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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FAFICH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CARLOS ALBERTO MACHADO NORONHA LIMA BARRETO E A CULTURA HISTÓRICA: DIÁLOGOS E DISPUTAS EM TORNO DA MEMÓRIA NACIONAL (1903-1922) Belo Horizonte 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FAFICH

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CARLOS ALBERTO MACHADO NORONHA

LIMA BARRETO E A CULTURA HISTÓRICA:DIÁLOGOS E DISPUTAS EM TORNO DA MEMÓRIA NACIONAL

(1903-1922)

Belo Horizonte

2019

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CARLOS ALBERTO MACHADO NORONHA

LIMA BARRETO E A CULTURA HISTÓRICA:DIÁLOGOS E DISPUTAS EM TORNO DA MEMÓRIA NACIONAL

(1903-1922)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Minas Gerais, como requisito parcialà obtenção do título de Doutor em História.

Linha de pesquisa: História Social da Cultura

Orientadora: Profa Dra Adriana Romeiro

Belo Horizonte

2019

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AGRADECIMENTOS

Tive o apoio emocional e intelectual de determinadas pessoas que tornaram a

escrita desta tese possível. Possivelmente, de algumas delas, infelizmente, não me

lembro mais com o passar desses mais de quatro anos, pois colaboraram, por meio

de suas sugestões e críticas, em momentos específicos dessa trajetória, como as

comunicações orais realizadas em simpósios temáticos. Já outras estão muito

presentes em minha memória e/ou ainda fazem parte de meu cotidiano.

Agradeço à minha companheira Rosemary Santos que está ao meu lado nas

alegrias e desventuras, de quem, muitas vezes, tive que me afastar,

involuntariamente, por conta das atividades profissionais e relacionadas à produção

desse trabalho.

Não poderia deixar de agradecer também aos colegas do Programa de Pós-

Graduação em História da UFMG que receberam com gentileza esse baiano em

Belo Horizonte, compartilhando seus conhecimentos, sonhos e tempo. À Marcelo

Dias, Rômulo Marcolino, Hugo Rocha, Maria Clara Ferreira, André Mascarenhas e

Juliana Ventura, meus sinceros agradecimentos.

Ao meu primo Thiago Machado e à sua companheira Marilécia que sempre me

incentivaram desde o processo seletivo para o doutorado.

Aos meus colegas de trabalho e amigos do Ifbaiano – Campus Uruçuca

Marcello Mendonça, José Carlos Ferreira, Mário Cleber, Rísia Kaliane, Ricardo Rosa

e Ísis Emanoela que colaboraram comigo na realização de diversas atividades,

permitindo que conseguisse conciliar trabalho e pesquisa para elaboração da tese.

E agradeço, por último, à minha orientadora Adriana Romeiro pela competente,

sincera e compreensiva parceria que foi de fundamental importância para o presente

trabalho.

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RESUMO

Esta tese discute a relação do escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto(1881-1922) com a cultura histórica brasileira de início do século XX. Os seus textospublicados (romances, crônicas, contos e artigos), bem como anotações pessoais(esboços de obras e projetos de estudo) e correspondências que indicamrepresentações do passado e reflexões sobre a forma de investigar e narrar ahistória do Brasil, foram comparados com as narrativas e pensamento de outrosintelectuais de sua época, os quais também estavam empenhados em publicizaruma memória nacional. Desse modo, destacamos a visão de Lima Barreto sobre aconstrução de narrativas literárias e históricas que buscavam construir uma imagemda identidade nacional e apontamos os recursos que utilizou para compor suasobras a fim de socializar a memória de grupos socialmente marginalizados.

Palavras-chave: Lima Barreto. Cultura histórica. Literatura. Memória nacional.

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ABSTRACT

This thesis discusses the relationship of the carioca writer Afonso Henriques de LimaBarreto (1881-1922) with the Brazilian historical culture of the beginning of the 20thcentury. His published texts (novels, chronicles, short stories and articles) as well aspersonal annotations (sketches of works and study projects) and correspondencesthat indicate representations of the past and reflections on how to investigate andnarrate the history of Brazil were compared with the narratives and thoughts of otherintellectuals of his time, who were also engaged in publicizing a national memoryThus, we highlight the vision of Lima Barreto on the construction of literary andhistorical narratives that sought to build an image of national identity and pointed outthe resources that used to compose his works in order to socialize the memory ofsocially marginalized groups..

Keywords: Lima Barreto. Historical culture. Literature. National memory.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................09CAPÍTULO 1 OS ESTUDOS BARRETIANOS ..........................................................26

1.1 Uma trajetória de inquietações: entre a “Vila Quilombo” e o centro da capitalfederal ...................................................................................................................271.2 Projetos iniciais da escrita: revendo o passado...............................................361.3 O cientificismo e a intelectualidade brasileira sob a perspectiva barretiana....531.3.1 “Um bando de ideias novas” no Brasil ........................................................ 531.3.2 Lima Barreto e o “bando de ideias novas” ...................................................59

CAPÍTULO 2 UMA LITERATURA MILITANTE AFRONTANDO A CULTURAHISTÓRICA................................................................................................................81

2.1 Como lidar com o passado? Intelectuais brasileiros e uma revisão dahistória...................................................................................................................812.2 Uma literatura militante em diálogo com a historiografia.................................952.3 Literatura, história e nacionalismo na escrita barretiana ...............................1102.3.1 Triste fim: destaque no diálogo com a cultura histórica..............................136CAPÍTULO 3 LIMA BARRETO E OS HISTORIADORES BRASILEIROS...........1523.1 Lima Barreto, leitor de João Ribeiro ..............................................................1533.2 Implicâncias com a historiografia oficial ........................................................1673.3 Trajetórias paralelas, discursos que se cruzam: Lima Barreto e Capistrano deAbreu....................................................................................................................195

CAPÍTULO 4 AS RECORDAÇÕES IMPERTINENTES DE LIMA BARRETO .........2344.1 Lacunas de nossa história ............................................................................2364.2 Processos de rememoração .........................................................................2594.2.1 Temporalidades da cidade e produção memorialística. ...........................2824.2.2 Comemorações do Centenário da Independência: escrita da história eespaço urbano.....................................................................................................2904.3 A busca por outras memórias, outros saberes: a oralidade em LimaBarreto.................................................................................................................311

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................329REFERÊNCIAS (fontes e bibliografia).....................................................................333

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa analisar as relações entre a obra do escritor carioca

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) e as discussões que emergiram na

sociedade brasileira de início do século XX em torno da rememoração do passado

nacional. Iniciamos nosso interesse por essa temática durante o mestrado em

História que concluímos em 2009 na Universidade Estadual de Feira de Santana.

Naquela oportunidade, desenvolvemos uma dissertação cujo foco era a constituição

da imagem de nação moderna para o Brasil através da visão de Lima acerca da

modernização da, então capital federal, cidade do Rio de Janeiro.

Durante a elaboração dessa dissertação, intitulada “Lima Barreto entre lutas de

representação: uma análise da modernização da cidade do Rio de Janeiro no início

do século XX”, percebemos, em algumas anotações pessoais do autor, projetos de

escrita que abordavam momentos da história brasileira. Essa escolha do escritor

teve continuidade nas suas narrativas publicadas, revelando algumas de suas

reflexões sobre a forma como estava sendo escrita a história de seu país.

Isso nos fez aprofundar a análise da bibliografia utilizada no mestrado e buscar

referências mais recentes sobre a vida e a obra desse autor. Nesse processo,

notamos que houve um aumento nos estudos acerca de Lima Barreto, inclusive com

a publicação de textos inéditos escritos sob pseudônimo1 e alguns manuscritos2 que

nem seu maior biógrafo e responsável pela divulgação de sua obra a partir da

década de 1950, Francisco de Assis Barbosa - que contou com a colaboração de

Antonio Houaiss e Cavalcanti Proença -, havia se debruçado.

Essas leituras revelam um interesse pela obra de Lima Barreto que ultrapassou

a área da Literatura. Historiadores e sociólogos têm dialogado cada vez mais com os

críticos literários na busca pela compreensão da escrita barretiana. Os temas que

mais se destacaram nesses estudos foram a sua perspectiva sobre uso do espaço

urbano, discriminação racial, construção da identidade nacional, papel do literato na

sociedade, política na Primeira República e sua formação intelectual.

1 BARRETO, Lima. Sátiras e outras subversões. Organização: Felipe Botelho Corrêa. São Paulo:Penguin classics Companhia das Letras, 2016.2 Id. Contos Completos de Lima Barreto. Organização: Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo:Companhia das Letras, 2010

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Nesse sentido, vale a apresentação de alguns desses trabalhos para

evidenciarmos o ineditismo de nossa proposta de estudo, considerando também

certas pistas que esses pesquisadores sinalizaram, com as quais fomos

desenvolvendo nosso pensamento acerca das possíveis relações de Lima Barreto

com a escrita da história. Um dos primeiros autores que nos chamou a atenção foi

Nicolau Sevcenko com a obra Literatura como missão: tensões sociais e criação

cultural na Primeira República.1 Essa, escrita inicialmente para uma tese de

doutoramento no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1981, apresenta uma análise

da escrita de Lima Barreto inserida num cenário de preocupação dos intelectuais

diante do processo de modernização empreendido pelo regime republicano.

A sua leitura nos permitiu compreender os temas principais da obra de Lima e

a sua posição no cenário cultural da época que, segundo Sevcenko, aproximava-o,

em alguns aspectos, de Euclides da Cunha – o outro escritor em destaque nesse

estudo -, principalmente no que diz respeito à busca por um futuro com mais

solidariedade humana. Sevcenko realiza uma abordagem que insere o texto literário

num contexto de mudanças sociais, demonstrando como aqueles escritores

vislumbravam na literatura um projeto de país que levasse em conta as condições

históricas brasileiras.

Especificamente no quinto capítulo, Sevcenko indica para Lima, assim como o

fez para Euclides, o anseio de revelar um retrato do presente. Contudo, esse retrato

em Lima era apresentado por meio da construção de imagens de feições

expressionistas, no qual o real representado é exacerbado em suas características,

retirando o “aspecto frio e insensível que a rotina do cotidiano lhe assinala”.2 Desse

modo, Lima versou em seus textos ideias sociais e políticas, crítica cultural,

transformações econômicas, cotidiano urbano, presente recente e futuro próximo até

análises históricas.

Esses temas estão refletidos de tal forma nos seus escritos “que não pode

dissociá-los ou isolar alguns deles sob pena de se comprometer o efeito grandioso

propiciado pelo seu concerto”.3 Entretanto, Sevcenko não procurou se aprofundar no

estudo dessas relações temporais na escrita barretiana, uma vez que seu objetivo

1 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.2 Ibid., p. 191.3 Ibid., loc.cit.

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era sintetizar aspectos gerais que apresentassem ao leitor a inserção daquele

sujeito enquanto um escritor interessado em mudanças na sociedade em que vivia.

Ao comentar sobre a composição de suas personagens, o autor nos traz um outro

aspecto de sua escrita que nos inclinou a buscar, com mais acuidade, a

compreensão da relação de Lima com o tempo.

Sevcenko destaca a fragmentação como uma das características dos sujeitos

ficcionais de Lima. A criação desses, segundo o historiador, expressa certa nostalgia

do escritor por “uma ordenação clânica da sociedade, evocativa de um passado

patriarcal, em que a solidariedade se impunha pelo convívio das gerações, pela

permanência do patrimônio e pelos sólidos vínculos com a terra”.4 Outra imagem

que representa essa nostalgia é do mar que traz a ideia de eternidade das coisas

nos escritos barretianos.

Essas afirmações de Sevcenko nos instigaram a refletir como a nostalgia de

Lima se apresentaria nas citadas análises histórias que faziam parte de sua obra.

Como isso influenciaria a sua leitura das análises históricas de outros intelectuais de

sua época? Um outro estudioso que contribuiu para o adensamento de nossos

questionamentos sobre Lima foi Edgar Salvadori de Decca no artigo “Quaresma: um

relato do massacre republicano entre a ficção e a história”.

Esse estudo faz parte de uma obra composta por textos de historiadores e

críticos literários cujo objetivo comum é estabelecer leituras de fronteira nas quais o

literário dá lugar ao histórico, bem como há o cruzamento do histórico com seus

componentes literários. De Decca se debruça sobre o romance Triste fim de

Policarpo Quaresma, atendo-se à historicização desse texto por meio da análise do

relato de um massacre nele presente. Com isso, o autor, ancorado teoricamente nos

trabalhos de Carlo Ginzburg e Michel Foucault acerca do recurso de deslocamento

de narrativas em relação aos eventos, afirma que o término da escrita daquele

romance de Lima (entre janeiro e março de 1911) estaria próximo dos

acontecimentos da Revolta da Chibata de 1910.

Ao representar no seu enredo a repressão sofrida por alguns sujeitos

envolvidos na Revolta da Armada (1893-1894), Lima também se remetia aos

sujeitos anônimos que se rebelaram contra os ditames dos mandatários da

República no fechamento da primeira década do século XX. Segundo De Decca,

4 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 222.

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essa representação barretiana pode ser considerada um modo narrativo singular de

analisar a ordem estabelecida a partir de uma visão de baixo. Além disso, o trabalho

desse historiador nos traz uma apreciação acerca das relações entre a literatura e a

historiografia importante para tentarmos aprofundar a possível relação de Lima com

as representações do passado naquele momento.[...] Podemos levar em consideração, [...], que a literatura e a história, até adécada de 1930, eram gêneros que dialogam com muita freqüência.Adiantariámos, também, que a literatura, muitas vezes, realizou, desde ofinal do século XIX, o projeto hoje em voga, da história social e cultural noBrasil, procurando resgatar do silêncio da história os personagens anônimos.Quaresma não deixa de ser o ingresso inusitado das pequenaspersonagens na cena da história que, com seus dramas, ideais e sonhos,aproxima a vida cotidiana do homem comum à dos herois e dos grandesacontecimentos.5

A narrativa de Lima é comparada à de Euclides em Os sertões sobre o

massacre de Canudos e às da imprensa de São Paulo acerca da defesa dos

anarquistas feitos prisioneiros e embarcados rumo ao estrangeiro no navio Curvelo,

as quais se utilizaram dos relatos sobre a deportação de marinheiros da Revolta da

Chibata. Para o autor, essas narrativas de massacre devem ser levadas em

consideração pelos historiadores, uma vez que sinalizam acontecimentos obscuros

e pouco esclarecidos ou até tentativas de cidadãos comuns de se tornarem agentes

da história.

Aqui já temos uma abordagem que indica uma relação mais direta de Lima com

história. Contudo, ficamos na dúvida se apenas essa obra do escritor carioca

apresenta esse aspecto. Outra dúvida se refere ao modo como a historiografia

tradicional tratava daqueles acontecimentos e os critérios adotados para considerar

um sujeito memorável, o que, em comparação com o trabalho de Lima, pode lançar

mais luz os seus posicionamentos quanto à representação do passado nacional. Um

tipo de fonte ausente no trabalho de De Decca foram as anotações pessoais

realizadas, cotidianamente, por Lima, as quais seriam reveladoras de como

vivenciou alguns dos acontecimentos em que sujeitos anônimos se rebelam (Lima

foi contemporâneo da Revolta da Armada. Revolta da Vacina e da Revolta da

Chibata).

Nesse sentido, a leitura da dissertação Diário Íntimo – documento da memória,

criação estética – uma dupla leitura, de Eliete Marim Martins, defendida no

5 DECCA, Edgar Salvadori de. Quaresma: um relato de massacre republicano entre a ficção e ahistória. In: DECCA, Edgar Salvatori de & LEMAIRE, Ria (orgs). Pelas margens: outros caminhos daHistória e da Literatura. Campinas: Ed. Unicamp, 2000, p. 142.

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Programa de Pós-Graduação em Literatura do Departamento de Teoria Literária e

Literaturas da Universidade de Brasília, em 2008, foi pertinente no direcionamento

do nosso olhar para os esboços de Lima Barreto e do registro de sua experiências

diárias. Segundo Martins, Lima, no seu Diário Íntimo, apresenta em vários momentos

“descrições fortalecidas” pela sua imaginação, “nas quais o poder criador aparece

sobrepondo os relatos diários. As paisagens dos lugares que observa são narradas

como num trecho de romance e sempre saltam para uma problemática maior, numa

formulação que abarca as relações da sociedade”.6

A compreensão da relação entre a vida e a obra de Lima, bem como os

indícios das intenções em escrever determinadas narrativas, tornam-se mais

perceptíveis com o estudo de suas anotações pessoais. Além disso, temos acesso a

muitos temas que interessavam Lima Barreto e suas hesitações em tornar pública

sua visão sobre certos aspectos de sua sociedade. Essa falta de articulação entre

escritos pessoais e publicados também aparece em outros trabalhos que nos

orientaram na busca das relações entre Lima Barreto e discursos históricos.

Elvya Shirley Ribeiro Pereira incorre na mesma lacuna de De Decca, uma vez

que, como este autor, seleciona da produção literária de Lima apenas o romance

Triste fim de Policarpo Quaresma. Na sua dissertação A representação do Nacional

em Triste fim de Policarpo Quaresma, examina algumas representações ufanistas e

nacionalistas subscritas pelo discurso ficcional e presentes nesse texto barretiano,

apontando a forma como o autor as desqualifica e insinua mudanças na abordagem

da cultura e na sociedade nacionais, as quais seriam realizadas pela conjunção de

forças dos que estavam à margem.7

Essa autora prossegue a sua crítica literária de Triste fim no artigo intitulado

“História à revelia: Quaresma e as ruínas alegóricas”. Neste texto, a atenção volta-se

para as linhas de descontinuidade, ou seja, as fraturas históricas, os fragmentos de

mundo na representação do negro. Segundo ela, o objetivo é buscar “uma outra via

de leitura que se venha a somar ao modelo que incide sobre o ufanismo,

6 MARTINS, Eliete Marin. Diário Íntimo – documentos de memória, criação estética – uma duplaleitura. Orientadora: Ana Laura dos Reis Corrêa. 2008. 155 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) –Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 124.7 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A representação do nacional em Triste fim de PolicarpoQuaresma. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado. 1991. 97 f. Dissertação(Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras da UniversidadeFederal da Paraíba, João Pessoa, 1991.

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criticamente revisto no romance”.8 Para tal, Pereira, fundamentada na perspectiva

benjaminiana de História, analisa as ações e ideias dos intelectuais representados

por Lima no romance, os quais, pela sua leitura, problematizam os referenciais

epistemológicos das visões históricas articuladas pela narrativa.

Os estudos de Pereira indicam como Lima sugere que a partir da leitura de

fragmentos, nos desvãos da história dos vencedores, pode-se construir uma

narrativa que represente a razão dos vencidos. Mantivemos, mesmo assim, nossa

dúvida se essa abordagem de Lima é um caso isolado dentro de sua produção

textual. Já na dissertação de Suely Santos Santana, defendida no Programa de Pós-

Graduação em Literatura da Universidade Federal da Bahia em 2005, temos um

corpus documental mais ampliado.9

Santana analisou alguns contos, trechos de seus diários e romances –

especialmente Recordações do escrivão Isaías Caminha -, e artigos, percebendo-os

como momentos de desvios e rupturas em relação aos discursos que inferiorizavam

os negros e seus descendentes, os quais contribuíam para a sua permanência nos

lugares mais desprestigiados do espaço social. Para a autora, a literatura de Lima

Barreto rompe com conceitos, hierarquias e valores, permitindo a compreensão do

afro-brasileiro e de sua posição sempre vigiada. A leitura desse estudo nos fez

atentar ainda mais para a questão racial em Lima e as implicações do lugar social

desse autor, isto é, como negro vivendo no período de pós-abolição, levando-nos a

refletir como esse traço marcante de sua produção, divergente das teorias racialistas

em voga na época, pode ter repercutido na forma como interpretava a representação

do negro nas narrativas sobre a formação do povo brasileiro.

A leitura da biografia de Lima Barreto escrita por Lilia Moritz Schwarcz10 trouxe

elementos que endossam a necessidade de se conhecer o lugar social do escritor

carioca para entender a sua produção literária. Além disso, essa obra apresenta

alguns percursos de estudos de Lima que facilitam identificar a sua preparação para

combater os argumentos utilizados pelos defensores do racialismo. Um último ponto

que destacamos dessa biografia é a identificação e análise que sua autora realiza

8 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. História à revelia: Quaresma e as ruínas alegóricas. In: CHIAPPINI,Lígia & BRESCIANI, Maria Stella (orgs.). Literatura e cultural no Brasil: identidades e fronteiras.São Paulo: Cortez, 2002, p. 63.9 SANTANA, Suely Santos. Uma voz destoante na rua do Ouvidor: Lima Barreto e a representaçãodas relações raciais no início do século XX. Orientadora: Florentina da Silva Souza. 2005. 122 f.Dissertação (Mestrado em Literatura) – Programa de Pós-Graduação em Literatura da UniversidadeFederal da Bahia, 2005.10 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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dos “pretos velhos” como personagens barretianos, expondo uma parte dos sujeitos

anônimos trazidos para cena da história pelos enredos de Lima, o que De Decca

havia sugerido com a sua intenção no relato de massacre representado em Triste

fim.

Dois trabalhos que foram também de grande importância para desenvolvermos

esse estudo foram os de Robert John Oakley e Joachin de Melo Azevedo Neto, pois

nos apresentam Lima inserido na circularidade de ideias que norteavam a

intelectualidade da sua época. O primeiro tem como objetivo enveredar pela análise

da relação entre o ideal de literatura defendido por Lima e as formas dos seus

trabalhos ficcionais. Oakley norteou sua investigação a partir dos vínculos entre

forma e conteúdo na prosa de ficção barretiana. Simultaneamente a isso, enfocou a

“bagagem cultural europeia” que ele [Lima] absorveu através da leitura e que o

acompanhou ao longo de sua vida de escritor”.11 Já Azevedo Neto, que se serviu de

muitos argumentos de Oakley, optou por confrontar fontes nas quais aquela

bagagem aparece tanto nos textos de Lima quanto “na fala de alguns de seus

desafetos literários”.

Sua pesquisa teve como base principal as impressões de leitura de Lima e o

catálogo de sua biblioteca particular, a partir da qual estabeleceu comparações entre

suas ideias literárias e as de outros homens de letras pertencentes à sua geração.

Desse modo, propôs-se a um estudo detalhado sobre a formação cultural de Lima,

com ênfase na sua percepção desencantada do limiar da modernidade brasileira, o

que o levou a perceber seu diálogo com contextos documentais bem mais amplos

do que o da história nacional.

Notamos, no entanto, que os dois trabalhos sobre a formação cultural de Lima

se detêm no seu diálogo com intelectuais (filósofos, literatos, historiadores)

estrangeiros e na apropriação desses pelos nacionais – no caso de Azevedo Neto -

quanto ao tema funções da literatura e da arte. Os possíveis diálogos com autores

nacionais que se debruçaram sobre a escrita da História do Brasil e demais

processos de construção memorialística não são objeto dos olhares daqueles

estudiosos. O próprio Azevedo Neto até assinala que a “incursão pelas conexões

11 OAKLEY, Robert Jonh. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2011,p. 2.

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que podem ser estabelecidas entre os textos barretianos e as referências

bibliográficas que neles figuram é ainda um fértil desafio historiográfico”.12

Na linha de identificação dos temas presentes na obra de Lima relacionados às

questões sociais de início do século XX e, complementando, os estudos anteriores

quanto às suas leituras, não podemos de abordar a tese de Denilson Botelho.13 Nela,

o autor buscou compreender o processo de construção da sua carreira de escritor,

relacionando-a com suas ideias políticas e concepções de literatura. Botelho

selecionou artigos e crônicas de Lima referentes aos debates políticos em torno das

eleições na Primeira República, Revolução Russa, entre outros temas.

Isso levou Botelho a analisar o modo como Lima se envolveu com ideias

ligadas ao anarquismo e ao socialismo. Nesse estudo, vale ainda ressaltar a

observação da biblioteca particular de Lima por meio da qual é possível identificar os

seus temas de interesse. Algo que demonstra como o historiador pode encontrar

indícios orientadores para a busca por determinados assuntos que povoavam a

mente de um escritor, auxiliando na interpretação de seus textos.

Os trabalhos de Celi Freitas14 e Maria Cristina Machado,15 por sua vez,

serviram para a retomada de uma faceta da obra de Lima, cujo estudo apenas

iniciamos naquela dissertação, a saber: a sua preocupação com as publicizações

das diversas temporalidades presentes na cidade do Rio de Janeiro. O empenho de

Lima enquanto memorialista de sua cidade não deve ficar ausente num estudo que

tenha como objetivo sua relação com discussões em torno da rememoração do

passado nacional, uma vez que esse espaço urbano era o centro cultural e político

da República.

Celi Freitas, com uma perspectiva teórico-metodológica situada no campo

multidisciplinar, interligando a História Política (com incursões no campo biográfico)

e a análise do discurso, apresenta formações discursivas em disputa no discurso

barretiano que caracterizam o espaço-tempo da “Avenida Central”, expondo, na

12 AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Vida literária e desencantos: uma história da formaçãointelectual de Lima Barreto (1881-1922). Orientadora: Maria de Fátima Fontes Piazza. 2015. 341 f.Tese (Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 126.13 BOTELHO, Denilson. Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto. Orientador:Sidney Chalhoub. 2001. 243 f. Tese (Doutorado em História) – Programa em Pós-Graduação emHistória da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.14 FREITAS, Celi. Lima Barreto: um intelectual negro na Avenida Central. Revista Intellectus, Vol. 1,Ano 4, 2005. Disponível em: http://www.2uerj.br . Acesso em: 10 dez. 2006.15 MACHADO, Maria Cristina Teixeira. Lima Barreto: um pensador social na Primeira República. SãoPaulo: Edusp, 2002.

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paisagem urbana da cidade do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX,

as contradições da ordem republicana. Maria Machado já trabalha com a hipótese

de que Lima desenvolveu grande sensibilidade sociológica por estar estreitamente

vinculado às condições de emergência e configuração da sociedade capitalista

brasileira.

Essa socióloga, a partir de uma leitura benjaminiana, reconhece na produção

literária de Lima uma representação alegórica da modernidade brasileira, reveladora

de que, no mundo capitalista, a estrutura social dos países marcados por relações

que pressupõem a dependência, produziu um variante inacabada e frustrante da

modernidade europeia. Notamos nesses trabalhos um olhar de Lima sobre as

transformações físicas e culturais da cidade do Rio e como isso estava relacionado,

de certo modo, com o apagamento da presença de alguns grupos sociais nesse

cenário.

A revisão dessa bibliografia nos levou a perceber que a participação mais

efetiva de Lima Barreto nas discussões acerca da representação do passado

nacional ainda não havia sido contemplada. A releitura de seus escritos possibilitou

a identificação, em sua trajetória, de diversos momentos em que se refere às obras

dos historiadores de sua época, realizando uma análise de acontecimentos

históricos e de práticas de rememoração histórica pública. Esse processo de

identificação foi acompanhado da apropriação do pensamento do teórico da história

Jörn Rüsen.

Segundo esse autor, a história é uma forma elaborada de memória que vai

além dos limites de uma vida individual, tramando as peças do passado

rememorado numa unidade temporal aberta para o futuro. Isso propicia às pessoas

uma interpretação da mudança temporal, necessária para a orientação do seu agir.16

Rüsen aponta que essa interpretação constitui a consciência histórica. Esta “é o

trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir

conformes com a experiência do tempo”.17

Esse trabalho se efetua na forma de interpretações das experiências do tempo,

as quais são realizadas “em função do que se tenciona para além das condições e

16 RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Tradução:Valdei Araujo; Pedro Caldas. Revista História da Historiografia. 2009, n. 2, p. 164. Disponível em:www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/12 Acesso em: 15 mar. 2015.17 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: fundamentos da ciência histórica. Tradução: Estevão de RezendeMartins Brasília: UnB, 2001, p. 59.

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circunstâncias dadas da vida”. E a narrativa histórica, por sua vez, configura essa

consciência ao representar as “mudanças temporais do passado rememoradas no

presente como processos contínuos nos quais a experiência do tempo presente

pode ser inserida interpretativamente e extrapolada em uma perspectiva de futuro”.18

O trabalho interpretativo da consciência histórica e seu produto, “a estrutura

cognitiva chamada história”, se manifesta na cultura histórica de uma sociedade.19

Para esse autor alemão, a cultura histórica é a memória histórica (exercida em

e pela consciência histórica) que indica ao sujeito uma orientação temporária para

sua práxis vital, na medida em que oferece um direcionamento para sua atuação e

autocompreensão. Como todas as outras culturas, a cultura histórica é

multidimensional. Em sua dimensão estética, as memórias históricas aparecem em

forma de criações artísticas como, por exemplo, romances e dramas históricos, as

quais são produtos culturais em que a história é tematizada.20 Também estão

inseridas nessa dimensão as representações históricas expressas em museus,

memoriais, exposições e celebrações.

Já sua dimensão política está relacionada com a legitimação de certa ordem

política. As relações de poder são inscritas pela consciência histórica nas

concepções de identidade dos atores políticos através de narrativas mestras

voltadas para uma dada construção de sentidos de pertencimento.21 O cuidado na

elaboração e preservação de tradições que visam recordar determinado momento

passado a fim de consolidar uma determinada visão histórica - seja esta justificadora

da hegemonia de certos grupos sociais no poder ou no sentido de resistir a essa,

produzindo narrativas que incluam sujeitos históricos excluídos -, portanto, fazem

parte dessa dimensão da cultura histórica.

Quando à dimensão cognitiva da cultura histórica, Rüsen afirma que sua

realização se dá, nas sociedades modernas, principalmente pela ciência histórica, a

qual regula, metodologicamente, a atividade da consciência histórica. Trata-se,

segundo o autor, do princípio de coerência de sentido que se refere à confiabilidade

da experiência histórica e ao alcance das normas que se utilizam para sua

18 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: fundamentos da ciência histórica. Tradução: Estevão de RezendeMartins Brasília: UnB, 2001 p. 59-64.19 Id. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Tradução: Valdei Araujo;Pedro Caldas. Revista História da Historiografia. 2009, n. 2, p. 172. Disponível em:www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/12 Acesso em: 15 mar. 2015.20 Id. ¿Qué es la cultura histórica?: reflexiones sobre uma nueva manera de abordar la historia.Disponível em: www.culturahistorica.es Acesso: 01 jul. 2014, p. 12-13.21 Ibid., p. 18.

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19

interpretação. Vale ressaltar que essas dimensões são inter-relacionadas, pois a

rememoração histórica é marcada pelos princípios de beleza, poder e verdade,

como, por exemplo, num texto historiográfico de domínio da ciência histórica no qual,

ao lado das características de garantia de validade metodológica, temos princípios

de forma estética e influências e intenções políticas na sua composição.22

Como estamos lidando com formas pelas quais determinados sujeitos se

orientam no tempo para direcionar suas ações futuras, fundamentamos nossa leitura

dos textos barretianos também nas discussões de Reinhart Koselleck sobre as

categorias históricas espaço de experiência e horizonte de expectativa.[...] A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foramincorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto aelaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, quenão estão mais, ou que não precisam mais estar presentes noconhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida porgerações e instituições, sempre está contida e é conservada umaexperiência alheia. Nesse sentido, também a história é desde sempreconcebida como conhecimento de experiências alheias.Algo semelhante se pode dizer da expectativa: também ela é ao mesmotempo ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realizano hoje, é futuro presente, voltando para o ainda-não, para o não-experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo,desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visãoreceptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem23.

Pela reflexão de Koselleck, essas duas categorias possibilitam uma

compreensão do tempo histórico, mostrando e produzindo a relação interna entre

passado e futuro. Ao procurar, a partir delas, como cada época mantém relações

diferentes com seu passado e futuro, o historiador pode vir a empreender uma

análise das mudanças de percepção dos sujeitos em relação à sua sociedade,

resgatando passados esquecidos bem como esquecendo outros passados sempre

presentes e até propondo outras esperas, vislumbrando outros horizontes.

Desse modo, chegamos ao nosso problema de pesquisa que é a forma como

Lima Barreto, por meio de sua escrita, dialoga com a cultura histórica brasileira de

início do século XX. Nesse diálogo, quais as aproximações temáticas de Lima em

relação aos outros intelectuais? Quais as características da obra de Lima que a

22 RÜSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica?: reflexiones sobre uma nueva manera de abordar lahistoria. Disponível em: www.culturahistorica.es Acesso: 01 jul. 2014, p. 20-22.23 KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categoriashistóricas. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos temposhistóricos. Tradução: Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed.PUC-Rio, 2006, p. 309-310.

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torna diferenciada nessa cultura histórica? Como seu horizonte de expectativa

norteou seus recortes na memória histórica nacional?

O recorte temporal desse estudo é o período de 1903 a 1922, o qual se justifica

pelo momento de escrita de Lima Barreto. Em 1903, esse escritor registra, em suas

anotações pessoais, a intenção de escrever a “História da Escravidão Negra no

Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”,24 sendo, entre seus escritos, a

primeira manifestação de interesse em discutir a história nacional. A sua produção

literária segue até o ano de sua morte, em 1922, apresentando aspectos

relacionados à cultura histórica, inclusive nos últimos textos. Para compreendermos

as especificidades dessa produção literária barretiana e suas relações com a história

e a memória, tivemos que refletir sobre caminhos a ser percorridos numa pesquisa

histórica com fontes literárias.

A pesquisadora Sandra Pesavento nos deixou um legado acerca de

investigações históricas a partir da literatura. A autora afirma que os historiadores

devem estar atentos à “verdade da ficção literária”, considerando o contexto das

condições que possibilitaram a emergência de tal narrativa.A verdade da ficção literária não está, [...], em revelar a existência real depersonagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura de questões emjogo numa temporalidade dada. Ou seja, houve uma troca substantiva, poispara o historiador que se volta para a literatura o que conta na leitura dotexto não é o seu valor de documento, testemunho de verdade ouautenticidade do fato, mas o seu valor de problema. O texto literário revela einsinua as verdades da representação ou do simbólico através de fatoscriados pela ficção.Mais do que isso o texto literário é a expressão ou sintoma de formas depensar e agir. Tais fatos narrados não se apresentam como dadosacontecidos, mas como possibilidades, como posturas de comportamento esensibilidade, dotadas de credibilidades e significância.25

Essa abordagem do texto literário nos orienta a examinar como Lima

transfigura em representação a experiência e a realidade nas suas narrativas,

apresentando uma série de preocupações, impressões particulares, visões críticas

sobre a vida social de sua época. Como o literato reconfigura o passado numa

composição narrativa, - algo que o historiador também o faz, mas por caminhos

diferenciados (menor interferência da imaginação, preocupação com métodos e

apresentação de fontes), procuramos analisar o modo de Lima expressar suas

24 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 33.25 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e literatura: uma velha-nova história. In: COSTA, ClériaBotelho da; MACHADO, Maria Clara Tomaz (orgs.). Literatura e história: identidades e fronteiras.Uberlândia: EDUFU, 2006, p. 22-23.

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leituras possíveis da realidade, contribuindo para a construção e socialização de

memórias.

Isso reforçou a necessidade de, durante a leitura dos textos barretianos,

analisar o sentido que esse autor pretendeu atribuir às experiências passadas em

relação ao presente que vivenciava e suas expectativas de futuro. Desse modo,

tanto os textos ficcionais quanto os de caráter hibrido, entre o jornalismo e a ficção,

como as crônicas, tiveram seus elementos analisados - as características de

determinadas personagens, as escolhas dos enredos, a relação entre as vozes

ficcionais – para que se tornasse inteligível a construção de sentidos por esse autor.

Para isso, também recorremos às anotações pessoais de Lima, seus projetos

de escrita e suas correspondências enviadas e recebidas, para termos uma visão

mais ampla da forma como se percebia enquanto sujeito histórico e lidava com os

meios social e cultural em que estava inserido. Especificamente para o seu contato

com o meio cultural, foram pertinentes, durante a pesquisa, alguns elaborações

teóricas de Roger Chartier na orientação da identificação de possíveis ideias e

narrativas de outros autores que fizeram parte da conformação de seu pensamento

em relação às manifestações da cultura histórica.

Esse autor considera que a elaboração de representações está envolvida num

campo de concorrência e disputa cujos desafios se enunciam em termos de poder e

dominação. Ele destaca que os interesses dos grupos sociais devem ser levados em

conta no momento em que forjam determinadas representações do social, sendo

relacionadas a seus objetivos de legitimar uma dada imagem para sua época.26 As

discussões sobre a representação do passado nacional e as formas escolhidas

pelos intelectuais para rememorá-las no Brasil de início do século XX foram, nesse

trabalho, portanto, analisadas de maneira conjunta aos seus posicionamentos

político e social bem como às suas filiações institucionais e a projetos de nação.

Isso nos ofereceu bases para comparar com as representações de Lima,

permitindo que buscássemos estabelecer suas aproximações e distanciamentos em

relação à cultura histórica. Além disso, Chartier discute sobre as práticas culturais

que, por sua vez estão vinculadas à representação do social e ao conceito de

apropriação, o qual nos fez atentar para o modo como Lima, nos seus possíveis

26 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Tradução: MariaManuela Galhardo. 2 ed. Lisboa: Difel, 1988, p. 17.

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diálogos e disputas com outros homens de letras, se utilizou dos recursos culturais

disponíveis para pensar a rememoração do passado.

Segundo Chartier, cada grupo social, diante dos materiais culturais à sua

disposição num dado momento, terá práticas diferenciadas de se apropriar desses,

sendo, o que importa, antes de tudo, é a identificação da maneira como, nas práticas,

nas representações ou nas produções, cruzam-se e imbricam-se diferentes figuras

culturais. Constitui-se, portanto, numa “história social das interpretações, remetidas

para suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e

inscritas nas práticas específicas que a produzem”.27

Diante dessas reflexões, para a seleção dos intelectuais que farão parte desse

diálogo com Lima, optamos pela visão de Jean-François Sirinelli acerca da categoria

intelectual, levando em consideração também as dimensões da cultura histórica

daquele momento e as redes de sociabilidade desse literato, assim como as leituras

que realizou. Para esse autor, intelectual é uma categoria profissional de contornos

pouco rígidos, produtora e mediadora da interpretação da realidade social de grande

valor político.28

Naquele início de século XX, como veremos ao longo deste trabalho, membros

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e da Academia Brasileira de

Letras (ABL), diplomatas e autores preocupados com a educação nacional estavam

envolvidos nas questões em torno da rememoração do passado nacional e da

legitimação do recente regime republicano. Desse conjunto, selecionamos grandes

nomes da intelectualidade da época como Sílvio Romero (1861-1914), Manoel de

Oliveira Lima (1867-1928), José Veríssimo (1857-1916), Manoel Bomfim (1868-

1932), Capistrano de Abreu (1853-1927), Afonso Celso (1860-1938), Euclides da

Cunha (1866-1970), João Ribeiro (1860-1934) entre outros, os quais terão alguns de

seus escritos observados a partir da articulação entre seus conteúdos e os contextos

cultural, social e político do momento de sua produção e circulação.

Traçamos, então, os seguintes objetivos para nosso estudo:

- Compreender o ambiente intelectual em que Lima Barreto estava inserido e

as relações com seu espaço de experiência e horizonte de expectativa.

27 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Tradução: MariaManuela Galhardo. 2 ed. Lisboa: Difel, 1988, p. 26.28 SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política.Tradução: Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; FGV, 1996, p. 242-243.

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- Analisar as conexões entre a sua concepção de literatura e os principais

temas presentes na cultura histórica de início do século XX no Brasil.

- Apresentar as apropriações por Lima do discurso historiográfico brasileiro,

percebendo suas aproximações e distanciamentos no que tange à representação do

passado nacional.

- Discutir as práticas narrativas de Lima que possam ser consideradas como

sugestões de mudanças na cultura histórica da época.

Organizamos, desse modo, este trabalho em quatro capítulos. No primeiro,

iniciamos o texto com uma apresentação das articulações entre a história familiar de

Lima Barreto, sua busca pelas suas origens e impressões sobre a experiência de ser

negro na sociedade carioca da época. Em seguida, passamos a analisar os

primeiros projetos de escrita desse autor nos quais já surgiam indícios de seu

interesse pela revisão da escrita da História do Brasil. A fim de situar o ambiente

cultural que levava Lima a tais projetos, discutimos, na última parte desse capítulo, o

seu posicionamento quanto ao modo como a intelectualidade brasileira se

apropriava das ideias deterministas vindas da Europa, as quais tinham forte impacto

na forma como representavam a formação da nação e, principalmente com as

teorias racialistas, procuravam discriminar e excluir os negros na sociedade e na

narrativa nacional.

Para a construção desse capítulo, os escritos barretianos que se enquadram

na categoria de auto-referenciais ou escritas de si, como as anotações em seu diário

e cartas, tiveram um papel de destaque entre as fontes utilizadas, uma vez que nos

permitiu perceber como Lima almejava ser visto pela sociedade, pensava sua

identidade enquanto indivíduo, cidadão e escritor. Já no segundo capítulo, as

escritas de si ainda fazem parte do corpus documental, mas nos debruçamos mais

nos seus artigos e obras em que a sua concepção de literatura ficava mais evidente.

Além disso, foram de grande importância os escritos de outros intelectuais acerca da

escrita da história, sua cientificidade e divulgação.

A justificativa para tal escolha é o objetivo desse capítulo ao discutir as

relações entre a concepção de literatura barratiana e os temas mais recorrentes na

cultura histórica da época. Nesse sentido, iniciamos o segundo capítulo com a

reflexão de questões que marcaram aquele cenário cultural, sendo destacados os

pensamentos dos intelectuais Pedro Lessa (1859-1921), Sílvio Romero e José

Veríssimo, dos quais utilizamos textos que indicavam as funções do conhecimento

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histórico para a construção da identidade nacional e formação do cidadão na

República brasileira.

Num segundo momento desse capítulo, então, exploramos as bases que

norteavam a concepção de literatura militante de Lima, sinalizando como, a partir

dela, o autor apresentava algumas críticas à cultura histórica. Como ficou latente a

presença da questão nacional na cultura histórica e em diversas crônicas e,

principalmente, no romance Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima, dedicamos a

última parte do capítulo a esse tema, no qual indicamos como esse autor dialoga

intensamente com tradições historiográficas e literárias que orientavam a visão

acerca da nacionalidade no Brasil.

O terceiro capítulo, por sua vez, está voltado para a dimensão cognitiva da

cultura histórica, sendo dividido em três momentos. O primeiro deles apresenta a

recepção de Lima Barreto da obra de João Ribeiro História do Brasil, a qual havia

lhe suscitado reflexões acerca do passado nacional como também apresentou uma

abordagem que se diferenciava, em certos aspectos, da predominante até aquele

período. Assinalamos, nessa parte, diante das perspectivas apresentadas nos

capítulos anteriores de Lima em relação à cultura histórica, passagens da obra de

Ribeiro que poderia ter levado o literato a questioná-la e pontos que se afinavam às

suas pretensões de representação do passado brasileiro.

Em seguida, passamos às observações de Lima acerca da produção de

historiadores pertencentes ao IHGB, nos quais analisamos a intextualidade de

trechos de sua obra Os Bruzundangas com as proposições desse instituto para a

escrita da história do Brasil, salientando ainda mais a visão do literato carioca sobre

os sujeitos que deveriam ser representados na narrativa nacional e os aspectos da

sociedade a serem melhores abordados. O diálogo com a obra do diplomata Oliveira

Lima Na Argentina também mereceu destaque nesse momento do terceiro capítulo,

o qual evidenciou a preocupação de Lima com a forma como se dava a inclusão do

povo na historiografia.

Para fechar as análises das relações de Lima com os historiadores brasileiros,

fizemos um estudo comparativo entre o literato e Capistrano de Abreu, uma das

maiores referências da historiografia nacional naquele início do século XX. Esse

estudo permitiu que reforçasse a comprovação de nossa hipótese de que Lima

propôs inovações na cultura histórica da época.

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Os caminhos encontrados por Lima na elaboração de suas narrativas a fim de

apontar mudanças na cultura histórica tiveram no último capítulo uma abordagem

mais ampliada. Nesse, abordamos, inicialmente, o contexto de surgimento do

primeiro romance publicado pelo escritor – Recordações do escrivão Isaías Caminha

- e seu questionamento de lacunas existentes na cultura histórica, servindo de fio

condutor para outras práticas narrativas nas quais se confrontava com a memória

histórica oficial (e aqui estamos nos referindo à narrativas produzidas por certos

membros do IHGB e da diplomacia brasileira que eram hegemônicas na época).

Para esse primeiro momento, analisamos a criação literária barretiana em

comparação à recepção de outros trabalhos de escritores coevos, refletindo acerca

da tensão social que tal escrita de Lima procurava representar.

O passo seguinte foi a explicitação de como Lima percebia a comemoração de

certas datas históricas, procurando apresentar a seus leitores uma releitura do

passado e as tentativas de outros sujeitos em legitimar seu presente. Nesse sentido,

Lima também representou em seus textos como a observação da cidade em

transformação poderia ser fundamental na rememoração do passado. Destacamos,

então, as narrativas barretianas que visavam combater o apagamento de parte da

história da cidade do Rio de Janeiro, o que foi possível ao explorarmos suas

crônicas publicadas na imprensa da época e o romance Vida e Morte de M. J.

Gonzaga de Sá.

Por último, aprofundamos a análise de um recurso muito utilizado por Lima na

sua trajetória literária, a oralidade. Percebida ao longo do trabalho, a oralidade é,

nesse último capítulo, objeto de uma análise das suas origens culturais, tanto quanto

da forma como é utilizada, por Lima, para trazer para cultura histórica daquele

momento a memória de grupos marginalizados. Seguindo essa estrutura, nas linhas

que seguem, pretendemos narrar a participação desse literato nas discussões em

torno da representação do passado nacional.

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1 OS ESTUDOS BARRETIANOS

“Tentar compreender uma vida como uma série

única e por si suficiente de acontecimentos

sucessivos, sem outro vínculo que não a associação

a um ‘sujeito’ cuja constância certamente não é

senão aquela de um nome próprio, é quase tão

absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto

no metrô sem levar em conta a estrutura da rede,

isto é, a matriz das relações objetivas entre as

diferentes estações [...]”

(Pierre Bourdieu)

Este capítulo visa apresentar as diversas experiências do sujeito histórico

Lima Barreto, com base na premissa de que a constituição da pluralidade de

contextos em que estava inserido esse autor fornece elementos indispensáveis para

a compreensão de suas escolhas intelectuais.

Relações familiares, trajetória profissional, projetos de escrita, leituras iniciais,

apropriações do pensamento intelectual em voga na época serão destacados.

Certamente que nosso olhar se voltará para as particularidades dessa biografia que

aponte indícios de seu diálogo com a cultura histórica. Especificamente, nossa

atenção se voltará para o modo como Lima esboçava seus romances, os temas

sobre os quais mais procurava estudar, as suas observações do cotidiano realizadas

durante os percursos realizados pelos diversos espaços na e em volta da cidade do

Rio de Janeiro e os objetivos que pretendia alcançar com sua produção literária.

Nesse percurso pelas primeiras tentativas barretianas de produzir uma

literatura voltada para questões sociais, veremos que temas como o passado de sua

formação familiar e leituras sobre a história do país referentes ao período

escravocrata estavam entrelaçados na sua busca por compreensão da

discriminação racial nos primeiros anos do século XX. Acreditamos que

elencaremos, dessa maneira, momentos da trajetória de Lima que permita uma

exploração inicial da sua relação com questões pertinentes ao modo como a

sociedade brasileira estava lidando com suas diversas temporalidades.

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Além disso, a identificação de algumas bases de sua escrita nos fornecerá

parâmetros para que, nos capítulos seguintes, possamos comparar sua abordagem

sobre a forma como se representava o passado nacional com outros intelectuais, os

quais eram considerados referenciais para a conformação de uma identidade

nacional para o Brasil.

1.1 Uma trajetória de inquietações: entre a “Vila Quilombo” e o centro dacapital federal

Rio de Janeiro, capital do Brasil, década de 1880. Este foi o cenário do início

da trajetória de Afonso Henriques de Lima Barreto. Um recorte espaço-temporal de

grandes mudanças e contradições sociais. Lutas pelo fim da escravidão e

expectativas de mudança de regime político estavam entre as principais

inquietações daquela sociedade.

Para a família dos Barreto, em particular, também representou um momento

decisivo. Nessa família, iniciada pelo encontro de dois descendentes de

escravizados que haviam superado algumas barreiras sociais, o jovem Lima

compartilhou experiências que muito marcaram sua futura produção literária. Os

caminhos percorridos por João Henriques de Lima Barreto (1853-1922) e Amália

Augusta Pereira de Carvalho (1862-1887) sinalizam as dificuldades de uma família

negra num Brasil ainda escravocrata e as poucas brechas que poderiam encontrar

para alcançar uma certa ascensão social.

João Henriques era filho de uma escravizada chamada Carlota Maria dos

Anjos e de um português que trabalhava no ramo de madeiras no Rio de Janeiro.1

Esse comerciante não reconheceu a paternidade, justificando que aquela relação

fora algo ocasional. Schwarcz afirma que essa postura “foi um padrão criado nos

tempos em que se implementou o modelo de colonização escravocrata [...]”.2

Isso, segundo a autora, favoreceu dois tipos de discriminação às mulheres.

Para as mulheres indígenas e africanas, muitas vezes abusadas sexualmente pelos

brancos, coube um status social que as impedia de ter no casamento “uma saída

possível”. A exploração sexual, à qual eram submetidas, foi identificada como

“adultérios, concubinato e até mesmo prostituição”. Quanto às brancas, suas

1 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 20.2 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 42.

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imagens eram associadas ao matrimônio, virtudes e tinham como espaço

privilegiado de circulação o interior de suas casas.

A experiência familiar, que também foi coletiva e historicamente construída ao

longo das relações sociais gestadas no processo de colonização portuguesa na

América, acabou sendo transfigurada em matéria literária por Lima Barreto. Como

veremos, a produção textual Clara dos Anjos foi sendo elaborada pelo autor desde

1904, tendo sua publicação no formato de romance sido realizada apenas

postumamente em 1948.

Percebemos a nítida referência ao sobrenome de sua avó paterna no título da

obra e o seu enredo - com várias alterações que sofreu durante o espaço de tempo

entre o projeto do romance de 1904, passando pelo conto homônimo, e a versão

publicada no formato de romance – tem como eixo principal a história de uma

mulher negra que, assim como Carlota, acaba não sendo assumida pelo homem

branco com o qual manteve relacionamento amoroso. A história familiar de sua mãe

Amália Augusta também apresenta aproximações com as origens de João

Henriques.

Amália era filha de uma liberta chamada Geraldina Leocádia da Conceição e

sua avó, Maria da Conceição, era uma africana que fora transportada para o Brasil

num navio negreiro.3 Essas mulheres viviam no lar da família dos Pereira de

Carvalho cujo patriarca, o cirurgião-mor do Exército e padrinho de Amália Manoel

Feliciano - segundo Barbosa a partir de informação cedida pela irmã de Lima D.

Evangelina -, era o possível bisavô do escritor.

Tanto Amália quanto seus irmãos Jorge, Carlos e Bernardino “eram tratados

como se fossem netos, justificando os rumores que corriam de boca em boca e que

os apontavam como “filhos dos varões da casa”,4 tendo sido registrados com o

sobrenome da família do cirurgião. Essas informações trazem aspectos das relações

de dependência e favor entre senhores e antigos escravizados.[...] Havia muita ambivalência de lado a lado, nessas trocas de favores; elasauxiliavam na inserção social futura dos “ingênuos”, mas igualmentemantinham laços de dependência e novas formas de dependência. É assimque encontramos todos os agregados dos Pereira de Carvalho residindosob a égide da família. O exemplo de Amália Augusta comprova, uma vezmais, essa política de ordem do privado, de prover de benesses os“ingênuos” da casa, ao mesmo tempo que eram mantidos na órbita deinfluência da família. Basta ver que a menina recebeu educação muito

3 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 22.4 Ibid., p. 25.

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diferenciada da média das demais colegas de geração, e sobretudo deorigem: diplomou-se professora, depois de ter concluído a formação noColégio Santa Cândida, na rua do Areal.5

João Henriques também contou com o apoio de um padrinho, o então ministro

da Fazenda Afonso Celso. O pai de Lima foi um tipógrafo reconhecido nas últimas

décadas do século XIX. A sua trajetória profissional teve início no Instituto Comercial

do Rio de Janeiro no qual finalizou os estudos básicos.

Já no Imperial Liceu de Artes e Ofícios se graduou e adquiriu conhecimento

de línguas estrangeiras. João completou sua formação técnica no Instituto Artístico,

“pertencente aos irmãos Fleiuss, que estava em atividade desde 11 de janeiro de

1860”.6 A consolidação dessa profissionalização inicial se deu na Tipografia do

Imperial Instituto Artístico. A partir disso e sendo apadrinhado por Afonso Celso,

João conseguiu uma vaga na Tipografia Imperial. Atuou também como tipógrafo no

Jornal do Commercio que era o mais tradicional periódico da corte e no liberal A

Reforma, considerado um jornal de prestígio e um dos que mais investiam nas

recentes tecnologias de imprensa durante o Império.7

Amália, por sua vez, como vimos concluiu o curso de magistério e, no ano

1878 no qual se casou com João Henriques, montou o colégio para meninas,

denominado Santa Rosa no bairro das Laranjeiras onde foi residir com seu marido.

Era um colégio pequeno, destinado somente para meninas, limitado ao ensino das

primeiras letras e frequentado por um público que não pertencia às classes mais

abastadas do Rio de Janeiro.8

A educação foi, portanto, um dos recursos utilizados pelo casal Barreto com o

objetivo de atingir uma certa ascensão social. Algo que será estimulado entre os

seus filhos. Lima iniciou sua alfabetização com sua mãe. Após a morte de Amália

em 1887, ele “vai para a escola pública de D. Teresa Pimentel do Amaral [...]” e, em

seguida, graças ao apoio financeiro daquele mesmo Afonso Celso a quem o seu pai

convidara para ser padrinho de seu primogênito, estuda no Liceu Popular

Niteroiense, o qual era dirigido pelo educador de origem escocesa William Cunditt e

tinha por público jovens estudantes de famílias ricas.9

5 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 37.6 Ibid, p. 45.7 Ibid., p. 47.8 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 28-29.9 Ibid., p. 50-53.

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Nesse momento, a família Barreto passava por dificuldades. Além da já

mencionada morte de Amália, João Henriques foi demitido da Imprensa Nacional em

1890 e também perdeu seu posto na Tribuna Liberal, periódico monarquista dirigido

justamente por seu compadre Afonso Celso que era também ministro e chefe do

último gabinete de D. Pedro II. A recente República iniciava seus expurgos. Contudo,

o tipógrafo João Henriques, graças ao então ministro da Justiça e republicano de

“última hora” Cesário Alvim que o conhecia “desde do tempo d’A Reforma”, foi

nomeado escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador em março

de 1890.

Vale destacar uma experiência do menino Afonso Henriques nesse espaço de

tempo entre a morte de sua mãe e a mudança de função de seu pai a fim de

identificar aspectos importantes na sua construção identitária. A comemoração dos

sete anos de Lima coincidiu com o dia da abolição da escravidão no Brasil. João

levou Lima ao Largo do Paço e à missa do Campo de São Cristóvão para

testemunhar aquele acontecimento marcante, especialmente, para uma família

negra.

Essa vivência teve grande impacto na formação de Lima permanecendo,

ainda em 1911, no conjunto de suas memórias. Em 4 de maio daquele ano, veio a

público na Gazeta de Notícias, um artigo do escritor que traz suas lembranças

acerca do dia 13 de maio de 1888.Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sememoção que o vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; asambições desabrocham de novo e, de novo, me chegam revoadas desonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e creio que em sexta-feira; e, porisso, também à emoção que o mês sagrado me traz se misturamrecordações da minha meninice.Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea,meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia deteus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo doPaço.10

A proximidade do 23º aniversário da abolição fez com que Lima rememorasse

um momento de sua infância que, por sua vez, está associado ao passado

escravocrata brasileiro e, como já vimos, às origens de sua família. O ato de João

Henrique de levar o seu filho, nascido livre, para aquela celebração, pode ser visto

como uma tentativa de mostrar ao jovem Lima a continuidade das conquistas que os

10 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 77.

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afrodescendentes estavam obtendo. A própria trajetória dos seus pais, apresentada

acima, já havia sinalizado esses avanços.

O entusiasmo de Lima, no início de sua narrativa, expressa a vontade do

autor em também dar prosseguimento àqueles avanços. É um renovar de forças que

busca ao relembrar o 13 de maio. A situação social de Lima no momento de

produção do artigo “Maio” havia se modificado bastante em relação à ascensão

profissional inicial dos seus pais.

Apesar de, em 1911, Lima já ter publicado seu primeiro romance –

Recordações do escrivão Isaias Caminha - e ser conhecido pelos vários textos

presentes em muitos periódicos da capital federal, a sua família apresentava uma

condição social inferior. João Henriques havia sido aposentado do cargo de

Administrador das Colônias em 1903 devido a problemas mentais que o

transtornavam. Uma situação que gerou mais dificuldades à família Barreto.

Lima, como era o filho mais velho, tornou-se o chefe da família, o que o levou

a abandonar a Escola Politécnica na qual iniciara em 1897 o curso de Engenharia.

No mesmo ano em que foi expedido o título de aposentadoria de seu pai, assumiu o

cargo de amanuense da Secretaria da Guerra, via concurso público, estabelecendo-

se com sua família definitivamente no subúrbio de Todos os Santos.

Retornemos a sua narrativa do 13 de maio e percebamos como o tom

esperançoso vai se definhando. Acreditamos que assim teremos uma melhor visão

acerca do modo com as suas lembranças foram sendo modeladas e também o

modelavam, sendo que os tempos da escravidão e seus reflexos na sua formação

familiar se constituíam como o fio condutor desse enredo.Fazia sol e dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Erageral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação,deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.Houve uma missa campal no Campo de São de Cristóvão. Eu fui tambémcom meu pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, aoassisti-la, me vinha aos olhos a “Primeira Missa”, de Vítor Meireles. Eracomo se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez... [...][...]

Quando fui para o colégio, um colégio público, à Rua do Resende, a alegriaentre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas aalegria ambiente nos tinha tomado.A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muitointeligente, a quem muito deve meu espírito, creio que nos explicou asignificação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só umacoisa me ficou: livre! livre![...]

Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamosnas teias dos preceitos, das regras e das leis![...]

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São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazemcom que sintamos a eternidade do tempo.Oh! O tempo! O inflexível tempo, que como o Amor, é também irmão daMorte, vai ceifando aspirações, tirando presunções, trazendo desalentos, esó nos deixa na alma essa saudade do passado às vezes composta decoisas fúteis, cujo relembrar, porém, traz sempre prazer.11

O antropólogo francês Joël Candau no seu estudo sobre as indissolúveis

ligações entre identidade e memória afirma que o “tempo, [...] provisoriamente

domesticado” no “templo da memória coletiva, autoriza a ancoragem de cada sujeito

em uma temporalidade fundadora da identidade”.12 Lima, na suas lembranças,

representa o dia 13 de maio de 1888 como um novo “descobrir” do Brasil a partir do

qual traça uma representação do seu passado e vislumbra horizontes de espera.

Podemos perceber essa ancoragem nos “tempos do cativeiro” em várias

situações nas quais Lima busca ordenar sua existência por meio de registros diários

de seu cotidiano e elaboração literária. As experiências vivenciadas pelas suas avós

são algumas delas. Estas marcaram profundamente o seu pensamento acerca das

relações entre homens brancos e mulheres negras.

A última versão de Clara dos Anjos traz uma dedicatória à memória de sua

mãe, acompanhada da seguinte epígrafe extraída de um livro de história muito lido

por Lima: “Alguns as desposavam [as índias]; outros, quase todos, abusavam da

inocência delas, como ainda hoje as mestiças, reduzindo-as por igual a concubinas

e escravas. João Ribeiro, História do Brasil (p.103, 7ª edição)”.13 Para além da

homenagem a sua mãe e da saudade que sentia dela – Amália havia falecido em

1887 quando o autor só tinha 6 anos -, notamos como Lima inseria sua trajetória

familiar no contexto social da época com suas diversas relações temporais. A

tentativa de denunciar certas práticas abusivas e discriminatórias em relação às

mulheres negras bem como a sua busca por preencher certas lacunas de seu

passado familiar já se manifestava anos antes.

Em 1903, Lima faz questão de se apresentar nas suas anotações pessoais

como um filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto, ex-aluno da Escola

Politécnica e futuro escritor da “História da Escravidão Negra no Brasil e sua

11 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 77-79.12 CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto,2016, p. 91.13 BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Scipione, 1994 (Coleção Clássicos da Scipione),n/pag.

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influência na nossa nacionalidade”.14 Estas informações cedidas por Lima traz

elementos significativos para compreendermos seus posicionamentos quanto a suas

origens, aos anseios presentes numa família negra durante o pós-abolição no Brasil.

Com vinte e dois anos de idade e já chefe de sua família com a doença do pai, Lima

faz questão de registrar, ao contrário do que aconteceu com seus pais, o seu

reconhecimento pelo lado paterno.

Diante daquele passado familiar marcado pela escravidão, dificuldades

financeiras e abandono de um curso superior, o autor buscou, naquele registro de

1903, produzir uma imagem de si que simbolizasse avanços na trajetória dos

Barreto. Há também naquela anotação uma tentativa de direcionamento para a sua

futura carreira literária que, inicialmente, estaria ancorada nos tempos do cativeiro.

Compreender o seu presente a partir da investigação do modo como o passado

ainda o influenciava era um dos objetivos iniciais do aspirante a literato.

As suas experiências entre os subúrbios e o centro da capital federal tiveram

um grande impacto também quanto a suas perspectivas em relação ao preconceito

e discriminação racial. Essas se constituíram como um reforço para aquela

investigação acima mencionada.

Numa volta da Ilha do Governador em 6 de novembro de 1904 – onde havia

ido pagar dívidas de seu pai -, Lima resolve na Estação de São Francisco “descer à

cidade”. Ele registra no seu diário que naquela estação, ao embarcar, sentiu uma

melancolia, questionando sua causa. “Foi o vinho? Sim, porque tenho observado

que o vinho em pequenas doses causa-me melancolia; mas não era o sentimento;

era outro, um vazio n’alma, um travo amargo na boca, um escárnio interior”.15

Atribui tal sensação, após reflexão, a uma situação vivenciada na Estação de

São Francisco.Na estação, passeava como que desafiando o C. J. (puto, ladrão e burro)com a esposa ao lado. O idiota tocou-me na tecla sensível, não há negá-lo.Ele dizia com certeza:- Vê, “seu” negro, você me pode vencer nos concursos, mas nas mulheres,não. Poderás arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não dessetalhe aristocrático.Suportei o desafio e mirei-lhe a mulher de alto a baixo e, dentro de algunsanos, espero encontrar-me com ela em alguma casa de alugar cômodos porhora.16

14 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 33.15 Ibid., p. 46.16 Ibid, loc.cit.

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Esta impressão que teve ao ver o tal C. J. indica muito do ressentimento que

sentia diante do preconceito racial vivenciado naquele momento. Este já vinha desde

sua passagem pela Politécnica a qual era considerada um ambiente asfixiante pelo

escritor. Para Lima, “todos os meus colegas, filhos de graúdos de toda sorte, que me

tratavam, quando tratavam, com um compassivo desdém, formavam uma ambiência

que me intimidava, que me abafava [...].17

Era uma sensação tão perturbadora que fazia oscilar o seu ânimo e aguçava

sua observação de práticas cotidianas reveladoras daquele permanente preconceito

vivenciado pelos afrodescendentes no Brasil pós-abolição. No mesmo ano do

registro da melancolia sentida na Estação de São Francisco – no entanto ele não

apontou o dia -, Lima assinala que observou “uma mulata que parecia amigada a um

português; viajavam no bonde separados”.18

As recordações do passado familiar vinham à tona e Lima orientava seu

pensamento para os motivos dos silenciamentos em relação às práticas

discriminatórias. Além dos projetos de escrita e estudos abordados no item seguinte

deste primeiro capítulo, o inquieto Lima buscava em certos lugares possíveis

indícios para o preenchimento de algumas lacunas da sua origem (o lugar na África

do qual a avó era natural, a confirmação do nome de seu bisavô e avô) como

também, por meio de suas conversas, fontes de informação para suas futuras

produções literárias.

Aos dez dias de fevereiro de 1908, Lima registra impressões que teve durante

uma viagem a São Gonçalo, no dia anterior, a fim de visitar um conhecido do seu

local de trabalho. Depois do embarque no Largo do Paço e quando já se encontrava

mais afastado da “atmosfera urbana”, começou a observar a paisagem e indagar-se

sobre os caminhos percorridos pela sua avó materna.Há casas novas, os chalets, mas também as velhas casas de colunasheterodoxas e varanda de parapeito, a lembrar a escravatura e sistema daantiga lavoura. [...].Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me da minha vida,dos meus avós escravos e, não sei como, lembrei-me de algumas frasesouvidas no meu âmago familiar que me deram vagas notícias das origensde minha avó materna, Geraldina. Era de São Gonçalo de Cubandê, ondeeram lavradores os Pereira de Carvalho, de quem era ela cria.Lembrando-me disso, eu olhei as árvores da estrada com mais simpatia.Eram muito novas; nenhuma delas teria visto minha avó passar, caminho dacorte, quando os seus senhores vieram estabelecer-se na cidade. Isso

17 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 516.18 Id. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 47.

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devia ter sido por 1840, ou antes, e nenhuma delas tinha a venerável idadede setenta anos.19

Como não encontrou os indícios do percurso da avó materna na paisagem,

buscou se identificar nos traços da população local, imaginando possíveis

parentescos. Ao contrário do desalento presente no fim daquela sua recordação do

13 de maio e do ressentimento expresso na Estação de São Francisco, Lima

apresenta orgulho ao sentir-se pertencente ao grupo de negros moradores daquela

localidade e elabora uma imagem de si mesmo como representante do triunfo dos

afrodescendentes.[...] eu não pude deixar de lembrar-me, sem algum orgulho, que o meusangue, parente do seu, depois de volta de três quartos de século, voltavaàquelas paragens radiante de mocidade, saturado de noções superiores,sonhando grandes destinos, para ser recebido em casa de pessoas que, senão foram senhores dele, durante algum tempo, tinha-o sido de outrem damesma origem que o meu(sic).20

Esse pertencimento deve ter sido cultivado ainda na Ilha do Governador onde

os Barreto passaram a residir após a nomeação de João Henriques para o cargo de

almoxarife das Colônias de Alienados em 1891. Neste local, Lima desenvolveu uma

relação de amizade com o preto velho Manuel de Oliveira, um dos internos das

Colônias que, após sua alta e saída da família Barreto da Ilha do Governador,

passou a residir com ele no subúrbio de Todos os Santos.

Segundo o escritor, Manuel viveu com sua família por cerca de vinte anos.21 A

escuta sensível de Lima para as histórias de Manuel fez com que recordasse da

trajetória daquele ex-escravizado, tornando-a pública em 1º de maio de 1921 por

meio da Revista Souza Cruz. Novamente, temos o mês de maio como marco

temporal para Lima relembrar situações vivenciadas que, por sua vez, apresentam

vínculos com os tempos do cativeiro.

Manuel era “cabinda de nação” e, após sua vinda ainda menino da Costa da

África para o Brasil, foi comprado por um português que lhe ensinou “o ofício de

plantar couves”.22 Como vendia para seu senhor as verduras e legumes pelos

bairros do Catete e de Botafogo, esse escravo de ganho conseguiu recursos com os

lucros diários, obtendo sua alforria. Manteve-se, contudo, ao lado do seu antigo

senhor e continuou a economizar dinheiro então oriundo do seu trabalho assalariado.

19 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 131.20 Ibid., p. 132.21 Ibid., p. 183.22 Id. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença. Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 361.

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Foi dessa maneira que comprou a liberdade de uma “pretinha escrava”

chamada Maria Paulina a qual se tornou sua companheira. Contudo, Maria Paulina

acabou fugindo e Manuel “ficou pateta”, vagando pelas ruas da cidade do Rio de

Janeiro até ser apanhado pela polícia e levado para o Asilo de Mendigos.Daí foi enviado à Ilha do governador e internado numa espécie de colôniade pedintes que o governo imperial fundou nos últimos anos de existência.Vindo a república foram essas colônias, pois eram duas, transformadas nasatuais de alienados.23

Esta história lhe foi contada, segundo Lima, muitas vezes de modo inalterável

pelo preto velho Manuel. E o que mais lhe fascinou nesse amigo foi o orgulho que

tinha de sua nação.Coisa curiosa! Oliveira tinha em grande conta a sua dolorosa Costa d’África.Se eu motejava dela, o meu humilde amigo dizia-me:-“Seu Lifonso”, o senhor diz que lá não há quem saiba ler. Pois olhe: osdoutores daqui, quando querem saber melhor, vão estudar lá.Além de ter esse singular e geral orgulho pela África, ele tinha um particularpela sua “nação”. Para ele, cabinda era a nacionalidade mais perfeita esuperior da Terra. Nem todo negro podia ser cabinda.24

Este diálogo deve ter sido de grande aprendizado para Lima Barreto, pois as

afirmativas de Manuel reproduzidas no artigo invertiam toda uma escala de valores

da época que tinha o homem branco e as nações europeias como superiores. Algo

extremamente significativo para um escritor que vivenciou discriminações ao longo

de sua vida e possuía, como vimos, a pretensão inicial de escrever “a História da

Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”.

Temos aí o lugar social a partir do qual Lima vai estabelecer diálogos com

seus leitores. Como um sujeito negro, suburbano, pobre e preocupado com as

dificuldades enfrentadas pela população negra na capital federal, Lima vai

transformar as suas idas e vindas entre os subúrbios e o centro daquela cidade em

matéria literária. Nesse processo criativo, marca sua posição de enfrentamento em

relação ao que aquele centro poderia representar de discriminatório e excludente.

Não é à toa que ele denominava de “Vila Quilombo” a sua residência no

subúrbio de Todos os Santos na qual amadurecia, trancado no seu quarto que era

também biblioteca, as suas narrativas. Era como se fosse o lugar de resistência

onde produziria uma literatura questionadora e denunciadora, como veremos logo a

seguir com a leitura de seus projetos inicias de estudo e criação literária.

23 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 361-362.24 Ibid., p. 362-363.

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1.2Projetos iniciais de escrita: revendo o passado

“Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho

vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João

Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola

Politécnica. No futuro, escreverei a História da

Escravidão Negra no Brasil e sua influência na

nossa nacionalidade”.

(Barreto, 1903)

Já vimos como o ano de 1903 foi decisivo para a família Barreto. Lima agora

tinha a responsabilidade de prover seu lar e exercia a função de amanuense numa

secretaria do Estado, incumbências que muito o angustiavam. Entretanto, naquele

ano, também procurava nutrir expectativas quanto à atividade que tanto amava: a

escrita.

Uma parte do desenvolvimento dessa escrita estava voltada para a

investigação do passado, suas permanências e rupturas. No ano seguinte, Lima

ainda mantém esse interesse e tenta levar a público algumas de suas reflexões.

Entre suas anotações pessoais acerca das contas a pagar e impressões sobre

determinados sujeitos com os quais convivia, encontramos um registro (sem data)

com o título Dom João VI no Brasil.25 Logo abaixo, uma lista de pontos que deveriam

ser abordados para se compreender a vinda da Corte portuguesa ao Brasil.

A intenção desse registro tornou-se mais compreensível quando realizamos a

leitura de uma carta de Lima Barreto endereçada a seu amigo Antonio Noronha

Santos, datada de 11 de junho de 1904. Nessa, Lima o convida para a escrita de

uma monografia para o concurso de memórias históricas sobre o reinado de Dom

João VI no Brasil, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).26

Hoje, no Correio da Manhã, estão publicadas as bases para o concurso damemória histórica do reinado de Dom João VI no Brasil, posta a prêmio peloInstituto Histórico; assim verifiquei não ser certo o que havias dito27, isto é,que o Max das Férias já havia abiscoitado o prêmio.

25 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 42-43.26 Id. . Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I), p. 60.27 Grifo nosso.

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Se ainda estás de ânimo pronto a escrevê-la e se te agrada fazê-la comigo,marca dia, hora e lugar para tratarmos da empresa.Aguardo a tua resposta breve, mas se, entretanto – por qualquer razãojulgares melhor fazer cada um de nós a cousa só – dize-o francamente aeste.28

Essa carta indica que o tema já havia sido discutido pelos amigos – mas o

projeto não foi concretizado29 - bem como a idoneidade do concurso30. Max Fleiuss

(1868-1943), sócio benemérito e secretário perpétuo do IHGB, é pejorativamente

chamado por Lima de Max das Férias e era visto como suspeito, por Noronha, de já

ser considerado vencedor do concurso antes mesmo da avaliação das demais

monografias.

As palavras de Lima sinalizam uma possível desconfiança naquele momento

dos dois amigos quanto aos critérios adotados pelo IHGB para aceitação de

trabalhos históricos. Talvez vissem essa instituição como um local fechado quanto

ao acesso de sujeitos que não faziam parte de grupos privilegiados da sociedade.

Uma hipótese que, ao longo desse trabalho, quiçá possamos averiguar melhor. Por

ora, retomemos à análise do projeto de memória histórica barretiano.

Ao lado daquela intenção de escrita de 1903, esse projeto de memória

histórica de Lima sinaliza mais um indício de sua preocupação inicial em refletir

sobre a História do Brasil. E, nesse caso, por um tema que estava fomentando um

grande interesse pelos letrados, pois se aproximava a data comemorativa do

centenário da instalação da Corte portuguesa no Brasil que, mais tarde, teve como

grande culminância, em termos bibliográficos, a publicação da obra D. João VI no

Brasil em 1908, escrita pelo reconhecido historiador e diplomata brasileiro Manoel de

Oliveira Lima (1897-1928).

28 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I),p. 60.29 Não encontramos nas correspondências entre Lima Barreto e Antonio Noronha Santos a respostadeste quanto à escrita da memória histórica bem como nenhum texto do primeiro que se configurassecomo resultado daquele projeto.30 Houve discussões sobre o tipo de premiação a ser oferecido ao ganhador do concurso (em dinheiroou entrega de medalha) na cerimônia que se realizaria em 28 de janeiro de 1908 no PrimeiroCentenário da Abertura dos Portos. O regulamento proposto pela Comissão de História para oconcurso foi aprovado acabou determinando a concessão de um prêmio em dinheiro de cinco contosde réis. Apesar das discussões, não foram mencionadas as obras participantes e a vencedora.Segundo Hruby, não é descartável a possibilidade de que este concurso não tenha sido finalizado.Ver HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: aHistória do Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: CharlesMonteiro. 2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p.144.

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Vale, então, um retorno ao esboço do projeto registrado por Lima em suas

anotações pessoais e um olhar mais atento sobre a sua lista de pontos. Os primeiros

pontos listados eram os mais esperados - dentro de uma perspectiva historiográfica

voltada para acontecimentos políticos -, como os motivos que levaram o príncipe

regente português a vir para o Brasil, as medidas que tomou durante seu reinado,

transformações na cidade do Rio de Janeiro com aquela vinda, passando por

conflitos e relações diplomáticas. Entretanto, o último ponto estava relacionado à

escravidão negra no Brasil, “temporalidade de ancoragem” do autor.

Lima pretendia inserir na narrativa sobre o período de Dom João VI no Brasil

a situação vivida por muitos negros escravizados que permaneciam em péssimas

condições de existência, divergindo do luxo que cercava a Corte portuguesa no Rio

de Janeiro. Destacou na sua lista, como pontos a serem desenvolvidos na memória

histórica, leis relativas à escravatura, “relações entre senhores e escravos”, objetos

usados na punição dos escravizados (o tronco e o bacalhau), aspectos da sua

cultura (“cantos de senzala”, “caráter dos negros”), situação psicológica (o banzo) e

a mistura de raças (“mulatos”).

Vale salientar, nesse esboço, a preocupação de Lima Barreto em listar

aspectos do cotidiano dos escravizados que os humanizavam. Ao contrário da

perspectiva dos escravistas que os viam apenas como objetos, instrumentos de

trabalho; a produção cultural dos negros, o estado de sua saúde mental bem como

as suas relações com outros grupos sociais têm estatuto de memorável pelo projeto

barretiano. Essa humanização teve um melhor desenvolvimento em outros escritos

daquele ano de 1904.

Neles, Lima estabeleceu conexões entre suas primeiras tentativas de criação

literária e representações do passado nacional. Estamos nos referindo a suas

anotações acerca do que seria seu primeiro romance, intitulado de Clara dos Anjos.

O escritor registrou os perfis de algumas personagens e acontecimentos que

vivenciariam ao longo da futura narrativa.

Lima assinalou como recorte temporal o período de 1874 a 1905. Mais

adiante, elaborou com mais detalhes uma cronologia relacionada à trajetória da

protagonista Clara por meio da qual ficou evidente sua intenção de cruzá-la como

momentos do passado mais recente brasileiro, alterando aquele recorte temporal

inicial para 1868 a 1900. O mesmo ano da publicação do poema “Vozes da África”

de Castro Alves foi assinalado para o nascimento de Clara – logo abaixo da

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cronologia, Lima havia registrado que precisava “saber de que data são as “Vozes

d’África”, a qual foi justamente aquele ano de 1868.31

Um ano marcado pela efervescência do movimento abolicionista32 cujos

desdobramentos continuam a compor a cronologia elaborada por Lima. A morte do

pai de Clara foi no ano de 1887, dois anos após a assinatura da Lei do Sexagenário.

Já a perda da virgindade (“defloramento”) da personagem principal se passou no

ano da Lei Áurea (1888), exatamente no dia 13 de maio, e o nascimento de seu filho

no ano de início do regime republicano brasileiro (1889).

Já sob o novo regime, a cronologia indica que Clara foi “deixada” pelo homem

que a seduzira em 1892 (governo do marechal Floriano), casou-se 1894, quando

assumiu o primeiro presidente civil da República, Prudente de Morais, tornou-se

viúva em 1899 durante o governo Campos Sales e sua política dos governadores e

valorização do café, e “amigou-se” de novo em 1900.33 À primeira vista, podemos

inferir que, nesse esboço, Lima procurou, de alguma forma, estabelecer uma leitura

do passado recente brasileiro através da trajetória da personagem ficcional Clara.

Nessa leitura, a condição social dos negros e as mudanças de regime surgem

de modo associados, levando-nos a entender que, pela forma como criou aquela

cronologia, os espaços de experiência dos negros, em fins do século XIX, oscilavam

entre expectativas de possíveis melhorias na sua vida e frustrações diante de

acontecimentos políticos daquele momento. Expectativas que se vislumbravam no

horizonte com o fim da escravidão e as esperanças de uma maior inserção social

com a iminência de uma sociedade democrática ventilada pela recente República

que, pelos marcos temporais relacionados, apontam momentos do início daquele

regime.

Um início militarizado, fechado e, logo em seguida, mesmo com os civis no

poder, ainda excludente com o estreitamento dos laços oligárquicos. Até aquele

processo de libertação dos escravizados foi representado na trajetória de Clara de

forma a insinuar que as leis assinadas para, gradualmente, eliminar a escravidão

beneficiavam menos os negros que os seus antigos senhores. Isto pode ser

31 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 58.32 Alonso afirma que o movimento abolicionista é anterior a 1879, ano sinalizado por Nabuco emMinha formação como o do seu início. Associações antiescravistas já de destacavam às vésperas daLei Eusébio de Queirós de 1850 bem como manifestações coletivas aumentavam na segunda metadeda década de 1860, antes da Lei do Ventre Livre. Ver ALONSO, Angela. O abolicionismo comomovimento social. Novos estudos. - CEBRAP [online]. 2014, n.100, ISSN 0101-3300, p.117.Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002014000300007. Acesso: 04 mar. 2018.33 BARRETO, Lima. Op.cit, p. 58.

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percebido pela data assinalada para a morte pai de Clara - apenas dois anos após a

aprovação da Lei do Sexagenário -, simbolizando a iniciativa do Estado brasileiro em

eximir os escravocratas da responsabilidade em ofertar condições de sobrevivência

aos negros considerados não produtivos por conta da idade avançada,

abandonando-os à própria sorte.

A abolição, pela forma sinalizada na cronologia, é representada como uma

ilusão. Clara foi seduzida no dia 13 de maio de 1888,34 como muitos negros se

sentiram seduzidos pela possibilidade de uma nova vida com o fim da abolição.

Contudo, a Lei Áurea não determinava entre seus artigos medidas que pudessem

fornecer reparações pelos séculos de exploração a que foram submetidos os negros.

Vimos no item anterior desta tese, como em 1911, Lima ainda se entusiasmava com

o início do mês de maio para, logo depois, mostrar-se descrente de um futuro melhor

diante da sua experiência sob o regime republicano.

A memória que se transmitia acerca do fim da escravidão, pelo visto, não

agradava Lima Barreto assim como aquela que se tentava publicizar em relação à

presença no Brasil do regente português Dom João VI. Lima percebia uma lacuna

que tentava preencher com a elaboração de seus projetos de escrita. Hugo Hruby,

analisando a forma como IHGB se portou depois do fim da Monarquia e suas

implicações na escrita da História do Brasil, afirma que, entre os assuntos mais

recorrentes nas sessões e trabalhos publicados entre 1889 e 1912, estava

justamente o período joanino.35

O Visconde de Ouro Preto considerou, durante a 17ª Sessão Ordinária do

IHGB de 23 de outubro de 1903, Dom João VI o “verdadeiro fundador da nossa

nacionalidade”, propondo, na sessão seguinte de 6 de novembro,36 aquele concurso

sobre os trezes anos de seu governo no Brasil para o qual Lima desejava se

inscrever. Também em 1903, como já foi indicado acima, Lima estava interessado

na formação da nossa nacionalidade, mas, tendo como referência, a influência da

escravidão nesse processo.

34 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 59.35 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 143.36 Ibid., p. 144.

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Quanto ao abolicionismo, Lima tinha uma versão diferente sobre as

motivações de um dos seus destaques. Em 2 de fevereiro de 1905, fez anotações

sobre o enterro de José do Patrocínio (1853-1905).[...] Propalado pelos jornais que esse jornalista tinha sido a alma daAbolição, o populacho à ultima hora agitou-se e fez-lhe a manifestação deuso: coche puxado a braços, ululos pelas ruas e discursos de cidadãos maisou menos sequiosos de renome, que aproveitam a ocasião para aumentá-loum pouco. Quem conheceu o Patrocínio como eu o conheci, lacaio de todosos patoteiros, alugado a todas as patifarias, sem uma forte linha de condutanos seus atos e nos seus pensamentos, não acredita que pudesse ter sido,como dizem, o apóstolo da Abolição.37

Lima acusa o abolicionista, em seguida, de ter se servido da causa para obter

recursos financeiros e glória, rememorando queA lei 13 de maio vinha de longe, era convicção da nação a injustiça daescravidão, não precisava de jornalistas nem evangelizadores para mostrar-lhe a injustiça. Quem notar – basta fazê-lo de 1822 – as referências que osnossos governantes fazem à coisa, sente que eles o fazem com vergonha,com descaso, sentiam-no a ilegalidade, a injustiça; e esse sentimento, quese foi espalhando pelo país, aumentou extraordinariamente depois daguerra do Paraguai e foi como, se dando a lei de 1871, não teve paraencarná-lo senão o funcionário que a subscreveu, o Visconde do RioBranco, ministro daquele tempo. A lei dos sexagenários foi assim também,E, quando já era quase universal no Brasil esse amargo sentimento, é queapareceu seu Patrocínio, que, sem honestidade e sem grandeza, aproveita-se da história e, pelo “jornalismo”, consegue ser elevado à altura de umapóstolo, de um evangelizador.Demais, há e houve sempre entre nós um grande sentimento liberal, comcertas restrições, em favor dos negros.38

Além da disputa no Parlamento por aprovação de leis emancipacionistas,

como a atuação de José Paranhos,39 o Visconde do Rio Branco citado por Lima, o

movimento abolicionista também se servia da imprensa, associativismo,

conferências e até apresentações artísticas,40 principalmente após a subida ao poder

do Partido Liberal em 1878. José do Patrocínio teve destaque nessa segunda forma

de atuação do movimento.

Patrocínio popularizou-se com seus artigos abolicionistas, principalmente na

Gazeta de Notícias no qual ingressou em 1877 e na Gazeta da Tarde, a qual

adquiriu em 1881, compra muito facilitada pelo seu casamento com a filha de um

militar republicano proprietário de muitos prédios e terrenos. Como membro da ala

37 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 97-98.38 Ibid, p. 98.39 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88. São Paulo:Companhia das Letras, 2015, p. 54-56.40 Ibid., p. 119-151.

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dos radicais liberais do Partido Liberal, viu a sua possibilidade de atuação ser

potencializada com aquele governo liberal iniciado em 1878.41

Essa trajetória era vista por Lima como uma forma oportunista encontrada

para ascender socialmente. Pela sua perspectiva, há décadas anteriores à atuação

de Patrocínio, já havia no Brasil um sentimento de injustiça em relação à

continuidade da escravidão que se valia muito da retórica liberal. Para fundamentar

sua argumentação, fez alusão às discussões ocorridas em torno da proposta de

José Bonifácio de abolição da escravidão ainda na década de 1820.

Em 1823, José Bonifácio de Andrada e Silva escreveu a Representação à

Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura.

Neste documento, o autor, pautado no liberalismo adotado por várias nações

europeias, prescreveu que houvesse um Estado forte e cidadãos plenos de direitos.

Como os escravos não eram considerados cidadãos, contrariava-se a adoção no

Brasil de uma constituição liberal, levantando também questionamentos quanto à

sua utilidade para a economia nacional.42

Outro momento, apontado por Lima, que adensou a discussão em prol da

libertação dos escravizados foi a experiência da Guerra do Paraguai (1865-1870). O

contato com os negros escravizados nos campos de batalha fez com que alguns

homens brancos “pudessem perceber” a injustiça da escravidão e, como o próprio

Visconde do Rio Branco mencionado por Lima, a imagem humilhante do Brasil no

estrangeiro por mantê-la.43

Esses registros feitos por Lima endossam a importância que os temas da

presença negra e do processo de abolição da escravidão no Brasil adquiriam nos

seus estudos iniciais. Sua busca por uma narrativa que os contemplasse se tornou

uma das prioridades do autor. Nesse sentido, vale retomar suas anotações do ano

anterior àquela opinião sobre o abolicionista José do Patrocínio e verificarmos o

resultado do empenho de Lima Barreto com a elaboração do esboço do romance

Clara dos Anjos bem como de outros manuscritos. Em 1904, Lima finaliza os quatro

capítulos da primeira versão de Clara dos Anjos.

41 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88. São Paulo:Companhia das Letras, 2015, p. 114-167.42 SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do “ser negro”: um percurso das ideias quenaturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002, p.66-73.43 ALONSO, Angela. Op.cit., p. 54.

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A narrativa se inicia pela descrição do cenário, a cidade do Rio de Janeiro.

Nesse primeiro momento, Lima procurou historicizar a distribuição espacial da

cidade.44

A cidade do Rio de Janeiro é regularmente edificada. Não se infira daí queela o seja conforme o estabelecido na teoria das perpendiculares e oblíquas;antes se conclua que a cidade se tem erguido, acorde com a topografia dolocal onde se assentou e com as vicissitudes históricas que sofreu.

[...]Ao nascer no topo do Castelo, não foi mais que um escolho branco,surgindo no revolto mar de floresta e brejos. Aumentando desceu pelavenerável colina abaixo, coleou-se, pelas várzeas, em ruas estreitas. Anecessidade de defesa externa obrigou-as a ser assim, e a polícia recíprocados habitantes contra malfeitores prováveis fez com que elas continuassemdo mesmo modo, quando de piratas pouco tinham a temer.

O quilombola e o corsário projetaram a cidade.45

O narrador apresenta a diversidade de sujeitos que, pelas suas ações ao

longo do tempo, foram conformando o formato da cidade ao lado do respeito a sua

topografia. Uma narrativa que insere determinados grupos que não eram

considerados protagonistas nas memórias da cidade acerca da sua constituição,

como, por exemplo, os negros escravizados. Notemos que os negros em destaque

participaram desse processo numa postura ativa em busca de sua liberdade, uma

vez que o trecho acima se refere ao quilombola.

Os negros, linhas depois, tiveram mais registros de sua participação na

constituição da cidade quando o narrador afirma que o tráfico de escravos “imprimiu

ao Valongo e aos morros da Saúde alguma coisa de cubata46 africana [...]”.47

Segundo Gerson, o Valongo foi, no período colonial e parte do imperial, o mercado

de compra e venda de escravizados trazidos pelos navios negreiros, e a Saúde se

constituiu “num reduto da capoeiragem na cidade do Rio.48

Lima mapeia, ainda que de maneira incipiente, alguns rastros da presença

africana na cidade e prossegue, nessa versão inacabada de Clara dos Anjos, a

representação de outros momentos do passado nacional. Por meio da polifonia

expressa pelos personagens, Lima traz para a reflexão a participação dos negros na

Guerra do Paraguai e a abolição da escravidão.

44 Essa historicização foi melhor desenvolvida, inclusive com o aproveitamento de trechos dessaprimeira versão de Clara dos Anjos, na obra Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, iniciada em 1907e publicada somente em 1919.45 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 221.46 Choupana de negros africanos coberta de folhas.47 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 222.48 GERSON, Brasil. História das ruas do Rio: e de sua liderança na história política do Brasil. 5 ed.Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2000, p. 145-150.

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Ao verificarmos a trajetória que Lima elabora para o pai de Clara, o

amanuense negro da Secretaria da Agricultura chamado Manuel dos Anjos, temos

contato com a seleção de elementos do passado referentes a um acontecimento de

grande repercussão no imaginário nacional que, combinados nesse texto ficcional,

leva-nos a uma interpretação acerca das alterações trazidas pela Guerra do

Paraguai no cotidiano da sociedade brasileira. A vida de Manuel apresentou

mudanças significativas quando retornou do conflito em 1869 e deu baixa de um

batalhão de voluntários.

“De volta à corte, obtivera com alguns empenhos e aquele seu título de

voluntário um lugar de contínuo interino da Secretaria do Império e pouco depois

efetivo na da Agricultura”.49 Foi durante a interinidade que conheceu aquele que

seria o futuro padrinho de sua filha Clara, o senhor Carlos Alves da Silva, que

ocupava o cargo de primeiro oficial daquela secretaria.

O narrador do romance apresenta Alves da Silva como poeta abolicionista e

sua chegada àquele cargo se deu “por um curso gorado de Direito e peso da

manutenção da mãe”, pois seu pai, que havia morrido em Lomas Valentinas50 como

Major do Exército, deixou como herança uma escrava, uma casa em São Cristóvão

e um baixo soldo. Os dois personagens possuem, portanto, um traço comum nas

suas histórias de vida que é o conflito sul-americano. E esse traço comum é

explorado pelo autor para tensionar, na narrativa, questões relacionadas às

desigualdades sociais e raciais.

A simpatia de Manuel por Alves nasceu durante uma tarde na qual ajudou a

servir na festa que o segundo havia promovido pelo batismo de seu neto. A fim de

melhor delinear o contexto social no qual surgiria aquela simpatia, o narrador traz

um pequeno panorama da repercussão da Guerra do Paraguai na sociedade

brasileira.Havia a pouco que o Brasil definitivamente domara o Paraguai: com essavitória o país tinha tomado consciência de si mesmo – era como um tímidoque, superada grave dificuldade de sua vida, acredita na sua energia, noseu valor e, quiçá, na efetividade de sua existência. Um tal sentimento quenaquela época se apodera fortemente da nação, traduzia-se num explosivodesejo de progresso, de engrandecimento. [...]Mas o que veio a constituir, depois dela, a verdadeira questão palpitante denorte a sul do Império foi a que se chamou a do elemento servil. A guerra,pondo em apertado contato senhores e recentes escravos, fazendo-ossofrer os mesmos perigos e as mesmas agruras, aproximou-os, dando

49 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 225.50 Referência ao local pertencente ao território paraguaio no qual foi travada uma batalha decisiva daGuerra do Paraguai.

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nascimento a uma mútua compreensão das suas necessidades. Com opleno sucesso das armas imperiais, espalharam-se por todos os recantosdo país gente tomada de generosos sentimentos pelos escravos, e essa foia sementeira donde brotou mais tarde a árvore da abolição. Entretanto, apoesia nacional, que mais ou menos já colaborava em algumas das nossastransformações políticas, muito antes, já começava a preparar artigos defundo de alguns anos depois. As escolas de Direito eram o centro deirradiação e o Carlos Alves da Silva, chegado do Recife, vinha impregnadodela, e mesmo para seu gosto pessoal trazia alguns tropos escolhidos ecinco ou seis argumentos irrespondíveis, que, a seu julgar, seriam aspedras com que o minúsculo David havia de matar o Golias Negreiro...51

Segundo Thomas Skidmore, a participação do Brasil na Guerra do Paraguai

favoreceu o reexame da nação, levando muitos civis a perceberem o atraso do país

em áreas como educação e transporte52 e a contestarem a ordem mantida pela

tradição imperial, a qual não beneficiava em números significativos grupos marginais

em relação à economia escravista.53 Assim como o personagem Alves da Silva,

estudantes e egressos da faculdade de Direito de Recife, embebidos pelo ideário

cientificista europeu, defendiam uma modernização da nação, sendo a escravidão

considerada um de seus entraves.

Os militares também foram outro grupo social a se questionar sobre a

manutenção da escravidão. A guerra revelou a escassez de homens livres aptos

para o serviço militar. Esta escassez levou a um recrutamento compulsivo de

escravizados, “muitos dos quais provaram ser excelentes soldados”. Após o conflito,

o Império apresentava um contra-senso ao pedir para o exército - instituição agora

com maior visibilidade no cenário político nacional, mas sem receber maiores

atenções das autoridades imperiais como melhoria salarial e na própria carreira - a

captura de escravos.54

Percebemos que esse cenário ao qual se remete o trecho acima da narrativa

barretiana apresenta o processo que levou à defesa da abolição por uma via de

aproximação entre grupos distintos, expressando, de uma certa forma, a superação

de conflitos raciais no Brasil. A referência às lutas dos escravizados para se

tornarem libertos não se apresenta nesse momento da narrativa. Entre os próprios

componentes do batalhão de voluntários, havia muitos negros fugidos que,

51 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 225-226.52 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p. 23-24.53 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88. São Paulo:Companhia das Letras, 2015, passarim54 SKIDMORE, Thomas E. op. cit., p. 24.

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tencionando obter a liberdade, apresentavam-se para o alistamento, uma vez que as

autoridades imperiais “legislaram oferecendo vantagens e benefícios para os

recrutas” e “alforria para os escravos que se apresentassem para a guerra” (fazendo

vista grossa para os escravizados fugidos), mas poucos foram aqueles que, de fato,

tiveram garantidas essas promessas.55

Pela narrativa, não podemos afirmar se Manuel foi escravizado, mas vimos

que foi um dos poucos que receberam algumas das vantagens prometidas. Contudo,

seguindo as linhas seguintes acerca da festa de Alves, notamos como o autor

ironiza o discurso abolicionista, evidenciando o seu silêncio quanto à permanência

do preconceito racial que tanto contribuiu para continuidade da desigualdade social

entre brancos e negros no Brasil após o fim da escravidão.

Alves foi solicitado por sua filha para que recitasse um poema. Este foi

justamente aquele registrado anteriormente no esboço do romance, voltado para a

denúncia das atrocidades vividas pelos escravizados: “As Vozes d’África” de Castro

Alves. Manuel se emocionou com a declamação, a qual serviu de estímulo para a

sua recordação de certos acontecimentos vivenciados nos campos de batalha.[...] O certo é que ia com Urbano... Um negro, alto, delgado, de pele maciae reluzente, vindo do Norte, onde, escravo, libertado, fora dado comosubstituto do filho do Barão de Cajaí...[...]. Num encontro de caminhos, umamoeda de ouro no chão atraíra a atenção de Urbano. Um soldado oriental,que a vira também, correra ao mesmo tempo que o nortista. O brasileiroagarrou-a antes do Uruguaio, que não se satisfazendo com essa prova depropriedade, alterou-o:

- És mio. Yo lo vi primeiro.- Qual teu o que! É minha, está aqui, e mostra a mão fechada.

O montivideano olhou Urbano de alto a baixo e, desdenhoso de lábios eombros, disse:

-Suyo... negro... Vá-te.Muitas ocasiões depois lembrou-se desse fato. Sempre que o Exércitoformado se lhe apresentava aos olhos, considerava um a um os homensque o compunham. Via-lhes os matizes da pele e com amargura recordavaa frase do gringo. Alguns milhares de suyos levavam pelos pantanais doParaguai o prestígio do Império e um enxame igual borrifava no país comsangue a sua riqueza! Faziam jus a um futuro melhor, então o gringo...56

As recordações de Manuel trazem elementos que contradizem, em parte, o

próprio discurso do narrador. O seu companheiro negro tinha ido à guerra por um

artifício utilizado por muitos senhores membros da Guarda Nacional para não ter

seus descendentes postos em risco de vida no combate: a sua substituição por um

55 BATISTA, Luís Cláudio. Guerra do Paraguai: peculiaridades do recrutamento. Orientador:Dennison de Oliveira. 2010. 51 f. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal doParaná. Curitiba, 2010, p. 15.56 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 228-229.

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escravizado.57 Além disso, a percepção da importância da presença dos

combatentes negros na Guerra do Paraguai se deu pelo próprio Manuel, um negro

que esteve no conflito e, mesmo liberto e exercendo um cargo público, estava

naquela festa atuando como um serviçal como muitos seus ascendentes estiveram

enquanto escravizados em anos anteriores.

Em complemento a isso, vale destacar a inversão de ativismo dos sujeitos

envolvidos na memória histórica da Guerra do Paraguai, marcada pelas narrativas

da época enaltecedoras dos chefes militares do Exército imperial. A recordação de

Manuel, ao invés de demonstrar aquela compreensão mútua entre senhores e

escravos acerca de suas necessidades destacada pelo narrador, representa a

compreensão maior por parte de um sujeito negro da exploração e discriminação a

que era submetida a população negra no Brasil.

Contudo, após essas lembranças advindas da declamação, o olhar de Manuel

se voltou novamente para Alves da Silva, imaginando-o como um derrubador de

senhores de fazenda com o uso de sua poesia.58 Lima, então, representando a

ilusão daquele discurso abolicionista que tanto seduziu Manuel, narra a forma

severa como Alves, após a festa, repreende a sua velha escrava por ainda não ter

aprontado o café matinal, ironizando: “Eram os restos – quem sabe? – das

inflamadas estâncias de Castro Alves”.59

Conforme Alavarce, a ironia atua nos textos literários, na maior parte das

vezes, “com o objetivo de suspender e burlar as prisões dos discursos monofônicos

e consequentemente autoritários”.60 Com esse recurso, o autor instaura no seu

discurso “a possibilidade”, [...], o ambivalente, a tensão e o elemento instável”.61 A

posição de Manuel com suas memórias ao lado da reverência a Alves da Silva e

este, com sua severidade em relação a sua escrava, apresentam aquela

instabilidade e tensão que o autor quis expressar na sua narrativa quanto ao tema

fim da escravidão.

Percebemos que o sentido presente no esboço desse romance para as

experiências dos negros, situadas entre expectativas de melhorias nas suas

57 BATISTA, Luís Cláudio. Guerra do Paraguai: peculiaridades do recrutamento. Orientador:Dennison de Oliveira. 2010. 51 f. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal doParaná. Curitiba, 2010, p. 14.58 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 229.59 Ibid., p. 230.60 ALAVARCE, Camila da Silva. A ironia e suas refrações: um estudo sobre a dissonância naparódia e no riso. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p. 12.61 Ibid., p. 14.

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condições e frustrações, foi mantido por Lima. As frustrações foram personificadas

na figura do Alves da Silva. A proximidade entre a composição de seu nome e a da

personagem representativa do Exército na Guerra do Paraguai o militar Luis Alves

de Lima e Silva (1803-1880), o Duque de Caxias, pode ser alusivo ao contraponto

que Lima pretendeu realizar na narrativa. Esse, pelo que até aqui foi exposto,

procurava atingir seu objetivo, traçado em 1903, de escrever a “História da

escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”.

José Murilo de Carvalho afirma que a medida de abolir a escravidão “atendeu

antes a uma necessidade política de preservar a ordem pública ameaçada pela fuga

em massa dos escravos e a uma necessidade econômica de atrair mão de obra livre

para as regiões cafeeiras”. O que levou as questões da incorporação dos ex-

escravizados à vida nacional e da identidade nacional não serem resolvidas e

tampouco ter iniciado seu enfrentamento.62 Lima, com esses projetos iniciais de

escrita, ensaiou narrativas na tentativa de levantar essa discussão, criando

protagonistas negros.

Uma tentativa que, naquele cenário muito marcado por preconceitos raciais e

sociais, fazia com que Lima hesitasse quanto à divulgação e continuidade de suas

narrativas. Em 12 de janeiro de 1905, registra uma ideia que o perseguia: escrever

um romance que contasse “a vida e o trabalho dos negros numa fazenda”.63

Contudo, resolve adiar a escrita, pois considerava que a obra, “uma espécie de

Germinal negro”, poderia levá-lo à glória literária ou a descomposturas.“Dirão que é negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidadesimplesmente aparente das coisas turbará todos os espíritos em meudesfavor; e eu, pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, comopoderei viver perseguido, amargurado, debicado?64

O outro motivo para o adiamento era a necessidade que sentia de uma

“pesquisa variada de impressões” para composição do romance, o qual desejava

que se tornasse a sua obra prima. Mesmo diante dessa insegurança, Lima continua

seus estudos sobre o tema da escravidão, pois considerava importante atingir seu

objetivo de reconhecimento no mundo das letras, prestando um “imenso serviço” a

sua gente “e a parte da raça” a que pertencia. Nessa trilha, encontramos Lima

Barreto na Biblioteca Nacional, tomando notas para seu romance em 21 de janeiro

62 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2014, p. 23-24.63 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 84.64 Ibid., loc.cit.

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de 1905. “Pedi maio de 1888; vindo-me, corri o mês, desde 1º até 16,65 onde recebi

confirmação do que pensava”,66 possivelmente, pelo período destacado,

informações relacionadas ao processo de assinatura da Lei Áurea e sua

repercussão nos dias seguintes.

Como ensaio, talvez, para aquela sua grande obra, Lima finalizou em 21 de

setembro de 1905 um esboço de uma peça intitulada “Os negros” cujo enredo

tratava de uma fuga de escravizados, forma de resistência dos negros que tanto

ameaçava a preservação da ordem pública almejada pelo Império brasileiro. Os

seus protagonistas eram sete negros que não possuíam nome e pertenciam a

gerações diferentes.

Lima constrói um diálogo entre esses personagens no qual são socializadas

algumas de suas recordações. “No recanto de um penhasco abrupto, aberto como

uma concha de mão, para o mar infinito, acocorados e sentados, há um grupo de

negros”.67 Nesse momento, enquanto decidiam qual rumo deviam tomar para

continuar a fuga, o 1º negro avista um navio que passa ao longe. “Como corre!”. A

sua observação serviu como um gatilho para a emergência de lembranças dos

outros negros acerca de sua saída do continente africano até suas experiências

como cativos no Brasil.3º NEGRO Os navios, que não nos vejam eles... Quando vim, da minhaterra, dentro deles... Que coisa! Era escuro, molhado... Estava solto eparecia que vinha amarrado pelo pescoço. Melhor vale a fazenda...2º NEGRO É longe a sua terra? Lá só há negro?

3º NEGRO Não sei... Não sei... Era pequeno. Andei uma porção de dias. [...].Se queria descanso, lá vinham uns homens com chicotes. Vínhamos muitos,de vários lugares. Cada qual falava uma língua. Não nos entediamos. Tododia, morriam dois, quatro; e os urubus acompanhavam-nos sempre.- Minha terra... Não sei... Era perto de um rio, muito largo, como o mar, masroncava mais... Sim! Tudo era negro lá... Um dia, houve um grande estrépito,barulho, tiros e quando dei acordo de mim estava atado, amarrado e...marchei... Não sei... Não sei... [...]NEGRA VELHA E eu não sei nada mais donde vim. [...] Do que me lembrofoi do desembarque. [...] Fomos para o barracão. [...] Depois vieram homens.Escolheram dentre nós alguns. Experimentavam os dentes, os braços,faziam abrir as pernas, examinavam a nós, com cuidado; e, ao fim,andávamos por muitas terras. Eu fui comprada pelo coronel [...].68

65 Pela forma como se reportou ao documento verificado e também pelo local onde foi consultá-lo – ABiblioteca Nacional até hoje possui um grande acervo de periódicos -, acreditamos que tenha sidouma coleção de jornais. Ele pede por mês e analisa os 16 primeiros dias de maio.66 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 90.67 Id. Contos completos de Lima Barreto. Organização: Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo:Companhia das Letras, 2010, p. 347.68 Ibid., p. 349.

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A narrativa é encerrada com a morte do negro mais velho e a proximidade

dos seus perseguidores. Nesse texto, Lima representa o impacto do processo de

escravização na rememoração do passado pelas suas vítimas. Isso novamente é

simbolizado num outro manuscrito incompleto de Lima Barreto. O conto “O escravo”

que, segundo a organizadora da coletânea Contos completos de Lima Barreto Lilia

Schwarcz, faz parte das anotações do autor sobre o tráfico negreiro.

O protagonista “forçava a memória”, mas “era em vão. As reminiscências que

lhe chegavam à consciência nevoentas, nubladas, confusas”. Buscava, então,

perguntar aos mais velhos “coisas de sua terra”. O escravo obtinha poucas

informações. Sua nação era “Cabinda d’água doce” na qual havia “bois, gatos” e lá

as casas eram de palha. Contudo, estas informações do pai Mathias não o

contentavam e procurava indagar à sinhá-moça, “que achava notícias de matéria.

Guiava-o numa interrogação”.69

Lima sinaliza nesse texto indícios que pudessem trazer à tona parte da

história de negros escravizados, como o recurso da oralidade e recortes de jornais,

estes muito comuns na época da escravidão que traziam informações sobre negros

fugidos com suas identificações como origem e seu senhor. Essas dificuldades em

encontrar fontes que pudessem elucidar mais o passado dos negros escravizados

foram também representadas num outro conto incompleto, intitulado “Babá”, bem

como a problematização do desenraizamento provocado pela escravidão que

tornava mais complexa a construção das identidades desses sujeitos.

Pelas datas presentes nas folhas timbradas do Ministério da Guerra em cujos

versos Lima escreveu o conto, a narrativa foi composta pelos anos de 1903 ou

1904.70 O narrador desse conto era um médico interino do hospital da Misericórdia, o

qual se comoveu com uma paciente negra africana, idosa e moribunda. Essa

mulher lhe despertou a curiosidade, levando-o a indagar sobre as suas origens

A partir de seu diálogo com aquela senhora, conseguiu algumas informações

acerca de sua origem africana e sua trajetória no Brasil enquanto escravizada. Ela

contou que era da nação Moçambique e viera muito jovem para o Brasil onde teve

como primeiro senhor “os Carvalho de S. Gonçalo”. De modo desconexo, afirmou

que havia conhecido Dom João VI, narrando sobre ele “uma ou outra coisa

69 BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto. Organização: Lilia Moritz Schwarcz. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2010, p. 590-591.70 Ibid., p. 699.

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avaramente guardada naquela estragada memória”. Ainda disse ao médico que teve

filhos de várias cores, sendo que uns morreram e de outros não tinha mais notícias,

“pois que as vicissitudes do cativeiro os transportava aos quatro cantos do Brasil”.71

Antes de chegar enferma naquele hospital, vivia há anos com uma velha

senhora, viúva de seu último senhor, “a quem há poucos dias ela vira morrer [...]”.

Essas lembranças da preta velha que se chamava Quirina, fizeram o médico ficar

pensativo quando foi repousar à noite no quarto destinado aos médicos do hospital.

Resolveu, então, voltar ao leito de Quirina. Ficaram um tempo se olhando até que

Quirina se pôs em pé sobre o leito e, com “uma voz dolorosa, cheia de modulações

de mágoa e ódio, às vezes, outras de desconsolo e pranto, foi solenemente dizendo

em frase que não lhe era isso” que contou ao médico.72 Ou seja, como não

conseguir relembrar seu passado, Quirina havia reunido reminiscências de

experiências comuns a muitas negras escravizadas e inventou uma história para si.

Não sabemos, infelizmente, o desfecho desse conto, pois Lima só o escreveu até

essa confissão de Quirina.

Podemos perceber que essas narrativas, pelas datas, foram produzidas

paralelamente à elaboração do início do seu primeiro romance que veio a ser

publicado. Recordações do escrivão Isaías Caminha possui um prefácio datado de

12 de junho de 190573 e seu enredo apresenta relações com aquelas dificuldades

representadas pelo autor nas narrativas incompletas sobre os negros escravizados.

Lima criou para aquele romance um protagonista negro que narra sua própria

trajetória na cidade do Rio de Janeiro, marcada pela experiência dos preconceitos

racial e social.

Diante da carência de fontes acerca do passado dos negros que elucidassem

as suas condições de existência bem como as suas origens, Lima sugeriu no

romance que as suas vozes fossem consideradas (memória oral) a fim de

desconstruir certos discursos que preconizavam a inferioridade da população

afrodescendente. Estes discursos, por sua vez, foram objetos de uma outra parte

dos estudos barretianos. Num outro manuscrito incompleto, “O peso da ciência”,

sem data de escrita identificada, Lima iniciou uma breve discussão sobre como o

71 BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto. Organização: Lilia Moritz Schwarcz. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2010, p. 563-56472 Ibid, p. 564-565.73 Id. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?]., p. 11.

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pensamento racialista estava presente em certas narrativas históricas, sendo um

empecilho para o conhecimento do passado dos negros no Brasil.

O narrador em primeira pessoa desse conto descreve as aulas de História de

um professor negro.[...] embrulhava com reminiscência sua, e acabava pessimisticamente comoremarques à Republica, ao Brasil, às coisas e aos seus homens. Perdidoum quarto de hora com isso, meu saudoso professor encetava a lição. Foipela quarta ou quinta lição que eu me prendi a ele. Tratava-se da divisão deraça.74

Notamos como esse professor procurava trazer algo que vivenciara para

relacionar com o passado que iria ser estudado pelos seus alunos. E nisso, como

nos outros textos de Lima acima destacados, acabava não conseguindo vislumbrar

um horizonte muito promissor para o país, especialmente para a parcela de sua

população negra. Algo que ficou ainda mais claro quando o aluno-narrador,

identificando-se com o professor, afirmou que se prendeu mais ao professor quando

este tratou da teoria das raças.

Infelizmente, o texto ficou incompleto, mas podemos imaginar o quanto deve

ter sido desafiador e incômodo para aquele professor negro abordar o tema da

“quarta ou quinta lição”. Um desafio que Lima procurou inserir nos seus estudos e

produção literária como veremos a seguir ao enveredarmos pela sua perspectiva em

relação à intelectualidade e ao pensamento científico de sua época.

1.3O cientificismo e a intelectualidade sob a perspectiva barretiana

1.3.1 “Um bando de ideias novas” no Brasil

Todorov considera o racialismo como “um movimento de ideias nascido na

Europa ocidental, cujo grande período vai de meados do século XVIII a meados

do século XX”.75 Seu desenvolvimento se deu à sombra da crença na

superioridade da ciência sobre todas as outras formas de compreensão humana

da realidade. A obra História natural (Histoire naturelle) de Georges-Louis

74 BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto. Organização: Lilia Moritz Schwarcz. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2010, p. 566.75 TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Tradução:Sérgio Goes de Paula. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 107.

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Leclerc , o conde de Buffon (1707-1788), pode ser visto como o ponto de partida

para a divulgação desse ideário.

Esse trabalho, com uma síntese de numerosos relatos de viagem dos

séculos XVII e XVIII, teve “uma influência decisiva sobre a literatura posterior,

tanto por suas qualidades de estilo quanto por sua autoridade científica. O

naturalista francês, em linhas gerais, defendeu a relação entre a cor da pele e o

nível de civilização.76 Os brancos e a civilização européia estavam, segundo o

naturalista, no topo da hierarquia das raças e nações.

Com o decorrer do tempo, a doutrina racialista foi se configurando como

um conjunto coerente de proposições. A primeira assegurava a realidade das

raças, estabelecendo que existia entre as raças humanas a mesma distância

encontrada entre o cavalo e o asno, o que levava considerar o cruzamento racial

como condenável. A segunda estabelecia uma relação direta entre caracteres

físicos e morais, determinando uma correspondência entre a divisão do mundo

entre raças e a divisão entre culturas. O terceiro aspecto desse pensamento

considerava, de maneira determinista, que o “comportamento do indivíduo

depende, em grande medida do grupo racial-cultural a que pertence”,

constituindo-se como uma doutrina de psicologia coletiva hostil à idéia de arbítrio

do indivíduo. Uma quarta premissa defendia que existiam raças superiores às

outras, o que nos leva para sua última proposição que era uma “política baseada

no saber”, a qual, por sua vez, implica no desenvolvimento de uma política que

“ponha o mundo em harmonia” com a ordem acima descrita, juntando a doutrina

racialista ao racismo.77

Esse determinismo evolucionista presente no racialismo, amplamente

utilizado pela política imperialista europeia, penetrou no Brasil a partir dos anos

1870, tornando-se uma referência para explicação das suas diferenças internas.Adotando uma espécie de “imperialismo interno”, o país passava de objetoa sujeito das explicações, ao mesmo tempo que se faziam das diferençassociais variações raciais. Os mesmos modelos que explicavam o atrasobrasileiro em relação ao mundo social passavam a justificar novas formasde inferioridade. Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos –“classes perigosas” a partir de então – nas palavras de Silvio Romerotransformaram-se em “objetos de sciencia” (prefácio a Rodrigues, 1933/88).

76 TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Tradução:Sérgio Goes de Paula. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 199., p. 113-121.77 Ibid, p. 108-111.

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Era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavaminferioridades.78

Muitos intelectuais brasileiros estavam abertos, nesse momento, às

influências de autores como Spencer, Darwin, Ranke, Ratzel, Comte, Taine,

Renan e Le Bon.79 A leitura desses pensadores europeus fez com que as teorias

do evolucionismo social, positivismo, naturalismo, social-darwinismo se

difundissem a partir dos anos 1870, “tendo como horizonte de referência o

debate sobre os fundamentos de uma cultura nacional em oposição aos legados

metropolitanos e à origem colonial”.80

Essa adoção de ideias ocorreu, entretanto, de maneira crítica e seletiva81,

uma vez que algumas premissas daquelas teorias não corroboravam as

expectativas da geração de 1870, a qual vislumbrava a sua atuação política e

intelectual como guia para a elevação do Brasil à categoria de nação civilizada. O

movimento intelectual da geração de 1870 foi um fenômeno internacional. Tanto

na Europa como na América se apresentou como uma reação “às formas

intelectuais e políticas da sociedade tradicional: ao romantismo e ao catolicismo,

sobretudo.82

No Brasil, durante a crise do seu Império, essa geração, composta de

sujeitos que não compartilhavam uma mesma origem social, experimentava uma

situação de marginalização política e se articulava em prol da reforma do status

quo usando um conjunto de recursos, dentre os quais um repertório intelectual83.

Além da apropriação seletiva de elementos teóricos europeus com os quais

criticou a tradição imperial e reinterpretou a história nacional, a geração de 1870

também manteve diálogo com aquela tradição como, por exemplo, a preservação

78 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial noBrasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 28.79 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC. 9 ed. ampliada. Rio deJaneiro: Editora FGV, 2007, p. 89.80 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit., p. 2881 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914).São Paulo: Companhia das Letras, 2000.82 ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo:Paz e Terra, 2002, p. 331.83 Angela Alonso utiliza o conceito de repertório de Swindler. Este autor considera repertório como umconjunto dos recursos intelectuais disponível numa sociedade num dado período histórico. Nãoimporta a consistência teórica de seus elementos componentes mas que possuam uma orientaçãogeral que permita aos agentes transformá-los em instrumentos de luta numa conjuntura (SALLUN JR,Brasílio. Apresentação. In: ALONSO, Angela. Op. cit., p. 18).

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de traços românticos, especialmente na oratória e a incorporação da preferência

da elite imperial pela reforma em vez de revolução, mantendo a ordem social.84

Os elementos desse repertório, que tiveram que ser revistos pela

intelectualidade brasileira da época, diziam respeito a uma visão que estabelecia

para o Brasil uma imagem de nação em processo de degeneração. Este se dava

pelas características de seu meio e da mistura de raças que compunha sua

sociedade. Um dos autores europeus que tinham uma perspectiva pessimista

quanto ao Brasil foi o inglês Thomas Buckle (1821-1862).

Buckle, adepto da teoria do determinismo climático, dedicou dez páginas

de sua obra História da Civilização na Inglaterra à discussão da situação

brasileira (mesmo sem ter vindo ao Brasil). As suas conclusões indicavam que o

homem brasileiro estava condenado à decadência devido a sua abundante

natureza local, a qual deixava pouco espaço para o homem e suas obras. Para

esse autor, havia no Brasil um “contraste entre a grandiosidade do mundo

externo e a pequenez do interno”, o que deixava a mente da população local

acovardada e, “sem a ajuda estrangeira”, estaria fadada à regressão.85

Quanto ao determinismo racial, os escritos que tiveram grande impacto no

Brasil foram os de Artur de Gobineau (1816-1882), José Ingenieros (1877-1925),

Louis Couty (1854-1884) e Louis Agassiz (1807-1873). O primeiro, ao contrário

de Buckle, visitou o Brasil e, em seu Essai sur l’inégalité des races humaines

(1854), asseverou a decadência da civilização como resultado da mistura de

sangue e do abastardamento das raças superiores e puras, fundamentos das

elites.A miscigenação estaria colocando em risco as nacionalidades pelaintrodução de elementos “heterogêneos”, capazes de destruir suaidentidade. A incapacidade das raças não-brancas não teria como sercorrigida pela educação. Apenas a mestiçagem poderia elevarintelectualmente as raças inferiores, com o inconveniente de “rebaixar” asetnias superiores participantes da mistura. Ao identificar a civilização àhistória e às raças brancas, Gobineau se mostra descrente quanto ao futurodos países latino-americanos, onde os cruzamentos raciais e a degradaçãodos europeus trariam de modo inevitável, a decadência [...].86

84 ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo:Paz e Terra, 2002., p. 51-96; p. 332-333.85 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial noBrasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 36.86 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914).São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 56.

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O sociólogo argentino Ingenieros também teve grande influência sobre a

elite brasileira com seu pensamento que defendia a irremediável inferioridade

racial dos não-brancos, o qual foi seguido pelo francês Couty. Este, interessado

especialmente pelas províncias cafeeiras do Centro do Brasil, colaborou com

“reformadores brasileiros, com o visconde de Taunay e outros líderes da Imperial

Sociedade para a imigração”. Em 1884, publicou um livro acerca do Brasil sob o

título Ebauches Sociologiques no qual afirmou que a colonização pelos escravos

africanos foi o fator de todos os males do Brasil, indicando que a única solução

seria a colonização por homens livres da Europa.87

Já Agassiz, que veio ao Brasil em 1865 numa expedição científica,

publicou um relato de viagem com sua esposa três anos depois no qual

sentenciava a deterioração que passava o país em virtude do amálgama de

raças, “mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo”. Isso estaria

excluindo as “melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um

tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental”.88

Todo esse pessimismo propagado por autores reconhecidos

internacionalmente, fez com que um dos grandes expoentes da geração de 1870

realizasse uma leitura desse “bando de ideias novas”89, como ele chamou

aquelas doutrinas deterministas. A fim de, respaldado pelo próprio cientificismo,

reverter a imagem negativa do Brasil, vislumbrando um horizonte de expectativa

no qual a nação brasileira se tornaria pertencente ao rol das nações civilizadas, o

intelectual sergipano Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851-1914)

propôs alternativas para a saída do seu país daquela degradação tão anunciada.

Em sua História da literatura brasileira, publicada em 1888, Romero

dedicou o capítulo III do Tomo I à “Filosofia da História de Buckle e o Atraso do

Povo Brasileiro”. As assertivas de Buckle sobre o Brasil foram em parte aceitas

pelo crítico literário sergipano, recomendando até a sua meditação “por todos os

brasileiros”. Mas, se em sentido geral, são verdadeiras, apresentavam “mais de

87 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p. 47.88 Ibid., p. 47-48.89 ROMERO apud GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte:Fino Traço, 2009, p. 93.

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uma inexatidão”.90 Após discorrer sobre as inexatidões do historiador britânico,

Romero considerou:Buckle é verdadeiro na pintura que faz de nosso atraso, não nadeterminação dos seus fatores.Estes, a meu ver, são primários ou naturais, secundários ou étnicos eterciários ou morais. Os principais daqueles vêm a ser o excessivo calor,ajudado pelas secas na maior parte do país; as chuvas torrenciais no valordo Amazonas, além do intensíssimo calor; a falta de grandes vias fluviaisnas províncias entre o S. Francisco e o Parnaíba; as febres de mau caráterreinantes na costa. O mais notável dos secundários é a incapacidaderelativa das três raças que constituíram a população do país. Os últimos osfatores históricos chamados política, legislação, usos, costumes, que sãoefeitos que depois atuam também como causas.[...]Um país pode possuir um clima melhor que o outro, e ser menos civilizado.Provam o caso a Espanha e a Alemanha. É que para explicar o andar eprogresso da civilização de hoje é mister pesar as três categorias de fatoresque deixei enumerados.91

Notamos que Romero, sem desconsiderar o fator meio, elencou a

miscigenação como o fator mais importante na sua análise do Brasil. A sua

função no interior do seu pensamento revelou-se um grande paradoxo que

atravessa toda a sua obra.[...] Por um lado, o autor acreditou que as nações possuíam uma essênciacultural e popular, e a aludida essência brasileira estaria na mestiçagemgerada pela colonização lusitana nos trópicos. Por outro lado, essa“essência morena” deveria embranquecer-se, mas sem romper os vínculoscom seu passado histórico fundador. A miscigenação, além de encarnar opassado étnico e cultural do país, tinha um papel a desempenhar no futuro:o de contribuir para o branqueamento da população.[...]O autor desautorizou qualquer leitura da realidade brasileira que negasse aimportância capital da mestiçagem na formação histórica e cultural do país.A aceitação das teorias da desigualdade das raças não o levou ao desprezopelas “raças inferiores” e, menos ainda, à percepção da miscigenação comodegenerativa, como foi recorrente. Aqui se percebe, em toda a intensidade,a tensão interna de sua obra, entre a autoridade da Ciência que condena amestiçagem e a militância nacionalista, empenhada em aceitar essamestiçagem como uma realidade histórica inexorável.92

Essa relação tensa da intelectualidade com aquele ideário cientificizante,

como veremos a seguir, também fez parte do pensamento de Lima Barreto. Este

estudou as suas bases e não perdeu a oportunidade de, nos seus escritos,

assinalar o que considerava negativo desse ideário como também se serviu de

algumas de suas premissas para sua produção literária.

90 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Organização: Luiz Antonio Barreto. Tomo I. Riode Janeiro: Imago Ed.; Aracaju: UFS, 2001 (Edição comemorativa do Sesquicentenário denascimento de Sílvio Romero), p. 8591 Ibid., p. 88-89.92 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Sílvio Romero, hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005,p. 74-75.

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1.3.2 Lima Barreto e o “bando de ideias novas”

“[...] Um dos traços do meu espírito é a curiosidade

pelas criações humanas. Não se me dá que sejam

verdadeiras; o principal, para o meu espírito, é o

esforço da inteligência que elas representam e que

eu amo. Leio-as, compreendo-as até o ponto que

quero, depois fecho livros – certo de que o mundo

continua ainda...”

(Lima Barreto, 1905)

Essa busca de Lima Barreto pela compreensão do esforço de muitos

pensadores em explicar a realidade já estava presente naqueles seus primeiros

projetos de estudo registrados em 1903. Após traçar o seu objetivo de escrever a

“História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”

e anotar algumas considerações sobre seu cotidiano, o jovem Lima elaborou um

programa de estudos filosóficos.

Intitulado “Curso de filosofia feito por Afonso Henriques de Lima Barreto

para Afonso Henriques de Lima Barreto”, tinha como referências “artigos da

Grande Encyclopédie Française Du Siécle XIXième, outros dicionários e livros

fáceis de se obter”. O curso, tão personalizado, seria conduzido[...] segundo a história do pensamento filosófico, devendo cada época serrepresentada pela opinião dos seus notáveis filósofos. Na passagem deuma época para outra, constituirá o grande objetivo do curso estabelecer aligação dos dois pensamentos, as suas modificações e o que se eliminou deum e porque essa eliminação foi feita, assim com as reações na ciência ena arte.93

Delimitado o objetivo do curso, Lima enumerou as suas partes e

respectivos conteúdos. Em seguida, fez anotações sobre a primeira parte do

programa que dizia respeito ao objeto da Filosofia, baseado num artigo do

filósofo francês e professor da Universidade de Sorbonne Victor Delbos (1862-

1916).

93 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 35.

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[...] O que define uma ciência não é o objeto que ela considera, é o ponto devista em que ele o considera. Se se propõe definir uma ciência pelo seuobjeto, é preciso dizer-se que esse objeto não é tal qual existe nas coisas,mas tal qual ele é para a ciência. A ciência vem a ser, portanto, um ponto devista sobre as coisas. Segue-se daí, que, sendo as ciências extensivassobre as coisas, a filosofia a bom título pode constituir um conhecimento [...].A unidade relativa das ciências, a conexão entre a inteligência e as coisas,a natureza dos princípios científicos, a validade deles, a legitimidade eilegitimidade das interrogações que apõem às ciências, e que, às vezes,são postas por elas mesmas nem respondendo à solução, constituem oobjeto da filosofia, donde partirá uma concepção rígida das coisas e da vida,e da sua harmonia geral.É mais ou menos o artigo de Victor Delbos.94

Mais adiante acerca do método filosófico, destacou:[...] Usa abstração, da determinação, da síntese e da indução e da dedução.Mas, mesmo assim, o seu método possui caracteres específicos, tanto maisque o filósofo sabe que, além de tais processos de chegar à verdade, ainteligência possui outros que o cientista não admite nem emprega, osentimento, a intuição.95

As escolhas de Lima para a montagem de seu curso sinalizam uma

posição oposta aos ditames deterministas e evolucionistas do cientificismo

predominante na época em que realizava esses estudos. Não temos nesses

trechos destacados de seu curso referências a um determinado aspecto pelo

qual seria conduzido o pensamento filosófico num sentido progressivo e

cumulativo. A sua preocupação é compreender como se dão as mudanças no

pensamento filosófico, o que não implicava o abandono absoluto de

conhecimentos de gerações anteriores. Notamos nessas anotações, um Lima

atento tanto às mudanças quanto às permanências no pensamento filosófico ao

longo tempo.

O autor assumiu, nesse programa de estudos filosóficos, uma perspectiva

histórica, contrariando a visão cientificista pela qual a compreensão da realidade

era reduzida a suas leis, conceitos e informações objetivas. O seu desejo de,

durante desse estudo, perceber os motivos que levaram certos pensamentos a

serem eliminados, esquecidos e outros alçados, numa dada época, a referência

para a explicação da realidade, traz uma evidência importante para o

entendimento da forma como Lima desnaturaliza a concepção de ciência como

único conhecimento possível para o avanço da sociedade.

Uma perspectiva que foi se aguçando no decorrer do desenvolvimento de

sua escrita. Sevcenko, analisando alguns aspectos da linguagem de Lima

94 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 37-38.95 Ibid., p. 38.

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Barreto, percebeu a presença de registros históricos que o autor entremeia em

seus escritos. Ao lado de uma aguçada precisão cronológica, Sevcenko

identificou em Lima também uma visão “relativista, ética e voluntarista”.96

[...] Essa perspectiva peculiar revela também a partir de suas discussõessobre filosofia da história. Lima Barreto possuía uma visão extremamenteclara dos limites e das propriedades do saber humano, em particular dogrande mito de seu tempo – a ciência. Sua compreensão do processo deconhecimento revela um fundo de kantismo, talvez traduzido deSchopenhauer, de quem era leitor assíduo, que compreende todo o sabercomo mera representação subjetiva da consciência. Resulta daí umrelativismo definitivo, que rejeita a priori qualquer interpretação deterministaou naturalista, de base animista, que pretenda descortinar nocomportamento humano ou nos processos históricos a ação de leis naturaisimponderáveis. [...].97

Nesse sentido, o olhar de Barreto estaria voltado para as ressonâncias do

pensamento cientificista na construção de interpretações sobre a realidade

brasileira. Segundo Schwarcz, a literatura, a propósito, teve um papel significativo

para a entrada da moda cientificista no Brasil.[...] os romances naturalistas da época fariam larga utilização e divulgaçãodos modelos científicos deterministas. Essa é a época em que “a ciênciaserve de rótulo ao literato” [...], o qual toma mais e mais exterioridade dopensamento científico a fim de garantir uma suposta “objetividade literária”.Com efeito, a moda cientificista entra no país por meio da literatura e não daciência diretamente. As personagens serão condicionadas pelas máximasdeterministas, os enredos terão seu conteúdo determinado pelos princípiosde Darwin e Spencer, ou pelas conclusões pessimistas das teoriascientíficas raciais da época: Lenita, heroína de A carne, será descrita como“um Hebert Spencer de saias” (Ribeiro, 1888:67); o naturalista Hartt é citadoem O Ateneu (Pompeia, 1888); e a obra A esfinge termina com um discursoque nada acrescenta ao romance central, já que é, antes, um tratado sobrea “concorrência e a luta pela correção de uma imperfeição natural” da nação(Peixoto, 1911:473). Com efeito, modelos e teorias ganhavam largadivulgação por meio de heróis e enredos dessa literatura, que pareciamguardar mais respeito às máximas científicas evolutivas do que àimaginação do autor.98

Aquela versão incompleta de Clara dos Anjos (1904) nos remete, em certos

trechos, a um Lima Barreto ensaiando uma literatura que justamente apontaria a

circulação daquelas ideias cientificistas no Brasil da virada do século XIX para o XX.

Em vez de tomar as máximas cientificistas como constituintes de seu enredo,

divulgando-as como os literatos naturalistas, Lima procurou incitar uma reflexão no

seu leitor acerca de como aquele ideário repercutiria na forma de se pensar a

96 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 193.97 Ibid, p. loc.cit.98 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial noBrasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 32.

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sociedade brasileira. Encontramos no capítulo II, diálogos entre um médico, um

engenheiro e um advogado que nos direcionam para esse raciocínio.

Esses sujeitos, naquele contexto em que se tentava criar uma imagem

moderna para o Brasil, eram vistos como “categorias de doutores responsáveis pelo

progresso” do país.99 Dentre os temas sobre os quais versavam aqueles

personagens representantes da civilização no país estava o do higienismo,

especificamente discutiam sobre a identificação de possíveis doenças entre futuros

casais.

A conversa se dava na residência do Alves da Silva. Um de seus convidados,

o bacharel em Direito, doutor Alfredo retrucou o pensamento do anfitrião que

considerava, a fim de evitar a surpresa de possíveis doenças, que o pai da moça

fizesse uma pesquisa da “limpeza da família do noivo”, descobrindo seus costumes

íntimos.100 Para Alfredo, isso era fácil de ser burlado.

O “remédio” para isso, seria estatuir uma legislação que obrigasse os noivos a

“apresentarem certidões comprobativas de que não estão afetados de moléstias

transmissíveis”, o que foi considerado plausível pelo médico, o doutor Gomensoro.

Já Boaventura, engenheiro positivista caracterizado pelo narrador como de

“conversa desagradável” e “espírito rígido” falando “por dogmas”101, via na proposta

uma exorbitância do Estado e, que, “na época de transição em que estávamos”,

aquela verificação deveria ser feita pelas famílias.102.

Percebemos nesse início do diálogo, as marcas do momento em que Lima

escrevia esse texto, pois ainda se discutia as ações do Estado que promoveram a

vacinação obrigatória contra a varíola com a invasão de residências das camadas

populares, culminando com a chamada Revolta da Vacina. Lima já se mostrava

atento nessa época à entrada do ideário cientificista na cidade do Rio de Janeiro que

se fazia sentir “diretamente a partir da adoção de grandes programas de

higienização e saneamento”. Estes tratavam de “trazer uma nova racionalidade

99 GUEDES, Amadeu da Silva. Diálogos de Lima Barreto com o cientificismo em OsBruzundangas e O Subterrâneo do Morro do Castelo. Orientador: Luis Filipe Ribeiro. 2012. 252 f.Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) - Programa de Pós-Graduação em Letras daUniversidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 117.100 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 242-243.101 Ibid., p. 241.102 Ibid., p. 243.

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científica para os abarrotados centros urbanos” e implementar projetos de cunho

eugênico que pretendiam eliminar a doença, separar a loucura e a pobreza”.103

Retornando à conversa, a discussão se acalora. Boaventura afirma que

quando atingisse “o regime normal, em plena sociocracia104 – então sim! – a

situação regular-se-ia perfeitamente com os “casamentos castos”.105 Essa opinião

gerou uma grande gargalhada dos ouvintes e o doutor Gomensoro questiona o

positivista se, “enquanto não vem essa época normal”, o governo teria que permitir

“esse contínuo apodrecimento da raça”.106 Boaventura, por sua vez, discorre sobre o

papel do Estado, defendendo a sua incumbência, para manter a ordem, de garantir

plenamente a propriedade.

Como o tempo da narrativa criada por Barreto estava situado num período

anterior à abolição da escravidão, a defesa da propriedade pelo Estado apresentada

por Boaventura fez com que Alfredo o indagasse, então, se ele concluiria, pelo seu

pensamento, que a escravidão deveria ser mantida. O positivista, seguindo as

máximas de sua filosofia, apontou a continuidade da escravidão no Brasil como um

retrocesso e arrematou:- Não sou abolicionista nem escravocrata, como não sou nem a favor ounem contra os eclipses. Os acontecimentos sociais regidos como quaisqueroutros por leis invariáveis, desvendados pelo maior dos filósofos de sempre,realizam-se independentemente da nossa vontade. É em vão querer ou nãoquerer, respondeu o alferes.107

Boaventura desconsidera as razões econômicas, sociais, políticas e culturais

que ainda mantinham a escravidão no Brasil para defender um pensamento

filosófico elaborado num contexto europeu. O positivismo desse personagem

enquadrava a realidade nacional numa linha evolutiva. Desse modo,

inexoravelmente, a escravidão pertencia a um estágio da civilização brasileira que

estava por ser superada pela chegada do seguinte que era superior.

Esse pensamento não oferecia uma explicação plausível para as situações

vivenciadas pelos negros brasileiros. Algo que o narrador barretiano já salientava ao

103 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial noBrasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 34.104 Segundo o filósofo positivista Auguste Comte, a sociocracia seria um sistema de governo baseadonas decisões tomadas a partir da opinião de indivíduos iguais integrantes de uma estruturaorganizacional semelhante a um organismo vivo. Para maiores detalhes, Cf. GIANNOTI, José Arthur(org.). Comte. Traduções: José Arthur Giannoti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978(Coleção Os pensadores).105 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 243.106 Ibid., p. 244.107 Ibid, p. 245.

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apresentar, em linhas anteriores, aquelas recordações de Manoel dos Anjos da sua

experiência na Guerra do Paraguai e o tratamento de Alves da Silva dado a sua

escrava velha. Lima, ao elaborar essas cenas nessa primeira versão de Clara dos

Anjos, representou como o negro (Manoel dos Anjos), mesmo sendo um soldado

brasileiro, sofreu discriminação racial de um outro soldado aliado (um uruguaio). Já

na segunda cena, o suposto abolicionista Alves da Silva, declamador de poema de

Castro Alves, trata sua escrava velha de maneira extremamente rude e autoritária.

Por essas cenas, o autor representa um dos grandes empecilhos para a

inserção do negro no Brasil mesmo com uma possível abolição da escravidão: a

persistência do preconceito racial e do autoritarismo. Estes criaram raízes na

sociedade brasileira desde o período colonial e durante os mais de três séculos de

escravismo e não seriam extirpados do país por uma mera aplicação de

pressupostos filosóficos elaborados em outro contexto sociocultural.

Em um outro diálogo criado por Lima nesse mesmo romance, também fica

clara a intenção do autor em apresentar os limites das ideias que circulavam na

época e como elas afetavam as práticas sociais de muitos sujeitos em relação à

população negra. Num encontro entre o médico Gomensoro e o advogado Alfredo

na rua e depois numa viagem de bonde, esses personagens começam a conversar

sobre a validade do pensamento de Boaventura, expresso no diálogo acima. Após

uma parada inesperada do bonde devido a um caminhão que estava descarregando

uns fardos numa loja e fechando a sua passagem, o bacharel em Direito, irritado

com a situação, começa a criticar a cidade: “[...] Uma cidade feia, suja, esburacada,

sem estética, sem parques. Um relaxamento... maldita colônia...108

Diante do silêncio e constrangimento do médico, esbraveja: “- Sabe o que nos

matou?” Como o médico não soube responder, disse-lhe, categoricamente: “- Foi o

negro”. A partir disso, tenta explicar a “teoria dos árias” a Gomensoro e este diz

apenas que aquela é uma hipótese. Ainda mais enervado, Alfredo afirma que a

teoria era uma “conquista da ciência”. Segundo o bacharel em Direito, as migrações

sucessivas de uma raça surgida na Ásia Central e denominada de ária foram comoraios de sol [...] que – emitidos do plateau de Bactriana – seguiram vetorese pararam aqui, ali, pela Europa, pela Ásia, ao norte, ao noroeste, a oeste ea sul, com os nomes de lituanos, eslavos, germanos, celtas, gregos, latinos,persas e hindus [...]. O que caracteriza o ária é a capacidade para a

108 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 252.

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civilização. Rapidamente evoluíram e vão ficando senhores do mundo.[...]109

O doutor Gomensoro, depois de tão detalhada explicação da teoria dos

árias110, exclamou: “- Bonito!”. E o doutor Alfredo continuou: “- Do grego-latino [...],

do iraniano e do ramo hindu surgiram civilizações poderosas, o que...” O médico o

rebate, questionando se dos lituanos, eslavos, germanos e celtas, também citados

na lista acima dos seguidores dos raios de sol dos árias, não poderiam surgir

civilizações como aquelas.111 A partir disso, Alfredo começa a se atrapalhar na

contra-argumentação, deixando o caminho livre para mais questionamentos de

Gomensoro.

O mesmo interrompe o debate e resolve abordar um passageiro para lhe

perguntar sobre sua saúde. Com uma postura tão determinista quanto a do seu

colega Alfredo ao defender a “teoria dos árias”, baseado apenas na observação de

suas características físicas e em questionamentos bem superficiais sobre o que

sentia aquele sujeito, receita um medicamento: “[...] Tome Quinino [...]”.

“- É um caso de paludismo hereditário, perfeito, tachado. Aquelas “orelhas de

abano” não negam. O doutor Polyenesky, de Varsóvia, verificou seiscentos e vinte e

sete casos idênticos na Bessarábia, e eu...112 Finda a viagem, cada um segue para

seus compromissos profissionais e suas limitações e contradições de pensamento.

Essa postura crítica de Lima Barreto frente o cientificismo continuou em seus

diversos escritos ao longo de sua trajetória. No prefácio do seu primeiro romance

publicado, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, temos uma “resposta” de Lima

ao modo como o racialismo era discutido e assimilado pela intelectualidade brasileira.

Nesse texto, datado de 12 de julho de 1905, como se fosse o humilde escrivão da

coletoria do Espírito Santo, apontou o motivo da escrita de suas recordações da

época em que viveu no Rio de Janeiro:Eu me lembrei de escrever estas recordações, há dois anos, quando, umdia, por acaso, agarrei um fascículo de uma revista nacional, esquecidasobre o sofá de minha sala humilde, pelo promotor da comarca.

109 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, 254.110 Lima Barreto faz alusão ao arianismo. O termo raça ariana foi utilizado pela primeira vez peloracialista francês conde Arthur de Gobineau (1806-1882) que, baseado na teoria de Friedrich vonShlegel, assegurava a existência de um povo antigo, os ariannos, originários da Ásia central. Essepovo migrou para o sul e para o oeste, atingindo a Europa e alguns territórios hoje pertencentes aoAfeganistão, à Índia e ao Irã. Para Gobineau, todos os povos que descenderam dos arianosconstituem uma “raça pura” e superior às demais.111 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 254-255.112 Ibid, p. 256.

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Nela um dos seus colaboradores fazia multiplicadas consideraçõesdesfavoráveis à natureza da inteligência das pessoas do meu nascimento,notando a sua brilhante pujança nas primeiras idades, desmentida maistarde, na madureza, com a fraqueza dos produtos, quando os havia, ouregra em regra geral, pela ausência deles.Li-o a primeira vez com ódio, tive desejo de rasgar as páginas e escreveralgumas verrinas contra o autor.Considerei melhor e vi que verrinas nada adiantam, não destroem; se,acaso, conseguem afugentar, magoar o adversário, os argumentos desteficam vivos, de pé.O melhor pensei, seria opor argumentos a argumentos, pois se uns nãodestruíssem o outro, ficariam ambos face a face, à mão de adeptos de um ede outro partido.113

Passou, em seguida, a relembrar sua vida desde o nascimento até a

mocidade, chegando a concordar com o “autor do escrito”, objeto de sua crítica.

Contudo, ao analisar mais detidamente os fatos de seu passado (em muitos

aspectos, estes eram parecidos com os da trajetória do próprio Lima Barreto),

conclui que, quando se dispunha “a tomar na vida o lugar que parecia de” seu “dever

ocupar”, encontrava “hostilidade, estúpida má vontade” lhe vinha ao encontro,

levando-o ao abatimento e à vontade de fuga de toda “aquela soma de ideias e

crenças” que o alentaram na sua “adolescência e puerícia”.114

E foram tantos os casos dos quais essa minha conclusão ressaltava, queresolvi narrar trechos de minha vida, sem reservas, nem perífrases, para dealgum modo mostrar ao tal autor do artigo, que, sendo verdadeiras as suasobservações, a sentença geral que tirava, não estava em nós, na nossacarne e no nosso sangue, mas fora de nós, na sociedade que noscercava115, as causas de tão feios fins de tão belos começos.Com isso, não foi minha tenção fazer obra d’arte, romance, embora aqueleTaine [...] dissesse que a obra d’arte tem por fim dizer aquilo que os simplesfatos não dizem.[...] é meu propósito [...] fazer [...] uma defesa a acusações deduzidassuperficialmente de aparências cuja essência explicadora, as mais dasvezes, está na sociedade e não no indivíduo desprovido de tudo, de família,de afetos, de simpatias, de fortuna, isolado contra inimigos que o rodeiam,armados da velocidade da bala e da insídia do veneno.116

Vemos, nesse prefácio, Lima estabelecendo a forma que considerava eficaz

de debates entre os intelectuais e o critério mais apropriado para a análise da

situação dos negros na sociedade brasileira. Seus argumentos podem ser

considerados uma crítica aos intelectuais “intoxicados” pela perspectiva

cientificizante com sua apropriação de modelos deterministas e evolucionistas.

Quando propôs que “verrinas nada adiantam” e a melhor forma seria “opor

argumentos a argumentos”, Lima faz alusão aos debates entre Silvio Romero,

113 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?], p. 9.114 Ibid., p. 10.115 Grifo nosso.116 BARRETO, Lima.op.cit, p. 10-11.

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Araripe Júnior e Manoel Bomfim iniciados em fins do século XIX. O primeiro teve

destaque nesse momento, trazendo para a crítica literária o racialismo como base

norteadora e travando polêmicas com os outros dois. Essas apresentavam, muitas

vezes, caráter personalista, chegando ao ponto de por em xeque a honra e a

capacidade intelectual dos envolvidos.117

Lima sugeria a exposição dos argumentos em disputa, trazendo a

possibilidade da escolha pelo público das diversas explicações para a realidade

daquele momento. A sua escolha foi bem explícita naquele prefácio. Ao contrário

dos racialistas, o motivo dos negros não alcançarem uma posição de destaque,

mesmo apresentando requisitos para isso, não deveria ser buscado numa

inferioridade definida a priori, mas nas relações sociais historicamente estabelecidas.

Essa discussão foi levada adiante por Lima Barreto, tentando, inclusive,

mantê-la também com a intelectualidade internacional. Entre seus manuscritos, há

uma minuta de uma carta enviada ao sociólogo francês Célestin Bouglé de 1906.

Não sabemos se realmente foi enviada, ficando o autor com uma cópia, ou se o

autor desistiu da empreitada. O seu conteúdo, entretanto, sinaliza o prosseguimento

dos embates barretianos frente à forma negativa pela qual os negros eram vistos

pela perspectiva racialista.

A missiva foi escrita em virtude da leitura que realizara da obra de Bouglé

intitulada La Démocratie devant la Science. Nessa carta, Lima afirma que o

sociólogo “está a par das coisas da Índia e pouco sobre os mulatos do Brasil”,

citando, para fortalecer seu argumento, nomes de mulatos brasileiros que se

destacaram na literatura, música, jornalismo entre outras áreas, concluindo:Se desejar informações mais desenvolvidas, poderei fornecer-lhe em outracarta. Peço-lhe desculpas de me exprimir mal em sua bela língua, coisa queme impus a mim mesmo para apontar certos juízos falsos com que o mundocivilizado envolve os homens de cor.Espero, Senhor Bouglé, que o senhor saiba perceber nesta carta um desejomuito puro de verdade e justiça, que sai de uma pequena alma sofredora.118

Lima Barreto, que no início da carta se apresenta como mulato e literato,

“tendo estudado na Escola Politécnica do Rio”, novamente busca, a partir da

realidade concreta, demonstrar o equívoco em se considerar “os homens de cor”

como inferiores. Essas críticas barretianas ao pensamento racialista partia de um

117 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914).São Paulo: Companhia das Letras, 2000, passarim.118 BARRETO, Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I), p.p.158.

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intenso estudo de seus principais autores. Entre os diversos volumes existentes na

sua “Limana”, como ele denominava sua biblioteca na Vila Quilombo, havia um vasto

acervo das obras dos teóricos do determinismo racial.Por isso guardava volumes de G. Le Bon, Haechel, Buckle, Topinard,Gobineau, Morel, e Théodule Ribot, autor de L’Hérédité psuchologique,tema que preocupava muito o escritor. Obras de divulgação de Darwin,Névrose, Morel, Determinismo y responsabilidad, Hamon, e Le Préjugé desraces, de J. Finot, também faziam parte do acervo.119

Não era de surpreender que, diante do desejo de conhecer para combater

essas teorias, Lima tivesse também na sua biblioteca textos de João Batista de

Lacerda (1846-1915). De autoria desse sujeito, que foi diretor do Museu Nacional

por longo tempo e um dos intelectuais brasileiros mais conhecidos a defender a tese

do branqueamento da nação brasileira, havia na Limana um livro intitulado Fastos do

Museu Nacional e uma réplica do discurso Sur Les Métis au Brésil (Sobre os

mestiços do Brasil), proferido no Congresso Universal de Raças.120

Esse foi o documento oficial apresentado pelo governo brasileiro, único país

da América do Sul convidado a participar desse evento, realizado na cidade de

Londres no ano de 1911 cujas conferências e discussões estavam fundamentadas

no determinismo racial. Essa participação era significativa por, naquele momento, o

país ser considerado “um laboratório racial”121 e o seu representante, Lacerda, fazer

um discurso que valorizava o mestiço “sem questionar o pressuposto da

inferioridade dos não-brancos”.122 Desse modo, assim como Sílvio Romero, Lacerda

defendeu o branqueamento da população pela miscigenação, prevendo um período

ainda mais breve que o sergipano para isso: em um século apenas. Ou seja,

Lacerda apresentava uma saída autóctone para questão étnica que era a fusão para

promover a extinção das raças consideradas inferiores.

Notamos como Lima Barreto fazia parte de um pequeno grupo de intelectuais

contrário àquelas ideias e preocupado com a imagem que se construía do Brasil no

exterior. “Até 1910 apenas intelectuais isolados, como Araripe Júnior, Manuel

Quirino e Manoel Bomfim, criticaram as concepções racistas, atacadas tanto em sua

base científica, quanto em termos ideológicos”.123 Manoel Bomfim (1868-1932), por

119 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 320.120 Ibid., loc.cit.121 Ibid., p. 322.122 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914).São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 63.123 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914).São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 62.

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exemplo, escreveu uma obra intitulada A América Latina: males de origem,

publicada em 1905. Nesta, Bomfim procurou demonstrar os motivos do atraso da

América em relação à Europa.

Não há registro que indique um contato direto de Lima com esse autor.

Contudo, numa carta enviada a Antonio Noronha Santos com data de 26/06/1916,

Lima afirma que, durante sua estadia em Ouro Fino a convite de Emílio Alvim, leu,

na biblioteca deste, “autores que pouco lemos, mas que merecem ser lidos”.124 Entre

esses autores estava Bomfim. Como até aquele momento, Bomfim tinha publicado

apenas A América Latina como obra que discutia de maneira crítica o pensamento

racialista125, possivelmente a leitura a que Lima se refere e recomenda tenha sido

esse trabalho.

Nessa obra, Bomfim, apesar do uso de termos retirados da Biologia, refutou

o emprego de teorias relacionadas ao estudo dos organismos biológicos na análise

da sociedade.Está um tanto desacreditado, em sociologia, esse vezo de assimilar, emtudo e pata tudo, as sociedades aos organismos biológicos. Muito se temabusado deste processo de crítica, cujo vício, em verdade, não consiste emconsiderar as sociedades – digamos os grupos sociais – como organismosvivos, sujeitos, por conseguinte, a todas as leis que regem a vida e aevolução dos seres, mas em considerá-los como simples organismosbiológicos. Em suma, não é o conceito que é condenável, e sim a estreitezade vistas com que aplicam à crítica dos fatos sociais, mais complexos, semdúvida, que os fatos biológicos, pois dependem das leis biológicas, e aindadas leis sociais, peculiares a ele. [...].126

Diante disso, Bomfim argumenta que a causa do atraso da América em

relação à Europa “é toda de ordem política; ela deriva exclusivamente das condições

históricas da colonização”. Ele procura também examinar o argumento de alguns

sociólogos que justificam a inferioridade das nações sul-americanas pelo

cruzamento racial aí ocorrido. Bomfim se mostra contrário a essa justificativa,

utilizando-se do trabalho de Darwin pelo qual o estado de degradação em que se

encontram os mestiços “tem causa moral-social”127, acrescentando que esse juízo

do naturalista

124 BARRETO, Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I),p.105.125 Bomfim escreveu ensaios e artigos publicados em jornais e revistas, mas os livros de sua autoria,após A América Latina, foram Através do Brasil (em parceria com Olavo Bilac, 1910), O Brasil naAmérica (1929), o Brasil na história (1930) e o Brasil nação (1931).126 BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005 (Ediçãodo Centenário), p. 57.127 Ibid, p. 286-290.

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seria mais categórico se ele conhecesse, como nós, toda a história daslongas misérias e infinitos martírios que, durante gerações e gerações,vieram cultivando e desenvolvendo nesses desgraçados todos os instintosde rancor e ódio, obliterando-lhes as fontes de bondade... [...]. Se Darwinas conhecesse em toda a sua história, nem pensaria em efeitos decruzamento, e reconheceria que esses mestiços são, hoje, infinitamentemelhores do que era de esperar.128

Esse autor, referindo-se mais diretamente sobre a teoria das raças,

questionou o que vinha a ser esta teoria e como ela se originou. Bomfim procurou

explicar que a resposta para aquelas questões era que “tal teoria não passa de um

sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e

covardemente aplicado à exploração dos fracos pelos fortes”.129

Com esses argumentos, numa época na qual predominava a exaltação de

autores estrangeiros que defendiam o racialismo dito científico, esse trabalho não

teve grande sucesso na época;130 mesmo seu autor tendo uma trajetória no Rio de

Janeiro como professor e ocupando cargos públicos como o de diretor do Instituto

de Educação e secretário da Instrução Pública.131 Além disso, essa obra e seu autor

sofreram ataques do grande polemista Sílvio Romero numa série de 25 artigos no

semanário Os Anais, depois reunidos no volume América Latina: análise do livro de

igual título do dr. Manoel Bomfim, publicado em 1906.

Romero, dentre as suas críticas, destacou que Bomfim “resvalaria do terreno

da ciência e da imparcialidade para as das paixões e ataques pessoais, ao lançar

xingamentos a Gustave le Bon, um dos principais teóricos do racismo” e, utilizando

da injúria como meio retórico, referiu-se ao seu conterrâneo como membro de uma

corja ou “de um bando de malfeitores do bom senso e bom gosto”.132 Já a obra

Recordações do escrivão Isaías Caminha de Lima, também não obteve uma boa

recepção, sendo que muitos periódicos se silenciaram sobre esse texto em virtude

de seu autor, iniciante e negro,133 além de desmascarar os bastidores da grande

imprensa carioca, trazer, desde seu prefácio, ideias contrárias ao racialismo. Como

128 BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005 (Ediçãodo Centenário),, p. 290.129 Ibid., p. 268.130 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p. 131.131 RIBEIRO, Darcy. Manoel Bomfim, antropólogo. In: BOMFIM, Manoel. Op. cit., p. 13-14.132 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914).São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 146.133 No último capítulo desta tese, trataremos da recepção dessa obra de Lima Barreto bem como suasrespostas a algumas críticas que lhe dirigiram uma parte da intelectualidade da época.

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vimos, Lima apresentava um pensamento muito próximo ao de Bomfim acerca da

teoria das raças.

No mesmo ano em que escreveu aquele prefácio, Lima, por meio de suas

anotações pessoais expressava um pensamento bem crítico em relação ao que a

ciência dizia sobre a inferioridade dos negros bem como isso o impactava.Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há certas raças superiorese umas inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, é eternae intrínseca à própria estrutura da raça.Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas raças são um vício social,uma praga e não sei que cousa feia mais.Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábiosalemães.[...]O que se diz em alemão é verdade transcendente. [...].E assim a coisa vai se espelhando, graças à fraqueza da crítica daspessoas interessadas, e mais que à fraqueza, à covardia intelectual de queestamos apossados em face aos grandes nomes da Europa. [...].Os séculos que passaram não tiveram opinião diversa a nosso respeito – éverdade; mas, desprovidos de qualquer base séria, as suas sentenças nãoofereciam o mínimo perigo. Era o preconceito; hoje é o conceito.[...]É satisfação para minha alma poder oferecer contestação, atirar sarcasmosà soberbia de tais sentenças, que me fazem sofrer desde os quatorze anos.Oh! A ciência! Eu era menino, [...], quando li, na Revista Brasileira, os seusesconjuros, os seus anátemas... Falavam as autorizadas penas do SenhorDomício da Gama e Oliveira Lima...Eles me encheram de medo, de timidez, abateram-me [...].Mas, hoje! Hoje! Já posso alguma coisa e amanhã poderei mais e mais. [...].É que senti que a ciência não é assim um cochicho de Deus aos homens daEuropa sobre a misteriosa organização do mundo.134

Percebemos que Lima, nesses trechos, demonstrava, mais uma vez, a

intenção de combater o pensamento hegemônico da intelectualidade de sua época e

a sua compreensão de como postulados científicos foram utilizados para manter as

desigualdades entre brancos e negros após o fim da escravidão. O peso que Lima

sentia dessa ciência sobre homens e mulheres de sua cor deve ter sido reforçado

quando das suas duas passagens pelo Hospital Nacional de Alienados nos anos de

1914 e 1919. Durante a segunda, que durou de 25 de dezembro de 1919 a 2 de

fevereiro de 1920, Lima escreveu aquele que seria o desdobramento do seu Diário

Íntimo: o Diário do Hospício.

Os delírios provocados pelo uso excessivo de álcool foram a motivação de

suas internações. Assim como fez nas suas anotações que deram origem ao Díario

Íntimo, publicado pelo empenho do biógrafo Francisco de Assis Barbosa, Lima

imprimiu nas páginas em que registrou sua experiência no Hospital uma observação

134 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 110-112.

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do cotidiano com traços de uma escrita ficcional. Tanto que, paralelamente, ao

registro de sua estadia naquela instituição, desenvolveu também um romance, que

ficou incompleto, intitulado Cemitério dos vivos.

Numa época em que os alcoolizados eram internados juntamente com os

alienados bem como submetidos a tratamentos e terapias semelhantes, havia a

publicação de artigos que faziam correlações entre a incidência do alcoolismo e a

população da “raça africana no Brasil e sua descendência”, afirmações essas que

associavam o tal vício, por sua vez, à hereditariedade e degeneração entre

indivíduos daquela origem. Como exemplo, podemos citar O Brazil-Medico, que era

uma publicação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, na qual se afirmava

que entre os africanos e seus descendentes havia um “grande dízimo mortuário

determinado, quase sempre, pelo alcoolismo e suas consequências”.135 Lima, cujo

pai há anos sofria com problemas mentais, não se sentia confortável diante dessas

correlações.

No seu Diário do Hospício, ao observar os outros pacientes e como os

médicos tentavam classificá-los, Lima Barreto registrou a seguinte reflexão sobre a

busca pela origem da loucura:[...] Procuram os antecedentes do indivíduo, mas nós temos milhões deles,e, se nos fosse possível conhecê-los todos, ou melhor, ter memória dosseus vícios e hábitos, é bem certo que, nessa população que cada um denós resume, havia de haver loucos, viciosos, degenerados de toda sorte.De resto, quase nunca os filhos dos loucos são gerados quando eles sãoloucos; os filhos de alcoólicos, da mesma forma, não o são quando seuspais chegam ao estado agudo do vício e, pelo tempo da geração, bebemcomo todo mundo.Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamentepueris. Todo problema de origem é sempre insolúvel; mas não queria já quedeterminassem a origem, ou explicação; mas que tratassem e curassem asmais simples formas. Até hoje, tudo tem sido em vão, tudo tem sidoexperimentado; e os doutores mundanos ainda gritam nas salas diante dasmoças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes, que a ciênciapode tudo.136

Esses embates de Lima Barreto contra os determinismos defendidos pelo

cientificismo, contudo, não podem ser vistos como reveladores de uma total

imunidade do autor aos seus ditames. Como um sujeito histórico, Lima estava

inserido num ambiente social e cultural no qual procurava dialogar com aquelas

ideias e teve uma educação formal baseada no pensamento eurocêntrico. Assim

como outros intelectuais de sua época, Lima também realizou sua apropriação

135 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 152.136 BARRETO, Lima. Diário do Hospício e o Cemitério dos vivos. Organização e notas: AugustoMassi; Murilo Marcondes de Moura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 55.

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daquele “bando de ideias novas”, selecionando tanto o que interessava para seus

propósitos literários quanto, ao longo de sua trajetória, revendo algumas doutrinas

que lhe chamavam a atenção.

Francisco Barbosa, no primeiro capítulo que compõe a segunda parte de sua

biografia de Lima Barreto, analisou a relação do escritor com o positivismo. Barbosa

destacou que ainda no ano de 1896, o jovem Lima já debatia, no Colégio Paula

Freitas, com outro estudante chamado Carlos Costa, que defendia o positivismo. O

biógrafo sinaliza que no ano seguinte, quando Lima começara a viver em pensões,

este certamente havia frequentado o Templo da Humanidade, nova sede da Igreja

Positivista no Brasil, inaugurada em 1897.137

Nesse ano, Teixeira Mendes, “misto de filósofo e apóstolo, iniciara o seu

famoso ensino enciclopédico, dedicado especialmente aos “adolescentes de 14 a 21

anos”.138 O próprio Lima Barreto, no artigo “Vários autores e várias obras” de

06/12/1920 publicado na Gazeta de Notícias, confessa que pelos seus “15 anos e

mesmo antes, não tinha a mínima preocupação literária; havia até abandonado o

meu Júlio Verne e todo eu era seduzido para o positivismo e coisas correlatas”.139

“Além dessa referência direta, em artigo assinado”, Barbosa aponta outras, de

forma indireta, em que o romancista trouxe para seus enredos momentos de sua

iniciação na doutrina de Comte. A primeira com o protagonista Isaías Caminha do

seu primeiro romance publicado (1909) e a segunda por meio de Vicente

Mascarenhas, “personagem central do Cemitério dos Vivos”, livro que Lima Barreto

deixou inacabado e no qual, talvez mais do que em qualquer outro, são evidentes as

reminiscências autobiográficas”.140

Em 1904, como vimos naqueles diálogos que destacamos da primeira versão

de Clara dos Anjos acima, sua postura passou a ser questionadora da validade das

recomendações positivistas. Já no Triste fim de Policarpo Quaresma, Barbosa

identificou um Lima Barreto furioso com os positivistas brasileiros ao descrever os

excessos cometidos por Floriano Peixoto durante a revolta de 1893.[...] Eram os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismotirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos osassassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem,condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do

137 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 70.138 Ibid., p. 70-71.139 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 97.140 BARBOSA, Francisco de Assis. Op.cit., p. 71.

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regímem normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche,com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso, enfim,com inscrições em escritura fonética e eleitos calçados como sapatos desola de borracha!...Os positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para justificar assuas ideias de governo, em tudo semelhantes aos canatos e emiradosorientais.141

Entretanto, Barbosa também apontou, já no último ano de sua vida, uma certa

reparação por Lima em relação ao positivismo. Esta veio num outro artigo, “Feiras e

Mafuás”, publicado na Gazeta de Notícias em 28/07/1921, “não com elogios

descabidos mas em crítica perfeitamente razoável”.142

Não se pode dizer muito mal do positivismo. Ele trouxe vantagens à nossacultura e às nossas instituições políticas.Quanto à cultura, o comtismo republicano, com todos os exagerosdogmáticos, mostrou bem que toda aquela que não se baseava no estudoda ciência, tendo por princípio a matemática, era inane e não valia nada.143

Nesse trecho, temos que destacar dois pontos representativos da forma como

Lima lidava como aquela doutrina. Primeiramente, com seu intuito de ver a

sociedade reformada, o positivismo deve ter sido uma pequena chama a iluminar o

seu horizonte de expectativa, especialmente na sua juventude. O positivismo,

segundo Bosi, teve efeitos salutares para a sociedade brasileira, constando

“algumas iniciativas que, em várias conjunturas, se opuseram ao pesado

conformismo social de nossas oligarquias liberais desde o fim do Império até o

ocaso da República Velha”. Dentre elas, o autor elenca:o pensamento antropológico antirracista; a precoce adesão à campanhaabolicionista mais radical; a luta pelo estado republicano leigo com aconsequente instituição do casamento civil, do registro civil obrigatório e dalaicização dos cemitérios; a exigência sempre reiterada da austeridadefinanceira no trato da coisa pública; enfim, o interesse pela humanizaçãodas condições de trabalho operário [...].144

Sevcenko, ao tratar da obra de Lima Barreto no seu estudo comparativo com

Euclides da Cunha, afirma que a crítica do romancista era dirigida “contra cinco

correntes políticas difusas e mais ou menos intercambiáveis”: o florianismo, o

hermismo, o republicanismo exaltado, o jacobinismo e o positivismo, mas este “como

141 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguin, 2011, p. 256.142 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 74.143 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 385.144 BOSI, Alfredo. O positivismo no Brasil: uma ideologia de longa duração. In: BOSI, Alfredo. Entre aliteratura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 280.

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corrente política e não como filosofia”.145 Isso deixa mais clara ainda aquela

indignação que Lima expressa, naquele trecho de Triste fim de Policarpo Quaresma,

contra os adeptos da doutrina que lançavam mão de seus postulados para justificar

sua ação repressiva.

Ao continuarmos a seguir o pensamento de Sevcenko, notamos que este

sinaliza outra faceta de Lima que o aproxima de certos aspectos do positivismo.

Tanto Lima quanto Euclides apresentavam como nutrientes de suas criações “um

alento utópico profundamente otimista, supondo uma eterna elevação material e

moral da espécie”.146 Assim como Comte acreditava que a humanidade evoluiria até

o estágio positivo, Lima possuía uma projeção final do tempo em perspectiva. Esta,

inserida nos quadros do evolucionismo,“seria caracterizada por um momento em que, firmada a solidariedade detoda a espécie humana sobre a terra e em comunhão com a natureza,haveria uma libertação contínua da inteligência e sensibilidade coletivas nosentido do aperfeiçoamento moral infinito”.147

Um segundo ponto daquela última opinião de Lima que podemos destacar é o

modo como ele lidava com doutrinas que apontassem um único caminho como

válido para explicar a realidade. Já tínhamos notado, desde aquela sua anotação

sobre um curso de filosofia que estava planejando para si mesmo, o seu desconforto

com a ciência como forma solitária de conhecimento a assegurar a verdade.

A fim de desconstruir esse pensamento predominante naquela época, Lima se

utilizava da ironia como recurso para “burlar as prisões dos discursos monofônicos e

consequentemente autoritários”.148 Daí ele ter criado personagens que, em seus

diálogos e outras ações vividas nas narrativas, representavam as limitações dos

modelos de explicação da realidade presentes no cientificismo, como vimos

naqueles trechos da primeira versão de Clara dos Anjos e, mais adiante neste

trabalho, destacaremos quando abordarmos o seu protagonista mais conhecido, o

major Policarpo Quaresma.

O enfoque típico da ciência também marcou presença na localização do foco

narrativo utilizado por Barreto. Ao preferir a narrativa em terceira pessoa onisciente

145 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 204.146 Ibid., p. 268-269.147 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 268.148 ALAVARCE, Camila da Silva. A ironia e suas refrações: um estudo sobre a dissonância naparódia e no riso. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p. 12.

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ou, em alguns casos, primeira pessoa onisciente, a exemplo do Isaías Caminha, do

Gonzaga de Sá e em grande parte de seus contos, Lima Barreto adotou um modelo

de enfoque característico “da literatura realista e naturalista, justamente por estar

próxima do padrão de linguagem” utilizado “pelos discursos do conhecimento, como

a filosofia, o ensaio e eventualmente parte da própria ciência, notadamente no

século XIX [...]”.149

Com outros objetivos, Lima se serviu do foco narrativo da literatura naturalista

que, como assinalamos em linhas anteriores, foi uma das portas de entrada para a

moda cientificista no Brasil. O efeito obtido pelo escritor com essa escolha era o de

produzir “textos apresentados como narrativas e análises objetivas, permanecendo

velada a subjetividade do autor”, o que, por sua vez, era o enfoque também

preferido “pela linguagem historiográfica e de forma geral por toda a produção

científica” daquele momento.150 Nesse sentido,As opções pessoais aparecem [...] como induções determinadas pelopróprio curso da realidade, sendo pois resoluções tão inevitáveis para ospersonagens como o seriam para os leitores. A adoção desse recursotornava imediata a identificação entre leitor, obra e público, instigandoraciocínios e tomadas de decisão predeterminadas, como as únicasalternativas conseqüentes diante das situações propostas com objetividade.Não era a literatura que reproduzia a realidade, mas a realidade quereproduzia a literatura.151

Lima também se apropriou de um autor francês, pertencente aos quadros do

racialismo, que teve grande influência na intelectualidade brasileira: o historiador e

crítico literário Hyppolyte Taine (1828-1893). Naquele prefácio de Recordações do

escrivão Isaías Caminha, ao justificar a sua escrita, Lima a fundamentou com o

pensamento de Taine: “[...] não foi minha tenção fazer obra d’arte, romance, embora

aquele Taine [...] dissesse que a obra d’arte tem por fim dizer aquilo que os simples

fatos não dizem”.

Para Taine, os textos literários não interessavam por si mesmos, mas como

documentos acerca da “psicologia de um povo, sobre o estado de espírito de uma

sociedade, ou sobre uma situação histórica de uma época”.152 Essa dimensão social

do texto literário presente em Taine atraiu Lima Barreto na sua trajetória de escritor.

149 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 272.150 Ibid., loc.cit.151 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 272.152 FREITAS, Maria Teresa de. A história na literatura. Revista de História, n. 117, 2º semestre 1984.Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/61352/64287. Acesso em: 26 mai.2018, p. 172.

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Entre os escritos que produziu acerca dos fins da literatura, temos no “O destino da

literatura”153, um trecho em que Lima se refere a Taine como “um autor claro,

profundo e autorizado”154, utilizando-se de seu pensamento para esclarecer o caráter

da beleza na obra artística.A Beleza, para Taine, é a manifestação, por meio dos elementos literários,do caráter essencial de uma ideia mais completamente do que ela se achaexpressa em fatos reais.Portanto, ela já não está na forma, no encanto plástico, na proporção eharmonia das partes, como querem os helenizantes de última hora e dentrode cuja concepção muitas vezes não cabem as grandes obras modernas, e,mesmo, algumas antigas.Não é o caráter extrínseco de obra, mas intrínseco, perante o qual aquelepouco vale. É a substância da obra, não são as suas aparências.155

Lima encontrou nesse pensamento de Taine uma das bases para

fundamentar seu realismo crítico e, na sua “Limana”, havia obras do autor francês

que indicam como o escritor carioca estava a par da sua produção - tanto a voltada

para a crítica literária quanto a historiográfica. Contudo, Lima se desvencilhou dos

elementos deterministas presentes nas teses desse intelectual.156

Dentro daquela conjuntura de assimilação do instrumental científico como via

para a garantia da passagem do país para a modernidade, a intelectualidade

brasileira, inspirada nas teorias evolucionistas de Taine em Histoire de la literature

anglaise (1863) – umas das obras do autor francês também presente na “Limana” -,

procurava definir a brasilidade como resultado do meio físico-geográfico, da raça e

do momento. “A nacionalidade era matéria-prima, uma espécie de pedra bruta a ser

trabalhada pelo saber científico das elites”.157

Algo que para Lima Barreto era considerado como temerário, pois, como

temos acompanhado de seu pensamento até o momento, via nesse pensamento

cientificista um discurso que reforçava a discriminação da população negra. O que

pode sinalizar sua opção pela dimensão social da literatura presente na teoria de

153 Originalmente, esse texto foi escrito para uma conferência que Lima Barreto iria realizar na cidadede Mirassol em 1921. Lima foi encontrado por Ranulfo Prata e alguns de seus convidados “nosfundos de um botequim, completamente bêbado” naquela cidade, o que anulou a sua apresentação.Contudo, o texto foi publicado ainda em 1921 no periódico carioca Revista Souza Cruz. Cf. OAKLEY,Robert. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora da UNESP, 2011, p. 3-4.154 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 58.155 Ibid., loc.cit.156 AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Vida literária e desencantos: uma história da formaçãointelectual de Lima Barreto (1881-1922). Orientadora: Maria de Fátima Fontes Piazza. 2015. 341 f.Tese (Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 134-137.157 WINOCK apud Ibid., p. 136.

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Taine e seu silêncio quanto ao seu aspecto racialista. Para melhor explorar isso,

vale uma maior aproximação dessa vertente do trabalho de Taine.

Nossa hipótese é a de que a escolha desse autor por Lima apresenta mais

indícios de sua perspectiva crítica em relação aos intelectuais que se pautavam na

noção de raça para compreender a sociedade. Ao contrário de representantes do

racialismo que tinham uma visão mais naturalista de raça, utilizando-a para justificar

hierarquias entre grupos humanos, Taine foi um autor cujo lugar na história do

racialismo não é fácil situar.[...] Sua influência é muito grande, mas seus textos consagradosexplicitamente à questão das raças se reduzem a algumas páginas. Ademais,há uma discordância perturbadora entre suas explicações programáticas esua prática. [...] Taine oscila, na verdade, entre duas dimensões da palavra“raça”, uma física e outra cultural, autorizando assim seus discípulos aencontrar em seus escritos argumentos em favor de teses contraditórias.158

Em relação a sua declaração de princípios, Taine aderiu a um determinismo

integral. Na introdução à Histoire de la littératture anglaise, o autor expôs os fatores

que governam o comportamento humano. Estes eram a raça, o meio e o momento.

Para Taine, deve-se levar em consideração tanto “o que o homem traz em si

mesmo” quanto “o que lhe é imposto pelo ambiente exterior” bem como “os

resultados da interação dessas duas forças”, ou seja, o momento.159

Este “não é, na verdade, produto de uma época em que se vive, mas da fase

de uma evolução interna, própria a cada grupamento humano [...]”. Acerca disso,

Todorov se interroga: “Mas em que consiste exatamente a contribuição interior,

chamada “raça” e, nela, quais são sua natureza e extensão?”160 Quando Taine tratou

especificamente do fator raça, Todorov afirma que o francês pareceu identificar raça

e nação. Na prática, as características físicas acabam tendo um papel menor nas

análises de Taine. Suas raças, “contrariamente ao que implicavam suas próprias

distinções, são nações, entendidas no sentido de “culturas”.161 Já quando se volta

para o meio,Taine enumera entre os fatores mais poderosos que agem sobre oshomems: o clima e os elementos geográficos, as circunstâncias políticas eas condições sociais; tomadas em conjunto, essas “situações prolongadas”,essas “circunstâncias englobantes” produzem “os instintos reguladores e asfaculdades implantadas em uma raça, em suma, o espírito segundo o qual

158 TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.Tradução: Sérgio Goes de Paula. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 166.159 TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.Tradução: Sérgio Goes de Paula. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 166.160 Ibid., loc.cit..161 Ibid., p. 167.

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hoje em dia ela pensa e age” (p. XXVI). Não é mais, portanto, a raça que faza história, mas a história que faz a raça (ou o espírito da nação); e,modificando as instituições ou as formas de vida social, pode-se transformara raça: tais ações “são para as nações o que a educação, a profissão, acondição, a vivência são para os indivíduos” (p. XXVII) [...].162

Notamos como Taine apresenta, nessa parte, um pensamento contrário ao

ideário racialista. Isso o afasta do determinismo que o racialismo tomou de

empréstimo do cientificismo, levando-o ao extremo. Em contrapartida, opera uma

transformação na doutrina racialista na qual se observa uma aproximação do termo

“raça” ao de “cultura”.

Temos, então, a indicação de condições naturais e sociais em interação como

elementos a serem analisados a fim de se perceber as causas que levariam um

povo a determinado estado moral, sendo o texto literário o reflexo dessas condições,

permitindo, por sua vez, a percepção de “uma psicologia de um século ou raça”.163

Lima, naquele prefácio de Isaías Caminha, deu sinais da seleção que fez na teoria

do autor francês, uma das grandes referências para a crítica naturalista entre a

intelectualidade brasileira.

Lima Barreto optou pela parte do pensamento de Taine que justamente

desloca o sentido de raça para cultura e enfatiza as condições sociais como

determinantes. Como se fosse o personagem Isaías a justificar a escrita de suas

recordações, Lima destacou que os motivos que levaram os negros a uma situação

de inferiorização naquele momento deveriam ser buscados na “sociedade que nos

cercava”. O desenrolar do enredo do romance se configurou na tentativa do autor

em demonstrar como, mesmo tendo uma educação escolar adequada e

apresentando qualidades morais e intelectuais, um sujeito descendente de negros

não conseguia uma posição favorável na sociedade brasileira, pois era visto pela

ótica racialista e racista, que predominava em inícios do século XX, como fadado ao

fracasso.

Ainda sobre a relação de Barreto com o pensamento de Taine, podemos

apontar uma proximidade entre os seus horizontes de expectativa. Ambos viam nas

mudanças das instituições e modos de vida a possibilidade de superação dos efeitos

negativos das condições históricas a que estavam submetidas as raças.

162 TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.Tradução: Sérgio Goes de Paula. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 168.163 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914).São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 87-88.

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Essa narrativa da trajetória de experiências sociais, estudos e escritos iniciais

de Lima Barreto nos forneceram o conhecimento de parte do modo como o literato

carioca foi criando uma imagem de si. Esta estava pautada por uma atitude

combativa diante de uma realidade excludente. Para ascender como escritor, diante

desse cenário, Lima procurou compreender as bases do pensamento dos outros

intelectuais. Seus escritos apresentam um indivíduo inconformado com a forma pela

qual o negro era representado na literatura e na historiografia.

No capítulo seguinte desta tese, vamos nos deter na análise dos principais

aspectos da escrita da história nacional no início do século XX e da concepção de

literatura de Lima Barreto. Ao realizar a comparação entre esses aspectos,

pretendemos apresentar o interesse do autor carioca por temas comuns à cultura

histórica bem como destacar sua insatisfação com as lacunas que nela identificava e

alguns caminhos possíveis sinalizados para reorientá-la.

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CAPÍTULO 2 UMA LITERATURA MILITANTE AFRONTANDO A CULTURAHISTÓRICA

No capítulo anterior, percebemos que Lima já apontava nos seus esboços

literários algumas críticas e sugestões para a produção historiográfica da época. Do

que foi exposto acima, podemos afirmar que Lima via como necessária a ampliação

das fontes, incluindo aí a memória oral, e explicitava a dimensão política da escrita

da história, principalmente as bases do conhecimento científico que norteavam o

pensamento de muitos intelectuais, o qual promovia a exclusão dos negros da

narrativa bem como se mostrava distanciado da realidade nacional.

O presente capítulo, por sua vez, retoma alguns dessas características de

Lima, adensando-as a fim de apresentar as relações entre a sua concepção de

literatura e expectativa quanto ao conhecimento histórico. Desse modo, antes de

compreendermos como a literatura produzida por Lima Barreto dialoga com certos

temas da cultura histórica brasileira, faremos uma abordagem preliminar sobre

algumas discussões que envolviam esse universo cultural.

Nossa abordagem, nesse capítulo, irá se deter, inicialmente, nos aspectos

sobre os quais muitos homens de letras, desde fins do século XIX até primeiras duas

décadas do XX, se debruçaram para lidar com o passado. Em seguida, veremos

características da escrita barretiana que nos permitam observar como o literato se

insere nos embates da intelectualidade brasileira que envolviam, principalmente, a

questão nacional.

2.1 Como lidar com o passado? Intelectuais brasileiros e uma revisão daHistória

A visão da ciência como norteadora do conhecimento da realidade também

esteve presente no estudo do passado em inícios do século XX no Brasil. Neste

período, começava a preponderar uma forma nova de entender a história. A escrita

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da história nacional implicava “tomar parte de um debate sobre problemas do

momento e das incertezas do futuro, e se inteirar dos avanços científicos da época”.1

A questão racial, a identidade nacional e o regime republicano foram temas

muito presentes nas discussões historiográficas e na literatura naquele princípio de

século, assim como povoavam a agenda intelectual do escritor Lima Barreto. A

abordagem desses temas foi, metodologicamente, ganhando contornos mais

definidos. Mesmo não sendo uma exigência nova, a qualidade da erudição passou a

ter um peso maior para os intelectuais que enveredavam pela produção dos estudos

históricos.

A pesquisa, em busca da “verdade” sobre o passado, a partir de uma sólida

base documental e da neutralidade do historiador ao analisá-la, tornou-se

procedimentos fundamentais que eram destacados a fim de validar determinado

trabalho histórico. Não podemos, contudo, considerar que as tão reconhecidas

objetividade e neutralidade do historiador significassem seu afastamento das

questões sociais e políticas de seu presente.

A cientificidade de sua produção deve ser vista como um critério para avalizar

a objetividade de sua narrativa e, muitas vezes, esse mesmo critério era utilizado

pelos intelectuais no momento de defesa de seus posicionamentos políticos. Além

disso, a História enquanto ciência, o progressivo distanciamento de seu objeto de

estudo pelo pesquisador e as características de sua narrativa também eram alvo de

discussões entre os intelectuais que buscavam enveredar pelas análises do passado

nacional.

A escrita da História do Brasil nas primeiras décadas do século XX estava

inserida num contexto de mudanças significativas na sociedade brasileira. A busca

por referenciais, temas que se ajustassem aos interesses políticos de uma nação

havia pouco saída de um regime monárquico e de um sistema escravocrata era

recorrente no meio intelectual. Daí o destaque que demos acima quanto às questões

racial, nacional e à legitimação da República. Isso estava associado também à

conjuntura internacional, a qual trazia uma preocupação com o lugar do Brasil num

cenário de disputas entre potências industrializadas, símbolos do progresso no

período aqui considerado.

1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 116.

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A História, nesse sentido, deveria seguir os padrões da moderna ciência e, ao

mesmo tempo, produzir uma tradição que legitimasse as premissas do recente

regime republicano.2 Ou seja, esperava-se do conhecimento histórico um papel

ratificador da República brasileira no concerto das nações consideradas civilizadas.

Esse vínculo entre produção intelectual e política pode ser melhor esclarecido

pelo estudo de Angela de Castro Gomes no qual tece comentários acerca da

historiografia realizada nas primeiras décadas da República no Brasil:A concepção de história e o tipo de narrativa histórica que estariam sendoelaborados no período, portanto, decorriam, em parte, das novas exigênciaspolíticas desse novo regime. Um regime que precisava se legitimar,produzindo tanto um “passado” no qual pudesse se reconhecer e serreconhecido, como “futuros” que pudessem ser projetados e nos quais sepudesse acreditar. A Abolição e a República impactaram profundamente oprocesso de construção da identidade nacional brasileira, até porqueapenas depois desses eventos foi possível “imaginar” a existência de umanação constituída por um “povo”, ou seja, integrada juridicamente porhomens livres. A própria eclosão de debates políticos e de uma variadaprodução intelectual que discutia a existência ou não de um “povo brasileiro”,bem como o que tal presença ou ausência podia significar, aponta para umnovo delineamento das questões políticas e culturais trazidas pelo séculoXX, no que se refere ao processo de construção, não mais apenas doEstado (state-building), mas também da nação (nation-building).3

A narrativa histórica brasileira, diante dessa demanda sociopolítica, procurava

estabelecer não só relações de continuidade entre o passado e o presente, mas

também produzir um passado que legitimasse o tempo presente, dando-lhe sentido.

Essas relações, por sua vez, serviriam de orientação para o encaminhamento de

futuros projetos, justificativas para as ações das elites intelectuais e políticas. A

busca, então, pela conformação de uma consciência histórica - esta fruto da relação

estrutural entre aquelas três dimensões temporais, conforme Rüsen4 – era algo

almejado.

O impacto social provocado pelo fim da escravidão e a consequente

incorporação de uma população negra livre à categoria de cidadão num momento de

início de um regime político ávido por referenciais que o legitimassem delineavam o

contexto no qual a escrita da história nacional procurava se renovar. Como o

racialismo foi um instrumento teórico fortemente empregado para justificar

2 Cf. DUTRA, Eliana de Freitas. Rebeldes literários da República: História e identidade nacional noAlmanaque Brasileiro Garnier (1903-1914). Belo Horizonte: Humanitas, 2005. GOMES, Angela deCastro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009.3 GOMES, Angela de Castro. República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009, p.24.4 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: fundamentos da ciência histórica. Tradução: Estevão de RezendeMartins. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 65.

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hierarquias no Brasil pós-abolição, os intelectuais que se debruçaram sobre a

renovação da narrativa histórica se apropriaram de muitas de suas premissas bem

como de outros fundamentos cientificistas.

Buscavam, com isso, torná-la um conhecimento aceitável, segundo o modelo

da moderna ciência europeia. A sua produção contribuiria também para a suposta

elevação do país ao posto de nação civilizada. Nesse sentido, consideramos

pertinente a retomada do pensamento de Angela de Castro Gomes acerca da

historiografia do período:[...] é nesse momento que o debate sobre o caráter científico dessesaber/disciplina (a História) cresce, ao mesmo tempo em que ela éconsiderada um dos índices de “civilização e progresso” de uma nação“moderna”. História, ciência e progresso eram termos correlatos de umamesma equação, no início do século XX.5

Os sujeitos envolvidos nessa discussão apresentavam uma outra

característica marcante: a poligrafia. A escrita sobre assuntos que pertenciam a

diversas áreas do conhecimento fazia parte de um esforço coletivo, naquele

contexto, de criar um saber próprio acerca do Brasil.6 Além disso, devemos

considerar que naquele princípio de século XX ainda não existia no país cursos de

História7 e as “distinções disciplinares não eram claras, sendo elas mesmas produto

quer de interseções, quer da busca do estabelecimento de fronteiras”.8

Diplomatas, professores, advogados, párocos, militares, comerciantes

dedicavam-se à escrita da história cuja principal fonte de legitimidade era o trabalho

de pesquisa documental.9 “Muitas vezes”, inclusive, “os estudos históricos tinham

estrita relação com a atividade do seu produtor”, sendo realizados com o objetivo “de

municiar o exercício de sua atuação política no país ou no exterior”.10

5 GOMES, Angela de Castro. República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009, p.24-25.

6 SILVA, Roberto Candido da. O polígrafo interessado: João Ribeiro e a construção brasilidade.Orientadora: Mirian Dolhnikoff 2008. 200f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa dePós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008, p. 97 Espaços acadêmicos para curso de História no Brasil apenas surgiriam com a fundação dasFaculdades de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo em 1934 e, no ano seguinte, do Rio deJaneiro.8 GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p. 75.9 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 143. p. 24.10 GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p. 77.

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O diálogo desses historiadores com um amplo espaço de conhecimento era,

então, constante. Escreviam sobre história da geografia ou geografia da história;

elaboravam textos acerca da fauna e flora brasileiras; estudavam línguas indígenas;

analisavam sob uma perspectiva etnográfica festas populares e religiosas e muitos

também se dedicavam à filosofia e à literatura.11 Vale destacar ainda que, nesse

universo heterogêneo de intelectuais preocupados com a escrita da história nacional,

havia aqueles que, mesmo não escrevendo textos considerados de história (sobre

um determinado período do passado com base em análise metódica de

documentos), apresentavam uma produção que fomentava a discussão sobre como

deveria ser escrita a História do Brasil e sua função sociocultural.

A cultura histórica que então se forjava nesse momento tinha entre seus

construtores desde membros do IHGB quanto outros sujeitos envolvidos numa

escrita que objetivava conformar uma identidade nacional brasileira, orientando a

produção de uma memória voltada para a inserção do país no rol das nações

modernas. Esse contexto nos permite que adotemos como concepção de

intelectuais a do historiador francês Jean-François Sirinelli. Este os considera como

uma categoria socioprofissional de contornos pouco rígidos, produtora e mediadora

de interpretações da realidade social de grande valor político.12

Para percebemos um pouco a dimensão dessa heterogeneidade de

intelectuais e as especificidades das suas escolhas ao tratar a cientificidade da

História, os fins da sua narrativa bem como suas aproximações com a narrativa

literária, abordaremos o pensamento de alguns deles que tiveram grande influência

no cenário cultural brasileiro de fins do século XIX até princípios do XX. Um primeiro

a ser destacado é Pedro Augusto Carneiro Lessa (1859-1921) que foi membro do

IHGB, jurista e professor da Faculdade de Direito de São Paulo. Já o seu trabalho

que nos interessa é uma monografia que justamente o credenciou a fazer parte do

quadro dos sócios correspondentes do IHGB.

“Reflexões sobre o conceito da História” foi publicado na Revista do IHGB em

1908, mas, segundo a nota que o precede, havia aparecido “alhures”. A comissão de

redação da revista pretendia permitir “a sua leitura aos que ainda não puderam

apreciar as esclarecidas considerações sobre o conceito de História e aos que

11 GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p. 75-76.12 SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política.Tradução: Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; FGV, 1996, p. 242-243.

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desejarem de pronto relê-las”. Esse trabalho com outro título e intenção já havia

aparecido em 1900. “É a História uma ciência?” foi o título presente na capa do

volume publicado isoladamente e seguido do esclarecimento: “O estudo reproduzido

nesse opúsculo foi escrito e publicado como introdução à História da Civilização na

Inglaterra de Buckle, traduzida para o vernáculo pelo Sr. Adolfo J. A. Melcher”.13

Esse trabalho pode ser inserido no círculo de discussões dentro do IHGB

acerca da continuidade de seus sócios em desempenhar apenas a função de meros

registradores de episódios do passado nacional ou se deveriam propor ações mais

abrangentes, buscando “encadear os acontecimentos, confeccionar uma síntese do

passado e dele extrair uma ou mais leis”.14 Lessa, nesse sentido, foi além das

reflexões dos outros sócios, as quais estavam limitadas a discursos e rápidas

alusões em artigos.

“Reflexões sobre o conceito de História” teve como principal referência

justamente a obra acima destacada do historiador inglês Buckle, a qual buscava

demonstrar a cientificidade da História e também um dos textos fundamentais para

as discussões de outro grande nome da intelectualidade brasileira no período que foi

Romero, como visto no capítulo anterior. A própria comissão de admissão que

aprovou esse trabalho de Lessa o qualificou de “erudito, patriótico e repositório

precioso de fatos”.15

Nesse texto, Pedro Lessa afirmou que a história não é uma ciência,

discordando de Buckle. Este acreditava ser possível a história se tornar uma ciência,

considerando-a fundada numa doutrina na qual a natureza tinha centralidade. Lessa

até ia ao encontro do pensamento do historiador inglês quanto à assertiva de que da

influência recíproca entre o homem e a natureza “devem necessariamente decorrer

todos os acontecimentos”.16 Contudo, o historiador brasileiro considerava que as

generalizações do inglês não se traduziam em leis históricas.

A concepção de ciência de Lessa, baseada no paradigma das ciências

naturais, entendia que o mundo, o físico e o social, é regulado por leis.

Fundamentando-se nas afirmações de Stuart Mill, Lessa considerava que as leis que

13 GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009, p.31-32.14 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 114.15 GOMES, Angela de Castro. Op.cit., p. 32.16 Ibid., p. 41.

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formam o conteúdo de uma ciência se constituíam em relações constantes de

sucessão e semelhança entre os fatos. Diante disso, questionava quais seriam as

relações constantes de sucessão, de semelhança ou de uniformidade que a História

poderia nos oferecer.17 Os fenômenos históricos eram vistos pelo jurista como de

extrema complexidade, sendo que “a causa de um fato poderia ser um conjunto

especial e único de fatores ou circunstâncias que não se repetiu nem viria a se

repetir”.18

Daí a impossibilidade de produção de generalizações pela história e,

consequentemente, a recusa de Lessa em vê-la como uma ciência. A função da

história seria, então, a de “coligir e classificar metodicamente os fatos para ministrar

os materiais que serviriam de base às induções da ciência social fundamental e das

ciências sociais especiais”.19 A execução de tal função deveria ser orientada pelas

operações de busca, seleção e ordenamento de documentos, os quais, por sua vez

passariam pela crítica interna.

Lessa, portanto, baseava-se na leitura de historiadores alemães e franceses

que, a partir da década de 1880, contribuíram para a conformação da conhecida

história metódica. O autor também apresentou nesse texto objeções a certas

prerrogativas das filosofias da história. Na última parte do ensaio, intitulada “O

conceito real de história”, Lessa afirmou:Em verdade, que é a filosofia da história? A doutrina que pretende ensinar-nos as leis que presidem a evolução da humanidade. A darmos crédito aosfilósofos da história, a sua teoria abrange o curso inteiro da história dogênero humano. Eles nutrem a pretensão de determinar de onde veio ahumanidade, e qual a direção que há de seguir no futuro.20

Lessa procurou demonstrar que isso é inviável. A própria história, segundo o

autor, desmentiria a ideia de que o progresso humano, como princípio que rege a

humanidade, era algo contínuo e ilimitado bem como também não considerava o

livre arbítrio e Deus como guias críveis da história da humanidade. Esse sócio do

IHGB se diferenciava de uma parcela de outros membros que ainda apresentavam

como uma questão de difícil resolução a separação entre ciência e religião/fé numa

17 LESSA, Pedro. Reflexões sobre o conceito de História. Revista do Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro. Tomo 69, vol. 114, 1906 (publicado em 1908), p. 277-278.18 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 116.19 Ibid., loc.cit.20 LESSA, Pedro. Op. cit., p. 255.

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instituição ancorada numa tradição historiográfica vinculada a uma monarquia

católica.21

Tampouco Lessa aprovava a concepção de história como mestra da vida

(magistra vitae) que ainda povoava a concepção de outros sócios. Como vimos,

devido a sua leitura de historiadores seguidores da história metódica, Lessa

incorporou as suas críticas em relação à chamada história clássica, mestra da vida,

bem como as “objeções a uma percepção meramente linear e cumulativa de tempo,

muito característica daquela escola”.22

Mesmo reconhecendo que a história não poderia se tornar uma ciência, dar

lições ou fazer previsões e apenas exercer uma função de auxiliar, embora

fundamental, da Sociologia, Lessa lhe atribuía um papel de grande importância para

a nação. A história “era o saber que fundava os alicerces memoriais de um povo,

também singular e complexo. Sem tais dimensões era impossível responder à

questão de sua identidade, acreditando-se na sua ação humana no presente, para

se ter esperanças no futuro”.23

Lessa, no encerramento de seu discurso de posse no IHGB, em 1907,

asseverou que sem história não se civilizaria o país, concluindo: “Não conheço

missão mais proveitosa, nem mais augusta”.24 Um outro autor que podemos

destacar nessa discussão acerca do conhecimento histórico no Brasil é o já

mencionado Sílvio Romero. Foi através deste que a intelectualidade brasileira

travou contato com as ideias contidas naquela obra de Buckle. Mesmo não sendo

citado por Lessa, fica difícil não imaginarmos que o jurista tenha lido Romero, uma

vez que a obra História da literatura brasileira do sergipano, publicada em 1888 e

tendo uma segunda edição em 1902 pela famosa livraria Garnier, teve uma grande

recepção no meio intelectual.

Sílvio Romero, membro da ABL e do IHGB, com essa obra[...] produziu um painel interpretativo da sociedade brasileira marcado pelosideais de modernização e nacionalidade. A História da literatura brasileira éum imenso tratado destinado a fazer saltar um país em suas páginas,

21 Cf. HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: aHistória do Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: CharlesMonteiro 2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.22 GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009, p.45.23 Ibid., p. 52.24 LESSA, Pedro. Discurso de posse. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo70, vol. 116, 1907 (publicado em 1908), p. 720..

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inclusive sua literatura. Além de poetas e romancistas, Romero contemplouhistoriadores, cronistas e economistas. [...].O livro representa o primeiro esforço sistemático e abrangente de historiar aliteratura do país e vê-la como fruto da sociedade que a produziu. Trata-sede uma obra permeada por uma feroz disposição interpretativa, da qualemerge uma experimentação hermenêutica, que buscou aludir ao passado,explicar o presente e propor um norte ao futuro [...] 25

Romero não tinha a pretensão de se tornar um historiador, mas as reflexões

que produziu acerca da formação da nacionalidade brasileira balizou a história da

ciência histórica no Brasil.26 O seu objetivo final é criar uma filosofia da história

brasileira.27 Para esse autor,A filosofia da história de um povo qualquer é o mais temeroso problema quepossa ocupar a inteligência humana. [...] Uma teoria da evolução históricado Brasil deveria elucidar entre nós a ação do meio físico, por todas as suasfaces, com fatos objetivos e não por simples frases feitas; estudar asqualidades etnológicas das raças que nos constituíram; consignar ascondições biológicas e econômicas em que se acharam os povos para aquiimigrados nos primeiros tempos da conquista; determinar quais hábitos osantigos que se estiolaram por inúteis e irrealizáveis, como órgãos atrofiadospor falta de função; acompanhar o advento das populações cruzadas e suaspredisposições; descobrir assim as qualidades e tendências recentes queforam despertando; descrever os novos incentivos de psicologia nacionalque se iniciaram no organismo social e determinaram-lhe a marcha futura.[...].28

Podemos notar que, diferentemente de Lessa, Romero via a história como

uma forma de conhecimento que permitia traçar generalizações sobre uma dada

sociedade e realizar previsões. Contudo, na hierarquia das ciências, a história

ocupava o posto de “quase ciências”, por maiores que tenham sido os esforços de

Buckle” para alçá-la à categoria de ciência. O autor sergipano entendia que toda “a

ordem de estudos, tendo por objetivo o homem e a sociedade, deveria ser

classificada de quase ciência, pois não atingia o “grau de certeza que constitui o

brilho próprio das completas ciências” (as ciências naturais).29

Com essa perspectiva, Romero privilegiou a moderna concepção de História,

insistindo “sobre a de Buckle especialmente”. O estudo das características atuais do

povo brasileiro deveria ser relacionado à análise do seu desenvolvimento histórico a

25 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Sílvio Romero, hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005,p. 15.26 SOUZA, Ricardo Luiz. Identidade nacional e modernidade brasileira: o diálogo entre SílvioRomero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p.29 (Ensaios, 2).27 Ibid., p. 49.28 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Organização: Luiz Antonio Barreto. Tomo I. Riode Janeiro: Imago Ed.; Aracaju: UFS, 2001 (Edição comemorativa do Sesquicentenário denascimento de Sílvio Romero), p. 72.29 Ibid., p. 74.

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qual, por sua vez, era norteada pelos princípios de cientificidade advindo da

perspectiva naturalista. Dessa forma, não era possível, segundo Romero, “a história

sem crítica, como não” era “admissível esta sem as ciências naturais”.

Além dessa fé inabalável na ciência, nessa abordagem de Romero sobre a

história, notamos que esta se entrelaça com a literatura no objetivo de promover a

compreensão da constituição da nacionalidade brasileira. Para Romero,Todo e qualquer problema histórico e literário há de ter no Brasil duas facesprincipais: uma geral e outra particular, uma influenciada pelo momentoeuropeu e outra pelo meio nacional, uma que deve atender ao que vai pelogrande mundo e outra que deve verificar o que pode ser aplicado ao país.A literatura no Brasil, a literatura em toda a América, tem sido um processode adaptação de ideias europeias às sociedades do continente. Estaadaptação nos tempos coloniais foi mais ou menos inconsciente; hoje tendea tornar-se compreensiva e deliberadamente feita. Da imitação tumultuária,do antigo servilismo mental, queremos passar à escolha, à seleção literáriae científica. A darwinização da crítica é uma realidade tão grande quanto é ada biologia.

[...]Para que a adaptação de doutrinas e escolas europeias ao nosso meiosocial e literário seja fecunda e progressiva, é de instante necessidadeconhecer bem o estado do pensamento europeu do Velho Mundo e ter umaideia nítida do passado e da atualidade nacional.[Desse modo, necessita-se] começar por conhecer a fundo as diversasteorias da história do Brasil, e, pelo estudo deste problema, compreender asucessão das escolas literárias entre nós.30

O autor se utilizou da História ao contemplar o país, fosse através da literatura,

da cultura popular ou mesmo da Etnografia. Divergindo da grande referência na

época de historiador moderno, Capistrano de Abreu, que priorizava a documentação

e evitava o abuso das generalizações teóricas, Romero procurou encontrar na

história princípios válidos para explicar o Brasil com “um fenômeno histórico de

natureza nacional”.31

No segundo capítulo de sua História da literatura brasileira, portanto, Romero

fez questão, mesmo que indicando somente “os lados mais salientes, de apresentar

sua reflexão acerca das teorias da história do Brasil, enumerando-as em ordem

cronológica. Após destacar as lacunas das teorias de Martius, Buckle, Teófilo Braga,

Oliveira Martins, discípulos de Comte e sectários de Spencer, o crítico enfatiza a

importância do conhecimento histórico para a construção da identidade nacional.

30 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Organização: Luiz Antonio Barreto. Tomo I. Riode Janeiro: Imago Ed.; Aracaju: UFS, 2001 (Edição comemorativa do Sesquicentenário denascimento de Sílvio Romero), p. 63-64.31 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Sílvio Romero, hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005,p. 72.

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Uma teoria da história sobre um povo, segundo Romero, devia ser “ampla e

compreensiva”, proporcionando “uma explicação completa de sua marcha evolutiva”.

Nesse sentido, procuraria “apoderar-se de todos os fatos, firmar-se sobre eles para

esclarecer o segredo do passado e abrir largas perspectivas na direção do futuro.

Essa teoria visaria não só mostrar “o que esse povo tem de comum com os outros;

sua obrigação é ao contrário exibir os motivos das [suas] originalidades [...] no meio

de todos os outros”. Não basta apenas apresentar que o Brasil “é o prolongamento

da cultura portuguesa a que se ligam vermelhos e negros”.32

[...] resta ainda saber como estes elementos atuaram e atuarão uns sobreos outros e mostrar as causas de seleção histórica que nos vão afastandode nossos antepassados ibéricos e de nossos vizinhos também filiados navelha cultura ibera. [...].33

Concomitante a essa preocupação com a escrita da história como saber,

havia também um forte interesse pela disciplina ensinável, ampliando nosso olhar

para outros elementos da cultura histórica como, por exemplo, a elaboração de

manuais. A questão da educação nacional, em função da “urgência da República em

produzir um novo discurso político, carregado de valores e simbologias cívico-morais,

no qual a história ao lado da geografia e da língua pátria”;34 teve um peso

considerável nesse contexto.

O que nos leva ao pensamento de outro intelectual de grande destaque no

cenário nacional: José Veríssimo Dias de Matos (1857-1916). Este, também

republicano e membro da ABL como Romero, teve publicada a obra A educação

nacional em 1890 (uma segunda edição foi lançada em 1906). O crítico e historiador

paraense da literatura no Brasil também manifestou, como o pensador sergipano,

seu desejo de contribuir para a compreensão da formação histórica do país e

construção da identidade nacional, escolhendo até como epígrafe para esse trabalho

trechos da História da literatura brasileira, publicado dois anos antes: “Este livro,

quero que seja um protesto, um grito de alarma de são brasileirismo, um brado de

entusiasmo para um futuro melhor”.35

32 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Organização: Luiz Antonio Barreto. Tomo I. Riode Janeiro: Imago Ed.; Aracaju: UFS, 2001 (Edição comemorativa do Sesquicentenário denascimento de Sílvio Romero), p. 71.33 Ibid., p. 72.34 GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009, p.85.35 ROMERO apud VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,1985, p. 3 (Série Novas Perpectivas).

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A educação nacional, publicada num momento ainda de estruturação do

recém proclamado regime republicano, tinha como objetivo defender

recomendações para o desenvolvimento de uma educação patriótica num país em

que apenas existia instrução, segundo o autor. Desse modo, estaria contribuindo

para formação de cidadãos com valores republicanos e cívicos.

Veríssimo apontou que apenas o regime republicano não era suficiente para

reformar o país. O povo precisaria ser reformado para que a República realizasse

“as bens fundadas e auspiciosas esperanças, que alvoreceram nos corações dos

brasileiros”. Para tal, Veríssimo viu somente a educação como meio “quando não

infalível, certo e seguro” na busca pelo cultivo do sentimento nacional.36 Este era

entendido não como só a maneira[...] de receber e reproduzir as impressões, que distingue os povos uns dosoutros, mas ainda o conjunto de impressões recebidas em uma perenecomunhão com a Pátria e transformadas no cérebro em ideias ousensações que têm a Pátria por origem e fim, causa e efeito. Destarteconcebido o sentimento nacional, é ele independente do caráter nacional,antes subordinado a causas extrínsecas de ordem física que a causasmorais de ordem psíquica e é também independente do simples patriotismopolítico.37

Para o autor, sem uma consciência do espaço físico do país e uma

perspectiva histórica da evolução do seu povo não haveria condição para a oferta de

uma educação que construísse aquele sentimento. Daí o destaque que Veríssimo

concedeu à História e à Geografia nacionais no ensino desde os primeiros anos de

instrução. E a História foi ainda mais valorizada nesse processo, pois a educação

nacional não se poderia fazer “senão pelo estudo da Pátria e no estudo da Pátria, a

sua história é, quase poderia dizer, a parte principal”.38

O intelectual paraense atuou tanto no ensino privado no Colégio Americano

(1884-1890) quanto no público como Diretor de Instrução Pública do Estado do Pará

(1891) e Diretor do Externado do Ginásio Nacional (por sete anos após seu retorno

ao Rio em 1891). Essa experiência fez com que percebesse a indiferença do poder

público para com a educação.39

Em relação ao ensino de história, nesse contexto, Veríssimo considerou queSe o brasileiro ignora a geografia pátria, mais profunda é ainda a suaignorância da história nacional. A geografia, essa aprende-se um pouco

36 VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 43 (SérieNovas Perpectivas).37 Ibid., loc.cit.38 Ibid., p. 103.39 BARBOSA, João Alexandre. Introdução: a vertente pedagógica. In: VERÍSSIMO, José. Op. cit., p. 9.

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empiricamente nas viagens e digressões pelo país, nas conversações, naleitura das folhas diárias e nas mesmas nas relações sociais. A História, nãohá outro meio de aprendê-la senão estudando, e o brasileiro não estuda,tendo-a sempre materialmente representada por monumentos de todaordem, e os não têm o Brasil.40

O educador, então, passou, nas linhas seguintes, a apontar meios para o

ensino de história. Para o autor, “não é somente nas escolas ou pelo estudo dos

Autores e documentos que se pode estudar a história pátria”.[...] Os monumentos, os museus, as coleções arqueológicas e históricas,essas construções que os nossos antepassados com tanta propriedadechamaram memórias, são outras tantas maneiras de recordação dopassado, de ensino histórico, portanto, e, em última análise, nacional.É ensino às vezes bem mais eloqüente e palpável que a prosa de umhistoriador. [...].41

Percebemos que Veríssimo apresentava uma perspectiva ampliada dos

lugares de memória, úteis para a divulgação do conhecimento acerca do passado

nacional. Além disso, mostrava-se insatisfeito com a linguagem dos historiadores,

pois não a considerava facilitadora do aprendizado da história pátria. O crítico

literário buscava, pelo trecho acima de sua Educação nacional, formas mais

cristalizadas de divulgação da memória nacional.

Ainda nesse início do capítulo “A história pátria e a educação nacional”,

Veríssimo sinalizou que ao lado daquelas “memórias de pedra ou de bronze” deveria

se considerar também para o ensino de história “os contos dos poetas e as legendas

de populares”: uns e outros produtos das mesmas forças emotivas que o povo

contém [...]”.42 A partir daquela experiência como educador e dos seus

conhecimentos acerca da condução do ensino em países como Estados Unidos,

Alemanha e França, o autor traçou, portanto, recomendações sobre os recursos

didáticos a serem utilizados nas aulas de história.

Primeiramente, apresentou ao leitor que a grande parte dos livros sobre a

história do Brasil foi escrita por estrangeiros até aquele momento, o que sinalizava

para o autor o desprezo a que estava relegada a história pátria. “Os raríssimos

trabalhos especiais sobre este ou aquele ponto de nossa história não chegam ao

grande público”. Essa situação ainda era pior quando se pensava acerca das

histórias particulares dos estados.43

40 VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 101 (SérieNovas Perpectivas)41 Ibid., loc.cit.42 Ibid., loc.cit.43 Ibid., p. 111.

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A própria revista do IHGB “é desconhecida no Brasil, apesar da excessiva

barateza de seu custo”.44 Para Veríssimo, a literatura histórica brasileira era nula. E

o ensino da história pátria, “além de escassissimamente feito, é pessimamente dado.

Os compêndios, insisto, são em geral despidos de qualquer merecimento didático.

São pesados, indigestos e mal escritos”.45

O livro de leitura que era utilizado nas escolas primárias, segundo Veríssimo,

“também não fala da Pátria, nem se ocupa da sua história”. Acerca disso,

recomendava que na escola primária o ensino da história pátria deveria começar, ao

menos, desde o segundo livro. Já em relação ao conteúdo, via como necessária a

inclusão de “contos e cantos populares e pequenas histórias em que se reflitam a

nossa vida e nossos costumes”.46

Quanto às “classes superiores da escola”, o educador indicou que o

“compêndio especial da História do Brasil” viria “completar e sistematizar esse

ensino”.47 Esse recurso, assim como o livro de leitura, deveria ser ilustrado, “ao

menos para as classes infantis” e a escola, a fim de melhorar o aprendizado dos

alunos, possuir “uma coleção de gravuras históricas”.48

A indicação da metodologia empregada nas aulas, revelou um Veríssimo

interessado na superação de um ensino de história muito voltado para a

memorização de datas e fatos. Seu desejo era que se evitasse anacronismo e

selecionasse acontecimentos principais para que os alunos lhes descubram as

causas e deduzam seus efeitos. Veríssimo também não descartava “um estudo

particular da história do Estado em que” vivessem os alunos bem como uma “curta e

precisa notícia biográfica dos homens notáveis”49, indicando os serviços que

prestaram à nação.50

44 VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985., p. 111.(Série Novas Perpectivas).45 Ibid., p. 11246 Ibid., loc.cit.47 Ibid, p. 114.48 Ibid., p. 115.49 No mesmo ano dessa obra de Veríssimo, Sílvio Romero, uma das referências para o autorparaense, publicou um livro que ia ao encontro daquele objetivo de divulgar a história pátria. Ahistória do Brasil ensinada pela biografia de seus heróis foi concebida segundo a indicação, entãomuito acreditada, de que a biografia de grandes homens era uma das formas mais seguras para oaprendizado de virtudes cívicas e da história de um povo. Cf. GOMES, Angela de Castro. ARepública, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009, p. 111.

50 VERÌSSIMO, José. A educação nacional. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985., p. 114 (SérieNovas Perpectivas)

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Como recomendação ainda, Veríssimo apontou a “imitação do sistema

alemão da comemoração das datas célebres da história pátria” como um auxílio

para o estudo feito no compêndio e por meio da lição oral do mestre. A necessidade

de criação no Brasil de um curso superior de História no qual a História do Brasil

deveria ter pelo menos uma cadeira foi algo também observado nessa obra do

intelectual paraense.51

Nessa busca por uma educação nacional na qual a história tinha um peso

considerável, como vimos, Veríssimo sinalizou que a narrativa produzida pelos

historiadores não era suficiente. Nesse sentido, a literatura foi apresentada como

outra narrativa que poderia fomentar o sentimento nacional pelo estudo do passado.

Em 1906, ao comentar o trabalho de Machado de Assis,52 o crítico literário se

apresentou ainda mais incisivo quanto ao conhecimento do passado pela narrativa

literária, sustentando que os “romancistas são a seu modo historiadores e

sociólogos e não sei se não serão melhores”.53

Esse pensamento corrobora ainda mais a apresentação acima acerca de

aspectos da cultura histórica daquele início de século XX. A escrita da história no

Brasil e a divulgação de uma dada memória nacional estiveram mutuamente

implicadas na produção de uma identidade brasileira que legitimasse o regime

republicano. Nesse processo, o cientificismo foi uma base norteadora, sendo o

diálogo da história com outras áreas do conhecimento uma constante.

Muitos desses aspectos da narrativa histórica brasileira de princípios do

século XX fizeram parte das discussões que Lima Barreto realizou ao longo de sua

produção literária.

2.2 Uma literatura militante em diálogo com a cultura histórica

“Parece-me que o nosso dever de escritores

sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas

regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e

51 VERÌSSIMO, José. A educação nacional. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985., p. 115 (SérieNovas Perpectivas).52 Esse texto foi originalmente escrito para uma revista portuguesa denominada Renascença em 1906.53 VERÍSSIMO apud CAMPOS, Raquel Machado Gonçalves. Entre ilustres e anônimos: aconcepção de história em Machado de Assis. Orientador: Noé Freire Sandes. 2009. 179 f.Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federalem Goiás, Goiânia, 2009, p. 27.

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aproveitar de cada um deles o que puder e procurar,

conforme a inspiração própria, para tentar reformar

certas usanças, sugerir dúvidas, levantar

julgamentos adormecidos, difundir as nossas

grandes e altas emoções em face do mundo e do

sofrimento dos homens, para soldar, ligar a

humanidade em uma maior, em que caibam todas,

pela revelação das almas individuais e do que elas

têm em comum e dependente entre si.”

(BARRETO, 1920)

Esse trecho da escrita barretiana utilizada como epígrafe faz parte do

pequeno ensaio “Amplius” que introduz a coletânea de contos Histórias e sonhos,

publicada em 1920. Lima o tornou público primeiramente em 31 de agosto de 1916

por meio do jornal editado no Rio de Janeiro A Época, momento no qual já era

reconhecido como romancista, principalmente pela obra Triste fim de Policarpo

Quaresma. Nele, o autor carioca sintetizou aspectos que considerava

imprescindíveis para superação de uma escrita literária presa a regras gramaticais e

referências que não diziam respeito a sua época.

Numa outra oportunidade, Lima retomou essa discussão, nomeando aquela

literatura, que teria como missão “difundir as nossas grandes e altas emoções em

face do mundo”, de militante. Com um artigo intitulado justamente de “Literatura

militante”, publicado no periódico operário A.B.C de 07/09/1918, o escritor afirmou

que o termo militante havia sido empregado pela primeira vez pelo romancista

português Eça de Queirós (1845-1900).O Eça, por quem não cesso de proclamar a minha admiração, empregou-o,creio que nas Prosas Bárbaras, quando comparou o espírito da literaturafrancesa com a portuguesa.Pode-se lê-lo e lá o encontrei. Ele mostrou que desde muito as letrasfrancesas se ocuparam com o debate das questões da época, enquanto asportuguesas limitavam-se às preocupações da forma, dos casossentimentais e amorosos e da idealização da natureza. Aquelas eram –militantes; enquanto estas eram contemplativas e de paixão.Creio que temo não amar, tendo por ideal de arte essa concepção.Brunetière diz em um seu estudo sobre a literatura que ela tem por fiminteressar, pela virtude da forma, tudo o que pertence ao destino de todosnós; e a solidariedade humana, mais do que nenhuma outra coisa interessao destino da humanidade.54

54 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 73-74.

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Mas foi com aquele texto, originalmente escrito para uma conferência, “O

destino da literatura”, publicado na Revista Souza Cruz dos meses de outubro e

novembro de 1921, que Lima Barreto apresentou a seus leitores maiores detalhes

das referências que o levaram a executar uma literatura militante. Nesse texto, Lima

iniciou sua explanação, comentando a sua relação com o gênero conferência

literária.

Para o autor, tal gênero exigia “desembaraço e graça, distinção de pessoa,

capricho no vestuário e [...] beleza física e sedução pessoal”,55 sendo esses atributos

os valorizados no Brasil. Essas primeiras considerações sinalizam questões que

Lima Barreto já vinha discutindo quanto ao uso da literatura na sociedade carioca de

início do século XX. A conferência, um dos hábitos importados da França e que tinha

normalmente sua execução paga, chamava a atenção para o seu ator, servindo

também como publicidade para sua produção literária.56

Lima, desde o início da sua carreira, apresentou um desconforto com essa

posição de outros literatos que se utilizavam da conferência para obter retorno

financeiro bem como repudiava os temas mundanos e pueris que eram tratados a

fim de agradar o público pagante. Nesse sentido, Lima apresentou como uma das

referências de conferencista o autor francês Anatole France, do qual assistiu

apresentação quando de sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1909.57 O escritor

brasileiro observou que a beleza de Anatole, um requisito importante para um

conferencista naquela sociedade, não era o que chamava atenção de seu público.

Anatole France foi um dos autores que preenchia os espaços de sua “Limana”.

O inventário da sua biblioteca assinalava os seguintes exemplares do autor francês:

Na segunda estante, localizada na segunda prateleira, temos Pierre Noziére, Le Lys

Rouge e L’ Èglise et la Republique, respectivamente na terceira e quarta prateleiras

e, na última estante da quinta prateleira, as obras Crainquebille e Au Petit Bonheur.58

Não podemos especular se Lima havia se detido na leitura desses livros, mas a sua

aquisição revela o seu interesse pelo trabalho de France.

55 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 51.56 BROCCA, Brito. A vida literária no Brasil. 5ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2005, p. 193-200.57 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 56.58 AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Vida literária e desencantos: uma história da formaçãointelectual de Lima Barreto (1881-1922). Orientadora: Maria de Fátima Fontes Piazza. 2015. 341 f.Tese (Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 123.

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A escrita desse, “caracterizada por uma retórica bastante irônica e combativa,

endossava a necessidade de dotar a literatura de alguma utilidade social”.59 Muitos

dos escritos barretianos estão alicerçados por essa perspectiva. Maria Cristina

Machado afirma que:[...] Lima Barreto produziu uma literatura flexível, dinâmica e transgressorados cânones estabelecidos. Interpretando “de dentro”, o intercâmbio arte-sociedade é extremamente visível em Lima Barreto, no modo como suaforma/estilo rompe com os preceitos dominantes, na tentativa de transportarpara o universo literário a vida que se transformava. A sociedade emtransformação, trazida para a literatura como “tema”, transformou a literaturacomo “forma”. É bem verdade que essa perspectiva não pode serconsiderada de modo unilateral, devendo ser relativizada em face dosdesejos do autor. A essa dinâmica, somam-se os ideais literários de LimaBarreto compondo um processo em que a dialética escritor-sociedade estápresente: à realidade em mudança se agregam os ideais literários de umautor inadaptado e marginal.60

Naquele artigo anterior, “Literatura militante” de 1918, Lima especificou os

aspectos do trabalho de Anatole France que o qualificavam como produtor de uma

literatura militante.A começar por Anatole France, a grande literatura tem sido militante.Não sei [...] como classificar a Ilha dos Pinguins, os Bergerets, e maisalguns livros do grande mestre francês, senão dessa maneira.Eles nada têm de contemplativos, de plásticos, de incolores. Todas, ouquase todas as suas obras, se não visam a propaganda de um credo social,tem por mira um escopo sociológico. Militam.61

Azevedo Neto, no seu estudo sobre a formação intelectual do escritor carioca,

traça algumas considerações sobre as obras de Anatole citadas acima que nos

auxiliam nessa reflexão sobre o tipo de literatura que Lima se propôs como missão

elaborar e divulgar. Acerca de Monsieur Bergeret à Paris, de 1900, Azevedo Neto

destaca a presença da trajetória de “um errante professor que passa a ser

perseguido pela população da capital francesa por causa de seu comportamento

excêntrico”.62 Apesar disso, Bergeret, um melancólico filósofo, não abriu mão do que

chamava “de as alegrias do compreender”.O Sr. Bergeret e seu cão, Riquet, são protagonistas de uma verdadeiraodisseia intelectual. Na medida em que o sábio elabora reflexões sobre oEstado e a religião, Riquet, também disseca o caráter humano observandoo comportamento de seu dono. Sem temer aqui fazer uma afirmação

59 AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Vida literária e desencantos: uma história da formaçãointelectual de Lima Barreto (1881-1922). Orientadora: Maria de Fátima Fontes Piazza. 2015. 341 f.Tese (Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 121.60 MACHADO. Maria Cristina Teixeira. Lima Barreto: um pensador social na Primeira República.Goiânia: Ed. da UFG; São Paulo: Edusp, 2002, p. 159-160.61 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 72.62 AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Op.cit., p. 129.

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exagerada, essa obra é uma das mais sutis e engenhosas denúncias sobreos preconceitos dos homens encontrados na literatura moderna.63

Quanto à obra A Ilha dos Pinguins, de 1908, Azevedo Neto observou

“temáticas como as proibições de certos hábitos, o desenvolvimento de uma

nobreza, bem como da propriedade privada, uma vez que esse romance trata-se de

uma sátira na qual Deus, devido a um batismo acidental realizado por um

missionário velho, teve que transformar os pingüins de uma colônia isolada em

pessoas. Durante o processo de aprimoramento de sua cultura, os pingüins

começaram a tornar certas práticas como “se alimentar, defecar ou se reproduzir em

tabus. Por essa narrativa, Anatole expôs ao ridículo “a lógica das convenções

sociais, os preconceitos, as iniqüidades e as perversões das civilizações

ocidentais”.64

As considerações de Lima que expomos sobre o caráter da literatura militante,

levam-nos a perceber em que medida o autor identificava as lacunas da escrita de

outros intelectuais, adensando sua reflexão sobre os produtos culturais a que tinha

acesso. Os dois primeiros textos com os quais iniciamos esse item do nosso estudo,

correspondem às respostas que Lima Barreto elaborou para certas críticas

recebidas a suas publicações até aquele momento. Em “Amplius”, o objetivo do

autor era “esclarecer o que poderia haver de obscuro em certas passagens” dos

seus “humildes trabalhos”. A motivação havia sido o recebimento de uma carta

anônima na qual o missivista fazia “reparos sagazes e originais” ao seu romance

Triste fim de Policarpo Quaresma.65

A crítica em si não incomodava Lima Barreto, uma vez que considerava o

silêncio a única crítica que o aborrecia. O que fez com que contestasse o

correspondente anônimo foi a sua insistência em comentar sobre a Grécia. Numa

clara alusão aos parnasianos brasileiros, Lima confessou:Implico solenemente com a Grécia, ou melhor: implico solenemente comnossos cloróticos gregos da Barra da Corda e pançudos helenos da praiado Flamengo (vide banhos de mar).Sainte-Beuve disse algures que, de cinqüenta em cinquenta anos, fazíamosda Grécia uma ideia nova. Tinha razão.66

63 AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Vida literária e desencantos: uma história da formaçãointelectual de Lima Barreto (1881-1922). Orientadora: Maria de Fátima Fontes Piazza. 2015. 341 f.Tese (Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 129..64 Ibid., p. 130.65 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 29-30.66 Ibid., p. 30

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Lima, então, apresentou alguns resultados de estudos do passado grego a fim

de demonstrar a seu correspondente a historicidade das visões acerca da cultura

daquele povo e, por conseguinte, a necessidade de revisão de sua perspectiva

sobre a Grécia.A nossa Grécia varia muito e o que nos resta dela são ossos descarnados,insuficientes talvez para recompô-la como foi em vida, e totalmenteincapazes para nos mostrar ela viva, e totalmente incapazes, a sua alma, asideias que a animavam, os sonhos que queria ver realizados na Terra,segundo os seus pensamentos religiosos.Atermo-nos a eles, assim variável e fugidia, é impedir que realizemos onosso ideal, aquele que está na nossa consciência, vivo no fundo de nósmesmo, para procurar a beleza em uma carcaça cujos ossos já se fazem pó.Ela não nos pode falar, talvez nem mesmo balbuciar, e o que nos tinha adar, já nos deu e vive em nós inconscientemente.Como se vê, o meu correspondente está preso a ideias mortas; e, emmatéria de novela, por certas notações que fez, à minha, se não estájungida a um pensamento morto, deixou-se prender por uma generalizaçãoque a experiência do gênero não legitima.67

Daí a necessidade que o autor aponta, nesse ensaio, de “sugerir dúvidas e

levantar argumentos adormecidos” bem como “deixar de lado as velhas regras, toda

a disciplina exterior dos gêneros”. Além disso, essa implicância de Lima Barreto com

o helenismo de muitos literatos estava também inserida naquela discussão em torno

do desejo de igualar o Brasil às nações ditas civilizadas, procurando, muitas vezes,

evadir-se da realidade nacional. Brito Brocca afirma que a mania de Grécia entre

nós, como também da latinidade, “era um meio, por vezes, inconsciente, de muitos

intelectuais brasileiros reagirem contra a increpação de mestiçagem, escamoteando

as verdadeiras origens raciais, num país em que o cativeiro estigmatizara a

contribuição do sangue negro.68

A questão racial que tanto incomodava Lima Barreto desde seus projetos

iniciais de estudo e escrita – e, como vimos linhas acima estava no conjunto dos

temas daqueles interessados na produção de uma narrativa do passado nacional -

ressurge nessa discussão sobre a literatura a ser produzida. A linguagem que

deveria ser utilizada para essa produção, pela perspectiva barretiana, deveria ser

renovada.

Na obra Os Bruzundangas, Lima no capítulo especial “Os samoeidas”,

dedicou trechos em que discute aquela relação entre literatura parnasiana e questão

racial. Essa narrativa, classificada como sátira, já tinha sido mencionada por Lima

Barreto ainda em 1911 num artigo publicado na Gazeta da Tarde no qual fazia

67 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 32-33.68 BROCCA, Brito. A vida literária no Brasil. 5ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2005, p. 157.

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referência ao Império das Bruzundangas, mas somente em janeiro de 1917 as

crônicas sobre a República dos Bruzundangas veio a público no semanário A.B.C,

dirigido por Paulo Hasslocher e Luís Moraes.

O narrador dessas crônicas é um jornalista brasileiro que visita essa república

estrangeira. Esse justifica a necessidade do capítulo especial, afirmando que as

notícias que trazia daquele país não seriam completas se não desse algumas

informações sobre suas letras. O narrador, apresentando a mesma finalidade para a

escrita literária do autor Barreto naqueles textos sobre literatura militante, esclarece

os seus leitores:A Bruzundanga não podia deixar de tê-las, pois todo o povo, tribo, clã, todoagregado humano, enfim, tem a sua literatura e o estudo dessas literaturasmuito tem contribuído para nós nos conhecermos a nós mesmos, melhornos compreendermos e mais perfeitamente nos ligarmos em sociedade,humanidade, afinal.69

À literatura é atribuída a missão de unir um povo, a qual é uma formulação

que se aproxima daqueles críticos literários apontados acima, como Sílvio Romero e

José Veríssimo. Deste último, aliás, Lima foi correspondente e recebeu incentivos

para continuar sua carreira, sendo um exemplo de intelectual combativo.70

Continuemos, entretanto, como nossa abordagem da visão barretiana, ainda nesse

capítulo dos Bruzundangas, e, em seguida com os ensaios acima expostos, que

veremos como Lima apresenta outras aproximações com a geração de 1870.

Depois de justificada a sua necessidade de tratar da literatura

Bruzundanguense, o narrador se volta para uma escola literária que considera

característica daquela nação: A “Escola Samoieda”. Nem todos escritores

brunzundanguenses pertenciam a tal escola, apenas os mais pretensiosos, “os que

se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela”. O

narrador ainda explica que disse “caracteriza”, pois “não há na maioria daquela

gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das coisas que

fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las

totalmente, de absorvê-las”.71

Ao lado dessa falta de profundidade de pensamento desses literatos, também

é destacado seu desejo de notoriedade com a produção literária. O narrador, em

seguida, comenta sobre a origem da escola samoieda. Segundo os poetas

69 BARRETO, Lima. Os bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 19.70 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 269-270.71 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 22.

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samoeidas, a escola “nasceu de um poema de um príncipe samoeida, que viveu nas

margens do Ártico, nas proximidades do Óbi ou do Lena, na Sibéria”.

O príncipe era chamado Tuque-Tuque Fit-Fit e descrito como tendo “uma

beleza sem par e triunfal entre as deidades daquelas regiões”.72 Nesse ponto, o

narrador destaca uma fuga da realidade por parte dos poetas que buscavam

prestígio social com sua filiação à escola samoieda.[...] A raça samoeida é de estrutura baixa, pouco menos que dos lapões,cabelos longos, duros e negros de jade, vivendo da carne de renas, de ursobranco.[...]Entretanto na opinião dos poetas daquela república, que dizem seguir asteorias da literatura do Oceano Ártico, não são os samoeidas assim, como ocontam os mais autorizados viajantes; mas sim os mais belos espécimes daraça humana, possuindo uma civilização digna da Grécia antiga.Esta Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga...73

Nesse trecho, o narrador endossa sua visão do distanciamento da realidade

por parte daqueles literatos, sendo que para isso negam até evidências, documentos

confiáveis, como os relatos de viajantes que estiveram nas terras dos samoeidas

com os quais pretendem ser identificados. A fictícia república da Bruzundanga está

localizada “nas zonas tropical e subtropical”,74 mas os seus literatos buscam

apresentar sua produção filiada a uma suposta civilização mais evoluída, sendo um

dos traços que comprovam sua superioridade o clima mais frio, seguindo as

orientações próximas do historiador Buckle.

Como vimos, este autor, norteado por um determinismo climático, afirmou que

o Brasil estava fadado à regressão devido a sua imponente natureza, a qual, em

vez de excitar a imaginação, a inteligência e o engenho dos que dela desfrutavam,

acabaria por produzir-lhes certa hipertrofia de sensibilidade. O contrário ocorreria

com os europeus que, por possuírem um meio físico menos imponente e fértil, eram

compelidos a um esforço maior, tendo que se esforçar frequentemente em trabalhar

e se dedicar a engenhos para tornar sua subsistência possível.75

O príncipe que havia originado a escola literária seguida pelos

bruzundanguenses viveu num das zonas da terra com uma das naturezas mais

hostis - o Ártico -, tendo que se alimentar “da carne de mamutes conservados há

72 BARRETO, Lima. Os bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 23.73 Ibid., loc.cit.74 Ibid., p. 26.75 BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: os primeiros paradigmas: positivismo ehistoricismo. 2 ed. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 99-100.

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centenas de séculos nas geleiras [...]”. Isso, para os literatos da fictícia república,

daria à produção literária do príncipe “singular prestígio”.76

Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por ideias feitas,receitas de julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si qualquerquestão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre recebidasde segunda ou terceira mão, diluídas e desfiguradas pelas sucessivaspassagens de uma cabeça para outra cabeça.77

Como o objetivo dessas notas sobre essa nação estrangeira é “livrar-nos, a

nós do Brasil, de piores males”, uma vez que Bruzundanga possui maiores e mais

completos; essa seria um modelo negativo que devíamos observar para não permitir

que problemas semelhantes viessem a surgir no Brasil e orientasse os leitores

nacionais na observação daqueles que já apresentamos.

Lima critica, mais uma vez, a falta de atenção para a realidade local por parte

de muitos intelectuais brasileiros que adotavam certos modelos de escrita, o que

envolvia a negação da presença de grupos sociais descendentes de não-europeus

na formação da nacionalidade. Antes de retomarmos àquele segundo texto

barretiano sobre literatura militante e a resposta a outro escritor envolvendo

discussões acerca da relação entre literatura e sociedade, vale ainda apresentarmos

mais um aspecto da obra Os Bruzundangas, o qual nos permite vislumbrar a

construção do autor carioca de uma escrita desafiadora aos cânones literários e

atenta às transformações sociais.

Amadeu Guedes, em seu estudo sobre os textos barretianos Os

Bruzundangas e O subterrâneo do Morro do Castelo, destaca no primeiro o recurso

ao diálogo de gêneros.78 O autor argumenta que esse diálogo marcou a produção

literária de Lima Barreto, algo que, como vimos, o próprio escritor havia elencado

entre os objetivos de sua literatura militante naquele ensaio “Amplius” (“deixar de

lado toda a disciplina exterior dos gêneros”). Sevcenko já tinha observado que a

literatura barretiana se distribui pelos gêneros sátira, romance, crônica, conto,

epistolografia e memórias, sendo que estes, no seu processo criativo, são, muitas

vezes, combinados simultaneamente.79

76 BARRETO, Lima. Os bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro)., p. 23.77 Ibid., p. 24.78 GUEDES, Amadeu da Silva. Diálogos de Lima Barreto com o cientificismo em OsBruzundangas e O Subterrâneo do Morro do Castelo. Orientador: Luis Filipe Ribeiro. 2012. 252 f.Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) – Programa de Pós-Graduação em Letras daUniversidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 44-62.79 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 194.

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Esse aspecto também revela a percepção de Lima quanto à importância de

adequação da linguagem diante das mudanças socioculturais daquele início do

século XX. “Numa sociedade com ideais de modernidade, a ampliação e mistura de

gêneros discursivos e estilos de escrita tornam-se necessárias para se dar conta das

ações e relações humanas naquele momento”.80 Além disso, a escrita acadêmica,

muito influenciada pelos ideais cientificistas, não atenderia à abordagem que Lima

pretendia realizar acerca da realidade de sua época, uma vez que o seu interesse

era representar os segmentos sociais desconsiderados pelo poder republicano e

estigmatizados pelo discurso dos intelectuais seguidores de pensamentos

deterministas importados da Europa.No que se refere à literatura propriamente dita, as transformações históricasde todo esse período fizeram sentir o seu peso sobre ela. O grandepassado da unidade romântica, da plena vigência das ilusões e dossentimentos, é percebido como uma angustiosa ausência. O fracionamentodo romantismo em várias escolas que acabaram se equiparando emantendo-se eqüidistantes, impedindo a definição de uma nova grandecorrente, arruinou irremediavelmente o grande império literário do séculoXIX, expondo os escritores à concorrência da ciência, do jornalismo e até docinematógrafo.81

Vimos como Lima havia se apropriado do modelo de enfoque que se

aproximava do padrão de linguagem também utilizado pela ciência por meio da

adoção do foco narrativo da literatura naturalista. Outros recursos lingüísticos de que

se serviu foram os empregados pelo jornalismo. Dentre os gêneros discursivos que

Amadeu Guedes identificou na obra Os Bruzundangas, temos, ao lado da sátira, a

crônica jornalística.

Esse gênero é predominante na obra. Além de seu narrador se apresentar

como jornalista, podemos perceber na obra os traços daquele gênero como a

linguagem cotidiana e a atenção aos detalhes. Lima Barreto havia iniciado sua

trajetória na imprensa no ano de 1902 num jornal de estudantes denominado A

lanterna. Além desse, o autor escreveu para revistas humorísticas como Tagarela,

Fon-Fon, Careta (a sua colaboração nesta só foi interrompida com sua morte), O

Diabo e a revista literária Floreal, de sua criação. Quanto aos jornais, podemos

destacar a sua presença no reconhecido Correio da Manhã, no qual produziu uma

80 GUEDES, Amadeu da Silva. Diálogos de Lima Barreto com o cientificismo em OsBruzundangas e O Subterrâneo do Morro do Castelo. Orientador: Luis Filipe Ribeiro. 2012. 252 f.Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) – Programa de Pós-Graduação em Letras daUniversidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 50.81 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 122.

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série de reportagens, sem assinatura, intitulada “Os subterrâneos do Morro do

Castelo” entre os meses de abril e junho de 1905; na Gazeta da Tarde; no Jornal do

Comércio no qual iniciou, em folhetins, o romance Triste fim de Policarpo Quaresma

em agosto de 1911; em A Noite; no semanário político A.B.C. entre outros

periódicos.82

Familiarizado com a crônica jornalística, a qual é um gênero flexível, Lima na

narrativa de Os Bruzundangas, então, inseriu recursos estéticos que dialogam com

as narrativas de viagem. Esse diálogo, por sua vez, nos permite a observação da

forma como o autor discute as relações temporais presentes na sua sociedade.Se a crônica, literariamente trabalhada na obra, apresenta [...]características relacionadas ao instante presente, ao leitor e seu cotidiano eao pormenor, as narrativas de viagem ligam-se ao passado, estãointimamente relacionadas ao processo de mapeamento dos povos não-europeus. Elas apresentam o olhar do estrangeiro. Foram elas queajudaram a “sciencia” a construir uma imagem dos outros povos.Na obra, encontramos a apresentação de uma terra exótica e distante e quefaz parte das experiências do narrador. No entanto essa terra exótica,distante e imaginária, ela é a representação satírica do país atual dessemesmo narrador, que é um jornalista..83

Segundo Guedes, no casamento entre esses dois gêneros literários na obra

Os Bruzundangas, a crônica “dá uma força vivificante às narrativas de viagem”.

Desse modo, as descrições realizadas pelo narrador viajante representam “o detalhe

e o momento”, permitindo a visualização da Bruzundanga por um ângulo diferente

do oficial. A crônica, a narrativa de viagem e outros gêneros reunidos na

conformação dessa obra barretiana procuram dar contar da pluralidade do país,

discutindo reminiscências do passado no seu presente bem como apontando “as

tensões na ordem social idealizada em parâmetros estranhos àquele lugar”.84

Para Lima, a literatura militante deveria sinalizar um futuro diferente da

realidade presente do Brasil. A sua consciência histórica era afiada e as suas

palavras escritas buscavam rasgar o tecido social e evidenciar suas contradições.

Não foi à toa que no artigo “Literatura militante”, Lima se mostrou inconformado com

a leitura que o historiador, jornalista e escritor português Carlos Malheiro Dias

82 Cf. BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros).83 GUEDES, Amadeu da Silva. Diálogos de Lima Barreto com o cientificismo em OsBruzundangas e O Subterrâneo do Morro do Castelo. Orientador: Luis Filipe Ribeiro. 2012. 252 f.Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) – Programa de Pós-Graduação em Letras daUniversidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 55-56.84 Ibid., p. 55-56.

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expressou sobre a literatura de Anatole pela qual o autor carioca tanto nutria

admiração.

Pelo artigo “À margem do último livro” de Anatole France, publicado em 2 de

setembro de 1918 no O Paíz, Malheiro Dias deixou transparecer um desdém pelos

escritores militantes quando enfatizou que o escritor francês “não era lido apenas

por esse segmento do campo literário”.85 Malheiro considerou que apenas as elites

tiveram um melhor proveito da literatura produzida por Anatole e “literatos

aprendizes, militantes e honorários” que enveredaram pelo jornalismo, ao se

apropriaram do pensamento do escritor francês, vulgarizaram as letras. Um último

ponto que merece ser destacado dessa leitura de Malheiro foi a sua visão de um

suposto afastamento dos literatos “da graça da forma” e da “arte de escrever com

elegância”.86

Em resposta, Lima afirmou: “[...] não sei porque despreza os aprendizes

literatos, militantes e honorários”. [...] Eu sempre falei em literatura militante, se bem

julgando aprendiz, mas não honorário, pois já tenho publicado livros, tomei o pião na

unha”.87 Diante disso, apresentou aquela leitura, a qual acima destacamos, sobre o

caráter das obras de Anatole que, como vimos, apresentavam uma forte crítica

social. Logo em seguida, Lima Barreto, numa postura anticolonial, apontou autores

portugueses que, pela sua ótica, não mereceriam a atenção “que estamos tendo por

eles”, pois não representavam a realidade local.O Brasil é mais complexo, na ordem social econômica, no seu própriodestino, do que Portugal.A velha terra lusa tem um grande passado. Nós não temos nenhum; sótemos futuro. E é dele que a nossa literatura deve tratar, de maneira literária.Nós nos precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos outros;precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bemsuportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos. Em vez de estarmos aía cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia dearmazém por atacado, porque moram em Botafogo ou Laranjeira, devemosmostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou umitaliano se podem entender e se podem amar, no interesse comum a todosnós.88

85 AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Vida literária e desencantos: uma história da formaçãointelectual de Lima Barreto (1881-1922). Orientadora: Maria de Fátima Fontes Piazza. 2015. 341 f.Tese (Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 132.86 Apud AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Vida literária e desencantos: uma história da formaçãointelectual de Lima Barreto (1881-1922). Orientadora: Maria de Fátima Fontes Piazza. 2015. 341 f.Tese (Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 131.87 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 72.88 Ibid., p. 72-73.

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Essas expectativas de Lima Barreto levaram-no a questionar como a literatura

ou a arte poderia contribuir “para a felicidade de um povo, de uma nação, da

humanidade”.89 No seu texto “O destino da literatura”, Lima, tendo como referências

outros autores franceses como Taine, Brunetière e Guyau, os russos Tolstói e

Dostoiévski e o escocês Thomas Carlyle, explicitou seu pensamento sobre esse

questionamento, o qual considerou como “o resumo do problema da importância e

do destino da Literatura que se contém no da arte em geral”.90

“O debate a esse respeito não está encerrado, e nunca ficará encerrado

enquanto não concordarem os sábios e as autoridades no assunto que o fenômeno

artístico é um fenômeno social e o da Arte é social para não dizer sociológico”.91

Esse debate, por sua vez, leva, segundo Barreto, a outro questionamento: “o que é a

Beleza?”

Seguindo as ideias de Taine, Brunetière e, especialmente, dos escritos

anarco-estéticos de Jean-Marie Guyau e de Tolstoi no ensaio O que é a arte?,

publicado em 1898,92 Lima argumentou que a beleza estética depende da

“substância da obra”.93 Tal concepção deveria ser vinculada ao destino humano

neste mundo. A importância da literatura, então, reside em seu conteúdo, o qual

“fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que

nos cerca e aluda às questões de nossa conduta na vida”.94

Como exemplo do “pensamento de interesse humano que a literatura deveria

exteriorizar, Lima citou a obra Crime e Castigo de Dostoiévski. A partir desta, o autor

explicitou que o argumento do texto literário deveria ser transformado em sentimento.

Este, que motivou o autor do texto ou simplesmente foi por ele descrito, tem o poder

de contágio, passando o “simples capricho individual” para “traço de união, em força

de ligação entre os homens [...]”.95

Nesse sentido, a arte, incluindo a literatura, para Lima, baseando-se em

Guyau, contribuiria para a humanidade superar os “preceitos e preconceitos de seu

tempo, de seu nascimento, de sua pátria, de sua raça [...]”.96 O sentimento

89 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 55-56.90 Ibid., p. 56.91 Ibid., loc.cit.92 OAKLEY, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2011,p. 4.93 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 58.94 Ibid., p. 59.95 Ibid., p. 62.96 Ibid., p. 66.

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barretiano é um desejo de comunicar ideias para a humanidade e pela humanidade.

Segundo Oakley, esse seria “a primeira necessidade fundamental sobre a qual se

baseia o conceito de arte barretiano”.97

Quanto à segunda, esta mais pessoal, é “necessidade de uma inteligência

considerável, a qual se aprimoraria pelo “meio quase perfeito de comunicação”: a

linguagem.[...] com a qual nos é permitido somar e multiplicar a força do pensamentodo indivíduo, das nações e das raças, e até, mesmo das gerações passadasgraças à escrita e à tradição oral que guardam as cogitações e conquistasmentais delas e se ligam às subseqüentes.[....]A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos e ideias, sob a forma desentimentos, trabalha pela união da espécie [...].[...] ela explicou e explica a dor dos humildes aos poderosos e asangustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, uns aos outros,as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, mas maisdiversas épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda do criminoso,do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonietasubindo à guilhotina [...].[...] a literatura [então] reforça o nosso natural sentimento de solidariedadecom os nossos semelhantes, explicando-lhes os defeitos, realçando-lhes asqualidades e zombando dos fúteis motivos que nos separam uns dosoutros.98

Aqui notamos, implicitamente, umas das críticas que Lima fazia à

historiografia produzida por integrantes do IHGB99 bem como à literatura

predominante na grande imprensa e na Academia Brasileira de Letras. As narrativas

aceitas nesses ambientes acabavam por ser produtoras de memórias que

efetivavam desigualdades, hierarquias, pois tinham como personagens principais

membros das elites política, econômica e cultural do Brasil e/ou relegava aos demais

grupos étnico-sociais um espaço subalterno no enredo, atribuía-lhes características

inferiorizantes bem como os retirava das cenas, silenciando-os.

No trecho acima de “O destino da literatura”, Lima apresentou sua expectativa

de aproximar, via a sua literatura militante, sujeitos históricos de segmentos sociais e

temporalidades diversas. Sua preocupação estava voltada para uma linguagem que

possibilitasse uma comunicabilidade dos sentimentos, anseios e angústias daqueles

sujeitos a fim de transformar a mentalidade predominante da sua época, na qual

criações ditas científicas norteavam a construção das muitas narrativas literária e

histórica em circulação.

97 OAKLEY, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2011.,p. 5.98 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 67-68.99 Trataremos como mais acuidade essa implicância de Lima Barreto no item 3.2.

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O propósito da literatura militante, para Lima, era tornar “assimilável à

memória”100 aquele sentimento em que os diversos sujeitos se compreendessem.

Apesar de sua visão universalista, Lima, nesse propósito, não descuidava das

questões locais. Pelo contexto sociocultural que vimos acima, discutir questões

como as relações entre construção da identidade nacional, poder, escrita e formas

de lidar com o passado estava entre os objetivos literários do escritor Lima Barreto.

A última parte de “O destino da literatura”, na sua argumentação em prol do

realce dos “nossos defeitos” e zombaria “dos fúteis motivos que nos separam uns

dos outros”, traz o pensamento de Carlyle no qual o homem de letras é um herói

incumbido. A leitura de Lima do ensaio O que é a arte? de Tostói e da obra Os

heróis de Carlyle, fez com que o autor carioca tomasse para si a missão de produzir

uma literatura pela qual os seus leitores tivessem acesso a uma escrita sincera. Esta,

por sua vez, era entendida como uma forma de desvendar os motivos das

desigualdades entre os seres humanos e, ao mesmo tempo, provocar a reflexão

acerca do poder que a linguagem poderia ter sobre a deturpação da realidade.O conceito do sacerdócio das letras carlyleano está associado diretamenteao primeiro dos pensadores pós-kantianos, Johannes Gottieb Fichte (1762-1814), especialmente a uma das suas obras mais célebres, populares edivulgadas: a série de ensaios Bestimmung des Gelehten [Vocação doestudioso], de 1794, desenvolvidos e ampliados alguns anos depois emuma segunda série de intitulada Über das Wesen des Gelehten [Sobre anatureza do estudioso), de 1806. [...].101

Segundo Oakley, Fichte havia criado uma concepção de sociedade humana

formada por várias vocações morais, as quais, por sua vez, convergiram para um

ideal comum que seria “o estabelecimento de uma ordem mundial moral”. A

natureza do estudioso seria o de guiar a humanidade, sua vocação sagrada. “Nesta

noção de estudioso verdadeiro, ideal, perfila-se a noção carlyleana do herói”.A literatura, na percepção tolstoiana do papel que adquire na sociedade, éobviamente uma daquelas vocações morais. A noção de vocação literáriacomo manifestação do estudioso como guia da humanidade é remetida aÜber das Wesen des Gelehten, obra em que Fichte sustenta que osmestres ideais se dividem em duas espécies: a primeira ensina o resto dahumanidade, e a segunda propaga uma concepção a que Fichte chama deIdeia Divina do mundo, numa forma completa, acabada: a escrita. Taisestudiosos são autores. Contudo, nos últimos parágrafos de seu ensaio-

100 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 61.101 OAKLEY, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2011,p. 8.

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palestra, no qual Lima Barreto cita a expressão achada de Carlyle, o termoliteratura amplia-se para abranger qualquer forma de palavra escrita. [...]102

Carlyle seguia a visão fichteana do estudioso ideal pela qual haveria dois

tipos. O falso, que age por uma percepção das meras aparências (um fracassado); e

o verdadeiro cuja ação se baseia “numa verdade muitas vezes escondida,

caminhando sempre à procura da verdade. Com essas e outras concepções em

mente, como veremos a seguir, Lima se debruçou sobre um tema muito caro à

intelectualidade brasileira na época e fortemente ancorada na forma como o

passado estava sendo representado: a questão nacional.

Essas concepções devem ser levadas em conta também ao observarmos o

interesse barretiano pela história do seu país e o papel da linguagem na sua

divulgação, o que esteve entrelaçado com seu desejo de apresentar a literatura

como uma forma de conhecimento válido para a compreensão da realidade.

2.3 Literatura, história e nacionalismo na escrita barretiana

O interesse de Lima pelo conhecimento do passado nacional foi contínuo ao

longo de sua trajetória intelectual. Em carta ao escritor Almeida Magalhães, datada

de 15 de julho de 1918, Lima confessou a mudança de preferência em suas leituras.De há muito, desde os tempos em passei na Escola Politécnica do Rio deJaneiro, que só acidentalmente faço leituras filosóficas. Quando andei por lá,em casa ou na biblioteca, lia o meu maravilhoso Descartes, o Comte, oSpencer e mesmo o Kant, mas, desde que a abandonei [1902], todo mevoltei para a Literatura, para a História e para as questões econômicas esociais [...].103

A sua “Limana” refletiu esse interesse, pois possuía, entre as obras de

literatura e filosofia, 63 exemplares com temas sobre História Geral e do Brasil.104 A

escolha barretiana de escritor da língua portuguesa como referência de literatura

militante também evidencia a sua busca por um diálogo entre as narrativas literárias

e históricas na construção de seu realismo crítico.

José Maria de Eça de Queirós, representante da Geração de 1870 e citado

como pioneiro por Lima no uso do termo literatura militante, desenvolveu uma

102 OAKLEY, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2011,p. 9.103 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c (TomoII), p. 45.104 BOTELHO, Denilson. Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto. Orientador:Sidney Chalhoub. 2001. 243 f. Tese (Doutorado em História) – Programa em Pós-Graduação emHistória da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001, p. 165-186.

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literatura na qual predominou a abordagem de temas sociais e o tratamento de

maneira objetiva da realidade humana. Publicou obras marcantes para a literatura

portuguesa como, por exemplo, O crime do Padre Amaro (1880), O Primo Basílio

(1874), Os maias (1887) e A Relíquia (1887). Neste último, o estudioso Antonio Nery

observou como no seu terceiro capítulo, Eça, a fim de representar na sua narrativa

um Jesus Cristo humanizado, parodiou ou aproveitou, além da Bíblia, textos de

filósofos e historiadores.

Dos historiadores, Nery identificou a presença na narrativa de Eça de uma

intextualidade com trabalhos dos franceses David Strauss (1808-1874) e Ernest

Renan (1823-1892).105 O último historiador, em especial, fez parte das leituras e

apropriações de Lima Barreto para a composição de suas narrativas, como veremos

um pouco mais adiante. Além disso, o escritor carioca se ateve ao pressuposto de

Eça, “sorvido do naturalismo francês, de captar um máximo de realidade e compô-lo

com um mínimo de ficção”, o que ficou claro pela “sua tônica obstinadamente

confessional”.106

Contudo, Lima exagerou o postulado de Eça no sentido inverso, utilizando-se

de caricaturas e ironias na sua ficção. Para Lima, a realidade “só poderia falar

através da ficção, ficção crítica e caricatural, bem entendido”.107 A ironia já fazia

parte das primeiras tentativas barretianas de elaboração literária, como vimos nos

seus esboços acima, e permitia ao autor distorcer e desautorizar certos discursos

com os quais implicava.[...] Lima a concebia numa envergadura bastante ampla, “que vai da simplesmalícia ao mais profundo humour”, abrangendo praticamente a inteireza desua obra. Era o artifício através do qual se sobrepunha aos infinitospercalços que entravavam o desenvolvimento da personalidade e dacarreira. [...].108

Quanto à caricatura, Lima, naquela sua busca por adequar a linguagem

literária às mudanças sociais e culturais, observou o trabalho dos ilustradores com

os quais teve contato durante sua passagem pela revista humorística Fon-Fon na

105 NERY, Antonio Augusto. Bíblia, história e ficção: a intextualidade no terceiro capítulo de A relíquia(Eça de Queirós). Revista de Literatura, História e Memória. 2009, vol.5, n. 5. ISSN 1809-5313, p.193-205. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/article/view/2111 Acesso em: 24abr. 2018.106 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 238.107 Ibid., loc.cit.108 Ibid., p. 197.

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qual as caricaturas abundavam.109 Outras fontes utilizadas, assim como para a ironia,

foram os modelos apropriados de autores estrangeiros como Swift, Dickens, Voltaire,

Balzac, Daudet e Maupassant.110

Contudo, Lima não procurava seguir à risca esses modelos de escrita, muitos

dos quais oriundos do jornalismo da época. Como temos acompanhado, Lima os

utilizava de uma forma que colaborassem para os propósitos de sua literatura

militante. Ainda em 1905, Lima assinalou, entre suas anotações pessoais, suas

observações acerca da ignorância dos literatos de sua época a partir de sua

participação em algumas rodas literárias cujos encontros se davam em bares, cafés

e confeitarias.Eu tenho notado nas rodas que hei frequentado, exceto a do Alcides, umanefasta influência dos portugueses. Não é o Eça, que inegavelmente quemfala português não o pode ignorar, são figuras subalternas: Fialho emenores. Ajeita-se o modo de escrever deles, copiam-lhes os cacoetes, aestrutura da frase, não há dentre eles um que conscientemente procureescrever como seu meio pede e o requer, pressentindo isso na tradição dosescritores passados, embora inferiores. É uma literatura concetti, umaliteratura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas, não há neles umgrande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de epopéia,o ciclo lírico há neles é mal encaminhado para a literatura estreitamentepessoal, no que há de inferior e banal: amores ricos, mortes de parentes ecoisas assim. A pouco e pouco, vou deixando de os freqüentar, abomino-lhes a ignorância deles, a lassidão, covardia dos seus ataques.111

Dois anos depois, numa carta a Mário Pederneiras na qual justificava sua

saída daquela revista Fon-Fon (ele colaborou nos três primeiros trimestres dessa

revista com crônicas e artigos assinados sob o pseudônimo de Philéas Fogg e S.

Holmes), Lima demonstrou sua insatisfação quanto à produção literária veiculada

pela imprensa e sua consequente inadequação. Nessa, relatou seu esforço para

agradar os proprietários da revista: “[...] Fantasio, imagino, faço química, escrevo

pilhérias... não há meio”, acrescentando:[...] Eu mais que ninguém, já pela idade, já pelo talento, estou disposto a mecurvar, a respeitar, [...] a ti, Mário Pederneiras112, [...]; mas, se não me gabode ser escritor (eu o sou, segundo eu mesmo), contudo, pela minhaeducação inicial, orgulho-me de ter alguma penetração e um pouco o domde colher analogias; assim atribuo à antipatia dos donos da revista odesfavor em que estou, e toda gente sabe o que é antipatia no julgamentode um escritor...113

109 NORONHA, Carlos Alberto Machado. Lima Barreto entre lutas de representação: uma análiseda modernização da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Curitiba: CRV, 2018, p. 42.110 SEVCENKO, Nicolau. Op.cit., p. 198.111 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 100.112 Pederneiras foi um dos fundadores da Fon-Fon.113 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c (TomoII), p. 162.

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Lima Barreto não se ajustava às demandas da revista e via o humor praticado

pelos outros colaboradores como superficial, apresentando-se como capaz de

produzir textos que “mergulhassem” na realidade social. Ao compararmos esse

desabafo com aquele de 1905, presente nas suas anotações pessoais, percebemos

também o quanto Lima estava atento à padronização da escrita dos literatos que

ocorria naquele início do século XX no intuito de atender ao desejo dos proprietários

dos periódicos cariocas em obter lucro e prestígio.

Nesse sentido, o autor carioca sugeria que os outros escritores fossem

independentes intelectualmente e procurassem escrever seus textos a partir da

realidade que os cercava, a qual ia além dos acontecimentos ocorridos nos “salões

elegantes” do Rio de Janeiro (“amores ricos, mortes de parentes e coisas assim”).

Lima procurava com o recurso caricatural, juntamente com a linguagem simples e

despojada por ele empregada, uma comunicabilidade mais imediata e expressiva,

uma vez que a caricatura, ao exagerar os traços de uma dada realidade ou sujeitos,

permite “revelar os defeitos e expor as deformações que despertem o desprezo

geral”114. (“aquilo que os simples fatos não dizem”).

Daí Lima rejeitar a retórica e apontar sua possibilidade de deturpação de fatos

da realidade, mostrando sua preocupação com as relações entre linguagem e poder.

Numa de suas anotações pessoais de 1904, o autor carioca registrou sua impressão

acerca da forma como Rui Barbosa, no mês de novembro, se referiu aos

acontecimentos relacionados com a Revolta da Vacina.Rui, o letrado beneditino das coisas de gramática, artificialmente artista eestilista, aconselha pelos jornais condutas ao governo. Há dia, ele, no augeda retórica, perpetrou uma extraordinária mentira. Referindo-se ao dia 14,que fora cheia de apreensões, de revoltas e levantes, e à nota a 15, davitória da “legalidade”, disse assim, da manhã de 15: “fresca, azulada eradiante”, quando toda a gente sabe que essa manhã foi chuvosa, ventosae hedionda.Eis até onde leva a retórica; e depois...115

José Murilo de Carvalho, em estudo sobre a presença da retórica na história

intelectual do Brasil, afirma que o seu uso tem raízes na formação escolar vinda de

Portugal e teve um peso significativo na linguagem dos pensadores brasileiros. Ao

analisar alguns compêndios dos séculos XVIII e XIX sobre retórica usados no Brasil

114 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 198.115 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 51.

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e em Portugal, assinala que a retórica busca persuadir, mover a vontade.116 Lima,

assim como outras heranças lingüísticas que já vimos combater, condenou a

exploração da retórica, considerando-a imoral e reacionária,117 contrariando os

princípios de sua literatura militante.

Com essa bagagem cultural, Lima levou à frente sua produção textual por

meio da qual discutiu fatos da história contemporânea que envolviam questões

relacionadas ao nacionalismo. Lúcia Lippi Oliveira destaca que a “questão da nação

como uma unidade própria emergiu em diferentes momentos do processo de

autoconsciência dos intelectuais brasileiros, e um deles ocorreu na segunda metade

do século XIX, com a chamada “geração de 1870”.118

Essa autora, valendo-se das palavras de José Veríssimo, afirma que

“sucessos de ordem política e social, e ainda de ordem geral” contribuíram para a

manifestação de ideias oriundas da Europa, as quais começaram a operar no velho

continente “antes de acabada a primeira metade do século XIX” e influenciaram vinte

anos depois muitos intelectuais no Brasil. O “bando de ideias novas”, que vimos

acima como o positivismo comtista, o transformismo darwinista, o evolucionismo

spenceriano, o intelectualismo de Taine e Renan, tiveram uma grande influência na

literatura nacional, pondo termo ao “domínio exclusivo do romantismo e

reverberando na forma como se discutia a formação da nação.

Dentre os “sucessos” que Veríssimo assinalou, tínhamos a Guerra do

Paraguai (“acordando o sentimento nacional”); a questão do elemento servil

(“comovendo toda a nação); a questão religiosa; “a guerra franco-alemã com suas

consequências, despertando a nossa atenção para uma outra civilização e cultura

que a francesa, estimulando novas curiosidades intelectuais; e acontecimentos que

“fizeram ressurgir aqui com maior vigor do que nunca a ideia republicana” como o

advento da República na Espanha após a Revolução de 1868, a queda do Segundo

116 CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura.Revista Topoi, Rio de Janeiro, 2000, vol.1, n.1, p.137. Disponível em:www.revistatopoi.org\numeros_anteriores/Topoi01/01_artigo03.pdf Acesso em: 29 mai. 2016.117 OAKLEY, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2011,p. 41.

118 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense;Brasília: CNPQ, 1990, p. 79.

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Império napoleônico e a consequente Proclamação da República na França em

1870.119

No início desse capítulo, havíamos comentado sobre a relação entre

legitimação do regime republicano brasileiro e construção de uma identidade

nacional com base, principalmente, nas premissas do cientificismo. Essa tríade, na

busca de fortalecimento da nacionalidade brasileira frente às ditas nações civilizadas,

propiciou a reinterpretação da história do país. Aqueles homens da geração de 1870

pretendiam “entender o Brasil, construir o Brasil”120 e, para alcançar esse objetivo,

“julgavam que o país deveria repetir, de forma acelerada a experiência do Ocidente”.Neste contexto, a construção do sentimento brasileiro tinha uma importânciafundamental, sendo a nacionalidade o critério básico de avaliação dosprodutos literários e culturais. Eles apontavam a carência de originalidadena literatura brasileira e viam como saída o estudo etnológico e histórico.121

Percebemos que as questões locais eram apreciadas por essa

intelectualidade de modo concomitante à repercussão dos acontecimentos que se

davam no continente europeu. Em relação ao nacionalismo, o seu conteúdo naquele

continente mudou entre 1840 e 1890. O nacionalismo já não era mais um movimento

democrático-revolucionário que buscava organizar o povo. A proposta passou “a ser

a organização de uma sociedade altamente excludente, autocentrada, fechada, em

oposição a qualquer tipo de internacionalismo.122

Nesse contexto, embora não fosse novidade a discussão sobre as

desigualdades de raças na Europa, surgiram novas implicações histórico-políticas

para noção de desigualdade já existente. Diferentes pensadores, em meados do

século XIX, passaram a interpretar os conflitos de ordem política e social em termos

de luta de raças.

Como destaque, podemos assinalar, o já apontado por Veríssimo, conflito

franco-prussiano de 1870. A derrota francesa fez do revanchismo uma bandeira

nacional, contribuindo para a penetração no pensamento francês de componentes

racistas, corporificadas no anti-semitismo. Produziu-se “uma reflexão preocupada

em explicar como a Prússia, aristocrática e hierárquica, pôde vencer a França,

democrática e igualitária”.123

119 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense;Brasília: CNPQ, 1990, p. 80.120 Ibid., p. 85.121 Ibid., p. 85.122 Ibid., p. 45.123 Ibid., p. 50.

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Autores como Renan, Taine, Fustel de Coulanges se debruçaram sobre essa

questão, partilhando da nostalgia de valores aristocráticos. Somados à aquela

derrota francesa, acontecimentos como o trauma da Comuna de Paris, a

mobilização política na luta contra a democracia liberal representada pelo regime

parlamentar (o boulangismo), o escândalo do Panamá e o caso Dreyfus contribuíram

para o clima de revanchismo, antisemitismo, antiparlamentarismo, anticlericalismo e

militarismo que se seguiu na França depois de 1870.124

O esforço da intelectualidade francesa em reinterpretar o passado ereconstruir a ideologia nacionalista deixou marcas em todo pensamento queteve no mundo francês sua fonte de inspiração. A estrutura temática donacionalismo e do cientificismo franceses se fizeram presentes nopensamento social brasileiro do século XIX e início do século XX. [...]As visões de mundo de Renan e Taine foram fontes de inspiração paraparcela considerável da intelectualidade literária do Brasil da PrimeiraRepública. O determinismo preso às leis inexoráveis da natureza física ebiológica marca o pensamento moderno brasileiro, ou seja, aquele querompeu como o nosso passado romântico do século XIX [certamente, comojá vimos, que essa importação de ideias obedeceu aos critérios deadequação nacional].125

Lima, na abertura de uma coletânea de relatos sobre tradições e lendas

populares denominada “Mágoas e sonhos do povo” e publicada na revista Hoje de

1919, recordou-se de um periódico quinzenal por meio do qual teve acesso a textos

de muitos representantes daquela geração de 1870.Em 1884, publicou-se aqui, neste Rio de Janeiro, uma pequena revistaquinzenal intitulada Gazeta Literária. [...].O jornalzinho literário era [...] bem feito e curioso. Impresso em bom papel enas oficinas Leuzinger, muito cuidado na revisão, tinha um aspecto muitosimpático e uma leitura variada, de forte cunho intelectual. Colaboravamnele nomes conhecidos, alguns cheios de glória inesquecível, comoCapistrano de Abreu, Raul Pompéia, João Ribeiro, Urbano Duarte, ValentimMagalhães, Araripe Júnior, e outros que, embora pouco conhecidos dogrande público, ainda são, não obstante, muito estimados pelos que seinteressam com as etapas do nosso acanhado desenvolvimento intelectual.[...][...] podemos dizer que, sem nome de diretor, sem talvez um programadefinido (não tenho o número inicial), o espírito que a animava, como osleitores estão vendo, era de um grande nacionalismo.Não era o nacionalismo dos nossos dias, guerreiro, espingardeiro,“cantativo”, mas que acaba na comodidade das linhas de tiro de classes erepartições e deixa para as funções árduas do verdadeiro soldado a pobregente que sempre as exerceu, com sorteio ou sem ele.Era um patriotismo mais espiritual, que não tinha uma finalidade guerreira epretendia tão somente conhecer as coisas da nossa terra, a alma das suaspopulações, o seu passado, e transmitir tudo isto aos outros, para nos

124 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense; Brasília:CNPQ, 1990, p. 51.125 Ibid., p. 73.

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ligarmos mais fortemente no tempo e no espaço, em virtude desseentendimento mútuo.126

Lima tinha na sua biblioteca recortes de periódicos antigos que costumava

guardar para suas leituras acerca do pensamento de homens passados.127 No

trecho acima, vemos uma pequena amostra de sua coleção em que percebemos

sua admiração pela forma como aqueles autores citados procuravam estudar a

nacionalidade bem como sua percepção das mudanças nesses estudos no final da

década de 1910.

Lima desaprova o abandono do nacionalismo “praticado” por aqueles

membros da geração de 1870 pelo de contornos militaristas e belicistas do momento

em que escrevia aquele texto. Mesmo tendo críticas ao cientificismo da geração de

1870 e a algumas de suas premissas que afastavam da sua análise a realidade local,

como já indicamos, o novo conteúdo que se revestia o nacionalismo entre os

intelectuais brasileiros lhe parecia mais preocupante.

Estava no ano de 1919, depois do fim da Primeira Guerra Mundial e este

conflito trouxe transformações para vida intelectual brasileira quanto ao modo como

abordavam o tema nacionalismo. “Após sua eclosão, reacendeu-se a necessidade

de pensar o Brasil do ponto de vista brasileiro”, tendo como pano de fundo “o

confronto e a releitura da tradição, ou seja, a releitura da interpretação histórica”.128

Lima foi um dos autores que se posicionaram em relação ao confronto

mundial, discutindo, por meio de suas crônicas, as bases do nacionalismo que

estava por trás da deflagração da guerra e sua apropriação pela intelectualidade

brasileira. As crônicas que publicou acerca de como os nacionalismos interferiam na

compreensão do passado, tinham como objeto os acontecimentos que justamente

contribuíram para aquela mudança de perspectiva. Discuti-las, nesse momento do

nosso trabalho, vai permitir que observemos como Lima se apropria de referências

historiográficas daquele período para produzir sua versão dos fatos.

O primeiro texto de Lima que selecionamos foi a crônica “Meia página de

Renan”, publicada na Revista Contemporânea do dia 3 de julho de 1919. O foco do

126 BARRETO, Lima. Coisas do Reino do Jambon: sátira e folclore. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,1961b, p. 241-242.127 Cf. BARRETO, Lima. Velhos “apedidos” e velhos anúncios. In: BARRETO, Lima. Toda crônica:Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença. Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro:Agir, 2004a, p. 376. BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: LivrariaJosé Olímpio, 1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 365.128 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense;Brasília: CNPQ, 1990, p. 126.

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autor foram duas obras dos franceses Renan e Taine e o modo como o resultado do

conflito franco-prussiano em 1870 teve reflexos na interpretação histórica de ambos.

O escritor carioca iniciou sua crítica a partir de alguns trechos da obra La reforme

intellectualle e morale de la France, traduzidos e publicados naquela revista.

O autor afirma que houve um grande abalo “nos grandes espíritos de França,

que tinham florescido antes da guerra de 1870” com a derrota e humilhação de sua

pátria no ano de 1871.129 Lima considerou que esse abalo era natural, pois, “por

mais que nós queiramos ficar acima dos preconceitos nacionais, eles nos marcam

de uma forma indelével”.

E ironiza: “Se isto se dá com os naturais de países obscuros, muito mais

fortemente se deverá dar entre franceses, sobre os quais pesam não sei quantos

séculos de glórias de toda a ordem”. Aqui Lima fez alusão aos intelectuais brasileiros

que procuravam criar tradições no intuito de fortalecer um sentimento nacional por

meio de narrativas acerca de um grande passado do país, o qual, como vimos

naquele artigo “Literatura militante” do ano anterior, para o autor o Brasil não

possuía e sua literatura deveria se voltar para o seu futuro.130

Lima se mostrou, a princípio, compreensivo com a situação dos autores

franceses e até afirmou que ele mesmo, “muito pouco patriota”, não desejaria ver

seu país “humilhado e estrangulado por outra pátria”. Se isso ocorresse, não

conseguiria se manter imparcial. Contudo, o que interessa para Lima é analisar a

mudança no modo de pensar daqueles intelectuais depois da humilhação da França.

Como foi dito acima, o nacionalismo francês do final do século XIX constituiu

uma meditação sobre a decadência,131 reinterpretando o seu passado. Lima Barreto,

na crônica, salientou essa reinterpretação quando passou a comentar sobre a obra

Les origines de La France contemporaine de Taine.Pensaram todos os grandes franceses que a derrota da França eraproveniente do enfraquecimento do seu espírito guerreiro, devido aos ideaishumanitários que desde a Revolução vinham trabalhando os seus melhoresespíritos, conquanto as campanhas propriamente da Revolução tenhamsido gloriosas e extraordinárias...

129 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 533.130 Id. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 72.131 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense;Brasília: CNPQ, 1990, p. 51

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Taine, o extraordinário Taine, encetou logo um exame detalhado disso comas - Les origines de La France contemporaine – cuja primeira parte –L’Ancien Régime – apareceu em 1875 ou 76.132

Lima reconheceu o valor dessa obra “como erudição, como concepção, como

estilo”, mas esclareceu a seus leitores que o propósito do autor era manchar a

reputação da Revolução Francesa, posição essa com a qual não concordava. De

elogiosas, as considerações de Barreto passam a uma crítica severa sobre um

critério visto como fundamental pela maioria dos intelectuais ao tomar uma obra

como científica. O trabalho de Taine, segundo o escritor carioca, “devia ressumar a

imparcialidade do grande historiador que ele era, do grande sábio que foi, do grande

artista que é, ficou assim tisnada de uma paixão mesquinha, a que só se pode

atribuir à dor de sua pátria derrotada e humilhada [...]”.

Com Renan, Lima considerou que ocorreu a mesma coisa. “[...] até o título da

obra que esta revista deu a tradução de alguns trechos acima indica isso”.133

Apontou, então, equívocos na obra de Renan, os quais envolviam a questão racial

tão presente nos estudos barretianos e nas discussões sobre a identidade nacional

naquele momento. O primeiro deles foi identificado na afirmativa do francês de que

“uma raça de dominadores e soldados”, como era a europeia, não poderia suportar o

trabalho manual da terra. “Reduzi esta raça, diz ele, a trabalhar no ergástulo como

negros ou chineses; e ela se revolta!”.

Como contraponto a essa afirmativa, Lima partiu para uma argumentação que

tinha como cerne inicial a historicidade de um termo utilizado por Renan:“[...] ergástulo134 lembra, não a escravidão de negros ou chineses, mas a degermanos, gauleses, iberos, helvécios, gregos, em Roma e seus arredores,quando ela era dos Césares da família Júlia, da burguesada dos Flávios eoutras; e que todas essas raças da Gália, da Ibéria, da Helvécia e da Gréciasão perfeitamente europeias.135

Mesmo tendo ele também cometido um equívoco relacionado ao anacronismo

de atribuir o adjetivo burguês a uma das dinastias da Roma antiga, Lima prosseguiu

sua crítica a Renan. O cronista apresentou o esquecimento do renomado historiador

e um dos defensores do culto à ciência de evidências históricas a fim de sustentar

seu pensamento nacionalista e racista.

132 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 533.133 Ibid., p. 534.134 Calabouço ou lugar destinado ao confinamento de escravos na Roma antiga.135 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 534.

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“É curioso [...] que visse só a escravidão negra da Renascença e não se

lembrasse da antiga” como também é admirável que, “tendo escapado de ser um

doutor da Igreja, Renan “devia saber que a Humanidade deve a ela a transformação

da escravatura antiga em servagem [...]”.136 Outro engano cometido pelo historiador

francês, segundo Lima, foi afirmar que “os negros e chineses estão condenados a

uma servidão externa”.O grande sábio devia conhecer a história das antigas colônias de sua pátria.Devia saber das rebeliões do Haiti, das surras que Louverture deu nasforças francesas que o foram subjugar e de que maneira traiçoeira foi preso,para morrer de frio, nas mãos de salteador de Napoleão, no forte de Joux,em França.Lamartine e Schoelcher, que foram seus contemporâneos, escreveram aesse respeito alguma coisa...Muito me admira que Renan diga que os normandos foram criadores dapropriedade territorial na Europa. Não é preciso ser grande historiador parasaber que de há muito ela já existia e era motivo de barulho, antes deles.137

A desigualdade das raças humanas é uma constante no pensamento de

Renan, a qual considera como um fato científico e justificador do imperialismo

europeu. Na obra desse autor destacada por Lima na crônica, é categórica sua

sentença: “A natureza fez uma raça de operários, a raça chinesa (...); - uma raça de

trabalhadores da terra, o negro (...); - uma raça de senhores e soldados, a raça

europeia”.138

Como a função de domínio está na natureza da raça branca europeia, Renan

vê como legítimas as guerras de expansão, “desde que não se dêem entre

senhores”. Essas guerras permitiriam a conquista de povos operários e camponeses,

ou seja, “a guerra perfeita é a guerra colonial”. Por esses argumentos, Renan

considerava a conquista entre raças iguais como censuráveis, sendo um erro da

Alemanha a sua vitória sobre a França.139

Lima, atento às especificidades do pensamento de Renan, ironiza os

esquecimentos do autor francês, apresentando argumentos característicos de um

historiador. O literato carioca até indica fontes sobre as quais o historiador francês

deveria ter se debruçado antes de realizar aquelas afirmativas. Lima se refere ao

escritor romântico francês Alphonse de Lamartine (1790-1869) e Victor Schoelcher

(1804-1893), ambos envolvidos na defesa do fim escravidão. O segundo, também

136 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 535.137 Ibid., loc.cit.138 TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.Tradução: Sérgio Goes de Paula. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 126.139 Ibid, p. 127.

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francês, se destacou justamente pela produção de trabalhos sobre a escravidão e

colonialismo nas Américas, incluindo aí a Revolução Haitiana, frutos de suas

viagens àquele continente.140

O autor carioca, nessa análise, apresenta um pensamento que se aproxima

do próprio Renan na sua conferência Qu‘est-ce qu’une nation? de 1882. Nessa

conferência, Renan afirmou: “O esquecimento, diria mesmo o erro histórico, são um

fato essencial na criação de uma nação, e é assim que o progresso dos estudos

históricos é frequentemente um perigo para a nacionalidade”.141 Lima percebe essa

criação na forma como Renan avaliou o passado da França e utiliza, justamente,

dos estudos históricos para desconstruí-la.

Nas linhas seguintes, notamos como Lima enfatiza a necessidade do

conhecimento da realidade local, sugerindo a não adoção de teorias produzidas num

outro contexto para evitar equívocos acima como os de Renan. Sobre os negros,

afirma que o seu desconhecimento por Renan era esperado, uma vez que “vivia

num país onde não os havia nem como escravos, nem como homens livres”. Além

disso, a “sua dor patriótica, e talvez, o seu cansaço mental fizeram que avançasse

generalizações apressadas”.Se [...] vivesse entre nós, por exemplo, veria que nunca os negrosaceitaram a escravidão, apesar de ser legal e penal entre eles, com adocilidade que lhe parece. Aceitavam como os atuais operários recebem aescravidão econômica, o salariato, isto é, com contínuas revoltas.142

O cronista reforça seu exemplo, trazendo para o texto marcas da resistência

negra à escravidão no passado brasileiro. Aponta, como um dos maiores perigos

que corria Dom João VI e sua corte no Rio de Janeiro, era a “revolta de inúmeros

negros fugidos que havia pelos arredores, e se podiam associar de uma hora para

outra”. Essa situação, segundo, Barreto, se passava por todo o Brasil.“Quilombo”, é uma palavra, não sei de que origem, que quer dizeracantonamento de negros fugidos.Aqui, no Rio de Janeiro, onde nasci, ainda no regime da escravidão, nãotendo, porém, conhecido uma única pessoa escrava, a nomenclatura dosacidentes topográficos de seus arredores marca com esse nome, indicandomuitas revoltas dos negros, vários lugares. De pronto, eu me lembro de dois,em pontos bem afastados: um, na ilha do Governador – simplesmente

140 Cf. TOMICH, Dale. Pensando o “impensável”: Victor Schoelcher e o Haiti. Revista Mana, Rio deJaneiro, 2009, vol.1, n. 15, p. 183-212. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132009000100007. Acesso em: 31ago. 2018.141 RENAN, Ernest. O que é uma nação? In: CUNHA, Carlos Manuel Ferreira da (org.). Escrever anação: literatura e nacionalidade (uma antologia). Guimarães: Opera Omnia, 2011, p. 32.142 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 535.

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“Quilombo”, e outro, lá pelas bandas do Jardim Botânico, o morro do“Quilombo”.143

À guisa de conclusão, o autor declara que a paixão patriótica, “como todas as

paixões, cega, mais que nenhuma outra, porém, ela é sáfara e estéril”. Essa paixão

não permitiria o melhoramento da humanidade, fazendo-nos julgar mal os

semelhantes. Como sua literatura militante desejava o oposto, mais uma vez Lima,

com a sua escrita, zomba “dos fúteis motivos que nos separam um dos outros”.

As recomendações presentes nesse texto de Lima, referentes à necessidade

do conhecimento da realidade local e certo distanciamento de teorias europeias,

bem como o uso do conteúdo histórico para fundamentá-las (outro aspecto da

geração de 1870 que Lima assimilou), nos diz muito da inserção desse autor nas

discussões em voga acerca do nacionalismo no Brasil após a Primeira Guerra.

Diante de um temor generalizado de uma possível invasão das potências

imperialistas, muitos intelectuais advogaram um tipo de nacionalismo peculiar.

Segundo Sevcenko, esse nacionalismo eram bem caracterizado “na

preocupação militarista defensiva de Olavo Bilac (Liga de Defesa Nacional) –

amplamente exacerbada com a irrupção da Primeira Guerra Mundial –“ ou na

necessidade de conhecimento do país, apregoada por Euclides da Cunha.144

Skidmore também assinala essa perspectiva da intelectualidade brasileira ao afirmar

que[...] A necessidade de uma avaliação realista do Brasil cresceu na mentedas pessoas. O abismo entre a realidade brasileira e os modelos quepensadores do passado tinham [...] foi mais geralmente percebido. O tomficou empírico. A desconfiança das fórmulas cresceu. Por sua vez,estimulou-se o pensamento nacionalista.145

Nesse momento, os intelectuais tiveram uma percepção mais aguçada de que

havia a possibilidade de “mudar o papel que o darwinismo social e a herdada cultura

europeia tentavam atribuir ao Brasil”.146 Não é à toa que nomes, antes isolados,

como Manuel Bomfim e Alberto Torres, tiveram uma influência mais ampla. Se

retomarmos a carta enviada a Antonio Noronha Santos, ainda nesse momento da

Primeira Guerra Mundial (26/06/1916), veremos que Lima recomendava a leitura

143 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 535-536.144 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 105.145 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p. 164.146 Ibid., loc.cit.

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desses dois autores (“Quer dizer que leio Manuel Bomfim [...], Alberto Torres –

autores que pouco lemos, mas que merecem ser lidos”).

Bomfim e Torres refutaram as teorias racialistas. O primeiro fez do seu anti-

racismo “parte de uma posição nacionalista e antiimperialista. Além de apontar a

visão racialista como um instrumento utilizado pelos europeus para desmoralizar e

dominar os latino-americanos, condenava a transplantação indiscriminada de

instituições europeias e dos Estados Unidos.147 Para o autor, o atraso sul-americano

seria superado com a instrução popular148.

Já Alberto Torres pensava que o problema brasileiro “só poderia ser explicado

com a liquidação da doutrina racista. Esse autor endossava a escola culturalista que

estava emergindo sob a liderança do antropólogo Franz Boas. Nesse sentido,

“afirmava que o Brasil era um museu vivo”, desmentindo as teorias de superioridade

ariana, pois “alemães e demais tipos saxônicos estavam na mesma situação dos

outros grupos étnicos na luta para adaptar-se às condições do Brasil”149.

Como entrave para a superação daquele pensamento racialista e

reorganização política do país, Torres assinalava a alienação das elites brasileiras

no que se refere à realidade nacional, “sintomas da falta de uma consciência

nacional, da ausência de uma soma de padrões éticos aceitos por todos”. Diante

dessa situação, Torres atribuía, como verdadeira tarefa do patriota, a assunção “da

causa dos povos que, por acidente histórico, ficaram colocados em posição

inferior”.150

Autores, portanto, que devem ter chamado a atenção de Lima para a forma

como a questão nacional estava vinculada à racial no Brasil e com os quais

compartilhava a preocupação de se buscar conhecer a realidade nacional e superar

a influência do pensamento racialista com seu suporte para o racismo predominante.

O que nos leva a percepção da busca por Lima de referências teóricas que

representassem uma fissura no pensamento social brasileiro.

Não podemos desconsiderar, diante do que observamos até o momento das

escolhas barretianas, o nome de Capistrano de Abreu (1853-1927) naquela lista de

147 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9, p. 134-135.148 BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks , 2005 (Ediçãodo Centenário), p. 363-367.149 SKIDMORE, Thomas E. op.cit., p. 136.150 Ibid., p. 138-139.

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intelectuais que praticavam um “nacionalismo mais espiritual”, o qual valorizava em

contraste ao que chamou de “guerreiro” daquele pós Primeira Guerra Mundial.

Capistrano de Abreu teve uma produção que representou um sopro revisionista na

historiografia brasileira daquele momento. Em 1907, Capistrano publicou Capítulos

de História Colonial na qual o conceito de raça é substituído pelo de cultura,

“refletindo” assim, como vimos em Alberto Torres, “a mudança no pensamento

antropológico que triunfou nos Estados Unidos e na Europa entre 1900 e 1930”.151

Ainda em 1919, Lima redigiu três crônicas nas quais avaliava os motivos da

Primeira Guerra e seus resultados. “A guerra faliu” (Revista Argos de 01/05/1919),

“As lições da Grande Guerra” (Revista Hoje de 03/07/1919) e “Após a Guerra”

(A.B.C de dezembro 1919152) têm em comum a condenação da guerra em si, do

patriotismo alemão que contaminou as mentes das outras nações e da forma como

se estabelecia os acordos de paz.A monstruosa guerra europeia que durou quatro anos, na qual seinutilizaram cerca de dez milhões de homens, que destruiu cidades, vilas,monumentos inestimáveis, bibliotecas, recordações do passado que asanteriores guerras tinham poupado, não sabe ela mesma como acabar.Quando começou, parecia a todos simplórios, mais ou menos ideólogoscomo eu, que bastava a anulação do brutal e estúpido poderio militaralemão para que os povos vencedores, cheios de boa-fé e sinceridade,resolvessem rapidamente de vez, logo após a vitória, as cláusulas da paz.Cheguei mesmo a dar minha adesão à Liga Brasileira pelos Aliados, da qualme separei [...].Veio a vitória ou coisa parecida; a Alemanha ficou aniquilada militarmente, -por que então não se faz a paz?É que a guerra não conseguiu modificar a mentalidade dos dirigentes e dosseus imediatos clientes.153

Mesmo tendo sido a guerra, para Lima, “uma violenta sacudidela nas nações,

na sociedade e nas instituições”,154 a ideia de pátria, “hipermística”, que a Alemanha

“inoculou na cabeça dócil de seus filhos”, estava sendo apossada pelos governantes,

151 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p.119-120.152 Essa crônica, segundo Resende e Valença, não foi localizada na imprensa. Como indica ocumprimento no final do texto (“Boas festas, meus senhores”), deve ter sido escrita no final do ano,um ano após a assinatura do Armistício em 11 de novembro de 1918 (“Há um ano que ashostilidades entre povos de diversos feitios e estágios de civilização foram suspensas [...]”), epublicada em dezembro de 1919. Cf. BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização:Beatriz Resende & Rachel Valença. Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 92-95.153 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 514-515.154 Ibid., p. 539.

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com ou sem investidura de todos os países. Esse processo estava a incutir “no

espírito das massas” a mística exaltação patriótica e militar.155

Essa situação, que o enchia de “tristeza e de sombrias apreensões para o

futuro”, era visível, pela sua concepção, aqui no Brasil também. Daí Lima Barreto

não esperar que as resoluções tomadas na Conferência de Paz, que ocorria na

França, garantissem tempos melhores, considerando-a um congresso de burgueses

que querem organizar o mundo de acordo com as ambições de suas respectivas

burguesias.156

Lima acompanhou o processo que levou seu país a apoiar os aliados na

Grande Guerra. A elite brasileira ainda era fortemente influenciada pela cultura

francesa, tendo os jornais e revistas mais populares apresentado a guerra como

uma ameaça da barbárie à liberdade e à cultura. Os poderes centrais tiveram

defensores ocasionais como Sampaio Ferraz, para quem os alemães apresentavam

riqueza de caráter, alguns oficiais brasileiros que haviam estagiado no exército

alemão antes do conflito e líderes de colonos alemães no sul do Brasil.157

Dos que se apresentam como opositores dos adeptos dos aliados, vale

destacar ainda uma minoria que não concebia um interesse comum entre o Brasil e

os países aliados, devendo continuar neutro. Oliveira Lima e Capistrano de Abreu

foram algumas dessas vozes. Eles temiam que a entrada do país na guerra o

transformasse “por demais dependente dos Estados Unidos, pois o Brasil seria a

única nação “importante a tomar posição com os mesmos e pelos aliados”.158

Desse modo, em 1915, os intelectuais pró-aliados fundaram a Liga Pelos

Aliados com o intuito de promover comícios e mobilizar pela propaganda o

sentimento brasileiro contra os poderes centrais. A partir desse momento, “o ar de

isolamento começou a ceder lugar a um crescente espírito marcial”.159 Como vimos,

o próprio Lima chegou a aderir àquela liga, mas sua aproximação de grupos

155 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 94.156 Id. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença. Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 514.157 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p.167-168.158 Ibid., p. 169.159 Ibid., p. 170.

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anarquistas160 e a entrada dos Estados Unidos na guerra (1917) foram

determinantes para sua decisão de abandoná-la.

O escritor carioca reconheceu seu erro de avaliação a respeito dos

adversários da Alemanha. Julgara que esses não se deixavam explorar “pelos

corvos da finança, da indústria e do comércio, mas bem cedo” viu que se enganara.

Lima considerava que a queda da Alemanha representaria um golpe ao patriotismo,

o qual naquele momento, “era um instrumento nas mãos da burguesia para dominar

as massas e explorar a terra em seu proveito [...]”.161

O próprio Brasil, que, por prudência, se devia ter mantido neutro nacontenda, embebedou-se com discurseiras, deixou a sua filosofiabonancheirona de matuto e meteu-se na guerra para tomar naviosmercantes alemães, passá-los a outras mãos, vender café, a fim de darlucros e comissões avultadas a certos espertalhões fartos que chamamtodos os demais de vagabundos.Demais, não podia continuar a dar o insignificante apoio do meu nome auma associação, a tal liga, quando os Estados Unidos da América do Norteentraram na guerra, com aquele arrogância e ares de mata-mouros que lhessão próprios.[...] os meus motivos para detestar tão semelhante país eram os mesmoque eu tinha para querer o aniquilamento político da Alemanha.162

Essa posição de Lima sobre os Estados Unidos deve ser pensada dentro do

cenário cultural e político que desde o início da Republica levou uma parcela da

intelectualidade brasileira a refletir sobre sua relação com as outras nações

americanas. Katia Baggio, em estudo das interpretações dos intelectuais brasileiros

das primeiras décadas republicanas sobre a América Latina, afirmou que, com a

proclamação da República, sentiram a necessidade de buscar referenciais para

refletir sobre os problemas complexos vinculados à mudança de regime, à transição

do trabalho escravo para o assalariado e livre bem como para formular projetos de

futuro.

“Houve, neste período, um evidente fortalecimento do americanismo no Brasil,

ainda que o exemplo norte-americano tenha sido aquele que mais ganhou a adesão

efetiva da maioria dos intelectuais”.163 Objetivo estadunidense de ter uma hegemonia

160 Lima circulou entre grupos anarquistas, publicou em periódicos sob essa orientação política bemcomo lia obras sobre o anarquismo, muitas vezes até citadas em suas crônicas. Cf. SCHWARCZ,Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 345-369.

161 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 446.162 Ibid., loc.cit.163 BAGGIO, Kátia Gerab. A “outra” América: A América Latina na visão dos intelectuais brasileirosdas primeiras décadas republicanas. Orientadora: Maria Ligia Coelho Prado. 1998. 226 f. Tese

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sobre os demais estados do continente americano teve como marco oficial, a

Primeira Conferência Internacional Americana, realizada em Washington de 02 de

outubro de 1889 a 19 de abril de 1890.164

A partir disso, difundiu-se um conjunto de políticas de incentivo à integração

dos países americanos, sob o predomínio dos Estados Unidos, que ficou conhecido

como pan-americanismo. E, naquele ano de 1919, com a vitória dos aliados,

reforçados pelos Estados Unidos, esta nação surgia como referência econômica,

financiando a reconstrução da Europa e, consequentemente, promovendo a

aceleração de suas atividades econômicas.

Numa crônica, intitulada “O nosso ianquismo” e levada ao público pela

Revista Contemporânea de 22 de março de 1919, Lima explicitou sua apreensão

diante da forte influência dos Estados Unidos sobre o Brasil. As suas considerações

sobre os Estados Unidos partiram da leitura de um artigo publicado na Revista do

Brasil, a qual Lima considerava excelente e demonstrava interesse pelo que nela

fosse socializado.

O artigo lido foi “Um confronto infeliz” de autoria do jornalista e co-diretor da

Revista do Brasil Breno Ferraz do Amaral que, segundo Lima, “faz um estudo algo

apaixonado, entre os Estados Unidos e o Brasil”. Lima afirma que a sua leitura o

convenceu ainda mais da necessidade de “combater essa ingênua tolice dos nossos

sociólogos ad hoc [...] nos aconselham a imitar a monstruosa República da América

do Norte [...]”.165

A Revista do Brasil foi um periódico fundado em São Paulo no ano de 1916

cujo objetivo era ser um ponto de convergência para os escritores que se

empenhavam no reexame da identidade nacional. Ao lado de artigos de cunho

literário escritos por membros da ABL, havia na revista discussões freqüentes de

outros assuntos relacionados como “aplicação das técnicas norte-americanas de

organização do trabalho às fábricas brasileiras (taylorismo)”, modernização da

agricultura, “debates sobre o equilíbrio ideal entre nacionalismo e adoção de

métodos estrangeiros na reforma do ensino [...], noticiário sobre a imprensa de São

(Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de SãoPaulo, São Paulo, 1998, p. 8-9.164 BAGGIO, Kátia Gerab. A “outra” América: A América Latina na visão dos intelectuais brasileirosdas primeiras décadas republicanas. Orientadora: Maria Ligia Coelho Prado. 1998. 226 f. Tese(Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de SãoPaulo, São Paulo, 1998, p. 45.165 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 480.

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Paulo e do Rio de Janeiro e “despachos estrangeiros, especialmente de Londres,

Paris, Berlim, Nova Yorque”.166

Como ficou claro pelas próprias palavras de Lima, este era interessado pelo

conteúdo dessa revista, o que deve ter contribuído para sua atualização da forma

como estava se discutindo o nacionalismo no Brasil naquele momento. Nesse

contexto, o autor carioca sentiu a necessidade de apresentar “o outro lado da

História” para seus leitores. “Nós só vemos dos Estados Unidos o verso, não vemos

o reverso ou o avesso; e este é repugnante, vil e horroroso”.167

Após apresentar como desnecessárias as modificações urbanas realizadas

no Rio de Janeiro sob influência das obras arquitetônicas norte-americanas, Lima

analisa o perigo que considerava a aproximação de seu país dos Estados Unidos,

tendo como base uma obra histórica escrita ainda no século XIX por Eduardo Prado.

“O fundo do espírito americano” que é, para Lima, o da brutalidade inspira um

sentimento de “esmagamento e opressão” e a obra Ilusão Americana “dá bem uma

imagem disso”,quando vê, ao entrar no porto de Nova Iorque, um mestiço com sangue deasteca e tolteca olhar assombrado aquela confusão diabólica, parecendopensar um instante na conquista daquele inferno, mas, depois, considerabem alto que, unicamente, com os apitos, eles, os de Nova Iorque,conseguiriam ensurdecê-los, e derrotá-los, os seus patrícios de Guatemalaou alhures.Nós não estamos ficando surdos com as coisas americanas, mas estamosficando cegos; e, na clássica imagem, somos como as mariposas que a luzatrai, para matá-las.

[...]Substituir o ideal coletivo que é espantosamente o nosso, por um outro quevai de encontro à nossa mentalidade e ao nosso temperamento, é suicidar-nos.168

Eduardo Prado (1860-1901) ao lado de Oliveira Lima, José Veríssimo e

Manoel Bomfim representavam a parcela da intelectualidade brasileira contrária ao

pan-americanismo. Monarquista, foi um dos mais combativos críticos do regime

republicano. A Ilusão americana - escrita em 1893 e tratando do período histórico de

1823 (elaboração da doutrina Monroe) até a época da política do big-stick quando da

presença armada dos Estados Unidos na América Central - condena a forma

republicana, apresentando-a como uma cópia do modelo político norte-americano.

166 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p.186-187.167 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 480.168 Ibid, p. 481.

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Essa obra, inclusive, teve sua primeira edição confiscada pelo governo brasileiro

naquele momento de estado de sítio decretado por Floriano Peixoto no qual o clima

era desfavorável à circulação de ideias comprometidas com a Monarquia.

Lima, pelas palavras acima, concordou com os argumentos apresentados por

Prado na primeira parte daquela obra, a qual considerava como escrita

“documentadamente”.169 Nessa parte, Prado apresenta a política externa dos

Estados Unidos frente aos países da América Latina, condenando a doutrina Monroe

e sinalizando a Inglaterra como protetora das independências daqueles países.

Dentre os argumentos apresentados por Prado, encontramos nas linhas

abaixo alguns que vão ao encontro da ideia de suicídio que Lima aponta como

destino das nações que adotam um ideal coletivo de uma outra pátria.Todos os países espanhóis na América, declarando sua independência,adotaram as fórmulas norte-americanas, isto é, renegaram as tradições dasua raça e de sua história, sacrificando o princípio insensato do artificialismopolítico e do exotismo legislativo.O que colheram desse absurdo, disse a triste história hispano-americanadeste século. [...].170

A escolha de Lima Barreto por essa obra de Prado deve ser vista também

como sinalizadora de sua visão acerca do modo como se deveria ser abordada a

produção de narrativas sobre o passado. Oliveira afirma que Prado, “diversamente

dos cientificistas de sua época, [...] faz a defesa da singularidade histórica, ainda

que esta tenha como modelo a Inglaterra”.171 Além disso, notamos em Lima a

necessidade de promover uma confrontação de fontes, como vimos acima ao criticar

Renan e Taine.

As fontes, a propósito, é algo que Lima, como todo historiador moderno,

considera como fundamental para a construção de suas assertivas. Ao continuarmos

a suas observações sobre a aproximação entre Brasil e Estados Unidos, Lima,

procurando as singularidades históricas dos norte-americanos que seriam

incompatíveis com as nacionais, utiliza-se de notícias veiculadas no jornal libertário

de São Paulo “A Plebe”.

Nessas notícias, Lima destaca a violência e a repressão contra os operários

norte-americanos praticada por grupos financiados pela burguesia, o que

169 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 448.170 PRADO, Eduardo. A ilusão americana. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, [1893], 2003(Edições do Senado Federal, V.11), p. 33.171 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense;Brasília: CNPQ, 1990, p. 107.

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representaria o espírito brutal dos Estados Unidos até mesmo dentro de suas

fronteiras. Uma situação que revelaria também outro aspecto do espírito

estadunidense, o qual era caracterizado “pela fé de que tudo se pode obter com

dinheiro”.172

A crença no todo-poderio do dinheiro, que entre nós se apossou,primeiramente em São Paulo, o que foi notado por Alberto Torres, não seiem que lugar, vai avassalando todo o Brasil, matando as nossas boasqualidades de desprendimento, de doçura e generosidade, de modéstia nosgostos e nos prazeres, emprestando-nos, em troca, uma dureza com oshumildes, com os inferiores, com os desgraçados, com todas as infundadassuperstições de raça, de classe, etc., nesta época de grandes e justasreivindicações, ameaça-nos de morte, ou senão, de grandes lutas,sangrentas. [...].173

Neste trecho percebemos um Lima que, para diferenciar a sua nação da

norte-americana e endossar o perigo a que estaria sujeita ficando sob sua influência,

aproxima-se das máximas de Renan quanto à essência de uma nação. Esta,

segundo o pensador francês, consiste na identificação pelos seus indivíduos de

coisas em comum bem como pelo esquecimento de outras. É o que Benedict

Anderson chama de “amnésias do nacionalismo”174, ou seja, os esquecimentos de

certos aspectos da trajetória de um povo que revelariam momentos de conflitos

comprometedores da construção de um sentimento de pertencimento à nação.

Lima “se esquece”, no trecho acima destacado, das discriminações e

explorações existentes no Brasil desde o período colonial, delineando uma imagem

de Brasil, antes das relações com os Estados Unidos, marcada pela “doçura e

generosidade” e abdicando da crítica histórica que até então vinha aplicando ao

comentar sobre a influência norte-americana sobre o Brasil, contra o próprio

nacionalista Renan e até em suas análises da discriminação sofrida pelos negros no

Brasil. Como afirma Anderson, ao explicar as suas razões em considerar uma nação

como uma comunidade imaginada, “independentemente da desigualdade e da

exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida

como uma profunda camaradagem horizontal”.175

Essa ambivalência de Lima fica mais nítida quando expressa sua

preocupação com a forma como aquela influência norte-americana poderia afetar a

172 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 481-484.173 Ibid., p. 485.174 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão donacionalismo. Tradução: Denise Bottmam. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 24.175 Ibid., p. 34.

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situação da população negra brasileira. Numa carta ao historiador e diplomata

Manoel de Oliveira Lima datada de 29 de junho de 1919, Barreto, após ler um artigo

do eminente intelectual pernambucano no A.B.C. (o qual não conseguimos

identificar), pede orientações sobre como proceder diante daquela aproximação

entre Brasil e Estados Unidos.A minha intenção era perguntar-lhe, ao senhor, mais esclarecido einteligente do que eu, mais culto e mais viajado do que eu, conhecendo bema evolução das ideias e a sua transformação em sentimentos, a ditar atosquase automáticos – se eu, homem de cor, mulato, etc. etc., posso e devoconcorrer de alguma forma para reforçar a influência ou o predomínio, noBrasil, dos Estados Unidos; e, também, se não é minha obrigação demodesto homem da pena combater de todas as maneiras essainfluência?176

Lima obteve sua resposta na carta que Oliveira lhe enviou no dia 9 de julho de

1919. O historiador se mostra agradecido pela pergunta do literato e logo já

apresenta a sua impressão de que Lima Barreto “faz a justiça de crer que não tenho

preconceitos estúpidos de cor, que aliás não são brasileiros”. Oliveira Lima ainda

enfatiza que nas conferências que realizou nos Estados Unidos em 1912 afirmou

“que a solução portuguesa das raças era a verdadeira e não a americana”.177

Quanto à pergunta de Lima Barreto, esclarece que a amizade com os Estados

Unidos não representa perigo para uma pessoa de cor, considerando-a como

conveniente para o Brasil como fora a da Alemanha, “porque as duas se faziam

contrapeso”.178

Oliveira Lima, contudo, explica que não é a favor do predomínio dos Estados

Unidos no Brasil, afirmando que sempre foi “infenso ao pan-americanismo nesse

sentido” e defendendo “uma entente cordiale de igual para igual. Terá notado que o

meu artigo é simpático, sem ser sabujo: bem longe disso”.179

Oliveira Lima apresentou, durante a sua trajetória, uma mudança no seu

pensamento em relação aos Estados Unidos e sua política externa destinada aos

países latino-americanos. Se, em fins do século XIX, reconhecia os Estados Unidos

como uma potência emergente e aceitava a Doutrina Monroe como um princípio de

defesa continental, nos textos incluídos na obra Pan-americanismo de 1907 o tom

era outro.

176 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c (TomoII), p. 39177 Ibid., p. 39-40.178 Ibid., 40.179 Ibid., loc.cit.

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Certamente impactado pelas suas experiências como diplomata em Tóquio e

Caracas e pelo endurecimento da política externa intervencionista e militarista dos

Estados Unidos, Oliveira Lima afirmou naquela obra que o monroísmo servia como

mecanismo para justificar as agressões perpetradas pelos Estados Unidos. Daí sua

posição de ressalvas quanto à aproximação entre Brasil e Estados Unidos na carta

que enviou a Lima.180

A pergunta que Barreto fez na carta enviada a esse ex-representante do

Brasil no exterior nos convida a acreditar que foi uma forma encontrada pelo autor

para obter testemunho de um sujeito que vivenciou a realidade norte-americana e

conhecia as relações diplomáticas entre o Brasil e os Estados Unidos. Mais de um

mês após a resposta de Oliveira Lima, Barreto publicou no mesmo periódico que

havia lido o artigo do historiador, um texto que discute a presença do pensamento

racista nos Estados Unidos norteado pelo racialismo. Talvez Lima tenha procurado

apresentar aos leitores do A.B.C um contraponto à visão de Oliveira Lima.

A consulta ao ilustre intelectual pode ser considerada com parte da

preparação deste artigo que veio a público no dia 16 de agosto de 1919 com o título

bem sugestivo para a discussão em voga naquele momento: “Considerações

oportunas”. Lima afirma no início desse texto que os telegramas de Washington e

Chicago chegavam ao Brasil “secos, amputados” e deduz:[...] mas nós sabemos, pelos exemplos das matanças de armênios, naTurquia, e pela de judeus, na Rússia, o que deve ter sido a chacina denegros naquelas duas cidades dos Estados Unidos.Para os massacres da Turquia e da Rússia, não havia censura telegráficadiplomática, ou de outra ordem; mas, para os negros americanos, deve terhavido uma.É preciso que a América do Sul, com as suas civilizações mais ou menosescuras [...] fique, até certo e dado dia, convencida de que aquilo não foinada, não passando de simples conflitos sem importância.181

A partir disso, Lima explica como a ciência, “transformada em arma de guerra”,

tem relação com a violência contra os negros norte-americanos. Argumenta o autor

carioca em prol da desmistificação dos dados apresentados pela Ciência:Nada mais falso que apelar para a Ciência em tal questão. O que se chamade Ciência nesse campo de nossa atividade mental ainda não é nem umcorpo homogêneo de doutrinas. Cada autor faz um poema à raça de queparece descender ou com que simpatiza, por isto ou aquilo. Os seus dados,

180 BAGGIO, Katia Gerab. La Argentina según Oliveira Lima: impresiones de viaje, vida política ysociabilidad intelectual (1918-1919). In: MAILHE, Alejandra (org.). Pensar al outro/pensar la nación:intelectuales y cultura popular en Argentina y América Latina. La Plata: Al Margen, 2010, p. 99.181 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 582.

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as suas insinuações, os seus índices, [...] são interpretados ao sabor dapaixão oculta ou clara de cada dissertador.[...]O critério mesmo de raça não é fixo de um autor para outro [...].

Não há dúvida nenhuma que, para classificar, é preciso abstrair de certosdados, para só procurar os gerais e comuns ao fenômeno a estudar, mas oresultado disso só pode valer para a Ciência, enquanto Ciência. Desde,porém, que passemos do campo espiritual, abstrato, para o da aplicação eda prática, esses resultados devem ser tomados com as necessáriasreservas e convicções.[...]

Nas ciências naturais, com em outra qualquer, toda a classificação há deser um produto do nosso espírito em função do poder de abstrair. Fora dele,ela não existe, não é.182

Para Lima, esse pensamento que busca na Ciência justificativas para as

desigualdades das raças alimenta um ódio coletivo. Nos Estados Unidos, segundo o

autor, esse ódio “achou sua aplicação no negro”.183 Lima localiza no tempo o início

do adensamento do ódio contra os negros e aponta questões políticas e

preconceitos que persistiram mesmo com o fim da escravidão como fatos que

encontraram no racialismo bases de sustentação.

“Depois de vencido o Sul, na guerra de secessão, de 1861 a 65, os

vencedores trataram de dar todos os direitos políticos aos antigos escravos”.184 Os

brancos, seus antigos senhores, começaram, segundo Lima, irritarem-se com a

ocupação de “cargos eletivos e outros” pelos negros libertos que constituíam a

maioria da população nos estados do Sul. Isso acabou gerando a prática de atos

violentos contra os negros, espalhando-se pelo restante da nação norte-americana.

Percebemos que Lima escolhe um tema que aglutinava muitos intelectuais e,

como vimos, estava relacionado às discussões em torno da conformação da

identidade nacional. Contudo, não perde de vista aquele que mais o incomodava,

como, assim se apresentou a Oliveira Lima naquela carta, homem de letras e de cor:

a questão racial. A inserção dessa questão nos debates sobre a aproximação entre

Brasil e Estados Unidos, denota a apreensão barretiana, já apresentada nos seus

primeiros escritos, com a situação vivenciada pelos negros no Brasil.

Se naquela nação do norte da América, considerada como uma potência

emergente depois do fim da Primeira Guerra Mundial e com crescente influência

sobre o Brasil, aconteciam atos tenebrosos como linchamentos e segregação racial

contra os negros - apontados por Barreto no artigo “Considerações oportunas” a

182 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 583.183 Ibid., p. 585.184 Ibid., loc.cit.

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partir de informações que coletou em periódicos internacionais e nacionais – o que

poderia ocorrer aqui no Brasil cuja sociedade era marcada pelo preconceito racial?

Esta poderia ter sido, diante do exposto nos textos acima, o questionamento de Lima

Barreto.

Vale ressaltar naquele artigo também o amadurecimento intelectual de Lima

Barreto acerca de sua visão da forte relação entre o que era considerado na época

conhecimento científico e desigualdades das raças. Uma relação que, como temos

acompanhado, orientou o modo como os intelectuais coevos a Lima lidavam com o

passado através de narrativas literárias e históricas. Estas últimas, nessa discussão

do nacionalismo por Lima, se faziam presente como referências, as quais eram

tomadas pelo autor de maneira crítica.

Na crônica “São capazes de tudo”, publicada novamente no A.B.C. em 2 de

janeiro de 1919, em que ainda tratava da Primeira Guerra, Lima já se mostrava

preocupado com a influência norte-americana e utilizava a obra Ilusão Americana de

Prado como referência a fim mostrar o caráter imperialista dos Estados Unidos frente

à outras nações americanas. Lima relembrou o episódio da guerra do México e,

citando diretamente Prado, destacou a maneira como o governo norte-americano

“fomentou a revolta do Texas” para que se separasse do México.

O intuito disso foi facilitar a posterior absorção do território do Texas. Em

seguida, os Estados Unidos declararam “guerra ao México, verdadeira guerra da

conquista”, humilhando “aquela república até ao extremo” e arrebatando-lhe “a

metade de seu território”. Lima, entretanto, afirmou que Prado não disse qual tinha

sido “o verdadeiro fito” daquela guerra, assinalando que se poderia identificá-lo “nos

Études Morales et Politiques” do poeta e jurista francês Edouard Laboulaye (1811-

1883).[...] Os estados do sul dos Estados Unidos, escravagistas, temendo perder amaioria que tinham no Senado americano, fomentaram a insurreição doTexas, que foi afinal anexado aos Estados Unidos, dividido em estados,dando estes ao Senado representantes perfeitamente escravocratas. Nãohavia, portanto, perigo de passar nenhuma lei que acabasse com aescravidão; mas, não contentes com isso, conseguiram que a Uniãodeclarasse a guerra, para obter mais territórios e, vencedores,restabelecerem a escravidão, onde o governo do pobre México já a tinhaabolido desde muito. Eis aí o que foi a guerra do México. [...].185

185 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 449.

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Aqui podemos observar que aquela apreensão de Lima quanto ao futuro da

população negra brasileira diante do predomínio norte-americano no país já fazia

parte de seu pensamento antes daquela carta enviada a Oliveira Lima. A sua

inserção nas discussões em voga no meio intelectual daquele momento para Lima

era urgente. Isso até o levou a cometer uma injustiça com Eduardo Prado.

Ainda naquela primeira parte de A ilusão americana, ao comentar sobre a

guerra do México, Prado sinalizou os interesses escravagistas que estavam por trás

do interesse norte-americano em obter parte do território mexicano. Prado afirmou

que aquela guerra tinha sido “um negócio premeditado e determinado de antemão”.

Entre os envolvidos, o autor elencou “os senadores, os membros do congresso, sem

falar do presidente e de seu gabinete”. Havia ainda “a grande horda dos demagogos

e politiqueiros, que se comprazia em satisfazer os instintos de seus partidários”, os

quais eram “os senhores de escravos, os contrabandistas, os assassinos de índios

[...]”.186

Os Estados Unidos começaram, então, “a empregar toda a sua energia em

descobrir plausíveis pretextos para roubar de um vizinho mais fraco uma vasta

extensão de terra. E para que? Para aí estabelecer a escravidão”.187 Talvez Lima

não tenha considerado o modo como Prado narrou os interesses envolvidos na

guerra do México suficiente para elucidar os desejos dos escravocratas. Ou, melhor

ainda, viu os escravocratas como os principais sujeitos causadores daquele conflito,

refletindo, assim, sua preocupação em deixar bem explícito o racismo existente nos

Estados Unidos que poderia trazer prejuízos à nação brasileira com aquela

crescente aproximação.

Notamos como Lima procurava se cercar de fontes que lhes permitissem

repensar as versões que lhe chegavam dos acontecimentos da história

contemporânea. Nesse diálogo com a cultura histórica, o nacionalismo foi um dos

temas que teve uma presença marcante nos textos barretianos e, como vimos, de

muitos outros intelectuais naquele princípio do século XX. A seguir trataremos da

obra barretiana que mais trouxe em seu enredo uma aguçada crítica dos discursos

nacionalistas no Brasil.

186 PRADO, Eduardo. A ilusão americana. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, [1893], 2003(Edições do Senado Federal, V.11), p. 29187 Ibid., p. 30.

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Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima, apresentou relações intertextuais

com uma série de narrativas literárias e históricas que serviam de referência para a

vertente nacionalista que procurava superar o determinismo pessimista do

cientificismo, valorizando a natureza exuberante, os recursos naturais abundantes e

a grandeza do território como sinais do futuro grandioso da nação: o ufanismo. Além

disso, o tempo dessa narrativa está ancorado num momento do passado recente da

República que corresponde ao período da presidência do marechal Floriano Peixoto

(1891-1894). Esses aspectos de Triste fim fizeram com que lhe reservássemos um

lugar de destaque, pois, como veremos, contribuirá para o aprofundamento do nosso

estudo cujo objetivo é discutir o diálogo barretiano com a cultura histórica.

2.3.1 Triste fim: destaque no diálogo com a cultura histórica

Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado, pela primeira vez, sob o

formato de folhetim em 1911 pelo Jornal do Commercio. Este jornal era um dos

principais periódicos em circulação do Rio de Janeiro, contando com duas edições

diárias. O romance de Lima saiu na edição vespertina, estando a história completa

após 52 folhetins.

A obra reapareceu como livro apenas em 1915, sendo publicada pela Revista

dos Tribunais cujo custeio ficou por conta do próprio autor. A recepção do livro foi

moderada, mas despertou a atenção de um grande nome da intelectualidade da

época: o diplomata e historiador Oliveira Lima. Este, pelo jornal O Estado de São

Paulo de 13 de novembro de 1916, destacou, o que até aquele momento, seria um

injustiça por parte da imprensa do país o fato de não ter dado a devia atenção ao

romance do escritor carioca, realizando uma comparação deste com outra obra que

teve uma grande divulgação no início do século XX.

“[...] há quinze anos passados, mais de um crítico que saudasse como uma

revelação genial a aparição de Canaã. O que dizer então do romance do senhor

Lima Barreto, que lhe é em todos os sentidos cem vezes superior?”188 Oliveira Lima

continua seu questionamento, desafiando os leitores a responderem qual dos tipos

criados por Graça Aranha perdurará na memória dos intelectuais. Posto isso, afirma:

188 LIMA, Manoel de Oliveira. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. SãoPaulo: Penguim, 2011, p. 57.

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[...] Em Milkau e em Lentz pretendeu o autor do Canaã simbolizar astendências opostas da alma alemã, o idealismo e a força, mas representaráisso um pensamento original, ou será antes o chavão batizado por todoaspirante a observador das psicologias estranhas? O que faz asuperioridade olímpica de Goethe, senão a combinação perfeita daquelesdois elementos?Entretanto o major Quaresma viverá na tradição, como um dom QuixoteNacional. Ambos otimistas incuráveis, porque acreditam que os malessociais e sofrimentos humanos podem ser curados pela mais simples e aomesmo tempo mais difícil das terapêuticas, que é a aplicação da justiça daqual um e outro se arvoravam paladinos. [...].189

Canaã de Graça Aranha foi muito lido e discutido entre a data de sua

publicação e a I Guerra Mundial e apresentava no seu enredo o dilema sobre a

possibilidade de, num país tropical, tornar-se um centro de civilização pela fusão de

correntes imigratórias europeias e mestiços brasileiros. Tal dilema era representado

pelo diálogo entre os personagens Milkau e Lentz.

O primeiro via a miscigenação como positiva e capaz de elevar a capacidade

cultural e física do Brasil, expressando o ideal de branqueamento que se baseava na

presunção de que uma raça superior poderia assimilar uma inferior. Essa visão,

como vimos, articulava-se com pensamento predominante das elites intelectuais

seguidoras das teorias racialistas. Já o segundo personagem tinha uma posição

divergente do seu colega imigrante e conterrâneo alemão.190

Lentz representava o pensamento “racista ortodoxo” pelo qual o progresso só

poderia advir da substituição de uma raça híbrida, como os mulatos, por europeus.

Skidmore considerou esse trabalho de Graça Aranha “um esforço de um homem em

estreito contato com os mais ilustres intelectuais do seu tempo”, sendo por eles

elogiado como obra literária. E, reflexo desse grupo social orientado para a Europa,

não tiveram as opiniões racistas de Lentz recebido contestações.

Já no Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima, que como já destacamos se

mostrava contrário à análise da sociedade nacional pelos parâmetros do

cientificismo, criou um personagem nacionalista extremado cujo objetivo era

melhorar seu país, resgatando elementos culturais “originais” do Brasil bem como

valorizando suas potencialidades econômicas “naturais”. Essas características

devem ter encantado o ilustre historiador que, assim como muitos intelectuais,

189 LIMA, Manoel de Oliveira. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. SãoPaulo: Penguim, 2011, p. 57-58.190Cf. ARANHA, José Pereira da Graça. Canaã. Disponível:http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/canaa-graca-aranha/ Acesso: 07 abr. 2018.

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procuravam referências e promoviam discussões a fim de conformar a identidade

nacional.O nacionalismo de Policarpo era parte integrante do sentimento de otimismoobservado nos primórdios da República e estava presente em três áreas ouesferas da vida brasileira: encerrava um projeto cultural, um projetosocioeconômico, baseado numa tentativa de redenção através do trabalhoagrícola, e um projeto político, que incluía a adesão ao governo forte deFloriano. [...].191

Lima dividiu sua obra em três partes que correspondem àquelas esferas da

vida brasileira, sendo a primeira dedicada à narrativa dos projetos de Quaresma

concernentes ao estudo e adoção de aspectos da cultura presente no Brasil que

fossem nacionais, incluído aí seu requerimento para que o tupi se tornasse a língua

oficial. A segunda parte do romance representa as tentativas do seu personagem

principal em aplicar seu conhecimento adquirido nos livros para o desenvolvimento

da agricultura nacional. Já na última parte, temos a narrativa da tentativa, frustrada

como as anteriores, de atuação política de Policarpo, defendendo um suposto

governo forte e nacionalista.

Umberto Eco compara o texto narrativo a um bosque. Este “é um jardim de

caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem

definidas, todos podem traçar sua própria trilha”, optando por um dos lados de

determinada árvore.192. A trilha que temos traçado nesta parte do trabalho, como

acompanhamos no item anterior, está pautada pela discussão do diálogo da

literatura militante de Lima com a historiografia brasileira, tendo como recorte a

questão do nacionalismo.

Nesse passeio pelo “bosque” cultivado por Lima Barreto, escolhemos a “trilha”

do primeiro item localizada na primeira parte de Triste fim de Policarpo Quaresma.

Dessa “árvore”, optamos ainda pelo seu lado que nos conduz à biblioteca do major

Quaresma. Não queremos afirmar com essas seleções que as outras partes do

romance não atendam à discussão barretiana sobre o nacionalismo, mas muitas

delas serão retomadas num outro momento desta tese por considerarmos mais

oportuno para o modo como estamos organizando nosso pensamento sobre os

“bosques” barretianos.

191 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense;Brasília: CNPQ, 1990, p. 95.192 ECO, Umberto. Seis passos pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo:Companhia das Letras, 1994, p. 12.

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Obviamente, que nesse passeio nos depararemos com algumas daquelas

características da escrita de Lima Barreto abordadas acima e teremos também como

companhia, a nos orientar, o trabalho de Elvya Shirley Pereira, o qual apresenta a

análise de algumas matrizes ideológicas subjacentes ao projeto nacionalista de

Quaresma, destacando o entrecruzamento do discurso do narrador ao do

protagonista que funciona como força tensiva no encaminhamento da narrativa.

O romance traz aquela concepção de missão tolstoiana e carlyleana,

segundo a qual uma escrita sincera realizada por um estudioso verdadeiro e ideal –

o herói – poderia guiar a sociedade no caminho de sua compreensão e

solidariedade entre seus membros. Contudo, e aqui observamos a ironia tão bem

empregada pelo autor, pois se, a princípio o romance segue o ideal tolstoiano e

otimista que Lima apresentou acima naquele ensaio-palestra “O destino da

literatura”, o decorrer da narrativa apresenta a derrota do protagonista ao se deparar

com a realidade que o cercava.

Segundo Oakley, essa derrota da escrita pró-tolstoiana ao longo da narrativa

representa o pessimismo de Lima Barreto e sua ambivalência quanto ao destino da

inteligência humana e da palavra escrita,193 o que reforça ainda mais nossa escolha

pelo caminho até a biblioteca do protagonista. A epígrafe do romance, que é um

trecho da obra Marc-Aurèle e la fin Du monde antique de Ernest Renan, reflete esse

pessimismo de Lima, permitindo a compreensão de sua visão sobre o destino do

personagem Quaresma.O grande inconveniente da vida real e que a torna insuportável para ohomem superior é que, se transportarmos para aí os princípios do ideal, asqualidades se tornam defeitos, de forma que frequentemente suasrealizações e sucessos são mais fracos do que as daquele que se movepelo egoísmo ou pela rotina vulgar.194

Renan vê o imperador Marco Aurélio como um homem superior cujas

convicções moralizantes lhe permitiram permanecer firme na prática de seus

deveres. Entretanto, a sua empreitada estava fadada ao fracasso – a conservação

do Império Romano – e, tal como um herói trágico, ele se sacrifica por esse fim. A

trajetória de Policarpo Quaresma segue essa linha e Lima o retrata como um homem

superior, “incompatível com a ignorância e o egoísmo com o qual é obrigado a

193 OAKLEY, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2011,p. 100.194 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 67.

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defrontar-se”.195 Os dois heróis também são escritores cujas obras não podem

modificar os destinos de suas respectivas nações.

Conforme destacamos acima, Renan tinha acabado de assistir ao desastre

que foi para a França o conflito com a Alemanha e o futuro imediato lhe parecia

turvo. O imperador renanista é representado como a quintessência do tédio

finissecular do qual tanto o historiador Renan e o romancista Anatole France se

valeram para criar o herói intelectual paradigmático. Lima, leitor desses autores e

preocupado com os rumos tomados pela República brasileira, não escapou a esse

tédio, apesar de sua militância.196

Com essas orientações preliminares, chegamos à casa do major Quaresma,

em São Januário, e ocupamos o cômodo que servia de biblioteca, com “suas

estantes pejadas de cima a baixo”.197 O narrador assim descreve o espaço: “[...] um

aposento vasto, com janelas para a rua lateral, e todo ele forrado por estantes de

ferro.” Ao todo havia “perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os

livros de maior tomo”.198 O espírito que presidia a coleção de livros era o patriotismo

de seu proprietário.

Desde os vintes anos que esse espírito animava Policarpo, fazendo com que

procurasse obter “um conhecimento inteiro do Brasil”. Sem ambições políticas ou

administrativas, seus estudos levaram-no a meditar sobre os recursos do seu país

“para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno

conhecimento de causa”.199 Um espírito próximo, portanto, daquele “nacionalismo

espiritual” que Lima identificou como característico dos escritores acima destacados

na Gazeta Literária.

Vamos nos aproximar dessas prateleiras e verificar os títulos e autores que as

preenchem.Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais: o BentoTeixeira, da Prosopopeia; o Gregório de Matos, o Basílio da Gama, o SantaRita Durão, José de Alencar (todo), o Macedo, o Gonçalves Dias (todo),além de muitos outros. Podia-se afiançar que nem um dos autoresnacionais ou nacionalizados de oitenta apara lá faltava nas estantes domajor.De história do Brasil, era farta a messe: os cronistas, Gabriel Soares,Gândavo; e Rocha Pita, Frei Vicente de Salvador, Armitage, Aires do Casal,

195 OAKLEY, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2011,p. 109.196 Ibid., p. 109-110.197 BARRETO, Lima. .Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 73.198 Ibid., p. 76-77.199 Ibid., p. 84.

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Pereira Da Silva, Handelmann (Geschichte von Brasilien), Melo Morais,Capistrano de Abreu, Southey, Varnhagem, além de outros mais raros oumenos famosos. Então no tocante a viagens e explorações, que riqueza! Láestavam Hans Staden, o Jean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o príncipede Neuwied, o John Mawe, o Von Eschwege, o Agassiz, Couto deMagalhães, e se se encontravam também Dawin, Freycinet, Cook,Bougainville e até o famoso Pigafetta, cronista de viagem de Magalhães, éporque todos esses últimos viajantes tocavam no Brasil, resumida ouamplamente.Além desses, havia livros subsidiários: dicionários, manuais, enciclopédias,compêndios, em vários idiomas.200

O major Quaresma, semelhante ao “cavaleiro andante” de Cervantes,

direciona sua atuação na vida real tendo por base os ensinamentos dos livros. O

narrador sinaliza ao leitor o grande descompasso que essa postura de Quaresma

representava entre o seu mundo idealizado e as condições reais de existência que o

envolviam. Shirley Pereira esclarece que para melhor compreender a trama ficcional

desse romance barretiano, a qual está fundada no entrecruzamento de discursos em

torno do nacionalismo, faz-se necessário penetrar na biblioteca do protagonista em

busca dos segredos de sua brasiliana.201

Essa autora observa que, vista em conjunto, a brasiliana parecerá, tendo em

vista aquele “espírito que a presidia”, convencional. Entretanto, o exame, em

particular, leva-nos a questionar o seu “caráter eminentemente convencional”.

Pereira destaca alguns nomes que a compõem. É o caso de Gregório de Matos.

A época de produção de Gregório foi aquela “em que se formavam as nossas

origens histórico-literárias”, sendo, portanto, sua presença justificada enquanto

registro histórico.202 Mas quanto aos elementos nacionalistas que norteavam aquele

acervo? Como a obra desse autor poderia se encaixar?

Pereira afirma que “o discurso poético de Gregório assume uma postura

dessacralizadora em relação à matriz ufanista”. Tanto para sua vertente eurocêntrica,

pela qual o modelo colonizador é visto como “soma harmoniosa às diferenças locais,

quanto na perspectiva ufanista xenófoba que, por sua vez, tende a subtrair da nossa

cultura aquele modelo, Gregório, segundo Pereira, apresenta um discurso que se faz

corrosivo em relação aos elementos cosmopolitas e locais.203

200 BARRETO, Lima. .Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 77-83.201 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A representação do nacional em Triste fim de PolicarpoQuaresma. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado. 1991. 97 f. Dissertação(Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras da UniversidadeFederal da Paraíba, João Pessoa, 1991, p. 18.202 Ibid., p. 20203 Ibid., p. 3-4; p. 20.

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Esse poeta, “contemporâneo dos diálogos e tratados das grandezas do Brasil

que se prolongaram pelo período colonial, insurge-se com uma das primeiras vozes

a ecoar, iconoclasticamente, contra o mito ufanista e a empresa colonizadora”.204

Sua sátira social leva o leitor a esquadrinhar o lado escuso da colonização,

divergindo da imagem edênica que os cronistas procuravam transmitir.205

A inserção de Gregório na biblioteca de Quaresma representa também o

acompanhamento pelo autor Lima Barreto das recentes mudanças na história da

literatura brasileira. Era uma discussão corrente entre os intelectuais da virada do

século XIX para o XX a definição e desenvolvimento de uma literatura nacional,

como um dos critérios para medir “seu sentimento de identidade nacional206 e, em

conseqüência, de autoconfiança”. Em termos literários (em perspectiva histórica), até

o romantismo Gregório não existia, embora tenha permanecido na tradição local da

Bahia. Ele foi redescoberto, graças a Varnhagen (este também presente na

brasiliana de Quaresma), depois de 1882.

Pouco tempo depois de ser introduzido no cenário da história da literatura

brasileira, Gregório já fazia parte, portanto, da biblioteca de Quaresma, cujas

“aventuras romanescas” se davam entre os anos de 1891 e 1894. Essa presença,

dentro da trama ficcional, é vista da seguinte forma por Shirley Pereira:[...] Nesse quadro intertextual e polifônico criado pelo romance de LimaBarreto, a intrigante, ou melhor, instigante presença de Gregório de Matosaparece ainda como que por tabela na brasiliana de Quaresma, ou seja,projeta-se através do seu redescobridor, o historiador Varnhagen, que éuma presença citada (e teoricamente sintonizada) nessa mesma brasiliananacionalista. É como se fosse a paródia surgindo de dentro da paráfrase(Gregório dentro da brasiliana, e ainda através de Varnhagen),contaminando seu discurso, subvertendo o seu desempenho,complementando a sua trajetória estética na estrutura romanesca dePolicarpo Quaresma. Aqui, a paráfrase entrecruza-se com a paródia,criando o espaço da ironia-crítica e da reflexão dentro do romance.207

204 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A representação do nacional em Triste fim de PolicarpoQuaresma. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado. 1991. 97 f. Dissertação(Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras da UniversidadeFederal da Paraíba, João Pessoa, 1991, p. 51.205 Segundo José Veríssimo, em sua História da literatura brasileira, Gregório de Matos não era umnacionalista, muito menos um autor “revoltado contra a miséria moral da colônia”, sendo deconsiderável importância sua obra pela feição documental de hábitos, “sentimentos e feições morais”do Brasil no período colonial. Cf. VERÍSSIMO, José. História da Literatura brasileira, p. 35-42.Disponível em: www.passeidireto.com/arquivo/24687055/a-historia-da-literatura-brasileira-jose-verissimo Acesso em: 26 jun. 2016.206 A outra medida era a capacidade de atingir estabilidade política. Cf. SKIDMORE, Thomas E. Pretono branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p. 95-114.

207 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A representação do nacional em Triste fim de PolicarpoQuaresma. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado. 1991. 97 f. Dissertação

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Acrescentamos a esse pensamento de Pereira, a nossa visão acerca do

modo como Lima dialogava com a cultura histórica do período. Diante do que

identificamos até o momento desta tese, percebemos em Lima uma necessidade de

apresentar a seus leitores as bases que norteavam a produção de discursos sobre o

passado e as finalidades de seus autores em publicizá-las.

Com isso, Lima, utilizando-se de outras referências e da ironia, critica muitos

daqueles discursos, como o faz no romance aqui em foco, evidenciando lacunas e

pondo em xeque a tão propalada objetividade de autores seguidores do cientificismo.

Vale, então, darmos continuidade às considerações de Pereira acerca da brasiliana

de Quaresma.

Outra presença, que endossa o seu argumento de que a brasiliana não era

tão convencional e sim o recorte realizado pelo Quaresma nas suas leituras, é a do

cronista Gabriel Soares de Souza. Entre seus textos que insistem em demonstrar as

“grandezas do Brasil” com sua terra exuberante e fértil, o cronista Gabriel Soares de

Souza também alerta para o problema da saúva como elemento que oferece

resistência ao desenvolvimento da agricultura brasileira.208 O narrador, promovendo

a crítica do nacionalismo ingênuo de Quaresma, ironiza suas tentativas de produção

agrícola respaldadas pelas informações que obtinha de seus livros.

Já no seu sítio, Quaresma ao ir para sua cama à noite “pôs-se a ler um velho

elogio das riquezas e opulências do Brasil”. Até que ouviu um ruído vindo de sua

despensa. Ao procurar pela casa a causa daquele barulho, foi surpreendido por

“uma ferroada no peito do pé. [...] Abaixou a vela para ver melhor e deu com uma

enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua pele magra”.209 Constatou que eram

formigas, carregando “suas reservas de milho e feijão”.

Pereira também enfatiza que a constatação dos resultados da prática agrícola

“sugere uma complementação irônica da frase de Caminha “nessa terra em se

plantando tudo dá”.O ingênuo Quaresma, compelido pelo seu ufanismo, embarcou nacontinuidade de jogo ideológico (terra inocente/terra pródiga – sementeprincipal/semente secundária) iniciado, na cultura brasileira com a carta deCaminha e reiterado por muitos nomes presentes em sua brasiliana. O

(Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras da UniversidadeFederal da Paraíba, João Pessoa, 1991, p. 50-51.208 Ibid., p. 20-21.209 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 226-227.

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personagem só consegue entender as regras desse jogo muito tardiamentee, aí, ao invés de idealização, assoma a negação.210

Um outro destaque que precisa ser feito da brasiliana de Quaresma é a

presença de escritores românticos como José de Alencar, Gonçalves Dias e Macedo,

sendo que, em relação aos dois primeiros, o narrador enfatizou que era toda a sua

obra.211 A análise dessa presença deve ser realizada juntamente com o

requerimento redigido por Quaresma no qual defendia a adoção da língua tupi como

oficial do país e, seguindo o raciocínio de Pereira em mostrar a não

convencionalidade daquela brasiliana – embora autora não se refira ao nome que

iremos destacar – estabelecer mais uma obra que o personagem tinha acesso, mas

não considerou seus argumentos devido ao seu recorte.

Aqui iremos observar o diálogo que, em Triste fim de Policarpo Quaresma,

Lima travou com a tradição literária e historiográfica romântica bem como suas

possíveis relações com o contexto da escrita desse romance. Nesse sentido,

procuraremos desenvolver uma abordagem pela qual evidenciaremos a ausência do

negro naquelas narrativas.

O romantismo apresentou um compromisso nacionalista bastante reforçado

pelo clima de euforia provocado pela independência política do Brasil. Os seus

representantes, como parte do esforço de construir uma identidade nacional,

erigiram mitos no intuito de conferir à incipiente pátria e a seu povo caráter e origens

nobres. Como legítimo representante de nossa cultura, o índio foi alçado à categoria

de expressão daquela identidade.

O indianismo romântico “atingiria seus momentos de maior grandeza no

romance e na poesia justamente em José de Alencar e Gonçalves Dias,

respectivamente. Vale registrar que o índio representado pelo romantismo é um

sujeito idealizado, “revestido de características e comportamentos peculiares à

cultura europeia”. O índio do romantismo é cortês e submisso ao homem branco e

temente ao deus cristão.

Havia na visão romântica um otimismo quando à formação de uma nação

nova na qual se desenvolvia uma harmonia racial. Por essa perspectiva, o branco

colonizador é representado como elemento purificador no cruzamento das raças,

210 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A representação do nacional em Triste fim de PolicarpoQuaresma. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado. 1991. 97 f. Dissertação(Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras da UniversidadeFederal da Paraíba, João Pessoa, 1991, p. 22-23.211 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 78.

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sendo deslocado de um papel contrário à cultura nativa. A suposta conciliação entre

o elemento branco colonizador e o indígena colonizado é representada de uma

maneira em que a cultura do primeiro predomina sobre a do segundo.

Ainda nessa visão otimista do romantismo havia a valorização da natureza

como símbolo da grandeza da pátria. A literatura, nesse sentido, “se fez linguagem

de celebração e terno apego [...], com apoio da hipérbole e na transformação do

exotismo em estado de alma”.212 Os elementos considerados exóticos, o índio e a

natureza, tornaram-se sinônimos de brasilidade e sua valorização pela literatura

romântica fez com que fossem representados como razão para otimismo social,

compensando “o atraso material e a debilidade das instituições”.213

Uma visão de sociedade que animou o major Quaresma a enviar um

requerimento ao Congresso Nacional. Este continha o desejo patriótico do

protagonista de ver a língua indígena tupi como oficial do Brasil, pois, segundo ele,

“a língua portuguesa é emprestada ao Brasil” e, sendo a língua “a mais alta

manifestação da inteligência de um povo”, o aceite de seu pedido representaria o

complemento à emancipação política do país.214

Essa atitude de Quaresma gerou uma série de “pilhérias” por parte da

imprensa e irritação entre seus colegas de repartição, levando-o a delírios e

consequente internamento no hospício. O descompasso entre seu nacionalismo

advindo de suas leituras e a vida real mais uma vez é sinalizada pelo narrador.

Dentro desse descompasso, temos que observar também a própria negação de

certos elementos da realidade que aquela visão romântica acaba se reverberando

nas ações de Quaresma.

Estamos aqui nos referindo à ausência do negro na formação da

nacionalidade e à elipse do índio presente no pensamento de Quaresma. A tradição

romântica na sociedade escravocrata brasileira não insere na mistura das raças o

elemento negro e o índio foi incorporado por ainda ser possível sua assimilação à

civilização, embora também considerado como uma raça inferior. O negro, visto

212 CANDIDO, Antonio. A Educação Pela Noite & Outros Ensaios. São Paulo: Ática, 1989 (SérieTemas: Volume 1Estudos Literários), p. 141.213 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A representação do nacional em Triste fim de PolicarpoQuaresma. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado. 1991. 97 f. Dissertação(Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras da UniversidadeFederal da Paraíba, João Pessoa, 1991, p. 61.214 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 139-140.

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como ameaça à ordem e mão de obra servil, não apresenta aspectos que poderiam,

na visão romântica, contribuir para a melhoria da formação da nação.

Devemos levar em consideração também, nessa exclusão dos negros, as

teorias cientificistas que, no seu âmbito, tinha o racialismo como um dos destaques.

Este, por sua vez, apresentava o problema que a mestiçagem geraria para o Brasil,

tema que, como vimos, levou a muitos debates entre os pensadores nacionais. Na

obra Triste fim de Policarpo Quaresma, ambientada na última década do século XIX

em que a intelectualidade brasileira apresentava uma grande aceitação do

racialismo, tanto o narrador quanto o protagonista não dão maiores destaque à

presença negra.

O romance “como um todo relega o negro a situações periféricas e a uns

poucos estereótipos raciais que até então marcara a literatura brasileira”.215 Os

negros que trabalham com Quaresma - Anastácio, Felizardo e Mané Candeeiro –

são apresentados no enredo como leais e hábeis para o trabalho braçal. Quanto a

Mané Candeeiro, o narrador recorre a outro estereótipo para realizar sua descrição

física, denotando sua aceitação, a princípio, das teorias racialistas com seu

pessimismo em relação aos mestiços.Ele era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e fortes, umtanto amolecida pelo sangue africano.Quaresma procurou descobrir naquela odiosa catadura que Darwin achounos mestiços, mas, sinceramente, não a encontrou.216

O narrador se mostra vacilante quanto às máximas do evolucionismo.

Inicialmente, fez uma referência preconceituosa à fisionomia de Felizardo,

salientando que, apesar de aspectos que se atribuíam à raça branca (“cesarianas,

duras e fortes”) presentes no trabalhador negro, estes já se encontravam

degenerados pela contaminação do sangue negro. Contudo, logo em seguida, se

contradiz ao narrar que Quaresma não consegue ver em Felizardo o semblante

negativo que o cientista inglês afirmava ser típico dos mestiços.

Já um outro estereótipo do negro nesse romance é a personagem Maria Rita.

Uma ex-escrava, como Anastácio, “antiga lavadeira da família Albernaz”. Servil

como os demais personagens negros, a preta velha Maria Rita é procurada por

215 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A representação do nacional em Triste fim de PolicarpoQuaresma. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado. 1991. 97 f. Dissertação(Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras da UniversidadeFederal da Paraíba, João Pessoa, 1991, p. 77216 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 235.

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Quaresma e seu amigo general Albernaz, pois este último queria realizar uma festa

na sua casa com cantigas originárias do norte do país, consideradas genuinamente

nacionais. Uma proposta que estimulou o furor patriótico de Quaresma.

Entretanto, os dois amigos saíram desanimados com o encontro, pois Maria

Rita não se recordava das cantigas. O desejo deles era apenas fazer uma

apresentação com o que pudesse conseguir com a preta velha.217 Não havia na

procura de Quaresma pelas recordações daquela personagem uma tentativa de

vincular a figura do negro e sua memória cultural ao projeto de construção de uma

identidade nacional, como o fez em relação ao índio.

A inclusão dos negros no processo de formação da nacionalidade, não

poderia ser vislumbrado pelo patriotismo do protagonista. Na sua brasiliana de

Quaresma, entre as referências de História do Brasil, podemos notar a presença de

Martius, também não percebida no trabalho de Shirley Pereira. A monografia do

naturalista bávaro Carl Friedrich von Martius (1791-1868) Como se deve escrever a

História do Brasil foi a vencedora do concurso promovido pelo IHGB em 1840 e fez

parte das leituras de Lima Barreto durante o processo de escrita do romance Triste

fim de Policarpo Quaresma.

Esse trabalho teve uma grande influência sobre a intelectualidade nacional,

apresentando um receituário para quem se interessasse pela escrita da história do

Brasil. Nesse, o autor foi favorável à mescla das raças no país. O elemento branco

português é o elemento superior a absorver as outras raças. Contudo, Martius, ao

contrário dos românticos indianistas, não exclui “o sangue africano” dessa mistura

bem como acreditava que essa fusão entre branco, índio e negro (“raças índia e

etiópica”) fortaleceria a população brasileira.218

O recorte de Quaresma se orienta pelos ditames discriminatórios do

romantismo e do cientificismo pelos quais os negros não são vistos como um

elemento favorável à construção da identidade nacional. Essa postura justifica a

ausência naquela brasiliana de representantes da terceira geração romântica em

que a indignação contra a escravidão foi uma das suas marcas. Os textos

publicados de Castro Alves e Bernardo Guimarães que levantavam a bandeira do

abolicionismo foram anteriores ao momento da apresentação da brasiliana de

217 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 103.218 MARTIUS, Carl von. Como se deve escrever a História do Brazil. Revista Trimensal de História eGeographia, Rio de Janeiro, v.6, n.24, p.383, jan. 1845.

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Quaresma,219 mas o objetivo de esconder as contradições e os conflitos da

sociedade brasileira para apresentar uma nação em formação com harmonia entre

seus membros era o alvo do ufanista protagonista.

A primeira geração do romantismo, indianista, foi, então, o recorte na cultura

histórica brasileira do século XIX a servir de referência para Quaresma. Mesmo

nessa tradição, como vimos, os tão valorizados índios, também considerados

inferiores aos brancos, entram na composição da nacionalidade com ressalvas. O

indianismo de Policarpo Quaresma não sinaliza uma integração das raças, mas,

apenas, “a absorção dos valores socioculturais do índio, como sua língua e seus

costumes”.220

Assim como no romantismo, nesse romance barretiano há uma elipse do

índio presente. Se no romantismo há uma idealização a-histórica do índio, no

romance este desaparece, “restando apenas o espectro de seus valores culturais

(valores arqueológicos do índio)”.221 Àquele recorte de Quaresma na sua brasiliana,

tão bem estudado pela professora Elvya Shirley que vem nos orientando nesse

“bosque” barretiano, podemos acrescentar mais aspectos que corroboram na

exclusão do índio presente bem como evidenciam as alusões que Lima Barreto fazia

das possíveis seleções operadas pela intelectualidade de sua época no intuito de

conformar uma dada imagem da identidade nacional.

Ao retornarmos às prateleiras da biblioteca de Quaresma, veremos que o

narrador destaca que havia, entre os textos ficcionais, “o Gonçalves Dias (todo)”.222

Este autor, porém, como sócio ativo do IHGB desde 1847, publicou, na revista do

instituto, narrativas arqueológicas e etnográficas.223 Nessas, o poeta romântico

trouxe informações sobre o passado de certos grupos indígenas que desmitificavam

o índio presente que o próprio autor e seus contemporâneos românticos tentavam

invisibilizar nos seus textos ficcionais.

219 Castro Alves publicou Vozes d’África em 1868 e, no ano seguinte, Navio negreiro. Já BernardoGuimarães publicou Escrava Isaura em 1875.220 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A representação do nacional em Triste fim de PolicarpoQuaresma. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado. 1991. 97 f. Dissertação(Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras da UniversidadeFederal da Paraíba, João Pessoa, 1991, p. 73.

221 Ibid., p. 65.222 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 78.223 FERREIRA, Lúcio Menezes. Gonçalves Dias: arqueólogo e antropólogo. In: LOPES, MarcosAntônio (org.). Grandes nomes da História intelectual. São Paulo: Contexto, 2003, p. 456-457.

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Apesar dos exemplares da revista do IHGB não figurarem na biblioteca, em

outros trechos do romance, o narrador, descrevendo o cotidiano de Quaresma na

sua chácara, afirma que, após o almoço, o major fazia um passeio por sua

propriedade. “Após uma hora ou menos, voltava à biblioteca e mergulhava nas

revistas do Instituto Histórico” e em outros documentos pelos quais estudava os

índios. O narrador faz uma ressalva nesses estudos, salientando o interesse do

personagem pelos espectros dos valores culturais dos índios, como acima

destacado:[...] Não fica bem dizer que estudava, porque já fizera há tempos, não só notocante à língua, que quase já falava, como também nos simples aspectosetnográficos e antropológicos. Recordava (é melhor dizer assim, afirmavacertas noções dos seus estudos anteriores, visto estar organizando umsistema de cerimônias e festas que se baseasse nos costumes dos nossossilvícolas e abrangesse todas as relações sociais.224

Notamos, portanto, que Quaresma, possivelmente, estava familiarizado com a

faceta etnográfica do poeta Gonçalves Dias, mas, devido a seu recorte ufanista e

xenófobo, não levou em consideração algumas “descobertas” desse autor. Dias

publicou dois longos ensaios arqueológicos e etnográficos no IHGB nos anos de

1854 e 1867.225 Ou seja, pelo período em que se desenrola a narrativa barretiana,

poderia fazer parte das leituras de Quaresma.

No primeiro ensaio, Dias, respondendo a uma inquietação do imperador Dom

Pedro II sobre a existência das amazonas no Brasil, “fez uma incursão nas crônicas

coloniais e nas cosmologias indígenas no intuito de averiguar se as guerreiras de

Heródoto, as amazonas, estiveram ou não entre os indígenas do Brasil”.226 Nesse

estudo, concluiu pela improbidade do contato entre aqueles povos.

Já no segundo, intitulado Brasil e Oceania, o autor tinha por objetivos, por um

lado, “estudar o estado físico, moral e intelectual dos indígenas conforme eles se

apresentam durante os primeiros contatos com os portugueses, para inferir as

facilidades e dificuldades que se ofereciam a uma política indigenista de integração;

de outro, realizar uma comparação entre os indígenas brasileiros e os da Oceania a

fim de avaliar “qual deles estava mais apto a receber os ensinamentos da

civilização”.227

224 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 101.225 FERREIRA, Lúcio Menezes. Gonçalves Dias: arqueólogo e antropólogo. In: LOPES, MarcosAntônio (org.). Grandes nomes da História intelectual. São Paulo: Contexto, 2003, p. 457.226 Ibid., loc.cit.227 Ibid., loc.cit.

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Entre as conclusões a que chegou Dias, nesse segundo ensaio, muitas delas

iam de encontro à perspectiva romântica e de Quaresma quanto aos tupis como

autênticos representantes da nacionalidade. “Valendo-se [...] de uma “hermenêutica

filológico-textual”, Dias asseverou “que os tupis foram uma raça invasora, hordas

que vieram” da América do Norte e ocuparam todo o litoral brasileiro. Além disso, o

etnógrafo-poeta destaca a não homogeneização da população indígena, umas vez

que os tupis, quando de suas primeiras imigrações, encontraram raças primitivas já

habitando as florestas brasileiras.

Segundo o autor, duas raças povoaram o Brasil antes da chegada dos

portugueses. As raças primitivas descendentes da raça mongol e os tupis que

apresentavam analogias com os ramos menos nobres da raça caucasiana. Diante

disso, Gonçalves Dias considera que, num passado distante, os tupis foram nobres

e valentes, mas, no presente, não passavam de degenerados e miscigenados,

cabendo ao Estado brasileiro a sua condução “por uma política indigenista que os

oriente por um trajeto adequado aos propósitos sociais do império”.Eles até podem figurar na identidade nacional, contanto que sejamrecordados no seu estado passado, desde que redivivos nos pacíficosescaninhos da memória nacional. De fato, eles podem figurar na identidadenacional, mas somente transfigurados nos ritmos e nas metáforas da poesiaromântica, somente metrificados em seres epopéicos.228

Quaresma, portanto, não considera nos seus estudos sobre os índios nada

que ponha em xeque a autenticidade nacional dos tupis, o que deslegitimaria seu

requerimento de adoção da língua dessa etnia como oficial da nação brasileira.

Seguindo seu patriotismo, ainda nega a diversidade dos povos indígenas na Brasil

que aqueles estudos de Dias poderia lhe mostrar caso não lhe recortasse em nome

de seu nacionalismo extremado. Um apagamento de diferenças que o discurso

colonizador procurou consolidar no intuito de adensar sua dominação, o qual se faz

presente nas leituras que o protagonista desse romance barretiano faz da cultura

escrita a que tinha acesso.

Lima, na construção dessa narrativa, procurou fazer alusão às possíveis

vozes dissonantes que havia na brasiliana de muitos intelectuais que buscavam

conformar uma identidade nacional para o Brasil. Através de seu personagem

Quaresma, já no fim da narrativa, quando suas aspirações nacionalistas se

desfaziam ao ter maior contato com a realidade que o cercava, o autor salientou a

228 FERREIRA, Lúcio Menezes. Gonçalves Dias: arqueólogo e antropólogo. In: LOPES, MarcosAntônio (org.). Grandes nomes da História intelectual. São Paulo: Contexto, 2003, p. 461.

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necessidade de uma constante revisão do passado e, especificamente, como a

visão racialista norteava diversos nacionalismos, promovendo a exclusão de

determinados grupos das narrativas sobre a formação do povo brasileiro.“Reviu a história; viu as mutilações, os acréscimos em todos os períodos históricos eperguntou de si para si: como um homem que vivesse quatro séculos, sendo francês,inglês, italiano, alemão, podia sentir a pátria?”Uma hora, para o francês, o Franco-Condado era terra de seus avós, oura não era;num dado momento, a Alsácia não era, depois era e afinal não vinha a ser.Nós mesmos tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura, sentimos quehaja nela manes dos nossos avós e por isso sofremos qualquer mágoa?Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser revista.229

A literatura militante de Lima Barreto, como vimos, questionou essa invenção

que é “o espírito nacional”, buscando, sempre que possível, mostrar a historicidade

de sua construção. Nesse romance em destaque, notamos como Lima elaborou uma

caricatura de uma nacionalista, evidenciando suas manipulações de registros da

trajetória da formação do povo brasileiro a fim de que coubessem na imagem de

nação que mais lhe agradasse.

O diálogo de Lima Barreto com uma parte da cultura histórica nessa narrativa

nos ofereceu elementos sobre a sua visão, enquanto polígrafo – assim como muitos

dos outros membros da intelectualidade brasileira daquele momento -, acerca da

discussão em torno da questão nacional e sua consequente produção de memórias.

A seguir, trataremos, dentro da cultura histórica com a qual tanto dialogou e desafiou,

as aproximações e distanciamentos de Lima Barreto em relação a autores e

instituições considerados representativos da produção historiográfica entre os

intelectuais brasileiros.

229 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 350

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CAPÍTULO 3 LIMA BARRETO E OS HISTORIADORES BRASILEIROS

A busca por rememoração histórica a fim de orientar a sua experiência

presente e projetar futuros foi, como vimos, uma preocupação latente entre os

intelectuais brasileiros diante das mudanças socioculturais, políticas e econômicas

de início do século XX. Com aquele desejo de elevar o Brasil à categoria de nação

civilizada, não pouparam esforços em construir narrativas que revisitassem o

passado nacional.

Segundo Rüsen, a atualização interpretativa do passado, visando

compreender o presente, está articulada à expectativa temporal que se abre para o

futuro. Essa relação estrutural entre as três dimensões temporais, denominada

consciência histórica, tem, justamente, como operação mental correspondente, a de

“contar histórias”, a narrativa.1 E Lima Barreto apresenta, na sua produção textual,

momentos em que reflete sobre essa atualização do passado operada pelos

intelectuais de sua época.

Se no capítulo anterior exploramos de uma forma mais ampla a relação de

Lima com os intelectuais nacionais e estrangeiros, neste, o objetivo será apresentar

o olhar específico de Lima sobre o trabalho de certos historiadores brasileiros. Sua

preocupação com o modo como as narrativas deles produziam memórias históricas

fez com que se debruçasse sobre trabalhos históricos de grandes referências para a

historiografia brasileira daquele momento.

Neste capítulo, selecionamos algumas narrativas com as quais Lima travou

um intenso diálogo, apontando suas principais discordâncias bem como algumas

aproximações dessa parcela da cultura histórica brasileira. Os critérios utilizados

para esse recorte foram a citação direta por Lima de determinados historiadores

e/ou a presença de temas comuns ao escritor carioca nos trabalhos deles, os quais

se referem à concepção de escrita da história nacional.

1 RÜSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica?: reflexiones sobre uma nueva manera de abordar la historia.Disponível em: www.culturahistorica.es Acesso: 01 jul. 2014, p. 6-9.

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3.1 Lima Barreto, leitor de João Ribeiro

Já vimos no item 1.1 como Lima se utiliza de um trecho da obra História do

Brasil de João Batista Ribeiro de Andrade (1860-1934) como epígrafe de seu

romance Clara dos Anjos. Esse autor fazia parte das leituras barretianas durante a

sua formação escolar e continuou como referência durante o seu processo de

produção literária. Em carta enviada a João Ribeiro de 3 de junho de 1917, Lima

Barreto, a fim de comentar a crítica que o filólogo e historiador sergipano havia feito

a seu romance Numa e Ninfa, apresentou-se como um de seus leitores mais

assíduo:[...] De há muito que tenho habituado a estudar nos seus livros. E criança,no primeiro ano de sua gramática, mais tarde no segundo, depois noterceiro; em história da mesma forma e li tantas vezes a sua do Oriente eGrécia, que ainda hoje tenho de cor certos trechos. A sua História do Brasil(eu já estava há três anos na Escola Politécnica), quando apareceu, logo acomprei e a li e reli; os seus artigos na Revista Brasileira, sobre “Ademocracia na Alemanha”, foram muitas vezes lidos por mim e comdiversos pensamentos, conforme os anos meus1.

A História do Brasil foi justamente a que mais, nessa trajetória de produção

intelectual de João Ribeiro, teve impacto nas reflexões de Lima Barreto. Se

retomarmos seus estudos acerca da “teoria das raças” registrados nas suas

anotações pessoais, perceberemos que não era apenas admiração que Lima nutria

por Ribeiro. Como um pensador crítico que era, Lima, apresentando aquela sua

desconfiança em relação a certas premissas do determinismo racial, novamente fez

uso, em 1905, de trechos daquele livro de história, lançado em 1900.É que senti que a ciência não é assim um cochicho de Deus aos homens daEuropa sobre a misteriosa organização do mundo.Quando há dias li numa das lições das histórias do Brasil do Senhor JoãoRibeiro, pag.214: “Não podemos pensar que o homem de cor, conseqüênciasemi-híbrida do contato heterogêneo de raças tão distanciadas que, até poreminentes cientistas como Haeckel, são consideradas como espéciesdiversas, seja a peste da cultura americana, como sentenciam ossociólogos”, ri-me com uma espontaneidade, que até eu mesmo me admirei.Lobriguei no período, debaixo daquele – “eminentes cientistas comoHaeckel”- uma excomunhão em regra para os miscigênicos2.

Contudo, Lima Barreto não utilizava essa obra de João Ribeiro apenas para

fundamentar suas reflexões contrárias ao racialismo. A sua leitura também era

atenta às possíveis “incoerências” do historiador sergipano, sinalizando aspectos

1 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c (Tomo II),p.32.2 Id. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p.112.

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que iam de encontro ao seu pensamento acerca do cientificismo predominante

naquele início de século XX. Em carta enviada a Gregório Fonseca de 18 de

novembro de 1906, um dos pertencentes à roda de literatos formada em torno de

Alcides Maia da qual Lima também fez parte, este apresentou os motivos que o

impediam de visitá-lo.Ando cheio de trabalho e de especulações. [...]. Estou monomaníaco.Medito uma refutação a um trecho da história de João Ribeiro, não ao quedizem as palavras, mas ao espírito que as ditou e que se esconde debaixodelas.Imagine você que trato de indagar se a ciência, dado o seu grau deprobabilidade, pode ter juízos formais e condenatórios; e se em face dograu de probabilidade dela, esses juízos condenatórios não sãoequivalentes a anátemas, a excomunhões religiosas.Eu queria me alongar mais, não posso, porém fazer, a menos que tequisesse escrever o próprio opúsculo que pretendo “perpetrar”.Desculparás a cacetada. Essas coisas não te interessam senãoremotamente, mas para mim são vitais. Boa razão para aborrecer osamigos!...3

A compreensão dos significados dessas referências à obra História do Brasil

será possível se observarmos a inserção de seu autor no meio intelectual do distrito

federal e, consequentemente, a recepção de seu trabalho bem como o

posicionamento de Lima Barreto em relação a esse cenário. João Ribeiro, no

momento de publicação daquela obra, já era um intelectual reconhecido.

Institucionalmente, pertencia a dois lugares de grande prestígio entre a elite letrada.

Ribeiro era professor de História Universal do Ginásio Nacional, antigo Imperial

Colégio de Pedro II, para o qual havia sido nomeado no início da República e

membro da Academia Brasileira de Letras cuja eleição se dera em 1898. Ao longo

das décadas de 1880 e 1890, colaborou em diversos periódicos, defendendo o

abolicionismo e o regime republicano. E, como o próprio Lima havia assinalado na

carta acima que lhe enviou, já possuía uma produção intelectual, antes de 1900,

voltada para os temas da língua nacional e também na área de História.

Por sinal, dois estudos que não eram vistos de maneira desvinculada por João

Ribeiro. Hansen afirma que a perspectiva que esse autor adotou em relação aos

seus estudos da língua e da história demonstrava sua coerência intelectual. Assim

3 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I),p.130.

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como José Veríssimo (tratado acima), um dos expoentes da geração de 1870,

defendia a necessidade de conhecer os “assuntos nacionais”.4

O ensino da língua e da história pátria seria um dos pilares para o

fortalecimento da nacionalidade, fazendo com que Ribeiro se empenhasse em

pesquisar as transformações na língua devido a fatores históricos bem como

empregasse os conhecimentos da filologia para a compreensão do passado

brasileiro. A História do Brasil seguiu essa busca pela formação da nacionalidade e

utilizou, em certos momentos, da filologia para fundamentar sua argumentação.

Essa obra, originalmente voltada para o público escolar, teve uma recepção

entusiasmada entre a elite intelectual. João Ribeiro foi considerado um dos grandes

historiadores brasileiros e seu texto foi citado por outros intérpretes reconhecidos da

sociedade brasileira como Euclides da Cunha.5 Dentre as consequências imediatas

da recepção positiva de sua obra, podemos destacar o seu desdobramento em três

versões dirigidas às diferentes faixas de escolaridade (os cursos primário e médio,

voltados para escolas primárias, e a História do Brasil. Curso Superior, para os

ginásios e escolas normais, todas pela editora Jacinto Ribeiro Santos).6

A versão denominada Curso Superior foi a que apresentou maior êxito e, ainda

naquele ano de 1900, a Livraria Francisco Alves tornaria pública uma edição

comemorativa do centenário do Descobrimento do Brasil, expressando a vocação do

livro para transcender seu público originário. Araripe Júnior, no prefácio da 2ª edição

de História do Brasil, elogia as qualidades intelectuais do autor, destacando sua

formação durante o período em que, comissionado pelo governo federal, esteve na

Alemanha estudando “os processos de ensino superior da História” bem como o

método proposto pela obra para a aprendizagem da História, o qual familiarizaria “o

espírito infantil com a ciência”.7

Essa passagem pela Alemanha contribuiu para a sua apropriação de

fundamentos de uma vertente da produção historiográfica alemã do século XIX

denominada Kulturgeschichte (história cultural), a qual orientou a produção do

manual de História em destaque. Percebemos já na introdução da obra elementos

4 HANSEN, Patrícia Santos. Feições e Fisionomias: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio deJaneiro: Access, 2000, p. 18.5 Ibid., p. 9.6 Ibid., p. 8-9.7 ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. João Ribeiro: filólogo e historiador. In: Ribeiro, João.História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2001, p. 19-24.

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dessa escolha teórica de Ribeiro ao apontar uma de suas grandes diferenças em

relação aos outros manuais.Quando me propus escrever este pequeno livro pensei em retornar à antigatradição dos nossos cronistas e primeiros historiadores, que às suashistórias chamavam de Notícia ou Tratado do Brasil. Com isso queriamsignificar o modo como supriam a escassez de fatos políticos com o estudoda terra e das gentes que a habitavam.Este belo costume logo se perdeu, porque, adquirindo o Brasil os foros denacionalidade, a sua história começou a ser escrita com a pompa e ogrande estilo da história européia; perdeu-se um pouco de vista o Brasilinterno por só se considerarem os movimentos da administração e os darepresália e da ambição estrangeira, uns e outros agentes da sua vidaexterna. [...][...] nas suas feições e fisionomia própria, o Brasil, o que ele é, deriva docolono, do jesuíta e do mameluco, da ação dos índios e dos escravosnegros. [...] Esta história, a que não faltam episódios sublimes ou terríveis, éainda a mesma presente, na sua vida interior, nas suas raças e nos seussistemas de trabalho, que podemos a todo instante verificar. Dei-lhe por issouma grande parte e uma consideração que não é costume haver por ela,neste meu livro.Em geral, os nossos livros didáticos da história pátria dão excessivaimportância à ação dos governadores e à administração, puros agentes (esempre deficientíssimos) da nossa defesa externa.8

Hansen afirma que esse pensamento de Ribeiro está fundamentado na noção

de típico daquela vertente historiográfica alemã. Para Burckhardt, grande modelo

dessa historiografia na Alemanha de início da década de 1870, a história cultural,

diferentemente da história política, não se limitaria à narração cronológica dos fatos.

Sua preocupação era com algo “constante”, mais instrutivo que o fato particular e

individual”. O detalhe, o acontecimento que seja, seria considerado como

testemunho de um sentido geral, pois se o “fato tinha valor para o historiador da

cultura era por causa do típico de sua representação; [...] a constante” que se

destacaria “ de todos estas representações” constituiria o “conteúdo real”, chegando

assim “a conhecer uma forma.9

Esse aspecto da História do Brasil de João Ribeiro, presente no seu objetivo de

representar o país em “suas feições e fisionomia própria” e rompendo com uma

historiografia mais voltada para os fatos políticos e administrativos, também teve

repercussão na produção de Lima Barreto. O romance satírico Os Bruzundangas, a

coletânea de relatos e tradições populares Mágoas e Sonhos de um povo e os

contos reunidos na obra História e Sonhos – sendo que o segundo trabalho será

mais detalhado e discutido no último capítulo desta tese - sinalizam em muitos dos

8 RIBEIRO, João. História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,2001, p. 31.9 HANSEN, Patrícia Santos. Feições e Fisionomias: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio deJaneiro: Access, 2000, p. 73-75.

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seus trechos a preocupação barretiana de aproximar seu leitor da discussão acerca

da necessidade dos intelectuais explorarem em suas narrativas aspectos da cultura

de grupos populares bem como sua percepção da preservação e possíveis

mudanças de elementos presentes no cotidiano do povo que revelam traços de sua

formação ao longo do tempo.

Aquela citação de parte da introdução da obra de Ribeiro também nos convida

a tratar de um tema, muito caro a Lima Barreto como vimos no primeiro capítulo, que

é a formação da nacionalidade brasileira a partir da composição racial. Araripe

Júnior, no seu prefácio, afirma que João Ribeiro declarou numa nota final do livro

que havia seguido “à letra as indicações de Martius, que incontestavelmente foi o

iniciador da filosofia do Brasil no admirável trabalho Como se deve escrever a

História do Brasil”.10

A monografia do intelectual alemão Carl Friedrich Philip Von Martius (1794-

1868), vencedor do concurso promovido pelo IHGB em 1840 e parte das leituras de

Lima Barreto durante o seu processo de escrita de uma de suas obras mais voltadas

para o diálogo com a tradição nacionalista no Brasil que é Triste fim de Policarpo

Quaresma11, apresenta um receituário para quem se interessasse pela escrita da

história nacional. Esse autor asseverava:[...] O sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver os pequenosconfluentes das raças índia e etiópica. Na baixa classe tem lugar estamescla, e como em todos os países se formam as classes superiores doselementos das inferiores, e por meio delas se vivificam e fortalecem, assimse prepara atualmente na última classe da população brasileira essa mesclade raças, que daí a séculos influirá poderosamente sobre as classeselevadas, e lhes comunicará aquela atividade histórica para a qual o impériodo Brasil é chamado.Eu creio que um autor filosófico, penetrado das doutrinas da verdadeirahumanidade, e de um cristianismo esclarecido, nada achará nessa opiniãoque possa ofender a susceptibilidade dos brasileiros. Apreciar o homemsegundo o seu verdadeiro valor como a mais sublime obra do Criador, eabstraindo da sua cor ou seu desenvolvimento anterior, é hoje em dia umaconditio sina qua non para o verdadeiro historiador.12

João Ribeiro não apresentou o mesmo teor favorável à mescla das raças no

Brasil que o naturalista Martius. A continuidade daquele trecho, selecionado por

Lima para apresentar que até entre os deterministas raciais – Haeckel (1814-1919)

foi um darwinista social - havia argumentos contrários à ideia do negro como

10 ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. João Ribeiro: filólogo e historiador. In: Ribeiro, João.História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2001, p. 22.11 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p.147.12 MARTIUS, Carl von. Como se deve escrever a História do Brazil. Revista Trimensal de História eGeographia, Rio de Janeiro, v.6, n.24, p.383, jan. 1845.

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elemento depreciador da cultura americana, traz elementos que apontam o

compromisso de Ribeiro com o cientificismo de sua época, o qual o impedia de

seguir “à letra” Martius e o aproximava de seu conterrâneo Silvio Romero com quem

estabeleceu uma amizade ao chegar ao Rio de Janeiro na década de 1880,

facilitando seu ingresso no círculo dos intelectuais da época.[...] Mas não cremos com Martius, que aliás com grande atenção observouessas raças, serem elas suscetíveis de toda a perfectibilidade;evidentemente e como naturalista Martius pensava no cruzamentocrescente pela imigração européia que viria afinal suplantar o caráter dascamadas primitivas; felizmente ainda na raças mestiças há sempre um escolintelectual e moral que consegue subjugá-las e dirigi-las.As raças miscigêneas no seu todo, porém, quais no-las representa aAmérica Latina, não parecem nesse estado possuir a capacidade do self-government. Embalde adaptam as ideias da civilização a seu organismo;falta-lhes o sentimento que aquelas ideias pressupõem e as qualidadesmorais que, ao contrário das teorias, só a educação secular da históriaconsegue a custo verter no espírito humano. [...]Em geral, assimilam e preferem as teorias e os sistemas mais radicaisporque esses são possíveis só com a demolição da sociedade; cortejamassim a civilização e ao mesmo tempo satisfazem o instituto fundamentalque é, como o das crianças, puramente destrutivo. [...] Aqueles quedescendem diretamente da escravidão ou da floresta viva nada têm com opassado que a prole deles, não tendo nobreza, não a estima. Nada aceitamda história, que naturalmente lhes é suspeita ou indiferente, buscamremédio impossível nas utopias do futuro que a sua frágil moral nãocomporta; assim sorriem dos reis que a história consagrou e aindaescarnecem mais dos deuses falsos que eles próprios fabricam e sepropõem inutilmente a venerar. Não sabem governar nem ser governados,[...].O único remédio para esses povos é o mesmo da antiga colonização, opovoamento contínuo e a imigração europeia [...].13

Silva, no seu estudo sobre a construção da brasilidade na obra de João Ribeiro,

aponta que na citação acima se percebe a grande contradição na concepção racial

do autor. Se, em páginas anteriores da obra, indica a raça nacional mestiça como o

agente construtor da nacionalidade, apresenta ao mesmo tempo receio e

pessimismo quanto a isto.14 Notamos como Ribeiro via na imigração europeia a

saída para os males trazidos pela miscigenação no Brasil, corroborando o

pensamento de Sílvio Romero sobre o branqueamento da nação pela introdução

desse elemento externo. Como vimos, algo que representava a forma como muitos

intelectuais se apropriaram do racialismo para justificar seu racismo e manter a

desigualdade social naquele pós-abolição e início republicano brasileiro.

13 RIBEIRO, João. História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,2001, p. 199-200.14 SILVA, Roberto Candido da. O polígrafo interessado: João Ribeiro e a construçãobrasilidade.Orientadora: Miriam Dolhnikoff. 2008. 200f. Dissertação (Mestrado em História Social) –Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008, p.180.

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O trecho acima da História do Brasil de Ribeiro pode ter sido o objeto da

reflexão de Lima, destacada naquela carta escrita em 1906. Contudo, pela trajetória

de seus estudos que acompanhamos no primeiro capítulo, outros trechos devem ser

considerados a fim de compreendermos o desejo de Lima Barreto em refutar - “não

ao que dizem as palavras, mas ao espírito que as ditou” – determinado aspecto dos

argumentos do autor sergipano. Além disso, na década seguinte ao lançamento do

livro, Lima ainda apresenta, em textos publicados na imprensa, ideias que procuram

dar continuidade a sua contestação ao “espírito” que ditou as palavras utilizadas por

Ribeiro naquele sucesso editorial que foi seu manual.

A influência da escravidão negra na formação do povo brasileiro deve ter sido

um aspecto da obra de João Ribeiro que atraiu a atenção de Lima Barreto. Em

muitos trechos referentes ao negro, Ribeiro o apresenta de uma forma que

justifica/abranda a sua escravização e o inferioriza, mesmo reconhecendo sua

contribuição para a construção do povo brasileiro.

Já no primeiro capítulo, subtítulo “A terra e os habitantes”, ao abordar os

indígenas e suas relações com os colonizadores portugueses, Ribeiro aponta que

estes pensaram “logo em transformá-los em escravos; a escravidão não era uma

injúria para a consciência dos negros, muito menos para os índios; mas era um ato e

o principal efeito da guerra”.15 Mais adiante, num dos capítulos que constitui o cerne

da obra que é “A formação do Brasil: a) História comum”, o autor dedica um subtítulo

à “escravidão negra”.

A princípio, Ribeiro apresenta a falta de proteção que os negros tiveram contra

a escravização se comparado aos indígenas e a importância do tráfico negreiro para

o incremento da economia colonial. Nesse momento do texto, também aponta os

lugares de origem de muitos escravizados bem como os horrores vividos desde sua

captura em solo africano até sua chegada ao Brasil. Informações, portanto, que

devem ter sido utilizadas pelo próprio Lima Barreto para a elaboração daqueles

primeiros manuscritos nos quais narrava o cotidiano de escravizados (contos

incompletos, esboço de uma peça e alguns trechos da primeira versão de Clara dos

Anjos).

O segundo momento da narrativa de Ribeiro referente à escravização do negro

certamente já ia de encontro ao pensamento que Lima estava construindo no início

15 RIBEIRO, João. História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,2001, p. 49.

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do século XX acerca das mazelas que a população negra vivenciava na sociedade

brasileira, situação influenciada pela experiência do seu passado escravocrata.

Ribeiro justifica que as mazelas da escravidão eram comuns entre os africanos. Os

traficantes apenas se aproveitaram dessa situação.

Para o autor, “o resgate dos negreiros é apenas o triste epílogo das grandes

conflagrações, cujo rastilho eles acendiam de longe na foz deserta dos rios ou à

beira do Oceano”.16 A escravidão no Brasil, diante desse contexto, era considerada

um desfecho desejado pelos escravizados.[...] Daqui em diante, a vida dos negros regulariza-se, a saúde refaz-se ecom ela a alegria da vida e a gratidão pelos novos senhores, que melhoreseram que os da África e os do mar. Sem dúvida alguma, ainda muitos doshorrores e crimes ressurgem no cativeiro novo, e aqui e ali, não falham,entre senhores cruéis, rigores monstruosos.A escravidão, porém, sempre era corrigida entre nós pela humanidade epela filantropia. [...][...] Costumes belíssimos instituem-se entre os senhores; como os deapadrinhar os remissos ou fugitivos [...]. O costume de ceder um dia ou dois(sábado ou domingo) ao trabalho do negro [...] e também o reconhecimentoda propriedade privada do escravo. Outro costume é o das alforrias na pia oque fazia com uma espórtula insignificante [...] que nunca era recusada;esse hábito era frequente , sobretudo quando as crianças traziam a pelemais clara. A religião concedia-lhes uma parte no culto, e santos negros [...]protegiam irmandades numerosas de pretos. [...].Todos esses costumes testemunham em favor de nossa índole eliberalidade.Não é nosso intento fazer apologia da escravidão, cujos horroresprincipalmente macularam o homem branco e sobre ele recaíram. Mas aescravidão no Brasil foi para os negros a reabilitação deles próprios e trouxepara a descendência deles uma pátria, a paz e a liberdade e outros bensque pais e filhos jamais lograriam gozar, ou sequer entrever no seio bárbaroda África.17

O abrandamento da experiência escravocrata no Brasil pelo autor dever ser

inserido no contexto da produção da obra. Como vimos, a reorganização política e

social advinda da abolição da escravidão e proclamação da República fez com que a

categoria cidadão fosse estendida a um maior contingente populacional. Como

arrefecer tensões oriundas do período escravista e tentar definir uma identidade

nacional que fizesse frente às outras nações consideradas civilizadas?

A adoção do ideário cientificista era um dos critérios vistos como sinalizador do

caminho para se alcançar o patamar de nação civilizada. Por outro lado, o racialismo,

ponta aparente do iceberg cientificismo nas palavras de Todorov18, constituiu um

16 RIBEIRO, João. História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,2001, p. 142.17 Ibid., p. 143-145.18 TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Tradução:Sérgio Goes de Paula. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 111.

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desafio para a intelectualidade brasileira, tendo que ser apropriado de uma forma

que justificasse, positivamente, a formação da sua nação. Somado a isso, também

vimos como esse ideário foi utilizado para respaldar hierarquias sociais já bastante

cristalizadas.

Uma narrativa que amenizasse a forma violenta e discriminatória como os

negros foram tratados desde o período da escravidão no país era uma leitura do

passado nacional que atendia aos interesses do presente em que aquela obra foi

publicada. Inseriam o negro e o indígena na formação da nacionalidade,

reconhecendo suas contribuições bem como sua mescla com o elemento branco,

mas mantinham a crença na hierarquização das raças. Uma forma de justificar as

diferenças sociais existentes naquela suposta democracia racial que se contrapunha

à leitura da realidade nacional que Lima Barreto realizava desde os seus primeiros

projetos de escrita e defendida ao longo de sua produção literária.

A ótica do presente como influente na reflexão que o historiador produz do

passado, a propósito, fazia parte do pensamento que Ribeiro tinha acerca do

trabalho historiográfico. Em seu discurso de posse no IHGB em 1915, afirmou que:O presente é quem governa o passado e é quem fabrica e compõe nosarquivos a genealogia que lhe convém. A verdade corrente, hoje, sabebuscar, onde os há verossímeis, os seus fantasmas prediletos de antanho.[...]Hoje elevamos estátuas a Tiradentes, porque o nosso ideal de agoradeterminou esse culto. A fuga de d. João VI traduzia-se há pouco peloeufemismo da transmigração, como se lia nos compêndios. Também emFrança os revolucionários de 89 ergueram um culto aos Brutos vingadoresde Lucrécia. E assim, o presente modela e esculpe o seu passado, levantados túmulos os seus heróis e constrói com suas vaidades ou a sua filosofiaa hipótese do mundo antigo.A imparcialidade pode ser imoral: nós temos a obrigação de justificar opresente, de fundar a Ética da atualidade. [...]Com esta filosofia, ou antes, com este pragmatismo, é que tenho meditadosobre a nossa História.19

A constatação de que o passado é um objeto construído pelo tempo presente é

uma percepção também apresentada por Lima Barreto. Em linhas anteriores,

observamos como na crônica “Meia página de Renan”, Lima discutia a mudança de

olhar de duas de suas referências, os intelectuais franceses Taine e Renan, sobre o

passado com a repercussão da derrota de sua nação na Guerra Franco-Prussiana

19 Discurso de posse de João Ribeiro em 10 de abril de 1915. Revista do Instituto Histórico eGeographico Brasileiro. Tomo LXXVIII – (1915) parte II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1916, p.617-618.

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(1870-1871).20 A escolha do período para o enredo de seu romance histórico Triste

fim de Policarpo Quaresma também denota como o presente orientou o olhar do

próprio Barreto sobre o passado recente do regime republicano.

A obra foi finalizada, como vimos, em março de 1911 e seu enredo ambientado

na última década do século XIX, mais especificamente no ano 1891 com o início da

Revolta da Armada. Em 1910, ocorrera a disputa pela presidência do Brasil, na qual

Lima era favorável ao candidato civil Rui Barbosa frente ao militar Hermes da

Fonseca que saiu vitorioso. Depois do governo violento do marechal Floriano

Peixoto, representado naquele romance barretiano, a eleição de Hermes significou o

retorno de um militar ao poder executivo do país.

Contudo, o olhar de Lima sobre a influência do presente na compreensão do

passado estava mais voltado para a forma como isso poderia acarretar certos

silenciamentos em relação a determinados grupos sociais bem como o uso político

desse conhecimento produzido. A sua trajetória literária apontou, pelo que temos até

o momento discutido, uma preocupação do literato em “reformar certas usanças,

sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos”. A História do Brasil de João

Ribeiro, dentro dessa trajetória barretiana, tornou-se um diálogo necessário para os

embates que o escritor carioca travava em relação à situação dos negros e seus

descendentes naquele cenário intelectual em que o racialismo era uma perspectiva

que norteava muitas discussões em torno da formação da nacionalidade brasileira.

Os conceitos de formação, desmoralização e mameluco são essenciais para a

compreensão dessa obra de Ribeiro e sua apresentação contribuirá para

observarmos a sua inserção do negro na história nacional, adensando a

argumentação que aqui estamos elaborando sobre as possíveis passagens desse

texto que seriam refutadas por Lima Barreto diante do seu combate às narrativas

excludentes do povo negro no Brasil.

O texto de Ribeiro, diferentemente de manuais anteriores, deslocou o pêndulo

do Estado para o povo. Em decorrência da ampliação dessa categoria, houve

também um alargamento do conceito de nação. Dentro de sua proposta de

compreender o Brasil interno “nas suas feições e fisionomia própria, percebemos o

destaque que o autor deu à palavra “formação” em duas partes de sua obra.

20 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 533-536.

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“[...] “A formação do Brasil. A história comum”, muito mais extensa que as

outras partes. Quase inevitável considerá-la em conjunto com a parte” seguinte, “A

formação do Brasil. A história local”. A extensão dessas duas partes

complementares constitui “quase um terço” do livro. Todavia, a extensão não é o

único aspecto que deve ser destacado dessas partes, pois se tem a “impressão de

estar começando outro texto” quando a leitura as alcança.21

Ancorado, como vimos, na historiografia da cultura alemã e nas

recomendações de Martius, Ribeiro apontou nesse “outro texto” que a história

comum da nação estava fundada sobre a equivalência entre uma raça, uma cultura

e um território, o que constituiria sua essência. O autor identificava no passado

elementos que eram passíveis de serem reconhecidos ainda no presente, os quais,

por sua vez, orientariam a construção da nacionalidade.

O estudo da nação em formação também se apoiava, no entanto, no conceito

de desmoralização, o qual era utilizado pelo autor para qualificar a sociedade

brasileira de seu tempo. Esse conceito, segundo Ribeiro, devia ser tomado no

“sentido que lhe dão os neo-etnologistas tedescos”, representando o estado em que

numa sociedade, “pelo fluxo e refluxo das gentes novas, não se torna possível a

formação de “um espírito consuetudinário” e, consequentemente, da lei, e da

tradição, “nem sequer é possível o caráter”.22 O autor indicou que esse estado de

desmoralização da nação brasileira já se tornava evidente no processo de

colonização, como um mal de origem.Logo cedo no Brasil, na sua capital, como nas demais povoações, a obra dacivilização foi deturpada pelo conflito de raças, disfarçado em democracia,fruto antes da luxúria que da piedade dos peninsulares. Desde o primeiromomento o branco, o índio e o negro se confundem. O contato das raçasinferiores com as que são cultas, quase sempre desmoraliza e deprava auma e outras.Principalmente, porém, deprava as inferiores pela opressão que sofrem,sem que este seja o pior dos contágios que vêm a suportar.É claro que negros e índios não poderiam ser senão a ocasião de desdém ede ódios que gera o escárnio dos superiores. A mulher da raça inferior nãoconsegue ser dignificada nem mesmo depois de formada a raça mestiça. Opróprio governo considerou por vezes uma infâmia o casamento promíscuode brancos e negros. O padre Nóbrega diz numa de suas cartas que umbranco raptara uma índia e, censurado o seu procedimento, entendeu queestava justificado, só com batizá-la. A prole assombrosa pelo número dosRamalhos e Caramurus atesta o egoísmo e a sensualidade dos primeiroscolonos.Como poderia fundar-se a ordem civil sem a possibilidade de fundar-se afamília?

21 HANSEN, Patrícia Santos. Feições e Fisionomias: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio deJaneiro: Access, 2000, p. 81.22 Apud Ibid., p. 95.

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O branco procurava [...] o pretexto real do clima para evitar os durostrabalhos da agricultura tropical, e assim escravizava os negros, e agora,quanto podia, os índios. Começam as expedições escravistas manchadasna atrocidade de todos os crimes. A primeira ociosidade dos remediados aricos, o luxo e com ele a depravação da energia e a dos costumes. Quasetoda a gente tinha escravos, ou índios ou negros. Esse costume gerava osarcasmo, o ódio, o desprezo de um lado pelas progênies escuras, e aperfídia do outro, o desprezo da piedade e do respeito humano. Seacrescentarmos que na maioria eram os brancos degredados e criminosos,[...] pode-se fazer ideia dos crimes que então se cometiam e da dissoluçãoque lavrava em toda a sociedade. Entre raças diversas toda a mistura porassim dizer se torna em combinação; tais contatos destroem a humanidadeno homem.23

Podemos perceber que a cultura da desmoralização que se constituiu no Brasil

tinha a miscigenação, articulada aos interesses econômicos e às características

próprias dos elementos étnicos nela envolvidos, como principal motivador. Em linhas

seguintes à citação acima, Ribeiro, então, caracterizou separadamente cada um

daqueles elementos. Para “indignação” de Barreto, apesar de afirmar que o negro

tinha sido o “elemento criador do país” e “o máximo agente diferenciador da raça

que no fim de dois séculos já afirmaria a sua autonomia e originalidade nacional”, ele

é o único entre as raças formadoras da nação a apresentar aspecto de submissão,

reforçando o estigma da escravidão. Enquanto o branco é “inteligente, mas ávido e

atroz” e o índio “altivo e indolente”, o negro é “martirizado e servil”.24

Apesar desse pessimismo em relação à miscigenação, Ribeiro, compartilhando

a preocupação de intelectuais da passagem do século XIX para o XX em determinar

um tipo representativo da nacionalidade brasileira, apontou o mameluco como

aquele que permitira a existência de uma história própria, interna,25 sendo a

evidência histórica disso a sua participação em movimentos emancipatórios ao longo

do passado colonial. Devido, como vimos acima, aos males provenientes da fusão

com outras raças, essa raça mestiça só superaria aquele processo de

desmoralização com a vinda de imigrantes europeus ao Brasil e por meio de ações

de caráter moral.

23 RIBEIRO, João. História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,2001, p. 78.24 Ibid., p. 79-80.25 Quando Ribeiro propõe a escrita de uma história interna e própria, ele se refere a uma escrita quetorne compreensível a identidade, a essência do Brasil. Para isso, rompe com a cronologia da “vidaoficial”, deslocando o foco da sua narrativa dos fatos político-administrativos relacionados aos atosestatais da metrópole portuguesa para as ações que promoveram a grandeza territorial e amiscigenação da população colonial. Daí o seu destaque para temas como as minas, a criação dogado, relação entre jesuítas e indígenas bem como para as ações que envolviam negros, índios,descendentes de colonos e mestiços que representassem uma possível união do povo contra uminvasor, como as lutas contra os holandeses.

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O jesuíta foi visto por Ribeiro como o primeiro “elemento moral” capaz de

conduzir à “constituição de uma sociedade civil”.26 Essa função pedagógica do

jesuíta, para o autor, seria assumida no seu presente pelos intelectuais. Como as

raças miscigenadas careciam das “virtudes e qualidades morais” exigidas pelas

“ideias de civilização” que “embalde tentam adaptar ao seu organismo”, apenas “um

escol preparado para “perscrutar os segredos obscuros da história” desses povos,

portanto, poderia dar-lhes a solução adequada”.27

O conhecimento histórico, com ênfase na reflexão filosófica, seria, segundo

Ribeiro, um instrumento possível para a revelação da essência da nação, a qual

deveria ser cultivada “sob a direção do seu “escol intelectual e moral”.28 Esse

conhecimento produzido por Ribeiro ainda deve ter chamado a atenção de Barreto

também pela forma como representou as lutas dos escravizados, a sua abolição e a

república como expressão política própria da nação brasileira em formação.

Lima Barreto, naqueles seus projetos de escrita realizados no momento de

releitura da História do Brasil de João Ribeiro, criou personagens que eram

escravizados ou ainda sofriam com a permanência de práticas e pensamentos

oriundos do período escravocrata brasileiro. Os seus romances Recordações do

Escrivão Isaías Caminha e Clara dos Anjos bem como alguns de seus contos

tiveram como protagonistas personagens negros. Em outras obras, como Triste fim

de Policarpo Quaresma, Numa e Ninfa, mesmo não sendo os personagens

principais, Lima os representou em situações vividas no período republicano,

utilizando seus pontos de vista, muitas vezes, em contraposição ao status quo

defendido pelos personagens pertencentes às elites.

Os personagens negros barretianos, mesmo sendo discriminados social e

racialmente, são representados como sujeitos históricos ativos. João Ribeiro na sua

narrativa das revoltas dos negros também se mostrou atento à atuação dos negros,

destacando as ocorridas na Bahia devido ao seu grande número de africanos.Não tão raras quanto podem parecer, havia em todo o tempo da escravidãoas sublevações dos negros. Os quilombos foram numerosos cenários delutas sangrentas e por vezes vergonhosas pela crueza e desumanidade doshomens brancos. Os Palmares marcaram um momento apenas na sériedesses conflitos sempre renovados pela opressão contra uma raça que

26 RIBEIRO, João. História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,2001, p. 81-83.27 HANSEN, Patrícia Santos. Feições e Fisionomias: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio deJaneiro: Access, 2000, p. 125-126.28 Ibid., p. 126.

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ainda não havia adquirido a noção de qualquer direito à propriedade dosseus senhores.Nos campos, nas florestas e até no lar doméstico foram comuns os dramase as tragédias da raça escravizada. Não é, pois, de estranhar que por vezes,sem objetivo, sem ideal e sem ordem, se sublevassem os escravos, aqui eali, na vastidão do território.29

Além desse protagonismo dos negros, Ribeiro sinalizou, no último parágrafo

dessa parte de sua obra, que “se um dia se houver de escrever a história da

escravidão”, seria indispensável a inclusão das narrativas daquelas revoltas.30 Essa

lacuna que Ribeiro percebia na historiografia, como vimos, foi tomada por Barreto

como seu principal projeto de escrita em 1903.

Entretanto, quando Ribeiro tratou do tema da abolição, o qual juntamente com

o da república - por fazerem parte da história contemporânea - naquele momento

ainda não poderiam ser “devidamente” escritos pela sua ótica, os negros

escravizados estiveram ausentes da sua narrativa acerca do desenrolar dos

acontecimentos abolicionistas. Vimos acima como Lima Barreto se mostrou

desconfortável tanto com a memória que construíam sobre a atuação de José do

Patrocínio no movimento abolicionista quanto descrente em relação às mudanças

trazidas pelas leis que levaram ao fim da escravidão como também com a

possibilidade de inclusão dos negros no regime republicano.

A República é outro tema que Lima analisa de modo diferente do historiador

sergipano. Este apresentou a República “como historicamente determinada,

inevitável e também definitiva”, como afirmou no parágrafo final de algumas edições

da História do Brasil. Segundo o autor, todos os movimentos nativistas, desde o

século XVII, demonstraram que aquele regime era a expressão política própria da

“raça nacional mameluca” e a atuação de caráter moral da elite intelectual sobre a

nação o viabilizaria.31

Lima Barreto, por sua vez, na crônica “O momento”, publicada no Correio da

Noite de 3 de março de 1915, é bem taxativo quanto ao regime republicano.Sempre fui contra a república. Tinha sete anos e vinha do colégio primário[...] quando me disseram que se havia proclamado a república.Não tinha naqueles tempos outras cogitações que não fossem a de glória, ada grande, imensa glória, feita por mim sem favor, nem misericórdia, e vique a tal de república, que tinha sido feita, espalhava pelas ruas soldadosembalados, de carabinas em funeral.

29 RIBEIRO, João. História do Brasil. 20 ed. revista e completada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,2001, p. 250.30 Ibid., p. 251-252.31 HANSEN, Patrícia Santos. Feições e Fisionomias: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio deJaneiro: Access, 2000, p. 121-122.

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Nunca mais a estimei, nunca mais a quis.Sem ser monarquista, não amo a república.João Ribeiro disse-me, certa vez, que a república era a cultura parda; poissou como o Senhor João Ribeiro; nunca houve anos no Brasil em que ospardos, os malditos do seu Haeckel, fossem mais postos à margem.32

Para Lima, a República beneficiava os elementos da sociedade relacionados

ao comércio e “capitalistas internacionais” bem como “charlatães tintos com uma

sabedoria de pacotilha”.33 Esse regime estava muito distante da unidade nacional,

segundo Barreto, contrariando a perspectiva de Ribeiro que associava República e

sociedade brasileira mestiça.

Lima caracterizou, nessa crônica, a República como um regime que acentuou a

discriminação racial e social, observando naquele momento a “dissolução do

sentimento, do imarcescível sentimento de solidariedade entre os homens”.

Enquanto Lima Barreto sempre se apresentou descrente quanto à República, outros

intelectuais foram aos poucos se decepcionando com o regime - inclusive o próprio

João Ribeiro -, pois assumia contornos cada vez mais burgueses e não possibilitava

a satisfação de seus desejos de reforma social, sendo desprezados pelos “novos

políticos oportunistas” irmanados com os arrivistas da bolsa e da especulação

mercantil.34

Observamos que a leitura de História do Brasil de João Ribeiro constituiu um

dos capítulos do diálogo que Lima Barreto estabeleceu com a cultura histórica e

expressou diversos dos seus desconfortos quanto à forma como estava sendo

rememorada a inserção dos negros na formação da nacionalidade brasileira.

3.2 Implicâncias com a historiografia oficial

Lima Barreto, atento às bases que norteavam a escrita da história e suas

relações com as questões políticas de sua época, não deixou de observar como a

historiografia oficial procurava representar o país. Destacamos acima a necessidade

do recente regime republicano em consolidar-se e a elaboração de narrativas que o

legitimasse. Atrelada a isso, havia a tentativa de conformar uma imagem da

32 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 174.33 Ibid., loc.cit.34 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 32.

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identidade nacional que apresentasse o Brasil como uma nação que evoluía rumo

ao nível das consideradas nações civilizadas.

Nesse contexto, a divulgação de uma narrativa histórica que apresentasse o

país e seu regime republicano como sinais da evolução da sociedade brasileira foi

uma das preocupações dos homens de letras, principalmente daqueles inseridos em

instituições oficiais do governo ou por ele subvencionadas. A construção de heróis

que simbolizassem valores cívico-patrióticos e republicanos fez parte da elaboração

daquela narrativa oficial.

Em Os Bruzundangas, notamos como Lima Barreto satirizou vários aspectos

constitutivos da nação brasileira. No capítulo XII, intitulado “Os herois”, o narrador

fez considerações acerca dos sujeitos que, naquela república fictícia, eram vistos

como representativos da identidade coletiva. Já no início da narrativa, essa

encarnação dos anseios de toda a população do país pela figura do herói nacional é

questionada.A República da Bruzundanga, como toda a pátria que se preza, temtambém os seus heróis e as suas heroínas.Não era possível deixar de ser assim, tanto mais que a prática sempre foifeita para os heróis, e estes, sinceros ou não, cobrem e desculpam o queela tem de sindicado declarado.Um país como a Bruzundanga precisa ter os seus heróis e as suas heroínaspara justificar aos olhos do seu povo a existência fácil e opulenta dasfacções que a têm dirigido.35

“Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos

de referência, fulcros de identidade coletiva”. Instrumentos, portanto, eficazes para

construção de um imaginário entre os membros de uma nação com vistas à

legitimação de um dado regime político. A criação de um símbolo, no entanto, “não é

arbitrária, não se faz no vazio social”. O heroi tem “de responder a alguma

necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou de

comportamento que corresponda a um modelo coletivamente valorizado”.36

Quando há a falta de envolvimento real do povo na implementação de um

regime, a mobilização simbólica se faz mais urgente para compensá-la. Além disso,

a disputa dos grupos políticos pela memória de sua efetivação a fim de garantir sua

legitimidade à frente dele adensa mais a procura por determinados sujeitos que

35 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 71.36 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2014, p. 55.

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representem aquele modelo. Daí a dificuldade entre os republicanos na edificação

de um herói para o novo regime.

Como sabemos, existiam modelos diferentes de república defendidos entre os

envolvidos com a defesa do fim da monarquia. Os esforços de jacobinos,

republicanos históricos e positivistas em erigir como herói nacional seus respectivos

líderes tiveram pouco êxito, pois seus candidatos a herói bem como a própria

proclamação da república careciam de densidade histórica. Desse modo, a figura de

Tiradentes foi, naquele momento, idealizada como representante daquele novo

regime por sua luta contra a monarquia e sua imagem aproximada à de Jesus Cristo,

apelando para a tradição cristã do povo brasileiro.37

Esses elementos da realidade político-cultural da recente república brasileira

foram transfigurados na narrativa de Os Bruzundangas, levando Lima a questionar,

por meio do seu narrador/jornalista/viajante, a “fabricação” de heróis nacionais e sua

suposta encarnação de aspirações de toda uma coletividade. Para que seu

pensamento possa ficar mais claro ao leitor, o narrador, fazendo uma alusão à

trajetória política do Brasil, afirma que se deve recordar “alguns pontos da história

política da Bruzundanga”.38

A atual república consta de territórios descobertos pelos iberos e povoadospor eles e por outros povos das mais variadas origens.Os colonizadores fundaram feitorias; e, quando fizeram a independência daBruzundanga, essas feitorias ficaram sendo províncias do Império que foicriado.Feita a República, elas ficaram mais ou menos como eram, com maisindependência e regalias. Portanto, é claro que a evolução política daBruzundanga tinha por extensão a unidade dessas províncias, e era mesmoo seu fim. Qualquer pessoa que tenha tentado, ou venha a tentar, odesmembramento dessas províncias, não pode ser tido como heróinacional.39

Ao considerar como critério para escolha de um herói nacional a manutenção

da unidade das províncias, o narrador põe em questão uma heroína

bruzundanguense. Esta não se enquadrava naquele critério, pois lutou pela

separação de uma das províncias ao lado de “um aventureiro estrangeiro”, pelo qual

se apaixonou, no “tempo do Império”.40 A alusão que Lima pretendeu realizar pelo

narrador, provavelmente, é a Anita Garibaldi e sua participação na Revolução

Farroupilha ao lado de Giuseppe Garibaldi.

37 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2014, p. 57-67.38 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 71.39 Ibid., loc.cit.40 Ibid., p. 71-72.

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A produção dos Institutos Históricos no início do século XX, darãoimportância primária, referente a história de Anita Garibaldi, precisando seupapel no amalgama de uma certa identidade nacional, projetada para atuarcomo referência da Nação brasileira reconhecendo-a como continuadora doprocesso civilizador da metrópole portuguesa. Assim Anita Garibaldi, torna-se também símbolo de civilização e progresso, já que é o modelo a serseguido por “gerações vindouras para o engrandecimento da pátria”.41

O IHGB, com sua função de contribuir para a preservação da memória

nacional, teve, desde a sua fundação em 1838, como destaque na sua produção a

escrita de biografias de brasileiros “distintos por letras, armas e virtudes” que

constituía uma forma de fazer história pautada em “nomes e personagens”.42 Com o

início do regime republicano, essa instituição, marcada pelo seu passado de fortes

ligações com a Monarquia e tendo como protetor Dom Pedro II, se viu com a

necessidade de buscar sua manutenção diante dos novos governantes.

Mesmo sem abandonar a glorificação do nome de Dom Pedro II, o Instituto

procurou, desde o inicio da República se aproximar dos membros do novo governo a

fim de garantir apoio financeiro para manutenção e legitimidade de seus trabalhos.

Essa aproximação se deu por meio da aceitação de homens pertencentes ao regime

recém instaurado nos seus quadros, silenciamento quanto aos momentos

conturbados do regime43 e prestação de serviços a órgãos governamentais.

“Procurava-se ligar a experiência do Instituto com as expectativas do país e

com as de um projeto político, mesmo que republicano. Com isso, o Instituto

Histórico não só se submetia, mas também se adequava à nova ordem das

coisas”.44 A divulgação da história dos heróis nacionais, que servissem de modelos

para a formação da nacionalidade por apresentarem valores cívicos e valorizadores

do regime republicano, foi tomada pelos institutos históricos na sua construção de

uma memória nacional.

Nesse sentido, podemos compreender a tentativa de inserção de Anita

Garibaldi no panteão republicano, questionada por Lima Barreto. Em 1911, o

41 ELÍBIO JÚNIOR, Antônio Manoel. Uma heroína na História: representações sobre Anita Garibaldi.Orientador: Sérgio Schmitz. 2000. 140 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000, p. 31.42 42 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial noBrasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 109.43 “Pelos discursos, o IHGB assemelhava-se a uma ilha serena num oceano revolto”. Diante dascríticas ao novo regime, o instituto se mostrava mudo. Cf. HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes ezelosos auxiliando no preparo na grande obra: a História do Brasil no Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro. 2007. 233 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do RioGrande do Sul, Porto Alegre, 2007, p.4644 HRUBY, Hugo. Op.cit., p. 49.

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marechal João Vicente Leite de Castro lança pela livraria Garnier a obra Anita

Garibaldi: história da heroína brasileira. Esse autor - membro do IHGB, da

Sociedade Geográfica do Rio de Janeiro e Presidente honorário da União

Garibaldina de Nice – apresenta como objetivo principal de sua obra “a formação do

caráter de seu povo, base de toda a felicidade”.

A escrita dessa biografia, portanto, visava não só imortalizar o nome de Anita

como também criar modelos de conduta e comportamento. A heroína é apresentada

como uma figura sagrada e seus atos próprios de homens “são permitidos pois o

amor a Garibaldi é a força que faz elevar sua alma e encher-se de coragem”.45 O

autor corroborava os valores até então vigentes quanto à figura feminina. Esta era

simbolizada pela imagem da mãe carinhosa, símbolo da reprodução da humanidade,

e intrépida guerreira, defensora da pátria.

O imaginário republicano no Brasil que então se conformava tinha como

referência o republicano francês. Neste, o uso da alegoria feminina para representar

a República foi um traço marcante, substituindo a figura do rei, símbolo da

monarquia derrubada. No Brasil, os pintores positivistas “foram os únicos a levar a

sério a tentativa de utilizar a figura feminina como alegoria cívica”,46 não

conseguindo, entretanto, respaldo no campo social. Segundo Carvalho, o imaginário

precisa de uma comunidade de imaginação para criar raízes, que, diferentemente do

Brasil, havia na França.

Mesmo assim membros dos institutos históricos tentaram construir a imagem

de heroína nacional para Anita, associando sua trajetória à narrativa sobre a

República Juliana, relacionando-a, por sua vez, como berço do ideal republicano no

Brasil. Em 1914, por exemplo, inicia-se uma série de publicações nas revistas do

Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina acerca da República Juliana,

Revolução Farroupilha e Anita Garibaldi.47 Vale ressaltar, nesse sentido, a tentativa

de inserção da história regional na constituição da memória nacional.[...] O sul no início da república buscava um lugar no contexto republicanonacional, sobretudo para enfrentar os grandes de participação política comoo Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, nesse sentido a construção deuma memória nacional através dos heróis republicanos que lutaram na

45 ELÍBIO JÚNIOR, Antônio Manoel. Uma heroína na História: representações sobre Anita Garibaldi.2000. 140 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000, p. 34-35.46 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2014, p. 86.47 ELÍBIO JÚNIOR, Antônio Manoel. Op.cit., p. 44.

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Revolução Farroupilha, representavam um importante papel na políticanacional.48

Contudo, como o próprio narrador de Os Bruzundangas havia destacado, a

marca de separatismo atribuída àquela revolta no sul do país não favorecia a

imagem de Anita. O fator geográfico também não, pois, a partir de meados do século

XIX, a área de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, já podia ser considerada o

centro político do país e na qual também era mais forte o republicanismo e mais

difundidos os clubes Tiradentes. O que beneficiou a vitória do personagem da

Conjuração Mineira, o qual, mesmo tendo em vista a libertação das três capitanias,

não foi tachado de separatista, pois isso se “devia a um calculo tácito”: “libertadas as

três, as outras seguiriam com maior facilidade”.49

O narrador barretiano atribui à heroína da fictícia república as mesmas

características que o marechal Leite de Castro considerou para Anita Garibaldi.

Entretanto, o narrador não as vê como algo excepcional que a destacasse na

memória nacional. A heroína de Bruzundanga, segundo o narrador, não apresentava

“nada de notável”, exceto a suadedicação até ao sacrifício pelo seu amante, mais tarde seu marido. Istomesmo, porém, não é virtude que torne uma mulher excepcional, pois écomum nelas, a menos que tal dedicação sirva de moldura às qualidadesexcepcionais do seu marido ou do seu amante. No caso, porém, encarando-o estritamente sob o aspecto da evolução política da Bruzundanga, o seumarido não era mais que um aventureiro.50.

O narrador corrobora o modelo de mulher cidadã republicana, valorizado nas

narrativas daquele momento, o qual coloca a figura feminina em posição de

subalternidade à masculina, sendo suas ações destacadas se representarem

dedicação ao seu esposo e família. Contudo, isso só a tornaria “memorável” se

favorecesse as ações de destaque de seu marido. Como o narrador não considera o

esposo da heroína bruzundanguense um sujeito que se encaixe na marcha da

evolução política daquela república, a dedicação dela se mostra um lugar comum

esperado para todas as mulheres.

Percebemos, dessa forma, uma paródia do discurso oficial produzido pelos

institutos históricos que o desautoriza quanto a sua pretensão de construir modelos

48 ELÍBIO JÚNIOR, Antônio Manoel. Uma heroína na História: representações sobre Anita Garibaldi.2000. 140 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000, p.2849 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2014, p. 69.50 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 72.

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a serem seguidos na conformação da identidade nacional. Lima, através do seu

narrador, procura salientar o objetivo de certos grupos em legitimar sua participação

à frente do regime republicano, construindo, para isso, uma interpretação do

passado que apresente seus interesses como aspirações de toda uma nação.

Essa prática de “sindicato declarado” é novamente ironizada quando o

narrador questiona outro herói da Bruzundanga. A alusão agora é à figura do

presidente Floriano Peixoto, a qual Lima Barreto já havia ridiculizado no romance

Triste fim de Policarpo Quaresma. Peixoto não era unanimidade entre os

republicanos. “Apagado no início [dos acontecimentos que levaram à proclamação

da República], suspeito a monarquistas e republicanos”, esse personagem veio a ter

uma maior dimensão a partir da Revolta da Armada no Rio de Janeiro e da Revolta

Federalista no sul do país.

A sua resistência a essas revoltas inspirou o jacobinismo republicano da

capital federal. “Para os jacobinos, civis e militares, era ele sem dúvida o herói

republicano por excelência”.51 Já na narrativa barretiana, outros aspectos do herói

nacional que faz alusão ao militar Floriano são trazidos à tona. Após sinalizar o

descontentamento de militares e alguns civis com o regime monárquico, o narrador

afirma que “as suas vagas aspirações” se resumiam na “palavra República”.52

“Os amigos do Império”, como última tentativa de salvá-lo, buscaram auxílio

num “velho general que vivia retirado nas suas propriedades agrícolas”.53 Havia a

suspeita de que o general “confabulasse com os inimigos que vinha combater”, a

qual foi depois confirmada. Para dar autenticidade ao que afirmava, o narrador

salienta que foram os “próprios companheiros do general que o haviam informado da

traição.Ainda há meses, recebi um jornal da Bruzundanga, em que um grande enotável fabricante da República de lá contava como as coisas se tinhampassado. Narra esse senhor, como o condestável,54 nas vésperas daproclamação da República, enganara aqueles que tinham depositadoconfiança nele, para servir os contrários, Eis aí os começos de um herói daRepública dos Estados Unidos da Bruzundanga!55

A alusão à traição do herói se refere ao fato de que Floriano Peixoto era o

encarregado da segurança do ministério do Visconde de Ouro Preto. Porém, quando

51 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2014, p. 56.52 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 72.53 Ibid., loc.cit.54 Refere-se ao título de primeiro oficial da coroa, o qual tinha o comando de todo o exército.55 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 72

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esse estava sendo ameaçado pelos revoltosos, houve a recusa por parte de Peixoto

em atacá-los, aderindo ao movimento, em seguida, deu voz de prisão ao chefe do

governo – Visconde de Ouro Preto – e, quando da instalação do Governo provisório

republicano, assumiu a sua vice-presidência.

O narrador ainda acrescenta mais alusões a Floriano quando este já estava

como presidente da república, após a renúncia do marechal Deodoro da Fonseca. O

questionamento do heroísmo parte agora das suas ações que o levaram ao epíteto

de Consolidador da República. “Sabem por quê? Porque não consolidou coisa

alguma”. Segundo o narrador, aquele general não poderia ser considerado herói da

Bruzundanga, pois foi o mandachuava que mais desrespeitou as leis.56

Ao longo da narrativa de Os Bruzundangas, o cargo de presidente da

República é sempre mencionado como mandachuva, frisando o mandonismo como

um aspecto marcante dos governos republicanos. Este traço não ficaria ausente

justamente naquele visto como quem havia moralizado e mantido o regime livre de

possíveis ameaças. Ou seja, o narrador sinaliza que, desde o seu início, a República

já se mostrava autoritária, contrariando os discursos dos seus defensores de que

sua proclamação representaria tempos de liberdade e democracia para o povo

brasileiro.

Quando afirma que aquele herói havia saltado por cima de todas as leis,

governando “a seu talante”, o narrador alude às medidas autoritárias e violentas

tomadas por Floriano durante sua resistência às revoltas acima destacadas. Nesse

período, o “marechal de ferro”, decretou estado de sítio e autorizou prisões

arbitrárias como bem representou Lima no enredo de Triste fim. Carvalho afirma que

as atitudes de Floriano “exaltadas pelos jacobinos como reveladoras de pureza e

bravura republicanas eram tachadas de sanguinárias e despóticas pelos

republicanos liberais”. Novamente, o narrador explicita o caráter de “sindicato

declarado” nas práticas de consolidação de uma memória nacional a partir da

trajetória de certos personagens alçados à categoria de heróis.

Além da historiografia nesse papel, o narrador também questiona outra

dimensão da rememoração histórica que é a construção de monumentos. Ainda se

referindo ao general de Bruzundanga, afirma que esse herói foi eternizado por um

escultor “que lhe fez um monumento, ereto em uma das praças da capital,

monumento tão curioso que precisa de um guia, de um tratado escrito, para ser

56 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 72.

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compreendido”.57 Lima Barreto deve ter selecionado da paisagem urbana do Rio de

Janeiro o monumento a Floriano Peixoto de Eduardo de Sá, inaugurado em 1910

para elaborar essa afirmativa de seu narrador.

Fonte: Apud CARVALHO, 2014, p. 47. Fonte:

www.google.com/search?q=monumento+a+floriano

O monumento traz muitos elementos que compunham o imaginário

republicano propagado pelos positivistas que, exigia, de um visitante não informado

dos ensinamentos de Comte, um grande exercício de interpretação.58 Além disso, o

monumento provocou controvérsia. “Reclamava-se do caráter sectário de sua

concepção”. O monumento era uma tentativa positivista de se apropriar da memória

de Floriano, o qual não era positivista. Lima se mostrava atento a essas disputas em

torno da memória do início republicano no Brasil, procurando, na sua narrativa,

desmitificar, como vimos no capitulo anterior, a suposta harmonia social que a

defesa do nacionalismo desejava representar para a população local e como

imagem do Brasil no exterior.

57 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 72.58 A figura de Floriano fica no alto do pedestal e a bandeira republicana compõe o pano de fundo daestátua. Em baixo relevo, as cabeças de Tiradentes e José Bonifácio e busto de Benjamin Constant.Já à esquerda, temos uma figura de jovem mulher que estende a mão direita, abençoando o passadoe apontando para o futuro. Na base do monumento, numa forma de altar cívico, há referências aosaltares erguidos em Paris após a Revolução de 1789, na qual se encontra quatro grupos em bronze euma estátua. Os grupos representam as três raças formadoras da população brasileira e a religiãocatólica,; já a estátua é uma figura de mulher, com uma rosa na mão, representado a raça mistasurgida da fusão daquelas três. Cf. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: oimaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p.47-48.

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Vale ainda salientar a dificuldade de interpretação daquele monumento

destacada pelo narrador para endossarmos a crítica à narrativa histórica que o autor

Lima Barreto procurou realizar nesse capítulo de Os Bruzundangas. Rüsen

esclarece que a memória histórica e sua realização pela consciência histórica

contêm elementos e fatores que não são genuinamente narrativos. Contudo, esses

possuem também uma função narrativa, pois “são absorvidos e fazem parte da

narrativa”.59

O autor alemão trata justamente de imagens e símbolos que estimulam a

atividade memorativa da consciência histórica e através da qual ela é realizada.

Mesmo ainda não sendo narrativas, eles a geram, suscitando a interpretação

histórica. Lima, pela forma como representa o monumento, dar continuidade a sua

perspectiva negativa em relação à narrativa histórica que se propunham produzir

alguns membros dos institutos históricos ao elegerem certos heróis nacionais. Para

o literato carioca, essa narrativa, voltada para o enaltecimento de grupos políticos,

era confusa e distante da veracidade da realidade nacional passada.

Notaremos mais dessa perspectiva de Lima quando, ainda nesse capítulo de

Os Bruzundangas, trata da imagem do Brasil a ser divulgada nas outras nações por

meio do olhar de seu narrador/viajante acerca de mais outro herói daquela república.

Este se chamava Visconde de Pancome e, diferente dos dois primeiros heróis, não

se notabilizou pela atuação em conflitos armados ou políticos. O Visconde era

embaixador e depois ocupou o cargo de “Ministro de Estrangeiros”. A critica do

narrador a esse herói era dirigida a sua falta de “senso do tempo” e do “sentimento

do seu país”.60

Era um historiógrafo; mas não um historiador. As suas ideias sobre históriaeram as mais estreitas possíveis: datas, fatos estes mesmos políticos. Ahistória social, ele não a sentia e não a estudava. Tudo nele se norteavapara a ação política e, sobretudo diplomática. Para ele (os seus atos derama entender isto) um país existe para ter importância diplomática nos meiosinternacionais. Não se voltava para o interior do país, não lhe via apopulação com suas necessidades e desejos. Pancome sempre tinha emmira saber como havia de pesar, lá fora, e ter o aplauso dos estrangeiros.61

Notamos que a escolha dos heróis nacionais pelo narrador segue o modelo

destacado numa das partes da revista do IHGB, a qual era destinada às biografias

de brasileiros “distintos por letras, armas e virtudes”. Parafraseando essa

59 RÜSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica?: reflexiones sobre uma nueva manera de abordar lahistoria. Disponível em: www.culturahistorica.es Acesso: 01 jul. de 2014, p. 9.60 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 73.61 Ibid., loc.cit.

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classificação dos sujeitos que mereciam se tornar memoráveis pelo instituto, o

narrador traz, para sua observação crítica daquela república, um personagem que

apresenta uma concepção de historiografia também praticada pelos membros desse

lugar de produção de discurso histórico oficial.

Nessa crítica, destacamos a distinção que realiza entre historiógrafo e

historiador para apontar os equívocos daquele homem “distinto por letras”.

Historiógrafo, para o narrador, estaria voltado para uma escrita sobre o passado

focado nas ações das elites na área da política, ou seja, uma história administrativa

em que os grandes homens definiam os rumos dos acontecimentos. Pela distinção

que fez, podemos inferir que o historiador deveria contemplar uma história social,

segundo Barreto, incluindo na sua narrativa temas como economia e modos de vida

da população, trazendo para os leitores do presente outros sujeitos históricos.

Procuramos investigar qual o sentido dos termos historiógrafo e historiador

naquele momento, principalmente se havia diferenciação desses entre os membros

do IHGB, foco das críticas do narrador barretiano. Tendo como referência o trabalho

Hugo Hruby, já destacado nesta tese, sobre a produção do IHGB no inicio do regime

republicano, verificamos que os sócios se referiam tanto a si mesmos quanto a

outros autores de textos históricos como historiadores, historiógrafos e cronistas.

Entre cronistas e historiadores havia diferenças.

Os escritos dos cronistas pertenciam “a um gênero menor, sem pretensão de

obra acabada, limitada a uma missão, a um episódio”. Os do historiador, por sua vez,

apresentavam uma generalização dos motivos, “as ligações com outros fatos e as

consequências”. Já a diferença entre historiador e historiógrafo não se fazia

presente na escrita e nos discursos dos membros do IHGB.62

Contudo, os dicionários, no século XIX, traziam uma distinção entre esses

dois homens de letras. Ambos escreviam histórias, mas de modos e por

circunstâncias diversas. O historiógrafo era definido como um literato pensionado do

Estado ou de um príncipe para escrever a sua história – quase correspondendo a

um cronista -, constituindo-se como um simples analista, que referia acontecimentos

e reunia materiais. Quanto ao historiador, a sua escrita não era pensionada. Esse

literato escolhia os materiais, colocava-os em ordem, examinava os fatos, julgando

62 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 24-25.

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os homens e as coisas e agindo, geralmente, de modo menos “adulador e mais

imparcial” que o historiógrafo.63

Acreditamos que, pela forma como o narrador descreve o ultimo herói

bruzundanguense, Lima Barreto pretendeu elaborar uma caricatura do Barão do Rio

Branco, aproximando-o da definição de historiógrafo presente naqueles dicionários.

José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, se destacou no

cenário político e intelectual brasileiro desde as últimas décadas do Império. Filho do

Visconde do Rio Branco, o qual fora senador, ministro das Relações Exteriores,

presidente do Conselho de Ministros e autor da Lei do Ventre Livre; o Barão também

seguiu a carreira diplomática.64

Ainda no Império, foi cônsul-geral em Liverpool (nomeado no ano de 1876),

Inglaterra. Nessa função, teve a oportunidade de acumular ainda mais materiais que

lhe serviam de fonte para o conhecimento da história militar no Brasil, principalmente

em relação às questões militares no Prata. Mesmo ocupando cargo no consulado da

Inglaterra, o Barão do Rio Branco mantinha residência em Paris, o que lhe

possibilitou realizar pesquisas e colecionar mapas e documentos relativos à história

política e geográfica do Brasil.65 Como satirizava o narrador barretiano, “sabendo

bem a história política da Bruzundanga, julgava conhecer bem a nação. Sabendo

bem a geografia da Bruzundanga, imaginava ter o país no coração”.66

Antes disso, Paranhos Júnior já publicava artigos de opinião e narrativas

históricas sobre as questões militares no Prata, especialmente no jornal conservador

A nação, e, em 1867, foi eleito membro do IHGB. Essa trajetória de pesquisas lhe

permitiu a produção de biografias de militares e ensaios também voltados para a

história militar. Daí se entende a caricatura que Lima elaborou sobre o Barão do Rio

63 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007,, p. 25.64 ABREU, Alzira Alves de (coord. Geral). Dicionário histórico-biográfico da Primeira República(1889-1930). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 4562.65 Ibid., p. 4563.66 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 73.

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Branco67 sob o nome de visconde de Pancome bem como a sua classificação como

historiógrafo, literato pensionado pelo Estado.

Mesmo sendo monarquista, o Barão também se destacou como homem

público na República. Instaurado esse regime, Rio Branco assumiu importantes

missões diplomáticas, muitas das quais voltadas para negociações relacionadas a

disputas territoriais, chegando, em 1902, ao posto de Ministro das Relações

Exteriores (presidente do IHGB de 1907-1912), função que exerceu até 1912, ano

de sua morte. Lima Barreto transfigurou essa trajetória no seu romance da seguinte

maneira:Estava como embaixador em um país qualquer e um Mandachuva fê-loMinistro dos Estrangeiros. Logo que tomou posse, o seu primeiro cuidadofoi mudar o fardamento dos contínuos. Pôs-lhes umas longas sobrecasacascom botões dourados. [...] Tendo conseguido adjudicar à Bruzundangavastos territórios, graças à leitura atenta de modestos autores esquecidos, asua influência sobre o ânimo do mandachuva, era imensa. [...].68

A preocupação com a imagem no exterior do país, apontada pelo narrador,

deve ser vista também pela forma como o Barão do Rio Branco, caricaturado em

Pancome, enquanto Ministro das Relações Exteriores da República, procurou

exercer o mecenato de alguns homens de letras. Em princípios do século XX, num

contexto favorável de penetração de recursos econômicos por conta da expansão da

produção e exportação agrícola, o governo brasileiro buscou contribuir para a

consolidação de uma “imagem austera de uma sociedade ilustre e elevada,

merecedora da atenção e do crédito europeu incondicional”.69

O Barão do Rio Branco, tendo em vista esse objetivo governamental,

“procurou lotar as dependências do Itamaraty, e mesmo de setores paralelos da

administração, de intelectuais respeitáveis, ou de quem afetasse tal moldura”.70

Desde simples empregos burocráticos até cargos de representação, comissões e

delegações diplomáticas se constituíram como oportunidades para os letrados.

Nesse sentido, dentro daquela aproximação entre IHGB e o regime republicano, o

discurso histórico oficial, divulgado no exterior, se fortaleceu.

67 No romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, publicado em 1919, Lima também critica oBarão do Rio Branco, porém de uma forma mais explícita. Lima o torna personagem do romance.Através da voz do protagonista Gonzaga de Sá, assim se referiu ao Barão: “[achava] o Paranhos,como ele o chamava às vezes o ministro, uma mediocridade supimpa, fora de seu tempo, semprecom o ideal voltado para as tolices diplomáticas e não com a inteligência dirigida para sua época”. Cf.BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961b, p.6968 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 73.69 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 118.70 Ibid., loc.cit.

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O próprio Barão do Rio Branco, que desde o século XIX, já era membro do

IHGB, passou a ser seu presidente no ano de 1907 até a sua morte. O presidente

era sempre a figura que apresentava e representava o instituto, estabelecendo

“vínculos entre a associação e as grandes diretrizes da política oficial”.71 Esse

discurso oficial sobre o passado do país, como destacado acima, não agradava a

Lima Barreto.

Na sátira ao país que realiza na obra Os Bruzundangas, o seu narrador

aponta uma lacuna nesse discurso. Não vê contemplados naquela historiografia

oficial “as ânsias, as dificuldades, as qualidades e defeitos do seu povo”, ou seja, as

expectativas, os desafios cotidianos pela sobrevivência, a cultura e os entraves na

construção de relações sociais harmônicas (o racismo, por exemplo) do povo. O

recorte espacial dele também é questionado, pois não “se voltava para o interior do

país”. Para o narrador, essa lacuna seria preenchida quando se escrevesse a

“história econômica e social da Bruzundanga”.72

O mecenato dos letrados que dariam continuidade àquele discurso oficial por

parte do Barão do Rio Branco, certamente, ia de encontro aos desejos expressos

por Lima Barreto, desde a publicação da revista Floreal, de romper com as restrições

impostas aos escritores que não se enquadravam ao perfil “civilizado”. Essa revista

foi lançada em 25 de outubro de 1907, contando com a colaboração de um grupo

bem heterogêneo que ia desde Antonio Noronha Santos aos libertários Domingos

Ribeiro Filho, Curvelo de Mendonça e Fábio Luz.73

Logo na apresentação da revista, após destacar o desafio que era a sua

publicação, Lima explicita os seus objetivos:[...] escapar às injunções dos mandarinatos literários, aos esconjuros dospreconceitos, ao formulário das regras de toda a sorte, que nos comprimemde modo tão insólito no momento atual. Não se trata de uma revista deescola, de uma participação de “clã” ou maloca literária [...].Não se destina pois a Floreal a trazer a público obras que revelem umaestética novíssima e apurada; ela não traz senão nomes dispostos a dizerabnegadamente as suas opiniões sobre o que tudo interessar a nossasociedade, guardando as conveniências de quem quer ser respeitado.74

71 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial noBrasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 105-106.72 BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985 (Série Bom Livro), p. 73.

73 A Floreal teve uma trajetória curta, sendo o seu quarto e último número publicado em 31 dedezembro de 1907. Cf. SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia dasLetras, 2017, p. 188-209.74 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p.181

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Lima, então, como parte de sua literatura militante, tem uma postura crítica

em relação à produção de narrativas atreladas a um grupo restrito e que não

estivessem comprometidas a lançar um olhar aprofundado sobre questões sociais.

Nesse sentido, em outros momentos de sua escrita, Lima vai realizar mais

questionamentos às bases sob as quais era escrita a versão oficial da História do

Brasil. Na crônica “Edificantes notas ao Southey”, publicada na Revista do Sul de

1919, Lima apresenta a seus leitores mais um capitulo de seu diálogo com a cultura

histórica de sua época.

A crônica se inicia com Lima, naquele contexto de discussões já apontadas

sobre a questão nacional no Brasil após a Primeira Guerra Mundial, se referindo à

leitura que havia feito, pelo Estado de São Paulo, da conferência “A ideia de Pátria”

proferida por Assis Brasil em São Paulo no ano passado, “sob os auspícios da Liga

de Defesa Nacional”. Lima afirma que notou “comprometedores absurdos” nessa

conferência, motivando-o a escrever algumas observações para publicação numa

revista.[...] Guiado por aquela ideia muito própria do Senhor Assis Brasil, de que acapital do Brasil deve ser em Pedras Altas,75 o eminente republicanohistórico emaranhava de tal modo os caminhos do povoamento do Brasil easseverava tais coisas, que me obrigou a consultar velhos livros queridos,para me certificar que as minhas dúvidas não provinham de uma lamentáveldesorganização do meu aparelho mental.76

Dos livros queridos que consultou, um deles “foi a História do Brasil de Robert

Shouthey, traduzida pelo Senhor Luís Joaquim de Oliveira Castro e anotada pelo

cônego doutor J. C. Fernandes Pinheiro”, editada pela Livraria Garnier do Rio de

Janeiro em 1862. Lima afirma que havia lido os seis volumes dessa obra há muitos

anos e não se “incomodara com as notas do sábio cônego”. Contudo, quando as

releu, estranhou as informações da página 433, do 3º volume.O ‘Paraná’ (que em tupi significa ‘mar’) toma este nome na confluência doParaíba (será erro de revisão?), que vem do centro da Província de Goiás, edo rio Grande que sai do interior da de Minas Gerais nascendo na serra daMantiqueira. Serve de limites às províncias de Minas, Goiás, São Paulo eParaná; dividindo outrossim o Brasil do Estado Oriental, e da Confederaçãoda Argentina. Recebe então o Paraguai e o Uruguai, adquirindo o nome deRio da Prata. F. P.77

75 Pedras Altas diz respeito ao local em que Assis Brasil construiu um castelo em estilo medieval nointerior do Rio Grande do Sul. Nesse, ele se instalou definitivamente ao se aposentar da diplomaciaem 1912, passando a se dedicar à pecuária.Cf. discionap.80576 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 96.77 Ibid., loc.cit.

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O autor fica em dúvida com essa geografia. Interroga-se sobre um possível

esquecimento de sua parte e, marcando a posição do anotador como um homem de

letras considerado no seu tempo, Lima se mostra intimidado diante de uma iminente

correção dele. “O senhor cônego doutor era um homem sábio [...]; e eu – o que

era?”

Nessa dúvida, consulta um manual de Geografia do Brasil. Trata-se da

recomendada obra Geografia Física do Brasil de Wappoeus,78 traduzida pelos

“sábios e operosos Capistrano de Abreu e Vale Cabral. Não satisfeito”, foi buscar em

“Moreira Pinto, o grande”, que havia estudado a “Corografia do Brasil, aí pelo meus

treze anos”. Como conclusão, afirma que o “sabio cônego” havia se equivocado.O Paraná, com o nome de Paranaíba, nasce em Minas, na serra deCanastra, nas vertentes opostas àquelas que dão origem ao São Francisco;e separa de fato Minas de Goiás, e de Mato Grosso. O rio Grande que,conjuntamente com o Paranaíba, forma o Paraná propriamente dito, é quesepara Minas de São Paulo, como está em qualquer mapa; mas Paraná,Paranaíba ou rio Grande absolutamente não entram, como quer o cônego,na separação do atual Estado do Paraná do de São Paulo.Onde, pois, o sábio cônego doutor teria visto isto? Em que fantástica cartaou tratado?Eu daria tudo que pudesse dispor em dinheiro ou alfaias para possuirsemelhante documento.79

Ainda durante a leitura do “mesmo tomo do Southey, na mesma tradução e

edição”, Lima identifica outro equívoco do “cônego doutor (não se omitem nunca os

títulos tão do nosso gosto)”. Este, ao corrigir o próprio autor inglês em nota das

páginas 432 e 435, comete mais um erro relacionado à geografia do Brasil. Lima

recorre novamente ao Wappoeus e o confirma.Com quem estará a verdade: com o cônego doutor F. P. e os seusautorizados geógrafos ou com o Wappoues, o Capistrano, o Vale Cabral, oHomem de Melo e outros notáveis colaboradores da tradução para oportuguês da obra do alemão?[...]Tímido diante dos títulos do anotador do historiador e poeta inglês,simplesmente deixo registradas aqui estas mínimas observações muitomedroso do meu saber, medo que me fez, ao meu encher de perplexidadesem face das notas do cônego doutor Fernandes Pinheiro, abandonar opropósito de comentar a conferência do famoso e autorizado doutor AssisBrasil, a gigantesca mentalidade de Pedras Altas.80

A identificação dos sujeitos que têm sua relação com os saberes histórico e

geográfico ironizada por Lima Barreto, nessa crônica, permite a percepção de mais

78 DUTRA, Eliana de Freitas. Rebeldes literários da República: História e identidade nacional noAlmanaque Brasileiro Garnier (1903-1914). Belo Horizonte: Humanitas, 2005, p. 9779 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 97.80 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 98.

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um momento em que a literatura militante afronta a cultura histórica. O anotador da

obra de Southey, Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (1825-1876), foi sócio

correspondente (1854) e 1º secretário (1859) do IHGB. Como sabemos, a função

primordial do instituto era “colligir, methodizar e guardar” documentos, fatos e nomes

para finalmente compor uma história nacional para o país.81

Isso tornaria inaceitável para um membro como Fernandes Pinheiro com

aquelas funções – de sócio correspondente era, entre outras, apresentar trabalho de

história, geografia ou etnografia do Brasil; já, como secretário, era de contribuir para

a manutenção do instituto e zelar pela sua própria imagem de intelectual, exaltando

a sua atividade e de outros membros82 – a sequência de erros apontada por Lima

Barreto. Ainda mais diante de uma obra que era referência para os interessados na

história nacional.

História do Brasil do inglês Robert Southey (1774-1843), publicada no início

do século XIX, era considerada bem documentada e representativa dos

acontecimentos do Brasil colonial até a vinda de Dom João VI ao Brasil, sendo

editada pela primeira vez no Brasil em 1862. Lima, ao longo da crônica, desse modo,

aproveita-se desses equívocos de um membro tão renomado do IHGB para, através

de sua ironia, criticar a própria prática desse lugar de produção do discurso oficial

sobre o passado.

Essa crítica tem como alvo a falta de conhecimento por parte de um sujeito, o

qual é, insistentemente (ironicamente), chamado de “sábio doutor” na crônica, de um

dos temas tão caros ao instituto que era a geografia do país, principalmente quando

se voltava para questões territoriais e de demarcação de limites. Além disso,

percebemos que Lima, como já vimos realizar naquela crônica “Meia página de

Renan”, sinaliza a necessidade de revisão dos textos sobre o passado e a

importância, para isso, da verificação e análise de diversas fontes. Lima se apropria

dos procedimentos da pesquisa histórica para desautorizar o discurso histórico

oficial.

Ainda sobre a crônica “Edificantes notas ao Southey”, vale destacar que essa

crítica ao discurso oficial teve como origem a leitura de uma conferência de Assis

Brasil. Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938) teve, assim como Rio Branco,

81 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial noBrasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 99.82 Ibid., p. 104-106

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uma trajetória marcante na diplomacia brasileira, atuando também em questões de

limites territoriais83. E a sua conferência despertou o interesse de Lima, pelos erros

de Geografia, os quais eram utilizados por Assis para fundamentar seu discurso.

Vimos no segundo capítulo desta tese que, muitas vezes, os estudos

históricos municiavam o exercício da atuação política dos sujeitos envolvidos com a

legitimação do regime republicano. Ao iniciar sua ironia ao discurso histórico oficial e

apontar a sua necessidade revisão a partir da conferência de Assis Brasil, Lima

sinaliza a seus leitores como esse “republicano histórico” dava continuidade a

divulgação de informações equivocadas advindas da utilização de uma versão única

sobre o passado.

A manipulação do passado para atender certos fins políticos é uma estratégia

de legitimação social que Lima também procura explicitar nessa crônica. Quatro

anos antes dessa, Lima já havia demonstrado, por meio de sua escrita, a sua

preocupação com a produção de uma memória oficial pela atividade de membros do

IHGB. Em 21 de janeiro de 1915 foi publicada no Correio da Noite, sua crônica “E o

tal balázio?” que tratava da inauguração de um marco comemorativo da fundação da

cidade do Rio de Janeiro, ocorrida no dia anterior.

Lima registrou a presença do “Instituto Histórico e outras pessoas conspícuas”

no evento, destacando o discurso proferido por José Vieira Fazenda (1874-1917)

que, além de médico, era membro do IHGB no qual atuou como historiador,

bibliotecário e secretário geral.O senhor Viera Fazenda, com aquela sua secura de alfarrabista, comoaquele seu amor a datas e às controvérsias, leu um discurso sisudo, muitoadstrito ao fato, sem associações de outros fatos próximos e remotos.A fundação do Rio de Janeiro é, para ele, um simples pretexto de alvarás,cartas régias, foros e sesmarias. O Senhor Fazenda não vê nada além dossecos documentos oficiais; não vê as consequências econômicas, associais, os encadeamentos de grandes e pequenos acontecimentos, que oato de Estácio de Sá deu causa, foi gerador, sem que estivessem no seu ouno pensamento dos companheiros dele.Não nego ao Senhor Fazenda méritos de historiógrafo, de pacientepesquisador, de rebuscador de documentos, mas falta-lhe a adivinhação, deque falava Renan, a imaginação criadora necessária para recompor osacontecimentos históricos.84

Vieira Fazenda era um especialista na história da cidade do Rio de Janeiro,

sendo que, desde 1896, vinha publicando artigos sobre seus “assuntos históricos,

83 ABREU, Alzira Alves de (coord. Geral). Dicionário histórico-biográfico da Primeira República(1889-1930). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 800-80384 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 160

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usos e costumes, monumentos e tradições”, baseados numa “consulta meticulosa

de arquivos e velhos documentos”.85 Contudo, para Lima Barreto, essa forma de

escrita de história deveria ser aprimorada.

Lima até admira o trabalho cuidadoso (“cujo [...] labor em condensar

documentos [...] me merece a mais intensa admiração”) de Vieira Fazenda em reunir

documentos sobre a história da cidade, mas advoga que isso não é suficiente para

se ter uma compreensão maior sobre o passado. O tipo de fonte que utiliza para

compor aquela escrita – documentos oficiais - também não é visto por Barreto como

recurso que, por si só, validaria a narrativa desse membro do IHGB.

Entre os sócios do instituto, como já vimos, não havia uma unanimidade em

considerar a História como uma ciência, mas seguiam, cada qual com suas

apropriações, certos princípios cientificistas, concepções sobre a narrativa histórica

e métodos de pesquisa que lhes chegavam da Europa. Esses sócios reiteravam

pressupostos científicos de Ranke, Fustel de Coulanges, Monod, Langlois e

Seignobos nas suas produções e discursos, como a investigação afastada de

qualquer especulação filosófica, a aplicação de técnicas rigorosas ao inventário das

fontes e à crítica de documentos, sendo, entre estes, dado preferência ao texto

escrito.

Com esses pressupostos forjados ao longo do século XIX, a escrita do

historiador deveria ser objetiva, narrando os fatos obtidos pela análise dos

documentos de maneira imparcial, e excludente dos “domínios e injunções

provenientes dos saberes que” lidavam “com a imaginação, com a subjetividade e

com o ficcional”.86 Mas Lima, entre as referências da chamada história científica,

busca, nas recomendações de Renan, alternativas à narrativa histórica de Vieira

Fazenda.

Esse intelectual francês, que tanto esteve presente nas leituras e reflexões de

Lima, articulou, durante seus estudos sobre o cristianismo e línguas antigas,

erudição, filosofia e escrita da e na história.87 Renan percebeu, em documentos

85 Cf. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e GeographicoBrasileiro. Tomo LXXXVI – (1919). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1921, p. 7. Esses trabalhosde Vieira Fazenda foram reunidos, a partir de 1919, sob o título “Antiqualhas e Memórias do Rio deJaneiro”, sendo publicadas em diversos tomos da Revista do IHGB até o ano de 1924.86 MALERBA, Jurandir (Org.). Lições de História: o caminho da ciência ao longo do século XIX. Riode Janeiro: Editora da FGV, 2010, p. 315.87 RUDI, Thiago Augusto Modesto. A grande missão do século XIX e a escrita da História deErnest Renan (1848-1863). Orientadora: Karina Anhezini de Araujo. 2014. 158 f. Dissertação

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muito antigos com os quais lidou, lacunas e incertezas, fazendo com que, na sua

busca pela verdade, se contentasse, muitas vezes, com o verossímil. Para esse

autor, a história, sem a imaginação, que apenas reproduz documentos, seria a mais

falsa. A história, ainda segundo Renan, seria tanto uma arte quanto uma ciência,

sendo igualmente relevante para sua narrativa a “perfeição da forma” e o trabalho

minucioso com os documentos.88

Como Viera Fazenda não realizava na sua narrativa a relação entre diferentes

fatos do passado, priorizando os políticos extraídos dos documentos escritos e

oficiais, assim como fez com o personagem Pancome acima, Lima o classifica como

historiográfico. Essas críticas, tanto a Viera Fazenda quanto a Rio Branco, devem

também ser compreendidas a partir da leitura que Lima realizou do historiador

brasileiro João Ribeiro que, como destacamos acima, apresentava uma

interpretação do passado nacional na qual não priorizava acontecimentos político-

administrativos e enfatizava a necessidade do conhecimento do interior do país e

questões relacionadas a sua formação étnico-cultural, numa abordagem que aliava

crítica documental e reflexão filosófica.

Após essas considerações sobre o discurso de Vieira Fazenda, Lima volta

seu olhar crítico para o marco comemorativo da fundação da cidade do Rio de

Janeiro, motivo principal da escrita da crônica. O monumento é considerado pelo

autor como “a coisa mais “estrambótica” que se possa imaginar”.Deixou de ter a singeleza que era de esperar tivesse, para ser uma coisacerebrina de uma agulha de granito ponteada com uma bala de canhãomoderno, simbolizando assim as lutas que se travaram na fundação dacidade.Se essa simbolização fosse necessária, creio eu que melhor seriam arcos,flechas, tacapes, mosquetes, arcabuzes, balas esféricas dos velhoscanhões de retrocarga, que esse balázio cilindrocônico que é quase deanteontem.89

Segundo Le Goff, o monumento é uma das formas de se apresentar os

materiais da memória.90 Através dele, se perpetua uma dada memória a fim de que

(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista,Assis, 2014, p. 139.88 RUDI, Thiago Augusto Modesto. A grande missão do século XIX e a escrita da História deErnest Renan (1848-1863). Orientadora: Karina Anhezini de Araujo. 2014. 158 f. Dissertação(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista,Assis, 2014, p. 75-82.89 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 160

90 LE GOFF, Jacques. História e memória. 7 ed. rev. Tradução: Bernardo Leitão, Irene Ferreira &Suzana Ferreira Borges. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p. 485.

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essa se torne coletiva, eternizando pessoas ou definindo certos locais onde é

erguido como marcos fundacionais de uma determinada coletividade. E a

historiografia, conforme Catroga, fornece, ao produzir e legitimar algumas memórias

e tradições, “credibilidade a novos mitos de (re)fundação de grupos e da própria

nação”.91

Daí a presença, apontada por Lima, de um historiador do IHGB e especialista

“nos assuntos históricos” da cidade fazendo aquele discurso na cerimônia de

inauguração do monumento. Entretanto, Lima, com sua ironia, aponta aspectos do

monumento que apresentam erros quanto à representação histórica da fundação da

cidade, deslegitimando-o.

Além disso, a construção de um monumento acaba substituindo o testemunho

e a participação de alguns agentes históricos ou até mesmo, a depender dos

elementos que o compõem, a exclusão deles. Lima se mostra, na crônica, atento a

isso quando sugere o monumento deveria ter outras armas representadas, como as

indígenas, por exemplo. O esquecimento que aquele monumento promovia é, então,

observado pelo autor carioca.Estamos sempre dispostos a ver no passado lutas; por que não havemos dever solidariedade?Por que só um dos aspectos do sucesso há de ser relembrado [...]?A fundação de uma cidade é, antes de tudo, um desejo de comunhão, deassociação.Na cidade, todos colaboram, todos concorrem com seu quinhão [...] – comoé então que os senhores do instituto só viram luta e luta com canhõesalemães, a despejar projetis cilindrocônicos pelos meados do século XVI?.92

Um outro sujeito que também mereceu destaque nas considerações de Lima

Barreto sobre a produção de um saber, especialmente quanto à interpretação do

passado, oficial do Brasil foi, o já mencionado linhas acima, historiador e diplomata

brasileiro Oliveira Lima. Este foi leitor do trabalho de Lima Barreto e um dos seus

correspondentes, como destacamos no capítulo anterior. Barreto, por sua vez,

também era um leitor dos trabalhos produzidos pelo historiador.

Em carta de 19 de janeiro de 1911, Lima Barreto confessa a seu amigo

Antonio de Noronha Santos que quando estava aborrecido, costumava mandar o

irmão comprar livros e os “devorava”. Entre as novas aquisições, estava o Dom João

VI de Oliveira Lima sobre o qual o literato revelou sua opinião àquele amigo. “[...] É

91 CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto Editora, 2001, p. 45.92 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 160-161.

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uma história laboriosa, minuciosa, em que falta nervo, pitoresco, sentimento do

tempo, mais diplomática que outra coisa, embora fale muito mal dos diplomatas.

[...]”.93 Lima destaca, como justificativa para sua classificação da obra como de

história diplomática, as passagens nas quais são abordados o Congresso de Viana

(capítulo “XII – No Congresso de Viena”), as intrigas do rio do Prata (capítulo VII –

As intrigas platinas”), especialmente a atuação do ministro dos negócios

estrangeiros de Portugal, o Duque de Palmela (Pedro de Sousa Holstein – 1781-

1850).

Lima não publicou nenhum texto criticando essa obra de Oliveira Lima.

Tampouco registrou nas suas anotações pessoais ou até numa outra

correspondência alguma consideração sobre Dom João VI no Brasil. A sua possível

relutância em expor aquela crítica talvez estivesse relacionada ao receio de uma

retaliação do meio intelectual,94 pois Oliveira Lima era uma figura de destaque,

inclusive representando o país em centros acadêmicos na Europa e América.

Quanto à obra publicada pelo diplomata, em pleno centenário da vinda da corte

portuguesa ao Brasil, era reconhecida como um trabalho histórico de qualidade e

revelador daquele momento da História do país.95

A apresentação de suas ideias sobre aquela obra, então, apenas na carta a

um amigo com quem se correspondia há anos e tinha projetos comuns (Noronha

Santos conheceu Lima quando ainda eram estudantes, pertenceu ao grupo da

Floreal e publicou com Barreto um panfleto por ocasião da Campanha Civilista96) se

configurou como alternativa para Lima Barreto realizar mais esse embate com a

historiografia da época. A correspondência, diferentemente das outras práticas de

escrita de si, tem um destinatário específico com quem se vai estabelecer uma

relação, o que implica interlocução.

O autor de cartas “dar-se a ver”, se mostra ao destinatário, assim como este

também é “visto” pelo primeiro, exigindo, de quem pratica essa forma de escrita,

93 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I),p. 93.94 Dois anos antes daquela carta a Antonio de Noronha Santos, Lima havia publicado seu primeiroromance, Recordações do escrivão Isaías Caminha, que lhe rendeu muitas críticas, levando agrande imprensa da época a desconsiderar o nome do escritor na suas redações.95 Souza, Octavio Tarquínio de. Apêndice: prefácio à 2ª edição. In: LIMA, Oliveira Manoel de. D. JoãoVI no Brasil. 4 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 77196 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 59-60.

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tempo, disciplina e reflexão e confiança.97 Lima, como vimos no primeiro capítulo

desta tese, já discutia com Noronha Santos sobre o tema abordado por Oliveira Lima.

E, ao ler a grandiosa obra do renomado historiador com suas quase 700 páginas e

na qual se estabelecia como marco fundacional da nacionalidade brasileira

justamente o Estado-Monarquia de Dom João VI, Lima sentiu a necessidade de

revelar a seu amigo sua perspectiva.

Para melhor compreendermos aquelas palavras que Lima escreveu sobre a

obra em destaque, devemos compará-las com suas considerações, acima

apresentadas, acerca do trabalho historiográfico de Barão do Rio Branco, das

anotações do cônego Fernandes Pinheiro e do discurso de Assis Brasil.

Percebemos que, em comum, essas considerações versavam sobre a incompletude

de uma escrita da história voltada para temas políticos e questões diplomáticas,

apegada a documentos escritos oficiais e a narração dos fatos que deles extraíam

com sua crítica, sem espaço para imaginação e, muito menos, para as necessidades

e desejos do povo, silenciosa acerca do interior do país e promotora do culto a

homens distintos por letras, armas e virtudes (os “verdadeiros” heróis nacionais).

A obra de Oliveira Lima, de fato, constitui-se numa glorificação do monarca

Dom João VI, destacando como sua vinda ao Brasil e seu governo foram de

fundamental importância para a nacionalidade brasileira. A experiência como

diplomata, fez com que Oliveira Lima tivesse acesso a uma grande documentação

oficial sobre o período que se dedicou a estudar. Além disso, a sua trajetória na

diplomacia se reflete no modo como procurou também estabelecer relações entre o

novo mundo das Américas e o velho mundo da Europa.98

A civilização no Brasil está relacionada, no pensamento de Oliveira Lima, a

sua ligação com as tradições ibéricas. Esse pensamento foi divulgado pelo

diplomata historiador no exterior nas conferências que proferiu no início do século

XX. No mesmo ano daquela carta de Lima na qual criticava a maior obra de Oliveira

Lima, essas conferências foram reunidas em livro com o título Formação Histórica da

Nacionalidade Brasileira. O seu prefaciador, José Veríssimo, destacou da seguinte

maneira o trabalho de divulgação do país realizado pelo diplomata:

97 GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV,2004, p. 19.98 SOUZA, Melissa de Melo e. Brasil e Estados Unidos: a nação imaginada nas obras de OliveiraLima e Jackson Turner. Orientador: Marco Antonio Pamplona. 2003. 85 f. Dissertação (Mestrado emHistória Social da Cultura) – Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia da UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003, p. 51.

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[...] estudou e divulgou nossa história tão mal conhecida, que rebuscouapaixonadamente os arquivos, nos instruiu no exemplo dos grandes países,que nos era interessante conhecer melhor, e das questões que se debatiamno exterior e a que não podíamos ficar indiferentes; foi assim que defendeuo Brasil contra toda suposição injusta e errônea, contribuindo desse modopara o bom juízo que poderia dele ter, e esclarecendo os estrangeiros arespeito de nossos esforços no caminho da cultura e da civilização.99

O trabalho de Oliveira Lima, portanto, correspondia aos anseios do Itamaraty

em representar o Brasil como uma nação civilizada no exterior, tão criticados pelo

literato Lima Barreto. Além disso, mesmo apresentando uma visão panorâmica,

incorporando à narração de fatos históricos as perspectivas políticas, sociológicas e

antropológicas - o que agradaria Barreto já que criticava a historiografia da época

por não relacionar fatos de natureza diferentes – se sobressaía da narrativa de

Oliveira Lima uma proposta de identidade nacional aristocrática.

Oliveira Lima, logo no inicio da obra Dom João VI no Brasil, estabelece uma

análise comparativa em que a situação de Portugal é vista dentro do cenário comum

europeu frente às divergências em Inglaterra e França. Uma abordagem que, a

princípio, poderia se aproximar da reivindicação barretiana de uma historiografia que

apresentasse uma análise das conexões entre os acontecimentos. Também destaca

acontecimentos culturais como no capítulo “O espetáculo das ruas” em que

apresenta os novos costumes que surgiam da interação das tradições europeias e

elementos da cultura local, incluindo aí a presença de negros e mulatos.

Mais um aspecto que poderia levar Lima Barreto a uma opinião mais

favorável a essa obra. Contudo, no capítulo seguinte, Oliveira Lima traz um

destaque maior às solenidades da corte e suas mudanças no ambiente cultural, as

quais sacudiram “o torpor da cidade ao mesmo tempo que lhe emprestavam feições

bem acentuadas de elegância de distinção e de luxo”.100

Essa visão de chegada da civilização no Brasil em razão da presença

europeia não era considerada pertinente pelo literato carioca. Ainda mais que

Oliveira Lima omitia o povo em boa parte de sua narrativa sobre o passado brasileiro

na qual prevaleciam as decisões administrativas dos governantes e a atuação das

elites intelectuais no processo de formação da nação.

99 VERÍSSIMO, José. Prólogo: Um diplomata da atualidade. In: LIMA, Manoel de Oliveira. FormaçãoHistórica da Nacionalidade Brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro: Topbooks; São Paulo: Publifolha, 2000(Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro), p. 22.100 LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI no Brasil. 4 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 603.

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A ausência do povo, no entanto, não deixou de ser explicitada na análise de

outra obra do diplomata historiador, dessa vez publicada, realizada pelo escritor

Lima Barreto. Na crônica “Livros de Viagens”, presente nas páginas da Gazeta de

Notícias do dia 16 de abril de 1920, Barreto procurou discutir a forma como livros de

viagens escritos por diplomatas abordavam nações estrangeiras. Esclarece que

existia, entre os viajantes, uma espécie que o aborrecia. Esta era a dos diplomatas.Eles viajam tanto, que acabam não vendo nada de novo. Falo dos nossos,pois os outros não os conheço; e, dos nossos, muito poucos.Os seus livros de viagens, em geral, são de uma pasmaceira de quem nãotem olhos para ver e inteligência para penetrar. Quando não sabem sentirpor si as coisas estranhas que se lhes apresentam aos olhos, correm a umautor famoso e decalcam-no manhosamente. [...].De resto, eles não vêem as coisas profundas de um país, mas só aquelassuperficiais comuns a todos os países. São os bailes, os teatros, as ruaselegantes, os bairros ricos e os bairros torpes, onde não foram. [...].101

Contudo, Lima Barreto destaca algumas exceções nesse tipo de literatura.

Cita a obra Relação de uma viagem à Venezuela, Nova Granada e Equador, escrita

por Miguel Maria Lisboa (1809-1881) - “Conselheiro Lisboa”, como Lima o chama -,

diplomata brasileiro durante o Império. Sobre essa obra de 1866, Barreto destaca

que o seu fim que era “dar a conhecer” aos brasileiros aqueles países. Algo que foi

realizado pelo autor, segundo Barreto, nos dando “uma pintura, se não exata, ao

menos verossímil e simpática, da vida social, política e artística” daqueles três

países.102

Uma outra obra que também chama a atenção do literato é Na Argentina de

Oliveira Lima. Barreto afirma que entre esses dois livros há “um ponto de contato: é

que ambos querem constituir elementos de paz e concórdia entre vizinhos”.103 Uma

tarefa que Barreto considera como necessária, principalmente naqueles “tempos de

guerras e barafundas belicosas”. Para Barreto, não “há como nos conhecermos,

para vivermos em paz e perdoarmos os nossos mútuos defeitos”, corroborando, de

certo modo, a política do regime republicano voltada para um maior entendimento

diplomático com outras nações americanas.104

A obra Na Argentina (impressões 1918-19), publicada em 1920 com 263

páginas, traz reflexões sobre o país platino escritas a partir das experiências do

101 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 165.102 Ibid., p. 166.103 Ibid., p. 167.104 BAGGIO, Kátia Gerab. A “outra” América: A América Latina na visão dos intelectuais brasileirosdas primeiras décadas republicanas. 1998. 226 f. Tese (Doutorado em História Social) – Programa dePós-Graduação em História da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998, p. 48

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autor nesse país, durante sua estada de quase sete meses, entre meados de 1918 e

inícios de 1919. Esse escrito também inclui conferências e discursos pronunciados

pelo autor em distintas e importantes instituições culturais e educacionais argentinas.

Vale ressaltar que, embora seu autor escrevesse sobre a república argentina, “não

deixou de pensar no Brasil”, uma vez que a “mirada sobre o outro é, frequentemente,

[...] uma tentativa de examinar, com um novo olhar, a si mesmo”.105

Ao discorrer sobre aspectos culturais, políticos, sociais e intelectuais da

Argentina, Oliveira Lima trazia para os leitores brasileiros reflexões sobre os

problemas de seu próprio país. A própria característica dos relatos de viagem

endossa essa intenção do autor, pois, como muitas dessas narrativas, o livro tem

“uma natureza híbrida, misto de ensaio e impressões de viagem”.106 E, como vimos

na produção da obra Os Bruzundangas, era um tipo de narrativa que Barreto já se

apropriava para apresentar suas críticas dos problemas que identificava no Brasil.

Desse modo, o que, da leitura da obra de Oliveira Lima, mais causou forte

impressão em Barreto “foi o esforço extraordinário feito pelos argentinos para criar

um passado, para organizar tradições”.107 Barreto afirma que os “seus publicistas, os

seus poetas, os seus novelistas, andam em busca de ninharias de anteontem para

transformar em motivos dignos de epopéias e longos e substanciais estudos”.

A busca por uma tradição, tal como apresentada pelo historiador diplomata,

pretendia mostrar aos brasileiros o quanto deveriam também investir nesse tipo de

produção, a fim de enaltecer a sua nacionalidade perante os demais países. Oliveira

Lima, desde o início de suas impressões de viagem, destacava, entre os aspectos

que sinalizavam a chegada da civilização entre os argentinos, monumentos e

museus de pintura na cidade de Buenos Aires e outras urbes daquele país que

denotavam “o bom gosto público”108

Nesse sentido, assinala, no capítulo “IX – O carinho pela tradição”, o cuidado

que havia naquele país com relação à manutenção de seus lugares de memória,

especialmente os museus. Quanto aos pintores e poetas destacados pelo historiador,

são todos doutores (advogados, na sua maioria, e alguns exercendo altos cargos no

105 BAGGIO, Kátia Gerab. La Argentina según Oliveira Lima: impresiones de viaje, vida política ysociabilidad intelectual (1918-1919). In: MAILHE, Alejandra (org.). Pensar al outro/pensar la nación:intelectuales y cultura popular en Argentina y América Latina. La Plata: Al Margen, 2010, p. 105.106 Ibid., loc.cit.107 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 167.108 LIMA, Manoel de Oliveira. Na Argentina (impressões 1918-1919). São Paulo: Weisflog Irmãos,1920, p. 7-9.

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Estado argentino) assim como, imbuídos de um forte sentimento nacional,

prosadores e historiadores argentinos que mereceram do autor dois capítulos em

sua obra ( “X – Figuras literárias” e “XI – Algumas personalidade representativas da

cultura nacional”).109

Para Barreto, essa busca pela construção de uma tradição que legitimasse o

presente republicano também estava acontecendo no Brasil. Nesse sentido, faz a

seguinte advertência aos que se debruçaram em tal missão:[...] mas lembro que tradição só é tradição aquela se faz espontaneamentee sem esforço é guardada na memória de todos, dispensando qualquerpreocupação de exatidão e estreita veracidade histórica.A tradição palpável e documentada só pode ser relatório. A legenda, quenão deixa de ser em parte tradição, de Carlos Magno, só se fez durantecerca de três séculos pelas narrações orais, sem que se lhe guardassem osestribos e a espada; e daí nasceu essa maravilha de poema anônimo que éa Chanson de Roland.Guardar muito cuidadosamente coisinhas desvaliosas de uso depersonagens que amanhã serão desvaliosos não pode formar tradiçãoalguma. Pode ser tudo, menos isso. A história e a tradição não são feitaspelos contemporâneos nem pela geração que se segue. Pedem para seremfeitas algumas gerações adiante.110

Barreto critica a criação de tradições, mostrando-se preocupado com o modo

como essa pode impedir as futuras revisões do passado que outras gerações, diante

de suas experiências vivenciadas no presente, possam vir a realizar. Segundo Joël

Candau,[...] toda memória petrificada tende ao fechamento em si. Porque se querautorizada, não está disponível para as interpretações sucessivas quecaracterizam toda memória viva e já não assegura o trabalho que, nodecorrer, das gerações, seleciona o que é admitido pelo grupo e o quedever ser rejeitado.111

Para Lima Barreto, a construção de identidade pela memória deve estar

vinculada a atribuição de sentidos transmitidos e reavaliados ao longo do tempo.

Como toda rememoração implica esquecimento, a construção de uma memória

oficial possibilita a perpetuação de certas exclusões. Isso ainda se torna mais

preocupante a depender de quem está divulgando essa memória, carregada de

expectativas do momento de sua produção.

109 LIMA, Manoel de Oliveira. Na Argentina (impressões 1918-1919). São Paulo: Weisflog Irmãos,1920, p. 10; p. 134-186.110 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 167-168.111 CANDAU, Joël. Memória e Identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto,2016, p. 191.

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Dessa forma, Lima Barreto, depois de salientar que os publicistas, poetas e

novelistas argentinos estavam buscando elementos para organizar tradições, aponta

uma ausência que percebeu no livro de Oliveira Lima:é o povo argentino. Sua Senhoria não se preocupa com as camadas ditasrepresentativas. Professores (lá são ricos, diz Sua Senhoria), gente domundo, estancieiros; mas o povo, na sua nudez, o Senhor Oliveira Limadeixa de parte. Penso eu que não foi propositadamente, mas uma omissãoinvoluntária, devida aos hábitos da profissão.Mesmo em literatura, a obra só nos fala de autores consideráveis, não hádúvida, mas de autores cujo mérito a importância de sua posição socialtorna de alguma forma suspeito.Nas nossas democracias sul-americanas, sequiosas todas de medalhas econsiderações, os poderosos não deixam aos humildes nem o direito dedizerem tolices em prosa ou verso. Eles os tomaram também para si.112

Como acompanhamos na obra Dom João VI no Brasil, Oliveira Lima

apresenta uma perspectiva elitizada sobre a condução do processo de formação da

nacionalidade. Além disso, o autor segue as premissas do racialismo, o que deve ter

aguçado ainda mais a percepção de Barreto quanto à ausência do povo nesse livro

sobre a Argentina. No seu segundo capítulo, “A raça em formação”, Oliveira Lima

afirma:Da mesma forma que os aspectos do país se tem ido fundido num todoharmônico à medida que a civilização, vinda do litoral com as ondascolonizadoras, se vai alastrando e ocupando o interior, para istodesalojando núcleos de um pitoresco antiquado e dando ao conjunto umtom mais uniforme, sem todavia excluir a cor local, a raça argentina vai-seconstituindo sob a pressão das correntes imigratórias chegadas da Europa,nas quais se dilui cada vez mais o elemento nacional, puro indígena oumestiço espanhol e indígenas que produziu o tipo gaúcho.Em Buenos Aires é mais fácil ver tipos índios do que africanos: estesdesapareceram praticamente da circulação. [...].113

Percebemos que o horizonte de expectativas dos racialistas brasileiros se faz

presente nessas impressões de Oliveira Lima. O gradual branqueamento da

população local com a vinda de imigrantes europeus e o futuro “desaparecimento”

dos negros são destacados nas linhas acima. O próprio autor se serve do

pensamento, ao longo do texto, de José Ingenieros para afirmar que o prognóstico

sociológico argentino estava correto quanto à composição da sua sociedade, num

prazo de algumas dezenas de anos, por “muitos milhões de brancos”, tornando-se

os indígenas e mestiços apenas meras recordações alimentadas pelas crônicas e

112 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 168.113 LIMA, Manoel de Oliveira. Na Argentina (impressões 1918-1919). São Paulo: Weisflog Irmãos,1920, p. 24.

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pela literatura gauchesca.114 Dentro dessa perspectiva, Oliveira Lima endossa a

visão do médico Aráoz Alfaro (1870-1955) que defendia a necessidade de uma

imigração para corrigir a inferioridade da população local.

Essa utilização de nomes renomados para apresentar uma dada sociedade

estrangeira pelos diplomatas estava, como vimos acima, entre as “falhas” que Lima

Barreto destacava dos seus livros de viagens. “Quando não sabem sentir por si as

coisas estranhas que se lhes apresentam aos olhos correm a um autor famoso e

decalcam-no manhosamente”. Ou como expressou em outros textos, fazem uso da

“tesoura e goma arábica”,115 construindo suas narrativas a partir de “receitazinhas

[...], escrevendo “colcha de retalhos”.116 Uma prática de produção de conhecimento

que Lima Barreto considerava como distanciada da realidade.

O povo na narrativa de Oliveira Lima, portanto, não tinha espaço. Quando

Barreto escreve que “[...] os poderosos não deixam aos humildes nem o direito de

dizerem tolices em prosa ou verso”, indica Oliveira Lima como um autor em cuja

visão os sujeitos do discurso nacional são apenas os pertencentes a uma elite

letrada.

Notamos, nesses diálogos com a cultura histórica, que Barreto, enquanto

negro e identificado com as classes populares e na sua busca por reconhecimento

como escritor, também procurava se tornar um daqueles sujeitos aspirantes ao

espaço de enunciação de um discurso sobre o nacional, “negociando” com a

memória oficial. Nessa discussão da relação entre Lima Barreto e os discursos

dos historiadores brasileiros, não poderíamos deixar de nos interrogarmos sobre um

possível diálogo desse autor com o trabalho da grande referência para a

historiografia daquele momento que era Capistrano de Abreu.

3.3 Trajetórias paralelas, discursos que se cruzam: Lima Barreto e Capistranode Abreu

Lima não apresentou ao longo de sua produção comentários sobre algum

trabalho historiográfico do cearense João Capistrano Honório de Abreu. Mas

pudemos acompanhar, em linhas acima, momentos em que Lima se refere de

114 Ibid., p. 24-27.115 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 283.116 Id. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c (Tomo II), p. 201.

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maneira elogiosa à atuação intelectual de Capistrano, valendo a pena relembrá-los.

Quando discutíamos a questão nacional em Lima Barreto, percebemos duas

referências ao autor cearense.

A primeira ao recordar sua leitura da Gazeta Literária, na qual trazia uma lista

de nomes de intelectuais – entre eles o de Capistrano - que realizavam estudos

sobre a nacionalidade. Vimos que Lima caracterizava esses estudos como um

nacionalismo mais espiritual, os quais visavam “conhecer as coisas da nossa terra, a

alma das suas populações, o seu passado, e transmitir tudo isto aos outros, para

nos ligarmos mais fortemente no tempo e no espaço, em virtude desse

entendimento mútuo”. Um saber sobre o Brasil, que, por sinal, o narrador de Os

Bruzundangas não via naquela produção oficial feita pelos diplomatas.

Já a segunda referência a Capistrano, dentro da discussão em torno da

questão nacional, foi no romance Triste fim de Policarpo Quaresma. A brasiliana do

major, na seção de História do Brasil, apresentava o nome de Capistrano como uma

das leituras pelas quais o personagem buscava compreender o seu país. No

presente capítulo desta tese, ainda notamos mais uma vez a menção a esse

historiador. Dessa vez, na crônica sobre as equivocadas notas do cônego

Fernandes Pinheiro presentes no livro de Southey.

Lima se utiliza de uma obra de geografia do Brasil, traduzida por Vale Cabral

e Capistrano de Abreu, para corrigir o trabalho daquele membro do IHGB, elogiando

os tradutores como “sábios e operosos”. Havia uma admiração de Lima pelo

trabalho de Capistrano do qual era leitor.117 Contudo, não encontramos registros

sobre a existência de uma relação direta entre esses homens de letras.

Tanto nas suas anotações diárias quanto correspondências, não há indícios

que sinalize encontros entre Lima Barreto e Capistrano de Abreu nem trocas de

missivas. Porém, temos em algumas daquelas anotações, momentos que denotam o

conhecimento por parte de Capistrano de Abreu do trabalho de Lima bem como um

apoio na divulgação do romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Entre as

anotações pessoais de Lima Barreto, encontramos dois desses momentos.

Em fevereiro de 1916, Lima elaborava uma lista das pessoas e jornais aos

quais havia enviado exemplares do romance Triste fim de Policarpo Quaresma. Para

historiadores, Lima mandou para João Ribeiro, Afonso Celso e Capistrano de

117 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 363.

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Abreu,118 o que denota o seu intento em ver suas ideias sobre a questão nacional

discutidas entre esses estudiosos especialistas no tema. Já em setembro de 1921,

Lima destacou a cópia de uma carta do professor da Universidade de Stanford, John

Branner, a Capistrano de Abreu na qual comentava sobre o livro de Lima Barreto e

alguns escritos de Monteiro Lobato que o historiador lhe enviara.119

Lima registrou também que a carta original havia sido deixado por Capistrano

na livraria Schettino para que ele visse. Acreditamos que essa “relação” tenha sido

intermediada pelo filho de Capistrano, Adriano de Abreu. Este era “fechado e

distante”, só se abrindo com amigos íntimos, segundo o biógrafo Barbosa.120 Lima

Barreto era um deles e com o qual realizava empréstimos de livros. Naquela lista de

exemplares do Triste fim enviados, o nome de Adriano, inclusive, era o primeiro a

anteceder o de seu pai.

Mesmo sem comentários realizados sobre um trabalho historiográfico de

Capistrano por Lima como também não havendo manifestações desse historiador

quanto à escrita barretiana, podemos perceber em certos textos de Lima alguns

pontos que se aproximam das propostas inovadoras apresentadas pelo autor

cearense bem como, na trajetória de ambos, posturas parecidas quanto a certos

lugares de produção do conhecimento histórico e ao meio intelectual de um modo

geral. Analisemos, inicialmente, a forma como os dois escritores se posicionaram em

relação à narrativa histórica construída por outros intelectuais renomados daquele

momento.

Em linhas acima, vimos que Lima não pertencia a nenhuma instituição que

estivesse comprometida com a produção de um discurso histórico oficial. Além disso,

abandonou o seu objetivo inicial de escrever uma obra histórica, dedicando-se à

literatura. Contudo, notamos que, ao longo de sua produção textual, não só estudou

temas relacionados à História do Brasil como também inseriu alguns deles nos seus

enredos e discutiu sobre a forma como estavam sendo narrados, criticando autores

que eram referenciais para a escrita da história pátria.

Capistrano, por sua vez, tem sua biografia marcada pela dedicação à

pesquisa histórica e pertencimento a instituições oficiais, como o IHGB, a Biblioteca

Nacional e o antigo Colégio Pedro II. Contudo, sua trajetória também é marcada por

118 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 177-178.119 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 214.120 Id. . Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I), p. 207-208.

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críticas aos métodos utilizados e temas escolhidos pelos membros dessas

instituições. Além disso, Capistrano apresentou um certo deslocamento em relação

ao formalismo e práticas de ascensão social presentes nesse lugares.

Fernando Amed, no seu estudo sobre as correspondências de Capistrano de

Abreu, afirma que o historiador cearense “não guardava consideração pelo tipo de

trabalho conduzido pelos participantes do IHGB”, sendo muito crítico “para com a

sistemática de bajulações que pudesse permitir a elaboração de um trabalho de

pesquisa”. As cartas também revelam um Capistrano que “não aceitava a

monumentalização de personagens da história do Brasil”, bastante avesso às

comemorações de datas vistas como marcantes para a história nacional e “cético

quanto à condução política do país”.121

Vejamos com mais detalhes essas peculiaridades de Capistrano,

comparando-as com as de Lima Barreto, sendo a relação de ambos com a cultura

histórica da época o fio condutor desta análise. Dentre aquelas cartas estudadas por

Amed, destacamos a que enviou a José Veríssimo, datada de 20 de junho de 1909,

na qual se reportava à obra Dom João VI no Brasil de Oliveira Lima, também

comentada por Barreto numa de suas correspondências. Como o literato, não teve

uma boa impressão da obra. Considerou o trabalho do diplomata “um livro inferior”.

Capistrano salientou que Oliveira Lima não abordou devidamente alguns fatos

como a abertura dos portos e a revolução de 1817, corroborando as opiniões de

Nabuco, Aranha e Alfredo Carvalho de que o historiador pernambucano era “um

usurpador e estragador de assuntos”.122 Anos antes, Capistrano já havia feito

recomendações ao próprio Oliveira Lima, também por meio de carta, em 19 de abril

de 1900, sobre como deveria escrever aquela obra. “[...] Quando chegar à época em

que ele [Dom João VI] veio para o Brasil, leia de lápis em punho todos os viajantes,

apresente um quadro largo do estado do Brasil e, ver-se-á quanto é falso e

acanhado tudo quanto até agora se tem feito”.123

Em 1922, novamente se refere a um trabalho de Oliveira Lima. Dessa vez,

comenta um novo livro do pernambucano (segundo Amed, pode ter sido O

Movimento de Independência) que havia recebido de Afonso Taunay. Em carta a

João Lúcio, afirma que esse livro é melhor que o Dom João VI no Brasil, “sem ser

121 AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida literária na belleépoque carioca. São Paulo: Alameda, 2006, p. 53-54.122 Apud ibid., p. 162.123 Ibid., loc.cit.

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completamente bom”.124 Contudo, assinala que o gênero do historiador diplomata,

“com suas considerações desencontradas e não raro superficiais”, agradava-lhe

pouco.

Como vimos, Lima Barreto apresentou também uma visão negativa acerca da

escrita do diplomata e historiador pernambucano. Quanto ao Dom João VI,

especificamente, o literato destacou a ênfase dada pelo seu autor aos

acontecimentos diplomáticos e afirmou que a sua narrativa carecia de “sentimento

de tempo” e de “nervo”.125 Essa carência talvez pudesse ser suprimida se Oliveira

Lima tivesse seguido aquelas sugestões de Capistrano quanto ao uso de relatos de

viajantes como fonte para a elaboração de “um quadro largo do estado do Brasil”.

Morais afirma que, para Capistrano, o importante nesses relatos é a cultura

encontrada pelos viajantes, apresentando uma paisagem humana.126 Aqui podemos

vislumbrar uma primeira proximidade entre o autor cearense e Lima Barreto que

seria a superação de uma escrita histórica na qual predominava os fatos políticos e

o uso de documentos escritos oficiais. Em Os Bruzundangas, Lima sinalizou a

necessidade de uma história social que abarcaria outras dimensões da realidade

nacional, suplantando uma representação do passado nacional condizente com a

imagem que a diplomacia brasileira desejava apresentar no exterior.

Algo que Capistrano também via de modo negativo. Ao observarmos

novamente aquela carta que enviou a José Veríssimo acerca da obra de Oliveira

Lima, percebemos que, após as críticas, Capistrano, de modo irônico, afirmou que,

mesmo assim o livro iria ser “elogiado, vendido”. Quanto se seria lido, Capistrano

duvidava, mas o seu autor se sobressairia e confirmaria “o que já o indiscreto Xavier

de Carvalho” havia anunciado numa correspondência de Paris: “será o sucessor de

Rio Branco”.127

Um outro ponto em comum entre Capistrano de Abreu e Lima Barreto se

refere à escrita de intelectuais que apoiavam suas formulações sobre o passado tão

somente ou em maior medida em teorias, negligenciando a análise de documentos.

124 Ibid., p. 163.125 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (TomoI), p. 93.126 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 39.127 Apud AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida literária na belleépoque carioca. São Paulo: Alameda, 2006, p. 162.

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Em Lima, havíamos observado essa crítica ao uso desmesurado de teorias para

explicação da realidade nacional desde seus primeiros projetos de escrita, sendo

que essa postura teve continuidade ao longo de suas apreciações sobre trabalhos

literários e históricos. Em algumas delas que destacamos acima, percebemos como

Lima indicava estudos bem como outras possíveis fontes que preenchessem certas

lacunas presentes nos trabalhos de autores estrangeiros e brasileiros.

Capistrano, por sua vez, também não aprovava essa forma de construção de

argumentos em que a teoria se sobressaia sobre a apresentação de evidências. Sua

trajetória foi marcada pelo estabelecimento de documentos e pela recusa de uma

escrita de uma obra que transparecesse uma visão geral sobre a história do Brasil,

algo que, aliás, era dele esperado pela intelectualidade da época. O autor cearense

considerava que a prioridade naquele momento era a pesquisa documental, a

manutenção da integridade dos arquivos para que futuros estudiosos pudessem

consultá-los e a elaboração de monografias sobre temas específicos.128

Diante disso, podemos melhor compreender a crítica que fez à obra de estréia

de Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), intitulada As Populações

meridionais no Brasil e lançada em 1920129. Em cartas endereçadas aos intelectuais

Paulo Prado e Afonso de Taunay no ano de 1921, Capistrano explicitava sua

suspeita de que Oliveira Vianna havia se inspirado no sociólogo francês Pierre

Guillaume-Frédéric Le Play (1806-1882), classificando esse trabalho de Vianna

como um “livro erudito, bem escrito, bem meditado, mas, [...] nada convincente até a

página 57 [...]”.130

Com o avanço da leitura, Capistrano reforça sua apreciação sobre o livro. Em

outra carta a Taunay de 16 de maio de 1921, questiona se o que afirmava Vianna

era autorizado pelos documentos ou “soprado” pelas doutrinas de Le Play. Já em 7

128 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 72-73.129 Nessa obra, Oliveira Vianna busca apresentar a formação histórica, social e política da sociedadebrasileira bem como sua psicologia política. O autor ressalta que a importância da formação daaristocracia rural, delineando as rupturas com o modelo fidalgo colonizador que, em contato com omeio ambiente, deu vida uma nova estrutura social. Cf. Silva, Tatiane Gonzalez Leite da. Ciência eideologia: revisando Populações medionais no Brasil – I de Oliveira Vianna.Orientadora: Elide RugaiBastos. 2012. 133 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.130 Apud GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço,2009, p. 71.

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de maio de 1926, ratifica, numa carta a seu amigo João Lúcio de Azevedo, que

Vianna na obra Populações Meridionais “conhece melhor Le Play do que nossa

terra.131 Essas apreciações de Capistrano nos levam a perceber a aproximação que

tinha com o método crítico da Escola Histórica Alemã com relação às fontes

documentais.

Falcon, ao analisar a sua trajetória intelectual, afirma que Capistrano foi se

afastando “dos esquemas explicativos simplificadores da realidade histórica”, sendo

que o seu positivismo juvenil “cedeu espaço a uma concepção realista da história,

na qual estão presentes alguns dos elementos típicos da historiografia

historicista”.132 Vimos que Lima Barreto também se mostrou cético quanto aos

modelos deterministas de explicação da realidade brasileira, sugerindo (como fez

em carta ao sociólogo francês Bouglé e na introdução do romance Recordações do

escrivão Isaías Caminha) que se buscasse uma maior aproximação das

experiências vivenciadas na sociedade nacional antes de apresentar certas

conclusões a seu respeito.

Quanto ao cuidado no tratamento de fontes para a escrita da história, Lima,

assim como Capistrano, também apresentou um olhar crítico. Lima, embora não

apresentasse a pretensão de ser um historiador, como vimos, teve momentos de

sua escrita que observou o tipo de fonte utilizado por alguns sujeitos que

escreveram sobre o passado, principalmente na tentativa de construção da

identidade nacional. Dessa observação, percebemos sua preocupação com os

esquecimentos que a escrita da história poderia promover a depender da fonte

escolhida e do modo como era interpretada por determinados autores.

Para Lima, os documentos escritos não bastavam para o preenchimento das

lacunas existentes na narrativa histórica, sugerindo, desde seus projetos iniciais de

produção literária, o recurso à memória oral como alternativa. Além disso, e nesse

sentido se aproxima da metodologia da pesquisa histórica exigida por Capistrano,

notamos como em algumas de suas críticas salientava a necessidade de

confrontação das fontes bem como desconfiava das produções voltadas para o

estabelecimento de um grande panorama sobre o passado. Lima também se

131 Apud GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço,2009, p. 72.132 FALCON, Francisco José Calazans. Capistrano de Abreu e a historiografia cientificista: entre opositivismo e o cientificismo. In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das [et.al.] (org.). Estudos dehistoriografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 154.

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mostrava exigente, nas suas críticas, quanto à veracidade histórica das informações

que eram divulgadas acerca do passado e “cobrava” objetividade por parte do

historiador.

Na crônica “Edificantes notas ao Southey”, Lima foi cuidadoso na verificação

das anotações do cônego Fernandes Pinheiro, apresentando as falhas deste

membro do IHGB ao anotar um trabalho considerado como referência para o

conhecimento de um dado momento da história nacional. Em “Meia página de

Renan”, ao ressaltar como o apego do historiador francês Renan ao racialismo e ao

seu nacionalismo fez com que interpretasse o passado de modo equivocado, o

literato carioca afirmou que esse autor “devia ressumar a imparcialidade do grande

historiador que era”. Já em “E o tal balázio?”, após criticar a escrita de outro membro

do IHGB, Vieira Fazenda, Lima reconhece como admirável o seu trabalho “em

condensar documentos”, “de paciente pesquisador, de rebuscador de documentos”.

Contudo, essas exigências de rigor no trato das informações obtidas dos

documentos não devem levar a crer que Lima considerasse a imparcialidade e a

objetividade como princípios absolutos na prática do historiador ou de qualquer outro

cientista. Em muitas daquelas críticas e referências que realizou de autores e suas

obras históricas, Lima fez questão de apontar as escolhas políticas, as marcas de

subjetividade e do tempo presente nos textos bem como os lugares de produção de

saber aos quais estavam vinculados. Podemos perceber isso na sua tentativa de

refutar um trecho da obra História do Brasil de João Ribeiro - a qual tanto apreciava -,

“não ao que dizem as palavras, mas ao espírito que as ditou e que se esconde

debaixo delas”.

Ainda sobre esse historiador, Lima sinalizou sua divergência quanto à

perspectiva de Ribeiro que fazia uma associação entre regime republicano e

sociedade brasileira mestiça, produzindo uma visão histórica em que esse regime

era dado como algo inevitável, definitivo e ideal para o país. O destaque que Lima

também deu aos autores pertencentes à diplomacia e ao IHGB nas suas críticas,

especialmente à relação entre produção de saber oficial e interesses políticos em

representar o Brasil no exterior como uma nação civilizada, sinaliza seu objetivo de

apresentar a seus leitores como a escrita da história estava condicionada a diversos

fatores e não somente à qualidade da erudição dos seus autores e a sua suposta

neutralidade durante o processo de pesquisa, a qual deveria estar ancorada numa

sólida base documental.

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Vimos acima, quando discutimos os principais aspectos da escrita da história

no Brasil de início do século XX, o maior peso que era dado à erudição, à

neutralidade e à pesquisa documental para a validação de um trabalho histórico no

meio intelectual daquele momento. Lima, com sua perspectiva irônica, observou

como esses critérios de validação, fortemente marcados pela influência do

cientificismo, tinham seus limites nas próprias produções dos autores brasileiros e

estrangeiros que serviam de referência para a produção historiográfica.

O mesmo João Ribeiro, já destacado acima, salientou, em seu discurso de

posse no IHGB, assim como Lima Barreto discutiu em alguns trabalhos de Taine e

Renan, a interferência do tempo presente na elaboração do discurso sobre o

passado. Essa interferência era também explícita nos recortes temporais que Lima

realizava para composição de seus enredos, bem como na seleção dos temas a

serem abordados. Dessa forma, o silêncio acerca do preconceito racial e sua

relação com a adoção do racialismo por muitos intelectuais foi um tema bem

explorado pelo escritor em diversos dos seus textos.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, vimos, no primeiro item deste capítulo,

como o cenário político do momento de sua escrita foi importante para Lima

ambientar seu enredo durante o governo de Floriano Peixoto. Ou seja, interferências

do tempo presente eram vistas por Barreto como essenciais para uma produção

intelectual cujo objetivo era compreender a realidade nacional, tornando acessível

aos leitores os “fúteis motivos” que estabeleciam desigualdades sociais. Não

podemos também deixar de relembrar a própria visão de Lima sobre a produção do

conhecimento, principalmente ao que era considerado como científico em sua época.

Já naqueles estudos iniciais, Lima destacava que a ciência era “um ponto de

vista sobre as coisas”, desconfiando que fosse também uma forma de pensar

exclusivo da Europa que daria conta da realidade que nos cerca (“a ciência não é

assim um cochicho de Deus aos homens da Europa”). Para Lima, o sentimento e a

intuição deveriam fazer parte do processo de busca pela verdade. A subjetividade do

intelectual, portanto, tem sua presença valorizada por Lima e considerada como

necessária em qualquer produção do conhecimento.

Essa visão barretiana, como vimos, esteve evidente também ao tratar do

conhecimento histórico. Em linhas acima, ao comentar sobre o trabalho de Vieira

Fazenda, Lima trouxe o pensamento de Renan no qual era destacada a

necessidade do uso da imaginação na escrita da história, uma vez que os

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documentos utilizados nem sempre permitem o preenchimento das lacunas

existentes quanto a certos momentos do passado. Além disso, o literato carioca

deixou claro nas suas representações de intelectuais as marcas da subjetividade

também na forma como interpretavam os documentos.

A representação mais emblemática dessas marcas foi a que destacamos

acima acerca da trajetória do personagem Policarpo Quaresma. Seu ideal

nacionalista impediu que observasse as contradições de sua visão de nação,

selecionando das obras que tinha na sua biblioteca apenas os trechos que lhe

convinha. Muitos desses aspectos da visão barretiana acerca da produção do

conhecimento, especialmente do histórico, se aproximam das reflexões e atuação

profissional de Capistrano de Abreu.

O historiador cearense, ao longo de sua trajetória, apresentou uma

preocupação muito grande com relação ao trato dos documentos e às interpretações

do passado nacional. Essa característica de Capistrano foi muito desenvolvida

durante a sua atuação na Biblioteca Nacional (1878 a 1883), o que lhe propiciou o

contato com diversos documentos históricos, sendo a edição da História do Brasil de

Frei Vicente de Salvador, em parceria com Alfredo do Vale Cabral, um dos

momentos de destaque nesse momento de sua trajetória. Um outro momento que

refletiu a busca por renovações na escrita da história por Capistrano foi seu

posicionamento em relação ao trabalho de Francisco Adolfo de Varnhargen (1816-

1878). Sobre esse autor, Capistrano escreveu um necrológio (1878), três artigos na

Gazeta de Notícias (1882) e, por duas vezes, tentou estabelecer uma edição

anotada de sua História Geral do Brasil.133

Varnhagem representou um marco na escrita da história do Brasil. A sua

História geral do Brasil (foram publicados dois volumes: o primeiro em 1854 e o

segundo em 1857) refletiu uma nova preocupação no país com a documentação

sobre o passado brasileiro, representada pelo recém-inaugurado IHGB.

Diferentemente de Southey que representou um quadro sombrio quanto às

qualidades futuras da colonização comercial portuguesa no Brasil, Varnhagen

133 A primeira tentativa teve início em 1902, mas foi interrompido por um incêndio na CompanhiaTipográfica Nacional onde se encontrava o material então produzido pelo historiador. Capistranoconseguiu em 1907 publicou uma versão ate as primeiras 371 páginas. A segunda tentativa iniciara-se em 1916, prosseguindo ate 1926.

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procurou, juntamente com os nativistas do IHGB, interpretá-la como um “enorme

feito, e o futuro estava aberto ao sucesso da nova nação”.134

As tentativas de publicação de uma edição anotada de uma obra de tamanha

importância para a historiografia nacional revelam a necessidade que Capistrano via

de revisão constante do conhecimento sobre o passado brasileiro, tornando a

própria História geral da História do Brasil de Varnhagen um documento que devia

ser analisado. Lima Barreto, mesmo não sendo o principal norte de seu horizonte de

expectativas, também sinalizou para seus leitores essa necessidade. Nos seus

diálogos com a cultura histórica observados acima, destacou as lacunas que alguns

discursos escritos sobre a história apresentavam. Nesse sentido, apontou outras

fontes que poderiam preenchê-los, como também deixou subtendido que algumas

obras produziam uma versão sobre o passado, sendo interessante tomá-las também

como documentos que deveriam ser submetidos à crítica.

Passemos às observações que Capistrano de Abreu fez do trabalho de

Varnhagen para que nossa comparação entre as perspectivas daquele historiador

cearense e do literato carioca quanto à escrita da história nacional possa se tornar

mais compreensível. No texto “Necrológio de Varnhagen” (1878), Capistrano valoriza,

inicialmente, o trabalho do historiador sorocabano, principalmente em relação ao seu

empenho na exegese documental, o qual era um ponto comum entre ambos. O

cearense também destaca como qualidade de Varnhagen o seu intenso

patriotismo,135 aspecto marcante daquele momento da escrita de História Geral do

Brasil no qual se buscava a construção da identidade do Império e consolidação do

Estado nacional.136

Mas nesse texto, Capistrano também apresenta algumas críticas a

determinados aspectos do trabalho do renomado historiador. Se quanto ao método

histórico havia uma forte aproximação, epistemologicamente, as diferenças se

acentuam entre esses historiadores.Varnhagen não primava pelo espírito compreensivo e simpático, que,imbuindo o historiador dos sentimentos e situações que atravessava o tornacontemporâneo e confidente dos homens e acontecimentos. A falta deespírito plástico e simpático, eis o maior defeito do Visconde de Porto

134 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9 ed. ampl. Rio de Janeiro:Editora FGV, 2007, p. 50.135 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e estudos: Crítica e História, 1ª série. 2ª ed. Riode Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975, p. 82-88.136 BARROS, José D’Assunção. Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de umaprodução historiográfica. Revista Projeto História. n. 41, dezembro, 2010, p. 469.

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Seguro. A história do Brasil não se lhe afigurava um todo solidário ecoerente. [...].137

O momento em que Capistrano se encontrava ao escrever essas linhas,

segundo Barros a partir da adoção da perspectiva de Arno Wehling pela qual a obra

do historiador cearense apresenta fases internas, era o positivista. Desse modo, via

na História Geral do Brasil uma história comprometida por não apresentar uma teoria

que lhe desse unidade de coerência.Ele [Capistrano] vê esta obra como uniformizada negativamente pelarepetição, pela ausência de percepção da diversificação social e política,mas ao mesmo tempo uma uniformização sem uma coerência geral quepoderia ser trazida por um maior interesse pela Teoria e um maior empenhode captar as “leis gerais” que estariam por trás dos desenvolvimentoshistóricos do país.138

Aqui já podemos perceber mais uma aproximação entre os pensamentos de

Lima e Capistrano. Por meios diferentes – o primeiro destacava a imaginação, já o

segundo a teoria – esses intelectuais deixam claro que a correta utilização dos

documentos não seria suficiente para promover uma compreensão do passado.

Continuemos com as críticas de Capistrano ao trabalho de Varnhagen para

notarmos outras possíveis convergências na forma de analisar a escrita da história

entre o literato e o historiador.

Capistrano não concordava também com o recorte temático de Varnhagen.

Ainda no Necrológio e seguindo pelos textos de 1882, havia a observação de que o

trabalho de Varnhagem não obedecia a critérios rigorosos, seguindo mais a

cronologia que a temática.139 Capistrano destacou que o aristocrático historiador

sorocabano, o qual realizou seus estudos no exterior e era fortemente alinhado ao

imperador Dom Pedro II, era resistente aos movimentos populares e rebeliões,

centrando sua narrativa no homem branco e no Estado Imperial.140 Em História geral

do Brasil,Os pródromos da nossa emancipação, os ensaios de afirmação nacionalque por vezes percorriam as fibras populares, encontravam-no severo e atéprevenido. Para ele, - a Conjuração mineira é uma cabeçada e um conluio;a Conjuração baiana de João de Deus, um cataclisma de que rende graçasà Providência por nos ter livrado; a Revolução pernambucana de 1817, umagrande calamidade, um crime em que só tomaram parte homens de

137 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e estudos: Crítica e História, 1ª série. 2ª ed. Riode Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975., p. 89.138 BARROS, José D’Assunção. Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de umaprodução historiográfica. Revista Projeto História. n. 41, dezembro, 2010, p. 470.139 RODRIGUES, José Honório. História e historiografia. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 155.140 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9 ed. ampl. Rio de Janeiro:Editora FGV, 2007, p. 56-57.

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inteligência estreita, ou de caráter pouco elevado. Sem D. Pedro aindependência seria ilegal, ilegítima, subversiva, digna da força ou fuzil.141

Quanto ao século XVIII, Capistrano aponta que Varnhagen “deixou a desejar”,

apresentando um estilo tendente à crônica, perdendo-se em acontecimentos

irrelevantes, o que uniformizou a sua versão da História do Brasil. Isso, para

Capistrano, levou à produção de uma narrativa repetitiva que não promovia a

percepção do ritmo específico de cada época.142 Nessa apreciação realizada por

Capistrano, notamos mais um momento em que sua perspectiva de escrita da

história nacional, anos depois, terá em Lima Barreto um discurso com o qual muito

se afina.

A condenação de uma escrita da história voltada para temas político-

administrativos, mais preocupada com a cronologia e sem um grande destaque para

as especificidades de cada época, também apareceu entre as críticas barretianas à

narrativa histórica até então produzida no início do século XX. Recordemos que na

carta acima destacada a seu amigo Antonio Noronha Santos, na qual emitiu sua

opinião sobre a obra Dom João VI no Brasil de Oliveira Lima, Lima Barreto assim

como Capistrano ao analisar Varnhagen, também considerou a escrita do historiador

diplomata pernambucano muito centrada em fatos ligados ao Estado e carente de

“sentimento do tempo” sobre o qual se reportava, embora “laboriosa” e “minuciosa”

(leia-se bem documentada).

Em Os Bruzundangas, Lima apresentou um narrador viajante que foi ainda

mais contundente nas críticas à escrita da história do Brasil. Nesse texto, a narrativa

histórica que priorizava a cronologia e fatos políticos era vista com uma ideia sobre

história das “mais estreitas possíveis”. Contudo, as linhas que seguem dessa

narrativa são as que mais se aproximam do trabalho do historiador cearense.

Primeiramente, o narrador barretiano aponta um grande ausência na história que se

escrevia naquele momento: o povo.

Capistrano, como vimos, também critica a escrita de Varnhagem por essa

falta de destaque e, durante, sua trajetória intelectual, procurou elevar o povo à

qualidade de personagem central da história brasileira, objetivo que Lima perseguiu

ao criar seus pensonagens. A fim de evidenciarmos essas afirmativas, vamos nos

deter na obra histórica escrita por Capistrano intitulada Capítulos de História Colonial,

141 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e estudos: Crítica e História, 1ª série. 2ª Ed. Riode Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975, p. 89.142 Ibid., p. 135-138.

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bem como nos textos barretianos no quais a ideia de povo como protagonista se

destaca.

A obra Capítulos de História Colonial foi publicada em 1907. O texto havia

sido encomendado pelo Centro Industrial do Brasil para compor uma obra

estatística – O Brasil, suas riquezas naturais, suas indústrias – com o fim de fazer

propaganda do Brasil no exterior.143 Não se sabe ao certo o motivo que a levou

ganhar autonomia, “talvez pelo número de páginas que excedeu o que fora

combinado”.144 O trabalho que então realizava de anotação à História geral de

Varnhagen, possivelmente, contribuiu para a elaboração de Capítulos. Em carta a

Guilherme Studart, datada de 28 de outubro de 1903, Capistrano esclarece essa

relação:Pretendo acompanhar cada volume de Varnhagen (serão três, o 1º acabana conquista do Maranhão) de uma introdução de cem páginas, fazendo asíntese do período subseqüente. Se levar isso a cabo, fica pronto o livro aque reduzi minhas ambições da História do Brasil, um volume em formatode um romance francês.145

Capítulos de História Colonial surgiu no momento em que Capistrano havia se

aproximado mais do realismo histórico alemão, atenuando-se sua concepção

evolucionista. Capistrano já apresenta um maior rigor na critica documental a fim de

estabelecer uma interpretação dos fatos. A sua compreensão do passado não se

pautava mais na busca de regularidades que permitissem a confirmação das leis

gerais da História, levando o historiador cearense a se voltar para temas mais

singulares.

Para tal, de acordo com a perspectiva historiográfica do realismo alemão, o

historiador deveria, num primeiro momento da pesquisa histórica, ser neutro e

objetivo no seu trato com as fontes, já num segundo, por sua vez, necessitaria iniciar

a produção de uma interpretação.146 Isso fez com que Capistrano se servisse das

“modernas ferramentas das ciências humanas, especialmente a Geografia, a

Psicologia, Economia e a Etnografia” para entender o processo histórico, “dar-lhe

143 AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida literária na belleépoque carioca. São Paulo: Alameda, 2006, p. 89.144 ID. Ser historiador no Brasil: João Capistrano de Abreu e a anotação da História geral do Brasil deFrancisco Adolfo de Varnhagen. In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das [et.al.] (org.). Estudosde historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 131145 Apud AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida literária na belleépoque carioca. São Paulo: Alameda, 2006, p. 90.146 BARROS, José D’Assunção. Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de umaprodução historiográfica. Revista Projeto História. n. 41, dezembro, 2010, p. 473.

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vida e movimento”,147 permitindo arrancar “das entranhas do passado o segredo

angustioso do presente”148

Nos Capítulos de História colonial, já nos primeiros capítulos, Capistrano

destaca a forte interação do homem com a natureza, bem como apresenta sua

preocupação com a psicologia dos colonos, detalhando aspectos dos portugueses,

negros escravizados e indígenas que, em interação entre si e com o espaço físico,

promoviam algumas alterações nos seus respectivos perfis.149 A economia também

ganha destaque na análise histórica de Capistrano, sendo a ocupação do território

efetivada quando da interiorização de atividades econômicas que sustentam uma

população suficientemente densa.150

Dessa forma, enfatiza a ação econômica de exploração dos recursos naturais

e as modificações no ambiente nativo ao introduzir novos cultivos como a cana de

açúcar e o café, abrindo capoeiras durante o processo de ocupação do território.

Temos, então, o homem realizando uma ação cultural, aspecto que o autor salienta

ainda mais ao longo desse trabalho ao tratar da economia naturista nos grandes

engenhos e de aspectos da vida material e imaterial da formação do povo brasileiro.

Daí sua descrição dos meios de transporte como canoas pelos bandeirantes,

as vestimentas dos vaqueiros, as habitações na zona mineradora, as festividades,

manifestações religiosas e hábitos alimentares. Por essa descrição, o autor vai

apresentando traços identitários que se forjavam ao longo do tempo, destacando-se

as especificidades locais. Nesse sentido, vale acompanharmos o trecho a seguir, no

qual Capistrano apresenta hábitos alimentares e formas de moradia de diversos

sertões.Nas margens do São Francisco encontram-se baianos e pernambucanoscom os paulistas. Ao sul e ao ocidente pode-se determinar até certo pontoos limites das duas correntes opostas, marcando os lugares em que os altosdeixam de ser preferidos para a habitação, mesmo quando não há perigo deser inundado o terreno, e entram a funcionar monjolos.Predileção pelas baixas para as casas de vivenda, freqüência de monjolopara pilar o milho seco, milho como alimentação habitual, sob as formas decanjica (no sentido do Sul), fubá e farinha fermentada antes da torrefação

147 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 75.148 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e estudos. 1ª série. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira; Brasília: INL, 1975, p. 91.149 Ibid., p. 25-30.150 ABREU, João Honório Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília:Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira), p. 18-30.

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definitiva, carne de porco preferida à de boi indicam a presença paulista oude seus descendentes. [...].151

Esse diálogo da História com outras ciências sociais favoreceu a introdução

dos sertões enquanto tema historiográfico por Capistrano, destacando a atuação dos

bandeirantes, a importância da criação do gado para a ocupação do território, bem

como da atividade mineradora. Desse modo, deslocou o olhar da historiografia

precedente, que estava mais atenta ao litoral, para o interior do país. Capistrano, em

Capítulos de História Colonial, realizou uma história econômica e social na qual o

povo é o principal personagem.

O narrador de Os Bruzundangas aventava uma escrita da história que se

aproximava dessa produzida por Capistrano. Vimos que, ao criticar as ideias sobre

história do personagem Pancome, o narrador afirmou que a história social e

econômica daquela fictícia república ainda estava por ser feita, destacando que, até

aquele momento, não se havia escrito uma história que se voltasse para o interior.

Pancome não conhecia “as ânsias, as dificuldades, as qualidades e os defeitos de

seu povo”. Ou seja, uma proposta de mudança historiográfica muito semelhante à

realizada pelo historiador cearense ao procurar se distanciar do modelo de narrativa

histórica de Varnhagen.

Essa proximidade entre as perspectivas de Lima e Capistrano acerca da

inclusão do povo como personagem central da história tem relação com os vínculos

que estabeleciam com a geração de 1870. Lima foi um leitor das obras dos

membros dessa geração e admirador de alguns deles, como José Veríssimo e o

próprio Capistrano de Abreu. O anseio daquela geração era justamente por reformas

que ampliassem o escopo da participação popular, a exemplo da abolição, reforma

eleitoral e da implantação da República. Além disso, devemos considerar o

repertório cultural que chegava ao Brasil com o resultado da já mencionada Guerra

Franco-Prussiana, bem como acontecimentos no país que revelavam a urgência de

novas análises historiográficas acerca da constituição diversificada do povo

brasileiro, para compreender as posturas diferenciadas de Capistrano e Lima em

relação à narrativa histórica produzida pelos membros do IHGB com seu romantismo

e os seguidores de Varnhagem.

151 ABREU, João Honório Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília:Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira), p. 205.

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A derrota da França em 1870 contribuiu, de certo modo, para a redução de

sua hegemonia cultural sobre o Brasil, abrindo espaço para influências do

pensamento de autores ingleses e alemães. Quanto a estes últimos, podemos

destacar Ranke – já presente em Varnhagen –, Ratzel ou até a vertente da

historiografia alemã do século XIX denominada Kulturgeschichte (história cultural)

que tanto orientou a tão bem recepcionada História do Brasil de João Ribeiro, obra

que despertou o interesse do literato Lima Barreto. Essa nova influência cultural,

juntamente com algumas já conhecidas francesas e a chegada de textos de autores

ingleses, chamou a atenção dos intelectuais brasileiros para as singularidades

históricas, possíveis leis que regiam a evolução dos povos e determinavam seu

espírito.

Capistrano deve grande parte de sua formação enquanto historiador a suas

leituras de autores alemães. José Honório Rodrigues afirma que os germes de

muitas dessas influências surgem no autor cearense quando este ainda militava no

positivismo em 1881-1882.As traduções de Wappoeus, Sellin, Kirchhoff, as leituras de Ratzel, Peschel,Wagner e Maull mostram a decisiva orientação geográfica e encaminhamseu espírito para quadros teórico-práticos mais concretos, que não reduzemo conhecimento histórico ao conhecimento próprio da ciência natural; aolado disso a historiografia crítica iniciada por Niebuhr, Ranke e W.Humboltdt criara novos instrumentos do saber histórico e Capistrano sentiaa influência renovadora dessas leituras.Por volta de 1900 são ainda mais evidentes os estímulos da literaturahistórica germânica. Agora é nos métodos de seminário de Ranke e nadoutrina antropogeográfica de Ratzel que vai buscar os elementos deinvestigação e interpretação dos fatos.152

A sua referência na Economia também tem origem germânica. Seu interesse

por essa área se manifesta na leitura do professor Karl Bücher (1847-1930) do qual

se apropria do conceito de economia naturista bem como assimila os seus

ensinamentos acerca da alteridade e transformação da economia ao longo do tempo

e do espaço, presentes nos Capítulos de História Colonial.153

Paralelo a essa entrada do pensamento de autores germânicos no Brasil, a

intelectualidade brasileira se viu impelida a pensar a diversidade de seu povo diante

de certos fatos ocorridos entre fins do século XIX e princípios do seguinte. No

segundo capítulo deste trabalho, ao discutirmos temas que geravam reflexões dessa

152 RODRIGUES, José Honório. História e historiografia. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 200.153 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 111-114.

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intelectualidade acerca do passado nacional, assinalamos o impacto social do fim da

escravidão e da mudança de regime na construção da identidade nacional.

Depois desses dois eventos, segundo Gomes, foi possível imaginar a

existência de uma nação constituída por um povo, ou seja, integrada juridicamente

por homens livres.154 Estudos, muitos dos quais iniciados pelos membros da geração

de 1870, tiveram como foco a formação do povo brasileiro, objetivando delimitar seu

caráter. Logo após quase sete anos de proclamada a República, estourou no sertão

baiano – outubro de 1896 – um conflito que alimentou ainda mais o interesse pelo

conhecimento do povo, revelando nacionalmente um sertão novo, até então

desconhecido dos brasileiros que viviam nas cidades do litoral e do sul do país.155

O movimento de inspiração religiosa organizado em torno de Antonio

Conselheiro trouxe à tona uma população “formada por índios, caboclos, mulatos,

pretos... sertanejos em geral – expressão humana de indefinidas combinações

multirraciais que não se adequavam aos bem arrumados tipos étnicos que eram

idealizados desde o romantismo”.156 Enviado à Bahia para fazer reportagens sobre a

revolta pelo jornal O Estado de São Paulo, Euclides da Cunha (1866-1909) pôde

testemunhar o seu desfecho. Além de arrefecer seu entusiasmo pela República,

essa experiência lhe estimulou a escrever um vasto trabalho sobre aquela revolta

que veio a ser publicado em 1902 com o título Os Sertões.157

Essa obra também apresentou a emergência de uma nova postura intelectual

em relação à diversidade brasileira. Sua elaboração necessitou do abandono da

coleta de dados de superfície e do mero impulso emotivo, característicos do cronista

ou colecionador romântico.158 Seu autor precisou de método para compreender os

homens que iria investigar, utilizando-se de vocabulário técnico da Etnografia,

Geologia e Climatologia bem como de premissas deterministas.159

154 GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009,p. 24.155 BARROS, José D’Assunção. Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de umaprodução historiográfica. Revista Projeto História. n. 41, dezembro, 2010, p. 460.156 Ibid., lo.cit.157 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p.121-122.158 BARROS, José D’Assunção. Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de umaprodução historiográfica. Revista Projeto História. n. 41, dezembro, 2010, p. 460-461.159 Ibid., 123-125. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação culturalna Primeira República. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 158

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Temos, então, uma geração de intelectuais - como Capistrano -, que, por um

lado, se abrira à ambição do cientificismo, apropriando-se de autores franceses,

ingleses e alemães. Por outro, tinha a diversidade inerente à população brasileira

que impunha a sua consideração como tema central para a compreensão histórica

nacional, atendo-se aos modos como esse povo se organizava em sociedade ao

longo do vasto território do Brasil. Desse modo, no interior das obras de muitos

desses intelectuais havia “uma luta surda” ou um “indelével diálogo entre

generalismo e atenção à diversidade.

Lima Barreto, como vimos, era um leitor e um escritor preocupado com as

formas pelas quais a intelectualidade de seu país representava sua população,

principalmente a parcela dos negros. Assim como Capistrano, trouxe o povo como

personagem principal de sua escrita, analisando a sua natureza, seus modos de

vida e anseios. A crítica de sua época salientou esse viés do trabalho de Lima.

João Ribeiro comentou o romance Numa e Ninfa160 de Lima, publicado

inicialmente em folhetins no jornal A noite do Rio de Janeiro de 1915. Essa

composição serviu para a feitura de um folheto, em páginas de duas colunas com a

data também de 1915, mas que só veio circular somente em 1917 no formato de

livro.161 É deste ano, mais precisamente no dia 7 de maio, nas páginas do O

Imparcial, que o historiador e crítico literário expressa sua visão acerca desse texto

de Lima, classificando-o com “um estudo da vida social e política do nosso

tempo”.162

Ribeiro destacou no romance “o grande número de tipos interessantes,

sempre verdadeiros”. Contudo, um deles, Lucrécio Barba-de-Bode, segundo Ribeiro,

fazia prever em Lima “o futuro autor de um romance de costumes populares”.163

Lucrécio é um personagem secundário, mulato e oriundo das camadas populares

que vivia de suas ações em prol de determinados políticos ligados ao grupo do

protagonista Numa, promovendo desordens e participando dos meetings (uma

160 Nesse romance, Lima narra as artimanhas de um casal da elite brasileira que procura se manterem evidência política e social na capital do país. A esposa do deputado Numa, dona Edgarda,escrevia os discursos que o parlamentar deveria proferir no congresso. Esses fizeram muito sucesso,mesmo Numa não tendo o menor conhecimento sobre o que falava. Edgarda tinha, como grandeparceiro para a criação dos discursos, o seu amante. Numa acaba descobrindo o segredo de suaesposa, mas se faz de desentendido, pois a “parceria” mantinha o status social do casal.161 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 252-253.162 RIBEIRO, João. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa: romance. 2ª ed. São Paulo:Brasiliense, 1961c, p. 10163 Ibid., p. 11.

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espécie de jagunço). A descrição que Lima faz no romance do bairro da Cidade

Nova, no qual habita Lucrécio, é apontada por Ribeiro como um trecho magistral que

demonstra a aguçada visão do autor do cotidiano daquela parcela da população do

Rio de Janeiro.[...] São páginas que definem um escritor; o flirt, as moças janeleiras, o tipodo pianista de danças, o caixeiro da venda, com os tamancos reclamistasque escusam pregão, a eterna faina do “bicho”, esperança e providência edesenganos de todos os dias naquele congênie de gente indecisa, inspirama Lima Barreto alguns de seus melhores trechos.164

A única nota negativa que Ribeiro assinala no trabalho de Lima, comum em

outros de seus textos, é a falta de acabamento, tendo momentos em que “os

personagens desaparecem quase subitamente” como também a carência de uma

maior estilização desses a fim de evitar nomes conhecidos.165 Mas é na coletânea

de contos Histórias e Sonhos que Lima representa mais a diversidade existente no

povo brasileiro, sendo o subúrbio o território ocupado principal de sua formação.

Nessa coletânea, publicada em fins de 1920, Lima trouxe personagens que

narravam sua resistência ao preconceito racial, os modos encontrados para

sobreviver, a sua relação com a religiosidade, suas tristezas e expectativas. Essas

narrativas tinham como protagonistas um velho monarca, crianças e mulheres

negras, famílias brancas suburbanas, homens negros e uma prostituta.

Essa observação de Lima da diversidade populacional chamou atenção de

Leal de Souza da revista Souza Cruz, na qual publicou um texto sobre a coletânea

de Lima em fevereiro de 1921, referindo-se especialmente ao conto “Mágoa que

rala”. Inicialmente, o comentarista afirma que Lima Barreto “é o piedoso amigo dos

humildes” e “o intérprete compassivo das almas nascidas para a delicadeza do

sonho e condenadas pelo egoísmo social, às durezas da vida, entre a ignorância e o

trabalho”.166 Considera também que poucos escritores terão a “tão exata visão das

condições do meio brasileiro” como Lima apresenta nesse trabalho.

O comentarista nota em Lima um olhar privilegiado acerca da “complexidade

de confusos antecedentes históricos em conexão com os fatores contemporâneos”

na sua interpretação da sociedade. Essa “argúcia mental” do literato carioca quanto

à relação das diferentes temporalidades é a qualidade intelectual de Lima, ao lado

164 RIBEIRO, João. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa: romance. 2ª ed. São Paulo:Brasiliense, 1961c, p. 11.165 Ibid., p. 12.166 Apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. In: BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto.Organização: Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 686.

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da ironia, mais destacada ao longo desse texto, publicado na revista Souza Cruz.

Tanto é que, no seu desfecho, Leal de Souza a retoma, apontando em Lima Barreto

competências pertinentes ao ofício do que, na época, considerava-se como de um

historiador dos mais qualificados.Erudito, com sua profunda argúcia de psicólogo, sabe divisar, nas galeriase museus da História, as peculiaridades das velhas almas dos outrostempos, e neste seu livro, as rápidas referências endereçadas a d. João VI,constituem só por si, como retrato moral do grande rei, uma página que valemuitos livros.167

Outros homens de letras também assinalaram esse traço de observador da

psicologia do povo no escritor carioca, o que, pelo que temos notado nesse item da

tese, indica mais uma aproximação de seu trabalho com a abordagem apresentada

por Capistrano em relação ao estudo da formação da população nacional e de

ambos com o anseio intelectual da geração de 1870. Ranulfo Prata (1896-1942),

escritor e médico sergipano que fazia parte do círculo de amizades de Lima e com

quem este passou uma temporada em Mirassol, relatou numa carta a Lima, datada

de 14 de janeiro de 1921 que havia lido Histórias e Sonhos.

Sobre esse texto, Prata asseverou que era “original, e sobretudo interessante”,

o modo pelo qual Lima descreveu “a gente e costumes” do Rio de Janeiro. Prata,

que vivia em São Paulo, confessa que desejaria, se pudesse, tornar-se discípulo de

Barreto e fazer o mesmo tipo de trabalho no seu estado.168 Já Austregésilo de Ataíde

(1898-) manifestou sua opinião numa carta aberta a Lima Barreto, publicada em A

Tribuna da capital federal no dia 18 de janeiro de 1921. Este escritor e jornalista

pernambucano parabeniza Lima pela obra Histórias e Sonhos, escalando-o ao lado

de João do Rio como exceções na cena literária da época por conta de grande

mérito de suas obras.

Leitor de Lima desde Isaías Caminha, Ataíde, ao discorrer sobre o trabalho do

escritor carioca, afirma considera injusta a aproximação “que estão tentando fazer

alguns inconsiderados de sua obra com a de Machado de Assis”. Para Ataíde,

Machado era um “observador de gabinete que disseca lenta e minuciosamente a

alma, deduzindo uma ação de outra ação, como que os caracteres dos indivíduos se

167 Apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. In: BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto.Organização: Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 686-687.168 BARRETO, Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c (Tomo II), p.245.

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contivessem em fórmulas matemáticas, de uma precisão infalível, como as leis da

física”. Bem diferente seria o trabalho de Lima na sua visão.169

Para o jornalista, Lima difere “com superioridade do Machado grandioso” por

apresentar na sua escrita “o estado psicológico atual, que a sabedoria popular

consagrou no aforismo a ocasião faz o ladrão”. As criações barretianas, segundo

Ataíde, “trazem todas as lacunas da vida”, sendo os seus personagens “variáveis,

incertos, humanos, ilógicos”, o que, consequentemente, traduz, “com perfeição, o

caleidoscópio da existência [...]”.170 O historiador paranaense Rocha Pombo (1857-

1933) seguiu também essa linha de raciocínio que aponta em Lima um escritor que

conseguia representar na sua literatura a psicologia do povo.

Em carta destinada a Lima, datada de 14 de janeiro de 1921, Pombo

agradeceu ao literato pelo envio da obra História e Sonhos na qual identificou ainda

mais “as altas qualidades de notável escritor [...]” Contudo, o que julgou como mais

extraordinário nesse trabalho foi “a sua capacidade de psicólogo, o seu poder de

análise; a sua profunda intuição das coisas”.171

Vamos enveredar por alguns contos de Histórias e Sonhos, então, e veremos

como esse trabalho barretiano nos levou a compreender maiores afinidades com o

historiador Capistrano. Logo no primeiro conto, intitulado “O moleque”, o narrador

utiliza como referência para justificar a necessidade de conservar os nomes tupis de

certos lugares no Brasil a obra Geografia Universal de Reclus (1830-1905). Esses

nomes expressavam um sentido muito claro para os acidentes naturais e a

vegetação, traduzindo “a forma ou o encanto” de lugares do Rio de Janeiro.172

Além disso, esses “nomes tupis, nos acidentes naturais das cercanias da

cidade,” são apontados como “os documentos mais antigos que ela possui das vidas

que aqui floresceram e morreram”. O narrador salienta que a cidade foi edificada

num terreno considerado “o mais antigo do globo, mas que, “até hoje, não se

encontram vestígios quaisquer da vida pré-histórica”. Com isso, endossa a

necessidade de conservação daqueles nomes enquanto vestígios “das existências

anteriores à nossa”.173 Entretanto, destaca também que existe no Brasil “uma

169 BARRETO, Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c (Tomo II, p.253.170 Ibid., p. 254.171 Ibid., p. 259-260.172 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 36.173 Ibid., p. 36-37.

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necessidade de não conservar impressões das sucessivas camadas de vida que

aqui se desenvolveram e desapareceram.Estes nomes tupaicos mesmo tendem a desaparecer e todos sabem, que,quando uma turma de trabalhadores, em escavações de qualquer natureza,encontra uma igaçaba, logo se apressam em parti-la, em destruí-la comocoisa demoníaca ou indigna de ficar entre os de hoje. A pobre talhamortuária dos tamoios é sacrificada impiedosamente.Frágeis eram os artefatos dos índios e todas as outras obras; frágeis sãotambém as nossas de hoje, tanto assim que os mais antigos monumentosdo Rio são de século e meio; e a cidade vai já para o caminho dosquatrocentos anos.174

Nesses trechos, Lima esclarece seus leitores acerca da ocupação por certa

etnia de indígenas da área que depois viria a ser a cidade do Rio de Janeiro, após a

chegada dos europeus. Uma abordagem que se aproximava da proposta

historiográfica de Capistrano na qual a história da ocupação faz parte da

compreensão da formação nacional. O autor utilizado como referência por Lima

apresenta também afinidades teóricas com os geógrafos norteadores do

pensamento de Capistrano.

O geógrafo anarquista Jean Jacques Élisée Reclus teve forte influência dos

fundadores da geografia científica Humboldt e Ritter na construção de sua visão

acerca das relações entre o homem e a natureza. O pensamento desses dois

geógrafos ressoou também profundamente em Ratzel e Vidal de La Blache. Como

vimos em linhas anteriores, dentre as leituras germânicas que impactaram

Capistrano na elaboração de sua perspectiva analíticas dos fatos do passado,

Humboldt e Ratzel se destacavam como referências comuns ao autor francês citado

por Lima.175

Desse modo, Reclus incorporou ao seu pensamento geográfico, a partir da

influência de Ritter do qual Ratzel era também discípulo, a perspectiva antropológica

e social, sendo a relação dinâmica empreendida pelos grupos humanos na alteração

da natureza um dos fundamentos de suas principais obras, como a citada Geografia

Universal. Essa relação dinâmica entre homem e natureza, aliás, é uma das bases

da historiografia capistraneana. Mas as aproximações entre Lima e Capistrano,

presentes no conto em destaque, vão além de usos de referenciais.

174 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 37.175 CIRQUEIRA, José Vandério. Élisée Reclus e a excentricidade de sua geografia anarquista. TerraBrasilis (Nova Série) [online]. 2016, n. 7. ISSN: 2316-7793, p. 5. Disponível em:http://terrabrasilis.revues.org/1787. Acesso em: 15 out. 2018 às 10:03.

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Lima apresenta uma preocupação com o apagamento de rastros dos

indígenas, grupo que teve anos de atenção do historiador cearense, levando-o a

publicar trabalhos sobre as suas línguas e costumes. Capistrano desenvolveu

estudos etnográficos sobre os índios baicaris e kaxinawás que não tiveram uma

devida recepção por parte do IHGB, o que, segundo Amed, configura mais um

momento do deslocamento do historiador em relação ao ambiente intelectual da

época.176 Para esses trabalhos, Capistrano contou com o apoio da rede internacional

que fazia parte, como a comunidade internacional do sul americanistas, dedicada ao

estudo das línguas e culturas indígenas da América do Sul.

Esses estudos tiveram como resultado a publicação, ainda na Revista

Brasileira de 1895 do texto sobre a cosmologia e língua dos baicaris – este fazia

parte da Limana, inclusive – e do Rã-txa h uni-ku-i. A língua dos Caxinauás do rio

Ibuaçu, affluente do Muru no ano de 1914. O historiador cearense via a influência do

indígena sobre a formação do povo brasileiro como maior que a do negro,

apresentando uma concepção indianista para a história brasileira, mas distanciada

da visão romântica. Capistrano acreditava que os indígenas poderiam desaparecer,

sendo, portanto, de grande importância o seu estudo.177 Uma preocupação que se

denota naquele conto de Lima que acima destacamos.

Lima chegou a considerar os vestígios lingüísticos da etnia tupi no Rio de

Janeiro como documentos que atestavam sua presença na formação dessa cidade.

A tentativa desesperada de Policarpo Quaresma em tornar uma língua indígena

como a oficial do Brasil talvez possa ser interpretada como outra via encontrada por

Barreto para aludir à necessidade de preservação da presença dos índios na

formação da nação, a qual corria o risco de desaparecer. Algo que se afina com o

pensamento de Capistrano, levando este, assim como Lima, a sinalizar práticas que

visavam destruir os rastros dessa presença.

Em Capítulos de História Colonial, Capistrano, ao fazer referências a

aspectos culturais dos índios, especificamente de suas lendas, afirma que pouco se

sabe em virtude da atuação dos representantes da Igreja Católica: “um dos

primeiros cuidados dos missionários consistia e ainda consiste ainda em apagá-las e

176 AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida literária na belleépoque carioca. São Paulo: Alameda, 2006, p. 154.177 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 60.

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substituí-las”.178 A percepção da continuidade no presente desse apagamento dos

rastros dos indígenas também está no texto barretiano “O moleque”. Vimos que

Lima se refere à forma como se desfaziam de um objeto pertencente à cultura

material dos indígenas durante as escavações realizadas em sua época, na qual o

clima de modernização da cidade dava à tônica das destruições de vários locais que

se remetiam ao passado do Rio de Janeiro.

Em linhas seguintes, o narrador faz outro registro dessa prática de

apagamento de vestígios indígenas na cidade. Assinala que o subúrbio de Inhaúma

ainda era um “dos poucos lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome

caboclo, zombando dos esforços dos edis para apagá-lo”.179 A partir disso, o

narrador empreende uma descrição e análise etnológicas da população desse

subúrbio que, em muitos aspectos, assemelha-se com a realizada por Capistrano

nos Capítulos. O primeiro traço cultural que destaca se refere aos costumes

religiosos.[...] Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas defeitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois não pode admitir nasnossas almas depósitos de crenças ancestrais. O espiritismo se mistura aeles e a sua difusão é pasmosa. A igreja católica unicamente não satisfaz onosso povo humilde. É quase abstrata para ele, teórica. Da divindade, nãodá [...] sinal palpável, tangível de que está presente. [...] mas o médium, ofeiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus transes, recebem,entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da Terra, estãomais perto de Deus e participam um pouco de sua eterna e imensasabedoria.180

O narrador ainda destaca que esse “amálgama de crenças desencontradas”

atrai “gente de todas as matizes e raças”. Essa atração está relacionada à busca por

essa população diversa do atendimento de suas “necessidades presentes na sua

pobreza, nos seus embates morais e dos familiares”. O texto barretiano procura

evidenciar como as crenças do povo vão se conformando em virtude de seu

cotidiano no qual traços culturais distintos são apropriados e misturados. Esse

aspecto, segundo o narrador, precisa ser mais estudado.181

Capistrano, embora não se atenha à diversidade de crenças religiosas como

Lima, também aborda a religiosidade e sua relação com o cotidiano da população

colonial. Na zona mineradora, esse historiador aponta que a freqüência das

178 ABREU, João Honório Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília:Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira), p. 22.179 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 38.180 Ibid., p. 39.181 Ibid., loc.cit.

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festividades religiosas é compreendida pelo fato que, ao lado da grande quantidade

de sacerdotes e de irmandades, havia “o gosto geral pela música, a proximidade dos

povoados nos distritos em que primeiro se extraiu o metal amarelo, os numerosos

vadios sustentados pela hospitalidade e indiferença indígenas, a falta de

divertimentos públicos”182. As necessidades e aspectos sociais daquela população,

portanto, fomentavam tais festividades, as quais são apresentadas por Capistrano

em suas peculiaridades.

“Sobressaíam as procissões pelo grande luxo, pelo número de figuras

simbólicas, por um certo aparato teatral e jogralesco”. Já no “extremo Goiás, em

Traíras”, havia uma festa conduzida por negros em homenagem a sua padroeira,

Santa Ifigênia, feita “com todas as suas visualidades: imperador, imperatriz, tiros de

roqueira, dutos aos imperantes, cavalhadas, lanças, leilão etc”.183

Retornando ao conto de Lima, percebemos que, nas linhas seguintes à

descrição das crenças religiosas, a atenção do narrador se volta para o tipo

específico de moradia de alguns habitantes do subúrbio de Inhaúma: o “barracão”.

Este é descrito de modo comparativo a outras moradias características do interior do

país a fim de marcar bem suas especificidades. A primeira comparação é com a

“choupana de sapê e de paredes de sopapos”.184

O barracão em relação a essa “é menor, com muito menos acomodações”,

mas a sua “cobertura é mais civilizada; é de zinco ou de telhas”. Há duas espécies

de barracão: uma com paredes de tábuas, “às vezes verdadeiramente de tábuas”, e

outra com pedaços de caixões. Já a segunda comparação que realiza é com o

“rancho roceiro”. A espécie de barracão que mais se aproxima desse é o que possui

as paredes de taipa, sendo este mais baixo e não muito visível aos olhos dos

transeuntes por conta da “vegetação das bordas das ruas e caminhos”.185

A partir disso, o narrador descreve os seus aposentos e a relação dos

habitantes com o espaço físico ao seu redor. Sobre isso, afirma que tudo é “cercado

do mais desolador abandono”.Se o morador cria galinhas, elas vivem soltas, dormem nas árvores,misturam-se com as dos vizinhos e, por isso, provocam rixas violentas entreas mulheres e maridos, quando disputam a posse dos ovos.

182 ABREU, João Honório Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília:Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira), p. 207.183 Ibid., loc.cit.184 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 40.185 Ibid., loc.cit.

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Por vezes, no fundo, na frente ou aos lados deles, há uma árvore de maisvulto: um cajueiro, um mamoeiro, uma pitangueira, uma jaqueira, umalaranjeira; mas nenhum sinal de amanho do terreno, de tentativa de cultura,a não ser um canteirozinho com uns pés de manjericão ou alecrim. Isto àsvezes; e, às vezes também, uma touceira de bananeira.186

Nessa descrição, percebemos o empenho do autor em representar a

interação entre os habitantes do subúrbio e o meio a sua volta. Lima, ao resgatar

nesse texto determinados aspectos da condição material de vida dos suburbanos –

a construção de um tipo de moradia e um pouco de cultivo da terra para alimentação

-, segue, de certa forma, algumas ideias do geógrafo que ele mesmo citou acima.

Fica evidente na narrativa a ação cultural do homem, principalmente quanto à

edificação do barracão, sobre a natureza.

Para essa atividade, utiliza-se da técnica da taipa em alguns tipos de

barracão, a qual consiste no entrelaçamento de madeiras verticais fixadas no solo,

dando origem a um painel perfurado que, em seguida, tem os vãos preenchidos com

barro, formando as paredes do barracão. Além disso, existe o reaproveitamento de

materiais que faziam parte de outros objetos, como os caixões para a composição

das paredes. Daí o narrador frisar que o barracão constitui uma “espécie

arquitetônica” específica daquelas “paragens da cidade”,187 sinalizando a condição

social de seus moradores.

Essa forma de narrativa se aproxima da realizada por Capistrano quando este,

orientando-se pelas ideias antropogeográficas de Ratzel, considera “como

fundamental o meio e as maneiras como o ser humano interage com ele, para

explicar as especificidades de uma dada sociedade”.188 Em Capítulos de História

Colonial, essa preocupação com as condições materiais de vida da população no

Brasil ao longo de três séculos de colonização se manifesta em diversos momentos.

Como exemplo, podemos apontar a descrição, realizada no capítulo IX dessa obra

cujo título é “O sertão”, da forma como os primeiros ocupantes do sertão utilizavam o

couro no seu cotidiano.[...] Pode-se apanhar muitos fatos da vida daqueles sertanejos dizendo queatravessaram a época do couro. De couro era a porta das cabanas, o rudeleito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de courostodas cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar

186 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 41.187 Ibid., p. 40.188 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 86.

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comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, [...], aroupa de entrar no mato, [...], em couro pisava-se o tabaco para o nariz.189

Um outra aproximação entre Capistrano e Lima Barreto que merece destaque

é a forma como lidaram com a discussão acerca do determinismo racial enquanto

critério para a compreensão da formação do povo brasileiro. Lima era veemente

contrário a esse critério e, ao longo de sua trajetória como vimos, denunciou-o como

uma forma equivocada de análise da realidade nacional e sustentáculo cientificista

do racismo no Brasil. Já Capistrano de Abreu não teve essa postura denunciadora

de Lima, mas também não considerou esse determinismo como um critério

pertinente para o estabelecimento do caráter do povo brasileiro.

Ainda em 1876, o jovem Capistrano, recém chegado ao Rio de Janeiro e

embevecido pelo pensamento de autores cientificistas e deterministas, envolveu-se

numa polêmica com o Sílvio Romero acerca daquele caráter. Este, pela obra que

havia acabado de publicar com o título O caráter nacional e as origens do povo

brasileiro, apresentava suas discordâncias em relação ao escritor e político mineiro

José Couto de Magalhães (1837-1889) e ao seu livro O Selvagem, também lançado

naquele ano.190

O polemista Romero propunha a tese de que a miscigenação com o negro

seria o fator que distinguiria o brasileiro do português. A reação de Capistrano a

esse pensamento foi expressa em dois artigos publicados no jornal O Globo nos

dias 21 de janeiro e 9 de março do mesmo ano de 1876, cujos títulos são

homônomos ao trabalho de Romero. O historiador cearense, tendo como referência

as ideias de Buckle extraídas de uma nota de rodapé da obra Civilização da

Inglaterra e utilizadas como epígrafe no primeiro artigo, considerou que a natureza e

a raça são importantes para a formação do “caráter nacional” e da “estrutura da

sociedade, mas não eram os únicos. “[...] Se eles agem sobre a sociedade, a

sociedade reage sobre eles; o meio social de efeito passa a ser a causa; de

resultante passa a ser componente. No Brasil é este justamente o caso, e a

influência esquecida é a mais poderosa e ativa”.191

189 ABREU, João Honório Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília:Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira), p. 135.190 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 108.191 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e Estudos. 4ª série. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1977, p. 4-5.

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Logo nesse início do artigo, Capistrano também se mostra mais seletivo ao

próprio pensamento de sua referência, uma vez que relativiza o determinismo

geográfico do autor inglês e dá um peso maior à ação humana sobre a natureza.

Quanto ao determinismo racial, Capistrano também se serve da documentação

histórica e de outro autor inglês para questionar seu impacto na formação do povo,

embora concordasse com Romero e Martius sobre o caráter eminentemente mestiço

da população brasileira.192

Ao longo de seus artigos, Capistrano argumenta que o indígena teria deixado

uma marca mais visível no caráter nacional. O historiador expõe que Romero

considerava como improvável que “a raça selvagem” pudesse modificar os primeiros

portugueses aqui estabelecidos e seus descendentes bem como a ação da natureza

ainda não tinha tempo suficiente para operar alguma transformação neles.193 Contra

tal perspectiva, Capistrano afirma:Sem dúvida a raça selvagem foi impotente para o trabalho, embora tenhatomado nele uma parte que se não pode definir, nem se pode contestar.Entretanto, o contingente de forças físicas foi maior. O autor disse que, paraa ação da natureza, são necessário muitos séculos. Devia determinar-lhes onúmero. O certo é que, para a ação da natureza, não é necessária umagrande soma de tempo. [...].194

Como exemplo, Capistrano traz o caso dos Estados Unidos, cuja colonização

“é quase um século posterior à nossa”, no qual, segundo estudo “baseado na

biologia”, o organismo ianque já começava a se apresentar diferenciado em parte do

europeu na quarta geração. Diante disso, questiona se o que se verificou na

América do Norte não se reproduziria na América do Sul, acrescentando mais

informações acerca da ação da natureza que fundamentam a sua contestação do

pensamento de Romero.[...] Se a influência ativa pode, - embora se bases – ser contestada, ainfluência passiva é de uma evidência fulminante no Brasil. [...]. As florestasseculares não determinaram um sistema novo de agricultura? As verdadesdas estações não reagiam sob a cultivação! As distâncias, a dificuldade detransportes não reagiam sobre a indústria? Matas, distância, estações, senão me engano, são partes da natureza e sua influência é patente.195

Além desses fatos que apontam a forte influência da natureza no processo de

formação do povo brasileiro, o autor cearense ainda destaca que sua ação é

192 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e Estudos. 4ª série. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1977, p. 7-10.193 Ibid, p. 6.194 Ibid., loc.cit.195 Ibid., p. 7.

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descrita por diversos cronistas do período colonial, tornando-se difícil a explicação

desses fatos “pelo cruzamento com o preto”.

A insistência de Romero em atribuir à raça, no sentido biológico, um papel

preponderante na formação do caráter do brasileiro é, portanto, negado por

Capistrano. Este considera que esse critério “fornece uma explicação empírica e

ilusória do nosso estado social”.196 O historiador cearense não desconsidera a raça

nos seus argumentos, mas, como vimos, vê na relação entre homem e meio um

caminho para melhor compreender o processo histórico da formação do povo

brasileiro.

No primeiro artigo da reedição da discussão com Silvio Romero, publicado na

Gazeta de Notícias de 9 de março de 1880, Capistrano endossa sua argumentação

em favor da relação entre o meio e o homem. Para o autor, o meio, mesmo sendo

“modificável, dentro de certos limites, é ele por sua natureza persistente, pouco

plástico [...]”.197

[...] Ora, a vida segundo a bela definição do grande pensador inglês é umaadaptação das energias íntimas às forças exteriores. Para que a adaptaçãose dê entre dois elementos, um rijo e cristalizado na imobilidade, outroinfluente, amoldável, caracteristicamente plástico, é preciso que o últimoceda. Essa cessão, que constitui o atestado da influência mesológica, é tãonatural que com todo o seu enfatuamento do profeta Maomé já oreconhecera. Pelo menos a tradição atribui-lhe estas palavras: “já que amontanha não quer vir para onde eu estou, vou para onde está a montanha”.A civilização brasileira, sob pena de extermínio, devia pois, adaptar-se aomeio. E que esta ação mesológica foi sentida desde os primeiros tempos, éum fato que pode facilmente provar-se. [...].198

Segundo Ricardo Sousa, Capistrano, mesmo citando Spencer tanto quanto

Romero, defende uma posição contrária ao seu opositor nesse debate sobre o

caráter do povo brasileiro. Enquanto o autor sergipano “tomava a raça como

cristalizada e, por isso, somente possível de mudança depois de longuíssimo espaço

tempo”, o historiador cearense já a pensava como plástica e moldável ao meio.

Desse modo, o indígena, para Capistrano, era o elemento que teve “o papel

fundamental de remir o tempo de adaptabilidade”.199

196 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e Estudos. 4ª série. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1977, p. 18.197 Ibid. p. 157.198 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e Estudos. 3ª série. Rio de Janeiro: SociedadeCapistrano de Abreu; Livraria Briguiet, 1938, p. 157-158.199 SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Capistrano de Abreu: história pátria, cientificismo ecultura – a construção da história e do historiador. Orientadora: Lolerai Brilhante Kury. 2012. 296 f.Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Programa de Pós-Graduação em Históriadas Ciências e da Saúde da Fundação da Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2012,p. 66-67.

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Em 1883, com a tese Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no

século XVI que o levou a ocupar a cadeira de Corografia e História do Brasil do

Imperial Colégio de Pedro II, Capistrano, baseado numa carta de certo Froés ao rei

português D. Manuel, descreveu a interação entre reinóis aqui aportavam e os

indígenas. Por essa descrição, segundo Sousa, “é perceptível que, ao pensar nessa

interação, a perspectiva de Capistrano quanto ao resultado do contato entre aqueles

elementos não estaria restrita à mistura racial, “mas às trocas culturais que se

dariam entre os dois povos”.200

Esse pensamento de Capistrano já aparece de modo bem amadurecido,

como vimos, nos Capítulos de História Colonial. Neste trabalho, além da adaptação

do homem aos limites do meio, vemos a ação humana - cultural – provocando

mudanças nele bem como o empenho do autor em traçar o perfil psicológico dos

sujeitos que formavam o povo brasileiro e suas trocas culturais. Isso justifica a

preferência de Capistrano por crônicas ou relatos de viajantes, uma vez que por

meio delas, ao contrário das fontes oficiais, “seria possível aproximar-se dessa

cultura em construção, descrita por aqueles que passam, os viajantes, e relatam

suas impressões sobre o país, ou aqueles que ficam por toda a vida ou por longo

tempo [...]”.201

Esse olhar voltado para as mudanças culturais ao longo do tempo em

detrimento da análise do processo histórico da formação do povo brasileiro pelo viés

do determinismo racial também se mostra presente na escrita de Lima Barreto. Já

havíamos apresentado no primeiro capítulo desta tese, o modo como Lima se

apropriou do pensamento de Taine, o qual também considerava outros elementos

além da raça para traçar o perfil de um povo. Relembremos ainda que a noção de

raça de Taine estava mais próxima do sentido de cultura.

Para observarmos como isso se deu na escrita barretiana, faremos um

retorno a sua coletânea de contos Histórias e Sonhos. Dessa, vamos enveredar pelo

200 SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Capistrano de Abreu: história pátria, cientificismo ecultura – a construção da história e do historiador. Orientadora: Lolerai Brilhante Kury. 2012. 296 f.Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Programa de Pós-Graduação em Históriadas Ciências e da Saúde da Fundação da Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2012,p. 67.201 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 115.

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conto “Cló”202. Nele são narradas as impressões do personagem doutor Maximiliano

acerca de aspectos culturais que percebia no carnaval carioca. Maximiliano era um

velho professor de música que se encontrava, em plena segunda-feira de carnaval,

bebendo numa confeitaria e pensando como conseguiria dinheiro para sua família.203

Esse dinheiro seria empregado para comprar “bisnagas, confetes,

serpentinas”, pagar o aluguel do automóvel e adquirir o vestido para sua filha

Clódia – a Cló. Durante sua permanência na confeitaria, o velho Maximiliano

observava a folia carnavalesca.O velho doutor Maximiliano não se cansou de observar, um por um, aqueleshomens e aquelas mulheres, homens e mulheres cheios de vícios e aleijõesmorais; e ficou um instante a pensar se a nossa vida total, geral, seriapossível sem os vícios que a estimulavam, embora a degradem também.204

Essa reflexão teve continuidade ao observar como os olhares das “modestas

meninas dos arrabaldes” eram atraídos pela figura de uma prostituta. Maximiliano

começa a perceber que o gosto pelas “músicas lascivas”, “as danças lúbricas” do

carnaval bem como o “culto à toilette e ao perfume” daquela mulher mundana tinham

lugar no seu lar através de sua filha Cló, a qual era uma jovem branca e que

“recebia as lições de piano” na sua própria casa. Sua reflexão é interrompida com a

chegada de seu amigo, o deputado doutor André, que, apesar de casado, nutria um

interesse – correspondido - pela filha do velho professor.

Após a conversa com André, Maximiliano se retira da confeitaria e, no

caminho para sua residência, põe-se a observar novamente o festejo carnavalesco.

Sua atenção estava voltada para os cordões e bandos carnavalescos que

continuavam a passar.[...] Homens e mulheres de todas as cores – os alicerces do país – vestidosde meia, canitares e enduapes de penas multicores, fingindo índios,dançavam na frente, ao som de uma zabumbada africana, tangida com fúriaem instrumentos selvagens, roufenhos, uns, estridentes, outros. As dançastinham luxuriosos requebros de quadris, uns caprichosos trocar de pernas,umas quedas imprevistas.Aqueles fantasiados tinham guardado na memória muscular velhos gestosdos avoengos, mas não mais sabiam coordená-los nem a explicação deles.Eram restos de danças guerreiras ou religiosas dos selvagens de onde amaioria deles provinha, que o tempo e outras influências tinhamtransformado em palhaçadas carnavalescas...Certamente, durante os séculos de escravidão, nas cidades, os seusantepassados só se podiam lembrar daquelas cerimônias de suas aringas

202 Esse conto ainda será retomado no capítulo seguinte ao abordarmos as “outras memórias” dacidade do Rio de Janeiro que Lima buscou representar na sua literatura militante.203 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 71-72.204 Ibid., p. 73.

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ou tabas, pelo carnaval. A tradição passou aos filhos, aos netos e estesestavam ali a observá-la com as inevitáveis deturpações.205

Lima apresenta um narrador e um personagem com uma visão bem

preconceituosa em relação aos aspectos da cultura popular urbana carioca.

Entretanto, ironicamente, esses não só identificam a permanência de traços culturais

de origem africana como destacam seu compartilhamento por diversos grupos

raciais e sociais, representando as trocas culturais que promovem a formação do

povo brasileiro, como fica mais explícito nas linhas seguintes do conto.

Maximiliano ainda critica, enquanto antigo professor de piano, “aquelas

bizarras e bárbaras cantorias”, desejando que “aquela gente entoasse um hino, uma

cantiga, um canto com qualquer nome, mas que tivesse regra e beleza”. Mas o

próprio percebe que não fazia sentido aquele desejo, pois não contemplaria “a

expansão dos [...] sonhos, fantasias e dores” do povo. Ao se aproximar do jardim de

sua casa, ouve um tango tocado no piano por sua esposa, levando-o a mais

reflexões sobre as diversas trocas culturais na sua sociedade.[...] Que paixão punha naquela música inferior!

Lembrou-se então dos “cordões”, dos “ranchos”, das suas cantilenasingênuas e bárbaras, daquele ritmo especial a elas que também perturbavasua mulher e abrasava sua filha. Por que caminho lhes tinha chegado aosangue e à carne aquele gosto, aquele pendor por tais músicas? Comohavia correlação entre elas e as almas daquelas duas mulheres?Não sabia ao certo; mas vinha em toda a sociedade complicadosmovimentos de trocas e influências – trocas de ideias e sentimentos, deinfluências e paixões, de gostos e inclinações.206

Notamos, assim como Capistrano, que Lima enfatiza a cultura e suas

alterações ao longo do tempo como marcas que definem o caráter do povo. Num

dos trechos acima do conto “Cló”, ficou evidente a atenção que Lima devota aos

vestígios da cultura africana e seus descendentes que ainda permaneciam, de certo

modo, nas danças e músicas carnavalescas e sua perpetuação em outros grupos

raciais. E aqui verificamos uma diferença entre Lima e o historiador cearense.

Enquanto o primeiro, como temos acompanhado ao longo de sua trajetória,

procurou inserir o negro na narrativa sobre a formação do povo brasileiro – embora

não tenha desconsiderado os vestígios da presença indígena -, o segundo deu um

maior peso para as influências do elemento indígena. Em relação ao negro, aliás,

Capistrano apresentou uma visão que era predominante na intelectualidade em

relação aos negros. O negro não foi excluído da história capistraneana, mas teve

205 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 79.206 Ibid., 81.

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sua inserção realizada de “maneira irrefletida, sendo tratado a partir de jargões e

estereótipos comuns à historiografia do século XIX”.207

Em Capítulos de História Colonial, ao tratar dos “fatores exóticos”, Capistrano

apresentou aspectos psicológicos e parte da trajetória histórica dos portugueses e

africanos de sua saída de seus locais de origem até algumas mudanças e

adaptações aqui no Brasil. Quanto ao negro africano, o historiador afirma que,

devido a “sua organização robusta”, apresentava uma resistência maior que o

indígena para “as rudes labutas”.

Ao apreciar cada raça, repete estereótipos comuns à época, indicando o

português como “taciturno”, o índio como “sorumbático” e o negro como “alegre”.

Para justificar essa alegria trazida pelos negros, Capistrano indica os seguintes

traços culturais desse grupo racial: “As suas danças lascivas, toleradas a princípio,

tornaram-se instituição nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se fora das

senzalas. As mulatas encontraram apreciadores de seus desgarres e foram

verdadeiras rainhas [...]”.208

Notamos que a visão depreciativa do personagem barretiano Maximiliano vai

ao encontro da apresentada por Capistrano em relação à dança com influência

africana. Um outro aspecto desse trecho de Capítulos merecedor de destaque é a

representação da mulher afrodescendente como, assim como as danças, lascivas e

propensas a satisfação sexual, estereótipo tão combatido por Lima Barreto,

principalmente no seu romance Clara dos Anjos. Como nota comum entre ambos,

podemos sinalizar a perpetuação da religiosidade de matriz africana que, como

vimos ainda no conto “O moleque”, Lima fez questão de representar a sua recepção

por diferentes segmentos sociais e raciais.

Já no capítulo “O sertão”, Capistrano deixa mais claro ainda seu

posicionamento de não dar maior atenção ao negro na sua história. Enquanto

coloca-se ao lado do indígena contra o bandeirante, Capistrano, quando se refere à

resistência negra em relação aos colonos, faz uma citação curta acerca do quilombo

dos Palmares, salientando a participação dos paulistas no devassamento do sertão,

207 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 122.

208 ABREU, João Honório Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília:Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira), p. 30.

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o qual foi fundamental na derrocada final daquele quilombo. Em relação à atuação

dos bandeirantes frente aos indígenas, Capistrano denuncia como violenta,

questionando se compensaria os horrores a que foram submetidos os indígenas os

favores que os bandeirantes realizaram para a nação quanto à conquista de mais

territórios.209

Para o fim do quilombo, o tom já era outro. A ação bandeirante é, de certo

modo, elogiada, pois segundo Capistrano, “ficou livre todo o território entre as matas

do cabo de Santo Agostinho e Porto Calvo” após a “debelação dos Palmares [...] que

já existia antes da invasão flamenga e zombara de numerosas e repetidas tropas

contra ele mandadas”.210 Em nenhum momento, portanto, o autor comenta acerca

da violência contra os quilombolas e muitas de suas mortes. O que prevalece ao

longo do seu texto quanto ao negro é sua utilização como mão de obra e símbolo de

prosperidade para quem o possuía.

À parte esse distanciamento entre Lima e Capistrano, podemos ainda

perceber que apresentam em comum uma visão contrária a uma suposta harmonia

e colaboração pacífica das três raças (branca, negra e indígena). Segundo Falcon,

Capistrano foi um dos primeiros intelectuais de sua geração a relativizar aquela

harmonia, detendo-se “nos inúmeros conflitos entre portugueses e etnias indígenas,

nas múltiplas formas assumidas pela exploração do trabalho negro e indígena, na

resistência dos grupos explorados”.211 Na sua dissertação sobre Capistrano, Morais

corrobora o pensamento de Falcon, salientando que o historiador cearense indica “a

existência de uma forte divisão hierárquica, em camadas, claramente favorável aos

opulentos senhores, desde os primórdios da colonização”.212

A obra de Lima Barreto também é marcada pela denúncia dos conflitos entre

os diversos grupos sociais, principalmente quando envolve o racismo. Ao

retomarmos aquele conto “O moleque”, após o narrador destacar as formas da

habitação e religiosidade no subúrbio de Inhaúma, sua atenção se volta para a

209 ABREU, João Honório Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília:Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira), p. 109-114.210 Ibid., p. 114.211 FALCON, Francisco José Calazans. Capistrano de Abreu e a historiografia cientificista: entre opositivismo e o cientificismo. In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das [et.al.] (org.). Estudos dehistoriografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 158.212 MORAIS, Alexandre Magno de. A historiografia na rede: Capistrano de Abreu e a construção damoderna historiografia brasileira. Orientador: José Carlos Reis. 2010. 196 f. Dissertação (Mestradoem História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, 2010, p. 96.

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experiência do filho da preta Felismina, o Zeca. Este, “certo dia, em começo do ano,

[...] chegou na casa do velho “seu Castro, o coronel, empregado aposentado da

alfândega” com “a fisionomia um tanto transtornada”.213

Após a promessa do coronel de presenteá-lo com uma fantasia de diabinho

para o carnaval, Zeca lhe contou o que lhe deixava magoado que só será revelado

pelo narrador no fim do conto. Quando Zeca chega na sua casa com a tal fantasia, a

sua mãe logo questiona como ele havia conseguindo, temendo que tivesse sido

roubada. Zeca explica quem lhe deu e para que finalidade.- Não lhe contei que há meses, diversas vezes, quando passava, para ir àcasa de Dona Ludovina, diante do portão do Capitão Albuquerque, osmeninos gritavam: “ó moleque! – ó moleque! – ó negro! – ó gibi!” Não lhecontei?- Contou-me e daí?- Por isso quando o coronel me prometeu a fantasia, eu aceitei.- Quem tem uma coisa com a outra?

- Queria amanhã passar por lá e meter medo aos meninos que me vaiaram.214

De uma maneira mais dramática, outras situações de racismo são

representadas por Lima em produções maiores como no romance Clara dos Anjos

no qual uma jovem negra é seduzida e abandonada em seguida por um homem

branco e, especialmente, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, como

veremos no capítulo seguinte.

Uma última semelhança que observamos, nessa análise comparativa entre os

trabalhos de Lima e Capistrano, se refere ao modo como se apropriaram do

pensamento de Taine acerca da função social da literatura bem como percebiam a

relação dela com a história. O autor francês acreditava que não somente a literatura,

mas a arte em geral, bem como a religião, a filosofia, a legislação e outras

expressões sociais se configuravam como indícios pelos quais poderia ser

constituída, ainda que de forma incompleta, a alma humana.215

Taine buscava penetrar no caráter do povo, fazendo uma análise psicológica.

Como vimos no primeiro capítulo desta tese, Taine considerava três fatores como os

motores para realizar aquela análise: a raça, o meio e o momento. Este último seria

o resultado da interação dos dois primeiros num determinado espaço temporal.

213 BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956d, p. 48-49.214 Ibid., p. 50.215 SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Capistrano de Abreu: história pátria, cientificismo ecultura – a construção da história e do historiador. Orientadora: Lolerai Brilhante Kury. 2012. 296 f.Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Programa de Pós-Graduação em Históriadas Ciências e da Saúde da Fundação da Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2012,p. 45.

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A análise do “momento” daria a percepção de que o passado guarda em sisentimentos e valores próprios de seu tempo, os quais o historiador procuraapreender em sua investigação. O “momento” seria, portanto, o componenteque atribui dinamismo ao processo. [...]Cada povo, portanto, teria suas características próprias adquiridas pelainteração das três forças motoras. Sua história seria o resultado dessaequação aplicando à circunstância do presente. A literatura seria um indíciopelo qual o historiador penetraria na alma de um povo de forma a desvendara interação de tais forças, o que daria também a possibilidade de antever,em alguma medida, o devir.216

Esse pensamento de Taine teve uma forte influência no jovem Capistrano da

década de 1870. O objeto de seus estudos históricos era, basicamente, a literatura,

os contos populares, música e arte em geral. Nessa época, Capistrano via a

literatura como expressão da sociedade. “Só pode compreender esta que estudou

aquela e vice-versa”.217 A literatura, portanto, era uma fonte para Capistrano chegar

a conclusões sobre o passado nacional.

Na retomada daquela polêmica com Sílvio Romero, Capistrano ainda dá

mostras de como Taine o influenciava. Sobre a crítica que Romero fez ao indianismo

e ao se representante José de Alencar, o qual tinha grande relação de amizade com

o historiador cearense218, Capistrano assim o rebateu nas páginas da Gazeta de

Notícias, sob o título “História Pátria”, em 1880:Ele achou, quando começou a escrever, o indianismo como escola literária.Estudando-a nesta qualidade, em breve descobriu o que havia deinsuficiente e estreito nos seus princípios e condenou-o. Depois por umatransição insensível, envolveu na mesma condenação a teoria literária e ofato sociológico. Segundo o ditado alemão, quis despejar a banheira edeitou fora também quem se banhava.219

Desse modo, o historiador argumenta que, a despeito das fragilidades do

indianismo como escola literária, cabia a sua observação como fato sociológico.

Segundo Capistrano, o indianismo poderia ser visto como representação de um

sentimento de superioridade do brasileiro em reação ao português,220 sendo que

216 SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Capistrano de Abreu: história pátria, cientificismo ecultura – a construção da história e do historiador. Orientadora: Lolerai Brilhante Kury. 2012. 296 f.Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Programa de Pós-Graduação em Históriadas Ciências e da Saúde da Fundação da Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2012,p. 48.217 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e estudos. 1ª série. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira; Brasília: INL, 1975, p. 3218 José de Alencar contribuiu para a vinda de Capistrano ao Rio de Janeiro, sendo que o conheceuem sua ultima viagem ao Ceará em 1874. Capistrano havia lhe auxiliado nas pesquisas folclóricasque então desenvolvia.219 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e Estudos. 3ª série. Rio de Janeiro: SociedadeCapistrano de Abreu; Livraria Briguiet, 1938, p. 173.220 Ibid., p. 176-177.

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essa perspectiva se aproxima daquele pensamento de Taine referente à literatura

como indício para compreensão do social.

Com o passar dos anos, Capistrano vai se distanciando do cientificismo,

apresentando um interesse maior pela documentação histórica e relativizando as

máximas de autores nos quais buscava fundamentar seus estudos na juventude.

Isso não implica dizer que Capistrano começou a desconsiderar a literatura como

indício para compreensão do passado, mas deu sinais que passaria a tratar de tal

questão de forma menos radical do que o autor francês Taine.

Em 1881, ao analisar a obra de Camões, Capistrano realiza uma

interpretação da literatura mais calcada na vida pessoal do autor português,

especulando acerca da psicologia desse sujeito individual ao contrário do que faria

se tomasse como base a proposta de Taine em buscar o perfil psicológico de toda

uma nação.221 Contudo, podemos destacar a continuidade da preocupação de

Capistrano pelas manifestações culturais, às quais se apóia na sua leitura

interpretativa da documentação histórica. Nos seus estudos das línguas indígenas, o

autor cearense procura compreender a concepção de mundo dos bacaeris e

caxinauás por meio de suas respectivas mitologias.

Ricardo Sousa, em estudo já citado, considera que, “embora a perspectiva de

Taine se encontre subsumida no referencial teórico do Capistrano maduro de 1895

[publicou o estudo sobre bacaeris na Revista Brasileira], quando tinha quarenta e

dois anos, ou ainda em 1909, quando iniciou seus estudos da língua dos caxinauás”,

a convicção de que a expressão cultural de um povo deve ser considerada na

compreensão do que se passa no âmago de uma dada sociedade ainda permanece

no seu pensamento. O próprio Capítulos, publicado entre esses dois estudos sobre

línguas indígenas, traz manifestações artísticas do povo como as danças222 e

literatura como indício para esclarecer determinados momentos da história colonial

do Brasil.

Como exemplo, destacamos o momento dessa obra em que Capistrano

descreve as diferenciações e tensões entre os brasileiros e portugueses. O autor

apresenta o trabalho literário de Gregório de Matos como expressão desse aspecto

221 ABREU, João Honório Capistrano de. Ensaios e estudos. 1ª série. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira; Brasília: INL, 1975, p. 114.222 Id. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal,1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira), p. 217.

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da sociedade colonial.223 Por essas características dos estudos de Capistrano,

podemos perceber como a sua perspectiva acerca da relação entre literatura,

sociedade e história era próxima da elaborada por Lima Barreto.

Esse pensou a literatura como uma forma de produzir conhecimento sobre a

realidade, não deixando de, muitas vezes, utilizar-se da história para trazer a seus

leitores aspectos da sociedade reveladores das desigualdades entre as suas

camadas bem como isso se refletia na forma de rememorar o passado nacional.

Como vimos, naquele texto sobre o destino da literatura, Lima via o “fenômeno

artístico” como social, “para dizer sociológico”. A obra literária, nesse sentido,

deveria aludir “às questões de nossa conduta na vida”, salientando que o poder da

arte literária era transformar “a ideia, o preceito, a regra em sentimento; e, mais do

isso, torná-lo assimilável à memória [...]”.

Nessa produção literária, assim como Capistrano, Lima teve na obra de Taine

uma de suas referências, principalmente no tocante a sua perspectiva da literatura

como sinalizadora da psicologia de um povo e de uma situação histórica. Há de se

assinalar também que esses dois escritores brasileiros, pelo que apresentamos

nessa análise comparativa, apresentam, em comum à Taine, a aproximação do

termo raça ao de cultura.224

Diante da observação desse diálogo de Lima com os historiadores brasileiros,

notamos, que sua literatura comungou com a abordagem de João Ribeiro e

Capistrano de deslocar a narrativa dos fatos administrativos e políticos para o povo.

Entretanto, Lima, nesse olhar para o povo, fez questão de apontar a marginalização

do negro. Além disso, algo que ficou evidente foi a preocupação de Lima quanto à

interpretação dos documentos, questão tão bem defendida pelo historiador

Capistrano.

Reunidas essas informações sobre como Lima se interessava pelas

discussões que envolviam diversos intelectuais em torno da representação do

passado nacional, partiremos para o último capítulo desta tese com o intuito de

assinalar e discutir a sua apropriação da representação do passado com vistas a

223 ABREU, João Honório Capistrano de. Capítulos de História Colonial:1500-1800. Brasília:Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira, p. 155-156.224 Apresentamos uma análise desse aspecto de Taine no item 1.3.2. Cf. TODOROV, Tzvetan. Nós eos outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Tradução: Sérgio Goes de Paula. Vol. 1.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 166.

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atualizá-lo, salvando do esquecimento aquilo que a memória do vencedor, tornada

coletiva, silenciava.

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CAPÍTULO 4 AS RECORDAÇÕES IMPERTINENTES DE LIMA BARRETO

Se o preto de alma branca pra você

É o exemplo da dignidade

Não nos ajuda, só nos faz sofrer

Nem resgata nossa identidade

[...]

Quem cede a vez não quer vitória

Somos herança da memória

Temos a cor da noite

Filhos de todo açoite

Fato real de nossa história1

(ARAGÃO, 1992)

Paul Ricoeur afirma que “lembrar-se” não se constitui apenas como um ato de

“acolher, receber uma imagem do passado”. O “lembrar-se” também comporta a

busca dessa imagem, “faz alguma coisa”. Com o substantivo “lembrança” o verbo

“lembrar-se” forma um par, sinalizando que a memória é “exercitada”.2

Esse pensamento do filósofo francês e as considerações que já destacamos

do diálogo entre Lima Barreto e a cultura histórica de sua época, nos conduziram ao

questionamento de como esse autor representa em seus trabalhos formas de

exercitar a memória histórica que circulavam na sociedade em que atuava. Para tal,

organizamos este capítulo em três momentos. No primeiro, discutiremos, a partir do

seu romance de estreia Recordações do escrivão Isaías Caminha, lacunas na

memória histórica oficial. Esse romance servirá de fonte que impulsionará nossa

investigação, em outros textos barretianos, de sinalizações de certos

acontecimentos da história do país que, se considerados na constituição daquela

memória, levariam à desconstrução da imagem de uma nação brasileira harmônica,

algo almejado pelo Estado e determinados intelectuais.

1 Trechos da canção “Identidade” de autoria do sambista Jorge Aragão, a qual faz parte de seu álbumChorando estrelas, lançado no ano de 1992.2 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François [et al.].Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 71.

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Já no segundo momento, voltaremos nossa atenção para processos de

rememoração criados por Barreto que envolvem momentos da história

contemporânea brasileira e o passado da cidade do Rio de Janeiro, palco principal

da República e local com o qual o autor se identificava. O objetivo é analisar os

embates entre Lima e algumas formas de rememoração promovidas por intelectuais

acerca da Proclamação da República e dos conflitos nesse recente regime assim

como pelas administrações federal e municipal que estavam relacionadas ao

processo de modernização do espaço urbano do Rio de Janeiro. Com isso,

tentaremos observar como o autor carioca percebia as seleções operadas na

rememoração do passado nacional e as implicações de seus sentidos.

O último momento terá como fio condutor a identificação e a compreensão

dos recursos que Lima utilizou para, por meio de sua escrita, sinalizar possibilidades

de socialização da memória de grupos marginalizados e silenciados, especialmente

a dos negros.

Este capítulo, portanto, dentro do conjunto deste trabalho, objetiva permitir ao

leitor a percepção das narrativas alternativas que Lima criou para se defrontar e

apontar possíveis mudanças na cultura histórica de sua época. Se, nos capítulos

anteriores, procuramos esclarecer a formação do pensamento barretiano e suas

principais críticas às formas como determinados sujeitos lidavam com o passado, já

neste, visamos evidenciar as suas práticas narrativas de uma forma mais

aprofundada. Essas serão vistas como constituintes de seus horizontes de

expectativa em relação às modificações viáveis nas formas de representar a história

nacional.

4.1 Lacunas de nossa história

O primeiro romance publicado de Lima Barreto, como vimos na análise do seu

prefácio ao abordarmos a relação do autor com a teorias racialistas no primeiro

capítulo (item 1.3.2), tem um caráter de denúncia do preconceito e discriminação

racial. Recordações do escrivão Isaías Caminha chega ao público brasileiro em

1909, depois de ser editado no exterior pelo português A. M. Teixeira da Livraria

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Clássica, de Lisboa.1 A opção por um editor estrangeiro se deveu às poucas

condições que eram percebidas pelo autor para publicação no mercado editorial

brasileiro, marcado pela falta de abertura para escritores novatos.

Lima já havia, por meio do terceiro número da sua revista Floreal, publicado

os dois primeiros capítulos do Recordações, despertando a atenção do reconhecido

crítico literário José Veríssimo. Contudo, após o lançamento do texto integral, a

recepção não foi satisfatória. Para que possamos compreender o conteúdo das

apreciações que a obra recebeu bem como as motivações de Lima em escolhê-la

como seu livro de estreia – já tinha escrito quase todo o Gonzaga de Sá em 19072 –

vale apresentarmos, em linhas gerais, o enredo desse romance.

O seu personagem principal e narrador é um jovem mulato e letrado que sai

do interior para a cidade do Rio de Janeiro com a intenção de realizar seu sonho de

se tornar doutor. A sua trajetória nessa cidade é marcada por grandes dificuldades

financeiras, preconceitos racial e social que o levaram a várias frustrações e à

desistência de seu sonho. Nesse percurso, ele vivencia as contradições de uma

cidade que assumia aspectos cada vez mais arrivistas e cosmopolitas, indo trabalhar

como contínuo num grande órgão da imprensa da época, O Globo, numa clara

alusão ao jornal Correio da Manhã, propriedade de Edmund Bittencourt e periódico

melhor organizado segundo os moldes modernos de início do século XX.

Lima Barreto, através de uma linguagem simples e direta, construiu uma

narrativa composta de caricaturas representativas de sujeitos da imprensa moderna

e versões sobre acontecimentos de grande repercussão, ocorridos durante o

mandato do presidente Rodrigues Alves (1902-1906). Dentre esses, podemos

destacar a Revolta da Vacina, transfigurada no romance pelo motim em virtude da

lei que obrigava o uso de sapatos na cidade, e os empréstimos para a realização da

reforma urbana na capital federal.3

A partir das recordações de Isaías, Lima realizou uma denúncia da

manipulação pela imprensa e de sua seleção dos autores e políticos que deveriam

ser prestigiados. Além disso, aprofundou suas críticas em relação à escrita utilizada

pelos autores na imprensa bem como aos assuntos que primavam pelo

sensacionalismo e superficialidade. Ao realizar isso, na sua narrativa, Lima abordou

1 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 163-171.2 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 125.3 Id. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?], p. 181.

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situações que ele mesmo havia vivenciado nas redações pelas quais passou e que

dificultaram sua inserção no mundo das letras.

Diante de tal narrativa, a imprensa de um modo geral silenciou quanto ao seu

lançamento, embora o romance fosse bem vendido, levando o autor a pedir ao editor

português Teixeira a publicação de uma segunda edição. As poucas críticas que

vieram a público tocavam praticamente nos mesmos pontos: o excesso de

personalismo, o descaso com a linguagem e o tom caricatural.4 O primeiro a se

manifestar sobre o trabalho de Lima foi Medeiros e Albuquerque.

Com o pseudônimo de J. Santos, Medeiros e Alburquerque reconheceu as

qualidades de romancista de Barreto na “Crônica literária” do A Notícia de 15 de

dezembro de 1909. Contudo, lamenta “as alusões pessoais”, a “descrição de

pessoas conhecidas, pintadas de um modo deprimente”. O crítico arrematou sua

apreciação afirmando que a obra de Lima era um mau romance, porque “é a arte

inferior dos romans à clef”5, e um mau panfleto, uma vez que não apresentava a

coragem do ataque direto.6

Lima reagiu a essa primeira crítica por meio de uma carta enviada a Medeiros,

datada do mesmo dia daquela publicação da “Crônica literária” na qual declarou que

o desconhecimento das pessoas acerca de sua personalidade poderia levá-las a ter

mesma impressão do crítico. Lima se defendeu que “se a [sua] revolta foi além dos

limites, ela tem, contudo, motivos sérios e poderosos, sendo justificável “dentro

mesmo dos motivos literários”. Quanto à questão dos personagens que seriam

caricaturas de sujeitos reconhecidos no meio literário e jornalístico, Lima considerou

como uma questão de momento e “caso o livro consiga viver, dentro de curto prazo

ninguém se lembrará de apontar tal ou qual pessoa conhecida como sendo tal ou

qual personagem”.7

Um dia após a publicação da crítica de Medeiros, veio a de Alcides Maya que

muito se aproximava daquela. No Diário de Notícias, também do Rio de Janeiro,

4 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 176-183.5 Expressão francesa cuja tradução aproximada é romance com chave. Designa a narrativa na qual oautor trata de pessoas reais por meio de personagens fictícios. Para tal, o autor recorre a anagramasou pseudônimos para referir-se a pessoas reais, pois o tema tratado é muito controverso e/ou há anecessidade de compartilhar, com algum nível de discrição, informações privilegiadas de bastidores,vida íntima de outros sujeitos, evitando a acusação de violação de privacidade ou difamação.6 Apud BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria JoséOlímpio, 1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 176.7 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I),p. 198.

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Maya destacou como principal defeito do livro a sua nota pessoal que o reduziria a

um “álbum de fotografias”. Além disso, não considerou um romance, mas uma

“verdadeira crônica íntima de vingança”.8 Meses depois, em 5 de março 1910, outro

crítico escreveu sobre o trabalho de Lima. Dessa vez não na imprensa, mas numa

carta endereçada ao próprio autor. O correspondente nada mais era que José

Veríssimo.

Diferentemente de Maya, Veríssimo é elogioso ao romance de Lima, vendo

neste “o elemento principal para o fazer superiores (“livro distinto, revelador, sem

engano possível, de talento real”), o talento”. Quanto aos pontos negativos do

romance, Veríssimo aponta algumas imperfeições de composição e linguagem,

sendo o seu principal defeito, assim como assinalou Maya, o “excessivo

personalismo”.9

Lima não chegou a revelar naquela carta ao primeiro crítico quais seriam

aqueles “motivos sérios e poderosos” que justificavam o modo como compôs o

romance. Entretanto, ao continuarmos a leitura de suas respostas às criticas ao

Recordações, eles vão se tornando nítidos. Em carta a Esmaragdo de Freitas de 15

de outubro de 1911, Lima responde ao artigo que esse escreveu na imprensa

recifense onde residia.

Depois de elogiar o artigo sobre seu livro, Lima menciona que no Rio só viram

o seu primeiro trabalho como “um simples romance à clé, destinado a atacar tais e

quais pessoas [...]”.10 Lima afirma que seu volume tinha mais a apresentar e o artigo

de Freitas fez com que tivesse mais certeza disso, explicando as razões que

levaram a imprensa a manter um silêncio sobre Isaías Caminha.[...] dada a minha obscuridade nativa e também (para não dizer) a minha cor,se o meu livro não fosse capaz dele mesmo por si romper caminho, nãoseriam os nossos amigos dos jornais que haviam de ajudá-lo a fazer.Arriscava-me a passar sem ser notado, desanimar, portanto, e ir fazercompanhia ao rol dos incapazes de raças que a nossa antropologia oficiosajá decretou.O meu fim foi fazer ver que um rapaz nas condições do Isaías, com asdisposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas,mas, batido, esmagado, prensado pelo preconceito com o seu cortejo, que,é creio, coisa fora dele. Não sei como me saí da empresa, mas o seu artigodiz-me que bem. Se lá puz certas figuras e o jornal, foi para escandalizar eprovocar a atenção para a minha brochura. [...].11

8 Apud BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria JoséOlímpio, 1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 177.9 Ibid., p. 178-179.10 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I),p. 238.11 Ibid., loc.cit..

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Assim como verificamos na análise do prefácio do romance e dos estudos

iniciais que havia realizado, Lima tinha a questão racial no Brasil como temática que

o acompanhava, propondo com sua literatura militante deixar explícita a

permanência do preconceito vindo desde os tempos da escravidão. Desautorizar as

máximas racialistas e não se permitir sucumbir diante delas era uma de suas metas

enquanto escritor.

Notamos também por essa carta que Lima aponta a sua condição social e sua

cor como barreiras para a não consideração de sua obra pela imprensa. A sua

experiência pessoal de viver no subúrbio e ver, como em outros sujeitos negros, a

discriminação racial cotidiana na cidade do Rio de Janeiro era sentida fez optar pelo

modo como escreveu seu romance de estreia. Lima percebia que havia de

escandalizar para que a república das letras desse atenção a sua escrita. Antes

dessa carta a Freitas, o literato numa outra missiva, mas destinada a Gonzaga

Duque de 7 de fevereiro de 1909, já havia sinalizado que escolheu Isaías Caminha

para sua estreia em detrimento do Gonzaga de Sá, pois este “era muito calmo e

solene, pouco acessível, portanto”.12

A elaboração do livro de modo “desigual, propositalmente mal feito, brutal por

vezes, mas sincero sempre” tinha como objetivo escandalizar e desagradar, o que

de fato conseguiu, mas o silêncio da imprensa foi algo que muito desanimou Barreto.

Ainda naquela carta a Freitas, vale assinalar o esclarecimento que Lima faz sobre o

casamento do personagem Isaías, o qual endossa sua preocupação com a

possibilidade de os negros sucumbir diante do racialismo e do racismo.[...] Ele se casou com uma rapariga branca, como o senhor supôs. Aceito eexplico por diversos motivos: a) para que os filhos saíssem mais brancosque ele; b) porque, devido a coisas sociais, os pais não se esmeram naeducação das raparigas de cor, e não encontrou uma na altura de suadelicadeza.13

Com a segunda edição do Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima

retoma sua defesa e, procurando sempre buscar as origens da discriminação social

e racial na “sociedade que nos cercava” como afirmou no prefácio desse romance,

responde ao crítico Veiga Miranda que dissera, a fim de desmerecer a narrativa de

Barreto, que o preconceito de cor não existia.

12 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I,p. 169.13 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a (Tomo I),p. 239.

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[...] Houve sempre uma quizília que se ia fazendo preconceito quando osenhor Rio Branco tratou de “eleganciar’ o Brasil. Isto não se prova, seibem; mas se não tenho provas judiciais, tenho muito por onde concluir.Porque aí, em São Paulo, e em Campinas também, há sociedade dehomens de cor? Hão de ter surgido devido a algum impulso do meio [...].14

Essa persistência de Lima em reagir contra a negação do preconceito racial

bem como sua escolha por esse romance para se lançar como escritor devem ser

compreendidas também pelo contexto de publicação de outras obras, as quais

tiveram grande aceitação no meio intelectual de início do século XX. Dois anos após

seu livro de estreia, Lima teve que observar o sucesso do romance A Esfinge de

Afrânio Peixoto (1876-1947). Este, assim como o de Lima, era um romance “à clef”,

mas a crítica foi unânime em elogiá-lo.15

A Esfinge, escrito às pressas em decorrência da eleição de Peixoto para a

Academia Brasileira de Letras,16 retrata o ambiente sofisticado frequentado pelas

altas camadas cariocas no qual se travava discussões sobre as relações amorosas,

a política nacional, a imagem do país no exterior e até a última moda de Paris, tendo

como cenários as cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis. Além de não tratar do

preconceito racial que tanto Lima fez questão de abordar no seu livro, a obra de

Peixoto representa os privilégios que eram dados aos chamados doutores no meio

literário da época, algo também combatido por Lima em diversos de seus textos.

Lima leu A Esfinge e o considerou detestável, oferecendo o exemplar por ele

lido e anotado ao seu amigo Antonio Noronha Santos. Entre as anotações, uma que

justamente aponta sua amargura e sentimento de injustiça quanto à apreciação que

fizeram de seu Isaías Caminha: “É à clef, e eles elogiaram”.17 Se retrocedermos

alguns anos ao lançamento de A Esfinge, veremos que Lima ainda teve que se

deparar com outras publicações em que o silêncio ou negação do preconceito racial

também se fazia presente.

14 BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c (Tomo II),p. 24.15 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 181.16 Essa eleição foi realizada à revelia do autor que se encontrava, naquele momento, no Egito. Para aeleição acadêmica era obrigatória a escrita de uma obra literária e o autor, sendo médico, até aquelaoportunidade só havia publicado textos científicos. Desse modo, foi urgente que escrevesse oromance para ocupar a vaga de Euclides da Cunha. Cf SALES, Fernando. Afrânio Peixoto e seuprimeiro romance (introdução). In: Peixoto, Afrânio. A Esfinge. 12 ed. São Paulo: Clube do Livro,1979, p. 9.17 Apud BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria JoséOlímpio, 1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 182.

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Afonso Celso (1860-1938) escreveu uma obra que pode ser considerada uma

das grandes expressões daquela vertente nacionalista exacerbada, o ufanismo pelo

qual o Brasil tinha seus aspectos naturais e socioeconômicos supervalorizados

como sinais de sua grandeza, sendo, inclusive, objeto de crítica barretiana em Triste

fim de Policarpo Quaresma. Em 1900, como edição comemorativa do IV centenário

da chegada dos portugueses ao Brasil, Por que me ufano de meu país veio a público,

apresentando onze razões pelas quais o Brasil deveria ser visto como superior a

qualquer outro país do mundo. Essas razões envolviam grandeza territorial, a

variedade do clima, o nobre caráter nacional com a excelência das raças que o

formaram e a sua própria história onde não haveria registro de derrota ou

humilhação frente a outros povos.

A obra era dirigida às crianças e fez parte da formação escolar de futuros

membros da elite nacional, tornando-se um clássico e passando por sete edições

até 1915.18 A fim de discutirmos como essa obra pode ter sido mais um “estímulo”

para Lima tratar do preconceito racial no seu romance de estreia, selecionamos

desse trabalho de Afonso Celso momentos nos quais aborda a formação da nação

pela mistura das três raças e a presença do negro na história brasileira.

Celso, um dos fundadores da ABL e membro do IHGB, elogia os elementos

das três raças formadoras, forjando uma imagem de que, na maior parte do tempo

de convívio entre elas, houve mais colaboração e aceitação no processo de

construção da nação. Nesse sentido, alguns estereótipos se apresentam no seu

texto. Quanto aos indígenas, estes são caracterizados pela passividade, bondade e

obediência.19

Os negros, por sua vez, são “dignos de consideração, pelos seus sentimentos

afetivos, resignação estóica, coragem, laboriosidade”. Além disso, demonstraram

“instintos de independência”, os quais são comprovados pela formação do quilombo

dos Palmares. O autor, inclusive, dedica um capítulo dessa obra à trajetória do

quilombo. Dentre os “serviços” realizados pelos negros, Afonso Celso destaca os

das amas de leite e a participação “nas nossas guerras” como herois.20

18 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p. 117.19 CELSO, Afonso. Por que me ufano de meu país. Disponível em: www.ebooksbrasil.org Acessoem: 28 de mar. 2014, p. 65.20 Ibid., p. 74.

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Assim como João Ribeiro em sua História do Brasil, Celso procurou abrandar

a experiência dos negros durante o período da escravidão, afirmando que o

tratamento a que foram submetidos por seus senhores aqui no Brasil, “nem sempre

benévolos”, foi menos bárbaro se comparado ao que ocorreu em outras nações,

como os Estados Unidos. Diante de tais fatos, o autor ainda considerou que, pela

contribuição dos negros em tantos serviços, jamais houve preconceito de cor no

Brasil.21

Para justificar tal assertiva, Celso elenca alguns fatos do passado. “Nos

tempos coloniais”, o rei português determinava que a cor não constituía obstáculo

para “um homem exercesse o cargo de procurador da coroa”; durante o reinado de d.

Pedro II, “vários descendentes de africanos mereceram condecorações e títulos

nobiliárquicos”; ao longo de nossa história cita, ainda uma lista de “negros e filhos de

negros ilustres”, como os abolicionistas Luiz Gama e José do Patrocínio, o músico

Marcílio Dias, e Henrique Dias “que, dez vezes ferido, perdendo uma das mãos na

guerra contra os holandeses, exclama que cada um dos cinco dedos restantes

batalharia como nova mão por seu Deus e pela sua Pátria!”.22

Sobre esse tipo de literatura cívica, Patrícia Hansen afirma que “o ufanismo é

realmente um componente forte”. Contudo, não se deve reduzí-la ao seu caráter

ufanista, pois corre-se o risco de “perder de vista outras influentes e duradouras

representações” que ajuda a construir, “assim como o sentido de projeto de

formação do Brasil e do brasileiro subjacente aos textos”.23 Essa obra de Afonso

Celso, nesse sentido, pode ser inserida no esforço de muitos intelectuais no sentido

de divulgar uma narrativa na qual se projetava a integração das três raças no

passado a partir das ponderações acerca da mestiçagem.

Como vimos no segundo capítulo deste trabalho, após a abolição da

escravidão e a proclamação da República se tornou possível “imaginar” a existência

de uma nação constituída por um povo, isto é, integrada por membros juridicamente

livres. Dantas esclarece que, dessa forma, paralelamente às políticas de

branqueamento da população e das teorias sobre a degeneração e a inferioridades

21 CELSO, Afonso. Por que me ufano de meu país. Disponível em: www.ebooksbrasil.org Acessoem: 28 de mar. 2014, p. 74.22 Ibid., p. 74-75.23 HANSEN, Patrícia Santos. Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção deum ideal de infância brasileira na Primeira República. Orientador: Nicolau Sevcenko. 2007. 253 f.Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de SãoPaulo, São Paulo, 2007, p. 55.

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dos descendentes da mestiçagem, “também presentes nos textos de literatos,

médicos, juristas e políticos que defendiam a imigração européia, houve intelectuais

que investiam na divulgação do papel ativo de negros e mestiços na história”.24

Por que me ufano de meu país apresenta essa perspectiva, mantendo,

conforme assinalamos acima, alguns estereótipos acerca dos negros. Os mestiços

também são caracterizados de forma positiva, sendo suas principais qualidades a

energia, a coragem, espírito de iniciativa, capacidade de resistência a trabalhos e

privações. Como prova de sua bravura e resistência, o autor aponta o caso de

Canudos, arrematando o capitulo sobre os mestiços com a afirmativa de que não

denotam inferioridade física ou intelectual.25

Entretanto, nesse elogio das raças formadoras, percebemos que Afonso

Celso, monarquista e filho de uma grande figura política do Império – o Visconde de

Ouro preto -, representa na sua narrativa como superior aos demais o elemento

português. Este é apontado como contribuinte para o progresso da humanidade,

especialmente por suas “viagens de descobrimentos”. Além disso, considera como

injusta e ingrata a atitude de ataque ou depreciação do brasileiro em relação a

Portugal.26

Um outro aspecto desse elogio que sinaliza a maior simpatia do autor pelo

branco português e, ao mesmo tempo, deixa entrever no seu texto, uma posição

inferior do negro no processo de mestiçagem, que tanto faz questão também de

enaltecer, é o registrado no último parágrafo do capítulo sobre os mestiços. Nesse

afirma que os mestiços são susceptíveis “de quaisquer progressos”, produzindo

“grandes homens em todos o ramos da atividade social”. Esses progressos eram

mais visíveis em São Paulo, no qual “mais se operou o cruzamento com os índios”,

marchando “na vanguarda de nossa civilização”.27

Ou seja, mesmo reconhecendo a presença ativa dos negros na história

brasileira como algo pelo qual a nação deveria se orgulhar e defendendo que jamais

houve preconceito de cor no país, o autor deixa claro que no processo de

mestiçagem a “fórmula branco + indígena” daria melhores resultados. Dois anos

24 DANTAS, Carolina Vianna. Cultura histórica, República e o lugar dos descendentes de africanos nanação. In: ABREU, Martha; SOIHET & GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura política e leituras dopassado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 243.25 CELSO, Afonso. Por que me ufano de meu país. Disponível em: www.ebooksbrasil.org Acessoem: 28 de mar. 2014, p. 83-84.26 Ibid., p. 77.27 Ibid., p. 85.

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após a obra de Afonso Celso, outro lançamento faria muito sucesso. Trata-se do Os

Sertões de Euclides da Cunha que, dentro de semanas, já era “proclamada um

clássico e seu autor aclamado como a última sensação literária”.28

Com um carregado vocabulário técnico de etnografia, geologia e climatologia,

Euclides produziu um livro que retomava a Campanha de Canudos, ampliando o

enfoque que havia dado ao tema nos artigos de jornal escritos antes de sua ida ao

sertão baiano e durante sua permanência nesse local para acompanhar o conflito

como correspondente do O Estado de São Paulo. O autor adotou uma abordagem

ensaística e historiográfica nessa obra, focalizando fatores naturais e raciais.

Contudo, distanciando-se dos artigos, podemos observar que a obra apresentava

outra feição, uma vez que o “tema da história da guerra, a princípio dominante,

tornou-se apenas uma variante de um assunto geral”.29

Na “Nota Preliminar”, Euclides anunciou: “Intentamos esboçar, palidamente

embora, ante o olhar dos futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos

das sub-raças sertanejas do Brasil”.30 Dessa forma, o autor se inseriu na seara

percorrida por muitos intelectuais daquele momento que procuravam interpretar o

Brasil a partir do processo de mestiçagem, norteados por modelos evolucionistas e

naturalistas. Ao nos debruçarmos na segunda parte de Os Sertões, intitulada “O

homem”,31 temos um Euclides preocupado com a explicação do comportamento dos

sertanejos pelas suas origens raciais.

Nessa tentativa de explicação, Euclides se mostra incrédulo quanto ao

avanço da civilização brasileira com sua intensa mistura de raças. Para o autor, a

mestiçagem extremada seria um retrocesso, o qual se daria pelas seguintes razões:[...] O indo-europeu, o negro e o brasílico-guarani ou o tapuia, exprimemestádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar asqualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dosatributos dos últimos. De sorte que o mestiço – traço de união entre asraças, breve existência individual em que se comprimem esforçosseculares – é quase sempre, um desequilibrado. [...] E o mestiço – mulato,mameluco ou cafuz -, menos que um intermediário, é um decaído, sem aenergia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos

28 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.Tradução: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 (Estudos Brasileiros, vol. 9), p. 123.29 MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. E Canudos era a Vendeia... O imaginário da RevoluçãoFrancesa na construção da narrativa de Os Sertões. São Paulo: Annablume, 2009, p. 174.30 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 17.31 A obra é dividida em três partes. A primeira, “A terra”, é uma descrição do ambiente do sertão e daseca que assola a região (um estudo geográfico). Já na segunda, o autor volta seu olhar para ohomem, sua vida e costumes no sertão (estudo antropológico). Na última, “A luta”, há a descrição daGuerra de Canudos, na qual são narrados os acontecimentos que envolvem as quatro expediçõesmilitares contra o arraial (estudo histórico).

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ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso possua,ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, àsvezes, mais frágeis, irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento eextinguindo-se prestes, feridos pela fatalidade das leis biológicas,chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida. [...].32

Por outro lado, Euclides da Cunha vê o sertanejo como um ser distinto, sendo

que as teorias que condenam o mestiço como ser inferior e degradado se aplicam

ao do litoral. Geograficamente isolado, o sertanejo se manteve à margem do

processo de miscigenação que moldou a nacionalidade. Esse processo, no litoral

gerou mestiços “neurastênicos” enquanto nos sertões, se formou uma “raça forte”

mais adaptada ao meio físico.[...] O sertanejo tomado em larga escala, do selvagem, a intimidade com omeio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete,na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas aquelesatributos mais ajustáveis à sua fase inicial incipiente.É um retrógado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissitudeshistóricas o libertaram, na fase delicadíssima da sua formação, dasexigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, preparam-nopara a conquistar um dia.A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser,tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte. Aquelaraça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando,pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que,despeada afinal da existência selvagem, pode alcançar a vida civilizada poristo mesmo que não a atingiu de repente.33

Já no litoral a miscigenação se deu mais entre branco e negro. “Assim a

gênese do mulato teve uma sede fora do país”, pois a “primeira mestiçagem com o

africano operou-se na metrópole”. No Brasil, essa mistura se concentrou no litoral,

tendo pouca penetração no interior. Sobre esses negros que aqui chegaram como

escravizados, vale frisar, Euclides os apresenta sem a rebeldia dos índios e com

suas “faculdades de desenvolvimento” anuladas pela situação social.34

Como vimos em Afonso Celso, embora sem o seu otimismo, Euclides também

deixa entrever em seu texto uma certa preferência pelo cruzamento entre branco e

indígena, predominante no sertão. No litoral, em que prevalecia o do branco com o

negro, Euclides, pelos trechos acima destacados, apresentava um mestiço – o

mulato - com um “raquitismo exaustivo”35 e degenerado. Daí considerar o sertanejo o

cerne da nacionalidade.

32 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 110-111.33 Ibid., p. 113.34 Ibid., p. 96-97.35 Ibid., p. 115.

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Segundo Ricardo Souza, no pensamento de Euclides “há uma retomada da

valorização da influência indígena, que caminha a par com a desvalorização da

herança africana, em um processo que remete ao indianismo romântico”. A

inexistência ou pouca presença do elemento negro no sertão é, para Euclides, algo

que valoriza o sertanejo, “filho do índio e do bandeirante [...]”.36

No mesmo ano de Os sertões, outra obra, que teve grande aceitação, foi a do

juiz, diplomata e membro da ABL Graça Aranha. Canaã, do qual já apresentamos as

linhas gerais de seu enredo no item 2.3.1, também representava a preocupação da

intelectualidade com o processo civilizatório brasileiro, tendo como ponto principal a

miscigenação. Nesse item, nossa atenção se voltará mais especificamente para a

representação dos negros e mulatos nesse romance.

Antes de atingir o diálogo entre os dois imigrantes alemães acerca da

possibilidade de um país tropical se tornar um centro de civilização pela fusão de

correntes imigratórias de europeus e mestiços brasileiros, a narrativa de Aranha

apresenta momentos que nos fazem refletir sobre a forma discriminatória e

inferiorizante como os negros e seus descendentes eram representados no discurso

sobre a nacionalidade. Esses momentos foram localizados no início da narrativa em

que é descrita a chegada do imigrante Milkau ao Espírito Santo.

Guiado por um menino até a localidade de Cachoeiro, Milkau passa por um

velho rancho cujos moradores eram negros e mestiços. O narrador enfatiza na

descrição de alguns deles a indolência, a falta de iniciativa, representando-os como

uma raça incapaz de levar adiante a construção de uma nação. Uma mulata que vê

sentada no batente da porta é caracterizada como “a própria indolência” Um outra

mulher, uma cafuza, quando Milkau cumprimentava um velho senhor também cafuzo,

também não apresentava maior vigor. “[...] A cafuza não se mexeu; apenas,

mudando vagarosamente o olhar, descansou-o, cheio de preguiça e desalento, no

rosto do viajante. A criança acolheu-se a ela boquiaberta, com a baba a escorrer dos

beiços túmidos”37

Com o velho cafuzo, Milkau entabula uma conversa sobre o passado da

região. Nessa passagem do texto, o narrador endossa a passividade dos mestiços:

36 SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade nacional e modernidade brasileira: o diálogo entre SílvioRomero, Euclides da Caunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, p. 85(Coleção Ensaios,2).37 ARANHA, José Pereira da Graça. Canaã. Disponível:http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/canaa-graca-aranha/ Acesso: 07 abr. 2018, p. 10

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“[...] o velho respondia gostoso, por ter ocasião de relembrar os tempos de outrora,

sentindo-se incapaz, como todos os humildes e primitivos, de tomar a iniciativa dos

assuntos. [...]”.38 Durante esse conversa, a imagem abrandada da escravidão que

vimos em João Ribeiro e Afonso Celso também se faz presente em Graça Aranha.

Mesmo, inicialmente, fazendo uma denúncia de uma abolição que não foi

acompanhada de medidas que propiciassem aos ex-escravizados condições para

uma vida digna, o relato de velho cafuzo elaborado pelo autor representa uma

tentativa de produzir uma memória sobre os tempos da escravidão em que havia

uma certa harmonia nas relações entre senhores e seus escravizados. Vamos ao

relato:[...] Tempo hoje anda triste. Governo acabou com as fazendas, e nos pôstodos no olho do mundo, a caçar de comer, a comprar de vestir, a trabalharcomo boi para viver. Ah! Tempo bom de fazenda! A gente trabalhava junto,quem apanhava café apanhava, quem debulhava milho debulhava, tudo deparceria, bando de gente, mulatas, cafuzas... Que importava feitor?... Nuncaninguém morreu de pancada. Comida sempre havia, e quando era sábado,véspera de domingo, ah! Meu sinhô, tambor velho roncava até demadrugada.E assim o antigo escravo ia misturando no tempo travoso da saudade alembrança dos prazeres de ontem, da sua vida congregada, amparada nadomesticidade da fazenda, com o desespero do isolamento de agora, com amelancolia de um mundo desmoronando.39

A aceitação dessas obras indica a forte presença na cultura histórica, daquele

início do século XX, do preconceito racial como base para a transmissão de uma

imagem sobre a formação do povo brasileiro assim como do branqueamento

enquanto horizonte de expectativas das elites do país. Consideramos, portanto, que

tais publicações e a própria trajetória de Lima - um escritor pobre, suburbano, negro

e com uma concepção de literatura militante – favoreceram a emergência do

romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. O retorno ao seu enredo é

pertinente para analisarmos a reação de Lima àquele cenário sociocultural.

Um dos primeiros artifícios elaborados por Lima a fim de construir sua crítica

social foi a criação de um personagem mulato narrador de sua própria história. Ele

selecionou um tipo racial objeto do pensamento dos seguidores das teorias

racialistas, nas suas tentativas de conformação de uma identidade nacional, e o

eleva à categoria de sujeito/produtor de conhecimento.40 Nessa mutação do mulato

38 ARANHA, José Pereira da Graça. Canaã. Disponível:http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/canaa-graca-aranha/ Acesso: 07 abr. 2018, p. 11.39 Ibid., p. 12.40 Vale salientar que outros escritores brasileiros negros antes de Lima Barreto construíram textos nosquais apresentaram as suas dificuldades para se expressarem, bem como rejeitaram os discursos por

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de objeto para sujeito, Lima indicou a urgência de levar em consideração a

permanência de ideias e ações oriundas do passado escravocrata brasileiro para a

compreensão do início da República, especialmente do seu processo de

marginalização de determinados grupos sociais.

Nesse sentido, podemos destacar outro artifício presente nessa narrativa pelo

qual Lima põe em discussão o quanto o olhar dos intelectuais brasileiros sobre a sua

realidade ainda estava impregnado por uma mentalidade colonizada. Estamos nos

referindo à aparição de um personagem no capítulo XI do romance aqui em

destaque. Trata-se da figura de um preto velho que circula entre os personagens

representantes das elites cariocas quando esses aguardavam pela chegada de um

redator português, contratado pelo grande jornal O Globo, no cais do porto do Rio de

Janeiro.[...] Além do ministro, intrometeu uma nova personagem; um preto velho,quase centenário, de fisionomia simiesca e meio cego.Trazia na mão esquerda um caniço que distendia um arame de pescaria;com a direita, auxiliado por uma varinha, vibrava dolentemente a corda,enquanto balbuciava qualquer coisa. Ia de grupo em grupo, tangendo o seumonocórdio extravagante. Cantava talvez uma ária de uma extravagantebeleza, certamente só percebida e feita pela sua alma para sua alma...Tocava e esperava esmolas. Em todas as fisionomias, havia decertopiedade, comiseração, e mais alguma coisa que não me foi dado perceber.Era constrangimento, era não sei o quê...O preto tinha os pés espalmados e, com a cecidez e a velhice, andava deleve, sem quase tocar no chão, escorregava, deslizava – era como umasombra...[...] Ele, com sua resignação e miséria, e o sol, com sua força e indiferençatinha um certo acordo oculto, uma relação entre si quase perfeita. O negroia... Ia tocando já sem forças a plangente música das recordações doadusto solo da África, da vida fácil de sua aringa e do cativeiro semi-secular.41.

Essas linhas escritas por Lima Barreto trazem uma dimensão simbólica que

remete a outras temporalidades, fazendo emergir elementos culturais que podemos

considerar, utilizando uma categoria elaborada pelo teórico e crítico literário

Raymond Williams, como residuais.42 A capoeira e a música dos negros, forjadas no

passado, mas ainda efetivas naquele presente da narrativa, são levadas à tona pela

grupos hegemônicos, utilizando-se de contra-discursos para construir outras imagens sobre os afro-brasileiros. Podemos destacar os nomes de Luiz Gama, José do Patrocínio, Manuel Querino e MariaFirmina Reis, sendo que esta, ainda em 1859, publica, sob pseudônimo, o romance Úrsula,considerado o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira e da literatura afro-brasileira, poisé de autoria afro-descendente que tematiza o negro de uma perspectiva interna e comprometida,politicamente, em narrar a condição de ser negro no Brasil.41 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?], p.170-171.42 WILLLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Tradução: Waltesir Dutra. Rio de Janeiro: ZaharEditores, 1979, p. 125.

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aparição do preto velho. E, pela incompreensão e até constrangimento das elites no

cais, somos direcionados a interpretar essa passagem do preto velho como uma

metáfora criada por Lima para mostrar a seus leitores – aqui tomamos de

empréstimo novamente o pensamento de Williams – a exclusão operada por uma

tradição seletiva e hegemônica da intelectualidade brasileira da época, interessada

em aproximar o Brasil das nações europeias.

Nessa interpretação da narrativa barretiana, temos as elites do país com seus

olhos voltados para o oceano Atlântico, aguardando um europeu representante de

sua ex-metrópole que irá ser responsável pela produção de textos de um grande

veículo de comunicação nacional. Quanto à aparição do preto velho, vale

salientarmos a utilização das expressões “simiesco” e “preto velho” para uma maior

problematização da proposta de Lima com sua literatura militante em relação à

inserção do negro na narrativa sobre a identidade nacional.

Dentre as características atribuídas ao senhor negro que surgiu diante das

elites no cais, o narrador-personagem relembra a sua “fisionomia simiesca”. A

associação da imagem do negro à do macaco se constitui numa forma depreciativa

e preconceituosa de tratar o negro e seus descendentes, a qual infelizmente perdura

na contemporaneidade, desumanizando-o.

O próprio Lima foi alvo dessa associação, conforme as suas anotações

pessoais de 17 de janeiro de 1905. Lima registrou que havia recebido um cartão-

postal no qual havia o desenho de um macaco que, por sua vez, faria alusão a sua

pessoa. Abaixo do desenho, tinha o seguinte escrito: “Néscios e burlescos serão

aqueles que procuram acercar-se de prerrogativas que não tem. M.” Lima afirmou

que o cartão em si não o aborrecia, mas a possibilidade de que “o imbecil que tal

escreveu” tivesse razão. Esse desgosto, no entanto, era tomado pelo escritor como

uma mola propulsora para a concretização de seus objetivos: “Desgosto! Desgosto

que me fará grande!43

Tanto é que no ano seguinte, na sua escrita paralela ao Isaías Caminha, Lima

já tinha esboçado um trecho do Gonzaga de Sá pelo qual a depreciação acima se

transformou em matéria literária. O esboço do capítulo referente ao afilhado do

personagem principal, mulato e com grande inclinação para os livros como Isaías,

representa a carga negativa que o olhar apegado às teorias racialistas atirava sobre

um jovem negro.

43 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 88.

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O afilhado. Primeira conversa com o Aleixo Manuel, sua inteligência, suavivacidade. Saída para o colégio, alegre, contente, cheio de vida. OGonzaga de Sá, em seguida, ao ir me dando livros, vai expondo suas ideiassobre a ciência. Volta de Aleixo, mal põe o pé na soleira da sala, põe-se achorar nervosamente, muito, muito, muito. Gonzaga de Sá o interroga:- Que é? Que foi?- Dindinha, dindinho, me chamaram de macaco, diz ele.44

No texto definitivo do romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá,

publicado em 1919, o narrador se mostra apreensivo quanto ao futuro do Aleixo:[...] Que seria dele, por aí pela vida? Sob a ascendência do padrinho,estudaria muito, aplicar-se-ia aos livros. Durante anos o ambiente falso doscolégios e escolas, a sua situação na vida não se lhe representariaperfeitamente. Viriam oas anos e a ânsia que o estudo dá, viria o mundosocial, com a sua trama de conceitos e preconceitos, justos e injustos, bonse maus – trama unida e espinhenta, contra a qual a sua alma se iria chocar...Era então a dor, as deliqüescências, as loucas fugidas pela fantasia... Eradoloroso peregrinar com o opróbrio à mostra, à vista de todos, sujeitos àirrisão do condutor de bonde e do ministro plenipotenciário... Era sempre,nos cafés, nas ruas, nos teatros, andando vinte metros na frente um batedorque avisava da sua presença e fazia que se preparassem as malícias, osolhares vesgos ou idiotas... Coitado! Nem o estudo lhe valeria, nem os livros,nem o valor, porque, quando o olhassem diriam lá para os infalíveis: aquilolá pode saber nada!45

Essa mesma preocupação com um jovem negro também se faz presente na

despedida de Isaías. A sua mãe lhe dá um forte abraço, afasta-se um pouco,

lançando o olhar de sempre, “fosse em que circunstância fosse, onde havia

mesclados, terror, pena, admiração e amor”. Após isso, recomenda: “- Vai, meu filho,

disse-me ela afinal. Adeus!... E não te mostres muito, porque nós...” Ela não

consegue terminar, pois é tomada por um choro convulsivo.46

Lima se empenhou nesses trechos em representar como o preconceito racial

ainda era um freio para as ambições daqueles descendentes de africanos que

almejavam usufruir da liberdade jurídica e das promessas de democratização do

regime republicano. Daí podemos fazer a seguinte pergunta: Por que, então, Lima

que tanto sofreu com o preconceito e o denunciou em seus textos, “permite” que seu

narrador-personagem Isaías utilize uma expressão tão depreciativa para descrever o

preto velho, sendo que está relembrando justamente a sua trajetória no Rio,

marcada por diversas formas de discriminação por ser um mulato?

Há, nos textos ficcionais, um imbricamento de vozes. As vozes das

personagens são veiculadas pela voz do narrador e este pode também, é o caso de

Isaías, ser personagem. Tanto a voz do narrador quando dos personagens soam

44 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 120.45 Id. Vida e Morte M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo:Brasiliense, 1961d, p. 122-123.46 Id. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?], p. 23.

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através da voz do autor que as articula em um conjunto. O objetivo disso é produzir

um enunciado, um determinado ponto de vista acerca de uma dada realidade.47

Lima articula essa voz de seu personagem-narrador, naquela passagem da

aparição do preto velho, de modo a não só, como vimos, inserir um sujeito

marginalizado que representa a permanência de vestígios do passado que as elites

querem esquecer ou manter silenciado, mas também, com o uso da expressão

“fisionomia simiesca,” marcar o peso e a incorporação no imaginário social do

pensamento hegemônico racista.

A trajetória literária de Lima tem como um dos traços mais fortes o seu

cuidado em “anotar (e quase desenhar) as falas, as vestes, as expressões de seus

personagens e dos transeuntes, assim como jamais deixa de descrever, com

pormenores, suas cores”.48 Acerca disso, Lilia Schwarcz dedica um capítulo, de sua

biografia sobre o literato carioca, ao modo como esse lida com a “linguagem social

das cores” nos seus escritos. Um tema que ainda hoje gera tensão no cotidiano

brasileiro e que, ao ser endossado no início do século XX por Lima, provocava os

defensores do racialismo e aqueles que, nas suas narrativas, tentavam apagar ou

amenizar as distinções e hierarquizações perpetuadas por séculos no país.A cor e a raça social fazem toda a diferença na construção dos romancesde Lima, no desenho dos protagonistas e no desfecho de seus livros. Alémdo mais, ele mesmo se definia como “negro”, o que, paradoxalmente, davaà sua obra uma feição, se não distinta, ao menos bastante particular nopanorama da literatura nacional..49

Nesse contexto, a diferença de origem se expressava naquela linguagem

social das cores, constituindo-se numa “convenção sutil” que cumpria “papel paralelo

e complementar às políticas de exclusão racial experimentadas no pós-abolição”.

Expressões como pretos, pretas, mulatos, negros, cafuzos são trazidas, portanto,

para o primeiro plano nos textos barretianos, evidenciando uma linguagem “que se

afirma com um idioma local a repor processos de constrangimento social [...]”.50

47 SANTOS, Luis Alberto Brandão & OLIVEIRA, Silvana Pessoa. Sujeito, tempo e espaço ficcionais:introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Col. Texto e linguagem), p. 1-4.48 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 415.Algo que pudemos, inclusive, observar ao longo deste trabalho quando analisamos a relação de Limacom seu amigo Manuel de Oliveira e seus esboços de escrita literária (primeiro capítulo), arepresentação dos negros em Triste fim de Policarpo Quaresma (segundo capítulo) e o conto “Omoleque” (terceiro capítulo).49 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 415.50 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 415-417.

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Esse cenário sociocultural nos permite melhor compreendermos a inserção

da figura de “pretos velhos” e “pretas velhas” na narrativa barretiana. Muitos deles

são representados como passivos, submissos e leais, conforme a imagem que as

elites desejavam guardar. O intuito de Lima, no entanto, não era tornar essa imagem

como algo pacífico da narrativa sobre a nacionalidade brasileira. No geral, Lima

usava a palavra “preto” quando pretendia se referir a personagens mais passivos e

marcados pelo medo do retorno ao cativeiro.

Nesse sentido, a forte presença de pretos e pretas velhas que Lima imprimia

nos seus textos visava sinalizar a permanência de uma situação de dependência

que a abolição não havia apagado nem a república conseguia dissipar. Como

exemplo, podemos apontar os pretos velhos Anastácio, que servia a Policarpo havia

trinta anos, e Inácio que estava na família de Gonzaga de Sá também havia décadas.

Sobre esse último, Schwarcz selecionou um trecho do romance Vida e Morte de M. J.

Gonzaga de Sá, que deixa bem nítido aquele temor vindo dos tempos da escravidão.

Inácio, ao servir Gonzaga de Sá, entra na sala com copos e garrafa numa

bandeja. Gonzaga diz para ao preto velho – “Deixa aí, Inácio”. Mesmo o tom de

Gonzaga sendo brando, a ordem fez com que Inácio quase deixasse a garrafa cair.

“Gonzaga era um humanista, mas acostumado a essa linguagem que ressoava os

tempos da escravidão, não conseguia introjetar um novo tipo de comportamento,

ainda que já estivesse num contexto de liberdade republicana”.51

Um outro artifício utilizado por Lima na sua criação literária que deve ser

destacado é o nome dado a seu personagem-narrador. Isaías é um nome de origem

hebraica que significa salvação do senhor.52 Já Caminha pode ser uma alusão ao

escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, autor da carta que anuncia a

chegada dos portugueses nas terras hoje conhecidas como Brasil, a qual é

considerada, por uma perspectiva que aponta o elemento branco como principal na

formação da nacionalidade, como documento de “fundação do Brasil”. Desse modo,

inferimos que o Isaías de Lima Barreto faz o papel daquele que, através de suas

recordações, sinaliza uma outra possibilidade de narrar a História do Brasil,

especialmente a da presença dos negros do país, salvando do esquecimento as

memórias que desmascaram o preconceito racial existente.

51 Apud Ibid., p. 416.52 Site consultado: www.dicionariodenomesproprios.com.br/isaias/ Acesso em: 16 de jul. de 2016.

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Além disso, no momento de criação do Isaías Caminha, Lima se mostrava

incomodado com a atenção que se dava no Brasil às glórias portuguesas, o que

reforçava a narrativa sobre o processo de constituição da nação na qual o elemento

branco trazia a civilização, uma vez que, das raças formadoras, era a superior. O

pesquisador João Marques Lopes, interessado no estudo da recepção de Lima

Barreto em Portugal, recentemente encontrou, numa pasta do Arquivo Lima Barreto

da Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional, a crônica barretiana

“Portugueses na África” de 1907 que estava destinada à coluna “Echos” da revista

Floreal.

Essa crônica está centrada na denúncia de massacres de tribos indígenas

cometidos pelo colonialismo português no interior de Angola.53 Nela também

percebemos a irritação de Lima quanto às tentativas dos portugueses manterem viva

uma memória de grandes feitos de sua nação.[...] De ano em ano, os jornais daqui e de além-mar noticiam estrondosasvitórias dos portugueses sobre os indígenas de suas possessões de África.No tempo dos “Lusíadas”, talvez por não existir o jornalismo periódico, nãodavam tanta importância a feitos idênticos. Pelo menos não tenho notíciaque Lisboa festejasse retumbantemente Antonio Salema, que aí pelos finsde Quinhentos, matou dez mil índios perto de Cabo Frio;54 e se ainda nosresta memória das proezas da gente assinalada em Diu e Goa é porquealguns cronistas precavidos e meia dúzia de poetas entusiastas registram-nas em prosa de bronze, ainda áspero, e em grandiosos versos, um tantomonótonos.Hoje, não havendo farta messe de ações heróicas, lá pelo velho Portugal,os jornais e o governo não deixam escapar uma só vitoriazinha. Osheroísmos são narrados um a um, em frases cheirando ainda à Ilíada; osretratos são publicados e os plutarcas afiam a pena para mais essa centenade varões ilustres.55

A perspectiva de Lima nessa passagem também é reveladora de um passado

violento dos portugueses, que ao contrário de enaltecer suas glórias como

procuravam realizar os jornais da época do autor e os biógrafos, poetas e

monumentos construídos durante a dominação lusitana em séculos anteriores,

53 A colonização de Angola pelos portugueses teve início no século XV, concentrando-se no litoral. Sóno final do século XIX, como efeito da Partilha da África, que Portugal obteve domínio do interior.Maiores detalhes Cf. VANSINA, J. O Reino do Congo e seus vizinhos. In: OGOT, Bethwell Allan (org.).História geral da África: África do século XVI ao XVIII. Vol. 5. Brasilia: Unesco, 2010, p. 647-694.UZOIGWE, Godfrey N. Partilha europeia e conquista da África: apanhado geral. In: BOAHEN, AlbertAdu (org.). História geral da África: África sob a dominação colonial, 1880-1935. Vol. 7. Brasilia:Unesco, 2010, , p. 21-50.54 Refere-se à Guerra do Cabo Frio na qual se confrontaram tropas constituídas por portugueses eíndios catequizados contra franceses e indígenas tamoios durante o período colonial no litoral lesteda então capitania do Rio de Janeiro.55 BARRETO, Lima. Portugueses na África. Disponível em:www.bn.gov.br/acontece/noticias/2015/09/cronica-inedita-lima-barreto-encontrada-bn. Acesso em: 25de mar. 2016.

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representa a trajetória de uma nação forjada na barbárie. Desse modo, no parágrafo

seguinte, descreve como se dá a “nova conquista” de Portugal, salientando a

desigualdade de forças entre portugueses e indígenas africanos e pequeneza da

ação: “[...] um destacamento português, de cem ou duzentas praças, derrota uma

partida de desgraça dos negros, duplamente desgraçados por serem negros e por

viverem em possessões do Portugal necessitado de vitórias.”56

Essa preocupação de Lima com o olhar nacional sobre o seu passado ainda

norteado pelas narrativas vindas de sua antiga metrópole, tal como as elites no cais

voltadas para o oceano Atlântico à espera de um redator português no trecho acima

de Isaías Caminha, perdura ao longo de sua produção literária. Quase uma década

depois do lançamento de seu romance de estreia, Lima tem registradas nas páginas

do periódico A.B.C de 27 de abril de 1918 suas impressões acerca de peças teatrais

portuguesas em cartaz no Brasil.

No artigo intitulado “Volto ao Camões”, o autor analisa, primeiramente, a obra

O Resposteiro Verde de Júlio Dantas. Lima a considera, apenas pela leitura de seu

resumo como suficiente, “um dramalhão de capa e espada, cheio de assassinatos e

outros matadores de velha escola”.57 O que surpreendia Lima era a continuidade da

exibição de peças como essas e como o público nacional as enaltecia.É curioso observar o engouement que o nosso público vai tendo por certosautores portugueses de uma mediocridade evidente que a disfarçam comum palavreado luxuriante, um barulho de frase, mas que não aventam umaideia, que não revelam uma alma, que não interpretam sagazmente umpersonagem histórico, que não põem em comunicação as várias partes dasociedade, provocando um mútuo entendimento entre elas.58

Contrapondo a um cenário de “literatura militante ativa”, Lima se mostra

inconformado que Portugal envie para o Brasil, “com grande sucesso”, tanto o já

referido Júlio Dantas quanto Antero de Figueiredo. Mesmo admitindo a influência

recebida pelo Brasil de autores portugueses como Alexandre Herculano e Eça de

Queirós, por exemplo, Lima afirma que aqueles autores contemporâneos não

possuem “concepção própria da vida, do mundo e da história do seu país”, sendo

apenas repetidores de “velhos mestres”, glosando “episódios de alcova da história

portuguesa [...]”.59

56 BARRETO, Lima. Portugueses na África. Disponível em:www.bn.gov.br/acontece/noticias/2015/09/cronica-inedita-lima-barreto-encontrada-bn. Acesso em: 25de mar. 2016.57 Id. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 163.58 Ibid., p. 164.59 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 164.

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Diante disso, continua sua análise do trabalho de Júlio Dantas, apontando

que “suas peças históricas não tem um julgamento original de acordo com qualquer

ideal estético ou filosófico; não traem um avaliador sagaz, ágil do passado; de rigor

psicológico, nada têm seus personagens”. Para Lima, não passam de “glosas

dialogadas de tradições e crônicas suspeitas [...], sem um comentário que denuncie

o pensador”.60

Ainda assim, Lima denuncia que essas narrativas estavam influenciando a

nossa escrita. Isso é visto pelo literato carioca como um grande equívoco, pois “num

país como o Brasil, em que, por suas condições naturais, políticas, sociais e

econômicas, se devem debater tantas questões interessantes e profundas”. Lima,

então, clama a seus leitores: “Temos que rever os fundamentos da pátria, da família,

do Estado, da propriedade; temos que rever os fundamentos da arte e da ciência”.

Essa revisão é apontada como um “campo vasto para uma literatura”.61

Finalmente, refere-se ao outro autor português, o senhor Antero de Figueiredo,

o qual é considerado por Lima como reprodutor de episódios de Camões. Para o

autor do artigo, melhor retomar o original Camões do que perder tempo com aquelas

narrativas portuguesas. Esse diálogo com as narrativas literárias que fazem parte da

cultura histórica brasileira da época, uma vez que essa se refere à relação que a

sociedade mantém com seu passado, tem continuidade em 1919 pela Revista

Contemporânea do dia 26 de abril. O objeto de seu artigo “Um Romance

Sociológico” é a obra Mau olhado daquele crítico do Isaías Caminha, o qual negou a

existência do preconceito racial do país, o senhor Veiga Miranda.

O romance é bem apreciado por Lima, classificando-o de obra sociológica.

Esta tem como cenário uma fazenda do interior num período anterior à abolição,

localizada num vale na divisa de Minas e São Paulo. Segundo Lima, o autor realiza

uma descrição da vida total da fazenda, destacando que os personagens principais

e secundários, as cenas domésticas e das indústrias recebem um “bom

acabamento”.62 O rigor psicológico cobrado acima do autor teatral português Júlio

Dantas se apresenta na escrita de Veiga Miranda, conforme a crítica literária de

Lima.

60 Ibid., p. 165.61 Ibid.., loc.cit.62 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 143.

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Especificamente, Lima se mostra entusiasmado com o “talento de observação

e de psicólogo dos indivíduos e das multidões” de Miranda para o estudo e a ação

do personagem Lelé. Este é considerado como “figura central e mais original do

romance”, pois, como feiticeiro e sacristão da fazenda, representa aquelas trocas

culturais63 que tanto Lima procurava salientar ao descrever traços do povo brasileiro

e, como vimos, o aproximava do historiador Capistrano de Abreu. Já quanto aos

personagens secundários,“sobretudo a Borginha, a filha mais moça do fazendeiro, traquinas edesenvolta, são todos bem característicos e as concepções familiares edomésticas do Zamundo Bravo, lugar-tenente de Malaquias, e de seusfilhos, filhas e noras, são documentos preciosos para o estudo dos nossoscostumes do interior [...].64

Entretanto, Lima observa uma grande falta nesse quadro que Veiga Miranda

compõe da vida do interior do país.[...] A impressão que se tem é magnífica; mas, acabada a leitura daexcelente obra do senhor Veiga Miranda, cujas vistas sociais, sociológicas,seria melhor dizer, se traem no propósito e no desenvolvimento de suanovela, o leitor menos comum procura alguma coisa que lhe falta. É oescravo. O jovem e talentoso autor paulista só se ocupa dele, na cena dobatuque e, no mais, deixa-o como simples nome ou alcunhas interessantes.A justificativa que não havia nela, na fazenda, castigos, não me parecevaliosa. A antiga propriedade agrícola de um tipo geral, e por sê-lo, que osenhor Veiga Miranda tratou, não podia existir sem o escravo que ela supõe.O eito, o banzo, a vida da senzala, etc., fazem-lhe falta e como deixam oestudo desse elemento da fixação da nossa população rural, inacabado.65

Lima, a fim de evidenciar ainda mais essa lacuna na obra de Miranda - e, de

modo geral, na narrativa sobre a nacionalidade brasileira -, traz a visão de um

naturalista estrangeiro acerca de sua passagem na fazenda Sossego, “ali pelas

bandas de Maricá”. O literato carioca refere-se ao renomado Darwin que visitou

aquela fazenda “algumas décadas antes da ereção” da representada como cenário

do Mau Olhado. Darwin não deixou de registrar nessa viagem os negros

escravizados que viu na propriedade do senhor Manuel Figueiredo.

Lima assinala que Darwin escreveu que, numa madrugada, foi passear na

fazenda e o silêncio foi interrompido pelo hino que cantavam “em coro os negros no

momento de começar o trabalho”.66 Após isso, arremata sua crítica que visa sinalizar

aos leitores a grande contradição para um escritor brasileiro, o qual tem a pretensão

63 Ibid., p. 144-146.64 Ibid., p. 146.65 Ibid., p. 142.66 BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b, p. 142-143.

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de representar um pouco do passado do país, não dar maior espaço na sua

narrativa para a presença dos escravizados negros.Ao grande naturalista inglês, nesta passagem e em algumas outras, nãoescapou o fenômeno social da nossa escravatura e o Senhor Veiga Miranda,que é inegavelmente um escritor moderno, sagaz e ilustrado, não devia teresquecido esse ponto que o tema do seu romance como que tornaprimordial e requeria ser estudado à luz das modernas correntes dopensamento superior.67

Diante disso, podemos afirmar que o romance Recordações do escrivão

Isaías Caminha tinha muito mais a apresentar do que o mero personalismo, o

descuido com a linguagem e o tom caricatural, apontados pelos seus críticos. Essa

obra se inseria numa grande discussão que estava em curso no início do século XX

sobre a configuração de uma memória do passado nacional, servindo de fonte para

a problematização das relações étnico-raciais no Brasil bem como das

aproximações entre as representações da realidade brasileira promovidas pelos

textos literários e historiográficos.

O posicionamento de Lima, por meio dessa criação literária, enfatiza a forma

como naquela conjuntura a tentativa de conformar uma identidade pura e

homogênea produzia esquecimentos. Sua busca em inserir o negro na narrativa da

nação nos remete para a questão levantada pelo uruguaio Hugo Achugar acerca da

necessidade de uma negociação em torno do esquecimento. Para esse autor, isso

“só será possível entre atores que possuam visibilidade e, portanto, se reconheçam

como iguais”68, o que não implica dizer que não haja diferenciação entre os

componentes de uma dada comunidade imaginada como é a nação.

Vimos que Lima nos textos acima apresentados não nega a memória dos

portugueses colonizadores, mas quase que clama para que na narrativa construtora

da identidade nacional haja espaço também para a importante e ativa presença da

população negra. Nesse sentido, seu livro de estreia apresentou uma crítica ao

pensamento hegemônico da época quanto à inserção do negro na sociedade

brasileira. Ao articular vivências pessoais e criação literária, o autor procurou

dialogar com outros intelectuais e publicizar representações que estimulassem a

reflexão acerca do silenciamento da temática preconceito racial no Brasil.

Como as identidades nacionais são “formadas e transformadas no interior da

representação” e seus sentidos estão contidos nas histórias que são contadas das

67 Ibid., p. 143.68 ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Tradução:Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 158.

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nações, memórias que conectam seu presente com o passado e imagens que dela

são construídas,69 Lima elaborou narrativas que trouxeram à tona o passado recente

do país. Com isso, procurava representar tanto a emergência de memórias

marginalizadas quanto os processos de rememoração que as tentavam sufocar. Isso

será o cerne de nossa análise a seguir.

4.2 Processos de rememoração

Havia, como já assinalado em outros momentos deste trabalho, a

necessidade de se legitimar o recente regime republicano no Brasil. O dia 15 de

novembro, nos anos posteriores ao de 1889, se tornou uma data importante para

reatualizar o significado da proclamação da República, o qual, como salientou José

Murilo de Carvalho, era disputado por diversos grupos políticos.70 No item desta tese

no qual discutimos a leitura de Lima Barreto da obra de João Ribeiro, havíamos

apresentado uma rememoração do literato carioca acerca da proclamação com sua

conclusão de que aquele regime, tão aguardado por seus defensores como o início

de uma era de maior democratização do país, havia ainda mais marginalizado os

negros.

Lima reatualiza sua forma de relembrar o 15 de novembro numa outra crônica

publicada 6 anos após à acima referida (“O momento”). Na revista humorística em

que tanto publicou ao longo de sua trajetória, a Careta, Lima teve mais um texto

levado aos leitores do Rio de Janeiro no dia 26 de novembro de 1921 cujo título era

justamente “15 de novembro”.

Lima afirma que havia escrito essa crônica no dia seguinte ao do aniversário

da proclamação da República, momento no qual permaneceu pelos arredores da

sua casa no subúrbio e não leu as notícias das festas comemorativas que se

realizavam na cidade. Entretanto, acabou lendo com tristeza a notícia da morte da

Princesa Isabel. O autor esclarece que não a julgava com “o entusiasmo de

69 HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva; GuaciraLopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011, p. 49-51.70 Cf. CARVALHO, José Murilo. A formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2014, p. 36-38.

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panegírico dos jornais”, mas confessa sua simpatia pela representante da família

imperial.

Diante disso, o cronista sente vontade de lembrar “o estado atual do Brasil,

depois de trinta e dois anos de República”, justificando que isso o acudiu porque

topou com as palavras compaixão do prefeito do Rio de Janeiro “pela miséria se

acha o grosso da população do antigo Império Austríaco”.Eu me comovi com a exposição do doutor Ciro, mas me lembrei ao mesmotempo do aspecto da Favela, do Salgueiro e outras passagens pitorescasdesta cidade.Em seguida, lembrei-me de que o eminente senhor prefeito quer cinco milcontos para a reconstrução da Avenida Beira-Mar, recentementeesborrachada pelo mar.Vi em tudo isso a República; e não sei por quê, mas vi.Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada,da ostentação, do falso brilho e luxo parvenu, tendo como repoussoir amiséria geral? [...].71

Depois dessas reflexões, Lima sai pelas ruas do seu subúrbio, lendo as folhas

diárias e destaca que não se discutia uma questão econômica ou política, mas um

título do Código Penal. Volta para sua casa, melancolicamente, para almoçar,

pensando como devia qualificar a República, disparando a seguinte sentença irônica:

“[...] o 15 de novembro é uma data gloriosa, nos fatos da nossa história, marcando

um grande passo na evolução política do país”.72 Nessa crônica de Lima, podemos

observar uma contraposição de memórias por meio da qual um suburbano carioca

se defronta com imagens do passado que se pretendiam tornar hegemônicas.

Ao longo do texto, o autor enfatiza repetidas vezes o local em que se

encontrava de maneira bem afetiva: “meu subúrbio”. É a partir desse lugar, espacial

e social, que procura lembrar a data cívica do 15 de novembro. Como suburbano e

negro, o que aciona as engrenagens das suas lembranças ao abrir o jornal naquele

dia posterior à comemoração da proclamação da República é uma nota sobre a

princesa Isabel, a qual se remete a outra data comemorativa, a da Abolição da

Escravidão. E mesmo sobre essa personagem histórica, sua visão não coincide com

a memória exaltadora que a imprensa produzia, embora confesse certa admiração

pela princesa.

Esse marco histórico que a nota de falecimento o fez relembrar, por sua vez,

também serve de estímulo para refletir sobre os trinta e dois anos de República no

71 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 460.

72 Ibid., loc.cit.

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Brasil. O falecimento da princesa e a tristeza que sente ao saber dele, seguidos da

sua representação do regime republicano como de fachada e pouco interessado

com as dificuldades de sua população pobre, serve com uma metáfora da percepção

da não efetivação dos anseios por melhoria das condições de vida dos negros no

pós-abolição que a República, com sua consolidação da extensão da cidadania,

sinalizava como possível.

A “fachada” republicana se reflete, material e simbolicamente, para Lima na

modernização da capital por meio de reformas urbanas, iniciadas nos governos

municipal e federal de respectivamente, Pereira Passos e Rodrigues Alves entre os

anos de 1902 e 1906, como detalharemos mais adiante ainda nesse item. Por ora,

podemos indicar que na crônica em destaque, Lima sinaliza como esse processo de

modernização excluía certos espaços da cidade do Rio de Janeiro, mais

distanciadas do seu centro, representando o caráter cenográfico e elitista das

reformas urbanas.

Como se pretendia conformar uma imagem de nação moderna do Brasil por

essas reformas da sua capital federal, Lima, inspirado na leitura da obra Le

bovarysm de Jules Gaultier (1852-1942), via, tanto nessa tentativa quanto nas

narrativas com as quais se defrontou, que visavam representar uma nação dentro

dos padrões eurocêntricos, tendo como referencial as teorias racialistas, uma

postura da administração pública e da intelectualidade brasileiras deturpadora da

realidade nacional. Publicado originalmente em 1902, Le bovarysm é um livro que

analisa algumas personagens encontradas na literatura de Flaubert (1821-1880)

entre as quais Ema de Madame Bovary (1857). Desse estudo, Gaultier formulou o

conceito de bovarismo que trata, em linhas gerais, do efeito negativo da construção

de uma autoimagem que prejudica o equilíbrio com o meio externo, provocando um

rompimento com as condições reais de existência. Ou seja, a “habilidade do homem

de se projetar aquilo que não é [...]”.73

[...] Em dose ideal, o bovarismo é positivo, porque move a humanidade. Osseres humanos são movidos pelo desejo, que os motiva a sair do estado emque se encontram na busca da situação-imagem desejada. Para que sejabenéfica, porém, essa busca deve esta cercada de senso crítico. Osindivíduos ou grupos devem saber discernir se o alçar vôo em direção à

73 FLAUBERT apud AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. Vida literária e desencantos: uma históriada formação intelectual de Lima Barreto (1881-1922). Orientadora: Maria de Fátima Fontes Piazza.2015. 341 f. Tese (Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 231.

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condição desejada está de acordo com a realidade, que lhes impõerestrições (hereditárias ou circunstanciais). 74

Lima realizou a leitura de Gaultier em 1905,75 aplicando seu conceito a

diversas situações vivenciadas no Rio de Janeiro.76 A falta de senso crítico na busca

da imagem desejada é a forma como Lima percebe os anseios de modernização de

sua época, principalmente no nacionalismo exacerbado que predominou em

diversos setores da sociedade brasileira. Não é à toa que o personagem mais

atingido pelo lado negativo do bovarismo é o ufanista Policarpo que discutimos na

parte deste trabalho voltada para análise do nacionalismo na cultura histórica de

início do século XX.

O bovarismo, nesse sentido, também se apresentava na forma como deveria

se rememorar momentos marcantes da história recente do país na época. A

conclusão de Lima na crônica “15 de novembro” na qual explicita – ironicamente,

depois de representar a República como um regime de fachada -, a visão dos

defensores de tal regime, especialmente os positivistas, que o viam como “um

grande passo na evolução política do país”, pode ser visto como mais uma forma do

autor apontar o bovarismo na sociedade brasileira.

Esse desejo barretiano de desconstruir as memórias que então procuravam

se estabelecer como oficial teve outros capítulos na sua literatura militante. Ainda

sobre o regime republicano, Lima escreveu outra crônica na qual, partindo de

reflexões acerca das tentativas de grupos sociais se fazerem lembrados como

legítimos representantes da República, realizou mais uma reatualização do seu

significado histórico. Lima a intitulou “Tribunal histórico republicano”, sendo

publicada na Careta de 24 de janeiro de 1920.

O cronista afirma que é um divertimento para aqueles, como ele mesmo que

nasceram nos últimos anos da monarquia, “ver os estertores da porção de ingênuos

que se intitulam republicanos históricos [...], para não serem de todo esquecidos”.77

Lima considera que hoje esses tipos de republicanos têm aumentado muito bem

como um erro quererem eles julgar os que têm governado. O que deveria ser

74 BELCHIOR, Pedro. A capital do bovarismo: modernidade, cidade e memória em Lima Barreto(1881-1922). In: ENGEL, Magali Gouveia; CORRÊA, Maria Leticia; SANTOS, Ricardo Augusto dos.Os intelectuais e a cidade: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012, p. 210.75 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 93-94.76 Id. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença. Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 327-330.77 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 108.

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julgado era a própria república, segundo o autor. A partir disso, Lima expressa sua

versão do que havia se passado no 15 de novembro.Uma rematada tolice que foi a tal república. No fundo, o que se deu em 15de novembro, foi a queda do partido liberal e a subida do conservador,sobretudo da parte mais retrógada dele, os escravocratas de quatrocostados.Isso de Benjamin Constant, Lopes Trovão, Silva Jardim foi uma isca que osmatreiros “bois do coice”, “rapa-cocos” e outros de igual jaez se servirampara “forrar” a opinião da força e se apossarem do poder.Toda a nossa administração republicana tem tido um constante objetivo deenriquecer a antiga nobreza agrícola e conservadora, por meio de tarifas,auxílios à lavoura, imigração paga, etc.É verdade que muitos que a ela não pertenciam, enriqueceram; mas não hárede por mais perfeita que não tenha algumas malhas em mau estado.Sempre escapa um camarão...Estou doido para ver funcionar esse tribunal e ver os seus julgadores.Quero ver como ele vai se tratar Floriano – Boqueirão – Moreira César –Pico do Diabo – Santa Catarina; quero ver como ele tratará Prudente –Canudos, Hermes – Satélite – Ilha das Cobras, etc., etc., etc.No meu parecer, se me fosse dado dar um conselho a tais históricos, eudiria: não mexam em casa de marimbondos.78

A breve retrospectiva que Lima realiza da República até aquele momento a

representa muito mais como um regime mantenedor de privilégios de grupos

oligárquicos, os quais se beneficiaram de séculos da escravização dos negros, do

que uma ruptura com a ordem social vigente até 1889. Além disso, faz alusão a

sujeitos republicanos que desejavam implantar o novo regime com a incorporação

do proletariado à sociedade (como representante deste modelo havia Benjamin

Constant, positivista que insuflava seus alunos da Academia Militar a perseguir o

ideal de liberdade inerente à República) ou via participação popular de modo

revolucionário (Lopes Trovão e Silva Jardim).

Essa alusão é feita na crônica com o intuito de apresentar aos leitores as

expectativas que a República gerava e que não foram contempladas. O regime é

caracterizado por Barreto como opressor da população, assim como fez na crônica

“15 de novembro” ao apontar que nos jornais do dia aniversário da República não se

discutia uma questão econômica ou política, mas um título do Código Penal. Dessa

forma, finaliza a crônica “Tribunal histórico republicano”, questionando como seriam

julgados os sujeitos envolvidos nos conflitos que mancharam de sangue o processo

de consolidação do regime.

Lima, então, indica nomes de presidentes da República, relacionando-os a

massacres como Canudos, Contestado, Revolta da Armada e Revolta da Chibata. O

78 Ibid., p. 108-109.

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autor sinaliza, nesse texto, momentos da história recente do país que tornavam

questionáveis certos mitos de origem do regime republicano, como também salienta

suas fissuras e arestas ainda não aparadas. Antes dessa crônica, Lima inseriu nos

seus dois primeiros romances publicados, trechos que rememoravam conflitos

ocorridos na capital federal, principalmente em Triste fim de Policarpo Quaresma

cujo enredo estava ambientado no período da Revolta Armada.

Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, seu narrador-protagonista, nos

bastidores da imprensa carioca, relata a seus leitores sua experiência na conturbada

cidade do Rio de Janeiro durante a Revolta da Vacina, transfigurada nesse texto

ficcional como revolta contra a obrigatoriedade do uso de sapatos. Isaías começa a

ter conhecimento da revolta ao presenciar um diálogo entre membros da redação do

jornal O Globo. Losque pergunta a Floc se havia lido o Jornal do Comércio e este

responde que não.

Diante disso, Losque esclarece que Teixeira Mendes havia atacado a lei dos

sapatos obrigatórios, justificando que “isso de andar calçado, de correção de traje,

em última análise entra no campo da estética, assim no espiritual em que não pode

o poder temporal intervir absolutamante...”, ironizando o positivista por meio de uma

pergunta se seria então com o papa que deveria discutir aquela lei. A piada levou os

dois representantes do O Globo a rirem.

Floc, no entanto, se mostra preocupado com a situação. “- [...] Há muita

irritação, muito azedume por aí...”. Losque também achava que a situação não

acabaria bem. Nesse momento, entra o jornalista Leiva, “que fazia política e Vida

Operária, e, percebendo o tema da conversa de seus colegas de trabalho, interveio:

“- Vocês não imaginam... As coisas estão feias! Estive na Gamboa e na Saúde... Os

estivadores dizem que não se calçam nem a ponta de espada. [...]”.79

Já nesse início da narrativa sobre a suposta situação conflituosa que se

insinuava por conta da obrigatoriedade do uso de sapatos, o narrador apresenta

vários elementos que denotam que o referente trazido para o texto ficcional por Lima

tem relação com o contexto da Revolta da Vacina, ocorrida em 1904. Esta eclodiu

num momento que a reforma urbana do prefeito Pereira Passos, que também

contava com ações do governo federal sob a presidência de Rodrigues Alves, já

havia se iniciado. Para que possamos melhor delinear esse contexto e percebemos

como Lima dele se apropriou, transformando-o em matéria literária a fim de produzir

79 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?], p. 180.

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uma memória sobre o recente regime republicano, vale trazermos alguns detalhes

dessa reforma urbana.

Depois do saneamento das finanças e da estabilização política do país,80

ocorridos durante o governo Campos Sales (1898-1902), surgiram as condições

para que a cidade do Rio de Janeiro passasse por transformações almejadas pelos

seus dirigentes, elites e escritores comprometidos com a modernização do país. O

seu sucessor, Rodrigues Alves, também representante das elites paulistas que já

haviam promovido medidas sanitárias na capital do estado de São Paulo, pôde,

então, promover as mudanças destacadas no seu “Manifesto à Nação” de 15 de

novembro de 1902.81

Nessa declaração, o saneamento da capital federal foi considerado a

prioridade para a transformação do país numa auspiciosa economia capitalista. Para

que isso se realizasse, foi tomado pelo governo federal um empréstimo de 8.500.000

libras aos banqueiros Rothschild e designado para a prefeitura da cidade do Rio o

engenheiro Pereira Passos, que, assim como Hausmann em Paris de meados do

século XIX, dispôs de plenos poderes para intervir no espaço urbano.82 Além disso,

nomeou o médico Oswaldo Cruz para direção do Serviço de Saúde Pública, ao qual

também foi garantido grande autoridade para executar suas atividades.83

Os governos federal e municipal procuraram efetuar a reforma da cidade com

a colaboração de empresas privadas que haviam recebido concessões para a

realização das obras. Ao governo federal coube a tarefa da abertura de uma avenida

central e a modernização do porto, juntamente com avenidas complementares,

80 Campos Sales assinou, em 1898, um acordo com os Rothschild pelo qual o Brasil receberia umempréstimo de 10 milhões de libras esterlinas, comprometendo-se a ter um austero controle das suasfinanças e garantindo, caso fosse necessário, a hipoteca das rendas alfandegárias do Rio de Janeiroe dos outros portos. Já para evitar choques políticos, o presidente estabeleceu a política dosgovernadores que consistia no respeito e apoio pelo governo federal das decisões dos governosestaduais, sendo estes, por sua vez, incumbidos de ajudar a eleger para o Congresso Nacionalsomente parlamentares que fossem simpatizantes do presidente da república. Vale salientar, contudo,que essa política foi possível em seu governo, assegurando a Sales fazer seu sucessor. Isso muito sedeveu ao apoio de um seleto grupo de estados-atores – Minas, São Paulo e Bahia. O modelo deSales estabilização política do regime deixou de regular o seu principal elemento disfuncional: ofundamento de sua própria renovação. O que implica afirmar que seu grau de estabilidade deve serrelativizado. Para maiores detalhes Cf. VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O teatro das oligarquias:uma revisão da “política do café com leite”. 2 ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012, p. 34-37.81 BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro: In:FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília. O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente: darepública à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 255.82 PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris,Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002, p. 129.83 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 93.

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criando a Comissão Construtora da Avenida Central sob a chefia de Paulo de

Frontin cujos planos de Empresa Industrial de Melhoramentos do Brasil serviram de

base às obras projetadas e supervisionadas pela Comissão das Obras do Porto.

Esta, por sua vez, foi nomeada pelo ministro da Viação Lauro Muller e chefiada por

Francisco Bicalho,84 o mesmo engenheiro que terminou a construção da planejada

cidade de Belo Horizonte em 1887.

Já a prefeitura do Rio se responsabilizou pela abertura de vias de

comunicação duplas e arejadas em substituição das ruas estreitas a fim de produzir

espaços mais “higiênicos” e meios que possibilitassem uma melhor ligação entre os

diversos bairros da cidade. A municipalidade também se encarregou da “canalização

de vários riachos, o ajardinamento e arborização de praças e ruas, a abertura de

novas praças, a construção de três novos mercados, do Teatro Municipal, a

remodelação do Paço Municipal, entre outras.85

A atuação de Oswaldo Cruz teve início com o combate da febre amarela e,

em seguida, abril de 1903, voltou-se para a peste bubônica “cujo combate exigia a

exterminação de ratos e pulgas e a desinfecção de ruas e casas”. Os alvos das

visitas das brigadas sanitárias eram as áreas mais pobres e de maior densidade

demográfica da cidade do Rio. Tal atividade perturbou a vida de milhares de

pessoas, principalmente dos proprietários das casas desapropriadas para demolição

e das casas de cômodos e cortiços anti-higiênicos, obrigados a reformá-los ou

demoli-los, e dos inquilinos que foram forçados a receber os empregados da saúde

pública, sair das casas para desinfecções ou até mesmo a abandonar a habitação

em caso de demolição.86

A essas ações que modificavam a rotina dessas pessoas, devem ser

mencionadas também as desapropriações no centro do Rio para a construção da

nova avenida que começaram em dezembro de 1903, seguidas das demolições

iniciadas em fevereiro do ano 1904.87 Isso forçou a saída da população pobre e

84 Para a execução dos trabalhos do porto foi contratada a firma britânica C. H. Walker, que construíraas docas em Buenos Aires. Cf. BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidadedo Rio de Janeiro: In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília. O Brasil Republicano: o tempo doliberalismo excludente: da república à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,p. 256.85 PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris,Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002, p. 189.86 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 93-94.87 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 93.

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trabalhadora que ali residia, a qual se mudou para os morros próximos ao centro,

algumas áreas que não foram alvo da reforma perto do cais e subúrbios (estes mais

acessíveis para funcionários públicos de baixo escalão e outros profissionais que

tivessem condições de arcar com as despesas com transporte).88

Pereira Passos ainda baixou várias posturas que também intervinham no

cotidiano dos habitantes da cidade, especialmente dos ambulantes e mendigos. O

prefeito mandou recolher os mendigos a asilos, proibiu cães vadios e vacas leiteiras

nas ruas, a cultura de hortas e capinzais, a criação de suínos e a venda ambulante

de bilhetes de loteria. Nesse ambiente, Oswaldo cruz começou sua luta pela

implantação da vacina obrigatória contra a varíola, terceira epidemia que visava

erradicar.89

O projeto de lei, que tinha como objetivo tornar a vacinação obrigatória, foi

aprovado em 20 de julho de 1904 no Senado e na Câmara no final de outubro,

tornando-se lei no dia 31 desse mês. No entanto, teve opositores, destacando-se, no

Senado, o tenente-coronel Lauro Sodré e, na Câmara, o major Barbosa Lima,

ambos militares positivistas e florianistas. Já fora do Congresso, o combate à

obrigatoriedade teve como base a imprensa, principalmente o Correio da Manhã, o

qual era representado no romance barretiano pelo jornal O Globo, e o Commercio do

Brazil.90

Valer salientar que havia relações estreitas entre o senador Lauro Sodré e o

Correio da Manhã. O seu diretor, Edmundo Bittencourt, havia apoiado a candidatura

de Lauto Sodré (este fora governador do Pará e saiu derrotado nas eleições

presidenciais de 1898 nas quais o antecessor de Rodrigues Alves obteve êxito) para

o senado, juntamente com os cadetes das Escolas Militares. Outro parlamentar que

também apresentava proximidade com a imprensa e era contrário à lei da vacinação

obrigatória foi o deputado positivista Alfredo Varela. Este fora ex-aluno da Escola

Militar do Rio, protegido de Júlio de Castilhos como Barbosa Lima e com, o auxílio

financeiro de monarquistas de São Paulo e do Rio, fundara o jornal Commercio do

Brazil em maio de 1904.91

88 MORAES, José Geraldo V. de. Cidade e cultura urbana na Primeira República. 2 ed. São Paulo:Atual, 1995 (Coleção Discutindo a História do Brasil), p. 58.89 CARVALHO, José Murilo de. Op.cit., p. 95.90 Ibid., p. 96.91 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 96-97.

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Como vimos, Recordações do escrivão Isaías Caminha denunciava o poder

crescente da imprensa na jovem República brasileira e seu autor se manteve atento

às disputas políticas que a desestabilizam. No trecho acima destacado, Isaías fica

ciente do início da revolta por meio de membros do jornal O Globo, sendo que um

deles, Losque, anuncia um dos argumentos positivistas para justificar a sua

oposição à lei de obrigatoriedade do uso de sapatos, transfiguração da lei da

vacinação na narrativa barretiana. Os positivistas ortodoxos baseavam sua oposição

em dois pontos.

Pelo primeiro, de caráter científico, “interpretavam o pensamento de Comte

como tendo sido contrário à teoria microbiana das doenças.” Quanto ao segundo, de

cunho filosófico faziam com que não aceitassem qualquer intromissão do governo,

poder temporal, no domínio da saúde pública, a qual deveria estar reservada ao

poder temporal.92 Daí a forma debochada como Losque tratou esse último

argumento, questionando se deveria, então, consultar o papa.

Outros elementos que evidenciam como a representação realizada por Lima

se refere à Revolta da Vacina naquele diálogo são os presentes no relato de Leiva,

no qual se aponta uma das categorias envolvidas – os estivadores – e locais da

cidade onde teve grande resistência popular – Gamboa e Saúde. Temos também

que destacar nessa transfiguração da Revolta da Vacina, a escolha do autor pela

criação de um motim contra o uso obrigatório de sapatos na cidade que se

modernizava. Acima sinalizamos que a reforma urbana foi acompanhada por

posturas da prefeitura que intervinham no cotidiano dos seus habitantes bem como

Lima via nessas transformações do espaço urbano uma ação mais cenográfica, de

fechada. Então, essa transfiguração salienta mais um aspecto desse processo de

modernização que era apresentar aos freqüentadores do centro do Rio, uma

imagem espelhada das cidades ditas civilizadas europeias e norte-americanas com

seus habitantes bem trajados.

A própria continuidade do diálogo entre os jornalistas de O Globo se

configura como um momento do romance no qual Lima representa o passado

recente da cidade, visando apontar pontos de vista controversos aos dos entusiastas

da modernização do Rio. Floc considera o uso obrigatório de sapatos como

necessário, pois “causa má impressão ver essa gente descalça... Isso só nos países

atrasados! Eu nunca vi isso na Europa... Floc é interrompido por Gregoróvich que

92 Ibid., p. 97-98.

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entra na sala, afirmando que no norte da Europa era justo o uso dos sapatos devido

ao clima frio, “mas no Sul, em Nápoles, na Grécia [...]”.93

Floc contesta seu colega de trabalho, declarando que esses lugares não são

Europa e levando Gregoróvich à seguinte réplica:- Engraçado! Com que liberdade modificas a geografia... E em

Londres?- Que tem Londres?- Que tem! Não há cidade do mundo em que a multidão seja maisandrajosa, mais repugnante...- Andam de casado e sapatos! Gritou triunfalmente Floc.- Que casaco! Que sapatos! Naturalmente que hão de procurarcoberturas para o frio, mas onde vão buscá-las? Ao lixo e é umdisparate! Se queres uma multidão catita, arranja meios de seremtodos remediados. Vocês querem fazer disto um Paris em que sechegue sem gastar a importância da passagem ao mesmo tempoganhando dinheiro, e esquecem de que o deserto cerca a cidade,não há lavoura, não há trabalho enfim..94

A preocupação aqui é com as consequências sociais da reforma urbana,

principalmente para as camadas mais pobres que não poderiam mais trabalhar

como ambulantes nem residir no centro da cidade, tendo seu custo de vida

aumentado. Esses anônimos eram o foco da atenção de Lima Barreto que registrou

em seu diário as suas impressões da repressão que observou nas ruas do Rio

durante a Revolta da Vacina, o que nos permite, como veremos, levantar a hipótese

de que a transfiguração que realizou dela no romance tem haver também com seu

receio de tratar o tema e sofrer possíveis retaliações.

No mês de novembro de 1904 (o dia não foi registrado), Lima anotou que

havia visto, “durante as masorcas” daquele mês, um grupo de agentes pararem

cidadãos e os revistarem. Segundo Lima, o governo classifica “os oposicionistas à

vacina, com armas na mão”, como “vagabundos, gatunos, assassinos”, mas

“esquece que o fundo dos seus batalhões, dos seus secretas e inspetores, que

mantêm a opinião dele, é da mesma gente”.95 Além de apontar a criminalização dos

envolvidos na revolta, Lima ainda registra as vantagens da masorca.

A primeira foi a demonstração de que o povo do Rio de Janeiro pode ter

opinião e “defendê-la com armas na mão”. As segunda e terceira vantagens se

referem ao rebaixamento moral dos militares. “Pela primeira vez”, afirma Lima, tinha

93 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?], p. 181.94 Ibid., loc.cit.95 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 47-48.

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visto “entre nós não se ter medo de homem fardado. O povo, como os astecas ao

tempo de Cortés, se convenceu de que eles também eram mortais.96

Esse protagonismo do povo assinalado por Lima era ignorado pelas versões

da revolta que surgiam em alguns periódicos, das falas de agentes da polícia e

intelectuais da época às quais certamente o literato teve acesso. Acerca disso,

podemos apontar O Paiz, segundo Carvalho, que se referia aos oposicionistas,

antes do início das hostilidades, como conspiradores querendo enganar a parte

menos culta da população. Começado o conflito, passou a denominá-lo de

marzorqueiros, baderneiros, arruaceiros e desocupados.

“A tendência geral, refletindo posição governista moderada, era ver a revolta

como exploração inescrupulosa da população ignorante por parte de políticos e

militares ambiciosos e atribuir a ação de rua às classes perigosas. De modo não

muito diferente, no relatório do chefe da polícia Cardoso de Castro, o povo do Rio

era apontado como ordeiro e não havia se envolvido nos distúrbios, sendo estes

“obra de dois mil vagabundos recalcitrantes, presos e condenados vária vezes que

fingiam de povo” liderados por Vicente de Souza, presidente da Liga Contra a

Vacinação Obrigatória.97

Rui Barbosa, por sua vez, considerava a reação contra a vacina justa98, mas

havia sido deturpada. “O verdadeiro povo ter-se-ia recolhido ao interior dos seus

lares, pois ele é resignado, submisso e fatalista”, sendo apenas as massas incultas

aquelas que se deixaram levar à mazorca. Esta versão foi também a de Olavo Bilac

que considerava como incultos os analfabetos.99

Lima, por outro lado, em suas anotações pessoais, estava mais preocupado

com a repressão sofrida pela população, escrevendo: “Profecia. Dos militares mais

ou menos envolvidos nas masorcas, nenhum sofrerá pena; dos civis, alguns se

suicidarão na prisão”.100 Mais adiante, registra o que seria a narrativa do sítio de

1904.

96 Ibid., p. 48.97 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 114-115.98 Caso não aceitasse a vacinação, o cidadão seria multado. Além disso, o atestado da vacinação eraexigido para matrículas em escolas, acesso a empregos públicos e fábricas, hospedagem em hotéis ecasas de cômodo, viagem, casamento e voto. Os opositores da vacinação também deram um tommoralista à campanha, anunciando que haveria a invasão do lar e ofensa à honra do chefe da famíliaausente ao se obrigarem suas filhas e mulher se desnudarem perante estranhos para a aplicação davacina.99 CARVALHO, José Murilo de. Op.cit., p. 115.100 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 48.

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[...] A polícia arrepanhava a torto e a direito pessoas que enontrava na rua.Recolhia-as às delegacias, depois juntavam na Polícia Central, Aí,violentamente, humilhantemente, arrebatava-lhes os cós das calças e asempurrava num grande pátio. Juntadas que fossem algumas dezenas,remetia-as à Ilha das Cobras, onde eram surradas desapiedamente . Eis oque foi o Terror do Alves; o do Floriano foi vermelho; o do Prudente, branco,e o Alves, incolor, ou antes, de tronco e bacalhau.101

Notamos, então, que aquela marca de regime opressor dada à República por

Lima, expressa nas suas crônicas acima discutidas, já estava consolidada no seu

pensamento desde o início do século XX. E muitos sujeitos anônimos foram vítimas

desse regime e, inclusive, o próprio Lima se sentia receoso de fazer parte desse

grupo. A permanência do autoritarismo e a marginalização da população pobre no

país foram transformados, desse modo em matéria literária. Ainda na suas

anotações de novembro de 1904, Lima confessa: “Este caderno esteve

prudentemente escondido trinta dias. Não fui ameaçado, mas temo sobremodo os

governos do Brasil”.102

Em linhas seguintes, escreve, em tom de denúncia, sobre a arbitrariedade do

governo nas prisões ocorridas mesmo após o término da Revolta da Vacina. “[...]

Toda a violência do governo se demonstra na ilha das Cobras. Inocentes

vagabundos são aí recolhidos, surrados e mandados para o Acre.”103 Lima ironiza

essa situação no estado de sítio em que se encontrava a cidade, salientando que

essa atuação violenta do estado no Brasil até aquele momento tinha sido uma

constante na sua história.Um progresso! Até aqui se fazia isso sem ser preciso estado de sítio; oBrasil já estava habituado a essa história. Durante quatrocentos anos nãose fez outra coisa pelo Brasil. Creio que modificará o nome: o estado desítio passará a ser estado de fazenda.De sítio para fazenda, há sempre um aumento, pelo menos no número deescravos.104

Mas em 1909, Lima resolve romper esse “segredo” guardado nas suas

anotações pessoais e procura tornar memorável essa experiência violenta da

Revolta da Vacina, apresentando a diversidade de grupos que reagiram ao governo.

Isaías descreve esse momento da seguinte forma:Uma força passava, era vaiada; se carregava sobre o povo, estedispersava-se, fragmentava-se, pulverizava-se, ficando um ou outro areceber lambadas num canto ou num portal fechado. [...] antes de entrar naRua do Ouvidor, a cavalaria, com os grandes sabres reluzindo ao sol, varria

101 Ibid., p. 49.102 Ibid., loc.cit.103 Ibid., loc.cit.104 Ibid., loc.cit.

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o largo com estrépito. Os curiosos encostavam-se às portas das casasfechadas, mas aí mesmo os soldados iam surrá-los com vontade e sempena. Era o motim.As vociferações da minha gazeta tinham produzido o necessário resultado.Aquele repetir diário em longos artigos solenes de que o governo eradesonesto e desejava oprimir o povo, que aquele projeto visava enriquecerum sindicato de fabricantes de calçado, de que atentava contra a liberdadeindividual [...], tudo isso tinha-se encrostado nos espíritos e a irritaçãoalastrava com a violência de uma epidemia.Durante três dias a agitação manteve-se. Iluminação quase não havia. NaRua do Ouvidor armavam-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhaspara impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas a bala erespondiam. [...]. Da sacada do jornal, eu pude ver os amotinados. Havia apoeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional,o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante, havia emissários depolíticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidospela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seuinimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e aabundância.105

Lima deixa entrever, por essa descrição feita do motim por Isaías, que não foi

apenas a propaganda contra a lei divulgada pela imprensa que levou vários grupos

sociais a desafiar o poder público. Não eram só desocupados ou arruaceiros, como

apontavam os jornais mais conservadores, que se revoltaram. Nesse sentido, a

descrição também esclarece que a não aceitação da obrigatoriedade do uso dos

sapatos106 (da vacinação) havia se tornado um estopim para a luta em defesa de

direitos civis e reação à opressão da polícia. Como afirmou Carvalho, “era a revolta

fragmentada de uma sociedade fragmentada.107

Isso nos leva a outro relato produzido por Lima no qual há também

sinalização da necessidade de inserção dos anônimos na cultura histórica da época.

Estamos nos referindo ao relato do personagem Quaresma acerca do massacre

ocorrido na Revolta da Armada. Esse personagem, que havia lutado ao lado do

governo, passou a prisioneiro após a escrita de uma carta para o presidente da

República, indignado com a arbitrariedade e a violência da repressão aos revoltos.108

A cena que o motivou a tal ato foi a relatada a seguir

105 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?], p.185.106 Vale salientar, conforme Schwarcz, que Lima faz alusão também a uma interdição antiga eimposta pela lógica dos costumes aos escravizados quando insere, no enredo, a suposta lei deobrigatoriedade do uso de sapatos. Os escravizados eram proibidos de calçar sapatos, sendo que,logo após a abolição, esses ganharam valor simbólico, levando muitos libertos às lojas para comprá-los. Os sapatos foram trasnformados em metáfora de liberdade. Cf. SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto:triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 226.107 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 138.108 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 348.

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Os prisioneiros se amontoavam nas antigas salas de aulas e alojamentosdos aspirantes. Havia simples marinheiros; havia inferiores; haviaescreventes e operários de bordo. Brancos, pretos, mulatos, caboclos,gente de todas as cores e todos os sentimentos, gente que se tinha metidoem tal aventura pelo hábito de obedecer, gente inteiramente estranha àquestão em debate, gente arrancada à força aos lares ou à calaçaria dasruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam se alistado por miséria; genteignara, simples, às vezes cruel e perversa como crianças inconscientes; àsvezes, boa e dócil como cordeiro, mas, enfim, gente sem responsabilidade,sem anseio políticos, sem vontade própria, simples autômatos nas mãosdos chefes e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor.109

O historiador Edgar de Decca, ao analisar esse relato de Quaresma,

compara-o a outras narrativas de massacre que circulavam no momento de

produção dessa obra datada por Barreto em janeiro-março de 1911. Em 1902,

Euclides da Cunha denunciava em Os Sertões a violência com que o exército

brasileiro massacrou os habitantes de Canudos, o próprio Lima vivenciou e escreveu

sobre a Revolta da Vacina e, naquele momento da escrita de Triste fim de Policarpo

Quaresma, havia passado poucos meses dos acontecimentos que envolviam a

revolta dos marinheiros liderados por João Cândido, outro movimento político de

oposição à República e defesa de direitos, o qual resultou num massacre levado a

cabo por outro marechal, Hermes da Fonseca.

Segundo Edgar de Decca, Policarpo Quaresma “dá as pistas para o

historiador investigar narrativas muito singulares do início da República”, as quais

relatam a participação de homens anônimos em acontecimentos representativos das

“faces brutais do poder a que estão expostos os homens comuns, quando

pretendem erigir-se em sujeitos históricos”. A criação de Policarpo por Lima se

apresenta como o “ingresso inusitado das pequenas personagens na cena da

história que, com seus dramas, ideias e sonhos, aproxima a vida cotidiana do

homem comum à dos heróis e dos grandes acontecimentos”.110

Assim como Isaías, Policarpo é outro personagem criado por Lima a fim de

compor uma narrativa alternativa ao discurso histórico que, anos depois, no capítulo

“Os heróis” de Os bruzundangas, foi duramente criticado, pois só se voltava para as

ações dos sujeitos que estavam à frente do poder político-administrativo. A fim de

evidenciar a importância dessa construção narrativa de Lima sobre o passado mais

109 Ibid., p. 343-344.110 DECCA, Edgar Salvadori de. Quaresma: um relato de massacre republicano entre a ficção e ahistória. In: DECCA, Edgar Salvadori de; LEMAIRE, Ria (orgs.). Pelas margens: outros caminhos daHistória e da Literatura. Campinas: Ed. Unicamp, 2000, p. 141-142.

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recente da República, vale apontarmos como a abordagem sobre esse momento foi

discutido pelos membros do IHGB.

O Instituto se manteve, desde o início da República, com sua função de coligir

materiais sobre a Nação. Muitos documentos sobre e do novo regime instaurado em

1889 deram entrada nos recintos do IHGB. Além de coligir documentos e trabalhos

sobre a jovem República, o IHGB também procurava contribuir com pareceres e

estudos sobre os acontecimentos recentes para a futura escrita “do grande livro” da

história nacional.111

O historiador Hruby notou que nesses pareceres sobre trabalhos enviados ao

Instituto os critérios variavam conforme a comissão, o que gerava, às vezes, alguns

impasses sobre o registro de fatos do passado mais recente. A questão que

levantava discussões era devida à imparcialidade, pois alguns membros

consideravam que as paixões ainda estavam vivas ao se escrever acerca desses

fatos, devendo-se evitar a emissão de juízos. Contudo, esse impasse não impediu

que episódios violentos da República fossem registrados, forçando autores e

comissões a relativizarem a austera imparcialidade.112

Até sócios do IHGB tomaram o passado recente (pós-1889) como objeto de

estudos nos trabalhos publicados na Revista. A Campanha de Canudos teve, por

exemplo, uma atenção especial. Antes mesmo da repercussão nacional devido às

ações militares mal sucedidas que foram enviadas para prender Antônio Conselheiro

e seus seguidores, o Instituto recebeu um relatório do Frei João Evangelista,

enviado pelo Diretor do Arquivo Público da Bahia, Frederico Lisboa, sobre o “célebre

fanático” em 1895.113

Em outubro de 1897, em pleno desenrolar do conflito no sertão baiano, o

sócio Manuel Francisco Correia “sugeriu que seria de manifesto interesse para a

História Pátria que se reunissem, desde já, elementos seguros sobre as ocorrências

que celebrizavam Canudos”. Essa sugestão se desdobrou no convite a Aristides

Augusto Milton - o qual embora tenha alegado, inicialmente, que era muito cedo para

escrever esta memória com exatidão e imparcialidade necessárias ao objetivo e

111 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 184-185.

112 Ibid., p. 186.113 Ibid., p. 189.

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glória do historiador – que apresentou, após três anos de pesquisa, o trabalho

Campanha de Canudos.114

Esse foi lido pelo autor nas sessões do Instituto a partir de agosto de 1900,

sendo em dezembro proposta pelo sócio Rocha Pombo a sua aprovação com um

voto de louvor ao trabalho “pelo critério e imparcialidade” com que fora escrito. Em

1902, Milton teve seu estudo publicado na Revista115 no qual, mesmo não

desmerecendo os seguidores de Conselheiro e até vendo o sertanejo como “uma

raça de heróis”, legitimava a forte reação do governo a fim de impor a paz e a ordem,

como condição fundamental para difundir o progresso e firmar a liberdade.

Milton, como natural do Estado da Bahia e seu representante no Congresso

Nacional na condição de deputado, estava mais preocupado em atacar as

insinuações da imprensa do Rio de Janeiro de que a Bahia era um reduto de

monarquistas.116 A memória dos sertanejos massacrados pelo governo republicano

ficou de fora de sua abordagem. Até a obra de Euclides da Cunha, nesse sentido,

estava mais voltada para a denúncia contra o exército da República do que uma

busca pelo registro das memórias de suas vítimas.

Essa fictícia imparcialidade do IHGB também aparece como critério ao se

tratar da fundação da República, a qual deveria ser analisada após o necessário

transcurso do tempo a fim de “aguardar a purificação de certas paixões”. Isso, no

entanto, não impediu que questionamentos ao governo republicano fossem feitos na

Revista do Instituto durante o “calor dos acontecimentos”. O governo de Floriano

Peixoto e sua herança jacobina foram os temas mais repudiados nos discursos e

artigos publicados na Revista, sendo que o Marechal de Ferro foi o único, entre os

chefes de estado no período de 1889 a 1912, a quem não se concedeu o título de

Presidente Honorário do IHGB.117

114 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p., 189.115 Outro sócio que escreveu sobre Canudos foi o marechal Emílio Dantas Barreto: A últimaexpedição de Canudos (1898), A revolução de 1906 (1907) e A destruição de Canudos (1912). Masnão foram publicados na Revista. Cf nota 736 de HRUBY, Hugo. Op.cit., p. 191.116 Ibid., p. 190.117 HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo na grande obra: a Históriado Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Orientador: Charles Monteiro.2007. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 191-197.

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Como vimos nas páginas anteriores, havia diferenças políticas dentro do

IHGB, e o tão criticado Floriano pôde aparecer, sob a pena do sócio Tristão de

Alencar Araripe, como um dos “nossos primeiros cidadãos”, a servir de exemplo de

virtudes cívicas ao lado de Deodoro e Benjamim Constant. Para Araripe, Floriano foi[...] o gênio da firmeza e do valor, que debelou a insurreição inopinadacontra a existência da nascente República, ameaçada pela restauração damonarquia, condenada e abolida pelo espírito nacional. A importânciaculminante deste serviço devido à tenacidade patriótica de tão preclarocidadão bem aquilatada foi com a designição de Marechal de Ferro ideadapelo instituto popular, que jamais se ilude na apreciação dos fatos e doshomens..118

Além disso, Floriano, segundo Araripe, salvou “a causa republicana”,

presidindo “a primeira eleição popular de um candidato civil ao cargo de chefe da

República”. Isso lhe deu grande prestígio e, “quando ânimos díscolos e imprudentes

provocaram a ditadura, ele no prazo constitucional entrega o poder ao eleito da

nação [...]”. Araripe, desconsiderando a recomendação de guardar um certo

distanciamento temporal para analisar acontecimentos recentes da República – ele

emitiu sua opinião nos anos de 1895 e 1897 -, havia “purificado” os exageros e

omissões dos envolvidos na primeira fase do novo regime, conforme Hruby.119

[...] Contra aqueles que afirmavam que a República, em 15 de novembro de1889, fora um ato de “surpresa” para o espírito público e de violência para aNação, ele [Araripe] contra-atacava caracterizando-os como possuidores de“falsa apreciação”, “ignorância” ou do propósito de desacreditar a causademocrática “recentemente triunfante”.Para Araripe, a “revolução” de 15 de novembro não consistia em um motimde quartéis, em uma sedição militar ou uma imposição pela força armada aopovo brasileiro. Os brasileiros, segundo ele, já não toleravam o regime doprivilégio “onde o acidente fortuito do nascimento estabelece direito para umente privilegiado governar cidadãos, a quem só a razão e a capacidadedevem dirigir”. Apesar de, na Europa, a proclamação da República tercausado surpresa, não se poderia duvidar, conforme Araripe, de que era“consenso universal”, entre os brasileiros a aceitação de sua instauração.[...].120

Lima Barreto não titubeou ao abordar os tempos recentes da República. Os

seus textos, ao contrário de alguns membros do IHGB, não apresentam em seus

contornos a suposta imparcialidade como freio para suas análises históricas. Assim

como o Instituto, Lima deu vazão na sua literatura aos momentos de instauração e

violentos do regime republicano. O que diferencia o literato é seu objetivo de deixar

evidentes as disputas pelo poder ainda latentes naquele momento, apresentar vozes

dissonantes ao discurso apaziguador como o do IHGB e construir memórias que

118 Apud Ibid., p. 202.119 Ibid., p. 201-202.120 Ibid., p. 202-203.

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permitam a inserção dos sujeitos anônimos na narrativa da história contemporânea

brasileira.

Desse modo, ainda no romance Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima

representa situações que levam os leitores a suspeitar, por exemplo, da certeza com

que Araripe narra a aceitação da República. Num dos diálogos entre militares

(Caldas e Albernaz), personagens que estiveram na linha de frente da instauração

do regime, o narrador os apresenta hesitantes em relação à derrubada da

monarquia.Vinham andando, à sombra das grandes e majestosas árvores do parqueabandonado; ambos fardados e de espada. Albernaz, depois de um curtointervalo, continuou:- Você viu o imperador, o Pedro II... Não havia jornaleco, pasquim por aí,que não o chamasse de “banana” e outras coisas... Saía no carnaval... Umdesrespeito sem nome! Que aconteceu? Foi-se com um intruso.- E era um bom homem – observou o almirante. – Amava o país... Deodoronunca soube o que fez.Continuavam a andar. O almirante coçou um dos favoritos e Albernaz olhouum instante para todos os lados, acendeu o cigarro de palha e retornou aconversa:- Morreu arrependido... Nem com a farda quis ir para a cova!... Aqui paranós que ninguém nos ouve: foi um ingrato; o imperador tinha feito tanto portoda a família, não acha?- Não há dúvida nenhuma!... Albernaz, você quer saber de uma coisa:estávamos melhor naquele tempo, digam lá o que disserem...- Quem diz o contrário? Havia mais moralidade... [...].121

Como parte dessa produção de uma memória que se opõe à elaborada e

transmitida pelos defensores do regime republicano, devemos ainda destacar a

forma como Lima insere nessa narrativa os personagens negros. Já vimos acima

que o romance, de um modo geral, relega esses personagens a situações

periféricas. Mesmo assim, essas aparições são ricas, simbolicamente, para a

compreensão da rememoração histórica pretendida pelo autor.

Novamente, vamos nos valer de parte do pensamento desenvolvido por Elvya

Pereira, mas, desta vez, no artigo intitulado “História à revelia: Quaresma e as ruínas

alegóricas”. Neste, a autora, fundamentando-se na perspectiva benjaminiana de

História, se volta para as linhas de descontinuidade, ou seja, as fraturas históricas,

os fragmentos de mundo na representação do negro. Pereira busca “uma outra via

de leitura que se venha a somar ao modelo que incide sobre o ufanismo,

criticamente revisto no romance”.122

121 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 247-248.122 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. História à revelia: Quaresma e as ruínas alegóricas. In:CHIAPPINI, Lígia; BRESCIANI, Maria Stella (orgs.). Literatura e cultura no Brasil: identidades efronteiras. São Paulo: Cortez, 2002, p. 63.

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Assinalamos no item 2.3.1, quando comentávamos sobre a presença de

personagens negros no romance, que Quaresma havia se decepcionado com a falta

de memória da preta velha Maria Rita, pois essa não se recordava de cantigas

“genuinamente nacionais”. A única cantiga que se lembrou foi a “Bicho Tutu”:É vem tutuPor trás do murunduPara cume sinhozinhoCum bucado de angu.123

Pereira considera que um registro histórico é marcado nesse episódio que

envolve Maria Rita. Ao indagar sua memória, essa personagem se recorda do que,

para aqueles homens brancos, seria apenas “uma canção de embalar criança”.

Diante do contexto ficcional e social da narrativa barretiana, Pereira afirma que a

canção pode ser lida também comoum fragmento, uma ruína histórica na qual ascende uma imagem de si e deseu povo (imagem do outro na ordem social vigente), cujas marcas daescravidão pelo sinhozinho ainda estavam muito acentuadas. O “Tutu”, nãopercebe o ufanismo de Quaresma, reflete uma fala singular, traz à tona oimaginário destes que ficaram à margem da história, que foram submetidosaos golpes da opressão, manifestando, sintomaticamente, naquela inocentecanção, o desejo antropófago [...] em relação à figura do outro – o senhorescravagista. [...].124

Fragmentos e ruínas também são lidos por Pereira pela forma como o

narrador descreve o caminho que leva à moradia de Maria Rita bem como os seus

espaços externo e interno.O bonde que os levava [Quaresma e Albernaz] até à velha Maria Rita,percorria ums dos trechos mais interessantes da cidade. Ia pelo Pedregulho,uma velha porta da cidade, antigo término de um picadão que ia ter a Minas[...].A casa da velha preta ficava além do ponto, par as bandas da estação daestrada de ferro Leopoldina [...].Apanharam afinal o carreiro onde ficava a casa da Maria Rita. [...] Para alémdo caminho estendia-se a vasta região dos mangues, uma zona imensa,triste e feia, que vai até o fundo da baía e, no horizonte morre ao sopé dasmontanhas azuis de Petrópolis. Chegaram à casa da velha.125

Pereira percebe “interessantes signos do passado que se apresenta como

fragmentos” nesse trecho da narrativa. Esses signos – “velha porta” e “antigo

término” – “desaguam na vasta região do mangue onde vivem os excluídos”. A

própria designação da Maria Rita sofre uma inversão, “do coloquial preta velha para

123 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011 Triste fim dePolicarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 139.124 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. Op.cit., p. 68.125 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 105-107.

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o estigmatizante velha preta, como a precisar um indisfarçável lugar de exclusão”.126

A representação dos fragmentos de um passado é ainda mais adensada quando se

descreve o ambiente exterior da casa de Maria Rita.Ficava um pouco afastada da estrada. À direita havia um monturo: restos decozinha, trapos, conchas de mariscos, pedaços de louças caseiras – umsambaqui a fazer-se para gáudio de um arqueólogo de futuro remoto; àesquerda, crescia um mamoeiro e bem junto à cerca, no mesmo lado, haviaum pé de arruda. Bateram.127

As expressões “monturo” e “sambaqui” que espera por um arqueólogo são as

que mais refletem a proposta do autor em representar restos de uma cultura

fraturada que necessitam de um hábil estudioso para que venham emergir do

esquecimento a que eram submetidos por uma cultura histórica ancorada na visão

dos vencedores. Dos hábitos domésticos às práticas espirituais, “aqui sugeridas pelo

pé de arruda, índice da prática curandeira da reza”,128 Lima sugere, nesse trecho,

um amplo leque de aspectos da vida cultural da população que deveriam fazer parte

da narrativa acerca da história pátria, como vimos também Capistrano apontar nos

seus textos.

Como a própria expressão “monturo” suscita a imagem de algo que não se

decompôs, ainda permanece, para que esses fragmentos do passado possam

emergir nas futuras narrativas, Lima “recomenda” que os intelectuais deveriam “ler

nos fragmentos, nos desvãos da história dos vencedores, a voz e a razão dos

vencidos, dos que ficaram na vasta região de mangue, uma zona imensa, triste e

feia”.129 Ao descrever o interior da casa, o autor Lima demonstra um grande poder

de síntese “na configuração de um ambiente ao mesmo tempo físico e espiritual,

doméstico e sociocultural, pontual e histórico”.130

A sala era pequena e de telha vã. Pelas paredes, velhos cromos defolhinhas, registros de Santos, recortes de ilustrações de jornais,baralhavam-se e subiam por elas acima até dois terços da altura. Ao ladode Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Vítor Emanuel comenormes bigodes em desordem; um cromo sentimental de folhinha – umacabeça de mulher em posição de sonho – parecia olhar um São João

126 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. História à revelia: Quaresma e as ruínas alegóricas. In:CHIAPPINI, Lígia; BRESCIANI, Maria Stella (orgs.). Literatura e cultura no Brasil: identidades efronteiras. São Paulo: Cortez, 2002, p. 69.127 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011 Triste fim dePolicarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 107.128 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. Op.cit., p. 69.129 Ibid., p. 70.130 Ibid., loc.cit.

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Batista ao lado. No alto da porta que levava ao interior da casa, umalamparina, numa cantoneira, enchia de fuligem a Conceição de louça.131

Desse “conjunto assistemático de referências e valores”, Pereira destaca a

parte final em que a imagem de louça de uma santa cristã é coberta pela fuligem

negra oriunda de uma lamparina. A autora, tendo como base os conceitos

benjaminianos de alegoria e aura132, afirma que essa imagem remete “à perda da

aura e à dessacralização da “Conceição de louça” (e do próprio cristianismo

enquanto religião do outro)”. A lamparina, por sua vez, nessa imagem, é

ressignificada como a “marca de um outro tempo, índice de uma outra história que

se impõe”.133 É a alegoria de tempos ancestrais dos quais a Maria Rita e os outros

descendentes de africanos são originários.

Temos, então, mais uma recomendação barretiana para aqueles que não

vislumbravam na época a inserção dessa outra história na narrativa nacional. Em

páginas seguintes do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima cria uma

outra cena em que a memória dos vencidos emerge novamente. Num diálogo entre

Quaresma e seu empregado no sítio, “o preto Felizardo”, apresenta-se uma alusão

ao sentimento de muitos negros diante do recrutamento compulsivo de escravizados

para a Guerra do Paraguai (tema presente na escrita barretiana já naquela versão

incompleta de Clara dos Anjos de 1904) devido à escassez de homens livres aptos

para o serviço militar.Felizardo entregou-lhe o jornal que toda manhã mandava comprar àestação e lhe disse:- Seu patrão, amanhã não venho “trabaiá”.- Por certo; é dia de feriado... A independência.- Não é por isso.- Por que então?- Há “baruio” na Corte e dizem que vão “arrecrutá”. Vou pro mato...Nada!- Que barulho?- “Tá” nas “foias”, sim “sinhô”.Abriu o jornal e logo deu com a notícia de que os navios daesquadra se haviam insurgido e intimidado o presidente a sair dopoder.134

131 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011 Triste fim dePolicarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011., p. 107.132 Segundo Kothe, alegoria e aura guardam um traço comum de serem representação do outro, masse distinguem fundamentalmente na medida em que o outro da alegoria é o outro reprimido, enquantoque o outro da aura é a representação de uma superioridade sacralizadora sob a aparência deproximidade. Nesse sentido, dessacralizar a aura é um movimento em direção à alegoria. Cf.PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. História à revelia: Quaresma e as ruínas alegóricas. In: CHIAPPINI,Lígia; BRESCIANI, Maria Stella (orgs.). Literatura e cultura no Brasil: identidades e fronteiras. SãoPaulo: Cortez, 2002, p.71.133 Ibid., loc.cit.134 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011, p. 246.

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A proximidade de um conflito fez com que Felizardo relembrasse a

experiência de muitos escravizados. Na narrativa barratiana, em passagens

anteriores, o narrador já havia apresentado outros personagens, militares, que se

serviam da memória histórica da Guerra do Paraguai para se enaltecerem, mesmo

não tendo ido aos campos de batalha.135 A atitude de Felizardo, por outro lado,

estava ancorada na memória coletiva de outros grupos sociais e raciais, daí seu

pavor de uma possível repetição do passado, ainda que a escravidão não mais

existisse.

Essas marcas do tempo e as singularidades de experiências são trazidas

para o texto ficicional barretiano. O autor, assim como ensaiou nos seus esboços

literários de anos anteriores, apropria-se de uma memória histórica para trazer a

seus leitores não só os usos que se faziam dela no presente, mas também inserir

sujeitos ausentes na narrativa de momentos importantes da história nacional. E, no

final desse romance, Lima representa seu horizonte de expectativa com mais uma

retrospectiva histórica.

Apesar de toda a desilusão que seu protagonista passou e seu fim trágico, o

autor vislumbra uma possibilidade de mudanças sociais no futuro. Após frustrada

sua tentativa de intercessão, junto ao marechal Floriano Peixoto, em favor do seu

padrinho Quaresma, OlgaSaiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e selembrou que, por essas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quaisum dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos.Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de SantaTeresa, as casas, as igrejas; viu os bondes passarem; uma locomotivaapitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente,quando já a entrar do campo... Tinha havido grandes e inúmerasmodificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havidograndes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima...Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro deRicardo Coração dos Outros.136

Pereira vê nessa passagem uma retrospectiva histórica que é contextual e

metalingüística ao mesmo tempo. “A natureza contemplativa de suas especulações,

juntamente com a paisagem em que ela se locomove (marcada por veículos em

trânsito, como índices de um deslocamento da história [...]) culmina numa visão [...]

135 Ibid., p. 200-203.136 Ibid., p. 359-360.

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de confiança na história”.137 Percebemos ainda que o autor realiza também outra

sugestão para a escrita da história nacional, elencando como seus futuros

protagonistas representantes de grupos subalternizados. É uma mulher que vai ao

encontro de um homem que, no enredo do romance, representava os grupos

populares, após ter rememorado a resistência dos indígenas.

A saga de Lima em explicitar a presença desses sujeitos históricos e evitar o

apagamento de suas memórias tem continuidade na forma como analisa a

diversidade temporal presente na cidade do Rio de Janeiro.

4.2.1 Temporalidades da cidade e produção memorialística

Acompanhamos, no capítulo anterior, a crítica que Lima fez ao trabalho do

historiador da cidade do Rio e membro do IHGB José Vieira Fazenda. Ancorado no

pensamento de Renan, Lima esclareceu que só documentos escritos e oficiais não

seriam suficientes para o estudo do passado, tendo a imaginação um papel

importante nisso. A partir desse comentário, questionamos se Lima, nos seus textos

literários, efetivamente indicou outros recursos que poderiam ser utilizados pelos

historiadores a fim de produzir uma narrativa que não ficasse presa a fatos

administrativos e políticos.

Ainda em 1905, em pleno processo de modernização da capital federal, Lima

publica no jornal Correio da Manhã (o mesmo que seria duramente criticado no

Isaías Caminha), um folhetim sobre as escavações no morro do Castelo de abril a

junho. Com essa produção literária, o narrador, que é um jornalista, direciona a

atenção do público para o local em que foi fundada a cidade do Rio de Janeiro. O

seu trunfo para atrair os leitores foi a expectativa, crescente à época, de se

encontrar antigos tesouros escondidos pelos jesuítas, havia mais de dois séculos,

diante das ameaças “de confisco pelo braço férreo do Marquês de Pombal.138

“Verdade ou lenda, caso é que este fato nos foi trazido pela tradição oral e

com tanto mais viso de exatidão quanto nada de inverossímil nele se continha”.139

137 PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. História à revelia: Quaresma e as ruínas alegóricas. In:CHIAPPINI, Lígia; BRESCIANI, Maria Stella (orgs.). Literatura e cultura no Brasil: identidades efronteiras. São Paulo: Cortez, 2002, p. 73.138 BARRETO, Lima. O subterrâneo do morro do Castelo. Disponível em: www.virtualbooks.com.brAcesso em: 17 de ago. 2008, p. 3.139 BARRETO, Lima. O subterrâneo do morro do Castelo. Disponível em: www.virtualbooks.com.brAcesso em: 17 de ago. 2008, p. 3.

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Como uma das referências historiográficas da época, Fustel de Coulanges, afirmou,

numa lição pronunciada na Universidade Estrasburgo em 1862, que na falta de

documentos escritos se deve “escrutar às fábulas, os mitos, os sonhos da

imaginação”.140 Nesse sentido, Lima trouxe para sua narrativa uma parte da

memória cultural da cidade presente na oralidade. As lendas sobre existência de um

tesouro escondido nas galerias subterrâneas do morro havia tempo circulavam pelo

Rio e, naquele mesmo ano de 1905, a seção “Várias” do Jornal do Commercio

registrou: [...] Na fralda do morro, já cortado numa grande parte, apareceu sob a

picareta dos trabalhadores a boca de uma galeria. [...] Vai se verificar, finalmente,

que fundo de verdade tem a tradicional versão da existência de tesouros naquele

morro”.141

A partir de maio, o folhetim, então, apresenta as reportagens do narrador-

jornalista mescladas a documentos guardados por um “contador de histórias” local e

textos ficcionais relacionados a um romance que envolve uma condessa italiana, um

pirata e um jesuíta francês. Imaginário social e documentos não catalogados de

forma oficial são inseridos na cobertura jornalística, orientando as escavações dos

trabalhadores e os leitores e suprindo as lacunas que até então havia sobre as

possíveis riquezas escondidas pelos jesuítas.

No folhetim de 4 de maio de 1905, o narrador indica, no meio da multidão que

se apinhava curiosa diante do morro do Castelo, “[...] um senhor alto, de bigodes

grisalhos e grandes olhos penetrantes, cuja voz pausada e forte atrai a atenção de

toda a gente”. Este havia gasto dois terços de sua existência no esmerilhamento das

verdades ocultas nas entrelinhas de pergaminhos seculares”. O senhor chama a

atenção do público para uma trágica história amorosa que havia se passado entre

um jesuíta, uma condessa italiana e um pirata francês no convento existente no

morro.142

Diante dessas “revelações”, o jornalista indaga o senhor sobre documentos

que possuía para comprovar sua história. Esse informa que os têm e convida o

140 Apud LE GOFF, Jacques. História e memória. 7 ed. rev. Tradução: Bernardo Leitão, IreneFerreira & Suzana Ferreira Borges. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p. 489.141 Apud GUEDES, Amadeu da Silva. Diálogos de Lima Barreto com o cientificismo em OsBruzundangas e O Subterrâneo do Morro do Castelo. Orientador: Luis Filipe Ribeiro. 2012. 252 f.Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) – Programa de Pós-Graduação em Letras daUniversidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 178.

142 BARRETO, Lima. O subterrâneo do morro do Castelo. Disponível em: www.virtualbooks.com.brAcesso em: 17 de ago. 2008, p. 10-11.

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jornalista e seu acompanhante para irem a sua residência ver os tais documentos.

Isso levou os dois para “os lados da Gamboa. Já na residência do velho, os

visitantes começaram a ter acesso a informações sobre o passado colonial da

cidade, principalmente da ordem dos jesuítas com seus milhares de escravos,

propriedades agrícolas, engenhos de açúcar e casas comerciais.

Nesse ponto da narrativa, o autor destaca um elemento importante para se

compreender a formação da cidade, pois os jesuítas têm aí um papel fundamental.

O nascimento da cidade do São Sebastião do Rio de Janeiro é quase simultâneo à

instalação da ordem dos jesuítas no Brasil e sua influência na vida colonial é tão

grande ou até maior do que o poder governamental na época.143 Contudo, o

narrador não se contenta em apresentar ao público o passado da cidade, mas

também relacioná-lo com o presente.

Isso é feito de uma maneira fantástica nos capítulos do folhetim datados de 6

e 7 de maio. Ao comentar sobre os caminhos e conteúdos das galerias, o velho

afirma que ninguém está em melhores condições de encontrar “o que está lá dentro

que o próprio Marquês de Pombal, que pretendia confiscar as riquezas da

Companhia”. Isso causa grande estranhamento a seus ouvintes, o qual se torna

ainda maior quando o velho explica que Pombal e, o construtor da avenida, o Dr.

Frontin, são a mesma pessoa.144

Essa descoberta se deu numa sessão espírita para a qual um amigo levou

Frontin – na época diretor da Estrada de Ferro Central – a fim de resolver os

problemas deste com os desastres ocorridos na construção da ferrovia.145 “O Sr.

Frontin é o Marquês de Pombal na segunda encarnação!” Apresentação do chefe da

Comissão Construtora da Avenida Central como a encarnação de um representante

do poder colonial português sugere a continuidade da expropriação dos recursos do

Brasil.

Como sabemos, o Marquês de Pombal foi ministro de Portugal durante o

reinado de D. José I (1750-1777), sendo responsável pela modernização do estado

português, o que exigiu, por sua vez, uma cobrança maior dos tributos oriundos da

mineração e a expulsão dos jesuítas do Brasil e da metrópole com a consequente

143 GUEDES, Amadeu da Silva. Diálogos de Lima Barreto com o cientificismo em OsBruzundangas e O Subterrâneo do Morro do Castelo. Orientador: Luis Filipe Ribeiro. 2012. 252 f.Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) – Programa de Pós-Graduação em Letras daUniversidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 159.144 BARRETO, Lima. Op.cit., p. 18.145 Ibid., p. 18-19.

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apropriação de seus recursos, os quais foram transferidos para os amigos da coroa.

Muito dessa riqueza dos jesuítas, foi, contudo, obtida através de sua atuação no

Brasil desde os primeiros tempos da colonização, concluindo-se que a política

pombalina transferiu a posse de recursos gerados pelo trabalho cativo de indígenas

e negros a determinados componentes das elites portuguesa e brasileira.146

No tempo presente ao texto, a reforma urbana, que arrasava parte do morro

do Castelo, fez com que o governo nacional contraísse um empréstimo, o qual

forçou a adoção de uma forte política fiscal em que as camadas mais baixas da

população carioca foram prejudicadas. Essa sugestão na narrativa de expropriação

de recursos ao longo do tempo é ainda mais expresso no trecho de 28 de maio no

qual o narrador critica a posse pelo presidente da República, Rodrigues Alves, e

Paulo de Frontin de objetos encontrados nos subterrâneos do morro.

Rodrigues Alves se apodera de um crucifixo de ouro e Frontin de um

candieiro de ferro. A isso, o narrador afirma que qualquer cidadão tinha direito

àqueles objetos, apontando o Museu Nacional como o lugar mais adequado para

salvaguarda daqueles vestígios do passado.147 Aqui podemos perceber que Lima

não só denuncia o modo não democrático de gerir os recursos da cidade, realizado

por sujeitos que representavam a introdução da civilização no país, mas também o

apagamento de uma parte da história da cidade que a reforma urbana realizava ao

destruir parte daquele seu marco fundacional.

O subterrâneo do morro do Castelo é uma produção literária barretiana que

se configura como uma tentativa de manter viva a memória de um lugar significativo

para a cidade. Sua ironia constrói uma imagem a contrapelo do trabalho dos

modernizadores. Enquanto esses, ao escavarem o morro para dar continuidade à

reforma, viam-no como empecilho para o progresso e destinado ao desaparecimento,

Lima escavava o imaginário social em torno daquele local, retirando dos seus

subterrâneos, por meio de sua escrita, várias camadas temporais que incitavam o

público a uma aproximação afetiva da sua cidade.

Essa preocupação de Lima com a destruição de locais que serviam de

registro do passado do Rio se manifesta em outra produção textual. Em 27 de julho

de 1911, tem publicada a sua crônica “O Convento” na Gazeta da Tarde na qual

146 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2 ed. São Paulo: Edusp, 1995 (Coleção Didática 1), p. 109-111.147 BARRETO, Lima. O subterrâneo do morro do Castelo. Disponível em: www.virtualbooks.com.brAcesso em: 17 de ago. 2008, p. 49-51.

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manifesta sua insatisfação pela venda do prédio do Convento da Ajuda e sua

posterior demolição para a construção de um hotel. Ao longo da crônica, Lima faz

uma defesa da manutenção do monumento, apresentando informações históricas

acerca dele como também argumentos que se contrapõem aos dos defensores de

sua retirada do cenário urbano carioca.

À justificativa de que o convento, esteticamente, era incompatível com a

avenida Central e seus prédios, Lima contra-argumenta que as noções de beleza

arquitetônica possuem historicidade, afirmando:[...] se o Convento da Ajuda não é tão bonito como o Teatro Municipal, tantoum como outro não são belos. A beleza não se realizou em nenhum dos taisedifícios daquele funil elegante; e se deixo o Teatro Municipal, e olho o ClubMilitar, a monstruosa Biblioteca, a Escola de Belas-Artes, penso de mimpara mim que eles são bonitos de fato, mas um bonito de nosso tempo,como o convento o foi dos meados do nosso século XVIII.[...]O bonito envelhece, e bem depressa; e eu creio que, daqui a cem anos, osestetas urbanos reclamarão a demolição do Teatro Municipal com o mesmoafã com que meus contemporâneos reclamaram o do convento.”148

O que Lima procura denunciar é a “mutilação que vai sofrer a cidade”. A

demolição do convento, sendo este um lugar de memória, representa mais uma

ação da reforma urbana que dificultará a compreensão da cidade por sua própria

população, pois “uma cidade sem esses marcos de pedra de sua vida anterior, sem

esses anais de pedra que contam a sua história” se torna estranha a seus

moradores. Ainda mais que se pretendia, como de fato se fez, substituir a sua

arquitetura pelos modelos próximos aos de Paris e Buenos Aires.

Lima, nessa defesa do patrimônio arquitetônico da cidade, declara que a faz

enquanto cidadão, pois, pessoalmente, não gosta do passado (“não pelo passado

em si”) por conta do “veneno que ele deposita em forma de preconceitos, de regras,

de prejulgamentos nos nossos sentimentos”.149 Contudo, como vimos ao longo deste

trabalho, compreender o passado para alterar o presente estava entre os objetivos

de sua literatura, sendo assim, a preservação de suas marcas na cidade não poderia

estar ausente de sua agenda de intelectual militante e afetivamente ligado ao Rio de

Janeiro.

Como forma de registrar essa memória que aos poucos se desfazia diante

dos golpes das picaretas, Lima elabora um romance no qual seus personagens

148 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 98.149 Ibid., p. 100.

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principais, ao caminharem pela cidade, orientam o olhar de seus leitores para

recantos do Rio que ainda não foram afetados pela reforma, apresentando a sua

diversidade temporal e racial. Em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, o narrador-

personagem Augusto Machado e seu biografado, o personagem Gonzaga de Sá são

muito identificados com a cidade do Rio de Janeiro.

Gonzaga de Sá, um membro da antiga aristocracia carioca, numa de suas

conversas com Augusto Machado, expressa seu sentimento de pertencimento à

cidade: “[...] Eu sou Sá, sou o Rio de Janeiro, com seus tamoios, seus negros, seus

mulatos, seus cafuzos e seus “galegos” também...”.150 Já nessa autoimagem que

elabora, Gonzaga apresenta uma visão de cidade formada pela heterogeneidade

racial e, no transcurso da narrativa, sinais dessa diversidade são explicitados pela

passagem por vários locais da cidade. A capacidade de Gonzaga em se locomover

bastante pela cidade é uma de suas qualidades admiradas, aliás, por Augusto151 e a

chave de interpretação da memória que procurava preservar.

Gonzaga de Sá convida Augusto a acompanhá-lo numa visita ao subúrbio do

Engenho da Penha. Diante do desconhecimento de Augusto em relação a essa

localidade, Gonzaga responde em tom de repreensão: “ -Vocês só conhecem a

Tijuca e o Botafago. O Rio tem mais coisas belas... É ali. E apontou para o lado dos

Órgãos. [...]58.152 Gonzaga opera o deslocamento do olhar de seu amigo de áreas

nas zonas norte e sul da cidade, que haviam sido valorizadas pela reforma,153 para

uma das menos assistidas pelo poder público e com grande contingente de

trabalhadores e pobres.

Após saltarem do trem que os levou ao subúrbio, dirigiram-se a um botequim

no qual beberam cerveja e Gonzaga intima Augusto: “- Tens que andar um pouco a

pé...[...]. Como Augusto concorda iniciam a marcha pelo subúrbio. Esse percurso

realizado pelo personagens apresenta alguns sinais da proposta do autor ao

caminhar pela cidade. A escolha de Gonzaga de um botequim é emblemática.

Segundo Chalhoub, o botequim era como um centro aglutinador e difusor de

informações entre os populares154 e é justamente nesse local que Gonzaga fornece

150 BARRETO, Lima. Vida e Morte M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo:Brasiliense, 1961d, p. 59.151 Ibid., p. 63.152 Ibid., p. 59.153 GERSON, Brasil. História das ruas do Rio: e de sua liderança na história política do Brasil. 5 ed.Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2000, p. 348-349.154 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiroda belle èpoque. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 213.

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uma “dica” preciosa para Augusto: “Tens que andar”.... Metaforicamente, a “tática”155

que Gonzaga utiliza para apreender a cidade. O andar dava uma perspectiva da

cidade não distanciada na qual o caminhante poderia se situar no mesmo plano

daquilo que via, permitindo-se perceber com mais vagar os seus detalhes.

Desse modo, a caminhada os havia levado diante do mar e o narrador assim

descreve a paisagem: “Parecia mesmo um rio. Na frente, margem esquerda, o

manicômio com suas vertustas mangueiras joaninas e seu campo liso e arenoso.

Um ilhote que ficava no meio do canal tinha ainda em pé as paredes de um sobrado”.

Augusto pergunta a Gonzaga “o que era aquilo”.156

A partir desse momento, tem início um passeio cuja função é de

conhecimento, ou melhor, de ensinamento, pois não há imposição de uma direção.

O objetivo de Lima é dar a conhecer a seu público a história da cidade. Gonzaga,

então, responde a seu amigo:- É o Cambenbe. Aquelas paredes foram de um sobrado em cujo andartérreo havia uma venda.- Ali? Para que?- Antes das estradas de ferro, as comunicações com o interior se faziampelo fundo da baía, por Inhomirim, porto da Estrela, hoje tapera; e daí até ocais do Mineiros, em faluas que passam por aqui. Os tripulantes destas éque sustentam a venda que existiu há cinqüenta anos naquela ilhéu semuma árvore.157

A professora de teoria literária Aleida Assmann, dedicada à pesquisa sobre

memória cultural, afirma que, mesmo com o abandonado ou destruição de um local,

a sua história ainda não acabou. Os seus fragmentos “retêm objetos materiais

remanescentes que se tornam elementos de narrativas e, com isso, pontos de

referência para uma nova memória cultural”. Entretanto, esse local é carente de

explicação, sendo que seu significado precisa ser assegurado “complementarmente

por meio de tradições orais.158

155 Aqui utilizamos o sentido atribuído à tática por Certeau, ou seja, uma ação que visa se servir,vigilante, das falhas que, por ventura, possam surgir na estratégia daqueles que detêm mais poderdentro das relações de força de uma dada sociedade. Com isso, cria-se alternativas ao que lhe éimposto. É a astúcia. No caso acima, Lima se serve da faculdade de locomoção a pé, que nascidades modernas, com sua multidão nas ruas e baseada no tempo mecânico do relógio, obrigava ospassantes a realizá-la de modo aligeirado, para, num ritmo desacelerado, melhor observar a cidade.Cf. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução: Ephraim FerreiraAlves. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 100-101156 BARRETO, Lima. Vida e Morte M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo:Brasiliense, 1961d, p. 61.157 Ibid., loc.cit.158 ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural.Tradução: Paulo Soethe. Campinas, 2011, p. 328.

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Gonzaga de Sá exerce esse papel na narrativa barretiana, transmitindo a

memória da cidade ao se deparar com ruínas e prédios antigos ainda existentes.

Augusto, ao acompanhá-lo nas suas caminhadas, fica cada vez mais admirado com

a capacidade de seu amigo em relatar aspectos históricos da cidade.[...] era um gosto ouvi-lo sobre as coisas velhas da cidade, principalmenteos episódios tristes e pequeninos. Com uma memória muito plástica, deuma exatidão relativa mas criadora, ele não tinha securas de foral, de cartasde arrendamento ou sesmaria, nem tinha inclinação por tais documentos; eanimava a narração pontilhando-a de graça, de considerações eruditas, deaproximações imprevistas. Era um historiador artista e, ao modo daquelesprimevos poetas da Idade Média, fazia história oral [...]. Das coisas, dois outrês aspectos feriam-no intensamente e sobre eles edificava uma outra maisbela e mais viva. [...].159

Como exemplo dessa habilidade de Gonzaga, Augusto Machado relata que

emitiu, durante suas conversas, uma opinião negativa sobre a cidade, afirmando que

esta era estrambótica com partes que não se unem e tendente a nunca apresentar o

aspecto de uma grande capital. A reação de Gonzaga foi a de apresentar, dando

sequência àquele passeio de ensinamento, a fisionomia própria do Rio. Com sua

ojeriza à imposição de modelos estrangeiros de cidade, afirma que isso de todas as

cidades “se parecerem é gosto dos Estados Unidos”.

“[...] O Rio, [...] é lógico com ele mesmo, como sua baía o é por ela mesma,

por ser um vale submerso. A baía é bela por isso; e o Rio o é também porque está

de acordo com o local em que se assentou. Reflitamos um pouco sobre isso”.160

Observamos, a partir de então, que Lima insere aqueles trechos presentes no

esboço de Clara dos Anjos de 1904.

Nesses, a ação de diversos sujeitos (corsários e quilombolas) é um dos

pontos marcantes no processo de configuração do formato da cidade ao lado do

respeito a sua topografia bem como salienta a necessidade de um olhar aguçado

para detalhes de velhas construções e características de certas localidades

(Valongo e Saúde) a fim de identificar as peculiaridades de suas origens.161 Notamos,

portanto, que Lima já vinha desenvolvimento as suas ideias sobre a preservação da

memória da cidade ainda durante o processo de modernização do Rio.

Esses ensinamentos de Gonzaga começam a modificar a visão de Augusto.

Este, numa outra ida ao subúrbio na companhia do “historiador artista” consegue

perceber, pelo seu arruamento diferenciado (uma “rua começa larga, ampla, reta;”

159 BARRETO, Lima. Vida e Morte M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo:Brasiliense, 1961d, p. 64.160 Ibid., p. 65.161 Cf. item 1.2.

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mais adiante se bifurca, subdivide-se) e pela presença de casas construídas em

épocas diversas (casa senhorial de fazenda, novas edificações burguesas, casinha

acaçapada), a mistura de épocas162 que se via apagada no centro da cidade com

suas novas avenidas e ruas traçadas de maneira retilínea, a representar perspectiva

linear e progressiva do tempo.

Isso fez com que Augusto passasse a se sentir mais identificado com sua

cidade. “[...] Vivo nela e ela vive em mim!”. Ao esperar por Gonzaga no Passeio

Público, naquele que seria o último encontro deles, Augusto observa a paisagem e

relembra os “atos passados” de sua vida, saturando-se da “melancolia tangível”, a

qual é “o sentimento primordial” de sua cidade.163

O personagem sente orgulho de seu nascimento e, assim como a formação

da cidade do Rio se dera por grupos raciais diferentes, também é com orgulho que

verifica “nada ter perdido das aquisições” de seus avós, “desde que se

desprenderam de Portugal e da África”. A paisagem que o rodeia não é mais vista

como inédita, pois lhe conta a “história comum da cidade e a longa elegia das dores

que ela presenciou nos segmentos de vida que precederam e deram origem” à

sua.164

Esse sentimento de pertencimento à cidade do Rio com suas várias

temporalidades leva Lima a não se eximir de analisar as comemorações oficiais que

nela ocorreram e suas implicações na construção memorialística.

4.2.2 Comemorações do Centenário da Independência: escrita dahistória e espaço urbano

Segundo Rüsen, “o trabalho interpretativo da consciência histórica e seu

produto, a estrutura cognitiva chamada história, é concretamente manifestada na

cultura histórica de uma sociedade”.165 Essa é multidimensional, apresentando

expressões morais, pedagógicas, políticas e retóricas que se inter-relacionam. As

162 BARRETO, Lima. Vida e Morte M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo:Brasiliense, 1961d , p. 114.163 Ibid., p. 40.164 Ibid., p. 40-41.165 RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Tradução:Valdei Araujo; Pedro Caldas. Revista História da Historiografia. 2009, n. 2, p. 172. Disponível em:www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/12 Acesso em: 15 mar. 2015.

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celebrações de determinados marcos históricos, no seu intuito de rememorar uma

parte do passado de uma nação que atenda às necessidades de legitimação do

presente de determinados grupos que estão a sua frente, seja política, econômica e

socialmente, bem como forneça orientações para seu agir no futuro, constituem-se

como uma das exteriorizações da cultura histórica em que as suas dimensões

política e estética estão imbricadas.

Rüsen afirma que a dimensão política da cultura histórica está relacionada

com a legitimação de certa ordem política, “primeiramente com as relações de

poder”. Dessa forma, “a consciência histórica as inscreve nas concepções de

identidade dos atores políticos, nas construções e concepções do eu e do nós,

através de narrativas mestras que respondam a questão da identidade”.166 Não

tendo, portanto, ordem política que não requeira legitimação histórica. Ainda mais se

pensarmos no caso da República brasileira que ainda era recente no início do século

XX e envolta de grandes desafios como as desigualdades e conflitos sociais que a

faziam estremecer.

Quanto à dimensão estética, o autor alemão a relaciona com “a eficácia

psicológica das interpretações históricas, ou com a parte de seus conteúdos que

afetam os sentidos humanos”. Para Rüsen, uma “forte orientação histórica precisa

sempre envolver os sentidos” e, nas sociedades modernas, o memoriais, os museus

e exposições estão entre os meios familiares para representação histórica.167 O

Brasil, no apagar das luzes do século XIX e em princípios do XX, foi marcado por

comemorações de centenários que foram acompanhados por exposições e

publicações.

Em 1900, é celebrado o IV Centenário do Descobrimento. Nessa época, o

Brasil “estava às voltas com crises, econômica e política, bem como com um

profundo desalento frente à experiência republicana após uma década de lutas e

conflitos. Assim, as comemorações não poderiam deixar de discutir a viabilidade do

Brasil como nação moderna”.168Formou-se, então, uma comissão de ilustres para

levar a frente os seus preparativos.

166 Ibid., loc.cit.167 Ibid., p. 172-173.168 OLIVEIRA, Lucia Lippi. Imaginário Histórico e Poder Cultural: as Comemorações doDescobrimento. Revista Estudos Históricos. 2000, vol. 14, n. 26, p. 187. Disponível em:www.bibliotecadigital.fgv.br acesso em: 15 mar. 2018.

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Esses previam, originalmente, a realização de uma exposição retrospectiva

sobre a vida dos indígenas ou sobre a história do Brasil e outros eventos, mas a

situação financeira do país e conflitos políticos não permitiram a sua execução,

tendo os festejos uma dimensão reduzida. Em termos bibliográficos, tivemos o já

citado Por que me ufano do meu país de Afonso Celso e Contos pátrios de Olavo

Bilac e Coelho Neto nos quais se destacam a exaltação da natureza brasileira e o

convívio harmonioso entre as raças, “o que tornaria possível a construção de um

grande país no futuro”. Além desses, houve o Livro do Centenário, com seus 4

volumes publicados entre 1900 e 1910 pela Imprensa Nacional, que, ao fazer uma

reflexão enciclopédica, procurava não só divulgar a história do Brasil como “projetar

para as nações do mundo a imagem de um país amadurecido”.169

Ainda nos primeiros anos do século XX, uma outra comemoração de

destaque foi a de 1908 em que se festejava o centenário da abertura dos portos às

nações amigas. Segundo Margareth Pereira, a realização da Exposição Nacional de

1908 e as comemorações do primeiro centenário da abertura dos portos do país ao

livre comércio representaram o “grand finale de um primeiro tempo de interações

econômicas e culturais do Brasil com um mundo mais urbano e cosmopolita”170,

sendo as reformas do Rio de Janeiro, entre 1903 e 1906, uma das suas maiores

expressões.[...] No início do século XIX as autoridades municipais e federais, ainda maisconfiantes com as potencialidades do país, não restringiriam o programa detransformação e modernização da imagem nacional à arquitetura, aourbanismo e ao paisagismo na Capital Federal. Em 1908 o desafio seriamais ambicioso: celebrar o próprio comércio e desenvolvimento do país,realizando, ao mesmo tempo, um “inventário” do Brasil para os própriosbrasileiros.171

A exposição foi inaugurada em 11 de agosto e ficou aberta ao público até 15

de novembro de 1908, sendo visitada por mais de um milhão de pagantes, “muitos

deles oriundos de diferentes pontos do território nacional”. Nela, todos os estados da

Federação organizaram pavilhões ou estandes nos quais exibiam seus avanços

culturais e econômicos por meio de álbuns, fotografias ou catálogos. O Governo

169 Ibid., p. 189170 PEREIRA, Margareth da Silva. A Exposição de 1908 ou o Brasil visto por dentro. RevistaARQtexto16, p. 7. Disponível em:www.ufgrs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/pdfs_revista_16/01_MSP.pdf Acesso em: 18 de abr.2016.171 Ibid., loc.cit..

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Federal e a Prefeitura do Distrito Federal também se fizeram representar, exibindo o

desenvolvimento de seus serviços públicos.172

O Brasil desde o século XIX se inseria no circuito das Exposições Universais

e, partir de 1861, quando organizou a mostra preparatória da Exposição Universal

de 1862 em Londres, o governo brasileiro passou a realizar exibições nacionais com

o intuito de “pré-selecionar os produtos e realizações da indústria local que iriam

representar o país”.173 As exposições representavam um dos mais relevantes

espaços educativos da cultura do século XIX, pelas quais grandes parcelas de

habitantes das cidades eram ensinados a observar “povos, culturas e também a

hierarquizá-las a partir de uma visão única e evolucionista de desenvolvimento e

história”.174

“A elite cultivada brasileira” não se satisfazia com a imagem de país exótico

que era destinada ao país nesses eventos. E eram justamente os aspectos

considerados mais primitivos da mostra brasileira no exterior os ressaltados nos

jornais europeus, tendo algumas crônicas mencionado “a feiúra da capital do país,

cidade cheia de negros e doenças”.175 Nesse contexto, a organização de uma

exposição nacional numa data que simbolizava um século de inserção do Brasil no

livre comércio constituía uma oportunidade de apresentar para o exterior e sua

própria população os avanços da nação no caminho do progresso.

Se sobre o IV Centenário do Descobrimento Lima não se manifestou, quanto

às comemorações do centenário da abertura dos portos ele fez a sua cobertura pela

Revista da Época, editada por Carlos Viana. Em 1908, esse periódico, por ocasião

da Exposição, publicou um suplemento que foi redigido em grande parte por Lima

Barreto. Contudo, segundo o biógrafo Barbosa, a coleção da Revista da Época está

bastante desfalcada na Biblioteca Nacional e os números do período de Carlos

Viana se perderam no porão de sua casa em Paris, devorados “pelos bichos”.

Mesmo assim encontramos algumas impressões de Lima sobre a Exposição

nos seus registros pessoais dos dias 2, 3 e 6 de novembro de 1908. Lima observou,

172 PEREIRA, Margareth da Silva. A Exposição de 1908 ou o Brasil visto por dentro. RevistaARQtexto16, p. 7. Disponível em:www.ufgrs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/pdfs_revista_16/01_MSP.pdf Acesso em: 18 de abr.2016.

173 Ibid., p. 11.174 Ibid., p. 8.175 PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano. 2 ed. PortoAlegre: UFGRS, 2002, p. 168.

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principalmente, a grande freqüência do público e a apresentação das peças teatrais.

Percebemos, entretanto, que Lima não se mostrava entusiasmado com a Exposição,

salientando, no dia 3, que a chuva havia reaparecido, mesmo que “fraquinha” e a

exposição estava “agradavelmente vazia” com seus diretores, “de onde em onde”,

passeando “pelas ruas de chapéu-de–sol aberto, a olhar simpaticamente os raros

visitantes”.176

As suas impressões sobre outra comemoração de grande repercussão no

início do século XX podem trazer pistas esclarecedoras quanto à falta de entusiasmo

acima. Algumas crônicas de Lima Barreto publicadas entre os anos de 1920 e 1922

expressam sua preocupação quanto à relação entre História, memória, legitimidade

política, identidade e mudanças ocorridas em certos espaços da cidade do Rio de

Janeiro. Esses textos gravitam em torno de um evento carregado de simbolismo que

muito agitou a imprensa da época: as comemorações do centenário da

Independência do Brasil, iniciadas em setembro de 1922 e encerradas um ano

depois.

Durante a sessão especial de 9 de janeiro de 1922, realizada na sede do

IHGB, o seu presidente Conde de Afonso Celso afirmou que “[...] cerca de um quarto

de século, desde há vinte quatro anos [1898] cogita o INSTITUTO HISTÓRICO de

condignamente festejar o centenário da Independência”.177 Essa comemoração, tão

aguardada principalmente por certos grupos que procuravam moldar uma imagem

de país no caminho do progresso para o Brasil, mereceu do IHGB um número

especial de sua revista para relembrar os acontecimentos relacionados ao 7 de

setembro de 1822.

Jöel Candau, ao analisar o significado do ato de comemorar a partir do

pensamento de uma das grandes referências teóricas apreciadas no Brasil naquele

momento – Auguste Comte -, afirma que[...] aniversários e comemorações invadiam os calendários para organizaras memórias com a esperança de unificá-las, de tal maneira que elaspudessem participar do jogo identitário no sentido desejado por grupos ouindivíduos: legitimação, valorização, conjuração, exclusão, adesão aosacontecimentos fundadores, manutenção de ilusão comunitária, da ficçãode permanência e do sentimento de uma cultura comum [...].178

176 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 137.177 CELSO, Afonso. Sessão especial em 9 de janeiro de 1922. Revista do Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro, tomo especial, 1922, p. 5178 CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto,2016, p. 147.

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Nesse sentido, o momento das comemorações do centenário da

Independência do Brasil se constituía em mais uma oportunidade para se avaliar o

passado nacional, sendo considerado oportuno para “anunciar um novo país para as

outras nações e, para os próprios cidadãos brasileiros”. Dentro desse horizonte de

expectativas por meio do qual se procurou definir imagens nacionais, “modelando as

lembranças do passado para arquitetar os modelos formadores da nacionalidade”,179

percebemos o que Achugar denominou de esforço fundacional como pertinente para

caracterizar essas comemorações, pois oEsforço fundacional que, dito de passagem, constitui-se sempre a partir deum tempo posterior ao do tempo histórico, em que se supõe foi realizado omencionado esforço, já que o que é fundacional caracteriza-se como talpelas gerações posteriores, quando começam a construir ou reconstruir opassado e localizar, no passado, um momento que, talvez não tivesse osignificado que o presente lhe atribui, inventando, desse modo, começo damemória.180

Se considerarmos que, em termos mundiais, a crise gerada pela Grande

Guerra ainda era um “fantasma” causador de desconforto, buscar a construção de

uma imagem que representasse seus supostos progressos, pode ser vista como

algo almejado por muitas nações, principalmente para o governo brasileiro que tinha

iniciado seu regime republicano em fins do século XIX. Segundo Fernando Catroga,

“seja como recordação ou como esquecimento, nunca é o passado que se impõe ao

presente, mas é este, enquanto permanente tensão e protensão, que vai urdindo as

tonalidades da presença do ausente”.181

Desse modo, selecionar, dentro do quadro da memória histórica nacional, o

acontecimento representativo do início do Brasil como nação livre, foi uma estratégia

importante para construção daquela imagem, como também estabelecer uma versão

sobre o passado. E as cerimônias comemorativas são um dos modos de preservar

versões do passado. Esses usos da memória têm implicações sociais e, nesse

sentido, as observações de Lima sobre as comemorações do centenário da

Independência do Brasil podem contribuir para o adensamento dessa discussão.

Aleida Assmann, ao discutir mudanças de valores que levaram à

secularização do tempo e da memória, aponta a escrita como uma ferramenta

179JUNQUEIRA, Júlia Ribeiro. As comemorações do sete de setembro de 1922: uma re(leitura) daHistória do Brasil. Revista de História Comparada, 2011, 5-2, p. 157.

180 ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura.Tradução: Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 202.181 CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim do fim dahistória. Coimbra: Almedina, 2009, p. 19.

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importante nesse processo. Para essa autora, na era da imprensa a escrita criou

outros espaços de recordação, pois possibilitou que se quebrassem antigos

domínios sobre o acesso à memória e à história e novos agentes sociais passassem

a divulgar suas memórias.182 Se pensarmos essa potencialidade para o momento

acima apresentado, podemos observar as crônicas de Lima acerca do centenário da

Independência do Brasil como uma tentativa de elaborar uma outra versão sobre

esse acontecimento, bem como provocar discussões em torno da maneira como a

maioria da imprensa da época e o governo republicano, a partir daquele evento,

procuravam conformar uma imagem do passado nacional a fim de legitimar suas

ações no presente e sinalizar avanços para o futuro.

Uma personagem que se destaca nessas narrativas sobre as comemorações

é a própria sede desse evento. A então capital federal, a cidade do Rio de Janeiro,

foi um cenário de disputas que envolviam aqueles objetivos almejados pelos

organizadores das festividades do centenário. O jornal Correio da Manhã, na sua

edição de 24 de abril de 1920, por meio do artigo intitulado “Melhoramentos

necessários”, chama a atenção dos seus eleitores para a urgência na apresentação

de uma cidade civilizada para os visitantes das festividades.Faltam apenas vinte e nove meses para que o Brasil festeje o 1º centenáriode sua independência [...]. Os festejos do centenário devem forçosamenteatrair muitos visitantes à capital da República [...] pode-se dizer que nãoserá para estranhar que todo mundo civilizado aqui envie as suas melhoresrepresentações [...] É preciso que quem aqui aportar [...] encontre comoprimeira cidade brasileira, alguma coisa que provoque louvores....183

Meses antes do artigo acima, Lima também apresentava suas considerações

sobre a proximidade desses festejos. Isso no primeiro momento da crônica

“Extravagâncias oficiais”, publicada na revista A.B.C. do dia 17 de janeiro de 1920,

pois no segundo momento do texto abordava uma proposta de estudos acadêmicos

no exterior. Pelos propósitos desse item da tese, nossa atenção estará voltada para

a parte inicial da crônica, na qual o autor afirma que a data do centenário da

Independência, a ser festejada só no ano de 1922, já “escalda as imaginações

patriotas”.184 A partir disso, ele emite sua opinião sobre essa data:

182 ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural.Tradução: Paulo Soethe. Campinas, 2011, p. 53-54.183 Apud MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no Centenário daIndependência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas-CPDOC, 1992, p. 47.184 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 101.

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Não tenho a data em grande conta, e não a acho certa. A nossaindependência, ou se deu um pouco antes ou se deu um pouco depois,quando Portugal a reconheceu. Mas o tempo, portanto, de uma data nãopassa afinal de uma criação nosso entendimento; nada fora de nós dá-lheexistência; e, estando todos nós a aceitar o tal de 7 de setembro comomarcando nossa separação política de Portugal, não vale a pena epilogar arespeito. É um fato.185

Ao afirmar, ainda no ano de 1920, que a comemoração já escaldava as

imaginações patriotas, Lima faz uma alusão aos projetos que, nos anos anteriores,

vinham discutindo a forma e o conteúdo daqueles festejos.O governo, desde 1916, já vinha discutindo questões referentes àsfestividades do centenário e, até mesmo, trabalhando na elaboração de umprojeto acerca das distintas celebrações que permeariam a datacomemorativa dos cem anos da Independência. Mas foi somente três anosmais tarde que esse plano ganhou forma e um conteúdo mais consistente.Substituindo o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados número 278 de1916, o de 1919 continha cerca de cem artigos e estabelecia as bases paraa constituição de uma Comissão Comemorativa do Centenário e todos osprocessos legais para a realização do respectivo evento. O principal objetivoera que, em todos os pontos do território nacional, se realizassemdemonstrações de patriotismo pela data em que se contemplava o primeiroséculo de emancipação política do Brasil.186

Lima, então, chama a atenção do seu leitor para a mobilização em torno

desse evento que estava relacionado à evocação de um acontecimento nacional. E,

logo em seguida, distanciando-se daqueles sujeitos envolvidos em monumentalizar

a data em destaque, ele problematiza o seu significado, insinuando, de certa forma,

aspectos inventivos presentes na atribuição de sentido ao passado. Contudo, Lima

acaba por confirmar a aceitação coletiva do 7 de setembro, demonstrando seu

desinteresse em continuar discutindo isso.

Essas primeiras observações de Lima sobre o centenário nos convidam a

dialogar novamente com algumas considerações do antropólogo francês Jöel

Candau, no tocante, agora, às possíveis relações entre as memórias individual e

coletiva.[...] Os quadros sociais facilitam tanto a memorização como a evocação (ouo esquecimento) – “podemos nos apoiar sobre a memória dos outros” – osorientam, conferindo-lhes uma “luz de sentido” comandada pela visão demundo social da sociedade considerada. Nisso toda a memória é social,mas não necessariamente coletiva – e em alguns casos e apenas sobcertas condições se produzem “interferências coletivas” que permitem a

185 Ibid., loc.cit.186 JUNQUEIRA, Júlia Ribeiro. Jornal do Commercio: cronista da História do Brasil em 1922.Orientadora: Lucia Maria Paschoal Guimarães. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em História) –Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado da Bahia, 2010, p. 73.

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abertura recíproca, a inter-relação, a interpenetração e a concordância maisou menos profunda de memórias individuais.187

O 7 de setembro pode ser visto como esse “local” de interpenetração, uma

vez que essa data já era considerada parte da memória nacional, sendo sua

presença comum em muitas rememorações individuais. Por outro lado, temos que

considerar, como salienta Catroga, a maior margem de manobra para o uso e abuso

da memória, tendo em vista o quanto maior for a sua dimensão coletiva e

histórica.188 Segundo Motta, “variados setores da intelectualidade brasileira se

voltaram para a temática nacional entre a segunda metade do século da década de

1910 e os primeiros anos da década de 1920.189 O centenário da independência

tornou-se, nesse contexto, um momento de destaque para a discussão dessa

temática.

Nesse sentido, talvez possamos inserir as linhas acima escritas por Lima

como uma parte de sua contribuição ao debate acerca daquela temática com a

intelectualidade. Mas, por ora, prossigamos com as suas narrativas a fim de

perceber se essa hipótese se sustenta. Como podemos observar, Lima se mostra

muito atento àqueles usos e abusos da memória quando, ao dar continuidade à sua

crônica do dia 17 de janeiro de 1920, volta seu olhar para um projeto da Prefeitura

da cidade do Rio de Janeiro que pretendia “erguer no alto do Morro do Castelo uma

reprodução, em miniatura, do famoso Castelo da Pena, que existe nas proximidades

de Lisboa”, a fim de festejar o centenário.

Lima se questiona sobre a relação que poderia haver entre a Independência

do Brasil e a “relíquia medíocre e mourisca do velho reino lusitano”.O que ela para nós, brasileiros, que nascemos do Portugal da Renascençae não do Portugal que andava às turras com os mouros, como recorda essaobsoleta velharia que os portugueses estão no dever de venerar econservar... mas que nenhuma relação tem? Por que [...] não o Mosteiro daBatalha, em Aljubarrota, que marca o advento da dinastia real portuguesa,sob o auspício da qual foram descobertas as terras que habitamos ecomeçou o seu povoamento?Se tivéssemos que copiar algum monumento de Portugal a fim de recordaras suas navegações, não devia ser o tal castelo semimourisco, mas osJerônimos, que lembram Dom Manuel, a mando de quem Cabral navegava,e as descobertas e proezas dos portugueses, na Índia, sendo a do nossopaís uma função delas.

187 CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto,2016, p. 49.188 CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim do fim dahistória. Coimbra: Almedina, 2009, p. 48.189 MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no Centenário daIndependência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas-CPDOC, 1992, p. 4.

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O melhor não seria, talvez, Mafra, a Mafra de Dom João V, para cujaedificação muito contribuiu o ouro de Minas e outras partes do Brasil?.190

Nesse trecho, o autor aponta vestígios do passado que poderiam ser

associados ao centenário da Independência, para a constituição da consciência

histórica e, por conseguinte, para um delineamento de uma identidade. Lima, ao

sugerir os monumentos que deveriam ser “reproduzidos” no Morro do Castelo –

marco histórico da fundação da cidade do Rio de Janeiro – aponta como mais

plausíveis os que recordariam o passado colonial do Brasil e sua consequente

exploração por Portugal.

Sugestões que se contrapunham às pretensões do governo municipal, pois a

sua escolha foi de um monumento representativo da formação do reino português.

Isso nos leva a perceber que o intuito era aproximar as histórias de Brasil e Portugal

no sentido de trazer uma leitura do passado na qual as nações fossem vistas como

unidas, possuindo uma origem comum. Uma leitura oportuna para aquela ocasião,

pois procurava se comemorar a Independência do Brasil que, mesmo sendo um

momento de ruptura com Portugal, manteve à frente do reino brasileiro um monarca

português, legítimo representante da dinastia dos Bragança. Isto é, um laço em

comum com uma nação europeia, o que seria interessante num cenário de busca

pela inserção do Brasil no rol das consideradas nações civilizadas.

Lima se mostra atento às discussões historiográficas que vinham desde o

século XIX sobre o significado do processo de independência do Brasil, as quais se

mantiveram enquanto tendência até 1908 com a publicação do livro Dom João VI no

Brasil, de Oliveira Lima. Em 1922, com as comemorações do centenário, passou por

tentativas de revisão[...] que redundaram na consagração de uma leitura idealizada de umimpério, liberal e ordeiro, fruto de um pressuposto bastante equivocado: oda permanência no poder dos mesmos grupos dominantes por eleherdados, implicando, uma vez mais, em minimizar a dimensão violenta doprocesso de consolidação da Independência, face à multiplicidade deinteresses junto a ela imbricados.191

O processo de Independência do Brasil era representado como resultado de

uma evolução, pois toda a colonização portuguesa da América era vista como um

caminho pré-determinado rumo ao seu grande desfecho. “Portugal teria preparado a

190 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 101-102.191 MENDONÇA, Sonia Regina. A independência do Brasil em perspectiva histórica. Revista Pilquen.Ano XII, n. 12, 2010, p. 2-3. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3259057.pdfAceso em: 26 mar.2019.

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criação e amadurecimento do Brasil, que no século XIX surgiria legitimado, civilizado

e promissor porque estreitamente ligado a uma ascendência europeia”. Além disso,

o Brasil estava numa situação superior em relação às outras nações da América do

Sul por não ter passado, segundo essa visão, por conflitos violentos durante a sua

emancipação.192

Para melhor compreensão dessa estratégia narrativa barretiana, vale trazer

para nossa discussão as formulações de Jörn Rüsen sobre consciência histórica,

pois esclarece certos aspectos da relação dos indivíduos com o tempo. Rüsen

afirma que a consciência históricaé o trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções deagir conformes com a experiência. Esse trabalho é efetuado na forma deinterpretações das experiências do tempo. Essas são interpretadas emfunção do que se tenciona para além das condições e circunstâncias dadasda vida. [...][E a narrativa constitui essa consciência] ao representar as mudançastemporais do passado rememoradas no presente como processoscontínuos no quais a experiência do tempo presente pode ser inseridainterpretativamente e extrapolada em uma perspectiva de futuro.193

A intenção daquela crônica barretiana pode ser considerada um estímulo à

reflexão de seus leitores sobre como a relação com o passado está em consonância

com as expectativas de futuro oriundas das condições apresentadas pelo seu

presente. Essa relação temporal, no texto, é exemplificada pela tentativa dos

governantes em conformar uma imagem da nação a partir dos festejos do centenário.

Lima, então, endossa sua contraposição ao projeto da Prefeitura acima destacado,

deixando transparecer aos leitores, ainda mais, o uso do passado para legitimar o

presente e sinalizar projeções para o futuro.De qualquer forma, a ideia é positivamente das mais infelizes; e, nem aomenos é do jeito daquelas dos americanos, pelos quais tanto enrabichadoanda o Senhor Epitácio. Os yankes, segundo dizem, transportam as pedras,os mármores, as telhas, os tijolos, etc., de castelos mais ou menos célebresda Itália, França e outras partes da Europa e, no seu país de escassahistória, reproduzem esses monumentos deveras desgraçados, que irãosofrer um exílio amargo que a sua idade não merecia, embora estejamcobertos de crimes.194

192 PIMENTA, João Paulo G. A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade deum tema clássico. Revista História da Historiografia. N. 3, 2009, p. 57-62. Disponível em:https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/69 Acesso em: 30 mar. 2019.193 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: fundamentos da ciência histórica. Tradução: Estevão de RezendeMartins. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 59-65.194 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 102.

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Desse modo, Lima encerra essa primeira parte de sua crônica, afirmando que

o monumento medieval que a Prefeitura pretende erguer vai enfear a cidade –

“parecendo não ter um Sá à frente dela” – e sugerindo que se ponham anúncios nos

jornais para recebimento de outras propostas para o festejo da independência, pois,

acredita ele, “não faltará quem as tenha”. Esse desfecho lança ao público a outra

faceta do processo de rememoração: o esquecimento (“parecendo não ter um Sá à

frente dela”). Além disso, sugere que poderia haver outras possibilidades de seleção

do passado – outras memórias – que se tivessem espaço certamente seriam

apresentadas, adensando ainda mais a disputa pela legitimação do presente de

certos grupos a partir da comemoração do centenário da Independência.

Na sequência cronológica dos textos barretianos que se relacionam aos

festejos do centenário, temos a crônica “O centenário”, publicada na revista Careta

de 30 de setembro de 1922, na qual Lima se debruça sobre as repercussões das

comemorações propriamente ditas entre fins de setembro e inícios do mês de

outubro. Nela, Lima procura apresentar ao leitor um certo alheamento do povo da

cidade quanto às festas comemorativas do centenário da Independência.[...] O observador imparcial não vê nele nenhum entusiasmo, não lhe senteno âmago nenhuma vibração patriótica. Se não há, na nossa pequena gente,indiferença; há, pelo menos, incompreensão pela data que se comemora.[...] o nosso povo carioca [...] nunca levou a sério as datas nacionais,sempre elas mereceram essa atitude displicente que está tomando agora o“Centenário”, festejado tão pomposamente com bailes e banquetes.195.

Em seguida, foca nas condições econômicas que aquele povo estava

passando, realizando um contraponto aos gastos do governo com as festas

comemorativas. Lima vai construindo uma outra memória do centenário na qual

registra o descompasso entre o propósito de comemoração das elites e a indiferença

do povo. Para tal, ele insere na sua narrativa, como exemplo, trechos de um conto

inglês no qual um mendigo fala do seu pertencimento ao império britânico com suas

grandes possessões de territórios.

Contudo, o mendigo se questiona: “Que me vale ter nominalmente tantas

terras?”. A sua situação era de grande penúria, vestindo-se de farrapos, dormindo

ao relento e passando dias sem comer. Ao final, ele lamenta que antes “tivesse

alguns níqueis por dia”. Para Lima, o povo carioca tem um pensamento parecido.

195 Ibid., p. 563.

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[...] Dirá ele: “Que me adianta José Bonifácio, Pedro I, Álvares Cabral, oAmazonas, o ouro de Minas, se levo a vida a contar vinténs, para poderviver?”Um tal estado de espírito não é favorável para entusiasmos patrióticos, aocontrário, há de trazer depauperamento e abatimento geral.[...] Um pobre chefe de família tem que pensar constantemente no dia deamanhã. Terá ele tempo de impressionar-se com festividades patrióticas emque mais predominam jogos de bola e outras futilidades do que mesmomanifestações sérias de culto ao país e a seu passado? 196

A situação financeira do país naquele momento era preocupante, uma vez

que estava passando por um momento de crise do café, uma inflação em alta e crise

fiscal.197 O governo de Epitácio Pessoa (1919-1922) havia ainda investido bastante

na realização da Exposição do Centenário – esta, a partir de 1921, foi denominada

de internacional, pois, conforme sugestões, passaria a estar conjugada a uma

exposição internacional do comércio de indústria198 – que apresentou uma infra-

estrutura monumental.

Lima não via na exposição algo que representasse o progresso alcançado

pelo país ao longo dos 100 anos de sua independência política e, para isso, desloca

o olhar dos seus leitores para a situação de penúria da população em geral,

desconstruindo o mito da evolução social que o evento do centenário buscava

apresentar. Desse modo, o autor passa a questionar os “rituais criados” para a

comemoração do centenário bem como a sua respectiva “cobertura” pela imprensa,

num segundo plano de sua abordagem.O Brasil passa por uma crise curiosa que não sei como classificar. Comoestas festas do “Centenário”, nós vemos uma de suas manifestações. Abre-se um jornal qualquer. Páginas e páginas são ocupadas com notícias depugnas esportivas que se destinam a consagrar a efeméride que passa. Adata em si é esquecida; tudo que se pode relacionar a ela, o é também; maso negócio de bola e de box ocupa o primeiro lugar.De forma que nós festejamos os cem anos de nossa independência política.O que nós fazemos, é transformar o Rio de Janeiro num grande campo delutas de box e corrida de cavalos.199

Para finalizar sua crônica, Lima lança mão de sua característica ironia,

“retificando” seu pensamento inicial sobre a não associação do povo às festas do

centenário. Ele afirma que às esportivas, às de iluminarias e às paradas militares o

196 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 563.197 FRITSCH, Winston. 1922: a crise econômica. Revista Estudos históricos, 1993, vol. 6, n.11, p. 3198 JUNQUEIRA, Júlia Ribeiro. Jornal do Commercio: cronista da História do Brasil em 1922.Orientadora: Lucia Maria Paschoal Guimarães. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em História) –Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado da Bahia, 2010, p. 76.199 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b,p. 563-564.

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povo “se associa de bom grado. [...] O povo saberá o parentesco que elas têm”.200

Ou seja, o povo, na sua visão, se associava ao que menos tinha relação ao que se

pretendia relembrar com as comemorações. A crítica barretiana foca num dos

símbolos da chegada da modernidade no Brasil via Rio de Janeiro: a prática

esportiva.

Lima, desde 1918, já se pronunciava sobre as possíveis desvantagens sociais

que o futebol estava trazendo para a sociedade brasileira como, por exemplo, a

violência e o estímulo às rivalidades entre estados.201 Um outro aspecto negativo era

o preconceito racial.202 Contudo, a prática esportiva ganhou popularidade e foi uma

das formas de apresentar o país aos olhos estrangeiros e nacionais, durante o

centenário, como uma nação que adquiriu hábitos saudáveis e adotou práticas com

fins disciplinadores, consoante ao ideário modernizante da época preconizava.203

Daí a insatisfação de Lima Barreto ao mencionar as notícias que apresentam

os eventos esportivos ocorridos durante a comemoração do centenário. E essa

própria memória que a imprensa vai forjando ao noticiar os festejos é, pelo que

podemos observar nas suas considerações – “[...] Páginas e páginas são ocupadas

com notícias de pugnas esportivas que se destinam a consagrar a efeméride que

passa. A data em si é esquecida [...]” – é vista de forma negativa.

Lima procura tornar pública a construção dessa memória pela imprensa,

elaborando, por sua vez, uma memória da cobertura que essa realizava dos festejos

do centenário da Independência e, claro, utilizando-se do meio mais eficaz de

divulgação de informações à população: a própria imprensa (essa memória da

cobertura teve continuidade como veremos nas crônicas seguintes analisadas neste

trabalho). Vários periódicos noticiaram o centenário, sendo até criada uma revista

específica sobre A Exposição de 1922. A revista A Exposição de 1922 foi lançada

com a

200 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 564.201 Id. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença. Vol. I (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004a, p. 372-375.202 Ibid., p. 432-434.203 MELO, Victor. As camadas populares e o remo no Rio de Janeiro da transição dos séculos XIX/XX,Revista Movimento, 2000, Ano 6, n. 12, p. 64. Disponível em:https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/2501/1145 Acesso em: 23 mar. 2008. AUGUSTO, EmíliaCarolina Bispo dos Santos. Olho no lance: futebol e modernidade na crônica de Lima Barreto. Anaisdo XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ: “Usos do passado”. Rio de Janeiro, 2006, p.5.Disponível em: Disponível em:http://www.snh2011.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Emilia%20Carolina%20Bispo%20dos%20Santos%20Augusto.pdf Acesso em 08 mai. 2015.

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Incumbência de divulgar e promover tanto o planejamento da mesma, comoanunciar os diversos produtos a serem expostos não só pelo Brasil, maspelas demais nações amigas que participaram. No primeiro número darevista, lançado em julho de 1922, Pádua Resende pontuou que a mostra, aser inaugurada no dia 7 de setembro, constituiria a ocasião para demonstraro progresso brasileiro.204

Essa participação da imprensa na divulgação e enaltecimento das

comemorações do centenário foi tão grande que O Livro de Ouro Comemorativo do

Centenário do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, publicado

durante os encerramentos das festividades, reservou na sua segunda parte uma

seção intitulada “A voz da imprensa”, a qual registrou a abordagem dada por este

meio de comunicação ao centenário, além das várias edições especiais lançadas

sobre o tema.205 Lima Barreto, como observador do cotidiano e leitor dos jornais, não

deixou, então, de transformar isso em matéria literária, trazendo elementos que

permitissem uma discussão sobre o modo como determinados setores da sociedade

interpretavam suas experiências ao longo do tempo.

Numa crônica seguinte, Lima retomou sua discussão sobre as manipulações

da memória acerca do passado brasileiro, dando continuidade à tão badalada

comemoração da Independência do Brasil, através de um diálogo imaginário entre

dois monumentos representativos de personagens envolvidos naquele momento

histórico. A crônica “Pedro I e José Bonifácio”, publicada novamente na revista

humorística Careta de 7 de outubro de 1922, tem como início a visita da estátua de

José Bonifácio à do “real Pedro”.Mal Pedro I encontrou-se com o seu antigo ministro, foi logo

perguntando:- Já falaram em nós?- Qual o quê, Majestade! Nem pio![...]- Não ouvi nada a respeito e tenho lido as gazetas; mas, nelas,coisa alguma encontro em que se fale de nós com referência àindependência do Brasil.- Mas, de quem falam eles, afinal?- De Pedro Álvares Cabral, de Fernando de Magalhães, Vasco daGama, de...- Mas o que tem essa gente com o Sete de Setembro [...].206

O diálogo prossegue com a resposta de Bonifácio de que aqueles nomes

nada têm com o Ipiranga, mas que os “comemorativistas” falam neles. Em seguida,

204 JUNQUEIRA, Júlia Ribeiro. Jornal do Commercio: cronista da História do Brasil em 1922.Orientadora: Lucia Maria Paschoal Guimarães. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em História) –Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado da Bahia, 2010, p. 84.205 Ibid., p. 86.206 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 565.

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Bonifácio revela a Pedro I que Carlos Sampaio – prefeito do Distrito Federal e

membro da Comissão do centenário – até arranjou dois marcos da fundação da

cidade, “para homenagear Estácio de Sá, por ocasião do centenário de nossa

emancipação política”.- Dois!- Dois, sim, Majestade!- Como?- É verdade. Um é da metade, por aí assim, do século passado; e foifincado, por deduções históricas de um historiador desse tempo.- E o outro?- O outro? O outro, ele o achou na Igreja dos Capuchinhos, nomorro do Castelo; e, por ocasião de iniciar a demolição do morro eda mudança dos respectivos religiosos, Sampaio o levou em carreta,com toda a solenidade, para a nova residência dos freis barbados.- Este também foi por deduções, que...- Não, Majestade. Este último parece autêntico. [...].207

Diante dessa situação, “Sua Majestade”, desapontada, despede-se de

Bonifácio afirmando que não faria mais “independência” e cada um segue “para suas

respectivas casas”. Três aspectos chamam nossa atenção nessa crônica. O primeiro

é referente à continuidade da análise de Lima sobre as notas dadas pela imprensa

ao centenário. As personagens-monumentos recorrem às “gazetas” para se

informarem acerca das comemorações.

Com aquele diálogo ficcional, Lima desautoriza a memória forjada pela

imprensa, pois os próprios participantes da proclamação da independência em 1822

não se vêem representados nas festividades do centenário. Esse aspecto fica ainda

mais acentuado, uma vez que os personagens são monumentos, ou seja, já tinham

sido incorporados à memória histórica nacional. Mais uma vez o cronista salienta a

seleção do passado, que é arbitrária e deslocada do próprio passado, realizada pela

rememoração e sua relação com o presente.

A participação da ciência histórica nessa seleção, legitimando o presente ao

relembrar certos momentos do passado e promover o esquecimento de outros, é

assinalado pelo autor (algo que já notamos em outros momentos de sua produção

literária, principalmente no capítulo anterior). O segundo aspecto que destacamos da

crônica “Pedro I e José Bonifácio” é justamente o modo como, no diálogo, é

explicitada a presença de um historiador na ratificação de um novo marco de

fundação da cidade.

207 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 565-566.

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Marco histórico da fundação da cidade, o Castelo era reverenciado tambémpor abrigar as igrejas de São Sebastião do Castelo (a dos Capuchinhos),onde estavam os ossos de Estácio de Sá, e a de Santo Inácio (dos jesuítas),transformada, posteriormente, em Hospital Militar e sede da mais antigafaculdade de Medicina do Rio de Janeiro. [...]. Moradia de uma populaçãopobre de cerca de cinco mil pessoas, distribuídas em mais de 400 casas, nodizer de Luiz Edmundo, “os que desceram na escada da vida, vão morarpara o alto”, o morro era um marco constante da vida cotidiana da capital dopaís. Lugar de magia e misticismo com a missa dos Barbudinhos, às sextas-feiras pela madrugada, e com as “casas de pretos”, onde a macumbaressoava [...].208

Esse lugar de memória, no entanto, teve uma parte demolida para abertura de

ruas largas onde se construíram pavilhões para a Exposição Internacional do

Centenário da Independência do Brasil. Isso havia gerado uma grande discussão

sobre se havia sentido a destruição de um marco histórico da fundação da cidade.

Dez anos antes, o secretário geral do IHGB, José Vieira Fazenda - aquele mesmo

cuja narrativa histórica foi objeto de crítica por parte de Lima, e que era tido por

especialista na história da cidade do Rio de Janeiro -, declarou:Não me incluo, pois, no número de muita gente para quem a derrubada doCastelo constitui o maior atentado que se poderia fazer à tradição da cidade[...]. Pode-se conciliar a tradição com o salus populi e a remodelação denossa urbs. Não quebrem o padrão da fundação da cidade, não atirem naSapucaia os ossos de Estácio de Sá, fica salva a Pátria.209

Segundo Motta, isso evidencia a dificuldade em se conciliar “os valores da

modernidade com os da memória e da tradição.210 O que podemos inferir também, a

partir da declaração do membro do IHGB, é a expectativa de ver o Brasil no grupo

das chamadas nações modernas, algo tão almejado com os festejos do centenário,

como também promover um esquecimento de uma parte do passado. Os vestígios

do “fundador português” da cidade poderiam até ser preservados, mas o Morro do

Castelo, com suas características que sinalizam a permanência do passado colonial

e dos negros na cidade, deveria ser suprimido. Ou seja, uma clara hierarquização

dos vestígios do passado histórico, tornando indignos de preservação aqueles que

não se “encaixavam” na narrativa pretendida.

Já o Jornal do Brasil, por sua vez, realizou uma intensa campanha contra a

destruição. Enquanto o prefeito da cidade do Rio, Carlos Sampaio, afirmava que o

Castelo podia ser comparado a um “dente cariado” na linda boca era a baía da

208 MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no Centenário daIndependência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas-CPDOC, 1992, p. 54-55209 Apud ibid., 63.210 MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no Centenário daIndependência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas-CPDOC, 1992, p. 63.

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Guanabara, o Jornal do Brasil via o morro como “uma pérola a engastar na jóia

suntuosa que a Providência pousou à beira do Atlântico”. Esse jornal considerava

um “sacrilégio” a destruição do morro, mostrando-se indignado com a “indiferença do

carioca que é sempre ingrato [...] para as tradições, para as nossas coisas [...]”.211

Na visão dos defensores da destruição do morro, os melhoramentos na

capital eram necessários. O Morro do Castelo representava para eles a

desorganização sanitária com os surtos de varíola e febre amarela, o atraso,

contrastando com a imponente e moderna avenida Rio Branco que ficava a apenas

20 metros dele.212 Além disso, como vimos, esse lugar era ocupado por uma

população bem heterogênea, o que “contrariava um dos pilares mais evidentes” dos

defensores da “modernização urbana, a qual seja, a organização funcional do

espaço que condenava a mistura de usos e classes sociais diversos”.213

Percebemos como Lima estava atento a esse debate, apropriando-se desse

contexto para elaborar e publicizar sua reflexão sobre a relação do poder público e

da imprensa com a memória da Independência do Brasil, promovendo, por

conseguinte, através do diálogo entre as estátuas, uma outra discussão concernente

ao momento, a qual discutimos linhas acima: a História, a partir de padrões da

moderna ciência, e sua colaboração na legitimação do regime republicano.214 Nesse

sentido, o segundo marco de fundação encontrado, relatado no diálogo, é

considerado autêntico, pois não foi algo realizado por deduções históricas.

Lima se mostra, nesse texto, incrédulo quanto à cientificidade da historiografia

da época e mais preocupado com o processo de legitimação da memória e da

tradição. O último aspecto que podemos sinalizar da crônica em destaque é a

imagem que constrói de monumentos que descem dos pedestais. Lima opera uma

desmonumentalização de figuras históricas, o que indica, como foi apresentado na

sua primeira crônica discutida nesse item, os elementos inventivos presentes na

rememoração do passado e suas relações com questões sociais, políticas e

culturais do presente bem como sua crítica ao enquadramento da memória. Michael

Pollak afirma que

211 Apud MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no Centenário daIndependência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas-CPDOC, 1992, p.62-64.212 JUNQUEIRA, Júlia Ribeiro. Jornal do Commercio: cronista da História do Brasil em 1922.Orientadora: Lucia Maria Paschoal Guimarães. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em História) –Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado da Bahia, 2010, p. 76.213 MOTTA, Marly Silva da. Op.cit., p. 58.214 GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009,p. 24-25.

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O controle da memória [...] é efetuado nas organizações mais formais peloacesso dos pesquisadores aos arquivos e pelo emprego de “historiadoresde casa”, sendo que, além da produção de discursos organizados em tornode acontecimentos e de grandes personagens, os rastros desse trabalho deenquadramento da memória são os objetos materiais: monumentos,museus, etc.215

E é justamente a partir de monumentos (as estátuas de D. Pedro I e José

Bonifácio) que Lima representa o enquadramento da memória realizado durante as

comemorações do centenário da Independência, suscitando uma discussão acerca

dos laços entre memória, identidade e trabalho do historiador. Fernando Catroga

traz argumentos que permitem elucidar melhor a compreensão dessas relações.

Esse autor destaca que “a historiografia chega mesmo a fornecer credibilidade

científica a novos mitos de (re)fundação de grupos e da própria nação”.216 Durante

os festejos do centenário, inclusive, foi até promovido um congresso internacional de

História da América sob responsabilidade do IHGB217 e, ao longo das primeiras

décadas do século XX, procurou-se rediscutir a história brasileira, havendo disputas

entre grupos políticos pela “escolha” de novos heróis nacionais que se iniciaram

ainda na última década do século XIX218 (contexto bem aludido por Lima na obra Os

Bruzundangas a qual abordamos acima).

Lima era sensível a essas situações e acabou problematizando-as por meio

de sua escrita. Meses antes de publicar o diálogo entre as estátuas, já havia

realizado uma discussão que envolvia a relação entre monumentos, espaços da

cidade e legitimidade política. Em 4 de março de 1922, na mesma revista Careta,

sob o pseudônimo Jonathan, o narrador da crônica “As estátuas e o centenário”,

expõe sua opinião sobre a Exposição do Centenário de forma entusiasmada como

muitos periódicos da época. Logo depois, passa a comentar sobre os possíveis

monumentos que o Brasil receberia de outras nações devido a tal comemoração.A Espanha presenteou a Argentina, se não falha a memória com ummagnífico monumento a Cristovão Colombo; Portugal vai presentear-noscom alguma coisa, mas, depois de acabado o certâmem, leva-a para lá.Há, entre as crianças, ao brincar, um prolóquio, ou que outro nome tenha,que diz: quem dá e torna a tomar, no inferno vai parar...

215 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, Vol. 2,n. 3, 1989, p.10.216 CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim do fim dahistória. Coimbra: Almedina, 2009, p. 46.217 JUNQUEIRA, Júlia Ribeiro. Jornal do Commercio: cronista da História do Brasil em 1922.Orientadora: Lucia Maria Paschoal Guimarães. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em História) –Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado da Bahia, 2010, p. 83.218 CARVALHO, José Murilo de. A formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1990, p. 35-73.

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Talvez não haja aplicação ao caso do nosso ilustre antepassado, mas...219

Nessa primeira parte da narrativa, percebemos como o narrador criado por

Lima de entusiasta se torna mais um crítico, pois quando se refere à tomada do

presente por Portugal, faz uma alusão ao passado usurpador de nossa antiga

metrópole, marcando o caráter separatista daquele momento de emancipação

política brasileira a ser comemorado. Em linhas acima, já havíamos notado como

Lima foi crítico da proposta da prefeitura de construir um monumento no morro do

Castelo que simbolizaria a união ente Brasil e Portugal. Mas sigamos com a

narrativa.

Jonathan, em seguida, menciona a oferta de uma estátua do último imperador

asteca pelo embaixador mexicano e a intenção dos “homens dos Estados Unidos,

de Londres e da Palestina”220 [de] presentear-nos com a estátua do “Sr. Carlos

Sampaio, herói da City de Wall Street, da “Melhoramentos” e do morro do Castelo, à

vista dos serviços lhes tem prestado. Que honra nossa!”.221 Já nesse ponto a ironia

do narrador tem relação aos gastos com aquelas modificações na cidade para os

festejos. Como apontado acima, o Brasil passava por uma crise financeira, e

pensava-se em monumentalizar o prefeito da cidade que deveria estar preocupado

com as necessidades de sua população ao invés de contrair empréstimos

internacionais para forjar uma imagem positiva para sua própria administração.

Surama Pinto afirma que, “com carta branca concedida por Epitácio Pessoa

para transformar o Rio de Janeiro numa espécie de vitrine [...], Sampaio conseguiu

50 mil contos de réis, avalizados pelo governo federal, para movimentar diversas

frentes de obras”. A própria imprensa o denominava de o “mordedor esperto” por

sua capacidade em conseguir empréstimos com os Estados Unidos.222 E, para

arrematar sua narrativa, apresentando aos leitores a ideia de silenciamento sobre

certos espaços da cidade com vista a legitimar o presente de seus governantes,

assim escreve Jonathan:A chenfradura eterna do morro do Estácio de Sá será o fundo domonumento imortal. Eris perenis...O monumento de bronze e mármore ao Augusto Epitácio será oferecidopelo Centro Paraibano [...]

219 BARRETO, Lima. Sátiras e outras subversões. Organização Felipe Botelho Corrêa. São Paulo:Penguin Classics Companhia das Letras, 2016, p. 153.220 Ibid., p. 153-154221 Ibid., p. 154.222 PINTO, Surama Conde Sá. Só para iniciados...: o jogo político na antiga capital federal. Rio deJaneiro:Mauad X, FAPERJ, 2011, p. 221-222.

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Eis aí o que se sabe até agora ao certo sobre ofertas de monumentos depaíses estrangeiros ao Brasil.223

Ao dar continuidade à sua “cobertura do centenário na revista Careta de 7 de

outubro de 1922, o autor revela que, por motivos de saúde, não pôde acompanhar

as comemorações do centenário. “Não vi a parada naval; não vi os fogos-de-

benguela da praia de Botafogo; nada vi, enfim nem mesmo a exposição

propriamente dita”. Diante dessa situação, ele esclarece ao leitor como aproveitou

esse tempo em casa para “estudar certas feições especiais dessa grandiosa

comemoração. [...] É muito simples. Leio com o maior cuidado os jornais [...]”.224

Novamente, o autor vai realizar ácidas críticas ao destaque dado aos eventos

esportivos como na crônica do dia 30 de setembro. Contudo, nessa de outubro,

como o seu próprio título sinaliza – “Congressos” – Lima se debruça sobre os

congressos que faziam parte dos festejos do centenário.Outra feição própria da atual “comemoração” é a quantidade de“congressos” que estão funcionando, inclusive o “nacional”, de que ninguémdá fé.Tenho estudado com afinco os seus programas; e, com o mais rigorosométodo científico, procurando estabelecer uma regra geral para eles. Horase dias, passo a comparar o dos “Meias para Homens e Senhoras” com o de“Eixos e Rodas para Carruagens”, com o de “Passarinhos em Gaiolas e foradelas”, com o do de “Micróbios Lunares” e tantos outros, para chegar afinalà lei geral que os rege. Não chego, não cheguei e, talvez, não chegareinunca a uma solução satisfatória e rigorosamente científica.Entretanto, empiricamente, posso afirmar que, o programa comum a todoseles, quer se trate do de “Batráquios e Répteis”, quer se trate do da“Navegação a vapor, na Idade Média”, ou outro qualquer consiste:1º dia – Inauguração. Banda de música. Hino nacional. Discurso dopresidente.2º dia – Chá-dançante, para estudo das teses para debater.3º dia – Subida do Corcovado e apreciação empolada de la naturaleza.4º dia- Passeio na Avenida e adjacências ainda para estudo de teses.5º dia – Espetáculo no Municipal, em chinês.6º dia- Football, etc.7º dia – Encerramento. Banda de Música. Hino Nacional. Discurso dopresidente, concluindo, segundo um filósofo chinês, que o mais sábio é nãoagir.Eis aí.225

Com essa apreciação, vemos, inicialmente, a explicitação de Lima quanto ao

seu “método” de análise dos festejos do centenário. As suas “fontes” foram os

jornais, corroborando ainda mais a nossa visão de que esse autor travou um embate

contra a memória produzida pela imprensa da época referente àquele evento.

223 BARRETO, Lima. Sátiras e outras subversões. Organização Felipe Botelho Corrêa. São Paulo:Penguin Classics Companhia das Letras, 2016, p. 154.224 Id. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença. Vol. II (1919-1922). Riode Janeiro: Agir, 2004b, p. 567.225 Ibid., p. 567-568.

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Podemos notar também como parodia o discurso oficial em relação à realização de

congressos científicos durante a Exposição de 1922, destacando mais seu caráter

festivo do que propriamente preocupado com o avanço da ciência no país. A

representação desse centenário como um edifício de bela fachada e pobres

fundações, pelo exposto, foi a visão crítica de Lima da tentativa oficial de mostrar o

país como uma nação moderna possuidora de um regime político que a conduziria,

inexoravelmente, ao progresso.

Ao seguir essas linhas escritas por Lima acerca das comemorações do

centenário da Independência do Brasil, notamos como esse autor promoveu uma

discussão pertinente quanto às relações entre memória, história, legitimação política,

identidade e espaço urbano. Nesse sentido, o autor se mostra contrário à

memorização forçada trazida por essa comemoração convencionada com vistas a

um fechamento identitário comum. Como vimos, seu olhar estava voltado para a

representação de memórias mais plurais que poderiam, inclusive, ser evocadas no

próprio espaço urbano carioca, como bem o fez em Vida e Morte de M. J. Gonzaga

de Sá.

4.3 A busca por outras memórias, outros saberes: a oralidade em LimaBarreto

Na estratégia barretiana de apresentar aos leitores outras memórias possíveis,

observamos a presença marcante da oralidade em sua escrita. Ao longo deste

trabalho, percebemos que o recurso à oralidade foi um elemento cultural integrante

de sua existência desde a sua juventude. Dois momentos que descrevemos logo no

início do texto exemplificam muito bem como a oralidade forneceu bases para a sua

formação como cidadão e escritor.

A busca pelas origens da avó Geraldina o levou a percorrer certos trechos da

cidade, norteado por “frases ouvidas” em seu “âmago familiar”.226 Nas suas

lembranças permaneciam as histórias, as quais lhe eram contadas de modo

inalterável repetidas vezes, do preto velho Manuel de Oliveira.227 Por meio delas,

226 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 131.227 Id. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença. Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 361-363.

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Lima conheceu uma parte do passado da escravidão e tomou conhecimento dos

meios de sobrevivência e obtenção de liberdade.

A narrativa oral em África se constitui no principal meio de transmissão e

preservação de saberes, compondo e recompondo sua história e,

consequentemente, suas identidades. Nessa tradição africana, os griots, que podem

ser homens ou mulheres, têm papel destacado. São eles que transmitem aos mais

novos as memórias e os saberes de um povo, estabelecendo uma ligação entre as

gerações.228

Ao serem submetidos à escravidão e trazidos aqui para o Brasil, os griots

passam a ter uma missão diferenciada ao da executada na África. Além de produzir

e transmitir uma narrativa de informação e preservação, eles também precisam

elaborar uma narrativa de resistência diante do discurso dominante já “petrificado”

pela escrita. Desse modo, busca-se apresentar o outro lado da história,

proporcionando às gerações mais novas o conhecimento de sua “verdadeira”

história e construção de sua identidade, bem como favorecendo o aprendizado da

defesa contra a opressão do discurso oficial e da luta contra o preconceito.229

Lima apresentava a incorporação dessa tradição já num dos seus primeiros

ensaios de produção narrativa ao apresentar um diálogo entre personagens que

rememoram a sua passagem da África, como escravizados, para o Brasil enquanto

aguardavam o rumo que deveriam tomar na fuga que então realizavam (trata-se aqui

do esboço da peça Os negros, vista também no primeiro capítulo). O respeito à

oralidade ancestral africana continua nos seus textos publicados.

Na crônica em que relata suas conversas com Manuel, percebemos,

nitidamente, como esse exercia a função do griot aqui no Brasil. Algo que se repete

na preta velha Maria Rita com sua cantiga apresentada a Quaresma e Albernaz. O

contato de Lima com narrativas orais de descendentes de africanos não só se deu

no seu núcleo familiar. Além de Manuel, que Lima conheceu ainda na infância na

Colônia de Alienados na qual seu pai João Henriques trabalhou, o literato também

228 FERREIRA, Amanda Crispim. Escrevivências, as lembranças afrofemininas como um lugarde memória afro-brasileira: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Geni Guimarães.Orientador: Marcos Antônio Alexandre. 2013. 115 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) –Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, 2013, p.24229 Ibid, p. 27.

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dialogou com outros internos durante, principalmente, os finais de semana em que

retornava de Niteroi onde estudava nos demais dias.230

A inauguração de Colônias de Alienados, em 1888, tinha “o objetivo inicial

de recuperar mendigos e indivíduos ociosos, recolhidos na cidade do Rio”. Dentre as

pessoas que eram enquadradas nessa categoria, não eram poucos os indivíduos

mais velhos e negros que se viam presos à condição de mendicantes e isso “por

causa das poucas oportunidades de emprego e de colocação”. Schwarcz relembra

que muitos desses sujeitos foram levados a essa situação como conseqüência da

Lei dos Sexagenários e da Lei Áurea que não estabeleciam garantias de inserção

social adequada para os libertos, ainda mais para aqueles em idade avançada.231

Essa autora também destaca que “eram muitos os vínculos entre ex-

escravizados e loucura, na falta de melhor termo para lidar com a improbidade com

que o tema do desamparo foi tratado pelo Império e depois pela República”. Com o

decreto no 508, de 21 de junho de 1890 – mesma época da contratação de João

Henriques – as colônias foram destinadas somente aos alienados indigentes vindos

do Hospício Nacional de Alienados,232 o que deve ter aumentado a lotação de

homens negros velhos naqueles espaços e sua presença na infância de Lima. Outro

espaço de convivência no qual Lima também teve oportunidade de ter acesso às

narrativas orais foi nos subúrbios com sua grande parcela de população negra.

Lima passou a viver num deles, o de Todos os Santos, a partir de 1902. Nas

suas ruas, botequins e nas suas estações de trem para o centro da cidade, Lima

conviveu com seus moradores dos quais observava e participava de suas conversas,

bem como transformou em matéria literária seu cotidiano tão diverso social e

culturalmente. Como exemplo de aspecto cultural observado por Lima nos subúrbios,

vale assinalar a religiosidade de matriz africana que tem sua transmissão realizada

por seus rituais e pela oralidade de seus praticantes (rever acima no item 3.3 o conto

“O moleque” no qual Lima descreve o cotidiano dos subúrbios cariocas).233

Nesse capítulo, vimos como a tradição oral também é um elemento que

norteia Lima nas suas narrativas que buscam trazer à tona um passado da cidade

do Rio que estava sendo apagado pela reforma urbana. Já nesse último item, nosso

230 SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 94-98.231 Ibid., p. 79-80.232 Ibid., p. 80.233 Ibid., p. 176-187.

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objetivo será apresentar que a incorporação da oralidade por Lima, além de trazer

os anônimos para a cena da cultura histórica – principalmente os negros –, visava

subverter formas narrativas já consolidadas, vislumbrando a emergência de novos

saberes que estavam sendo historicamente relegados pelo pensamento hegemônico

branco ocidental. Jorge Augusto Silva, no artigo “O devir negro na literatura

brasileira: notas sobre a oralidade em Lima Barreto”, afirma que[...] A relação entre a escrita e a civilização marcam a modernidadeocidental, pois, a Europa capitaliza a tecnologia da escrita alfabética paraafirmar a partir dela, não apenas uma diferença em relação aos povoságrafos, às culturas baseadas na oralidade, ou às que tinham forma diversade grafia, mas para erigir a escrita alfabética como marca de superioridadecultural.A escrita é uma das características centrais pelas quais o ocidente europeuirá embasar dois argumentos centrais utilizados para legitimar a colonizaçãoe o genocídio dos povos africanos e ameríndios, a saber; a) a exclusividadeda experiência histórica, pois, se os povos não europeus não tinham escritatambém na tinham história; b) um estágio avançado no percurso civilizatório.[...].234

Nesse sentido, são relegados para um segundo plano, como inferiores e

expressões não-civilizadas, duas experiências importantes na fabulação da

existência do homem e das sociedades: a oralidade e a memória. Lima Barreto vai

na contramão desse pensamento - daí fica mais claro o motivo das críticas que

recebeu quanto ao seu suposto descuido com a língua portuguesa -, pois investe na

oralidade como código primeiro de sua produção literária.

Lima vê na oralidade um modo comunicativo potencialmente revelador da

história dos grupos marginalizados e sua capacidade de resistência cultural. Em

Recordações do escrivão Isaías Caminha, o seu personagem-narrador, quando já se

encontrava na capital federal, relembra um momento de sua infância no ambiente

doméstico do interior.Vinha o chá, nós ficávamos a tomá-lo e ao menor ruído minha mãe vinha dointerior da casa para saber se meu pai queria alguma coisa. Acabado o chá,eu ainda ouvia “história” da tia Benedita, uma preta velha, antiga escrava domeu reverendo pai. Eram cândidas histórias da Europa, coisas dedicadas depaixões de príncipes e pastoras formosas que a sua imaginação selvagemtransformava ou enxertava com combates de gênios maus, com malefíciosde feiticeiras, toda uma ronda de forças poderosas e inimigas da feliz vidados homens. [...].235

Segundo Amanda Ferreira, a velha contadora de histórias em África se torna

a mãe preta no Brasil. Esta, no seu contato direto com os filhos do homem branco,

234 SILVA, Jorge Augusto. O devir negro na literatura brasileira: notas sobre a oralidade em LimaBarreto. Fólio – Revista de Letras. Vitória da Conquista. 2018, n.2, vol.10, p. 137-138235 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Erichim: EDELBRA, [2000?], p. 51

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narra-lhes histórias africanas ou até insere nas histórias de outra matriz cultural

modificações que permitem que sua memória e cultura sejam perpetuadas “por meio

da boca do filho do colonizador branco”.236 Isaías era filho de um homem branco,

que possuiu escravos e deixou o sacerdócio na Igreja Católica, com uma mulher

negra. Pelo trecho acima fica claro que a “tia Benedita” era uma ex-escrava que

permaneceu, após a sua abolição, como serviçal do antigo padre.

E a lembrança de Isaías, registrada na sua autobiografia, transmite essa

forma de resistência negra por meio da oralidade. Notemos que a palavra história é

grafada entre aspas, o que indica a intenção do narrador de marcar “uma inflexão

sobre o que seria história (re)inventada (a ficção criada pela tia a partir de outra,

europeia) e o história “original” (a advinda das informações obtidas, de uma forma ou

de outra , da cultura europeia)”.237 Também vale observar que o narrador nomeia a

memória da tia de “selvagem”, o que, por sua vez, denota que a educação formal

recebida era de natureza eurocêntrica pela qual, como vimos, a oralidade era uma

forma de recordar o passado inferior.

Isso só reforça a resistência cultural da tia, pois, mesmo com um ouvinte com

aquela perspectiva, é por meio dele que sua memória se propaga. Outro detalhe

importante da história dessa preta velha é a inserção de elementos culturais que

remetem ao medo que os brancos escravocratas sentiam de seus negros no tocante

a suas revoltas que poderiam resultar em fugas e assassinatos de seus senhores.

Acerca disso, Ferreira acrescenta que as modificações nas cantigas e lendas

destinadas às crianças brancas não visava agradar o senhor.238

Josiley de Souza, no seu estudo sobre a presença africana em narrativas

orais inscritas no Brasil, afirma que “o negro escravizado e suas expressões culturais,

forçados a habitarem uma nova terra, entraram em diálogo com esse novo lugar e

se recriaram, transmutaram-se para persistirem numa cultura afro-brasileira”.239 Às

236 FERREIRA, Amanda Crispim. Escrevivências, as lembranças afrofemininas como um lugarde memória afro-brasileira: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Geni Guimarães.Orientador: Marcos Antônio Alexandre. 2013. 115 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) –Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, 2013, p.28.237 BEZERRA, Fernando Salomon. Lima Barreto e Roberto Arlt: transições e permanências damemória selvagem. Orientador: Marcos Antônio Alexandre. 2015. 149f. Tese (Doutorado em EstudosLiterários) - Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de MinasGerais, 2015, p. 51-52.238 FERREIRA, Amanda Crispim. Op.cit., p. 28.239 SOUZA, Josiley Franciso de. Do canto da voz ao batuque da terra: a presença africana emnarrativas orais inscritas no Brasil. Orientadora: Sônia Queiróz. 2012. 201 f. Tese (Doutorado em

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histórias românticas europeias (muitas delas também originárias de narrativas orais)

contadas a Isaías, tia Benedita incorporava “combates de gênios maus, com

malefícios de feitiçarias, toda uma ronda de forças poderosas e inimigas da vida feliz

dos homens”.

Ao lado das revoltas escravas, havia no imaginário social dos escravocratas

o medo de que os seus escravizados domésticos se utilizassem de feitiços e

venenos para provocar a sua morte. A obra Vítimas-algozes: quadros da escravidão

de Joaquim Manuel de Macedo, lançada em 1869, representa esse medo. Macedo

estruturou essa obra, de caráter abolicionista, em três novelas: “Simeão, o crioulo”,

“Pai-Raiol”, o feiticeiro” e “Lucinda, a mucama”. Com essas histórias, o autor procura

defender a tese de que os principais prejudicados com a escravidão são os donos

de escravizados.

Os senhores escravocratas, na visão de Macedo, estavam se tornando as

verdadeiras vítimas das rebeldias e agressividades dos seus escravizados. Desse

modo, argumenta que a melhor solução para tal cenário seria a emancipação.

Especificamente, a segunda novela traz um escravizado que era feiticeiro e a forma

que encontrou para matar os seus senhores foi o envenenamento. Macedo carrrega

na dramaticidade e representa, de forma bem preconceituosa, as práticas de

curandeirismo e feitiçaria trazidas da África.O feiticeiro das fazendas e dos estabelecimentos rurais, ainda mais dosmais modestos, é, se infelizmente entre os escravos existe, o negroherborário, o botânico prático que conhece as propriedades e a ação terrívelde raízes, folhas e frutas que debilitam, enlouquecem, e fazem morrer ohomem; que abatem com as forças físicas a força moral do homem, e aoeles chamam – amansar o senhor; que excitam a luxúria, e os instintosanimais; que atacam o cérebro e corrompem a razão; que envenenampouco a pouco dilacerando o estômago e os intestinos até matar no fim dehorríveis tormentos, ou que de repente, em poucas horas, em brevesminutos assassinam, como o tiro de bacamarte, mas sem o ruído do tiro dobacamarte.240

A recordação de Isaías das histórias de tia Benedita remete ao perigo dessa

violência silenciosa que os escravizados poderiam perpetrar contra seus senhores,

bem como a cantiga da preta velha Maria Rita fazia referência à violência física.

Essa memória transmitida oralmente é trazida para o texto barretiano, desafiando as

estratégias de seu apagamento por uma escrita oficial.

Literatura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federalde Minas Gerais, 2012, p. 13240 MACEDO, Joaquim Manel de. Vítimas-algozes: quadros da escravidão, p. 40. Disponível em:www.dominiopublico.gov.br Acesso em: 25 nov.de 2018

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A necessidade de trazer ao público a permanência da circularidade dessa

memória oral pela sociedade de sua época, fez com que Lima realizasse a busca de

muitas narrativas orais entre moradores da cidade do Rio de Janeiro e procurasse

relembrar algumas que ouviu durante a sua infância. Entre suas anotações pessoais,

percebemos que, no ano de 1910, Lima, paralelo ao trabalho de elaboração do

Triste fim de Policarpo Quaresma, registrou algumas narrativas orais que lhe haviam

sido contadas por homens e mulheres nascidos no Rio e em outros estados, sendo

que em boa parte delas tomou o cuidado de indicar abaixo o nome de seus

contadores.241

Notamos que nessas histórias predominavam animais (com destaque para o

macaco) como personagens, os quais apresentavam capacidades humanas, como a

fala, e se relacionam com as pessoas. Novamente temos aspectos das narrativas

orais que eram transmitidas pelas pretas velhas. Naquele processo de modificação

das histórias de outras culturas e inserção de elementos de matriz africana, Ferreira,

citando Gilberto Freire, aponta que muitas negras velhas acrescentavam histórias

africanas, principalmente de bichos, às portuguesas.242

Além dos bichos, havia entre os personagens príncipes e princesas, gigantes

e madrastas, sendo que, nas narrativas registradas por Barreto, os príncipes

também estavam entre os protagonistas. Em 1919, Lima torna públicas essas

narrativas por meio do jornal Hoje, intitulando a coletânea de “Mágoas e sonhos do

povo”. Na parte final da sua introdução, o autor justifica a elaboração desse trabalho:[...] devido à ignorância, [...] que tenho dessas coisas de folclore, eu não meanimo a asseverar que a minha generalização possa ser de qualquer formacerta; e o intuito dessas linhas não é esse. O que elas visam, é explicar asrazões por que fui levado a procurar, na conversa com homens e raparigasdo povo, obter narrações, contos, etc de origem popular, sem mesmoindagar se eles foram publicados, e dar nesta revista o resultado dasminhas conversações com gente de toda a parte.Sou homem da cidade, nasci, criei-me e eduquei-me no Rio de Janeiro; e,nele, em que se encontra gente de todo o Brasil, vale a pena fazer umtrabalho destes, em que se mostre que a nossa cidade não é só a capitalpolítica do país, mas também a espiritual, onde se vêm resumir todas asmágoas, todos os sonhos, todas as dores dos brasileiros, revelado tudo issona sua arte anônima e popular.243

241 BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961a, p. 141-156242 FERREIRA, Amanda Crispim. Escrevivências, as lembranças afrofemininas como um lugarde memória afro-brasileira: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Geni Guimarães.Orientador: Marcos Antônio Alexandre. 2013. 115 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) –Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, 2013, p.28.243 BARRETO, Lima. Coisas do Reino do Jambon: sátira e folclore. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,1961b, p. 246.

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Notamos nessa preocupação de Lima com o folclore uma articulação “com o

esforço de segmentos que há várias gerações buscam descobrir o perfil da nação

brasileira”.244 Raphael da Silva afirma que[...] Desde o Romantismo, no qual surge a problemática do folclore,passando pela inquietação cientificista dos literatos da segunda metade doséculo XIX, o que se evidencia no conjunto de toda essa produção é omodo como é permeada de visões representando projetos políticos de todosos matizes ideológicos, dos mais conservadores aos mais radicais. [...].245

Lima se mostra fiel à agenda de certos membros da geração de 1870 que

preconizavam a inclusão de tradições populares como cantos e contos anônimos na

busca pela compreensão do processo de formação da identidade nacional. José

Veríssimo, por exemplo, ainda 1890 no seu A educação nacional, recomendava a

inclusão no ensino de história de contos dos poetas e de legendas populares, uma

vez que esses constituíam “produtos das mesmas forças emotivas que o povo”

continha.246

Dois anos antes dele, o sergipano Sílvio Romero, na sua conhecida História

da literatura brasileira, dedica todo um capítulo – “Tradições populares: cantos e

contos anônimos. Alterações na Língua Portuguesa no Brasil” - à análise a ação das

três raças nos contos e lendas populares e suas influências na língua portuguesa.247

Entretanto, Lima busca se distanciar, em certa medida, da forma e dos critérios de

muitos estudiosos daquelas narrativas populares que, norteados pela perspectiva

cientificista, procuravam coligi-las e analisá-las com o intuito de aprisioná-las num

significado, retirando-lhes a espontaneidade e suas readequações ao meio social de

onde foram extraídas.

Tanto é que no trecho acima Lima deixa claro que a sua visão sobre as

histórias que lhe foram contadas não tem como objetivo de ser vista como a

“correta” (“[...] não me animo a asseverar que a minha generalização possa ser de

qualquer forma certa; e o intuito dessas linhas não é esse.”) Muito menos se

244 SILVA, Raphael Frederico Acioli Moreira da. Os macaquitos na Bruzundanga. In: CHALHOUB,Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs.). História emcousas miúdas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, p. 174.245 Ibid., p. 173.246 VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 101(Série Novas Perpectivas).

247 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Organização: Luiz Antonio Barreto. Tomo I.Rio de Janeiro: Imago Ed.; Aracaju: UFS, 2001 (Edição comemorativa do Sesquicentenário denascimento de Sílvio Romero), p. 123-137

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preocupa se as narrativas já tenham sido registradas, pois o que importa é perceber

como aquela arte anônima expressava as expectativas e angústias do povo.

Outra diferença no registro feito por Lima das narrativas orais é sua

identificação dos seus narradores, talvez objetivando fugir da idealização de

trabalhos anteriores que se debruçaram sobre tais narrativas e dar certa visibilidade

àqueles sujeitos históricos. Nas obras que inauguram a história da publicação de

contos de tradição oral no Brasil – Contos Populares do Brasil (1897), de Sílvio

Romero, O selvagem (1876), de Couto de Magalhães e Serões da mãe preta (1897),

de Juvenal Tavares -, por exemplo, não há identificação dos contadores, mas

somente do nome dos estados em que foram registradas.248

Segundo Raphael da Silva, essa preocupação de Lima, comum às gerações

anteriores, no entanto, “é frequentemente associada, na trajetória do escritor, ao

processo de descoberta da participação dos negros em sua identidade literária, com

todas as repercussões negativas que isso acarretava no período em que o escritor

elaborava sua obra”.249 E isso já aparece na introdução da coletânea de histórias

“Mágoas e sonhos do povo” na qual destaca a presença de animais como

personagens, marcando a forte identificação dos populares com a figura do macaco.

Este “é o símbolo da malignidade, de esperteza, da pessoa “boa na língua”,

em luta contra a onça, cheia de força, mas traiçoeira e ingrata”, segundo a versão de

um contínuo da Secretaria da Guerra e natural do Rio Grande do Norte, o ex-praça

do Exército senhor Antonio Higino. Mas também ao macaco “os contos populares

lhe emprestam alguma generosidade e alguma graça”.250 Lima considera que se o

povo não o fez seu “totem”, possivelmente, de alguma forma, o fez “seu grande herói

epônimo”, aquele responsável pelas suas principais características. Nos textos da

coletânea “Sonhos e mágoas de um povo”, publicados em 16 de abril de 1919, o

macaco é o grande protagonista. Lima diferencia o macaco nacional dos outros do

248 SOUZA, Josiley Franciso de. Do canto da voz ao batuque da terra: a presença africana emnarrativas orais inscritas no Brasil. Orientadora: Sônia Queiróz. 2012. 201 f. Tese (Doutorado emLiteratura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federalde Minas Gerais, 2012, p. 37.249 SILVA, Raphael Frederico Acioli Moreira da. Os macaquitos na Bruzundanga. In: CHALHOUB,Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs.). História emcousas miúdas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, p. 174.250 BARRETO, Lima. Coisas do Reino do Jambon: sátira e folclore. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,1961b, p. 245.

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planeta, afirmando que “o nosso macaquinho” não tem aspecto de força, mas

astúcia com a qual procura “vencer dificuldades e evitar lutas desvantajosas”.251

No início deste capítulo, vimos como Lima sofreu ao ter sua imagem

associada à do macaco e, mais de dez anos depois desse episódio, ele indica uma

representação positivada desse animal, invertendo o uso racista que se fazia

daquela comparação entre negros e macacos. Lima representa o macaco como a

imagem do povo brasileiro, passando por cima dos racialistas e suas expectativas

de branqueamento da nação. Isso, naquele momento, estava tão latente nos

discursos sobre a nacionalidade que, em 1920, caricaturas publicadas num periódico

argentino dos jogadores de futebol da seleção brasileira nas quais eram

assemelhados a macacos, levou alguns dos principais jornais cariocas a dedicarem

várias notas de repúdio a tal iniciativa.252

Lima se envolveu também nessa polêmica, abordando-a de um ponto de vista

contrastante “com as repostas indignadas dos jornalistas que acompanhavam o

incidente”. Sarcasticamente, Lima buscou apaziguar os ânimos dos nacionalistas

que se achavam ultrajados pelas caricaturas “e, ao mesmo tempo, sub-

repticiamente”, elaborou uma crítica “de repercussões profundas, tanto no debate a

respeito da identidade nacional como na construção de sua própria identidade”.253

Dessa forma, na revista Careta de 23 de outubro de 1920, assim se posicionou o

escritor:Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nosde macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantadosexemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, senãopai, pelo menos primo do homem. Tão digno “totem” não nos pode causarvergonha.[...]Quase todas as nações, segundo lendas e tradições, têm parentesco ou seemblemam com animais. Os russos nunca se zangaram por chamá-los deursos brancos; e o urso não é um animal tão inteligente como o macaco.[...]Não vejo motivos para zanga, nessa história dos argentinos chamar-nos demacacos, tanto mais que, nas nossas histórias populares, nósdemonstramos muita simpatia por esse endiabrado animal.254

251 BARRETO, Lima. Coisas do Reino do Jambon: sátira e folclore. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,1961b, p. 252.252 SILVA, Raphael Frederico Acioli Moreira da. Os macaquitos na Bruzundanga. In: CHALHOUB,Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs.). História emcousas miúdas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, p. 159-162.253 Ibid., p. 162-163.254 BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização: Beatriz Resende & Rachel Valença.Vol. II (1919-1922). Rio de Janeiro: Agir, 2004b, p. 224.

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Lima transforma o insulto em elogio, recorrendo à lógica de atribuição de

símbolos às nações. O enaltecimento do macaco como símbolo nacional por Lima

deve ser visto também como uma seleção que opera naquelas primeiras

publicações de narrativas orais no Brasil a fim de trazer os elementos culturais de

origem mestiça e africana para o palco principal da narrativa nacional. Segundo

Raphael da Silva, Lima, como “conhecedor confesso das obras dos principais

folcloristas de seu tempo e da geração anterior”, conhecia, certamente, os contos do

jabuti - classificados como indígenas e citados nas compilações de Sílvio Romero e

Couto de Magalhães -, “como autêntico símbolo da vitória da inteligência sobre a

força bruta”.255

Contudo, Lima, nas suas pesquisas como folclorista amador, elege o macaco,

“cujas histórias em que é protagonista foram consideradas por Sílvio Romero como

de origem africana e mestiça”, o grande símbolo da astúcia.256 Nas histórias

recolhidas por Barreto, o grande inimigo natural do macaco é a onça com quem, “no

romancear do povo”, trava “um duelo de morte interminável”. Numa das histórias

contadas pelo Antonio Higino, o macaco inventa uma história pela qual “Nosso

Senhor” ia mandar um vento muito forte e só se salvaria quem estivesse bem

amarrado. Diante disso, com medo, a onça pede ao macaco para lhe amarrar bem,

já que não tinha mãos para fazer isso.257

O macaco a amarra e, depois de se certificar que a onça estava presa, dá-lhe

uma surra de cipó e foge. Após ser solta por suas irmãs, a onça jura se vingar do

macaco. A oportunidade veio quando estava num período de seca e a onça se

escondeu próximo ao único lugar que havia água naquele momento, esperando pelo

macaco. Mas este havia adivinhando sua intenção.

O macaco besuntou todo o seu corpo com melaço e se espojou num monte

de folhas secas, ficando parecido com o ouriço-caixeiro com o qual a onça não tinha

implicância. Dessa forma, bebeu água tranquilamente e adiando a vingança de sua

inimiga.258 Michel de Certeau tem uma interpretação sobre o potencial da cultura

255 SILVA, Raphael Frederico Acioli Moreira da. Os macaquitos na Bruzundanga. In: CHALHOUB,Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs.). História emcousas miúdas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, p. 175.256 Ibid., lo.cit.257 BARRETO, Lima. Coisas do Reino do Jambon: sátira e folclore. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,1961b, p. 254-255.258 Ibid., p. 256.

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popular que pode nos auxiliar na compreensão de mais um possível sentido que

Lima talvez quisesse representar ao publicar essa história do macaco. Para Certeau,[...] Uma formalidade de práticas cotidianas vem à tona nessas histórias,que invertem frequentemente as relações de força e, como as histórias demilagres, garantem ao oprimido a vitória num espaço maravilhoso, utópico.Este espaço protege as armas do fraco contra a realidade de ordemestabelecida. Oculta-as também às categorias sociais que “fazem história”,pois a dominam. E onde a historiografia narra no passado as estratégias depoderes instituídos, essas histórias “maravilhosas” oferecem ao público (aobom entendedor, um cumprimento) um possível de táticas disponíveis nofuturo.259

Como o povo se identifica com o macaco, Lima, por meio da história que

registrou, representa anseios de grande parcela da população marginalizada e

oprimida pelo Estado e pelas elites (a onça) de inverter as relações de força

estabelecidas na sociedade. Se pensarmos no plano da representação, temos

também operada outra inversão nessa narrativa, pois o povo (macaco) aparece

como o protagonista e herói. Contudo, nem sempre o macaco consegue obter

vantagem.

Numa história contada por sua vizinha, Dona Minerva Correia da Costa que

era natural de Valença no Estado do Rio, Lima, no mesmo dia 16 de abril de 1919,

narra as situações vividas pelo macaco após ter sido “troçado” pelas crianças por

aparecer na rua vestido, mas com seu rabo ainda à vista. O macaco vai ao barbeiro

e pede que corte seu rabo. Quando retorna à rua, as crianças agora o troçam pela

falta do rabo.260

O macaco retorna ao barbeiro na tentativa de recolocar o rabo, o que é

impossível. Diante disso, o símio lhe rouba a navalha. Mais adiante, ao encontrar

uma mulher que não tinha uma faca para escamar um peixe, deu-lhe a navalha e em

troca aquela lhe ofereceu uma refeição com o peixe que preparou e farinha. Após o

almoço, o macaco quis a navalha de volta e a mulher não cedeu, levando o primeiro

a carregar-lhe “um bom bocado de farinha”.261

Depois disso, ele topou com uma professora que dava bolos de pau às alunas.

“Ofereceu-lhe a farinha para fazer bolos” de verdade. Com isso, o macaco também

se alimentou com os bolos. Depois de se despedir e, tendo andado um pouco,

arrependeu-se e pediu a farinha à professora que se recusou, pois não a tinha mais.

259 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves.15 ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 85.260 BARRETO, Lima. Coisas do Reino do Jambon: sátira e folclore. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,1961b, p. 253.261 Ibid., p. 253-254.

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Como retaliação, arrebatou uma das crianças, a qual foi trocada por uma viola com

um sujeito que encontrou mais a frente. Todavia, ao continuar sua caminhada se

deparou com um obstáculo que não conseguiu superar: um largo rio que não podia

atravessar.[...] Pela primeira vez, depois de tantas aventuras, vencidas com facilidade,encontrava um obstáculo que a sua manha e sua astúcia não podiamvencer. Para consolar-se, resolveu cantar as suas proezas comacompanhamento de viola. Assim contou:- Macaco com seu rabo arranjou navalha; com a navalha, arranjou peixe;com peixe, arranjou farinha; com farinha, arranjou menina, com menina,arranjou viola...O rio, porém, continuava a correr mansamente em toda a sua largurainstransponível. Viu bem que era impossível vadeá-lo. Não havia lábia ouastúcia que lhe valesse... Desesperado atirou-se nele para morrer.262

Notamos que nessa história o macaco é discriminado. Apesar de vestido

como um ser humano, sofre com as troças das crianças por conta de uma parte

específica de seu corpo. Mesmo quando a nega com a amputação, ainda assim é

novamente perturbado. Uma leitura possível dessa narrativa é a representação da

discriminação racial, o que endossa as considerações acima sobre a relação entre

imagem do macaco e o racismo no Brasil.

Mesmo usando roupas consideradas elegantes ou até se tornando uma

pessoa letrada como o próprio autor, a sociedade, muitas vezes, só ver a

pigmentação da sua pele como uma marca social que a inferioriza. Lima deve ter se

inclinado a registrar essa narrativa e torná-la pública para trazer esse tema, tão caro

a sua literatura. A narrativa também faz referência ao cotidiano de lutas pela

sobrevivência do macaco (povo) com suas várias artimanhas para ter alimento.

Quando não tinha mais o que fazer para se manter, vimos que, antes da

resolução fatal, o macaco (povo) busca consolo na suas tradições culturais pelas

quais narra suas vitórias “subterrâneas” cotidianas. Aqui nos referimos ao uso da

viola e o canto produzido pelo macaco rememorando suas aventuras. Nesse trecho,

Lima destaca hábitos condenados pelo critério utilitário de relacionamento social das

elites da época, simbolizado pelo instrumento musical: a serenata.263 Esta, por sua

262 BARRETO, Lima. Coisas do Reino do Jambon: sátira e folclore. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,1961b, p. 254.263 Nos romances Triste fim de Policarpo Quaresma e Clara dos Anjos, Lima também traz a discussãoacerca da simbologia da viola na cultura brasileira naquele momento por meio dos personagensRicardo Coração dos Outros e do pai de Clara, respectivamente.

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vez, estava relacionada a outro costume condenável que era a boemia, pois a viola

ou o violão era presença constante nas rodas de estudantes boêmios.264

Além disso, a forma como são apresentadas essas histórias populares é

bastante pertinente, se levarmos em consideração o contexto socioeconômico

desses grupos sociais. As condições materiais de existência, no momento da

publicação delas, tornavam-se cada vez mais precárias, exigindo das camadas

subalternas mais artimanhas para garantir sua sobrevivência. Aliadas às dificuldades

geradas pela política econômica do governo, ainda no fim do século XIX, com a

emissão monetária contínua e câmbio baixo, tivemos ao longo daquele início do

século XX falta de regulamentação legal dos salários e de moradia, aumento dos

alugueis que foram agravados com a derrubada dos casarões e cortiços do centro

do Rio pela reforma de Pereira Passos e pelo crescimento populacional, aumentos

da tarifa de bonde, monopólio da carne vermelha e, partir de 1917, a excessiva

especulação que se desenvolveu durante a Guerra Mundial com os gêneros de

primeira necessidade.265

O recurso à oralidade como meio de apresentar a visão dos anônimos

também norteou a produção do romance Vida e norte de M. J. Gonzaga de Sá no

qual Lima procurou sinalizar um modo diferenciado para a escrita de biografias.

Esse gênero era muito utilizado para a transmissão dos feitos memoráveis de

sujeitos que se distinguiam por letras, armas e virtudes pelo IHGB, o que promoveu

uma memória histórica enaltecedora dos considerados grandes personagens da

história pátria. Uma visão elitista de recordação do passado, portanto, que favoreceu

ainda mais a marginalização das camadas populares na narrativa sobre a formação

da nação.

O combate a essa marginalização se deu pela escolha do sujeito a ser

biografado. Apesar de Manuel Joaquim Gonzaga de Sá ser um bacharel em letras

pelo antigo Imperial Colégio Dom Pedro II e descendente dos fundadores da cidade

do Rio, no momento em que o seu biógrafo o conhece ele vivia de seu trabalho

como funcionário público do baixo escalão. A forma como justifica tal escolha

endossa o objetivo de Lima em horizontalizar o direito de fazer parte do grupo dos

264 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na PrimeiraRepública. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 46.265 Ibid, p. 73-78.

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memoráveis nacionais. Desse modo, o biógrafo Augusto Machado assim justifica

sua opção:A ideia de escrever esta monografia nasceu-me da leitura diurna e noturnadas biografias do doutor Pelino Guedes. São biografias de ministros, todaselas, e eu entendi fazer dos escribas ministeriais. Por ora, dou unicamentesubsídios para uma; mais tarde, talvez escreva as duas dúzias que planejo.Não há neste tentâmen nenhuma censura ao ilustre biógrafo, nemtampouco propósito socialista ou revolucionário de qualquer natureza.Absolutamente não! Obedeci, aliás muito inconscientemente em começo, àlei da divisão do trabalho; e, com isso, sem falsa modesta o digo, fiz umaimportante descoberta que o mundo me vai agradecer.[...] era fácil de ver que, exigindo a ordem obscura do mundo humano umdoutor que cure, outro que advogue, forçoso era também que houvesse umbiógrafo para os ministros e outro para os amanuenses.[...] longe de ser um capricho, a publicação deste opúsculo é manifestaçãode uma grande e inevitável lei, a que me curvei e me curvo, como a todasas leis, independente de minha vontade.[...].Contudo, não me julgo com a verdade. Deus me livre de tal coisa! [...] É umestimulante que procuro, e uma imitação que tento, Plutarco e o doutorPelino, mestres ambos no gênero, hão de perdoar esse meu plebeu intento,de querer transformar tão excelso gênero de literatura moral – a biografia –em específico de botica.266

Esse trecho traz mais uma dose da ironia que Lima costumava lançar mão

para alfinetar desafetos e satirizar certas práticas sociais. Pelino Joaquim da Costa

Guedes (1858-1919) de fato foi um biógrafo de figurões dos ministérios, mas

também ocupou o cargo de diretor geral da Diretoria da Justiça no momento em que

Lima tratava da aposentadoria de seu pai. A demora na resposta a sua requisição

fez com que Lima formasse uma visão negativa de Pelino, considerando-o o tipo de

funcionário público que bajula os poderosos e oprime os fracos.267

Outro aspecto relacionado à experiência pessoal do autor é a opção pela

biografia de um funcionário público cujo cargo era o de amanuense, como fora Lima

na Secretaria de Guerra. Mas, como temos acompanhado, essa incorporação de

elementos de sua realidade tinha também propósitos mais amplos. A ironia

barretiana tinha por alvo nesse trecho os critérios deterministas para a interpretação

da realidade.

Ao justificar a necessidade de existir biógrafos para os amanuenses, Augusto

Machado se fundamenta na máxima liberal de Adam Smith (1723-1790) sobre a

divisão do trabalho que determina funções específicas para pessoas e nações a fim

de aumentar a produtividade. Daí a sua “grande descoberta”: em respeito a tal lei

266 BARRETO, Lima. Vida e Morte M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo:Brasiliense, 1961d, p. 29-31.267 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio,1952 (Col. Documentos Brasileiros), p. 115.

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universal, urgia o surgimento de biógrafos para os amanuenses, uma vez que para

os ministros já existiam muitos, cabendo a ele, Augusto Machado, equilibrar a

balança (planejava escrever mais duas dúzias de biografias) e manter em pleno

funcionamento da indefectível divisão do trabalho, a qual, como sabemos, gerou

desigualdades e alienação entre operários e hierarquizações econômicas entre

nações.

Para que uma biografia de pessoas afastadas do poder e de instituições

oficiais responsáveis pela guarda e celebração dos representantes do passado

nacional pudesse ser escrita, a metodologia precisava de mudanças em relação ao

padrão até então aceito. Lima, na “Advertência” que antecede a narrativa, se

apresenta ao leitor como aquele que havia recebido do autor Augusto Machado a

biografia de Gonzaga de Sá com a tarefa de levá-la à publicação. E, até para marcar

a diferença desse texto das biografias oficiais, Lima considera que não lhe pareceu

“de rigor a classificação de biografia” que Machado atribuiu ao texto.Faltam-lhe, para isso, a rigorosa exatidão de certos dados, a exploraçãominuciosa de algumas passagens da vida do principal personagem e asdatas indispensáveis em trabalho que queira ser classificado de tal forma; enão só por isso, penso assim, como também pelo fato de muito aparecer e,às vezes, sobressair demasiado, a pessoa do autor.Aqui e ali, Machado trata mais dele do que do seu herói.268

Lima, no entanto, vê esses “defeitos” como insignificantes, em virtude dos

inegáveis méritos da obra, responsáveis por convencê-lo a alcançar a publicação

dela.269 Pela voz ficcional de Augusto percebemos que a forma de se expressar de

seu biografado foi decisiva para a escolha do tipo de narrativa. Mesmo tendo a sua

disposição muitos textos lidos e até manuscritos que haviam pertencido a

Gonzaga,270 Augusto Machado afirma que a inteligência de seu amigo “não sabia

dar logo um pulo de cabeça para o papel; e só a sua palavra viva, assim mesmo em

palestra camarária, era capaz de dizer tudo o que lhe era próprio e profundamente

seu”.271

O desenvolvimento da narrativa da vida e morte de Gonzaga é realizado pela

forte presença da oralidade. Por meio das conversas com Gonzaga que Augusto é

levado a conhecer fragmentos de sua existência que, como vimos, se confundiam

268 BARRETO, Lima. Vida e Morte M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo:Brasiliense, 1961d, p. 25.269 Ibid., loc.cit..270 Ibid., p. 33.271 Ibid., p. 43.

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com a trajetória da cidade do Rio de Janeiro. Não é à toa que o considerou

historiador artista que fazia história oral.

Essas histórias contadas por Gonzaga têm um forte impacto sobre Augusto

que começa a observar a realidade a sua volta orientado pela palavra viva do amigo

mais velho. Ao trazer aquelas narrativas orais para a escrita, percebemos que

Augusto Machado fez questão de respeitar a fala de Gonzaga, a forma como se

expressava.

Hampaté Bâ afirma que a cadeia de transmissão, em todos os ramos do

conhecimento tradicional africano, se reveste de uma importância primordial.272

Existe, segundo esse autor, um respeito pela transmissão que determina a

reprodução da história da mesma forma que lhe foi contada, fortalecendo, assim, o

elo entre as gerações. Nesse sentido, Augusto dá continuidade àquela cadeia,

ligando-se temporal e afetivamente ao amigo Gonzaga.

“A função de narrar só tem sentido se encontrada aos ouvidos atentos, à

ressonância”, conforme Ferreira.273 Na trama ficcional criada por Lima, Gonzaga

encontra essa ressonância em Augusto Machado, tornando ainda mais nítida a

influência da tradição oral na literatura barretiana. Além disso, podemos notar que,

nesse romance, Lima indica que o recurso a oralidade é uma chave para tornar

perceptíveis os fragmentos do passado de sujeitos que até naquele momento não

eram considerados como memoráveis por um discurso histórico hegemônico. A

própria biografia como gênero já consagrado poderia ser renovada se viesse a

incorporar a tradição oral como fonte.

A autoria dessa “nova” biografia também é sugerida por Barreto a fim de

romper as barreiras impostas pela cultura histórica da época que confiava a escrita

da história aos homens de letras norteados pela cultura europeia. Assim como

ocorreu em Recordações do escrivão Isaias Caminha, na obra Vida e morte de

Gonzaga de Sá aquele que se torna autor das histórias não vem das elites, está fora

do IHGB e da ABL - Augusto Machado é amanuense como Gonzaga. Algo que

272 BÂ, A. Hampaté. A tradição viva. In: In: KI-ZERBO, J. (org.). História geral da África: Metodologiae pré-história da África. Vol. 1. Brasília: Unesco, 2010, p. 181.273 FERREIRA, Amanda Crispim. Escrevivências, as lembranças afrofemininas como um lugarde memória afro-brasileira: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Geni Guimarães.Orientador: Marcos Antônio Alexandre. 2013. 115 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) –Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, 2013, p.26.

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representa a expectativa de Lima em ver os que estavam sendo relegados pela

narrativa oficial da nação se tornando cidadãos e autores de sua própria história.

A oralidade em Lima Barreto, portanto, cumpre um papel estético e ético, pois

nega a unidade lingüística e o grafocentrismo, bem como estabelece uma maior

comunicação com o povo e dá visibilidade a um elemento do repertório cultural afro-

brasileiro.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lima Barreto travou um intenso e tenso diálogo com a cultura histórica de sua

época. Esse teve início já nas suas primeiras reflexões acerca de sua origem familiar,

expressas nas anotações pessoais cotidianas e esboços literários. O lugar social de

Lima surge, ao longo da sua trajetória de escritor, como um forte componente a

elucidar a forma como observava a realidade e suas representações nas narrativas

literárias e historiográficas.

Com uma perspectiva histórica afiada, Lima deixou bem claro que sua

literatura tinha como propósito analisar as ressonâncias da escravidão negra no

Brasil nas relações sociais e na produção intelectual de início do século XX. A partir

desse viés, a influência da ciência no pensamento social, literário e histórico

brasileiro teve espaço significativo nos textos por meio dos quais Lima evidenciou a

dimensão política das teorias racialistas.

A exclusão e/ou representação de maneira estereotipada dos negros nas

narrativas que visavam conformar a identidade nacional e legitimar o regime

republicano tinha por base a visão hierarquizadora das raças, apropriada por muitos

homens de letras nacionais. Lima, diante de sua experiência de vítima da

discriminação racial e social, enveredou pela análise de trabalhos com grande

repercussão no cenário sociocultural da época, procurando apresentar a seus

leitores as suas lacunas e tentativas de produzir uma memória que excluía boa parte

do povo brasileiro.

Nesse contexto cultural, o autor procurou se apropriar de alguns aspectos do

pensamento cientificista, trazendo para sua literatura tudo aquilo que, nessa visão

de mundo, pudesse fornecer aos seus leitores um entendimento da sociedade. Lima,

ao estudar as referências do cientificismo que tinham grande influência no Brasil,

descartou seus determinismos, principalmente o racialista. Contudo, se serviu do

enfoque da ciência na elaboração de seu foco narrativo.

Lima, assim, aproximou sua linguagem daquela utilizada pelos discursos de

áreas do conhecimento, como a filosofia, o ensaio e parte da própria ciência. Obteve,

como efeito nos seus textos, narrativas e análises objetivas, deixando velada a

subjetividade do autor, ou seja, um padrão de linguagem predominante na

historiografia e, de forma geral, em toda a produção científica. Além disso, adotou as

formulações sobre a literatura propostas por autores que, como Taine, viam os

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textos literários como documentos expressivos da psicologia de um povo ou de um

dado momento histórico.

O discurso sobre a escrita da história e outras formas de rememoração do

passado ganhou densidade nos seus romances, crônicas e contos, levando-o à

desconstrução de certas versões sobre a formação do povo brasileiro. Assim, ele

estabeleceu uma forte oposição entre a sua literatura militante e determinadas

tradições literárias e historiográficas, elaborando questionamentos sobre práticas de

esquecimento que percebia nas produções de membros da ABL e do IHGB.

Em muitos dos seus textos, o recurso à caricatura permitia realçar aspectos

de certos sujeitos considerados memoráveis (os herois nacionais), bem como da

visão de intelectuais sobre a realidade nacional, realizando uma leitura

questionadora no intuito de mostrar a “fragilidade” dos argumentos que os

sustentavam. A tal estratégia aliava o uso da ironia que, por sua vez, fazia com que

os narradores barretianos apresentassem projetos políticos e formas de

representação do passado diferentes, suspendendo a autoridade dos discursos

monofônicos e propiciando a dúvida com a enunciação de outras versões sobre

certos momentos históricos brasileiros.

Muitas de suas críticas a certos historiadores eram pautadas, justamente, no

respeito às próprias regras que esses homens estabeleciam para sua escrita, a

saber: a busca da verdade como horizonte e a produção de uma narrativa ancorada

em fontes devidamente criticadas. Mesmo com esse perfil, em grande medida

iconoclasta, Lima apresentou algumas afinidades com historiadores brasileiros que

propuseram inovações sobre a investigação do passado, como João Ribeiro e

Capistrano de Abreu, bem como recorreu a certos postulados do historiador francês

Renan, o qual tinha também grande influência na intelectualidade brasileira.

A principal crítica de Lima à produção historiográfica brasileira, de modo geral,

dizia respeito à tendência a se considerar legítimas apenas narrativas de caráter

político-administrativa, baseadas em documentos escritos, tidos por oficiais, nos

quais o elemento branco colonizador é descrito como superior e civilizado em

relação aos demais grupos humanos. Em contraposição, Lima sugeriu uma

narrativa histórica popular e plural na qual a noção de tempo se distanciava daquela

progressiva, linear, homogênea, uma vez que essa favorecia o apagamento de

memórias de grupos sociais marginalizados.

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A história que Lima almejava tinha um forte caráter social, marcada pela

atenção aos aspectos culturais, às expectativas e ao protagonismo do povo. Dessa

forma, inseriu nas suas narrativas literárias aspectos que fossem capazes de

apresentar as possibilidades de uma alteração na cultura histórica da época. Uma

delas foi a criação de personagens que, na sociedade brasileira, eram discriminados

e, muitas vezes, esquecidos nas representações sobre a nacionalidade.

O caso mais notório foi o de Isaías, um descendente de negros e narrador de

sua própria história. Pelas suas recordações, Lima buscou debater com a

intelectualidade acerca de um traço das relações sociais no Brasil, muitas vezes

negado na trajetória histórica brasileira: a presença do racismo. Além desse caso,

percebemos que, mesmo não sendo protagonistas, havia outros personagens

negros cujas aparições nos enredos barretianos representavam uma visão contrária

à história oficial.

Isso ficou bem claro com a inserção dos pretos velhos, os quais traziam para

a narrativa referências dos tempos da escravidão, remetendo para o tema da

preservação da memória oral. Este procedimento, que tinha suas origens na tradição

africana, foi utilizado por Lima para narrar as reminiscências dos afrodescendentes,

contrapondo-se assim à memória nacional oficializada. A incorporação da oralidade

era também indicada por Lima como uma fonte que os narradores nacionais

poderiam adotar a fim de possibilitar a visão dos anônimos, de um modo geral,

pertencentes às camadas populares.

Algo tão presente em sua criação literária que Lima propôs no romance Vida

e Morte de M. J. Gonzaga de Sá uma outra maneira de se produzir uma biografia na

qual, por meio da oralidade, se poderia ter acesso ao pensamento de um sujeito fora

do quadro dos considerados memoráveis pelo IHGB. Ao analisar, na sua obra, os

procedimentos de memória histórica pública que compunham a cultura histórica de

sua época, Lima também deu destaque às mudanças e permanências do espaço

urbano da cidade do Rio de Janeiro. E, para isso, a oralidade novamente apareceu

como um recurso para trazer à tona parte da história da cidade que desaparecia por

conta de reformas urbanas ao longo do início do século XX.

Ainda para dar contar dessa rememoração do passado da cidade, Lima

selecionou certos espaços da cidade e algumas edificações que representavam

diferentes temporalidades do Rio de Janeiro, enfatizando, por sua vez, a diversidade

racial e cultural da sua constituição. Nesse sentido, também abordou de forma crítica

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as celebrações de marcos históricos como a Proclamação da República e do

Centenário da Independência do Brasil, sendo este último articulado também ao

espaço urbano carioca.

Lima se mostrou ao longo de sua trajetória como escritor atento a várias

formas de produção de memórias e sua relação com as tentativas de legitimação do

presente e orientação de projetos futuros. A construção da identidade nacional

esteve entre os alvos de sua escrita desafiadora. Dessa forma, não se absteve de,

mesmo marginalizado por grande parte da intelectualidade da época, se inserir nas

discussões que envolviam a representação do passado brasileiro.

Como vimos, sua participação foi combativa e propositiva, apresentando

rastros do passado que ofertavam a seus leitores uma outra visão da história. Uma

visão dos vencidos, uma história, parafraseando Benjamin, a contrapelo.

Lima Barreto, por meio de sua literatura, divulgou um conhecimento histórico

que nos permite elencá-lo entre os nomes da história intelectual brasileira,

promotores de uma interpretação da nação naquele momento. Esse trabalho

procurou evidenciar essa face do escritor carioca, a qual sinalizava um horizonte

mais amplo para o campo da história, bem como contribuir com as discussões

presentes na historiografia contemporânea acerca das relações entre as narrativas

histórica e literária.

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