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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ THIAGO GRAFFETE LEMBERG FALSAS MEMÓRIAS DA TESTEMUNHA NO PROCESSO PENAL CURITIBA 2016

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

THIAGO GRAFFETE LEMBERG

FALSAS MEMÓRIAS DA TESTEMUNHA NO PROCESSO PENAL

CURITIBA

2016

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THIAGO GRAFFETE LEMBERG

FALSAS MEMÓRIAS DA TESTEMUNHA NO PROCESSO PENAL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

curso de Direito, da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Me. Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

CURITIBA

2016

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TERMO DE APROVAÇÃO

THIAGO GRAFFETE LEMBERG

FALSAS MEMÓRIAS DA TESTEMUNHA NO PROCESSO PENAL

Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Bacharel no Curso de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, _____ de __________________ de 2016.

_________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Oliveira Leite

Coordenador do Núcleo de Monografia

Universidade Tuiuti do Paraná

Banca Examinadora:

Orientador: _________________________________________ Professor Mestre Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

Membro da banca: _________________________________________

Membro da banca: _________________________________________

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus por me conceder a vida, a inteligência e a

oportunidade de poder estudar e aprender.

Aos meus pais, Amauri e Patricia, pela dedicação em meus cuidados e minha

educação desde minha infância.

À minha esposa, Lariessa, pela paciência, pelo respeito e pela companhia em cada

passo para esta conquista.

Aos meus sogros, Johnny e Regina, pela presteza e pelo apoio incondicional.

Aos meus familiares e amigos que me fizeram presente em muitos momentos de

confraternização que deixei de participar para poder atingir meus objetivos.

Ao corpo docente da Universidade Tuiuti do Paraná, com o qual pude absorver

diversos ensinamentos jurídicos, de ética e de convivência acadêmica.

Agradeço, por fim, ao Professor e Orientador Daniel de Avelar pela atenção e

colaboração, fundamentais na elaboração deste estudo.

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“O que nos causa problemas não é o que não sabemos. É o que temos certeza que

sabemos e que, no final, não é verdade”.

Mark Twain

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RESUMO

A presente pesquisa trata das Falsas Memórias da testemunha no Processo Penal. O estudo pretende demonstrar que a prova testemunhal está longe de conseguir reproduzir fidedignamente determinado evento, isso porque pode se contaminar de

outras informações, que têm relação parcial ou nenhuma com o acontecimento inicial. Contesta, também, o grau de confiabilidade que pode o juiz depositar sobre

este meio de prova, que pode ser o único elemento probatório disponível. Visa mostrar os efeitos de uma prova testemunhal mal produzida e apresentar ferramentas que podem minimizar as falsas memórias. Foi adotada a metodologia

de pesquisas através de revisões bibliográficas, sejam em artigos, documentos, sites, produzidos de forma escrita, de âmbito nacional e internacional. A análise do

tema permitiu identificar a falibilidade da prova testemunhal no processo penal, uma vez que a memória humana é complexa o suficiente para gerar elementos de convicção que na verdade nunca existiram, além de que se contamina pelo próprio

ritual do Processo Penal, essencialmente no momento de sua colheita por inabilidade de seus operadores. O estudo permitiu levantar hipóteses viáveis para a

redução tanto da contaminação da testemunha quanto do processo em si. Palavras-chave: Falsas Memórias. Processo Penal. Prova. Prova Testemunhal.

Testemunha. Memória.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................8

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO PENAL ........................................ 10

2.1 OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS............................................................. 10

2.1.1 Modelo Inquisitório .................................................................................................... 12

2.1.2 Sistema Acusatório ................................................................................................... 15

2.2 O PROCESSO COMO SITUAÇÃO JURÍDICA .................................................... 18

2.3 O PROCESSO E A ATIVIDADE DE (RE)COGNIÇÃO ....................................... 20

2.4 O PROBLEMA DA VERDADE NO PROCESSO ................................................. 22

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROVA NO PROCESSO PENAL .................. 25

3.1 A FUNÇÃO PERSUASIVA DA PROVA ................................................................ 29

3.2 A VALORAÇÃO DA PROVA E A IMPORTÂNCIA DA MOTIVAÇÃO ............... 30

3.3 A PROVA TESTEMUNHAL ..................................................................................... 34

3.3.1 Quem pode testemunhar ......................................................................................... 37

3.3.2 A ilusória objetividade do testemunho e o seu valor probatório ........................ 39

3.3.3 O cross examination e o resquício inquisitorial .................................................... 40

4 A MEMÓRIA .............................................................................................................. 42

4.1 CLASSIFICAÇÃO DA MEMÓRIA........................................................................... 43

4.1.1 Memórias declarativas.............................................................................................. 44

4.1.2 O efeito da emoção sobre as memórias................................................................ 45

4.2 FALSAS MEMÓRIAS................................................................................................ 47

4.2.1 Teorias explicativas das falsas memórias............................................................. 48

4.2.2 Falsas memórias espontâneas e sugeridas ......................................................... 51

4.2.3 Falsas memórias: erro, mentira e falso testemunho ........................................... 53

5 A PROVA TESTEMUNHAL E AS FALSAS MEMÓRIAS ................................. 55

5.1 A CONTAMINAÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL ............................................ 56

5.1.1 Fatores externos........................................................................................................ 57

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5.1.2 Fatores internos......................................................................................................... 60

5.2 A REDUÇÃO DO DANO .......................................................................................... 63

5.2.1 Entrevista Cognitiva .................................................................................................. 65

5.2.2 Medidas de redução de danos ................................................................................ 67

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 69

REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 73

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1 INTRODUÇÃO

A discussão sobre as Falsas Memórias no Direito é bastante nova. Apesar

de há muito tempo já ter sido diagnosticada na Psicologia, poucos estudos mostram

os seus efeitos no âmbito do Direito Processual Penal, principalmente por este tratar

do cerceamento da liberdade.

O Processo Penal atua em uma atividade cognitiva e retrospectiva, ou seja,

o juiz busca no passado elementos que o convençam no presente para proferir uma

sentença com efeitos para o futuro, buscando sempre a verdade.

A verdade é um dos pontos cruciais deste trabalho, pois foi em busca dela

que se alternaram e se engendraram os sistemas processuais conhecidos, como o

sistema processual inquisitório e o acusatório, ambos almejando atingir a verdade

real ou material, mas somente chegando a uma verdade formal ou processual, qual

seja, aquela criada no processo para convencer as partes, a sociedade e,

principalmente, o juiz, instituída sob a égide da crença e da fé, mas que não

necessariamente coaduna com a realidade dos fatos.

A crença e a fé estão arraigadas no ritual judiciário, pois basta observar a

estrutura dos Tribunais, com a utilização do latim em vários termos, a toga e, em

alguns casos, a utilização de crucifixos, sem falar do compromisso que assume a

testemunha ao colocar a mão sobre a Bíblia e jurar dizer a verdade.

Assim, historicamente, observa-se que a prova testemunhal sempre elevou a

confiança do juiz, pois parte-se do pressuposto de que a testemunha não mentirá,

tendo em vista que fez um juramento, perante Deus, a sociedade e o juiz. Mas e se

o que as testemunhas relatam não condiz com a realidade dos fatos, ainda que não

estejam mentindo? Fala-se, então, em Falsas Memórias.

As Falsas Memórias são bastante semelhantes à Memória Verdadeira e só

se diferem desta pelo fato de que o evento, o qual se acredita ser verdade, na

realidade não ocorreu, mas as sensações e emoções se registraram na memória,

por isso parecem reais. Destarte, elas não se confundem com mentira, erro ou falso

testemunho, a testemunha crê no que está relatando, o que pode não ser a verdade,

já que sofre mentalmente com a sugestionabilidade, que pode ser externa, induzida

por outras pessoas, ou interna, que parte do seu próprio inconsciente.

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O ponto chave é que, não raramente, a prova testemunhal, enfoque desse

estudo, é no processo penal brasileiro, o principal meio de prova utilizado, quando

não o único meio de prova, para proporcionar uma condenação.

O tema das Falsas Memórias da Testemunha no Processo Penal é,

portanto, propriamente multidisciplinar, superando o monólogo jurídico, já que

envolve questões da Psicologia entrelaçadas no Direito, em uma das provas de

extração mais complexa do processo penal, a memória da testemunha.

Nesse sentido, se estuda a possibilidade da memória poder remontar o fato

do modo como ocorreu, observando-se o processo mnemônico e suas influências,

como a emoção, já que esta não registra e nem reproduz as coisas em uma

sequência de imagens ou vídeo.

O que este estudo pretende demonstrar é se a prova testemunhal pode

produzir fidedignamente o acontecimento, observados os fatores como o transcurso

do tempo, e elementos próprios de contaminação, como a influência da mídia, o

contato com outras pessoas, a aplicação de técnicas de entrevista e interrogatório

inadequadas, a rotina e o hábito, entre outros.

Por fim, são demonstradas técnicas e medidas que podem ajudar o Direito a

reduzir o dano causado à memória, como a Entrevista Cognitiva, que visa maximizar

a qualidade e a quantidade de informações que podem ser prestadas pela

testemunha e que sejam efetivamente relevantes ao processo, a diminuição do

tempo entre o fato e o depoimento, a gravação das entrevistas e a inutilização dos

depoimentos contaminados.

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2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO PENAL

2.1 OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

Os sistemas processuais penais são fundamentais para o presente estudo,

pois é neles que se encontra a posição do magistrado em relação à prova.

Assim, os sistemas se dividem em dois, o inquisitório, quando os papéis de

acusação e julgamento estão concentrados na mesma pessoa; e o acusatório,

quando estes mesmos papéis são destinados a pessoas distintas (OLIVEIRA, E.,

2011).

A classificação desses tipos de sistemas é feita através da identificação do

princípio informador, bem como de quem é a responsabilidade pela gestão da prova,

uma das características mais salientes entre os sistemas penais (GESU, 2014).

Na mesma senda, Coutinho (1998) afirma que para identificação de um

sistema processual é necessário se verificar qual o seu princípio unificador, que

deve ser inquisitivo ou dispositivo, determinado pelo critério de gestão da prova,

tendo em vista que a reconstrução do fato de um crime pretérito ocorrerá por meio

da instrução probatória. Assim, nada mais justo que se veja como será realizada tal

instrução para identificar qual é o princípio unificador.

Do ponto de vista histórico, o sistema que predominou até meados do século

XII foi o acusatório, substituído posteriormente, de forma gradativa, pelo sistema

inquisitório, sendo que este preponderou até o final do século XVIII e em alguns

países até o século XIX. O que fez transformar os rumos dos sistemas processuais

foram os movimentos políticos e sociais. No Brasil, a doutrina majoritária assinala

que o sistema contemporâneo é misto, ou seja, é inquisitório na fase pré-processual

e acusatório na fase processual (LOPES JR., 2014a).

Cabe ressaltar que o conceito de sistema misto recebe duras críticas de

parte da doutrina, encabeçada por Coutinho, quando afirma:

Não existe, todavia, princípio misto, razão por que não se sustenta – a não ser retoricamente – um sistema misto, embora, hoje, todos os sejam, isto é, mantêm seu núcleo (e assim devem ser vistos), mas elencam elementos

secundários importados de outro sistema. (COUTINHO, 1998, p. 190)

Assim, nenhum sistema processual pode ser misto quando, como já dito,

sua identificação é feita pelo princípio unificador, que será ou inquisitivo ou

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dispositivo, mas nunca misto, devendo obrigatoriamente sua essência (núcleo) ser

pura.

Pode-se concluir, portanto, que todo o sistema é misto, como diz, Coutinho,

quando bailam no sistema elementos secundários trazidos de outros sistemas

processuais, como um anexo, mas que não poluem o seu núcleo.

Neste esteio, completa Bonfim:

[...] ambos os sistemas contem em menor ou maior grau as mesmas características geralmente apontadas como pertencentes a sistema diverso. [...] daí a inexistência de um sistema que pudesse ser sempre

absolutamente puro, a enquadrar-se em um rol predeterminado de características. (BONFIM, 2015, p. 77)

Visualizando a sociedade em que operam os sistemas processuais, segundo

Lopes Jr. (2014a), pode-se concluir que o sistema acusatório prepondera nos países

em que a liberdade individual é mais respeitada, bem como as bases democráticas

são mais sólidas e, de maneira inversa, o sistema inquisitório prepondera nos países

em que há maior repressão, marcados pelo autoritarismo ou totalitarismo em que

prevalece o interesse do Estado sobre a liberdade individual.

Ademais, tal fundamento corrobora com a ideia de Goldschmidt, na qual

“pode-se dizer que a estrutura do processo penal de uma nação não é mais do que

o termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de sua constituição”

(GESU, 2014, p. 25 apud GOLDSCHMIDT, 2002, p. 71).

De maneira a inovar a ordem processual, Martins (2013) ressalta que é

necessário se utilizar da democraticidade como princípio unificador, ou seja, fomenta

a existência de um terceiro sistema processual, qual seja, o sistema democrático,

um sistema que não é nem inquisitório, nem misto e é mais do que acusatório.

Assim, a democraticidade seria a melhor forma de garantir a máxima eficácia

das garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e da imparcialidade

do juiz (LOPES JR., 2014a).

Retornando à forma clássica dos sistemas processuais, Gesu (2014) extrai

da história que, em ordem cronológica, o sistema acusatório era próprio dos

romanos e dos gregos, sendo que o sistema inquisitório surgiu no fim do Império

Romano. Os romanos, então, migraram do sistema acusatório para o inquisitório, em

parte devido ao inconformismo com a persecução penal particular, mas

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principalmente com a falta de capacidade de produção de provas pelas partes,

passando, então, esta atividade a ser desenvolvida exclusivamente pelo Estado.

Desta forma, completa Lopes Jr.:

As teorias do direito privado (contrato, quase contrato e acordo) foram sendo completamente abandonadas até o final do século XIX, quando o processo (civil e penal) deixa de ser considerado um mero apêndice do

direito privado para adquirir sua autonomia. Na esfera penal, influência decisiva para o abandono das teorias privadas foi o fato de a pena passar ao estágio de pena pública, como explicado anteriormente

1, exigindo que a

Administração da Justiça fosse exercida pelo Estado, pois ele passou a deter o poder de punir com o abandono e a proibição da vingança privada (LOPES JR., 2014a, p. 64).

Ainda, Lopes Jr. (2015) evidencia que tal ruptura dos processos, através do

princípio da necessidade, reafirma o equívoco da Teoria Geral do Processo, sendo

Rogério Lauria Tucci o primeiro a desvelar o fracasso de tal teoria.

Afirma, por consequência, que os processos têm roupagens diferentes e

aduz que “o processo penal, como a Cinderela, sempre foi preterido, tendo que se

contentar em utilizar as roupas velhas de sua irmã2”, já que no direito penal de forma

alguma se permite que a solução do conflito se faça pela via extrajudicial e que,

diferentemente do direito civil, o direito penal não subsiste sem o seu processo

(LOPES JR., 2014a, p. 57).

Portanto, a alternância do sistema processual penal adotado pelos romanos

foi o marco inicial da ruptura definitiva entre o direito processual penal e o direito

processual civil (LOPES JR., 2014a apud MONTERO AROCA, [1996?]), ambos

tidos, até então, como direito privado, sendo criticado por Gesu (2014) já que o

modelo inquisitório foi um retrocesso às garantias e aos direitos individuais,

recuperado pelo modelo acusatório.

Passa-se, assim, à análise individualizada dos sistemas processuais penais.

2.1.1 Modelo Inquisitório

É impossível se referir ao sistema inquisitório sem consultar a suas fontes

primordiais que foram o Manual dos Inquisidores, escrito por Nicolau Eymerich em

1 Resumidamente, Lopes Jr. informa que o direito penal nasce como uma negação da vingança

privada, não como evolução. O processo penal nasce somente quando o Estado assume a tarefa de punir e, assim, não se vislumbrara este até tal momento. 2 Lopes Jr. se refere a Carnelutti em sua obra Cenerentola (Cinderela), que utilizou da fábula infantil

para comparar o direito processual penal ao processual civil.

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1376 e o Martelo das Feiticeiras, escrito pelos inquisidores Sprenger e Kramer, este

último uma espécie de bíblia dos inquisidores (GESU, 2014).

Destarte, o nascimento do sistema inquisitório, apesar de ter relação com o

declínio romano, está atrelado ao seio da Igreja Católica (GESU, 2014) e que,

segundo Lopes Jr. (2014a, p. 97) “permanece em sua mais radical constituição no

Direito Canônico, com todo vigor em pleno século XXI”.

O sistema inquisitório passou a se fortalecer ao final do século XIII quando o

poder do sistema feudal estava se dispersando e era necessário centralizá-lo de

forma hierarquizada, por uma questão de sobrevivência. Foi assim que as Igrejas

Católica e Protestante contribuíram para essa centralização do poder e percorreram

a Europa de ponto a ponto julgando heréticos e bruxos – inimigos da fé, torturando-

os e assassinando-os através dos tribunais da Inquisição, chamado expurgo

(KRAMER; SPRENGER, 1993).

Nos tribunais da Inquisição ou Santo Ofício o que se almejava não era a

verdade, mas a “posse agradecida” da verdade absoluta, pois esta já havia sido

revelada pelo poder divino e qualquer dado ou fato divergente era tido como

equívoco (EIMERIC, 1993, p. 10).

Nesse sentido, Binder (2003) reflete sobre a verdade ter se prestado, em

muitos momentos, a justificar a tortura – que, nas palavras de Gesu (2014), já era

uma pena – bem como outros excessos, mas também preveni-los. Ainda, a

incorporação dessa ideia de verdade é que fez consolidar a pessoa do inquisidor,

alguém de conduta altamente moral, supostamente mais capacitada e imune aos

interesses, quase como um sacerdote; alguém que tinha compromisso pessoal no

deslinde da verdade, essa unilateral. Tudo pelo poder.

O sistema inquisitório é um modelo histórico que paulatinamente passou a

substituir o sistema acusatório, durante os períodos dos séculos XII ao XIV, no qual

a principal fraqueza, como já dito, foi a inatividade das partes, concluindo-se que a

persecução penal não deveria permanecer nas mãos do particular (LOPES JR.,

2014a).

Além disso, neste modelo processual, o juiz é livre para atuar, de modo que

ficam afastados os defeitos da inatividade particular (LOPES JR., 2014a).

Conforme Bonfim (2015), no sistema inquisitivo se confundem as pessoas

do julgador e do acusador, bem verdade é que sequer existem acusado e acusador,

mas um juiz inquisidor que investiga e, por fim, julga o objeto do processo, qual seja,

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o inquirido. Portanto, referido sistema é considerado primitivo, como já afirmara

Gesu (2014), uma vez que o acusado é privado do direito ao contraditório, ficando

prejudicada a sua defesa.

Desse ponto de vista, Lopes Jr. (2014a, p. 98) afirma que “é da essência do

sistema inquisitório um desamor3 total pelo contraditório”.

O Manual dos Inquisidores trazia três tipos de processo, por acusação, por

denúncia e por investigação e com a figura do inquisidor deixou de existir o actus

trium personarum (GESU, 2014), pois as funções do processo penal se atrelaram

em apenas uma pessoa, tendo em vista que o acusado não era parte no processo,

mas mero objeto da investigação (LOPES JR., 2014a).

O inquisidor, então, formulava sua tese acusatória de maneira secreta, sem

proporcionar o contraditório, e buscava elementos que a sustentasse, chegando,

assim, à dita verdade (GESU, 2014). Esse processo formava o que Cordero (1986,

p. 51) chama de “primato dell'ipotesi sui fatti”, o que gerava, nas palavras do próprio

autor, “quadri mentali paranoidi”, pois, o inquisidor, trabalhando sozinho, sem

proporcionar o contraditório, concebia hipóteses que justificariam sua decisão, já que

como detentor de todas as cartas do jogo, ficava ao seu juízo decidir quais colocar

sobre a mesa, em uma lógica deformada.

O processo de inquisição era dividido em duas fases, a geral e a especial. A

primeira com escopo em revelar a autoria e provar a materialidade e a segunda em

se estipular o castigo (LOPES JR., 2014a).

A estrutura deste processo foi construída sobre o mito da verdade real ou

absoluta. A busca desta verdade transformou como regra a prisão cautelar, já que o

inquisidor necessitava de seu objeto de prova, qual seja, o acusado, para interrogá-

lo (ato essencial). Assim, este era torturado até que confessasse o crime, pois, desta

maneira, o inquisidor não necessitaria de mais provas, haja vista a confissão ser

elemento suficiente para a condenação. Permeava à época o sistema de prova

tarifada, no qual a confissão era a rainha (LOPES JR., 2014a).

Por fim, urge salientar que o sistema inquisitório foi maculado por conferir a

uma só pessoa todas as funções processuais, incidindo, portanto, em um erro

psicológico. (LOPES JR., 2014a).

3 Termo utilizado por Rui Martins Cunha no livro O ponto Cego do Direito. The Brazilian Lessons. 3.

ed., São Paulo: Atlas, 2013, quando compara a evidência e a prova no processo penal, aquela típica

do sistema inquisitório.

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2.1.2 Sistema Acusatório

O sistema acusatório retrata os direitos grego e romano, que diferentemente

do sistema inquisitório, o direito grego, especialmente, permitiu a participação direta

do povo no exercício da acusação, sendo que para os delitos graves qualquer

pessoa poderia acusar e para os delitos leves a acusação era privada. Já no direito

romano o processo se dava de duas formas, a cognitio e a accusatio. Na primeira, o

processo corria por conta o Estado e o magistrado tinha amplos poderes para

esclarecer os fatos como lhe fosse conveniente. Modelo que perdeu força por não

conceder garantias suficientes, pois o juiz poderia anular sua sentença através de

recurso quando tratava-se o réu de varão e cidadão romano, sendo que ficavam

desamparados os não cidadãos e as mulheres. Na segunda, quem assumia a

acusação era qualquer cidadão do povo, o que delineou uma inovação no direito

processual romano, pois a acusação era conduzida por pessoa diversa do

magistrado e que não pertencia às forças do Estado. (LOPES JR., 2014a).

Sabe-se que a principal crítica ao sistema acusatório e o motivo de sua

decadência foi a inércia judicial combinada à falta de capacidade probatória das

partes, ficando o juiz obrigado a julgar com aquilo que lhe era fornecido e, ainda, a

época do Império mostrou-se insuficiente a combater os delitos (LOPES JR., 2014a).

Com a falência de tal modelo permitiu-se, então, aos juízes tomarem a frente

das investigações e, assim, passaram a proceder de ofício em um procedimento

extraordinário que introduziu no sistema a tortura no processo penal romano,

passando, portanto, ao Estado as funções de acusar e julgar, sem mais a

publicidade dos atos (sistema inquisitório) (LOPES JR., 2014a).

Enfim, no século XVIII, durante a Revolução Francesa, com a valorização do

homem, fez-se abandonar os métodos inumanos do sistema inquisitório, quando,

então, atropelou-se esse período de involução e se estabilizou, novamente, o

sistema acusatório (LOPES JR., 2014a).

Cabe ressaltar que no sistema acusatório o destinatário das provas é

sempre o julgador, ou seja, estas provas devem se prestar a convencê-lo de que o

acusado é culpado, pois, caso contrário, deve prevalecer o princípio do in dubio pro

reo (GESU, 2014).

Nessa senda, compondo com referido princípio se conjuga o da presunção

de inocência, no qual não cabe ao acusado o dever de provar (GESU, 2014) e,

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ainda, em sendo estas cláusulas pétreas, ou seja, garantias fundamentais a

qualquer cidadão em um modelo de Direito Processual Penal Constitucional

Democrático, é papel do juiz garantir a máxima eficácia da aplicação de tais

princípios, ainda que contrarie o anseio popular (LOPES JR., 2016).

Enquanto no sistema continental se caminhava a involução do sistema

inquisitório, no sistema anglo-americano se instalava a law of evidence, típicas do

procedimento do júri (GESU, 2014), ou seja, o elemento da convicção deixa de ter

como base conhecimentos próprios e passa a se fundamentar em provas,

principalmente as testemunhais. Além disso, as provas eram geridas através da

exclusionary rules, um método que se prestava a controlar a qualidade das provas

apresentadas aos jurados, bem como a não violação de direitos fundamentais na

sua obtenção, para que, assim, os leigos não fizessem uma apreciação viciada do

caso (GOMES FILHO, 1997).

Típico do sistema acusatório é tal controle da produção das provas, o qual

impõe condições de sua admissibilidade, sob pena de nulidade, devendo ser

refutadas as provas obtidas por meios ilícitos, quando violam regras de direito

material, ou ilegítimos, quando violam regras de direito processual (GESU, 2014).

Podem-se constatar lembranças do período inquisitório quando da leitura do

Código de Processo Penal (CPP) de 1941, ainda vigente, que em muitos artigos

atribui ao juiz os poderes instrutórios (LOPES JR., 2014a).

Apesar de a Constituição brasileira ser caracterizada por uma série de

regras tipicamente acusatórias, não convergem ao mesmo ponto com o Código de

Processo Penal brasileiro, “que reflete, por sua vez, a ideologia europeia da década

de 1930 [...], com forte influência do Código Rocco italiano, de inspiração fascista”

(GIACOMOLLI, 2015, p. 143).

O código processual penal traz a bordo um modelo claramente inquisitório e

mesmo as diversas alterações pontuais não foram suficientes para afastar a

inconstitucionalidade de seus dispositivos, mas com efeito contrário, certas

alterações, como a da Lei 11.690/08, conferiram mais poderes instrutórios ao juiz,

como produzir provas sem o requerimento das partes e a proceder à oitiva de

testemunhas próprias, ou seja, além daquelas indicadas pelas partes (GESU, 2014).

Nessa toada, Lopes Jr. classifica o sistema jurídico brasileiro como

neoinquisitorial:

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Classificamos de neoinquisitorial, pois é uma inquisição reformada, na

medida em que, ao manter a iniciativa probatória nas mãos do juiz, observa o princípio inquisitivo que funda o sistema inquisitório. Claro que não o modelo inquisitório historicamente concebido na sua pureza, mas uma

neoinquisição que coexiste com algumas características acessórias mais afins com o sistema acusatório, como a publicidade, oralidade, defesa, contraditório etc. (LOPES JR., 2014a, p. 555).

Cabe salientar também que certas leis esparsas preveem uma atuação

exclusiva do juiz, como as interceptações telefônicas, de dados informáticos e

telemáticos, a captação e interceptação ambiental e a infiltração de agentes

(GIACOMOLLI, 2015).

Esse tipo de atribuição dada aos juízes só os tornam mais imparciais e

fazem retornar aos métodos inquisitoriais, sendo criados quadros mentais

paranoicos, se operando o primado das hipóteses sobre os fatos, ou seja, o juiz

primeiro decide (preconceito) e depois justifica sua decisão com provas (LOPES JR.,

2014a).

Não se aprendeu com os próprios erros e alguns tribunais insistem em

defender que o juiz deve ter uma postura ativa no processo e aludem ao conceito

absurdo da busca da verdade real (LOPES JR., 2014a).

Fato é que não se pode reincidir nos erros, pois, conforme Tocqueville

(1848, p. 340), quando “o passado já não ilumina o futuro, o espírito caminha nas

trevas4”.

O sistema acusatório trouxe um tratamento mais digno ao acusado que

deixou de ser objeto da investigação e passou a ser parte passiva no processo

(LOPES JR., 2014a). Além disso, pacificou a ordem social, já que os abusos de

poder do Estado, manifestados através do juiz, não são permitidos, tendo em vista a

vigência de garantias como o contraditório, a ampla defesa, o princípio do in dubio

pro reo, a publicidade dos atos, o princípio do livre convencimento motivado, o duplo

grau de jurisdição, a vedação da reformatio in pejus e, por fim, a coisa julgada

(GESU, 2014).

Ademais, não se pode deixar as escuras o fato de que o contraditório é

componente fundamental do sistema acusatório, e nessa toada, deve ser garantido

pelo Estado, já que ao possuir um aparato acusatório muito bem disposto, deve

fundar proporcionalmente um órgão de defesa para que, deste modo, exista a

4 “Le passé n‟éclairant plus l‟avenir, l‟esprit marche dans les ténèbres”.

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paridade de armas e a dialeticidade no processo (LOPES JR., 2014a), em um jogo

limpo, como se refere Gesu (2014).

Cordero (2003, p. 101) ao se referir à neutralidade do sistema acusatório,

alude ao fair play, e explica que o sistema acusatório é uma “operazione técnica”,

pois um resultado equivale ao outro quando corretamente obtido, sendo um abuso

desviá-los para fins bons, já que as regras são tudo para esse sistema,

diferentemente do sistema inquisitório, no qual os fins justificam os meios.

Por fim, é prudente reforçar que o sistema acusatório exige que a produção

das provas seja feitas pelas partes, principalmente pela parte que acusa, tendo em

vista que, mormente pelos princípios do in dubio pro reo e da presunção de

inocência, ao réu é prescindível a necessidade de provar e o convencimento do

julgador se fará com o que foi lançado no processo, ou seja, “um jogo de chances,

cargas, liberação de cargas, a fim de obter uma sentença favorável” (GESU, 2014,

p. 42).

2.2 O PROCESSO COMO SITUAÇÃO JURÍDICA

O processo como situação jurídica foi a teoria desenvolvida por James

Goldschmidt em sua obra Prozess als Rechtslage, publicada em Berlim, em 1925.

Essa obra, posteriormente difundida em demais obras do mesmo autor,

desestruturou a visão anterior do processo como relação jurídica, de Oskar Bülow, a

qual via o processo como uma relação entre as três partes (juiz, acusação e defesa),

como pública, autônoma e complexa, já que entre elas figuram direitos e obrigações

recíprocos (LOPES JR., 2014a).

A obra de Bülow recebeu várias críticas quanto a sua ineficiência e aplicação

tanto para o processo civil quanto para o penal, mas foi a adotada à época. A teoria

de Bülow trouxe um significativo e inegável avanço ao processo penal, que deixou

de ver o acusado como objeto do processo e passou a tê-lo como parte no processo

(LOPES JR., 2014a).

Ocorre que Goldschmidt demonstrou que o erro foi acreditar no processo

como um verdadeiro processo de partes, no qual, existindo uma relação jurídica,

uma parte exercitaria seu direito subjetivo, exigindo que o juiz preste-lhe a tutela

jurisdicional resistida, sendo ao final coroado como uma verdadeira legalidade e com

o reestabelecimento da paz social (LOPES JR., 2014a).

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Para Goldschmidt “o processo é visto como um conjunto de situações

processuais pelas quais as partes atravessam, caminham, em direção a uma

sentença definitiva favorável” (LOPES JR., 2014a, p. 69). O autor também

desconsidera a existência de direitos e obrigações processuais, definindo como

estática a doutrina de Bülow e evidenciando a sua teoria como de caráter dinâmico

(LOPES JR., 2014a).

Quanto às obrigações de que as partes ficam encarregadas, a teoria de

Goldschmidt revela novas categorias que vinculam as partes, criando laços jurídicos,

como a expectativa, a perspectiva, as chances, as cargas e a liberação de cargas

(GESU, 2014).

Nesse sentido, compara-se o estado dinâmico do processo a uma guerra:

Essa dinâmica do estado de guerra é a melhor explicação para o fenômeno do processo, que deixa de lado a estática e a segurança (controle) da relação jurídica para inserir-se na mais completa epistemologia da

incerteza. O processo é uma complexa situação jurídica, na qual a sucessão de atos vai gerando situações jurídicas, das quais brotam as chances, que, bem aproveitadas, permitem que a parte se liberte de cargas

(probatórias) e caminhem em direção favorável. Não aproveitando as chances, não há a liberação de cargas, surgindo a perspectiva de uma sentença desfavorável (LOPES JR., 2014a, p. 70).

Portanto, as obrigações são convertidas em ônus ou cargas das quais as

partes necessitam se liberar com o fim de evitar uma sentença desfavorável, sendo

isso que as induz a atuar dentro do processo, sem falar que o juiz não estabelece

qualquer relação com as partes, mas representa o poder soberano e sua existência

é condição para o vínculo jurídico (GESU, 2014).

No processo penal, a carga probatória se encontra depositada toda na mão

do acusador, já que o acusado está resguardado pela presunção da inocência,

sendo que a este não cabe o ônus de provar (GESU, 2014), bem como a obrigação

de produzir prova contra si (LOPES JR., 2014a). Logicamente, esse não fazer do

acusado, quando lhe foi dada a chance, pode lhe acarretar o risco de uma sentença

desfavorável. Esta atitude, então, não lhe gera qualquer prejuízo na esfera

processual, pois não lhe é atribuída uma carga, sendo o acusado protegido pelo

nemu tenetur se detegere, mas, certamente, majora o risco de uma condenação

(LOPES JR., 2014a).

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Assim, resume Lopes Jr. (2014a, p. 71) que, à luz da epistemologia da

incerteza no processo, “coexistem as noções de carga para o acusador e risco para

a defesa” e afirma que:

Infelizmente, diuturnamente nos deparamos com sentenças e acórdãos fazendo uma absurda distribuição de cargas no processo penal, tratando a questão da mesma forma que no processo civil. Não raras são as sentenças

condenatórias fundamentadas na “falta de provas da tese defensiva”, como se o réu tivesse que provar sua versão de negativa de autoria ou da presença de uma excludente (LOPES JR., 2014a, p. 71).

O cerne que justifica a passagem pela teoria de Goldschmidt é que ela

ilustra com muito mais clareza a realidade do processo, pois o processo como

situação jurídica se insere na epistemologia da incerteza, da guerra (GESU, 2014) e

evidencia o risco inerente ao processo, portanto, estes elementos reforçam o valor e

a eficácia das regras do devido processo penal (LOPES JR., 2014a).

2.3 O PROCESSO E A ATIVIDADE DE (RE)COGNIÇÃO

O processo penal se perfaz através da investigação de fatos ocorridos no

passado e que interessam ao direito penal, ou seja, a ocorrência de um delito.

Nesse sentido, ressalta Lopes Jr.:

O processo penal é um instrumento de retrospecção, de reconstrução

aproximativa de um determinado fato histórico. Como ritual, está destinado a instruir o julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica de um fato. Nesse contexto, as provas são os meios

através dos quais se fará essa reconstrução do fato passado (crime) (LOPES JR., 2014a, p. 549).

Carnelutti (2013) destacou que a história se faz para todos que percorrem a

estrada da vida, ou seja, se inicia com o nascimento e termina com a morte. O fato,

então, é um pedaço da estrada que se fez e não que se irá fazer. Assim, para saber

se um fato ocorreu, basta que se volte o percurso, sendo que este voltar significa

fazer história.

Ainda, o mesmo autor, referencia que pelo fato de o delito ser um pedaço da

estrada, quem o praticou sempre tenta apagar os rastros de seu percurso

(CARNELUTTI, 2013) e, por isso, os delitos são praticados, em sua maioria, de

forma dissimulada.

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Assim, a investigação se dará pelos vestígios do crime, ou seja, por aquilo

que o autor do crime deixou para trás, não ocultou, chamadas provas indiretas

(GESU, 2014).

O processo, nas palavras de Cordero (2003, p. 565), é uma “macchine

retrospettive”, na qual várias suposições históricas são formuladas pelos

antagonistas, as quais devem ser examinadas.

Assim, se presta a estabelecer se um fato ocorreu e quem foi o seu agente,

sendo que as partes formulam as hipóteses e o juiz acolhe a mais admissível,

baseado em conhecimento empírico (LOPES JR., 2014a).

Coutinho (2015), em mesmo diapasão, define o processo como uma

atividade recognitiva, ou seja, o juiz, com o poder de dizer o direito, deve eliminar

sua ignorância e, para isso, precisa conhecer os fatos, quando, então, realiza o que

se chama de instrução processual, sendo, ao final, expedida uma sentença de

cunho pacificador.

A recognição e a instrução são fatores imprescindíveis para a

democratização, já que garantem o princípio constitucional do devido processo legal,

de modo que além de cumprirem uma função jurídica, têm natureza política e vital

(COUTINHO, 2015).

Na instrução o juiz tem papel de elevada importância, pois esta etapa é

produzida basicamente para ele, sendo que é dele que deve partir o limite

estabelecido pela sociedade em busca do conhecimento do fato, preço a ser pago

pela democracia. O fato é um acontecimento histórico que se traduz em uma

verdade histórica e, portanto, recognoscível. A maneira para se voltar no tempo e

entender o acontecimento é através da prova, esta que estabelece a convicção do

juiz no caso concreto – verdade formal (COUTINHO, 2015).

Para Lopes Jr. (2014a), a instrução, verbo usado na Arquitetura como

instruere, que significa construir, edificar, converte-se para o Direito como a tarefa de

recolher provas que permitam uma justaposição com o fato.

De maneira perturbadora, em um “paradoxo temporal ínsito ao ritual

judiciário”, pode-se afirmar que o fato jamais será real, pois se constituirá em “um

juiz que julgará no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado

(anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando

efeitos (pena) para o futuro (amanhã)” (LOPES JR., 2014a, p. 549).

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Portanto, o agente que praticou o crime não é o mesmo do julgamento e não

será o mesmo do cumprimento da pena, mas certo que durante este o presente será

um eterno reviver do passado, ou seja, o tempo de prisão é um completo tempo de

involução5 (LOPES JR., 2014a).

No sentido de o processo fazer uma retrospectiva dos fatos, se faz analogia

do juiz a um historiador, sendo “ambos interessados em fazer reviver no presente

acontecimentos ocorridos no passado, com o auxílio de provas” (GOMES FILHO,

1997, p. 44).

Contudo, Gomes Filho (1997) revela as distinções entre os dois

profissionais, concluindo que juiz e historiador possuem trabalhos distintos. Isso por

que o posicionamento deles em relação à prova é desigual, já que a obtenção, a

seleção e a avaliação das provas têm rumos totalmente divergentes, como, por

exemplo, o fato do historiador poder inovar na busca pela prova e o juiz estar

adstrito às formalidades legais (contraditório, exame de corpo de delito etc.).

Nesta toada, Ferrajoli (2014) também diferencia o trabalho do juiz, pois ele

possui meios diversos de obter a prova, nomeada de novas fontes, se comparados

aos métodos convencionais utilizados pelo historiador, como, por exemplo, os

interrogatórios, os testemunhos e as acareações. E reafirma a ideia de que ambos,

juiz e historiador, apenas experimentam e avaliam as provas e não os fatos.

Portanto, o que vem a tona com o processo penal são migalhas de parte da

história toda. Sabe o juiz ser impossível ter conhecimento do todo, mesmo que

quisesse, pois não há como restaurar um fato da mesma forma como ele ocorreu, já

que este, depois de ocorrido, só existe na memória das pessoas (GESU, 2014).

2.4 O PROBLEMA DA VERDADE NO PROCESSO

Não se pode continuar esse tema sem destacar o elemento que sempre foi

alvo dos motivos pelos quais os sistemas processuais foram se alternando e

engendrando durante a história, qual seja, a verdade.

5 Lopes Jr. (2014), em nota, sintetiza que o cárcere é um instrumento de caricaturização e

potencialização de aspectos da sociedade e obriga o apenado a reviver o passado no presente.

Denomina a dinâmica do tempo de “patologias de natureza temporal”, ou seja, de que o período de prisão é uma involução, pois o custodiado perde o referencial de tempo, já que a dinâmica intramuros é totalmente desvinculada da extramuros, em uma clara defasagem entre o tempo social e o tempo

do cárcere, tempo este mumificado.

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Afinal, a verdade e a prova são temas bastante associados, mormente

porque a maioria dos autores, sejam antigos ou contemporâneos, vislumbram que o

processo se presta a buscar a verdade, que se faz através das provas (GESU,

2014).

Lopes Jr. (2014a), nos seus estudos sobre o tema, assevera sobre que

verdade almeja com o processo penal, já que este processo se presta a construir o

convencimento do juiz, sendo que as restrições relativas à prova limitam esse

convencimento, bem como sua construção.

Nesse sentido, Gesu afirma que:

O “ideal” seria poder trazer aos autos, através da reconstrução da pequena

história do delito, aquilo que realmente ocorreu. Contudo, a atividade retrospectiva ou recognitiva não é tarefa fácil e simples, na medida em que envolve uma série de fatores complexos, dependendo, na grande maioria

das vezes, da memória, da emoção, da formação de falsas lembranças, entre outros fatores, daqueles que depõem (GESU, 2014, p. 88).

O ponto crucial se faz sobre a pretensão de verdade e o que isso significa

dentro da estrutura do processo, que não se explica sem um necessário

entendimento, um estudo evolutivo, que se inicia na mitológica verdade real (LOPES

JR., 2014a).

A teoria sobre a verdade real foi concebida nos meados da inquisição que se

justificava por um direito penal utilitarista. Na vigência desse sistema processual,

qual seja, o inquisitório, justificado por um interesse público e por regimes

autoritários, se queria atingir a verdade mais material e consistente possível,

extinguindo qualquer limite na busca pela prova que construísse tal verdade, em

uma lógica de que os fins justificam os meios. Contudo, não se teria como atingir tal

verdade, pois as provas (sem limites) eram obtidas através de tortura, o que fez com

que muitas pessoas confessassem crimes que não cometeram, e pior, inclusive

crimes impossíveis de serem praticados (LOPES JR., 2014a).

Assim, a verdade real é impossível de ser obtida, porquanto o “crime é

sempre um fato passado, logo, é história, memória, fantasia, imaginação. É sempre

imaginário, nunca real” (LOPES JR., 2014a, p. 582).

Nesse diapasão, acertou Carnelutti ao aduzir que o que se busca no

processo é a verdade material, mas o que se obtém é uma verdade formal, já que

aquela nunca poderá ser alcançada pelo homem, porque, conforme a célebre frase,

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“la verità è nel tutto, non nella parte; e il tutto è troppo per noi” (CARNELUTTI, 1965,

p. 5).

Surge, então, a ideia de verdade formal (ou processual), ou seja, uma

verdade perseguida, em um modelo formalista, por meio de regras previamente

estipuladas relativas aos fatos e circunstâncias penalmente relevantes (LOPES JR.,

2014a).

Neste esteio, explicita Ferrajoli:

Esta verdade não pretende ser a verdade; não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto pessoal; está condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa. É, em

suma, uma verdade mais controlada quanto ao método de aquisição, porém mais reduzida quanto ao conteúdo informativo do que qualquer hipotética “verdade substancial” [...] é sempre uma verdade apenas provável e

opinativa, e de que na dúvida, ou na falta de acusação ou de provas ritualmente formadas, prevalece a presunção de não culpabilidade, ou seja, da falsidade formal ou processual das hipóteses acusatórias. Este, ademais,

é o valor e, também, o preço do “formalismo” [...] (FERRAJOLI, 2014, p. 48).

A verdade processual, portanto, é uma verdade aproximada, pois se

engendra através de obediência às técnicas legislativas e jurisdicionais, ou seja, as

garantias penais e processuais (FERRAJOLI, 2014).

Carnelutti (1965), então, identificando que o problema no processo é a

“verdade” propôs abandonar essa noção de verdade e a substituiu por “certeza”.

Contudo, tal conceito também é bastante excessivo e igualmente insatisfatório,

sendo refutado pela ciência (LOPES JR., 2014a).

Assim, em qualquer prisma, o problema está na verdade, pois se está em

um labirinto repleto de subjetividade e contaminações que não permitem ao

processo revelar a verdade. Como já dito, existe um paradoxo temporal no processo

judiciário porque o juiz, no presente, julga um fato ocorrido no passado, proferindo

uma sentença que gerará efeitos no futuro (LOPES JR., 2014a).

O fato de a sentença revelar a verdade, então, não passa de um mito e isso

fica reforçado pelo fato de que o processo não passa de um ritual para legitimar a

verdade, tida aqui como “sagrada” (LOPES JR., 2014a).

Partindo-se do entendimento de que o processo é uma atividade de

reconstrução de um fato passado no presente, ou seja, uma atividade recognitiva,

nega-se completamente a ideia de que o processo se presta a buscar a verdade,

mas, sim, uma via, formada pelas regras do devido processo legal e do contraditório,

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de convencimento do juiz, que dá ao caso uma demonstração inequívoca de crença,

que ao final pode ou não coincidir com a verdade (LOPES JR., 2014a).

A instrução do processo se dá por meio das provas, as quais legitimarão a

decisão do juiz, em uma clara função persuasiva, como já visto; e, essas provas

geralmente são as testemunhais, sujeitas a diversas contaminações, originando

recordações que não são fidedignas aos fatos, sendo inviável, portanto, reconstruí-

los tal como ocorreu, bem como continuar a falar em verdade no processo (GESU,

2014).

O que realmente importa é o efeito do convencimento e, nesta senda, acerta

Cordero (2003) ao apontar como palavra-chave a fé, sendo o ritual judiciário um

método de captura psíquica que dá credibilidade a quem julga, fazendo crer a todos

e o próprio juiz.

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROVA NO PROCESSO PENAL

A prova se presta a remontar o fato histórico (em parte) como ele ocorreu,

tentando se aproximar ao máximo da realidade, sendo o juiz o destinatário dessa

prova, de modo que ela irá induzir o seu convencimento, já que o processo de

provar é atividade irrenunciável da atividade jurisdicional estatal (OLIVEIRA, E.,

2011).

Para Bonfim:

A prova é o instrumento usado pelos sujeitos processuais para comprovar os fatos da causa, isto é, aquelas alegações que são deduzidas pelas partes como fundamento para o exercício da tutela jurisdicional (BONFIM,

2015, p. 407).

A prova, então, se demonstra um elemento plurívoco, pois quando se remete

ao direito norte-americano, pode-se observar o tratamento da prova sob dois

substantivos diversos, quais sejam, evidence, para assinalar os meios de prova, e

proof, como resultado do convencimento do julgador (BONFIM, 2015).

Nesse sentido, não existe um conceito (singular) de prova, mas conceitos

(plural), quais sejam, a atividade realizada pelas partes para terem reconhecidas

suas alegações; a ferramenta utilizada para demonstrar a existência de um fato e; a

certeza que surge da convicção do juiz (BONFIM, 2015).

Concorda com essa definição plurívoca Tourinho Filho:

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Provar é, enfim, demonstrar a certeza do que se diz ou alega. Entendem-se, também, por prova, de ordinário, os elementos produzidos pelas partes ou

pelo próprio Juiz visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos. É o instrumento de verificação do thema probandum. Às vezes, emprega-se a palavra prova com o sentido de ação de provar. Na verdade,

provar significa fazer conhecer a outros uma verdade conhecida por nós. Nós a conhecemos; os outros não (TOURINHO FILHO, 2009, p. 213).

Gomes Filho (1997, p. 13) assevera que a prova é a “alma do processo” e se

institui tanto como um meio cognoscitivo, de o juiz se iluminar acerca dos fatos,

quanto psicossocial, assimilando valores e símbolos da sociedade fazendo com que

esta seja partidária à decisão. Portanto, fixam os fatos não só no processo, mas

também, por consequência, no universo social.

Percebe-se desse apanhado que a atividade de provar é complexa, não só

no fato de conceituá-la, mas, também, porque não necessariamente irá refletir os

fatos como ocorreram na realidade, na verdade o que se consegue é uma mínima

aproximação da realidade, mas é um exercício necessário para que se tenha uma

segurança jurídica, produzindo-se, portanto, uma certeza, a certeza jurídica

(OLIVEIRA, E., 2011).

Para que se atinja essa certeza jurídica, as provas não são produzidas como

bem entenderem as partes (ou o julgador), elas são submetidas a um juízo de

admissibilidade constitucional prévio (em respeito às garantias individuais dos

envolvidos no processo), sendo as refutadas consideradas ilícitas (OLIVEIRA, E.,

2011).

Resumidamente, a prova é classificada de diversas maneiras, levando-se

em consideração o objeto, se dividindo em provas diretas e indiretas; o sujeito ou a

causa, podendo ser real (se derivar de coisa ou objeto) e pessoal (ex.: depoimento

da testemunha); a forma, sendo testemunhal, documental e material; e o valor ou

efeito, sendo a prova plena, quando for capaz de determinar juízo de certeza no

julgador (ex.: prova testemunhal, documental etc.), e não plena, quando firmar

probabilidade da ocorrência de um fato, mas não a sua confirmação, como ocorre

com os indícios (BONFIM, 2015).

Quanto à classificação da prova em direta e indireta, permeia na doutrina

certa crítica, pois Cordero (2003) afirma que excetuados os crimes produzidos em

frente ao juiz, em sala de audiência e julgados no local, todas as demais em que ele

não presenciou, são indiretas, consistindo em fatos hipotéticos.

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No primeiro caso, portanto, o juiz deixa de ser julgador e passa a ser a

testemunha ou a vítima do fato, ou seja, não poderá ser juiz daquele fato histórico, já

que suas atribuições exigem-lhe uma imparcialidade.

Assim, conclui-se que todas as provas para o juiz devem ser indiretas

(LOPES JR., 2014a), sob pena de confundir seu discernimento.

Contudo, afirma Cordero (2003), não se pode confundir a prova direta com a

inspeção judicial, sendo que esta é uma das ferramentas do juiz que o auxilia na

busca por sinais ou indícios de que o fato tenha ocorrido ou não.

Sob o mesmo enfoque, Gomes Filho (1997) esclarece que a principal

dificuldade do magistrado, para o esclarecimento dos fatos e posterior decisão, é

representada por essa impossibilidade de ter contato direto com a prova e, tendo em

vista que a prova é produzida através de reconstituição histórica, só pode ser

alcançada por meios indiretos. Caso contrário, reforçando a ideia de Cordero, o juiz

em contato direto com a prova, passa a ser testemunha (ou vítima).

Cordero (2003), ao abordar a Teoria da Prova, faz uma releitura da

classificação das provas de Carnelutti, provas históricas e críticas, instruindo serem

as primeiras de função narrativa, ou seja, pressupõe que sejam emitidas por uma

pessoa, sendo uma característica do meio que erre ou minta, já que são produtos

humanos e, por isso, “se diz que as provas históricas não existem em estado

natural” (GESU, 2014, p. 53). As segundas, por exclusão, ou seja, não classificáveis

como de função narrativa, são de função indutiva. Estas pertencem às imitações

mecânicas, quais sejam, as gravações ambientais, fotografias, filmagens, entre

outros meios similares, sendo que correspondem fielmente ao fato real, nomeadas

por Cordero de semiótica normativa, neste caso sendo apenas necessário confirmar

a autenticidade da prova através de perícia.

Para Guasp (1998), a prova se classifica em pessoal, real e atual. A prova

pessoal se obtém através de pessoas cujas declarações induzem a convicção do

juiz. A prova real se instrumentaliza por meio das coisas, ou seja, móveis, como

documentos, que devem ser levadas ao alcance do juiz, ou imóveis, exigindo, então,

como, por exemplo, uma inspeção judicial. A prova atual se configura por meio de

acontecimentos, ou seja, atividades que geram no juiz uma dedução, presunção ou

indício que o fato histórico delituoso tenha ocorrido.

Ainda que se use diferentes nomenclaturas, não se pode olvidar que as

classificações se prestam a definir as mesmas espécies de prova, e que em todos

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os casos convergem em dois pontos, quais sejam, que a prova testemunhal,

chamada por Carnelutti de histórica, por Cordero de narrativa e por Guasp de

pessoal, é dotada de uma necessidade de fé e crença de quem julga o depoimento,

portanto, munida de um elemento subjetivo e que a prova crítica (Carnelutti), indutiva

(Cordero) ou real (Guasp), a qual está consolidada em documentos, indícios,

inspeções, entre outros meios, independem de crença ou fé, mas de mero cálculo de

probabilidade (GESU, 2014).

A prova em si é um direito subjetivo, portanto, necessária sua introdução no

processo penal. Ela possui mesma natureza constitucional dos direitos de ação e de

defesa, de modo a influir no convencimento do julgador. O sujeito passivo da prova é

o Estado, figurado pelo juiz, que a torna efetiva de modo que se possa valorá-la,

desde que postulada pelas partes de forma legítima. Ademais, excetuado o direito

do acusado a não incriminação, podem se insurgir como sujeito passivo da prova

terceiros ou a própria parte contrária, quando o Estado tenha em seu poder alguma

prova (GOMES FILHO, 1997).

Adiciona Gomes Filho (1997) que a prova, justamente por não ser um direito

absoluto, traz, como corolário, o direito à exclusão das provas não admitidas, ou

seja, obtidas de forma ilícita, e as que não são pertinentes ou relevantes a desvelar

o fato histórico, logicamente, depois de realizado o contraditório.

Tangencialmente, não se pode negligenciar os indícios (forma não plena de

prova), que não devem ter sua importância minorada, mas merecem verificação.

Logicamente, é típico deste tipo de prova ter pureza, sendo excluída a dúvida por

outros elementos para, assim, remontar o fato histórico (TONINI, 2002).

Os indícios são uma prova menor, ou seja, têm um menor nível de

verossimilhança e, por isso, o juiz não pode fundamentar sua decisão condenatória

baseada neles, mas pode empregar os indícios em diversas decisões interlocutórias

em cognição sumária, como na justificação de uma prisão cautelar, por exemplo, ou

em um sequestro de bens (LOPES JR., 2014a).

Para Ferrajoli (2014) os indícios são mais diretos do que as provas, pois

estão sempre ligados aos fatos do passado, já as provas só serão mais diretas do

que os indícios se forem fruto de uma experiência direta, ou seja, quando o delito

ocorre durante uma audiência, por exemplo.

Em suma, a força indutiva dos indícios afeta a relevância do conjunto

probatório, ou seja, gera explicações aceitáveis do que se quer provar, já a força

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indutiva das provas afeta a confiabilidade dos meios de prova, como por exemplo, os

testemunhos, as perícias, as acareações (FERRAJOLI, 2014).

Certo é que os indícios se esculpem, como na prova, na forma de

acontecimentos (função indutiva) ou coisas (função narrativa) e são úteis ao cálculo

semiótico (GESU, 2014), ou seja, auxiliam o juiz no conhecimento do fato e podem

aumentar ou diminuir o seu grau de confiabilidade sobre os demais elementos

informativos.

“Logo, o indício é algo que se vê e que por dedução lógica nos conduz ao

fato probando” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 375).

3.1 A FUNÇÃO PERSUASIVA DA PROVA

As provas são os materiais que possibilitam a reconstrução histórica e sobre

os quais incide a tarefa de verificação das hipóteses de ocorrência ou não do fato,

objetivando o convencimento do juiz, portanto, têm uma função persuasiva (LOPES

JR., 2014a).

Essa persuasão, vista por muitos autores, põe em risco a prova, pois ao

invés de demonstrar a ocorrência do fato, irá persuadir o julgador, ou seja, é uma

prova com uma função argumentativa, sendo contrária a sua função que deveria ser

cognoscitiva. A prova, então, não serviria para conhecer racionalmente algo, mas

para fazer crer em algo que seja proeminente para a decisão (GESU, 2014).

Neste esteio, Gomes Filho (1997, p. 43) acerta em afirmar que o caráter

persuasivo, no qual a “confusão entre elementos descritivos e emotivos é

empregada com o fim de obter a adesão a certo ponto de vista”, faz gerar a

ideologia de que as provas, essas verdadeiras, e, consequentemente, as decisões

judiciais são justas.

A palavra chave, na função narrativa, que desencadeia a persuasão da

prova é a “fede” (fé), na qual os locutores anseiam que seus destinatários creiam no

que estão prolatando e que isto merece ser valorado, mas que o resultado

dependerá dos estados emocionais (CORDERO, 2003, p. 566). Portanto, ainda que

o depoimento dado tenha grande credibilidade, na esfera da fé, sempre haverá o

descrente que colocará a questão em controvérsia (GESU, 2014).

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Outrossim, as provas devem persuadir os cidadãos, não somente o juiz,

para, então, fazer crer que o processo penal representa a verdade dos fatos, ainda

que essa verdade, na realidade, não possa ser obtida (LOPES JR., 2014a).

Essa fé e crença, eivada do ritual judiciário, se origina, obviamente, dos

rituais religiosos:

Basta atentar para a arquitetura dos tribunais (principalmente os mais antigos) para verificar que são plágios das construções religiosas (templos e

igrejas), com suas portas imensas, estátuas por todos os lados, crucifixo na sala de audiência pendendo sobre a cabeça do juiz etc. Como se não bastasse, os atores que ali circulam utilizam diversas expressões em latim

e, pasmem, usam a toga preta! Depois de tudo isso, o depoente ainda presta o compromisso de dizer a verdade (e, em alguns sistemas, presta o juramento colando a mão no peito ou sobre a bíblia).

É todo um ritual de intimidação que reforça as relações de poder e de subordinação, ao mesmo tempo em que deixa claro que o binômio crime-pecado nunca foi superado. No que se refere às provas, o simbolismo

também deve ser considerado na perspectiva da função persuasiva, como “atrativos para tentar uma captura psíquica” (CORDERO) de quem está declarando (e também dar maior credibilidade de [fé] para quem julga)

(LOPES JR., 2014a, p. 552).

Assim sendo, a persuasão sobre um fato conserva um duplo modo de ser,

quais sejam, uma idealidade com estado da consciência, sem possibilidade de

graduação, e uma realidade exterior, como motivo material que a gera (GESU,

2014).

Esse conceito fere o princípio da motivação das decisões judiciais, uma vez

que o magistrado é obrigado a apresentar as razões pelas quais decidiu de uma

maneira ou de outra, apontando porque certas provas o seduziram e outras não

(GESU, 2014).

Não se pode deixar de abordar, ainda, a importância da valoração da prova

e o princípio do livre convencimento motivado.

3.2 A VALORAÇÃO DA PROVA E A IMPORTÂNCIA DA MOTIVAÇÃO

Antes de adentrar ao tema, assevera Gomes Filho (1997) que as provas não

devem ser vistas isoladamente, mas em conjunto, ou seja, se chega a uma

conclusão através de um conjunto de operações intelectuais, de seleção, de crítica,

de aceitação ou de rejeição, que quantificam o grau de convicção que pode resultar

das provas apresentadas no processo, confirmando-se ou não em uma crença.

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Ao abordar a valoração da prova, o que se pretende é demonstrar os três

sistemas mais relevantes de forma sumária, quais sejam, o sistema legal de provas,

no qual a prova era tarifada, a íntima convicção, ampla liberdade do juiz e, por fim, o

livre convencimento motivado (ou persuasão racional), como forma de racionalizar

tal liberdade.

No sistema legal de provas o valor que cada prova recebia era previamente

tabelado e estipulado por lei, portanto, em um sistema hierarquizado. Nesse

sistema, a confissão era considerada uma prova absoluta e, como a valoração

estava previamente estabelecida em lei, ao juiz não era permitido lançar sobre ela

qualquer grau de sensibilidade ao caso concreto (LOPES JR., 2014a).

A função do juiz em referido sistema era de simples constatação da

existência da prova e, posteriormente, adequação aos parâmetros legalmente

estabelecidos (GOMES FILHO, 1997).

Um pedaço do manto da lógica de tal sistema ainda recobre pequenas

partes do atual sistema legal, como pode ser observado no artigo 158 do CPP,

quando explicita a necessidade do exame de corpo de delito nos crimes que deixam

vestígios, sendo que este não pode ser suprido por confissão. Portanto, uma

limitação legal à livre apreciação do juiz (GESU, 2014).

No outro extremo, a íntima convicção tenta superar o modelo anterior,

liberando ao juiz um amplo espaço para que aplique sua inteligência ao caso. Tal

sistema, contudo, apresentou inconvenientes, pois a convicção, por ser íntima, não

obrigava o juiz a motivar sua decisão, caindo, assim, em um excesso de liberdade

de julgamento e no risco de abuso do poder (LOPES JR., 2014a).

Ainda, esse sistema se vislumbra no direito atual no Brasil, sendo

características do Tribunal do Júri, no qual os jurados, intimamente convencidos,

podem condenar o pronunciado mesmo que as provas indiquem o contrário,

cabendo ao condenado se valer da apelação ao Tribunal, que não poderá fazer

nada senão submetê-lo a novo júri, no qual fica sujeito ao mesmo critério, qual seja,

a íntima convicção dos jurados, que se condenado não poderá mais se valer de

nada, somente cumprir sua pena (LOPES JR., 2014a).

Por serem os sistemas legal de provas e da íntima convicção equidistantes,

pode-se estabelecer a forte ligação do método inquisitório ao primeiro, bem como no

outro extremo, no sistema anglo-americano, a ligação do método acusatório ao

segundo (GOMES FILHO, 1997).

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Surge, então, um sistema intermediário, sem o regramento legal de

valoração da prova, na toada da íntima convicção, mas retirada a plenitude da

liberdade de decidir, sendo necessário fundamentar a decisão, qual seja, o sistema

do livre convencimento motivado ou persuasão racional (LOPES JR., 2014a).

Apesar da similitude entre a íntima convicção e o livre convencimento, pois

em ambos os sistemas o juiz tem amplos poderes para criticar e selecionar as

provas para extrair seu julgamento, cabe ressaltar que, nesse último, a liberdade do

juiz não é plena, ou seja, não decorre de uma posição pessoal, mas é exercida

dentro de parâmetros lógicos e de diversas experiências, inclusive a jurídica,

portanto, é “uma liberdade racionalizada” (GOMES FILHO, 1997, p. 162).

No princípio do livre convencimento o juiz deixa, portanto, de ser um

instrumento para ser sujeito, podendo valorar a prova e decidir, não livremente, mas

seguindo as regras do devido processo legal, devendo fundamentar suas escolhas

(GESU, 2014).

Essas restrições, concernentes à admissibilidade das provas, que podem se

dar por razões tanto processuais quanto extraprocessuais, já mencionadas quando

se abordou o sistema acusatório, são previstas no sistema anglo-americano –

common law, sob o nome de exclusionary rules of intrinsic policy , ou somente

exclusionary rules, de modo a filtrar as provas para que não sejam valoradas

incorretamente e acabem comprometendo o julgamento (GOMES FILHO, 1997).

Dentre essas regras, por exemplo, em common law e por razões

processuais, existe uma regra sobre competência – competence, na qual certos

testemunhos são menos confiáveis do que outros, como é o caso do depoimento de

crianças e de doentes mentais, bem como regras que não permitem testemunhos

indiretos, ou seja, de quem não observou o fato diretamente. Na civil law existem

mecanismos semelhantes, como o princípio da imediação e da oralidade, que

implicam o juiz a confiar mais nas provas em que teve contato mais próximo do que

as mais distantes (GOMES FILHO, 1997).

Sobre as razões extraprocessuais, coadunam os sistemas da common law e

da civil law constituídas por regras de sigilo – privileges, como a não

autoincriminação e o sigilo profissional, como por exemplo, de advogados em

relação a seus clientes e de jornalistas em relação a suas fontes. No Brasil, tais

razões encontram-se no artigo 207 do CPP, proibindo de depor aqueles que têm o

dever de guardar segredo. Ainda, existe uma proibição quanto à produção de provas

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por meios ilegais, ocorrendo geralmente no momento pré-processual, ou seja, uma

inadmissibilidade da prova obtida ilicitamente, de modo a não permitir que o juiz

tenha contato com esta prova, devendo ser desentranhada do processo (GOMES

FILHO, 1997), bem como as derivadas dela, inteligência do artigo 157 do CPP:

Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as

provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo

quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

Estes regramentos extraprocessuais são estabelecidos para pacificar a

existência entre o interesse da verdade e o interesse social, ou seja, a função

principal é preservar ao cidadão os seus direitos essenciais resguardando, assim, a

sua esfera individual, vedando intromissões sob alegações do interesse processual

a um custo desproporcional. Portanto, inconcebível ao Estado, para penalizar, se

utilizar de métodos que desconsideram os mesmos valores por ele protegidos. Caso

contrário, ficaria comprometido o próprio fundamento da sanção criminal (GOMES

FILHO, 1997).

Tendo explicado isso, fica claro que tais restrições não violam o princípio do

livre convencimento porque não conflitam com a liberdade de valoração. Portanto,

não se pode confundir o livre convencimento com a liberdade de prova (GOMES

FILHO, 1997), que não vigora no ordenamento processual.

Corrobora com esse entendimento Gesu (2014) e adiciona que a motivação

é necessária para que haja uma adequação constitucional, pois o diploma

constitucional no artigo 93, inciso IX garante a fundamentação como condição de

eficácia e requisito de validade para qualquer decisão proferida, seja nas sentenças

ou acórdãos, seja nas decisões interlocutórias, especialmente nas que impliquem

cerceamento da liberdade.

Ademais, a motivação deve ser feita de modo transparente para que o juiz

se justifique perante as partes e também perante a sociedade, explicando o caminho

percorrido que o fez chegar a tal conclusão. A motivação é bastante relevante, pois

garante a imparcialidade do juiz, evitando abusos de poder, que este atendeu aos

ditames legais e que examinou as questões propostas pelas partes, ficando

garantida a natureza cognitiva do processo penal (GOMES FILHO, 1997).

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Nesse sentido, adiciona Ferrajoli:

Ao mesmo tempo, enquanto assegura o controle da legalidade e do nexo entre convencimento e provas, a motivação carrega também o valor “endoprocessual” de garantia de defesa e o valor “extraprocessual” de

garantia de publicidade. E pode ser, portanto, considerado o principal parâmetro tanto da legitimação interna ou jurídica quanto da externa ou democrática da função judiciária (FERRAJOLI, 2014, p. 573).

Tendo em vista a importância da motivação nas decisões judiciais, sejam

definitivas ou interlocutórias, uma diferenciação paira na doutrina quanto ao termo

motivação e fundamentação, ambos os termos de uso corrente, não só na doutrina

como na legislação, utilizadas como palavras sinônimas e ambivalentes.

Ocorre que, resumidamente, a motivação se ocupa das questões de fato e

de direito, ou seja, o juiz, de maneira lógico-psicológica, explicará o caminho que

percorreu para chegar a uma conclusão. Já na fundamentação o juiz declina a

solução demonstrando o fundamento jurídico aplicado no caso concreto. Portanto, a

motivação cumpre uma finalidade endoprocessual e a fundamentação uma

finalidade extraprocessual (SOUZA, 2006).

Por fim, é de suma importância destacar que no atual sistema de valoração

de provas admitem-se, de maneira geral, todos os meios de prova e o juiz tem a

liberdade para valorá-las, podendo, por exemplo, desprezar as demais provas em

detrimento das palavras de uma só testemunha, principalmente porque entre as

provas não existe uma ordem hierárquica, sendo elas todas relativas, fincando o juiz

obrigado apenas a motivar o porquê de sua escolha (TOURINHO FILHO, 2009).

3.3 A PROVA TESTEMUNHAL

Previamente a adentrar nos tópicos deste principal ponto de estudo, cumpre

fazer algumas considerações acerca da prova testemunhal quanto a sua definição,

classificação, os princípios que a circunda e os caracteres do testemunho.

A palavra testemunha, para certos autores, deriva do termo testando e, para

outros, do termo testibus, que significa dar fé à veracidade de um fato (TOURINHO

FILHO, 2009). Encontra-se também como origem do latim pelo termo testis, que por

sua vez se origina de tertius, que significa terceiro, ou seja, a pessoa encarregada

de presenciar um contrato sendo avençado, daí porque ninguém pode testemunhar

para si mesmo (BONFIM, 2015).

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Entre as diversas classificações das testemunhas, para este estudo, pode-se

destacar a testemunha presencial ou direta, sendo, nas palavras de Lopes Jr.

(2014a) a mais útil ao processo, pois é quem presenciou o fato e irá depor sobre

eles; a testemunha indireta ou de auditu, aquela que nada presenciou, mas ouviu

dizer sobre os fatos, depondo sobre fatos acessórios, ouvida a critério do juiz, sendo

para Lopes Jr. (2014a) um erro a admissibilidade desta testemunha devido a sua

facilidade de contaminação pelo nível de conhecimento que tem dos fatos, ideia que

acompanha o ordenamento norte-americano do hearsay is no evidence (TOURINHO

FILHO, 2009); a testemunha referida, aquela que foi citada por outra testemunha em

depoimento, podendo ser ouvida se o juiz julgar conveniente; a testemunha

abonatória, aquela que não presenciou o fato, mas que se prestará a abonar a

conduta do réu a título de influir na dosimetria da pena; por fim, o informante, sendo

pessoa que não presta o compromisso de dizer a verdade, o que para Tourinho

Filho (2009) é uma infelicidade a intrusão deste no processo.

Ademais, cabe diferenciar a testemunha presencial da testemunha ocular,

como expõe Bonfim (2015): a primeira estava presente no local dos acontecimentos,

mas sem que necessariamente tenha visto o que ocorreu, seja por deficiência visual,

seja por estar obstruído seu ponto de observação; a segunda é aquela que viu a

ocorrência dos fatos, mas não necessariamente estava presente no local, como por

exemplo, a testemunha que assistia aos acontecimentos com binóculos.

Paira, ainda, uma crítica de Nucci (2008, p. 449) de não concordar com esta

classificação sob a égide de que as “testemunhas são pessoas que depõem sobre

os fatos, sejam eles quais forem” e que não deixam de ser testemunha

independentemente de ter visto ou ouvido, importando apenas as declarações que

derem.

Quanto aos princípios, alguns atingem a prova testemunhal e dentre eles

estão, logicamente, como nas demais provas, o contraditório, mas, principalmente, a

oralidade, quando a prova deve ser produzida oralmente, e a imediatidade, ou seja,

quando o testemunho deve ocorrer em frente ao juiz que irá julgar o caso (LOPES

JR., 2014a).

O contraditório é peça fundamental na ouvida do testemunho, já que vai

exigir do condutor da inquirição uma atuação ativa. Assim, devem ser considerados

dois fatores relevantes, quais sejam, a narração do fato e o comportamento do

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depoente para que, concomitantemente com a ouvida, se possa valorar a

idoneidade do depoimento (GOMES FILHO, 1997).

Nesse sentido, já decidiu a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ),

quando discutia no HC 183696, sob a relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis

Moura, a questão de que viola os princípios da oralidade e da imediatidade a

simples ratificação da declaração já prestada pela testemunha na fase de inquérito

policial, tendo em vista que ato dessa natureza não se presta a produzir a prova

(LOPES JR., 2014a).

Dito isso, é importante frisar que a testemunha em si é sujeito de prova, não

se confundindo com o seu depoimento, que é um meio de prova (BONFIM, 2015); o

depoimento, pois, quando colhido, preservados os princípios do devido processo

legal, é que estará apto a ingressar no processo.

Logicamente, quanto a tais princípios, se abrem certas exceções, como é o

caso, por exemplo, da inquirição como testemunha do Presidente da República e

outras autoridades previstas no artigo 221 do CPP, que poderão prestar depoimento

por escrito, bem como as pessoas surdas-mudas ou mudas, sendo inquiridas as

primeiras totalmente de forma escrita e as segundas de forma oral com as respostas

consignadas de forma escrita (TOURINHO FILHO, 2009).

Dentre os caracteres que compõem o testemunho estão a oralidade, como já

citado; a objetividade, prevista no artigo 213 do CPP, quando a testemunha não

deve manifestar suas apreciações pessoais, que será visto com mais ênfase no item

3.3.2 a seguir; e a retrospectividade, ou seja, a testemunha narra um fato a partir de

sua recordação, portanto, busca na memória a historicidade do crime, ficando sua

narrativa suscetível à contaminação e à fantasia (LOPES JR., 2014a).

A prova testemunhal é uma das mais preocupantes devido a sua fragilidade

e indubitavelmente a mais utilizada, ao menos no âmbito da Justiça Estadual,

ficando, muitas vezes, a fé na verdade motivada pelo depoimento de uma só

testemunha, somado a um indício qualquer (GESU, 2014).

Essa fragilidade se justifica por um motivo simples. A testemunha é uma

pessoa natural, um ser humano, homem ou mulher (NUCCI, 2008), sujeito que

carrega consigo o conhecimento dos fatos e de diversas potencialidades e

vulnerabilidades e isso faz com que possa ficar afetada à fidelidade do depoimento,

ou seja, entre o que julga ter presenciado e o que afirma ter presenciado (OLIVEIRA,

E., 2011).

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3.3.1 Quem pode testemunhar

O artigo 202 do CPP não faz qualquer distinção sobre a testemunha,

portanto, toda pessoa poderá testemunhar, diferentemente do que ocorre no

Processo Civil. Ainda, como já dito, ensina Nucci (2008) que a pessoa é a natural,

sendo descabida a hipótese de testemunho por pessoa jurídica, por exemplo.

Este dispositivo legal surge para extirpar as históricas discriminações que

existiam relacionadas às mulheres, crianças e escravos, ou, ainda, às pessoas ditas

de má-reputação, como os travestis, as prostitutas etc. (LOPES JR., 2014a).

Portanto, não se pode elidir o testemunho pelo fator idade, capacidade civil,

idoneidade ou quaisquer outras qualidades da testemunha, cabendo só ao julgador

sacar do testemunho sua utilidade, pertinência e idoneidade (BONFIM, 2015).

Além disso, assevera Tourinho Filho (2009) que não se pode inabilitar a

testemunha baseada na sua capacidade processual, de atuar como parte, ou de

direito material, mas, tendo em vista a livre apreciação das provas, caberá ao

julgador tomar precauções no momento de valorá-las. Adiciona-se a isso a

necessidade de se obter o maior grau de certeza possível sobre a verdade

(OLIVEIRA, E., 2011).

De maneira geral, toda pessoa chamada a depor fica obrigada a fazê-lo,

contudo não se enquadram nessa regra as pessoas contidas no rol, considerado

taxativo, do artigo 206 do CPP, quais sejam, o ascendente ou descendente, o afim

em linha reta, o cônjuge (mesmo separado), o irmão, o pai, a mãe e o filho adotivo

do acusado, desde que comprovadamente não se possa obter a prova por outro

meio (BONFIM, 2015).

Nesse sentido, aduz Pacelli de Oliveira (2011) que não faria sentido exigir da

pessoa que possui laços familiares com o acusado que cumpra estreitamente com

as normas morais e de direito, pois exagerado seria obrigar-lhe ao dever de depor,

bem como, consequentemente, ao dever de dizer a verdade. Como enseja Nucci

(2008, p. 474), dessas pessoas “não se pode exigir o esforço sobre-humano de

ferirem a quem amam”.

Referido artigo, in fine, menciona que o dever de depor prospera se a prova

não puder ser obtida por outro meio, o que para Lopes Jr. (2014a) cria uma situação

constrangedora, o que expurga do testemunho qualquer credibilidade, pois não

sendo este voluntário não será de grande valia.

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Entretanto, algumas pessoas são legalmente proibidas de depor (artigo 207

do CPP), sendo-lhes vedado o testemunho por motivo de ministério, função, ofício

ou profissão do qual deve guardar segredo, salvo se desobrigadas pelo interessado

(BONFIM, 2015). E Lopes Jr. (2014a) destaca que tal desobrigação pode ocorrer

tacitamente caso o próprio interessado arrole como testemunha tal profissional.

Ademais, tal proibição não deve se originar de mera hipótese, mas ficar

demonstrada a existência de um nexo causal entre relação profissional e

conhecimento do fato (OLIVEIRA, E., 2011).

Sobre estas restrições, dois casos se destacam: o depoimento de policiais e

a obrigação de depor do advogado em processo no qual atuou.

Ocorre que no primeiro caso, os policiais não estão acobertados por

qualquer restrição, pelo contrário, não raramente se veem arrolados como

testemunhas pelo Ministério Público para servir de mote para iludir a vedação

imposta pelo artigo 155 do CPP, qual seja, a de condenar com base unicamente nos

elementos colhidos na fase procedimental, investigatória. Portanto, esta se trata de

uma prova testemunhal eivada de contaminação pelo fato dos policiais terem atuado

na investigação ou repressão do fato criminoso (LOPES JR., 2014a).

Quanto ao dever de depor do advogado, fato relevante que se apresenta, é

que mesmo autorizado por seu cliente, é defeso a ele fazê-lo, nos termos do artigo

7º, XIX da Lei 8.906/94 – Estatuto da OAB (BONFIM, 2015), pois se trata de um

imperativo ético de sua profissão (LOPES JR., 2014a). Pode-se concluir que tal

prerrogativa faz equiparação à vedação dos juízes e promotores, os quais também

são proibidos de testemunhar, em processo diverso do qual atuaram, sobre fatos

que tiveram conhecimento em razão de sua função (NUCCI, 2008).

Muito se fala também sobre atuação da vítima no processo penal, fato é que,

como não presta o compromisso de dizer a verdade e está contaminada pelo “caso

penal”, já que foi a afetada pela ação (ou omissão) delituosa, é complicado valorar o

seu depoimento, não cabendo apenas suas palavras a justificar uma condenação

(LOPES JR., 2014a).

Nesse sentido, os tribunais têm ajustado duas exceções de maneira a

legitimar uma condenação, quais sejam, em crimes sexuais e em crimes contra o

patrimônio praticados com violência ou grave ameaça, já que estes crimes são

muitas vezes perpetrados de forma velada e raramente sobram como provas não

mais do que os relatos da própria vítima. Logicamente, na valoração, o juiz

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considera a coerência do depoimento e a ausência de falsa imputação, vinculados a

um mínimo conjunto de provas (LOPES JR., 2014a).

3.3.2 A ilusória objetividade do testemunho e o seu valor probatório

O ordenamento processual penal no artigo 213 impõe ao juiz a tarefa de

impedir que a testemunha, durante seu depoimento, manifeste suas apreciações

pessoais sobre os fatos.

Parece interessante ao processo, com este dispositivo legal, querer se livrar

de inúmeras páginas de divagações da testemunha que nada interessam ao

deslinde do caso, como comumente se vislumbra na prática (GESU, 2014).

Ocorre que a testemunha é um ser humano, altamente complexo, sendo

difícil imaginar que consiga ser fria o bastante para separar seus medos ou paixões

do fato que vivenciou.

Nesse sentido, Cordero (2003) assinala que tal objetividade parece ilusória

para os que consideram a interioridade neuropsíquica, já que o aparelho sensorial

escolhe os possíveis estímulos. Tais estímulos geram impressões que compõem a

experiência perceptiva, cujos fantasmas variam no processo mnemônico. Isso

sobrevém, principalmente, quando a lembrança não é espontânea, mas solicitada,

como ocorre com a testemunha na prática judiciária. Assim, seu depoimento, após

um processo mental manipuladíssimo, não raramente destoa da realidade, sendo

que este labirinto cognitivo-semântico, exposto a mil variáveis, conduz a duvidar da

testemunha. A maneira que se deve utilizar dos depoimentos é a questão

metodológica primordial no trabalho historiográfico.

Cordero (2003), ainda, rechaça as normas que regem a prova testemunhal,

já que estas exigem que o aparelho sensorial capture os eventos objetivamente,

demandando que a memória fixe como imagens em um filme ou sons gravados, o

que conclui ser uma suposição ingênua, pois esta atividade reminiscente, do ponto

de vista neuropsíquico, parece complicada e aleatória e, mesmo decompondo-a,

permanece pouco ou nada de objetivo.

Ademais, alerta-se que a capacidade perceptiva é limitada, sendo a

captação aos estímulos parcial, ou seja, alguém submetido a estímulos simultâneos

irá captar somente aquilo a que está adaptado e muito dependerá do seu estado

emocional (CORDERO, 2003), o que Wilson (2011, p. 31) chama de “aprendizagem

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estado-dependente”, ou seja, as situações experimentadas são melhores

recordadas quando a emoção original retomar o indivíduo, bem como o contexto de

captação, pelo princípio da especificidade contextual; o que dificilmente irá ocorrer

quando submetida ao testemunho e a todo ritual judiciário.

Portanto, a objetividade do testemunho deve-se reduzir a somente o juiz

filtrar os excessos valorativos, sentimentais, bem como evitar um julgamento pela

testemunha dos fatos que presenciou (LOPES JR., 2014a).

Quanto à valoração do testemunho, difícil é estabelecer quanta credibilidade

se pode depositar; e em se tratando de processo penal os riscos são multiplicados,

pois nenhuma regra estabelece o quantum de crédito (GESU, 2014), mas certo é

que “isso contribui para a opção pelo princípio do livre convencimento motivado”

(LOPES JR., 2014a, p. 685). Assim, a credibilidade irá depender do conjunto

probatório e em que intensidade persuadiu o julgador (GESU, 2014).

3.3.3 O cross examination e o resquício inquisitorial

O cross examination, típico do sistema acusatório, é uma técnica que

evidencia o princípio do contraditório na coleta da prova, pois, após o exame direto

pela parte que arrolou a testemunha, permite-se à parte adversa fazer inquirições.

Tal procedimento admite o exame tanto de fatos (cross examinaton as facts) quanto

da credibilidade da testemunha (cross examination as credit) (GOMES FILHO,

1997).

No Brasil, antes da reforma processual, em 2008, as perguntas passavam

por uma filtragem prévia feita pelo juiz. Para piorar, funcionava em um sistema

presidencialista, no qual o juiz era o primeiro a questionar a testemunha e, somente

depois de satisfeito, passava a palavra para as partes, em um típico sistema

inquisitório (GESU, 2014).

A nova sistemática processual, após 2008, trouxe uma mudança importante,

conformando o CPP à ordem constitucional, retirando do juiz o protagonismo da

instrução criminal, deixando-o em uma função subsidiária, o que torna, portanto, o

processo mais democrático e adequado a um sistema tipicamente acusatório

(LOPES JR., 2014a).

Ocorre que a nova sistemática adotada na inquirição das testemunhas

apenas aproximou-se ao sistema do cross examination, já que a inquirição não é

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exclusiva das partes, sendo mantida, no sistema processual brasileiro, a atuação do

juiz, permitindo-lhe se dirigir a testemunha e complementar a inquirição sobre os

pontos não esclarecidos (GESU, 2014), portanto, permanecendo o ranço

inquisitorial.

Nesse sentido, o artigo 212 do CPP apenas estabeleceu o sistema do direct

examination, ou seja, estipula uma ordem de inquirição, qual seja, a testemunha

arrolada pela acusação será por esta inquirida diretamente e após pela defesa, e

vice-e-versa, diretamente, sem a intermediação do juiz. Isso porque diversos autores

entendem que o dispositivo legal estipula uma ordem, na qual se estabelece

primeiro o direito de perguntar às partes e posteriormente ao juiz (TOURINHO

FILHO, 2009).

Ainda, entende Nucci (2016) que a redação nova do artigo 212 do CPP

apenas alterou o básico, ou seja, as perguntas continuam sendo formuladas pelo

juiz a qualquer tempo e as perguntas, a que se refere a lei, feitas pelas partes, na

prática forense tidas como reperguntas, deixaram de ter a intermediação do juiz.

Lopes Jr. (2014a) também assevera que o novo dispositivo não inovou como

deveria a ordem jurídica, já que nenhuma regra foi imposta ao juiz, de modo que

pode questionar a qualquer tempo, desde que seja para complementar os pontos

omissos.

Mais um motivo para afirmar, como disse Gesu (2014, p. 98), que o sistema

processual penal atual apenas “aproximou-se ao cross examination”.

Sob outro enfoque, é importante destacar para o estudo das falsas

memórias que a legislação, mesmo com nova redação, se preocupou em vedar

situações prejudiciais ao testemunho, como, por exemplo, perguntas sugestivas ou

que de qualquer forma contaminem o depoimento, ficando ao cargo do juiz filtrar a

produção da prova (GESU, 2014).

Entretanto, como aduz Giacomolli (2015), em nenhum momento se discute a

possibilidade da livre iniciativa da testemunha em relatar o que vivenciou antes

mesmo que lhe façam qualquer indagação, pois quanto mais abrangente fosse o

relato, maior a possibilidade de coincidir com os fatos.

Tal alegação concorda com a ideia de Cordero (2003) que, como já dito,

menor seria o prejuízo se tal lembrança adviesse de uma memória espontânea e

não solicitada, diminuindo os fantasmas e sua manipulação, por mais que restasse

prejudicada a celeridade e a economia processuais.

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Certo é fazer a melhor justiça, produzir a melhor prova. Nesse diapasão, é

importante o juiz respeitar o tempo do processo, o tempo das partes em sua

dialeticidade, bem como o próprio tempo de amadurecimento para, então, colher

uma decisão, pois o julgador não pode confundir o tempo do processo com o seu

próprio tempo (LOPES JR., 2014a).

4 A MEMÓRIA

Durante este estudo, pôde-se observar que a peça fundamental no processo

penal, para que se possa resgatar no tempo, em uma atividade recognitiva, a parte

da história que versa sobre um delito, é a prova.

Sabe-se da falta de capacidade, por diversos motivos, para a produção de

provas técnicas e, muitas vezes, na ausência delas o que sobra é a prova

testemunhal, sendo esta prova a mais utilizada, a mais perigosa e manipulável, bem

como pouco confiável (LOPES JR., 2014a).

A prova testemunhal se vale apenas de um mecanismo para que se possa

realizar a atividade recognitiva no processo penal, qual seja, suas lembranças,

presentes na memória.

O processo penal, então, acaba dependendo, quase que exclusivamente, da

memória das testemunhas, desconsiderando o perigo gravíssimo que isso possa

ensejar (LOPES JR., 2014b).

Assim, Lopes Jr. explicita:

O mais interessante é ver como o processo acredita na „memória‟ em relação a um fato ocorrido há muitos meses (senão até anos), sem perceber

que no nosso dia a dia, muitas vezes, sequer somos capazes de recordar o que fizemos no dia anterior (LOPES JR., 2014b).

Não se poderia, portanto, continuar o tema sem explicar um pouco sobre o

funcionamento da memória e, desde já, se pode advertir que a lembrança não é

como a realidade, pois o cérebro transforma a realidade em códigos e a evoca da

mesma maneira por meio de códigos. Assim, através da lembrança não se pode

trazer o que ocorreu novamente à realidade, já que lembrar a voz de um amigo

falecido não o faz ressuscitar (IZQUIERDO, 2011).

A memória, portanto, não é uma só função ou uma só habilidade, mas uma

complexa combinação de subsistemas mnemônicos (WILSON, 2011).

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Mas afinal, o que é memória? Nas palavras de Izquierdo:

[...] significa aquisição, formação, conservação e evocação de informações”. A aquisição é também chamada de aprendizado ou aprendizagem: só se “grava” aquilo que foi aprendido. A evocação é também chamada de

recordação, lembrança, recuperação. Só lembramos aquilo que gravamos, aquilo que foi aprendido (IZQUIERDO, 2011, p. 11).

Entretanto, o estudo das memórias não é algo simples e a intenção deste

estudo não é esgotar as formas de funcionamento do complexo sistema memorial,

mas demonstrar, por certos elementos, a sua falibilidade quando se está na

dependência da lembrança.

4.1 CLASSIFICAÇÃO DA MEMÓRIA

No estudo das memórias há diversas incertezas de quantos sistemas de

memórias diferentes existem e quais são eles (EISENKRAEMER, 2006), mas

algumas classificações podem ser destacadas.

As memórias podem ser classificadas pela quantidade de tempo que ficarão

armazenadas, chamadas tempo-dependentes, subdivididas em memória sensorial,

imediata e de longo prazo; pelo tipo de informação a ser lembrada, tidas como

memórias semânticas (implícitas), episódicas (autobiográficas) e procedurais

(vinculada às capacidades motoras e sensoriais); pela modalidade específica, as

ligadas aos sentidos, como tato, audição, olfato, paladar e visão; pelas etapas do

processo de evocação; em memória explícita ou implícita, a primeira semelhante à

memória episódica e a segunda como a memória procedural; se evocação ou

reconhecimento são necessários; em memória retrospectiva, para as coisas que já

aconteceram ou prospectiva, para lembrar o que será feito (WILSON, 2011).

O foco deste estudo se dará sobre as memórias de longo prazo, aquelas

armazenadas por dias e até anos, especialmente, de acordo com o conteúdo, as

memórias declarativas, divididas em episódicas (explícitas e retrospectivas),

adquiridas com plena consciência, e semânticas, adquiridas sem percepção

(IZQUIERDO, 2011), pois é neste tipo de memória que podem ocorrer os maiores

erros ou falsas recordações.

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4.1.1 Memórias declarativas

As memórias declarativas são divididas em dois grupos: memórias

episódicas, relacionadas às experiências pessoais, como, por exemplo, onde se

passou o Natal, aquelas, portanto, que fazem retornar ao passado; e memórias

semânticas, que conectam aos conhecimentos gerais, como a aparência e a cor de

objetos, significados das palavras etc. (WILSON, 2011).

Apesar de serem classificações diversas, tais memórias não podem ser

vistas separadamente, pois geralmente a memória semântica irá contaminar a

memória episódica, não sendo, portanto, dois sistemas independentes. Na maioria

das situações, quando se evoca uma lembrança, as duas se embaraçam, como, por

exemplo, quando se quer lembrar o que foi comido no café da manhã, essa

lembrança poderá sofrer influência do que geralmente se come em um café da

manhã (WILSON, 2011).

Nessa senda, pode-se dizer que a memória episódica não sofre apenas

influência da memória semântica, mas de todas as outras, pois a evocação,

diferentemente das demais, não ocorre se não relacionada a outras memórias. Por

esse motivo é normal confundir o rosto ou o nome de alguém, ou, ainda, os atos de

uma pessoa com o de outra. Neste tipo de memória, por ocorrer uma evocação

misturada das memórias, adicionada à extinção parcial da maioria delas, é muito

corriqueiro o efeito de falsas memórias, vistos seus efeitos mais em pessoas idosas,

devido à carga de experiências que possuem (IZQUIERDO, 2011).

Essas contaminações ocorrem, pois a memória declarativa, especialmente a

episódica, é de longa duração e depende de um fator de consolidação. Assim,

qualquer interferência nesse processo, como a exposição a um novo ambiente

dentro das primeiras horas, pode prejudicar a sua formação, o que afetará a

posterior evocação ou, até mesmo, cancelará a formação da memória (IZQUIERDO,

2011).

O processo de captar a realidade, formar a memória e fazer posteriormente

sua evocação é chamado por Izquierdo (2011) de processo de tradução. Assim, por

vezes, ao reter e conservar a memória, o cérebro acaba transformando a realidade e

a modifica (GESU, 2014).

Isso ocorre corriqueiramente nos seres humanos, pois, por ser o único ser

com habilidade de comunicação verbal, na tradução entre o que se vê e o que se

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fala, as memórias são alocadas em locais diferentes no cérebro (IZQUIERDO,

2011).

Izquierdo explica:

Os códigos e processos utilizados pelos neurônios não são idênticos realidade da qual extraem ou qual revertem as informações. Uma experiência visual penetra pela retina, é transformada em sinais elétricos,

chega através de várias conexões neuronais ao córtex occipital e lá causa uma série de processos bioquímicos hoje bastante conhecidos. Uma informação verbal, embora possa penetrar também pela retina (por

exemplo, quando lemos), acaba em outras regiões do córtex cerebral (IZQUIERDO, 2011, p. 21).

A memória, portanto, não tem como reproduzir uma sequência de imagens

ou vídeo em uma recordação completa e exata do evento. Isso porque a memória é

sempre reconstrutiva e não reprodutiva, pois as informações são codificadas de

forma fragmentada e, após, são distribuídas por várias áreas do cérebro. Assim, o

ato de rememorar pode acabar modificando o conteúdo da lembrança, podendo,

inclusive, fazer lembrar o que não aconteceu, como se tivesse sido vivenciado

(EISENKRAEMER, 2006).

Antônio Damásio (1996) concorda com tal entendimento e informa da

impossibilidade de uma reprodução exata de um fato. Adiciona que as lembranças

são frutos de uma interpretação, ou seja, uma versão reconstruída da original, e que

conforme a idade e a experiência se modificam, com estas evoluem as versões da

mesma coisa. Assim, formam-se imagens aproximadas do que foi experimentado

anteriormente.

De todo o exposto, Gesu (2014) assevera que no processo penal a prova é

produzida oralmente, devendo a testemunha relatar aquilo que viu, ouviu ou sentiu,

tendo, pois, a memória feito um armazenamento deficitário, também o será a

reprodução dele.

4.1.2 O efeito da emoção sobre as memórias

Sobre esse tema, Izquierdo (2011), reforçando a ideia de Cordero (2003),

ressalta que este tipo de memória é muito suscetível à modulação pelas emoções,

ânimo e ansiedade e, quando falham, pode-se falar em amnésia.

Estudos recentes sobre as memórias e a emoção mostram que se pode

lembrar mais de eventos emocionais. Contudo, outros estudos, feitos através de

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estímulos com imagens com diferentes níveis de alerta e valência, indicam que as

memórias verdadeiras, por terem o elemento emocional envolvido, acabam

aumentando o índice de falsas memórias, principalmente quando esse elemento é

desagradável, como o uso de uma arma (STEIN, 2010).

Ainda, as pessoas tendem a recordar com riqueza de detalhes os fatos logo

após terem ocorrido, entretanto, com o lapso temporal, estes vão se apagando,

ficando na lembrança só os momentos dramáticos (IZQUIERDO, 2011).

Kaplan (2015) explica que isso ocorre porque as pessoas pensam e

recontam eventos emocionais mais frequentemente do que eventos neutros, assim

cada um destes processos (pensar e recontar) melhora a memória para a

informação emocional. Além disso, confirma que o envolvimento emocional prejudica

a memória aumentando a suscetibilidade às falsas memórias.

Nesse sentido, o delito certamente gera uma emoção e o que se pode

perceber é que as testemunhas têm uma tendência a armazenar mais a emoção do

que os detalhes que seriam interessantes ao processo, uma situação bastante

prejudicial ao testemunho (GESU, 2014).

Corroborando com isso, outro estudo mostra que os eventos públicos,

ligados às catástrofes, também produzem memórias episódicas que podem ocorrer

tanto de forma direta, quando se está presente no local, ou indireta, quando se sabe

do evento por outro meio. Chamadas de memórias de lampejo, estas recordações

de situações vividas são detalhadas e quase sensoriais. Por esta ocasião, são

evocadas com tanta vivacidade que podem não necessariamente ser fiéis ao evento

original, sendo caracterizadas mais pela confiança do sujeito em sua fidedignidade

do que na sua veracidade ou consistência (OLIVEIRA, A., 2007).

O cérebro, então, atua de forma seletiva, codificando só o que lhe parece

mais importante ou o que se encaixa mais facilmente às memórias já existentes

(NORMAN, 1973).

Assim, explicou Altavilla (2003b) que o ato de narrar é fazer uma

interpretação de maneira que, ao passar pelo prisma da personalidade, se deforma

um acontecimento. Por isso, entendeu ser importante conhecer os traços de

personalidade de uma testemunha, pois, assim, poderá se identificar os

depoimentos tendenciosos.

Isso justifica os estudos das falsas memórias, bem como suas formas de

contaminação e põe em xeque a lembrança da testemunha acerca do fato delituoso,

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pois esta não é capaz de reconstruí-lo da mesma forma como ocorreu, bem como

reforça a tese da impossibilidade da objetividade do testemunho (GESU, 2014).

4.2 FALSAS MEMÓRIAS

O estudo das falsas memórias, chamados época de ilusão ou falsificação

da memória, foi demonstrado pelo francês Binet, em 1900, inicialmente sendo feito

somente em crianças e, posteriormente, em 1932, por Bartlett, que fez estudos em

adultos. (EISENKRAEMER, 2006).

Os estudos foram descritos unicamente no processo reconstrutivo, no qual

era baseado em esquemas e exigia um conhecimento geral prévio da pessoa e,

portanto, havia compreensão das lembranças (EISENKRAEMER, 2006).

Nesse sentido, Norman (1973), referenciando-se aos estudos de Bartlett,

informa que indivíduos normais, ao passar do tempo, introduziam elementos no que

foi recordado. Portanto, pareciam reconstruir a história ao invés de recordá-la e isso

era crescente em paralelo ao transcorrer do tempo, só se lembrando dos detalhes se

estes se encaixassem em conceitos prévios do sujeito, ou seja, algo que tenha

criado um marco de referência em suas experiências. Bartlett, então, chamou estas

organizações mentais para lembrar o que foi armazenado de esquema, ou seja, “una

organización activa de reacciones o de experiencias pasadas”, chamada atualmente

de regra (NORMAN, 1973, p. 176).

Ademais, afirma Norman:

[...] nuestro plan organizativo depende en gran medida de la integración de la experiencia presente com la del pasado. A veces nos resulta difícil

conciliar ambas y, como consecuencia, a menudo recordamos lo que esperábamos percibir em vez de lo que realmente percibimos (NORMAN, 1973, p. 175).

Em 1974, Elizabeth Loftus e John Palmer descreveram um procedimento

baseado na sugestão de uma falsa informação, na qual reduzia os índices de

reconhecimento do que era verdadeiro e aumentava o que é falso, chamado

misinformation (EISENKRAEMER, 2006). Entretanto, adverte Loftus (2003) que

outros estudos mostram que a sugestão é um dos diversos métodos que podem

gerar falsa informação.

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Ademais, pode-se vislumbrar a possibilidade de se criar uma memória

completa de um evento que na verdade nunca ocorreu, chamada de técnica do lost-

in-the-mall. Esta técnica utiliza um membro da família para ajudar a implantar a falsa

memória. Sobre essas falsas memórias completas, é interessante perceber que a

pessoa, em quem foi implantada a falsa memória, conta com confiança o evento

falso, fornece detalhes e, inclusive, expressa as emoções sobre o evento que nunca

aconteceu, chamada por Loftus de rich false memories (LOFTUS, 2003).

Nesse sentido, Loftus (2003) adiciona que a informação que direcionará

para uma falsa memória deve ser plausível para que, assim, a pessoa alvo tenha

uma melhor aceitação e distorça sua memória. Contudo, certos estudos mostraram

casos de informações que eram inconcebíveis, como o caso de encontrar o

Pernalonga (personagem da Warner Bros.) em um parque da Disney e, mesmo

assim, em algumas pessoas, pode-se observar essa falsa memória.

Deste estudo, pode-se deduzir que existe uma íntima relação entre a

implantação de uma falsa informação e a confiança do indivíduo na fonte, já que isso

facilita o processo de aceitação da informação.

As falsas memórias, então, são construídas por uma combinação de

memórias atuais e sugestões recebidas de outros indivíduos e, neste processo, os

indivíduos podem esquecer a fonte da real informação, se vislumbrando um caso

clássico de dissociação entre o fato e a fonte (LOFTUS, 1997).

Mas o que são falsas memórias? Stein (2010) explica que as falsas

memórias não são mentiras, nem fantasias, na verdade são bastante semelhantes

s memórias verdadeiras, tanto na sua base cognitiva quanto neurofisiológica. São

diferenciadas pelo fato de as falsas memórias serem compostas, no todo ou em

parte, por lembranças de eventos ou informações que na realidade não ocorreram.

Lembra, ainda, que isto não é produto de um funcionamento patológico da memória,

mas normal.

4.2.1 Teorias explicativas das falsas memórias

No estudo das falsas memórias, três modelos têm se destacado em elucidar

os mecanismos responsáveis por sua produção, quais sejam, o Paradigma

Construtivista, a Teoria do Monitoramento da Fonte e a Teoria do Traço Difuso.

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O Paradigma Construtivista entende a memória como um sistema único que

se constrói a partir da interpretação que as pessoas têm dos eventos. Assim, cada

nova informação é compreendida e reconstruída com base nas experiências do

indivíduo (STEIN, 2010).

A partir desse entendimento, esse paradigma, então, se divide em duas

teorias, quais sejam, Teoria Construtivista e Teoria dos Esquemas.

A primeira (Construtivista) entende que uma nova informação é associada s

informações que o indivíduo já possui e, assim, de forma coerente com o

entendimento da pessoa, pode esta nova informação se sobrepor ou distorcer a

memória inicial, causando uma falsa memória, de maneira que para entender o que

está vendo, ouvindo ou sentindo, acaba reconstruindo o significado do que viveu

(STEIN, 2010).

Portanto, para tal teoria não é possível, por exemplo, lembrar exatamente do

que uma pessoa disse, mas, sim, da interpretação do que foi dito.

Essa teoria foi criticada e derrubada, pois aduzia que somente o significado

de uma experiência seria armazenado pela memória, sendo que as informações

específicas (detalhes) das experiências não seriam armazenadas. Assim,

posteriormente, se descobriu uma capacidade dualística da memória,

diferentemente do conceito unitário (construção e posterior recuperação), ou seja,

que esta poderia armazenar traços específicos da experiência, ainda que mais

facilmente esquecidos, e traços essenciais, associados a um significado, o que

tenderia a ficarem mais acessíveis (STEIN, 2010).

A segunda teoria (dos Esquemas) compartilha dos fundamentos da primeira,

porém entende que a construção da memória é feita em esquemas mentais, nos

quais a nova informação é classificada e enquadrada em um dado esquema já

existente, o que faz diminuir a complexidade do mundo, fazendo o indivíduo saber o

que esperar em ambientes e situações diferentes (STEIN, 2010).

Tal teoria também foi criticada pelo mesmo motivo da teoria anterior, ou seja,

pelo fato de a memória ser dual, pois resultados de testes mostraram que as

informações literais e as geradas por inferências foram recuperadas de forma

separada, sendo diferentes as memórias envolvidas nas lembranças desse tipo de

informação (STEIN, 2010).

A Teoria do Monitoramento da Fonte passou a ser estudada a partir dos

anos 70 com o intuito de se verificar a influência da fonte de qual provém a

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informação sobre o grau de probabilidade de recuperação desta mesma informação,

através de um processo de monitoramento da realidade vivenciada, ou seja, as

fontes da memória (STEIN, 2010).

A fonte, portanto, significa o local, a pessoa ou a situação da qual advém a

informação, e as falsas memórias ocorrem quando há, em tal monitoramento, erro

ou quando se realiza uma atribuição fonte por interferência: interna, como

pensamentos, imagens ou sentimentos; externa, como outros eventos vivenciados,

atribuídos de forma equivocada experiência original ou; por sugestão de uma falsa

informação, que pode ser deliberada ou acidental (STEIN, 2010).

As falsas memórias podem, então, ocorrer quando a atribuição da fonte deve

ser feita rapidamente e a atenção está voltada para outra tarefa sendo executada e

Stein (2010) cita, como exemplo, o caso de um taxista sendo assaltado que teve que

prestar atenção nas ameaças, na direção do veículo e no caminho que estava

fazendo e, assim, afirma que seria bastante provável que, não só o reconhecimento

dos assaltantes, mas também tudo o que aconteceu no assalto, ficaria bastante

prejudicado, devido a simultaneidade de tarefas que interferem no julgamento da

fonte.

Assim, nesse contexto, não dificilmente se poderia confirmar como

assaltantes as imagens de pessoas apresentadas na fase inquisitorial, na fase

processual, por meio de uma sugestão acidental, o que geraria uma atribuição

incorreta fonte da memória.

Críticas também foram feitas a esta teoria, já que o monitoramento da fonte

funciona como um processo de julgamento quanto s características da informação

e não como uma distorção da memória. Além de que, como no conceito

Construtivista, foi considerado um sistema uno, ou seja, um sistema de julgamento

da fonte da informação (STEIN, 2010).

Na década de 80, surge a Teoria do Traço Difuso (Fuzzy Trace Theory)

pretendendo acabar com as críticas das teorias anteriores. Inicialmente, tal estudo

se prestava a avaliar os processos de raciocínio, julgamento e tomada de decisão,

mas direcionou-se aos estudos das falsas memórias introduzindo o elemento da

intuição nos estudos, pois o cérebro sempre busca facilitar e agilizar a compreensão

e, para isso, simplifica as ideias e trabalha somente com o que é essencial da

experiência, deixando de lado informações detalhadas e específicas (STEIN, 2010).

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Essa essencialidade é chamada por Altavilla (2003a) de esqueleto do

acontecimento, no qual se deixa de lado elementos singulares e se põe em foco em

um significado global, já que esquecer é um elemento necessário para que se possa

recordar.

Para tal teoria a memória é composta por dois sistemas distintos, essencial e

literal, sendo que o armazenamento de ambas as experiências é feito de forma

separada, pois a memória literal armazena os detalhes, com maior probabilidade de

interferência e menor durabilidade, e a memória essencial armazena uma

compreensão geral, sendo mais robusta e durável (STEIN, 2010).

Assim, esta teoria funciona em um sistema dual, ou seja, apesar das

memórias (literal e essencial) se originarem de um mesmo fato, são armazenadas e

recuperadas de maneira dissociada. Contudo, uma memória literal poderá influir na

essencial quando houver semelhança e familiaridade na informação (STEIN, 2010).

No entanto, essa teoria também não se salvou de críticas, tendo como

principal a questão da durabilidade dos traços literais, já que alguns estudos

mostraram uma forte recuperação de detalhes perceptuais. Como nenhuma das

teorias levantou tal hipótese, surgiu a Heurística da Distintividade, ou seja, a

tendência de recordar uma informação extraordinária, um detalhe inesperado, dentro

de um fato comum e, assim, refutar as falsas memórias, como, por exemplo, no caso

do taxista que porventura se lembrasse do sotaque singular de um dos assaltantes

(STEIN, 2010).

4.2.2 Falsas memórias espontâneas e sugeridas

As falsas memórias podem ocorrer tanto por uma distorção de processos

internos (espontâneos) quanto externos (sugeridos), por meio de uma falsa

informação, por exemplo. E, assim, passaram a ser classificadas em falsas

memórias espontâneas e sugeridas.

As falsas memórias espontâneas são aquelas cujas memórias são geradas

como consequência de um processo normal de compreensão, pois, na verdade, o

que ocorre são distorções mnemônicas endógenas, também conhecidas como

autossugestão (NYGAARD; STEIN, 2003), sendo, portanto, um erro de lembrança

que na verdade não ocorreu, apesar de ser consistente com a essência do que foi

experimentado. Isso ocorre porque neste tipo de falsa memória fica perdida ou

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inacessível a informação literal devido à interferência de novas informações que a

própria pessoa produziu, comprometendo a informação e a fidedignidade do que é

recuperado (STEIN, 2010).

Um exemplo disso, citado por Stein (2010), é o caso da professora que

perdeu seus óculos, mas lembrava-se nitidamente que os trazia consigo, já que,

inclusive, os arrumava em seu cordão; porém, outro professor encontrou os óculos

em sua sala, portanto, em uma situação que a professora jamais resgataria da

memória, e explica:

[...] falsamente lembrou que estaria com os óculos ao chegar naquele dia na universidade, uma vez que tinha certeza de tê-lo ajeitado no cordão ao sair do carro (STEIN, 2010, p. 25).

[...] A professora provavelmente tinha uma memória genérica de que sempre levava seus óculos para o trabalho. Devido a interferências de novas

informações que ela mesma produziu, por exemplo, de que ela não sairia de casa sem levar seus óculos para o trabalho, ela passou a lembrar-se de tê-los trazido, pois a informação é condizente com a memória de essência que

ela mantinha (STEIN, 2010, p. 35).

Ademais, outra situação comum é a de lembrar-se de um evento que na

verdade pertence a outro. Como é o caso de um amigo ter contado uma história e na

verdade as informações advieram de um programa de televisão (STEIN, 2010), em

uma nítida confusão de fontes.

Altavilla completou esses exemplos:

Vemos uma coisa vermelha no meio da folhagem, e experiências anteriores fazem com que a percepção actual se complete com a representação de

atributos percepcionados de outras vezes, e, por isso, ficamos na convicção de ter visto uma maçã (ALTAVILLA, 2003a, p. 41)

Assim, como nesse caso, se visse um objeto brilhante na mão de um

delinquente, poderia ser uma arma? Pelos estudos, acredita-se que sim, e inclusive,

descrevê-lo-ia nos mínimos detalhes.

As falsas memórias sugeridas nascem da sugestão de uma informação falsa

feita posteriormente a um evento, portanto externas ao sujeito, e que ocorre devido à

aceitação dessa informação (STEIN, 2010).

Esse fenômeno pode se dar de maneira acidental ou intencional, mas, em

ambas, a informação falsa interfere de forma negativa na memória do evento original

(NYGAARD; STEIN, 2003).

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Altavilla (2003a) tratou a sugestão como uma das perturbações psíquicas, já

que um indivíduo está sendo perturbado por atividades psíquicas alheias, criando

um processo mental sugerido, e concluiu:

Pode-se, assim, fazer ver aquilo que não tem realidade objectiva, ou convencer de um facto de cuja inexistência na realidade não teríamos duvidado, se o nosso processo psíquico tivesse agido autonomamente

(ALTAVILLA, 2003a, p. 210).

Nesse entendimento concorda Stein (2010), quando afirma que as

interpretações e percepções de outras pessoas podem influenciar na maneira como

se recorda os fatos, mas que isso depende de uma aceitação e subsequente

incorporação na memória, chamado por Altavilla (2003a, p. 41) de “ruminação”, que,

logicamente, para se configurar em falsas memórias, deve ser posterior ao evento e

não deve ser consciente. Completou Altavilla (2003a) que esta sugestão pode advir

até mesmo de quem interroga.

Tal ruminação pode ocorrer em ambas as falsas memórias (espontânea ou

sugerida), já que tanto de forma endógena (experiências anteriores) quanto exógena

(sugestão) o indivíduo pode complementar e modificar sua percepção dos fatos sem

que em sua consciência subsistam vestígios desse processo, mas certo de que

podem gerar erros judiciais gravíssimos (ALTAVILLA, 2003a).

A Teoria do Traço Difuso alude que a sugestão de uma informação falsa

gera efeitos diversos na memória verdadeira e na falsa memória, já que interfere e

enfraquece as memórias verdadeiras, podendo dificultar a sua recuperação e,

especialmente no caso dos traços literais, como já dito no início deste subcapítulo,

tanto reduz as memórias verdadeiras quanto aumenta a incidência das falsas

memórias sugeridas. Entretanto, no caso dos traços essenciais, se vê somente o

efeito do aumento das falsas memórias, pois tanto o significado geral da experiência

vivida quanto à essência da falsa informação são consistentes (STEIN, 2010).

4.2.3 Falsas memórias: erro, mentira e falso testemunho

Durante este estudo pode-se perceber que as falsas memórias não se

confundem com o erro, a mentira ou o falso testemunho, pois as falsas memórias

dificilmente são detectáveis, diferentemente dos demais casos.

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Para o erro, a mentira e o falso testemunho existem técnicas eficientes que

se prestam a filtrar o depoimento e, assim, detectar esses elementos, como é o caso

do polígrafo, técnicas de entrevista e interrogatório (BERSTEIN; LOFTUS, 2009).

O erro, segundo Freud (1969, p. 153), se diferencia da falsa recordação e do

esquecimento, pois ocorre quando “o caráter da realidade objetiva é salientado no

material psíquico a ser reproduzido”, ou seja, são processos anímicos que estão fora

da intenção do agente e que ocorrem por alguma perturbação, lapso ou ignorância,

mas que pode ser corrigido.

O erro, então, é uma percepção deformada que ocorre após um trabalho de

reflexão (ALTAVILLA, 2003a), mas que paira na intimidade do indivíduo a incerteza

e não a crença.

A mentira é algo intencional que pode ter diversos motivos, como ganhos

financeiros, fama, popularidade e, até mesmo, só pelo ato de mentir (BERSTEIN;

LOFTUS, 2009), portanto, fundada em uma base social (STEIN, 2010). A

intencionalidade, ou consciência, instituída em uma noção de espaço de criação e

de manipulação, é que distingue a mentira da falsa memória, já que nesta a pessoa

acredita estar reportando algo verdadeiro, pois o ato é inconsciente, provocado por

sugestão interna ou externa, e naquela sabe que não é verdade. Mister advertir-se

sobre a importância de manter controlada a mentira no processo penal, afinal, uma

boa mentira repetida várias vezes acaba se tornando uma verdade, aproveitando-se

da conhecida frase de Joseph Goebbels, ministro propagandista de Hitler (LOPES

JR., 2014).

O falso testemunho é uma mentira (intencional e consciente), porém contada

em um processo ou procedimento penal, portanto enseja um ato criminoso, tipificado

no artigo 342 do Código Penal, pois a testemunha presta o compromisso legal de

dizer a verdade sobre o que souber dos fatos e, no entanto, diz uma mentira

(LOPES JR., 2014).

Entretanto, tal fato deixa de ser punível quando antes da sentença a

testemunha se retrata ou declara a verdade, nos termos do parágrafo 2º do mesmo

diploma legal.

Prado (2012) assevera que o testemunho ainda é o principal, senão o único

meio de prova que sustenta a tese do juiz e que poucos delitos foram tão fortemente

punidos pelas antigas legislações quanto o falso testemunho. Ainda, que essa

severidade se justifica, em uma retrospectiva, pelo fato de que o falso se revela

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contra Deus, contra o juiz e contra a pessoa objeto da injustiça, mas que atualmente

o delito atinge a administração da justiça, bem como, para alguns autores,

contamina os meios de prova.

5 A PROVA TESTEMUNHAL E AS FALSAS MEMÓRIAS

Pode-se perceber no capítulo anterior que a existência das falsas memórias

é algo bastante comum e pode ocorrer dentro de um processo mental normal, não

sendo fruto de qualquer patologia, que pode afetar qualquer pessoa.

Destarte, o tema é bastante complexo, mas fundamental quando trazido

para dentro do Direito Processual, principalmente, o Penal, que, ao final, poderá

cercear o direito de liberdade de uma pessoa e, ainda, considerando a anemia

técnica de que sofrem os órgãos responsáveis pela produção de prova, pois muitas

vezes as condenações ocorrem somente embasadas na prova testemunhal, quando

não somente no depoimento da vítima (GESU, 2014).

O que se quer, portanto, é maior atenção e, consequentemente, melhor

qualidade na produção da prova oral e que o processo não se finde somente

baseado neste tipo de prova, devendo esta ser produzida por outros meios (GESU,

2014).

Além da prova testemunhal, outro meio de prova que pode ser igualmente

atingido pelas falsas memórias é o de reconhecimento de pessoas e objetos,

previsto nos artigos 226 a 228 do Código de Processo Penal, pois, novamente,

depende-se da memória para a sua produção.

Destarte, ressaltou Altavilla que:

O reconhecimento é o resultado de um juízo de identidade entre uma

percepção presente e uma passada. Reconhece-se uma pessoa ou uma coisa quando, vendo-a, se recorda havê-la visto anteriormente (ALTAVILLA, 2003a , p. 367).

Nesse sentido, Cordero (2003) diz que o reconhecimento ocorre quando a

pessoa, após uma análise da pessoa ou da coisa, compara as experiências. Assim,

só será reconhecido aquilo que pode ser percebido, ou seja, conhecido pelos

sentidos (LOPES JR., 2014).

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Um elemento comumente utilizado é o reconhecimento por fotografia e, para

ilustrar seus efeitos, pode-se utilizar novamente o caso do taxista assaltado, citado

por Stein (2010).

O taxista assaltado foi entrevistado por investigadores no hospital e para ele

foram mostradas duas fotos de suspeitos, os quais, naquele ato, não foram

reconhecidos. Contudo, em audiência, o taxista reconheceu os dois homens da

fotografia como sendo os autores de crime, com um alto nível de confiança.

Entretanto, alguns meses após, dois indivíduos presos em uma cidade próxima,

confessaram vários crimes, inclusive, o assalto ao taxista (STEIN, 2010).

No caso, observa-se que a fotografia apresentada durante a investigação

contaminou a memória do taxista produzindo falsas memórias e, por este motivo,

como a prova testemunhal, o reconhecimento também não deve ser utilizado como o

único meio de prova para se chegar a uma condenação (GESU, 2014).

Ademais, pelo próprio ritual da fase processual e procedimental, muitas

identificações acabam positivas, tudo isso devido ao efeito do compromisso (art. 208

do CPP), que faz uma captura psíquica do indivíduo (CORDERO, 2003), fazendo-o

incidir em um erro de julgamento, como já visto, bem como o mantendo em erro com

o intuito de se honrar o compromisso ao qual foi submetido (GESU, 2014).

O estudo das falsas memórias no reconhecimento é também de suma

importância para o processo penal. Contudo, o foco desse estudo se dá sobre as

falsas memórias na prova testemunhal, ficando o tema do reconhecimento para o

futuro.

Adiante, portanto, poderá se observar diversas formas de contaminação,

seja por fatores internos ou externos, que podem distorcer a memória.

5.1 A CONTAMINAÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL

Um dos grandes problemas da prova no processo penal é o fator de

contaminação da reconstrução dos fatos passados. Então, a procura desmedida

pela verdade real somada à forma como a prova é colhida, acaba influenciando a

memória dos depoentes durante o processo ou mesmo antes (GESU, 2014).

Ademais, as garantias processuais, como o contraditório e o devido

processo legal, verdadeiros filtros processuais, não se prestam a contornar o

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problema das falsas memórias, sem falar no despreparo do aparato estatal para

atuar sobre este contexto (GESU, 2014).

Então, para atender uma demanda do Direito, a Psicologia Forense passa a

avaliar a precisão de uma recordação, as vulnerabilidades da memória humana,

bem como sob quais condições a memória pode ser distorcida, tornando-se mais

fácil a produção de falsas memórias (STEIN, 2010).

5.1.1 Fatores externos

Os fatores externos, observados em estudos, que podem gerar um

determinado grau de contaminação na testemunha, suficientes a produzir falsas

memórias, são a mídia, a co-testemunha, a entrevista e os procedimentos forenses,

bem como pertences, desenhos e fotografias apresentadas às testemunhas.

A mídia é um dos mais comuns meios de produzir uma falsa informação na

memória da testemunha e tudo isso devido à larga divulgação de um evento poucas

horas após a sua ocorrência, veiculados com relatos de testemunhas e outras

evidências sobre o incidente.

Carnelutti (2013) asseverou que os jornalistas fazem concorrência ao

trabalho da polícia e da justiça e, pior, fazem o trabalho deles. Isso porque cada

delito desencadeia a procura de conjuntura, de informações e de indiscrições. Nesta

senda, até mesmos os atores do processo, estes vigilantes, se tornam os vigiados e

a mídia está sempre pronta a publicar cada palavra, movimento e a interpretar cada

gesto. As testemunhas, então, acabam perseguidas, sugestionadas e, até mesmo,

assalariadas.

Um caso prático relatado foi a do voo 800 da Trans-World Airlines que em

um acidente caiu no oceano. Contudo, relatórios consistentes foram espalhados

entre as testemunhas, policiais e a mídia de que a aeronave, na verdade, havia sido

abatida por um míssil. Ainda que as evidências físicas apontassem para outras

causas, a teoria do míssil repercutiu por anos. O ponto crucial é: como tantas

testemunhas foram convencidas de que viram um míssil que nunca existiu e porque

isto continua convencendo os policiais e a mídia, ainda que apresentadas outras

evidências para a queda do avião? Algumas análises demonstram que uma

sugestão pós-fato amplamente divulgada pode ter potencialmente causado os falsos

depoimentos. A mídia, ademais, publicou matérias que alimentavam a teoria do

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míssil. As testemunhas, mesmo após extensas entrevistas, diziam ter visto o míssil,

direcionando outras testemunhas para a mesma teoria, que inclusive os policiais

colocaram tal teoria como prioritária da investigação (DAVIS; LOFTUS, 2007).

Não é coincidência que as notícias sobre crimes são as que ocupam a maior

parte dos telejornais e o cenário imposto pela mídia, parcial, pois apenas trechos

são revelados, acaba confundindo a testemunha sobre aquilo que efetivamente

percebeu. Ademais, a mídia influi também sobre a opinião dos jurados, pois o

acusado mesmo sendo inocente, antes do término das investigações, já pode se

considerar culpado, sendo o grau de contaminação tão alto que o desaforamento do

Tribunal do Júri não o absolverá (GESU, 2014).

Há evidências consistentes de que a co-testemunha pode influenciar a

precisão do depoimento da outra testemunha, bem como na confiança desses

relatos. A testemunha que debate os fatos com outra testemunha pode não só

contaminar sua memória, como inflar a sua confiança na informação confirmada

pelas outras. Testes demostraram que as testemunhas para as quais foi dito que

outras testemunhas disseram o mesmo que elas tiveram um aumento na confiança

(DAVIS; LOFTUS, 2007).

Assim, na medida em que a confiança da testemunha é percebida pelos

jurados como um importante indicador de precisão, não é surpreendente perceber

uma inflação na recordação da história. Além de que as testemunhas, que

confirmaram a versão de outras testemunhas, foram vistas pelos jurados com mais

credibilidade do que as que deram outra versão aos fatos (DAVIS; LOFTUS, 2007).

A questão mais investigada na psicologia da testemunha é a maneira pela

qual a entrevista e os procedimentos forenses podem levar à fabricação ou distorção

da memória. Nos estudos, Loftus demonstra que a forma como a pergunta é

elaborada, como perguntas fechadas, normalmente indutivas, podem sugestionar a

testemunha e formar falsas memórias de eventos de que originalmente ela não

testemunhou, principalmente porque o depoimento ocorre depois de um tempo

razoavelmente grande a partir do evento.

A professora Elizabeth Loftus estuda a memória há mais de 30 anos,

principalmente se perguntando sobre os efeitos das falsas memórias, pois o que a

intriga é o quão precisa pode ser a memória da testemunha, que presencia um

acidente, por exemplo, bem como o que acontece se uma pessoa é entrevistada por

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policiais que fazem perguntas que podem direcionar o pensamento de alguma forma

(LOFTUS, 2003).

Os estudos demonstram que as perguntas podem direcionar a memória

fazendo com que se perca a fonte a depender da força do verbo utilizado, como, por

exemplo, o uso do verbo bater ao invés de esmagar. Ainda, perguntas como: “Você

viu os faróis quebrados?”, podem contaminar a memória e direcionar a testemunha a

ter visto faróis quebrados, quando na verdade não os viu. Estes tipos de perguntas

geram o que Loftus chama de misinformation effect, criando uma imprecisão e

distorção da memória da testemunha (LOFTUS, 2003).

No Processo Penal, muito se vislumbra a figura do inquisidor, pois,

normalmente, este ao invés de entrevistar a testemunha, acaba a interrogando,

buscando ouvir somente aquilo que confirma a sua versão, quebrando a

imparcialidade e conduzindo a entrevista de forma tendenciosa. Entretanto, o

Processo Penal possui certos mecanismos que permitem um controle sobre as

provas, como o contraditório. O maior problema se dá na fase pré-processual,

quando testemunhas e vítimas prestam esclarecimentos à Polícia, ao Ministério

Público, aos psicólogos e aos assistentes sociais sem qualquer controle pela defesa,

sendo estas passíveis de uso pelo juiz, nos termos do artigo 155 do CPP (GESU,

2014).

Ademais, afirma Loftus que certas técnicas de restauração da memória que

enfatizam a imaginação, como hipnose e regressão, podem direcionar a criação de

uma falsa memória, na qual o indivíduo tem grande confiança (DAVIS; LOFTUS,

2007).

Outro fator externo hábil a contaminar a memória, mais ligada à prova do

reconhecimento, é o ato de mostrar pertences, desenhos e fotografias para a

testemunha. Este método é muito comum para auxiliar na recuperação da memória,

contudo, é igualmente claro que tal procedimento é um gatilho para a criação de

uma falsa memória, por ser um elemento de falsa informação (DAVIS; LOFTUS,

2007), como visto no início do capítulo, no caso do taxista que teve sua memória

contaminada pelas fotografias apresentadas por policiais, no qual, inicialmente, o

taxista não reconheceu os indivíduos e, posteriormente, tinha absoluta certeza de

que foram os indivíduos das fotos que praticaram o crime.

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5.1.2 Fatores internos

Os fatores internos, observados em estudos, que podem gerar um

determinado grau de contaminação na testemunha, suficientes a produzir falsas

memórias são a atualização e reavaliação comportamental, o humor e estados

afetivos, o ato de recuperar e recontar o evento, a fabricação deliberada de memória

através da mentira ou de fingir amnésia, bem como a rotina e os hábitos.

As memórias têm uma grande capacidade de continuamente serem

revisadas em resposta a uma nova informação ou crença. Assim, estudos mostram

que, em um viés retrospectivo, relatos de atitudes e comportamentos do passado

podem ser influenciados por atitudes e informações adquiridas recentemente, ou

seja, a memória sofre uma atualização e reavaliação comportamental (DAVIS;

LOFTUS, 2007).

O humor e os estados afetivos são meios que influenciam a produção de

falsas memórias, isso porque podem exercer efeitos diretamente ou indiretamente

sobre o julgamento da pessoa. Implicitamente podem influenciar o julgamento por

afetar o acesso e o uso do conhecimento e de novas informações, bem como,

explicitamente, quando os juízes inferem uma resposta com base no estado afetivo

em que se encontram no momento da pergunta (DAVIS; LOFTUS, 2007), portanto,

ficando comprometida, tanto a neutralidade do julgador quanto a da testemunha.

O ato de recuperar e recontar um evento pode, por vezes, criar falsas

memórias, de modo que a cada vez que se conta a história requer-se uma nova

consolidação da memória. Assim, a cada reconsolidação da memória pode-se

incorporar ao evento uma informação mais precisa, mas também uma informação

falsa, adquirida durante o processo de evocação e que, mais drasticamente, pode

acabar apagando completamente a memória anterior (DAVIS; LOFTUS, 2007).

Ademais, a memória pode se distorcer pelo fato da evocação ocorrer de

maneira diferente de como foi a experiência do evento, como, por exemplo, exigir da

testemunha que seletivamente extraia informações de sua memória ou organize o

evento de forma diferente de como ocorreu quando foi presenciado (DAVIS;

LOFTUS, 2007). Isso pode ocorrer constantemente em nossos tribunais, haja vista a

necessidade de se exigir uma objetividade no depoimento. Assim, as partes e o juiz

inquirem a testemunha com perguntas aleatórias que fogem à cronologia do evento

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e que somente atendem ao interesse particular, parecendo despreocupados com a

busca da verdade.

Um efeito vinculado a este é o da verdade ilusória, no qual o ato de contar e

recontar várias vezes a mesma declaração pode aumentar a força da crença e

torná-la uma verdade. Ainda, percebe-se que a pessoa que conta tem uma

tendência a querer refletir suas próprias convicções ou as convicções do ouvinte em

seu depoimento e, posteriormente, acaba recontando a história influenciada por

essas descrições tendenciosas (DAVIS; LOFTUS, 2007). Tal efeito pode ocorrer

quando o entrevistador faz perguntas tendenciosas ou sugestivas, o que tipicamente

ocorre quando a testemunha tem contato com outras pessoas, confundindo aquilo

que viu no evento com o que lhe fora dito ou mostrado posteriormente (GESU,

2014).

Assim, quanto menor for tempo entre o evento e o depoimento melhor.

Ocorre que a primeira vez que a pessoa é ouvida, geralmente, é em uma delegacia

de polícia, onde, em tese, suas declarações seriam mais fidedignas, mas esse

depoimento não serve para o processo, tendo em vista que não foi produzido sob o

crivo do contraditório, servindo apenas para embasar a denúncia (GESU, 2014).

Sabendo-se que as entrevistas não são neutras, para evitar as falsas

memórias, o ideal seria que no mínimo todos os profissionais, principalmente

policiais e delegados, tivessem treinamento para lidar com essa situação de

contaminação, fazendo perguntas da forma mais neutra possível, livre de induções

ou sugestionamentos, fazendo a investigação preliminar cumprir sua função de filtro

de acusação infundada, bem como evitaria que a cada nova declaração, tendo

ocorrido uma indução inicial, se embarace na memória da testemunha elementos

que não ocorreram (GESU, 2014).

Estudos mostram que pode ocorrer a fabricação deliberada de memória

através da mentira ou do ato de fingir uma amnésia. No estudo, pessoas foram

instadas a mentir sobre um determinado evento e, consequentemente, afirmar

falsamente que de fato o evento ocorreu com elas. Supreendentemente, algumas

semanas depois, apesar de se esperar uma deflação nas taxas de ocorrência do

falso evento, em alguns casos, enquanto mentiam, os participantes aumentaram

suas taxas de certeza de que o evento mentiroso realmente havia ocorrido e com

um alto nível de confiança (DAVIS; LOFTUS, 2007).

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Quanto ao ato de fingir uma amnésia, diversos estudos mostraram

evidências de que poderiam trazer prejuízos à memória. Nestes estudos, os

participantes leram uma narrativa de um crime enquanto imaginavam-se no papel do

agressor. Os participantes, então, eram obrigados a tentar desviar sua

responsabilidade sobre o crime, incluindo fingir uma amnésia. Diferentemente do

estudo anterior, as pessoas podiam, não trocar a mentira pela verdade, mas fabricar,

distorcer ou fingir amnésia para atingir o objetivo, qual seja, não ser descoberto

como o criminoso. O estudo concluiu que os participantes foram menos precisos

quando perguntados sobre a verdade da história, imediatamente ou mesmo uma

semana depois, se tornando confiantes sobre suas versões simuladas.

A rotina e os hábitos são fatores de grande relevância que alteram a

percepção de um evento.

Isso porque eventos repetitivos se tornam facilmente confusos, de modo a

se perder a noção de quais ocorrências específicas pertencem a quais eventos,

aumentando a confusão da fonte de informação. Assim, as inferências esquemáticas

sobre o que era provável que tenha ocorrido ou feito, tendem a ser substituídas pela

memória verdadeira, principalmente quando envolvem profissionais que possuem

interações rotineiras, como o médico e seu paciente e o advogado e seu cliente

(DAVIS; LOFTUS, 2007).

Ademais, uma pessoa constantemente estimulada, diminui constantemente

a sua resposta ao estímulo (GESU, 2014), isso porque a habituação é

evidentemente um tipo de aprendizado e de memória não associativo e resulta da

simples repetição de um estímulo, sem o associar com nenhum outro (IZQUIERDO,

2011), ou seja, uma forma costumeira de reação (com menor atenção) e

consequente à apresentação de um estímulo, que está ligada pela experiência e

pelo costume (ALTAVILLA, 2003a).

Por fim, Altavilla (2003b) advertiu para a ocasião da testemunha que se

prepara para o depoimento e, preocupado em dar um depoimento preciso e

completo, além de analisar suas recordações, as comparará com o que os outros

dizem terem visto e com o que contam os jornais, formulando a si mesmo as

perguntas que poderão lhe ser perguntadas, causando verdadeiras deformações no

evento original.

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5.2 A REDUÇÃO DO DANO

As falsas memórias constituem um dos grandes problemas do Processo

Penal, principalmente no que tange à prova testemunhal, porque são recordações

de situações que nunca ocorreram. Assim, hodiernamente há propostas de redução

de danos com o intuito de diminuir os eventuais efeitos negativos nos depoimentos

de vítima e testemunhas (ÁVILA, 2016).

Fato é que inexiste uma preocupação pelos profissionais responsáveis tanto

pela investigação preliminar quanto pela instrução processual acerca da psicologia

do testemunho, pois de nada adianta uma boa aquisição e conservação da memória

se houver vício na sua recuperação (evocação) (GESU, 2014).

O sistema de oitivas de testemunhas adotado no Brasil é semelhante ao

cross examination, pois tanto a acusação quanto a defesa formulam os

questionamentos diretamente às testemunhas. Contudo, o sistema brasileiro não

limitou a atuação do juiz, para somente presidir o ato, mas igualmente permitiu a ele

a faculdade de complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos (ÁVILA,

2016).

Nesse sentido, o artigo 212 do CPP traz certas limitações às perguntas

formuladas, as quais não poderão induzir respostas, nem importar em repetição ou

ter relação com a causa, cabendo ao magistrado a responsabilidade de fiscalizar a

inquirição. Ocorre que não existe definição legal do que seriam perguntas que

induzem à resposta (ÁVILA, 2016).

Além disso, a forma como as perguntas são elaboradas para as

testemunhas são decisivas para o sucesso ou não da etapa de questionamentos

(STEIN, 2010).

Assim, o emprego de técnicas inadequadas nas entrevistas das

testemunhas pode limitar a quantidade de informações a serem trazidas ao

processo. E comumente se adota um sistema padrão de entrevista dividido em duas

fases (GESU, 2014).

A primeira, narrativa, na qual o entrevistado descreve os fatos como os

recorda, sendo percebida uma menor chance de indução da resposta pelo

entrevistador, mas, em contrapartida, a testemunha pode relatar fatos que são

irrelevantes para o processo em si (GESU, 2014).

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A segunda, interrogativa, que se subdivide na formulação de perguntas

abertas, como: “O que ocorreu naquela manhã no Banco?” (GESU, 2014, p. 200),

sendo extremamente favoráveis à recuperação da memória e de um maior número

de informações (STEIN, 2010); de perguntas fechadas, respondidas adequadamente

em poucas palavras que podem ser de respostas sim ou não, de seleção ou de

identificação de pessoas, lugares etc. Fato é que estas últimas perguntas, por serem

restritivas, criam maior probabilidade de indução, podendo, inclusive, criar uma

informação que não existia na memória da testemunha, como é o caso das

perguntas identificadoras. (GESU, 2014).

Por isso, alerta Stein (2010) que afora as perguntas abertas, as demais

devem ser evitadas, pois podem contaminar o relato da testemunha.

Neste contexto, estudos mostram que a maioria das falhas se refere ao uso

de técnicas inadequadas e à postura do entrevistador, podendo estas ser

minimizadas, ou mesmo neutralizadas, com técnicas apropriadas de entrevista,

quando surge a Entrevista Cognitiva, método que possui maior vantagem perante

aos demais (STEIN, 2010).

Quanto à técnica do Depoimento sem Dano, prevista no Projeto de Lei nº

7.524/2006 (atualmente arquivado na Coordenação de Comissões Permanentes), há

diversos estudos que demonstram a sua incapacidade de reduzir o índice de falsas

memórias, e, em suma, apenas se preocupa em evitar a revitimização, fazendo-se

reduzir o número de inquirições (tendenciosas), tendo como foco salvaguardar a

memória da criança ou do adolescente. Neste procedimento são violados vários

princípios processuais, como o do devido processo legal, o do contraditório e o da

identidade física do juiz, já que a inquirição poderá ser realizada de forma

antecipada (desrespeitando os requisitos legais) e em um local projetado

especialmente para esse fim, por intermédio de um profissional devidamente

designado pela autoridade judiciária. Além disso, desrespeita o direito ao silêncio e

ao desejo da criança e do adolescente, fazendo lembrar o modelo inquisitivo. Disto

conclui-se que a técnica utilizada pelo Depoimento sem Dano é bastante prejudicial,

não só à vítima, que acaba induzida de um suposto abuso, como também ao

processo, por violar regras e princípios processuais, principalmente o contraditório

(GESU, 2014).

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5.2.1 Entrevista Cognitiva

A entrevista cognitiva surgiu na década de 80, a pedido da polícia e dos

operadores do Direito norte-americano. É um método desenvolvido por Ronald

Fischer e Edward Geiselman com o intuito de maximizar a quantidade e a precisão

das informações obtidas através de testemunhas e vítimas dos crimes, de forma a

obter melhores depoimentos e com maior índice de informações juridicamente

relevantes (STEIN, 2010).

Além disso, para evitar a falibilidade do próprio entrevistador, se considerou

gravar, em vídeo ou em áudio, a entrevista na íntegra para que qualquer um tivesse

acesso às informações literais do depoimento (STEIN, 2010).

Este método de entrevista se divide em cinco etapas, com fundamentos e

objetivos específicos, sendo, assim, sintetizado por Stein:

As duas primeiras etapas da EC (construção do rapport e recriação do contexto original) referem-se ao estabelecimento de uma condição favorável para que o entrevistado possa acessar as informações registradas na

memória. Na terceira etapa o entrevistado relata, livremente, a situação testemunhada. A fase seguinte envolve o uso de técnicas de questionamento, baseado somente nas informações trazidas no relato livre

do entrevistado, visando obtenção de maiores detalhes e esclarecimentos. A última etapa diz respeito ao fechamento da entrevista, em que o entrevistador fornece uma síntese dos dados obtidos nas etapas anteriores

com o objetivo de conferir com o entrevistado a precisão dos mesmos (STEIN, 2010, p. 212).

No rapport o entrevistador deve construir um ambiente acolhedor e

demonstrar empatia em relação à testemunha, de forma a se interessar pelo o que

ela tem a relatar e, assim, fazer com que a testemunha consiga relatar

minuciosamente o evento que presenciou. Percebe-se aqui, também, que o

entrevistador pode obter uma noção do nível de cognição e de desenvolvimento da

linguagem da testemunha e poderá se utilizar do mesmo vocabulário, criando uma

sincronia, de forma a estimular a testemunha a exercer um papel ativo na entrevista

(STEIN, 2010).

Na recriação do contexto original maximiza-se a quantidade de informações

a serem relatadas, já que estão essencialmente associadas ao contexto na qual

foram aprendidas, de forma a serem criadas pistas para a recuperação da memória,

colocando a testemunha mentalmente no local do evento (STEIN, 2010).

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Na narrativa livre ou relato livre, uma vez recriado o contexto original, a

testemunha irá relatar, da sua maneira, tudo o que lembrar, sem interrupções. Deve,

portanto, para gerar estímulo, o entrevistador se manter sempre em uma posição de

interesse, atenção e escuta ao que está sendo dito, fazendo anotações que serão

retomadas na sequência (STEIN, 2010).

Nos questionamentos, então, o entrevistador abordará com perguntas as

informações trazidas a partir do relato livre, de maneira a coletar informações

adicionais, devendo, antes de tudo, enaltecer o esforço da testemunha em colaborar

e que, durante as perguntas, esta pode corrigi-lo caso esteja em desacordo com o

que foi relatado (STEIN, 2010).

Nesta etapa, o entrevistador deve se atentar ao “questionamento compatível

com a testemunha” (STEIN, 2010, p. 219), ou seja, partindo-se do pressuposto de

que cada pessoa faz a sua representação mental de um mesmo evento, as

perguntas devem ser formuladas a partir do relato sobre o fato e não de maneira

pré-estabelecida, sob pena de não alcançar uma recordação completa da memória

e, ainda, deve coletar todas as informações necessárias e não somente as

compatíveis com a sua versão do ocorrido (STEIN, 2010).

Lembra-se aqui, como já dito, o cuidado com o uso de perguntas que não

sejam abertas, já que estas tendem, fortemente, a produzir as falsas memórias.

A técnica de fazer com que a testemunha relate o fato em ordem reversa ou

que relate o fato simulando estar na posição de outra pessoa presente no evento,

alterando sua perspectiva, apesar de merecer estudos mais aprofundados sobre sua

efetividade, ainda assim pode auxiliar na obtenção de informações adicionais

(STEIN, 2010).

A última etapa é a de fechamento, na qual o entrevistador faz uma síntese

dos dados obtidos, certifica-se sobre o entendimento dos dados e, por fim, oferece

uma última oportunidade à testemunha de relatar algo adicional. Ademais, deixa em

aberto um canal de comunicação para que a testemunha entre em contato caso se

lembre de algo não relatado durante a entrevista (STEIN, 2010).

Esta técnica de entrevista aborda todas as teorias e pesquisas sobre a

dinâmica social e a memória, evitando-se a sugestionabilidade. Ainda, diminui a

necessidade de repetidas entrevistas, uma vez que esta extrai um conteúdo

suficiente, além de ser gravada. Isso faz com que seja atenuada a formação de

falsas memórias, bem como evita a revitimização (STEIN, 2010).

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5.2.2 Medidas de redução de danos

Há muito tempo as falsas memórias são estudadas pela psicologia do

testemunho, mas o tema é novo no processo penal. Sendo este um grave problema,

não há como se ignorar esta realidade decorrente da falsificação da lembrança,

previstas tanto na fase procedimental quanto na fase processual. Assim, o que se

quer é justamente evitar que pessoas sejam acusadas, investigadas, condenadas e

presas com base em uma prova tão frágil quanto à prova testemunhal, influenciada

por sua memória distorcida e dissociada da realidade (GESU, 2014).

Tendo em vista a problemática das falsas memórias, há certas medidas que

podem ser adotadas no processo penal, com o fim de atenuar eventuais danos,

como, por exemplo, a colheita dos depoimentos em um prazo razoável, de maneira

a diminuir a influência do tempo na memória; a adoção de técnicas de interrogatório

e de entrevista cognitiva, com o intuito de maximizar a qualidade e a quantidade de

informações, evitando a sugestionabilidade das entrevistas tradicionais; a gravação

das entrevistas, permitindo, assim, ao julgador de Segunda Instância ter o

conhecimento de como os questionamentos foram elaborados, bem como as

reações dos entrevistados; a realização das perguntas pelas partes após o relato

livre do entrevistado, de modo que o julgador somente complementará os

questionamentos e de forma ulterior; a inutilizabilidade dos depoimentos

contaminados direta e indiretamente; a formação multidisciplinar dos profissionais

encarregados da realização das inquirições, devendo receber atualizações

constantes e; por fim, a exploração de outras hipóteses, diversas da acusatória, por

parte do entrevistador, de maneira a se abordar outros aspectos oferecidos pelas

testemunhas no momento do depoimento (ÁVILA, 2016), e não apenas de confirmar

a materialidade e a autoria do delito (GESU, 2014).

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte de Nova Jersey estipulou instruções

que devem ser dadas aos jurados para que saibam lidar com os vários fatores que

envolvem o depoimento da prova testemunhal. Uma das orientações seria a de

indicar aos jurados que estudos mostram que a memória humana não funciona

como um gravador de vídeo e que não são a prova de erros, pois a memória

humana é muito mais complexa. Outra instrução seria para os casos que envolvem

altos níveis de estresse ou temor por parte da testemunha e indica aos jurados que

mesmo sob as melhores condições de visibilidade, altos níveis de estresse podem

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reduzir a habilidade da testemunha de recordar e fazer uma identificação precisa.

Conclui-se, então, que em Nova Jersey se está educando os jurados antes que

tomem decisões sobre a liberdade de alguém (LOFTUS; SCHACTER, 2013).

Ademais, além desta Suprema Corte, o Departamento de Justiça Norte-

americano lançou um guia nacional de coleta e preservação de evidências

testemunhais, o qual instrui, por exemplo, investigadores a utilizar, primeiramente,

perguntas abertas e, na sequência, utilizar perguntas mais específicas, mas sempre

evitando o uso de perguntas sugestivas, tendo como base, logicamente, a entrevista

cognitiva. Ainda, tal guia ensina o investigador como instruir as testemunhas

previamente a um reconhecimento pessoal, como alinhar os suspeitos para o

reconhecimento e como estes devem ser selecionados (LOFTUS, 2015).

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo das Falsas Memórias no Processo Penal é ainda bastante

prematuro, apesar de na Psicologia, ser um tema muito conhecido, não se

consegue, ainda, estipular com precisão quais os motivos que produzem tais

memórias.

Para tentar explicar melhor o fenômeno dentro do Direito foram estudados,

obrigatoriamente, os Sistemas Processuais Penais, os quais se dividem em

inquisitório e acusatório, sendo que o seu diferencial se dá, principalmente, pela

gestão da prova, que no primeiro está na mão de um inquisidor (julgador) e no

segundo se dividem entre os atores do processo (parte, acusação e julgador).

Ademais, constatou-se as insuficiências de cada sistema, bem como os

motivos pelos quais foram se alternando na história, mas certo é que o escopo

primordial de qualquer deles, sempre foi produzir a melhor prova que fosse capaz de

recuperar no presente um fato ocorrido no passado, em uma íntegra verdade real.

Verificou-se, também, que o processo se opera em uma Situação Jurídica, e,

assim, é dinâmico, pois as partes têm cargas ou ônus, não obrigações e direitos, e

conforme o processo se encaminha para um final, as partes vão se desincumbindo

desses ônus, demonstrando-se que o próprio processo em si não é completamente

eficiente, operando sobre ele a incerteza. Ainda, porque no Processo Penal, em um

sistema acusatório, a carga probatória está toda na mão da acusação, restando ao

acusado, se quiser, apenas aguardar o final do processo, pois para ele vigem certos

princípios garantidores, como o da presunção de inocência e o da não

obrigatoriedade de produzir prova contra si. Isso torna o acusado uma peça

descartável no processo, pois somente colaborará com a busca da verdade se esta

lhe for conveniente.

Diante disso, percebeu-se que o processo exerce uma atividade de

recognição, isso porque o juiz deve se convencer sobre os fatos trazidos ao seu

conhecimento, através das provas. Inclusive, deve o julgador estar atento ao

problema de que não é possível o conhecimento do todo, vez que não há como

reconstruir um fato do modo como ele efetivamente ocorreu.

Passa-se, então, a desconstituir o mito criado em torno de uma busca pela

verdade real, bastante forte durante o período em que vigeu o sistema inquisitório,

bem como um dos elementos justificadores de tal sistema. Embora almejada,

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constatou-se que a verdade real é um mito, pois existe um paradoxo temporal

inerente ao processo judiciário, qual seja, o juiz julgar no presente, um fato ocorrido

no passado, proferindo uma sentença com efeitos para o futuro, portanto jamais será

real, mas se explora uma verdade construída na instrução processual.

Essa verdade construída se presta a convencer a sociedade e o juiz, que se

dará através das provas, atuando sobre elas uma força de crença ou fé. Lembra-se,

ainda, que a prova tem uma definição plurívoca, ou seja, tanto serve para provar

quanto para fazer conhecer e convencer.

Nessa toada, geralmente as provas que embasam a decisão do magistrado

são as testemunhais, haja vista serem as que dão maior acreditação ao fato e ao

próprio processo porque estão juntamente envolvidas no ritual judiciário, este

arraigado de fontes religiosas, afinal, no juramento, as testemunhas colocam a mão

sobre a Bíblia e prometem dizer a verdade perante Deus, o juiz e a sociedade, bem

como é a que o juiz tem um contato direto, pessoal (em que pese seja classificada

como prova indireta).

Cabe ressaltar que a prova testemunhal não é a testemunha em si, mas o

seu depoimento, que deve ser colhido de forma oral, observados os princípios do

contraditório e da imediatidade (colhido em frente ao juiz da causa). Além disso, a

prova deve ser colhida de forma objetiva, portanto, a testemunha não deve

manifestar suas apreciações pessoais sobre o fato, mas somente relatar o que viu

ou ouviu de forma retrospectiva, ou seja, a partir de sua memória recorda a

historicidade do crime. Esse caractere de objetividade foi rechaçado, pois a

testemunha é uma pessoa natural e fica difícil conseguir separar os fatos de suas

emoções e paixões, elementos que a tornam bastante vulnerável e podem distorcer

o seu depoimento.

A prova testemunhal, então, é falível, porque depende da memória, e dela

não se extraem os fatos como se fossem imagens em um filme ou em sons

gravados, pois a memória é reconstrutiva e não reprodutiva. Deve, assim, o juiz ouvir

o depoimento completo da testemunha e, após, ir filtrando os excessos valorativos e

sentimentais, extraindo o que lhe interessa para o processo, se valendo do livre

convencimento motivado.

No estudo, não se quis exaurir o entendimento sobre o funcionamento da

memória, até porque nem mesmo a psicologia o fez, mas pode-se perceber que a

lembrança não é a realidade, já que o cérebro transforma a realidade em códigos e

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posteriormente, se necessário, a evoca por meios de códigos e, assim, torna-se

impossível a reconstrução fiel do fato presenciado.

Observados alguns elementos que envolvem o processo mnemônico, pode-

se concluir, de maneira rudimentar, que a produção das Falsas Memórias ocorre

justamente quando há uma confusão de informações, as quais fazem o indivíduo

dissociar o fato da fonte. Portanto, se no processo mnemônico de aquisição,

consolidação e evocação da memória ocorrer uma confusão mental, sugerida ou

espontânea, em qualquer destas fases, o resultado estará contaminado.

Essa contaminação da memória pode ocorrer por diversos motivos, mas

alguns estudos demonstraram que além de ser um evento normal na atividade

mnemônica, ou seja, não ser fruto de qualquer patologia, fatores internos

(espontâneos), como o humor, a rotina e o simples ato de contar e recontar o fato,

ou externos (sugeridos), como a influência da mídia, das fotografias apresentadas e

das entrevistas mal elaboradas a que submetem a testemunha nas fases pré-

processual e processual, são causas de Falsas Memórias.

Nesse sentido, é possível afirmar que as Falsas Memórias são tão

semelhantes às Memórias Verdadeiras que o indivíduo pode descrevê-las em

detalhes, inclusive, fazendo alusão às suas emoções. Contudo, são compostas, no

todo ou em parte, por lembranças de fatos que na verdade nunca aconteceram.

Deste modo, as Falsas Memórias não são erro, mentira, muito menos um falso

testemunho, afinal, esses são caracteres que se operam no âmbito da consciência.

Entretanto, algumas medidas podem ser adotadas para reduzir os efeitos

negativos nos depoimentos das testemunhas, como é o caso da técnica da

Entrevista Cognitiva, sendo atualmente o meio mais eficaz para garantir a extração

de uma maior quantidade de informações com uma melhor qualidade, bem como

que estas informações sejam úteis ao processo judicial, visto que de nada adianta

uma boa aquisição e consolidação da memória se for maculada a sua evocação.

Ademais, outras medidas interessantes podem ser tomadas para evitar

vícios no processo, fruto das Falsas Memórias, além das que já se enquadram em

referida técnica, quais sejam, a inutilização da prova contaminada, um prazo

razoável para a colheita do depoimento, a orientação de jurados sobre o efeito das

Falsas Memórias e a elaboração de um guia para treinamento dos envolvidos no

processo de investigação.

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Por fim, identificou-se a falibilidade da prova testemunhal no processo penal,

tendo em vista que a memória humana é bastante complexa para gerar elementos

de convicção que na verdade jamais existiram. Além disso, a prova testemunhal

pode se contaminar por meio do próprio ritual intrínseco ao processo judiciário,

principalmente no momento de sua colheita, somado à inaptidão de seus

operadores.

Considerando os estudos sobre o Processo Penal e sobre as Falsas

Memórias, pode-se dizer que, tendo em vista que o processo se opera naturalmente

sobre o âmbito da incerteza, pois a verdade ali revelada é uma verdade construída,

mas que existe para garantir uma segurança jurídica, bem como que a testemunha,

muitas vezes, é a maior, quando não a única, fonte de prova de um fato, que pode

estar eivada de vícios por sua própria natureza ou de forma sugestionada, paira a

possibilidade de se estar querendo construir algo concreto sobre um terreno

uliginoso.

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