeste-sul do país (Portaria nº 52, de 30 de setembro de 2003 do IBAMA), vem sendo utilizado com bastante frequência em mangues pelo Brasil.
143
que se erguiam e realização de reuniões semanais para lutar contra a ameaça
de expulsão pelos fiscais da prefeitura e pela polícia (PINTO, 2007).
No entanto, a evolução dos grupos de pressão exigindo a urbanização
dos novos bairros não se registrou apenas entre a população carente. Segundo
Rabelo (2002), em Vitória, em função do tipo de industrialização ocorrida nos
anos 1960-70, o processo de formação dos líderes populares se deu “através
de critérios muito mais rigorosos que em outros espaços”. Vários dos novos
coordenadores dos movimentos pertenciam a um quadro técnico altamente
qualificado e "renovaram a vida da cidade com a sua chegada". Assim, para
esse autor, a história da capital capixaba registra um "constante exercício da
vida democrática”.
Ainda no ano de 1977 foram obtidos sucessos ao atendimento de
reinvidicações. Foram instalados postes, iluminação pública, caminhões
carregados com canos e madeira para construção de uma escola, além de
aterramento e inicio de arruamento. No ano seguinte foi iniciada a ocupação
em larga escala e uma assembléia formada pelo movimento popular decidiu,
após divisão da área, quais famílias iriam ocupá-la (Figuras 47 e 48).
Os moradores do bairro São Pedro eram muito unidos, o que facilitou a
coalizão e formação de representações que demandavam em favor das
necessidades locais. Quando surgiu o Programa de Erradicação da Sub-
Habitação (PROMORAR) os lideres, em conjunto com os participantes do
movimento, decidiram administrar o Programa (HERKENHOFF, 1994).
144
Figura 47 - Demarcação de lotes em área subjacente ao manguezal (1977) Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
Figura 48- Demarcação de lotes no manguezal (1986) Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Vitória
145
Durante a discussão que levou a esta tomada de decisão no contexto de
um seminário que durou cinco dias e onde reuniram-se participantes do
movimento e representantes de entidades governamentais, comenta
Herkenhoff (1994), foram negociadas e atendidas uma série de reinvidicações.
Dentre elas, continua o autor, a legalização de lotes, a construção dos
banheiros das casas, a construção de uma escola maior do que a prevista
originalmente, a construção da sede do movimento comunitário, a implantação
de destacamento militar no local e a garantia de que 75% da mão-de-obra
utilizada nas obras seria local.
Até 1983, São Pedro possuía vinte e duas comissões formadas e o
movimento comunitário possuía 1.000 sócios, um bairro com uma associação
de Catadores de Lixo em vias de legalização e o primeiro setor já bastante
urbanizado (PINTO, 2007). Contudo, naquele ano o poder público organizou
uma estratégia para desarticular as lideranças, extinguir a cooperativa dos
catadores de lixo e propôs uma escola alternativa administrada pela
comunidade.
A administração pública do período entre 1986 e 1988 percebendo o
crescimento das entidades de classe, tais como o movimento de bairro de São
Pedro e tantos outros, apoiados pelas Comunidades Eclesiais de Base e pelo
Partido dos Trabalhadores que atuavam com objetivo da formação política
induzindo práticas anticlientelistas e orientando a construção de uma unidade e
memória local que estabeleceriam a identidade dos movimentos, também
buscou desestabilizar estes movimentos induzindo a criação de associações de
bairros sob sua influência (ZORZAL E SILVA et al., 2004); na tentativa de
influenciar as entidades pré-existentes com verbas, ofertas de obras e cargos
146
municipais às lideranças (RÉGIS, 1995; COSTA, 1997). Neste período, a
cidade de Vitória já possuía uma representação popular centralizadora das
ações dos movimentos de bairro, o Conselho Popular de Vitória (CPV).
Em resposta a estas atitudes denominadas „estratégias de subordinação
e dependência‟ o CPV orientou as lideranças a conduzirem suas ações através
de abaixo-assinados, ofícios e passeatas. Na análise de Pinto (2007) tratou-se,
portanto, de uma luta pelo espaço, e o perigo do denominado
„desenraizamento cultural‟ existiu, mas justamente pelas intervenções
baseadas unicamente em critérios técnicos e racionais, que desqualificam as
identidades e buscam reorganizar pertencimentos culturais.
Exemplo deste processo ocorreu com a implementação da EEMIL, em
1987, a partir do que a Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de
Vitória assumiu a função de gestora da porção do manguezal denominada
Lameirão para assegurar a preservação integral e permanente deste
ecossistema, atribuição dividida, com outros órgãos ambientais, como o IBAMA
e a Policia Ambiental (P.M.V., 1997).
Cabe lembrar que a efetivação da EEMIL se deu por uma imposição de
normas e regras criadas por técnicos do Estado, sem considerar o fato de que
em torno desse estuário haviam pessoas que, por gerações, vinham
legitimamente, fazendo uso dos recursos ali existentes. Eram os moradores da
Ilha das Caieiras (Figuras 49, 50 e 51), que no inicio da década de 1980
sofreram com a ocupação do manguezal em São Pedro, implicando no
aterramento de grandes áreas no entorno da Ilha. Com a criação da EEMIL,
eles foram enquadrados por uma nova legislação, que os via como invasores e
147
potenciais depredadores da natureza, tendo que responder aos órgãos
ambientais fiscalizadores, especialmente a Prefeitura Municipal.
Figura 49 - Ilha das Caieiras em 1970 (área elevada à esquerda) Fonte: Acervo do Instituto Jones dos Santos Neves
Figura 50 - Ilha das Caieiras em 1980 (dimensão aproximada da área atual, delimitada em preto) Fonte: Acervo do Instituto Jones dos Santos Neves
148
Figura 51 - Ilha das Caieiras em 2009 (delimitada em laranja) Fonte: Imagem adaptada do Programa Google Earth Pro (2009)
Esta ação resultou na concessão aos catadores do uso do espaço do
mangue, ficando obrigados ao cumprimento de uma série de regras, normas no
uso dos recursos, outrora de livre acesso, mas sob a tutela do poder público
(NUNES; SAMAIN, 2004).
No caso do cenário existente durante a implementação da EEMIL, a
natureza foi apropriada de acordo com práticas baseadas numa racionalidade
técnica, especificamente moderna, que, nesta condição, desconsidera tudo que
precede a lei escrita. O direito não-escrito das populações ditas tradicionais,
apesar de estar presente em suas práticas sociais, muitas vezes não é
contemplado quando há a efetivação ou criação de uma política ambiental
(MAUSS, 1972).
Segundo Nunes e Samain (2004) a política pública formulada, a partir de
então consistiu na criação de projetos em que os catadores tornaram-se
149
beneficiários da distribuição de cestas básicas e de dois salários mínimos
pagos pelo Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador
(CODEFAT) a título de seguro-defeso, além dos dois salários que recebiam da
Delegacia Regional do Trabalho (DRT).
Em contrapartida, os catadores deveriam participar de reuniões com
vistas à elaboração de um cadastro, processo repetido anualmente para a
liberação do seguro e ficavam obrigados à participarem de palestras de
educação ambiental e da limpeza do mangue. Por outro lado, esses catadores
se comprometeram com as condições que lhes eram impostas e que geravam
desconforto, insegurança, desrespeito e „falta de consideração‟.
O resultado foi uma relação de dependência similar ao que viviam outros
grupos sociais no município, limitados por sua função econômico-social restrita
a área geográfica do manguezal, porém temporariamente impossibilitada de
ser executada em função de uma legislação imposta pelo poder público
estabelecendo no contexto social “espaços de dependência” (COX, 1998).
No estudo realizado por Diniz (2006) fica claro o conflito entre estes
grupos sociais e o poder público ao descrever a violência entre fiscais e
catadores no período de defeso, na forma de acusações mútuas. A autora
conclui no que diz respeito ao conflito em pauta que, enquanto a posição dos
órgãos fiscalizadores e executores é clara e aberta, a ação por parte do poder
público é ambígua, posicionando-se de maneira catalisadora. A prefeitura
estabelece uma relação de tutela onde busca atenuar os conflitos, instaurando
políticas públicas compensatórias, de promessas, em que os catadores
150
aparecem como beneficiários de suas ações; e paralelamente age de modo
clientelista com os catadores, criando uma situação de dependência do grupo.
Ao final da década de 1980 as entidades de bairro de Vitória, em sua
maioria, caracterizavam-se por movimentos populares desarticulados,
dependentes em grande parte do apoio e das ações do poder público e das
lideranças comunitárias (CARLOS, 2006). Este cenário se modifica a partir da
gestão administrativa de 1989, do Partido dos Trabalhadores (PT), quando o
CPV, composto em sua maioria por petistas, aproxima-se do poder público e
obtêm sucesso na negociação de suas demandas.
7. AS GRANDES CONTRADIÇÕES ENTRE A URBANIZAÇÃO E A CONSERVAÇÃO
DO MANGUEZAL NA GRANDE SÃO PEDRO
Ao longo do período analisado, diversas normas legais e processos
sócio-políticos ocorreram como consequencia das ações de diversas
instituições governamentais e atores sociais. Entretanto, foram produzidas
inúmeras contradições e conflitos sócio-espaciais. Através do Quadro 1
procuramos proporcionar uma visão mais ampla de tudo que ocorreu e
contribuiu, direta e indiretamente, para conservação e/ou degradação das
áreas de manguezal na Grande Vitória/ES a partir da década de 1950.
151
Quadro 1 – Síntese das contradições entre conservação e ocupação/degradação dos manguezais na Grande Vitória/ES (instrumentos políticos e processos).
Período Conservação do manguezal Ocupação/degradação do manguezal
1940-60
Leis Municipais: 180/1950, 406, 464 e 466/1955, 940/1960 – Concedendo
isenção fiscal para empresas já existentes e para as que desejassem se
instalar no município desde que comprometendo-se em ampliar em
50%/ano sua capacidade produtiva.
1960/69
Lei (F) 4.771/65 – definiu as áreas de manguezais como APPs instituindo o Novo Código Florestal, descrevendo a importância das formas vegetacionais e definindo direitos de propriedade e limitações dos habitantes neste âmbito.
Lei (F) 5.357/67 – estabeleceu penalidades para embarcações e terminais marítimos ou fluviais que lançassem detritos ou óleo em águas brasileiras, e deu outras providências
Lei (M) 1.397/65 – abertura da concorrência e isenção às propostas de industrialização do lixo municipal coletado.
Lei (M) 4.444/66 – regulamentou a venda e o aforamento de terrenos pertencentes ao patrimônio municipal.
Intensificação dos movimentos migratórios para a capital
1970/79
Lei (E) 2.508/70 – criou junto ao Conselho de Desenvolvimento Econômico do Estado (CODEC), um fundo especial denominado Fundo para o Desenvolvimento das Atividades Portuárias (FUNDAP), cujos recursos serão destinados a promover o incremento das exportações e importações através do Porto de Vitória.
Lei (E) 2.960/74 – autorizou a Superintendência dos Projetos de
Polarização Industrial - SUPPIN, a contrair empréstimo com o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico - BNDE até o montante de Cr$
90.000.000.00 (noventa milhões de cruzeiros) para aplicação em
investimentos necessários à expansão do Centro Industrial de Grande
Vitória – CIVIT
Formação do depósito de lixo municipal (porção noroeste)
Início das ocupações em áreas de mangues e aproveitamento do lixo
pelos moradores
continua.....
152
Quadro 1 – Síntese das contradições entre conservação e ocupação/degradação dos manguezais na Grande Vitória/ES (instrumentos políticos e processos). .....continuação
continua.....
Período Conservação do manguezal Ocupação/degradação do manguezal
1980/89
Lei (F) 6902/81 – dispõe sobre as Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental.
Lei (F) 6.938/81 – estabeleceu a Política Nacional de Meio Ambiente e criou, o SISNAMA, Sistema Nacional de Meio Ambiente, estabelecendo responsabilidades e punições aos poluidores do meio ambiente.
Resolução nº 4/85, do CONAMA (F) – considera os manguezais como Reserva Ecológica de preservação permanente
Lei (M) 3.267/85 – definiu as zonas balneáreas de lazer praiais urbanas do município
Lei (M) 3.312/86 – alterou a redação da Lei 3.267/85 redefinindo as delimitações das Zonas Balneárias do município
Lei (M) 3.315/86 – criou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMMAM) com atribuições de proteção, conservação, recuperação, controle e fiscalização dos recursos naturais de Vitória.
Lei (M) 3.502/87 – permitiu que a SEMMAM operacionalizasse suas funções previstas na lei de sua criação
Decreto (M) 7.317/86 – incluiu a Secretaria Municipal de Meio Ambiente na formação do Conselho Municipal do Plano Diretor Urbano
Lei (M) 3.326/86 – criou a Reserva Biológica Municipal da Ilha do Lameirão
Lei (M) 3.337/86 – transformou a Reserva Biológica Municipal da Ilha do Lameirão em Estação Ecológica Municipal da Ilha do Lameirão
Lei (M) 3.338/86 – identificou e garantiu a preservação da forma atual e contornos do município e suas ilhas, proibindo a alteração dos contornos por aterramento.
Lei 2.899/81 – autorizou o poder executivo a realizar operação de crédito destinada às despesas de execução do programa de Lotes Urbanizados do bairro São Pedro
Lei 2.847/81 – dispõe sobre a coleta de lixo na cidade de Vitoria e deu
outras providencias.
Leis (M) 3.333 e 3.336 de 1986 – autorizaram o poder executivo a abrir, por decreto, créditos adicionais especiais, para atender as obras do aterro hidráulico, infra-estrutura em geral e complementares no bairro São Pedro
Urbanização desigual
Intensa verticalização no município e valorização da porção nordeste
Ocupação de espaços menos valorizados pelos imigrantes na porção noroeste
153
Quadro 1 – Síntese das contradições entre conservação e ocupação/degradação dos manguezais na Grande Vitória/ES (instrumentos políticos e processos). .....continuação
continua....
Período Conservação do manguezal Ocupação/degradação do manguezal
1980/89
Nova Constituição Brasileira de 1988 – significou grande avanço na área ambiental, em virtude do destaque que deu à proteção dos ecossistemas brasileiros, dedicando um capitulo (capítulo VI) exclusivamente ao meio ambiente
Lei (F) 7661/88 (Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC)) – priorizou a conservação e proteção, em caso de zoneamento, entre outros, aos manguezais, prevendo, inclusive, sanções [...]
Lei (E) Ordinária 4.126/88 – Dispõe sobre a Política estadual de proteção, conservação e melhoria do meio ambiente. Cria a política estadual de proteção, conservação e melhoria do meio ambiente implantada pelo Sistema Estadual do Meio Ambiente e inclui na estrutura organizacional do Poder Executivo, a Secretaria de Estado para Assuntos do Meio Ambiente – SEAMA
Lei (E) 4.119/88 – enquadrou os manguezais como áreas de preservação permanente.
Decreto (M) 8.060/89 – “proibe a pesca com uso de rede de arrasto em barcos a motor ou de modo manual” nos canais da Baía de Vitória e baía de Camburi.
1990/2000
Lei Orgânica do Município de Vitória/1990 – veio assegurar o bem-estar de todo
cidadão mediante a participação do povo no processo político, econômico e social do
Município e determina, no contexto das Diretrizes da Política Urbana, a elaboração de
projetos sobre o macrozoneamento, o parcelamento do solo, seu uso e sua ocupação,
as construções e edificações, a proteção ao meio ambiente, o licenciamento, a
fiscalização e os parâmetros urbanísticos básicos [...] e dedica um capítulo (II) aponta
os direitos ambientais dos citadinos [...] e o dever do Poder Público Municipal, de
defendê-lo e preservá-lo em benefício das gerações atuais e futuras.
Resolução (M) nº 02 de 05/06/1991– CONDEMA estabelece critérios e padrões para o
controle da poluição dos recursos hídricos no município de Vitória.
Plano Diretor Urbano (M) Lei 4.167/94 – visa realizar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e da propriedade e o uso socialmente justo e ecologicamente
equilibrado de seu território [...] garantindo a participação popular no processo de
planejamento
Investimentos públicos nos bairros da Grande São Pedro
Programa PROMORAR
154
Quadro 1 – Síntese das contradições entre conservação e ocupação/degradação dos manguezais na Grande Vitória/ES (instrumentos políticos e processos). .....continuação
Legenda: F = Federal, E = Estadual, M = Municipal
Período Conservação do manguezal Ocupação/degradação do manguezal
1990/2000
Resolução (F) CONAMA nº 29/94 – definiu a vegetação primária e secundária nos
estágios inicial, médio e avançado de regeneração da Mata Atlântica. Estabeleceu o
corte, a exploração e a supressão da vegetação secundária no estágio inicial de
regeneração da Mata Atlântica no Estado do Espírito Santo
Lei (E) 4.886/1994 – criou o Instituto Estadual de Meio Ambiente (IEMA) com
competência sobre a execução da política estadual do meio ambiente através de
estudos, controle, fiscalização, licenciamento e monitoramento dos recursos hídricos,
atmosféricos, minerais e naturais, e a condução das atividades relativas ao
zoneamento e educação ambiental.
Código Municipal de Meio Ambiente, instituído pela Lei nº 4.438/97 – regulamentou o
Licenciamento Ambiental, a Avaliação de Impactos Ambientais e o Cadastro Ambiental.
Decreto nº 10.179/98 – criou o Parque Municipal da Baía Noroeste de Vitória, com
área de 638.858.90 m² e perímetro de 9.727.91m, em área de propriedade do
Município e da União; inserido nos Bairros Resistência, Nova Palestina e Redenção,
Município de Vitória, delimitado pela poligonal [...]
Portaria (F) nº 70/2000 do IBAMA – regulamenta o transporte e a comercialização do caranguejo e do goiamum, mas como não atendia o período de reprodução, que ocorre a partir de janeiro até abril, foi substituída pela Portaria nº 52/2003, estendendo o período do defeso para os dias da ‘andada’
Plano Estratégico da Cidade: Vitória do Futuro 1996-2010 desdobramento em sub-projetos, tais como o ‘Projeto Terra’ (Programa Integrado de Desenvolvimento Urbano e Preservação Ambiental nas Áreas Ocupadas por População de Baixa Renda), o ‘Projeto Rota Manguezal’, o ‘Projeto Caranguejo’ e o ‘Projeto Mangue Vivo’
155
Percebe-se que, desde a década de 1950, houve um intenso estímulo à
industrialização no município, fato consolidado na década de 1970 pelas ações
políticas estatais que contribuíram com a fixação das indústrias na região.
Neste recorte temporal a preservação do ambiente era garantida apenas de
forma indireta e incipiente por instrumentos legais federais. A partir da segunda
metade da década de 1980, estendendo-se até a década de 2000, a
promulgação de leis de proteção ambiental foi massificada pelo município,
embora o poder público estimulasse, paralelamente, a ocupação e uso do solo
em áreas consideradas protegidas.
Também, neste período, vários projetos de urbanização foram
implantados gerando uma gama considerável de conflitos entre os diversos
grupos atuantes na região noroeste e o poder público que lhe impunha normas
reguladoras de suas atividades. Muitos dos instrumentos políticos instituídos
não foram aplicados na prática, embora os processos sócio-políticos tenham
acontecido, ocasionando uma série de contradições sócio-espaciais e
contribuição para a degradação e supressão do mangue.
156
8. CONCLUSÕES
Embora os manguezais da região noroeste do município apresentem-se
ainda, em alguns setores, vigorosos e em bom estado de conservação,
constituindo a área mais representativa da Baía, a região como um todo
encontra-se severamente antropizada e recebendo contínuamente descargas
de materiais poluentes em suas águas. Uma situação que tende a manter-se
inalterada visto que a estrutura de saneamento assentada é sub-dimensionada
para a demanda populacional existente.
A área de manguezal deste setor, inicialmente utilizada como único local
de destinação final do lixo domiciliar da cidade continuou sofrendo descaso em
relação à sua importância ambiental por parte do poder público até que o
problema se tornasse de saúde pública e a construção da usina de
beneficiamento de lixo se tornasse prioridade. O uso da área como depósito de
lixo não foi, inicialmente uma barreira à ocupação já que, a população instalada
fazia do lixo uma fonte de renda e era favorável à continuidade do lançamento
dos residuos do municipio na área.
Este cenário só foi alterado recentemente com a substituição da Usina
pela Unidade de Transbordo, porém esta mudança funcional trouxe o
desemprego para a região e foi ineficiente no que tange a preservação do
manguezal já que, de acordo com os depoimentos colhidos, não foram
tomadas medidas eficientes para a proteção do manguezal no contexto
operacional da Unidade de Tratamento.
Como um grande contingente populacional tinha como fonte de renda o
trabalho na Usina de Lixo, provavelmente pessoas que antes atuavam como
157
catadores de lixo, o fechamento da Usina de Lixo teve como conseqüência
lógica previsível, o aumento do desemprego na região. A desativação de uma
atividade tão importante para a população local deveria ter sido acompanhada
de propostas de ações mitigadoras, que viabilizassem a oferta de emprego e
garantia de renda à parcela de população que sobrevivia desta atividade.
Neste contexto, os grupos que sobrevivem diretamente dos recursos
provenientes do mangue também sofrem com a contaminação ambiental e
consequente diminuição de tais recursos. Neste caso, existem alguns grupos
organizados em associações e cooperativas que conseguem sobreviver graças
a uma estrutura já estabelecida como é o caso das desfiadeiras de siri.
Entretanto, os depoimentos de alguns pescadores assinalaram a falta de
conhecimento acerca da existência de projetos de construção de um
entreposto para o beneficiamento do pescado que, por razões não
esclarecidas, ainda não foi implementado.
A ocupação humana direta no manguezal é uma ação efetiva, mas não a
única. Os processos de desmatamento e erosão, causados por
empreendimentos imobiliários nos municípios circunvizinhos e o lançamento de
efluentes industriais e agrícolas de áreas subjacentes são também
responsáveis por severos impactos na área. Apesar da urbanização da Grande
São Pedro ter causado intensas alterações no manguezal da porção noroeste
da Baía de Vitória, essas alterações intensificaram-se em função da
desconsideração deste ecossistema quando da implementação de políticas
públicas durante o processo de urbanização.
158
A ocupação do manguezal ocorreu em resposta a ações populares de
demanda por moradias em um processo sem apoio do poder público que
omitiu-se de propor alternativas à ocupação da área. Este cenário levou ao
surgimento de diversas organizações de classe durante o processo de
ocupação e urbanização para atender as necessidades prementes da
população em contextos diversos e estas funcionaram como catalizadoras do
processo como um todo.
Além disso, o processo de ocupação da porção noroeste da baía
ocorreu em meio a disputas e conflitos envolvendo o poder público e os grupos
que têm sua história de vida vinculada a este espaço. Tais conflitos sociais
foram consequencias das ações arbitrárias por parte do poder púbico que, de
forma geral, buscou implementar projetos de urbanização mas que
fracassaram devido, muitas vezes, à ingerência ou à arbitrariedade das ações.
A elaboração de um tecido urbano adequado é uma tarefa
extremamente complexa e não pode ser executada a partir de uma visão de
„gabinete‟. O ordenamento tem que emergir do processo, com a co-participação
comunitária ao contrário do ocorrido no início do movimento de ocupação na
região, período em que as ações eram tomadas por imposição de uma
regulação arbitrária. Para que a ocupação tenha sucesso de forma „sustentada‟
a intervenção do tipo de-cima-para-baixo tem que ser orientada para facilitar a
colaboração, permitindo que a comunidade exerça sua territorialidade de uma
maneira positiva.
As ações do poder público geraram também conflitos internos nos
grupos já estabelecidos ao estabelecer normas para a extração e
159
comercialização dos recursos do mangue como produtos, a exemplo dos
catadores de caranguejo e desfiadeiras de siri que sofreram desagregação em
seus grupos como resultado de uma imposição do poder público baseada
únicamente na preservação de espécies naturais, desconsiderando questões
mais amplas, como o desemprego e a falta de moradia.
Dentre os diversos projetos de urbanização implantados o mais
conhecido e de sucesso foi o Projeto São Pedro, que só tornou-se viável
graças à continuidade de sua implementação ao longo de duas administrações
consecutivas que priorizaram políticas sociais e de direitos de cidadania
articulando políticas públicas. Neste período foram observadas mudanças na
aplicação das políticas públicas que, nos primeiros anos de ocupação,
respondiam de forma clientelista e pontual e passaram a atuar na década de
1990, de forma integrada e co-participativa, em consonância com as demandas
da população, demonstrando uma evolução das práticas de políticas públicas
no município.
Entretanto, o Projeto São Pedro também apresentou deficiências, ao não
priorizar a regularização fundiária, vulnerabilizando a população local aos
processos especulativos, até hoje presentes.
Quanto à proteção das áreas naturais do município, diversos
intrumentos legais foram instituídos ao longo da ocupação da Grande São
Pedro visando a preservação do ambiente natural, embora o poder público
tenha eventualmente estimulado, ao mesmo tempo que criou instrumentos
protetivos, o aterramento de áreas de manguezal em nome da urbanização e
do bem-estar público. Contudo, as Unidades de Conservação existentes na
160
área do manguezal da porção noroeste da Baía de Vitória não possuem ainda
qualquer instrumento implementado que estabeleça seu zoneamento e normas
de uso cristalizando o controle público sobre este espaço físico.
Este mosaico de informações permite concluir que o poder público
sempre tentou organizar a ocupação já em curso, após passar por mudanças,
as ações públicas culminaram em políticas co-participativas, em conjunto com
as lideranças locais, que obtiveram sucesso na manutenção do bosque
remanescente. Contudo, a presença do poder público também estimulou, ao
menos temporariamente, o avanço da ocupação. Desta forma, o poder público
foi, ao menos em parte, responsável pela supressão do bosque logo no início
da ocupação.
Ficou claro ao longo da história de ocupação de São Pedro que os
governos criaram diversas entidades voltadas às práticas assistencialistas,
patrocinando candidaturas de lideranças e instrumentalizando-as para serem
porta-vozes de programas governamentais. As associações de moradores e
movimentos comunitários permaneceram atrelados ao Estado até a década de
1970, e apenas ao seu final surgiram movimentos novos independentes do
poder público, porém organizados e com eles articulados. A presença do poder
público gerou tanto lideranças com um perfil de subordinação às práticas
clientelistas quanto àquelas imbuídas de propósitos e atitudes democráticos.
Por fim, foram produzidos diversos movimentos populares pluralistas abertos à
manifestação de diferentes grupos identitários, concorrentes do mesmo espaço
e território que os órgãos públicos.
161
A ocupação da região, de acordo com os registros, iniciou-se no ápice
do processo de industrialização da cidade o que foi o grande atrativo tanto para
os moradores de áreas rurais que sofriam com a decadência do café, bem
como de imigrantes de outros estados. Ocorreram diversas contradições sócio-
espaciais durante a expansão socio-econômica do município de Vitória que
estimularam a ocupação da porção noroeste. Fica evidente que, de forma
geral, as ações do poder público, tais como a criação do Plano Diretor Urbano
de Vitória em 1984, visaram apoiar investimentos na urbanização ordenada da
face nordeste enquanto as necessidades da população e o cuidado com os
recursos da face noroeste eram, não só ignorados, como sobrexplorados.
A degradação das áreas naturais da região da Grande São Pedro,
cristalizada, em um primeiro momento, na supressão de áreas de manguezal
convertidas em malha urbana, teve como causa principal a ocupação
desordenada e ainda tem o uso inadequado dos recursos, representado,
principalmente, pelo lançamento de efluentes “in natura”, como fator mais
importante.
O poder público foi inicialmente um agente catalisador da supressão do
manguezal na região noroeste da Baía de Vitória, estimulando a ocupação,
porém de forma indireta com a implantação dos grandes projetos que atraíram
uma população imigrante para o município. No começo do processo de
ocupação suas ações de tentativa de ordenação desse processo foram falhas e
agravaram o problema. Mais tarde o poder público foi mais incisivo em suas
ações, porém sua presença acabou sendo um estímulo à ocupação. Logo, é
possível concluir que o poder público foi o principal responsável pela supressão
da vegetação de mangue anteriormente existente na área.
162
O poder público de Vitória voltou-se para a proteção das áreas naturais
do município, embora de forma incipiente, já que apesar de criar Unidades de
Conservação, estas não possuem elementos fundamentais para um
gerenciamento mais amplo dos recursos existentes, tais como Plano de Manejo
que delimitaria o uso de tais recursos, além de observar as demandas da
população local. A gestão destas áreas pauta-se na fiscalização e punição de
infratores que queixam-se da falta de informação, orientação, de propostas ou
projetos e ações que substituam a exploração dos recursos nos períodos de
proibição.
Por fim, o quadro já tradicional, de degradação e de descaso para
com os manguezais, além da manipulação de leis para atender a necessidade
de grupos específicos, não se restringe ao município de Vitória ou a qualquer
outro do país ou do mundo. Assim é possível concluir que o mesmo modelo
contraditório de expansão urbana, considerado como um dos processos
responsáveis pela degradação de espaços naturais, de fato ocorreu na região
Noroeste da Baía de Vitória/ES em relação aos manguezais.
Contudo, este é um panorama global que demonstra que, apesar das
iniciativas para a preservação deste fundamental ecossistema, é de extrema
importância a mobilização conjunta e participativa dos diversos setores da
sociedade, principalmente no que tange ao planejamento do crescimento das
cidades costeiras e à gestão de seus processos produtivos e ambientais.
163
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ANEXO A - Espaços Protegidos no Município de Vitória/ES
Nº Denominação / Enquadramento Instr. Legal de Criação Área (ha)
1 Manguezal da Foz do Rio Bubu (PI) Lei Mun. nº 4438/97 11,58
2 Mang. Canal da Passagem (PI) Lei Mun. nº 4438/97 0,80
3 Manguezal da Ufes (PI) Lei Mun.nº 4438/97 94,10
4 Ilha Rasa (PI) Res. CMPDU nº 26/87 0,54
5 Ilha do Fato (PI) Lei Mun. nº 4167/94 1,40
6 Ilha do Pato (PI) Res. CMPDU nº 25/87 0,10
7 Ilha Maria Catoré (PI) Lei Mun. nº 4167/94 0,25
8 Ilha da Pólvora (PI) Res. CMPDU nº 13/87 1,41
9 Ilha do Campinho (PI) Lei Mun. nº 4438/97 26,64
10 Ilha do Bode (área acrescida de marinha) (PI) Lei Mun. nº 4167/94 1,43
11 Ilha da Baleia (PI) Res. CMPDU nº 15/87 13,44
12 Ilha da Fumaça (PI) Lei Mun. nº 4167/94 5,74
13 Ilha dos Práticos (PI) Lei Mun. nº 4167/94 3,86
14 Ilha das Tendas (PI) Lei Mun. nº 4167/94 0,02
15 Ilha Dr. Américo de Oliveira (PI) Res. CMPDU nº 12/87 6,42
16 Ilha da Baleia (PI) Res. CMPDU nº 15/87 0,01
17 Ilha dos índios (PI) Lei Mun. nº 4167/94 0,18
18 Ilha das Pombas ou do Araça (PI) Res. CMPDU nº 34/87 1,97
19 Ilha dos Itaitis (PI) Lei Mun. nº 4167/94 0,90
20 Ilha do Urubu (PI) Res. CMPDU nº 14/87 0,17
21 Manguezal de Estrelinha (PI) Lei Mun. nº 4438/97 10,79
22 Ilha das Cobras (PI) Res. CMPDU nº 15/87 5,38
23 Cortume Capixaba (PI) Decreto Mun. nº 9017/93 0,25
24 Ilha do Sururu (área acrescida de marinha) (PI) Lei Mun. nº 4167/94 0,91
25 Ilhas das Andorinhas (PI) Lei Mun. nº 4167/94 0,11
26 Ilha do Socó (PI) Res. CMPDU nº 27/87 0,48
27 Ilha do Igarapé (PI) Lei Mun. nº 4167/94 0,28
28 Ilha Galheta de Fora (PI) Lei Mun. nº 4167/94 1,78
29 Ilha do Crisógono (PI) Res. CMPDU nº 15/87 22,15
30 Ilha Galheta de Dentro (PI) Lei Mun. nº 4167/94 2,43
31 Área Verde Especial Morro do Suá (PI) Decreto Mun. nº10024/97 1,72
32 Área Verde Especial de Jucutuquara*** (PI) Decreto Mun nº 13380/07 7,01
33 Área Verde Especial de Santa Lúcia (PI) Decreto Mun. nº 13379/07 0,83
34 Área Verde Especial Morro do Romão* (PI) Decreto Mun. N 10024/97 4,26
35 Área Verde Especial Morro do Cruzamento* (PI) Decreto Mun. nº 10024/97 4,33
36 Área Verde Especial do Morro Bento Ferreira (PI) Decreto Mun. nº 10024/97 2,70
37 Parque da Fazendinha (PI) Decreto Mun. nº11896/04 2,29
38 Parque ítalo Batan Régis(Pedra da Cebola) (PI) Decreto Est. nº 4179/97 10,01
39 Parque Barão de Monjardim (PI) Decreto Mun. 13378/07 7,97
40 Parque Morro da Gamela (PI) Decreto Mun. nº 13376/07 9,68
Continua.......
181
Obs: * Espaços Legalmente Protegidos situados dentro da APA do Maciço Central
** Refere-se apenas a área/perímetro no município de Vitória. *** Altera o Decreto 10024/97
Enquadramento: Proteção Integral (PI); Uso Sustentável (US)
.........continuação
Nº Denominação / Enquadramento Instr. Legal de Criação Área (ha)
41 Parque Municipal São Benedito (PI) Decreto Mun. nº 10025/97 9,58
42 Parque de Barreiros (PI) Decreto Mun. nº 10180/98 4,61
43 Parque Padre Afonso Pastore (Mata da Praia) (PI) Decreto Mun. nº 10027/97 4,49
44 Parque Horto de Maruípe (PI) Decreto Mun. nº 9758/95 6,40
45 Parque Municipal de Fradinhos* (PI) Decreto Munic. Nº 13688/08 1,72
46 Parque Tancredo de Almeida Neves (PI) Lei Mun. nº 6267/04 5,65
47 Parque Atlântico (PI) Decreto Mun nº 13377/07 13,19
48 Parque Moscoso (PI) Implantação 09/12 2,41
49 Parque Mangue Seco (PI) Decreto Munic. nº11881/04 2,01 50 Parque Municipal da Ilha do Papagaio (PI) Decreto Munic. Nº 13689/08 1,53
51 APA do Maciço Central (US) Decreto Mun. nº 8911/92 666,55
52 APA de Praia Mole** (US) Decreto Est. nº 99274/90 14,65
53 APA da Ilha do Frade (US) Lei Mun. nº 4167/94 35,32
54 Estação Ecológica Ilha do Lameirão (PI) Lei Mun. nº 3377/86 871,92
55 Parque Municipal Tabuazeiro* (PI) Decreto Mun. nº 9073/95 4,66
56 Parque Nat. Mun. Vale do Mulembá-Conquista* (PI) Decreto Mun. nº 11505/02 114,21
57 Parque Von Schilgen (PI) Decreto Mun. nº 12137/04 7,13
58 Parque Estadual Fonte Grande* (PI) Lei Est. nº 3875/86 217,18
59 Parque Pedra dos Olhos* (PI) Decreto Mun. nº11824/03 27,96
60 Parque Gruta da Onça* (PI) Lei Mun. nº 3564/88 6,67
61 Parque Dom Luis Gonzaga Fernande (Baía Noroeste) (PI) Decreto Mun. nº 10179/98 63,89 62 Reserva Ecológica Munic. Morro do Itapenambi (PI) Decreto Mun. nº 8906/92 13,27
63 Reserva Ecológica Munic. Mata Paludosa (PI) Decreto Mun. nº 10028/97 12,35
64 Reserva Ecológica Munic. Mata de Goiabeiras (PI) Decreto Mun. nº 10029/97 5,07
65 Reserva Ecológica Munic. São José* (PI) Decreto Mun. nº 10029/97 2,36
66 Reserva Ecológica Munic. Restinga de Camburi (PI) Lei Mun. nº 3566/89 12,98
67 Reserva Ecológica Munic. Pedra dos Olhos* (PI) Decreto Mun. nº 7767/88 0,66
68 Res. Eco. Munic. das Ilhas Oceânicas de Trindade e
Arquipélago de Martin Vaz (PI) Dec. Munic. N° 8054/89 1178