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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA I: NATUREZA, RELAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS E
PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS
“UM IMPÉRIO DE PAPEL”:
Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal
(1613-1759)
ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA
Natal-RN
2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA I: NATUREZA, RELAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS E
PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS
“UM IMPÉRIO DE PAPEL”:
Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal
(1613-1759)
ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA
Natal-RN
2018
ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA
“UM IMPÉRIO DE PAPEL”:
Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal
(1613-1759)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História, Área de Concentração
em História e Espaços, Linha de Pesquisa I:
Natureza, relações econômico-sociais e
produção dos espaços, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre em História.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Fátima Martins Lopes;
Coorientador: Prof. Dr. Antônio Filipe Pereira
Caetano.
Natal, 2018
ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA
“UM IMPÉRIO DE PAPEL”:
Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal
(1613-1759)
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Fátima Martins Lopes (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
_________________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Filipe Pereira Caetano (Coorientador)
Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Roberta Giannublio Stumpf (Examinadora Externa)
Universidade Nova de Lisboa, Centro de História D’ Aquém e D’ Além-mar (UNL)
_________________________________________________________
Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia (Examinador Interno)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo (Examinador Interno/Suplente)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Natal, 26 de janeiro de 2018.
Aos meus pais, Jacinta e Lira,
por haverem desde cedo me ensinado que
a educação é o melhor mecanismo de transformação social.
AGRADECIMENTOS
Agradecer consiste em uma tarefa nobre, porém sua prática pode ser
tragicamente ingrata, sobretudo quando se corre o risco iminente de se esquecer de
alguém que, de uma forma ou de outra, contribuiu para a viabilização deste trabalho.
Mesmo assim, prossigamos nessa empreitada.
À Deus, pelo dom da vida, pela sabedoria e pela fé, que serviram-me de
combustível para que enfrentasse com discernimento os vários obstáculos dessa jornada.
Às Virgens da Conceição e das Vitórias pela interseção em mais um coroamento
de minha jornada pessoal e profissional, as quais recorri, persistentemente, a pedir-lhes
uma luz para o corredor tenebroso do mundo acadêmico, eivado por vaidades soberbas e
exibicionismos tacanhos.
Aos meus pais, Jacinta e Lira, por todo o apoio emocional e por haverem, desde
o princípio, acreditado em minhas potencialidades, não medindo esforços para que eu
chegasse até aqui. Agradeço-lhes também pelas lições de vida, moral e esperança, que
desde cedo demonstraram que a educação se configurava como o melhor mecanismo
para transformação da realidade social. À mainha, que desde sempre me ensinou que
humildade e sabedoria eram faces de uma mesma moeda. Ao meu pai, o maior leitor
dos meus textos e grande incentivador de minha trajetória profissional, com quem dividi
várias noites em claro para a elaboração de todo este trabalho.
À Dr.ª Fátima Martins Lopes, que com maestria e paciência acolheu a orientação
desta pesquisa, em um momento difícil de minha vida, pulverizado por várias
incertezas. Muito obrigado pela leitura atenta e perspicaz deste texto, bem como pelas
enriquecedoras reuniões de orientação, sem a sua valiosa ajuda, jamais teria chegado até
aqui.
Ao Dr. Antonio Filipe Pereira Caetano, meu coorientador – e com quem partilho
o fascínio pela História e a paixão pelas ciências da saúde –, que da “Comarca das
Alagoas” cumpria com serenidade a missão da orientação, indicando-me o melhor
caminho, mas deixando-me em aberto às possibilidades de escolha.
À Dr.ª Carmen Alveal, por haver acreditado em mim quando a procurei para
tentar a seleção do mestrado, pela incomensurável disponibilidade nos dois primeiros
anos da orientação, pelo acesso irrestrito ao rico acervo documental do Laboratório de
Experimentação em História Social (LEHS/UFRN). Enfim, esta pesquisa se
materializou também pelo pouco dos princípios sobre a “disciplina americana” que
aprendi com a senhora.
À Dr.ª Anna Paula Lima Costa, à Dr.ª Narla Sathler Musse, ao Dr. Leão Xavier
da Costa Neto, orientadores em diferentes projetos de pesquisa, quando ainda era aluno
do Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Agradeço também à Dr.ª Olívia Medeiros,
que leu meus primeiros rascunhos do projeto de pesquisa do mestrado e pelos valiosos
concelhos em alguns momentos difíceis que enfrentei nesse percurso.
Ao Dr. Lígio José de Oliveira Maia, pela bolsa de Ações Acadêmicas Integradas,
na qual entrei em contato com os escrivães camarários e pela participação na Banca de
Qualificação dessa dissertação, juntamente com o Dr. Helder Alexandre Medeiros de
Macedo.
À Luann Alves de Araújo, secretário do Programa de Pós-graduação em História
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, à quem muito devo pelos trâmites
burocráticos durante esses dois últimos anos, mas pelo grande amigo que ganhei e que
levarei pela vida.
Ao Laboratório de Imagens da UFRN (LABIM-UFRN), nas pessoas de Iris
Alvares e Rafael Arquino, que gentilmente disponibilizaram-me grande parte dos
documentos utilizados nessa pesquisa.
Aos amigos que fiz durante minha estadia no mestrado, Raphael Torres, Patrícia
Morais e Djair Silva, que tornaram a solidão da pesquisa algo menos pesaroso e mais
humano; Agradeço também à Monique Maia de Lima, com quem compartilhei essa
trajetória, dividindo sonhos e angústias.
Aos Mestres, Fagner David, Khalil Jobim e Keidy Matias, amigos que me
incentivaram a trilhar o percurso do mestrado, inclusive ao ler e opinar sobre meu
projeto de pesquisa.
Aos amigos da Geologia, Abraão Dantas, Karoline Arruda e Vinicius Silva pela
amizade e pelos reprises sobre o Arcgis. Espero que assim como as rochas ígneas, nossa
amizade sobreviva às intempéries do tempo e da vida.
À Gabriel Gomes pelo apoio descomedido e a disponibilidade imediata nesses
últimos meses, quando precisava ausentar-me da Odontologia; à Luiz Miguel pela
compreensão sobre a ausência da dupla e ao Júlio Holanda, que nossa amizade seja
resistente assim como o dente é o órgão mais rígido do corpo humano.
À Wendell Oliveira e Cristiane Mirelle, amigos que levo desde a graduação.
Agradeço também, de modo particular, à Luciere Cavalcante, pelo grande incentivo na
minha carreira acadêmica e com quem tive a satisfação de escrever os primeiros artigos
científicos.
À minha tia Graça Barbosa, pois acredito que a gramática com a qual me
presenteou, há dez anos, contribuiu para eu chegasse até aqui. À tia e madrinha
Francisca Barbosa de Moura pela positividade de tudo o que sempre me deseja. Às tias
Lúcia Barbosa e Fátima Moura, pelo suporte à mainha em minha longa ausência. Aos
tios Francisco Barboza e Teresa Dantas, pela estadia que me concederam ao chegar à
capital potiguar. Ao meu avô, Geraldo Barbosa de Moura – in memoriam –, pelas
longas histórias sobre sua vida na Segunda Guerra Mundial, que muito despertou meu
interesse pela História.
À Narcisa Alves de Medeiros, minha “tia”, secretária da Pró-reitoria de
Planejamento da UFRN, uma são-tomeense de aura ilustre e de coração nobre que
jamais mensurou esforços para contribuir com o sucesso de seus conterrâneos.
À Prof.ª Edlinda Cândida, que ao rigor preciso, me ensinou as primeiras letras e
as operações matemáticas básicas e de quem fui aluno no reforço durante quase uma
década;
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, minha segunda casa, a quem
muito devo toda a minha formação profissional. Agradeço também à Pró-reitoria de
Assuntos Estudantis da UFRN, na pessoa de Maria das Graças de Sousa Pereira da
Costa, pelo auxílio a minha permanência na Universidade.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pela bolsa concedida, sem o apoio da qual esta pesquisa jamais teria se materializado.
Se a muitos agradeço a contribuição que deram a esse texto, apenas eu sou
responsável pelos equívocos que aqui cometi.
São Tomé-RN, Outono de 2018.
“Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?”
Fernando Pessoa, Poema em linha reta, 1972.
RESUMO
Esta dissertação analisa o ofício de escrivão da Câmara do Natal e a função
desempenhada por estes oficiais na administração burocrática do Império português,
com a finalidade de compreender a sua atuação e seu papel de intermediários nas
relações entre o reino – centro – e a Capitania do Rio Grande – periferia. As balizas
temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que
fossem estabelecidos os ‘modos de governo’ na Capitania do Rio Grande, criando uma
câmara com seus respectivos oficiais, e, entre eles, o ofício de escrivão dessa edilidade.
Findou-se a análise em 1759, quando por ordem do Marquês de Pombal, elevaram-se os
aldeamentos indígenas existentes no Rio Grande à categoria de vilas, resultando na
criação de novas câmaras, com seus respectivos escrivães concelhios, que possuíam
outro perfil. Utilizou-se os Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal
e os Livros de Termos de Vereação dessa instituição; bem como, os registros paroquiais
da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação; os Documentos Históricos, da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; os Documentos Avulsos e o Livro de Registro
de Consultas Mistas, do Arquivo Histórico Ultramarino – disponíveis online. Serviu-se
também do Livro de Registro Geral de Mercês de D. Pedro II e dos Processos do
Tribunal do Santo Ofício de Évora, sob a guarda do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, também online. Esses conjuntos documentais foram analisados com um
cruzamento intensivo de dados, baseado nos métodos indiciário e onomástico, sob a
perspectiva da relação centro e periferia. Averiguou-se as práticas dos escrivães da
Câmara do Natal, confrontando-as às prescrições estabelecidas pelas Ordenações
Filipinas. E, por meio disso, aclarou-se o papel de broker – espécie de intermediário –
desempenhado pelos escrivães camarários do Natal nas redes institucionais de
circulação de informações pelo Império, nos níveis intracapitania, intercapitanias e
transcontinental. Estabeleceu-se o perfil social e econômico dos agentes providos na
escrivania concelhia do Natal, com o propósito de compreender a representatividade
desses oficiais na sociedade local. Discutiu-se o caráter venal desse ofício, interligando-
os às polêmicas e controvérsias dessa prática para a Coroa portuguesa. E estabeleceu-se,
por fim, a trajetória emblemática de ascensão social de Bento Ferreira Mouzinho, –
português, criminoso e fugitivo –, que foi escrivão da Câmara do Natal durante
dezessete anos, chegando a assumir, posteriormente, o ofício de provedor da Real
Fazenda do Rio Grande e juiz de órfãos da Capitania de Itamaracá. Ao fim e ao cabo,
percebeu-se que o processo de conquista/colonização também passava pelo ofício de
escrivão da Câmara do Natal, sobretudo diante da mobilidade dos agentes que foram
providos nesse ofício. Soma-se a isso, a importância do escrivão concelhio como
intermediário entre o universo letrado e o iletrado, assim como para a comunicação
interinstitucional no Império. Por fim, compreendeu-se o caráter estratégico desse ofício
no contexto da geopolítica local, verificada na disputa pelo domínio hegemônico da
escrivania por algumas famílias.
Palavras-chave: Escrivão da Câmara; Centro e Periferia; Provisão de ofícios;
Venalidade de ofícios; Biografia/trajetória administrativa.
ABSTRACT
This dissertation analyzes the role of scrivener of the Assembly of Natal and the
function developed for these officers in the bureaucratic administration of the
Portuguese Empire, for the purpose of understanding their operation and their role as
intermediaries in the relation between reign - center - and the Captaincy of Rio Grande -
suburb. The temporal beacons are justified, in so far as, in the year of 1613, D. Filipe II
ordered that were implemented the “modes of government” in the Captaincy of Rio
Grande, creating an assembly with its related officers, and, between them, the function
of scrivener of this building. The analysis ended in 1759, when for the order of Marquis
of Pombal, elevated the existing indigenous settlements in the Rio Grande to the village
category, resulting in the creation of new assemblies, with their respective counties
scriveners, who had another kind of profile. It was used the Books of Files and
Provision of Senate of Assembly of Natal and the Books of Terms of Council of this
institution; as well as the parish records of Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação; Historical Documents of the National Library of Rio de Janeiro; Single
Documents and the Book of Mixed Query Log of Ultramarine Historical Archive -
available online.It was also used the Book of General Registration of Mercy of D. Pedro
II and the Processes of the Court of Holy Office of Évora under the guard of National
Archive of Tower of Tombo, also online. These documentary sets were analyzed with
intensive data crossing, based on indicia and onomastic methods, under the perspective
of the relation center and suburb. It was examined the scrivener practices of the
Assembly of Natal, confronting them to the established prescriptions by Ordenações
Filipinas. This way was clarified the function of the broker - a kind of intermediary -
developed by the assembling scriveners of Natal in the institutional networks of
circulation of information by the Empire, in the levels of intracaptaincy, intercaptaincy
and transcontinental. It was established the social and economic profiles of the agents
provided in the county secretary of Natal, for the purpose of understanding the
representativeness of these officers in the local society. It was discussed the venal
character of this role, interconnecting them to the polemic and controversy of this
practice to the Portuguese Crown. It was established, lastly, the emblematic trajectory of
social ascension of Bento Ferreira Mouzinho, - Portuguese, criminal and fugitive -, who
was scrivener from Assembly of Natal for seventeen years, even assuming, posteriorly,
the role of provider of the Royal Treasury of Rio Grande and judge of orphans of
Captaincy of Itamaracá. Finally, it was realized that the process of
conquest/colonization also passed by the role of scrivener of Assembly of Natal,
especially according to the mobility of the agents who were provided in this function.
Add to that, the importance of the county scrivener as intermediary between literate
universe and illiterate, even as to the interinstitutional communication in the Empire.
Lastly, it was understood the strategic character of this role in the local geopolitical
context, verified in the contention for hegemonic domain of the script for some families.
Keywords: Scrivener of Assembly; Center and Suburb; Officers of roles; Officers of
venality; Biography/trajectory administrative.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 01 - Percentual da correspondência entre a Câmara da Cidade do Natal e outros
espaços sociais do Império português (1659-1759) ..................................................... 109
Gráfico 02 - Macroorigens geográficas dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759)
...................................................................................................................................... 131
Gráfico 03 - Naturalidade dos escrivães da Câmara de Natal por circunscrição
geográfica do Império (1613-1759) .............................................................................. 148
Gráfico 04 - Proporção entre escrivães sesmeiros e escrivães não-sesmeiros na
Capitania do Rio Grande (1613-1759) ......................................................................... 163
Gráfico 05 - Justificativas apresentadas pelos indivíduos que ocuparam o ofício de
escrivão da Câmara do Natal para a obtenção de carta de sesmaria (1613-1759)........ 171
Gráfico 06 - Escrivães que obtiveram concessão de chãos de terra no termo de Natal
após exercerem a escrivania da câmara (1659-1759) ................................................... 178
Gráfico 07 - Percentual de escrivães camarários do Natal com patentes nas Ordenanças
Locais (1613-1759) ...................................................................................................... 181
Gráfico 08 - Tipologia das patentes dos escrivães da Câmara do Natal nas Companhias
de Ordenanças e na Tropa paga da Capitania do Rio Grande (16131-1759) ............... 183
Gráfico 09 - Tempo de serviço e modalidade do provimento para o ofício de escrivão
da Câmara do Natal (1613-1759) ................................................................................. 198
Gráfico 10 - Autoridades que proveram o ofício de escrivão da Câmara do Natal
(1613-1759) .................................................................................................................. 206
Gráfico 11 - Acumulação do ofício de escrivão da Câmara do Natal com outros ofícios
da administração local (1613-1759) ............................................................................. 212
Gráfico 12 - A família Rodrigues de Sá e sua parentela: casamentos, batismos e
apadrinhamentos (1697-1759) ...................................................................................... 225
Gráfico 13 - A família do escrivão da Câmara do Natal Bento Ferreira Mouzinho .... 294
LISTA DE MAPAS
Mapa 01 - Comunicação intracapitania do Rio Grande através da Câmara do Natal com
as porções central e oriental da Capitania (1659-1759) ................................................. 87
Mapa 02 - Comunicação intracapitania do Rio Grande através da Câmara do Natal com
as porções central e ocidental da Capitania (1659-1759) ............................................... 91
Mapa 03 - Comunicação intercapitanias da América Portuguesa, via Câmara do Natal
(1659-1760) .................................................................................................................. 100
Mapa 04 - Comunicação transcontinental entre as cidades do Natal e Lisboa via
Câmara do Natal (1659-1759) ...................................................................................... 108
LISTA DE TABELAS
Tabela 01 - TIPOLOGIAS DOCUMENTAIS REDIGIDAS PELOS ESCRIVÃES
CONCELHIOS E RESPECTIVOS VALORES AUFERIDOS DA REDAÇÃO DO
EXPEDIENTE INSTITUCIONAL (1603) .................................................................... 72
Tabela 02 - Tipologias documentais emitidas pelos escrivães da Câmara do Natal
(1682) ............................................................................................................................. 78
Tabela 03 - Lista nominal dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759) ................ 129
Tabela 04 - Origem geográfica dos escrivães da Câmara do Natal por circunscrição e
localidade (1613-1759) ................................................................................................. 136
LISTA DE ABREVIATURAS
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino;
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo;
DHBN – Documentos Históricos da Biblioteca Nacional;
IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano;
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro;
IHGRN – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte;
SILB – Sesmarias do Império Luso-Brasileiro;
Sumário
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 19
CAPÍTULO I – OS ESCRIVÃES CAMARÁRIOS: Regimento, Práticas, emolumentos
e fluxos da comunicação institucional ............................................................................ 35
1.1 As Ordenações Filipinas (séc. XVII-XVIII)............................................................. 38
1.1.1 A criação do ofício de escrivão da Câmara do Natal (1613) ................................. 45
1.2 As práticas organizacionais dos escrivães na Câmara .............................................. 47
1.1.1 Assentos da comunicação institucional ................................................................. 50
1.1.2 Registros da Câmara .............................................................................................. 57
1.1.3 A tutela entre os ofícios da câmara ........................................................................ 65
1.3 Emolumentos e salários ............................................................................................ 71
1.4 Os escrivães como intermediários nas redes institucionais de circulação de
informações administrativas pelo Império ..................................................................... 81
1.4.1 A comunicação intracapitania do Rio Grande ....................................................... 86
1.4.2 A comunicação intercapitanias da América Portuguesa (1659-1759) ................... 99
1.4.3 A comunicação transcontinental via Câmara do Natal ........................................ 107
CAPÍTULO II - HOMENS DE PRÉSTIMOS E CONSIDERÁVEIS CABEDAIS: O
perfil social dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759) ....................................... 120
2.1 As origens dos escrivães concelhios do Natal ........................................................ 128
2.1.1 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos de Portugal ...................................... 138
2.1.2 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos das Capitanias do Norte .................. 148
2.1.3 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos da Capitania do Rio Grande ............ 155
2.2 O perfil social dos escrivães da Câmara do Natal .................................................. 162
2.2.1 A posse de gados, sesmarias, escravos, chãos de terras e patentes ..................... 169
CAPÍTULO III – A ESCRIVANIA DA CÂMARA DO NATAL: Concessões,
provimentos e acumulação de ofícios ........................................................................... 190
3.1 A venalidade de ofícios nas Monarquias Europeias (sécs. XV-XVIII) .................. 191
3.1.1 Provimentos e acumulações de ofícios ................................................................ 195
3.2 Sangue do mesmo sangue ou parentes da mesma parentela? ................................. 217
3.2.1 A família Rodrigues de Sá e o ofício de escrivão da Câmara do Natal ............... 222
CAPÍTULO IV - “UM MALIGNO ESCRIVÃO”: Bento Ferreira Mouzinho sob o
reinado de D. João V (1715-1755) ............................................................................... 259
4. 1 O alvor de um século sombrio ............................................................................... 264
4. 2 As origens, a travessia do Atlântico e a chegada ao Rio Grande .......................... 268
4.3 “Causando bandos e fomentando inimizades diabólicas” ...................................... 277
4.4 Família, prestígio e poder ....................................................................................... 292
4.5 “O principal agressor de tão atroz delito” .............................................................. 298
4.6 A crise política de 1720 .......................................................................................... 311
4.7 “A Revolta dos Magnatas” ..................................................................................... 334
4. 8 “Não pai, mas sim padrasto dos miseráveis órfãos” .............................................. 337
Considerações Finais .................................................................................................... 347
FONTES ....................................................................................................................... 352
FONTES MANUSCRITAS ......................................................................................... 352
FONTES IMPRESSAS ................................................................................................ 353
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 355
19
INTRODUÇÃO
O estabelecimento da “geografia política”1 de disposição de cargos e ofícios,
no reino e no ultramar, havia obedecido ao paradigma jurisdicionalista2 que predominou
em Portugal no Antigo Regime.3 Esse paradigma provém do medievo, pois, de acordo
com António Manuel Hespanha, o pensamento político naquele período compreendia a
sociedade como um corpo social formado por diversas partes, ou seja, por grupos
sociais e instituições, cujas atuações possuíam funções específicas e imprescindíveis
para o funcionamento adequado de todo o corpo.4 Desse modo, esse cunho corporativo
da sociedade portuguesa do Antigo Regime fora transposto para as estruturas
administrativas e burocráticas, tornando-se a jurisdição o limite máximo e possível da
autonomia do exercício do poder político de cada ofício ou função que possuíam os
distintos grupos sociais.5
A expansão ultramarina portuguesa,6 entre os séculos XV-XVI, transpôs uma
série de instituições, bem como de ofícios, existentes no reino, para o além-mar.7 Em
face do processo de complexificação da administração portuguesa proveniente,
sobretudo, da expansão territorial do Império8 e, com isso, de pessoas vivendo sob a
égide da Coroa, carecia-se cada vez mais de um aparato burocrático que fosse capaz de
suprir as demandas da vida em sociedade. Este momento caracterizou-se, por um lado,
pela expansão das áreas de colonização e, por outro lado, pelo alargamento progressivo
do próprio corpo administrativo, sumarizado pelo estabelecimento de diversas
1 HESPANHA, António Manuel. História das Instituições, épocas medieval e moderna. Coimbra:
Livraria Almedina, 1982. p. 250. 2 op. cit. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc. XVII. Coimbra:
Almedina, 1994. 3 FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime
nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001; ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Lisboa: Editora Estampa, 1987. 4 HESPANHA, op. cit., 1994. p. 286-287, 300.
5 Ibidem, p. 299-300.
6 BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. BARRETO, Anna Olga de Barros
(trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 7 Para Maria Fernanda Bicalho, o processo de formação do Império português havia ocorrido mediante a
trasladação de vários mecanismos políticos, jurídicos e administrativos presentes em Portugal para todas
as áreas sob o domínio da Coroa. Para saber mais, ver BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o
império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 367. 8 Sobre a expansão territorial do Império português, ver BOXER, loc. cit.
20
instituições e órgãos que, por sua vez, haviam passado a demandar a criação de novos
ofícios, cargos e/ou funções,9 tanto no reino quanto no além-mar.
Dentre essas instituições, citam-se as câmaras, as ouvidorias, os tribunais, as
provedorias, os almoxarifados, as alfândegas, dentre outros órgãos da administração de
modo geral. Desses, muitos possuíam congêneres reinóis.10
Ressalta-se, ainda, que ao
crescimento do aparato administrativo equivalesse no mesmo grau, modo e intensidade,
a expansão numérica de oficiais especializados como, por exemplo, os desembargadores
e os juízes.11
À demanda por esses agentes régios, acompanhava-se igualmente da
premente necessidade da presença de oficiais que os pudessem auxiliar nas atividades
de redação e registro das matérias, tanto de agravo quanto de apelação, as quais eram
levadas a cabo pelos escrivães correspondentes.
O ofício de “escrivão” era característico da instauração e do primado da escrita
como mecanismo político e normativo, cuja demanda acarretou na hiperespecialização
dessa função, culminando na presença regular de oficiais escreventes não apenas na
esfera da justiça de última instância, como também no exercício da escrivania pelo
escrivão da câmara, do escrivão do almoxarifado, do escrivão da alfândega, do escrivão
da provedoria, do escrivão da ouvidoria, do escrivão da chancelaria, do escrivão dos
órfãos e de uma ampla miríade de oficiais escreventes, responsáveis pela produção e
9 Sobre a expansão das áreas de colonização e a posterior formação da elite colonial, a qual havia se
atrelado a ampliação do corpo administrativo, ver RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial:
Brasil (1530-1630). São Paulo: Alameda, 2009. 10
A ideia de congênere reinol provém das discussões de Maria Fernanda Baptista Bicalho acerca das
semelhanças expressivas entre as câmaras em Portugal e as que foram instaladas nas conquistas
ultramarinas. Para saber mais, ver BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do
Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.).
O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001; Sobre a estrutura funcional da burocracia portuguesa, no reino e nas
conquistas, ver SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos. A administração no Brasil colonial e o governo
do império. In: FRAGOSO, op. cit. Sobre os tribunais instalados na América portuguesa, ver
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus
desembargadores (1609-1751). Berilo Vargas (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 11
Os termos “oficial” e “oficiais” remetem-se a designação genérica atribuída a qualquer indivíduo que
desempenhasse alguma função ou atividade no âmago administrativo e burocrático da Coroa portuguesa,
mas também pode ser atribuído aos indivíduos que exerciam quaisquer outras atividades, seja mecânicos
ou das letras, porém, ressalta-se, que existe uma diferença entre essas duas dimensões da palavra ofício,
sobretudo relacionada com a questão simbólica de menosprezo que se tinha contra os oficiais mecânicos.
Para saber mais, ver BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico,
architectonico...Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/oficial. Acesso em: 08/05/2017. O “oficialato” e a
amplitude de sua atuação foram trabalhados como um polo independente de poder no contexto do
universo político do Império português. Para saber mais, ver HESPANHA, António Manuel. Às
Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994.
21
registro manuscrito, sem a qual não seria possível a articulação das diversas partes que
compunham um Império geograficamente tão vasto e disperso.
Dessa forma, ao atentar-se para a composição do quadro de oficiais da
administração portuguesa presentes nos concelhos municipais, segundo António Manuel
Hespanha, os ofícios de escrivães corresponderam a 24,66%, dos quais os escrivães
camarários – ou escrivães do público, judicial e notas –, constituíam 40% daquela
percentagem.12
Caracterizando, de acordo com Hespanha, “a plena implantação da
forma escrita que permitiu a manutenção de espaços políticos espacialmente tão
dispersos [...]. Lisboa era então um relais de uma imensa rede de comunicação política,
que se estendia do Índico ao Brasil”,13
perfazendo, como prossegue a afirmação daquele
autor, “um império de papel, em que a correspondência do rei, dos vice-reis, dos
governadores, dos capitães, substituíam laços políticos mais efetivos”.14
Nesse sentido, apropriando-se da ideia de “império de papel”, esboçada por
António Manuel Hespanha, utilizou-se dela como título deste trabalho com a finalidade
precípua de metaforizar a relação entre a quantidade significativa de escrivães – como
apontado anteriormente por Hespanha, para o caso do reino ainda no século XVII –,
presentes nas estruturas administrativas portuguesa, sobretudo em nível concelhio, bem
como ao associar a importância daqueles oficiais como os principais responsáveis pela
escrituração da comunicação política e institucional, nas redes de circulação de
informações pelo Império português, nos níveis intracapitania, intercapitanias e
transcontinental.
Nesse ínterim, assim como as câmaras municipais foram uma permanência da
organização administrativa do Portugal medieval, os ofícios que compunham essa
estrutura – com algumas minuciosas diferenças que variaram no tempo e no espaço –
também o foram, ao se instituírem o modelo concelhio na administração política e
burocrática local das possessões ultramarinas modernas.15
Desse modo, no universo do
oficialato local, que atuavam nas câmaras das cidades ou vilas espalhadas de um
12 Hespanha, António Manuel. Às vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc.
XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 268. 13
Ibidem, p. 291. 14
Ibidem. 15
BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;
BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos
trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. p. 191.
22
extremo a outro das conquistas, estavam os juízes ordinários, os vereadores, os
procuradores, os tesoureiros, os almotacés, os juízes de órfãos e os escrivães de órfãos e,
por fim, os escrivães das câmaras.16
Estes últimos, os de escrivão da câmara, cuja importância na engrenagem
administrativa lusitana pode ser localizada desde os tempos medievais, quando já
ocupavam um lugar de destaque na sociedade, sendo os responsáveis pela produção e
registro manuscrito que normatizava a vida em sociedade no Portugal da Idade Média.17
No decorrer do tempo, identificou-se no desempenho daquele ofício indivíduos
pertencentes aos mais diversos níveis sociais, mas que possuíam o diferencial da escrita.
Além disso, por estar envolto no registro de tantos e tão variados conjuntos
documentais, aquele que ocupava o ofício de escrivão no interior dos mais distintos
órgãos da administração e, em particular do escrivão concelhio, necessitavam prestar
juramento18
e observar a discrição e limpeza de mãos no desempenho de suas
atividades19
.
Os escrivães das câmaras ou concelhos municipais faziam parte do núcleo das
municipalidades, integrando o rol dos ofícios de cúpula,20
cabendo-lhes a escrita dos
atos formais, administrativos e judiciais cotidianos, sob a responsabilidade daquelas
instituições.21
Os agentes que serviram no ofício de escrivão camarário distinguiam-se,
dos demais oficiais dessa instituição, por serem os principais responsáveis pela redação
16 BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;
BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos
trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. p. 192-193. 17
COSTA, Marisa. Do ofício de escrivão. A propósito dos agentes da escrita na Chancelaria de D. Pedro
I. Disponível em:
http//www.academia.edu/277112/Do_of%C3%ADcio_de_escriv%C3%A3o._A_prop%C3%B3sito_dos_
agentes_da_escrita_na_chancelaria_de_D._Pedro_I. Acesso em: 10/09/2015. 18
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. 19
Os indivíduos que haviam ocupado os ofícios de escrivão concelhio deviam no ato de nomeação jurar
que prestariam discrição no desempenho de seus ofícios e também “limpeza de mãos”, ou seja, de acordo
com a documentação consultada, “limpeza de mãos” remeter-se-ia ao ganho de valores remuneratórios
provenientes apenas de suas atividades cotidianas, não lançando mão de outros tipos de proveitos, em
quaisquer dimensões que fossem, durante e por meio do exercício do ofício. AHU-RN, Papéis Avulsos,
Cx. 3, Doc. 177. 20
Os “ofícios de cúpula”, para Luiz Alberto Rezende, foram aqueles desempenhados no âmago das
edilidades, mas que detinham uma importância significativa no que tocava as decisões tomadas pelos
oficiais camarários sobre a realidade das municipalidades. Para saber mais, ver REZENDE, Luiz Alberto
Ornellas. Um ofício central: o escrivão da câmara municipal de Vila Rica, 1711-1724. IV Conferência
Internacional de História Econômica. 2012; BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-
1825. Anna Olga de Barros Barreto (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 286-287. 21
PORTUGAL. loc. cit.
23
da comunicação escrita, por conhecerem, relativamente, a legislação portuguesa22
e pelo
fato de serem ofícios locais, mas cujo provimento poderia ser efetuado diretamente pelo
rei.23
As pesquisas e os estudos sobre os escrivães, em particular do ofício de
escrivão desempenhado nas câmaras das cidades ou vilas, na América portuguesa são,
relativamente, escassos. Contudo, podem-se dividir as referências que se fazem a esses
oficiais em quatro conjuntos distintos. O 1º conjunto remete-se aos textos legislativos,
produzidos em Portugal, entre os séculos XVI-XVII, a fim de fundamentar e normatizar
as práticas cotidianas do ofício de escrivão das câmaras;24
no 2º conjunto figuram as
obras produzidas por autores no final do século XIX e na primeira metade do século
XX,25
no qual os escrivães emergiam como referências esporádicas, auxiliando outros
oficiais da administração.
Já o 3º conjunto compreende os autores que produziram seus estudos na
segunda metade do século XX. Foram trabalhos realizados por pesquisadores
estrangeiros, mas também frutos das pesquisas realizadas por alunos vinculados aos
nascentes programas de pós-graduação no Brasil. Essas pesquisas ligavam-se às
discussões sobre instituições, cidades e autonomia de governo, resultantes da
instauração de novos paradigmas historiográficos, mediante a influência de estudos
lusitanos e de revisões sobre os conceitos de poder e de Antigo Regime, aonde se
reiteram a necessidade de estudos mais aprofundados sobre o ofício de escrivão,
enquanto uma atividade proeminente em âmbito camarário.26
No último e 4º conjunto,
22 SOUSA, Avanete Pereira de. Poder político local e vida cotidiana: A Câmara Municipal da Cidade de
Salvador no século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 1996. p.60. 23
REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. A Câmara Municipal de Vila Rica e a consolidação das elites
locais, 1711-1736. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. São Paulo: USP, 2015. p. 42. 24
PORTUGAL. Ordenações Afonsinas. Ed. Fac-símile. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998;
Ibidem. Ordenações Manuelinas. Ed. Fac-símile. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984;
Ibidem. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. 25
VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História Geral do Brasil: Antes da sua separação e
independência de Portugal. vol. 1. 9. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975; ABREU, Capistrano de.
Capítulos de História Colonial, 1500-1800. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1988; FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato
político brasileiro. 3. ed. Porto Alegre: Globo, 2001; PRADO JR., Caio. Formação do Brasil
Contemporâneo. 23. ed. 7ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1942; HOLANDA, Sérgio Buarque de.
História geral da civilização brasileira. v. 11. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1993. 26
SOUSA, loc. cit.; SOUZA, George Felix Cabral de. Os Homens e os Modos da Governança. A
câmara Municipal do Recife no século XVIII. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2002; CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul:
governança e poder local no Sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) -
24
decorrente do anterior, tomam-se parte às pesquisas acadêmicas – resumos, artigos,
monografias, dissertação e teses – que se debruçam sobre o cotidiano administrativo de
algumas instituições locais, enfatizando cargos e/ou ofícios existentes em seu interior,
neste complexo, as referências aos escrivães das câmaras adquirem certo relevo, mas
figuram ainda em parcos estudos, visto que aqueles trabalhos detêm-se a analisar e
discutir cargos, ofícios, funções e indivíduos que os ocupavam, considerados de maior
prestígio para a política27
, para a justiça28
e para a economia local29
.
O ofício de escrivão da câmara caracterizou-se por seu prestígio perante uma
sociedade majoritariamente iletrada e inculta, o que os fez distinguirem-se não somente
do restante da população, como também daqueles que estavam situados em seu próprio
nível econômico e social, ou até mesmo acima destes. Apesar de estarem subordinados
aos demais oficiais camarários – como aos juízes ordinários, aos vereadores e aos
procuradores –, como se evidencia nas Ordenações Filipinas (1603-1917), tanto do
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014; LISBOA, Breno Almeida Vaz. Poder e arrecadação
de impostos na América portuguesa: A administração de contratos pela Câmara Municipal de Olinda
(1690-1727). In: Revista de História (Rio de Janeiro), Dossiê Câmara Municipal: fontes, formação e
historiografia do poder local no Brasil Colônia e Império, ano 5, v. 1, n. 1, 2014. p. 19-41; LEMES,
Fernando Lobo. Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás: Controle sobre a vida e os espaços da cidade.
In: Revista de História (Rio de Janeiro), loc. cit. p. 42- 68; OLIVEIRA, Pablo Menezes. As câmaras em
Minas Gerais no século XVIII: Entre enquadramentos administrativos e desventuras tributárias. In:
Revista de História (Rio de Janeiro), loc. cit. p. 221-250; DIAS, Thiago Alves. Comércio e câmaras:
Regulamentação e vigilância. In: Revista de História (Rio de Janeiro), loc. cit., p. 161. SOUZA,
Williams Andrade. O bom governo da municipalidade: Notas sobre a Câmara Municipal de Recife e sua
organização para a administração da cidade (1829-1849). In: Revista de História (Rio de Janeiro), loc.
cit. p. 201-220. 27
MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Magistrados a serviço do Rei: A administração da justiça e os
ouvidores gerais na comarca do Rio de Janeiro (1710-1790). Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013; Ibidem. Poder, administração e justiça: Os ouvidores
gerais no Rio de Janeiro (1624-1696). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura: Arquivo Geral da
cidade do Rio de Janeiro, 2010; ENES, Thiago. De como administrar cidades e governar impérios:
almotaçaria portuguesa, os mineiros e o poder (1745-1808). Dissertação (Mestrado em História Social) –
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. 28
PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo à sombra das Leis: Antonio Soares Brederode entre a justiça e a
criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. 29
MENEZES, Mozart Vergetti. Colonialismo em Ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na capitania
da Paraíba (1647-1755). Tese (Doutorado em História Econômica). Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2005; DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte
(1760-1821). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011.
25
ponto de vista da produção manuscrita, quanto da própria hierarquia administrativa da
instituição concelhia, os escrivães das câmaras podiam utilizar-se dos três instrumentos
subversivos que estavam ao seu alcance – a pena, a tinta e o papel – e, com isso
burlarem as decisões dos seus superiores, colocando-os diante de verdadeiros embates.
Ressalta-se, também, que o escrivão concelhio era um dos únicos oficiais
camarários que recebiam remuneração30
– visto que a atividade de porteiro era outra
função desempenhada no âmago dos concelhos municipais, cuja prática se auferia
ganhos numéricos valorativos.31
Além de perceberem valores fixos, devidos a
escrituração processada no interior das câmaras, os escrivães dos concelhos municipais
obtinham emolumentos, prós e percalços, mormente derivados do exercício de
escrituração aberto ao público da localidade, na redação de cartas, testamentos,
inventários e bilhetes, por linha manuscrita ou folha redigida.32
Acrescenta-se também
que esses oficiais, de acordo com as Ordenações Filipinas (1603-1917), deviam ainda
cobrar o que lhes eram devidos de cada tipologia documental que passasse pelo seu
crivo.33
Vale acrescentar inclusive, que o caráter patrimonial com o qual os ofícios de
escrivão das câmaras da América portuguesa foram se revestindo ao longo dos séculos
XVII e XVIII,34
havia funcionado no sentido de incrementar as fortunas e os
patrimônios pessoais de algumas famílias, caracterizando-se por sua transmissibilidade
por herança ou por doação.35
De acordo com Jeannie Menezes, as estratégias
patrimoniais para a obtenção de ofícios caracterizaram-se, por um lado, pela prestação
de serviços à Coroa e, por outro lado, pela retribuição dos mesmos favores pelo rei com
a concessão de propriedades de ofícios.36
Essa autora, através de estudo de caso,
afirmou que alguns arranjos matrimoniais na colônia tiveram como dote a propriedade
30 BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;
BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos
trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. p. 192; PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2004. Liv. I, Tít. 82, § 1º, nota 1. 31
Ibidem., Liv. I, Tít. 87. 32
Ibidem; Ibidem. Ordenações Afonsinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1998. Liv. I, Tít. 71. 33
Ibidem. 34
BICALHO, op. cit. 35
SILVA, Francisco Ribeira da. Venalidade e hereditariedade de dos ofícios públicos em Portugal nos
séculos XVI e XVII: Alguns Aspectos. In: Separata da Revista do Centro de História da
Universidade do Porto, V. 8, p. 203. 36
MENEZES, Jeannie. Ofícios de família: estratégias patrimoniais no mercado matrimonial colonial
(sécs. XVII-XVIII). Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, vol. 5, n. 9, jul. 2013. p. 132.
26
de ofícios auxiliares de justiça – como, por exemplo, os ofícios de escrivão camarário e
de tabelião público –, dos quais a autora cita o tabelionato da Cidade de Olinda e da
Vila do Recife, entre os séculos XVII e XVIII, no interior do patrimônio da família
Cardoso e Sá, por quatro gerações distintas, mas com as mesmas conotações
estratégicas em relação à funcionalidade do ofício enquanto dote de casamento37
.
Diante do exposto, verifica-se que os ofícios de escrivão das câmaras ou
concelhos das cidades e vilas reinóis e ultramarinas, espalhadas do Oriente aos rincões
da América, congregou em seu interior questões variadas, abrangentes e controversas
que, ao sabor das circunstâncias políticas e administrativas – em nível reinol, regional e
local – traduziram modos de pensar, fazer e agir de agentes sociais imbricados no
exercício do mando institucional pelo Império lusitano afora.38
Desse modo, a tipologia dos próprios ofícios refletiria a mesma estrutura
jurisdicionalista da administração ou mesmo aquilo que se tem chamado de civilização
do papel selado,39
como observa-se da configuração numérica dos ofícios na
constelação dos poderes que,
[...] Na verdade, se retirarmos do conjunto dos
oficiais dos concelhos – os almotacés (9% do total)
e os vereadores (17% do total) –, nada menos que
um terço dos restantes oficiais é constituído por
escrivães – dos quais os escrivães do público,
judicial e notas [ou escrivães das câmaras]
representam cerca de 40% – e um quinto por
juízes.40
A “civilização do papel selado” era composta, de acordo com o levantamento
efetuado por António Manuel Hespanha – para o caso de Portugal, no século XVII –,
por cerca de 24,66% dos ofícios concelhios corresponderem, percentualmente, aos
oficiais que se dedicavam a redação dos atos formais, administrativos e judiciais,
37 MENEZES, Jeannie. Ofícios de família: estratégias patrimoniais no mercado matrimonial colonial
(sécs. XVII-XVIII). Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, vol. 5, n. 9, jul. 2013. p. 132. 38
Sobre os agentes do mando institucional e os limites e possibilidades que estes conferiam as instâncias
de poder, ver SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra: política e administração na América
portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 39
HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc.
XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 268. 40
Ibidem.
27
cotidianos: os escrivães.41
Deste valor, os escrivães do público, judicial e notas, ou
simplesmente escrivães da câmara,42
representavam quase a metade – cerca de 40% –
daquele valor. Percentuais que aumentariam, significativamente, caso se pensasse no
contexto macroscópico do próprio Império, aonde a virtualidade da escrita, de acordo
com Justino Magalhães, cimentou laços políticos mais efetivos, cujo alicerce da
estrutura concelhia e da própria economia colonial assentavam-se na escrita.43
Para
António Manuel Hespanha, julgar e escrever eram, pois, as tarefas paradigmáticas da
administração oficial na Época Moderna.44
Não obstante, diante de tudo isso, o interesse em pesquisar o ofício de escrivão
da Câmara do Natal, na Capitania do Rio Grande, decorreu da constância com a qual
esses oficiais eram citados e remetidos na documentação alusiva ao período colonial da
História do Brasil, com as quais corriqueiramente deparei-me, ao longo de pouco mais
de sete meses, durante o qual participei na condição de bolsista de Ações Acadêmicas
Integradas, uma parceria entre o Departamento de História da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN) e da Reitoria dessa mesma instituição, do Projeto
“Manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino e o Rio Grande do Norte: Poder e
Cultura no espaço colonial”. No interior desse projeto, coordenado pelo Prof. Dr. Lígio
José de Oliveira Maia, coube-me a tarefa de transcrever a documentação manuscrita
avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino, sobre a Capitania do Rio Grande do Norte, no
período que foi do início do século XVII até o primeiro vinteno do século XVIII.
Ressalta-se que essa documentação estava organizada e encontrava-se já digitalizada
pelo Projeto Resgate Barão do Rio Branco, como uma das atividades comemorativas em
alusão ao aniversário de quinhentos anos do descobrimento do Brasil. Nesse corpus
41 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc.
XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 268. 42
BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;
BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos
trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. p. 192. 43
MAGALHÃES, Justino. Escrita e municipalismo na transição do Brasil colônia e na ideação do Brasil
independente. Revista de História Regional, vol. 19, n. 2, 2014. p. 302. 44
HESPANHA, op. cit.
28
documental encontravam-se diversas cartas, requerimentos, provisões e alvarás régios
que versavam sobre os escrivães da Câmara do Natal, mormente envolvidos em
querelas com outros agentes do poder, em nível local. Tal fato impeliu-me a empreender
a pesquisa sobre quem eram esses homens que, esporadicamente, foram capazes de
colocar limites e de estabelecer relações conflitivas e de disputa, ora centrífugas, ora
centrípetas, aos projetos macro da Coroa portuguesa para as terras americanas,
sobretudo na Capitania do Rio Grande.
Além dos documentos manuscritos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino
de Lisboa referente à Capitania do Rio Grande do Norte, utilizou-se também os que se
remetiam as Capitanias de Pernambuco, Paraíba e Ceará (séculos XVII-XVIII). Fez-se
uso também dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-
1815); dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1760);
dos documentos presentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (séculos XVII-
XVIII); dos registros do Livro de Batismo de Cunhaú, São José de Mipibú,
Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714); dos registros dos Livros de Casamento
e óbito da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785); das
Cartas de Sesmarias presentes na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso
Brasileiro); dos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional; e do vol. 9 do Livro de
Registros de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). Esses treze
conjuntos documentais foram analisados por meio do método de cruzamento intensivo
das fontes, cuja premissa básica foi o método indiciário e onomástico, de Carlo
Ginzburg.45
Desse modo, observou-se com o adensamento da pesquisa na documentação,
assim como na bibliografia, que o cerne da questão não estaria apenas nos homens que
haviam ocupado o ofício de escrivão concelhio do Natal, mas que situações similares
àquelas, envolvendo os escrivães camarários e outros agentes do poder régio,
espalhavam-se de um extremo a outro da América portuguesa, propiciado pelo padrão
de entendimento das relações políticas e valorativas, advindos do Antigo Regime
português, que serviu de elemento estruturante das relações sociais na América lusa.
Soma-se isso, a própria compreensão do oficialato administrativo como uma entidade
45 Utilizando-se de princípios de outras ciências para enriquecer a análise histórica, ver GUINZBURG,
Carlos. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. CAROTTI, Frederico (trad.). São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado
historiográfico. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
29
que gozava de autonomia de base jurisdicionalista que, de modo geral, também se
impôs a pretensa centralização régia, dado o caráter de tutela de um ofício sobre outro.
Decorre de tudo isso a necessidade de se pesquisar e compreender os limites e o alcance
das atividades desenvolvidas pelos escrivães da Câmara do Natal, sobretudo quando se
atentou para o caráter de intermediários nas concêntricas relações de comunicação
estabelecidas entre o reino – centro – e a Câmara do Natal – periferia –, bem como entre
esta e as porções mais distais que compreendiam – excentricamente em relação à Natal
–, o restante da Capitania do Rio Grande, como se visualizou adiante.
A pesquisa sobre os escrivães da Câmara Municipal do Natal tornou possível,
ainda, a compreensão dos padrões societários do Antigo Regime europeu que vigeram
na Capitania do Rio Grande, os quais foram trasladados para as possessões d’além-mar
com os homens, as mulheres e as instituições, em suas travessias pelo Atlântico, no
decorrer dos séculos XVI e XVIII, os quais, mormente, formaram a elite local da
Capitania do Rio Grande. Salienta-se que as estratégias de promoção e diferenciação
social que inúmeros indivíduos haviam utilizado, distinguiram-se de um local para outro
nas possessões lusas na América. Contudo, fez-se necessário entender as
particularidades que haviam envolvido as diferentes porções dos domínios lusos pelo
ultramar, bem como de suas elites coloniais. Para o caso dos escrivães concelhios da
Cidade do Natal, como também visualizado na historiografia e apontado por Roberta
Giannubilo Stumpf, as trajetórias individuais foram similares, ou seja, mesmo que as
localidades aonde foram traçadas fosse geográfica, social e historicamente distintas, foi-
se possível observar algumas particularidades.46
Desse modo, de acordo com Adriano
Comissoli, seria devido à diversidade social e cultural que entremeou a realidade das
diversas câmaras espalhadas pelo além-mar, que partilharam distintas realidades coevas
pela América portuguesa afora, isso são fatores que ainda impulsionam e movimentam a
investigação dos perfis sociais dos ocupantes de ofícios concelhios.47
Os escrivães camarários eram, assim, os detentores da habilidade da escrita e,
portanto, os intermediários do processo comunicativo48
que interligava o “centro” –
46 STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações
de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2009. p. 53. 47
COMISSOLI, Adriano. “Tem servido na governança, e tem todas as qualidades para continuar”: perfil
social dos oficiais da Câmara de Porto Alegre (1767-1828). In: Topoi, v. 13, n. 25, jul./dez. 2012, p. 2. 48
HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc.
XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 269.
30
reino – e a “periferia” – ultramar. Era através da escrita que o centro se comunicava
com a periferia, instruindo as autoridades que estavam distantes da fonte do poder em
seus modos de procederem para a efetivação das vontades de El’ Rey, cujo principal
obstáculo era a distância geográfica, mas cuja presença se transmutava por meio de uma
representação escrita.49
Nessa medida, escrever era um ato administrativo, mas,
sobretudo político, na medida em que envolvia interesses, segregava e hierarquizava
indivíduos, mas que também mobilizava, conduzindo a enfrentamentos e ao
estabelecimento de interesses individuais e coletivos. Soma-se a isso, como assevera
Justino Magalhães, que os escrivães eram oficiais sempre presentes, acompanhando os
detentores do poder, agindo em representação, ou sendo eles próprios autoridades
delegadas.50
Foi frente à imprescindível necessidade de se estabelecer um canal efetivo de
comunicação entre a Capitania do Rio Grande – periferia – e o reino – centro – que, em
1613, El’ Rey ordenou por regimento expedido a Gaspar de Sousa, que viria ocupar o
Governo Geral do Estado do Brasil, que dotasse a referida Capitania de uma câmara e
de seus respectivos oficiais.51
No rol de ofícios que foram criados para servirem na
câmara, citam-se, dentre outros, o de escrivão concelhio.52
Em suma, as balizas temporais adotadas nessa pesquisa, os anos entre 1613 e
1759, justificam-se na medida em que caracterizaram, respectivamente, o
estabelecimento de “modos de governo” na Capitania do Rio Grande, quando El’ Rey
ordenou, por regimento expedido a Gaspar de Sousa, em 1613, que viria a ocupar o
posto de governador do Estado do Brasil, que fossem criados na Capitania do Rio
Grande uma câmara e seus respectivos oficiais, dentre os quais o primeiro ofício de
escrivão daquele concelho. Findar-se-á a análise no ano em que, por ordem de D.
Sebastião José de Carvalho e Melo – o Marquês de Pombal –, elevou-se os cinco
aldeamentos missionários indígenas existentes na Capitania do Rio Grande – Guaraíras,
Guajirú, Apodi, Mipibú e Igramació – à categoria de vilas, consubstanciando, com isso,
na emergência de cinco novas câmaras na referida Capitania, cada uma contando com
os seus respectivos escrivães camarários, os quais possuíam outro perfil social, político
49 MAGALHÃES, Justino. Escrita e municipalismo na transição do Brasil colônia e na ideação do Brasil
independente. Revista de História Regional, vol. 19, n. 2, 2014. 50
Ibidem., p. 303. 51
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I, p. 416. 52
Ibidem.
31
e econômico, visto que, quando da criação das primeiras vilas, os Mestres das Escolas
dos índios tinham sido escolhidos para exercerem o ofício de escrivão camarário.53
Neste trabalho, utilizou-se como fundamento jurídico legal, para a
compreensão do exercício do ofício de escrivão da Câmara do Natal, as Ordenações
Filipinas (1603-1917). Visto que no momento da instalação da câmara dessa cidade, em
1613, e, com isso, da nomeação de seu primeiro escrivão concelhio, essas prescrições já
estavam em vigor desde – pelo menos teoricamente – 1603. O objetivo geral desta
pesquisa remeteu-se a analisar a atuação dos escrivães e seu papel na administração do
Império Português, a partir da realidade da Capitania do Rio Grande, bem como a
função de intermediários nas concêntricas relações entre o reino – centro – e a Capitania
do Rio Grande – periferia –, no contexto da administração do Império. Para isso,
pretendeu-se compreender o papel e a representatividade dos escrivães na sociedade
colonial através da escrita – Lugar Social –; reconstituir os procedimentos
administrativos dos escrivães, seu comportamento social e seu perfil institucional – as
Práticas –; e, por fim, discutir os problemas de jurisdição, alçada e conflito entre os
escrivães e outros funcionários da administração portuguesa – Relações de
Poder/Espaço jurisdicional.
Desse modo, a fim de compreender o papel e a representatividade dos escrivães
camarários para a sociedade colonial, havia se procedido no primeiro capítulo, “Os
escrivães camarários nas Ordenações Filipinas”, identificação das atribuições – alçadas,
competências e rendimentos – que cabia, segundo a legislação, aos atores sociais que
eram providos no ofício de escrivão camarário. Para isso, se havia utilizado das
Ordenações Filipinas (1603). Teoricamente, este corpus legislativo foi pensado à luz do
paradigma jurisdicionalista de Antigo Regime. Nesse capítulo, confrontaram-se as
práticas institucional-administrativas dos escrivães concelhios da Câmara do Natal, com
as prescrições do regimento desse ofício, expresso pelas Ordenações Filipinas (1603),
53 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o
diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2005, p. 478-479.
32
por meio da análise dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal e
dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal. Fundos documentais
esses manuscritos diretamente pelos escrivães camarários do Natal, no período que foi
de 1659 até 1759. Nesse capítulo, pôde-se visualizar, ainda, o estabelecimento, por meio
do vai e vem da correspondência, bem como pela manuscrição de diversas tipologias
documentais pelos escrivães camarários do Natal, de vias institucionais da comunicação
administrativa, nos níveis intra e intercapitanias, mas também transcontinental. A partir
disso, discutiu-se o papel dos escrivães como intermediários ou broker’s nas relações de
comunicação pelo Império da Câmara do Natal com outros espaços sociais e
administrativos, as quais haviam contribuído para forjar um sentido de unicidade e
coesão as dispersas porções da monarquia portuguesa.
A fim de esboçar o perfil social dos escrivães da Câmara da Cidade do Natal,
na Capitania do Rio Grande, entre os anos de 1613 a 1759, no segundo capítulo,
intitulado de “Homens de préstimos e consideráveis cabedais”, analisou-se como os
indivíduos que desempenharam o ofício de escrivão da Câmara do Natal adquiriram,
por meio do exercício deste, bens materiais e simbólicos, ascendendo socialmente na
escala hierárquica do Antigo Regime, formando um grupo social específico, que havia
aliado poder e conhecimento para a obtenção de prestígio e riqueza durante e após o
exercício da escrivania da Câmara da Cidade do Natal. Bem como correlacionando, por
meio da tabulação de dados advindos dos “Livros de Cartas e Provisões do Senado da
Câmara de Natal” quem eram esses indivíduos que assumiram a escrivania da Câmara
do Natal, de que estratos sociais provieram e o que fizeram para receber tal mercê,
percebendo-os enquanto elementos chave para o funcionamento da engrenagem
burocrática local, a fim de analisar a atuação dos escrivães diante das formas
constitucionais, entendendo o papel que deviam desempenhar na administração do
Império. Para isso, utilizou-se da análise e do cruzamento de três diferentes fundos
documentais, todos diretamente redigidos pelos escrivães camarários no decorrer do
referido recorte temporal. O primeiro remete-se aos Livros de Cartas e Provisões do
Senado da Câmara do Natal, a partir do qual se identificou: os nomes dos escrivães, o
ano do provimento, as ocupações, quem os havia nomeado, as patentes militares ou das
companhias de ordenanças que receberam quando do exercício da escrivania e
concessões de chãos de terras, pela Câmara da Cidade do Natal, durante o exercício no
referido ofício. Já o Livro de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal,
33
segundo conjunto, possibilitou a identificação de outras ocupações desempenhadas
pelos escrivães desse concelho. O terceiro conjunto documental formado pelo banco de
dados da Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro), mediante o qual
identificou os escrivães que haviam recebido concessões de sesmarias, se possuíam
gados. O quarto conjunto seria constituído pelos registros de óbitos da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário, através dos quais se pôde verificar a posse de escravos pelos
agentes que exercerem a escrivania da Câmara do Natal.
No terceiro capítulo “A escrivania da câmara do natal: concessões,
provimentos e acumulação de ofícios”, discutiu-se a questão da venalidade do ofício de
escrivão dessa edilidade, bem como a possibilidade de controle desse ofício por uma
determinada família. Em seguida, trouxe-se o exemplo da família Rodrigues de Sá, que
havia monopolizado os provimentos e o exercício desse ofício, através de uma
procuração de plenos poderes, que havia sido concedida pelo verdadeiro proprietário.
Por fim, analisou-se também a trama do estabelecimento de redes familiares e
clientelares, cujo principal dispositivo de cooptação tenha sido a escrivania da Câmara
do Natal, entendida por àquela família, bem como as demais que a ela se integrou por
meio dos casamentos ou dos apadrinhamentos, como um ofício estratégico, em nível
institucional local.
Ao fim e ao cabo, o quarto capítulo, intitulado de “Um maligno escrivão:
Bento Ferreira Mouzinho sob o reinado de D. João V (1715-1755)”, objetivou-se
discutir os limites e as possibilidades de um reinol que havia fugido da prisão que se
encontrava, no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, acusado de assassinato, para a
Capitania do Rio Grande, onde ingressou no Concelho Municipal do Natal no ofício de
escrivão dessa edilidade, permanecendo no desempenho dessa escrivania durante
dezessete anos, ou seja, de 1715 até 1732, colocando limites na atuação de vários
capitães-mores, ao utilizar-se da escrita dentro da Câmara do Natal, como um
mecanismo político de negociação com Lisboa. Assim, seria por meio do desempenho
desse ofício, que Bento Ferreira Mouzinho conseguiria ascender na escala hierárquica
da sociedade estamental do Antigo Regime, utilizando-se de todas as estratégias
possíveis da cultura política dessa período, conseguindo tornar-se provedor da Real
Fazenda do Rio Grande e, mais tarde, quando foi expulsos dessa capitania para a Vila
de Goiana, na vizinha Capitania de Itamaracá, onde tornar-se-ia proprietário do ofício
de juiz de órfãos, mas onde também incorreria de maneira indébita, cometendo diversos
34
latrocínios. A análise dessa trajetória possibilitou-nos pensar, ainda, o universo mental
da sociedade de Antigo Regime, bem como na forma que Coroa portuguesa lidava com
as forças locais para assegurar seu domínio de mando, algumas vezes fazendo-se
violenta e taxativa, noutras apenas contemporizando, o que nos possibilita compreender,
a partir do caso emblemático de Bento Ferreira Mouzinho a própria natureza do mando
institucional da Coroa Lusa na Capitania do Rio Grande, na primeira metade do século
XVIII.
35
CAPÍTULO I – OS ESCRIVÃES CAMARÁRIOS: Regimento, Práticas,
emolumentos e fluxos da comunicação institucional
“[...] não sei como não treme a mão a todos
os ministros de pena [...]. Eles são os que, com um
advérbio, podem limitar ou ampliar as fortunas; [...]
com uma cifra podem adiantar direitos e atrasar
preferências; [...] com uma palavra, podem dar ou
tirar o peso à balança da justiça”.
(Padre Antônio Vieira, Sermões, 1655).1
O Padre Antônio Vieira em seu Sermão da Terceira Dominga da Quaresma
(1655) expôs, sabiamente, a importância e os perigos que cercavam os oficiais que
manipulavam a tríade de instrumentos mais nocivos, para a sorte ou para o azar, de
qualquer homem no alvorecer e passar da Idade Moderna: a pena, a tinta e o papel.
Indubitavelmente, aquela comunicação havia se processado mediante conhecimento
derivado da própria vivência daquele padre, pois era filho de Cristóvão Vieira Ravasco
que durante muito tempo havia servido a Coroa lusa como escrivão de uma das seções
da Casa de Suplicação.2 Ressalta-se que Padre Vieira havia chamado a atenção em seu
sermão à influência desfrutada pelos escrivães em três das sete grandes esferas
funcionais da administração,3
que fossem a Coroa, a Fazenda e a Justiça,
respectivamente, às quais o padre acrescentava, posteriormente, a igreja. Reverbera-se
que essa discussão transcendesse o imediatismo do plano meramente administrativo da
Coroa, pois se situava, possivelmente, no amplo domínio teológico que Antônio Vieira
detinha.4
Todavia, se se toma aquela asserção em sentido literal, percebe-se que sua
elucidação enfatizava principalmente o caráter “danoso” da atuação dos homens que
haviam assumido as escrivanias dos diversos órgãos políticos, administrativos e/ou
1 VIEIRA, Padre Antônio. Sermão da Terceira Dominga da Quaresma (1655). In: Ibidem. Sermões
(Parte 1). Ministério da Cultura: Fundação Biblioteca Nacional. 2 VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: Jesuíta do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 17-24.
3 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 283. 4 SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século
XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 11.
36
religiosos que compunham o Império. Na base disso, estava o poder que esses oficiais
detinham sobre os próprios escritos, e, com isso, a possibilidade de os manipularem
conforme a suas vontades. No entanto, esta concepção negligenciava que as formas e/ou
estilos de procederem daqueles oficiais não ocorriam de modo aleatório – ou a depender
das pretensões de algum oficial hierarquicamente superior – 5 nas instituições nas quais
desempenhavam seus ofícios. A atuação dos escrivães, de modo geral, e dos escrivães
camarários em particular, no tocante as suas atividades e competências no cotidiano
administrativo, foram orientadas do ponto de vista normativo, ao longo de mais de
quatrocentos anos, pelos diversos conjuntos jurídicos que haviam servido de base para a
regulamentação da vida em sociedade no Portugal do Antigo Regime6 e, posteriormente
nas possessões ultramarinas.
O conjunto de leis que se remetia aos ofícios de escrivão,7 desempenhado nos
mais distintos órgãos da administração imperial, objetivava lançar as bases para a
viabilização de um modelo administrativo que fosse calcado no sistema escrito,
escolhido como o principal mecanismo da comunicação política da Época Moderna. Ao
mesmo tempo, aquela legislação processava o enquadramento do perfil social dos seus
principais responsáveis, mediante uma regulamentação que restringia até mesmo o
acesso dos indivíduos àqueles ofícios. Desse modo, o sistema jurídico e, nesse caso, de
modo mais específico as Ordenações Filipinas, tinha como objetivo criar, manter e
alargar uma padronização para a comunicação política, a fim de sustentar e facilitar o
entendimento entre os polos envolvidos, os quais estavam situados a montante ou a
jusante do intrincado sistema político-administrativo do Antigo Regime, dos quais, em
última instância, possivelmente, estivesse El’ Rey.8
Salienta-se que as Ordenações não haviam se constituído como a única via
jurídica a orientar as atividades administrativas, as alçadas, as competências e os
5 António Manuel Hespanha havia afirmado que não existia uma sistemática de hierarquias entre os
oficiais de mesma instituição, mas que a atuação desses agentes pautar-se-ia em um caráter de tutela entre
cada um dos ofícios. Para saber mais, ver HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan:
Instituições e poder político, Portugal, século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. 6 FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime
nos Trópicos: A dinâmica Imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010. 7 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004; Ibidem. Ordenações Afonsinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1998; Ibidem. Ordenações Manuelinas. Ed. Fac-símile. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 8 HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:
Ler História, n. 8, 1986.
37
rendimentos da ampla miríade de cargos e ofícios existentes pelo Império português na
Era Moderna. As Ordenações eram apenas mais uma das inúmeras alternativas
existentes e qualquer análise dos ofícios que compunham a máquina administrativa do
Império, podem sofrer flexibilizações significativas quando se atenta para o casuísmo,
possível em domínios tão amplos e dispersos como os da Coroa lusa. A partir disso, se
pode entender que os estudos sobre um mesmo ofício em diferentes porções físicas e
temporais do Império português oferecem resultados distintos, pois os capitais sociais e
econômicos atribuídos àqueles que desempenhavam o ofício de escrivão camarário,
variavam conforme a importância e o estatuto político de cada terra onde esses ofícios
fossem desempenhados.
Assim, a legislação aplicada ao padrão bipolarizado da comunicação escrita,9
no qual o escrivão camarário se situava na condição de mediador,10
almejava além da
funcionalidade do sistema, orientá-los no desempenho de suas práticas cotidianas.11
Algo que se tornava possível, sobretudo por meio de uma regulamentação escrita, a qual
todos os escrivães camarários devessem observância. Salienta-se que a legislação, neste
caso concernente aos escrivães das câmaras estipulava vários preceitos, que iam desde
as formas de provimento para àqueles ofícios, passando pela definição das alçadas e
competências, até as obrigações devidas aos mesmos. Pontuavam, ainda, diversas
restrições àqueles oficiais e impunham, habitualmente, os valores provenientes de seus
emolumentos, que geralmente eram constituídos por valores percebidos pelos escrivães
além do ordenado – que era fixo e anual, os valores auferidos dependiam também de
cada terra, inclusive se deviam ou não recebê-los –, mas não apontava nada sobre as
9 HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:
Ler História, n. 8, 1986. 10
António Manuel Hespanha coloca no seu texto “Centro e Periferia nas estruturas administrativas do
Antigo Regime”, que a adoção da escrita, como uma forma política e administrativa, funcionou também
no sentido de promover a discriminação social dos indivíduos, posto que havia operado uma clivagem no
meio social que iria caracterizar toda a época moderna: a distinção entre alfabetizados e analfabetos.
Assim, diante da mensagem escrita, os primeiros eram marginalizados das decisões do processo político e
administrativo, passando a dependerem de mediadores que detivessem certo cabedal cultural,
materializado no fato de saberem ler e escrever. Desse modo, utilizar-se-á, aqui, o conceito de mediadores
para se compreender o alcance e a amplitude do próprio ofício de escrivão cuja existência, segundo
aquele autor, seria sintomática, do ponto de vista estrutural, como um elemento que diferenciava dois
sistemas político-administrativos que se contemporizavam: a sociedade patriarcal-comunitária e o sistema
concelhio. Para saber mais, ver Ibidem., p. 47. 11
O termo “oficial” ou “oficiais” será aplicado neste texto para designar os funcionários que faziam parte
do aparelho político-administrativo da Coroa portuguesa na Época Moderna, tendo como base as
referências que sobre estes constam dos três conjuntos jurídicos que em análise. Para saber mais ver:
Ibidem. Às Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político Portugal (séc. XVII). Coimbra: Livraria
Almedina, 1994.
38
propinas – presente ou dom em dinheiro ou espécie –.12
As Ordenações Filipinas
tentavam controlar também as assinaturas daqueles oficiais nas várias tipologias
documentais que passassem por seus crivos.13
Desse modo, neste capítulo, analisar-se-á o significado que os escrivães
concelhios foram assumindo no interior das câmaras municipais na Época Moderna,
através das determinações sobre suas práticas, nomeadamente, a partir da análise das
Ordenações Filipinas (1603). A partir disso, buscar-se-á compreender o papel que os
escrivães deviam, do ponto de vista jurídico, desempenharem na administração do
Império português e, a medida do possível, confrontar-se-á com essas prescrições as
práticas que foram levadas a cabo pelos escrivães da Câmara do Natal, entre os séculos
XVII e XVIII, a fim de que se possa perceber os limites da aplicação das determinações
jurídicas e possíveis contravenções a essas normatizações.
1.1 As Ordenações Filipinas (séc. XVII-XVIII)
As Ordenações Filipinas (1603-1917) foram um dos principais códigos
jurídicos de Portugal responsável pela organização das esferas da administração, em
assuntos relativos à Fazenda, à Guerra, à Consciência e aos negócios do ultramar14
e,
sintomaticamente, da própria justiça. A publicação desse conjunto havia acontecido em
um momento de solidificação dos domínios portugueses do Oceano Índico ao Atlântico,
e se havia voltado principalmente para normatizar as atribuições do poder, em nível
local, materializados pelas câmaras municipais espalhadas pelas cidades e vilas do
Império. Com base nesse conjunto de leis, se apresentava as competências e as alçadas
dos escrivães camarários, bem como outras características que haviam demarcado esse
ofício. Na sequência, descreveram-se os principais títulos elencados nas Ordenações
12 STUMPF, Roberta Giannubilo. Dos homens que serviam entre papéis e letras. Escrivães das câmaras
na América portuguesa. NUEVO MUNDO-MUNDOS NUEVOS, 2017, nota 7, p. 7; PORTUGAL.
Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. Liv. I, Tít. 71. 13
PORTUGAL. op. cit. 14
De acordo com António Manuel Hespanha, entre os séculos XVI e XVIII, as atividades relacionadas ao
poder apareciam em sete grandes zonas funcionais, as quais se distribuíam consoante os objetivos de cada
instituição pensadas como partes menores do corpo social mais amplo, são elas: “Justiça”, “Estado”,
“Guerra”, “Graça”, “Consciência”, “Fazenda” e “Governo”. HESPANHA, António Manuel. Às
Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político Portugal (séc. XVII). Coimbra: Livraria Almedina,
1994. p. 283.
39
sobre as práticas administrativas do ofício de escrivão da câmara, bem como as diretivas
que apontavam para a produção da escrita oficial do Império desempenhada por esses
oficiais.15
Antes disso, pontua-se algumas considerações acerca do alcance e dos limites
das Ordenações Filipinas, a fim de que se possa compreender o papel político que havia
desempenhado para a administração portuguesa.
Nesse sentido, do ponto de vista histórico, as Ordenações Filipinas foram
provenientes de uma série de compilações processadas ainda no final da Idade Média e
início dos tempos Modernos que havia resultado na edição dos códigos anteriores como,
por exemplo, das Ordenações Afonsinas e, seguidamente, das Ordenações Manuelinas.
Dito isto, ressalta-se que o sistema político-administrativo no momento da edição das
Ordenações Afonsinas, tentava sobrepujar os interesses da Coroa aos sistemas político-
administrativos locais, cujo mecanismo de ação fosse implementar no reino o poder do
rei e dos órgãos políticos da administração palatina.16
Contudo, reverbera-se, de acordo
com António Manuel Hespanha, que ainda no final do século XVIII, “a coroa
contentou-se, por um lado, com um poder simbólico (esse bem definido) sobre o reino;
e por outro, com o controle das fronteiras [...] como locais de cobrança dos tributos mais
decisivos na estrutura financeira do reino”.17
Desse modo, ainda segundo António Manuel Hespanha, poder-se-ia
compreender que os corpos legislativos não foram pensados no sentido de substituir o
sistema local de organização política e administrativa, mas fornecer elementos que
possibilitassem seu controle, reiterando a ideia de autogoverno.18
E isso abria margem
para a coexistência dos três níveis da administração – palatina, concelhia e patriarcal-
comunitária –,19
com suas próprias formas e tecnologias político-administrativas.
Foi nesse contexto que o rei havia tomado, entre outras iniciativas, a adoção do
Direito Romano como a base legal de sustentação da autoridade régia.20
Esse ato
culminava não somente na adesão àquele corpo legislativo, como também na tentativa
15 A ideia de “escrita oficial”, enquanto produto da atuação tanto dos escrivães, quanto dos tabeliães,
baseia-se no fato de que a sua atividade, nos diversos órgãos da administração, constituía-se,
fundamentalmente, na produção escrita – ou manuscrita - da documentação oficial – cartas, alvarás,
requerimentos, consultas - que constituía a comunicação política. 16
HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:
Ler História, n. 8, 1986. p. 55. 17
Ibidem, p. 58. 18
Ibidem, p. 59. 19
Ibidem, p. 58. 20
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português: fontes de direito. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. p. 154.
40
de seu genuíno predomínio21
para a resolução das diversas querelas internas –
especialmente inerentes à administração –, cuja finalidade era instituir um modelo
administrativo pautado na tecnologia “escritural”,22
que permitia, com isso, o
alargamento progressivo do âmbito espacial do poder, “vencendo o tempo, criando uma
memória administrativa mais certa e comprovável [...] e um novo recorte do caso sub
judice”.23
Ressalta-se que a utilização do Direito Romano em Portugal, não sobreveio
subitamente, mas como uma ação progressiva,24
intensificada no decorrer do tempo,
subsistindo, concomitantemente, com outros modelos legislativos, uns mais específicos
que outros, como, por exemplo, o direito canônico, além do direito comum, os
foraleiros e as próprias leis costumeiras.25
Reverbera-se que até os finais do Antigo
Regime, o Direito Romano teve de transigir-se com as práticas políticas tradicionais das
comunidades camponesas.26
Desse modo, a doutrina jurídica, expressa no corpo das
Ordenações Filipinas, permite compreendê-las como uma das inúmeras vias de
informação da realidade social, pois haviam sido adotadas em momento específico, mas
politicamente significativo, por agentes sociais que carregavam estratégias de ações e
pretensões e que pertenciam a grupos característicos da sociedade de Antigo Regime,
que detinham extraordinário peso político.
Nesse sentido, pode-se afirmar que as Ordenações Filipinas resultavam da
reunião da vasta produção legislativa que havia existido no Portugal tardo-medieval,27
e
que adveio do caráter que o rei progressivamente foi assumindo no desempenho da
função legislativa, a quem coubesse a responsabilidade pela produção normativa.28
Os
primeiros passos para a compilação das chamadas “leis fundamentais”, as quais
correspondiam à parte primeva e expressiva das Ordenações Filipinas, havia ocorrido
21 Gustavo Cabral aponta, historicamente, que “[...] o Direito Romano seria o direito do Sacro Império, e
o direito deste também, por consequência, seria romano. [...], seria o direito da comunidade cristã
universal, já que o Império seria o braço temporal da Respublica Christiana. [...] valeria onde quer que
houvesse um reino cristão [...]”. Para saber mais, ver CABRAL, Gustavo César Machado. Direito
natural e iluminismo no direito português do final do Antigo Regime. Dissertação (Mestrado em
Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011. p. 59. 22
HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:
Ler História, n. 8, 1986. p. 59. 23
Ibidem., p. 47. 24
CABRAL, op. cit., p. 59. 25
Ibidem., p. 59-60. 26
HESPANHA, op. cit., p. 60. 27
CABRAL, op. cit., p. 62. 28
Ibidem., p. 60.
41
ainda no século XV – apesar da edição de muitas dessas leis datarem do primeiro
quartel do século XII –,29
com início no reinado de D. João I e o término com D. Afonso
V, que havia “emprestado” seu nome a primeira compilação de leis de Portugal do
período Moderno, cuja vitalidade e eficácia perduraram por pouco mais de 70 anos – as
Ordenações Afonsinas –,30
e que haviam precedido as Ordenações Manuelinas e as
Ordenações Filipinas, respectivamente.
Atenta-se que as Ordenações Filipinas podem ser compreendidas como
símbolos da integração social. Pois, de acordo com Pierre Bourdieu “[...] os símbolos
são os instrumentos por excelência da integração social: enquanto instrumentos de
conhecimento e de comunicação”.31
Ressalta-se que esse conjunto jurídico havia agido
em sentido duplo. Primeiro, por haver se caracterizado como instrumento de
conhecimento, promovendo a difusão de formas específicas e terminantemente pré-
determinadas de fazer, agir, pensar e reproduzir de todos os cargos e ofícios da
monarquia portuguesa; e, em segundo lugar, distinguiram-se como um dos principais
instrumentos da comunicação política e administrativa institucional, subsidiando e
conformando às práticas do oficialato em suas formas de proceder, frente a oficiais que
desempenhavam atividades nas mesmas instituições administrativas, ou mesmo situadas
tanto abaixo, quanto acima da engrenagem burocrática institucional do Império.
No entanto, salienta-se que essa posição de destaque das Ordenações Filipinas
não excluísse além dos casuísmos, o aprendizado que era repassado pela força dos
costumes locais, entre os próprios oficiais da escrita. Desse modo, as Ordenações
tiveram como objetivo precípuo servirem de modelo, ou seja, como instrumentos de
conhecimento e de comunicação, ao estabelecerem um consenso mínimo sobre o
sentido da administração lusa em suas possessões reinóis e ultramarinas, mas que havia
contribuído para a reprodução da ordem social.32
Reverbera-se que nem todas as
câmaras do Império possuíssem a sua disposição um exemplar das Ordenações e que
29 As Cortes de Lamego são compreendidas como uma invenção histórica que tinha como objetivo
fundamentas, do ponto de vista ideológico, o fim do domínio espanhol e a restauração portuguesa de
1640. De acordo com Gustavo Cabral mesmo que este acontecimento tenha sido fictício, as prescrições
dela provenientes foram aceites em Portugal e em seus domínios até a adoção da constituição, em 1822.
Para saber mais, ver CABRAL, Gustavo César Machado. Direito natural e iluminismo no direito
português do final do Antigo Regime. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011. p. 62. 30
Ibidem. 31
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. TOMAZ, Fernando (trad.). Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1989. p. 10. 32
Ibidem.
42
nesse caso as leis extravagantes e a força dos costumes locais acabavam por se
transformarem em instrumentos que também orientavam as suas competências e
alçadas.
No entanto, em alguns casos, as Ordenações Filipinas forneceram parte do
tônus da cultura política e administrativa que havia prevalecido pelo Império português
no Antigo Regime. Essa cultura era responsável por reunir e conformar as práticas
sociais dos cargos e ofícios que existissem pelo Império. As Ordenações possuíam,
ainda, a função de intermediar e, ao mesmo tempo, de servir de instrumento de
clarificação das distintas atribuições dos integrantes do oficialato administrativo,
mesmo que o caráter de tutela ficasse encoberto diante dos direitos e dos privilégios
garantidos aos oficiais em seus provimentos e pela inerente complexidade do aparato
administrativo, com sobreposição de deveres e de jurisdições que, não raro, suscitavam
em longas querelas.
Isso pode ser explicado, de acordo com Pierre Bourdieu, pois era na condição
de “[...] instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento
que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de
imposição ou de legitimação da dominação”.33
Nesse sentido, as Ordenações haviam
funcionado enquanto instrumentos de comunicação e de conhecimento. Soma-se a isso,
o fato de que os efeitos ideológicos consistiam basicamente na imposição de sistemas de
classificação política, grosso modo, disfarçados em nomenclatura de classificação
científica como, por exemplo, religiosas e mesmo jurídica. 34
E isso havia sido delegado
as Ordenações Filipinas, enquanto uma taxonomia jurídica, cuja principal finalidade foi
estabelecer o ordenamento dos corpos de oficiais e da sociedade em geral, sobretudo
daqueles que possuíssem ações desviantes das condutas morais requeridas.
Pontua-se, ainda conforme as asserções de Pierre Bourdieu, que a “função
social do simbolismo”35
devesse ser compreendida como a “autêntica função política
[...] que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração
‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’.”36
Nesse sentido, a função social do
simbolismo, expresso nas Ordenações Filipinas, referentes as atribuições funcionais e
33 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. TOMAZ, Fernando (trad.). Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1989. p. 11. 34
Ibidem., p. 14. 35
Ibidem. 36
Ibidem., p. 10.
43
de utilidade dos escrivães camarários nas engrenagens administrativas, podiam ser
compreendidas como uma parte dos recursos políticos que foram responsáveis pela
reprodução do exercício efetivo do poder – tanto de conhecimento quanto de
comunicação –, no cotidiano das câmaras municipais.
O aparecimento dos escrivães camarários estava diretamente ligado ao projeto
de elaboração de um modelo municipal de administração – em curso desde fins da Idade
Média.37
Esse projeto foi o fator desencadeador de transformações nos níveis políticos e
culturais das comunidades, cuja adoção do sistema escrito, como um mecanismo efetivo
da comunicação política, sinalizava para a operacionalidade que esse sistema possuía ao
possibilitar a conexão, em caráter relacional, entre os centros e as periferias da
monarquia portuguesa.38
A adoção do sistema escritural anulava as particularidades
regionais e jogava com as formas tradicionais de administração local,39
“com o qual se
podia contemporizar no plano institucional, mas ao qual se dava uma guerra sem trégua
no plano simbólico”.40
Tudo isso, fez dos escrivães, principalmente dos escrivães camarários, os
instrumentos políticos utilizados pela Coroa portuguesa para estabelecer uma ordem
administrativa onicompreensiva, baseada eminentemente na tecnologia escrita. Todavia,
ressalta-se que a implantação desse sistema não houvesse eliminado os sistemas
político-administrativos não escritos, ou seja, aqueles utilizados pelas comunidades
camponesas nas áreas periféricas. Longe disso, pois ambos haviam vigorado
coetaneamente, mesmo que o sistema escritural constantemente reafirmasse uma
pretensa hegemonia. Assim, tanto o sistema “escritural” quanto os escrivães, seriam
indicativos da divisão entre dois mundos que não se anulavam, mas que na verdade
conviviam de maneira às vezes conflitual, às vezes compromissória, promovendo um
equilíbrio de insumos heterogêneos, funcionalmente orquestrados num campo de forças.
Assim, foi diante das novas circunstâncias advindas do processo de expansão
territorial no além-mar, amplamente caracterizada pela disseminação de instituições
reinóis, bem como dos corpos de oficiais que concediam vivacidade aos aparelhos
administrativos – e sobre os quais a integração dos diversos domínios do Império
37 HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:
Ler História, n. 8, 1986. p. 46-47. 38
Ibidem., p. 55. 39
Ibidem., p. 60 40
Ibidem.
44
dependia diretamente –, que impeliram Felipe I de Portugal, em observância a
demandas e situações outras que emergiam constantemente em diferentes pontos, a
ordenar uma revisão dos diplomas em vigor nas Ordenações Manuelinas (1512-1603).41
Este ato havia culminado com a promulgação das Ordenações Filipinas, em 1603,42
cuja aplicabilidade havia se estendido até o século XIX, mesmo que a maior parte das
disposições deste corpus proviessem das Ordenações precedentes.43
Ressalta-se, ainda,
que, em 1603, data da promulgação do novo código, reinava em Portugal há pouco mais
de vinte anos, ou seja, desde 1580, a Dinastia Filipina, que havia processado a união
política da Península Ibérica sob a égide da Coroa de Espanha, após a Guerra da
Sucessão Portuguesa.
Estrutural e funcionalmente as Ordenações Filipinas (1603) foram compostas
por cinco Livros, cujas denominações seguiam as mesmas lógicas numéricas de
disposições em algarismos romanos, nesse quesito não se diferenciando de suas
precedentes. Cada Livro das Ordenações Filipinas (1603) havia sido composto por uma
quantidade variável de títulos que, de modo geral, contabilizam no total, 511 inscrições
– ou títulos –, os quais rotulavam os preceitos jurídicos de que seu corpus se referia.
Aponta-se que nas Ordenações Filipinas figurasse um item que não havia constando
nem nas Ordenações Afonsinas (1446/7-1511) e nem nas Ordenações Manuelinas
(1512-1603), que são os chamados “Aditamentos” – ou acréscimos feitos às leis, acerca
de situações específicas que haviam aparecido após a revisão e edição do novo
conjunto. Os Aditamentos se subdividiam, por sua vez, de acordo com os Livros que
haviam composto, no conjunto, as Ordenações Filipinas (1603).
Justifica-se, para os fins dessa pesquisa, que se utilizará nesse trabalho dos
preceitos jurídicos acerca das alçadas e competências que recaíam sobre o ofício de
escrivão camarário contidos nas Ordenações Filipinas (1603), posto que quando da
fundação da Câmara do Natal e do estabelecimento do primeiro ofício de escrivão dessa
edilidade, em 1613, àquelas prescrições legais já estivessem em vigor, pelo menos
41 BARBOSA, Conceição Aparecida. Termos e conceitos da Ordem do Juízo nas ordenações do
reino: permanência e mudanças. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo,
2012. p. 27. 42
Ressalta-se que as Ordenações Filipinas estavam prontas em 1595 no reinado de Filipe II, mas
entraram vigor apenas em 1603, quando Filipe III já governava. Para saber mais ver Ibidem., p. 40. 43
CABRAL, Gustavo César Machado. Direito natural e iluminismo no direito português do final do
Antigo Regime. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2011. p. 165.
45
teoricamente, há pouco mais de dez anos. Reverbera-se que a criação da escrivania
concelhia da Cidade do Natal, no início da segunda década do século XVII, havia
correspondido, em grande medida, a vital demanda por comunicação, por parte dos
moradores da Capitania do Rio Grande, com outras instâncias administrativas, ora
localizadas no reino, ora na própria América portuguesa e, de modo especial, com
El’Rey.
1.1.1 A criação do ofício de escrivão da Câmara do Natal (1613)
Assim, o ofício de escrivão do Senado da Câmara da Cidade do Natal foi
criado por ordem de El’ Rey, em regimento expedido a D. Gaspar de Sousa, que foi
ocupar o Governo-geral do Estado do Brasil, em 1613.44
O novo Governador Geral
havia sido incumbido de dotar a Capitania do Rio Grande de modos de governo,45
por
meio do qual, dentre outros ofícios e funções, estabelecia o de escrivão da câmara. Esse
ofício, segundo o regimento, era de imprescindível e urgente necessidade de ser
instituído, tendo em vista as despóticas atuações dos capitães-mores, assim como as
inúmeras queixas destes, não existindo na sobredita capitania escrivão, por intermédio
do qual, se pudesse estabelecer comunicação, tanto em matéria de agravo, quanto de
apelação ao Supremo Tribunal da Relação, na Bahia.46
O regimento de Gaspar de Sousa deixa entrever que a criação do ofício de
escrivão da Câmara do Natal – e, talvez, dos demais concelhos fundados por toda a
América portuguesa e mais possessões lusa –, estivesse diretamente relacionado com a
necessidade de se principiar o ordenamento e o enquadramento funcional dos espaços
de conquista aos ditames do mando institucional da administração central. 47
Esse
processo havia correspondido de modo precípuo, à instauração de vias comunicativas
44 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I, p. 416. 45
Os modos de governo foram o estabelecimento de uma instância de poder local, a câmara ou o
concelho municipal, responsável pela gestão administrativa e judicial da localidade, bem como
econômica, pelo estabelecimento da Provedoria da Real Fazenda. 46
MENDONÇA, loc. cit. 47
Sobre a natureza do mando institucional pela América portuguesa, ver SOUZA, Laura de Mello. O sol
e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006. p. 14-15.
46
entre essas duas esferas. Os modos de governo, a que se referia um dos itens do
regimento do novo Governador geral, se remetia a criação de uma câmara municipal em
Natal que, possivelmente, devesse seguir as orientações prescritas pelas Ordenações
Filipinas.
Nesse sentindo, o Livro I das Ordenações Filipinas (1603) continha 100
títulos, os quais versavam sobre o oficialato ligado a esfera da justiça nos quatro níveis
gerais de organização espacial da administração, que seja local, senhorial, periférica e
palatina. Foi nesse livro que se havia fixado os preceitos que lançavam as bases da
atuação dos escrivães camarários, de modo específico no Título 71.48
Contudo, essa
divisão acerca do que cabia aos ofícios não era tão precisa e bem delimitada em apenas
um título, visto que as práticas a serem levadas a cabo por um ofício podiam seguir as
prescrições de outros e vice-versa. Exemplo disso foi o ofício de escrivão da câmara,
que além de dever observância a título específico, os agentes sociais deviam atentar
também para as prescrições postas no Título 67, que se referia as formas de eleição dos
oficiais camarários,49
bem como ao Título 82, que discorria sobre os valores a serem
granjeados pelos escrivães da Fazenda Real e da Câmara50
ou, em casos omissos,
orientava-se que se seguisse o que estivesse posto para os escrivães do judicial,
conforme o regimento desses oficiais.51
Desse modo, a primeira referência ao ofício de escrivão da câmara foi efetuada
no Título 67, no qual se descrevia como se havia de fazer a eleição dos oficiais
concelhios como, por exemplo, dos juízes ordinários, dos vereadores e dos
procuradores, os quais perfaziam o núcleo das edilidades e eram considerados ofícios
honoráveis. Esses, por sua vez, após elegerem os oficiais da cúpula que iriam servir no
ano seguinte, deviam realizar eleição semelhante para prover os demais cargos e ofícios
da edilidade, dentre os quais o de escrivão da câmara, tesoureiro, juiz de órfãos e
escrivão de órfãos.52
No entanto, de acordo com o Título 71, que discorre de maneira mais profusa
sobre o ofício de escrivão camarário, mesmo que inicialmente a escolha dos agentes
48 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. 49
Ibidem., Liv. I, Tít. 67. 50
Ibidem., Liv. I, Tít. 82. 51
STUMPF, Roberta Giannubilo. Dos homens que serviam entre papéis e letras. Escrivães das câmaras
na América portuguesa. NUEVO MUNDO-MUNDOS NUEVOS, 2017, p. 7 52
PORTUGAL. op. cit., Liv. I, Tít. 67.
47
sociais que seriam providos no ofício de escrivão fosse da alçada dos oficiais que
compunham a cúpula camarária – juízes ordinários, vereadores e procuradores –, esse
direito havia sido continuamente usurpado pelo rei e que, inclusive foi motivo de
grandes e persistentes queixas no reinado de D. João III, motivando-o a declarar que não
mais tornaria a prover esse ofício, mas que na prática foram completamente esquecidas
e as provisões reais para as escrivanias concelhias tornaram-se uma constante, sendo
largamente difundidas com o passar dos anos e das sucessões de reinados.53
No entanto,
pondera-se, a análise acerca dos provimentos no ofício de escrivão da Câmara do Natal
será efetuada de maneira mais detido no terceiro capítulo desse trabalho.
Ainda assim, no geral, o Título 71 discorria de maneira enfática sobre as práticas
organizacionais dos escrivães camarários, apontava também sobre as formas de se
efetuarem o assentamento da comunicação institucional, quais eram esses registros que
deviam ser executados por esses oficiais e aponta, ainda, para a questão da tutela que
existia entre os ofícios camarários e onde os escrivães das edilidades estavam situados
nesse universo. A seguir, deter-se-á, pormenorizadamente, a esmiuçar cada uma dessas
diretivas apresentadas pelo regimento do ofício de escrivão, confrontando, para isso,
com situações práticas que foram levadas a cabo pelos escrivães do Concelho Municipal
do Natal, entre os séculos XVII e XVIII. Do mesmo modo, se fará com as indicações do
Título 82 que se remetia a questão dos rendimentos do ofício a partir da manuscrição de
cada tipologia documental que devesse passar pelo crivo do escrivão concelhio.
1.2 As práticas organizacionais dos escrivães na Câmara
O regimento de todos os escrivães das câmaras municipais do Império havia
passado por diferentes tipos de reordenamentos, ao longo de pouco mais de 157 anos.
Essas reorientações sofridas pela legislação, de modo geral, e pelos regimentos dos
diversos grupos sociais que compunham a sociedade lusitana reinol e ultramarina,
caracterizaram-se por mutações que, como visto anteriormente, muito refletia os sabores
53 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. nota 1.
48
das circunstâncias estruturais e conjunturais de cada período, enfrentados pela Coroa
lusa.
Nesse ínterim, o Título 71 do Livro 1º das Ordenações Filipinas (1603) havia
versado sobre o regimento dos escrivães das câmaras, tanto em Portugal quanto do
além-mar. Esse regimento caracterizou-se por apresentar o conjunto das práticas
organizacional-administrativas,54
que foram levadas a cabo pelos escrivães concelhios,
rotineiramente, no exercício de seus ofícios, realizados no interior das edilidades.
Aquelas práticas estavam relacionadas ao assentamento da comunicação institucional
concelhia – o registro de todas as tipologias documentais, dos alvarás régios, dos
acordos burocrático-institucionais, das injúrias verbais e das cartas testemunháveis e da
escrita dos requerimentos –, dos registros próprios da câmara – dos livros de receitas e
despesas, dos registros das despesas miúdas dos concelhos e dos registros do gado –
bem como de outras funções organizacionais – tais como: o exercício de tutela do
expediente institucional, as chaves do cofre do senado e a leitura e publicação dos
regimentos.
De acordo com Raphael Bluteau, a palavra regimento era sinônima de governo,
de direção, de administração e/ou de serviço, prestados em algum lugar. Segundo esse
autor, a palavra regimento expressava um determinado modo de se proceder, e que era
estabelecido por uma autoridade superior no âmago institucional.55
Assim, seria através
do regimento do escrivão camarário que esses oficiais eram orientados em suas
maneiras de proceder cotidianamente, como esses oficiais prestariam seus serviços de
redação da comunicação administrativa escrita e, portanto, oficial do Império. Essa
regulamentação sobre o ofício de escrivão da câmara havia sido estabelecida por Filipe I
de Portugal, quando havia mandado rever e reorganizar as Ordenações Manuelinas
(1512-1603).
Desse modo, como havia asseverado Raphael Bluteau, o regimento de qualquer
ofício era determinado por uma autoridade superior da instituição. Essa autoridade, para
54 Os termos “práticas organizacionais e administrativas” definem-se enquanto conceitos operatórios,
elaborados pelo autor, para descreverem o conjunto de atividades e competências que couberam aos
escrivães concelhios em seus exercícios formais de redação, bem como de outras atividades
desenvolvidas cotidianamente no núcleo físico das câmaras municipais. 55
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. Disponível em: <
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/tabellia%C3%B5>. Acesso em: 28 de fevereiro de 2017.
Ver verbete “regimento”.
49
o caso de Portugal e de seus domínios, foi o próprio rei. Ressalta-se que o poder político
era, portanto, compartimentalizado entre os diversos grupos sociais que compunham os
membros do corpo social maior, gozando de autonomia política e jurídica. O que
harmonizava a convivência entre as partes desse corpo social era a noção do pacto
político, tecido entre vassalos e soberano, que, a partir de questões como prestígio,
honra, status e etiqueta, cimentavam essa convivência de forma coerente. Ao rei, na
condição de cabeça desse corpo social, competia o estabelecimento da justiça,
uniformizando o corpo e promovendo a harmonia entre as demais partes que o
compunham, dado que cada um dos membros devesse realizar aquilo que lhes fossem
próprios.56
Para António Manuel Hespanha, termos como pai, mãe, vizinho, clérigo,
escrivão, etc., se remetiam diretamente as qualidades pertencente à própria natureza
individual, “com a consequência de que, então os elementos em que a sociedade se
analisa não são os individuais, mas os grupos de indivíduos portadores de uma mesma
função e titulares de um mesmo estatuto [...] [e] o estatuto social provém de uma ‘posse
de Estado’ e não da situação atual da pessoa”.57
O regimento dos escrivães concelhios foi o elemento que havia conferido a
esses oficiais aquela posse de estado, bem como uma parcela do poder político que
estava eminentemente disperso pela constelação dos poderes. Para António Manuel
Hespanha, o “oficialato”, mediante as garantias regimentais e estatutárias, foi um
membro dotado de autonomia, um verdadeiro “centro autônomo de poder”, visto que o
paradigma jurisdicionalista,58
enquanto fundamento da ação política e administrativa no
Antigo Regime português havia limitado, sobremaneira, a capacidade de ação efetiva da
Coroa.59
Sendo assim, o regimento dos escrivães camarários deviam ser concebidos
como elementos que conferiam além da posse de estado, uma parcela do poder político
56 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 299-300. 57
Ibidem., p. 308. 58
O paradigma jurisdicionalista remete-se a palavra jurisdição que, de acordo com Raphael Bluteau,
trata-se de uma espécie de poder que o público concede e que o bom governo introduziu para a decisão
das causas. Geralmente, ainda segundo esse autor, a palavra jurisdição diz respeito a autoridade de um
ofício de justiça ou de outra dignidade. António Manuel Hespanha, o significado do paradigma
jurisdicionalista configurar-se-ia como o limite máximo e possível da autonomia do exercício do poder
político de cada ofício ou função que compunham os distintos grupos sociais e as instituições que, juntos,
formam o corpo social mais amplo. Para saber mais ver BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez &
latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 –
1728. Disponível em: < http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/jurisdi%C3%A7%C3%A3o>.
Acesso em: 28 de fevereiro de 2017. Ver verbete “jurisdição”; HESPANHA, op. cit., 299-300. 59
Ibidem., p. 276-287.
50
no Império português do Antigo Regime, através do qual fosse possível compreender os
deveres que a esses oficiais coubessem executar, mas também “os direitos que cada um
desses oficiais gozavam no desempenho de suas funções”.60
Pontua-se, ainda, que o regimento do escrivão da câmara estruturava-se,
inicialmente, por um parágrafo que introduzia a necessidade de elaboração de um livro
de receitas do concelho. Depois desse parágrafo de abertura, o regimento subdividia-se
em dez outros parágrafos que se remetiam às atividades de redação do expediente
institucional, ao qual se atrelava também o caráter de supervisão do referido ofício sobre
os demais exercidos em âmbito concelhio. Salienta-se que a análise dos parágrafos que
haviam composto o regimento do ofício de escrivão da câmara, constante nas
Ordenações Filipinas (1603-1917), será realizado aqui por meio de casos
exemplificativos, extraídos da própria documentação burocrática processada pelos
escrivães concelhios do Senado da Câmara do Natal.
1.1.1 Assentos da comunicação institucional
O regimento dos escrivães da câmara presente nas Ordenações Filipinas
(1603) determinava que de todos os assentos elaborados pelos escrivães, quer fossem
por mandado dos demais oficiais concelhios ou até mesmo através de requerimentos
efetuados pelas partes, aqueles oficiais deviam levar desse registro a quantia de seis
réis.61
Em meio a inúmeros outros requerimentos, manuscritos pelos escrivães
concelhios do Natal, cita-se um, datado de 16 de maio de 1677, no qual o escrivão
Manuel de Amorim havia registrado um termo de vereação, no qual, em comum acordo
com os oficiais camarários, haviam estabelecido que nenhum indivíduo de fora da
capitania pudesse assumir ofícios na Câmara do Natal.62
Com isso, esses oficiais
realizavam uma espécie de defesa dos interesses dos imbricados naquele sistema de
60 CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul
de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2014. p. 103. 61
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 9. 62
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0084.
51
poder por aquelas funções, inviabilizando legalmente que essa situação pudesse vir a
acontecer, porém, o próprio termo havia apresentado como exceção a essa diretriz, os
indivíduos adventícios que fossem letrados.63
Desse requerimento realizado pelos
oficiais camarários, aquele escrivão havia auferido seis reis, prescritos em seu
regimento.
Outra espécie de requerimento, dessa feita em solicitação das partes
envolvidas, ou seja, instadas por outros agentes que não faziam parte do núcleo das
edilidades, bem como que não constasse neles interesses próprios da câmara, também se
cobrava desses documentos seis réis para a redação deles, realizada pelo escrivão
concelhio. Sobre essa situação de requerimento efetuado por uma parte, pode-se
mencionar a que foi registrada pelo escrivão da Câmara do Natal, o Comissário Geral de
Cavalaria, Zacarias de Oliveira Ribeiro, em 22 de agosto de 1683, no qual constava que
o povo solicitava que exonerasse de suas funções de Ouvidor e Provedor dos Defuntos e
Ausentes da Capitania do Rio Grande, Simão Pita Porto Carreiro, pelos crimes que o
mesmo efetuava pela dita capitania, em face de suas pretensas atribuições.64
Da redação
desse requerimento das partes, Oliveira Ribeiro obteve a quantia de seis reis, prescrita
nas Ordenações.
A quantia de seis reis foi auferida pelos escrivães camarários quando esses
oficiais assentassem nos livros da câmara documentos de natureza judicial, tais como
obrigações, fianças e outros de gêneros semelhantes.65
Exemplo de termo de fiança,
redigido pelo escrivão da Câmara do Natal, o Capitão Francisco de Oliveira Banhos, em
28 de julho de 1693, no qual constava que o Alferes Manuel Trigueiros Soares havia
apresentado aos oficiais camarários seu principal fiador e pagador, o Capitão Pedro da
Costa Faleiro, tendo como finalidade assegurar que no prazo de dois meses o sobredito
tabelião nomeado, solicitasse que sua esposa e demais familiares viessem da Capitania
da Paraíba, visto que ele havia assumido o tabelionato do público, judicial e notas, para
o qual foi provido pelo Capitão-mor da Capitania, Sebastião Pimentel (1692-1693).
Entretanto, caso a família do Alferes Manuel Trigueiros Soares não viesse para o Rio
Grande, esse agente devia pagar 20 cruzados de multa, para as despesas do Concelho do
63 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0084. 64
Ibidem., Documento 0213. 65
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 9.
52
Natal.66
Do registro dessa fiança, o escrivão Oliveira Banhos havia barganhado a soma
de seis reis, como era então estipulado em seu regimento.
Quanto aos termos de obrigação, também escritos pelos escrivães camarários e
dos quais esses oficiais obtinham seis réis, pode-se citar como exemplo, um termo de
obrigação, datado de 14 de junho de 1715, redigido pelo escrivão da Câmara do Natal,
Carlos da Rocha. Nesse documento constava que o Alferes Antônio da Silva de
Carvalho rezingava sobre a passagem efetuada no rio através de suas terras, as quais
haviam sido recebidas por data de sesmaria, doadas por Sua Majestade.67
Redigir
documentos de natureza judicial, bem como requerimentos efetuados tanto pelos
oficiais concelhios como por partes individuais, reforçava a condição dos escrivães
concelhios como importantes instrumentos de poder e de conhecimento nos mais
diversos circuitos sociais da Capitania do Rio Grande, pois partilhavam com os
indivíduos implicados nesses tipos documentais de sonhos, angústias, tristezas e
pretensões, relacionadas eminentemente a individualidade de homens e mulheres, bem
como de suas famílias. Isso fazia com que aquele ofício fosse considerado estratégico
no plano local e, portanto, cobiçado por famílias e indivíduos sedentos dos ganhos que
pudessem obter de seu exercício.
Outra determinação do regimento havia definido, ainda, o valor de oito réis por
cada alvará que por esses oficiais fosse redigido.68
Quanto à redação de alvarás pelos
escrivães camarários, verificou-se que esses oficiais eram responsáveis por elaborarem,
geralmente, cópias dessa tipologia documental, visto que os alvarás de que se tem
notícia na documentação alusiva ao Senado da Câmara do Natal, remetiam-se aos
enviados por El’ Rey, a fim de dar cumprimento a alguma decisão régia. Exemplo disso,
em meio a outros, foi a cópia de um alvará do Príncipe Regente de Portugal, D. Pedro,
no qual estipulava que dos contratos processados pela Fazenda Real do Rio Grande,
houvesse de se retirar propinas com vistas a sanar as despesas de fornecimento de
munição para as fortalezas.69
Esse alvará foi trasladado por Antônio de Barros Alfenas –
66 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0390. 67
Ibidem., Documento 0488. 68
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 10. 69
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl.67.
53
escrivão da câmara em 1678 e em 1680. Desse registro, o escrivão havia recebido a
quantia de 8 réis pela transcrição do referido alvará para os Livros de Cartas e Provisões
do Senado da Câmara do Natal. O primeiro parágrafo do regimento dos escrivães
camarários encerrava-se reiterando que esses oficiais deviam seguir o que estivesse
expressamente provido e determinado naquele regimento, sobretudo o que haviam de
levar em termos remuneratórios e de regras procedimentais de suas atividades
organizacionais. No mais, o que não estivesse expressamente aprovisionado nessas
determinações, passaria a ser regrado pelos direcionamentos do regimento dos escrivães
do judicial.70
Aquele texto reverbera, ainda, que quanto aos valores que fossem granjeados
pelos escrivães concelhios de suas atividades de redação do expediente institucional e
administrativo, haviam de ser geridos também pelas cominações expressas no Título 82,
do Livro I das Ordenações Filipinas (1603). Esse título estipulava o que havia de levar,
monetariamente, de seus exercícios de manuscrição da comunicação política e
administrativa do Império. Esse mesmo item apontava que, tanto os escrivães da
Fazenda Real quanto os escrivães das câmaras municipais, deviam receber das
escrituras que realizassem.71
Os escrivães concelhios também eram responsáveis pela elaboração dos
mandados – uma espécie de ordem escrita, proferida por uma autoridade judicial ou
administrativa com a finalidade de realizar uma diligência –, assim como os acórdãos –
documento que indicavam a uniformidade dos oficiais concelhios em algum assunto ou
matéria de legislatura de interesse da edilidade –, firmados em âmbito camarário,
deviam ser manuscritos pelos escrivães da câmara em um livro próprio para essas
matérias.72
Nesse sentido, as matérias concernentes aos acórdãos e, consequentemente,
aos mandados promulgados pela Câmara Municipal do Natal, entre 1672 e 1815, foram
registrados em diversos livros de termos de vereação, cuja durabilidade variou conforme
as demandas pela comunicação escrita. Isso havia resultado na edição de livros,
nomeados pelas periodizações que abrangiam os termos manuscritos, por inúmeros
escrivães concelhios que serviram entre a segunda metade do século XVII e a segunda
década do século XIX.
70 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 10. 71
Ibidem., Liv. I, tít. 82. 72
Ibidem., Liv. I, Tít. 71. § 3.
54
Esses livros de termos de vereação do Senado da Câmara do Natal
caracterizavam-se por apresentar quase todas as questões ligadas a vida cotidiana dessa
cidade, mas também de outras localidades e povoações espalhadas por toda a Capitania
do Rio Grande. As temáticas sobre as quais esses termos versaram abrangiam questões
relativas à higiene, a urbanização, ao abastecimento e a inúmeros outros problemas
relacionados a questões vivenciais, como, por exemplo, a fim de dirimir conflitos e
embates entre pessoas ou grupos sociais mais amplos, fiscalizando, gerenciando e
regulamentando as ações desviantes dos padrões estabelecidos pelos camarários. No
mais, esses termos de vereação diziam respeito à gestão municipal e a gerência da
cidade e do espaço de abrangência da atuação do Concelho Municipal da Cidade do
Natal, que até 1759 havia cingido toda a Capitania do Rio Grande.73
Desse modo, o fato
de os escrivães camarários fazerem-se presente, essencialmente, no âmbito camarário,
participando das reuniões e manuscrevendo as decisões tomadas nos acórdãos, fizeram
daqueles oficiais importantes instrumentos de conhecimento e de informações
privilegiadas, tanto os que versavam sobre a esfera local quanto os que adviessem do
próprio reino, e essas possibilidades podiam ser aproveitadas por àqueles agentes para
obterem dividendos sociais e econômicos como, por exemplo, bons casamentos,
patentes militares das ordenanças, terras e gados.
Nesse sentido, verificou-se que os escrivães camarários do Concelho do Natal,
além de estarem encarregados de manuscreverem os mandados e os acórdãos realizados
no interior do núcleo da municipalidade, também eram incumbidos de lerem os mesmos
mandados para os demais oficiais concelhios, como se constatou, mediante a leitura dos
termos de vereação. Exemplo disso, datado de janeiro de 1682, foi o acórdão registrado
pelo escrivão, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa, no qual constava que os oficiais
concelhios haviam ordenado aquele escrivão que lesse o conteúdo dos livros de posturas
e dos livros de vereação, para que os oficiais executivos se esmerassem em suas tarefas,
estipuladas pelos mandados e pelas posturas municipais, a fim de respaldar o procurador
da concelho, o Capitão Manuel Gomes da Câmara, na cobrança dos débitos que os
73 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo); LOPES, Fátima
Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no
século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. p.
478-479.
55
indivíduos deviam àquele senado.74
Nesse contexto, os escrivães desempenhavam o
papel de tradutores dos códigos culturais estipulados em âmbito camarário, visto que ao
lerem esses documentos tentavam explicar aos oficiais executivos a imprescindibilidade
de se realizar as determinações postas. Outro ponto significativo foi que os escrivães
nesse momento lançavam mão da memória institucional concelhia, como repositários e
guardiães das principais informações da edilidade, o que reiterava, ainda mais, a
proeminência da figura desse oficial não apenas para os andamentos burocráticos, mas,
acima de tudo, para interligar os curtos mandatos dos oficiais transitórios – como os
juízes, os vereadores, os procuradores e os almotacés –, assegurando, com isso, a
eficácia da gestão e prática administrativa local aos ditames macros do Império.
Aos escrivães concelhios competia também escreverem nos atos de injúrias
verbais que envolvesse indivíduos nos termos das municipalidades, sobretudo naqueles
que houvesse a necessidade de passarem pelas câmaras municipais.75
Para o caso da
Capitania do Rio Grande, encontrou-se exemplo desses documentos. Ressalta-se, a
título exemplificativo, um auto de injúria datado de 1 de julho de 1786, no qual o
escrivão da câmara, Inácio Nunes Correia Tomás, havia registrado que o Capitão
Joaquim de Morais Navarro havia desobedecido às ordens do Senado da Câmara do
Natal acerca do provimento de duas reses para serem repartidas entre o povo, face a
situação de extrema necessidades pelas quais os moradores daquela municipalidade
passavam a época. Assim, além de se recusar a cumpri tal determinação, Morais
Navarro, juntamente com um mulato armado, haviam afrontado, ainda, o Coronel
Francisco da Costa, maltratando-o com palavras e o ameaçando de morte.76
Evidencia-
se que de cada auto de injúria, os escrivães concelhios obtinham a quantia de quatorze
réis.77
Entretanto, não se observa se o caso foi levado a julgamento ou se estancou por
essa ação citatória. Nessas circunstâncias, os escrivães foram os responsáveis por
transcreverem a injúria cometida contra a câmara que, possivelmente, havia sido
relatada pelo Coronel Francisco da Costa. Nesse meio termo, o escrivão camarário havia
tratado de intermediar o mundo não letrado e o mundo letrado, reduzindo a escrito
74 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0177. 75
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 4. 76
LOPES, op. cit., Documento 2545. 77
PORTUGAL. loc. cit.
56
aquilo que o havia sido transmitido oralmente, com o passo a passo dos acontecimentos
que haviam impelido o registro do auto de injúria.
Da competência dos escrivães camarários eram também as redações das cartas
testemunháveis e dos requerimentos que fossem efetuados aos oficiais concelhios,
sobretudo aqueles que carecessem de serem assinados ou selados por esses
representantes do poder local.78
No rol das cartas testemunháveis acrescentavam-se as
cartas patentes – documentos que conferiam gradações militares das ordenanças locais a
alguns indivíduos –, as cartas de provisão de ofícios – cédulas que concediam, por
extenso, a um indivíduo as atribuições a serem desempenhadas em algum ofício da
administração –, as cartas de doação de sesmarias ou de chãos de terra – documentos
caracterizados por transmitirem a posse legal de uma determinada gleba– ou doações de
chãos de terra, para a construção de casas de morada em uma localidade, dentre outras.
Verifica-se que, em 23 de julho de 1683, o escrivão da câmara, o Capitão
Antônio Lopes de Lisboa, havia redigido um requerimento, em nome das viúvas e dos
órfãos da Capitania do Rio Grande, efetuado ao Senado da Câmara do Natal para que o
juiz de órfãos, o Alferes Antônio de Castro Rocha, fosse punido pela errônea conduta
que vinha seguindo no exercício daquele ofício.79
Desse modo, a aproximação do
escrivão concelhio de estratos mais vulneráveis da sociedade como, por exemplo, dos
órfãos e das viúvas, fizera com que aqueles oficiais adquirissem inserção na intimidade
das famílias, compartilhando com elas de alguns problemas enfrentados diariamente na
gestão dos bens deixados por pais e maridos, visto que muitos desses oficiais eram
constantemente chamados para servirem de procuradores desses desvalidos, pois
possuíam dois diferenciais basilares para se empreender a busca pela partilha de bens
deixados em herança, que era saber ler e escrever. Muitas vezes, na ausência de oficiais
competentes nessas alçadas, como o juiz e o escrivão de órfãos, os escrivães concelhios
eram chamados para tutorarem os bens desses desamparados familiares.
Citando-se caso análogo sobre cartas testemunháveis, para o caso da Cidade do
Natal, verifica-se a provisão do Conde Vice-rei, Dom Vasco Mascarenhas – Conde de
Óbidos –, em 02 de junho de 1674, da serventia dos ofícios de tabelião público e
78 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 5. 79
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0211.
57
escrivão da câmara, à Diogo Rodrigues Pereira,80
que foi escrivão da câmara em 1663,
1664 e 1674. O responsável por trasladar essa provisão foi o escrivão camarário
Domingos Vaz Velho. Outro exemplo de carta testemunhável que necessitava do
selamento e afixação do sinete dos oficiais concelhios foi à doação de chãos de terra.
Essa carta de doação também era redigida pelo escrivão camarário, bem como também
recebidas por estes oficiais. Para o caso do Concelho do Natal, verifica-se a doação de
chão de terras no termo dessa edilidade, dentre vários outros, a Manuel Álvares Bastos
pelos oficiais concelhios na terra do Rio da Lagoa, que havia sido anteriormente
concedida ao seu pai, o Licenciado Francisco Álvares Bastos.81
Ressalta-se a
impossibilidade de visualização da data de concessão dessa carta, posto que o
documento encontrava-se em más condições.
Essa carta de doação de chão de terra foi manuscrita, indubitavelmente, pelo
próprio Álvares Bastos, visto que esse escrivão havia se remetido, no título do
documento, ao anterior possuidor das terras, o Licenciado Francisco Álvares Bastos,
como sendo seu próprio pai.82
Visto isso, depreendem-se como os escrivães das câmaras
puderam se aproveitar de sua privilegiada posição no interior do núcleo das edilidades,
responsáveis que foram pela gestão até mesmo do acesso a posse da terra, como visto
anteriormente, para beneficiarem-se a si mesmos ou a seus familiares, ao utilizarem-se
de seu poder de influência e barganha, garantido pelos largos anos que serviam nas
instituições concelhias, bem como nas relações amistosas – mas às vezes também
contrárias –, travadas com outros oficiais concelhios, o que culminava no recebimento
de mercês que, por sua vez, aumentavam progressivamente suas posses, garantindo,
com isso, distinção social na lógica da cultura política do Antigo Regime.
1.1.2 Registros da Câmara
Verifica-se no regimento do escrivão camarário, que constava no Título 71 das
Ordenações Filipinas (1603), que existiam registros processados não para serem
80 Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal.
Livro 2 (1673-1690). Fl. 32. 81
Ibidem., Livro 9 (1743-1754). Fl. 1. 82
Ibidem., Fl. 1v.
58
difundidos, mas para ficarem resguardados na memória institucional de cada concelho.
Nessa situação têm-se os livros de receitas e despesas das câmaras, os registros das
despesas miúdas, essenciais para o andamento do desempenho administrativo e
burocrático concelhio, mas também inscrições que se remetiam ao plano econômico de
controle de alguns produtos de exportação da capitania, como, por exemplo, o registro
do gado.
De maneira precípua, o parágrafo de abertura do regimento dos escrivães
concelhios remetia-se a estipular que esse oficial camarário devia, a cada ano, elaborar
um livro de receitas, no qual constassem todas as rendas da câmara, de maneira
sequencial, uma abaixo da outra, bem como nomeando a quem estivessem arrendadas,
os fiadores, os valores do arrendamento e o tempo em que deviam ser pagos.83
Entretanto, não foi possível identificar a existência desses referidos livros para o caso da
Câmara do Natal.84
Todavia, verificou-se nominalmente a referência a um exemplar
desses livros em um termo de vereação, datado do mês de abril de 1682, no qual
constava que depois de realizada a vereação daquele dia, os oficiais da câmara, haviam
solicitado ao escrivão daquela edilidade, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa, que
elaborasse um inventário dos livros da câmara, visto que o escrivão não o possuía.85
Não obstante, os oficiais empreenderam uma busca pelos ditos livros, e haviam
encontrado um livro de Receitas e Despesas que havia sido elaborado no período em
que havia servido de Juiz Ordinário, Antônio Vaz Gondim, e de escrivão, o Capitão
Francisco de Oliveira Banhos. Entretanto, o ano em que o livro de Receitas e Despesas
elaborado por Oliveira Banhos e Vaz Gondim, não constava no documento devido ao
desgaste do tempo. Entrementes, mesmo cruzando-se informações presentes no
catálogo, não foi possível auferir a data de elaboração desse livro de Receitas e
Despesas, visto que o Capitão Francisco de Oliveira Banhos foi escrivão da câmara de
83 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. 84
Ressalta-se que no período de levantamento de dados, bem como das fontes para a presente pesquisa, a
instituição que possui a guarda dessa documentação, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte, estava passando por reformas estruturais de suas instalações, havendo inclusive transferido parte
da documentação para um outro abrigo enquanto durasse a reforma e, devido a desorganização do acervo
haver sido proibida a entrada de pesquisadores e de outros interessados na organização. Contudo,
acredita-se que esses livros de registros das receitas e das despesas da Câmara do Natal estejam
resguardados naquela instituição. 85
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0183.
59
Natal durante 13 anos, porém em períodos distintos, assim como também não foi
possível verificar o ano em que Antônio Vaz Gondim serviu como juiz, pois a
referência que se tem sobre esse agente menciona-o, caso não se trate de um homônimo,
como capitão-mor do Rio Grande e não como juiz ordinário da Câmara do Natal.86
Mesmo não constando a data em que aquele livro de Receitas e Despesas do
Senado da Câmara do Natal havia sido redigido pelo escrivão concelhio, consta no
termo de vereação de abril de 1682, de acordo com o escrivão, o Capitão Antônio Lopes
de Lisboa e demais oficiais concelhios. Contudo, salienta-se no termo de vereação que,
ao encontrarem o livro, aqueles oficiais o descreveram como sendo composto por 92
folhas e algumas contas de procuradores que haviam servido em anos anteriores.87
Ao
final da vereação, constava, ainda, que os oficiais camarários haviam lavrado outro
termo às folhas 07 e 08, ao destinar as poucas folhas que ainda restavam para carga e
descarga de despesas por parte dos procuradores, bem como para se elaborar novo livro
para inventariar os livros que pertenciam à Câmara da Cidade do Natal.88
Evidencia-se que sobre o século XVII e ao longo do século XVIII, encontrou-
se na documentação relativa aos termos de vereação daquela edilidade, referências
esparsas a existência de livros de receitas e despesas, e que mencionavam em alguns
casos que os escrivães haviam sido os responsáveis por sua elaboração, bem como
aqueles que eram encarregados da guarda e manuscrição dos mesmos livros. Exemplo
disso, foi que em 30 de dezembro de 1683, consta em um termo de vereação que o
procurador e tesoureiro da Câmara do Natal, Antônio Freire, havia sido encarregado de
lançar no livro de receitas todas as despesas e débitos relativos ao concelho.89
Aufere-se
disso, que não apenas os escrivães concelhios, no caso de Natal, estivessem incumbidos
da onerosa tarefa de descrever as despesas e receitas do concelho – como prescrevia as
Ordenações Filipinas (1603) –, visto que essa legislação estipulava que aos escrivães
das câmaras competisse tal atividade, em período anual de tempo. Esse código
determinava, ainda, que os escrivães camarários estivessem incumbidos de assentar no
86 Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal.
Livro 2 (1673-1690). Fl. 5. 87
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). Documento
0183. 88
Ibidem. 89
Ibidem., Documento 0221.
60
livro de receitas, completamente todas as despesas efetuadas pelo tesoureiro – ou a
quem tal ofício servisse.90
Em outro termo de vereação, datado de 29 de dezembro de 1774, constava que
o escrivão da câmara, Francisco Pinheiro Teixeira, descarregasse no livro de receita os
foros daquele ano, assim como a quantia de 9$028 réis que havia sido arrecadada pelo
Alferes Estevão da Cunha Mendonça.91
Um mês antes, em 22 de novembro de 1774, os
oficiais da Câmara do Natal haviam acordado, dentre outras matérias, que mandariam
que o procurador, o Tenente Antônio da Silva de Carvalho, pusesse capa no livro de
receita e despesas do ano de 1774.92
Desse modo, no primeiro caso, o escrivão
camarário estava realizando, de forma prática, o que previa o primeiro parágrafo de seu
regimento e, não obstante, o segundo caso demonstrava que a responsabilidade pelo
livro de receitas e despesas da Câmara do Natal, não era de competência exclusiva do
escrivão concelhio – como prescreviam as Ordenações Filipinas (1603) –, mas também
do procurador camarário e, como se verificou da análise dos termos de vereação,
sempre se tratavam de pessoas distintas, que desempenhavam ambos os ofícios
coetaneamente. Situação essa que se remete aquilo que António Manuel Hespanha
denominou de “atividade de tutela”, cuja ação de um superior dirigia-se a verificar o
cumprimento ou não das atividades de outro oficial.93
Assim, incumbidos da organização, abertura, manuscrição e resguardo dos
livros de receitas e despesas das edilidades, reiteram-se através dessas atividades, mais
uma vez, que os escrivães concelhios eram, de fato, detentores de uma quantidade de
dados e de informações imprescindíveis a gestão eficaz dos termos das municipalidades
e, para o caso da Câmara do Natal, no período que foi de 1613 até 1759, de toda a
Capitania do Rio Grande, visto ser a única povoação da capitania com foros de
municipalidade. Tudo isso, fazia da figura do escrivão concelhio uma peça chave para
os andamentos as práticas e para a memória administrativa da instituição concelhia
daquela capitania, o que dispunha esse ofício como um instrumento influente em nível
90 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 1. 91
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
1959. 92
Ibidem., Documento 1955. 93
HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 269.
61
local, mas também regional, através da barganha de motes políticos que muito
acrescentavam poder e prestígio social.
Nessa relação de atividades, de competência do escrivão da câmara, também
eram enumeradas atribuições como o registro sistemático da despesa miúda dos
concelhos. Sobre esses gastos, os escrivães deviam tomar nota, em livro apropriado para
isso, dos dispêndios praticados por todos os oficiais camarários que fossem
considerados de menor conta, mas que eram imprescindíveis ao funcionamento da
instituição concelhia. Exemplo dessas despesas miúdas eram aquelas efetivadas para a
compra de papel, de tinta, penas especiais para a manuscrição, livros e móveis.
Tais artefatos eram, em sua maioria, instrumentais primordiais de que os
escrivães concelhios muniam-se para registrarem o expediente dos concelhos. Salienta-
se que esses itens, em meio a inúmeros outros, precisavam ser comprados, ora na vila
ou cidade e seu termo, ora em localidades mais distantes, como outras praças de maior
vulto comercial. Todavia, quando se exauria o estoque de papel, tinta ou pena – quase
sempre não se tratava de um estoque propriamente dito, como foi possível vislumbrar
da leitura da documentação, mas sim de quantidades avulsas de material –, era
indubitavelmente necessário adquirir-se mais. Esses objetos constituíam-se, em parte,
na despesa miúda contraída pelos oficiais concelhios a fim de darem continuidade à
redação do expediente institucional.
Sobre essa despesa miúda, o segundo parágrafo do regimento dos escrivães
camarários havia discorrido, indicando que todos esses gastos efetuados pelos oficiais
camarários, deviam ser realizados perante o escrivão concelhio, sendo esse oficial
responsável também por registrar os valores das referidas despesas, mas em um título
ou canhenho a parte. Após registrar as despesas miúdas em papel separado, o mesmo
escrivão ficava também responsável por levar esses registros à vereação, mostrando-os
aos vereadores, os quais, por fim, ao verificarem a imprescindibilidade das mesmas
solicitava ao escrivão da câmara que as assentasse em livro apropriado do concelho.94
Para o caso da Cidade do Natal, verifica-se que uma das demandas mais recorrentes
sobre essas despesas miúdas concelhias, remetiam-se a falta de papel, constantemente
propalada nos termos de vereação daquela municipalidade. Citando caso análogo,
poder-se-ia mencionar a necessidade de mandar-se comprar papel, registrada em 01 de
94 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 2.
62
junho de 1715,95
ou quando, em 04 de abril de 1719, os oficiais registravam a realização
do mesmo pedido, dessa feita ao procurador, o Sargento-mor Bartolomeu da Costa, para
que comprasse papel, isso logo após haverem registrado em termo de vereação que
haviam elaborado um livro para registro do gado.96
Ainda acerca da demanda sobre
papel, o termo de vereação de 04 de junho de 1800, frisava que por haver sido
completamente preenchido o livro de registros, havia a necessidade de se fazer outro.
Isso havia levado o escrivão da câmara, Manuel de Barros Coelho a requerer mais papel
para isso, em contrapartida não havia papel por toda a Cidade do Natal senão ao preço
de um vintém a folha – o que parecia ser algo bastante caro, sobretudo devido à ênfase
concedida no termo de vereação –, que mesmo diante do valor, os oficiais camarários
decidiram fazer o livro, não obstante o preço que tivesse de pagar para isso.97
Todavia, além da despesa miúda com papel para satisfazer a demanda do
expediente burocrático da instituição concelhia, outros itens são mencionados nos
termos de vereação, quando, por exemplo, os oficiais camarários solicitaram a compra
de uma campainha para a câmara, em 15 de junho de 1712.98
Outro exemplo de despesa
miúda foi que os oficiais camarários providenciaram, em 16 de abril de 1748, um
armário para alojarem e, consequentemente, resguardarem das intempéries físicas, os
livros e papéis daquele concelho, já que o que existia na câmara estava “incapaz e as
baratas estarem comendo os papéis”.99
Nesse mesmo termo, menciona-se o
levantamento de um inventário do cartório da Cidade do Natal, efetuado pelo Ouvidor
Geral e Corregedor, Antônio Ferreira Gil, e, após isso, o termo havia registrado, ainda, a
entrega de um sinete ao vereador mais velho e de um tinteiro ao escrivão, o Capitão
Manuel Antônio Pimentel de Melo.100
Talvez aquele tinteiro já fosse velho demais ou que a demanda pelo expediente
escritural fosse significativo, visto que não havia durado por muito tempo, pois em 17
de fevereiro de 1750, ou seja, dois anos depois, consta também em outro termo de
vereação, que os oficiais concelhios haviam mandado vir um tinteiro de estanho para a
95 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). Documento
0712. 96
Ibidem., Documento 0804. 97
Ibidem., Documento 3566. 98
Ibidem., Documento 0615. 99
Ibidem., Documento 1488. 100
Ibidem.
63
Câmara do Natal e o procurador, Gonçalo Freire de Amorim – agente que assumiu o
ofício de procurador face ao impedimento de Teodósio de Amorim –, havia também
mandado comprar um pano-de-Hamburgo, com a finalidade de revestir as cadeiras do
senado daquela câmara.101
Assim, as despesas que aos vereadores parecessem ser boas e
bem feitas, cabiam ao escrivão concelhio assentar no livro da câmara, por quem e por
que tais despesas haviam sido feitas.102
Mesmo que, em algumas situações, tais despesas
miúdas não houvessem sido processadas perante o escrivão.
Essa constante busca por papel, tinta, penas e tinteiro, assim como a feitura e
abertura de novos livros de registro, extremamente recorrentes na documentação alusiva
a Câmara Municipal do Natal, são sintomáticas daquilo que Antônio Manuel Hespanha
havia denominado de um verdadeiro “Império de papel”, no qual a troca de
correspondências foi responsável por cimentar laços políticos significativos, através da
representação escrita, que fazia falar os ausentes físicos. Essas demandas por utensílios
utilizados para a efetivação da comunicação escrita, na Câmara do Natal, eram
indicativas também da intensidade e recorrência da busca por essa via de interlocução,
enquanto uma procura social da administração escrita e, com isso, pela busca dos
serviços de redação, os quais cabiam aos escrivães camarários. Tudo isso, funcionou no
sentido de reforçar o lugar de destaque que esses oficiais ocupavam nas hierarquias
econômicas, políticas e sociais das comunidades locais e regionais.
Àqueles oficiais, de acordo com seu regimento, cabia, ainda, o registro e o
assento do gado que existisse pelo termo da municipalidade. O oitavo parágrafo
determinava também que fossem feitas as contas e descargas do gado, as quais deviam
ser minutadas de maneira unitária em cada página, exclusivamente para esse tipo de
registro.103
Para o caso da Capitania do Rio Grande, se verifica que os escrivães
camarários do Natal, de fato, foram os encarregados, incontáveis vezes, de proceder a
essas anotações sobre os rebanhos de toda aquela capitania.104
Caso que exemplifica
isso, foi que, 04 de maio de 1667, o escrivão da câmara, Afonso de Góis Pereira, havia
101 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
1527. 102
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 2. 103
Ibidem., § 8. 104
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659
– 1668). Fl(s). 19, 20v, Fl. 58v, Fl. 59v; Ibidem., Livro 3 (1691 – 1702). Fl(s). 92v, 93v, 97; Ibidem.,
Livro 7 (1720 – 1728). Fl. 180. Ibidem., Livro 09 (1743 – 1754). Fl(s). 102v, 103, 129,. 201v, 243v.
64
registrado uma série de marcas de ferrar o gado, pertencentes a seis criadores da
capitania, são eles: André da Rocha Rangel, Antônio da Fonte Rangel, Antônio Diniz,
Luiz Pereira da Cunha, Antônio de Faria Machado e Manuel de Souza.105
De acordo
com as Ordenações Filipinas (1603-1917), de cada um dos registros dos gados, os
escrivães concelhios levavam $ 8,00 réis, quer fosse muito, quer fosse pouco ou
desprezível o valor de tal quantia.106
Encontra-se também na documentação da Câmara do Natal, sobretudo nos
Livros de Cartas e Provisões daquele senado, que os indivíduos que quisessem ou
tivessem a necessidade de transportar gado do Mipibú – um aldeamento indígena
situada na porção leste da Capitania do Rio Grande e ao sul da Cidade do Natal – para a
Capitania da Paraíba, deviam requerer, para isso, licença da Câmara do Natal, mas
tinham por obrigação registrar a sobredita licença em Tamatanduba, uma povoação
situada a meio caminho entre as Capitanias do Rio Grande e da Paraíba. Essa
determinação, em meio a outras, havia sido registrada em um termo de vereação, datado
de 01 de janeiro de 1682.107
De acordo com essa diretiva, observa-se uma relativa circulação de bens e de
produtos entre as vizinhas Capitanias do Rio Grande e da Paraíba, o que demonstrava a
existência de relações comerciais que haviam culminado no fluxo não apenas de
produtos comercializáveis, mas também de pessoas. Ressalta-se que ao registrar os
ferros de marcas os gados, bem como esses mesmos animais, assim como as licenças
para exportação, e nome dos proprietários, os escrivães concelhios tinham a
possibilidade de travarem contatos com importantes indivíduos que se dedicavam a
pecuária pelos sertões da Capitania do Rio Grande, algo que, possivelmente, pudesse
abrir margem para que aqueles oficiais também se inserissem nessas lucrativas
atividades. Reitera isso, como se verá detalhadamente no próximo capítulo, que muitos
escrivães eram sesmeiros e que nas justificativas que haviam apresentado para
105 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659
– 1668). Fl. 61v. 106
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 8. 107
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0177.
65
solicitarem a posse de terra, quando das petições das sesmarias, vários deles
asseveraram que eram possuidores de gados vacuns e cavalares.108
Assim, o exercício do ofício de escrivão também pôde ser utilizado pelos
próprios oficiais, visto que muitos foram também sesmeiros e criadores de gado pelos
sertões da Capitania do Rio Grande, como um meio privilegiado de obtenção de
informações sobre o mercado de seus principais produtos de comercialização, influindo
para a representação dos interesses de abastados pecuaristas, bem como de facções, as
quais os escrivães concelhios, na condição de agentes políticos, ligaram-se em diversos
momentos. Situação similar, estudada por Barbosa e Fonseca, havia ocorrido em 1741
na Ribeira do Apodi, nos sertões da Capitania do Rio Grande, quando da cobrança de
um imposto sobre o gado que era criado livre e sem marcas dos ferros de seus
respectivos proprietários, denominado de contrato do gado do vento.109
Nesse conflito,
denominado de Revolta dos Magnatas, averiguou-se o envolvimento de oficiais da
administração local em meio às facções que disputavam entre si a hegemonia pela
arrecadação do referido contrato. Nesse conflito, como será analisado no último capítulo
desse texto, figurava o então escrivão da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande,
Bento Ferreira Mouzinho,110
que havia sido escrivão da Câmara do Natal, entre 1715 e
1732.
1.1.3 A tutela entre os ofícios da câmara
Na sequência, o regimento dos escrivães previa que esse oficial concelhio não
pudesse manuscrever nenhuma despesa que fosse efetuada pelos oficiais camarários
sem o acordo prévio entre os vereadores e os demais oficiais do concelho. Esse acordo
devia ser registrado em livro, porém em título separado, devia, obrigatoriamente, que
constar a assinatura dos vereadores e mais oficiais concelhios que haviam participado da
108 Carta de Sesmaria doada a Francisco de Oliveira Banhos, em 06 de dezembro de 1676. Plataforma
SILB – RN 0033. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 10/05/2017. 109
BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. da. A Ribeira dos interesses: Contratos, fiscalidade e
conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, vol.
5, n. 9, jan.-jun., 2016. 110
Ibidem.
66
dita decisão.111
Essa cláusula do regimento dos escrivães camarários relegava a
atividade de redação da comunicação escrita institucional e administrativa do Império
ao plano hierárquico daquele órgão, pois, para a dimensão numérica, os escrivães
concelhios não podiam como visto acima, executar sua principal tarefa – a redação –,
sem que, para isso, passasse pela supervisão das autoridades da edilidade. Esse item
restringia a atuação dos escrivães face aos gastos da municipalidade, mas a finalidade
precípua remetia-se ao controle e ao balanço das receitas e despesas dos concelhos
municipais, bem como reitera, mais uma vez o caráter de supervisão ou tutela que a
cada oficial cabia realizar sobre o outro.
Porém, vale à pena ressaltar, que desde a retomada das atividades da Câmara
Municipal do Natal, em 1659, até 29 de dezembro de 1682, esse concelho não possuía
nenhum exemplar das Ordenações Filipinas, como evidencia um termo de vereação
datado daquele mesmo dia, no qual constava que após a realização da prestação de
contas pelo procurador, o Capitão Manuel Gomes da Câmara, o qual havia conferido
juntamente com os demais oficiais concelhios o livro de carga e despesa daquele senado
e, após isso, retirou-se efeitos – espécie de produto restante – das receitas para poderem
comprar um livro das Ordenações, visto que não havia nenhum exemplar no Senado da
Câmara do Natal até aquele momento.112
Assevera-se que mesmo em face da ausência
de um exemplar das Ordenações Filipinas, a que o termo de vereação fazia alusão,
observa-se que vários dos preceitos sobre a atuação dos escrivães das câmaras são
seguidos, salvo algumas particularidades que caracterizaram, grosso modo, o exercício
desses agentes no Concelho Municipal do Natal, entre os séculos XVII e XVIII. Muito
provavelmente, essas peculiaridades sejam produzidas pelo próprio caráter dúbio que os
preceitos aludiam, processando inúmeras vezes uma indistinção entre as alçadas e
competências de todos os oficiais ligados a administração.
Contudo, questiona-se esse caráter de tutela do expediente institucional, para o
caso da edilidade do Natal, efetuado pelos demais oficiais concelhios sobre o escrivão
camarário, visto que parte significativa dos oficiais da cúpula camarária eram senhores
de terra situadas no interior da capitania e onde muitos, possivelmente, vivessem,
111 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 1. 112
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0198.
67
realizando suas lides diárias nas fazendas, sejam envolvidos no cultivo da cana-de-
açúcar, do algodão ou da mandioca, seja na criação de gados. Reverbera isso, uma carta
enviada pelo Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca, ao rei D. João V,
defendendo-se de algumas acusações que lhes foram imputadas. Nesse documento,
Pereira da Fonseca asseverava que o escrivão da Câmara do Natal, o Coronel Bento
Ferreira Mouzinho, era o responsável por maquinar todas as acusações contra sua
pessoa, visto ser ele o único membro da câmara que morava naquela cidade, e os demais
oficiais concelhios residissem há várias léguas de distâncias, envolvidos nas atividades
do criatório, e que, por isso, deixavam àquele escrivão todas as funções e as direções
que lhes competiam, e por ser livre, acabava fazendo inúmeros crimes contra quem não
lhe conviesse.113
Esse relato efetuado pelo Capitão-mor do Rio Grande deixa entrever que a
possível atividade de tutela, sob a alçada das demais autoridades concelhias sobre o
exercício das atividades de manuscrição do expediente institucional, desempenhadas
pelo escrivão camarário, pelo menos para o caso do Natal, em 1726, não havia
frutificado, mormente as grandes distâncias que separavam a edilidade dos locais de
moradia dos oficiais camarários. O Capitão-mor, José Pereira da Fonseca, apontava,
ainda, que os oficiais camarários estavam envolvidos em algumas atividades pelos
sertões da Capitania do Rio Grande, como a criação de gado e o cultivo da mandioca.
Cogita-se, ainda, os limites dessa atividade de tutela, numa localidade como Natal entre
a segunda metade do século XVII e a primeira metade do século XVIII, onde existia
uma relativa circularidade dos homens nos ofícios da câmara – como se verá no capítulo
seguinte –, face à diminuta camada de homens bons e, portanto, aptos ao exercício da
governança da terra.
Outra atribuição dos escrivães das câmaras, e que constavam nas Ordenações
Filipinas (1603), era a guarda de uma das chaves da arca do concelho municipal.114
Essa
arca era uma espécie de cofre, que possuía cadeados e onde ficavam confinadas as bolas
de pelouros para as eleições. Ainda nessa mesma arca ficavam também guardadas as
escrituras, as quantias referentes à cobrança de taxas, multas e impostos efetuados pelos
oficiais camarários, bem como joias, ouro e pedras preciosas. Sobre a conservação de
113 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 111.
114 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 6.
68
uma das chaves da arca do concelho ficarem em poder do escrivão camarário, encontra-
se na documentação da edilidade do Natal inúmeras referências a esse procedimento,
figurando como uma prática bastante recorrente entre a segunda metade do século XVII
até os fins do século XVIII. Exemplo disso, e que foge um pouco a regra de apenas uma
das chaves do cofre ficar com o escrivão, havia ocorrido em 21 de novembro de 1713,
quando, após a abertura do pelouro que elegia os oficiais da câmara para o exercício de
1714, o escrivão da Câmara do Natal, Domingos Dias de Barros, havia ficado como
único incumbido de todas as chaves do cofre da municipalidade.115
Já em 1714, pouco mais de um ano após aquela vereação, em 27 de dezembro,
verificou-se mais uma vez, a prática de o escrivão camarário deter em sua posse uma
das chaves da arca da Câmara do Natal. Dessa feita, a responsabilidade sobre as chaves
do cofre havia recaído sobre dois outros oficiais da referida câmara, além do próprio
escrivão concelhio, Estevão Velho de Melo. As outras duas chaves haviam ficado em
poder do juiz ordinário mais velho, Manuel Tavares Guerreiro, e a outra com o vereador
mais velho, o Alferes Inácio Pereira.116
Averigua-se, ainda, que essa prática de se
distribuir as chaves da arca da Câmara do Natal entre os agentes que assumiram esses
três ofícios – o de juiz ordinário, o de vereador e o de escrivão –, caracterizou-se como
uma prática organizacional de caráter rotineiro para o caso dessa edilidade. Corrobora
isso, dois, dentre vários outros casos, nos quais couberam a esses agentes o resguardo e
a segurança das chaves do cofre daquela câmara. Elucida isso, uma observação
realizada em um termo de abertura de pelouro, em 21 de novembro de 1732, no qual
constava que posteriormente a retirada de um rol de oficiais eleitos para 1733, à chave
do cofre havia ficado de posse do juiz ordinário mais velho, o Coronel João Pereira de
Veras, outra com o vereador mais velho, o Coronel João de Lima Ferraz e a terceira
com o escrivão da câmara, Dionísio da Costa Soares.117
A possibilidade de ficar com uma das chaves do cofre da câmara, colocava o
escrivão na condição de um dos guardiões não apenas dos pelouros, mas de escrituras,
tombos, forais, privilégios, dinheiros, joias e pedras preciosas que pertencessem às
edilidades. Visto tudo isto, reitera-se mais uma vez tanto a situação privilegiada que
115 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0664. 116
Ibidem., Documento 0698. 117
Ibidem., Documento 1128.
69
esses oficiais galgaram no âmago da administração local, bem como a condição de
instrumentos de poder e conhecimento, as quais se junta nesse caso à possibilidade de
os escrivães atuarem, de modo decisivo, na escolha intencional dos oficiais que serviam
nas câmaras, pois por estar de posse de uma das chaves do cofre onde se colocavam as
bolas de cera influía nesse sentido. Conjectura-se que, diante da legislação que estava
prevista para isso, no caso dos ofícios eletivos – de juízes, de vereadores ou de
procuradores – não podiam ser exercidos em um mesmo mandato por indivíduos que
fossem parentes ou cunhados até o quarto grau de consanguinidade.118
Todavia, essas determinações não se aplicavam a relação diametral entre os
ofícios da cúpula camarária e o de escrivão concelhio, o que havia aberto margem para a
manipulação e efetivação de interesses de determinadas famílias. Exemplo disso, havia
ocorrido em 1723, quando era escrivão da Câmara do Natal o Coronel Bento Ferreira
Mouzinho e Juiz Ordinário João Guedes Alcoforado, os quais eram, respectivamente,
genro e sogro.119
Nesse mesmo ano, o escrivão Ferreira Mouzinho foi acusado pelo
Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca, de redigir várias acusações falsas
contra esse capitão-mor. De acordo com a vítima, o escrivão procedia de forma errada
no desempenho de seu ofício por ser apoiado por seu sogro.120
Assim, em face da
concepção polissinodal do poder, este seria exercido de maneira repartida, delegada e os
oficiais da administração possuíam autonomia de decisão, visto que exercer um ofício
significava desempenhar suas funções e usufruir de seus privilégios, algo que invalidava
o caráter de tutela que cabia a cada um dos oficiais concelhios sobre outrem.
O regimento dos escrivães concelhios prescrevia, ainda, que esses oficiais
fossem encarregados das tarefas de lerem e publicarem, mensalmente, no início de cada
vereação o regimento dos almotacés e dos demais oficiais da vereação.121
Nesse sentido,
constata-se que essa tarefa também havia figurado no rol das atividades dos escrivães da
Câmara do Natal. Exemplo disso foi o fato de que no primeiro dia do mês de janeiro de
1682, um termo de vereação descrevia que os oficiais concelhios haviam mandado o
escrivão, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa, ler os Livros de Postura e os Livros de
Vereação diante dos demais oficiais concelhios a fim de que fossem executados todos
118 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 67. 119
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 02, Doc. 114. 120
Ibidem., Doc. 111. 121
PORTUGAL. op. cit., Liv. I, tít. 71. § 7.
70
os mandados e posturas, com a intenção de respaldar o procurador, o Capitão Manuel
Gomes da Câmara, na cobrança dos débitos que as pessoas deviam ao Senado da
Câmara do Rio Grande.122
De modo mais específico, o escrivão concelhio do Natal
igualmente havia efetuado, por distintas vezes, a determinação de ler o regimento e
demais resoluções para os almotacés que serviam no interior e exterior da edilidade,
assim como de outros oficiais. Outro exemplo, nesse contexto, foi quando os oficiais
camarários acordaram de ir a Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, situada na
Cidade do Natal, em 19 de fevereiro de 1791, para a posse do novo Governador da
capitania, Caetano da Silva Sanchez, onde o escrivão, Inácio Nunes Correia Tomás,
havia de ler a nomeação daquele Governador.123
De acordo com Teresa Fonseca, essa
atividade em entradas régias ou de prelados, bem como em cerimônias festivas ou de
quebra de escudos faziam parte das tarefas que competiam aos escrivães, mas que
extrapolavam os liames das determinações postas por seus regimentos.124
Visto tudo isto, observa-se ainda que o regimento dos escrivães concelhios
advertisse, no sétimo parágrafo, que caso esses oficiais não lessem o regimento e outras
resoluções, bem como não assinassem nos respectivos documentos acerca do exercício
do ofício dos almotacés e demais oficiais camarários, os mesmos escrivães podiam ser
penalizados com uma multa de $ 200 réis para as despesas do concelho, em cada vez
que não procedessem conforme o que estava estipulado nas Ordenações. Essa
penalização seria aplicada pelo procurador do concelho, o qual ficava responsável por
escrever sobre o dito escrivão camarário, assim como enviar essas informações ao
escrivão da almotaçaria.125
Não obstante, os escrivães camarários também eram encarregados de
realizarem a leitura de documentos avulsos da edilidade, não apenas de nomeação de
outros oficiais concelhios ou de outras esferas da administração política da capitania.
Isso ocorreu, em 20 de janeiro de 1678, quando o escrivão da câmara havia lido os
acordos firmados pelos oficiais que haviam servido anteriormente no âmago da
122 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0177. 123
Ibidem., Documento 2882. 124
FONSECA, Teresa. O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas
administrativas. In: Ibidem.; CUNHA, Mafalda Soares da (eds.). Os Municípios no Portugal Moderno:
dos forais manuelinos às reformas liberais. Lisboa: Edições Colibri & CIDEHUS-EU, 2005. p. 4. 125
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71. § 7.
71
instituição concelhia, cabendo aos atuais ocupantes dos ofícios de decisão, concordarem
ou não em manter vigentes as disposições precedentes.126
Por fim, o desempenho de todo esse extenso rol de atividades pelos escrivães
concelhios acabava por projetá-los politicamente no cenário local de extensão dos
termos das municipalidades, onde, mormente, desempenhavam seus ofícios. A posição
de destaque que esses oficiais haviam passado a gozar, se devia, sobretudo, ao
progressivo processo de organização da vida política e administrativa pelo Império, sob
os auspícios da monarquia portuguesa. Isso decorria do caráter estrutural que os
escrivães camarários desempenhavam na administração e, consequentemente, na
configuração geral dos sistemas de poderes que formavam o Império, responsável pela
comunicação escrita que havia alargado, espacial e temporalmente, a esfera da atuação
política d’El Rey.
1.3 Emolumentos e salários
O Título 82 do Livro I das Ordenações Filipinas (1603-1917) foi elaborado
exclusivamente para elencar cada uma das tipologias documentais que eram das alçadas
dos escrivães das câmaras e dos escrivães da Fazenda Real. Deter-se-á nesse item a
enfatizar cada um desses documentos que eram redigidos pelos escrivães concelhios,
correlacionando-os com os valores emolumentares que seriam barganhados por aqueles
oficiais na manuscrição do expediente institucional, bem como de outros registros
escritos que careciam de passar por seus crivos. Para isso, elaborou-se uma tabela na
qual se demonstra quais eram os documentos a serem redigidos e os valores
correspondentes previstos na legislação. Objetivou-se, com isso, perceber os limites e o
alcance do que José Viriato Capela havia observado para o caso de vários municípios do
Minho, como “avultados ordenados e chorudas propinas” auferidas pelos escrivães
camarários, em alguns concelhos reinóis.127
126 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0096. 127
CAPELA, José Viriato. O Minho e os seus municípios. Estudos econômicos-administrativos sobre o
município português nos horizontes da reforma liberal. Dissertação (Mestrado em História das
Instituições e Cultura Moderna e Contemporânea) – Universidade do Minho, Braga, 1995. p. 145.
72
Abaixo, visualizam-se na Tabela 1, as determinações das Ordenações
Filipinas (1603) para os valores que correspondiam a cada tipologia documental
manuscrita pelos escrivães camarários. Tais documentos dividiam-se, de modo geral,
em cartas, termos, alvarás e registros referentes a injúrias verbais ou aos assentamentos
do gado. Desse modo, de acordo com as Ordenações Filipinas (1603), a correlação
entre documento e valor percebido pelos escrivães camarários dessa atividade,
organizava-se da seguinte forma:
Tabela 01 - TIPOLOGIAS DOCUMENTAIS REDIGIDAS PELOS ESCRIVÃES
CONCELHIOS E RESPECTIVOS VALORES AUFERIDOS DA REDAÇÃO DO
EXPEDIENTE INSTITUCIONAL (1603)
Tabela 01: TIPOLOGIAS DOCUMENTAIS REDIGIDAS PELOS
ESCRIVÃES CONCELHIOS E RESPECTIVOS VALORES AUFERIDOS DA
REDAÇÃO DO EXPEDIENTE INSTITUCIONAL (1603)
Tipologias documentais Valores previstos
Injúrias verbais 14 réis
Registros do gado (qualquer que seja) 8 réis
Termo de obrigação 6 réis
Termo de fiança 6 réis
Termo de requerimento 6 réis
Alvará 8 réis
Carta de pergaminho de ofício de
Desembargador
150 réis
Carta de pergaminho do ofício de Corregedor 150 réis
Carta de pergaminho do ofício de Juiz de
Fora
150 réis
Carta de oficiais concelhios 150 réis
Carta de confirmação de Cavaleiro de alguma
ordem
150 réis
Carta de Almotacé (que servem durante 3
meses)
150 réis
Carta de ajudante de Escrivão 150 réis
Carta de ajudante de Tabelião 150 réis
Cartas para Mosteiros e pessoas eclesiásticas
possuírem bens de raiz
150 réis
Carta de procuração e uso de letras de
Letrados
150 réis
73
Cartas quaisquer de autorização ou de licença
de ofícios
150 réis
Carta de doação de terras 500 réis
Carta de confirmação de jurisdição 500 réis
Carta de Alcaidaria-mor 500 réis
Carta de privilégio ou outras semelhantes 500 réis
Alvará e provisão 60 réis
Alvará com valor de carta por tempo
ilimitado
100 réis
Carta de diligência 30 réis
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.128
Demonstram-se na Tabela 1, os valores, em réis, que cabiam aos escrivães
concelhios mediante a redação de cada uma das tipologias documentais que passassem
por suas mãos. Segundo Raphael Bluteau, a tipologia carta remeter-se-ia a um papel que
estivesse escrito a alguma pessoa ausente.129
Ou seja, seria a essa possibilidade de falar
aos ausentes que, de acordo com Marília Nogueira dos Santos, a carta podia ser
compreendida como um instrumento de dominação dupla, visto que esses documentos
fossem dotados de conteúdo documental e simbólico, mas que também representavam a
publicitação desta mesma dominação – sendo um tipo de escrita oficial do Império –
que tornava a todos visível.130
Quanto ao significado de termo, não foi possível verificar
a origem ou o sentido da palavra para a tipologia documental que representava. Porém,
verifica-se que os termos constituem-se como espécies de acordos que os oficiais de
uma determinada edilidade chegavam, de forma conclusiva, sobre um determinado
assunto de interesse local (grifos nosso).
Quanto ao “alvará”, de acordo com Raphael Bluteau, trata-se de uma
terminologia de origem arábica, mas também utilizada pelos castelhanos, remetia-se a
uma cédula, espécie de diploma, expedida pelos príncipes.131
Era por meio das cartas e
128 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir do conjunto: PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed.
Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. Liv. I, Títs. 71, 82. 129
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. Disponível em: <http://
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/carta>. Acesso em: 28 de março de 2017. Ver verbete
“carta”. 130
SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o papel da
correspondência no Império português do século XVII. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria
Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 173. 131
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. Disponível em: <http://
74
dos alvarás que o Império moldava-se, mediante a conexão de suas diversas partes,
formando também redes de poder, segundo Marília Nogueira dos Santos, foi através
dessas duas tipologias que o Império “ia sendo escrito.”132
Os alvarás, que tinham força de lei, eram publicados para informar a população
sobre as decisões régias relativas a questões de abrangência geral. Muitos desses alvarás
eram enviados de Lisboa, ou seja, emanados do reino – Portugal – para as possessões
ultramarinas – na América, na África e na Ásia. Outros documentos, porém, possuíam
significado mais restrito, remetendo-se mesmo a dimensão privada dos bens de raiz.
Exemplo desses eram as cartas de doações de terra – também chamadas de cartas de
sesmarias ou de chãos de terra. Mais um registro de bem de raiz foi todos aqueles que se
remetessem ao assentamento do gado vacum, qualquer tipo de documento que se fizesse
desse bem. “Ressalta-se também que das tipologias documentais elencadas, chama-se a
atenção para a expedição das provisões”, as quais se remetiam ao exercício de diversos
ofícios, tanto aqueles desempenhados no âmago da instituição camarária, como os que
foram realizados no interior das ouvidorias gerais ou das corregedorias das comarcas,
bem como a comunicação manuscrita de licenças para o desempenho de ofícios
mecânicos.
Nesse rol, elencam-se também as cartas de registro de bens de raiz de
indivíduos religiosos ou em nome de mosteiros e abadias, os quais, ao que parece,
conforme as prescrições específicas das Ordenações Filipinas (1603), deviam ser
tratadas de maneira distinta dos demais indivíduos de uma mesma sociedade. Aponta-
se, ainda, para as cartas de confirmação de jurisdições, geralmente delegadas a agentes
sociais que eram incumbidos de cargos ou ofícios de mando e/ou de chefia. Nesse
conjunto, podem-se mencionar as cartas de jurisdição dos capitães-mores, dos
ouvidores, dos corregedores, dos provedores da fazenda, os quais possuíam sob suas
alçadas a competência da gestão de espaços geograficamente determinados, bem como
de responsabilidades e competências que lhes caberiam. Salienta-se, ainda, que, de
acordo com as Ordenações Filipinas (1603), os valores estipulados nesse regimento
podiam ou não sofrer algumas alterações, conforme os costumes e as aplicações que
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/alvar%C3%A1>. Acesso em: 28 de março de 2017. Ver
verbete “alvará”. 132
SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o papel da
correspondência no Império português do século XVII. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria
Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 176.
75
fossem comuns a cada comunidade.133
Desse modo, a própria legislação, que havia
entrado em vigor em 1603, com a publicação do Código Filipino, que havia se remetido
ao ofício de escrivão concelhio havia sofrido distorções e adaptações, que muito
refletiam os costumes de cada paragem. Isso ratificava a discussão da sobreposição das
leis costumeiras de cada localidade, por sobre a legislação oficial.134
Observa-se, ainda, de acordo com a Tabela 1, que existia uma gradação
remuneratória entre as diversas tipologias documentais manuscritas pelos escrivães
camarários. Possivelmente, um dos fatores dessa diferenciação entre o valor
remuneratório de cada documento, correspondesse diretamente à extensão física dos
mesmos, o que acarretava em gastos com tinta e papel – pergaminho – diferentes, aos
quais, de modo provável, somar-se-ia o trabalho de manuscrição efetuado por aquele
escrivão, bem como a necessidade burocrática de essas tipologias passarem pelas mãos
de outros oficiais como, por exemplo, dos juízes ordinários, dos vereadores e/ou dos
procuradores, carecendo, com isso, da assinatura e sinete – espécie de carimbo – desses
oficiais concelhios e da aplicação do selo da edilidade.135
Nesse sentido, observou-se anteriormente que o papel era um instrumento
essencial ao desempenho cotidiano das atividades políticas e institucionais concelhias
de registro do expediente burocrático, para o caso da Capitania do Rio Grande. Tal fato
era indicativo, ainda, do grau de desenvolvimento técnico e administrativo que os
escrivães concelhios puderam oferecer, por meio das câmaras, ao prestarem serviços de
manuscrição de tipos documentais de interesse da própria população local, que operava
transformações políticas e culturais de grande mote para a Coroa lusitana, mediante a
atuação desses oficiais especializados, em âmbito local.
Como um desses mecanismos de transformação cultural e política, poder-se-ia
citar aqui, o papel que a comunicação escrita havia desempenhado, ao suplantar outras
vias de comunicação institucional, produzindo efeitos institucionais em espacialidades
distantes do centro de irradiação do poder.136
133 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 71.§ 10. 134
Para saber mais sobre a supremacia das leis costumeiras sobre o direito oficial português moderno, ver
CABRAL, Gustavo César Machado. Direito natural e iluminismo no direito português do final do
Antigo Regime. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2011. 135
PORTUGAL. op. cit., § 5. 136
HESPANHA, António Manuel. Centro e Periferias nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime.
In: Ler História, n. 8, 1986. p. 47.
76
Para António Manuel Hespanha, a introdução do sistema escrito havia induzido
a discriminação social que será latente durante todo o período Moderno como, por
exemplo, a clássica distinção que havia oposto alfabetizados e analfabetos. Essa
situação processava a marginalização de uma parcela da sociedade em Portugal, pois
decorria disso a necessidade de mediadores entre aqueles dois mundos – letrado e não
letrado –, que manipulassem as habilidades da leitura e da escrita.137
Nesse sentido, no
contexto da Capitania do Rio Grande, os escrivães da Câmara do Natal foram os
responsáveis por mediarem o mundo letrado e o mundo não letrado, e vice-versa,
sobretudo por meio da redação dos tipos documentais citados na Tabela 1, a partir dos
quais os escrivães figuravam como intermediários, tanto no sentido ascendente quanto
descendente, da comunicação institucional manuscrita, no interior do sistema de
organização administrativo e político do Império luso.
Observou-se também, ainda de acordo com Tabela 1, que os valores previstos
para a redação de cada tipo de documento eram significativos para a sociedade de
Antigo Regime, culminando com a possibilidade de os escrivães concelhios angariarem
quantias consideráveis no exercício de seus ofícios. A gradação valorativa expressa
naquela tabela de cada tipo documental havia variado consoante a recorrência, bem
como a abrangência do alcance de cada um dos documentos. Em primeiro lugar,
figuravam os tipos documentais que concediam privilégios, doações e jurisdições, os
quais se remetiam a camadas importantes da sociedade do Antigo Regime e
economicamente favorecidas. Seguiam-se a esses, as provisões dos altos escalões da
administração judicial – desembargadores, ouvidores e juízes de fora –, na sequência os
que se relacionavam a esfera da administração local – oficiais concelhios, almotacés,
ajudantes de tabelião e de escrivão –, depois os bens de religiosos, dentre outros. Os
alvarás e as provisões estavam em terceiro lugar, acompanhadas, por conseguinte, por
outros documentos mais usuais no cotidiano administrativo das comunidades locais.
Assevera-se que essas diferenciações valorativas pela escrita de cada tipo documental
reproduziam a recorrência e as especificidades de cada objeto de escritura, aos quais se
somavam também a extensão dos mesmos, com gastos de tinta e papel diferentes e,
como se viu em itens anteriores, eram relativamente caros e difíceis de serem acessados.
Evidencia isso, que nas Ordenações Filipinas (1603), de acordo com António Manuel
137 HESPANHA, António Manuel. Centro e Periferias nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime.
In: Ler História, n. 8, 1986. p. 47.
77
Hespanha, o montante remuneratório dos emolumentos notariais eram contabilizados
por linha, no Antigo Regime.138
Tudo isso, havia traduzido no desenvolvimento gradual, porém ininterrupto,
que possibilitava a existência simultânea do sistema de comunicação escrito e do
universo administrativo tradicional oral. Os vários tipos documentais, responsáveis por
esse reorquestramento, funcionaram como mecanismos tradutores das mensagens que se
pretendia repassar, tanto do sentido oral para o escrito, quanto do escrito para o oral,
sendo os escrivães, no geral, mas também os tabeliães, os principais mediadores de tal
processo. Isso havia aberto margem para as interações entre esses dois mundos, que
conviveram coetaneamente, mesmo que a Coroa fomentasse o registro escrito, visando
funções de controle e de recurso.139
Entretanto, ressalta-se que a via da comunicação
escrita foi assinalada por uma uniformização estritamente metódica, cujos arranjos
dependiam da tipologia documental em apreço, mas cuja viabilização aniquilava os
localismos possibilitando, com isso, o entendimento entre ambos os polos do canal
interativo, sendo esse o sentido primordial e basilar para a gerência do vasto Império.
Porém, acerca da possibilidade de sobreposição da legislação costumeira às leis
oficialmente editadas diretamente pelo centro de poder da monarquia portuguesa,
aludem-se os valores atribuídos pela própria redação da comunicação escrita,
processada pelos escrivães concelhios. Exemplo disso, mas de modo mais restrito a
edição de cartas para o exercício de ofícios, tanto na edilidade como em outros órgãos
da administração, na Capitania do Rio Grande, datado de 01 de janeiro de 1682, foi o
termo de vereação que havia se remetido aos valores a serem pagos pelos indivíduos
que necessitassem de algumas tipologias de cartas de provisão de ofício, como se
observa abaixo, na Tabela 2.
138 HESPANHA, António Manuel. Centro e Periferias nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime.
In: Ler História, n. 8, 1986. p. 48. 139
Ibidem., p. 46.
78
Tabela 02 - Tipologias documentais emitidas pelos escrivães da Câmara do Natal
(1682)
Tabela 02. TIPOLOGIAS DOCUMENTAIS EMITIDAS PELOS ESCRIVÃES
DA CÂMARA DO NATAL (1682)
Tipo de documento Valor previsto
Carta Patente de Capitão de
Infantaria da Ordenança
10 Cruzados (4.000 réis)
Carta Patente do Posto de Alferes 2.000 réis
Carta de Provisão de Escrivão 10 tostões (1000 réis)
Carta de Provisão de Tabelião 10 tostões (1000 réis)
Carta de Provisão de Meirinho 640 réis
Carta de Provisão de Escrivão das
Varas
320 réis
Carta de Provisão de Juiz de Vintena 1 cruzado (400 réis)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.140
Os valores previstos, referidos na Tabela 2, eram as quantias pagas por cada tipologia
documental ao Concelho do Natal. Observa-se que existia uma gradação nesses pagamentos,
assim como existia para aqueles que foram listados na Tabela 1. Assim, verifica-se também que
os valores previstos para serem pagos aquela edilidade havia se estruturado consoante o
significado político de cada ofício ou patente listada. Entretanto, não foi possível perceber
quanto o escrivão, de modo particular, levava de cada um desses documentos que por eles eram
redigidos. Contudo, na sequência do termo de vereação que havia estipulado tais valores,
verifica-se que o salário do escrivão da Câmara do Natal havia sofrido um reajuste,
equiparando-se as somas percebidas por esses mesmos oficiais em outras vilas e cidades pelo
Império.141
Esse reajuste perfez $ 5 mil réis, totalizando em $ 15 mil réis a serem pagos como
vencimento ao escrivão camarário daquela edilidade.142
No entanto, salienta-se que esses
vencimentos do escrivão concelhio haviam oscilado no decorrer do tempo, visto que em 2 de
maio de 1711, o salário desse oficial também havia sofrido outro reajuste de 2 mil réis, porém,
de acordo com o termo, tal vencimento totalizava a quantia de 14 mil réis e não de 17 mil réis
140 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir do conjunto: LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos
Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal (1672-1815). Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento 0177. 141
Ibidem. 142
Ibidem.
79
como esperado.143
Soma-se a isso, que os cargos e os ofícios sobre os quais a câmara
estipulava o valor a ser cobrado das cartas de provisão de ofício, remetiam-se
diretamente àquelas ocupações cujo provimento dar-se-ia pelo próprio concelho.
Exemplo disso foi às cartas patentes das companhias de ordenança locais,
providas pelos capitães-mores, mesmo que em alguns casos os camarários se
imiscuíssem nas escolhas. As companhias de ordenanças locais constituíram-se como
outro polo autônomo de poder, em nível local.144
Acrescentam-se aqueles documentos,
os ofícios que eram desempenhados em outras localidades que estivessem sob a alçada
dos respectivos concelhos como, por exemplo, ocorria com as provisões nos ofícios de
juiz e de escrivão de vintena – responsáveis pela aplicação da justiça em povoações
muito distantes do núcleo da municipalidade e que tivessem uma quantidade
significativa de moradores. Bem como, dos ofícios ligados à administração periférica,
oportunamente dos ofícios de escrivão e de tabelião.
Averigua-se que, possivelmente, os valores que haviam sido determinados pelo termo
de vereação, explicitado na Tabela 2, também tenham sido atualizados sobre aquele que
anteriormente se pagava da manuscrição dos mesmos. Com isso, os escrivães também teriam a
sua parcela no mote, visto que também se havia determinado que todos aqueles indivíduos que
tivessem provisões de ofícios e cartas patentes precisassem registrá-las novamente na edilidade.
Esse termo demonstra, ainda, como os interesses dos escrivães camarários coadunavam-se aos
dos demais oficiais concelhios. Ressalta-se também que essa determinação fazia com quê
constantemente afluísse dividendos para a Câmara do Natal, posto que as provisões, sobretudo,
aquelas que se encontravam citadas na Tabela 2, eram de duração anual – para o caso dos juízes
de vintena e dos escrivães dessa vara –, quanto aos de tabelião e de escrivão podiam, inclusive,
serem trimestrais, como se verá adiante.145
Observa-se, ainda, segundo a Tabela 2, que os valores de algumas tipologias
documentais sofreram alterações em relação aquilo que estava estabelecido pelas
Ordenações Filipinas (1603) – como analisado na Tabela 1 –, visto que as cartas de
provisão para os ofícios de escrivão e de tabelião custavam ambas, de acordo com o
143 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0569. 144
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 376. 145
LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. “Homens de préstimos e consideráveis cabedais”: o perfil
do grupo social de escrivães da câmara de Natal, Capitania do Rio Grande. III Encontros Coloniais.
Natal, 14-17 de jun. de 2016. p. 8. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/encontroscoloniais-
lehs/textos/ABIMAEL-MOURA.pdf>. Acesso em: 24/02/2017.
80
regimento dos escrivães concelhios, a soma de $ 150 réis.146
Enquanto isso, nos termos
de vereação da Câmara do Natal estes valores correspondiam à quantia de 10 tostões, ou
seja, de $ 100 réis, ou seja, relativamente inferior àquilo que indicava as Ordenações.147
Todavia, tais disparidades reiteram o parágrafo 10 do regimento dos escrivães, segundo
o qual os valores dos tipos documentais obedeciam, precipuamente, aos costumes das
localidades, no que concerniam a levar menos ou mais da manuscrição dessas
cédulas.148
Os três primeiros agrupamentos de tipos documentais, de acordo com a Tabela
1, lavrados pelos escrivães das câmaras municipais, expressavam valores significativos
para o contexto pessoal e social mais amplo, visto que os valores auferidos por esses
oficiais podiam ser compreendidos como elementos polivalentes, indiciadores de uma
determinada condição social e aquisitiva na hierárquica sociedade estamental do Antigo
Regime, na qual honra, prestígio, poder e status eram elementos nobilitadores e
diferenciadores que caminhavam de mãos dadas, ora dilatando, ora contraindo a
imagem desses mesmos agentes diante de seus pares sociais. Diante disso, pode-se
compreender, de acordo com Joaquim Romero Magalhães e Maria Helena Cruz Coelho,
que o ofício de escrivão camarário fosse ocupado no reino por pessoas geralmente
nobres, porém de recursos modestos.149
O desempenho do ofício de escrivão da Câmara do Natal, nesse período, era
indicativo de uma condição social diferenciada, em meio a vários outros ofícios
desempenhados em âmago concelhio – visto que não granjeassem ordenado anual, nem
emolumentos ou propinas do exercício de seus ofícios –, bem como também em outros,
situados exteriormente a essa instituição – a situação de indivíduos que não
pertencessem à edilidade. Verifica-se com isso, que os agentes que haviam ocupado a
escrivania da Câmara do Natal, detiveram um relativo poder de barganha, em âmbito
local, posto que os valores auferidos da redação do expediente administrativo propiciar-
lhes-iam considerável poder de barganha. Reitera-se que os escrivães camarário
146 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 82.§ 12. 147
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0177. 148
PORTUGAL. op. cit. Tít. 71.§ 10. 149
COELHO, Maria Helena Cruz; MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio. Das origens às
cortes constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. p. 49.
81
angariavam quantias em dinheiro não apenas por meio da escrita documental, mas
também pelo recebimento de ordenados fixos, pagos anualmente pela Coroa,
consorciando ganhos emolumentares aos vencimentos salariais.150
Sobre essa questão, o
terceiro capítulo apresenta os valores devidos à avaliação do ofício de escrivão
camarário da Cidade do Natal, em dois diferentes momentos do século XVIII,
assinalando como esses valores implicavam, inclusive, no processo de escolha para a
concessão perpétua desse ofício.151
1.4 Os escrivães como intermediários nas redes institucionais de circulação de
informações administrativas pelo Império
Nesse tópico, pretende-se compreender os escrivães camarários como
intermediários ou broker’s, que atuavam principalmente no interior da periférica
Câmara Municipal da Cidade do Natal, remetendo-se não apenas a Capital do Império –
Lisboa –, mas também com diferentes porções da Capitania do Rio Grande, de modo
específico, e da América portuguesa, de forma geral. Desse modo, com a finalidade de
conferir uma dinamicidade a esse item, bem como uma visualização prática dessas
imputações, lançou-se mão de casos práticos, relativos ao exercício burocrático dos
escrivães concelhios da Câmara do Natal, a título exemplificativo, com o objetivo de
verificar os limites e as amplitudes dessa atuação, em face do deblaterado e irrestrito
controle processado pela regulamentação dos ofícios, prescritos nas Ordenações
Filipinas (1603), analisadas nos itens anteriores.
Ademais, depreende-se, mediante a documentação consultada, que algumas das
atribuições estipuladas pelas Ordenações Filipinas (1603), aplicaram-se a realidade
vivenciada e as práticas organizacionais desenvolvidas pelos escrivães camarários no
cotidiano administrativo do Concelho do Natal. Outras prescrições, porém, não foram
possíveis de se confrontar devido, sobretudo, aos limites das fontes disponíveis.
Constatou-se, ainda, o envolvimento desses mesmos agentes em atividades burocráticas
150 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 177-178. 151
Sobre a venalidade de ofícios pelas monarquias ibéricas, ver CHATURVEDULA, Nandini &
STUMPF, Roberta (Orgs). Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e
venalidade (séculos XVII-XVIII). Lisboa: CHAM – Centro de História do Além-Mar, 2012.
82
provenientes das especificidades econômicas regionais que assinalaram a economia da
Capitania do Rio Grande, diferenciando-se das demais capitanias como, por exemplo, a
criação do gado – vacum e/ou cavalar –, como se viu acima.
Salienta-se, de acordo com E. Bott, que o broker ou intermediário havia se
caracterizado pela funcionalidade de mediador entre diferentes pessoas, grupos,
instituições, áreas ou localidades. Entretanto, como assevera aquele autor, essa
intermediação entre os grupos sociais podia ocorrer sem que necessariamente todos os
implicados se conhecessem.152
Esses broker’s ou intermediários são os responsáveis
pelas articulações entre as redes densas de relacionamento, apontadas e discutidas por
Tiago Luis Gil.153
Desse modo, entende-se os escrivães camarários como broker’s ou
intermediários que situados no interior da Câmara do Natal, um órgão administrativo
essencialmente periférico da monarquia portuguesa, entre 1613 e 1759, foram os
principais encarregados da redação ou manuscrição do expediente institucional que se
remetia, em sentido bilateral, ora ao reino – Lisboa –, ora às demais capitanias da
América portuguesa e mesmo com diferentes espaços de sociabilidade no interior da
própria Capitania do Rio Grande, cujas atribuições burocráticas haviam agido no
sentido de integrar diferentes porções do Império ultramarino português, conferindo
significado, unicidade e coesão.
Reitera-se, ainda, que o conceito de broker também significasse corretor.
Assim lança-se mão deste termo, de maneira mais enfática, a Antropologia Política,
posto que essa ideia de intermediário, em face de suas ações, passasse, pouco a pouco, a
acumular benefícios pessoais ou de grupo – que sejam materiais ou simbólicos –, pela
sua posição de intermediário, enquanto uma prática eminentemente social. Logo, essa
condição diferencia o broker de um simples intermediário ocasional.154
Assim pensar o Império português significa compreender uma entidade de
poder que não foi geograficamente contínua, mas uma extensão recortada por longas
distâncias, tanto físicas quanto temporais, que separavam o rei de parte significativa de
seus vassalos e, consequentemente, o reino/centro político da monarquia – situado em
152 Sobre o papel do broker ou intermediário, ver BOTT, E. Família e rede social. Papéis, normas e
relacionamentos externos em famílias urbanas comuns. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 153
GIL, Tiago Luis. Redes e camadas de relacionamentos na economia: metodologias para o estudo da
confiança mercantil na América Portuguesa do Antigo Regime. In: Revista de Indias, vol. LXXV, n.
264. 2015. p. 421. 154
Para saber mais sobre essa discussão, ver GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida
cotidiana. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
83
Lisboa – das inúmeras possessões territoriais, do Oceano Índico ao Atlântico.155
De
maneira específica, para os fins da presente pesquisa, o caso da América lusa, cujas
políticas sociais e econômicas eram muitas vezes concebidas e formuladas diretamente
em Lisboa, como havia afirmado Russell-Wood.156
No entanto, esses obstáculos
naturais eram, em grande medida, remediados pela intensa troca de cartas, que se
configurava enquanto o mecanismo político de ação representativa mais efetiva, ou seja,
era por meio dessa correspondência que inúmeros conflitos eram resolvidos ou até
mesmo gerados.157
Assim, eram as práticas de escrita uma das condições culturais
indispensáveis à formação, ao desenvolvimento e a sobrevivência do Império, que
haviam subsidiado também a coesão e o desenvolvimento da monarquia portuguesa.158
Em face disso, Marília Nogueira dos Santos, havia reiterado a necessidade de
uma investigação minuciosa, a fim de se elucidar quais e quem foram os agentes
responsáveis pela atividade de redação da comunicação manuscrita na colônia.159
Para o
caso da Capitania do Rio Grande, entre 1613-1759, como esboçado parcialmente ao
longo desse capítulo, verificou-se que entre os principais incumbidos dessa tarefa de
escrituração do expediente institucional e administrativo, em âmbito concelhio, fossem
os escrivães camarários. Sobre esses oficiais havia recaído a responsabilidade de
registrar as decisões concelhias que aludiam à gestão e ao gerenciamento da Capitania
do Rio Grande.
Porém, ressalta-se que, para o caso da Capitania do Rio Grande, se encontrava
também na documentação referências esparsas aos secretários de governo, os quais
eram responsáveis pela manuscrição de tipologias documentais que houvessem de
passar pelo crivo dos capitães-mores, em assuntos relacionados ao provimento de
ofícios civis, militares e das companhias de ordenanças locais, como também por
assuntos relacionados à segurança, a guerra e a própria administração da Capitania.
Outros responsáveis pela comunicação escrita naquela capitania eram os tabeliães do
público, judicial e notas, sobretudo nos documentos que carecessem de “fé pública”.
155 SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o papel da
correspondência no Império português do século XVII. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria
Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 174. 156
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de
História. v. 18, n. 36, São Paulo, 1998. 157
Ibidem., p. 174. 158
Ibidem., p. 172-173. 159
Ibidem., p. 175.
84
Para o caso da Cidade do Natal, entre o final do século XVII e a primeira
metade do século XVIII, verificou-se que um dos ofícios de tabelião do público, judicial
e notas era de provimento anexo com o ofício de escrivão dessa municipalidade, e que
havia inclusive sido concedido, via concessão perpétua, por duas ocasiões, nas duas
primeiras décadas do século XVIII. Visto isso, reafirma-se que o recurso à prática
escrita do expediente institucional concelhio, configurou-se, reiteradamente, como o
principal dispositivo instrumental lançado pela Coroa para governar suas possessões
d’além-mar.160
Tudo isso fazia dos escrivães concelhios privilegiados instrumentos de
conhecimento, visto que poder e informações consubstanciavam-se como duas faces de
uma mesma moeda e, portanto, inseparáveis.161
A produção manuscrita dos escrivães do Senado da Câmara do Natal foi
corresponsável pelo estabelecimento de uma rede de circulação de informações, que
circunscrevera e interligara diferentes espacialidades sociais e geográficas, entre os
séculos XVII e XVIII. Tais atribuições foram elementos definidores que inseriam a
Capitania do Rio Grande no contexto macro de movimentação de informações, ideias e
discussões pelo Império português. A conjuntura subsidiária essencial dessa produção
escrita foi o desempenho da própria gestão administrativa da Capitania do Rio Grande,
cuja “normalidade” foi entrecortada por alguns eventos específicos, mas com durações
variáveis, como, por exemplo, a invasão holandesa (1637-1654) e a Guerra dos
Bárbaros (1680-1720).
Durante a Guerra dos Bárbaros, havia ocorrido uma intensificação da
interlocução, por meio da troca de cartas e da expedição de alvarás e de mandados, entre
os oficiais concelhios – por meio da Câmara do Natal – e de outras autoridades locais –
os capitães-mores, sobremaneira –, mas também com outras capitanias da América lusa
– nesse caso com a Capitania de Pernambuco – e também com o próprio reino. Desse
modo, a circularidade de informações, com o vai e vêm de correspondências entre as
autoridades locais e outros agentes do poder, consubstanciou-se através da redação
160 SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o papel da
correspondência no Império português do século XVII. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria
Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 192. 161
Ibidem., p. 175.
85
manuscrita dos escrivães camarários, uma forma de integração entre diferentes espaços
sociais e geograficamente habitados do mundo luso americano na época.162
Desse modo, através da tabulação de dados que constavam nos Livros de
Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1759), buscou-se mapear as
especialidades geográficas citadas nos documentos administrativos redigidos ou
trasladados pelos mesmos escrivães dessa edilidade, no período que foi de 1659 até
1759. Para isso, elaboraram-se mapas, por meio do Sistema de Informação Geográfica
(SIG) denominado de Arcgis,163
através do qual se vislumbrou sistematizar as
informações acerca das diferentes espacialidades que mantinham correspondência direta
com a Câmara do Natal – a relação entre remetente e destinatário –, aonde os escrivães
concelhios se apresentavam na condição de principais intermediários desse processo,
redigindo ou mesmo transcrevendo as diferentes tipologias documentais – cartas,
alvarás, provisões, patentes militares das ordenanças, requerimentos, datas de sesmarias
ou chãos de terra, dentre outras. Essas correspondências eram os principais mecanismos
que haviam interligado diferentes porções do Império português à Capitania do Rio
Grande – nesse caso, de modo mais específico, com a Câmara do Natal.
Nesse ínterim, objetivou-se elaborar uma rede institucional que articulasse a
circulação de informações – por meio de diferentes tipos documentais –, a fim de se
visualizar os espaços administrativos e geográficos que mantinham comunicação
constante com a Câmara do Natal, por meio da troca de correspondências, redigidas
pelos escrivães concelhios, entre os oficiais camarários – juízes ordinários, vereadores e
procuradores – e outros agentes de poder, situados tanto a montante quanto a jusante do
intrincado complexo administrativo luso americano.
Por meio da análise da troca de correspondências, que constava nos Livros de
Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1759), verificou-se que a rede
institucional de circulação de informações da qual a Câmara do Natal figurava como um
dos principais polos, sendo os escrivães camarários os incumbidos pela redação desses
elementos, processou-se, como se verá adiante, em três diferentes níveis espaciais, que
162 Sobre a circulação de informações e a integração de diferentes espacialidade sociais e geográficas, ver
SANTOS, Milton; ELIAS, Denise. Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos e teóricos e
metodológicos da Geografia. 6. ed. São Paulo: EDUSP, 2008. 163
O Arcgis consiste em um Sistema de Informação Geográfica (SIG) utilizado para a criação de mapas,
compilação de dados geográficos, análise de informações mapeadas e gestão de informações geográficas
em bancos de dados. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cpd/servicos/computadores-e-
aplicativos/softwares-disponiveis/software-licenciado-arcgis. Acesso em: 31 de Abril de 2017.
86
sejam: intracapitania, intercapitanias e transcontinental. Dimensões essas, ligadas
eminentemente as questões jurisdicionais, que sobrepuseram uns espaços a outros, e
com os quais se tinha que manter um canal comunicativo efetivo, que pudesse viabilizar
os andamentos dos trâmites burocráticos, em consonância com as subdivisões
administrativas do Império luso.
1.4.1 A comunicação intracapitania do Rio Grande
O nível intracapitania do Rio Grande havia se caracterizado pela
movimentação de informações, através da troca de correspondências, que ocorria no
interior da própria capitania, efetuada sobremaneira entre a Câmara do Natal e outras
localidades situadas em diferentes porções geográficas da capitania, mas que estavam
sob a gestão daquele concelho. Verificou-se, ainda, que existiam duas áreas dentro da
Capitania do Rio Grande com as quais a Câmara do Natal carteava-se em maior
proporção: a área oriental e outros quinhões, situados de maneira difusa, a ocidente e a
sul dessa capitania.
Reitera-se que a porção oriental da Capitania do Rio Grande, sobretudo aquela
fronteiriça ao mar, havia se distinguido por serem as dimensões geográficas de maior
ocupação durante os primeiros anos de conquista. Essas aglomerações deviam-se,
sobremodo, as condições geomorfológicas e climáticas que caracterizavam a área.
Nesse sentido, o domínio geomorfológico que havia demarcado a parte oriental da
Capitania do Rio Grande era constituído pela Planície Costeira, que abrangia uma faixa
estreita, porém extensa, ao longo do litoral, com o clima úmido em zona de Mata
Atlântica, cujos períodos de chuvas mais intensos se davam durante o inverno.164
A
essas condições, somaram-se as características físicas e químicas dos Latossolos, que
compreendiam solos profundos, muito evoluídos devido ao estágio de intemperização,
que originaram o vulgarmente chamado massapê.165
Essas condições, em conjunto,
favoreceram para que a parte oriental da Capitania do Rio Grande fosse à detentora do
164 PFALTZGRAFF, Pedro A. S.; TORRES, Fernanda S. M. (Orgs.). Geodiversidade do Estado do Rio
Grande do Norte: Programa Geologia do Brasil. Levantamento da Geodiversidade. Recife: CPRM,
2010. p. 81. 165
Ibidem., p. 114.
87
único engenho de cana-de-açúcar, entre os séculos XVII e XVIII.166
Tudo isso, atrelado
a outras questões que serão esboçadas e discutidas mais a frente, haviam funcionado
para congregar uma quantidade significativa de pessoas vivendo na porção oriental
daquela capitania.
Nesse sentido, nos Mapas 01 e 02, buscou-se sistematizar visual e
espacialmente, a circunscrição dessas localidades, com as quais o Conselho do Natal
estabelecia comunicação, como se observa a seguir.
Mapa 01 - Comunicação intracapitania do Rio Grande através da Câmara do Natal com
as porções central e oriental da Capitania (1659-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira a partir dos Livros de Cartas e Provisões do
Senado da Câmara do Natal (1659-1759), com base no SIG Arcgis.167
166 Para saber mais sobre o único engenho existente no Rio Grande do Norte, que pertencia à família
Albuquerque Maranhão, ver MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à historio do Rio Grande do
Norte. 2. ed. Natal: Cooperativa Cultural, 2002. 167
Elaborado pelo autor, Abimael Lira, com base no SIG Arcgis, a partir do conjunto: Fundo documental
do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759).
88
No que havia tocado ao nível de interlocução intracapitania do Rio Grande,
averigua-se, de acordo com o Mapa 01, que a comunicação estabelecida pela Câmara
do Natal, via redação dos escrivães concelhios, processava-se tendo como destino ou
mesmo como emissário, as localidades que possuíam um contingente populacional
significativo. Ora essa comunicação ocorria em sentido bilateral, ou seja, quando havia
uma troca de cartas ou de outros documentos partindo tanto da Câmara do Natal, quanto
das demais localidades em direção àquela instituição, ora o envio dessas
correspondências sucedia-se de modo unívoco. Na relação de povoações que
mantinham interlocução, ou seja, tanto recebendo como emitindo comunicação com a
Câmara do Natal destacava-se, sobretudo, os aldeamentos indígenas que, mais tarde,
foram elevados à categoria de vilas, cuja administração, inicialmente, era da alçada dos
religiosos jesuítas – Aldeias de Guaraíras e de Guajirú –, dos capuchinhos – Aldeias de
Apodi e de Mipibú – e dos carmelitas – Aldeia de Igramació –, as quais estavam
submetidas ao Regimento das Missões.168
Ressalta-se que essas missões e, mais tarde vilas, possuíam contingentes
populacionais expressivos, bem como indivíduos que sabiam ler e escrever como o caso
dos missionários. O intenso vai e vem de cartas entre a Câmara e essas missões
remetiam-se, ainda, a necessidade constante de controle e supervisão que a Coroa
impetrava para essas localidades, na tentativa de integrar tanto os habitantes quanto os
próprios missionários aos ditames mais gerais do Império. Nesse sentido, o poder local
agia em representação dos interesses reinóis na colônia, dessa feita, a eles cabiam
instruir, controlar e supervisionar as missões indígenas, bem como promoverem a
diferenciação social dos indivíduos, através da concessão de patentes militares de
ordenanças para atuarem nessas mesmas localidades.
168 De acordo com Fátima Martins Lopes, a população da extinta Aldeia de Guajirú, no momento inicial
de instalação da Vila de Extremoz do Norte, em 1761, era de 1429 pessoas. No mesmo ano, a população
contabilizada que formava a Aldeia de Guaraíras, em seguida Vila de Arez, era de 949 pessoas. Já a
Aldeia ou Missão de Mipibú, contava com uma população de 1235 índios e 30 casais brancos, quando de
sua elevação à classe de Vila de São José de Mipibú, em 20 de maio de 1759. Outra Missão que foi
elevada a categoria de vila, foi a de Igramació, situada próxima às margens da desembocadura do rio que
denomina a Ribeira do Cunhaú. Porém, para que pudesse ser alçada à hierarquia de vila, à Missão de
Igramació, juntara 248 pessoas que viviam em duas malocas – espécie de aldeia pequena – que eram
próximas, somou-se a esses números também às 353 pessoas que viviam na povoação de Utinga, mais
851 pessoas que já residiam na Missão de Igramació, totalizando 1452 índios, aos quais somara-se ainda
4 luso-brasileiros e 4 pardos. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio
Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) -
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. p. 47.
89
Assim, por ser a Câmara do Natal a única instituição responsável pelo
gerenciamento da Capitania do Rio Grande até 1759, bem com das demais localidades e
povoações do interior, havia uma grande demanda de ordem geopolítica no que
competia à consolidação da posse da terra pela Coroa portuguesa. Nesse sentido, em
face dessas demandas cabia à administração instaurar projetos de ocupação e de
controle das terras e dos povos que estavam sob a tutela d’El Rey,169
daí a
imprescindibilidade de se estabelecer vias de comunicação institucional com essas
localidades, com vistas ao alcance daqueles objetivos mais amplos. Assevera-se essa
perspectiva do controle dos aldeamentos indígenas, via Câmara do Natal, o fato de que
parte significativa dos conteúdos dessa interlocução haviam se remetido as provisões
nos quadros de oficiais das ordenanças, nos quais várias vezes, os próprios escrivães
concelhios eram nomeados para postos como de Capitão, Coronel, Tenente-coronel,
Tenente, Sargento e Alferes, os quais podiam ser de cavalaria ou da tropa de pé.
Verificou-se, ainda, de acordo com o Mapa 01, que eram desses aldeamentos –
da Aldeia de Mipibú e da Aldeia de Guaraíras – que havia ocorrido uma relativa troca
de cartas com a Câmara da Cidade do Natal. Entretanto, na proporcionalidade dessas
correspondências predominavam o envio de documentos pela Câmara do Natal para os
aldeamentos. No caso da conexão entre a Aldeia de Mipibú e a Câmara da Cidade do
Natal apenas 2,22% da correspondência obedecia a esse sentido. Os outros 97,77% da
troca de informações era representado pelo envio de manuscritos entre a Câmara do
Natal e a Aldeia de Mipibú.170
Esses apontamentos reiteram a perspectiva esboçada
acima, de que o controle era a principal atividade que a Câmara do Natal tentava impor,
através dessa comunicação manuscrita, aos aldeamentos indígenas.
A correspondência, bilateral, entre a Câmara do Natal e a Aldeia de Guaraíras,
como visto no Mapa 1, cumpria-se na simetria de 87,50% e, no sentido inverso, de
apenas 12,50%.171
Essas disparidades, no que se referiam à equivalência da troca de
correspondências, podem ser explicadas conforme as obrigações que recaíam sobre a
instituição municipal e, como visto anteriormente, toda a gerência administrativa e
burocrática da Capitania do Rio Grande eram de responsabilidade dos oficiais da
169 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o
diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2005. p. 31. 170
Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1760). 171
Ibidem.
90
Câmara Municipal do Natal, dentre as quais, por exemplo, citam-se: a higiene, a
urbanização, o abastecimento, a resolução de conflitos e embates entre pessoas ou
grupos sociais, a fiscalização, o gerenciamento e regulamentação nas esferas
econômicas, políticas e sociais mais amplas.
Foi sobre esse mesmo universo de questões que o envio de correspondências
entre a Câmara do Natal e as demais porções centro-orientais da Capitania do Rio
Grande faziam alusão. Como se podem perceber, a partir da análise do Mapa 01, as
relações sociais, via troca de cartas ou de outras tipologias documentais, entre a Câmara
do Natal e as localidades de Goianinha, Utinga, das Ribeiras do Potengi, do Jundiaí e do
Ceará Mirim, e com a Aldeia Velha e a Aldeia de Guajirú, obedeciam à grandeza de
100% da comunicação. Risória exceção fazia-se sobre a interlocução processada entre a
Câmara do Natal e a Ribeira do Cunhaú, também situada na porção sul-oriental da
Capitania do Rio Grande, cujo volume era da ordem de 90%, e o remanescente, ou seja,
os 10% restante, efetivava-se no sentido Ribeira do Cunhaú-Câmara do Natal.172
Isto se
explicava pelo fato de haver sido o Engenho de Cunhaú o único núcleo econômico
relacionado à produção de açúcar de toda a Capitania do Rio Grande,173
bem como pelo
fato de vários dos componentes da família Albuquerque Maranhão, proprietários desse
engenho, haverem servido como oficiais da Câmara do Natal, entre os séculos XVII e
XVIII.
Via de regra, observou-se também a preponderância do envio de cartas entre a
Câmara do Natal e as localidades centro-sul e ocidental da Capitania do Rio Grande, na
ordem de 100%.174
Ou seja, percebeu-se que apenas o Conselho Municipal do Natal
remetia comunicação com as Ribeiras do Ceará, do Apodi, do Açú e do Seridó, bem
como com o distrito do Rio Banabuiú, como se verifica, a seguir, a partir da análise do
Mapa 02.
172 Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1760).
173 Para saber mais sobre a família Albuquerque Maranhão, estirpe proprietária desse engenho por
aproximadamente trezentos anos, ver COSTA, Helensandra Lima da. A Família do Tesouro: a
monumentalização da família Albuquerque Maranhão e a luta pelo poder no Rio Grande do Norte (1889-
1914). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
p. 12-13. 174
Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1760).
91
Mapa 02 - Comunicação intracapitania do Rio Grande através da Câmara do Natal com
as porções central e ocidental da Capitania (1659-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
175
Na Ribeira do Apodi existia também uma missão indígena que no período do
Diretório dos Índios também foi elevada a categoria de vila. Nessa aldeia que, mais
tarde foi denominada de Vila de Portalegre, em carta datada de 27 de setembro de 1761,
existiam 438 moradores,176
aos quais se somavam os religiosos que faziam parte dessas
missões. Ressalta-se, de acordo com Olavo de Medeiros Filho, que a etnia Tarairiú
dominava as bacias hidrográficas dos Rios Açú e Apodi, bem como de seus respectivos
175 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, com base no SIG Arcgis, a partir do conjunto: Fundo documental
do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759). 176
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o
diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, p. 140.
92
afluentes.177
Segundo Tyego Franklim da Silva, ao estudar o processo de
territorialização do sertão do Açú, durante as décadas de 1680 e 1720, as primeiras
tentativas de conquista e povoação dessa área haviam ocorrido durante o governo de
Antônio Vaz Gondim (1654-1663/ 1673-1677). Porém, foi no governo de Geraldo de
Suni (1679-1681), que se havia concedido as primeiras sesmarias das Ribeiras do
Seridó, do Apodi e do Açú, figurando a pecuária como o principal mecanismo de
motivação econômica que havia orientado as solicitações dos povoadores.178
No período
que foi de 1701 até 1720, foram doadas na Ribeira do Apodi 23 sesmarias e na Ribeira
do Açú, 19 sesmarias. Desse modo, observa-se que as áreas centro-ocidentais da
Capitania do Rio Grande eram extremamente dinâmicas, contando com populações
bastante diversas tanto de indígenas quanto de luso brasileiros. Tais disparidades
sociais, atreladas às motivações econômicas, impulsionaram uma série de conflitos no
contexto da Guerra dos Bárbaros, o que havia ocasionado um intenso envio de
correspondências para aquelas regiões geográficas da Capitania do Rio Grande, no
episódio que ficou conhecido como a Guerra do Açú.179
Salienta-se, ainda, que vários escrivães eram possuidores de datas de sesmarias
pelos sertões da Capitania do Rio Grande, sobretudo nas Ribeiras do Açú e do Apodi,180
onde, peremptoriamente, haviam interligado a influência administrativa que detinham
em âmbito camarário ao recebimento de mercês efetuadas pelas edilidades, reforçando
com isso, suas posições de destaque e influência social, local e regional. Atrela-se a
isso, que alguns escrivães foram nomeados para patentes militares das companhias de
ordenança que atuavam no interior da capitania, para as Ribeiras do Açú, do Apodi e do
Seridó. Essas situações fizeram com que os escrivães fossem os principais destinatários
de algumas dessas correspondências, sobretudo no que tocava as cartas de provisão que
os nomeava para oficial de alguma das companhias de ordenança espalhadas por
àquelas ribeiras.
177 MEDEIROS FILHO, Olavo. Ribeira do Açu. Subsídios para a sua história. Mossoró: Fundação
Guimarães Duque, 1988. Coleção Mossoroense, série B. n. 535. p. 7. 178
SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na
territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 60. 179
Para saber mais esse conflito, ver PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e
colonização no sertão nordeste do Brasil (1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da EDUSP, 2002. 180
SILVA, op. cit., .p. 84-85.
93
Nesse sentido, como se visualiza no Mapa 02, não se identificou nos Livros de
Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1760), nenhuma referência a
tipos documentais que houvessem sido enviados por alguma das cinco localidades
elencadas naquele mapa – Ribeira do Ceará, Ribeira do Apodi, Ribeira do Açú, Ribeira
do Seridó ou Distrito do Banabuiú – à Câmara do Natal, pelo menos para o período
pesquisado. O grosso da comunicação havia sido enviado pelo Concelho do Natal a
cada uma das respectivas localidades apontadas no Mapa 02. Dos 1337 documentos
que compõem a comunicação intracapitania do Rio Grande, 2,16% (29 documentos)
referiam-se à comunicação com a Ribeira do Apodi, 0,44% (6 documentos) diziam
respeito a Ribeira do Seridó, 4,63% (62 documentos) aludiam-se a correspondência com
a Ribeira do Açú, 0,29% (4 documento) a conexão com a Ribeira do Ceará e 0,07% (1
documento), a interlocução processada com o Distrito do Rio Banabuiú.
Grosseiramente, os principais itens dessas correspondências são as provisões para o
exercício dos ofícios de juiz de vintena, de escrivão de vintena, para os postos das
companhias militares de ordenança das ribeiras, bem como de cartas variadas que, a
depender de alguns contextos podiam remeter-se a guerra, sobretudo realizada contra os
indígenas no processo de expansão das áreas de criação na Capitania do Rio Grande,
associada que foi a interiorização do povoamento e ao adensamento de atividades
econômicas relacionadas à criação de gado pelos sertões daquela capitania.
Ainda no nível de comunicação intracapitania do Rio Grande, distingue-se as
vias de conversação manuscrita, por meio da troca de inúmeras tipologias documentais,
levadas a cabo entre diferentes instituições administrativas, a partir da redação ou
manuscrição efetuada pelos escrivães concelhios da Câmara do Natal. Desse modo,
percebe-se que a edilidade do Natal mantinha contato e diálogo frequente com outros
representantes locais do poder, como com o Capitão-mor do Rio Grande, com o
Provedor da Fazenda Real dessa mesma capitania, com alguns oficiais da Fortaleza dos
Reis Magos, com as Companhias Militares de Ordenança local, com o povo da capitania
do Rio Grande, por meio de cartas, bandos, editais e alvarás, bem como com os
moradores da Cidade do Natal, por meio de cartas convocatórias que solicitavam a
presença do destinatário e, por fim, entre os próprios oficiais camarários. Não obstante,
elaborou-se, percentualmente, a proporcionalidade dessas interações comunicativas,
desenvolvidas entre a Câmara do Natal, a Fazenda Real, a Fortaleza dos Reis Magos, as
Companhias Militares de Ordenanças locais e as demais vias interativas.
94
Em primeiro lugar, figura a troca de correspondências entre a Câmara do Natal
e os capitães-mores do Rio Grande, entre 1659 e 1760, que havia encerrado em 553
documentos, dos quais 11,39% (63) foram emitidos pela Câmara do Natal para os
capitães-mores da Capitania do Rio Grande e 88,60% (490) foram processados em
sentido inverso, ou seja, dos capitães-mores para os oficiais concelhios. Em segundo
lugar, encontram-se as correspondências deliberativas sobre a gestão da própria
instituição concelhia, com 144 documentos produzidos nesse sentido. Já em terceiro
lugar pode-se alocar a comunicação desenvolvida entre a Câmara do Natal e as
Companhias Militares de Ordenanças locais, que haviam totalizado a expedição de 61
documentos nesse mesmo sentido. O quarto lugar foi ocupado, proporcionalmente,
pelas interações sociais e institucionais entre a Fazenda Real do Rio Grande, num total
de 23 documentos, dos quais 52,17% (12) foram manuscritos no Real Erário com
destino a Câmara do Natal, e os outros 47,82% (11) haviam sido remetidos dessa
instituição para àquela. Seguidamente, em quinto lugar, aloja-se a comunicação
desenvolvida entre a câmara e a população da Cidade do Natal, perfazendo 74
documentos, dos quais 22,97% (17) eram relativos à correspondência no sentido
Câmara do Natal para o povo da referida cidade, os 77,02% (57) aludiam às petições
efetuadas pelo povo dessa municipalidade à instituição concelhia. Existiam, ainda, 227
documentos restantes, que faziam referência direta a troca de informações entre a
Câmara do Natal e todo o povo da Capitania do Rio Grande – expedição de bandos ou
mandados –, os quais se remetiam apenas a esse sentido da conexão institucional.
Destaca-se que aos escrivães concelhios havia recaído toda a redação dessa
vasta produção documental, que associados aos longos períodos de tempo nos quais
serviam no âmago das edilidades, faziam desse oficial o conhecedor da memória
institucional e administrativa local e regional, mas também de embates e conflitos entre
aqueles agentes de poder, o que havia aberto margem para que esses escrivães
camarários tomassem partido em querelas levadas a cabo pelo fissuramento do tecido
social, operado entre as facções que lutavam pela possibilidade de representação do
poder político.
Os capitães-mores eram os oficiais responsáveis, essencialmente, pela defesa e
pela segurança dos territórios que estavam sob suas jurisdições. Cabia a esses oficiais,
com algumas restrições, a provisão de alguns ofícios ligados à justiça e à fazenda, bem
como dos postos das tropas militares pagas das capitanias, podendo nomear ou indicar
95
também indivíduos para as patentes militares das companhias de ordenanças locais.181
Somam-se a isso, doações de sesmarias concedidas também pelos capitães-mores.
Assim, sobre essas dimensões relacionadas à provisão de ofícios ou de postos na
administração, havia versado parte significativa da comunicação enviada pelos capitães-
mores à câmara do Natal, inclusive dos próprios ofícios de escrivão e de tabelião, para o
início da primeira metade do século XVII. Exemplo disso foi à provisão efetuada pelo
Capitão-mor do Rio Grande, Antônio Vaz Gondim, por concessão precária do ofício de
escrivão da câmara, concedida ao Ajudante Francisco de Oliveira Banhos.182
Ou quando
esse mesmo capitão-mor havia provido na serventia de tabelião do público, judicial e
notas da Cidade do Natal, o Sargento-mor Francisco Rodrigues.183
Quanto ao envio de cartas da Câmara do Natal ao Capitão-mor do Rio Grande,
encontraram-se na documentação vários tipos de cartas, dentre as quais se podem citar
as cartas queixas contrárias às atuações indevidas por parte dos capitães-mores.
Exemplo de um tipo dessas foi a que os oficiais da câmara escreveram ao Capitão-mor,
Luís Ferreira Freire (1718-1722), ao advertirem essa autoridade que o mesmo se
abstivesse das condutas irregulares a que procedia pela Capitania do Rio Grande.184
Percebe-se com esse registro, que a câmara do Natal, bem como os seus oficiais, eram
encarregados também do gerenciamento moral e valorativo da cidade, influindo,
inclusive, nas atuações disparates dos capitães-mores, os quais eram oficiais providos
diretamente pelo rei e sobre os quais os oficiais concelhios não tinham nenhum tipo de
jurisdição. Nessas situações, os escrivães colocavam-se no entremeio de duas poderosas
instâncias de poder e autoridade local. Isso podia colocá-los diante de verdadeiros
embates, aos quais competiam, inclusive, atuarem como informantes privilegiados para
um dos polos dessas rixas.
Verificou-se também uma quantidade significativa de documentos elaborados
pelos escrivães camarários para serem utilizados no próprio âmbito concelhio, tais
como: citações a determinados oficiais, nomeações de oficiais através do sistema de
barrete, elaboração das listas de pelouros, registros dos indivíduos eleitos para os
181 CUNHA, Mafalda Soares da. Governo e governantes do Império português do Atlântico. In:
BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia do Amaral. Modos de governar: idéias e práticas
políticas no Império português. São Paulo: Alameda, 2005. p. 71. 182
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659
– 1668). Fl. 8. 183
Ibidem., Fl. 10. 184
Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720 – 1728). Fl. 31.
96
mandatos de juízes ordinários, vereadores e de procuradores, etc. Pode-se citar a título
exemplificativo, a lista de oficiais eleitos para o Senado da Câmara do Natal, em 16 de
abril de 1661, onde saíram nos pelouros: para juiz mais velho, o Capitão Francisco de
Mendonça Eledesma, para o outro ofício de juiz, Francisco Pires, para vereador mais
velho, Antônio Gonçalves de Ferreira, para vereador mais moço, Inácio Pestana, e para
procurador, Francisco Rodrigues. Esse termo foi redigido pelo escrivão da câmara,
Domingos Vaz Velho, quem também havia concedido o juramento a esses oficiais.185
Em quarto lugar, figurava a comunicação entre a câmara e as companhias de
ordenanças locais, por meio das cartas patentes ora efetuadas pelo capitão-mor, ora
efetuada pelos próprios oficiais concelhios. As companhias militares de ordenanças
locais caracterizavam-se como outra instância de poder em nível local.186
Essas
organizações, de acordo com Christiane Mello, eram constituídas por homens
recrutáveis com idades que variassem entre 18 e 60 anos, mas que fossem capazes de
combater, os quais não podiam eximir-se das tarefas relacionadas ao serviço militar não
remunerado.187
Exemplo disso foi a nomeação para a patente de Capitão das
Ordenanças, efetuada pelo Capitão-mor Valentim Tavares Cabral (1663-1670), à Pedro
da Silva Cardoso.188
Contudo, encontra-se nessa documentação menções a patentes que
foram concedidas também pelos governadores gerais, como havia ocorrido com a
nomeação de Luiz Pereira Barbosa, que foi escrivão da Câmara do Natal em 1666, para
o posto de Ajudante de Sargento-mor das Ordenanças, através de uma provisão do
Conde de Óbidos e Governador Geral do Brasil, D. Vasco de Mascarenhas, datada de 9
de maio de 1664, cuja justificativa foi que Pereira Barbosa havia servido nas guerras
contra os holandeses durante 12 anos.189
Para esse último caso, ressalta-se que o próprio
Luiz Pereira, a época do registro da carta patente, em 4 de junho de 1666, fosse escrivão
da Câmara do Natal, e que havia inclusive trasladados para o livros de registros dessa
edilidade sua própria provisão.190
185 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659
– 1668). Fl. 11. 186
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 376. 187
MELLO, Christiane Figueiredo Pagano. Forças militares no Brasil Colonial. Corpos de Auxiliares e
de Ordenanças na Segunda Metade do Século XVIII. Rio de Janeiro: E-Papers, 2009. p. 34. 188
Fundo documental do IHGRN. op. cit., Fl. 55v. 189
Ibidem., Fl. 56 190
Ibidem.
97
Observa-se a partir daquele registro que os escrivães podiam utilizar-se do
desempenho de sua função de redatores da comunicação política para solicitaram
mercês régias a diferentes agentes do poder, mesmo que as justificativas para isso não
sejam, como observado acima, o desempenho do ofício de escrivão, mas as experiências
militares angariadas em largos anos de prestação de serviços a Coroa em conflitos
importantes para assegurar o domínio luso na América. Observa-se, como se verá no
próximo capítulo, que os escrivães utilizaram-se do desempenho desse ofício para
ascenderem na hierarquia dessas companhias, e cada vez que eram nomeados, pouco
antes ou pouco depois, eram agraciados com uma patente das companhias de
ordenanças locais, configurando o exercício daquele ofício como um mecanismo de
retroalimentação positiva e ascensional, em suas carreiras administrativas e militares.
Na sequência, existia a via bilateral processada pela comunicação entre a
Câmara do Natal e a Fazenda Real. O Real Erário na Capitania do Rio Grande
incumbia-se do tratamento sobre as questões fiscais dessa capitania.191
Desse modo, na
troca de correspondências entre essas instituições haviam figurado, dentre outras
temáticas, a possibilidade de demandas de oficiais concelhios que deviam a Fazenda
Real,192
informações sobre o pagamento de determinados ofícios193
e o registro de
mandados por ordens dos provedores nas câmaras.194
Exemplo desse tipo de
comunicação, se pode mencionar o registro de uma petição encaminhada pelo
procurador da Fazenda Real do Rio Grande, na condição de procurador de Francisco
Álvares de Lima, que havia adquirido a concessão perpétua do ofício de escrivão da
câmara e de tabelião do público, judicial e notas da Cidade do Natal, ao corregedor da
comarca, pedindo a esse oficial, informações a respeito do ordenando do ofício de
escrivão concelhio.195
Percebe-se disso, que a relação entre o proprietário do ofício de escrivão
camarário e os serventuários, para esse caso específico, constituía-se através de um
intermediário que nessa situação era o procurador da Fazenda Real, despessoalizando as
191 BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Os primórdios da Real Fazenda: a Provedoria da Fazenda Real do
Rio Grande no início do século XVII. III Encontros Coloniais. Natal, 14-17 de jun. de 2016. p. 4.
Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/encontroscoloniais-lehs/textos/LIVIA-BARBOSA.pdf>.
Acesso em: 11/05/2017. 192
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 Livro de Cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro
3 (1691 – 1702). Fl. 54. 193
Ibidem., Livro 5 (1708 – 1713). Fl. 122. 194
Ibidem., Fl. 77 195
Ibidem., Fl. 122.
98
interações entre aqueles agentes. Em sentido inverso, a câmara podia se comunicar com
a Fazenda Real sobre questões relacionadas ao recolhimento de impostos, multas ou
contratos. Exemplo disso se pode citar a carta enviada pelos oficiais da Câmara do Natal
ao Provedor da Fazenda Real, João da Costa e Silva, sobre os contratos das carnes da
Capitania do Rio Grande.196
Essa situação reiterava a posição dos escrivães concelhios
como agentes detentores de importantes informações sobre a economia da capitania,
intermediando relações entre esferas distintas da administração do Império, como a
justiça de primeira instância – representada pelas edilidades – e a dimensão fiscal.
Por fim, têm-se a comunicação processada entre a câmara e a população da
Capitania do Rio Grande, por meio de bandos, editais e alvarás que objetivavam
informar a população de decisões tomadas na edilidade, ou remetidas pelo rei, ou pelos
governadores gerais do Estado do Brasil, mas também pelos governadores e capitães
generais de Pernambuco, assim como pelos ouvidores da Paraíba. Como exemplo dessa
comunicação entre a Câmara do Natal e a população do Rio Grande, tem-se o envio de
um bando pelo governador de Pernambuco, que havia mandado lançar na Cidade do
Natal, para divulgar que se estavam em busca de pessoas para irem para as Minas dos
Cariris Novos, trabalharem na mineração desse lugar.197
Esse tipo de comunicação
como se reforçará no próximo item, colocava os escrivães camarário como os primeiros
oficiais que entravam em contato com determinações superiores, de interesse não
apenas institucional, mas também social.
Nessas condições, o exercício desse ofício havia funcionado como um
mecanismo para que grupos de pressão da sociedade local obtivessem informações
exclusivas de assuntos relativos à dimensão dos interesses econômicos, como a questão
do ouro recém-descoberto na vizinha Capitania do Ceará, nas minas de São José dos
Cariris Novos. Essa possibilidade nos impele a pensar se, de fato, informações como
essa eram mesmo veiculadas publicamente para que a população tivesse acesso ou se
corria apenas nos circuitos de famílias ou grupos específicos, cujos representantes
figuravam no interior do concelho municipal. Tudo isso ajuda a compreender os
interesses familiares no monopólio do ofício de escrivão em seus interstícios, os quais
ultrapassavam os limites do prestígio social, fincando raízes nas dimensões econômicas
196 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). FL. 110v. 197
Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09 (1743 – 1754). Fl. 244.
99
para a obtenção de dividendos materiais, reificando a intercorrente ideia de que o poder
e a informação caminhavam de mãos dadas nas sociedades do Antigo Regime
português.
1.4.2 A comunicação intercapitanias da América Portuguesa (1659-1759)
De maneira contínua, prossegue-se essa análise da rede institucional de
circularidade de informações administrativas e burocráticas no nível intercapitanias, que
havia se distinguido pela determinação de comunicação entre a Câmara do Natal,
situada na Capitania do Rio Grande, e outras capitanias – sobretudo com as que estavam
fisicamente mais próximas, do ponto de vista geográfico, mas também com outras,
localizadas, em porções mais distais da América lusa, com as quais se correspondia
consoante a organização estrutural da administração da monarquia portuguesa, como se
verificar no Mapa 03.
100
Mapa 03 - Comunicação intercapitanias da América Portuguesa, via Câmara do Natal
(1659-1760)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
198
No Mapa 03 foi possível visualizar as interações institucionais, através do
envio e do recebimento de correspondências manuscritas que a Câmara da cidade do
Natal havia estabelecido com locais de sociabilidades administrativas, fixados em outras
capitanias da América portuguesa e, consequentemente, com outros agentes sociais
detentores do poder de mandos institucional, religioso, judicial e de segurança ou de
defesa. Jurisdicionalmente, consta nos Livros de Cartas e Provisões do Senado da
Câmara do Natal (1659-1759), que a Capitania do Rio Grande respondia
administrativamente, entre 1659 e 1701, direto ao Governo Geral, situado na Cidade de
198 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, com base no SIG Arcgis, a partir do conjunto: Fundo documental
do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759).
101
Salvador, na Capitania da Bahia.199
Deve-se a isso, o fato de o Rio Grande haver
deixado de ser uma capitania hereditária e quando foi revertida a condição de capitania
real, no final do século XVI,200
sua jurisdição havia ficado sob a alçada do Governo
Geral do Estado do Brasil desde aquele século, cuja data certa dessa reversão aos
domínios reais ainda corre indefinida, até 1701.
Constatou-se que a Câmara do Natal havia estabelecido diferentes vias de
interlocução com outras capitanias localizadas geograficamente de maneira proximal à
Capitania do Rio Grande. Esse diálogo, através da troca de correspondências em sentido
bilateral, foi estabelecido entre a Câmara do Natal e a Capitania de Pernambuco, entre a
Câmara do Natal e Capitania da Paraíba e entre a Câmara do Natal e a Capitania do
Ceará. Salienta-se, ainda, que outra via intercapitanias foi efetuada, de modo distal
fisicamente, entre a Câmara do Natal e a Cidade de Salvador.
Percentualmente mais expressiva, a conexão entre a Câmara do Natal e a
Capitania da Paraíba, a qual equivalia a 12% da comunicação efetuada pela Câmara do
Natal, no período que foi de 1659 até 1759 – 260 documentos remetidos ou destinados
entre esses dois polos –, como se pode verificar mediante a análise do Gráfico 01. A
dimensão desse grau de difusão entre essas capitanias explica-se pela subordinação, do
ponto de vista judicial, da Câmara do Natal e, consequentemente, de toda a Capitania do
Rio Grande, à jurisdição da Ouvidoria Geral da Paraíba.201
Desse modo, como a
Capitania do Rio Grande estava sob a jurisdição do Ouvidor e Corregedor Geral da
Paraíba, cuja principal atribuição era a fiscalização da atuação dos oficiais que
representavam a justiça em nível local, como no caso dos juízes ordinários, dos
escrivães e dos tabeliães, bem como das estruturas físicas – as obras arquitetônicas de
utilidade pública em geral – e também demográfica e territorial. Sob a alçada dos
ouvidores e dos corregedores gerais, estava, ainda, o acompanhamento das eleições
municipais para a própria Câmara do Natal. Releva-se que aos ouvidores não cabia
199 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl. 15v, 41v, 42, 48v, 104v, 108; Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 57v. 200
BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Os primórdios da Real Fazenda: a Provedoria da Fazenda Real do
Rio Grande no início do século XVII. III Encontros Coloniais. Natal, 14-17 de jun. de 2016. p. 2.
Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/encontroscoloniais-lehs/textos/LIVIA-BARBOSA.pdf>.
Acesso em: 11/05/2017. 201
PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo à sombra das Leis: Antonio Soares Brederode entre a justiça e a
criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. p. 92.
102
intromissão na esfera de atuação dos juízes de fora.202
Assim, eram sobre essas
temáticas, grosso modo, que se havia consubstanciado a troca de correspondências entre
a Câmara do Natal e a Capitania da Paraíba.
Em terceiro lugar, a transmissão de informações mais relevantes intercapitanias
foi levada a cabo entre a Câmara do Natal e a Capitania de Pernambuco, que equivalia,
percentualmente, a 8% – 170 documentos – da correspondência entre aquela edilidade e
outros espaços sociais da monarquia portuguesa, entre a segunda metade do século
XVII e a primeira metade do século XVIII. Elucida-se que esse grau de comunicação se
devia, nomeadamente, ao processo de anexação da Capitania do Rio Grande ao governo
de Pernambuco, promovida em 1701.203
Contudo, verifica-se na documentação que
existisse uma comunicação incipiente no período anterior a essa incorporação
administrativa.204
Essa comunicação consistia, basicamente, na emissão de alvarás,
bandos, cartas patentes e de provisões por parte dos governadores e capitães-generais da
Capitania de Pernambuco para a Câmara do Natal, bem como no envio por esse órgão
concelhio de cartas informativas de acontecimentos que haviam ocorrido na Cidade do
Natal e em toda a Capitania do Rio Grande.205
Outros agentes do poder também eram
contatados através da troca de correspondências, entre a Câmara do Natal e a Vila do
Recife, com, por exemplo, com o Bispo de Pernambuco ou com o Ouvidor Geral dessa
capitania.206
No caso da comunicação entre a Câmara do Natal e os Bispos de Pernambuco,
a mesma havia consistido no fato de a jurisdição eclesiástica do Rio Grande, nesse caso
da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande, sediada na Cidade do
Natal, remeter-se, peremptoriamente, ao Bispado de Pernambuco, desde 1614 até 1623,
quando voltou a pertencer ao Bispado da Bahia. Entretanto, ressalta-se que apenas em
1676 havia ocorrido o religamento definitivo que colocou a Matriz da Apresentação sob
a tutela do Bispado de Olinda,207
explica-se disso a comunicação constante entre a
Câmara do Natal e esse bispado, bem como com o Cabido da Sé. Com relação ao
202 Ibidem., p. 59.
203 RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro. A Companhia Geral de
Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 62-63. 204
Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1815). 205
Ibidem. 206
Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690). Fl(s). 96v,
116; Ibidem., Livro 5 (1708 – 1713). Fl. 119v. 207
PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. A construção da Paróquia: Espaço e participação na
Capitania do Rio Grande do Norte. Rev. Espacialidades [online]. vol. 3, n. 2, 2010. p. 6.
103
estabelecimento de comunicação com a Ouvidoria de Pernambuco, referia-se ao fato de
que, quando havia ocorrido o processo de anexação das Capitanias do Norte, a alçada da
justiça havia passado a pertencer também à Pernambuco, o que se modificaria
progressivamente com a criação da Ouvidoria da Paraíba, em 4 de dezembro de 1687,
com o objetivo de aplicar a justiça, devido a distância do Tribunal da Relação da Bahia,
o que fez com que muitas pessoas ficassem sem condições de solicitar agravo ou
apelação.208
A esse tribunal, a Capitania do Rio Grande havia passado a subordinar-se
judicialmente, visto que sua jurisdição incluía além da circunscrição territorial da
cabeça da comarca – a Capitania da Paraíba –, as Capitanias do Rio Grande e de
Itamaracá, consideradas anexas, mas que antes eram da alçada da Ouvidor Geral da
Bahia, porém face a distância geográfica que as separavam, esse oficial quase nunca
chegava a essas localidades.209
Distalmente, quando comparados às proximidades das Capitanias de
Pernambuco e da Paraíba com a do Rio Grande, averigua-se que a Câmara do Natal
havia mantido comunicação também com a Capitania da Bahia, nomeadamente com a
Cidade de Salvador, que era a sede do Governo Geral do Estado do Brasil, onde
estavam instalados os órgãos administrativos e burocráticos centrais, sob a alçada do
governador geral e, mais tarde, dos vice-reis. Observa-se que a comunicação entre a
Câmara do Natal e a Cidade de Salvador havia sido mais efetiva nas primeiras décadas
após o domínio holandês, quando, até o início do século XVIII, pertencia e respondia
jurisdicionalmente, à Capitania da Bahia.
No entanto, reverbera-se, que a sujeição da Capitania do Rio Grande à
jurisdição da Bahia foi revertida, em 1701, ao domínio da Capitania de Pernambuco,
originada a partir da instauração de disputas políticas, de caráter conflitivo, entre os
governadores-gerais, sediados na Bahia de Todos os Santos, e os Governadores e
Capitães-generais de Pernambuco. No cerne dessa questão, se encontravam pleitos entre
grupos sociais pela hegemonia do mando político, administrativo e, portanto,
institucional das Capitanias do Norte. De acordo com Vera Lúcia Costa Acioli, em seu
Jurisdição e Conflitos, a subordinação progressiva daquelas capitanias havia ocorrido
no contexto da nova realidade política experimentada no Pós-Restauração, quando
208 PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo à sombra das Leis: Antonio Soares Brederode entre a justiça e a
criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. p. 84. 209
Ibidem., p. 86.
104
imbuídos pelo imaginário social que se havia criado envolta da figura dos restauradores,
os quais cresceram em poder, prestígio e influência. Assim, foi possível visualizar no
governo de André Vidal de Negreiros, em 1657, bem como no comando de seus
sucessores, uma série de conflitos que objetivavam a anexação progressiva das
Capitanias de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Ceará ao domínio da Capitania
Pernambuco.210
Vale destacar também que a insistência nas longas distâncias que
espaçavam o Rio Grande da Bahia seria alguns dos empecilhos que entravavam o
processo de gestão burocrática, assim como a prestação de ajudas e socorros ao Rio
Grande no contexto mais amplo da Guerra dos Bárbaros.211
Outro exemplo disso, foi a
necessidade de os capitães-mores do Rio Grande prestarem pleito e homenagem ao
governador geral, em Salvador, algo que ocasionava uma viajem extensa, custosa e
extremamente perigosa.212
Diante de tudo isso, o vice-rei da Bahia, António Luís Coutinho, enviava uma
carta à Câmara do Natal demitindo de si a jurisdição da Capitania do Rio Grande, em
1701.213
Mormente, com o passar dos anos, havia ocorrido algumas restrições por parte
dos governadores de Pernambuco em questões internas ao Rio Grande, a revelia de
alguns direitos garantidos pelo tempo de suas práticas, o que acabava culminando em
longas solicitações e queixas que visavam o retorno à jurisdição do governador geral, na
Bahia de Todos os Santos.214
O conteúdo tipológico da comunicação entre a Câmara do
Natal e a Cidade de Salvador, remeter-se-ia ao envio, por parte deste, de portarias, de
cartas de confirmação de ofício, de cartas patentes, de cartas de diligência, de alvarás e
também de provisões, à Câmara do Natal. Já o concelho do Natal enviava cartas com a
210 Para saber mais sobre a estruturação da administração da América portuguesa no século XVII, bem
como as transformações pelas quais passou, ver ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos:
Aspectos da administração Colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE,
1997. 211
SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na
territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 101-103. 212
Para saber mais sobre as relações entre os capitães-mores do Rio Grande, o Governo Geral da Bahia e
o Governo de Pernambuco, ver BARBOSA, L. B. S. Da homenagem que presto a Vossa Senhoria:
relações entre os capitães-mores do Rio Grande e os governadores de Pernambuco (segunda metade do
século XVII). In: V Encontro Internacional de História Colonial, 2014, Maceió-AL. Anais do V
Encontro de Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina
(Século XVI ao XIX), Maceió, 19 a 22 de agosto de 2014 [recurso eletrônico]. Maceió: EDUFAL, 2014.
v. s/v. p. 801-808. 213
Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara. Caixa 01.
Livro 1 (1659 – 1668). Fl. 15v. 214
Ibidem., Caixa 02. Livro 08 (1738 – 1743). Fl. 101; Ibidem., Livro 09 (1743 – 1754). Fl. 70.
105
finalidade de serem dirimidas dúvidas acerca de determinadas formas de se proceder em
situações específicas da gestão burocrática. Percebeu-se também que depois do processo
de anexação da Capitania do Rio Grande ao governo de Pernambuco, a intensidade da
comunicação entre a Câmara do Natal e o Governo Geral, em Salvador, havia sofrido
uma brusca redução.
Correspondia a intensidades comunicativas ínfimas, travadas entre a Câmara
do Natal e outras capitanias da América portuguesa, têm-se a via entre o Concelho do
Natal e a Capitania do Ceará, a qual havia obedecido à ordem de 0,13% – 3 documentos
apenas –, não chegando sequer a 1%. Em verdade, todos os três documentos foram
enviados da Capitania do Ceará para a Capitania do Rio Grande, ora pela Câmara de
São José do Ribamar – 2 documentos –, ora pelo Capitão-mor do Ceará Grande – 1
documento. Nos mesmos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal
(1659-1759), verificou-se a existência de alguns documentos relativos ao período em
que as Ribeiras do Ceará Grande e do Ceará de Cima, bem como do próprio Rio
Jaguaribe, pertenciam, administrativamente, à jurisdição da Capitania do Rio Grande,
em assuntos relativos à gestão burocrática e fazendária.215
No entanto, não existe
nenhuma referência que se remeta a pensar o processo de separação da Capitania do
Ceará da Capitania do Rio Grande, sobretudo na dimensão fazendária, no final do
século XVII, bem como os resultados positivos e negativos para ambas as capitanias,
visto que o Rio Grande, depois dessa bifurcação havia passado a sofrer com constantes
crises econômicas, que afligiam, sobretudo, o balanço da Provedoria da Fazenda Real
dessa capitania, com falta de recursos financeiros até para saldar os pagamentos dos
filhos da folha.
Visto tudo isto, assevera-se, ainda, que se careça de estudos que se dediquem a
pesquisar, de modo mais detido, as relações entre o Governo Geral da Bahia com a
Capitania do Rio Grande, nos mais diferentes estratos da hierarquia administrativa, na
segunda metade do século XVII, quando esta capitania pertencia à jurisdição do
governo de Salvador. Do mesmo modo, necessita-se também de trabalhos que
examinem o progressivo processo de submissão e restrição econômica e administrativa
215 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de Cartas e Provisões do Senado da Câmara. Livro 4
(1702 – 1707). Fl. 133; Ibidem., Livro 2 (1673 – 1690). Fl(s). 62v, 66, 66v.
106
da Capitania do Rio Grande à Capitania de Pernambuco, iniciada em 1701.216
Assim
como, as diversas formas de resistência empreendidas pelos órgãos institucionais do Rio
Grande, ao burlarem e quebrarem essa intrincada hierarquia administrativa.
No mesmo sentido, demanda-se de investigações que deslindem a íntima
relação entre os ouvidores gerais da Paraíba e a fiscalização imposta ao exercício dos
oficiais camarários, entre o final do século XVII até o início do século XIX, momento
no qual, de acordo com a historiografia, a Capitania do Rio Grande passou a contar com
a figura de um ouvidor. A atuação dos ouvidores gerais da Paraíba com a Câmara do
Natal referia-se, de modo geral, as eleições concelhias e ao envio de cartas de usança,
por meio das quais os oficiais camarário podiam, de fato, assumir e exercer suas
atividades. Ressalta-se, ainda, que alguns documentos dos Livros de Cartas e Provisões
do Senado da Câmara do Natal mencionavam a existência de uma ouvidoria na
Capitania do Rio Grande, a partir da segunda metade do século XVII, o que
descredencia as análises que afirmam que essa localidade somente havia passado a
contar com a figura de um ouvidor próprio no século XIX. Os documentos que faziam
alusão a possível existência desse órgão da justiça, referem-se às provisões reais para os
ofícios de ouvidor, escrivão e meirinho da Ouvidoria do Rio Grande.217
Para o ofício de
ouvidor dessa capitania havia sido nomeado Pedro da Costa Faleiro,218
para o ofício de
escrivão dessa ouvidoria, João Pinheiro.219
Existe também a referência a uma provisão
efetuada pelo Capitão-mor do Rio Grande, Valentim Tavares Cabral (1663-1670), para
o ofício de meirinho da ouvidoria, porém não foi possível identificar o nome do
indivíduo. Assim, seria por meio do resultado dessas pesquisas que se poderiam
estabelecer análises mais acuradas sobre a realidade social, política, econômica,
administrativa e burocrática da Capitania do Rio Grande, no contexto macro da
monarquia portuguesa, entre os séculos XVII e XVIII.
216 Há pouco mais de um mês Thiago Alves Dias defendeu sua tese de doutoramento trabalhando a
questão do monopólio mercantil indireto, exercido pelo governo de Pernambuco, quando da anexação da
Capitania do Rio Grande, em 1701. Para saber mais, ver DIAS, Thiago Alves. Monopólio Indireto:
Colonização mercantil no norte do Estado do Brasil (c. 1710 – c. 1780). Tese (Doutorado em História
Econômica) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. 217
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659
– 1668). Fl(s). 43v, 54v; Ibidem., Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 28. 218
Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 28, 52v,
87. 219
Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659 – 1668). Fl. 43v.
107
Visto tudo isto, assevera-se que as interações entre a Câmara do Natal, por
meio da redação do expediente institucional efetuada pelos escrivães concelhios, havia
fomentado a formação de redes institucionais de circulação de informações
administrativas que estavam diretamente ligadas ao desenvolvimento da maquinaria
burocrática, em nível local, do Império português. Esses canais da comunicação
institucional colocavam os escrivães como peças fundamentais, visto que
desempenhavam funções estruturais, afinal tinha-se a necessidade de conformar as
sociedades ultramarinas aos ditames dos Impérios modernos, pincipalmente através de
vínculos escritos entre si.
Esses vínculos caracterizavam-se pelo sobrepeso da difusão e da durabilidade
desses mecanismos, os quais faziam falar aos ausentes, tornando-se ainda mais
complexo as relações culturais e políticas, responsáveis que foram pelo estabelecimento
de um sentido mínimo de unicidade e coesão do Império português, ao reduzir os
interesses sociais mais amplos e dispersos, recheados de peculiaridades locais e
regionais, as formalidades e estruturas de tipologias documentais rígidas e específicas,
porém onicompreensivas. O que fazia dos escrivães camarários além de tradutores de
códigos culturais para universos completamente díspares – a relação entre mundo
letrado e mundo não letrado –, porém coevos, os principais agentes cimentadores da
administração escritural, ao possibilitar, operacionalmente, as ligações entre os centros e
as periferias da monarquia portuguesa. Cuja trama, dar-se-ia, de modo relacional, como
havia afirmado Russell-Wood, sendo as questões de centro e de periferia relativos, os
quais dependiam do referencial que se tomava como base.220
1.4.3 A comunicação transcontinental via Câmara do Natal
Quanto ao nível transcontinental, ou seja, quando a Câmara do Rio Grande,
sediada no continente americano, estabelecia vias comunicativas com Lisboa, situada no
reino. Ressalta-se que essa comunicação possuía um caráter basicamente bilateral –
mesmo que, em alguns casos, de maneira unívoca, sobretudo quanto à relação entre a
220 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de
História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998.
108
Câmara do Natal e outras localidades da própria Capitania do Rio Grande – através da
troca de cartas e de outros documentos.
Mapa 04 - Comunicação transcontinental entre as cidades do Natal e Lisboa via
Câmara do Natal (1659-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
221
O exame da comunicação entre a Câmara do Natal e os demais espaços de
sociabilidade do Império, apurando-se a intensidade das correspondências entre aquela
edilidade e a Cidade de Lisboa, no nível transcontinental, cuja magnitude havia
adsorvido, percentualmente, entorno de 14% (270 documentos) do montante final da
interlocução entre a Capitania do Rio Grande e outras porções do Império. Atribui-se
essa valoração a questão de ser Lisboa o centro decisório de todas as políticas
221 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, com base no SIG Arcgis, a partir do conjunto: Fundo documental
do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759).
109
implementadas na América portuguesa e a sede do poder régio, de onde provinham as
determinações a serem seguidas no ultramar.222
Atentou-se, ainda, para o sentido de bilateralidade entre a comunicação
processada por àqueles escrivães, no intuito de verificar a intensidade da comunicação,
em meio a diferentes espaços sociais e geográficos. Porém, ressalva-se que a
intensidade desses vai e vêm de correspondências variavam em graus distintos. Abaixo,
no Gráfico 01, verifica-se, percentualmente, o grau proporcional da comunicação entre
a Câmara do Natal, na Capitania do Rio Grande, com outros espaços sociais do Império
luso.
Gráfico 01 - Percentual da correspondência entre a Câmara da Cidade do Natal e outros
espaços sociais do Império português (1659-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
223
222 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de
História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998. 223
Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir do conjunto: Fundo documental do IHGRN. Livro de
cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759).
110
Como se pode verificar, mediante a análise do Gráfico 01, a Câmara do Natal
estabelecia comunicação com diversos espaços institucionais do Império português, por
meio da manuscrição de inúmeras tipologias documentais que funcionavam como
mecanismos de interação e interlocução, cuja responsabilidade, ora pela redação direta
dessa comunicação, ora pela transladação da mesma – espécie de transcrição das
informações contidas em documento avulso para o registro em livro institucional
específico –, eram da alçada dos escrivães concelhios, como abordado ao longo desse
capítulo, no qual se discorreu sobre as atribuições e competências dos escrivães
camarários no âmago das edilidades, pormenorizando, inclusive, os valores
estabelecidos pelo regimento desses oficiais quando da escrituração das várias
tipologias documentais de sua alçada. Desse modo, ressalta-se, ainda, que as
quantidades numéricas e, consequentemente, percentuais da correspondência entre
diferentes espaços sociais, espalhados pelos domínios da monarquia lusa, com a câmara
municipal da Cidade do Natal, havia se desenvolvido consoante a hierarquização
administrativa, que sobrepunha determinadas localidades a outras, em face da alocação
de redutos representativos do poder de mando institucional, administrativo, burocrático,
econômico, religioso e militar. Seria nesse sentido, que se processou a dinâmica de
comunicação – intra e intercapitanias e transcontinental – que havia interligado a
Câmara do Natal a diferentes localidades do Império, estabelecendo uma rede
institucional de circulação de informações administrativas, burocráticas, mas também de
ideias.
No nível intracapitania do Rio Grande, ou seja, através da comunicação
desenvolvida entre a Câmara do Natal e o restante dessa capitania, observou-se que o
percentual de 62% – que corresponde a 1337 documentos –, havia figurado,
percentualmente, em primeiro lugar nas relações sociais travadas pela Câmara do Natal
com outros espaços de sociabilidade da própria capitania, que pode ser explicando pelo
fato de que esse concelho foi o único existente por toda a Capitania do Rio Grande,
entre 1613 – data de sua fundação – até 1759 –, quando havia ocorrido a elevação de
alguns aldeamentos indígenas a categoria de vilas e, consequentemente, com a criação
de outros concelhos municipais.224
Essa questão estrutural explica a intensidade da
224 Para saber mais sobre a elevação dos antigos aldeamentos indígenas a condição de vilas, ver LOPES,
Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório
111
correspondência entre a Câmara do Natal e as demais povoações do interior da
Capitania do Rio Grande, visto que foi o órgão administrativo responsável pela gestão
burocrática de toda essa capitania.225
Em face disso, a Câmara do Natal, por meio da atuação de seus oficiais – juízes
ordinários, vereadores, procuradores e escrivães camarários – tinham de dirigir,
gerenciar, corrigir e punir quase todos os assuntos inerentes à condição do próprio devir
social. Entretanto, a Capitania do Rio Grande, com uma enorme extensão territorial, não
possuía apenas Natal como um aglomerado urbano e populacional significativo –
mesmo que durante quase 200 anos tenha sido a única localidade com foros de
municipalidade.226
Constatou-se que existiam, de maneira dispersa, algumas povoações
que possuíam uma quantidade ínfima, porém expressiva, de pessoas vivendo de maneira
fixa em lugarejos situados as margens de importantes fluxos fluviais que entrecortavam
as terras daquela capitania. Essa situação havia acarretado na emergência de alguns
conflitos, bem como na necessidade de nomeação – por parte da Câmara do Natal – de
oficiais pedâneos, que residissem e percorressem essas localidades com vistas à
resolução de constantes embates que neles emergiam.
Nesse sentido, a nomeação de escrivães e de juízes de vintena, encarregados,
respectivamente, por prescreverem e dirimirem conflitos que ocorriam nas ribeiras,
povoações, arraiais e freguesias, situadas remotamente dos núcleos dos concelhos
municipais. A nomeação desses oficiais era de alçada dos juízes ordinários ou dos juízes
de fora, a depender da organização da justiça em cada vila ou cidade. Os escrivães e os
juízes de vintena eram os principais incumbidos pela imposição das leis e na execução
de diligências a territorialidades afastadas dos termos das municipalidades. Esses
oficiais pedâneos podiam, ainda, enviar agentes às prisões, bem como mandar prender
pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2005. 225
BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A câmara da cidade do Natal: o cotidiano administrativo de
uma câmara periférica (1720-1759). Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, 2015. p. 33. 226
BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A câmara da cidade do Natal: o cotidiano administrativo de
uma câmara periférica (1720-1759). Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, 2015. p. 30.
112
indivíduos envolvidos em disputas. Eram responsáveis também pela aplicação do
Direito Consuetudinário, valendo-se, muitas vezes, do próprio clamor do povo.227
Diversas localidades da Capitania do Rio Grande foram prodigamente providas
com juízes e com escrivães de vintena, em face da demanda pela resolução de conflitos,
mas com a finalidade precípua de aplicar pelas ribeiras e mais povoações, as leis da
justiça, dirimindo conflitos ou encaminhando-os aos juízes ordinários da Câmara do
Natal. Exemplo disso, e que se insere no interior das comunicações efetuadas entre a
Câmara do Natal e o restante da Capitania do Rio Grande, havia correspondido à
nomeação dos juízes de vintena, bem como de seus respectivos escrivães, para as
Ribeiras do Açú, do Apodi e do Mipibú, e de outras povoações como, por exemplo,
Utinga e Goianinha.228
Os escrivães camarários da Cidade do Natal eram encarregados
também de redigirem as provisões dos juízes e dos escrivães de vintena,229
as quais,
geralmente, eram determinadas pelos próprios oficiais concelhios – juízes ordinários ou
vereadores.230
Tais sítios, muitos dos quais voltados eminentemente para a atividade pecuária
que havia assolado os sertões das Capitanias do Norte,231
eram onde residiam e
trabalhavam inúmeros sesmeiros, que necessitavam do registro de suas propriedades
fundiárias – as sesmarias –, dos seus gados, dos ferros de marcar os animais criados no
esteio das fazendas e de outras atividades relativas à burocracia administrativa. Todas
essas demandas eram processadas pela Câmara do Natal e cabia, sobretudo, ao escrivão
concelhio, o registro manuscrito desses documentos.232
De modo grosseiro, foram essas
atividades que haviam levado ao estabelecimento de comunicação entre a Câmara do
Natal e outras localidades da capitania, originando um fluxo de informações
intracapitania do Rio Grande.
227 Para saber mais sobre a atuação dos juízes vintenários e o alcance de sua atuação na aplicação da
justiça, ver PIRES, Maria do Carmo. Em Testemunho de Verdade: Juízes de vintena e poder local na
comarca de Vila Rica (1736-1808). Belo Horizonte: UFMG, 2005. 228
Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1815). 229
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Livro I, Tit. 82, § 14. 230
PIRES, Maria do Carmo. Em Testemunho de Verdade: Juízes de vintena e poder local na comarca
de Vila Rica (1736-1808). Belo Horizonte: UFMG, 2005. p. 25. 231
Para saber mais sobre o fenômeno da pecuária nos sertões das capitanias situadas ao norte da América
portuguesa, especificamente o caso da Capitania do Ceará, entre os séculos XVII-XIX, ver ROLIM,
Leonardo Cândido. Tempo das carnes no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de
carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690- c. 1802). Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. 232
Fundo documental do IHGRN. loc. cit.
113
Nesse sentido, verifica-se que a densidade das interações sociais, travadas entre
a Câmara Municipal do Natal com outras localidades situadas na porção setentrional da
América portuguesa, bem como com o reino, através da manuscrição ou da trasladação
de diferentes tipologias documentais efetuadas pelos escrivães concelhios, constituem-
se, em distintos graus, relações de sociabilidade burocrática no interior da hierarquia
administrativa do universo de poderes luso-brasileiros. De acordo com Tiago Luis Gil,
que havia estudado as redes e as camadas de relacionamento, na região sul da América
portuguesa, entre os séculos XVIII e XIX, as diferenças de densidade das relações
sociais refletiam, como consequência disso, graus de interação e confiança semelhantes,
duas variáveis que estavam extremamente próximas entre si.233
Para o caso da Câmara
do Natal, a intensidade da troca de correspondências não refletia, necessariamente, uma
questão de confiança entre os diferentes polos das relações de sociabilidade, mas sim de
práticas institucionais que eram moldadas pela própria hierarquia administrativa de
disposição dos poderes e, portanto, não variando ao sabor das circunstâncias. Porém,
essas práticas institucionais, como se viu anteriormente, não eram estáticas ou imóveis,
visto que possuíam uma relativa dinamicidade, alterando-se ou adaptando-se conforme
as demandas propugnadas por situações estruturais. Exemplo disso foi à demissão da
jurisdição da Capitania do Rio Grande do Governo Geral da Bahia,234
cuja
responsabilidade havia passado para os governadores e capitães generais de
Pernambuco, devido às difusas distâncias que separavam aquelas duas esferas, o que
dificultava a eficiência da gestão administrativa, no esteio da qual se tinha as disputas
por representação de poder.
Desse modo, aplicando-se o conceito de broker ou de intermediário,
precipuamente discutido por E. Bott,235
cujo papel remeter-se-ia a função de mediador
entre diferentes grupos sociais de relacionamento, pode-se pensar o escrivão concelhio
da Câmara do Natal enquanto um broker ou intermediário, o qual por meio da
manuscrição de diversas tipologias documentais havia interligado diversos espaços
233 GIL, Tiago Luis. Redes e camadas de relacionamentos na economia: metodologias para o estudo da
confiança mercantil na América Portuguesa do Antigo Regime. In: Revista de Indias, 2015, vol. LXXV,
n. 264, p. 421. 234
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de Cartas e Provisões do Senado da Câmara. Livro 1
(1659 – 1668). Fl. 15v. 235
Para saber mais sobre a ampla discussão sobre a funcionalidade do broker ou do intermediário na
interligação de diferentes grupos sociais, ver BOTT, E. Família e rede social. Papéis, normas e
relacionamentos externos em famílias urbanas comuns. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
114
sociais de relacionamento administrativo do Império português à Câmara do Natal. Essa
atuação dos escrivães camarários do Natal forjava o que se denomina conceitualmente
de “redes densa” de relacionamento. Segundo Tiago Luis Gil, essas redes densas
constam de relacionamentos sociais não homogêneos, o que significa que nem todos os
implicados em uma rede se conhecessem entre si, necessariamente, para que ela pudesse
existir, e aqueles que interagem entre si, não o faziam com a mesma intensidade,
cabendo ao intermediário – ou broker – a tarefa de conectar ou integrar tais grupos.236
Ao abstrair-se dessas conceituações, corroboram-se, mais uma vez, que aos
escrivães coubera esse papel de intermediário entre diferentes localidades e órgãos
administrativos existentes pela monarquia portuguesa. Todavia, isso não significa que
todos os componentes dessa rede densa de relacionamentos institucionais se
conhecessem entre si. Possivelmente, os escrivães da Câmara do Natal conheciam
apenas os demais oficiais concelhios daquela edilidade, os ouvidores gerais da Paraíba e
os capitães-mores do Rio Grande, mas, quase nunca, o rei, os governadores gerais ou
vice-reis do Estado do Brasil, o governador e capitão general de Pernambuco, dentre
outros agentes sociais embutidos nessa rede de correspondências que havia interligado a
Câmara do Natal a outras partes do Império luso. A tabulação de uma vasta quantidade
de informações em gráficos viabiliza a percepção de regularidades, de elementos e de
problemas de forma prática e utilitária, características funcionais essas que não podiam
ser viáveis nos mais eloquentes textos escritos.237
Partindo-se desse princípio
estabeleceu-se a tabulação dos dados constantes nos Livros de Cartas e Provisões do
Senado da Câmara do Natal, referentes às trocas de comunicação entre os oficiais da
Câmara do Natal, por meio da redação institucional e burocrática dos escrivães, com
outros agentes do poder situados em diversas espacialidades do mundo luso americano
da época que, juntos, formaram a monarquia portuguesa.
A partir disso, montaram-se os gráficos e os mapas de redes relacionais de
circulação de informações institucionais e burocráticas, entre a Câmara do Natal e
outras diferentes localidades, obedecendo-se, para isso, a hierarquização em níveis
espaciais, que eram interconectados por meio da comunicação escrita, processada pelos
escrivães concelhios do Natal, entre 1659-1759. Foi a partir disso, que se conseguiu
236 GIL, Tiago Luis. op. cit., p. 422.
237 GIL, Tiago Luís. Formas alternativas de visualização de dados na área de História: Algumas notas de
pesquisa. In: Revista História, São Paulo, n. 173, jul./dez., 2015, p. 432.
115
sistematizar os dados referentes às diferentes localidades, oficiais, ministros e
instituições que mantinham diálogo com a Câmara do Natal, em assuntos relacionados à
administração burocrática, possibilitando o estabelecimento de redes sociais densas de
relacionamento ao demonstrar a circulação de informações e de ideias no interior dessas
redes.
Visto tudo isto, depreende-se da análise dos títulos referentes aos escrivães e
aos tabeliães nas Ordenações Filipinas (1603-1917), bem como dos aditamentos feitos
a estes, que esse corpus jurídico havia se caracterizado, por um lado, pela transladação
dos preceitos existentes no código predecessor, na revisão e discussão deste e, por
outro, pelo estabelecimento de uma lógica objetiva no que tangia as diretivas de cada
ofício, ao tornar mais claros os direitos e os deveres de cada ofício, cargo ou função no
interior daquilo que António Manuel Hespanha havia denominado de “sociedade
corporativa”, devido à imprescindibilidade de cada grupo social para o funcionamento
adequado de toda a sociedade.238
Percebeu-se, ainda, que o Código Filipino havia processado o enquadramento
funcional do ofício de escrivão ao âmago da justiça, em suas quatro esferas
jurisdicionais: local, senhorial, periférico e palatino. Tudo isso havia servido para
conceder maior inteligibilidade e dinamicidade à atuação do oficialato político e
administrativo, tanto no reino quanto no ultramar, ao reger, à luz de uma jurisprudência
mais objetiva que as predecessoras, os parcos cabedais humanos que tornaram possível
a existência do próprio Império.
Depreende-se dessa análise, que o ofício de escrivão foi construído
historicamente, em face das buscas eventuais por parte da população – a questão da
escrituração de documentos de compra e venda de terras, inventários e aforamentos, por
exemplo –, mas também ao sabor de circunstâncias sociais mais estruturais – como, por
exemplo, a expansão marítima e as conquistas no ultramar – e pela necessidade básica e
238 HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 299-300.
116
vital do estabelecimento de uma comunicação política efetiva – no contexto dos
Impérios marítimos.
Observou-se, nomeadamente no decurso das “grandes navegações”, que a
expansão territorial lusitana, levada a cabo por meio de inúmeras conquistas, haviam
colocado sob a jurisdição da Coroa de Portugal terras, homens e modos de viver
díspares. Disso resultava a necessidade de regulamentar, bem como de se estabelecer
um meio de comunicação eficiente, que permitisse integrar tão longínquas e distintas
possessões aos anseios metropolitanos, cuja viabilização foi favorecida através da
implantação do sistema escrito e, consequentemente, devido ao corpo de oficiais por ela
responsável: os escrivães camarários.
Por fim, nesse ínterim, averiguou-se que a comunicação escrita – ressalvadas
algumas limitações e certos exageros –, havia sido alçada à condição privilegiada de
mecanismo político de primeira grandeza, ao costurar, por assim dizer, às conquistas
entre elas e estas ao reino. Isso havia se tornado viável por meio do desempenho dos
escrivães camarários que, ao se inserirem em tal processo, haviam figurado na qualidade
de intermediários, pois eram os responsáveis por manuscreverem as várias tipologias
documentais – cartas, bilhetes, alvarás, despachos, etc. –, indispensáveis ao cotidiano
administrativo, social e político do Império. Essas demandas contribuíram para que os
escrivães concelhios se transformassem em tradutores dos códigos morais e valorativos
do Antigo Regime, posto que por suas mãos passassem informações e deliberações
advindas do reino para as conquistas e vice-versa. Desse modo, o ofício de escrivão da
câmara, de acordo com António Manuel Hespanha, perfez um grupo que representava
pouco mais de 40% dos oficiais da administração em nível local, fazendo do Império
português nada “[...] mais do que um império ‘de papel’, em que a correspondência do
rei, dos vice-reis, dos governadores, dos capitães, substituíram laços políticos mais
efetivos”,239
e, mais que isso, de toda a sociedade do Antigo Regime português.240
Ademais, depreende-se, mediante a documentação consultada, que algumas das
atribuições estipuladas pelas Ordenações Filipinas (1603), aplicaram-se a realidade
vivenciada e as práticas organizacionais desenvolvidas pelos escrivães camarários no
cotidiano administrativo e burocrático do Concelho do Natal. Outras prescrições,
239 HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 291. 240
Ibidem.
117
porém, não foram possíveis de serem verificadas devido, sobretudo, aos limites das
fontes disponíveis. Constatou-se, ainda, o envolvimento dos escrivães camarários em
atividades burocráticas provenientes das especificidades econômicas regionais que
haviam assinalado a Capitania do Rio Grande, diferenciando-se das demais capitanias
como, por exemplo, a criação de gado.
Para o caso da Câmara do Natal, o estabelecimento dessa instituição foi
efetivada devido às inúmeras queixas que El’ Rey havia recebido de seus vassalos
acerca das atuações despóticas e indevidas dos capitães-mores. Tais circunstâncias
estruturais, do mesmo modo, haviam balizado a criação dos ofícios de escrivão
camarário. Como se conferiu na análise do regimento de Gaspar de Souza, em 1613, o
principal objetivo com a efetivação do ofício de escrivão concelhio, na Cidade do Natal,
foi o estabelecimento de comunicação entre os moradores do Rio Grande com outras
instâncias, sobretudo ligadas à justiça régia.
Nesse sentido, se discutiu também os limites e o alcance da comunicação
levados a cabo pelos escrivães da câmara, de modo geral, e do Concelho de Natal, de
maneira mais específica. Para isso, analisaram-se as atribuições que haviam competido,
pelo menos teoricamente, a esses oficiais, a partir do exame do regimento dos escrivães
das câmaras que constavam nas Ordenações Filipinas, datado de 1603. Vislumbrou-se,
nesse documento jurídico, que a função basilar dos escrivães concelhios remeter-se-ia a
condição de difusores da comunicação manuscrita, eleita como o mecanismo
institucional que havia possibilitado a formação e o desenvolvimento do Império
português, através da virtualidade da presença escrita, transmutada nas mais diferentes
tipologias documentais, cuja redação direta ou trasladação competia aos escrivães
camarários. Averiguou-se, em seguida, que mesmo sendo os responsáveis principais
pela formação e sustentação das vias de comunicação intra e interinstitucional pelo
Império, os escrivães das câmaras não procediam na realização dessas tarefas de modo
aleatório, mas que deviam ser supervisionados por outros oficiais concelhios como, por
exemplo, os procuradores ou vereadores, em nível local, e pelos ouvidores gerais da
Paraíba, em nível mais amplo.
Apuraram-se, ainda, quais foram, particularmente, os tipos documentais sob a
alçada de manuscrição dos escrivães camarários, por meio da análise do regimento dos
escrivães concelhios. Em meio a isso, distinguiram-se também os valores que foram
auferidos como emolumentos dessa prática de escrituração pelos concelhos. Em face
118
disso, tabularam-se, graficamente, as tipologias documentais redigidas pelos escrivães
concelhios, bem como os valores de cada um desses documentos, provenientes de dois
diferentes fundos documentais. No primeiro deles, um preceito das Ordenações
Filipinas (1603-1917), alusivos tanto ao que levavam de seus exercícios os escrivães
das câmaras, como os escrivães da Fazenda Real. Em seguida, sistematizaram-se os
manuscritos oficiais administrativos, com seus respectivos valores, para o caso da
Câmara do Natal, observando-se, de modo comparativo, as alterações valorativas entre
os regimentos jurídicos e os termos de vereação da edilidade do Natal, nos quais
constavam os valores atualizados que custavam para a emissão de cartas patentes, cartas
de provisões, dentre outras tipologias documentais.
Nesse ínterim, corroborou-se com a ideia de que os escrivães das câmaras
portuguesas caracterizavam-se como elementos intermediários nas conexões relacionais
entre os centros e as periferias da monarquia lusa, ao serem mediadores entre os súditos
e as autoridades e as autoridades entre si. Estas autoridades podiam ter diferentes
jurisdições e atuarem em localidades distintas do Império português. Exemplo disso
foram às redes de relações institucionais e burocráticas, travadas entre a Câmara do
Natal e outros espaços sociais e administrativos do Império português, por meio da
redação de cartas, mandados, provisões, bilhetes e uma miríade de outros instrumentos
documentais. Constatou-se, ainda, que aquelas relações concêntricas não fossem apenas
processadas pelos escrivães no sentido ultramar-reino, mas também intra e
intercapitanias. Apurou-se isso, por meio da verificação de dados e informações sobre
redes sociais de comunicação entre a Câmara do Natal e outras instâncias
administrativas, ora presentes na própria Capitania do Rio Grande, ora situadas nas
vizinhas Capitanias da Paraíba e de Pernambuco, mas também localizadas de maneira
mais distal como, por exemplo, em Salvador, na Capitania da Bahia, ou até mesmo no
reino, essencialmente com a cidade de Lisboa.
Enfim, reiterou-se nesse capítulo o papel de intermediários ou de broker’s dos
escrivães camarários, situação essa que fez dos agentes históricos que haviam ocupado
aqueles ofícios, privilegiados instrumentos de conhecimento e, consequentemente, de
poder, inseridos, pois, nas engrenagens administrativas e burocráticas do Império. Essa
funcionalidade dos escrivães concelhios lhes haviam permitido angariar poder, prestígio
e status, através do recebimento de mercês como, por exemplo, terras – sesmarias – e
patentes militares das ordenanças. Por fim, assevera-se que foi graças a esse vai e vem
119
de correspondências, com a troca de inúmeras tipologias documentais redigidas pelos
escrivães concelhios, que havia se tornado possível à existência e a viabilidade do
Império português, recortado por distâncias longas e incomensuráveis, separando as
diversas possessões, física e temporalmente, mas cuja presença transmutava-se pelas
virtualidades da escrita.
No próximo capítulo, pretende-se esboçar o perfil social dos escrivães da
Câmara do Natal, ao elencar o recebimento de sesmarias e chãos de terra, dentro e fora
da Capitania do Rio Grande, bem como o recebimento de patentes militares das
ordenanças locais, se possuíam ou não escravos – tanto negros, quanto índios – e se
eram possuidores de gados, tanto vacum como cavalar, constituindo, ao todo, os bens
de raiz daqueles agentes. Traçar-se-á, também, a circularidade dos homens que
assumiram a escrivania da Câmara do Natal em outros ofícios dessa edilidade, assim
como, possivelmente, em outras funções dentro da administração lusa americana.
120
CAPÍTULO II - HOMENS DE PRÉSTIMOS E CONSIDERÁVEIS CABEDAIS:
O perfil social dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759)
“Domingos Amado, Capitão Mayor da Cap.nia
do Rio Gr.de
e G.or
da Fortaleza dos Sanctos
Reys Magos [...] Faço saber aos que esta minha
carta patente virem [...] que avendo respeito aos
serviços prestados por Caetano de Melo e
Albuquerque que tem servido a Sua Majestade
[...] com louvável procedimento e ser hum
dos homens nobres desta Capitania [...]
o eleijo e nomeyo Capitão de Infantaria de
Ordenança do destricto desta cidade [...]”.
(Capitão-mor Domingos Amado, Natal, 21/02/1717).1
A discussão sobre o conceito operacional de elite, especialmente relacionada
ao contexto do Antigo Regime, subsidiou e incrementou diversas polêmicas devidas ao
alcance, significado e incongruências derivadas dessa categorização. De acordo com
Nuno Gonçalo Monteiro, com o crescimento progressivo das atividades desenvolvidas
no meio urbano ocorreu, igualmente, o alargamento dos setores terciários a elas
associados, a que também equivaleu à ampliação do conceito de nobreza.2 Assim, a fim
de se evitar a banalização e a consequente descaracterização do “ser nobre”, a doutrina
jurídica havia fomentado a denominação de “estado intermediário” ou “estado
privilegiado”, situado entre a antiga nobreza e o grupo mecânico.3
Nuno Gonçalo Monteiro defendeu, ainda, que as elites locais, no Portugal dos
finais do Antigo Regime, ou a “nobreza institucional” – categoria atribuída aos
indivíduos que faziam parte dos concelhos municipais –, ao compor os ofícios da
governança concelhia não correspondiam, necessariamente, àqueles indivíduos nobres
na acepção direta do termo, visto que as formas de recrutamento desses oficiais haviam
1 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720
– 1728). Fl. 82v-83. 2 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO,
José (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). vol. 4. Lisboa: Editorial Estampa,
1993. p. 249-283. 3 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América
portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Brasiliense, n. 2, nov., 2005, p. 28.
121
variado de forma significativa de localidade para localidade, e que teria aberto vetores
de identificação também distintos. Diante disso, deve-se valorizar a diversidade
expressa pela base de recrutamento dos oficiais concelhios, pois, “não era o estatuto
geral delimitado pela legislação, mas sim os usos de cada terra e as relações de força no
terreno que definiam o limiar de acesso às nobrezas camarárias”.4
Para Laima Mesgravis, em seu estudo Os aspectos estamentais da estrutura
social do Brasil Colônia, a possessão Americana portuguesa havia, pelo menos nos
primeiros séculos da conquista, atraído parquíssimos povoadores que pertenciam, de
fato, à nobreza de sangue reinol. Os espaços de conquista, na América e nas demais
possessões do ultramar, não eram o habitat da primeira nobreza e nem da nobreza de
sangue, conceitos não divergentes, porém intimamente relacionados.5
Nesse sentido, ressalta-se, de acordo com Gabriel Parente Nogueira, que
investigou as práticas de nobilitação processadas no âmago da Câmara Municipal da
Vila de Santa Cruz do Aracati, na Capitania do Siará Grande, entre 1748 e 1804, que se
deve compreender que os estudos dos concelhos presentes em localidades, tais como
Salvador, Recife e Rio de Janeiro, não devem ser aplicados para as demais partes da
América lusa, visto que as especificidades que orientaram as dinâmicas sociais
cotidianas em cada uma dessas cidades haviam obedecido, sobremaneira, a elementos
diversos, principalmente quando se atenta para os itens fundamentais vinculados às
produções econômicas locais,6 as quais se acrescenta o status, ora de centro, ora de
periferia, que essas mesmas espacialidades assumiram nas concêntricas relações entre
reino e as conquistas.7 Ainda segundo Gabriel Parente, os grupos sociais que estiveram
direta ou indiretamente vinculados às relações de força do mando institucional do poder,
a depender das especificidades regionais, também foram outros.8
Dessa forma, em consequência das duas variáveis – tipos de produtos para a
economia e do status espacial –, cada localidade possuiu perfis sociais distintos, o que
4 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo
Regime”. In: Análise Social, n. 141. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 1997, p. 356. 5 MESGRAVIS, Laima. Os aspectos estamentais da estrutura social do Brasil Colônia. In: Estudos
Econômicos, n. 13. São Paulo: USP/IPE, 1983. p. 803. 6 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: práticas de nobilitação e
hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado e
História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. p. 147. 7 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de
História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998. 8 NOGUEIRA, op. cit., p. 147.
122
fazia com que os integrantes de cada edilidade se diferenciassem na mesma proporção.
Assim, pensar os escrivães concelhios da Câmara Municipal da Cidade do Natal, entre
1613 e 1759, remeter-se-ia a compreendê-los enquanto indivíduos que estiveram
situados no interior de uma instituição concelhia periférica, responsável pela gestão da
Capitania do Rio Grande, onde a pecuária caracterizava-se como o principal produto na
pauta de exportação intracapitania e intercapitanias.9 Esses dois fatores adquirem ainda
maior sobrepeso quando se verifica a posse de terras – sesmarias – e de gados – vacuns
e cavalares – pelos mesmos escrivães camarários, como se verificará adiante. Salienta-
se, com isso, que nobreza e poder eram dois valores dominantes e essenciais na cultura
política do Antigo Regime.10
Em cujo seio social caracteristicamente rural e tradicional,
tem na posse da terra um mecanismo político de primeira grandeza, como fator do
fundamento material do poder e da diferenciação social e, em face dessa estratificação,
a atribuição de um conjunto de direitos e de deveres em função de seu estado.11
Para José Damião Rodrigues, ao analisar as Nobrezas locais e a apropriação
do espaço, no reinado de D. Manuel, teria sido a elevação de alguns lugares à categoria
de vilas, a fase cimeira da gênese das nobrezas locais.12
Outro fator de formação de uma
elite local, apontado por Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo, ao debruçar-se
sobre a governança e o poder local em Alagoas, no sul da Capitania de Pernambuco,
entre 1654-1751, no contexto da extensiva produção açucareira dessas paragens, havia
sido resultante das novas condições sociais que emergiram no período post bellum, com
o fortalecimento da elite local, que era representada nos diversos ofícios da Câmara de
Alagoas do Sul e nos demais relacionados à governança da terra.13
Foi na guerra contra
os holandeses que a nobreza de Olinda, na Capitania de Pernambuco, também passou a
insistir em uma condição e em um tratamento diferenciados, motivos que eivaram
atitudes arrogantes e, muitas vezes, audazes, de pedidos de privilégios, em face da
9 Para saber mais sobre a dinâmica da economia da cidade do Natal, sobretudo relacionada a pecuária, ver
MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 4. ed. Natal: Flor de Sal,
2015; CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Fundação José
Augusto, 1984; CASCUDO, Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: Prefeitura Municipal, 1947;
DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte (1760-1821).
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011. 10
RODRIGUES, José Damião. Histórias Atlânticas: Os Açores na Primeira Modernidade. Ponta
Delgada: Centro de História de Além-mar, 2012. p. 83. 11
Ibidem., p. 83-84. 12
Ibidem., p. 86. 13
CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul
de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2014. p. 78.
123
prestação de serviços nos vários conflitos para a restauração do domínio português nas
Capitanias do Norte da América portuguesa.14
Para Ronald Raminelli, depois da guerra
empreendida contra os flamengos, muitos ofícios foram concedidos a indivíduos que
atuaram nas diversas fases desse conflito, como que em retribuição pelos serviços
prestados a Coroa lusitana.15
No caso da instauração de uma edilidade na Vila do Recife, no século XVIII,
George Félix Cabral de Souza aponta a preponderância econômica que aquela vila
passou a fruir diante da possível decadência da Cidade de Olinda.16
Desse modo, a
composição institucional camarária, bem como da elite do Recife, no século XVIII, era
representada por ricos mercadores reinóis – mascates – e por endividados senhores de
engenho – nobres.17
Em Salvador, como estudado por Avanete Pereira de Sousa, no
século XVIII, a elite local dessa cidade era formada pelos indivíduos que exerceram as
funções de vereador e de procurador, composta, fundamentalmente, por burocratas,
senhores de terra e, de maneira diminuta, por grandes comerciantes.18
Diferentemente
da Câmara Municipal de Vila Rica onde, segundo Luiz Alberto Ornellas Rezende, a
elite local passou a compreender que, a partir de 1714, o controle das prerrogativas
concelhias era essencial para a consolidação de seu poder na região, constituída por uma
profunda perturbação política e social de indivíduos paulistas, reinóis, baienses e
cariocas, embebidos pela idealização da riqueza rápida da mineração do ouro.19
Porém,
ressalta-se que, de acordo com Roberta Giannubilo Stumpf, a sociedade mineira não
fora estruturada apenas consoante critérios hierárquicos locais, visto que vários de seus
componentes lançaram mão das tradicionais estratégias de distinção social, por meio de
solicitações de mercês régias como, por exemplo, de hábitos das ordens militares.20
14 MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos. Nobres contra mascates. Pernambuco (1666-
1715). São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 141-142. 15
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: Monarcas, Vassalos e governo a distância. São Paulo:
Alameda, 2008. p. 66. 16
SOUZA, George Felix Cabral de. Os Homens e os Modos da Governança. A câmara Municipal do
Recife no século XVIII. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2003. p. 99-115. 17
Ibidem., p. 122-123. 18
SOUSA, Avanete Pereira. Poder político local e vida cotidiana: A Câmara Municipal da cidade de
Salvador no século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 1996. p. 76, 59. 19
REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. A Câmara Municipal de Vila Rica e a consolidação das elites
locais, 1711-1736. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
p. 15, 27. 20
Para saber mais sobre as estratégias empreendidas pelos moradores das Minas setecentistas para a
obtenção de distinções sociais, ver STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras
124
Visto tudo isto, presume-se que foi por meio da ocupação dos ofícios
concelhios e da prestação de inúmeros serviços relacionados às municipalidades, que as
elites locais forjaram-se e fizeram-se representar, segregando e hierarquizando pessoas e
interesses familiares e clientelares. Constatou-se, ainda, por meio dessa revisão
bibliográfica, que essas elites locais eram constituídas por senhores de terra e de
escravos, bem como por indivíduos que haviam servido nos vários conflitos que
afligiram o domínio português pela América em momentos distintos, mormente na
Guerra de Restauração que opusera luso-brasileiros aos flamengos, entre 1624 e 1654,
caracterizando os vitoriosos do post bellum. Para o caso da Capitania do Rio Grande, no
que tange ao perfil social dos escrivães camarário da Cidade do Natal, a guerra contra os
neerlandeses e a posse de terras, bem como de outros cabedais, figuraram como
elementos definidores, como se verá adiante, até mesmo na conquista da propriedade
desse ofício. Ressalta-se que outro conflito que demarcou o perfil desses escrivães foi à
participação na Guerra do Açú,21
no contexto maior da Guerra dos Bárbaros, que havia
envolvido os sertões da Capitania do Rio Grande e das demais Capitanias do Norte, bem
como da Bahia, no período que foi de 1650 até 1720.22
Reitera aquela hipótese, conforme análise de Carmen Alveal, que foi no
período da Restauração, ou seja, após o domínio batavo sobre as Capitanias do Norte da
América lusa, que se efetivou uma política de colonização de caráter mais definitiva na
Capitania do Rio Grande, com o consequente incentivo por parte das autoridades régias
e locais. Nesse ínterim, o combate militar aos indígenas que persistiam na resistência à
dominação portuguesa, atrelou-se a distribuição de terras, com a finalidade expressa de
garantir a ocupação e o povoamento do território. Como formas de incentivo, a essa
trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese
(Doutorado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2009. 21
Para o caso específico do conflito ou Guerra do Açú, como ficou mais conhecido, que envolveu os
impactos da territorialização dos sertões da Capitania do Rio Grande, opondo índios contra os
colonizadores luso-americanos, ver SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens
e relações de poder na territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. 22
Para saber mais sobre esse conflito que envolveu todas as capitanias do Norte e a da Bahia, ver
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e colonização no sertão nordeste do Brasil
(1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da EDUSP, 2002; PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra
dos Bárbaros: resistência e conflito no Nordeste Colonial. Recife: Fundap/CEP, 1990.
125
política associaram-se outras medidas como, por exemplo, a concessão de patentes
militares e a ocupação dos ofícios concelhios.23
Ainda de acordo com Carmen Alveal, foram esses sesmeiros-militares que
ocuparam, de fato, os principais postos ou ofícios no interior da Câmara Municipal do
Natal, na segunda metade do século XVII, formando a elite política e senhorial ou a
elite local da Capitania do Rio Grande. Essa autora sustenta, ainda, que a Câmara do
Natal projetou-se como um espaço de poder utilizado como uma via alternativa por
moradores de outras localidades, sobretudo de Olinda e de Felipéia, que não
conseguiam se inserirem nos circuitos sociais de poder dessas localidades que, há
muito, já estavam estabelecidos.24
Isso corrobora com a afirmação de Roberta
Giannubilo Stumpf, segundo a qual todos aqueles que compunham uma determinada
família deviam, necessariamente, estarem empenhados para aumentar o cabedal
material e simbólico de suas estirpes e, para isso, os integrantes de uma mesma
linhagem precisavam aceitar tacitamente seus destinos.25
Salienta-se, consoante às perspectivas esboçadas por José Damião Rodrigues,
que os agentes que haviam composto os elencos dos ofícios de cada concelho municipal
não possuíam, geralmente, a mesma origem social e econômica. Essa diretriz refletir-se-
ia diametralmente nas fronteiras que demarcavam cada um dos inúmeros microcosmos
camarários e institucionais. Porém, assevera aquele autor, que o fato de pertencerem ao
núcleo das edilidades, representava um fator de clivagem e de distinção social, a
separarem aqueles que pertenciam ao grupo da governança, em cada localidade, do
restante da população.26
Essa situação fazia com que os componentes desse grupo
consistissem na “face visível do poder e de serem olhados como os ‘donos do poder
local”.27
Carmen Alveal, entretanto, deteve-se a deslindar o perfil social dos indivíduos
que haviam ocupado, através de eleições, os ofícios de juiz ordinário, vereador e
23 ALVEAL, Carmen. A Formação da Elite na Capitania do Rio Grande no pós-Restauração (1659-1691).
In: Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime. Lisboa, 18-
21, maio, 2011. p. 2. 24
Ibidem., p. 4. 25
STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações
de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2009. p. 50. 26
RODRIGUES, José Damião. “As elites locais no Açores em finais do Antigo Regime”. In:
ARQUIPÉLAGO HISTÓRIA. 2ª série, IX. 2005, p. 365. 27
Ibidem., p. 360.
126
procurador da Câmara do Natal, entre os anos de 1659 e 1691. A esses oficiais
acrescenta-se, com a presente pesquisa, o perfil social dos escrivães concelhios do
Natal, entre 1613 e 1759. Por fim, reitera-se que as qualidades sociais dos homens que
haviam acorrido para a América portuguesa eram, em geral, de indivíduos que estavam
ligados à nobreza rasa e aos plebeus reinóis, os quais não encontravam oportunidades
para ascenderem socialmente na escala hierárquica do Antigo Regime, e a América
figurava como um lugar propício para a avidez de conquista de notoriedade e de
reconhecimento régio. Desse modo, o ingresso nas elites locais predispunha a esses
indivíduos o acesso às condições favoráveis de enobrecimento. Esses elementos eram
constantemente atraídos pelas inúmeras políticas de incentivo à mobilidade para a
colônia, para servirem nas armas, na burocracia ou para a exploração das riquezas
naturais dessas localidades, ocupando espaços de poder, prestígio e status, em nível
local, gestando famílias e abrilhantando os próprios sobrenomes, adquirindo
reconhecimento social e assegurando aos seus descendentes méritos pessoais e
familiares que retroalimentavam as glórias de ascendentes e descendentes de uma
mesma Casa.28
A seguir, deter-se-á na abordagem do perfil social dos homens que haviam
ocupado o ofício de escrivão da Câmara do Natal, no período que foi de 1613 até 1759.
Destaca-se, ainda, que o exercício desse ofício constituiu-se como vetor de inserção
desses indivíduos no rol da elite local da Cidade do Natal e, consequentemente, da
Capitania do Rio Grande, visto que o concelho dessa municipalidade foi à única
instituição camarária de toda aquela capitania durante aquele período. Para isso,
utilizou-se dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672 até
1815); dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659 à 1760);
dos Documentos Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referentes as
Capitanias do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Ceará (séculos XVII-
XVIII); dos documentos presentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (séculos
XVII-XVIII); dos registros do Livro de Batismo de Cunhaú, São José de Mipibú,
Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714); dos registros dos Livros de Casamento
da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785); das Cartas de
28 STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações
de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2009. p. 51-52.
127
Sesmarias presentes na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso Brasileiro); dos
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional; e do vol. 9 do Livro de Registros de
Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722); e do Livro de Óbitos da Igreja
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal (década de 1750).
Esses treze conjuntos documentais, acima expostos, foram analisados por meio do
cruzamento intensivo de dados, a partir do método indiciário e onomástico, proposto
por Carlo Ginzburg.29
Com a análise do perfil social dos escrivães da Câmara Municipal do Natal
possibilitar-se-ia uma compreensão mais acurada dos padrões societários vigentes no
Antigo Regime europeu, que foram transplantados para as possessões d’além-mar
juntamente com os homens e as instituições que atravessaram o Oceano Atlântico, ao
longo dos séculos XVI e XVIII, caracterizando a elite local da Capitania do Rio Grande.
Soma-se a isso, que o estabelecimento do perfil social dos escrivães concelhios do Natal
abriu margem para uma compreensão da atuação social e institucional desses agentes no
próprio exercício do ofício.
Ressalta-se que as táticas de promoção social que os indivíduos lançaram mão
variaram para cada uma das partes que haviam composto as possessões lusas na
América, porém, como se faz necessário compreender as especificidades que
envolveram as diferentes porções da América portuguesa, bem como de suas elites
coloniais, como afirma a própria historiografia, percebeu-se com o estudo dos escrivães
concelhios da Cidade do Natal, que as trajetórias individuais desse grupo, mormente
associado às elites locais, assemelharam-se em alguns aspectos as demais elites, que
independentemente das paragens aonde foram delineadas, pode-se ressalvar algumas
peculiaridades. Seria essa diversidade sociocultural, de acordo com Adriano Comissoli,
que havia permeado as diferentes câmaras espraiadas pelo ultramar, com diferentes
realidades coetâneas pela América portuguesa afora, e que ainda movimentam e
impulsionam a investigação do perfil social de seus integrantes.30
29 Utilizando-se de princípios de outras ciências para enriquecer a análise histórica, ver GUINZBURG,
Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. CAROTTI, Frederico (trad.). São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado
historiográfico. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989. 30
COMISSOLI, Adriano. “Tem servido na governança, e tem todas as qualidades para continuar”: perfil
social dos oficiais da Câmara de Porto Alegre (1767-1828). In: Topoi, v. 13, n. 25, jul./dez. 2012, p. 2.
128
2.1 As origens dos escrivães concelhios do Natal
De acordo com o levantamento efetuado a partir do cruzamento dos treze
conjuntos documentais mencionados supra, verificou-se que o ofício de escrivão da
Câmara do Natal fora ocupado por 42 indivíduos, em um período de 146 anos, que foi
de 1613 até 1759. Ressalta-se, ainda, que esses agentes ocuparam aquela escrivania
mediante diferentes tipologias de provimento, como se verá adiante, as quais variaram
significativamente ao sabor de circunstâncias estruturais e conjunturais, com durações
também distintas. A partir dessa informação subsidiária, buscar-se-á nesse capítulo
reconstruir o perfil social dos homens que ocuparam o ofício de escrivão do Concelho
do Natal e, para isso, empregar-se-á o método prosopográfico, posto em prática por
Peter Burke, no clássico Veneza e Amsterdã: Um estudo das elites do século XVII,31
no
qual esse autor havia se esmerado em elaborar estudos de biografias coletivas de modo
crítico, por meio da qual foi possível assegurar que as ações políticas resguardam em
suas sombras semoventes interesses pessoais ou de grupos.32
Abaixo, observa-se na
Tabela 03 a lista nominal dos 42 indivíduos que serviram no ofício de escrivão do
Senado da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759.
31 BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. EICHENBERG, Rosaura
(trad.). São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. 32
Ibidem., p. 8.
129
Tabela 03 - Lista nominal dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
33 * Proprietário da
escrivania camarária do Natal sem efetivo exercício.
33 Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira, através dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da
Câmara do Natal (1659-1759), do Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1759) e do Livro de Registro de Consultas Mistas do Concelho Ultramarino (1713-1722).
TABELA 03. Lista nominal dos escrivães da Câmara do Natal
por tipologia do provimento (1613-1759)
Afonso de Gois Pereira
Alexandre de Melo e Pinto
Alexandre Lopes
Antônio Barbalho
Antônio Barbalho e Abreu
Antônio Lopes de Lisboa
Antônio Lopes Pereira
Antônio Pereira Chaves
Ascenco de Gois Pereira
Bento Ferreira Mouzinho
Caetano de Melo e Albuquerque
Carlos da Rocha
Diogo Rodrigues Pereira
Dionísio da Costa Soares
Domingos Dias de Barros
Domingos Vaz Velho
Estevão Velho de Melo
Francisco Alvares de Lima*
Francisco de Oliveira Banhos
Francisco de Sousa e Oliveira
Francisco de Souza de Gusmão
Gaspar Rabelo Gondim
João Batista Freire
João de Barros Couto
José Barbosa de Souza
José Martins de Morais
José Ribeiro Riba*
Luiz Pereira Barbosa
Manuel Alvares Bastos
Manuel Antônio Pimentel de Melo
Manuel de Amorim
Manuel de Melo e Albuquerque (Pai)
Manuel de Melo e Albuquerque (Filho)
Manuel Rodrigues Macial
Manuel Rodrigues Taborda
Manuel Trigueiros Soares
Pero Vaz Pinto
Ruperto Bezerra
Sebastião Cardoso Batalha
Teodósio Freire de Amorim
Zacarias de Oliveira Ribeiro
Zacarias Vital Pereira
TOTAL: 42
130
Reitera-se, ainda, que o período compreendido entre 1614 e 1659 – totalizando
45 anos –, tem-se uma lacuna acerca das informações sobre os indivíduos que serviram
naquele ofício, visto que se caracterizou como um período nodal para a História da
Capitania do Rio Grande, de modo particular, mas também para a própria História do
Brasil, pois em 1624 havia ocorrido a invasão holandesa da porção geográfica situada
mais ao norte da América lusa. Com esse evento, parte significativa da documentação
administrativa, referente ao período precedente, ter-se-ia perdido, bem como ocorrera à
suspensão das atividades burocráticas empreendidas pela Coroa portuguesa nessa
porção da América.
A partir do estudo prosopográfico empreendido nesse capítulo tratou-se de
verificar e formular questões sobre esses indivíduos acerca do nascimento, do
casamento, das relações de compadrio, família, origens sociais e geográficas, posições
econômicas e ocupações, bem como retomando pontos de discussões sobre a cultura
política do Antigo Regime, que amplamente permeou a vida cotidiana dos homens
naquela centúria, e, aqui, sobretudo, daqueles que haviam ocupado a escrivania da
Câmara do Natal. Abaixo, elenca-se no Gráfico 02 a compartimentalização dos
escrivães da Câmara do Natal, por hora bastante, oriundos do reino e aqueles
provenientes das Capitanias do Norte.
131
Gráfico 02 - Macroorigens geográficas dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira, 2016.
34
De acordo com o Gráfico 02, não se foi possível identificar as origens de
47,61% (20) dos agentes que desempenharam a escrivania camarária do Natal. Ainda
assim, conjectura-se que o significado de tais dados poderia, possivelmente, remeterem-
se à mobilidade desses homens pelo Império ultramarino português, principalmente
ligado às questões da esfera militar, posto que se verifique que quando ocorria à
mudança de Capitão-mor, estes indicavam, por meio de novas provisões, um novo
indivíduo para o exercício do referido ofício. Possivelmente, os recém-nomeados para a
escrivania concelhia do Natal, cuja origem não foi possível precisar, se tratassem de
militares subalternos ligados por laços de hierarquia e/ou de amizade aos novos
capitães-mores e, portanto, de significativa confiança dos mesmos, que visualizavam no
provimento do ofício de escrivão concelhio a possibilidade de inserirem indivíduos a
eles vinculados, de forma a os transformarem em informantes daquilo que era discutido
34
Gráfico elaborado pelo autor Abimael Lira, partir do Livro de Registros de Batismo de Cunhaú, São
José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714), dos Livros de Registro de Casamento da
Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785), das Cartas de Sesmarias presentes
na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso Brasileiro), dos Documentos Manuscritos Avulsos do
Arquivo Histórico Ultramarino, referentes às Capitanias do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e
Ceará, dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1759), do Catálogo de
Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-1815) e dos Processos da Inquisição de Évora
relacionados ao Tribunal do Santo Ofício constantes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, BORGES
DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4. Mossoró: Fundação Vingt-
Un Rosado, 1993.
132
no núcleo das edilidades. Esses agentes da escrivania camarária do Natal que não foram
identificados, leva-nos a relativizar os números de oficiais advindos do reino e do
ultramar, cujo rastreamento poderia elevar ou mesmo reduzir aqueles números.
Ainda segundo o Gráfico 02, verifica-se que a escrivania da Câmara do Natal
foi ocupada por uma quantidade considerável de indivíduos advindos das Capitanias do
Norte, o qual perfez o total de 35,71% (15) e uma menor parcela dos oriundos do Reino,
16,66% (7). Essa situação leva-nos a conjecturar algumas possibilidades interpretativas.
Primeiramente, que o ofício de escrivão concelhio da Cidade do Natal não
fosse um elemento muito atrativo aos olhos dos adventícios provenientes do reino, visto
que o além-mar ofereceria aos reinóis outras oportunidades de ganhos de status e de
prestígio social, como a participação, sobretudo no núcleo das edilidades – juízes
ordinários, vereadores e procuradores das câmaras –, bem como de ascensão na escala
hierárquica do Antigo Regime ligados sobremaneira à perspectiva de enriquecimento
rápido que assolou o ideário de homens e mulheres que não encontravam chances de
ascensão econômica em suas comunidades de origem, conforme estudos da área
demonstram. As pesquisas que existem sobre as origens dos oficiais camarários
apontam para a participação significativa de reinóis, nas regiões mais ao sul,
principalmente nas áreas de constantes flutuações e movimentações de pessoas,35
nos
momento iniciais de instalação das vilas e a consequente ausência de naturais da terra.36
Já nas áreas de ocupação mais antigas, como a das Capitanias do Norte, essa ocupação
de reinóis nos ofícios camarários já não seria mais tão importante, mas continuaram
sendo buscadas pelos recém-chegados.37
Vale salientar, ainda, que os deslocamentos entre o reino e as outras partes do
Império eram motivados por uma série de fatores. Dentre esses, destaca-se as
possibilidades de enriquecimento e a vinda de indivíduos por questões de degredo,
sobretudo devido o cometimento por parte destes, de crimes contra a religião, aos quais
se somavam outros delitos de ordem civil, a fim de punir os criminosos.38
Porém, como
35 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. p. 66-74. 36
BRANDÃO, Michelle Cardoso. Forjando status e construindo autoridade: perfil dos homens bons e
formação da primeira elite social em Vila do Carmo (1711-1736). Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009. p. 69. 37
SOUZA, George Felix Cabral de. Os Homens e os Modos da Governança. A câmara Municipal do
Recife no século XVIII. Recife: Gráfica Flamar, 2003. p. 122-123. 38
COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados. In: Revista
Textos de História. v. 6, n. 1 e 2. 1998. p. 79.
133
afirma Charles Boxer, essa movimentação não foi um traço característico de indivíduos
que tivessem passado por situações de revezes em suas vidas sociais, nem mesmo por
aqueles que não encontravam inserção nas estruturas econômicas, mas um sem número
de agentes que já possuíam um arcabouço mínimo no reino, transferiram-se para o
além-mar. Exemplo disso, foram os incontáveis funcionários coloniais que foram para
a América e aí se fixaram, mormente muitos outros tenha conseguido retornar aos
torrões natal.39
Efetivamente, ao analisar o perfil dos homens bons da Câmara do Natal,
Kleyson Bruno Chaves Barbosa averiguou que 26,82% dos homens que compunham a
governança dessa edilidade – compreendendo os ofícios de juiz ordinário, vereador e
procurador –, entre 1720 e 1759, eram originários do reino. Esse autor ressalta, ainda,
que esses adventícios lançaram mão da política de casamentos com os integrantes da
elite política local, o que lhes possibilitou a inserção nos meandros locais do poder.40
De acordo com Luis Vidigal, a ocupação e o desempenho dos lugares
camarários, tais como o de juiz ordinário, o de vereador ou de procurador,
consubstanciaram-se como elementos promotores da nobilitação pessoal e de grupo.41
Além desses ofícios, pode-se acrescentar, dentre outros, o de escrivão camarário, visto
que, conforme havia apontado Roberta Stumpf, servir nas instituições concelhias
caracterizava-se como uma oportunidade de elevação do status social,42
posto que isso
operasse uma diferenciação hierárquica entre aqueles que ocupavam ofícios de menor
prestígio dentro das próprias câmaras – os porteiros, os meirinhos e os carcereiros –,
como, e em grau maior, daqueles que não andavam na governança da terra, os quais
eram numericamente mais significativos, pois compreendiam o grosso da população.
Isso seria indicativo, ainda, de certo grau de poder simbólico, pois os oficiais
39 Para saber mais sobre os problemas que afligiram os primeiros anos do processo de colonização nas
terras americanas sob o domínio português, ver BOXER, Charles. A idade do ouro no Brasil: dores de
crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 35. 40
BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. Perfis camarários de uma capitania periférica: Os Homens Bons
na câmara da cidade do Natal (1720-1759). In: VI Encontro Internacional de História Colonial:
mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e identidades, 2017, Salvador: Anais Eletrônicos [do] VI
Encontro Internacional de História Colonial: mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e
identidades. Salvador: EDUNEB, 2016. v. 1. p. 993. 41
VIDIGAL, Luis. No microcosmo social português: uma aproximação comparativa à autonomia das
oligarquias camarárias no fim do Antigo Regime político (1750-1830). In: VIEIRA, Alberto (coord.). O
município no mundo português. Funchal: CEHA/ Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998. p.
139. 42
STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações
de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2009. p. 64.
134
camarários ocupavam postos administrativos que a maioria da população sequer
aspirasse galgar, contribuindo mais ainda para distinguirem-se dos demais.43
Nesse sentido, na ocupação da escrivania da Câmara do Natal, percebeu-se
que, de fato, existiu uma pequena quantidade de reinóis que haviam ocupado o ofício de
escrivão da Câmara do Natal, estes, de acordo com o Gráfico 02, perfizeram 16,66%
(7) dos agentes que foram providos na escrivania dessa edilidade. Sobre eles, pode-se
conjecturar que se utilizaram de diferentes políticas de integração social com a elite
política local, fundindo-se com essa e, mediante isso, estruturando relações sociais que
influíram de maneira significativa, adicionando elementos reinóis, possivelmente vistos
como nobilitantes, às famílias locais. Adir-se, ainda, como apontado anteriormente, que
existiram dois períodos distintos e significativos para se compreender a inserção desses
homens na sociedade local da Capitania do Rio Grande, que seja o Antibellum e o Pós-
bellum. No primeiro período, os reinóis deviam se inserir nas redes familiares e
clientelares que já estivessem montadas. No segundo período – o Pós-bellum –, esses
elementos advindos do reino ajudaram a criar essas redes.
Em segundo lugar, como outra hipótese explicativa para a ocupação da
escrivania da Câmara de Natal por uma maior quantidade de agentes provenientes das
Capitanias do Norte, seja uma consequência da política de conquista e ocupação do
território da Capitania do Rio Grande, efetuadas pelos incentivos concedidos pela Coroa
lusitana, mediante a qual coubera aos primeiros conquistadores e povoadores da terra,
bem como aos seus descendentes, o acesso aos ofícios e benesses concelhios. Como
vetores dessa condição de acesso, figuravam a participação na guerra empreendida
contra os neerlandeses, no contexto mais amplo da dominação batava sobre a porção
setentrional da América portuguesa no século XVII, assim como a interiorização da
colonização das terras americanas, com o avanço da criação do gado e a busca por
metais preciosos, aos quais haviam se somado as lutas que, para isso, foram necessárias
de serem travadas contra os diversos grupos indígenas que habitavam a região. No caso
da Capitania do Rio Grande, destaca-se o conflito conhecido como a Guerra do Açú, na
conjuntura mais ampla da Guerra dos Bárbaros.
43 CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul
de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2014. p. 80.
135
Essa categorização de “conquistadores” ou de “primeiros povoadores” havia
funcionado durante longos anos e em diversas possessões portuguesas, espraiadas pelo
além-mar, inclusive nas capitanias vizinhas, como uma justificativa sui generis para o
acesso e a permanência de determinados indivíduos ou grupos familiares no interior das
agências de poder local, ou seja, das câmaras municipais. De acordo com Evaldo Cabral
de Mello, havia certa tendência de se encontrar entre os primeiros senhores de engenho,
oficiais régios e concelhios, os quais deslocavam os rendimentos desses ofícios para a
estruturação da empresa açucareira.44
Essas disposições demonstravam o imbricamento
da esfera de poder local com um dos principais mecanismos de distinção social do
período, que seja a posse senhorial de terras, o que seria um dos fatores para a inserção
de nomes nas listas de elegíveis dos concelhos. Situação essa que se cristalizaria após a
expulsão dos holandeses da porção norte do América portuguesa, onde muitos desses
senhores de engenhos, que ajudaram a restabelecer o domínio lusitano nessas paragens,
haviam passado a se utilizarem da prerrogativa de “conquistadores” ou de “primeiros
povoadores”, justificando, com isso, o acesso a determinadas benesses régias.
Conforme ideias de Edmundo Zenha, depreende-se que as elites que
dominaram a governança da terra pela América Lusa afora, caracterizaram-se por uma
adaptação de seu perfil relacionado ao processo de conquista,45
pois, como asseverou
João Fragoso, a América nada mais seria que uma “conquista” e não uma colônia46
e,
por esse mesmo motivo, seria justificado a continuidade do privilégio de acesso aos
postos camarários aos descendentes dos conquistadores, como uma forma de retribuição
aos serviços oferecidos a Coroa na parte meridional da possessão portuguesa na
América. Esse acesso privilegiado pode ser compreendido mediante aquilo que Arthur
Curvelo observou para o caso de Alagoas do Sul, entre 1654 e 1751, que o acesso aos
ofícios camarários seria uma espécie de abonação da representatividade das elites locais,
44 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. 3. ed. revista.
São Paulo: Alameda, 2008. p. 133. 45
ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial,
1948. p. 136-138. 46
FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra
do Rio de Janeiro (1600-1750). In: Ibidem; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antonio
Carlos Jucá de. (orgs.). Conquistadores e Negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos
trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 35.
136
garantindo-lhes, com isso, barganhas políticas que do exercício desses ofícios
adviessem.47
Visto tudo isto, depreende-se o sentido primordial da identificação precisa das
origens geográficas dos escrivães camarários, a fim de se compreender as dinâmicas de
inserção desses homens nos quadros de oficiais locais, bem como no seio da própria
elite local, por ser um dos ofícios que também figuravam de modo privilegiado no
cenário da governança da terra. Nesse ínterim, podem-se verificar, ainda, indícios das
correntes de deslocamentos que se estabeleceram ao longo do processo de ocupação da
Capitania do Rio Grande, com a vinda de homens – mas também de mulheres, mesmo
que em menor grau –, de diferentes porções do Império, sobremodo com uma análise
mais detida das origens geográficas dos escrivães concelhios. Assim, mediante a
utilização do método onomástico possibilitou-se o reconhecimento da origem
geográfica de 22 indivíduos que serviram na escrivania da Câmara do Natal, entre 1613
e 1759, algo que permitiu averiguar dados importantes acerca da composição social da
elite local da Capitania do Rio Grande, entre os séculos XVII e XVIII. A partir disso, se
enumerou, a seguir, as regiões de onde esses mesmos agentes provieram tanto do reino
quanto da própria América portuguesa, extrapolando a binária divisão entre reinóis e
luso-brasílicos, como se pode visualizar na Tabela 04.
Tabela 04 - Origem geográfica dos escrivães da Câmara do Natal por circunscrição e
localidade (1613-1759)
TABELA 04. ORIGEM GEOGRÁFICA DOS ESCRIVÃES DA
CÂMARA DE NATAL POR CIRCUNSCRIÇÃO E LOCALIDADE (1613-1759)
CIRCUNSCRICÃO LOCALIDADE/DENOMINAÇÃO
NO REGISTRO QUANTIDADE
PORTUGAL
LISBOA 3
LAGOS 1
SÃO MIGUEL DE VILA
FRANCA, ALFOZ DA VILA DE
BARCELOS
1
47 CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul
de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Recife, 2014. p. 202.
137
VILA DE BUARCOS,
FREGUESIA DE SÃO PEDRO,
ARCEBISPADO DE COIMBRA
1
ALCOBAÇA 1
CAPITANIA DO RIO
GRANDE
CIDADE DO RIO GRANDE
(NATAL) 1
FREGUESIA DE NOSSA
SENHORA DA
APRESENTAÇÃO
5
CAPITANIA DA
PARAÍBA CIDADE DA PARAÍBA 3
CAPITANIA DE
ITAMARACÁ
FREGUESIA DE SÃO COSME E
DAMIÃO DE IGARASSU 1
CAPITANIA DE
PERNAMBUCO
PRAÇA DO RECIFE 1
OLINDA 1
SÃO LOURENÇO DA MATA 1
FREGUESIA DE SANTO
AMARO DO JABOATÃO 1
SUAPE 1
Não identificados 20
TOTAL: 42
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.48
Observa-se, mediante a análise da Tabela 04, que o ofício de escrivão
concelhio da Cidade do Natal foi ocupado por indivíduos provenientes de diferentes
porções geográficas do Império ultramarino português e percebeu-se, em seguida, a
preponderância daqueles agentes advindos da própria América lusa. Essa situação
48 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos seguintes conjuntos documentais: Livro de Registros
de Batismo de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714), dos Livros
de Registro de Casamento da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785), das
Cartas de Sesmarias presentes na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso Brasileiro), dos
Documentos Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referentes às Capitanias do Rio
Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Ceará, dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara
do Natal (1659-1759), do Catálogo de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-1815) e
dos Processos da Inquisição de Évora relacionados ao Tribunal do Santo Ofício constantes no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo.
138
demonstra um relativo grau de conexão e circulação de pessoas entre as Capitanias do
Norte.
2.1.1 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos de Portugal
Mediante a pesquisa sobre as origens dos escrivães camarários do Natal, pode-
se apontar diferentes motivações que incitaram a vinda daqueles indivíduos para a
Capitania do Rio Grande. Como exemplo dessas motivações, para a vinda de reinóis
que, mais tarde, serviram como escrivães do Senado da Câmara do Natal, pode-se citar
o caso de Pero Vaz Pinto, que havia ocupado a escrivania daquela edilidade quando de
sua instalação, em 1613.
Vaz Pinto era casado com Catarina Martins, natural de Lagos – zona ocidental
do Algarve – de onde, possivelmente, aquele escrivão também proviria. Sua esposa era
filha legítima do mercador Diogo Martins e de sua mulher Guiomar Gonçalves.49
Essas
informações são provenientes de um processo movido pelo Santo Ofício, no Tribunal da
Inquisição de Évora, contra a esposa de Pero Vaz, acusada de crimes contra a fé
católica, devido à prática de judaísmo, de heresia e de apostasia.50
De acordo com aquele processo, o rol de culpas que havia recaído sobre a
esposa de Pero Vaz Pinto devia-se a outra ação que havia sido movida
concomitantemente contra uma sua cunhada, por nome de Branca Simões.51
Devido ao
mal estado do documento, não se pode asseverar se essa cunhada seria irmã de seu
marido, Pero Vaz Pinto, ou se seria casada com um irmão da própria acusada.
Entretanto, verificou-se da análise desse processo que Catarina Martins havia sido presa
em março de 1586 e sentenciada a tormento um ano e cinco meses depois – em 02 de
agosto de 1587. Sua cunhada, Branca Simões, natural de Lagos, era filha de João
Simões e de Beatriz Lopes, casada com o mercador Duarte Dias, e foi acusada dos
mesmos crimes cometidos pela cunhada, sendo presa e sentenciada nos mesmos dias
49 Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de Catarina Martins. Tribunal do Santo
Ofício: Inquisição de Évora. Proc. nº 7834. Cód. ref. PT/TT/TSO-IE/021/7834. 50
Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de Catarina Martins. Tribunal do Santo
Ofício: Inquisição de Évora. Proc. nº 7834. Cód. ref. PT/TT/TSO-IE/021/7834. 51
Ibidem.
139
que Catarina Martins o fora.52
Apesar de que o cárcere tenha sido liberado para
Catarina, sua cunhada Branca Simões não tivera a mesma sorte, visto que os
inquisidores, em 04 de novembro de 1587, ordenaram que ela devesse cumprir sua
penitência na Cidade de Évora.53
Possivelmente, após sua esposa libertar-se do cativeiro da Inquisição eborense,
Pero Vaz Pinto tenha preferido construir uma nova vida, distante da trágica situação em
que se encontrara parte de sua família, metida nas investigações e nos cárceres da
Inquisição, e a América, de modo mais específico à pacata Capitania do Rio Grande,
eram lugares ideais para a reconstrução de suas vidas sociais e econômicas que,
provavelmente, depauperara-se diante do fatídico acontecimento. Desse caso,
depreende-se que um dos homens que havia servido na escrivania do Concelho do
Natal, no alvorecer do século XVII, tivera parte de sua família vigiada e perseguida
pelos tentáculos da Inquisição eborense. Mais que isso, observa-se que Pero Vaz estava
inserido numa família de mercadores e que, talvez, assim como sua esposa,
verossimilmente, e a cunhada desta, partilhasse das mesmas práticas consideradas
heréticas pela Inquisição.
O estudo sobre o caso da família de Pero Vaz abriu margem para se questionar
uma possível origem cristã-nova para ele e para todos aqueles seus familiares, situação
essa que se coaduna com a afirmação de António Manuel Hespanha de que havia uma
“[...] hostilidade social em relação aos escrivães (ou, em geral, aos letrados) e, entre nós
a frequente equiparação entre letrado e cristão-novo”.54
Outro indício dessa origem
cristã-nova de Vaz Pinto seria o fato de seu sogro, da cunhada e do marido de sua
esposa serem todos cristãos-novos.
A situação de Pero Vaz Pinto abre-nos pontos de discussão no que tange aos
limites, possibilidades e alcances da aplicabilidade da própria legislação que orientou a
vida administrativa no reino e no ultramar, posto que, as Ordenações Filipinas (1603-
1917) impunham constantemente restrições ao acesso e ao exercício dos ofícios ligados
a administração ou a burocracia da Coroa lusa aos indivíduos de origem cristã-nova.55
52 Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de Branca Simões. Tribunal do Santo
Ofício: Inquisição de Évora. Proc. nº 5286. Cód. ref. PT/TT/TSO-IE/021/5286. 53
Ibidem. 54
HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:
Ler História, n. 8, 1986. p. 47. 55
BOXER, Charles. O império marítimo português (1415-1825). Barreto, Anna Olga de Barros (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 263.
140
Vale ressaltar que a distinção entre cristão velho e cristão novo passaria por mudanças
consideráveis na segunda metade do século XVIII, quando o Marquês de Pombal
aboliu, em 1773, tais diferenças.
De fato, segundo as Ordenações, estava vetado o acesso daqueles indivíduos –
de origem cristã-nova – a diversos ofícios da administração, nos concelhos municipais,
inclusive no ofício de escrivão concelhio, como nas outras instituições administrativas e
no clero, exigindo-se, para isso, “pureza de sangue”.56
Não obstante, como assegurou
Charles Boxer, em Pureza de sangue e raças infectas, isso seria quase impossível, em
face da diminuta quantidade de homens de que a Coroa dispunha, o que levava “[...] os
cristãos-novos a conseguirem se infiltrar nesses postos ou ocupações proibidas, em
especial nas zonas remotas do Império ultramarino [...]”.57
Talvez esses limites fossem
esquecidos quando se necessitava de mãos e braços para a empreitada da colonização e,
mais que isso, de homens hábeis para o exercício da escrita oficial do Império,
responsável que foi por interligar as diferentes porções da Coroa português, conferindo-
lhe unicidade e coesão.
Não obstante, sabe-se que Pero Vaz Pinto ocupou a escrivania da Câmara do
Natal, concomitantemente, com a escrivania da Real Fazenda do Rio Grande.58
Ademais, verifica-se que Vaz Pinto tenha assumido efetivamente ambas as escrivanias
e, mais que isso, tenha sido um dos escrivães redatores do Auto de Repartição das
Terras da Capitania do Rio Grande, de 1614, na qual a doação de sesmarias nessa
Capitania haviam sido revistas, objetivando-se, com isso, o processamento de um
inquérito no qual levantasse aquelas sortes de terra que haviam sido ocupadas de fato,
bem como as que, até a aquela presente data, não tivessem sido povoadas.59
Em retribuição aos serviços prestados pela redação do Auto de Repartição de
Terras do Rio Grande, Vaz Pinto havia recebido a doação de uma data de terras,
concedida pelo Governador-Geral do Estado do Brasil, D. Gaspar de Souza,60
descrita
como “o melhor porto de pescarias que há e está defronte da Fortaleza”.61
Contudo,
56 BOXER, Charles. O império marítimo português (1415-1825). Barreto, Anna Olga de Barros (trad.).
São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 290. 57
Ibidem., p. 281. 58
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I, p. 416. 59
TEXEIRA, Rubenilson Brazão. Terra, casa e produção. Repartição de terras da Capitania do Rio
Grande (1614). In: Revista Mercator, Fortaleza, v. 13, n. 2, mai./ago. 2014. p. 105-124. 60
Ibidem., p. 111. 61
Ibidem., p. 111; 121.
141
averígua-se, em um requerimento do Alferes João de Miranda Floresta ao Rei D. Filipe
III, datado de 12 de agosto de 1637, no qual esse militar solicitava a mercê da
propriedade do ofício de escrivão da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande, que, por
aquele tempo, Pero Vaz Pinto já seria falecido, sem, no entanto, deixar herdeiros
capazes de assumir o ofício, pois o filho mais velho não passaria, naquela data, dos oito
anos de idade.62
Cogita-se, portanto, a possibilidade de que esse ofício pudesse ser
transmitido hereditariamente, mesmo que não obstante, os filhos de Pero Vaz não
tenham assumido as funções que lhes competiam.
Outro caso de português que aportara a Capitania do Rio Grande e que, mais
tarde, serviria na escrivania da Câmara do Natal, foi o Capitão Antônio Lopes de
Lisboa. Oriundo da mesma cidade que a seu sobrenome seria incorporado,63
não se sabe
ao certo quando se fixou em Natal. A primeira menção que existe sobre esse agente, na
Capitania do Rio Grande, remetia-se ao registro de um numeramento do posto de
Alferes da Fortaleza dos Santos Reis.64
Antônio Lopes serviu a Coroa portuguesa por
um período de 32 anos, de 1674 até 1706, havendo participado de diversos embates que,
em momentos distintos, afligiram os domínios lusos na América, nas Capitanias de
Pernambuco e do Rio Grande, desde as batalhas empreendidas contra um levante do
Quilombo dos Palmares, até as entradas promovidas aos sertões do Rio Grande, contra
os indígenas.65
Apesar de Antônio Lopes haver-se deslocado para a Capitania do Rio Grande
devido às funções estritamente militares que ocupara nas milícias D’El Rey, verifica-se
que foi provido pela primeira vez no ofício de escrivão da Câmara do Natal, em 1678,66
havendo exercido esse mesmo ofício por uma década.67
Em carta de 31 de maio de
1688, o Governador-geral do Brasil, Mathias da Cunha, ordenava ao Capitão-mor do
Rio Grande, Pascoal Gonçalves de Carvalho (1685-1688), que suspendesse Antônio
62 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc. 4.
63 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1761-1769. 64
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl. 15v. 65
AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 22, Doc. 2015. 66
Fundo documental do IHGRN. op. cit., Fl. 106v. 67
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo).
142
Lopes daquele ofício, visto que o provimento que o mesmo havia recebido do governo-
geral teria terminado.68
Como se verá adiante, Antônio Lopes de Lisboa constituiu família no Rio
Grande, entrelaçando sua descendência com importantes famílias locais e enraizando-se
naquela capitania, chegando a ocupar diversos ofícios, além do de escrivão concelhio,
da Câmara do Natal. Averígua-se que Antônio Lopes antes de ser escrivão camarário,
tenha exercido os ofícios de procurador e de almotacé, nos anos de 1675 e 1676,
respectivamente.69
Lopes de Lisboa conseguiu, ainda, obter diversas concessões de
sesmarias pela Capitania do Rio Grande e do Ceará,70
bem como chãos de terra na
Cidade do Natal.71
Além disso, Antônio Lopes de Lisboa era proprietário de barcos que
faziam carregamento e abastecimento de sal naquela municipalidade.72
Verifica-se com
a trajetória de Antônio Lopes a inserção e a participação de um escrivão, de origem
reinol, em diversas atividades econômicas pela Capitania do Rio Grande, indo desde a
agricultura praticada nas suas sesmarias, passando pela criação de gado vacum73
e, no
transporte do sal.74
Participando, também, como oficial camarário, visto que após
exercer a escrivania camarária, seria eleito vereador para dois mandatos, em 1693 e em
1696.75
Essa situação demonstra o envolvimento de um escrivão concelhio de origem
reinol em diversas atividades de ordem econômica na Capitania do Rio Grande, o que
levava a que se imiscuíssem tais atividades. Mas a ocupação do ofício de escrivão e,
mais tarde, de outros postos dentro da hierarquia camarária, leva-nos a conjecturar que a
inserção de Lopes de Lisboa nessa instituição muito tivesse haver com a necessidade de
68 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume I. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,
1929. p. 287-288. 69
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). 70
Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de Lisboa em 13 de outubro de 1680. Plataforma SILB –
CE 0013. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017; Carta de sesmaria
doada a Antônio Lopes de Lisboa em 09 de maio de 1706. Plataforma SILB – RN 0056. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017; Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de
Lisboa em 24 de março de 1676. Plataforma SILB – RN 0030. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017; Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de
Lisboa em 07 de novembro de 1674. Plataforma SILB – RN 0023. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017. 71
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 74v. 72
LOPES, loc. cit., Doc. 0576. 73
Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de Lisboa em 13 de outubro de 1680. Plataforma SILB –
CE 0013. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017. 74
LOPES, loc. cit. 75
Ibidem.
143
representar e defender seus interesses, provenientes da agricultura de suas terras, da
criação de gados e do transporte do sal, em uma das principais agências de
regulamentação da produção em nível local da Capitania, o Concelho do Natal.
Também lisboeta era Francisco Álvares de Lima,76
que foi o primeiro
indivíduo a adquirir a propriedade do ofício de escrivão da Câmara do Natal, juntamente
com o de tabelionado do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande, em 16 de
outubro de 1704,77
a qual perdurou até dezembro de 1717, quando faleceu sem deixar
herdeiros.78
Francisco Álvares era filho de Gaspar Gonçalves de Lima79
que, mediante
os serviços militares prestados por seu pai à Coroa portuguesa, especificamente aqueles
desempenhados no contexto das Guerras de Restauração no Portugal peninsular, foi o
motivo pelo qual os conselheiros do Conselho Ultramarino resolveram nomeá-lo para
aquela propriedade, devido à existência de um Alvará de Lembrança de ofício80
–
espécie de carta concedida pelo Rei como garantia de retribuição material aos serviços
prestados pelos vassalos em diversos contextos, sobretudo no caso de guerras.
Entretanto, ao que parece, Francisco Álvares não chegou a assumir efetivamente a
escrivania da Câmara do Natal, como deixa entrever uma carta enviada pelos oficiais
dessa edilidade ao rei D. João V, na qual essas autoridades queixavam-se da
necessidade que esse proprietário viesse para a Capitania do Rio Grande exercer, como
era sua obrigação, seu ofício, posto que em face dos diminutos rendimentos que eram
pagos aos serventuários, não existia ninguém que os quisesse servir.81
Contudo, mesmo
diante daquela exigência efetuada pelos oficiais concelhios, Álvares de Lima havia
permanecido como morador em Lisboa, como atesta a nomeação, dois anos depois, para
o ofício de Almoxarife dos Fornos do Vale do Zebro,82
nas proximidades de Lisboa.
No entanto, Francisco Álvares de Lima conseguiu nomear um procurador83
para resolver as pendengas relacionadas à escolha de serventuários – espécie de
substituto, ao qual se pagava a terça parte dos rendimentos obtidos do ofício –, mediante
76 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc. 70.
77 Ibidem., Cx. 1, Doc. 60.
78 Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, códice 21. Livro de Registro
de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 79
Ibidem. 80
Ibidem. 81
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc. 70. 82
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro II, liv.
1, f. 351v; Ibidem., liv. 1, número de ordem 37, f. 351v 83
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl(s). 74-79.
144
o provimento por concessão precária ou temporária, bem como as questões relacionadas
com os valores do ordenado que cabeiam aqueles que exercessem as serventias dos
ofícios de escrivão camarário e de tabelião público. O procurador dos interesses de
Francisco Álvares de Lima, na Capitania do Rio Grande, seria o Capitão Manuel de
Melo e Albuquerque.84
Outro proprietário reinol da escrivania da Câmara do Natal foi o Comissário
Geral de Cavalaria José Ribeiro Ribas, havendo adquirido essa propriedade de ofício,
por meio de edital, em dezembro de 1717,85
assim como ocorreu para o provimento do
anterior proprietário.86
Ribeiro Ribas, nasceu em 1670, era filho de Miguel Ribeiro e de
Justa Ribas, sendo natural de São Miguel de Vila Franca, arrabaldes da Vila de
Barcelos.87
José Ribeiro transferiu-se para a América portuguesa quando contava apenas
15 anos de idade, para ajudar seu irmão, Simão Ribeiro Ribas, na condição de assistente
de uma loja que esse possuía na Praça do Recife.88
Ao que parece, José Ribeiro Ribas
não chegou a exercer de fato a escrivania da Câmara do Natal,89
tarefa essa que coubera
a vasta quantidade de serventuários durante o período no qual aquele agente deteve a
propriedade desse ofício,90
juntamente com um dos ofícios de tabelião do público,
judicial e notas da Capitania do Rio Grande.91
O que se sabe sobre a trajetória de José Ribeiro Ribas, na Capitania de
Pernambuco, foi que se tornou um importante homem de negócios em Recife, atuando
em alguns postos militares e servindo na câmara dessa mesma vila em duas ocasiões.92
José Ribas havia exercido, ainda, o ofício de escrivão da Alfândega do Recife,93
além
do que possuía vários outros empregos no serviço de Vossa Majestade.94
84 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl(s). 74-79. 85
Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, códice 21. Livro de Registro
de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 86
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60. 87
MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Nobres e Mascates na Câmara do Recife, 1713-1738”. In:
Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), v. LIII, 1981. p.
193. 88
SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la câmara
municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca,
Salamanca, 2007. p. 307 89
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 4, Doc. 227. 90
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). 91
Arquivo Histórico Ultramarino, loc. cit. 92
SOUZA, op. cit., p. 836-837. 93
AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 34, Doc. 3102; 94
AHU-RN, op. cit., Cx. 4, Doc. 227.
145
Lisboeta era também o Sargento-mor Dionísio da Costa Soares,95
filho de
Manuel Borges Soares e de Jacinta da Costa Pródiga,96
que iniciou sua trajetória nas
engrenagens administrativas da Capitania do Rio Grande, no exercício do ofício de
escrivão do Concelho do Natal, no período que foi de 1731 a 1736.97
O percurso de
Costa Soares no âmbito da burocracia local daquela capitania, foi coroado com a
provisão régia para o ofício de Provedor da Real Fazenda do Rio Grande, de 1754 até
1756.98
De origem lusa, era o coimbrão Manuel Rodrigues Taborda, natural da Vila de
Buarcos, situada na Freguesia de São Pedro, Bispado de Coimbra.99
Essa vila devido a
sua localização às margens do Oceano Atlântico, faria com que Buarcos sofresse,
sucessivamente, com questões de saques e de pilhagem, sendo destruída por diversas
vezes. Manuel Rodrigues Taborda era filho de Maria de Sá e eram ambos oriundos
daquela localidade.100
Taborda tornar-se-ia escrivão da Câmara do Natal, por nomeação
do Capitão-mor Antônio de Carvalho e Almeida (1701-1705), em 31 de dezembro de
1704, substituindo o anterior ocupante, Carlos da Rocha, posto que esse houvesse
renunciado ao ofício por justa causa, e já ter Manuel Rodrigues Taborda servido há
vários anos a Vossa Majestade nos “honrosos cargos da república”, sendo, inclusive,
morador da Cidade do Natal.101
E, por fim, era proveniente do reino, mais precisamente de Alcobaça, de onde
havia fugido da prisão do mosteiro cisterciense dessa localidade, o Coronel Bento
Ferreira Mouzinho,102
o qual desempenhou, a título de serventia, o ofício de escrivão da
Câmara do Natal de 1715 até 1732,103
e sobre o qual se deterá, pormenorizadamente, no
sexto capítulo desse trabalho. De acordo com a devassa levantada, na década de 1740,
sobre Ferreira Mouzinho, este havia fugido da prisão daquele Mosteiro, onde estava a
95 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1727-1740. 96
Ibidem. 97
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). 98
Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09
(1743 – 1754). Fl. 253. 99
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1697. 100
Ibidem. 101
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 32. 102
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297. 103
LOPES, op. cit.
146
cumprir pena por haver matado um homem, para a Capitania do Rio Grande.104
Contudo, cogita-se que a vinda de Bento Ferreira Mouzinho para a Cidade do Natal
estivesse relacionada à existência de laços de parentesco entre esse oficial e algum seu
parente ou aderente que aqui já estivesse instalado, quando Ferreira Mouzinho escolheu
esse destino. Pois, como afirmou George Félix Cabral de Souza, em Elite y ejercicio de
poder em el Brasil colonial, as redes de parentesco exerciam significativo sobrepeso
antes do transeunte resolver cruzar o oceano.105
Essa hipótese será adensada no próximo
capítulo, ao tentar-se reconstituir as redes de parentesco – consanguíneas e espirituais –
das quais o Coronel Bento Ferreira Mouzinho fazia parte, nas Capitanias do Rio
Grande, Itamaracá e Pernambuco.
Depreende-se da análise das origens geográficas desses 7 indivíduos que
ocuparam a escrivania da Câmara do Natal, ao longo do século XVII e da primeira
metade do século XVIII, que as motivações que os impeliram a se transferirem do reino
para a América portuguesa são as mais díspares, partindo de questões relacionadas
sobremaneira a dimensão familiar. Mesmo que os condicionantes sociais dessas
escolhas houvessem variado significativamente, em cada caso, encontram-se fatores que
se coadunam com os contextos políticos mais amplos que demarcaram o Império, como
também a própria política de mobilidade dentro do Império incentivada pela Coroa.
Alguns autores associam as correntes de deslocamento que se destinaram as
Américas a fatores relacionados às perseguições ou crimes religiosos que assolaram, de
maneira mais rígida, o Portugal reinol, bem como outras partes da Europa.106
A
transferência de Pero Vaz Pinto e de sua família insere-se, talvez, nesse universo, posto
que entre o rol de atos-crimes que culminaria com degredo para o Brasil, figurassem os
atentados contra a igreja ou contra a religião,107
e a fuga das malhas da inquisição fazia
com que vários cristãos-novos acorressem para terras longínquas e ainda não
exploradas, onde, devido ao isolamento que possuíam, pudessem desenvolver suas
crenças e seus costumes religiosos.108
Esse mesmo caráter de isolamento e, portanto, de
104 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). 105
SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la câmara
municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca,
Salamanca, 2007. p. 347. 106
COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados. In: Revista
Textos de História. vol. 6 – n. 1 e 2. 1998. p. 79, 89. 107
Ibidem., p. 89. 108
Ibidem., p. 80.
147
proteção, que envolviam as conquistas, nesse caso a Capitania do Rio Grande, também
fora vislumbrado, com algum grau de probabilidade, por Bento Ferreira Mouzinho, ao
escolher rumar para a Capitania do Rio Grande, onde se refugiaria das culpas que
haviam recaído sobre ele, quando do assassinato de um compatriota.
Motivação bastante distinta da anterior havia induzido a ida de José Ribeiro
Ribas para a Vila do Recife, ainda em plena mocidade. Ribas talvez houvesse feito a
travessia do Atlântico embebido da possibilidade de acrescentamento social, ou mesmo
na crédula tarefa de honrar os laços consanguíneos com o irmão, ou vice-versa, na qual
se incluía as variadas e enormes possibilidades de acrescentamento social, tanto pessoal
quanto familiar.
Quanto aos reais motivos que impulsionaram Antônio Lopes de Lisboa e
Dionísio da Costa Soares a abandonarem seus torrões natais e lançarem-se ao mar, na
empreitada de uma nova vida na Capitania do Rio Grande, talvez houvessem sido
movidos por aquilo que Luiz Felipe de Alencastro compreendeu como sendo
características próprias ao perfil dos agentes sociais que demarcaram, mormente, os
homens que serviram a Coroa portuguesa. Segundo Alencastro, os vassalos D’El Rey
dividir-se-iam em duas categorias: os “homens coloniais” e os “homens ultramarinos”.
Antônio Lopes e Dionísio da Costa que se radicaram na Capitania do Rio Grande,
podiam ser caracterizados como exemplares do “homem colonial”, ou seja, que “[...]
circula em diversas regiões do Império, mas joga todas as suas fichas na promoção
social e econômica acumulada numa determinada praça, num enclave colonial”,109
posto
que tanto Costa Soares como Antônio Lopes de Lisboa haviam servido também nas
Capitanias de Pernambuco e da Paraíba antes de chegarem ao Rio Grande e aí
estabelecerem-se.110
109 Luiz Felipe de Alencastro discute o perfil de dois diferentes agentes sociais que foram moldados
durante o processo de formação do Brasil no contexto do Atlântico Sul, que seja o ‘homem ultramarino’ e
o ‘homem colonial’. O primeiro caracterizar-se-ia por ir ao ultramar adquirir benesses materiais e
simbólicas e retornar ao reino para galgar do prestígio que conseguiu amontoar. O segundo, seria aquele
homem que destinou-se ao além-mar e que conseguiu acumular patrimônio físico e social, porém fixou-se
em algum enclave colonial. Nesse ínterim, para Alencastro, a chave explicativa desses perfis e da própria
formação do Brasil seria o tráfico negreiro, fenômeno que associou e cimentou, por meio das trocas
mercantis, o espaço Atlântico, no qual as relações entre a América e a África se caracterizaram por serem
elementos complementares de um único sistema de exploração. Para saber mais ver ALENCASTRO,
Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes. A Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000. 110
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1727-1740; AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, Doc. 366.
148
2.1.2 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos das Capitanias do Norte
Não muito diferentes dos motivos que impeliram os reinóis a se deslocarem por
variadas porções do Império, foram os fundamentos que orientaram o deslocamento de
indivíduos intercapitanias da América portuguesa. Ressalta-se, de acordo com o
Gráfico 02, que 35,71% (15) dos agentes identificados que ocuparam a escrivania da
Câmara do Natal eram oriundos da própria América portuguesa. No entanto, o
“recrutamento” desses indivíduos não havia ocorrido de maneira uniforme, visto que se
tiveram representantes de quatro diferentes capitanias no exercício do ofício de escrivão
camarário do Natal, especialmente advindos das chamadas “Capitanias do Norte”, cuja
distribuição pode-se visualizar abaixo, no Gráfico 03.
Gráfico 03 - Naturalidade dos escrivães da Câmara de Natal por circunscrição
geográfica do Império (1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
111
111 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos conjuntos: Livro de Registros de Batismo de Cunhaú,
São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714), dos Livros de Registro de
Casamento da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785), das Cartas de
Sesmarias presentes na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso Brasileiro), dos Documentos
Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referentes às Capitanias do Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco e Ceará, dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-
1759), do Catálogo de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-1815) e dos Processos
da Inquisição de Évora relacionados ao Tribunal do Santo Ofício constantes no Arquivo Nacional da
149
Segundo Carmen Alveal, como esboçado anteriormente, as instâncias de poder
existentes na Capitania do Rio Grande – de modo mais específico, a Câmara do Natal –,
bem como o universo de possibilidades de acrescentamento material e simbólico –
expressos pela concessão de sesmarias e de patentes militares das Companhias de
Ordenanças locais –, haviam funcionado como importantes mecanismos de atração de
indivíduos que não encontravam espaço de atuação política em Olinda ou em
Filipéia.112
Possivelmente, essa situação se deva ao fato de que ambas as localidades já
possuíssem, há época, seus próprios circuitos sociais do poder já encerrados, em face de
uma quantidade numérica significativa de homens com maior prestígio social e
econômico, mas cujas redes já estivessem hermeticamente fechadas.
Acrescenta-se a isso, os incentivos propagados pela Coroa portuguesa no
sentido de assegurar o domínio efetivo do território, situado na porção mais setentrional
da América, pretensões essas que faziam parte da geopolítica lusa. Exemplo disso, de
acordo com Carmen Alveal, foi o registro de um alvará, que ordenava ao Provedor da
Real Fazenda do Rio Grande, a necessidade de afixar editais sobre as terras que eram
dadas em sesmaria.113
Para aquela autora, isso demonstraria a necessidade de ocupação
do território com moradores reinóis ou mesmo por aqueles nascidos na América
portuguesa, dentre os quais se destacavam os mestiços, originando-se disso a publicação
dos editais,114
cujo objetivo precípuo era fomentar a distribuição de sesmarias para
indivíduos originários das Capitanias de Pernambuco e da Paraíba, os quais deviam
encaminhar-se à Capitania do Rio Grande.115
A isso, possivelmente, se deveu a
ocupação da escrivania concelhia do Natal por indivíduos advindos das capitanias
circunvizinhas, como se pode verificar a seguir.
Da Capitania de Pernambuco, de modo mais restrito de Suape, adviera o
Capitão Zacarias Vital Pereira.116
Nomeado para a serventia dos ofícios de escrivão da
Torre do Tombo, BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4.
Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 1993. 112
ALVEAL, Carmen. A Formação da Elite na Capitania do Rio Grande no pós-Restauração (1659-
1691). In: Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime.
Lisboa, 18-21, maio, 2011. p. 4. 113
“Registro de um Alvará por que se ordena ao Provedor da Fazenda do Rio Grande do Norte pôr editais
sobre as terras que se tem dado de sesmaria”. In: Documentos Históricos. v. 25. Rio de Janeiro: 1928. p.
456-457. Apud ALVEAL, op. cit., p. 2. 114
Ibidem. 115
Ibidem. 116
AHU-CE, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc(s). 64, 69.
150
Câmara do Natal e de tabelião público, pelo Capitão-mor Sebastião Nunes Colares
(1701-1708),117
Vital Pereira exerceria a escrivania concelhia da Cidade do Rio Grande
entre 1706 e 1707.118
Após isso, Zacarias Pereira transferir-se-ia para a Capitania do
Ceará, aonde viria a obter a patente de coronel de Infantaria dessa capitania,119
chegando, inclusive a ocupar ofícios proeminentes na governança local, visto que seria
juiz ordinário da Vila de São José do Ribamar.120
Todavia, o Coronel Zacarias Vital Pereira envolver-se-ia em algumas querelas
relacionadas à transferência da Vila de Aquiraz para São José do Ribamar, algo que
motivou em sua prisão, executada pelo Capitão-mor do Ceará, Manuel da Fonseca
Jaime,121
da qual sairia ileso, motivando-o a pedir ao rei, D. João V, por meio de
requerimento enviado ao Concelho Ultramarino, em 29 de julho de 1720, recompensa
pelos danos morais que havia sofrido naquela circunstância.122
Porém, pouco mais de
cinco anos depois, em 8 de agosto de 1725, o Ouvidor-geral da Capitania do Ceará, José
Coelho Machado, enviaria carta, juntamente com uma devassa dos crimes cometidos
por Zacarias Vital Pereira nas Capitanias do Rio Grande e do Ceará.123
Em face disso,
Vital Pereira foi provisoriamente remetido preso para a cadeia de Pernambuco, a fim de
pagar pelos crimes que havia cometido, sendo posteriormente solto por ordem de D.
Manuel Rolim de Moura, governador da Capitania Pernambuco.
Observa-se da carreira do Coronel Zacarias Vital Pereira um relativo grau de
mobilidade desse agente social, que costurou e, ao mesmo tempo, interligou diferentes
espacialidades pelos domínios lusitanos na parte setentrional da América. Essa
volubilidade de homens, sobretudo nas estruturas administrativas e burocráticas do
Império, demonstra a necessidade constante que impeliu a Coroa de resolver os
problemas de escassez de recursos humanos, movimentando os parcos contingentes
habilitados que detinha, ao desempenho do mando institucional, notabilizada nessa
movimentação constante das peças que compunham o “tabuleiro de xadrez” do Império
ultramarino português.
117 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 199. 118
Ibidem. 119
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc. 69. 120
Ibidem., Cx. 1, Doc. 64. 121
Ibidem. 122
Ibidem. 123
AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 32, Doc. 2895.
151
A trajetória de Vital Pereira acena, ainda, para a questão da alocação de ofícios
da governança local e de patentes militares, de acordo com a proeminência social dos
sujeitos, mediante uma gradação na hierarquia de importância para a Coroa desses
mesmos espaços. Pois, se na Capitania do Rio Grande Zacarias Pereira, contando com a
patente de capitão, conseguira ocupar os ofícios de escrivão concelhio do Natal e de
tabelião público, na Capitania do Ceará conseguiria tornar-se coronel de Infantaria e
juiz ordinário da Vila de São José do Ribamar, o que demonstra que os meandros desse
sistema de poder ainda estivessem abertos nas duas primeiras décadas do século XVIII,
ao possibilitar a inserção de um adventício originário de Capitania de Pernambuco de
forma tão rápida. Soma-se a isso, possivelmente, que os circuitos do poder local do Rio
Grande – a Câmara do Natal, especificamente –, já possuíssem, na altura da chegada de
Zacarias Vital Pereira, uma elite política já consolidada, mormente no contexto da
Restauração portuguesa.
Ainda da Capitania Duartina, proviria para o exercício do ofício de escrivão
concelhio do Rio Grande, Domingos Dias de Barros. Esse escrivão era originário de São
Lourenço da Mata,124
região leste da Capitania de Pernambuco, banhada pelas águas do
Rio Capibaribe. Dias de Barros ingressou na Câmara do Natal no ofício de almotacé,
em 1688,125
tornando-se escrivão concelhio dessa edilidade 21 anos depois, em 14 de
junho de 1709.126
Domingos de Barros permaneceu no desempenho desse ofício durante
cinco anos, ou seja, até 1713, havendo também se dedicado, cumulativamente, durante
dois anos, ao ofício de tabelião público, em 1709 e em 1713,127
possivelmente em
decorrência de ambos os ofícios serem propriedades anexas um do outro.
Oriundo da Praça do Recife era Francisco de Oliveira Banhos,128
cuja inserção
nas engrenagens administrativas da Capitania do Rio Grande deu-se no ofício de
escrivão das datas e demarcações, em 1660, por provisão que deles fez o Capitão-mor
Antônio Vaz Gondim (1654-1663/1673-1677).129
Um ano depois, em 1661, Oliveira
Banhos seria mais uma vez nomeado pelo sobredito capitão-mor para o mesmo ofício
124 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1773. 125
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 126
Ibidem., Doc. 0487. 127
Ibidem., Doc. 0487, Fl. 002. 128
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação op. cit., 1752-1761. 129
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659
– 1668). Fl. 8.
152
de escrivão das datas e demarcações do Rio Grande.130
Nesse mesmo ano de 1661,
contando já com a patente de ajudante, Francisco de Oliveira seria provido para a
escrivania da Câmara do Natal,131
que desempenharia diversas vezes ao longo da
segunda metade do século XVII, mas em períodos distintos, a título de provimento
precário, mormente com o exercício concomitante de outros ofícios da administração
burocrática em nível local, tais como os ofícios de escrivão dos órfãos, de inquiridor,
contador, distribuidor e escrivão da Almotaçaria, em 1663;132
escrivão dos órfãos,
escrivão da Câmara e tabelião público, em 1664;133
escrivão da Câmara e tabelião
público, entre 1667 e 1668.134
O Ajudante Francisco de Oliveira Banhos estabelecer-se-
ia, em caráter definitivo, na Capitania do Rio Grande após contrair matrimônio e
estabelecer uma numerosa descendência que se entrelaçou com ramos importantes de
diferentes estirpes locais.
Da Cidade de Olinda era Manuel de Melo e Albuquerque – o Velho –, filho de
André de Albuquerque e Maria do Espírito Santo Arcoverde,135
Manuel de Melo serviu
durante dois anos como Alferes da Companhia de Ordenança de Domingos Francisco
Mendonça e foi Tenente de uma tropa de cavalos de Lázaro Frazão Caldeira, ambos na
Capitania de Pernambuco,136
antes de rumar para a Capitania do Rio Grande. A primeira
referência que consta sobre Manuel de Melo e Albuquerque trata-se da menção desse
agente no ofício de escrivão da Câmara do Natal, em 1690.137
Em seguida, doze anos
depois, em 22 de novembro de 1702, ganhava a patente de Capitão da Ordenança da
Ribeira do Assú.138
Mais tarde, assumiria, ainda, diversos outros ofícios da cúpula
camarária do Natal, o que o levaria a figurar sempre no grupo da gente da governança
local. Ressalta-se que, no final da primeira metade do século XVIII, mais precisamente
em 1746, dois filhos de Manuel de Melo e Albuquerque – Caetano e outro, homônimo
130 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659
– 1668). Fl. 10v. 131
Ibidem., Fl. 12. 132
Ibidem., Fl. 38. 133
Ibidem., Fl. 59. 134
Ibidem., Fl. 38v. 135
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 284. 136
Fundo documental do IHGRN, op. cit., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 11. 137
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). p. 62. 138
Fundo documental do IHGRN. loc. cit.
153
do pai – também vieram a desempenhar o ofício de escrivão concelhio daquela
edilidade, como se verá posteriormente.139
À aproximadamente 27 km da Cidade de Olinda – e a 18 km da Vila do Recife
–, nascia na Freguesia de Santo Amaro do Jaboatão – difusamente conhecida por haver
sido palco da Batalha dos Guararapes, na qual, na primeira metade do século XVII,
luso-brasileiros lutaram contra os flamengos pela hegemonia territorial da Coroa
portuguesa –, Teodósio Freire de Amorim, filho de Gonçalo Freire de Carvalho e de
Catarina de Amorim, sendo seu pai português, natural da Vila de Amarante,
Arcebispado de Braga, e sua mãe natural da referida freguesia.140
Teodósio de Amorim
assumiria a escrivania da Câmara do Natal em 1743,141
com a patente de Alferes, e
seria, nesse mesmo ano, eleito almotacé para os meses de maio e junho.142
Originário da vizinha Capitania da Paraíba era o Alferes Zacarias de Oliveira
Ribeiro,143
que foi nomeado tabelião público do judicial e notas da Capitania do Rio
Grande, pelo Capitão-mor Manuel Muniz (1682-1685), em 11 de janeiro de 1680.144
O
Comissário Zacarias de Oliveira Ribeiro desempenharia o ofício de escrivão da Câmara
do Natal entre 1683 e 1687.145
Contudo, sabe-se que já em 1696, Oliveira Ribeiro ter-
se-ia transferido novamente para a Capitania da Paraíba, onde havia aparecido como
morador em um requerimento efetuado ao rei D. Pedro II, no qual solicitava, em 7 de
setembro de 1696, juntamente com Luiz Queixada de Luna, Antônio de Almeida de
Castro e Pedro da Silva Lima, poder recorrer das culpas de que era acusado em uma
residência – tipo de investigação sobre conduta de um juiz ou ouvidor –, tirada sobre o
Ouvidor Geral da Paraíba, Diogo Rangel de Castelo Branco.146
Também da Capitania da Paraíba era o Alferes Manuel Trigueiros Soares, que
havia sido provido, em 28 de julho 1693, para o ofício de tabelião público pelo Capitão-
139 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). p. 271. 140
Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de habilitação de João Gomes Freire para
comissário do Santo Ofício. 141
LOPES, loc. cit., p. 261. 142
Ibidem., Doc. 1365. 143
Carta de Sesmaria doada a Zacarias de Oliveira Ribeiro e outros, em 03 de outubro de 1680.
Plataforma SILB – RN 0033. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:
07/07/2017. 144
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl. 83. 145
LOPES, loc. cit. 146
AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 200.
154
mor da Capitania do Rio Grande, Sebastião Pimentel (1692-1693).147
Trigueiros Soares
teria, ainda, assinado um termo de fiança naquele mesmo dia, após o reconhecimento
pelos camarários do seu fiador e principal pagador, Pedro da Costa Faleiro, assegurando
que mandaria vir da Capitania da Paraíba sua esposa e seus familiares.148
Manuel Soares
seria escrivão da Câmara do Natal entre 1694 e 1696,149
falecendo repentinamente nesse
último ano, seria sucedido no ofício por Carlos da Rocha, por portaria do Capitão-mor
Antônio de Carvalho e Almeida (1701-1705), que ordenava ao dito Carlos da Rocha
que fosse exercer aquele ofício que estava vago, visto a imprescindível necessidade do
mesmo para se assistir as diligências do Concelho do Natal.150
Advindo da extinta Capitania de Itamaracá, mais precisamente da Freguesia de
São Cosme e Damião de Igarassu, era Estevão Velho de Melo, filho de Amaro
Gonçalves Maciel e de sua esposa, Catarina de Sena.151
Estevão Velho de Melo serviu
em três diferentes períodos na serventia do ofício de escrivão do Senado do Natal, entre
1713-1717, em 1719 e entre 1725-1726.152
A entrada de Estevão Velho naquele ofício
deu-se por “deixação” de Domingos Dias de Barros – escrivão da Câmara do Natal
entre 1709-1713 –, levando o Capitão-mor do Rio Grande, Domingos Amado (1715-
1718), por solicitação efetuada pelo próprio Estevão Velho de Melo, a provê-lo na
serventia da escrivania concelhia do Natal, em 14 de junho de 1716, pois estaria no
exercício daquele ofício havia algum tempo, a rogo dos oficiais camarários.153
Quatro
dias depois, em 18 de junho de 1716, Estevão Velho era agraciado, pelo mesmo capitão-
mor que o proveu anteriormente no ofício de escrivão do Concelho do Natal, com a
patente de Capitão de Cavalos do Distrito da Cidade do Natal e das Ribeiras do Ceará-
mirim e do Potengi, figurando em sua justificativa toda a série de serviços que até então
havia prestado a Sua Majestade durante o período de “[...] dois anos, sete meses e vinte
e cinco dias, em praça de Cabo de Esquadra de Infantaria no Terço Paulista da conquista
dessa campanha, ocupando o posto de Alferes de uma Companhia dos de a cavalos
147 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). Doc. 0390. 148
Ibidem. 149
Ibidem. 150
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 27. 151
TRINDADE, João Felipe. O Escrivão da Fazenda Real, Estevão Velho de Mello. Natal, 26 jun.
2012. Disponível em: <https://putegi.blogspot.com.br/search?q=Estev%C3%A3o+Velho+de+Melo>
Acesso em: 13/09/2017. 152
LOPES, loc. cit. 153
Fundo documental do IHGRN. op. cit., livro 06 (1713-1720). Fl.44v.
155
[...]”, a que se acrescentava na mesma carta patente, “[...] achando-se em algumas
ocasiões de guerra contra o gentio bárbaro, [...] e ter servido o cargo de Almotacé e de
presente estar servindo [...] na ocupação de escrivão da Fazenda Real”.154
Curioso seria
o fato de Estevão Velho de Melo não haver pontuado o exercício do ofício de escrivão
da câmara, onde estaria, naquela altura, com três anos de efetivo exercício.
Visto tudo isto, compreende-se que vários foram os motivos que haviam levado
a transferência dos indivíduos que ocuparam a escrivania da Câmara do Natal a saírem
de suas paragens de origem para a Capitania do Rio Grande. Verificou-se, ainda, que
vários deles já possuíssem alguma patente militar nas companhias de ordenanças locais,
antes mesmo do ingresso no ofício de escrivão concelhio, algo que ficará mais evidente
no tópico que tratará dessa questão, bem como no que se refere à barganha de terras,
com a consequente criação de gado, no contexto da interiorização das conquistas
portuguesas, processada pelo incremento da atividade pecuária pelos sertões da
Capitania do Rio Grande.
2.1.3 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos da Capitania do Rio Grande
Como asseverou Nuno Gonçalo Monteiro, em Os Concelhos e as
Comunidades, os poderes municipais tenderam a ser, pelo próprio sistema de escolha de
seus componentes, oligarquizados,155
passando de geração em geração. Exemplo disso,
na Capitania do Rio Grande, foi à ocupação de alguns dos ofícios da Câmara do Natal e,
em particular, do ofício de escrivão camarário, por alguns indivíduos de uma mesma
família. Acresce-se a isso, o fato de que a hegemonia do poder por algumas estirpes foi
materializada e institucionalizada, na Capitania do Rio Grande, por meio de um acórdão
realizado pelos oficiais da Câmara do Natal, em 16 de maio de 1677, que vetava o
acesso de forasteiros aos cargos e ofícios daquela municipalidade.156
Verificava-se, com
isso, o estabelecimento de um mecanismo político, em nível local, que concederia uma
espécie de proteção e de segurança às famílias que já andavam na governança municipal
154 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 45v. 155
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel
(coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 288. 156
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0084.
156
da Cidade do Natal. Essa situação corrobora com a afirmação de Nuno Gonçalo
Monteiro, segundo o qual a tendência para a oligarquização do poder camarário se
configuraria enquanto uma possibilidade legal que os locais tinham para subsistir às
autoridades centrais.157
Curiosamente, dentre os onze indivíduos que assinaram aquele
requerimento, constava o nome do Capitão Francisco de Oliveira Banhos – retratado no
tópico anterior como oriundo da Capitania de Pernambuco –, que foi escrivão da
Câmara do Natal em diferentes períodos da segunda metade do século XVII.
Evidencia-se, no entanto, que esse termo restritivo havia aberto margem para o
ingresso de forasteiros que fossem letrados.158
Talvez, essa estreita brecha que ficava
aberta no referido termo se remetesse a uma estratégia, desenvolvida pela elite política
local, para filtrar não apenas o acesso aos postos camarários, mas também com o
objetivo implícito de atrair indivíduos de maior qualidade social para aquele sistema de
poder e, talvez, de modo secundário, refinando as possibilidades de melhoramento
social das próprias famílias locais, mediante a instauração de laços matrimoniais entre
os adventícios letrados e as filhas dos poderosos locais.
A força que esse termo adquiriu foi tamanha que, ao se apresentar mesmo
portando uma provisão do Governador Geral do Estado do Brasil, Afonso Furtado de
Castro do Rio de Mendonça, para os ofícios de Ouvidor e de Provedor da Capitania do
Rio Grande, na pessoa de Lázaro de Freitas de Bulhões,159
datada de novembro de 1676
– ou seja, um ano antes da aprovação do termo que restringia o acesso de pessoas de
fora da capitania aos ofícios locais, fora objetada pelos oficiais da Câmara do Natal, em
157 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel
(coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 289. 158
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0084. 159
Diferentemente do que se aponta na historiografia, constatou-se que a Capitania do Rio Grande
possuiu Ouvidoria própria entre 1659 e 1684, datas relativas, respectivamente, a primeira e a última
provisão do ofício de ouvidor, em meio a esparsa documentação, encontrou-se também provisões para os
ofícios de escrivão e de meirinho da Ouvidoria do Rio Grande, a qual fora provida em agentes radicados
na mesma Capitania como, por exemplo, Pedro da Costa Faleiros. Com a extinção desse órgão e a criação
da Ouvidoria Geral da Paraíba em 1688, a Capitania do Rio Grande, bem como a de Itamaracá e a do
Ceará passaríam à jurisdição judiciária do Ouvidor Geral da Paraíba. Fundo documental do IHGRN.
Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 35v; MENEZES,
Mozart Vergetti. Colonialismo em Ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na capitania da Paraíba
(1647-1755). Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 51;
PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo à sombra das Leis: Antonio Soares Brederode entre a justiça e a
criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. p. 92, nota 68; CAETANO, Antônio Filipe Pereira. Conflitos
judiciais, espaços de jurisdição e estruturação administrativa da justiça na Capitania do Rio Grande
(Comarca da Paraíba/ Rio Grande do Norte, 1789-1821). In: Revista Espacialidades [online]. vol. 9, jan-
jun, n. 1. 2016. p. 88.
157
observância do termo anteriormente descrito.160
Pondera-se que em razão do tempo
administrativo, como explicitou Heloísa Belloto, no qual a conformação territorial do
Império, entrecortado por dilatadas distâncias físicas e temporais, foram vetores de erros
e de distorções tanto na esfera administrativa, quanto militar.161
Nesse sentido, pode-se
explicar que, mesmo que o termo restritivo dos oficiais concelhios do Natal tenha sido
sancionado um ano depois das provisões de Lázaro de Freitas de Bulhões, para os
ofícios de ouvidor e de provedor da Capitania do Rio Grande, possivelmente, esse
indivíduo tenha chegado à Cidade do Natal, onde havia efetuado os provimentos nos
ditos ofícios, quando aquele termo já estivesse em vigor, ou seja, depois de 16 de maio
de 1677.
Em face disso, ressaltava os oficiais camarários – cuja data está ilegível –, em
carta ao Governo Geral, sobre o porquê de não haverem dado posse à Lázaro de Freitas
de Bulhões, posto que seria “[...] em prejuízo do povo desta capitania [...]”.162
E,
continua a carta, por existir “[...] um termo que assinado por muitos do povo da
Capitania que impedia aceitar-se homem nessa cidade que não fosse morador nela e de
qualidade, exceto homem vindo do reino [...]”.163
Para manter a resistência a diretiva do
Governo Geral sobre a nomeação de Lázaro de Freitas, os camarários escreveram uma
carta, em 4 de dezembro de 1678, ao Governador João Fernandes Vieira, a fim de que
este “apadrinhasse a causa” no partido deles.164
Não obstante, a carta enviada ao Governo Geral redundou em severa represália
por parte do Governador Geral, Roque da Costa Barreto, que, em carta escrita da Bahia,
em 5 de agosto de 1679, afirmou que a resposta da carta remetida a ele deveria ser “[...]
mandar todos presos a esta cidade para serem castigados como mereciam [...] pois V.
M.ces
são súditos e não tem jurisdição para fazer a suas vontades contra as disposições
do Governo Geral [...] e que tratem de obedecer o que lhes ordenar [...]”.165
Depreende-
se dessa disputa, que mesmo que os representantes do poder local tentassem resistir as
160 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). 161
BELLOTO, Heloísa L. O Estado português no Brasil: Sistema administrativo e fiscal. In: SILVA,
Maria Beatriz N. da (coord.). O Império luso-brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editora Estampa, 1986. p.
265; BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 353. 162
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl. 35v. 163
Ibidem. 164
Ibidem. 165
Ibidem., Fl. 48v.
158
investidas do centro – estabelecendo estratégias próprias –, esse também possuía
mecanismos de controle e de punição efetivos que tinha em vista alinhavar as forças
centrífugas locais às diretrizes do poder central. O fechamento dessa disputa ocorreu
com uma carta em que os novos oficiais, empossados em 1680, se retrataram com o
Governador Geral e na qual informavam também que haviam investido, por fim, Lázaro
de Freitas de Bulhões no ofício de Provedor,166
como se pode averiguar em uma carta,
datada de 22 de outubro de 1679, na qual aqueles oficiais tentavam se eximir das culpas
pelas quais haviam vetado o acesso de Lázaro de Bulhões, recolocando-as nos oficiais
camarários que haviam servido em 1678. Mais uma vez, observa-se a influência do
chamado tempo administrativo que, conforme Heloísa Belloto, paralisaria, retardaria e
dificultaria a ação administrativa, em um período no qual a travessia Atlântica levaria
alguns meses.167
Visto tudo isto, observa-se, ainda, que mesmo diante das represálias do
Governador-Geral, Roque da Costa Barreto, ao referir-se que os camarários locais não
possuíam poder ou jurisdição para impetrar dispositivos avessos as determinações
daquele comando, verifica-se, para o caso do ofício de escrivão concelhio, que diversos
agentes ligados às oligarquias locais – quer por vínculos consanguíneos ou clientelares
–, foram preponderantes, como se observa no Gráfico 03, onde consta que 40,00% (6)
dos escrivães camarários do Natal, com suas origens identificadas, eram naturais da
Capitania do Rio Grande.
Natural e morador na Cidade do Rio Grande do Norte foi Alexandre de Melo e
Pinto, filho de José de Melo da Costa e de Dona Maria do Espírito Santo.168
Melo e
Pinto havia exercido a serventia, em título precário ou temporário, do ofício de escrivão
camarário do Natal em 1746, ano em que também exerceram o mesmo ofício outros três
escrivães: os Capitães Manuel de Melo e Albuquerque, Manuel Álvares Bastos e
Manuel Antônio Pimentel de Melo.169
Esses dois últimos também eram naturais da
166 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl. 48v. 167
BELLOTO, Heloísa L. O Estado português no Brasil: Sistema administrativo e fiscal. In: SILVA,
Maria Beatriz N. da (coord.). O Império luso-brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editora Estampa, 1986. p.
265. 168
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1740-1752. DSC02845 169
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 271.
159
Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande,170
sendo Manuel Álvares
Bastos filho do Licenciado Francisco Álvares Bastos,171
o Capitão Manuel Antônio
Pimentel de Melo, filho do Tenente Coronel Estevão Velho de Melo e de Joana Ferreira
de Melo,172
e o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque filho de outro Manuel de Melo
e Albuquerque e de Dona Eugênia Rodrigues de Sá.173
Sendo, portanto, esses dois
últimos agentes filhos de ex-escrivães camarários.
O Licenciado Manuel Álvares Bastos ter-se-ia dedicado, através de concessão
precária, na serventia do ofício de escrivão concelhio do Natal em dois períodos
distintos, a primeira vez em 1732174
e a segunda por um espaço de tempo mais longo,
que foi de 1738 a 1746.175
Nesse derradeiro ano de 1746, Manuel Álvares Bastos teria
alcançado uma provisão de um ano para permanecer naquela serventia de ofício, por
nomeação do Capitão-mor do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques
(1739-1751).176
Contudo, essa provisão seria recusada por parte dos oficiais camarários
do Natal, que em termo de declaração, datado de 15 de junho de 1746, afirmavam que o
referido escrivão havia se antecipado em requerer novamente a dita serventia, posto que
os oficiais camarários não mais o admitissem no exercício do referido ofício, por já ser
notória sua incapacidade.177
Em justificação ao Capitão-mor Francisco Xavier de
Miranda Henriques, os oficiais camarários expunham que Manuel Álvares Bastos havia
mentido ser licenciado, como era público ser seu pai – Francisco Álvares Bastos – e, por
fim, aqueles oficiais pediam que o Capitão-mor nomeasse outro “sujeito” que fosse
capaz.178
Na sequência, têm-se a nomeação de Manuel Antônio Pimentel de Melo para a
serventia de escrivão camarário da Cidade do Natal, também efetuada de maneira
precária ou temporária, efetuada pelo Capitão-mor Francisco Xavier de Miranda
170 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1740-1752. DSC02849 171
Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09
(1743 – 1754). Fl. 1v. 172
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. CX02. DOC. 0069 (f. 15v). 173
Ibidem., CX01. DOC. 0057 (f. 35v). 174
Fundo documental do IHGRN. Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17
(1728 – 1736). Fl. 72v. 175
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 176
Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09
(1743 – 1754). Fl. 49. 177
Ibidem., Fl. 50. 178
Ibidem.
160
Henriques (1739-1751), em observância a ser Manuel Antônio “homem de suficiência e
capacidade” para o exercício do sobredito ofício, em substituição a Manuel Álvares
Bastos.179
Manuel Antônio Pimentel de Melo permaneceria nessa serventia durante dois
longos períodos, que foi de 1746 até 1753 e de 1760 à 1767.180
Francisco de Souza e Oliveira, também natural e morador da Freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande,181
era filho de Feliz de Souza e de
Antônia Leite de Oliveira. Antes de se fixar na sobredita freguesia, Souza e Oliveira foi
morador na Ribeira do Jaguaribe, como consta de seu casamento com Tecla Pinheiro
Teixeira.182
Francisco de Souza e Oliveira foi serventuário do ofício de escrivão da
Câmara do Natal em 1747, onde consta como sendo sua ocupação o ofício de escrivão
público do judicial.183
Natural da Cidade do Rio Grande era Caetano de Melo e Albuquerque, filho do
então Provedor da Fazenda Real, o Tenente Manuel de Melo e Albuquerque – que
serviu o ofício de escrivão da Câmara do Natal, em 1690 –, e de sua esposa, Dona
Eugênia Rodrigues de Sá.184
O Sargento-mor Caetano de Melo e Albuquerque, serviria
o ofício escrivão da Câmara do Natal, a título de serventia, em 1737,
concomitantemente com o exercício da escrivania dos órfãos daquela edilidade.185
O
irmão de Caetano Albuquerque, o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque – homônimo
de seu pai –, também havia desempenhado a escrivania concelhia do Natal, por duas
ocasiões, nos anos de 1746 e 1747.186
Como se observa no parágrafo anterior, a escrivania do Concelho do Natal fora
ocupada, em momentos distintos, por indivíduos que estavam vinculados por laços de
consanguinidade, uns mais próximos, como apontado acima – um pai e dois filhos –, e,
noutros casos, por agentes que tinham ligações familiares mais distantes. Isso
demonstraria que o processo de “oligarquização” das câmaras municipais espraiadas
179 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09
(1743 – 1754). Fl. 51. 180
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 181
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1785. DSC. 02677. 182
Ibidem., Livro de Casamentos, 1727-1740. DSC. 0118. 183
LOPES, loc. cit., p. 276. 184
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. CX01. DOC. 0057 (f. 17). 185
LOPES, op.cit., p. 226. 186
Ibidem., p. 272, 277.
161
pelo ultramar, observado por Nuno Gonçalo Monteiro, para o caso dos ofícios elegíveis
– juiz ordinário, vereador e procurador –,187
havia alcançado, para o caso da Câmara do
Natal, o ofício de escrivão dessa instituição.
Salienta-se, ainda, que a patrimonialização, ou seja, a incorporação do ofício de
escrivão aos bens de uma determinada família ocorreria com o domínio do ofício, como
em outras partes do Império, garantida pela “carta de propriedade”. Esse documento era
um instrumento de caráter jurídico, no qual o rei concedia manuscritamente, a um
vassalo a posse nominal do exercício de um ofício, sem indicação prévia de prazo,
podendo, inclusive, ser transmitido hereditariamente, desde que, para isso, os sucessores
assim recorressem à El Rey. Nesse sentido, observou-se, para o caso da Câmara do
Natal, que o ofício de escrivão dessa instituição havia sido patrimonializado por dois
indivíduos de ascendências diversas, em momentos distintos da primeira metade do
século XVIII, através da obtenção de carta de propriedade. Contudo, a escrivania
concelhia do Natal havia sido “oligarquizada”, isto é, dominada por agentes que
integravam uma mesma parentela, através da serventia por provimento precário ou
mesmo temporário desse ofício e não da propriedade. A serventia consistia no repasse
do proprietário a terceiros, do direito de servir no ofício, por período de tempo
previamente estabelecido, a partir da cobrança da terça parte dos rendimentos que
deviam ser pagos a cada ano.188
Como se verá no próximo capítulo, constatou-se que o
ofício de escrivão concelhio do Natal, na primeira metade do século XVIII, tendeu a ser
dominado por uma família que já andava na governança local, presumindo, como
indicou Nuno Gonçalo Monteiro, na equiparação dos componentes da administração da
Coroa com os efetivos dos concelhos municipais.189
Ressalta-se que a quantidade expressiva de agentes advindos de outras
paragens – das Capitanias de Itamaracá, Paraíba e Pernambuco, bem como do reino –
para a ocupação do ofício de escrivão da Câmara do Natal, relacione-se ao processo de
expansão das áreas de conquistas, bem como da frente de colonização que se
empreendia nas áreas recém-integradas, o que se leva a compreender que esse processo
187 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel
(coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 289. 188
STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia portuguesa do século XVIII. In:
STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:
Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-mar, 2012.
p. 286, nota 31. 189
MONTEIRO, op. cit., p. 289-290.
162
passava também pelo desempenho da escrivania concelhia que, assim como as demais
esferas da administração, foram utilizadas para cooptar agentes sociais interessados em
se instalarem em uma nova praça colonial, garantindo a posse dessas para a Coroa lusa.
Em face disso, explica-se a diminuta quantidade de indivíduos originários da Capitania
do Rio Grande, cujas referências a esses agentes somente começaram a aparecer a partir
da terceira e quarta década do setecentos. Alguns deles identificados como filhos de
indivíduos provenientes de Pernambuco ou de Itamaracá, havendo, inclusive, exercido a
escrivania camarária, assim como seus progenitores. Nessa fase, têm-se os filhos
advindos do enraizamento das famílias que haviam chegado entre o final do século
XVII e o início do século XVIII, que a partir da barganha de sesmarias, patentes, da
posse de escravos e gados, se tornaram a elite política e econômica da Capitania do Rio
Grande.
No próximo capítulo, enfatizar-se-á mais detidamente a família enquanto
instituição elementar no processo de estruturação social do Antigo Regime, destacando
o sobrepeso dessa organização no acesso ao ofício de escrivão camarário do Natal, entre
o final do século XVII e a primeira metade do século XVIII – mesmo que, em algumas
situações, essa possibilidade tenha se arrastado até as duas primeiras décadas do século
XIX. Para isso, se analisará a história de uma família específica – os Rodrigues de Sá –,
que durante largo período de tempo teve diversos de seus membros, parentes ou
aderentes, ocupando, a título precário, a escrivania da Câmara do Natal. A seguir passa-
se a análise do perfil social e econômico dos escrivães da Câmara do Natal.
2.2 O perfil social dos escrivães da Câmara do Natal
Em seu estudo A formação da Elite na Capitania do Rio Grande no pós-
Restauração (1659-1691), Carmen Alveal havia reiterado que os ofícios honoráveis da
Câmara do Natal – juiz ordinário, vereador e procurador – haviam sido ocupados por
agentes sociais que haviam participado da Restauração do domínio português na
Capitania do Rio Grande. Acrescenta-se a isso, o envolvimento que estes homens
tiveram na chamada Guerra dos Bárbaros, quando da interiorização da pecuária
naquela capitania. A partir desses dois eventos, começava-se a cimentar o processo de
formação da elite da Capitania do Rio Grande, posto que muitos granjeassem mercês
163
como patentes das companhias de ordenanças locais e sesmarias pelos sertões dessa
capitania, no requerimento das quais se tinham, em meio a outras justificativas, a luta
contra os neerlandeses e o combate ao gentio bárbaro.190
Assim, ao estabelecer o perfil social dos integrantes dessa elite camarária, que
era proprietária de terras e detentora de patentes das companhias de ordenanças, o que
fazia com que esses homens configurassem como um “grupo seleto” no universo social
local, ao formar a elite política e econômica da Capitania do Rio Grande, Carmen
Alveal conseguiu rastrear 134 indivíduos que haviam ocupado os ofícios honoráveis da
Câmara do Natal. Para o caso dos escrivães dessa municipalidade, percebeu-se que dos
42 indivíduos que haviam ocupado esse ofício, ao longo dos 146 anos analisados, 27
daqueles eram possuidores de sesmarias, como se pode verificar da análise do Gráfico
04.
Gráfico 04 - Proporção entre escrivães sesmeiros e escrivães não-sesmeiros na
Capitania do Rio Grande (1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira, em 26/06/2016.
191
190 ALVEAL, Carmen. A Formação da Elite na Capitania do Rio Grande no pós-Restauração (1659-
1691). In: Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime.
Lisboa, 18-21, maio, 2011. 191
Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do
Natal (1659-1759), dos Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do Rio Grande do Norte e das
cartas de sesmarias constantes na Plataforma SILB – Sesmarias do Império Luso-brasileiro. Disponível
em: http://www.silb.cchla.ufrn.br.
164
O Gráfico 04 habilita-nos a verificar a quantidade total de escrivães que
possuíam datas de sesmarias e aqueles que não as detiverem. No entanto, ressalta-se que
essas propriedades de terras foram doadas tanto na Capitania do Rio Grande, quanto nas
circunvizinhas Capitanias da Paraíba e do Ceará. Entretanto, aponta-se que a maioria
desses escrivães possuíssem terras na Capitania do Rio Grande, dos quais se constatou
que 23 escrivães possuíam títulos de sesmarias nessa capitania, 2 escrivães camarários
assenhoraram-se, exclusivamente, de terras na Capitania do Ceará, e 1 acumulou
propriedades em ambas as Capitanias. Apenas 1 escrivão era proprietário de único título
de sesmaria na Capitania da Paraíba. Ressalta-se que um mesmo escrivão possuiu mais
de uma gleba de terras. Isso aumenta sensivelmente a quantidade total de sesmarias em
relação ao número total de escrivães. Reitera-se, ainda, que o acesso às datas de
sesmarias pelos agentes que exerceram a serventia do ofício de escrivão concelhio da
Câmara do Natal ocorre em três momentos distintos: antes, durante e após o provimento
no ofício de escrivão camarário.
Para exemplificar um escrivão que era detentor de terras apenas na Capitania
do Rio Grande, tem-se o Alferes Manuel Rodrigues Taborda, natural da Vila de
Buarcos, na Freguesia de São Pedro, Arcebispado de Coimbra.192
Taborda foi escrivão
da Câmara do Natal entre 1704-1706,193
recebeu quatro concessões de sesmarias pela
Capitania do Rio Grande, a primeira delas em 17 de abril de 1714,194
seguidas por
outras três concessões. A segunda carta tratar-se-ia de uma sesmaria urbana, situada na
Cidade do Natal e contígua a outras terras do mesmo Alferes Manuel Rodrigues
Taborda. Essa sesmaria urbana havia sido concedida em 06 de outubro de 1719, após
fazer referência de que pretendia fazer casas e que já estaria a ocupar a terra
requerida.195
Na terceira carta, concedida em 16 de outubro de 1716, no Riacho da Cruz,
na Ribeira do Apodi, Manuel Taborda alegava possuir gado e outras criações.196
Na
192 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, ano de 1697. 193
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl(s). 32, 105V. 194
Carta de sesmaria doada a Manuel Rodrigues Taborda em 17 de abril de 1714. Plataforma SILB –
RN 0372. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 195
Ibidem., em 05 de outubro de 1716. Plataforma SILB – RN 0982. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 196
Ibidem., em 16 de outubro de 1716. Plataforma SILB – RN 0347. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017.
165
última dessas cartas peticionadas, quatro dias após a anterior, em 20 de outubro de
1716, suplicava a mercês de outra gleba de terras também situada na Ribeira do Apodi,
alegando, para isso, que era morador na Capitania do Rio Grande, pretendendo criar
nela gados, visto que já possuísse rebanhos vacuns e cavalares.197
Como exemplo de escrivão camarário que havia adquirido título de sesmaria na
Capitania do Ceará, ter-se-ia a figura de Zacarias Vital Pereira, que havia exercido a
serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal entre 1706 e 1707, juntamente com
o tabelionado do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande.198
Um ano
depois, em 22 de janeiro de 1708, o Capitão Zacarias Vital Pereira estava a peticionar a
propriedade de uma sesmaria encravada na Ribeira do Banabuiú, visto que não possuía
terras para a criação de gados vacuns e cavalares que detinha.199
Possivelmente, a posse
de terras e de rebanhos de gados transformara o Capitão Zacarias Vital Pereira em uma
pessoa de importante prestígio social na Capitania do Cerará, na segunda década do
século XVIII, dado que em 1720 estivesse a solicitar à D. João V a confirmação da
patente de Coronel de Infantaria dessa Capitania,200
havendo anteriormente exercido o
honorável ofício de juiz ordinário da Vila de São José do Ribamar.201
Reitera-se que na
esteira desse processo de nobilitação estivesse o exercício do ofício de escrivão
concelhio do Natal, do qual, possivelmente decorresse certa dose de prestígio social.
O caso da Zacarias Vital Pereira, assim como de vários outros escrivães
concelhios, arrolados ao longo desse texto, advindos tanto do ultramar quanto do reino,
sinalizava, ainda, para o fato de que a sociedade móvel, em fase de elaboração, durante
o processo de conquista/colonização, passaria também pelas provisões do ofício de
escrivão camarário, visto que as nomeações para essa escrivania eram utilizadas como
mecanismos para atraírem elementos humanos de diferentes partes do Império.
Nesse meio termo, assevera-se a possibilidade de acumular propriedades de
sesmarias por um mesmo sesmeiro em diferentes capitanias. Esse havia sido o caso do
escrivão concelhio do Natal, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa, que serviu nesse
197 Carta de sesmaria doada a Manuel Rodrigues Taborda em 20 de outubro de 1716. Plataforma SILB –
RN 0349. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 198
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 86. 199
Carta de sesmaria doada a Zacarias Vital Pereira em 22 de janeiro de 1708. Plataforma SILB – CE
0301. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 200
AHU-CE, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 69. 201
Ibidem., Doc. 64.
166
ofício durante quase uma década, desde 1679 até 1688.202
Pontua-se que Antônio Lopes
já seria sesmeiro antes de ingressar no ofício de escrivão camarário, visto que a primeira
concessão de sesmaria que obteve datasse do ano de 1674 e a segunda de 1676.203
Em
ambas as cartas, Lopes de Lisboa justificava ser o descobridor e primeiro povoador das
ditas terras, que antes se encontravam em poder do gentio bárbaro.204
Além disso,
afirmava, na primeira carta, não possuir terras, mas que pretendia criar gados.205
Com as
mesmas justificativas, acrescidas de que pretendia ajudar no povoamento da Capitania
do Ceará, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa requereu data de sesmaria no Rio Choró,
na Ribeira do Ceará, e que a dita terra não teria sido povoada até o momento por
homens brancos, suplicando que o Capitão-mor do Ceará, Sebastião de Sá, lhe fizesse
esta mercê, pois teria tido gastos consideráveis de sua fazenda na luta que empreendeu
aos gentios bárbaros que ali habitavam, reduzindo-os a fé cristã.206
Contudo, observa-se que no momento em que requereu essa última carta de
sesmaria, Lopes de Lisboa ainda se encontrasse no exercício do ofício de escrivão da
Câmara do Natal,207
o que abre margem para se discutir o grande envolvimento dos
oficiais da Câmara do Natal, sem exceção dos ofícios que desempenhassem nessa
edilidade, durante os embates que afligiram no pós-Restauração, no contexto local da
Guerra dos Bárbaros, contribuindo para a expansão das áreas de colonização da
Capitania do Rio Grande, ao incorporar novos espaços, ora aos domínios reais dessa
capitania,208
ora ao do Ceará. E o exercício da escrivania concelhia do Natal, mais uma
vez, concederia condições de fixação a esses novos colonos.
202 Fundo documental do IHGRN. op. cit., Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 44v; Ibidem., Livro 2 (1673 –
1690). Fl. 106v; LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da
Câmara do Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p.
24, 28, 32, 35, 39, 43, 45, 48, 51, 55. 203
Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de Lisboa em 03 de novembro de 1674. Plataforma SILB –
RN 0023. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017; Ibidem., em 19 de
março de 1676. Plataforma SILB – RN 0030. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca.
Acesso em: 26/09/2017. 204
Ibidem., em 03 de novembro de 1674. Plataforma SILB – RN 0023. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017; Ibidem., em 19 de março de 1676.
Plataforma SILB – RN 0030. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:
26/09/2017. 205
Ibidem. 206
Ibidem., em 13 de outubro de 1680. Plataforma SILB – CE 0013. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 207
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 28. 208
Recentemente, foi defendida uma dissertação no Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que discutia essa temática da influência e envolvimento
167
Também sesmeiro foi o escrivão da Câmara do Natal Zacarias de Oliveira
Ribeiro, que se dedicou a esse ofício durante dois períodos, juntamente com o
tabelionato do judicial e notas da Capitania do Rio Grande.209
No primeiro deles, entre
1682 até 1685,210
constava em sua provisão que, inicialmente, Oliveira Ribeiro teria
então assumido a escrivania da Câmara do Natal e o tabelionato do público, judicial e
notas da Capitania do Rio Grande, devido à ausência de seu anterior ocupante, o Alferes
Antônio de Barros Alfenas, que se encontrava em viagem à Bahia e que,
posteriormente, iria ao Rio de Janeiro.211
Quando Zacarias Ribeiro assumiu a escrivania
da Câmara do Natal em 1682,212
seria proprietário de uma data de sesmarias nas
proximidades do Rio Butis, na Capitania da Paraíba, onde, segundo a carta, era então
morador, cuja concessão ocorreu em 03 de outubro de 1680,213
ou seja, apenas dois anos
antes de assumir a escrivania concelhia do Rio Grande. A justificativa apresentada por
Zacarias Ribeiro seria a necessidade de terras para apascentar gados.214
Mesmo que o
Comissário Geral de Cavalaria, Zacarias de Oliveira Ribeiro, não tivesse ascendido aos
postos honoráveis da Câmara do Natal, serviria em outras escrivanias pela Capitania do
Rio Grande, como o ofício de escrivão de órfãos215
e a escrivania da Real Fazenda do
Rio Grande.216
Visto tudo isto, pode-se inferir que o ofício de escrivão da Câmara do Natal
havia sido ocupado em momentos distintos, por uma quantidade significativa de
homens detentores da posse de glebas de terras. Mesmo que para a nomeação nesse
ofício ser possuidor de datas de sesmarias não fosse imperativo, essa constatação
subsidia outras conjecturas que estejam associadas à posse de cabedais significativos
dos oficiais da Câmara do Natal nos embates que se travavam no interior da Capitania do Rio Grande
contra o gentio bárbaro. Para saber mais, ver ALENCAR, Júlio César Vieira. “Para que enfim se
colonizem estes sertões”: a Câmara de Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722). Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017. 209
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl. 69; Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690).
Fl. 75, 79v, 86, 104. 210
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 20, 28. 211
Fundo documental do IHGRN. op. cit., Fl.69. 212
Ibidem. 213
Carta de sesmaria doada a Zacarias de Oliveira Ribeiro em 03 de outubro de 1680. Plataforma SILB
– PB 1165. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 214
Ibidem., em 03 de outubro de 1680. Plataforma SILB – PB 1165. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 215
Fundo documental do IHGRN, op. cit., Fl. 83v. 216
Ibidem., Fl. 86v.
168
para a ocupação da serventia de ofícios, dado que esse regime de provimento consistiria
no fato de que quem o pleiteasse, pudesse oferecer por ele o maior lance ao proprietário
dos ofícios, e, com isso, barganhando o direito ao exercício da escrivania concelhia e do
tabelionado público, com a remuneração anual que receberia pelos mesmos, bem como
os demais proes e percalços que ao ordenado se somavam. Assim, não seria,
necessariamente, o sesmeiro que se tornaria escrivão da Câmara do Natal, mesmo que
situações como essa também ocorressem como se visualizou anteriormente. Contudo, o
exercício da escrivania camarária também havia sido desempenhado por indivíduos que
apenas mais tarde, após a passagem por esse ofício, obtiveram uma gleba de terras.
Noutros casos, porém, como se visualiza no Gráfico 04, o percentual de 33,08% (16)
dos escrivães sequer possuiu a posse de terras. Nesse caso, ressalva-se que não se exclui
a possibilidade de um escrivão mesmo não sendo o titular da sesmaria, estaria vincado a
elite fundiária do Rio Grande por laços de parentesco consanguíneo, como se
visualizará posteriormente.
A averiguação de que 64,28% (27 sesmeiros) dos homens que exerceram o
ofício de escrivão camarário na Cidade do Natal, como constam no Gráfico 04, pode
ser indicativo de uma possível similitude com o perfil dos escrivães concelhios da
Capitania do Ceará, apontados por Gabriel Parente Nogueira, que, segundo esse autor,
compunham a “elite tradicional” da Vila de Santa Cruz do Aracati, entre 1748-1804,
cuja base dessa conceituação sustenta-se na posse de terras pelos componentes dos
quadros de oficiais camarários.217
Aquele conceito cunhado por Gabriel Parente, no
interior do qual também engloba, dentre outros ofícios, o de escrivão concelhio, também
havia se baseado na posse de gados por essa “elite tradicional”, em claro contraponto
com a “elite mercantil” – formada por indivíduos provenientes da Capitania de
Pernambuco e do reino –, mesmo que esse autor assevere a não existência, na Capitania
do Ceará, de uma rígida divisão entre ambos os grupos.218
A seguir, passa-se a análise
da posse de outros cabedais que constituíam o patrimônio dos escrivães camarários do
Natal, como a propriedade de gados – vacuns e cavalares –, bem como de outras
criações, além de escravos, patentes das companhias de ordenanças locais e a
217 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: práticas de nobilitação e
hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. p. 121-122, 162, nota 254. 218
Ibidem., p. 146.
169
acumulação de outros ofícios no interior e no exterior da Câmara Municipal do Natal,
como brevemente apontado nos exemplos citados anteriormente.
2.2.1 A posse de gados, sesmarias, escravos, chãos de terras e patentes
Quando se analisa as datas de sesmarias que foram concedidas aos indivíduos
que ocuparam a escrivania da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759, percebe-se que a
constante alusão nas justificativas apresentadas por esses oficiais da alegação de que
estavam a requerer as glebas de terra com o objetivo de criarem gados, em outros casos,
que já fossem possuidores desses rebanhos, tanto vacuns quanto cavalares, mas que não
tinham aonde os pudesse criar, ou mesmo que pretendia plantar, mas que não possuíam
terras onde o fizessem. Ao todo, identificou-se 42 diferentes justificativas para que
recebessem a concessão de terras que suplicavam, como se percebe, a seguir, na análise
do Gráfico 05.
170
171
Gráfico 05 - Justificativas apresentadas pelos indivíduos que ocuparam o ofício de
escrivão da Câmara do Natal para a obtenção de carta de sesmaria (1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
219
172
Verifica-se no Gráfico 05, que em meio as 42 diferentes justificativas
apresentadas pelos agentes que exerceram a escrivania da Câmara do Natal, entre 1613-
1759, para obterem a concessão de uma data de sesmaria, figurava em sexto, sétimo e
oitavo lugares, as alegações de que eram possuidores de gados vacuns, gados cavalares
e/ou que simplesmente que tinham gados, sem que necessariamente apresentassem as
suas espécies.
Ainda assim, os números faziam alusão expressiva à posse de gados pelos
indivíduos que assumiram a escrivania camarária do Natal. Isso corrobora com o estudo
de Muirakytan Kennedy de Macedo, segundo o qual o sertão da Capitania do Rio
Grande havia se caracterizado pelas lides entorno da pecuária, sobretudo nas Ribeiras
do Apodi, Assú e, mais tarde, do Seridó.220
Conforme Tyego Franklin da Silva, os
desdobramentos advindos do criatório de gado nos sertões da Capitania do Rio Grande,
foi um dos mecanismos responsabilizados pela expansão do território português na
América. Ainda de acordo com esse autor, na Capitania do Rio Grande o processo não
foi diferente, o adensamento do território com as atividades pecuárias ocorreram pelas
ribeiras dos principais rios que banhavam essa capitania, e onde habitavam os diversos
agrupamentos indígenas. Assim, do contraponto das perspectivas esboçadas pelos luso-
brasílicos no trato do gado no território e os indígenas que nele subsistiam, ocorreria a
Guerra do Açú, no sentido de integrar esse território aos anseios da Coroa lusa.221
Sobre a participação de escrivães concelhios nos embates que ocorreram com
os grupos indígenas que habitavam os sertões da Capitania do Rio Grande, observa-se
na análise do Gráfico 05, que os indivíduos que lutaram nesses momentos utilizaram-se
disso para justificarem o acesso à posse de terras. Nesse sentido, tem-se nesse último
219 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir das cartas de sesmarias constantes na Plataforma SILB –
Sesmarias do Império Luso-brasileiro. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:
26/09/2017. Entretanto, ressalva-se que devido ao fato de a quantidade de justificativas variarem de uma
carta de petição de terras para outra, não sendo esse número fixo, visto que em algumas cartas constam
até dez ou doze razões expostas nas sobreditas datas, enquanto noutras tem-se apenas duas ou três, os
valores apontados no Gráfico 05 sofrem algumas ligeiras alterações, bem como um único escrivão
camarário sesmeiro poderia possuir mais de um título de terras. 220
A formação do patrimônio das famílias que se situaram no interior da Capitania do Rio Grande, foi
extensivamente estudado, para o caso da Ribeira do Rio Seridó, por Muirakytan Macedo, segundo o qual
a pecuária possuiu um sobrepeso considerável na estruturação das relações. Para saber mais, ver
MACEDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do
Seridó (séc. XVIII). Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2007. 221
SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na
territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 17.
173
gráfico, que aqueles oficiais estavam a pleitearem glebas que, segundo eles, haviam sido
habitadas pelo gentio bárbaro, ou quando afirmavam ser “descobridor das terras com
risco de vida”, que “pretendiam pacificar os índios”, ou quando solicitavam a concessão
das datas de sesmarias ao afirmarem que as mesmas “nunca haviam sido povoadas por
estarem em poder do gentio bravo”.222
Todas estas justificativas são indiciárias do envolvimento direto dos escrivães
camarários do Natal, assim como os demais integrantes dessa edilidade, nos inúmeros
conflitos e reveses sociais pela posse da terra e expansão dos domínios lusos, no sertão
da Capitania do Rio Grande, entre a segunda metade do século XVII e as duas primeiras
décadas do século XVIII. Exemplifica essa situação, quando o Tabelião José Martins de
Morais, que foi escrivão da Câmara em 1678,223
requereu a posse de uma data de
sesmaria próxima ao Rio Açú, dentre outras coisas, afirmava que seria o descobridor
das ditas terras e, além disso, possuía gados vacuns e cavalares. Martins de Morais
reiterava aquelas explanações afiançando que as terras que estaria suplicando “nunca foi
povoada por estar em poder do gentio bravo”.224
Essa última fundamentação da petição
também foi esboçada pelo Tabelião Manuel de Amorim,225
que exerceu a escrivania
camarária da Cidade do Natal, em dois períodos, em 1672 e de 1674 até 1678.226
As petições de datas de sesmarias são elucidativas dos vínculos que se teciam
entre diferentes agentes que ocuparam, concomitantemente ou em períodos distintos, o
ofício de escrivão do Concelho Municipal do Natal, entre 1613 e 1759, trazendo
informações sobre possíveis redes clientelares ou mesmo familiares, que interligavam
esses indivíduos tanto ao exercício da escrivania camarária, quanto para a obtenção de
mercês régias, como, por exemplo, a concessão de terras. Exemplo disso, se pode citar a
petição conjunta de duas datas de terras, ainda na segunda metade do século XVII,
efetuada por quatro agentes que foram escrivães da Câmara da Cidade do Natal naquela
222 Cartas de sesmarias constantes na Plataforma SILB – Sesmarias do Império Luso-brasileiro.
Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 223
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 20; Fundo
documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690).
Fl. 37v, Fl. 38, 38v. 224
Carta de sesmaria doada a José Martins de Morais em 25 de março de 1670. Plataforma SILB – RN
0031. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 225
Carta de sesmaria doada a Manuel de Amorim em 19 de março de 1676. Plataforma SILB – RN
0030. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 226
LOPES, op. cit., p. 1, 7, 10, 13, 16, 20.
174
mesma centúria, antecipando os momentos iniciais da eclosão dos embates no interior
da Capitania do Rio Grande, quando do contexto mais amplo da Guerra dos Bárbaros.
No primeiro caso, tem-se a solicitação efetuada por Diogo Rodrigues Pereira e
Antônio Pereira Chaves, em 09 de julho de 1674, na qual solicitavam a mercê de uma
gleba de terras entre os Rios Mipibú e Pium. Alegavam esses agentes que eram
radicados na Capitania do Rio Grande havia mais de dez anos, e que pediam aquelas
terras, pois ainda não as possuíam, dado que pretendiam, ainda, plantar e que eram
donos de gados e outras criações que não tinha onde acomodar.227
Ambos haviam sido
escrivães da Câmara da Cidade do Natal. O tabelião Antônio Pereira Chaves havia
exercido a escrivania camarária em dois períodos, primeiro em 1688, e depois entre os
anos de 1690-1691.228
Já Diogo Rodrigues Pereira também foi escrivão daquela
municipalidade em dois momentos, cujo mandato inicial foi em 1663 e o segundo
mandato, juntamente com a provisão no ofício de tabelião público, ocorreu em 02 de
junho de 1674,229
no mesmo ano que havia recebido a concessão de uma sesmaria.230
Cogita-se que ambos fossem, com alguma probabilidade, familiares, dado a interação
entre os dois para o recebimento da sesmaria e por levarem um sobrenome similar.
Outros dois indivíduos que foram escrivães camarários e que receberam
concessões de sesmaria, de maneira conjunta, foram o Capitão Antônio Lopes de Lisboa
e o Tabelião Manuel de Amorim. Essa concessão foi realizada a esses dois indivíduos,
juntamente com Domingos Fernandes de Araújo, Manuel Afonso Fragoso, Gonçalo
Leitão Arnoso, Bento da Costa de Brito e Luís Brito Bezerra, em 24 de março de 1676.
Nessa mesma carta constava que os suplicantes eram moradores nas Capitanias do Rio
Grande e de Pernambuco, contudo não explícita as origens de cada um deles.231
No
entanto, sabe-se que Gonçalo Leitão Arnoso foi grande sesmeiro na Capitania do Rio
Grande, sogro do Capitão-mor Bernardo Vieira de Melo por casamento que esse
227 Carta de sesmaria doada a Diogo Rodrigues Pereira e Antônio Pereira Chaves, em 09 de julho de 1674.
Plataforma SILB – RN 0021. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:
26/09/2017. 228
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 55, 62, 66. 229
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659
– 1668). Fl. 32. 230
Carta de sesmaria doada a Diogo Rodrigues Pereira e Antônio Pereira Chaves, em 09 de julho de 1674.
Plataforma SILB – RN 0021. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:
26/09/2017. 231
Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de Lisboa, Manuel de Amorim e outros, em 24 de março de
1676. Plataforma SILB – RN 0030. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:
26/09/2017.
175
contraiu com Dona Catarina Leitão, filha de Gonçalo Arnoso,232
cujos significados
políticos desse enlace matrimonial, no contexto da ocupação das terras situadas na
Ribeira do Assú, foram ostensivamente trabalhados por Tyego Franklin da Silva.233
Contudo, isso seria indicativo de que os escrivães concelhios do Natal haviam se
envolvido com redes clientelares, cujos componentes se ligavam a estratos
proeminentes da sociedade colonial não apenas da Capitania do Rio Grande, mas
também da Capitania de Pernambuco. Desses envolvimentos, podem-se cogitar,
inclusive, as nomeações para o ofício de escrivão da Câmara do Natal, mesmo que não
se possam verificar documentalmente essas ligações.
A posse de tão largas extensões de terras, mesmo que muitas estivessem
direcionadas para as atividades pecuárias e do criatório em geral, demandavam, em
menor medida, quando comparado com a produção canavieira, de recursos humanos
para lidarem com as atividades diárias nas fazendas de criar gado e nas plantações de
subsistências das famílias.234
Essa situação estrutural contribuía para a posse de
escravos que pudessem se envolver no trabalho cotidiano com os gados e com a
produção de gêneros alimentícios que, como apresentado por Câmara Cascudo, eram a
mandioca e a farinha proveniente desta, o cultivo do milho e do feijão e de algumas
frutas, para o caso de alguns sítios que rodeavam a Cidade do Natal.235
Nesse sentido, verificou-se que alguns escrivães concelhios do Natal detiveram
a posse de escravos. Entretanto, não podem ser comparados aos grandes plantéis das
zonas produtoras de cana-de-açúcar, mas não se excluiu a possibilidade de tê-los, em
uma sociedade que, como havia afirmado Laura de Mello e Souza, assentada
eminentemente na escravidão, onde “leis, relações de produção, hierarquia social,
232 BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4. Mossoró:
Fundação Vingt-Un Rosado, 1993. p. 247. 233
SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na
territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 80-81. 234
Em dissertação escrita sobre a necessidade de escravos nas fazendas de criar gado, Luiz Cleber Moraes
Freire, mostra o quão foi requerida nessas propriedades de criatório a presença da mão-de-obra escrava,
não apenas na condição de vaqueiros, mas também nos serviços ligados à lavoura que naquelas fazendas
também se instaurou. Esse autor chama a atenção ainda para atividades desenvolvidas por esses escravos
nas fazendas em condições completamente distintas das lides roça, como, por exemplo, exercendo
trabalhos como ferreiro, marceneiro, alfaiate, dentre outros. Para saber mais, ver FREIRE, Luiz Cleber
Moraes. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: Agropecuária, escravidão e riqueza em Feira de Santa,
1850-1888. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. 235
CASCUDO, Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: Prefeitura Municipal, 1947. p. 119.
176
conflitualidade, exercício do poder, tudo teve, no Brasil, que se medir com o
escravismo”.236
No entanto, reverbera-se que não foi possível averiguar a posse de escravos
pela maioria dos escrivães camarários da Cidade do Natal, o que perfez 71,42% (30).237
Entretanto, tem-se que se pontuar o caráter esparso da própria documentação alusiva à
propriedade desses cativos, visto que os dados encontrados se remetiam a um livro de
batismos – manuscrito entre as duas últimas décadas do final do século VXII e a
primeira década do século XVIII –, alguns livros de casamentos da Freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação do Rio Grande, nos quais se encontraram referências
esporádicas aos casamentos contraídos por alguns escravos e, por fim, um Livro de
Óbitos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, da Freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação, bem mais significativo para a pesquisa sobre os
homens e as mulheres de cor, bem como sobre os grupos indígenas que foram
escravizados, na Natal Setecentista. Mormente, esse livro traz informações sobre
inúmeros escravos que foram sepultados ou que tiveram seus corpos velados na Igreja
do Rosário, contendo nos registros os nomes de seus proprietários atuais e passados,
suas idades estimadas quando de seus falecimentos, se eram casados, solteiros ou
viúvos, enfim, um campo vasto para a pesquisa documental que ainda se encontra em
aberto, mas cuja análise pode contribuir para a compreensão da formação étnica, social
e cultural da Capitania do Rio Grande, no século XVIII. Acresce-se a isso,
possivelmente, a falta de recursos econômicos dos escrivães, o que lhes havia
impossibilitado a formação de uma escravaria. Adir-se, ainda, que algumas localidades
da América portuguesa sobreviveram sem a mão-de-obra escrava, empregando,
inúmeras vezes, mão de obra livre e paga.
Todavia, identificou-se que 28,57% (12) dos escrivães da Câmara do Natal
eram senhores de escravos. Porcentagem essa, mesma que bem inferior à quantidade
total de escrivães concelhios, era representativa de uma parcela da sociedade estamental
escravagista que se estabeleceu nos trópicos. Ressalta-se, ainda, que a posse de escravos
236 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 56-57. 237
Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir do Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú,
Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal –
1683-1712; Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759; Paróquia de Nossa Senhora da
Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de Casamentos, 1740-1752.
177
pelos escrivães camarários da Cidade do Natal não ocorreu de maneira uniforme, dos 31
escravos rastreados para os 12 escrivães, existia uma média de pouco mais de dois
cativos para cada escrivão, sendo que um único desses oficiais possuísse até sete
escravos. Com isso, observa-se uma escravaria pequena, o que reforçaria o pouco poder
aquisitivo desse grupo. Este seria o caso do Alferes Manuel Rodrigues Taborda, senhor
de sete escravos identificados, que se chamavam Joana, Damiana, Vicente, João, Luzia,
Luiza de Arda, Benedito e Antônio, os quais foram batizados na Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Apresentação, entre 1683 e 1712.238
Outro possuidor de escravos foi Carlos
da Rocha, que teria sido escrivão da Câmara do Natal, em 1704 e 1709.239
Esse
escrivão, que se situava na média de dois cativos para cada proprietário, batizou
Antônio, filho de uma tapuia que também seria sua escrava.240
Salienta-se, ainda, que se tentou verificar a distribuição das nações ou das
possíveis origens, dos 31 escravos identificados, que foram de propriedades dos
escrivães camarários da Cidade do Natal. Porém, desse número 67,74% (21) dos
escravos não foi possível de se identificar suas naturalidades. Os outros 32,26% (10)
dividiam-se, de maneira desigual, pelo gentio de Arda (1), gentio de Guiné (1), Gentio
da Costa da Mina (2), crioulos (2), crioulos da Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação (1) e tapuia (3). No entanto, deve-se atentar que a origem muitas vezes
registrada se refere ao local de embarque dos escravos para a venda e não,
necessariamente, a localidade de onde eles pertenciam, devido aos grandes
deslocamentos de onde haviam sido comprados para onde eram vendidos, no próprio
continente africano.241
Isso indicaria o caráter híbrido das origens dos escravos
pertencentes aos escrivães concelhios do Natal, entre a segunda metade do século XVII
e a primeira metade do século XVIII. O Coronel Caetano de Melo e Albuquerque, por
exemplo, era possuidor de escravos da Costa da Mina, de Guiné e tapuia.242
238 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX02. DOC0069 (1v);
IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069 (3v); IAHGP-FIA-CX02. DOC0069 (8); IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069
(8v); IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069 (38v); 239
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 27. 240
Livro de Batismos de Cunhaú, op. cit., IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069 (5v). 241
THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800).
MOTTA, Marisa Rocha (trad.). Rio de Janeiro: Elieser, 2004. 242
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1740-1752; Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal /
Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759.
178
Além de sesmarias, gados e escravos, o patrimônio dos escrivães da Câmara do
Natal havia se constituído, materialmente, pela barganha de chãos de terra no termo da
cidade. De acordo com Raquel Gleizer, os chãos de terra se configuravam enquanto
glebas que eram doadas pela instituição camarária e que se situavam no rossio ou termo
da edilidade, possuindo, geralmente, dimensões inferiores quando comparadas às
extensas sesmarias, das quais se diferenciavam também pelo caráter jurisdicional na
dada da concessão.243
Como mencionado anteriormente, os chãos de terra foram
concedidos pelos honoráveis oficiais concelhios, enquanto as sesmarias, mesmo que se
configurassem como doações régias, eram, no geral, concedidas localmente pelos
Capitães-mores, cujos sesmeiros, ao adquirir o título de posse, deviam requerer a
confirmação real. Nesse sentido, no Gráfico 06, pode-se observar a posse de chãos de
terra pelos escrivães da Câmara do Natal.
Gráfico 06 - Escrivães que obtiveram concessão de chãos de terra no termo de Natal
após exercerem a escrivania da câmara (1659-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
244
243 GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros estudos sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007. p.
58. 244
Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do
Natal – Fundo documental do IHGRN (1659-1760). Livros 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.
179
De acordo com o Gráfico 06, apenas 35,71% (15) dos escrivães concelhios do
Natal obtiveram a doação de chãos de terra no termo dessa cidade. Dentre as principais
justificativas apresentadas pelo conjunto dos escrivães da câmara, tem-se a necessidade
de obterem os ditos chãos para que pudessem construir casas para morar na Cidade do
Natal, muitos alegavam que ainda não as possuía. Isso seria, possivelmente, indiciário
de uma chegada recente à localidade, por parte daqueles homens que haviam vindo
ocupar a escrivania camarária local. Em outras cartas constavam de solicitações de
chãos de terra que haviam pertencido aos familiares dos suplicantes, após o falecimento
do pai ou mesmo do sogro, com o objetivo de fixarem as glebas no universo patrimonial
da mesma família. Exemplo disso foi à petição efetuada pelo escrivão da Câmara do
Natal, Manuel Álvares Bastos, em 1743, na qual havia requerido aos oficiais honoráveis
daquele concelho que lhe concedessem a posse de um chão de terra que anteriormente
teria pertencido ao seu falecido pai, o Licenciado Francisco Álvares Bastos.245
A forma de proceder do escrivão Manuel Álvares, seria indicativa, ainda, das
estratégias utilizadas pela elite na Capitania do Rio Grande de assegurar a consolidação
de seus patrimônios, visto que muitos outros indivíduos se valiam de diversas táticas
para impetrarem a posse de chãos de terra, mormente se encontrassem devolutos, ou que
os herdeiros dos falecidos não requisitassem novo título de posse sobre as mesmas
glebas.
Aponta-se, ainda, que o patrimônio dos escrivães concelhios não se construiu
apenas tendo como base a materialidade conferida pela posse dos bens que possuíam.
Na sociedade hierárquica e estamental do Antigo Regime, o substrato do mando e ao
mesmo tempo dos desmandos institucionais e sociais, perpassavam pelo caráter
fortemente militarizado das estruturas sociais que atravessavam a própria dimensão
administrativa, como afirmou Kalina Vanderlei da Silva, em sua obra O miserável soldo
& a boa ordem da sociedade colonial.246
Ainda de acordo com essa autora, tal situação
245 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09
(1743 – 1754). Fl. 1v. 246
SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:
Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.
66.
180
poderia ser verificada devido ao enquadramento geral “da população livre urbana em
hierarquias militares”.247
Essa situação pode ser compreendida, a partir das ponderações efetuadas por
Raymundo Faoro sobre as milícias coloniais. Segundo esse autor, as milícias que se
constituíram pela América portuguesa, foram responsáveis por “moldarem a sociedade
do interior, assegurando-lhe com seu vínculo ao rei, à disciplina, a obediência e o
respeito à hierarquia”.248
Caso a sociedade que se sedimentava nos trópicos não
dispusessem do aparato miliciano “o tumulto se instalaria nos sertões ermos, nas vilas e
cidades”.249
Ainda conforme as explanações de Raymundo Faoro, as patentes “atraíam
todas as cobiças” e pela América portuguesa “embranquece e nobilita”.250
Para Maria Fernanda Bicalho, as ordenanças haviam se constituído como “um
pólo autônomo de poder em nível local”, dado o caráter genérico da militarização pelo
Império e o controle do mecanismo de recrutamento que seria compreendido como um
fator de intimidação social local.251
Desse modo, as patentes nas companhias de
ordenança locais ou na tropa paga, podiam ser compreendidas como símbolos de poder
e prestígio social, que se catalisavam na representatividade de autoridade e obediência,
por aqueles indivíduos que detivessem maior e menor gradação na hierarquia desses
agrupamentos milicianos.
Em face disso, para o caso da Capitania do Rio Grande, de modo mais
específico para os escrivães camarários aqui em análise, tem-se que constantemente os
indivíduos eram reportados nos diferentes tipos documentais que foram mobilizados
nessa pesquisa, como, por exemplo, nos termos de vereação do Senado da Câmara do
Natal, nos livros de cartas e provisões dessa instituição, nos registros de batismo,
casamento e óbito da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, dentre os demais
conjuntos, sempre se fazendo taxativa a alusão às patentes militares que possuíam,
fossem essas nas companhias de ordenanças, fossem nos regimentos da tropa paga.
Nesse sentido, a fim de se compreender a transformação do capital material em capital
247 SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:
Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.
66. 248
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo:
Globo, 2012. p. 178. 249
Ibidem., p. 179. 250
Ibidem., p. 177. 251
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 376.
181
simbólico,252
visto que os postos de ordenanças, como afirmou António Manuel
Hespanha baseassem na honra que conferiria aos seus ocupantes,253
buscou-se rastrear
as patentes militares, bem como uma possível ascensão no interior da hierarquia dessas
instituições, efetuadas pelos escrivães camarários da Cidade do Natal. Abaixo, no
Gráfico 07, buscou-se apresentar as proporções relativas de escrivães concelhios
daquela edilidade que detiveram patentes nas companhias de ordenanças locais e/ou na
tropa paga, na Capitania do Rio Grande.
Gráfico 07 - Percentual de escrivães camarários do Natal com patentes nas Ordenanças
Locais (1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
254
252 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tomaz, Fernando (trad.). 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1998. 253
HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 191. 254
Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do
Natal; do Catálogo dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal; da Base de Dados SILB –
Sesmarias do Império Luso-Brasileiro; dos Livros de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação; do Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia
de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759; dos Livros de Casamento da Freguesia
de Nossa Senhora da Apresentação; e dos Documentos Manuscritos Avulsos das Capitanias do Rio
Grande do Norte, Paraíba, Ceará e Pernambuco.
182
Verifica-se que grande parte dos escrivães da Câmara do Natal, entre 1613 e
1759, eram detentores de patentes militares das companhias de ordenanças locais,
perfazendo, percentualmente, 76,19% (32) desses agentes. Contudo, tais números são
indicativos de diretrizes mais amplas que abrangiam o Império. Como mencionado no
tópico anterior, todos os indivíduos do sexo masculino, em idade apta – cujos limites
variavam de um autor para outro –, deviam ser alistados nas milícias de ordenanças.
Esse quadro era composto por patentes de diferentes estratos da hierarquia dessas
companhias, indo desde alferes até o posto de coronel, identificados, respectivamente,
como o de menor e o de maior gradação na hierarquia local do oficialato das ordenanças
da Capitania do Rio Grande. Nesse rol, figurava, ainda, o posto de tenente-coronel,
considerado juntamente com de coronel como uma das irregularidades que,
possivelmente, existiram nas organizações militares pela América portuguesa, conforme
apontou José Eudes Gomes.255
Ressalta-se que, em alguns casos, foi possível averiguar
a ascensão dos escrivães camarários nesses postos, no decorrer do tempo em que
emergisse a necessidade de novas provisões. No entanto, aponta-se que nem todos esses
agentes, mesmo que nomeados diversas vezes, haviam grassado de ascensão nessas
hierarquias.
Quanto aos indivíduos que não detiveram patentes, o percentual infere que
constituíssem 23,80% (10) dos homens que haviam ocupado a escrivania concelhia da
Cidade do Natal. Elucida-se, de maneira pontual, que os postos de ordenanças que
foram ocupados pelos escrivães concelhios do Natal, bem como a possibilidade de
ascensão que puderam galgar no interior dessas companhias, são mais significativas
para se compreender a conversão do capital material dos escrivães – materializados na
posse de terras e gados, bem como no domínio de escravos –, em capital simbólico,
através dos tipos de patentes que cooptaram nas milícias da capitania. Assim, a seguir,
demonstra-se no Gráfico 08 como ocorreu a distribuição desses agentes responsáveis
pela escrita oficial e institucional pelo Império, nas estruturas das Ordenanças locais do
Rio Grande, entre 1613 e 1759.
255 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p.
90-91.
183
Gráfico 08 - Tipologia das patentes dos escrivães da Câmara do Natal nas Companhias
de Ordenanças e na Tropa paga da Capitania do Rio Grande (16131-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
256
Pontua-se que a quantidade total de patentes (77), apresentadas no Gráfico 08,
seja constituída quase pelo dobro da quantidade total de escrivães (42). Isso se justifica,
ao passo que um único escrivão, ao longo do exercício desse ofício – geralmente
nomeado mais de uma vez –, havia obtido a concessão de várias patentes ao longo de
sua carreira administrativa. A trajetória de Manuel de Melo e Albuquerque – o velho –
seria representativa desse acúmulo de patentes em um único escrivão, ascendo na
hierarquia das ordenanças, pois teria sido Alferes da Companhia de Ordenança de
Domingos Francisco Mendonça, Tenente de uma tropa de cavalos de Lázaro Frazão
Caldeira,257
Capitão da Ordenança da Ribeira do Assú258
e, por fim, Comissário Geral
256 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do
Natal; do Catálogo dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal; da Base de Dados SILB –
Sesmarias do Império Luso-Brasileiro; dos Livros de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação; do Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia
de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759; dos Livros de Casamento da Freguesia
de Nossa Senhora da Apresentação; e dos Documentos Manuscritos Avulsos das Capitanias do Rio
Grande do Norte, Paraíba, Ceará e Pernambuco. 257
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 11. 258
Ibidem.
184
de Cavalaria.259
A trajetória administrativa, em alguns casos, não se restringiu apenas ao
ofício de escrivão concelhio, mas que havia alcançado também os “honoráveis ofícios
desta República”, formados pelos ofícios de juiz ordinário, vereador e procurador da
Câmara do Natal, bem como em outros ofícios situados tanto nessa edilidade, quanto na
Real Fazenda do Rio Grande, como se verá adiante.
Efetuadas essas ressalvas, parte-se para a análise do Gráfico 08. De acordo
com esse diagrama, a patente de “capitão” constituía-se como a tipologia de maior
representatividade para a qual os escrivães camarários da Cidade do Natal tenham sido
providos, no período analisado. Esses capitães, de acordo com Ana Paula Pereira Costa,
faziam parte da camada de altas patentes das companhias de ordenanças.260
Salienta-se
que os oficiais que ascendiam até a patente de capitão eram encarregados de algumas
obrigações peculiares a esta gradação, mas que se associavam diretamente a principal
prática levada a cabo pelos escrivães camarários, que fosse o registro escrito
institucional. Ressalta-se que essas patentes foram, em grande parte, obtidas durante o
exercício do ofício de escrivão da Câmara do Natal. Os capitães de ordenanças eram os
responsáveis pelos alistamentos dos indivíduos aptos a ingressarem nessas companhias,
bem como da confecção de listas que eram enviadas aos capitães-mores, mesmo que em
alguns casos, como pontuou José Eudes Gomes, ocorresse diversas reclamações dos
capitães-mores, a quem estavam subordinados àqueles oficiais, e para os quais se
remetiam as listas dos recrutados.261
Na sequência, de acordo com o Gráfico 08, visualiza-se que outra quantidade
considerável de escrivães concelhios haviam sido providos nas patentes de alferes,
equivalendo, percentualmente à 15,58% (12) dos escrivães da Câmara do Natal. Os
alferes, juntamente com os postos de sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-
estandartes e tambor, perfaziam os postos de oficiais inferiores.262
Os alferes eram
encarregados de auxiliarem, juntamente com os sargentos, o capitão-mor de
259 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 112. 260
COSTA, Ana Paula Pereira. Organização militar, poder de mando e mobilização de escravos armados
nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas colonial. In: Revista de História
Regional, 2006, p. 113. 261
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p.
231. 262
COSTA, loc. cit.
185
ordenanças.263
Em seguida, retirados os indivíduos que não possuíam nenhuma patente,
os quais haviam correspondido a 12,98% (10) dos escrivães, ter-se-ia os sargentos-
mores. Nessa patente, foram nomeados 9,09% (7) dos escrivães da Câmara do Natal.
Conforme as explanações de Kalina Vanderlei, os sargentos-mores faziam parte das
tropas pagas e eram os responsáveis pela garantia da disciplina e da eficiência das tropas
de ordenanças.264
Logo depois, figuravam as nomeações para os postos de cavalaria, na
patente de capitão de cavalaria, com 6,49% (5) dos escrivães nomeados para essa
gradação, que existiam, eventualmente, como afirmou António Manuel Hespanha, para
enquadrar militarmente a gente dos concelhos.265
Após se verificar que 76,19% (32) dos agentes que exerceram o ofício de
escrivão concelhio da Cidade do Natal possuíam patentes de ordenanças, pode-se
afirmar, como pontuou José Eudes Gomes, mencionado anteriormente, que a sociedade
colonial constituiu-se a partir de bases militarizadas. Disso, havia decorrido a própria
concepção social dos indivíduos acerca de si e de outros, bem como de sua posição na
hierarquia social que, tendencialmente, encaminhava-se para a reprodução da mesma
estruturação da sociedade estamental do Antigo Regime. Observa-se isso, sobretudo, no
fato de que as nomeações para algumas patentes de ordenanças – principalmente na de
capitão de companhia – ser conferida a indivíduos que detivessem a posse senhorial de
terras. A esses, cabiam também serem providos nas patentes máximas dos regimentos
ou das companhias nas quais suas glebas estivessem inseridas. Reafirmava-se, com isso,
a preeminência social dos indivíduos de forma dupla, visto que a posse de terras seria
necessária para a obtenção de algumas patentes dentro da hierarquia das ordenanças e,
ao mesmo tempo, a concessão dos postos de maior gradação estavam reservados aos
indivíduos que possuíssem terras situadas dentro do limite de atuação ou de
representatividade de cada companhia.
Tudo isso fazia das companhias de ordenanças uma organização institucional
que prestigiava, em grande medida, quem já assim o fosse na sociedade pela posse de
títulos de terra. Em seu interior, a diferenciação social radicava-se na barganha de
263 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 264
SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:
Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.
80. 265
HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 188, nota 20.
186
patentes mais altas, quando comparada às demais que existissem em cada companhia, o
que processava, assim, a diferenciação entre os senhores de terras. Tal possibilidade
incitava em maiores prestações de serviços a El Rey, movimentando, ainda mais, a
economia de mercês, ao jogar com as vaidades pessoais de enobrecimento, prestígio e
status que gerava, consequentemente, distinção social.
A análise do perfil social dos escrivães da Câmara Municipal do Natal
possibilitou averiguar o traçado geral dos padrões societários vigentes no Antigo
Regime europeu. Com isso, verificou que esses arquétipos fizeram-se amplamente
presentes na Capitania do Rio Grande, a começar pelas possíveis escolhas que influíram
desde a decisão de deixar as suas comunidades de origem, para se fiarem nas inúmeras
possibilidades ofertadas no ultramar, mesmo que nem sempre obtivessem o êxito que
esperavam, mas munidos dos ideais de solidariedade, de amor e das obrigações morais
e, consequentemente jurídicas, que serviam de substrato para a instituição familiar na
sociedade do Antigo Regime.
Verificou-se também que o exercício da escrivania concelhia do Natal havia
sido ocupada por homens provenientes de diferentes partes do Império, principalmente
das Capitanias do Norte. Essa situação possibilita-nos, ainda, visualizar o relativo grau
de mobilidade dos agentes sociais, que havia sido responsável por costurar e, ao mesmo
tempo, interligar diferentes espacialidades pelos domínios lusitanos na parte setentrional
da América portuguesa. Essa volubilidade de homens, sobretudo nas estruturas
administrativas e burocráticas do Império, demonstraria a necessidade constante que
impeliu a Coroa de resolver os problemas de escassez de recursos humanos,
movimentando os parcos contingentes habilitados que detinha, ao desempenho do
mando institucional, notabilizada nessa movimentação constante das peças que
compunham o “tabuleiro de xadrez” do Império ultramarino português, entre os séculos
XVII e o início do século XVIII.
Nesse rol, distingue-se a quantidade expressiva de agentes advindos de outras
paragens para a ocupação do ofício de escrivão da Câmara do Natal. Isso ocorria devido
ao processo de expansão das áreas de conquistas, bem como da frente de colonização
187
que se empreendia nas áreas recém-integradas, o que se leva a compreender que esse
processo passava também pelo desempenho da escrivania concelhia que, assim como as
demais esferas da administração, eram utilizadas para cooptar agentes sociais
interessados em se instalarem em uma nova praça colonial, garantindo a posse dessas
para a Coroa lusitana.
Soma-se a isso, que as percentagens calculadas para a ocupação do ofício de
escrivão da Câmara do Natal, havia se caracterizado também por se tratar de um
universo amostral, ainda que diminuto, das origens dos grupos sociais que constituíram
a sociedade colonial na Cidade do Natal, entre os séculos XVII e XVIII, cuja
preponderância foi marcada pelo afluxo de indivíduos, sobretudo advindos das
capitanias mais adjacentes, como Pernambuco, Paraíba e Itamaracá. Essa mobilidade
também pode ser verificada quando os agentes não mais serviam a escrivania concelhia
e rumavam para outras paragens como, por exemplo, para a Capitania do Ceará, cuja
sociedade ainda estaria em fase de elaboração, o que possibilitou a um escrivão da
Câmara do Rio Grande vir a se tornar juiz ordinário da Vila de São José do Ribamar.
Essa movimentação de pessoas, principalmente em busca de terras e patentes militares,
contribui para se pensar os sentidos de ascensão e diferenciação social. A esses
números, acrescentar-se-iam, também, os agentes de origem reinol, provenientes de
diferentes partes do Portugal peninsular, que haviam formado, como afirmou Luiz
Felipe de Alencastro, os homens coloniais, pois esses agentes oriundos de cidades
como Lisboa, Coimbra e Lagos, apostaram todas as suas fichas em Natal, um enclave
colonial situado na periferia do Império, mormente fixando-se aí e estabelecendo
família vindo, pouco a pouco, a se constituírem na elite da Capitania do Rio Grande,
detentora de patentes, terras, ofícios e escravos.
Têm-se também os indivíduos originários da própria Capitania do Rio Grande.
Assinala-se que as referências a esses agentes somente começaram a aparecer a partir da
terceira ou quarta década do setecentos. Alguns deles identificados como filhos de
indivíduos provenientes de Pernambuco ou de Itamaracá, havendo, inclusive, alguns,
exercido a escrivania camarária, assim como seus progenitores. Nessa fase, têm-se os
filhos advindos do enraizamento das famílias que haviam chegado entre o final do
século XVII e o início do século XVIII, que a partir da barganha de sesmarias, patentes,
da posse de escravos e gados, haviam se tornado a elite política e econômica da
Capitania do Rio Grande. Sobre a posse de gados, verificou-se que havia se
188
caracterizado como a principal justificativa apresentada pelos agentes que assumiram a
escrivania da Câmara do Natal para obterem a concessão de terras, o que a assemelharia
ao traçado geral da elite sertaneja, que devido às condições fisiográficas locais não
ficaram conhecidas pela posse de engenhos ou de lavouras de cana-de-açúcar, mas pela
posse de gados vacuns e cavalares.
Soma-se a isso, que aos capitães-mores cabia o provimento das patentes das
companhias de ordenanças locais, as quais estavam diretamente subordinadas a esse
oficial. Mesmo assim, era necessária a confirmação régia, ou por parte do capitão-
general e/ou do governador-geral. Às câmaras municipais, nesse caso o Concelho da
Cidade do Natal, competiria o registro dessas provisões. De acordo com Maria
Fernanda Bicalho, as companhias de ordenanças haviam se constituído em outro polo
autônomo de poder em nível local, dado que os seus responsáveis maiores tinham o
faculdade de controlar as listas daqueles que podiam servir em guerras.
Acresce-se a isso, o fato de que a posse de patentes militares também era
indicativa da importante militarização da sociedade de Antigo Regime, mais baseada
nos critérios de hierarquia, respeito e submissão que daí decorria do que do próprio fato
de estarem preparados militarmente para qualquer enfrentamento que aparecesse. O
alistamento era efetuado pelo capitão de ordenanças, posto esse que muitos escrivães
camarários detiveram, talvez em face da necessidade que existia de manuscrever os
alistamentos, o que garantia ao escrivão um triplo prestígio social e ao mesmo tempo
certo temor com relação a esse oficial, visto que a ele caberia o recrutamento dos
indivíduos para as situações de guerras ou de conflitos.
Visto tudo isto, sublinha-se, ainda, a ausência de religiosos no desempenho do
ofício de escrivão da Câmara do Natal – diferentemente do que havia ocorrido em
outras praças como, por exemplo, da vizinha Capitania de Pernambuco –, e enfatiza-se a
feição militar desses agentes da escrita, inclusive em situações que os mesmo não
possuíam patentes. Outro elemento importante de se frisar nessa análise sumariza-se
pela presença de redes familiares, também deslocadas da Cidade de Olinda e da Vila do
Recife, mas situados fora do eixo tanto mercantil quanto aristocrático da Capitania de
Pernambuco.
Por fim, tem-se que estabelecimento do perfil social dos escrivães concelhios
do Natal abriu margem para a compreensão da atuação social e institucional desses
agentes no próprio exercício do ofício, ao privilegiar ou facilitar o acesso de familiares a
189
determinadas benesses como, por exemplo, os chãos de terra que eram conferidos pelo
núcleo da edilidade, bem como facilitando o ingresso e a permanência de indivíduos
vinculados por laços sanguíneos, religiosos ou de afinidade nos ofícios honoráveis da
edilidade, que, mormente, desaguavam no universo das redes clientelares, sendo os
acessos aos bens materiais e simbólicos os pontos nodais da eficiência da instituição
familiar da elite política e econômica da Capitania do Rio Grande. Essa eficiência seria
afirmada e reafirmada pelo prestígio social de seus componentes, mas, acima de tudo,
pelo peso e pelo significado do sobrenome que carregavam como se verificará no
próximo capítulo.
190
CAPÍTULO III – A ESCRIVANIA DA CÂMARA DO NATAL: Concessões,
provimentos e acumulação de ofícios
“[...] Pareceo ao Conselho que Vossa Mag.de
faça mercê a Jozep Ribr.o Riba da Propriedade
dos ditos officios de escrivão da Câmara do
Natal e de tabelião público em satisfação do
Alvará de lembrança de officios de justiça ou
Fazenda [...] que foi dado em satisfação de seus
relevantes serviços obrados nas Guerras de
Pernambuco e nas maes importantes ocazioens
que houve nella com os Hollandezes [...].”
(Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, 17/03/1718).1
De acordo com Maria Fernanda Bicalho a expansão ultramarina portuguesa,
desde o século XV, havia colocado à Coroa lusa o enfrentamento de novos dilemas,
bem como, propiciou a emergência de uma série de novas possibilidades com a
conquista do Novo Mundo, a partir do século XVI. Isso advinha, sobretudo, da larga
margem de prestação de serviços à monarquia, aberta à extensa rede de vassalos, diante
das inúmeras guerras e conflitos que haviam se alastrado pelo ultramar na empreitada da
efetivação da colonização. De igual modo, ambas as situações sobrevieram à
monarquia, como fatores de ampliação da extensão do diâmetro de ação da Coroa.2
Ainda conforme Fernanda Bicalho havia sido no pós-Restauração, a partir do
regime brigantino, que se teria efetuado o pacto entre a Coroa e os conquistadores-
restauradores d’além-mar, assentes nas câmaras municipais, como as principais
instituições agenciadoras da formação das elites, em nível local.3 Essa política havia
sido subsidiada pela tom geral ditado pela cultura política do Antigo Regime, cujo vetor
foi a economia de mercês4 ou, como definiu Maria de Fátima Silva Gouvêa, pela
“comunicação pelo dom”, que se estruturava pela presença de um benfeitor e de um
beneficiado, ao instaurar laços afetivos e econômicos entre ambos os extremos da
1 Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de Registro
de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 2 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América
portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. In: Almanack Brasiliense, n. 2, nov., 2005, p. 22. 3 Ibidem., p. 31.
4 Ibidem., p. 29.
191
relação.5
Conquanto, a Coroa tenha arrogado para si o monopólio, em primeira
instância, dessa estruturação social e institucional pelo Império – tanto no reino quanto
no ultramar –, ao controlar o acesso aos ofícios da governança local6
– ofícios
camarários, ofícios eleitos pela câmara e os ofícios intermédios, bem como os próprios
cargos superiores da monarquia e os de grande importância.7
A seguir, discutir-se-á, de maneira específica, a extensão da dimensão venal
dos ofícios que havia feito parte do universo cultural e mental das monarquias europeias
modernas, a fim de se observar como essa prática foi pensada e vivenciada não apenas
na Península Ibérica, mas também nos impérios vizinhos para, em seguida, se discutir o
tempo de serviço e as modalidades de provimento na escrivania da Câmara do Natal.
3.1 A venalidade de ofícios nas Monarquias Europeias (sécs. XV-XVIII)
O acesso aos ofícios camarários, sobretudo daqueles remunerados – escrivão
da Câmara e tabelião (do público judicial e notas) –,8
também denominados de
intermédios e aos quais se acrescentavam os ofícios de juízes de órfãos, meirinhos
dentre outros,9 podiam ser providos através de duas modalidades: a concessão precária –
temporária – ou em concessão perpétua – propriedade –.10
A obtenção dessas mercês
dava-se por três vias, são elas: em gratuidade, em remuneração de serviço ou por
compra.11
Sobre essa última via, conforme havia observado Nandini Chaturvedula, a
historiografia portuguesa tem reiteradamente afirmado o caráter limitado da prática de
compra e/ou venda de ofícios, do caráter venal ou transacionável que envolvia mesmos,
nomeadamente quando se comparado à realidade de outras monarquias europeias
coevas, como a Espanha e a França.12
Entretanto, conforme apontou Fernanda Olival,
5 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes
de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8, jan.- jun.,
2004, p. 98. 6 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América
portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. In: Almanack Brasiliense, n. 2, nov., 2005, p. 29. 7 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime
português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 631-632. 8 Ibidem., p. 632.
9 Ibidem., p. 619.
10 Ibidem., p. 631-632.
11 Ibidem., p. 624.
12 CHATURVEDULA, Nandini. Entre particulares: venalidade na Índia portuguesa no século XVII. In:
STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:
192
Portugal também havia registrado o fenômeno da venalidade não apenas de ofícios
administrativos, mas também de honras, desde o século XV.13
Ainda de acordo com
essa autora, no reino, a quantidade variável de práticas venais dos ofícios
administrativos, estava diretamente condicionada a sua transmissão, mesmo que as
investigações sobre esse tema sejam recentes e esporádicas.14
Olival sugere que a
venalidade dos ofícios administrativos tenha sido mais acentuada nas regiões das ilhas –
Açores e Madeira –, bem como pelo além-mar, quando se comparam essas áreas ao
Portugal reinol.15
Não obstante, Francisco Andújar de Castillo tenha assegurado, para o caso da
Espanha do Antigo Regime e das Índias, que não houvesse existido absolutamente
nenhum ofício administrativo ou de governo isento da prática venal.16
Para o caso do
Império português, voltando-se especificamente para o Brasil no século XVIII, Alberto
Gallo tenha inferido que o regime de ofícios português caracterizava-se por uma
diferença estrutural, decorrente da mentalidade moral e social que o balizava, do regime
espanhol e das demais monarquias da Europa contemporâneas, visto que a Coroa lusa
“no vendíam ofícios por precio”.17
Esse autor havia deduzido, ainda, que no Brasil, a
venda de ofícios pela Coroa foi bem mais frequente e até mesmo consistente do que se
pode supor, visto que inúmeros ofícios de pena – principalmente as escrivanias e os
tabelionados –, municipais, políticos e da Fazenda Real haviam sido vendidos e
comprados no decorrer do setecentos.18
Não obstante, ressalta-se que pairava nas tradições portuguesas a concepção de
justiça no que tocava a distribuição das mercês efetuadas pelo soberano, posto que El
Rey estivesse a retribuir os bons serviços prestados por vassalos leais e empenhados. A
partir disso, recorria-se à dispensa daquelas concessões remuneratórias, que contribuíam
Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar,
2012. p. 268. 13
OLIVAL, Fernanda. Economía de la merced Y venalidade em Portugal (siglos XVII y XVIII). In:
CASTILLO, Francisco Andújar; FUENTES, María del Mar Felices de la. (eds.). El poder del dinero.
Ventas de cargos y honores em el Antiguo Régimen. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2011. p. 345. 14
Ibidem., p. 346. 15
Ibidem. 16
CALTILLO, Francisco Andújar. Necesidad y venalidade: España e Indias, 1704-1711. Madrid: Centro
de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. p. 13. 17
GALLO, Alberto. La venalidade de oficios públicos em Brasil durante el siglo XVIII. In: BELINGERI,
Marco (coorde.). Dinámicas de Antiguo Régimen y orden constitucional: representación, justicia y
administración em Iberoamérica, siglos XVIII-XIX. Turin: Otto Editore, 2000. p. 98-99. 18
Ibidem.
193
para o acrescentamento político e social dos atores.19
Assim, a “economia de mercês”
reafirmava a dimensão compensadora e justa que estava em volta na figura do rei, ao
premiar os integrantes dos corpos sociais, garantia a solidificação dos laços de
vassalagem que interligavam os súditos ao soberano.20
Em outro estudo, Fernanda
Olival havia salientado que a economia da mercê atraía vários servidores, mas a
concessão de benesses em troca de dinheiro, seria capaz de “destruir o esforço dos
vassalos para servirem com valor a res publica”.21
E, complementava aquela autora, a
“economia da mercê e venalidade eram amiúde indissociável no contexto das práticas
portuguesas, muito embora à partida se pudessem afigurar contraditórias na sua
essência”.22
Na contramão disso, tem-se que, como havia afirmado Fernanda Olival, a
Coroa portuguesa não havia se valido dos diversos modos de venalidade de ofícios
devido a questões de dimensão histórica e cultural, como apontadas anteriormente.
Segundo essa autora, tal fato se devia a reduzida participação da monarquia lusa em
contextos de guerra como, inusitadamente, tenha ocorrido com a Coroa de Espanha.
Soma-se a isso a compleição negativa da sociedade e de “fortes censuras morais,
sobretudo dos tratadistas”.23
Em outro estudo, Roberta Stumpf havia apontado, ainda,
que eram escassos os indícios sobre a venda de ofícios em Portugal, quando
comparados às vizinhas França e Espanha, pois se o caráter venal da administração não
fosse, mormente, compreendido como ilegal, seria, no mais, considerado imoral por
seus contemporâneos, sobretudo do ponto de vista político e teológico.24
Contudo, como havia ponderado Francisco Ribeiro da Silva, a venalidade de
ofícios públicos na França tornar-se-ia um “sistema completo, oficial e legalizado”, a
partir do século XVII, mesmo que na centúria anterior já estivesse em vigor. Outras
monarquias, de acordo com aquele autor, também haviam conhecido de perto a
19 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em
Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001. 20
Ibidem. 21
Ibidem., Mercado de hábitos e serviços em Portugal (século XVII-XVIII). In: Análise Social, v. 38,
2003, p. 746. 22
Ibidem., p. 747. 23
STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia Portuguesa do século XVIII. In:
STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:
Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar,
2012. p. 284. 24
Ibidem., Venalidad de oficios em la monarquia portuguesa: um balance preliminar. In: CASTILLO,
Francisco Andújar; FUENTES, María del Mar Felices de la. (eds.). El poder del dinero. Ventas de
cargos y honores em el Antiguo Régimen. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2011. p. 332-333.
194
alienação de ofícios públicos da administração, sendo, inclusive, incentivada pelos
soberanos na Espanha, na Prússia, na Inglaterra e em algumas partes dos territórios
italianos.25
Mas quanto a Portugal, Francisco Ribeiro havia concluído que mesmo que a
legislação e a atmosfera mental não favorecessem o caráter venal da administração, a
mesma havia sido não apenas tolerada como praticada no decorrer dos séculos XVI e
XVII, sendo verificada mais presente na esfera do governo local, em detrimento dos
altos postos da administração e da justiça, era mesmo anterior ao domínio Filipino e que
ao longo desse tempo, a venalidade de ofícios havia propiciado “uma certa mobilidade
social”26
nas estruturas administrativas do Antigo Regime português.27
Por fim, compreende-se que apenas o adensamento das pesquisas, em nível
local e regional, tornar-se-ão capazes de preencher as lacunas quanto as temática da
venalidade de ofícios pela Coroa lusa, dado que, como apontou Alberto Gallo, a
quantidade de ofícios menores de justiça ou fazenda – principalmente as escrivanias e
os tabelionados –, que haviam sido providos ora por meio de doação, ora via compra,
foram extremamente significativos.
Para o caso de Sevilha, em meados do século XVIII, Francisco Gil Martínez ao
analisar a situação dos ofícios passíveis de venda, havia percebido que as escrivanias,
em geral, constituíram-se como a segunda categoria de ofícios que mais haviam sido
alienados na Cidade de Sevilha naquele recorte temporal.28
Para Miguel Ángel
Extremera, em La pluma e la vida, a funcionalidade dos escrivães, de modo geral, para
sociedade espanhola moderna residia na dimensão da cultura escrita, visto que, para
esse autor “leer y escribir significan um atributo de poder”. Para Miguel Extremera, os
escrivães se não faziam parte da elite econômica faziam, para aquele autor, parte de uma
elite cultural,29
posto que os escrivães além de serem criadores de cultura escrita,
haviam atuado também como eslabón – uma espécie de link – entre governantes e
25 SILVA, Francisco Ribeiro da. Venalidade e hereditariedade dos ofícios públicos em Portugal nos
séculos XVI e XVII. Alguns aspectos. In: Separata da Revista do Centro de História da Universidade
do Porto, v. 8, 1988, p. 203. 26
Ibidem., p. 212-213. 27
Ibidem., p. 213. 28
MARTÍNEZ, Francisco Gil. El Estado de los oficios patrimonializados en Sevilla a madiados del
siglo XVIII. p. 735. Disponível em: https://ifc.dpz.es/recursos/publicaciones/33/01/54gil.pdf. Acesso em:
20/10/2017. 29
EXTREMERA, Miguel Ángel Extremera. La pluma y la vida: Escribanos, cultura escrita y sociedad en
la España Moderna (siglos XVI-XVIII). In: Cuadernos de cultura escrita. Año III-IV, 2003-2004. p.
188.
195
governados e que, por fim, detinham o privilégio de “la información”.30
Em decorrência
disso, possivelmente, ter-se-ia suscitado disputas entre os componentes de alguns
segmentos sociais locais para o domínio desse ofício, principalmente com o objetivo de
assegurarem esse caráter privilegiado de acesso as informações, levando muitos atores
sociais a solicitá-lo em concessão precária – temporária – ou em concessão perpétua –
em propriedade –, como se verá a seguir, para o caso da escrivania da Câmara do Natal.
3.1.1 Provimentos e acumulações de ofícios
A escrivania concelhia do Natal foi criada, juntamente com a instituição
camarária dessa localidade em 1613, por ordem d’El Rey D. Filipe II.31
Desde a sua
criação até 1759, quando havia ocorrido a elevação dos aldeamentos indígenas à
condição de vilas e, consequentemente, com a criação de outros ofícios de escrivão
camarário pela Capitania do Rio Grande,32
a escrivania da Câmara Municipal do Natal
havia sido ocupada por 42 agentes sociais, em três diferentes regimes de exercício
identificados, os quais foram: concessão precária (temporária), concessão perpétua (em
propriedade) e através de procurações de plenos poderes.
A modalidade de provimento denominada em propriedade, consistia na dada
do ofício em regime vitalício e na potencial transmissão hereditária dessa concessão,
cujo repasse era considerado semiautomático, visto que, para isso, fosse preciso prévio
consentimento régio.33
Ressalta-se, de acordo com Roberta Stumpf, que essa
modalidade de provimento fosse privativa do monarca, pois as cartas de propriedade
eram emitidas apenas no reino.34
Ainda conforme essa autora, mesmo que se
encontrassem evidências da utilização do conceito “em propriedade” no século XVII,
30 EXTREMERA, Miguel Ángel Extremera. La pluma y la vida: Escribanos, cultura escrita y sociedad en
la España Moderna (siglos XVI-XVIII). In: Cuadernos de cultura escrita. Año III-IV, 2003-2004. p.
205. 31
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil. Tomo I. Rio de
Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. p. 416. 32
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o
diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2005. 33
STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime
português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, nota 8, p. 614. 34
Ibidem., p. 619.
196
esse termo foi bastante difundido ao longo do Setecentos,35
conferindo aos portadores
desses documentos prestígio social na sociedade do Antigo Regime.36
No entanto, Roberta Stumpf também havia pontuado que os ofícios, mesmo
aqueles que haviam sido concedidos em propriedade, não eram “bens patrimoniáveis
(livres ou vinculados)”37
e que o estatuto jurídico dos proprietários fazia com que esses
detivessem “apenas seu domínio, usufruindo de suas rendas e privilégios”,38
não se
tratando, portanto, de um bem particular39
e apetecível de deixá-lo como herança aos
seus filhos – como em contrário ocorria com os bens de raiz no direito sucessório –,
mesmo que o direito consuetudinário, baseado na primogenitura, tenha pesado na
momento da transmissão da titularidade do ofício quando por morte do proprietário
anterior.40
No caso dos dois provimentos em propriedade, identificados para o ofício de
escrivão da Câmara do Natal, em dois diferentes períodos da primeira metade do século
XVIII, verificou-se que ambos foram concedidos em remuneração de serviços prestados
tanto por familiares quanto pelo próprio pretendente à carta de propriedade do ofício,
como se verá adiante.
A concessão precária de ofícios da administração fundamentava-se na
permissão temporária para o exercício ou para a função,41
geralmente de três anos, mas
que se caracterizava por um prazo relativamente curto, no término do qual retornava as
mãos do monarca “quem, direta ou indiretamente, através de seus tribunais e
autoridades no reino e no ultramar, prorrogava o tempo de serviço do antigo titular ou
tornava a provê-los em um novo oficial”.42
De acordo com Roberta Stumpf essa forma
de concessão também podia ser denominada em serventia43
e, assim como o regime em
propriedade, ser concedida mediante o pagamento ou não de donativo à Coroa
inicialmente e, mais tarde, a Junta da Fazenda de cada capitania.44
Contudo, reverbera-
se que não se identificou, ao longo do período analisado, o pagamento de donativo para
o provimento, nem em propriedade nem em concessão precária, no ofício de escrivão
35 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime
português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, nota 32, p. 620. 36
Ibidem., p. 621. 37
Ibidem., p. 624. 38
Ibidem. 39
Ibidem. 40
Ibidem., nota 45, p. 623. 41
Ibidem., p. 614. 42
Ibidem., p. 615. 43
Ibidem., p. 614. 44
Ibidem., p. 618, 628.
197
da Câmara do Natal. Acrescenta-se a isso, que trinta e oito atores sociais foram providos
por concessão precária no exercício da escrivania camarária do Natal, entre 1613 e
1759, por períodos de tempo que variaram de dois meses, no mínimo, até três anos, no
máximo, mesmo que em alguns casos essas provisões foram renovadas no mesmo
indivíduo ao longo de vários anos.
Ainda sobre a concessão precária ou em serventia, salienta-se que foi a partir
do Decreto de 18 de maio de 1722, que os oficiais que serviam através dessa forma de
provimento ficavam obrigados a arcarem com o pagamento da terça parte dos
rendimentos anuais do ofício à Coroa, do mesmo modo que os serventuários pagavam
também a dita terça parte do que rendiam os ofícios anualmente aos seus proprietários.45
Ainda assim, não foi possível averiguar na documentação consultada os valores que
eram pagos pelos serventuários do ofício de escrivão da Câmara do Natal aos
proprietários do ofício ou à Coroa.
Visto tudo isto, infere-se que os ofícios intermédios podiam “estar sujeitos a
várias modalidades de provimento e transmissão”, como havia afirmado Roberta
Stumpf ao analisar o ofício de juiz de órfãos da Capitania do Rio de Janeiro.46
O mesmo
também havia ocorrido com o ofício de escrivão da Câmara do Natal, para o qual se
identificou uma modalidade de provimento atípica e não presente na literatura sobre o
tema, que fosse o provimento mediante procurações de plenos poderes.
Ao se buscar o significado de procuração e de procurador em dicionários da
época averiguou-se que, segundo Raphael Bluteau, procuração seria “o poder de tratar
algum negócio cometido a alguém por escritura [...] ato, escritura em virtude da qual
pode alguém tomar juridicamente algum negócio a sua conta e solicitar os interesses da
pessoa que lhe cometeu”.47
E havia sido justamente com esse sentido que as duas
provisões por procuração de plenos poderes do ofício de escrivão da Câmara do Natal
foi concebida. Pois, de acordo com o teor desse documento, o procurador daquele
ofício, ao qual se juntava também o de tabelião do público, judicial e notas da Capitania
do Rio Grande, tinha plenos poderes sobre ambos, podia tomar posse em seu próprio
nome, realizar o juramento e ser investido no ofício – do mesmo modo que deviam fazer
45 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime
português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 626. 46
Ibidem., p. 618. 47
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...
Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. v. 2. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>. Acesso em: 12/03/2018. Ver verbete “procuração”.
198
os proprietários –, bem como lhe estava facultada as possibilidades de escolher e
destituir os serventuários, de determinar os valores a serem pagos pelos mesmos, enfim
de representar todos os interesses do proprietário em seu próprio nome.48
No Gráfico
09, abaixo, verifica-se percentualmente o tempo de serviço e as modalidades de
provimentos identificados para o ofício de escrivão concelhio do Natal, entre 1613 e
1759.
Gráfico 09 - Tempo de serviço e modalidade do provimento para o ofício de escrivão
da Câmara do Natal (1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
49
Através da análise do Gráfico 09, observa-se que grande parte dos agentes que
foram providos no ofício de escrivão da Câmara do Natal, havia ocorrido por meio da
concessão precária – temporária – do exercício desse ofício, no qual 93,10% (54) das
48 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 74; Ibidem., Livro 06 (1713-1720) Fl. 129v. 49
Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do
Natal (1659-1760); Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, códice 21.
Livro de Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246; AHU-
RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60.
199
cartas de provisões identificadas remetiam-se a essa forma de concessão, para as quais
foram nomeados 38 indivíduos.50
Ressalta-se que a quantidade total de cartas de
provisões rastreadas, apresentam números ligeiramente superiores a quantidade total de
indivíduos que serviram naquele ofício. Explica-se esse fato, ao se ressalvar que
inúmeras vezes um mesmo indivíduo exerceu o ofício de escrivão concelhio, da
concessão precária – temporária –, por mais de uma ocasião e que para cada um desses
períodos, ter-se-ia que obter uma nova carta de provisão para o referido ofício. Exemplo
disso foi o Sargento-mor Manuel Antônio Pimentel de Melo, que havia exercido a
escrivania concelhia do Natal em dois períodos, de 1746-1753 e de 1760-1767. Para o
primeiro intervalo de tempo, tem-se 10 cartas de provisões identificadas em seu nome
em regime temporário de exercício, que foram concedidas por diferentes intervalos de
tempo, que variavam de três meses até um ano.51
Constatou-se, ainda, que as provisões em concessão precária da escrivania
concelhia do Natal, ao que parece, no geral possuíam prazos de validade máxima de um
ano, estipulados nas próprias cartas, como se evidencia no caso citado anteriormente,
aonde o Sargento-mor Manuel Antônio Pimentel de Melo havia obtido suas provisões, a
quem, segundo uma delas, já estava “reservada”.52
Ainda assim, verificou-se na
documentação situações de provisões por tempo de três anos, mas em números
inexpressivos. Noutros casos, esse vencimento era substancialmente inferior, variando
entre dois, três ou seis meses, no limite dos quais não se poderia extrapolar, mas que um
mesmo agente tinha a possibilidade de solicitar outra vez as autoridades competentes
nova provisão, desde que a câmara, o proprietário ou o procurador e o capitão-mor
assim o avalizasse.
Mesmo não se remetendo a uma provisão de meses para o exercício da
escrivania concelhia do Natal, tem-se que a renovação do provimento do Capitão
Manuel Álvares Bastos para o ofício de escrivão da Câmara do Natal em 1746,53
o qual
estava exercendo, continuamente, desde 1738,54
não tenha sido renovada. Em carta ao
Capitão-mor do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques (1739-1751), os
50 Fundo documental do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1760).
51 Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09 (1743 – 1754). Fl. 51, 71v,
89v, 115v, 128, 161v, 203, 245v; Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro
10 (1755-1760). Fl. 49, 160v. 52
Ibidem., Fl. 49. 53
Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09 (1743 – 1754). Fl. 49. 54
Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 08 (1738 – 1743). Fl. 12.
200
oficiais camarários davam conta de que Álvares Bastos tinha “se adiantado” as
disposições do edizes ao buscar nova carta de provisão temporária para a escrivania
camarária, dado que fosse notória a sua incapacidade para permanecer no exercício do
ofício, principalmente por haver mentido, pois havia afirmado ser licenciado, como
reconhecidamente o era seu falecido pai, Francisco Álvares Bastos.55
Em face desse
impedimento que havia vetado a permanência de Manuel Bastos no exercício
temporário da escrivania do Natal viria, em seguida, a assumir esse ofício também em
concessão precária, Manuel Antônio Pimentel de Melo,56
cujo pai também foi escrivão
dessa edilidade na segunda década do século XVIII.
No que concerne às provisões em concessão precária por reduzidos períodos
de tempo, têm-se, como exemplo, a primeira nomeação efetuada para servir de escrivão
da Câmara do Natal ao Alferes Manuel Rodrigues Taborda, em 22 de outubro de 1706.
De acordo com essa carta, o Capitão-mor do Rio Grande, Sebastião Nunes Colares
(1701-1708), nomeava Rodrigues Taborda por tempo de três meses, enquanto não
chegasse à provisão do Governador e Capitão General de Pernambuco. Salienta-se que
essa provisão tenha ocorrido pela vacatura em que deixou o ofício Zacarias Vital
Pereira, que havia cometido um crime57
– o mesmo Zacarias Pereira que, visto no
capítulo anterior, viria a ganhar, em 22 de janeiro de 1708, uma data de sesmarias,
vindo a ocupar os honoráveis ofícios da Vila de São José do Ribamar.58
Não obstante, a
provisão da escrivania concelhia do Natal em tempo reduzido não tenha ocorrido apenas
em função de situações limites como a apresentada anteriormente. Essas foram
realizadas diversas vezes ao longo da segunda metade do século XVII, na Capitania do
Rio Grande. Exemplifica isso, a primeira provisão de Antônio Lopes de Lisboa, em 22
de junho de 1679, no qual foi provido, pelo Capitão-mor do Rio Grande, Geraldo de
Suny (1679-1681), durante dois meses, “enquanto Sua Alteza o houver assim por bem
ou o governador geral não ordenar o contrário”.59
Percebe-se que as nomeações efetuadas por pequenos espaços de tempo para
escrivania camarária do Natal, na segunda metade do século XVIII, ter-se-ia se
55 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09
(1743 – 1754). Fl. 50. 56
Ibidem., Fl. 51. 57
Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 105v. 58
Carta de sesmaria doada a Zacarias Vital Pereira em 22 de janeiro de 1708. Plataforma SILB – CE
0301. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 59
Fundo documental do IHGRN. op. cit., Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 44v.
201
justificado na medida em que se precisava de recursos humanos para se levar a cabo o
expediente institucional concelhio e que, mormente o tempo administrativo, como havia
pontuado Heloísa Belloto,60
muito retardasse a chegada das provisões ora do Governo-
Geral, na Bahia, ora dos Governadores e Capitães-generais de Pernambuco, sob a
jurisdição dos quais os Capitães-mores do Rio Grande estiveram submetidos, na
segunda metade do século XVII à Capitania da Bahia e, a partir de 1701, à Capitania de
Pernambuco. Apesar de que aquelas “distorções” objetivassem, minimamente, a
funcionalidade do processo administrativo e burocrático na Capitania do Rio Grande, o
provimento de ofícios menores da justiça, em caráter emergencial ou corriqueiro, como
havia lançado mão constantemente os capitães-mores, não deixavam de suscitar
conflitos, devidos à sobreposição de jurisdição e a conflitos por representação de poder.
O mesmo Antônio Lopes de Lisboa, concessionário precário da escrivania da
Câmara do Natal durante quase uma década, de 1679 até 1688,61
foi o estopim nesse
último ano de uma querela envolvendo o Capitão-mor do Rio Grande, Pascoal
Gonçalves de Carvalho (1685-1688), e o Governador-Geral, D. Mathias da Cunha. Em
carta enviada da Bahia, em 31 de maio de 1688, Mathias da Cunha rechaçava o Capitão-
mor Pascoal Gonçalves por haver contrariado suas disposições quando este havia
nomeado para a serventia de Provedor da Fazenda, Manuel Duarte de Azevedo, mas que
continuava permitindo que Antônio Lopes de Lisboa exercesse o ofício de escrivão sem
provisão do Governo-Geral.
Em retaliação aquela situação, Mathias da Cunha ordenava que se declarassem
nulos todos os documentos que Lopes de Lisboa houvesse produzido naquele ofício
depois de finda sua provisão pelo governo geral, visto que quando os agentes se fiavam
nisso, serviam de três em três meses, contrariando as novas disposições que haviam sido
postas, visto que sequer pagavam as meias anatas, em grave prejuízo para a Coroa.62
Após essa determinação, Antônio Lopes não havia retornado mais ao exercício do ofício
60 BELLOTO, Heloísa L. O Estado português no Brasil: Sistema administrativo e fiscal. In: SILVA,
Maria Beatriz N. da (coord.). O Império luso-brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editora Estampa, 1986. p.
265. 61
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl. 106v; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume I. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 1929. p. 287-288. 62
Ibidem.
202
de escrivão da Câmara do Natal, mesmo que viesse, mais tarde, a ser vereador dessa
edilidade, eleito para dois mandatos, o primeiro em 1693 e o segundo 1696.63
Constata-se, de acordo com o Gráfico 09, que apenas de 3,44% (2) das
provisões identificadas para o ofício de escrivão da Câmara do Natal, para o período
analisado, tenham sido efetuados em concessão perpétua – propriedade. A carta de
propriedade desse ofício, juntamente com um dos dois ofícios de tabelião do público,
judicial e notas da Capitania do Rio Grande, os quais eram anexos um do outro, foram
concedidos em dois momentos distintos da primeira metade do século XVIII, a dois
indivíduos de origens diversas e que não apresentavam nenhum grau de parentesco
consanguíneo. Contudo, reitera-se que em ambos os casos, a concessão perpétua da
carta de propriedade foi concedida em remuneração aos serviços militares prestados
pelos agentes em conflitos tanto no reino – na Guerra de Sucessão Espanhola –, quanto
nas Capitanias do Norte – durante a Guerra dos Holandeses.
O primeiro desses agentes a obter a concessão perpétua do ofício de escrivão
da Câmara do Natal, foi Francisco Álvares de Lima. Posto que, quando El Rey havia
ordenado, após se verificar a ausência de proprietários naqueles ofícios, que no prazo de
oito dias os indivíduos que pretendessem adquirir àquela propriedade, apresentassem
seus papéis correntes – espécie de folha corrida dos serviços prestados pelo próprio
candidato ou por seus familiares à Coroa –, na secretaria do Concelho Ultramarino, o
tinha feito apenas Francisco Álvares.
Francisco Álvares havia apresentado um alvará de lembrança de ofício pelos
serviços que foram prestados por seu pai, Gaspar Gonçalves de Lima, nas Guerras da
Sucessão Espanhola, onde esse ator social havia perdido a própria vida. Diante disso, os
conselheiros do Conselho Ultramarino votaram por unanimidade e pela falta de outros
opositores para que Álvares de Lima obtivesse a carta de propriedade.64
No entanto, por
ser morador em Lisboa, onde desempenhava o ofício de Tesoureiro da Inconfidência, na
Tesouraria-mor dos Três Estados, havia-lhe sido facultada a alternativa de tomar posse
63 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0382, Fl.(s)
106-106v; Doc. 0443, Fl.(s) 126v-127. 64
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60.
203
por meio de procurador, bem como de nomear serventuário para o exercício de ambos
os ofícios.65
Assim, os procuradores instituídos por Francisco Álvares de Lima foram João
Batista Campeli e Paulo Campeli de Azevedo.66
Sobre João Batista Campeli tem-se que
era “descendente de pais e avós que figuravam entre as principais pessoas de Guarda”.67
George Félix Cabral de Souza, em Tratos e Mofratas, pintava Batista Campeli como um
comerciante de origem italiana, que havia aportado na Capitania de Pernambuco em
1688, “sem que a atividade de mercador lhe atingisse ou maculasse a honra e prosápia
de funcionário”.68
Ao que parece, João Batista Campeli estava envolvido com uma rede
mais ampla que visualizava na posse de procurações de ofícios administrativos uma
fonte de dividendos, se não materiais – dados os diminutos valores que podiam ser
auferidos anualmente desses ofícios –, mas sociais ou de prestígio. A segunda
alternativa seria mais plausível, dado que, conforme havia pontuado Roberta Stumpf, as
cartas de propriedade conferiam certo prestígio, mesmo em casos de ofícios de estatuto
inferior, pois haviam sido concedidas por órgãos régios.69
Afirma-se isso, posto que
Campeli também fosse procurador do ofício de escrivão da Fazenda Real de
Pernambuco, cujo proprietário era Teófilo Homem da Costa.70
Contudo, Batista Campeli não havia chegado a atuar na Capitania do Rio
Grande como procurador dos direitos de Francisco Álvares de Lima sobre aqueles
ofícios, visto que havia substabelecido em Recife, em 19 de dezembro de 1705, a
Manuel de Melo e Albuquerque como procurador, com plenos poderes, sobre os
referidos ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de tabelião do público, judicial e
notas da Capitania do Rio Grande.71
65 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 74. 66
Ibidem. 67
SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la Cámara
Municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidad de Salamanca,
Salamanca, 2007. p. 313. 68
Ibidem., Tratos e mofratas: O grupo mercantil do Recife colônia (c. 1654-1759). Recife: Editora
Universitária – UFRE, 2012. p. 448. 69
STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime
português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 621. 70
DANTAS, Aledson M. S. Meu ofício, moeda e sustento: propriedade de ofícios na Capitania de
Pernambuco no período pos-bellum. In: Revista Acadêmica Historien (Petrolina), ano 5, n. 10. jan./jun.,
2014, p. 238. 71
Fundo documental do IHGRN, loc. cit.
204
Ao que parece, aquela procuração de plenos poderes sobre esses ofícios em
Manuel de Melo e Albuquerque, vigoraria até 1718, ano em que seria encartado o novo
proprietário, José Ribeiro Ribas, por falecimento de Francisco Álvares de Lima, sem
que houvesse deixado herdeiros. José Riba, por seu turno, nomearia outro procurador
para esses ofícios na Capitania do Rio Grande, como se verá a seguir.72
Reitera-se que
Manuel de Melo e Albuquerque, enquanto procurador de Francisco Álvares, havia
tomado posse e feito os juramentos dos referidos ofícios e, em seguida, nomeado
Zacarias Vital Pereira como primeiro serventuário daqueles ofícios.73
Porém, em 17 de
julho de 1713, os oficiais da Câmara do Natal, em carta à D. João V, solicitavam que
Francisco Álvares viesse para a Capitania do Rio Grande servir ambos os ofícios, dado
que devido aos valores cobrados pelo procurador de Álvares de Lima, possivelmente
ainda Manuel de Melo e Albuquerque, não houvesse pela Capitania pessoa alguma que
o quisesses servir.74
Mesmo assim, Francisco de Lima jamais viria exercer pessoalmente
a escrivania do Concelho do Natal, pois postergaria as deliberações, com a chancela da
Coroa, ao lhe ser facultada a possibilidade de nomear serventuários para ambos os
ofícios.
Transcorridos treze anos após a nomeação de Francisco Álvares de Lima, esse
faleceria em 1717, sem, contudo, deixar herdeiros.75
A referência à falta de herdeiros de
Francisco Álvares para a escrivania da Câmara do Natal e do tabelionato público aponta
para aquilo que havia sido afirmado por Roberta Stumpf acerca da transmissão
hereditária dos ofícios. De acordo com essa autora, mesmo que a transmissão de um
ofício dependesse da chancela do rei, “era resguardado o direito dos herdeiros” não pelo
direito sucessório, mas pelo direito consuetudinário.76
Mas a situação era diferente,
Álvares de Lima não havia deixado herdeiros e dessa forma os ofícios ficavam vagos,
retornando as mãos do monarca e tornando-se disponíveis para uma nova concessão.
Isso impelido às autoridades, por ordem régia, que se afixassem editais na Capitania do
Rio Grande e às portas do Concelho Ultramarino durante vinte dias, para que quem
72 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720) Fl. 129v. 73
Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 74. 74
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 70. 75
Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de
Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 76
STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime
português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 623-624.
205
quisesse candidatar-se a propriedade dos ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de
tabelião púbico da Capitania do Rio Grande, o fizesse no referido prazo. Dentro desse
tempo, três indivíduos apresentaram suas folhas corridas com a relação de serviços que
haviam prestado a Coroa lusitana, foram eles: José Ribeiro Ribas, Antônio de Ataíde de
Paiva e Tomé Peixoto Barreto.77
Todos possuíam em comum o fato de haverem servido
a Coroa em postos militares e/ou administrativos.
Conquanto, saiu vitorioso José Ribeiro Riba, devido haver apresentado um
alvará de lembrança de ofício, de justiça ou fazenda, adquirido pelo seu sogro,
Domingos da Costa de Araújo, nas Guerras de Pernambuco, que foram travadas contra
os flamengos. Além disso, em comparação com o que apresentaram os demais
candidatos, os ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de tabelião público da
Capitania do Rio Grande, eram avaliados em $ 40.000,00 reis, o mesmo lote que
também perfazia o alvará de lembrança de ofício apresentado por Ribeiro Riba.78
Após
isso, José Ribeiro havia tratado de nomear procurador com plenos poderes sobre ambos
os ofícios na Capitania do Rio Grande, para o qual foi escolhido o então provedor da
Fazenda Real, João da Costa e Silva, que o substabeleceria na pessoa de Bento Ferreira
Mouzinho,79
que já estava na serventia daqueles ofícios desde 1715.80
Com isso, por fim, Manuel de Melo e Albuquerque e Bento Ferreira Mouzinho,
correspondiam aos 3,44% (2) dos indivíduos que foram providos no ofício de escrivão
da Câmara do Natal, através de uma procuração de plenos poderes, o que lhes teria
possibilitado dispor desses ofícios como se fossem os próprios donos, tomando posse,
juramentado, escolhendo e destituindo serventuários. Com o substabelecimento da
procuração, esses agentes haviam passado a controlar, localmente, um vetor de inserção
na principal agência de representação da Capitania e difusora de nobilitação, a qual,
possivelmente, lhes teria contribuído, ainda, como um mecanismo de cooptação de
novos componentes para as suas redes clientelares.
Ainda sobre a questão dos provimentos, pode-se visualizar no Gráfico 10, logo
depois, quais foram às autoridades que haviam competido os provimentos nos ofício de
77 Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de
Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 78
Ibidem. 79
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 129v. 80
Ibidem., Fl. 77v.
206
escrivão camarário do Natal, verificados no decorrer do século XVII e primeira metade
do século XVIII.
Gráfico 10 - Autoridades que proveram o ofício de escrivão da Câmara do Natal
(1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
81
Visivelmente, espreita-se no Gráfico 10, que 78,33% (47) das provisões
efetuados para o ofício de escrivão da Câmara do Natal, foram realizadas pelos capitães-
mores da própria Capitania do Rio Grande. Todas essas provisões consistiam na dada
do ofício através da modalidade de concessão precária, ou seja, do exercício
temporário, verificadas por toda a segunda metade do século XVII e a primeira metade
do século XVIII. Infere-se da leitura dessas cartas de provisões o caráter de
eventualidade que as demarcavam, visto que em quase todas elas continha a alusão “por
81 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do
Natal (1659-1759); Documentos Históricos da Biblioteca Nacional; Documentos Manuscritos Avulsos
referentes à Capitania do Rio Grande do Norte existente no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa;
Livro de Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). Códice 21. 9º v. Fl. 244-
246.
207
tempo de três meses somente, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário e não
chegar à provisão do governo geral”, o que assinalava a casualidade das provisões que
foram efetuadas pelos capitães-mores.82
No entanto, verificou-se anteriormente, no caso
da suspensão de Antônio Lopes de Lisboa, que as tais provisões não seriam
convenientes ao serviço d’El Rey, pois propiciava aos providos a possibilidade de se
esquivarem do pagamento das meias anatas – imposto pago a Coroa sobre as provisões
de ofícios –, e, portanto, sendo prejudicais ao erário régio.
Contudo, possivelmente, foi em face do chamado tempo administrativo, com
os consequentes atrasos advindos do mesmo e as prementes demandas diárias, que
levaram os capitães-mores do Rio Grande a proverem as concessões precárias do ofício
de escrivão camarário do Natal. Depreende-se que, algumas vezes, os capitães-mores
foram requisitados que assim o procedessem pelos próprios oficiais camarários perante
a urgência de não poderem adiar as atividades administrativas e burocráticas dos
concelhos por faltas de provisões. Exemplo disso foi à carta escrita pelos oficiais da
Câmara do Natal, em 22 de abril de 1687, que requisitava ao Capitão-mor, Pascoal
Gonçalves de Carvalho (1685-1688), que provesse o ofício de escrivão daquele
senado.83
Essas situações, em alguns momentos, acabaram por gerar conflitos de
jurisdição entre os Capitães-mores do Rio Grande e o Governo Geral, na segunda
metade do século XVII,84
a quem estavam subordinados e, na primeira metade do
século XVIII, com os Governadores e Capitães-Generais de Pernambuco.85
Depois dos capitães-mores do Rio Grande, de acordo com o Gráfico 10, pode-
se afirmar que a autoridade que mais havia emitido cartas de provisões para a concessão
precária do ofício de escrivão concelhio da Cidade do Natal, foram os Governadores e
Capitães-Generais de Pernambuco, responsáveis por 6,66% (4) dos provimentos. Essas
provisões são verificadas apenas na primeira metade do século XVIII. Provavelmente,
em decorrência da anexação da Capitania do Rio Grande, em 1701, com a submissão
administrativa e militar aos Governadores e Capitães-generais da Capitania de
Pernambuco.86
Exemplo disso foi provisão, por concessão precária, exarada pelo
82 Fundo documental do IHGRN. Livros de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1760).
83 Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 98.
84 Ibidem., Livro 1 (1659 – 1668). Fl. 9v.
85 Ibidem., Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17 (1728 – 1736). Fl. 7v.
86 ALVEAL, Carmen M. O. A Anexação da Capitania do Rio Grande em 1701: Estratégia da coroa ou
interesse de grupo da Capitania de Pernambuco?. In: CAETANO, Antonio Filipe Pereira. (Org.).
208
Governador e Capitão General de Pernambuco, Francisco de Castro Morais, em 06 de
março de 1705, através da qual nomeava Manuel Rodrigues Taborda no ofício de
escrivão da Câmara, por tempo de um ano.87
Em seguida, conforme o Gráfico 10 tem-se as provisões em concessão
perpétua executadas para a escrivania da Câmara do Natal pelo próprio rei, às quais
corresponderam a 3,33% (2). Sobre essas provisões, verificou-se anteriormente que as
duas encontradas remetiam-se ao provimento do ofício de escrivão do Concelho
Municipal do Natal, em propriedade. A primeira delas em 16 de outubro de 1704,
quando D. Pedro II havia nomeado Francisco Álvares de Lima88
e a segunda,
transcorridos treze anos depois, em dezembro de 1717, quando D. João V havia
nomeado o Comissário Geral de Cavalaria, José Ribeiro Riba, para a propriedade dos
ofícios de escrivão camarário da Cidade do Natal e tabelião público do Rio Grande.89
Com o mesmo percentual anterior, havia ocorrido também às provisões em
concessão precária para o ofício de escrivão concelhio do Natal, efetuadas por parte do
Ouvidor Geral da Paraíba – 3,33% (2). Quanto às provisões exaradas por esses oficiais,
aponta-se que localizaram duas. A primeira delas, talvez em decorrência de uma
solicitação efetuada pelos próprios oficiais camarários, quando requereram ao Dr.
Jerônimo Correia do Amaral que permitisse que Estevão Velho de Melo continuasse no
exercício do ofício de escrivão da Câmara do Natal.90
O motivo dessa representação,
havia sido o fato de que Estevão Velho estava exercendo também o ofício de escrivão
da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande.91
Mesmo diante disso, os oficiais
camarários obtiveram resposta satisfatória, dado que o Ouvidor Joaquim Amaral havia
concedido a provisão a Estevão Velho de Melo.92
Identificaram-se, ainda, os provimentos através das procurações de plenos
poderes instituídas pelos próprios proprietários do ofício de escrivão camarário, cujo
montante perfez 3,33% (2). No que diz respeito a essa forma de provimento, há que se
Dinâmicas Sociais, Políticas e Judiciais na América Lusa: Hierarquias, Poderes e Governo (Século
XVI-XIX). 1. ed. Recife: Editora UFPE, 2016, v. 1, p. 135-158. 87
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 35. 88
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60. 89
Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de
Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 90
Fundo documental do IHGRN. op. cit., Livro 06 (1713-1720) Fl. 21v. 91
Ibidem. 92
Ibidem., Livro 06 (1713-1720) Fl. 23v.
209
efetuarem algumas ressalvas. Primeiro que não se tratavam de provisões de fato, mas
em procurações de plenos poderes concediam aos seus portadores larga margem de
autonomia para disporem dos ofícios de escrivão e de tabelião como bem entendessem.
Esses procuradores podiam desde escolherem serventuários – quando não fossem eles
mesmos quem assumiam de fato o exercício –, destituírem os escolhidos, fixarem os
valores a serem cobrados aos serventuários.
Diante disso, considerou-se que tais procurações constituíram-se, na verdade,
em provisões, que possibilitavam aos procuradores controlarem localmente e na prática
a propriedade de um ofício que pertencia a terceiros. A primeira procuração encontrada
foi substabelecida por Francisco Álvares de Lima em Manuel de Melo e Albuquerque,93
cuja duração se estendeu por toda a vida daquele proprietário. A segunda procuração foi
instituída por José Ribeiro Riba, e havia sido sub-rogada em Bento Ferreira
Mouzinho,94
mas não se pôde averiguar até quando havia permanecido nas mãos desse
agente.
Em percentuais menores, mas não menos importantes, foram às provisões
realizadas pelo Vice-rei, pelo Bispo de Pernambuco e pelos oficiais da Câmara do
Natal, as quais, de acordo com o Gráfico 10, corresponderam, cada uma, à 1,66% (1).
Exemplo de nomeação efetuada pelo Vice-rei do Estado do Brasil foi à designação de
por concessão precária de Diogo Rodrigues Pereira, em 01 de maio de 1664, para os
ofícios de escrivão da Câmara do Natal e tabelião público da Capitania do Rio Grande,
efetuados por Dom Vasco de Mascarenhas, Conde de Óbidos, que então exercia o
Governo Geral do Estado do Brasil.95
Quanto à única referência a provisão efetuada
pelo Bispo de Pernambuco, Dom Estevão Brito de Figueiredo, verifica-se que foi a
nomeação, também via concessão precária, de José Martins de Morais, em 16 de maio
de 1678, para escrivão interino do Senado da Câmara do Natal. Essa provisão havia
ocorrido devido à ausência de Manuel de Amorim que então servia o ofício, mas que se
encontrava em viajem pelos sertões da Capitania do Rio Grande.96
De igual modo, tem-
se apenas uma única referência à provisão em concessão precária – temporária – do
ofício de escrivão da Câmara do Natal efetuada pelos próprios oficiais dessa edilidade,
93 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 74 94
Ibidem., Livro 6 (1713 – 1720) Fl. 129v. 95
Ibidem., Livro 1 (1659 – 1668). Fl. 32. 96
Ibidem., Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 38v.
210
quando proveram, por portaria, a Estevão Velho de Melo nesse ofício, em 20 de
novembro de 1713.97
Assim, percebeu-se a partir da análise das autoridades que expediram cartas de
provisão para o ofício de escrivão da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759, que devido
ao fato desse ofício se constituir como pertencente ao universo dos “ofícios locais” –
que compreendiam os ofícios honoráveis para o governo das Câmaras, bem como seus
auxiliares ou intermédios, no interior dos quais figuravam os escrivães concelhios,
dentre outros oficiais, apontados por António Manuel Hespanha98
–, suas provisões não
podiam ser efetuadas diretamente pelos oficiais honoráveis dos concelhos, como
demonstram as solicitações que esses edizes da Câmara do Natal efetuaram, em alguns
momentos, ora ao Capitão-mor do Rio Grande, ora ao Ouvidor Geral da Paraíba, para
que esses oficiais provessem a escrivania concelhia do Natal.
Não raras vezes a provisão do ofício de escrivão pelos capitães-mores acabava
por suscitar disputas jurisdicionais sobre a quem caberia, de fato, os provimentos para
aquele ofício, como exemplificado no caso da contenda entre o Capitão-mor Pascoal
Gonçalves de Carvalho (1685-1688) e o Governador Geral Mathias da Cunha, acerca
das provisões das serventias trimestrais de Antônio Lopes de Lisboa.
Assim, as asserções apresentadas anteriormente, baseadas principalmente em
uma documentação local, corroboram com a afirmação de Roberta Stumpf sobre o fato
de que os provimentos dos ofícios temporários deviam ocorrer através da figura do rei,
de forma direta ou indireta e, neste caso por meio das provisões efetuadas pelos
tribunais ou autoridades, tanto no reino quanto no além-mar.99
Talvez para que
pudessem efetuar certo controle da câmara ou mesmo para servirem de “olhos” dessas
autoridades dentro das principais instituições de representação da elite local. Entretanto,
ressalta-se que várias vezes os indivíduos nomeados faziam parte das extensas famílias
locais – como se verá no próximo item o caso da Família Rodrigues de Sá –, ou que
mesmo quando veio de outras localidades – reino ou demais capitanias do Norte –, se
imiscuíram nas redes clientelares e/ou familiares da Capitania do Rio Grande. Isso,
possivelmente, inviabilizava qualquer tentativa de controle da instituição concelhia ou
97 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720) Fl. 1v. 98
HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 160-161. 99
STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime
português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 615.
211
mesmo da condição de informantes ou de olhos privilegiados das autoridades régias e
do próprio rei, no exercício de escrivão camarário do Natal.
No entanto, salienta-se que mesmo que a diretiva geral orientasse que os
provimentos do ofício de escrivão da Câmara do Natal devessem ser efetuados, na
segunda metade do século XVII, pelo Governo Geral da Bahia e, na primeira metade do
século XVIII, pelo Governo de Pernambuco, tal medida não foi possível de ser seguida
à risca devido à imprescindibilidade do escrivão camarário para as práticas
administrativas dessa instituição. Isso pode ser visualizado na maior percentagem
adquirida pelos provimentos em concessão precária efetuados pelos capitães-mores,
que se por um lado objetivava agilizar os trâmites administrativos, por outro lado tinha
grandes consequências políticas, posto que a querela acerca dos provimentos de ofícios
também envolviam interesses de grupo na sociedade da Cidade do Natal, entre os
séculos XVII e XVIII, principalmente os atores sociais envolvidos no processo de
Restauração, os quais foram os principais interessados na sujeição administrativa e
militar da Capitania do Rio Grande ao Governo de Pernambuco.100
Em meio a tudo isso, percebeu-se, ainda, certa tendência, sobretudo na segunda
metade do século XVII, para o acúmulo de cargos e ofícios na administração da
Capitania do Rio Grande, com participação, inclusive, dos escrivães camarários.
Segundo António Manuel Hespanha, a acumulação de cargos e ofícios havia sido uma
constante no Portugal peninsular do século XVII, sobretudo no que se reporta aos
ofícios menores das vilas e cidades espalhadas pelo território.101
Assim, no Gráfico 11,
a seguir, apresentam-se os ofícios que foram acumulados com a escrivania da Câmara
do Natal, entre 1613 e 1759.
100 PUNTONI, Pedro. “Paulistas x Mazombos”. In: Ibidem., A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e
a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec/Edusp/Fapesp, 2002, p. 241-
289; ALVEAL, C. M. O. A Anexação da Capitania do Rio Grande em 1701: Estratégia da coroa ou
interesse de grupo da Capitania de Pernambuco?. In: Antonio Filipe Pereira Caetano. (Org.). Dinâmicas
Sociais, Políticas e Judiciais na América Lusa: Hierarquias, Poderes e Governo (Século XVI-XIX). 1.
ed. Recife: Editora UFPE, 2016, v. 1, p. 135-158. 101
HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 161-186.
212
Gráfico 11 - Acumulação do ofício de escrivão da Câmara do Natal com outros ofícios
da administração local (1613-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
102
Conquanto, observa-se, no Gráfico 11, quando excetuados a porcentagem de
indivíduos que nunca acumularam ofícios na administração da Capitania do Rio
Grande, os quais perfizeram um montante de 22,22% (14), as maiores quantidades
seguintes são constituídas pela acumulação da escrivania concelhia do Natal com o
102 Elaborado pelo autor Abimael Lira, a partir LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos
de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte (no prelo).; Fundo documental do IHGRN (1659-1760). Livros de cartas e provisões da
câmara, n.os
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.
213
ofício de tabelião do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande, ao
contemplar 15,87% (10) dos agentes. Ressalta-se, que esses percentuais podem ser
explicados devidos a ambos os ofícios serem propriedades anexas um do outro. Desse
modo, possivelmente, quando se efetuava a concessão precária de um deles, o outro
também seria provido na mesma pessoa.
Não obstante, salienta-se que a Capitania do Rio Grande possuísse, entre o
final do século XVII e a primeira metade do século XVIII, dois ofícios de tabelião. Isso
justificava o motivo de se haver colocado a acumulação do ofício de escrivão da
Câmara do Natal, em dois diferentes seguimentos variáveis no Gráfico 11. Desses, o
tabelionado do público, judicial e notas era, como mencionado anteriormente, anexo da
escrivania concelhia do Natal.103
Já o segundo ofício de tabelião – que correspondia à 14,28% (9), de acordo
com o Gráfico 11, de indivíduos que o aglomeraram com a escrivania da Câmara do
Natal –, cuja documentação ao aludir àquele ofício ora simplesmente como tabelião, ora
como escrivão público do judicial, constituía-se em outro ofício, cuja carta de
propriedade foi requerida, em dois momentos, na última década do século XVII. A
primeira solicitação da concessão perpétua desse ofício havia sido requerida por
Manuel Trigueiros Soares, em 06 de setembro de 1695, ao apresentar os serviços
prestados nas Capitanias da Paraíba e do Rio Grande, nas lutas contra o gentio
Tapuia.104
Contudo, D. Pedro II resolveu nomeá-lo apenas para a serventia trienal do
dito ofício,105
sem pagamento de donativo. Ressalta-se que Manuel Trigueiros Soares já
desempenhava esse ofício há algum tempo, como havia pontuado nas justificativas para
o pleito da concessão,106
o qual havia desempenhado, cumulativamente, com a
escrivania concelhia do Natal, em 1694.107
Três anos após o requerimento de Trigueiros
Soares, em 18 de janeiro de 1698, uma nova solicitação para a propriedade do ofício de
tabelião ou escrivão judicial seria realizada. Dessa feita, o suplicante seria Gonçalo da
Costa Faleiro, que ao apresentar uma lista mais extensa, quando comparado com
103 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60; Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino,
Consultas Mistas, Códice 21. Livro de Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-
1722). 9º v. Fl. 244-246. 104
AHU-RN, op. cit., Doc. 41. 105
Ibidem. 106
Ibidem. 107
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 78.
214
Manuel Trigueiros, durante 12 anos, nas Capitanias da Paraíba e do Rio Grande, tanto
em postos militares como honoráveis da república.108
Essa lista de serviços culminaria
em sua nomeação, através de D. Pedro II, para a propriedade do ofício de tabelião do
judicial da Capitania do Rio Grande.109
Entretanto, pontua-se que existissem alguns vínculos entre Manuel Trigueiros
Soares e Gonçalo da Costa Faleiro, posto que além de serem originários da Capitania da
Paraíba, haviam servido nos mesmos conflitos na Capitania do Rio Grande, como se
depreende da análise das folhas corridas que, cada um no seu devido tempo,
apresentaram como justificativas para o pleito da propriedade. Soma-se a isso, que, em
28 de julho de 1693, após haver sido provido pelo Capitão-mor, Sebastião Pimentel
(1692-1693), no ofício de tabelião, Manuel Trigueiros teria apresentado como seu fiador
Pedro da Costa Faleiro,110
possivelmente, irmão de Gonçalo Faleiro, sob a propriedade
do qual havia sido serventuário do ofício de tabelião entre 1701 e 1704, quando veio a
falecer.111
Em seguida, conforme análise do Gráfico 11, o ofício de almotacé havia
aparecido acumulado com a escrivania da Câmara do Natal, perfazendo 15,87% (10)
dos casos – na mesma proporção entre o acúmulo da escrivania camarário do Natal com
o ofício de tabelião do público, judicial e notas –, constituiu-se como outro ofício que os
agentes que foram providos na escrivania da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759,
amontoaram. O almotacé era o oficial eleito pelos edizes, em alguns casos convocados
entre aqueles que haviam servidos nos ofícios honoráveis no ano anterior, para gerir e
fiscalizar o abastecimento de itens básicos de subsistência, aos quais cabiam, ainda, a
fiscalização das deliberações dos oficiais de cúpula camarária para o povo, gerenciando,
ainda, a construção de obras públicas e particulares e zelando pela limpeza das cidades e
vilas onde desempenhavam suas funções.112
Outro ofício acumulado com a escrivania concelhia do Natal, era o de escrivão
da Fazenda Real do Rio Grande que, juntamente com os ofícios de provedor, almoxarife
108 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 46.
109 Ibidem.
110 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0390, Fl(s).
109-109v. 111
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 27. 112
SOUSA, Avanete Pereira. Poder político local e vida cotidiana: A Câmara Municipal da cidade de
Salvador no século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 1996. p. 64.
215
e porteiro, constituíam o quadro de funcionários da Fazenda Real da Capitania do Rio
Grande, comprovadamente desde a década de 1670.113
Competia ao escrivão da
Fazenda a organização das contas e dos trâmites burocráticos.114
Exemplo dessa
acumulação, pode-se citar Estevão Velho de Melo, que em três mandatos como escrivão
da Câmara – 1713-1717, 1719, 1725-1726 –,115
havia acumulado este ofício juntamente
com o de escrivão da Real Fazenda da Capitania do Rio Grande.
Ao fim e ao cabo, a partir dessa análise do perfil social dos escrivães da
Câmara do Natal, observa-se que os agentes que haviam ocupado essa escrivania eram
homens de préstimos e consideráveis cabedais. Seus préstimos podiam ser visualizados
tanto quando requisitavam a propriedade daquele ofício, elencando uma série
significativa de serviços prestados à Coroa Lusa – por si ou por seus familiares –, tanto
no reino quanto no ultramar, mormente envolvidos nas diversas guerras e conflitos que
se abateram sobre os domínios do Império, ao longo do século XVII e da primeira
metade do século XVIII.
Os serviços prestados pelos escrivães camarários do Natal a El Rey, também se
fizeram sentir em um momento crucial para a ampliação da frente de colonização,
sobretudo nos sertões das Capitanias do Norte, ao lutarem pelo avanço da fronteira
interna, que separava os espaços já integrados à colonização portuguesa – o litoral –,
daqueles que grassavam na barbárie dominada pelo gentio – o sertão. Demonstrava isso,
o extenso rol de justificativas apresentadas pelos escrivães camarários do Natal ao
requererem a posse de terras que havia, muitas vezes, conquistado “à custa do perigo de
suas vidas e com dispêndio de suas próprias fazendas”. Isso fazia com que o processo
de conquista/colonização do território também passasse pela escrivania concelhia, como
um reduto de atração de agentes sociais de diferentes partes do Império. Esses homens,
ao mesmo tempo em que lutavam pelo estabelecimento das diretrizes geopolíticas do
Império português na América, jogavam também com a possibilidade de enobrecimento
e de distinção social, impregnados pela cultura política do Antigo Regime, que tinha na
posse da terra a gênese cimeira de prestígio social e de poder político.
113 BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Nos trâmites da fiscalidade: Aspectos administrativos da
Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1660-1720). Monografia (Graduação em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 44 114
Ibidem., p. 49. 115
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 125, 130, 135,
140, 146, 176, 180.
216
Salienta-se que a grande mobilidade desses homens, como observado no
primeiro tópico desse capítulo, quer entre as Capitanias do Norte, quer entre o reino e a
Capitania do Rio Grande, caracterizou-se por essa busca constante por condições que
favorecessem a ascensão social, muitas vezes podada em seus locais de origem, devido
ao fechamento hermético dos circuitos sociais de poder, há muito já instaurados. Assim,
a América figurava como o espaço apropriado para a prestação de serviços à Coroa de
Portugal o que, mais tarde, lhes serviriam para requerer a El Rey as ambicionadas
mercês régias – como concessões perpétuas ou concessões precárias de ofícios,
patentes das ordenanças locais e títulos de terra –, que movimentavam e dinamizavam a
vida social, conferindo coesão entre os súditos situados do Oriente aos rincões da
América.
Como pontuou Laura de Mello e Souza, para que se possa compreender a
dinâmica da vida social na América portuguesa dos séculos XVII e XVIII, há que se
levar em consideração as especificidades que conferiram àquela sociedade a dimensão
escravista que, em todos os aspectos, a fazia diferir, consideravelmente, das sociedades
do Antigo Regime, na Europa. Mesmo que movidos também pela profusa religiosidade
cristã que caracterizava aquela sociedade, o que fazia figurar em suas justificativas pela
posse de terras a vontade que muitos tinham para converter à fé cristã o gentio bárbaro,
os escrivães da Câmara do Natal também haviam se utilizado desse discurso para se
proverem de escravos que trabalhassem em suas terras. Deduz-se isso, mediante a posse
de cativos que aqueles homens também detiveram, mesmo que dentre os de origem
identificada constassem a pequena preponderância de originários de África, também
figurava representantes tapuia, muitos, provavelmente, adquiridos nos embates travados
no sertão durante a Guerra dos Bárbaros.
A seguir, a partir da análise de uma família que havia tido oito de seus
integrantes servindo no ofício de escrivão concelhio, na primeira metade do século
XVIII, busca-se traduzir, minimamente, a relação entre a escrivania camarária do Natal,
bem como o valor social desse ofício para as redes familiares e clientelares, na Natal
setecentista.
217
3.2 Sangue do mesmo sangue ou parentes da mesma parentela?
Segundo Raphael Bluteau, a definição do termo “família” se remetia “as
pessoas de que se compõem uma casa, pais, filhos e domésticos”.116
Entretanto,
verifica-se na explicação desse autor um alargamento do conceito para além das
relações estritamente sanguíneas, ao apontar que os “domésticos” também entravam no
rol do que se entendia, à época, como constituintes de uma mesma família. Esses
domésticos, possivelmente, se reportavam aos “agregados” das famílias como, por
exemplo, aqueles indivíduos que ingressavam no âmago familiar através dos laços
espirituais, formando uma extensa parentela que conferia, talvez pela quantidade e
aderência, a mesma medida de poder político e de prestígio social. Acrescenta-se a
esses, os criados, os escravos, os bens e até mesmo os amigos, ou seja, tudo e todos os
que estivessem sob a hegemonia de um pai de família.117
Essa ideia reitera a afirmação
de Sheila de Castro Farias, segundo a qual o termo “família” relacionava-se
corriqueiramente aos elementos que estavam situados fora do perímetro da
consanguinidade, abarcando aqueles que habitavam um mesmo espaço, bem como a
parentela, sendo passível de inclusão aqueles indivíduos que participavam de relações
rituais – o batismo e o casamento –, e, por fim, aos elementos das alianças políticas. 118
Não obstante, Raphael Bluteau havia ampliado um pouco mais aquele sentido
ao se reportar a “família nobre”, na acepção da qual se tem uma “ordem de
descendentes, que trazendo seu princípio de numa pessoa, se vai continuando, e
estendendo de filhos a netos, de maneira que faz uma parentela, ou linhagem, a qual da
antiguidade, e nobreza das coisas feitas é chamada nobre.”119
Tal significação parte da
ideia de que a família era constituída por todos aqueles agentes que descendessem de
um ancestral comum, o que não se limitava à concepção da família nuclear, constituída
meramente por pais e filhos, e que, por isso, tratava de interligar uma quantidade mais
significativa e, ao mesmo tempo, variável de agentes sociais que, como se verá a seguir,
116BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...
Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. v. 2. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>. Acesso em: 12/09/2017. Ver verbete “família”. 117
HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos
histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social, v. 28. 1993. p. 967-968. 118
FARIA, Sheila Castro. História da Família. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro Flamarion.
Domínios da História. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1997. p. 256. 119
BLUTEAU, Raphael, op. cit., Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>.
Acesso em: 12/09/2017. Ver verbete “família”.
218
fazia com que os interesses de particulares ou de grupos específicos da sociedade se
fizessem sempre presentes nas câmaras municipais, a compor facções que se
digladiavam pelos interesses de representação no sistema local de poder.
Nesse ínterim, cabe ressaltar, de acordo com António Manuel Hespanha, em
“Carne de uma só carne”, quando o autor empreende uma reconstituição e discussão
sobre o universo mental e institucional da família, no contexto das práticas sociais do
Antigo Regime, o fato de ser a família uma experiência modelar comum a todos, posto
que “todos tinham uma família”.120
Para esse autor, esta era uma das razões de essa
instituição se fazer corriqueiramente presente no discurso social e político do Antigo
Regime. Aquele autor vai apontar, ainda, que nem sequer a emergência de concepções
individualistas da sociedade havia conseguido quebrar a ideia de que a família se
constituía numa espécie de sociedade “naturalmente auto-organizada”,121
fundamentada
no amor, o qual era responsável por tecer “entre todos os elementos da família uma rede
afectiva”.122
Essa “rede afectiva”, a que fizera alusão António Manuel Hespanha, remeter-
se-ia ao amor entre os membros de uma mesma família,123
o que implicava uma série de
obrigações morais e jurídicas,124
dos pais sobre os filhos – querem legítimos, querem
naturais ou mesmo espúrios –, e destes para com os seus pais.
Situação possível, de acordo com Pedro António Almeida Cardim, em seu “O
poder dos afectos. Ordem amorosa e dinâmica política no Portugal do Antigo Regime”,
devido à coesão comunitária ser garantida por uma série de sentimentalidades, como o
sentimento de pertença a um determinado grupo e por “crenças partilhadas acerca de
questões básicas – como a noção de humanidade, de comunidade, da sua origem e do
seu fim”, entendidos como as razões interiores que eram responsáveis por dirigirem o
processo político no Antigo Regime.125
Esta ordem amorosa e a confiança política daí
120 HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos
histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social, v. 28. 1993. p. 951. 121
Ibidem., p. 951. 122
Ibidem., p. 954. 123
Ibidem., p. 955. 124
Ibidem., p. 957. 125
CARDIM, Pedro António Almeida. O poder dos Afectos: Ordem amorosa e dinâmica política no
Portugal do Antigo Regime. Tese (Doutorado em História) – Universidade Nova de Lisboa, 2000. p. 5-6.
219
decorrente, estavam presentes na família126
e, entre outros, no comércio127
e na
amizade.128
Nesse sentido, compreende-se a afirmação de Ângela Barreto Xavier e de
António Manuel Hespanha, em “As Redes Clientelares”, segundo os quais, baseados na
concepção microfísica do poder, subjaziam nas instituições e aparelhos da burocracia
lusa, elementos estruturantes das relações sociais que, de modo informal – mas nem por
isso menos importantes –, eram mecanismos responsáveis por condicionarem a ordem
institucional cotidiana, a execução e a própria finalidade do exercício do poder, posto
que orientassem os “modos de ver, pensar e agir” dos elementos humanos imbricados
na esfera do mando institucional.129
Isso influenciava ao nível das representações, bem
como no efetivo das práticas sociais e, segundo aqueles autores, o que seria,
“A razão pela qual relações de natureza meramente
institucional ou jurídica tinham tendência para se
misturarem e coexistirem com outras relações
paralelas [...] que se assumiam como tão ou mais
importantes do que as primeiras, e se baseavam em
critérios de amizade, parentesco, fidelidade, honra
e serviço”.130
Desse modo, aqueles critérios de afeição e de simpatia, no mais das vezes
recíprocos entre os elementos familiares – visto que não se isentava a possibilidade de
existência de disputas entre ramos de uma mesma estirpe, pela hegemonia do grupo –,
eram os responsáveis pela instauração da “lógica clientelar”, que determinava e dirigia o
tom moral – e ao mesmo tempo jurídico – da obrigatoriedade de concessão de
benefícios aos mais próximos, dos mais amigos, dos familiares, daqueles que
estivessem inseridos nos circuitos sociais mais contíguos.
Esse raciocínio clientelar era encampado no universo de todos os tipos de
relações sociais travadas no dia-a-dia, ditando na verdade a corporificação da natureza
126 CARDIM, Pedro António Almeida. O poder dos Afectos: Ordem amorosa e dinâmica política no
Portugal do Antigo Regime. Tese (Doutorado em História) – Universidade Nova de Lisboa, 2000. p. 205. 127
Ibidem., p. 297. 128
Ibidem., p. 393. 129
XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,
António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.
p. 339. 130
Ibidem.
220
das estruturas sociais.131
Ainda mais se se leva em consideração o caráter diminuto da
parcela da população suscetível de figurar nos sistemas locais de poder – nas câmaras
municipais –, dado que o próprio sistema de escolha para os elegíveis e,
consequentemente, para os eleitos, tendia a restringir o acesso aos ofícios camarários
“aos mais nobres ou da governança da terra”, o que pressupunha que os escolhidos
fossem da própria gente da governança ou “filhos e netos de quem o fosse”.132
Essas
eram as situações estruturais das relações sociais do Antigo Regime, baseadas em laços
físicos e morais de parentesco, os quais encontravam respaldo no universo mental e
jurídico da sociedade coeva pré-contemporânea.
Esse mesmo universo também seria responsável por subsidiar a constatação de
José Damião Rodrigues, ao analisar O provimento de ofícios da Fazenda Real nas Ilhas
Atlânticas, de que existia “uma coincidência entre os efectivos da Câmara e um domínio
da administração da Coroa”.133
Isso, talvez, decorresse do fato de as câmaras municipais
serem instâncias de poder, mas também de conhecimento – o que levava ambos os
fatores a se constituírem como faces visíveis de uma mesma moeda –, para a obtenção
de informações privilegiadas. Essa situação beneficiava e favorecia uns grupos políticos
– e grupos familiares na concepção que era imbuída os agentes sociais –, em detrimento
de outros, sobremaneira daqueles que não figuravam no rol da governança da terra.
Partindo de uma prerrogativa similar, mas focando sua análise na transmissão
hereditária da concessão de ofícios da administração por parte da Coroa, têm-se a
pesquisa de Jeannie Menezes, intitulada de “Ofícios de família”, no qual a autora havia
buscado discutir a prática de concessão perpétua de ofícios da administração através do
matrimônio, em um momento fulcral de arranjos e rearranjos sociais e políticos para a
Coroa, que seja na virada do seiscentos para o setecentos. Para isso, a autora, em um
primeiro momento, havia estabelecido uma revisão bibliográfica que discutia os limites
e as possiblidades de discussões sobre o conceito de família no período colonial e a
instituição do casamento. Em seguida, Menezes passou a deslindar uma trama entorno
131 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,
António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.
p. 339. 132
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel
(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 288. 133
RODRIGUES, José Damião. O provimento de ofícios da Fazenda Real nas Ilhas Atlânticas: O caso
dos Açores. In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas
Monarquias Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de
História de Além-Mar, 2012. p. 118.
221
das estratégias desenvolvidas por indivíduos pertencentes às famílias Cardoso, Siqueira
e os Sá e Moraes, no sentido de reter o ofício de tabelião do público, judicial e notas da
Cidade de Olinda e da Vila do Recife no interior dessas famílias, com a finalidade de se
servir dele como dote no mercado matrimonial daquelas localidades.134
Desse modo, Jeannie Menezes concluiu que a posse da concessão perpétua do
ofício de tabelião público por aquelas famílias, havia funcionado no sentido de dotar
mulheres de uma mesma linhagem e de mantê-las no mercado matrimonial.135
Mas as
justificativas apresentadas, desde a primeira geração foram às mesmas: o histórico do
ofício na família e os serviços militares prestados pelos varões à Coroa portuguesa.136
A
autora também havia observado que a forma de concessão do ofício de tabelião do
público, judicial e notas da Cidade de Olinda e da Vila do Recife, havia variado ao
longo do tempo, pois se no início era em concessão precária – temporária –, depois
passou a ser em concessão perpétua – propriedade –, aliando-se aisso, de modo
simultâneo, a prática de utilização do mesmo para a dotação das mulheres de uma
mesma estirpe.137
Essa tessitura reafirma, mais uma vez, a preponderância e o imbricamento dos
interesses familiares nas estruturas administrativas do Antigo Regime, de modo especial
no interior concelhio, que, como havia afirmado Maria Fernanda Bicalho, foram às
agências institucionais responsáveis por fomentar a formação das redes de poder pela
América portuguesa, misturando as teias do poder político à esfera econômica.138
Essa
situação havia levado José Damião Rodrigues, em “São Miguel no século XVIII”, a
afirmar que no interior do sistema concelhio, era quase impossível a conquista e a
manutenção do poder, sem a força e a vitalidade que a ele imprimia o sobrepeso da
parentela e toda a sistemática de alianças políticas e sociais que a mesma propiciava.
Algo que implicava diretamente na obrigação moral e jurídica de as famílias honrarem
as relações clientelares e as responsabilidades verticais e horizontais que daí
proviesse.139
134 MENEZES, Jeannie. ‘Ofícios’ de família: estratégias patrimoniais no mercado matrimonial colonial
(sécs. XVII-XVIII). In: Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. v. 5. n. 9, jul. 2013. 135
Ibidem, p. 145. 136
Ibidem., p. 146. 137
Ibidem., p. 145. 138
BICALHO, Maria Fernanda. Redes de Poder na América portuguesa – O caso dos homens bons do
Rio de Janeiro (ca. 1790-1822). In: Revista Brasileira de História. v. 18. n. 36, São Paulo, 1998. 139
RODRIGUES, José Damião. São Miguel no século XVIII: Casa, Elites e Poder. Ponta Delgada: Nova
Gráfica/LDA, 2003. p. 602.
222
Assim, a família, o sistema de parentesco, o peso social e político dessas
dimensões atrelado às câmaras municipais, na condição de principais agências de
representação e distinção social, somados a outros condicionantes como “amizade, a
fidelidade, a honra e a prestação de serviços”, como havia observado Maria de Fátima
Gouvêa, foram os elementos responsáveis por cimentar uma lógica clientelar nas
relações sociais do Antigo Regime,140
que tinham na “economia do dom” – estudada
por António Manuel Hespanha141
– ou na “economia de mercês” como havia definido
Fernanda Olival – seus elementos estruturantes.142
Ainda segundo Maria de Fátima
Gouvêa, o desenvolvimento de redes de poder, formadas por relações clientelares,
imaginava a comunicação pelo dom que se caracterizava pela presença de “um benfeitor
e de um beneficiado, caracterizando, portanto, uma economia de favores”.143
Diante de todo esse “pano de fundo”, que explicava as relações sociais no
Antigo Regime, pretende-se analisar as situações de provimento – concessão precária,
concessão perpétua e procuração de plenos poderes – de alguns agentes sociais para o
ofício de escrivão da Câmara do Natal, interligando essa discussão com a dimensão
institucional do casamento, da família, do sistema de parentesco, das redes clientelares e
da “economia do dom”, a fim de se compreender as implicações desses debates aos
limites e possibilidades do exercício efetivo da escrivania camarária do Natal, entre o
final do século XVII e a primeira metade do século XVIII, bem como nos elementos
condicionantes das práticas do poder político, em nível concelhio.
3.2.1 A família Rodrigues de Sá e o ofício de escrivão da Câmara do Natal
Como discutido anteriormente, a ideia de família que se tinha para o período
colonial abarcava, para além dos vínculos consanguíneos, todas as demais conexões que
140 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos.
Redes de podere conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,
jan.- jun. 2004, p. 97. 141
HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: HESPANHA,
António Manuel (Coord.). História de Portugal – Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Estampa, 1993. p. 339-
349. 142
OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o estado moderno. Honra, mercê e venalidade em
Portugal (1641-1789). Évora: Estar, Coleção Thesis, 2000. 143
GOUVÊA et. al. op. cit. p. 98.
223
interligassem um indivíduo a um determinado pai de família. De igual modo, esse liame
que se operava entre os indivíduos e que garantia o desenrolar cotidiano das estruturas
sociais, em nível doméstico e institucional, era garantido por mecanismos mentais,
lastreados na própria prática jurídica, mas também pela forma como cada um dos
componentes das comunidades concebiam a si e aos outros. Dito isso, sublinha-se que
se verificou no levantamento de informações sobre o perfil social dos escrivães da
Câmara do Natal, mais especificamente no momento em que se procedeu ao
estabelecimento dos laços de parentesco dos homens que foram providos para aquela
escrivania, da existência de ligações por meio sanguíneos, de rituais religiosos e,
ademais, por aquilo que se tem denominado de parentela, mesmo que essas pessoas
estivessem relacionadas por geração – agnados – ou por afinidade – cognados. Com
isso, averiguou-se que alguns dos agentes providos no ofício de escrivão camarário do
Concelho do Natal, entre 1690 e 1753, mesmo que de maneira esporádica, pertenceram
a uma mesma família.
Assim, de modo geral, tem-se que oito agentes, com vínculos familiares entre
si rastreados, haviam sido providos no ofício de escrivão da Câmara do Natal, desde a
última década do século XVII até o final da primeira metade do século XVIII – números
esses que subiriam para doze, se o recorte temporal desse trabalho fosse estendido até
1815. Não obstante, curioso também seria o fato de que três desses atores houvessem
contraído matrimônio com três mulheres, pertencentes à família Rodrigues de Sá,
mormente, eram eles também os pioneiros dessa estrutura familiar que haviam exercido
a escrivania camarária do Natal e, em seguida, netos e bisnetos destes.
Contudo, vale ressaltar, que entre 1613 – ano de instalação da Câmara do Natal
– e 1704, não se verificou a concessão perpétua – propriedade – do ofício de escrivão
deste concelho, mas através da concessão precária – temporária –, como se visualizou
no item anterior.144
Constatação essa que invalidava a possibilidade de ser aquele ofício
propriedade de algum elemento da família Rodrigues de Sá, diferentemente do que
havia ocorrido com a família Cardoso – e as agregadas a esta, por meio do matrimônio –
, estudada por Jeannie Menezes.
Apesar dos Rodrigues de Sá não deterem a concessão perpétua da escrivania
da Câmara do Natal, pondera-se, como pontuou Mafalda Soares da Cunha, em “O
144 Fundo documental do IHGRN. Cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659 – 1668);
Ibidem., Livro 2 (1673 – 1690); Ibidem., Livro 3 (1691 – 1702); Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707).
224
provimento de ofícios menores nas Terras Senhoriais”, que
existia a possiblidade de
algumas concessões, mesmo que de maneira omissa ou sutil, pudessem se referir a
provimentos em regime de propriedade, inclusive em casos no qual a Coroa se arrogava
no direito de dispô-los a qualquer momento – com cláusulas instituídas nas cartas de
provisão de ofício. Parece, para àquela autora, que não raras vezes as provisões
precárias ou em serventias sem tempo definido, pudessem “ocultar um ofício em
propriedade.” 145
Mesmo diante dessa assertiva, e da não constatação documental dessas
considerações, para o caso da escrivania do Concelho do Natal, se cabe conjecturar
outras possibilidades explicativas para a constatação sobre a presença de oito escrivães
camarários, advindos de uma única família – de acordo com acepção que se tem
levantado para esse termo no tópico anterior. A seguir, no Gráfico 12, observa-se a
configuração familiar dos Rodrigues de Sá, e os agentes que foram incorporados a esta
família por meio dos matrimônios e que, mais tarde, foram providos para o exercício do
ofício de escrivão da Câmara do Natal, ora de forma temporária, ora através da
procuração.
145 CUNHA, Mafalda Soares da. O provimento de ofícios menores nas Terras Senhoriais. In: STUMPF,
Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas: Provimento,
controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2012. p. 29-30.
225
Gráfico 12 - A família Rodrigues de Sá e sua parentela: casamentos, batismos e
apadrinhamentos (1697-1759)
Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.146
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)
226
Como visto no Gráfico 12, a estrutura familiar dos Rodrigues de Sá
apresentava algumas peculiaridades significativas, que a fazem destoar dos padrões de
“normalidade” para as demais famílias da Capitania do Rio Grande, no final do século
XVII e alvorecer do século XVIII, posto que possuam seu tronco no Padre Simão
Rodrigues de Sá.147
Esse padre era filho de Maria de Sá – natural de Pernambuco – e de
Simão Rodrigues – proveniente de Viseu, Portugal –, no testamento do qual, datado de
1 de novembro de 1680, constava que o Padre Simão Rodrigues estava a ocupar a
dignidade de cônego, com o qual ele havia assinado o termo de Irmão da Misericórdia,
em 23 de abril de 1696, exercendo nessa altura o posto de Arcediago da Sé de Olinda.148
Contudo, não se conseguiu precisar a data, nem quando ou como, o Padre Simão
Rodrigues de Sá havia aportado à Capitania do Rio Grande.
Conquanto, de acordo com o historiador José Rodrigues da Silva Filho, ao
pesquisar sobre a trajetória desse padre e conjecturar sua genealogia, afirmou que
aquele padre já estava na Capitania do Rio Grande por volta de 1697, sendo então
vigário da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, na Cidade do Natal, onde
havia permanecido na condição de vigário colado até 1714, datando desse ano o último
documento por ele assinado na referida freguesia, quando, possivelmente, veio a
falecer.149
Silva Filho reiterou, substancialmente, o prestígio de que o Padre Simão
Rodrigues de Sá galgava na sociedade da Capitania do Rio Grande, visto que se tratava,
à época, da maior autoridade religiosa de toda aquela capitania, posto que a única
freguesia que existia até meados do século XVIII, foi a de Nossa Senhora da
146 COUTO, Domingos Lorêto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. In: Anais da Biblioteca
Nacional. v. 15, Rio de Janeiro: 1903. p. 84; FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia
Pernambucana. v. 1. In: Anais da Biblioteca Nacional. v. XLVII, 1918. p. 198; SILVA FILHO, José
Rodrigues da. Padre Simão Rodrigues de Sá, um patriarca de batina. In: II Encontros Coloniais, Natal,
29-30, maio, 2014. p. 1; Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape,
Camaratuba e Natal (Matriz de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712);
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livros de Casamentos
(1724-1785). Plataforma SILB – Sesmarias do Império Luso-Brasileiro. Disponível em:
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 24/09/2016; Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos,
1750-1759; Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) – Fundo Sesmarias;
Livro de Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN. GAIO, Felgueiras.
Nobiliário de famílias de Portugal / Felgueiras Gaio (1750-1831). Braga: Agostinho de Azevedo
Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, 1938-1942. 147
COUTO, loc. cit. 148
FONSECA, loc. cit. 149
SILVA FILHO, loc. cit.
227
Apresentação, por ele chefiada, cuja jurisdição se estendia pela totalidade daquele
território.150
De acordo com Domingos de Lorêto Couto, em “Desagravos do Brasil e
glórias de Pernambuco”, Eugênia Rodrigues de Sá era filha natural do Padre Simão
Rodrigues de Sá, após o nascimento da qual havia se ordenado presbítero.151
Salienta-se
que foi após a chegada do referido padre à Capitania do Rio Grande que havia
começado a surgir na documentação referências à presença da família Rodrigues de Sá,
cujos componentes se faziam quase sempre presentes no estabelecimento de relações
rituais entre os elementos que carregavam o mesmo sobrenome – batizados e
casamentos –, mas também, e de maneira conjunta, nas solicitações de sesmarias pelas
Capitanias do Rio Grande e de Pernambuco e de chãos de terra na Cidade do Natal,
entre às décadas de 1680 e 1730. Dentre a série de nomes mais recorrentes têm-se –
além da já citada Eugênia Rodrigues de Sá –, Flávia Rodrigues de Sá, Luiza Rodrigues
de Sá, Felipa Rodrigues de Sá, Genovesa Rodrigues de Sá e Matheus Rodrigues de Sá.
Contudo, reverbera-se que não há como afirmar, categoricamente, que todos estes
agentes fossem irmãos de Eugênia Rodrigues e, portanto, filhos do Padre Simão
Rodrigues de Sá, contudo, nesse texto, sugere-se a possibilidade que todos estes
indivíduos estivessem sob a tutela152
do referido padre.
Diante disso, tem-se uma mesma parentela, excepcionalmente quando se
visualiza as relações estabelecidas entre aqueles agentes – batismo, casamento,
solicitações de sesmarias e chãos de terra. Assim, como visto no tópico anterior, a ideia
de família abarcava também aqueles atores sociais que eram incorporados ao universo
da parentela por meio das relações rituais de caráter religioso, bem como pelas alianças
política entorno da hegemonia pelo poder. Ambas as situações podiam ser
constantemente verificadas no caso dos Rodrigues de Sá, bem como nas demais famílias
150 SILVA FILHO, José Rodrigues da. Padre Simão Rodrigues de Sá, um patriarca de batina. In: II
Encontros Coloniais, Natal, 29-30, maio, 2014. p. 2. 151
COUTO, Domingos Lorêto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. In: Anais da Biblioteca
Nacional. v. 15. Rio de Janeiro: 1903. p. 84 152
De acordo com António Manuel Hespanha, a família seria constituída pelos indivíduos que estivessem
sujeitados aos poderes de mesmo pater famílias, nestas estavam englobadas todas as gerações de
parentesco consanguíneo e/ou por afinidade, interligados por vínculos morais e jurídicos, que não se
extinguiam com a maioridade, mas que permaneciam in potestate até a velhice. Para saber mais, ver
HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos
histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social. v. 28, 1993, p. 957.
228
que a esta se aliou por meio dos matrimônios, dos apadrinhamentos ou pela busca de
objetivos materiais e políticos comuns.
Entrementes, sabe-se que Eugênia Rodrigues de Sá casara-se com o Tenente
Manuel de Melo e Albuquerque, sendo este natural de Olinda153
e filho de André de
Albuquerque, que foi Capitão e Governador da Capitania da Paraíba154
– neto, portanto,
de Jerônimo de Albuquerque e de Dona Maria do Espírito Santo Arcoverde – e de sua
primeira mulher Dona Catarina de Melo – filha de Dom Cristóvão de Melo, cunhada de
seu próprio pai.155
Manuel de Melo antes de se instalar definitivamente na Capitania do
Rio Grande, foi Alferes de Infantaria de Ordenança na Capitania de Pernambuco, onde,
logo em seguida, foi provido no posto de Tenente de Infantaria de Cavalos.156
Com esta
última patente, Melo e Albuquerque havia batizado, juntamente com sua esposa,
Eugênia Rodrigues de Sá, ao seu primeiro filho, Caetano de Melo e Albuquerque, em 28
de março de 1701, o qual havia tido como padrinhos o Padre Simão Rodrigues de Sá –
avô do batizando – e Dona Catarina Leitão, esposa do Capitão Maior, Bernardo Vieira
de Melo.157
Não obstante, constatou-se também que o primeiro ofício exercido por
Manuel de Melo foi a escrivania da Câmara do Natal, em 1690, por meio de concessão
precária,158
onde havia permanecido por apenas um ano.
Visto tudo isto, cabe destacar que o Tenente Manuel de Melo e Albuquerque já
estava pela Capitania do Rio Grande, de acordo com a documentação consultada, pelo
menos sete anos antes da chegada do Padre Simão Rodrigues de Sá àquela localidade,
posto que houvesse exercido o ofício de escrivão da Câmara do Natal em 1690 e o
Padre Simão Rodrigues de Sá, segundo pontuou o historiador José Rodrigues da Silva
Filho, constar assinando a documentação da Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação apenas a partir de 1697, indicando que não necessariamente sua ocupação
no ofício de escrivão da Câmara do Natal, decorresse dos laços matrimoniais contraídos
com Eugênia Rodrigues de Sá. Salientam-se, ainda, os limites dessas constatações, pois
153 COUTO, Domingos Lorêto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. In: Anais da Biblioteca
Nacional. v. 15. Rio de Janeiro: 1903. p. 84. 154
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 284. 155
FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia Pernambucana. v. 1. In: Anais da
Biblioteca Nacional. v. XLVII, 1918. p. 325. 156
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 100. 157
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (f. 17). 158
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 62.
229
não se encontrou o registro do casamento desses dois agentes sociais, com o qual se
poderia definir se a ligação entre o Tenente Manuel de Melo e Albuquerque e Eugênia
Rodrigues de Sá fosse, mormente, anterior a sua chegada à capitania, implicando na
inserção desse ator na escrivania concelhia do Natal, hipótese essa que não seria
descartada, mas que adquiriria certa credibilidade ao se verificar que mais indivíduos
relacionados a esta família haviam sido providos na escrivania da Câmara do Natal, no
decorrer do século XVIII.
Entretanto, quando da nomeação por concessão perpétua de Francisco Álvares
de Lima para os ofícios de escrivão da câmara e de tabelião do público, judicial e notas
da Capitania do Rio Grande, em 16 de outubro de 1704,159
Manuel de Melo e
Albuquerque havia sido substabelecido procurador dos direitos de Francisco Álvares
sobre esses ofícios, em 19 de dezembro de 1705, visto que Álvares de Lima além de ser
morador em Lisboa, também exercia o ofício de tesoureiro da Junta da Inconfidência, o
que lhe inabilitava a tomar posse efetiva daqueles ofícios.160
Com essa procuração,
Manuel de Melo e Albuquerque passava a gozar do direito de tomar posse dos referidos
ofícios em nome de Francisco de Lima, bem como de arrendá-los a serventuários –
mesmo que para isso necessitasse de confirmação do Governador de Pernambuco –, e
todos os demais direitos necessários.161
A posse dessa procuração por Melo e
Albuquerque sinalizava a explicação para o fato de, mais tarde, seus dois filhos –
Caetano e Manuel de Melo e Albuquerque, sendo este homônimo do pai – serem
providos na escrivania concelhia do Natal, como também outros parentes como, por
exemplo, Sebastião Cardoso Batalha e José Barbosa de Sousa, analisados a seguir.
Desse modo, a posse de uma procuração de plenos poderes, substabelecida
pelo proprietário dos ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de tabelião público da
Capitania do Rio Grande, a um dos componentes da rede familiar dos Rodrigues de Sá,
mais uma vez, demonstra o poder de interferência sobre os rumos da administração e,
consequentemente, dos limites do mando institucional da Coroa nas áreas de conquistas,
que lhes havia imprimido a família, a parentela, os amigos e, no geral, as redes
clientelares resultantes das interações entre esses subgrupos da sociedade. Esses
elementos combinavam-se de diferentes maneiras e, de modo visível ou invisível, se
159 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60.
160 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl(s). 74-79. 161
Ibidem.
230
orquestravam para planejar e determinar os rumos da administração. Assim, mesmo que
a família Rodrigues de Sá não detivesse a propriedade nominal da escrivania concelhia
e do tabelionato de notas, possuíam a propriedade real e, portanto, factível dos ditos
ofícios, cabendo-lhes decidir e dirigir seu sistema de acesso na Capitania do Rio
Grande, no início do século XVIII. Isso havia possibilitado, ainda, que os mais
próximos fossem providos nesses ofícios, reforçando os laços familiares e, ao mesmo
tempo, contribuindo para o enobrecimento social da família, da mesma forma que
fortalecia as ligações entre seus membros. De posse da procuração de plenos poderes
da escrivania camarária do Natal, a família Rodrigues de Sá havia conseguido obter
informações privilegiadas sobre a Capitania do Rio Grande, em nível micro, e, além
disso, situavam-se macroscopicamente no universo da geopolítica do Império.
Pontua-se, ainda, de acordo com o registro de batismo de Caetano de Melo e
Albuquerque, que o seu pai, o Tenente Manuel de Melo e Albuquerque, estivesse, em
28 de março de 1701, no exercício do ofício de Provedor da Fazenda Real da Capitania
do Rio Grande,162
ou seja, quatro anos após a chegada do Padre Simão Rodrigues de Sá
àquela capitania. Nesse momento, Melo e Albuquerque já estava vinculado pelo
matrimônio aos Rodrigues de Sá, devido ao seu casamento com Eugênia, e, ao mesmo
tempo, estava reafirmando os vínculos clientelares que o ligavam ao seu sogro,
porquanto o haver escolhido para padrinho do seu primeiro filho, ao lado da esposa do
capitão-mor do Rio Grande, o que demonstrava a oficialização e a publicação das
ligações de Melo e Albuquerque com as duas mais emblemáticas figuras políticas da
Capitania naquele momento, o representante de Deus – o vigário da Freguesia – e a
esposa do representante do Rei – o Capitão Maior –, aos quais se somavam o próprio
Manuel de Melo e Albuquerque, responsável pela dimensão fazendária da capitania.
Circunstâncias essas indicativas da formação de uma rede clientelar, interligando os
responsáveis pelas três principais esferas da administração, em nível local, da Capitania
do Rio Grande.
Daí em diante, a trajetória de Manuel de Melo e Albuquerque nas estruturas
administrativas da Capitania do Rio Grande, havia incorrido em caráter duplamente
ascensional, pois se havia ocupado via concessão precária a escrivania da Câmara do
Natal, em 1690, com a patente de tenente, onze anos depois, tornar-se-ia provedor da
162 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (f. 17).
231
Real Fazenda e cinco anos mais tarde, em 20 de agosto de 1706, ascenderia para o
comando de Capitão de Infantaria de Cavalos das Ribeiras de Goianinha, Cunhaú e
Mipibú, por provisão do Capitão-mor do Rio Grande, Sebastião Nunes Colares (1701-
1708).163
Reitera-se que Melo e Albuquerque quando dessa provisão, estava a
desempenhar o posto de Capitão de Infantaria da Ordenança da Ribeira do Assú.164
Assumindo, após sua provisão para Capitão de Cavalos e quando de sua passagem pelo
ofício de provedor, diversos outros ofícios no interior do Concelho Municipal do Natal,
indo desde vereador, no qual exerceu onze mandatos – seguidamente de 1709-1714,
1716-1718, 1721-1722 –, de almotacé treze vezes – 1710,1712, 1714, 1715, 1716, 1722,
1725, 1738, 1740, 1741, 1742, 1744, 1745 –, juiz ordinário – uma única vez, em 1724 –
e de juiz de órfãos – por duas ocasiões, em 1732 e 1733.165
Ao que tudo indica a nomeação de Manuel de Melo e Albuquerque em anos
consecutivos para o ofício de vereador da Câmara do Natal, possivelmente, se havia
dado na esteira da troca de favores que envolviam os concessionários precários da
escrivania concelhia do Natal a este agente, visto que a Manuel de Melo foi concedida,
via procuração de plenos poderes por sobre esse ofício, a faculdade de nomear e
destituir os arrendatários desse ofício. Nesse sentido, a concessão precária do ofício de
escrivão a determinados indivíduos, funcionava como um vetor para a elaboração e
reforço das redes clientelares, o que implicava em contrapartidas por parte dos
beneficiados. Corroboram essas constatações, o fato de coincidirem nos dois primeiros
períodos de mandato de Melo e Albuquerque no ofício de vereador – 1709-1714 e
1716-1718 –, a duração da concessão perpétua do ofício de escrivão camarário do Natal
em Francisco Álvares de Lima, de quem seria Manuel Albuquerque procurador na
Capitania do Rio Grande.
Além disso, para alguns mandatos de oficiais da Câmara, Manuel de Melo
havia sido escolhido por eleição de barrete,166
que ocorria quando outro oficial eleito
por pelouros – o sistema normal – fosse impedido de assumir por causas pré-
estabelecidas na legislação – como parentesco, crime, dentre outros. De acordo com
Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo, as eleições de barrete seria uma via
163 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 100. 164
Ibidem. 165
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 166
Ibidem., Doc. 0630, Fl.(s) 069v-070; Doc. 0631, Fl.(s) 070-070v.
232
alternativa de ingresso nos concelhos municipais por indivíduos cujos nomes não
figuravam nas indicações do sistema de pelouro.167
Outro indício das alianças entre Manuel de Melo e os serventuários do ofício
de escrivão foi à possibilidade de ambos, no exercício dos ofícios concelhios, ficarem
responsáveis pelas chaves do cofre da câmara, onde constavam os róis dos elegíveis
para os ofícios honoráveis, como se pode verificar, em 21 de setembro de 1709, quando
o vereador mais velho, o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque, havia ficado com
uma das chaves do cofre, a segunda com o escrivão camarário Domingos Dias de
Barros e a terceira com juiz ordinário o Sargento-mor Roque da Costa Gomes.168
Ou,
quando, em 21 de novembro de 1724, uma chave havia ficado com Melo Albuquerque,
então juiz ordinário, e a segunda chave com Bento Ferreira Mouzinho, escrivão da
Câmara do Natal.169
Curiosamente, em 25 de julho de 1725, Manuel de Melo e
Albuquerque foi acusado, juntamente com o escrivão concelhio do Natal, Bento
Mouzinho, de burlarem as eleições para essa edilidade pelo Capitão-mor do Rio Grande,
José Pereira da Fonseca.170
Adir-se, ainda, que Manuel de Melo e Albuquerque, de acordo com a carta
patente de Capitão de Cavalos das Ribeiras de Goianinha, Mipibú e Cunhaú, sempre
havia agido com “grande valor e zelo” e, dentre outras coisas, havia acompanhado, com
custeio próprio da viagem, as entradas efetuadas pelo Terço do Mestre de Campo
Manuel Álvares de Morais Navarro, com dispêndios de suas “próprias fazendas”, aos
sertões da Capitania do Rio Grande,171
em um momento crucial que havia envolvido
aquela capitania na chamada “Guerra dos Bárbaros”. Por tudo isso, a concessão dessa
patente de capitão de cavalos havia sido deferida em sua pessoa, cuja posse foi-lhe
concedida por Manuel Gomes Torres, juiz ordinário da Câmara do Natal.172
Visto tudo isto, frisa-se que a escrivania da Câmara do Natal foi ocupada por
um agente social descendente de duas tradicionais famílias da Capitania de
167 CURVELO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. O Senado da Câmara de Alagoas do Sul:
governança e poder local no sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. p. 85. 168
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0501, Fl.(s)
009-009v. 169
Ibidem., Doc. 0936, Fl.(s) 047-047v. 170
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 02, Doc. 114. 171
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 100v. 172
Ibidem., Fl. 101.
233
Pernambuco, os Albuquerque – com tronco em Jerônimo de Albuquerque, que foi
Capitão-mor do Rio Grande entre 1603 e 1610 – 173
e a família Melo. Demonstra-se,
com isso, o prestígio e a influência do Padre Simão Rodrigues de Sá na Capitania do
Rio Grande, o qual havia conseguido casar uma filha natural com um neto de Jerônimo
de Albuquerque. Pontua-se, ainda, que mesmo sendo o ofício de escrivão concelhio
considerado pela historiografia como de estatuto social inferior no conjunto dos demais
ofícios desempenhados em âmago camarário, pois era considerado um “ofício
intermédio” pelo seu caráter “auxiliar” ou como um “ofício menor da justiça”, mas que
mesmo assim não tenha impedido o seu provimento e exercício por pessoas de origem
social mais abastada. O caso de Manuel de Melo e Albuquerque confirma com a
afirmação de Roberta Giannublio Stumpf sobre o fato de o ofício de escrivão camarário
“não dar nem tirar nobreza”.174
Nesse meio termo, reitera-se, mais uma vez, a necessidade de se perceber as
especificidades que envolviam, e a um só tempo distinguiam as realidades locais
vivenciadas por toda a América portuguesa e demais possessões lusas, quer no reino ou
no ultramar, responsáveis que foram por arquitetarem as relações individuais e
familiares entorno da hegemonia pelo poder, bem como das estratégias das quais se
lançavam mão cotidianamente. Com isso, indica-se que diferentemente do Porto,175
de
Almada,176
Chaves,177
Ponta Delgada,178
Coimbra,179
Gouveia,180
Vila de Cuba,181
Seda,
Terena e em Évora,182
onde o ofício de escrivão camarário havia sido ocupado por
173 TEIXEIRA, Rubenilson. Terra, casa e produção: repartição de terras da capitania do Rio Grande
(1614). In: Revista Mercator, Fortaleza, v. 13, n. 2, mai./ago., 2014. p. 108. 174
STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo
Regime português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 622. 175
SILVA, Francisco Ribeiro. O Porto e seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder. v.
1, p. 493-494. 176
VIEIRA, A. dos P. Almada no tempo dos Filipes. Administração, sociedade, economia e cultura
(1580-1640). Almada: Câmara Municipal, 1995. p. 104-106 177
BORRALHEIRO, R. C. P. O município de Chaves entre o absolutismo e o liberalismo (1790-
1834). Braga: Ed. A., 1997. p. 87. 178
RODRIGUES, José Damião. Poder municipal e oligarquias urbanas. Ponta Delgada no século
XVII. Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1994. p. 79. 179
SOARES, Sérgio da Cunha. O município de Coimbra da Restauração ao pombalismo. Poder e
poderosos na Idade Moderna. Tese (Doutorado em Política) – Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra. v. I, 1995. p. 499. 180
MOTA, Eduardo. Administração municipal em Gouveia em finais de setecentos. Gouveia:
Publicações Gaudela, 1990. p. 58. 181
BORGES, Emília Salvado. Homens, fazenda e poder no Alentejo do setecentos. Lisboa: Colibri,
2000. p. 19, 323. 182
FONSECA, Teresa. O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas
administrativas. In: CUNHA, Mafalda Soares da & FONSECA, Teresa (dir.). Os Municípios no
234
figuras nobres, mas de parcas condições,183
na Capitania do Rio Grande, esse ofício foi
preenchido por algumas figuras de proa da Natal setecentista. O que também se
constatou para os casos da Vila de Santa Cruz do Aracati, na Capitania do Siará
Grande184
e em Alagoas do Sul.185
Essas constatações implicavam, por parte dos agentes sociais e de suas
parentelas, a estarem atentos nas possibilidades oferecidas por todos os lócus de poder,
mesmo que estivessem inseridos em contextos econômicos e sociais diversos. Isto,
talvez, tenha sido vislumbrado por Manuel de Melo e Albuquerque ao assumir a
escrivania camarária do Natal, a qual seria ao longo da primeira metade do século XVIII
ocupada também por dois dos seus três filhos.
Acresce-se a isso, que o ofício de escrivão concelhio do Natal era considerado
estratégico para a obtenção de informações privilegiadas, quiçá nos destinos das
próprias eleições camarárias, já que ao escrivão coubesse à guarda de uma das chaves
do cofre onde ficavam os róis dos elegíveis, como visto no capítulo anterior, que não
raro, podiam suscitar em ilegalidade, como será constatado no capítulo seguinte,
envolvendo, inclusive, Manuel de Melo e Albuquerque e o então escrivão da Câmara do
Natal, Bento Ferreira Mouzinho.
Além disso, o ofício de escrivão camarário foi desempenhado,
concomitantemente, com outros ofícios no interior do Concelho do Natal, sobretudo
com o ofício de almotacé, como se viu anteriormente. Aponta-se também que não
existiam restrições, no contexto analisado, quanto à questão de parentesco entre os
ocupantes da escrivania camarária e outros oficiais de provimento eletivo – juiz
ordinário, vereador e procurador. Diferentemente da taxação jurídica que recaía sobre os
Portugal Moderno. Dos Forais Manuelinos às Reformas Liberais. Lisboa: Edições Colibri e
CIDEHUS/EU, 2005. p. 76. 183
COELHO, Maria Helena da Cruz & MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder Concelhio. Das
origens às cortes constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. p. 49. 184
NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: práticas de nobilitação e
hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. p. 122 185
CURVELO, Arthur A. S. C. O Senado da Câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no
Sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2014. p. 77-78.
235
ofícios honoráveis186
e que foram insistentemente cumpridas pelos camarários do Natal,
como se pode percebe da leitura dos termos de vereação dessa edilidade.187
Outro tutelado do Padre Simão Rodrigues de Sá e, possivelmente, concunhado
do Tenente Manuel de Melo e Albuquerque – à época, ainda procurador de Francisco
Álvares de Lima sobre os direitos de propriedade dos ofícios de escrivão camarário e do
tabelionado de notas da Capitania do Rio Grande –, que havia ocupado por concessão
precária a escrivania concelhia da Cidade do Natal, foi Sebastião Cardoso Batalha,188
em três momentos distintos, primeiro, entre 1717-1718, segundo em 1729 e, pela última
vez, entre 1737-1738.189
Sebastião Batalha era casado com Flávia Rodrigues de Sá,190
com quem tivera quatro filhos, Augustinho Cardoso Batalha,191
Antônio Cardoso
Batalha,192
Ângela Custódia193
e Maria do Nascimento.194
A primeira referência à
presença de Sebastião Cardoso na Capitania do Rio Grande, data de 07 de março de
1705, quando foi provido por concessão precária durante três meses no ofício de
meirinho de campo, pelo Capitão-mor do Rio Grande, Antônio de Carvalho e Almeida
(1701-1705).195
Nesse ofício, Sebastião Batalha havia sido encarregado de proceder à
realização de prisões, citações e execuções de mandados judiciais que fossem
solicitados pelos oficiais de justiça.196
De acordo com aquela carta de provisão,
Sebastião Cardoso Batalha era provido nesse ofício por haver findo o tempo da provisão
de Antônio da Gama Luna.197
Seis meses depois de sua nomeação para meirinho de
186 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1984. Liv. I. Tít. 62. 187
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 188
Ibidem., p. 141. 189
Ibidem., p. 141, 144, 193, 226, 231, 265. 190
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (29v) 191
Ibidem. 192
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (40). 193
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (25). 194
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1727-1740. SAM 2383. 195
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl. 90. 196
XIMENES, Expedito Eloísio. Autos de Querela e Denúncia...: edição de documentos judiciários do
século XIX no Ceará para estudos filológicos. Fortaleza: LCR, 2006. p. 132. 197
Fundo documental do IHGRN, loc. cit.
236
campo, em 07 de setembro de 1705, na Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação do
Rio Grande, batizava ao seu filho primogênito, Augustinho Cardoso Batalha.198
Em 01 de janeiro de 1711, Sebastião Batalha havia sido eleito avaliador da
Câmara do Natal, em substituição a Maurício Bocarro Ribeiro que se encontrava
impedido de exercer esse ofício,199
cuja posse foi-lhe concedida em 05 de janeiro
daquele mesmo ano.200
No ano seguinte, em 24 de maio de 1712, Batalha havia, mais
uma vez por meio de eleição, sido escolhido para ser olheiro em Natal – uma espécie de
fiscal – para a cobrança de um tributo por cada rês que fosse abatida naquela cidade.201
Diferentemente de Manuel de Melo e Albuquerque que havia ingressado na
Câmara do Natal no ofício de escrivão concelhio, seu concunhado, Sebastião Cardoso
Batalha, houvesse ingressado em um ofício de menor prestígio social dentro do universo
camarário, como era o de meirinho de campo. Conjectura-se, que essa situação se
devesse ao fato de que a família já possuísse Manuel de Melo e Albuquerque como
representante dos interesses desse grupo na Câmara do Natal e que, por isso, nem todos
os membros de um mesmo clã pudessem dela participar.
Evidencia-se que a tez de Sebastião Cardoso Batalha era mestiça, como se
pode constatar no registro de casamento de sua neta, Rosa Maria da Encarnação, com o
Alferes Manuel Gonçalves Branco, no qual a nubente havia sido descrita como que
possuindo “casta de neófito” para ambas as ascendências.202
De acordo com Raphael
Bluteau, o termo “neófito” seria utilizado pelos eclesiásticos para se referirem ao gentio
recém-convertido à fé cristã.203
No entanto, ressalta-se que em nenhum dos três registros de batismo dos filhos
de Sebastião Cardoso Batalha fez-se referência expressa a sua possível origem
indígena.204
Talvez, isso se devesse ao fato de que o celebrante desses ritos religiosos
198 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (29v) 199
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0551, Fl.(s)
030-030v. 200
Ibidem., Doc. 0552, Fl.(s) 030-030v. 201
Ibidem., Doc. 0612 Fl.(s) 060-060v. 202
SILVA, Daisy de Assis. Casaram-se solenemente em face da igreja: Matrimônio, mestiçagens e
dinâmicas de apadrinhamento na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-61). Monografia
(Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 38. 203
Ibidem. 204
Livro de Batismos, op. cit., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (29v); IAHGP-FIA-CX01. DOC0057
(40); IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (25).
237
fosse o próprio tutor de Cardoso Batalha, ou seja, o Padre Simão Rodrigues de Sá.205
Também não foi possível constatar referências à cútis de Sebastião Cardoso ou mesmo
de seus quatro filhos nos registros de casamento deles.206
Interessante salientar que dois
filhos de Sebastião Cardoso Batalha se casaram com dois filhos de Francisco da Gama
Luna,207
que era o ferreiro da Cidade do Natal e o responsável pelas obras de ferragem
da câmara dessa municipalidade.208
Assim, em 06 de junho de 1735, Antônio Cardoso
Batalha casou-se com Ana Maria da Apresentação209
e, quatro anos depois, em 25 de
novembro de 1739, Maria do Nascimento, filha de Sebastião Batalha, contraiu
matrimônio com Domiciano da Gama Luna.210
Reverbera-se que em nenhum desses
registros constava a indicação a tonalidade da pele ou a ascendência dos envolvidos,
diferentemente do que havia ocorrido no registro de casamento da neta de Sebastião
Batalha.
A historiadora Daisy de Assis Silva havia pontuado que, para o caso dos
assentos matrimoniais, a não referência à cor dos nubentes expressamente nos registros
não significava, necessariamente, que os mesmos fossem brancos, mas que tal atitude
estivesse ligada as questões de “conveniência”, que muito dependiam da condição e do
prestígio social dos envolvidos.211
Reitera-se que no momento do casamento de sua
neta, Sebastião Cardoso Batalha já gozasse de significativo prestígio e distinção social
na Natal da primeira metade do século XVIII, pois já havia desempenhado os ofícios de
escrivão da câmara e de tabelião público,212
além de estar vinculado a uma das mais
importantes famílias locais, que figuravam em diversos postos das ordenanças, da
própria câmara e na igreja da Cidade do Natal.
205 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX01. DOC0057
(29v); IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (40); IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (25). 206
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1782. DSC02678; Ibidem., Livro de Casamentos, 1727-1740. DSC 02743; DSC 02775;
SAM 2383. 207
Ibidem., SAM 2383; DSC 02775. 208
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 1394, Fl.(s)
008-008v; Doc. 1648, Fl.(s) 036-036v; Doc. 1666, Fl. 043. 209
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, op. cit., DSC 02775. 210
Ibidem., SAM 2383. 211
SILVA, Daisy de Assis. Casaram-se solenemente em face da igreja: Matrimônio, mestiçagens e
dinâmicas de apadrinhamento na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-61). Monografia
(Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 38. 212
LOPES, loc. cit.
238
Como apontado por Charles Boxer, em Pureza de sangue e raças infectas, foi
comum “[...] a insistência na ‘limpeza de sangue’ como qualificação essencial para a
ocupação de cargos e funções administrativas da Coroa, [...] foram características do
Império ultramarino, em diversos graus”.213
Devido a esse princípio, os indivíduos de
origem mourisca, judaica e negra foram corriqueiramente excluídos da participação do
universo administrativo luso por todas as partes do Império, mas não os agentes de
origem indígena, pois, como havia afirmado Charles Boxer, “[...] era mais fácil [obter a
dispensa] se o candidato tivesse algum remoto antepassado ameríndio ou protestante
europeu de raça branca do que se lhe corresse nas veias sangue judeu ou negro”.214
Ressalta-se, ainda, que Sebastião Cardoso Batalha havia adquirido três
sesmarias nos arredores da Cidade do Natal, ao longo da primeira metade do século
XVIII.215
A posse de terras, como apresentadas por José Damião Rodrigues, no seu
livro Histórias Atlânticas: Os Açores na primeira modernidade, além de ser “o
fundamento material do poder e da diferenciação social”, era o grande responsável pela
“hierarquização em ‘estados’ ou ‘ordens’ que assentava no reconhecimento de um
status e se visualizava na honra e forma de tratamento devido às pessoas de
qualidade”.216
Somam-se a isso que Batalha houvesse detido a concessão precária do
ofício de tabelião do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande,217
e em 1715
os dois cartórios da Cidade do Natal, que atuavam tanto na área cível, quanto criminal,
também estavam em suas mãos,218
bem como havia sido, mais tarde, provido por
concessão temporária no ofício de escrivão dos órfãos.219
Concomitantemente às provisões de Sebastião Batalha em ofícios civis da
administração havia ocorrido também sua nomeação para postos nas companhias de
213 BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. BARRETO, Anna Olga de Barros
(trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 282. 214
Ibidem., p. 273. 215
Carta de sesmaria doada a Sebastião Cardoso Batalha em 03 de setembro de 1706. Plataforma SILB –
RN 0947; Carta de sesmaria doada a Sebastião Cardoso Batalha em 09 de setembro de 1718. Plataforma
SILB – RN 0973. Carta de sesmaria doada a Sebastião Cardoso Batalha em 16 de janeiro de 1753.
Plataforma SILB – RN 1036. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:
24/09/2017. 216
RODRIGUES, José Damião. Histórias Atlânticas: Os Açores na primeira modernidade. Ponta
Delgada: Centro de História de Além-mar, 2012. p. 83. 217
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720) Fl. 24v, 36; Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 08
(1738 – 1743). Fl. 54. 218
Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06 (1713-1720) Fl. 24v. 219
Ibidem., Fl. 76.
239
ordenanças locais. Primeiramente, para a patente de tenente220
e, em seguida, para
Sargento-mor.221
Com tudo isso, comprovadamente, Cardoso Batalha ter-se-ia
nobilitado no seio da sociedade da Natal Setecentista. Salienta-se que o patrimônio
formado por Sebastião Cardoso Batalha tenha se constituído, além de terras, ofícios
administrativos e patentes nas ordenanças locais, pela propriedade de escravos, visto
que em 10 de maio de 1751, houvesse sepultado um escravo originário da Costa da
Mina, por nome Simão, na Igreja do Rosário dos Homens Pretos, na Cidade do Natal.
222 Diante de tudo isso, observa-se a trajetória ascensional galgada por Sebastião
Cardoso Batalha, o que demonstrava que a pecha de “neófito” que lhe havia sido
imputada quando do casamento de sua neta, não se tornou impeditivo para o seu
processo de nobilitação e, possivelmente, “embranquecimento”.
A família Cardoso Batalha gozava não apenas de prestígio social na Natal
Setecentista, mas também de reconhecimento político. Demonstra isso o rol de
testemunhas do casamento do Tenente Antônio Cardoso Batalha com Ana Maria da
Apresentação. Nesse matrimônio se fizeram presentes, além dos pais dos nubentes, o
Capitão-mor da Capitania do Rio Grande, João de Teive Barreto e Meneses, o provedor
da Fazenda Real, o Dr. Timóteo de Brito Quinteiro, o Comissário Geral de Cavalaria,
Manuel de Melo e Albuquerque, e sua esposa, Dona Eugênia Rodrigues de Sá – tia do
noivo –, bem como o primo, o Sargento-mor Caetano de Melo e Albuquerque e sua
esposa, Violante Rodrigues de Sá.223
Diante de tudo isso, verifica-se que Sebastião Cardoso Batalha, em face de seu
concunhado Manuel de Melo e Albuquerque, tivera uma carreira modesta na
administração local da Capitania do Rio Grande, mas caracteristicamente ascensional e,
portanto, emblemática. Essa constatação poder-se-ia ligar ao fato, além da tonalidade de
sua cútis, de ser Melo e Albuquerque oriundo de uma poderosa e importante família da
Capitania de Pernambuco, cujas redes se espraiavam pelas demais Capitanias do Norte,
e cuja aliança matrimonial com a filha do Reverendo Vigário da Cidade do Natal, o
Doutor Simão Rodrigues de Sá, possivelmente, houvessem contribuído sobremaneira
220 Fundo documental do IHGRN. Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17
(1728 – 1736). Fl. 2. 221
Ibidem., Fl. 3v. 222
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759; Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação /
Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de Casamentos, 1785. DSC. 02677 223
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, op. cit., DSC 02775.
240
para o progresso de sua trajetória na administração da Capitania do Rio Grande. De
igual modo, os vínculos que existiam entre Cardoso Batalha e o Padre Simão Rodrigues,
possivelmente abriram-lhe muitas portas que, provavelmente, não haveria conseguido
galgar sem o apoio político de seu possível sogro.
O terceiro tutelado do Vigário Simão Rodrigues que também havia
desempenhado por concessão precária o ofício de escrivão da Câmara do Natal, foi
José Barbosa de Sousa, em 01 de março de 1709,224
quando Manuel de Melo e
Albuquerque ainda detinha a procuração dos direitos de nomeação e posse do
proprietário desse ofício, Francisco Álvares de Lima.225
Casado com Luíza Rodrigues
de Sá,226
o primeiro registro da presença de José Barbosa de Sousa na Capitania do Rio
Grande data de 03 de outubro de 1706, quando havia requerido uma sesmaria na Cidade
do Natal, alegando serem essas terras devolutas.227
Possivelmente, essa petição
demarcasse a chegada de José Barbosa ao Rio Grande apenas com sua esposa Luíza de
Sá, pois em de 28 de fevereiro de 1707, batizava na Paróquia de Nossa Senhora da
Apresentação do Rio Grande, seu primeiro filho, José Barbosa de Sousa – homônimo de
seu pai –, sendo padrinhos o Padre Simão Rodrigues de Sá e Maria Felipa Neri.228
Ressalta-se que do matrimônio entre José Barbosa de Sousa e Luíza Rodrigues
de Sá, nasceram, ainda, dois outros filhos, Atanásio, batizado em 16 de maio de 1709229
e Rosa Maria, que recebeu os santos óleos em 02 de junho de 1711.230
Pondera-se
também que depois do nascimento de seus dois primeiros filhos e quando de sua
provisão para os ofícios de escrivão, distribuidor e contador da Câmara do Natal,
Barbosa de Sousa almejasse se fixar definitivamente na Capitania do Rio Grande. Logo,
em 28 de janeiro de 1709, solicitasse uma gleba de terras ao Concelho do Natal para
construir sua casa.231
Ao que parece, José Barbosa havia tido uma passagem rápida pelo
224 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 5 (1708
– 1713). Fl. 17. 225
Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707). Fl(s). 74-79. 226
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (34v) 226
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (39). 227
Carta de sesmaria doada a José Barbosa de Sousa em 03 de outubro de 1706. Plataforma SILB – RN
0949. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/09/2017. 228
Livro de Batismos, op. cit., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (34v). 229
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (39). 230
Ibidem.,IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (46) . 231
Carta de sesmaria doada a José Barbosa de Sousa em 28 de janeiro de 1709. Plataforma SILB – RN
0957. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/09/2017.
241
ofício de escrivão camarário do Natal, acumulando esse ofício com de contador e
distribuidor do Senado da Câmara do Natal, apenas no ano de 1709.232
O patrimônio de Barbosa de Sousa não foi de todo modesto, pois além de
acumular três ofícios na administração local, havia sido possuidor de duas sesmarias e
senhor de alguns escravos. Sobre esses cativos, têm-se apenas os registros de três
escravos, cujas nações ou a possível origem não foram relatadas no documento. Assim,
constava no livro de registros de óbitos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, na Capitania do Rio Grande, que José Barbosa era proprietário de uma
escrava por nome Dorotéia, falecida em 24 de junho de 1755, quando contava apenas
dezesseis anos de idade.233
Quatro anos mais tarde, em 27 de outubro de 1759, Barbosa
de Sousa sepultava mais uma escrava por nome Inocente, que era filha de outra sua
escrava, chamada Antônia.234
Mesmo que se tenha identificado apenas três escravos,
José de Sousa poderia possuir mais cativos, sobretudo para trabalharem na cultura da
mandioca com a qual aquele senhor esteve envolvido, como se verá a seguir.
Entretanto, mesmo com aquela passagem rápida pelos ofícios da administração
concelhia da Capitania do Rio Grande, José Barbosa de Sousa havia, possivelmente,
traçado a sua vida nas lides com a farinha de mandioca, ou no cultivo desse tubérculo,
ou mesmo como comerciante do mesmo, uma vez que em 17 de junho de 1711, em
termo de requerimento, Barbosa de Sousa, juntamente com Francisco da Gama Luna,
Antônio da Gama Luna, Sebastião Cardoso Batalha, Francisco Pinheiro Teixeira e
vários outros moradores da Capitania do Rio Grande, queixavam-se das determinações
do Corregedor, Jerônimo Correia do Amaral, que havia ordenado a vinda para a
Capitania do Rio Grande de padrões de medidas de meio alqueire e quarta, algo que,
segundo aqueles agentes, provocavam grandes prejuízos.235
Esses homens aproveitaram
o mesmo requerimento e solicitaram que os oficiais da Câmara do Natal resolvessem
também os problemas decorrentes dos altos valores da farinha.236
232 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 5 (1708
– 1713). Fl. 17. 233
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759. 234
Ibidem. 235
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0575, Fl(s).
041v-042v. 236
Ibidem.
242
O patrimônio de José Barbosa de Sousa, assim como de seus possíveis
concunhados, o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque e o Sargento-mor Sebastião
Cardoso Batalha, são indicativos do processo de sedimentação da elite da Capitania do
Rio Grande, no início do século XVIII, cujas estratégias de formação e composição dos
bens – materiais e/ou simbólicos – basearam-se no acúmulo de terras, escravos, gado –
vacum ou cavalar –, no comércio de gêneros alimentícios, e de recepção de patentes
militares nas companhias de ordenanças locais. A esses se somavam também o
exercício dos ofícios administrativos, tanto honoráveis quanto remunerados, mesmo que
como havia afirmado Roberta Stumpf os ofícios não fossem bens patrimoniáveis (livres
ou vinculados), mas que podiam gerar renda aqueles que o detivesse.237
A isso se
somava o prestígio decorrente de andar entre os da governança da terra, o que fazia
desses ofícios cobiçados pelas famílias locais e por alguns agentes sociais já detentores
de certo cabedal.
Fenômeno semelhante a esse havia ocorrido na Capitania de São Paulo no
início do século XVIII, como havia pontuado Ilana Blaj, ao referir-se ao crescente
processo de mercantilização dessa praça, a qual havia se atrelado a formação de uma
sociedade inflexivelmente hierarquizada, gestada na esteira das interações mercantis
estabelecidas entre a Vila de São Paulo de Piratininga e as regiões mineradoras, tanto
nas Minas, quanto em Cuibá.238
Em outro texto, Blaj havia assegurado também que a
consolidação das fortunas constituídas, sobretudo, por meio das atividades mercantis,
havia passado a ser considerada essencial para a escolha e a nomeação para ofícios de
maior prestígio social.239
Contudo, verifica-se, ainda, para o caso do ofício de escrivão camarário do
Natal, que o ingresso nesse ofício ter-se-ia transformado em vetor de acesso às mercês
que eram concedidas pela Câmara do Natal ou mesmo por intermédio dessa, como os
chãos de terras, as indicações para as patentes militares das companhias de ordenanças
locais, os ofícios honoráveis dos concelho, bem com pelas indicações que os
componentes dessa instituição pudessem realizar para o provimento de ofícios de justiça
237 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo
Regime português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 624- 625. 238
BLAJ, Ilana. Agricultores e comerciantes em São Paulo nos inícios do século XVIII: o processo de
sedimentação da elite paulistana. In: Revista Brasileira de História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998. 239
Ibidem., A trama das tensões: O processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São
Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Fapesp, 2002. p. 293.
243
– tabelião público ou meirinho de campo – ou de fazenda – almoxarife, alcaide ou
escrivão da fazenda.
Na terceira e quarta década do século XVIII, havia exercido o ofício de
escrivão camarário do Natal dois netos do Padre Simão Rodrigues de Sá, filhos de
Eugênia Rodrigues e do Comissário Geral de Cavalaria Manuel de Melo e
Albuquerque.240
O primeiro deles foi o Sargento-mor Caetano de Melo e Albuquerque,
mediante provisão por concessão precária, em 1737,241
o qual foi sucedido, quase uma
década depois, por seu irmão e homônimo de seu pai, o Capitão Manuel de Melo e
Albuquerque, entre 1746-1747.242
Como mencionado anteriormente, Caetano de Melo e Albuquerque havia sido
batizado em 28 de março de 1701,243
datando, possivelmente, desse mesmo ano seu
nascimento na Capitania do Rio Grande, posto que em 01 de outubro de 1718, assentava
praça de soldado em uma companhia da tropa paga da Cidade do Natal, contando, nessa
altura, dezessete anos de idade.244
Os assentamentos de praça configuravam-se como
registros do ingresso de indivíduos no posto de soldados das companhias de ordenanças
ou nas tropas pagas das localidades onde exerciam suas atividades militares. Esses
documentos caracterizam-se pela riqueza de informações sobre os detalhes físicos dos
agentes históricos, descrevendo a estatura, a cútis, o tipo de cabelo e peculiaridades
relacionadas ao fenótipo dos agentes sociais. Além disso, os assentamentos de praça
trazem dados sobre a filiação, a naturalidade e os valores que eram auferidos pelos
militares e quanto deviam arcar com as despesas de seus uniformes. Por tudo isso, se
constituem em conjuntos documentais ricos, que podem contribuir não apenas para o
estudo numérico dos contingentes militares locais, mas também para se perceber a
inserção étnica das tropas que guarneciam as fronteiras do Império. Para o caso da
Capitania do Rio Grande, têm-se diversos livros de assentamentos de praça que ainda
não foram estudados, sendo um universo possível de investigação que ainda se encontra
em aberto.
240 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. FIA. CX01. DOC. 0057 (f.
17), IAHGP. FIA. CX01. DOC 0057 (f. 35v) 241
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 4, Doc. 227. 242
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 271, 276. 243
Livro de Batismos, op. cit., IAHGP. FIA. CX01. DOC. 0057 (f. 17). 244
Livro Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN.
244
Contudo, tentou-se, a partir daqueles conjuntos documentais, observar os
aspectos fenotípicos dos escrivães do Concelho do Natal, no período em análise, com a
finalidade de conceder além de nome e sobrenome, os traços físicos desses agentes
sociais da escrita na Capitania do Rio Grande. Entretanto, pontua-se que dos 42
indivíduos que exerceram a escrivania camarária do Natal, apenas dois foram
identificados nos Livros de Assentamentos de Praças. No entanto, a exiguidade desses
números pode ser compreendida quando atenta-se para a afirmação de Kalina Vanderlei
sobre a divisão de a estrutura militar que vigorava para o Império. De acordo com essa
autora, o regimento prescrevia que a organização dos efetivos seria constituída pelas
“[...] tropas profissionais e pagas, regulares, a 1ª linha; e as unidades de cidadãos,
gratuitas, temporárias, resquícios das hostes medievais e baseadas nos recrutamentos
dos concelhos, que são as ordenanças [...], a 2ª linha”.245
Nesse sentido, como se verá
adiante, parte significativa dos escrivães do Concelho Municipal do Natal era portadores
de patentes das companhias de ordenanças locais, muitos dos quais ascenderam nessa
hierarquia durante e após o exercício do ofício de escrivão camarário.
Não obstante, localizaram-se apenas dois assentamentos de praça de homens
que ocuparam a escrivania concelhia do Natal. Dentre esses, cita-se o assentamento de
Caetano de Melo e Albuquerque, cujo registro traça o perfil fenotípico desse agente.
Nessa matrícula, consta que Caetano Albuquerque, aos dezessete anos de idade, em 01
de outubro de 1718, tinha “cor alva de rosto, cabelo crespo e reto, sobrancelhas
arqueadas e grossas”.246
Cinco anos depois, contando, possivelmente, vinte e dois anos
de idade, em 04 de setembro de 1723, Caetano de Melo assumia o primeiro ofício
camarário de sua trajetória administrativa local na Capitania do Rio Grande, ao
substituir Antônio Henriques de Sá no ofício de tesoureiro dos defuntos e ausentes.247
Em 30 de novembro desse mesmo ano, Caetano de Melo e Albuquerque foi nomeado
para a patente de Sargento-Maior do Regimento da Gente de Pé do Coronel Antônio
Pinto da Cruz, da Ribeira do Apodi.248
245 SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:
Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.
39. 246
Livro de Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN. 247
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 165. 248
Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720
– 1728). Fl. 92.
245
A mesma carta patente trazia a guisa, ainda, toda a extensa lista de serviços
militares prestado por Caetano Albuquerque pela Capitania do Rio Grande, no decorrer
de apenas vinte e dois anos de idade. Essa descrição tinha em vista servir de justificativa
para a concessão da patente de Sargento-maior, mesmo que seu ingresso fosse
relativamente recente nas estruturas militares da terra, nessa carta obliterava-se o tempo
dos serviços em favor de sua extensão e quantidade, prestados à Sua Majestade,
sobretudo com gastos substanciais das “próprias fazendas” do nomeado. Prosseguia a
carta relatando que Caetano de Melo e Albuquerque havia servido em diversos postos, a
começar pelo de Alferes da Companhia de Cavalos de Estevão Velho de Melo, depois
de Capitão de Infantaria da Gente de Pé da Cidade do Natal, cuja companhia havia
organizado as suas próprias custas para se apresentar durante os momentos festivos e na
semana santa, pela Cidade do Natal.249
Delongava-se a carta patente, rememorando o assentamento de praça de
soldado de infantaria paga, citado anteriormente, no qual Caetano de Melo e
Albuquerque havia servido em uma das companhias que havia sido reduzido o Terço
dos Paulistas da Campanha do Assú, do qual era Capitão Francisco Ribeiro Garcia,
ascendendo, na sequência, ao posto de cabo de esquadra.250
Mais tarde, Caetano de
Melo transferir-se-ia, com esse último posto, para a Companhia de Mateus Mendes
Pereira, onde estava a servir quando de sua nomeação por carta patente para o posto de
sargento-maior.251
Nesse meio termo, Melo e Albuquerque também auxiliou na
guarnição da Fortaleza da Barra do Rio Grande, quando das ausências do capitão
responsável, havia contribuído também como cabo de tropa, na prisão de criminosos e
em várias outras diligências solicitadas pela Fazenda Real, o promover, inclusive,
diversas entradas, com recursos próprios, aos sertões do Assú e do Apodi e em suas
respectivas ribeiras.252
Por todos esses serviços, o Capitão-mor do Rio Grande, José
Pereira da Fonseca (1722-1728), o elegia para o posto de sargento-maior.253
Esse longo
rol de serviços, justificavam-se, segundo Kalina Vanderlei, devido os sargentos-mores
de a tropa paga possuírem como função basilar no disciplinamento dos terços,
249 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720
– 1728). Fl. 92. 250
Ibidem. 251
Ibidem. 252
Ibidem. 253
Ibidem.
246
garantindo “eficiência, disciplina, e lealdade” devidos a falta de confiança das tropas
burocráticas – as ordenanças.254
Pontua-se, ainda, que Caetano de Melo e Albuquerque havia sido grande
possuidor de terras pela Capitania do Rio Grande, ao reter a propriedade total de seis
sesmarias.255
Curioso seria que no primeiro requerimento dessas posses, Caetano
Albuquerque juntamente com a viúva Maria Fernandes de Araújo, em 16 de abril de
1706, na Ribeira do Caranhú,256
tivesse apenas cinco anos de idade, como se pode
verificar a partir do cruzamento do registro de seu batismo e do assentamento de praça
de soldado.257
Tal solicitação, em meio a essa peculiaridade, seria indicativa,
provavelmente, das estratégias de enobrecimento e de formação do patrimônio familiar
de que lançavam mão a elite local na Capitania do Rio Grande, no início do século
XVIII. Dado que mesmo que a solicitação fosse efetuada com o nome de Caetano de
Melo e Albuquerque encabeçando o requerimento e secundado pelo da viúva Maria
Fernandes de Araújo, as justificativas de que as referidas terras estavam devolutas e que
ambos pretendiam criar gados, apresentadas pelos suplicantes, foram suficientes para
induzir a concessão da dita gleba.258
Mais uma vez tem-se o poder de influência da
família e das redes clientelares sobre o universo de possibilidades dos agentes sociais
na América portuguesa, particularmente no que se refere à sedimentação do patrimônio
dos indivíduos, posto que se cogite que a viúva Maria Fernandes de Araújo pertencesse
à rede clientelar que envolvia os Rodrigues de Sá e os Melo e Albuquerque, pois
sempre figurava entre os demais componentes dessas famílias, quer fossem em
254 SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:
Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.
80. 255
Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB
– RN 0053; Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 08 de setembro de 1717.
Plataforma SILB – RN 0385. Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 10 de
dezembro de 1736. Plataforma SILB – RN 0453; Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e
Albuquerque em 29 de outubro de 1739. Plataforma SILB – RN 0483. Carta de sesmaria doada a
Caetano de Melo e Albuquerque em 22 de novembro de 1730. Plataforma SILB – RN 1122; Carta de
sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 30 de dezembro de 1736. Plataforma SILB – RN
1161. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 256
Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB
– RN 0053. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 257
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. FIA. CX01. DOC. 0057 (f.
17); Livro de Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN. 258
Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB
– RN 0053. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017.
247
solicitações de terras ou em cerimônias religiosas de batismo e de casamento, nesse
último caso, extensivamente visualizados no Gráfico 12.
Na carta de sesmaria solicitada por Maria Fernandes e Caetano Albuquerque,
em 16 de abril de 1706, de terras na Ribeira do Caranhú, faziam-se referências
expressas aos sesmeiros confrontantes com as terras pleiteadas, o Vigário Simão
Rodrigues de Sá e José Monteiro, que haviam efetuado o requerimento de título de
sesmaria oito dias antes, em 08 de abril de 1706.259
Ressalta-se que Caetano de Melo e
Albuquerque era neto, pela via materna, do Reverendo Simão Rodrigues,260
e José
Monteiro era casado com Maria Felipa Neri, filha da viúva Maria Fernandes de
Araújo.261
Adir-se, ainda, que o Padre Simão Rodrigues de Sá e Maria Felipa Neri
foram padrinhos, em 28 de fevereiro de 1707, de José, filho de Luíza Rodrigues de Sá e
de José Barbosa de Sousa262
– que foi escrivão da Câmara do Natal, em 1709.263
Três
meses depois dessas concessões, em 23 de julho de 1706, também nas margens do Rio
Caranhú, obtiveram data de sesmaria Matheus Rodrigues de Sá e Domingos Lopes.264
Presume-se que Matheus de Sá fosse filho do Padre Simão Rodrigues e, portanto, irmão
de Felipa, Luíza, Flávia, Eugênia e Genovesa Rodrigues de Sá.
No entanto, verifica-se que, em 06 de novembro de 1708, José Monteiro e
Maria Fernandes de Araújo haviam sido padrinhos de Flora, filha de Violante Dias e de
seu esposo Matheus Rodrigues de Sá.265
Reitera-se que um ano antes, Matheus
Rodrigues, no dia 08 de setembro de 1707, havia se vinculado ao Capitão Manuel de
Melo e Albuquerque e a Eugênia Rodrigues de Sá por meio do apadrinhamento de seu
filho Manuel,266
o qual viria a servir como escrivão da Câmara do Natal entre 1746-
1747.267
Juntamente com Matheus Rodrigues de Sá, solicitou também posse daquela
259 Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB
– RN 0053. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 260
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (f. 17). 261
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (34v). 262
Ibidem. 263
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 5 (1708
– 1713). Fl. 17. 264
Carta de sesmaria doada a Mateus Rodrigues de Sá em 23 de julho de 1706. Plataforma SILB – RN
0055. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 265
Livro de Batismos, op. cit., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (38v). 266
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (35v). 267
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 226.
248
sesmaria Domingos Lopes,268
que era casado com Dória Fernandes de Souza,269
sendo
esta filha da viúva Maria Fernandes de Araújo.270
Desse modo, mais uma vez, percebe-se o sobrepeso das relações familiares que
muito tendiam para se transformarem em relações do tipo clientelar. Nesse caso em
análise, deslindam-se as astúcias encampadas pelos agentes sociais para obterem
vantagens materiais – como a posse de terras –, a partir da organização cruzada dos
componentes familiares que, no geral, formavam uma mesma rede clientelar e, no
limite, uma mesma família, com a finalidade de burlarem a fiscalização régia quanto ao
acúmulo de terras no interior de um mesmo clã, dispunham para isso, os seus
integrantes em solicitações de terras distintas. Essas constatações ratificam a afirmação
de António Manuel Hespanha sobre o sentido alargado de família para o período
Moderno, no interior da qual se tinha elementos de diversas gerações vinculados por
consanguinidade – agnados – ou por afinidade – cognados –, cujas interações eram
cimentadas por deveres recíprocos, traçando, com isso, os limites da relevância social
de cada estirpe.271
Ainda de acordo com aquele autor, as relações familiares perfaziam
uma porção das relações patrimoniais, posto que fizessem “[...] os filhos parte da pessoa
do pai, só este era titular de direitos e obrigações, adquirindo para si os direitos
patrimoniais dos filhos e sendo responsável pelas suas perdas [...]”.272
Papéis esses
desempenhados pelo Padre Simão Rodrigues de Sá e pelo Comissário Geral de
Cavalaria Manuel de Melo e Albuquerque, porventura, os principais mentores dos
estratagemas de que lançavam mão seus filhos e filhas, ou mesmo em nome destes, na
Capitania do Rio Grande, em busca de enobrecimento, prestígio, poder e status, no
decorrer do século XVIII.
O Sargento-mor Caetano de Melo e Albuquerque possuía, portanto, um
patrimônio formado além da posse de terras e de patentes das companhias de
ordenanças, pela remuneração advinda do posto de sargento maior na tropa paga e do
268 Carta de sesmaria doada a Domingos Lopes em 23 de julho de 1706. Plataforma SILB – RN 0055.
Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 269
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069
(13). 270
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (31v). 271
HESPANHA, António Manuel. A Família. Fundamentos Antropológicos da família do Antigo
Regime: os sentimentos familiares. In: MATOSO, José (dir.). In: HESPANHA, António Manuel
(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 246-247. 272
Ibidem., p. 248.
249
obtinha do provimento precário no ofício de escrivão do Concelho Municipal da Cidade
do Natal, pela propriedade de gados e escravos. Confirmava a posse desses dois últimos
conjuntos de bens, as alegações constantes nas cartas de sesmarias requeridas pelo
Sargento-mor Caetano Albuquerque, segundo o qual justificava possuir gados vacuns e
cavalares,273
corrobora veementemente essa possiblidade o registro, em 16 de agosto de
1744, das suas marcas de ferrar gado, registradas nos Livros de Cartas e Provisões do
Senado da Câmara do Natal.274
Sobre a posse de escravos tem-se notícia de que, em 14
de dezembro de 1750, Caetano de Melo e Albuquerque havia sepultado na Igreja de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal uma escrava de sua
propriedade por nome Luíza, do gentio da Costa da Mina.275
Depois de haver servido à Câmara do Natal no ofício de tesoureiro dos
defuntos e ausentes, entre 1723 e 1724,276
o Sargento-mor Caetano de Melo e
Albuquerque passava nesse último ano ao exercício do ofício de almotacé.277
Transcorridos sete anos, Caetano Albuquerque voltava ao Concelho do Natal escolhido
novamente para almotacé, desempenhando esse ofício nos anos de 1732, 1733 e em
1735.278
Reverbera-se que em 1734, Melo e Albuquerque assumia o mais prestigioso
posto da Câmara do Natal, sendo eleito juiz ordinário para um mandato letivo.279
Não
obstante, esse agente havia encerrado sua carreira na administração local da Concelho
Municipal da Cidade do Natal em 1737, quando havia servido nessa edilidade no ofício
de escrivão camarário.280
Desse modo, depreende-se que o exercício do ofício de escrivão concelhio do
Natal, mesmo que considerado de menor prestígio social quando comparado aos ofícios
honoráveis desse concelho – como juiz ordinário, vereador e procurador –, fosse alvo de
273 Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB
– RN 0053; Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 08 de setembro de 1717.
Plataforma SILB – RN 0385. Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 10 de
dezembro de 1736. Plataforma SILB – RN 0453. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca .
Acesso em: 20/10/2017. 274
Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09
(1743 – 1754). Fl. 17v. 275
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759. 276
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 165. 277
Ibidem., Documento 0921, Fl.(s) 037v-038. 278
Ibidem., Documento 1111, Fl.(s) 116-116v; Documento 1150, Fl.(s) 141-142; Documento 1185, Fl.(s)
165-165v. 279
Ibidem., Documento 1170, Fl.(s) 154-154v. 280
Ibidem., p. 226.
250
interesse de homens detentores de grossos cabedais, como analisado no decorrer desse
tópico o caso da família Rodrigues de Sá e sua parentela. Possivelmente, o desempenho
desse ofício fosse atrativo pelo ordenado anual auferido, bem como pelos demais proes
e percalços que se somavam. Além disso, a possibilidade de figurar entre os elementos
da governança da terra pode ser aventada como outro indício, visto que isso promovia o
prestígio e a distinção social do indivíduo e de seu clã. Pondera-se também o caráter
estratégico que envolvia o ofício de escrivão camarário, ao possibilitar aos seus
encarregados acesso irrestrito a memória institucional da Câmara do Natal, do mesmo
modo que as informações privilegiadas provenientes da comunicação interinstitucional
que interligava diferentes órgãos da administração do Império, nas dimensões
intracapitania, intercapitanias e transcontinental.281
No entanto, percebe-se que os valores auferidos do ordenado proveniente da
concessão precária do ofício de escrivão da Câmara do Natal, não haviam satisfeito as
ambições de um potentado local como o Coronel Caetano de Melo e Albuquerque.
Infere-se isso, mediante a análise de uma carta enviada pelos oficiais da Câmara do
Natal à D. João V, em 31 de janeiro de 1737, na qual aqueles honoráveis senhores
davam conta a El’ Rey daquilo que eles denominaram de “escasso rendimento do
serventuário do ofício de escrivão da Câmara do Natal, o Coronel Caetano de Melo e
Albuquerque.”282
Nesse documento, redigido pelo próprio Caetano Albuquerque,
constava a solicitação de que fossem revistos o salário do serventuário daquele ofício,
pois este recebia $ 25.000,00 réis de emolumentos por ano, dos quais $ 12.000,00 réis
era o ordenado e $ 4.000,00 réis as propinas para compra de materiais como penas,
papel e tinta.283
O Ouvidor Geral da Paraíba, Tomás da Silva Pereira, em face dos
parcos recursos que eram barganhados pelo escrivão concelhio do Natal, havia
concedido um acrescentamento de $ 12.000,00 réis, sendo que, mais tarde, lhes foram
retirados pelo Corregedor Jorge Salter de Mendonça, ao justificar a ilegitimidade do
aumento, dado que os ouvidores não podiam realizar esse ato, sem consentimento
prévio de El Rey.284
281 Sobre as dimensões e as vias de comunicação interinstitucional pelo Império nos níveis intra e
intercapitanias e transcontinental, mediante a atuação dos escrivães concelhios da cidade do Natal, ver o
Tópico 1.4 – Os escrivães como intermediários nas redes institucionais de circulação de informações
pelo Império. p. 80. 282
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 227. 283
Ibidem. 284
Ibidem.
251
Afora a primeira solicitação, aquela carta requeria, ainda, que se incrementasse
um reajuste no salário do serventuário do ofício de escrivão, mediante uma propina
advinda da arrematação do contrato das carnes da Capitania do Rio Grande, como era
prática nas capitanias circunvizinhas.285
Caso não fosse possível este efeito, dever-se-ia
conceder uma praça de soldado pago em uma das duas tropas que guarneciam a Cidade
do Natal, para que o serventuário pudesse se sustentar.286
Nesse ínterim, os oficiais
camarários afirmavam que se tais concessões não fossem efetivadas, não existiria
facilidade para que o serventuário prosseguisse no exercício do referido ofício, algo que
traria, irreversivelmente, danos significativos aos andamentos da administração local,
pois não se podia obrigar o proprietário do ofício, o Comissário Geral de Cavalaria José
Ribeiro Riba, de servi-los, dado que este fosse radicado na Capitania de Pernambuco.287
Essa carta que, na sequência, trouxe algumas ingerências para o proprietário da
escrivania camarária do Natal, suscitava alguns questionamentos significativos. Dentre
os quais se percebe, para além das questões estritamente salariais, derivados do
exercício desse ofício, os jogos de poder acerca da hegemonia e do destino daquela
escrivania, eivados por interesses familiares, clientelares e, consequentemente,
patrimoniais. Verossimilmente, pode-se conjecturar que devido ao fato de a família
Melo e Albuquerque ser a detentora da procuração de plenos poderes sobre o ofício de
escrivão da Câmara do Natal, desde 19 de dezembro de 1705, quando Manuel de Melo e
Albuquerque – pai de Caetano de Melo –, havia sido substabelecido procurador do
então proprietário, Francisco Álvares de Lima.288
Provavelmente essa procuração tenha
sido renovada nos Melo e Albuquerque quando ocorreu à nomeação do posterior
proprietário, José Ribeiro Riba. Assim, trinta e dois anos depois, intermediando os
provimentos naquela escrivania, a família tentava se apoderar da propriedade do ofício
de escrivão camarário da Capitania do Rio Grande, ao denunciar a exiguidade do salário
do serventuário, do qual teria, ainda, que pagar a “terça parte da avaliação do ofício” ao
proprietário e os “novos direitos”,289
sendo tais alegações consideradas como
285 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 227.
286 Ibidem.
287 Ibidem.
288 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702
– 1707). Fl(s). 74-79. 289
A terça parte da avaliação do ofício de escrivão da Câmara do Natal constituía-se na possibilidade de
os proprietários nomearem serventuários para o exercício do referido ofício quando os primeiros
estivessem impossibilitados de assumirem, de fato, o exercício do mesmo. Com isso, estabelecia-se
previamente o período de tempo da serventia (geralmente de três anos, mesmo que na Capitania do Rio
252
artimanhas para convencer D. João V de cessar os direitos de propriedade de José
Ribeiro.
Tudo isso se justificava em virtude de Ribeiro Riba – proprietário do ofício –
residir em Pernambuco, como delatava a dita carta, e não poder servir presencialmente
esse ofício.290
A denúncia seria sintomática de um contexto mais amplo, no qual a Coroa
portuguesa começava a ensejar uma política régia que vislumbrava a redução do
acúmulo de ofícios em únicas famílias ou pessoas, com a finalidade expressa de ampliar
a rede de súditos, bem como dos pactos estabelecidos. Acresce-se a isso, de acordo com
Roberta Stumpf, que o provimento dos ofícios em serventia, a partir do Decreto de
Fevereiro de 1741, havia transformado o dinheiro no imperativo primeiro de escolha
daqueles que pudessem exercer as serventias de ofícios, pois segundo aquela autora “era
só o dinheiro, e apenas este, que servia de base à concessão dos novos cargos dados em
serventia”,291
esperando-se disso vantagens econômicas que incrementavam os cofres
reais.
Assim, a Coroa passava a olhar com outros olhos a figura do serventuário e a
própria dimensão venal dos ofícios, visualizando a retirada de benefícios entre as
transições que antes eram efetuadas apenas por particulares. As diversas formas de
donativos – o “benefício secreto”, o “donativo gracioso”, o “donativo voluntário
gracioso” –, que em diversas ocasiões trataram de encobrir ou ocultar o mérito
pecuniário, como apontado por Francisco Andújar Castillo,292
ou mesmo os leilões dos
ofícios americanos, apontavam para as novas diretrizes das políticas de provimento de
cargos e ofícios pela Coroa portuguesa, sobretudo no ultramar, que, conforme Roberta
Stumpf, ainda que estivesse calcada na avaliação da “[...] importância social e pela
experiência dos candidatos, a ‘aptidão profissional’ e a riqueza passaram a ganhar
Grande tenha sido verificada a preponderância de provisões em tempos menores, de dois ou três meses e
de até um ano, apenas, a qual se denominou, de acordo com a bibliografia de provisão precária). Em
1722, seria instituída a cobrança da terça parte dos rendimentos dos ofícios, tanto de ordenando anual,
acrescidos dos demais proes e percalços. Os novos direitos eram constituídos por uma taxa paga pelos
serventuários dos ofícios à Coroa portuguesa, sem o pagamento dos quais não poderia servir no ofício.
Para saber mais, ver STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia portuguesa do
século XVIII. In: STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas
Monarquias Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII). Lisboa: Centro de
História de Além-mar, 2012. p. 286; 294, nota 31. 290
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 227. 291
STUMPF, op. cit., p. 295. 292
CATILLO, Francisco Andújar. Venalidad de oficios y honores. Metodología de investigación. In:
STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:
Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-mar, 2012.
p. 176.
253
destaque”.293
Tal situação fazia com que os serventuários de ofícios passassem a
usufruir de maior prestígio diante da Coroa.
Tudo isso corrobora para explicar a decisão de D. João V quanto ao escasso
rendimento do serventuário do ofício de escrivão da Câmara do Natal, o Coronel
Caetano de Melo e Albuquerque, cujo parecer, em 28 de maio de 1738, foi favorável a
este, em detrimento do proprietário, José Ribeiro Riba, desonerando-se o Coronel
Caetano Albuquerque do pagamento da terça parte que cabia a Ribeiro Riba, que
“enquanto não vir servir-lhe [no dito ofício] não pague o serventuário coisa alguma, e
ficará cessado esta zelosa representação feita a favor do serventuário”,294
mesmo em
face da justificativa apresentada por José Ribeiro de ter quase 70 anos de idade,
acometido por vários achaques, falto da vista, casado e pai de dez ou doze filhos,
arrolando, na sequência, o extenso rol de serviços prestados ao longo de pouco mais de
quarenta anos à Coroa.295
Não obstante, verifica-se que Caetano de Melo e Albuquerque havia exercido a
serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal durante pouco mais de um ano,
possivelmente, em decorrência de duas cartas queixas que foram enviadas pelos oficiais
da Câmara do Natal, em 1738, que davam conta dos abusos da família de Manuel de
Melo e Albuquerque, principalmente de Caetano de Albuquerque.296
Na primeira carta,
os oficiais da Câmara do Rio Grande que serviam naquele ano, assinada por Francisco
Diniz da Penha, Domingos da Cunha Linhares, Francisco Barreto, Lourenço de Araújo
Correa e José Pinheiro Teixeira, afirmavam que vivia há muitos anos na Capitania do
Rio Grande uma família de vida absoluta, cujos progenitores eram Manuel de Melo e
Albuquerque e Caetano de Melo e Albuquerque, sendo este filho do primeiro, e muitos
outros parentes, com inúmeros maus procedimentos.297
Ainda segundo essa carta, essa
família tinha o apoio de quase todos os capitães-mores que haviam governado a
Capitania do Rio Grande, e, nesse momento, grassavam do total apoio do Capitão-mor
293 STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia portuguesa do século XVIII. In:
STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:
Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-mar, 2012.
p. 296. 294
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 227. 295
Ibidem. 296
Ibidem., Doc(s). 240, 241. 297
Ibidem., Doc. 240.
254
João de Teive Barreto e Menezes, que lhes havia concedido suporte em troca de apoios
mútuos.298
No rol daqueles nefastos procedimentos da família Melo e Albuquerque,
chama à atenção a alegação dos oficiais da Câmara do Natal, de que aqueles homens
maquinavam “contra as pessoas que ocupam lugares e ofícios da República e Fazenda
Real, com o projeto de se inserirem neles de que dão tão más contas, como o dito
Caetano de Melo”.299
Essa afirmativa, em especial, liga-se diretamente a discussão
desenvolvida anteriormente sobre as reais intenções da carta enviada por Caetano
Albuquerque, sobre a escassez do salário do serventuário do ofício de escrivão da
Câmara do Natal.300
Com alguma probabilidade, a estratégia de que lançou mão para se
isentar do pagamento da terça parte dos rendimentos daquele ofício, se remetesse a
determinação régia do proprietário deslocar-se para a Cidade do Natal, algo que,
possivelmente, Caetano de Melo presumisse que Ribeiro Ribas não o faria, levando-o a
alegar na carta de 31 de janeiro de 1737, que o proprietário era impossibilitado de
exercer esse ofício, dado que residisse na Capitania de Pernambuco.301
Contudo, a denúncia efetuada pelos camarários não havia obtido resposta. Isso
os levaria a enviar uma segunda carta, em 23 de fevereiro de 1738, à D. João V, na qual
os oficiais da Câmara do Natal reiteravam, mais uma vez, “as malignas influências da
família Melo e Albuquerque”, sobretudo os maus procedimentos de Manuel e de
Caetano, apoiados pelo Capitão-mor João de Teive Barreto e Menezes.302
Dessa feita, o
motivo seria a nomeação efetuada pelo Capitão-mor Barreto e Menezes, provendo
Caetano de Melo e Albuquerque novamente no ofício de escrivão concelhio, em
desagrado geral de todos os “respúblicos”.303
No entanto, mais uma vez, a carta não
obteve resposta. Essa situação pode-se sustentar na natureza eminentemente oligárquica
dos poderes locais no Antigo Regime, como apontado por Nuno Gonçalo Monteiro, que
“caracterizavam-se nos centros de autoridade naquelas sociedades.”304
Ainda conforme
esse autor, essa situação seria proveniente “[...] mais da precariedade dos instrumentos
298 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 240.
299 Ibidem.
300 Ibidem., Doc. 227.
301 Ibidem.
302 Ibidem., Doc. 241.
303 Ibidem.
304 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel
(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 292.
255
de controlo da coroa do que da vitalidade de seus recursos próprios.”305
Situação essa
que levava, constantemente, ao fato da quebra das normas comunitárias locais a serem
corriqueiramente imputadas “[...] aos ricos e poderosos” senhores da terra.306
Ainda
assim, ao que parece, Caetano de Melo e Albuquerque não se susteve no ofício de
escrivão da Câmara do Natal, retornando para o posto de soldado da tropa paga, da
Companhia de Francisco Ribeiro Garcia.307
Mesmo assim, em 1746 e 1747, o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque,
filho do Comissário Geral de Cavalaria homônimo e irmão do Sargento-mor Caetano de
Melo e Albuquerque, servia também por concessão precária o ofício de escrivão da
Câmara do Natal.308
Porém com uma passagem mais rápida e tranquila, dado que não
havia se envolvido em nenhuma querela, visto que, em seguida, candidatar-se-ia ao
posto de Capitão-mor de Cabo Frio,309
perdendo-se depois o rastreamento sobre esse
agente.
Nesse capítulo verificou-se o sobrepeso da instituição familiar em diferentes
momentos e situações, o que se leva a afirmar, como explicou António Manuel
Hespanha, que mesmo com o advento da sociedade Moderna, na qual a dimensão
individual começou a ganhar sentido, a família continuava a ser um dos mais sólidos
elementos estruturantes da sociedade de Antigo Regime, da qual muito dependia o êxito
ou mesmo o fracasso do próprio indivíduo.
Desse modo, a ideia de família que se tinha para esse período devia ser
compreendida em sentido mais alargado, no interior da qual se tinham os parentes
consanguíneos e aqueles cujos vínculos eram construídos pelas afinidades
corriqueiramente instituídas pela dimensão religiosa das relações de compadrio e de
305 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel
(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 292. 306
Ibidem., p. 292-293. 307
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 254. 308
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 271, 276. 309
AHU-RN,op. cit., Cx. 05, Doc. 285.
256
casamento ou mesmo de amizade. Os familiares cognados, ou seja, aqueles cujos
vínculos se davam na esteira das afinidades políticas e sociais formavam, juntamente
com os descendentes e ascendentes sanguíneos, a parentela, tão essencial para a garantia
de prestígio, status e poder numa sociedade estamental do Antigo Regime.
A força da parentela pôde ser visualizada extensivamente no tópico pertinente
à família Rodrigues de Sá e as demais famílias que a esta se uniu, quer pelo matrimônio,
quer pelo batismo ou mesmo pelas alianças políticas entorno da hegemonia pelo poder,
que serviu para ditar, via de regra, a formação do patrimônio familiar dos Rodrigues de
Sá, em consonância com os rumos trilhados pela política da Coroa portuguesa, que
tinham nas instituições administrativas locais o espaço da gênese das elites locais.
Ressalta-se que a fortuna dessa família foi construída tendo como base a posse de terras
– sesmarias e chãos de terras –, de gados – vacuns e cavalares –, de escravos –
africanos ou mesmo indígenas – e nesse meio termo pulverizado pelo prestígio que
advinha do exercício dos ofícios honoráveis – como o de juiz ordinário, vereador e
procurador –, como também de ofícios intermédios como tabelião público e escrivão da
Câmara do Natal, essencialmente estratégico para as disposições e objetivos dessa
família.
Apontam-se, ainda, como demonstrando ao longo do texto, que a escrivania
concelhia daquela edilidade foi compreendida pelos Rodrigues de Sá, os Melo e
Albuquerque e os Cardoso Batalha, como uma via passível de obtenção de dividendos
monetários, por meio do exercício de seus provimentos por concessão precária, mas
com ordenado anual fixo, ao qual se somava os demais proes e percalços, mas também
e, talvez, acima de tudo, como um elemento de formação e reforço das redes familiares
e clientelares que se teciam na trama política da concessão desse ofício, de modo
temporário, aos seus integrantes através dos poderes conferidos pelas procurações.
Possibilitando o ingresso na organização concelhia do Natal, posto que seu provimento
se desse com base na negociação entre o procurador do ofício e aqueles que pretendiam
exercê-lo. Com isso, os Rodrigues de Sá conseguiram inserir os integrantes que a essa
família se somou através dos casamentos sem que necessariamente passassem pelo
sistema convencional de pelouros, dirigidos a eleger os agentes para os ofícios
honoráveis. Mas, mesmo assim, a família Rodrigues de Sá, juntamente com os Melo e
Albuquerque, asseguravam que alguns de seus integrantes estivessem na câmara. Disso,
se salienta que o ofício de escrivão camarário do Natal, provavelmente, foi visualizado
257
por aquela família como o meio mais efetivo de sempre se fazerem presentes, por meio
do exercício deste por algum de seus elementos, na principal instituição administrativa
local, cuja prática assegurava não apenas o acesso à memória institucional local, como
também a todo o universo de informações possíveis na geopolítica local e do Império,
devido ao próprio caráter daquela instituição, contribuindo para concatenar os interesses
dessas famílias aos ditames macros da política imperial, mas também influindo para que
essas mesmas disposições, em nível local, se orientassem conforme seus interesses.
Adir-se, ainda, que a prática efetiva do ofício de escrivão da Câmara do Natal,
fosse passível de ser desempenhada coevamente com familiares que se ocupavam dos
ofícios honoráveis da república, como também elucidado para o caso da família Melo e
Albuquerque. Isso as colocaria em posição de vantagem diante de outros grupos
familiares que também tinham interesse em se fazerem representar no núcleo da
municipalidade. Essa situação, talvez, tenha contribuído também para que os Rodrigues
de Sá, os Melo e Albuquerque e os Cardoso Batalha influíssem nas determinações do
Concelho do Natal a fim de protegerem seus próprios interesses clientelares. Como
visto no Capítulo III, os escrivães eram encarregados da guarda, dentre outras coisas,
das chaves do cofre do concelho. Esse direito, com alguma probabilidade influiu
diretamente para que o Comissário Geral de Cavalaria, Manuel de Melo e Albuquerque,
tenha se mantido quase intacto ao longo de dez anos consecutivos no ofício de vereador
do Senado da Câmara do Natal, desde 1709 até 1718, contrariando as disposições
prescritas na legislação. Reverbera-se que nesse mesmo período em que foi vereador
durante dez anos, Manuel Albuquerque fosse também procurador da propriedade do
ofício de escrivão da Câmara do Natal e tabelião do judicial e notas da Capitania do Rio
Grande, do qual era titular Francisco Álvares de Lima, detendo sobre aquele ofício
plenos poderes, desde tomar posse até escolher ou destituir serventuários para os
mesmos.
A posse dessa procuração conferiu a família Rodrigues de Sá e aos Melo e
Albuquerque um importante elemento no jogo político de cooptação de agentes sociais
para as suas redes clientelares que, como se verá no Capítulo VI, foi passível de
instaurar desordens e desentendimento na Capitania do Rio Grande, em um momento no
qual o então Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca (1722-1728), veio a
descobrir a fraude que Manuel de Melo e Albuquerque, juntamente com o escrivão
Bento Ferreira, haviam, juntos, burlado as eleições para o Senado da Câmara do Natal
258
para o mandato de 1724. Reverbera-se que, nesse caso, se foi possível se descobrir o
dolo para a ocupação dos ofícios honoráveis da Câmara do Natal, mas se pode imaginar
as inúmeras vezes que aquele agente, a partir do fato de deter a procuração de plenos
poderes do ofício de escrivão, não havia se utilizado desse dispositivo para manobrar as
eleições concelhias, garantindo sempre a presença de representantes de sua família para
os mandatos. Por tudo isso, a escrivania concelhia do Natal foi visualizada como
estratégica e, por isso mesmo, controlada no interior dessa família entre 1706 até 1718,
quando a referida procuração havia passado para as mãos de outro agente social, como
se verá adiante.
259
CAPÍTULO IV - “UM MALIGNO ESCRIVÃO”: Bento Ferreira Mouzinho sob o
reinado de D. João V (1715-1755)
“Dou a vossa Real Mag.de
conta
das perturbações, que causa neste povo
hum malignum Escrivão da Camara desta Ci.de
por nome Bento Ferreira Mouzinho,
que com hua pena trahidora emforma, e
faz Capitulos contra todos
os que athe aqui tem vindo
a este lugar[...].”
(Capitão-mor José Pereira da Fonseca, Natal, 25/07/1725).1
De acordo com Laura de Mello e Souza, a escolha da análise das trajetórias ou
de biografias de administradores não teria, necessariamente, interesse em suas
dimensões pessoais ou individuais em si, algo que explicaria algumas escolhas
efetuadas por àquela autora de personagens quase que “subsidiários” para o seu O sol e
a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII, mas que
com suas carreiras na burocracia lusa, sobretudo instauradas pela América portuguesa,
concederam sentido e dinamicidade à administração do Império. Souza apontaria, ainda,
que questões estruturais da sociedade Setecentista eram passíveis de serem visualizadas
e extensivamente discutidas, ao se atentar para os percursos dos agentes sociais
imbricados na esfera do exercício do poder político, tais como “[...] os limites do mando
em conquistas ultramarinas; a teoria e a prática da concessão de dons e mercês; a
promiscuidade entre governo, poder e ganhos ilícitos [...]”.2
Contudo, para se compreender as trajetórias desenvolvidas pelos agentes
históricos, nesse caso nas estruturas administrativas da época Moderna, como pontuou
António Manuel Hespanha, ao discutir a questão sobre A mobilidade social nas
sociedades do Antigo Regime, ter-se-ia que compreender, em um primeiro momento,
“os quadros mentais” que serviram não apenas de substrato para o desenrolar da vida
cotidiana, mas que também condicionaram, orientaram, dirigiram e, em última
1 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 114.
2 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 19.
260
instância, conferiram sentido a atuação de homens e mulheres, bem como as formas
com as quis estes agentes haviam se relacionado, rotineiramente, com o poder político.3
Para aquele autor, questões como “justiça, graça e misericórdia”, que se constituíam
como o tripé da teologia dos tempos modernos, cingiam, do mesmo modo, a “teoria dos
atos humanos” e, em maior intensidade, comporia axiomaticamente as ações e o sentido
de governar.4
Entrementes, ao monarca também se referiu António Manuel Hespanha, como
sendo o principal responsável pela instauração das mutações na sociedade do Antigo
Regime, principalmente no que respeita a dimensão da ascensão social, pois o rei seria
compreendido como a força extraordinária “que por escrito, emancipa, legitima e
enobrece”.5 Apenas a figura do rei caberia à promoção nos quadros da hierarquia social
e mesmo administrativa, ora como princípio instituidor, ora a título de chancela.
Percebe-se, nesse capítulo, que táticas semelhantes as que lançavam mão os
grupos sociais ligados à alta administração – sobre os quais se tem mais notícias, em
face da quantidade de pesquisas sobre a nobreza administrativa –, eram compartilhados
também pelos estratos sociais inferiores da administração, presentes nas instituições de
representação local do poder. Essas disposições podiam ser visualizadas no emprego de
mecanismos de afirmação política, através das alianças matrimoniais, dos conchavos
amistosos e dos interesses familiares, que alinhavavam as determinações superiores da
política imperial, às forças centrífugas das vontades individuais e, consequentemente,
das oligarquias locais em que estivessem inseridos.
Assim, o traçado do percurso de Bento Ferreira Mouzinho pode ser compreendido
por meio das várias fontes documentais atinentes a esfera administrativa de governo
como, por exemplo, das cartas patentes, das consultas, dos pareceres, dos alvarás –
régios e locais –, das representações e das devassas, enfim, dados pertinentes a sua
atuação na administração local da Capitania do Rio Grande, bem como em documentos
manuscritos pelo próprio Ferreira Mouzinho, sobre outros agentes régios.
As discussões empreendidas a partir do trajeto de Bento Ferreira Mouzinho
contribuem, ainda, para a compreensão do funcionamento da intrincada engrenagem
administrativa colonial, instaurada pelos portugueses em suas possessões d’além mar.
3 HESPANHA, António Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. In: Revista
Tempo. v. 11, n. 21, 2006, p. 124. 4 Ibidem., p. 125.
5 Ibidem., p. 123.
261
Dentre os pontos analisados, citam-se a troca de favores, a formação de alianças
políticas, o patrimonialismo e os conflitos jurisdicionais, permeados por disputas de
representação do poder. Essas, dentre outras problemáticas, serviram como fundamentos
estruturantes para o entendimento dos mecanismos da cultura política do Antigo Regime
português, fazendo-se amplamente presentes no cotidiano institucional da administração
das possessões ultramarinas. De acordo com Yamê Galdino de Paiva, a noção de
cultura política, responsável por abarcar todo o complexo cultural de uma determinada
época, seria responsável por traduzir os códigos culturais, os sistemas de valores e os
modos de ação, específicos dos agentes sociais.6 Atrela-se a isso, a ideia de Antigo
Regime nos trópicos, segundo a qual a sociedade estamental do Antigo Regime, que
existia no Portugal reinol, havia sido trasladada para as possessões americanas,
juntamente com as instituições administrativas e os milhares de homens e mulheres que
haviam resolvido cruzar o Atlântico.7
De acordo com Serge Berstein, as ações dos agentes históricos podiam ser
compreendidas, de modo mais amplo, quando se atenta para o fato de que ocorreriam
nos corpos sociais coletivos, ao partilharem crenças, normas, valores, costumes e
tradições comuns, fazendo usos que também seriam comuns. Com isso, os agentes
sociais haviam construído uma ideia de mundo na qual compartilhavam tais
concepções, o que concederia significado simbólico e material próprio que, inclusive,
pode ser temporal e espacialmente localizados.8 Este conjunto de valores sociais,
decorrentes da atmosfera cultural que submergia homens e mulheres, mergulhados no
ideal da distinção social que, como visto anteriormente, se processava aquém e além das
próprias vontades, tinha na política de mercês, concedida por El Rey, o ponto nodal para
a difusão ou a para a retração das ambições individuais.
O presente capítulo pretende a partir da trajetória de Bento Ferreira Mouzinho,
que havia exercido a serventia do ofício de escrivão do Senado da Câmara do Natal,
6 A cultura política de Antigo Regime Português fora responsável por orientar a ação dos indivíduos que
estavam presentes na burocracia, Yamê Galdino, em um estudo de caso, trabalhou com um ouvidor da
capitania da Paraíba. Para saber mais, ver PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo a sombra das Leis:
Antônio Soares Brederode: Entre a Justiça e a Criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802).
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. p. 4. 7 Sobre o caráter estamental da sociedade portuguesa gestada nos trópicos, com base na cultura política do
Antigo Regime, ver FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.).
O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 8 BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Dir.). Para
uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
262
entre 1715 e 1732, mas também em outras estruturas administrativas locais da Capitania
do Rio Grande, descrever e analisar o percurso desse agente que, imbuído pela lógica da
cultura política do Antigo Regime português, sintetizaria, em parte, os dilemas que
constantemente permearam o exercício do mando institucional da Coroa lusitana,
sobretudo nas áreas de conquista pelo ultramar. Nesse caso em apreço, que havia
envolvido, mormente, a sobredita capitania, mas também as possessões portuguesas
adjacentes – as vizinhas Capitanias de Pernambuco, Paraíba e Itamaracá –, poder-se-ia
lançar subsídios para o entendimento dos jogos políticos que eivaram a trama de
formação dos espaços sociais e administrativos, nessas capitanias na primeira metade do
século XVIII.
A biografia de Bento Ferreira Mouzinho seria indiciária para se perceber os
arranjos e rearranjos entorno da hegemonia pelo poder, na Capitania do Rio Grande, no
decorrer das décadas de 1720, 1730 e 1740, nas quais àquele agente havia se envolvido
em diversas querelas em nível local – mas que não raras vezes, chegava até Lisboa –,
carreando governadores, capitães-mores, ouvidores-gerais, provedores, oficiais
camarários e milicianos daquelas paragens, bem como das contíguas Capitanias de
Itamaracá, Paraíba e Pernambuco. A história de Ferreira Mouzinho indica, ainda, como
se havia processado a conformação territorial do Império ultramarino português, no
século XVIII, entrecortado por longas distâncias físicas e temporais, que separavam
Lisboa – o centro político do Império – das possessões ultramarinas, nesse caso,
especialmente da periférica Capitania do Rio Grande, ao recorrer ao processo escrito
para a gestão dos espaços políticos.
A partir do alcance da comunicação manuscrita, poder-se-ia compreender a
partir do caso limite de Bento Ferreira Mouzinho, como se dava os mecanismos de
gestão à distância, instaurado pela Coroa no ultramar, sempre recorrendo aos pareceres
dos oficiais régios situados nas diferentes possessões do Império, para poder se
posicionar perante desavenças e conflitos jurisdicionais e, assim, melhor gerir seus
domínios.
Mediante o roteiro de Bento Mouzinho seria possível compreender a atuação dos
homens infraletrados como, nesse caso, o próprio biografado, que mesmo que não
possuísse nenhuma especialização adquirida nas cátedras de ensino superior, sabia ler e
escrever, e por conta disso havia se ocupado da redação dos processos burocráticos, nas
estruturas administrativas locais das Capitanias do Rio Grande e de Itamaracá. Ambas
263
as aptidões – saber ler e escrever –, de acordo com Miguel Ángel Extremera, possuía
um sentido incomensurável nas sociedades do Antigo Regime, posto que esses oficiais
servissem como intermediários entre “una minoría culta y una mayoría iletrada”, mas
que faziam parte de “la selecta minoría de ciudadanos que gozaba de un primerísimo
privilegio: la información”.9
Do saber ler e escrever havia decorrido, sem sombra de dúvidas, a rápida
ascensão social vivenciada por Bento Ferreira Mouzinho nas estruturas administrativas
da Capitania do Rio Grande. Isso o habilitaria, posteriormente, a vir ocupar o ofício de
Provedor da Real Fazenda do Rio Grande, bem como barganhar sesmarias, chãos de
terras, patentes militares e diversos ofícios da administração local. Somar-se-ia,
também, a tais privilégios os limites que esse escrivão havia sido capaz de impor à
trajetória de outros agentes sociais, principalmente dos capitães-mores do Rio Grande,
aos quais também se juntaram, mais tarde, já na Capitania de Itamaracá, as vidas de
pessoas “comuns” dessa sociedade no início da segunda metade do século XVIII.
Observou-se nesses conflitos jurisdicionais que quando a negociação não
resolvia, sobremodo por meio do vai e vem de cartas cruzando o Atlântico, a maioria
das quais endereçadas à D. João V, com a finalidade de induzir as determinações régias,
o escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, e os integrantes das diversas
redes clientelares das quais fez parte, lançavam mão do enfrentamento direto. Isso
exemplificaria, conforme havia demonstrado Russell-Wood, que os poderes locais
foram hábeis em se utilizarem ora da negociação com o reino, ora da pressão, sobretudo
quando a primeira alternativa não se coadunasse com os interesses locais.10
A
conflituosa relação entre Ferreira Mouzinho e José Pereira da Fonseca, traduz
pontualmente e fielmente essa dimensão.
As várias desavenças nas quais Ferreira Mouzinho havia se envolvido, ao
longo da primeira metade do século XVIII, muitas das quais provavelmente ele mesmo
houvesse “maquinado”, como corriqueiramente era afirmado e reafirmado pelos demais
oficiais régios implicados nessas pendengas, sinalizavam também para o entendimento
dos limites do mando institucional da Coroa lusitana nas áreas de conquista, ora
9 EXTREMERA, Miguel Ángel Extremera. La pluma y la vida: Escribanos, cultura escrita y sociedad en
la España Moderna (siglos XVI-XVIII). In: Cuadernos de cultura escrita, Año III-IV, 2003-2004. p.
205. 10
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. In: Revista
Brasileira de História [online]. v. 18, n. 36, 1998. p. 187-250.
264
tendendo a contemporização, ora a violência, mas na esteira das duas situações, se
tivesse mesmo a necessidade maior de assegurar o domínio político sobre aquelas áreas.
Nesse sentido, partir-se-á do método indiciário e onomástico, proposto por
Carlo Ginzburg,11
a fim de se reconstituir a trajetória administrativa de Bento Ferreira
Mouzinho, em meio à documentação esparsa que traz elementos de seu percurso nas
estruturas administrativas locais das Capitanias do Rio Grande. As quais se somavam o
exercício de outros ofícios, como, por exemplo, de juiz de órfãos na adjacente Capitania
de Itamaracá – para onde seria expulso, em meados da década de 1740. O caminho
vencido por esse agente também se daria nas Capitanias da Paraíba e de Pernambuco,
onde, mormente, aquele homem havia se relacionado com outros agentes da
administração lusa e da sociedade colonial.
Reitera-se, mais uma vez, que o percurso de Bento Ferreira Mouzinho
constitui-se emblemático e sintético para a compreensão mais acurada, e a título
exemplificativo, dessa pesquisa. Pontua-se que o caminho trilhado por aquele agente
concatena-se com os problemas e os dilemas mais amplos, que constantemente
irromperam pelo Império. Essa biografia exemplifica, ainda, o universo palpável da
ascensão social na sociedade do Antigo Regime – a partir de uma economia de mercês –
, bem como das táticas empregadas pelos agentes sociais que, no geral, permitiam
pensar as relações espaciais de poder que construíram, entrecortaram e dinamizaram o
tecido social no Antigo Regime.
4. 1 O alvor de um século sombrio
O alvorecer do século XVIII seria marcado por profundas convulsões sociais,
advindas das transformações políticas processadas ainda no final do século XVII, que se
abateram, de forma obscura, sobre os dois lados do Atlântico. No reino, se digladiavam
as correntes políticas, divididas sobre a causa da Sucessão Espanhola que se arrastou de
1703 até 1713 e que, mormente, acabava por embaraçar e, malgrado, indispor a própria
população ao se filiarem ora a Inglaterra, ora a França, que se opunham uma à outra no
11 GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: A micro-história e
outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
265
objetivo comum de ascender ao trono de Espanha.12
Nesse meio termo, ainda era vívido
o medo, quase generalizado, de possíveis tentativas de reconquista do território luso por
meio da Coroa espanhola, o que se distanciava sobejamente após a assinatura de
acordos diplomáticos entre a França, Portugal e Espanha, em 1701. Temor esse que se
alastrava, também, em relação às demais monarquias nascentes, como a Holanda e a
Inglaterra.13
Não obstante, ocorria nesse meio termo a reorquestração dos interesses sobre a
América portuguesa, em detrimento da ruína que se processava nas possessões orientais,
o que fazia que a América lusa passasse a ser vista, pela Coroa, com outros olhos no
início do século XVIII, sobretudo no que pesava a dimensão do comércio no Atlântico
sul.14
Esse fato também estaria diretamente ligado à descoberta do ouro na região das
Minas, em 1693, que se por uma lado propiciava a El Rey dispor de novos elementos
para a movimentação da economia de mercês, por outro cedia margem para a
instauração de novas carreiras administrativas, muitas das quais espreitadas como que
em retribuição pela prestação de serviços à Sua Majestade.15
Os primeiros tempos do século XVIII também haviam se caracterizado pela
elevação dos ânimos na América portuguesa, representada pela série de conflitos que se
irradiavam de norte a sul dessa conquista. Mesmo que eivadas por problemas em níveis
locais, cujas implicações também eram de ordem local, as guerras que emergiam pela
América lusa do século XVIII se caracterizavam, de modo geral, pelos reclames dos
conquistadores/colonizadores, transformados em verdadeiros potentados locais, por
privilégios exclusivistas de disporem das terras e dos ofícios da governança local, contra
os interesses de inserção de outros colonos. Isso levava os grupos envolvidos a se
12 ARMSTRONG, Rodrigo Penteado. O POMO DA DISCÓRDIA: A Colônia de Santíssimo
Sacramento e a Rivalidade entre Portugal e Espanha no Sistema Interestatal do Século XVIII. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. p. 44. 13
Ibidem., p. 51. 14
Luiz Felipe de Alencastro se reportou a crescente importância que o Brasil, conectado juntamente com
as possessões portuguesas na África, sobretudo com Angola, foram adquirindo ao longo dos séculos,
através do estabelecimento de vias comerciais que interligavam entrepostos situados nesses dois lados do
Atlântico. Para saber mais, ver ALENCASTRO, L. F. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 15
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. “A conquista do Centro-sul:
fundação da Colônia de Sacramento e o “achamento” das Minas”. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA,
Maria de Fátima S. (Orgs.). O Brasil colonial. v. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 267-
334.
266
digladiarem entre si. Essas disposições divergiam sensivelmente dos embates do século
precedente que tinham no exercício do mando institucional a principal causa.16
Nesse sentido, na região das Minas, rebentava o conflito que havia ficado
conhecido como a Guerra dos Emboabas, que opusera os paulistas aos adventícios –
luso-brasileiros provenientes de Salvador, Rio de Janeiro, Pernambuco e também do
reino –, entre 1707-1709.17
Na vizinha Capitania de Pernambuco eclodia a Guerra dos
Mascates, que conforme apresentou George Félix Cabral de Souza, tivera a questão
municipal como o elemento chave do conflito, estendendo-se entre 1710 e 1711, ao
opor os endividados senhores de engenho – vincados a elite de Olinda – aos ricos
mercadores reinóis – instalados na Praça do Recife. Esses últimos agentes lutavam pela
redução do termo da Cidade de Olinda, com o estabelecimento da Câmara Municipal da
Vila do Recife.
Os conflitos não findavam por aí. Como havia afirmado Luciano Raposo de
Almeida Figueiredo, em seu estudo Revoltas, fiscalidade e Identidade Colonial na
América Portuguesa, os motins se espraiavam pelo restante das possessões lusas no
ultramar. Exemplo disso foi a Revolta do Maneta, que havia eclodido em Salvador da
Bahia, em 1711, ao envolver questões comerciais como, por exemplo, o monopólio do
sal e a elevação drástica dos impostos. A esse conflito, somar-se-ia outro nessa mesma
capitania, apenas um ano depois do primeiro, ou seja, em 1712, que havia se
caracterizado pelo levante de negros sublevados em Camamu e Maragugipe. Ainda nas
Minas, já em 1717, havia ocorrido uma série de conflitos decorrentes dos embates entre
os potentados do Rio das Velhas. Mais a oeste, ter-se-ia revoltas também no Cuibá, em
Mato Grosso.18
A esses embates somavam-se, desde meados do século XVII, até as
duas primeiras décadas do século XVIII, a Guerra dos Bárbaros, que havia envolvido
as Capitanias do Norte – Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará –, bem como os
sertões da Bahia, ao assolar os territórios situados a oeste da América portuguesa, ao
16 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 81-82. 17
BRANDÃO, Michelle Cardoso. Forjando status e construindo autoridade: perfil dos homens bons e
formação da primeira elite social em Vila do Carmo (1711-1736). Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009. p. 69. 18
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na
América Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1769). Tese (Doutorado em História)
– Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. p. 382.
267
opor os diversos grupos indígenas que aí residiam à expansão da frente de
colonização.19
Somar-se-ia a isso, em nível local, mas de modo pacífico, que no ano de 1701,
havia ocorrido à anexação da Capitania do Rio Grande à Capitania de Pernambuco.
Conforme havia pontuado Carmen Alveal, esse processo foi proveniente dos interesses
de um grupo local na Capitania do Rio Grande que estava diretamente vinculado com a
açucarocracia, como parte de um projeto mais amplo de sujeição das demais capitanias
“da repartição do Norte” à jurisdição da Capitania de Pernambuco. Coadunar-se-ia, a
essa hipótese, os interesses expansionistas dos envolvidos no processo de
Restauração.20
A isso, se acrescentaria, ainda, as constantes ameaças estrangeiras. De
acordo com Laura de Mello e Souza, “o século XVIII, portanto, teve início sob o signo
da crise, mesmo que em grande parte, o sentido permanecesse encoberto”.21
Foi nesse contexto truculento e eivado de incertezas que, possivelmente,
nascera Bento Ferreira Mouzinho, filho de Antônio Mouzinho.22
Contudo, não se
encontrou seu registro de batismo e nenhum outro documento que fizesse alusão a sua
idade, algo que se leva a conjecturar que ele tenha nascido entre a última década do
século XVII e a primeira década do século XVIII, posto que, como se verá adiante, em
6 de junho de 1715, já se encontrasse registros de sua presença pela Capitania do Rio
Grande.23
Certo foi, que Bento Ferreira antes de partir para a América portuguesa,
encontrava-se preso no Mosteiro de Alcobaça, sob a acusação de assassinato de outro
homem.24
Esse mosteiro estava situado na região da Estremadura, em uma área
caracterizada pela fertilidade de seus solos, e foi uma construção dos Monges
Cistercienses, entre os séculos XII e XIII.25
Alcobaça localizava-se em uma área
19 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e colonização no sertão nordeste do
Brasil (1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da EDUSP, 2002; PIRES, Maria Idalina da Cruz.
Guerra dos Bárbaros: resistência e conflito no Nordeste Colonial. Recife: Fundap/CEP, 1990. 20
ALVEAL, C. M. O. A Anexação da Capitania do Rio Grande em 1701: Estratégia da coroa ou interesse
de grupo da Capitania de Pernambuco?. In: Antonio Filipe Pereira Caetano. (Org.). Dinâmicas Sociais,
Políticas e Judiciais na América Lusa: Hierarquias, Poderes e Governo (Século XVI-XIX). 1ed. Recife:
Editora da UFPE, 2016, v. 1, p. 135-158. 21
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.108. 22
Sesmaria concedida a Bento Ferreira Mouzinho, em 19 de outubro de 1719. Plataforma SILB:
RN0401. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 21/10/2017. 23
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720) Fl. 77. 24
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297. 25
GONÇALVES, Maria Beatriz. Os Monges de Alcobaça e a política agrária de D. Dinis. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1997. p. 110.
268
delimitada a oeste pelo Oceano Atlântico e a leste pela Serra dos Candeeiros, encravada
na metade do caminho entre Lisboa e Coimbra.26
Possivelmente, foi devido a essa
fisiografia local, recheada de possibilidades, que Bento Ferreira Mouzinho havia
conseguido fugir daquele Mosteiro para a remota Capitania do Rio Grande.27
Salienta-se, ainda, que em 1706 subiu ao trono de Portugal D. João V, do qual
Bento Ferreira Mouzinho foi contemporâneo e de quem, reconhecidamente, obteve
diversas mercês ao longo de sua carreira administrativa nos trópicos que, de forma
limite, havia coincidido com este reinado. O Duque de Bragança havia herdado de seu
pai, D. Pedro II, um reino enfraquecido e sobrecarregado por vultosas dívidas, as quais
foram, mais tarde, saudadas e reequilibradas com o ouro proveniente da região das
Minas. Com o auxílio desse metal, dar-se-ia princípio ao impulso “da indústria
metalúrgica, da fabricação de sedas, de louças e de papel, entre outras”. Mesmo assim,
D. João V havia ficado taxado como “um fanático ensandecido quando realizava a
construção do Palácio de Mafra”.28
4. 2 As origens, a travessia do Atlântico e a chegada ao Rio Grande
Na América portuguesa, como visto anteriormente, as disposições e
vicissitudes sociais e políticas não eram muito diferentes daquelas que haviam afligido
o Portugal reinol no contexto da Guerra de Sucessão, mesmo que por motivações
diversas, assim como, outros eram também os contextos regionais, locais e humanos,
implicados nesses reveses. A menos de uma década, ter-se-ia ocorrido, em 1693, o
descobrimento do ouro, depois de séculos de buscas frustradas. A descoberta desse
metal, conforme havia pontuado Laura de Mello e Souza, era fator de instauração de
desequilíbrios sociais significativos. Exemplo disso foi o estabelecimento dos fluxos de
pessoas de São Paulo, do Rio de Janeiro, da Bahia, do reino e de outras partes do
26 COCHERIL, Maur. Alcobaça: abadia cisterciense de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1987. p. 21. 27
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297. 28
RIBEIRO, Maria Dulcyene. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, Matemática e
ensino da Engenharia Militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 10-20.
269
Império e do mundo para a região das Minas, pelo fascínio do enriquecimento rápido
que das bateias aluviais pudessem advir.29
Contudo, o estabelecimento de vias de mobilidade para o Novo Mundo, muitas
vezes, teve como finalidade o acrescentamento social, como mencionado anteriormente,
ligado sobremaneira à perspectiva de enriquecimento rápido que havia assolado o
ideário de homens e mulheres que não encontravam chances de ascensão econômica em
suas comunidades de origem, mesmo que tal opção também lhes fosse negada nas
regiões mineradoras.30
Outro elemento decisivo na escolha do destino para o qual se
queria rumar, como havia pontuado George Félix Cabral de Souza, foram às redes de
parentesco, que influíam decisivamente antes do transeunte resolver cruzar o
Atlântico.31
Possivelmente, além de estar imbuído pela concepção de acrescentamento
social, Bento Ferreira Mouzinho havia escolhido rumar para a Capitania do Rio Grande,
em meio às inúmeras possibilidades existentes – sobretudo quando se atenta para o
poder de atração que sobre os portugueses exercia a região aurífera das Minas –, talvez,
devido à existência de algum vínculo social ou afetivo. A escolha daquela capitania
podia estar relacionada aos vínculos familiares que o ligavam a algum parente já
instalado no Rio Grande. Sobre essa possibilidade, atenta-se para um requerimento de
título de sesmaria, datado de 26 de abril de 1735, ou seja, vinte anos depois de seu
primeiro registro na Capitania do Rio Grande, no qual Ferreira Mouzinho suplicava ao
Capitão-mor, João de Teive Barreto e Meneses (1734-1739), que lhe passasse carta de
data e sesmaria de seis léguas de terra de comprimento, por uma légua de largura, na
Ribeira do Trairi, a qual havia obtido por meio de compra efetuada aos herdeiros de seu
falecido pai, Antônio Mouzinho, sendo que daquelas seis léguas, três já haviam sido
adquiridas por meio de compra da parte que pertencia ao seu irmão, Manuel Bezerra do
Vale, e a outra parte foi comprada por seu cunhado, Manuel Guedes de Moura, que era
casado com uma filha do falecido. Salientava Bento Ferreira, na mesma petição, que
29 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 79-81. 30
Ibidem. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal,
2004. 31
SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la câmara
municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca,
Salamanca, 2007. p. 347.
270
possuía o direito jure domine da referida terra, posto que sua família fosse das primeiras
povoadoras da região.32
Através da análise dessa petição, depreende-se que Ferreira Mouzinho contasse
com a presença de alguns elementos familiares consanguíneos na Capitania do Rio
Grande. No entanto, não se pode precisar a data em que a família havia conseguido a
posse dessa gleba, visto que não se encontrou na documentação consultada nenhuma
referência à data de sesmaria em nome de Antônio Mouzinho. Isso inviabiliza afirmar
que a ida para a Capitania do Rio Grande se havia dado pela presença de seu pai nessa
localidade, ou mesmo que houvessem embarcado, juntamente com esse agente e outros
irmãos para o Novo Mundo. Contudo, verifica-se que Manuel Bezerra do Vale, irmão
de Bento Ferreira Mouzinho, já estivesse fixado na Capitania do Rio Grande desde, pelo
menos 1710. Depreende-se isso, mediante a leitura das justificativas que Bezerra do
Vale havia apresentado para efetuar a solicitação de uma concessão de sesmaria, datada
de 26 de janeiro de 1710. Nessa petição, Manuel Bezerra declarava que já ocupava as
terras pleiteadas, juntamente com Antônio Martins do Vale, há mais de oito anos, cujo
título de posse da referida terra havia pertencido, anteriormente, ao Alferes João do
Vale.33
Isso implicava na presença de Manuel Bezerra desde, teoricamente, 1702.
Vestígio ao qual se devia, possivelmente, a vinda para a Capitania do Rio Grande de
Bento Ferreira Mouzinho, ao fugir dos cárceres de Alcobaça.
Diante disso, conjectura-se que Bento Mouzinho fora impelido, em sua
travessia pelo Atlântico, da possibilidade de reconstrução de sua vida social nos
trópicos, distante das tormentas do crime que havia cometido no reino. Ainda assim, a
realidade social da Capitania do Rio Grande, na altura em que Bento Ferreira nela
aportou, não seria das mais ordeiras da América portuguesa, posto que os locais
estivessem a contemporizar o iminente perigo dos ataques indígenas, que subitamente
se insurgiam pelos sertões daquela capitania, sempre na espreita da Cidade do Natal.
Esse clima de tensão e receio generalizado por toda a Capitania do Rio Grande
era decorrente, do ponto de vista macroscópico, da Guerra dos Bárbaros, que
afugentavam as porções interiores do continente americano, sobretudo no norte da
América lusa, começando desde a Bahia, passando por Pernambuco, Paraíba e chegando
32 Sesmaria concedida a Bento Ferreira Mousinho, em 26 de abril de 1735. IHGRN – Fundo Sesmarias,
Livro III, n. 211, Fls. 96-98. 33
Sesmaria concedida a Manuel Bezerra do Vale e Antônio Martins do Vale, em 26 de janeiro de 1710.
IHGRN – Fundo Sesmarias, Livro II, n. 83, Fls. 43-44.
271
até o Rio Grande e o Ceará. A Guerra dos Bárbaros seria a denominação concedida à
série de conflitos que havia envolvido os diversos povos indígenas e os agentes
responsáveis pela conquista dos sertões, cujos embates se desenvolveram da segunda
metade do século XVII até as duas primeiras décadas do século XVIII.34
No interior
desse grande conflito motivado pela expansão das áreas de criação do gado, com o
adensamento da povoação do território, têm-se, para o caso da Capitania do Rio Grande,
a Guerra do Açú, responsável pelo processo de territorialização da região banhada pelas
águas do Rio Açú, que entre 1684 e 1720 opusera conquistadores aos grupos indígenas
que se situavam nessa região, para a formação de um novo espaço social na Capitania
do Rio Grande, a partir da implementação da atividade pecuária.35
Nesse contexto, era comum a ocorrência de entradas e de bandeiras, com vistas
ao aprisionamento de índios, sobretudo efetivadas pelos oficiais das companhias de
ordenanças locais, mas também pela tropa paga ou mesmo por companhias de
particulares. Salienta-se que a estrutura militar que agia no Império dividia-se entre a
tropa paga e, portanto, regular, que figurava na 1ª linha e, na 2ª linha, se encontravam as
ordenanças, constituídas por cidadãos empenhados devido à obrigatoriedade dos
vínculos de vassalagem, cujo recrutamento se dava pelos próprios concelhos
municipais. A essas organizações se somavam, em momentos de crise, os terços
auxiliares.36
Assim, como deliberava os preceitos sobre as organizações das tropas no
Império, nas quais deviam servir nas ordenanças “toda a população masculina livre não
recrutada pela tropa de linha, nem pertencente às milícias, entre dezesseis e sessenta
anos, segundo uns autores, e dezoito e sessenta anos, segundo outros”,37
poder-se-ia
compreender o ingresso de Bento Ferreira Mouzinho nessas organizações, no primeiro
registro que demarca sua presença na Capitania do Rio Grande. Aponta-se, ainda, que a
compreensão da estrutura do oficialato das companhias de ordenanças locais seja um
elemento decisivo para o entendimento da própria estruturação da sociedade do Antigo
34 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e colonização no sertão nordeste do
Brasil (1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da USP, 2002. p. 34-35. 35
SILVA, Tyego Franklim. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações depoder na
territorialização do Assu colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 16-17. 36
SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:
Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.
39. 37
Ibidem., p. 61.
272
Regime na América portuguesa, dado o caráter cada vez mais crescente, que a
militarização passaria a assumir pelo Império.
De acordo com Kalina Vanderlei, o enquadramento funcional de toda a
população urbana – com exceção dos escravos – e, portanto, da massa livre, nas
hierarquias militares das companhias de ordenanças locais, foi o principal elemento
responsável pelo caráter militarizado que pintava a administração institucional, mas
também toda a sociedade colonial.38
Indicativo dessa impregnação da sociedade pela
dimensão militar, poderia ser visualizada na leitura que os elementos sociais faziam de
si mesmos e dos outros. Percebe-se isso, quando se observa na documentação que o
tratamento dispensado aos agentes passava corriqueiramente pela referência às patentes
que detivessem no interior das hierarquias milicianas, quer fossem da tropa paga ou da
tropa burocrática.
Ainda conforme pontuou Kalina Vanderlei, a situação de militarização da
sociedade proviria da mesma feição que grassava na sociedade portuguesa reinol que,
sem sombra de dúvidas, havia se estendido para o além-mar.39
Graças a isso, reverbera
aquela autora, a Coroa lusitana pôde assegurar o domínio do mando institucional nas
diversas partes da sociedade colonial.40
Diante disso, têm-se que Bento Ferreira Mouzinho, certamente por ser
encontrar em idade apta, pouco depois de aportar à Capitania do Rio Grande, o que
havia acontecido em 1714, como deixa entrever uma carta de Bento Mouzinho escrita à
D. João V, em 1739, na qual esse agente afirmava ter “vinte e cinco anos nesta
Capitania sempre em ofícios e lugares públicos de escrivão do judicial e da Câmara,
provedor comissário dos defuntos e ausentes, juiz de órfãos, escrivão da Fazenda Real e
agora provedor dela”.41
seria provido, em 6 de junho de 1715, no posto de Alferes da
Companhia de Ordenança de João Carvalho de Lima, na Ribeira do Potengi.42
Esse
provimento foi efetuado pelo então Capitão-mor do Rio Grande, Domingos Amado
(1715-1718) que, exatamente um ano antes, em 6 de junho de 1714, seria nomeado para
38 SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:
Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.
66. 39
Ibidem., p. 56. 40
Ibidem., p. 44. 41
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 211. 42
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720) Fl. 77.
273
o comando geral da referida Capitania.43
Pontua-se que essa provisão de Ferreira
Mouzinho para o posto de alferes, teria sido manuscrita por Estevão Velho de Melo que,
no momento, exercia a serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal. Com esse
agente, verificar-se-ia, ao longo das décadas de 1720 até o início de 1740, nexos a
interliga-lo à Bento Ferreira Mouzinho.
Como visto acima, Bento Mouzinho passaria a figurar no quadro miliciano
local da Capitania do Rio Grande no posto de alferes, sua nomeação ocorria em face do
afastamento de Gonçalo de Freitas que o exercia anteriormente.44
Com essa patente,
deveria, juntamente com um sargento-mor, servir de oficial auxiliar ao capitão-mor de
ordenanças responsável pela companhia da qual fazia parte.45
Ressalta-se, ainda, que ao
capitão-mor de ordenanças coubesse à escolha ou a indicação do alferes e do sargento-
mor que os auxiliaria, garantindo-lhes que muitos dos providos fossem elementos de sua
inteira confiança.46
Diante disso, conjectura-se que após aportar na Capitania do Rio
Grande e, talvez, devido aos possíveis vínculos familiares que já existissem nessa
localidade, Bento Ferreira Mouzinho seria uma das pessoas de confiança do Capitão
João Carvalho de Lima, pois o teria provido nessa patente para servir-lhe de auxiliar no
comando da Companhia da Ribeira do Potengi. Evidencia-se o prestígio da ocupação
que coubera a Ferreira Mouzinho, dado que, teoricamente, cada companhia de
ordenança seria composta por 10 esquadras de 25 homens,47
o que lhe conferiria não
apenas poder simbólico por meio de sua patente, mas também prestígio social e político.
Conforme José Eudes Gomes chamou a atenção, a própria estrutura
hierárquica dessas companhias de ordenanças refletia a divisão social prescrita pela
organização estamental lusitana do Antigo Regime. Corrobora-se, com isso, que a posse
de terras seria o vetor de acesso as insignes dos postos superiores de comando das
companhias de ordenanças e, consequentemente, de distinção social. Isso decorria do
fato de as câmaras municipais serem as responsáveis pelo provimento das patentes de
capitão-mor de ordenanças, as quais cabiam aos indivíduos que fossem senhores de
43 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 77 .
44 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720) Fl. 77. 45
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 46
Ibidem. 47
Ibidem, p. 58.
274
terras na mesma localidade.48
Mesmo nesses casos, o capitão-mor era responsável pela
indicação de todos os oficias sob seu comando, com confirmação régia ou do capitão-
mor ou governador-geral, a essas autoridades coube à concessão das patentes apenas aos
senhores da terra, dado o efeito político dessas trocas, sem o devido serviço d’Armas.
Neste final do XVII, as patentes passaram a ser mais vigiadas e sua distribuição
diminuída.49
Contudo, reitera-se, que não se encontrou na documentação consultada, posse
de terras pelo Capitão João Carvalho de Lima – que havia provido Bento Ferreira no
comando de alferes. Isso sinalizaria para a frouxidão que as prescrições legais
enfrentavam quando se chocavam com as realidades locais.
Seis meses após a nomeação para o posto de alferes de uma Companhia de
Ordenanças, em 22 de dezembro de 1715, Bento Ferreira Mouzinho seria provido pelo
Capitão-mor do Rio Grande, Domingos Amado – o mesmo que teria confirmado a sua
nomeação na patente de alferes –, para os ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de
tabelião do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande.50
Com esse
provimento, Ferreira Mouzinho passaria a integrar o núcleo da principal agência de
representação das elites locais da Capitania do Rio Grande, mesmo que investido em
um ofício não honorável, sobreviria figurar entre os indivíduos da governança da terra,
algo que por si só, lhe conferiria prestígio e distinção social. Somar-se-ia, ainda, com o
ingresso de Bento Ferreira na escrivania camarária do Natal, a possibilidade de esse
agente se inserir nas redes de poder local, onde invisivelmente também estavam os
potentados locais, a movimentarem-se no tabuleiro político da capitania.
Com aquela provisão, o novo escrivão da Câmara do Natal, o Alferes Bento
Mouzinho, passaria a dividir o cotidiano institucional com os membros da nobreza
local. Integrava-se, assim, aos dois principais polos de poder da Natal Setecentista, que
fossem: a câmara e as companhias de ordenanças locais. Dessa inserção na escrivania
camarária, dar-se-ia princípio as amistosas relações que o vincularia aos elementos das
principais famílias locais e das quais, possivelmente, obteria dividendos simbólicos e
materiais, como se verá adiante.
48 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 49
Ibidem., p. 132-133. 50
Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06
(1713-1720), Fl. 77 v.
275
Observa-se também que sua investidura no ofício de escrivão concelhio
somente teria ocorrido após haver sido designado para o comando de alferes. Disso,
deduz-se que o provimento em determinados ofícios camarários fosse diretamente
dependente da nomeação do agente social para uma patente importante na hierarquia
das ordenanças locais. Isso ocorria, talvez, a partir de um mecanismo de
retroalimentação desse sistema, no qual galgar um determinado ofício camarário fosse
condicionado ao indivíduo deter um posto específico nas ordenanças e, conforme isso
fosse ocorrendo, poder-se-ia chegar a outras ocupações de maior prestígio social e
influência política nas localidades. Acrescenta-se a isso, que no levantamento do perfil
social dos escrivães concelhios da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759, vistos no
capítulo anterior, não se observou o exercício do ofício de escrivão dessa edilidade
sendo concedido a indivíduos que estivessem, quando da nomeação, a ocupar postos
inferiores ao de alferes, nas companhias de ordenanças.
Corroboraria essa hipótese, que dentre as justificativas apresentadas pelo
Capitão-mor Domingos Amado (1715-1718), para o provimento do Alferes Bento
Ferreira naqueles ofícios, figurasse a ressalva de que além de ser uma pessoa de
satisfação e merecimentos “pela boa informação que dele deram os oficiais da câmara e
por ter já servido o dito ofício de tabelião com boa satisfação”.51
Dessa maneira,
depreende-se que Ferreira Mouzinho houvesse, em algum momento não muito distante,
servido no tabelionado da Cidade do Natal. Provavelmente, isso teria ocorrido antes de
sua nomeação para o posto de alferes de ordenança, o que o inabilitou a exercer a
escrivania camarária do Natal, pois como o Capitão-mor, Domingos Amado (1715-
1718), teria afirmado no mesmo documento, ambos os ofícios andavam anexos um do
outro.52
Observa-se também que o anterior ocupante da escrivania camarária do Natal,
o Capitão Estevão Velho de Melo – o mesmo que teria redigido a nomeação de Bento
Ferreira para o posto de alferes de ordenança –, detivesse, quando de sua saída daquele
ofício, uma patente superior a de Bento Ferreira Mouzinho.53
Nesse sentido, como
pontuou José Eudes Gomes, a patente de capitão de ordenança seria concedida,
geralmente, a agentes que detivessem a posse da terra, o que representaria a
51 Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06
(1713-1720), Fl. 77 v. 52
Ibidem. 53
Ibidem.
276
“preocupação régia em respeitar a autoridade representada pelo senhorio das terras”.54
Essa situação demonstraria como o poder miliciano – representado nesse caso pela
posse de patentes das companhias de ordenanças –, o poder camarário – mediante o
exercício dos ofícios dessa instituição e nesse caso em apreço da escrivania camarária,
que seria de caráter eminentemente patrimonial – e a posse de terras, estavam
indissociavelmente imbrincados na constituição do perfil social da elite política da
Capitania do Rio Grande, dada a fusão entre esses três elementos.
A primeira provisão do Alferes Bento Ferreira Mouzinho para o ofício de
escrivão concelhio, assinalaria também para o caráter patrimonial de ambos. De acordo
com as informações do Capitão do Rio Grande, Domingos Amado (1715-1718), o
tabelionado do público, judicial e notas dessa capitania, bem como a escrivania
camarária do Natal, eram ofícios anexos um do outro.55
Como se discutiu no capítulo
anterior, a propriedade desses ofícios foi concedida, em dois diferentes períodos do
século XVIII, a dois indivíduos.
No momento que o Alferes Bento Ferreira havia assumido a serventia de
ambos os ofícios, a propriedade deles pertencia, desde 16 de outubro de 1704, ao
Cavaleiro do Hábito de São Bento de Avis, Francisco Álvares de Lima, radicado em
Lisboa, que então estaria a exercer o ofício de tesoureiro dos bens dos confiscados na
Junta da Inconfidência,56
na Corte. No entanto, Álvares de Lima para garantir a
concessão da carta de propriedade dos ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de
tabelião público do Rio Grande, estabeleceu, em 28 de março de 1705, João Baptista
Campeli e Paulo Campeli de Azevedo procuradores com plenos poderes sobre os
mesmos e inclusive com a capacidade de substabelecer outros procuradores.57
Ante isso,
nove meses depois, em 19 de dezembro de 1705, os Campelis haviam substabelecido
Manuel de Melo e Albuquerque como mandatário na Capitania do Rio Grande, também
gozando das prerrogativas de plenos poderes sobre aqueles ofícios.58
Possivelmente, Manuel de Melo e Albuquerque ainda seria o procurador
substabelecido de Francisco Álvares de Lima, sobre os direitos da propriedade do ofício
54 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 55
Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77 v. 56
Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 74. 57
Ibidem. 58
Ibidem.
277
de escrivão e de tabelião público, em 1715. Afirma-se isso, pois a outra procuração
identificada, com as mesmas conotações e regalias da anterior, somente foi encontrada
após a escolha do novo proprietário desses ofícios, em dezembro de 1717, quando El
Rey havia escolhido, por meio de edital, o Comissário Geral de Cavalaria do Recife,
José Ribeiro Riba, por falecimento de Francisco Álvares, sem que deixasse herdeiros.59
Quando da nomeação do Alferes Bento Mouzinho para as serventias desses ofícios, em
22 de dezembro de 1715,60
servia nesse mesmo ano de almotacé da Câmara do Natal, o
Comissário Geral de Cavalaria, Manuel de Melo e Albuquerque,61
após uma estada de
seis anos consecutivos no ofício de vereador da Câmara do Natal.62
A escolha do Comissário Manuel de Melo e Albuquerque, enquanto procurador
com plenos poderes sobre a escrivania camarária do Natal e do tabelionado público do
Rio Grande, do Alferes Bento Ferreira Mouzinho, demarcaria, com alguma
probabilidade, o início dos laços que vincularam esse escrivão a Manuel de Melo e a sua
grande parentela, que contribuiria, inclusive, para a formação de uma rede clientelar
mais extensa. A atuação dessa rede marcaria profundamente o caráter de instabilidade
social e política na Capitania do Rio Grande na década de 1720, ao disputar com outra
facção local a hegemonia política pelos ofícios honoráveis do Concelho da Cidade do
Natal, sobretudo os de juiz ordinário.
4.3 “Causando bandos e fomentando inimizades diabólicas”
Ao que parece, a saída de Estevão Velho de Melo da escrivania da Câmara do
Natal, seguida da entrada de Bento Ferreira Mouzinho, seria na verdade um desiderato
das disposições do então Provedor da Fazenda Real do Rio Grande, João da Costa e
Silva, juntamente com o Capitão-mor Domingos Amado. Como se verá adiante, esses
três agentes formaram, juntamente com Estevão Velho de Melo, uma rede clientelar,
que havia se caracterizado, pela prestação mútua de serviços materiais e mesmo
59 Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de
Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 60
Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77 v. 61
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0708, Fl.(s)
102-102v. 62
Ibidem., p. 96, 106, 117, 119, 125.
278
simbólicos. Na contrapartida dos quais, se teria a submissão política, como apontou
Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, onde figuraria o “effectus em troca
de affectus”.63
Essa seria, possivelmente, a primeira rede de apoio político na qual Bento
Mouzinho havia se filiado. A primeira de muitas, pois, como se verá adiante, esse gente
estabeleceria várias outras alianças, mesmo que nas palavras do Capitão mor João de
Teive Barreto e Menezes, em carta à D. João V, em 3 de dezembro de 1739, fosse, na
verdade, “causando bandos e fomentando inimizades diabólicos”.64
Segundo Raphel Bluteau, o termo “bando” se referia a “[...] partido, partes,
parcialidade [...] ser do bando de alguém [...] ser do mesmo bando, facção”.65
A partir
disso, se pode pensar que Bento Mouzinho foi extremamente hábil no estabelecimento
de grupos políticos pela Capitania do Rio Grande. Coligações essas que mudaram ao
sabor das circunstâncias conforme os interesses do próprio Ferreira Mouzinho. A
passagem da carta do Capitão mor, João de Teive, assinala, ainda, que a formação
dessas facções políticas jogava também com a instauração de intrigas e ingerências
entre seus membros, cujo responsável por orquestrar essas tramas seria o próprio Bento
Mouzinho.66
Assinala-se, ainda, que mesmo que a primeira provisão de Bento Ferreira
Mouzinho tenha ressaltado a atuação satisfatória, como afirmava o Capitão-mor
Domingos Amado (1715-1718), quando se referiu ao desempenho desse agente no
tabelionado público da Cidade do Natal – antes de assumir esse ofício de forma
conjunta com a escrivania camarária, em 1715 –, verificou-se também que aquele
documento houvesse omitido a conduta tabelional irregular de Ferreira Mouzinho.
Destaca-se que esse alferes, quando assumiu sua primeira provisão no ofício de tabelião
público, ter-se-ia envolvido em uma contenda litigiosa, ao culpar o Aferes Antônio
Barbosa, do assassinato do Coronel Manuel Nobre67
cujos verdadeiros criminosos
haviam sido Manuel Correia Pestana e seu cunhado, Gregório Oliveira da Costa.68
63 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,
António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.
p. 143. 64
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297. 65
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...
Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. v. 2. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>. Acesso em: 03/03/2018. Ver verbete “bando”. 66
AHU-RN, loc. cit. 67
Ibidem., Cx. 03, Doc. 211. 68
Ibidem., Cx. 05, Doc. 297.
279
O Capitão Manuel Correia Pestana havia sido vereador da Câmara do Natal,
eleito para o mandato de 1713,69
não assumindo o honorável ofício posto que houvesse
sido provido para almoxarife da Fazenda Real nesse mesmo ano.70
Além disso, Manuel
Pestana era casado com Úrsula Ferreira de Melo, filha de Estevão Velho de Melo – com
quem Correia Pestana também contemporizava nas lides burocráticas da Real Fazenda,
ao exercer o ofício de almoxarife –71
e de Joana Ferreira de Melo.72
Assim, decorria
disso, provavelmente, o fato do tabelião público, Bento Ferreira Mouzinho, haver
isentado de suas culpas Manuel Pestana e seu cunhado, Gregório de Oliveira, quando do
crime que haviam cometido. Essa situação, curiosamente, demonstra o sobrepeso das
relações clientelares do Antigo Regime, visto que Estevão Velho de Melo
“compensaria” o favor prestado por Bento Ferreira Mouzinho, pouco tempo depois, ao
isentar seu genro, Correia Pestana, do crime de assassinato que havia cometido, ao lhe
deixar vaga à serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal, que acumulava
juntamente com escrivania da Fazenda Real, desde 1713, por sua “própria vontade”.73
Essa situação caracterizar-se-ia como sintomática da indissociação, que
prevaleceu na sociedade do Antigo Regime, entre os interesses da esfera pública e da
esfera privada, onde quase sempre prevaleciam as vontades familiares. De acordo com
Sérgio Buarque de Holanda, essas foram as características que haviam demarcado o
perfil do “funcionário patrimonial”, dado que a gestão política seria caracterizada pela
presença de interesses escusos, no mais das vezes pessoais, mas não objetivos, como
ocorria no Estado Burocrático.74
No entanto, deve-se considerar, conforme os
apontamentos de António Manuel Hespanha, que a presença dos interesses familiares
amoldando o direcionamento institucional não seria de todo ilegítimo, visto que a
compreensão da instituição familiar se constituía de maneira modelar na experiência
69 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0628, Fl.(s)
068v-069. 70
Ibidem., Doc. 0655, Fl.(s) 080v-081. 71
Ibidem., Doc. 0837, Fl.(s) 004. 72
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1727-1740. 73
Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77 v. 74
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p. 207-
208.
280
social. Disso provinha toda a série de obrigações morais e jurídicas que tocavam aos
integrantes de um mesmo clã em qualquer situação que estivessem.75
Talvez, em face dessas regras que permeavam o tecido social mais amplo,
sobre as obrigações dos integrantes de uma mesma estirpe, assim como da forma de
proceder do Capitão Estevão Velho de Melo, que havia interferido – mesmo que a custa
da penalização de um inocente –, pela estabilidade social de sua família, ao trocar a
serventia de um ofício na administração local por um favor prestado, não fosse de todo
compreendida como imoral pela sociedade. Disso, possivelmente, decorresse a
possibilidade de Bento Ferreira Mouzinho, mais uma vez, servir não apenas de tabelião
público, mas também de escrivão camarário do Natal. No entanto, mesmo que houvesse
conseguido novamente ser provido no tabelionato da Cidade do Natal, Mouzinho teria
abandonado essas atividades após se filiar ao partido do Capitão Estevão Velho,
libertando seu genro, Manuel Pestana, da penalização do crime que havia cometido,
imputando-o a Antônio Barbosa.76
Após isso, Bento Ferreira Mouzinho recolheu-se aos
sertões do Rio Grande, largando o ofício de tabelião por medo de visita do corregedor
da capitania.77
Transcorrido algum tempo para que aquele delito caísse no esquecimento,
afirmava o então Capitão-mor João de Teive Barreto e Menezes (1734-1739), em 03 de
dezembro de 1739, Bento Ferreira havia retornado a solicitar a serventia do ofício de
tabelião, ao qual se juntava a escrivania camarária do Concelho do Natal. Segundo
aquele capitão-mor, essa situação se deu com certa facilidade, devido a ambos os ofícios
possuírem rendimentos anexos.78
Assim, o Alferes Bento Ferreira Mouzinho havia
conseguido a primeira provisão para a serventia do ofício de escrivão da Câmara do
Natal, em 22 de dezembro de 1715,79
no qual permaneceria servindo, continuamente,
até 1732.80
75 HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos
histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social. v. 28. 1993. p. 951, 954, 955,
957. 76
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297. 77
Ibidem. 78
Ibidem. 79
Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77 v. 80
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 1125, Fl.(s)
123v.
281
Após dois anos de efetivo desempenho na serventia da escrivania camarária do
Natal, em 15 de maio de 1717, o Alferes Bento Ferreira Mouzinho seria agraciado com
patente de Tenente de Cavalos das Ribeiras de Goianinha, Cunhaú e Mipibú.81
De
acordo com António Manuel Hespanha, essas companhias de cavalos serviram para
processar o enquadramento militar – em certo sentido, diferenciador das companhias de
infantaria – dos componentes dos núcleos das edilidades.82
Ressalta-se, conforme as
ponderações desse autor, que o desempenho desses postos milicianos, em nível local,
não era passível de se auferir ganhos monetarizados, pois seus proveitos advinham da
honra que seria conferida aos titulares, sobretudo aqueles de altas patentes.83
Infere-se
dessas ponderações, que em 1717 o escrivão da Câmara Bento Ferreira Mouzinho seria
reconhecido publicamente como um elemento da governança local, pois estaria em uma
companhia que seria ocupada preferencialmente por homens de cabedais significativos,
sobretudo daqueles que compunham os ofícios de cúpula das edilidades – como juiz
ordinário, vereador e procurador.
Evidencia-se que a promoção do escrivão concelhio do Natal, o Alferes Bento
Ferreira Mouzinho, para o posto de tenente de Cavalos estivesse diretamente
relacionada com as trocas de favores processadas entre esse agente e outros integrantes
de sua rede clientelar, nesse caso, especialmente com Manuel de Melo e Albuquerque,
já que esse agente foi sido provido, em 20 de agosto de 1706, para o posto de Capitão
de Infantaria de Cavalos das Ribeiras de Goianinha, Cunhaú e Mipibú,84
onde estaria
servindo quando Bento Ferreira ascendeu ao posto de tenente de cavalos da mesma
companhia e dos mesmos distritos. Assim, como visto anteriormente, aos capitães das
companhias seria facultada a escolha dos oficiais que os auxiliavam no comando do
regimento.85
A partir dessa diretiva, pode-se compreender que as companhias de
ordenanças, conforme apontou Maria Fernanda Bicalho, haviam se constituído em uma
fonte autônoma de poder em nível local.86
Ainda mais quando se visualiza que o
81 Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77 v. 82
HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. nota 20, p. 198. 83
Ibidem.,. p. 191. 84
Fundo documental do IHGRN, op. cit., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 100. 85
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 86
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 376.
282
provimento em seus quadros dar-se-ia através dos favoritismos, que embasavam as
relações sociais nas estruturas mentais do Antigo Regime, e que, não raras vezes, além
de poder simbólico, prestígio e status, a concessão de patentes de ordenanças
funcionava no sentido de cooptar indivíduos para as redes clientelares, ao jogarem com
suas vaidades pessoais de ganho de poder simbólico, possíveis através da barganha de
patentes das ordenanças.
Mas seria através de sua nomeação para a patente de Capitão de Infantaria de
Ordenança da Ribeira de Goianinha, concedida em 13 de agosto de 1718,87
que se pôde
averiguar a lista de serviços que o então Tenente de Cavalos, Bento Ferreira Mouzinho,
havia prestado a El Rey desde que houvesse aportado na Capitania do Rio Grande, como
forma de justificar a nomeação para a graduação de Capitão de Infantaria que estaria a
pleitear. Nesse rol, enumerava-se a participação militar de Ferreira Mouzinho nas
companhias de ordenanças pelas quais havia passado. A primeira gradação que havia
ocupado nessas organizações, a serviço de Sua Majestade, foi no posto de soldado e
depois de alferes da Companhia da Ribeira do Potengi.88
Assim, com as patentes de soldado e de alferes, Bento Ferreira havia feito
diversas entradas aos sertões da Capitania do Rio Grande, muitas custeadas por ele
mesmo, mas sempre a guerrear contra o “gentio bárbaro”, em várias ocasiões que
haviam sido necessárias.89
A carta patente para o posto de Capitão de Infantaria, pintava
Ferreira Mouzinho como sendo “muy obediente aos seus oficiais maiores, dando inteiro
cumprimento em tudo que por eles foi ordenado com muito honrado procedimento”.90
Acrescentava essa carta, que no momento de sua expedição, em 13 de agosto de 1718,
Mouzinho estivesse a ocupar a patente de tenente de cavalos, bem como servindo no
Senado da Câmara do Natal, na condição de escrivão dessa instituição.91
Por tudo isso, se justificaria a concessão do posto de Capitão de Infantaria da
Ribeira de Goianinha à Bento Ferreira Mouzinho. Percebe-se que esse tipo de carta –
cuja tipologia denomina-se de carta patente –, configura-se como uma espécie de
memorial dos serviços militares prestados, além de que muito jogavam com a questão
da memória e da representação que seus providos tinham quanto as suas próprias
87 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 99v. 88
Ibidem. 89
Ibidem. 90
Ibidem. 91
Ibidem.
283
trajetórias pessoais. A carta, não raro, seria o lugar reservado para a descrição daquilo
que abrilhantava os percursos militares dos candidatos a uma patente mais alta. Assim,
ao mesmo tempo em que a carta patente fazia lembrar, de maneira inversa, promovia o
esquecimento. Atenta-se a isso, pois nesses relatos não constavam as motivações que
haviam impelido Ferreira Mouzinho a rumar para os sertões do Rio Grande – que como
visto no início desse capítulo, se remetia aos crimes que primeiro teria cometido no
reino e, no segundo momento, quando havia incorrido em delito no ofício de tabelião
público, durante o exercício da primeira provisão para o tabelionado. Por fim, reitera-se
que a carta patente do posto Capitão de Infantaria, não fizesse referência alguma a vida
pregressa de Mouzinho no reino.
Infere-se, a partir da leitura desse documento, que Bento Ferreira Mouzinho,
possivelmente, não gostasse de rememorar seu passado obscuro na Corte. Afinal, isso
poderia lhe trazer restrições quanto ao sucesso de suas ambições. A partir dessa carta
patente, compreende-se que a vida social daquele agente havia começado no Novo
Mundo, com suas ações valorosas nos rompantes conflitos que o opusera aos índios, nas
diversas patentes que até então havia se ocupado nas companhias de ordenanças locais,
prestando relevantes serviços a El Rey e no exercício da escrivania da câmara
municipal. Esses serviços, mais tarde, lhes serviriam como moeda de troca, no contexto
da economia de mercês, que movimentava e dinamizava o Império, para a obtenção de
benesses reais, as quais se haviam se configurado como a base estruturante da cultura
política, na sociedade portuguesa do Antigo Regime.
Esse percurso inicial de Bento Ferreira Mouzinho, nas estruturas
administrativas e milicianas locais da Capitania do Rio Grande – assim como toda a sua
trajetória na administração ultramarina –, seria um caso emblemático para se perceber,
como afirmou Maria Fernanda Bicalho, o universo de possibilidades que as conquistas
das áreas d’além-mar haviam passado a oferecer, não apenas para a Coroa lusitana, mas
também aos vassalos, sobretudo devidas às diversas demandas por prestação de serviços
militares à El Rey que, na sequência, foram arrolados a fim de se receber as tão
desejadas mercês régias.92
Pois, como acrescenta Maria de Fátima Silva Gouvêa,
92 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América
portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. In: Almanack Brasiliense, n. 2, nov., 2005. p. 23.
284
sempre se fazia algo na espera de uma recompensa, a partir da tríade “dar, receber e
retribuir”.93
Não tardaria para que esses serviços fossem novamente acionados como
justificativas para as extensas solicitações de terras efetuadas por Bento Ferreira
Mouzinho. Assim, ao pleitear a posse de uma data de sesmaria localizada na Ribeira do
Rio Pium, em 19 de outubro de 1719, o Capitão Bento Ferreira, alegaria que além de
não possuir terras para morar, também não as teria para poder plantar ou mesmo para
criar gados.94
Essas terras requeridas por Bento Ferreira confrontavam com as sesmarias
de outros senhores de origem reinol como, por exemplo, Antônio Lopes de Lisboa95
–
que havia exercido a escrivania da Câmara do Natal, entre 1679-1688 –,96
e o Coronel
Carlos de Azevedo do Vale.97
Cogita-se, possivelmente, que existisse algum vínculo
entre esses três reinóis, sobretudo quando se atenta ao último sobrenome do Coronel
Carlos de Azevedo, pois possuía a mesma alcunha do irmão de Bento Mouzinho, o
Manuel Bezerra do Vale. Contudo, não foi possível rastrear a verossimilhança
documental desse vínculo. Em seguida, constata-se no título de sesmaria que dois dias
depois de efetuado o requerimento de posse, em 21 de outubro de 1719, o Capitão
Bento Ferreira Mouzinho havia obtido a carta de doação da gleba de terra, em
deferimento que dela fez o Capitão-mor, Luiz Ferreira Freire (1718-1722).98
Aponta-se que essa carta de solicitação de título de sesmaria, havia passado
também pelas mãos do Provedor da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande, João da
Costa e Silva, e do escrivão da Fazenda, Estevão Velho de Melo.99
De acordo com o
Capitão-mor João de Teive Barreto e Meneses (1734-1739), em carta à D. João V, de 03
de dezembro de 1739, Bento Ferreira Mouzinho havia “caído nas graças” do então
recém-nomeado Provedor Costa e Silva, o qual lhe introduziu “por errado” e pela
93 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos.
Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,
jan.- jun., 2004, p. 121. 94
Carta de sesmaria doada a Bento Ferreira Mouzinho em 19 de outubro de 1719. Plataforma SILB –
RN 0401. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 19/09/2017. 95
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1761-1769. 96
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673
– 1690). Fl. 44v, 106v; LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do
Senado da Câmara do Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no
prelo). p. 24, 28, 32, 35, 39, 43, 45, 48, 51, 55. 97
Carta de sesmaria doada a Bento Ferreira Mouzinho em 19 de outubro de 1719. Plataforma SILB –
RN 0401. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 19/09/2017. 98
Ibidem. 99
Ibidem.
285
primeira vez no ofício de tabelião público.100
Acrescenta-se a isso, que diante das
relações de troca de favores entre o Provedor Costa e Silva, o escrivão da Câmara do
Natal, Bento Ferreira Mouzinho, o Capitão-mor do Rio Grande Domingos Amado e o
então escrivão da Fazenda Real dessa capitania, Estevão Velho de Melo, haviam
estabelecido uma rede clientelar. Essa seria baseada, possivelmente, na troca de
concessões materiais, mas, além disso, de informações privilegiadas entre esses
representantes das três principais esferas da administração, em nível local, da Capitania
do Rio Grande: a Câmara do Natal, a Provedoria Real da Fazenda e a Fortaleza dos
Santos Reis.
Conjectura-se que esses homens tivessem em comum as suas origens exteriores
à Capitania do Rio Grande, aonde, com alguma probabilidade, haviam aportado quase
de maneira concomitante, como se pode verificar de suas provisões para os ofícios que
exerceram nessa capitania.
Como visto anteriormente, Bento Ferreira Mouzinho era oriundo do reino,101
Estevão Velho de Melo proviria da Freguesia de São Cosme e Damião de Igarassu, na
Capitania de Itamaracá,102
João da Costa e Silva teria arribado no Rio Grande em 1714,
onde havia permanecido até 1719,103
e, por fim, Domingos Amado, que por mais de
dezoito anos serviu a El Rey na Província da Beira e em outras partes do Império, sendo
nomeado para o posto de Capitão-mor do Rio Grande, em 06 de junho de 1714,104
do
qual tomaria posse um ano depois, em 20 de junho de 1715.105
Destaca-se que Estevão Velho de Melo havia passado a servir o ofício de
escrivão da Câmara do Natal em 1713, por solicitação dos oficiais da Câmara do Natal
ao então Capitão-mor do Rio Grande, Salvador Álvares da Silva (1711-1715).106
Pouco
antes de ser nomeado escrivão da Câmara, Velho de Melo teria sido agraciado também
100 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.
101 Ibidem.
102 TRINDADE, João Felipe. O Escrivão da Fazenda Real, Estevão Velho de Mello. Natal, 26 jun.
2012. Disponível em: <https://putegi.blogspot.com.br/search?q=Estev%C3%A3o+Velho+de+Melo>
Acesso em: 13/09/2017. 103
BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Nos trâmites da fiscalidade: Aspectos administrativos da
Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1660-1723). Monografia (Graduação em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 38. 104
AHU-RN, op. cit., Cx. 01, Doc. 77. 105
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 31. 106
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0665, Fl.(s)
084-084v.
286
com o provimento para o exercício da almotaçaria, nos meses de setembro e outubro de
1713.107
No ano seguinte, em 1714, Estevão de Melo passaria a exercer a escrivania da
Fazenda Real da Capitania do Rio Grande, por provimentos dos Governadores Gerais
do Estado do Brasil e pelo Governador de Pernambuco, Félix José Machado.108
Nesse meio termo, o Alferes Bento Ferreira Mouzinho foi nomeado para a
escrivania da Câmara do Natal, em 1715.109
Com tudo isso, depreende-se da análise
dessas provisões, que João da Costa e Silva, Domingos Amado e Bento Ferreira
Mouzinho, haviam chegado coetaneamente à Capitania do Rio Grande. Isso, talvez,
fosse indicativo da motivação para o fomento dos laços de amizades, os impulsionando,
em seguida, a elaborarem uma rede clientelar, a interligar os componentes das três
principais estruturas administrativas locais. Soma-se a essa rede, Estevão Velho de
Melo, que havia se fixado nessa capitania havia algum tempo, pelo menos desde 09 de
julho de 1703, quando se constata sua presença na Cidade do Natal, apadrinhando uma
escrava de Manuel Rodrigues Taborda.110
Mas a vinda de Velho de Melo para o Rio
Grande, como apontado no capítulo anterior, havia sido motivada pela prestação de
serviços como cabo de esquadra no Terço Paulista de Domingos de Morais Navarro,111
que tinha como objetivo conter as sublevações do gentio durante a Guerra dos
Bárbaros.
Com a nomeação de Estevão Velho para Capitão de Cavalos, assim como
havia ocorrido com Bento Ferreira Mouzinho e outros escrivães que haviam servido
nesse ofício, entre 1613 e 1759, constata-se que o provimento da serventia da escrivania
camarária da Cidade do Natal, tenha ocorrido, geralmente, em homens que haviam
lutado nos diversos embates e conflitos que, em conjunto, formaram a chamada Guerra
dos Bárbaros.
Ao que tudo indica, se a atuação durante a Restauração portuguesa havia
funcionado, para o caso do ofício de escrivão da Câmara de Natal, como elemento
107 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0647, Fl.(s)
077v-078. 108
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 83. 109
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77v. 110
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX02. DOC. 0069
(8v). 111
Fundo documental do IHGRN, op. cit., Fl. 45v.
287
facilitador de acesso a propriedade desse ofício, juntamente com o tabelionado do
público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande, para a serventia dos mesmos se
havia levado em consideração as relações políticas e militares dos contextos locais.
Exemplo disso foi às entradas aos sertões da Capitania do Rio Grande, a luta contra os
indígenas e a consequente expansão daquilo que se denominou no capítulo anterior da
fronteira interna, que separava o mundo civilizado – representado pelo litoral leste do
Rio Grande e onde estavam sediadas as principais instituições do mando português –,
do mundo da barbárie – dito como aquele habitado pelos indígenas e ainda não inserido
na lógica do domínio português. Desse modo, mais uma vez, constata-se que o processo
de conquista/colonização, também passava pela escrivania camarária do Natal, como
um mecanismo que se prestava a fixação dos recursos humanos que vinham contribuir
com o avanço do domínio português para os sertões.
Ao se retornar novamente a rede clientelar sugerida pela constante troca de
favores entre Domingos Amado, Estevão Velho, Bento Ferreira Mouzinho e João da
Costa e Silva, foi verificada, por exemplo, a rápida ascensão que Bento Ferreira
Mouzinho grassou no interior da hierarquia das companhias de Ordenanças. Pois, se
1715 deixaria de ser soldado e passaria a Alferes,112
em 15 de maio de 1717, alçaria ao
posto de Tenente de Cavalos das Ribeiras de Cunhaú, Goianinha e Mipibú,113
ambas as
patentes providas pelo Capitão-mor, Domingos Amado.114
Enquanto isso, para o caso
dos ganhos auferidos através dessa rede clientelar por Estevão Velho de Melo, observa-
se a barganha de um chão de terra na Cidade do Natal, para poder exercer os ofícios que
desempenhava na administração local, como havia alegado em sua petição, datada de 09
de maio de 1716,115
bem como as provisões para o ofício de escrivão da Fazenda Real
da Capitania do Rio Grande.
Adiciona-se, a isso, que aquela solicitação de chão de terra por Estevão Velho
de Melo, bem como seu deferimento, tenha sido redigida por Bento Ferreira
Mouzinho.116
Estevão de Melo havia conseguido também protelar, por provisões
112 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77. 113
Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720 – 1728). Fl. 179v. 114
Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06 (1713-1720). Fl. 77;
Ibidem., Livro 7 (1720 – 1728). Fl. 179v. 115
Carta de chão de terra doada a Estevão Velho de Melo, em 09 de maio de 1716. Plataforma SILB:
RN 1162. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 19/09/2017. 116
Ibidem.
288
temporárias, efetuadas pelo Capitão-mor Domingos Amado, até 1718 para a sua
permanência no ofício de escrivão da Fazenda Real, enquanto não chegavam às
provisões dos Governadores de Pernambuco ou dos vice-reis do Estado do Brasil.117
Adir-se, ainda, que àquele capitão-mor havia provido Estevão Velho de Melo algumas
vezes na serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal,118
concedendo-lhe,
inclusive, uma patente de capitão de cavalos.119
Não obstante, pondera-se que os ganhos obtidos por Domingos Amado não
sejam passíveis de se verificar documentalmente. Contudo, deve-se inclinar para a
hipótese de que o caráter de acesso privilegiado às informações que eram obtidas pelos
escrivães camarários e da Fazenda, bem do acesso que esses oficiais tinham à memória
institucional, posto que ficassem sob suas tutelas os livros de cartas e provisões, os
livros de rendas e despesas do sendo, as chaves dos cofres da câmara – onde, ficavam
resguardados objetos valiosos, como ouro e joias, mas também as listas dos elegíveis
para os postos honoráveis da câmara120
–, houvessem sido as vantagens obtidas pelo
Capitão-mor Domingos Amado, posto que “relações assimétricas de amizade – relações
de poder – tivessem tendência para derivar em relações do tipo clientelar”.121
Após a saída de Domingos Amado do posto de Capitão-mor do Rio Grande,
em 1718, verifica-se que a rede clientelar formada entre Bento Ferreira Mouzinho, João
da Costa e Silva e Estevão Velho de Melo ainda permaneceria sólida por algum tempo.
No entanto, percebe-se que o grupo vislumbrou a inserção de outro integrante no intuito
de compensar a perda do apoio político de Domingos Amado. O possível comparte que
entraria nesse grupo seria o novo Capitão-mor do Rio Grande, Luiz Ferreira Freire
(1718-1722). Presume-se tal probabilidade, dado que Ferreira Freire nomearia, pouco
depois de sua chegada à capitania, Bento Ferreira Mouzinho para Capitão de Infantaria
da Ribeira de Goianinha.122
117 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 83.
118 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl.44v. 119
Ibidem. 120
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. 2. ed. Lisboa: Fundação Colouste Gulbenkian,
1984. Liv. I, Tít. 71. 121
XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,
António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.
p. 340. 122
Fundo documental do IHGRN, op. cit., Fl. 99v.
289
Outro indicativo da possível tentativa de inserção de Luiz Ferreira Freire
àquela rede clientelar, havis sido o deferimento efetuado por àquele Capitão-mor do
requerimento de 19 de outubro de 1719, no qual Bento Mouzinho, solicitava a posse,
em título de sesmaria, de uma propriedade encravada nas proximidades do Rio
Pirangi.123
Nessa mesma solicitação, verificou-se a influência decisiva que prestou para o
deferimento do pedido do suplicante as ponderações de Estevão Velho de Melo, então
escrivão da Fazenda Real, e do Provedor da mesma, João da Costa e Silva. Pois, quando
Luiz Ferreira Freire requereu informações sobre a situação das terras ao escrivão da
Fazenda, Estevão Velho respondeu que as glebas peticionadas não estavam dadas a
ninguém e que em face do que havia ordenado El’ Rey, as mesmas deviam ser
concedidas a quem, de fato, residisse na capitania, como seria o caso do suplicante,
Bento Ferreira Mouzinho. Tais Alegações foram reafirmadas categoricamente pelo
provedor Costa e Silva.124
Outra tentativa de aproximação entre Luís Ferreira Freire e
Bento Ferreira Mouzinho, foi quando aquele Capitão-mor solicitou à Câmara do Natal a
indicação de pessoas para o ofício de almoxarife, devido ao falecimento de Manuel
Correia Pestana,125
sendo escolhidos os Capitães André Rodrigues da Conceição, João
Moreira e Manuel Guedes de Moura,126
sendo este cunhado e sócio de Bento Ferreira
Mouzinho.127
Tudo isso demonstra a intrínseca associação entre o exercício político dos
ofícios e a barganha de ganhos que deles pudessem advir. Relações essas que eram
regidas por uma lógica clientelar, que se pautavam, de acordo com Ângela Barreto
Xavier e António Manuel Hespanha, na concessão de mercês aos mais amigos e que se
banalizava no cotidiano social, materializando na verdade o princípio das estruturas
sociais.128
123 IHGRN – Fundo Sesmarias, Livro III, n. 198, Fl. 43.
124 Ibidem.
125 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720
– 1728). Fl. 30. 126
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0837, Fl.
004. 127
Sesmaria concedida a Bento Ferreira Mousinho, em 26 de abril de 1735. IHGRN – Fundo Sesmarias,
Livro III, n. 211, Fls. 96-98. 128
XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,
António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.
p. 339.
290
No entanto, ao que parece, com a saída de João da Costa e Silva, em 1719, da
Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande,129
a rede clientelar ficaria esfacelada.
Restaria apenas o Tenente Coronel Estevão Velho de Melo e o Capitão Bento Ferreira
Mouzinho. A amizade entre ambos se arrastaria ao longo das décadas de 1720 e 1730,
quando desempenharam simultaneamente os ofícios de escrivão camarário do Natal –
em 1719 e 1725-1726.130
Ou no juizado de órfãos, em 1730, quando Bento Ferreira era
o juiz dessa vara, e Estevão Velho o tesoureiro dela.131
Cogita-se que a amizade entre Estevão de Melo e Ferreira Mouzinho tenha
sobrevivido até a morte daquele, que, provavelmente, teria ocorrido entre às décadas de
1730 e 1740, já que em 1746 seus herdeiros estavam a pedir, por meio de requerimento
a D. João V, que perdoassem as propinas que haviam sido recebidas de maneira
indevida dos contratos dos dízimos da Capitania do Ceará por seu pai, a partir de 1732
em diante.132
Os vínculos entre Bento Mouzinho e Estevão Velho caracterizar-se-ia
como uma amizade inquebrável, mesmo que ao longo desses anos, possivelmente,
estivessem em causa posições políticas distintas.133
Certo seria que Bento Ferreira
Mouzinho se uniria, mais tarde, com outras figuras importantes da Capitania do Rio
Grande, com as quais estabeleceria novas redes clientelares, pautadas numa “economia
de mercês” ou “economia de favores”.134
Com tudo isso, percebe-se que as redes clientelares que haviam interligado
diferentes indivíduos por meio da troca de favores materiais, simbólicos ou a título de
informação, configuraram-se como uma constante no universo local da Capitania do Rio
Grande, no início da primeira metade do século XVIII. Adir-se, ainda, que essas redes
eram justapostas no espaço integrando não apenas os indivíduos, mas também as
instituições nas quais esses agentes estivessem inseridos. Assim, por meio disso, cada
129 BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Nos trâmites da fiscalidade: Aspectos administrativos da
Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1660-1723). Monografia (Graduação em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 38. 130
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 146; 176; 180. 131
Ibidem, p. 197. 132
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 315. 133
Sobre amizades inquebráveis Xavier e Hespanha apontaram a discussão sobre esse sentimento em
Aristóteles. Para saber mais ver XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes
Clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4.
Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 342. 134
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida.; SANTOS, Marília Nogueira dos.
Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,
jan.- jun., 2004, p. 98.
291
um dos integrantes das redes clientelares havia contribuído para o engrandecimento e a
solidificação dessas estruturas, através do fornecimento de recursos que estivesse ao
alcance imediato de cada um dos envolvidos, mesmo que para isso lançassem mão de
suas posições políticas no interior das instituições das quais faziam parte, dado que, não
raras vezes, os elementos de troca que reforçavam os vínculos relacionais entre os
membros das redes, foram os dispositivos de benefícios controlados pelas instituições
onde estivessem inseridos. Isso acenaria, ainda, para o próprio processo de formação
das fortunas das famílias no Antigo Regime, lançando mão da apropriação do
patrimônio do erário régio em benefício próprio, sobretudo para fins particulares.
Essa rede formada pelo escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira
Mouzinho, e os demais integrantes – assim como as várias outras que formaria ao longo
de sua trajetória administrativa no além-mar –, sinalizava para a relação indissociável
entre poder e conhecimento na gestão do Império português. Sobre isso, Maria de
Fátima Silva Gouvêa, discutiu o caráter imprescindível das redes de poder e
conhecimento para a sustentação da governação do Império, sobretudo após deslindar a
complexidade das redes familiares, de parentesco e até mesmo comerciais, que
envolviam vários altos oficiais – como, por exemplo, a família Lencastre –, imbuídos do
governo, em diferentes porções do ultramar.135
Assim, com a presente trajetória administrativa do escrivão da Câmara do
Natal, Bento Ferreira Mouzinho, poder-se-ia perceber que as estratégias de que haviam
se utilizado os componentes dos altos círculos administrativos do Império, também
foram constantemente acionados pelos oficiais menores da administração que, situados
localmente, também visualizavam nas redes de poder e conhecimento seu caráter
imprescindível para a garantia da hegemonia do poder político, bem como da
possibilidade de se utilizarem delas para promoção da distinção e da diferenciação
social. Isso seria possível devido ao fato de esses agentes sociais partilharem os mesmos
códigos culturais, provenientes da cultural política do Antigo Regime, que servia de
atmosfera mental e valorativa, bem como de pano de fundo das práticas e das estratégias
tecidas pelos indivíduos e seus grupos, em uma sociedade impregnada pela necessidade
da busca de prestígio, como vetor de enobrecimento.
135 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida.; SANTOS, Marília Nogueira dos.
Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,
jan.- jun., 2004, p. 101-102.
292
No entanto, como apregoou António Manuel Hespanha, a ascensão social nas
sociedades do Antigo Regime, era demarcada pelo seu caráter extraordinário que apenas
proviria do poder do rei e que, como afirmou aquele autor, “quase não se via; pouco se
se esperava e mal se desejava”.136
Em contrapartida, em face do percurso de Bento
Ferreira Mouzinho, sobretudo de sua rápida ascensão no interior da hierarquia das
ordenanças, como se visualizou anteriormente, percebe-se que mesmo que a chancela
maior dependesse de El Rey para que o indivíduo pudesse galgar a ascensão social na
sociedade do Antigo Regime, os agentes sociais eram capazes de, no plano local,
traçarem estratégias que lhes possibilitassem chegar a serem merecedores das benesses
régias. O caminho trilhado por Bento Ferreira Mouzinho representaria essa
possibilidade, mas também acrescentava a ela que nem sempre seria necessário que Sua
Majestade necessitasse tomar conhecimento do que ocorria no universo local. E como
se viu no início desse texto, possuir uma patente de ordenanças, sobretudo nos postos
mais altos, seria sinônimo de prestígio e de distinção social. Desse modo, pode-se
afirmar que as câmaras municipais e os capitães mores, assim como o rei, também
haviam desempenhado o papel de instrumentos da promoção da mobilidade social nas
estruturas da sociedade do Antigo Regime, configurando-se como vias de agenciamento
retroalimentares, ao passo que os camarários ao concederem chãos de terras e os
capitães mores das capitanias proverem as patentes das companhias de ordenanças
locais, possibilitaria aos agraciados subir nos escalões da hierarquia social e mais
possibilidades lhes eram facultadas no interior da sociedade do Antigo Regime. O
ingresso no ofício de escrivão da Câmara do Natal por Bento Ferreira Mouzinho, logo
após ser provido na patente de alferes, indicaria isso. Sobretudo se se leva em
consideração o caráter miliciano da sociedade Setecentista.
4.4 Família, prestígio e poder
Com essas mesmas conotações, dar-se-ia a segunda provisão do Alferes Bento
Ferreira Mouzinho para o ofício de escrivão da câmara e de tabelião, em 1716, também
136 HESPANHA, António Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. In: Revista
Tempo. v. 11, n. 21, 2006, p. 122-123.
293
efetuada pelo Capitão-mor, Domingos Amado.137
No entanto, esse ano seria demarcado,
no universo pessoal e familiar de Ferreira Mouzinho pelo nascimento de seu filho
primogênito.138
Para António Manuel Hespanha, “o amor dos pais pelos filhos, era
superior a todos os outros, funda-se no sentimento de que os pais se continuam nos
filhos”.139
Seria a partir dessa concepção, segundo aquele autor, que se fundamentaria a
hierarquização das noções de amor na sociedade do Antigo Regime, confluindo,
inclusive, para o universo jurídico, visto que estaria na base da própria questão
sucessória no momento da transmissão das heranças. Hespanha acrescentaria, ainda, que
“o pai amava mais os filhos do que a mulher”, pelo fato dos filhos representarem a
possibilidade de continuação dos pais e consequentemente de uma mesma casa.140
Nesse sentido, pode-se, a partir dos apontamentos de António Manuel
Hespanha sobre o universo que envolvia o amor filial nas sociedades do Antigo
Regime, inferir a importância do nascimento do primeiro filho para Bento Ferreira
Mouzinho. Contudo, não se existe fontes que fossem possíveis de retratar o significado
desse momento para aquele escrivão, posto que também não se encontrou nem mesmo o
registro de batismo de Rodrigo Guedes Alcoforado Mouzinho. Possivelmente, Rodrigo
não houvesse nascido na Capitania do Rio Grande, mas fosse originário da vizinha
Itamaracá, onde parte significativa da família Guedes Alcoforado, pela ascendência de
sua mãe, Jerônima Guedes, fosse radicada.141
Não obstante, pode-se afirmar que
Rodrigo Guedes iria se fazer presente em alguns momentos críticos, como se verá
adiante, da vida de seu pai. Principalmente, envolvendo-se juntamente com o escrivão
Bento Mouzinho em algumas contendas litigiosas, tanto na Capitania do Rio Grande,
quanto na de Itamaracá.
Reverbera-se que, conforme apontou José Victoriano Borges da Fonseca, em
seu clássico Nobiliarquia Pernambucana, o escrivão e, posteriormente, Coronel Bento
Ferreira Mouzinho, iria constituir uma descendência significativa, ligando-se a
importantes famílias das Capitanias do Rio Grande, de Itamaracá, Paraíba e
137 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77v. 138
Fundo documental do IHGRN. Livro de Assentamento de Praça. Livro 1, Fl. 142. 139
HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos
histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social. v. 28. 1993, p. 955. 140
Ibidem., p. 956. 141
BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4. Mossoró:
Fundação Vingt-Un Rosado, 1993. p. 140.
294
Pernambuco, mesmo que em alguns momentos os membros dessa organização familiar
houvessem privilegiado o casamento endogâmico. A seguir, no Gráfico 13 apresenta-se
a configuração da rede familiar de Bento Ferreira Mouzinho.
Gráfico 13 - A família do escrivão da Câmara do Natal Bento Ferreira Mouzinho
Gráfico 13. Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.
142
295
Como se observa no Gráfico 13, o tronco da família da esposa de Bento
Ferreira Mouzinho, remonta a João Guedes Alcoforado – ou João Guedes de Moura –,
possivelmente o bisavô de Jerônima – não se pode afirmar veementemente que fosse
seu avô devido a grande quantidade de homônimos na família. João Guedes de Moura
havia sido designado por carta régia do Rei Felipe III, em 15 de dezembro de 1634, que
levantasse uma companhia de 200 homens, entre as regiões do Douro e do Minho, e
rumasse para a Cidade do Porto, onde havia embarcado para socorrer à Capitania da
Paraíba.143
João Guedes Alcoforado era casado com Catarina de Albuquerque Silva da
Rocha – filha de Afonso Coelho Velho e neta, portanto, de Pedro Coelho Velho –, com
quem tivera quatro filhos, Afonso Guedes Alcoforado, Felipe Guedes Alcoforado,
Pedro Guedes da Silva e João Guedes Alcoforado,144
os quais seguiram com o pai, João
Guedes, no Galeão São Bento para defender a Capitania da Paraíba da invasão
holandesa.145
Segundo Felgueiras Gaio e José Victoriano Borges da Fonseca, o bisavô da
esposa de Bento Mouzinho, João Guedes Alcoforado, havia sido fidalgo da Casa Real,
capitão de infantaria, de cavalos e de mar e guerra durante a Dinastia Filipina. Além
disso, havia servido também no Brasil, como alcaide-mor da Vila da Conceição, na
Capitania de Itamaracá, vindo a falecer em São Tomé, durante o exercício do posto de
governador dessa praça.146
Através desse breve histórico da família de Jerônima Guedes Alcoforado,
pode-se perceber que com esse matrimônio, o escrivão da Câmara do Natal, Bento
Ferreira Mouzinho, ligava-se a uma das famílias mais poderosas da Capitania de
Itamaracá e, mais tarde, da Paraíba que, como se verá adiante lhe traria outros
dividendos materiais e alguns problemas políticos. Assim, Bento Mouzinho também
142 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir de BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano.
Nobiliarchia Penambucana. v. 4. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 1993. p. 140; Livro de
Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz de Nossa
Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. Plataforma SILB – Sesmarias do Império
Luso-Brasileiro; Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro
de Casamentos, 1740-1752; AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 229; AHU-PB, Papéis Avulsos,
Cx. 11 Doc. 933; GAIO, Felgueiras. Nobiliário de famílias de Portugal / Felgueiras Gaio (1750-1831).
Braga: Agostinho de Azevedo Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, 1938-1942. v. 17. p. 25; 143
AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 22. 144
GAIO, Felgueiras. Nobiliário de famílias de Portugal / Felgueiras Gaio (1750-1831). Braga: Agostinho
de Azevedo Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, 1938-1942. v. 17. p. 24-25. 145
AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 229. 146
GAIO, op. cit., p. 25; BORGES DA FONSECA, op. cit., p. 409-410.
296
havia se preocupado com um momento que mais implicações sociais traziam para a vida
pessoal e social dos indivíduos no século XVIII: o casamento. Essa “consciência”,
possivelmente o houvesse impelido a contrair matrimônio com D. Jerônima Guedes
Alcoforado. O próprio epíteto de “dona” que figurava no nome da esposa do escrivão da
câmara seria desde logo indicativo de sua preeminência e posição social, pois as
mulheres que sustentavam essa alcunha eram, em geral, porque detinham a posse de
terras, conforme pontuou Raphael Bluteau.147
Nesse sentido, buscou-se confirmar a posse de terras por D. Jerônima Guedes,
através da qual se averiguou a retenção de uma data de sesmaria, concedida em 03 de
janeiro de 1740, pelo então Capitão mor da Capitania do Rio Grande, Francisco Xavier
de Miranda Henriques (1739-1751).148
Essa carta havia sido peticionada por D.
Jerônima Guedes Alcoforado e por sua filha, Maria Guedes Alcoforado. A localização
da referida gleba situava-se no Riacho Bento Ferreira, na Ribeira do Açú.149
Curiosamente, o topônimo do fluxo fluvial era o mesmo que o do marido e do pai das
requerentes. Reverbera-se que não se identificou a posse de terras por Bento Ferreira
Mouzinho na Ribeira do Açú, porém esse agente foi nomeado em 1736 para a patente
de Coronel da Ribeira do Apodi,150
onde, como se verá adiante, esse agente possuía
interesses comerciais e fiscais ligados à pecuária bovina. Essa data de sesmaria de
Jerônima Guedes sinaliza, ainda, para o jogo de conveniências e vantagens processado
pelas redes clientelares, pois a sobredita carta havia passado também pelo deferimento
do Provedor da Fazenda Real do Rio Grande, o Dr. Teotônio Fernandes Temudo,151
que
seria sócio do marido da requerente nos negócios do imposto do gado do vento, na
Ribeira do Apodi.152
Segundo apontou Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, na Nobiliarquia
Pernambucana, o escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, juntamente
147 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...
Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. v. 2. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>. Acesso em: 31/10/2017. Ver verbete “dona”. 148
CARTA de Sesmaria doada a Jerônima Guedes Alcoforado e Maria Guedes Alcoforado, em 03 de
janeiro de 1740. Plataforma SILB- RN 0488. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca.
Acesso em: 05/03/2018. 149
Ibidem. 150
Fundo documental do IHGRN. Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17
(1728 – 1736). Fl. 159. 151
CARTA de Sesmaria doada a Jerônima Guedes Alcoforado, loc. cit. 152
BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos, Fiscalidade e
Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, v. 5.
n. 9, jan.-jun., 2016, p. 242-243.
297
com sua esposa, Jerônima Guedes Alcoforado, tinham outros filhos além de Rodrigo
Guedes Alcoforado Mouzinho e Maria Guedes Alcoforado. Dentre esses, poder-se-ia
citar o nome de outros como, por exemplo, Bento Ferreira Guedes, Jerônimo Guedes e
Bernarda Guedes.153
O matrimônio entre Bento Ferreira e Jerônima Guedes, vincularia aquele
escrivão a outras importantes famílias da Capitania do Rio Grande, como por exemplo,
com o oficial da Câmara do Natal, o Coronel Roberto Gomes Torres, que era casado
com D. Isabel Guedes, irmã, portanto, D. Jerônima Guedes e cunhada de Bento Ferreira
Mouzinho. Assinala-se esse vínculo entre Mouzinho e os Gomes Torres, visto que em
diferentes momentos do século XVIII, haviam servido como oficiais honoráveis da
Câmara do Natal o Coronel Roberto Torres e o seu pai, o Coronel Manuel Gomes
Torres.154
Esse havia ocupado o honorável ofício de juiz ordinário da Câmara do Natal,
dentre outras vezes, em 1715,155
quando o Alferes Bento Ferreira Mouzinho havia
ingressado na Câmara do Natal como escrivão.156
Assim, observa-se por meio desse caso, que não existissem limitações para o
exercício da escrivania da Câmara do Natal, de maneira concomitante, com outros
parentes exercendo os honoráveis ofícios concelhios. Outro exemplo dessa mesma
situação envolvendo o Capitão Bento Ferreira Mouzinho, foi que serviria o ofício de
escrivão da Câmara do Natal em 1723 e 1724, simultaneamente com seu sogro, o Juiz
Ordinário João Guedes Alcoforado.157
Essa situação poderia facilitar que os rumos da
administração incorressem para o processo de oligarquização dos ofícios municipais,
como chamou a atenção Nuno Gonçalo Monteiro. De acordo com esse autor as câmaras
tendiam, pelo próprio processo de escolha de seus integrantes a serem cada vez mais
oligarquizadas.158
No entanto, a participação conjunta do Capitão Bento Ferreira Mouzinho, que
exercia a serventia do ofício de escrivão camarário, e seu sogro no de juiz ordinário,
153 FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia Pernambucana. v. 1. In: Anais da
Biblioteca Nacional, vol. XLVII, 1918. p. 140. 154
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 155
Ibidem., Doc. 0733, FL(s) 113-113v. 156
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77v. 157
LOPES, op. cit., p. 164, 169. 158
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel
(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 288.
298
implicava na emergência de outras questões. Exemplo disso seria a tendência à fraude
das eleições municipais, dado que cada uma das três chaves do cofre onde se guardavam
os pelouros, como os nomes dos elegíveis, bem como com objetos de valor e as somas
de dinheiro arrecadadas pela câmara, deviam ficar, cada uma, respectivamente nas mãos
do escrivão da edilidade, outra com o juiz ordinário e a terceira com o vereador mais
velho. Posteriormente, discutir-se-á como essas diretivas, estipuladas pela própria
legislação – as Ordenações Filipinas (1603-1917) – foram capazes de condicionarem a
escolha dos integrantes da cúpula camarária do Natal na década de 1720.
Adir-se, ainda, que o filho primogênito do escrivão da Câmara do Natal,
Rodrigo Guedes Alcoforado Mouzinho, associar-se-ia ao seu pai, Bento Ferreira, já na
década de 1740, em algumas querelas acerca da arrematação dos Contratos do Gado do
Vento – imposto pago pelos proprietários dos animais que não fossem registrados –, na
Ribeira do Apodi, juntamente com outros sócios do dito escrivão, em um movimento
que ficaria conhecido na historiografia como Revolta dos Magnatas.
4.5 “O principal agressor de tão atroz delito”
Após o esfacelamento da primeira rede clientelar, o escrivão da Câmara do
Natal, Bento Ferreira Mouzinho, se aliaria a Manuel de Melo e Albuquerque nas peitas
contra o novo Capitão-mor do Rio Grande, Luís Ferreira Freire (1718-1722), cujo
estopim teria sido o fato de esse capitão haver tomado por amásia uma sobrinha de
Manuel de Melo e Albuquerque. Em linhas gerais, este conflito foi esboçado por
Marcos Arthur Viana da Fonseca, ao realizar um levantamento historiográfico sobre o
governo de Luís Ferreira Freire e, contando com outros conjuntos documentais,
concedeu inteligibilidade distinta aos embates entre os oficiais camarários e aquele
capitão-mor, segundo o qual a administração de Ferreira Freire teria ocorrido pelo apoio
militar de seus subordinados.159
Ainda assim, sabe-se que Bento Ferreira Mouzinho, à
época do governo de Luís Ferreira Freire, permanecia na serventia do ofício de escrivão
159 FONSECA, Marcos A. V. da. 'A perdição de toda a capitania': jurisdições e governabilidade na
administração do capitão-mor Luís Ferreira freire (1718-1722). In: V Seminário Internacional História
e Historiografia, 2016, Recife. Anais Eletrônicos do V Seminário Internacional História e
Historiografia. Recife: Editora UFPE, 2016. p. 1266-1276.
299
da Câmara do Natal e que Manuel de Melo e Albuquerque, encontrava-se nos anos de
1718, 1721 e 1722 exercendo o ofício de vereador daquela edilidade.160
Assim, quando o Alferes Bento Mouzinho passou a exercer a escrivania
camarária do Concelho do Natal em 1715,161
o Comissário Geral de Cavalaria, Manuel
de Melo e Albuquerque, já estaria presente nos quadros da Câmara do Natal havia cinco
anos.162
Decorria disso, possivelmente, o estabelecimento de laços de solidariedade
entre esses dois homens, os quais haviam sido estreitados ainda mais quando Ferreira
Mouzinho havia sido provido para o posto de Tenente de Cavalos das Ribeiras de
Cunhaú, Goianinha e Mipibú,163
da qual Manuel de Melo seria Capitão de Cavalos,
desde 1706.164
Essa vinculação entre Manuel de Melo e Bento Ferreira, somadas às
atitudes de Luís Ferreira Freire para com os edizes, possivelmente, faria com que o
Capitão Bento Ferreira Mouzinho vingasse as atrocidades cometidas por esse capitão-
mor, principalmente contra a família Melo e Albuquerque.
Como apontou Tarcísio de Medeiros Filho ao dedicar sua análise sobre a
administração de Luís Ferreira Freire, a sobrinha de Manuel de Melo e Albuquerque que
teria sido raptada foi Maria de Sá, filha de Matheus Rodrigues de Sá,165
que era irmão
de Eugênia Rodrigues de Sá, portanto, sobrinha, cunhado e esposa de Melo e
Albuquerque, respectivamente.166
Somar-se-ia ao rapto, o fato de que quando Manuel de
Melo enviou uma carta para que Luís Ferreira Freire devolvesse sua sobrinha e sua
escrava, aquele capitão-mor mandaria, em seguida, prendê-lo dentro da câmara escura
da Fortaleza dos Santos Reis.167
De acordo com Tarcísio Medeiros, Vicente de Lemos e
Gonçalves Dias, o Capitão-mor Luís Ferreira Freire teria sofrido um atentado a tiro em
22 de fevereiro de 1722, falecendo uma semana depois, mas que jamais se havia
descoberto o verdadeiro culpado do crime.
160 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 161
Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 77v. 162
LOPES, op. cit., p. 96. 163
Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720
– 1728). Fl. 179v. 164
Ibidem. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 107. 165
LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do
Norte: 1701-1822. v. 2. Natal: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1980. p. 35-36. 166
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (f. 17);
LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. op. cit., p. 35-36. 167
DIAS, Gonçalves. Anotações ao catálogo dos capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. t. 17. 13ª série, n. 15, 3º trim./1854. p. 38-40.
300
Contudo, tem-se uma pista sobre o assassino de Ferreira Freire quando, em 25
de julho de 1725, o então Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca (1722-
1728), que havia substituído Luís Ferreira Freire, após o crime que lhe tirou a vida,
enviou uma carta à D. João V, na qual relatava que o escrivão da Câmara do Natal,
Bento Ferreira Mouzinho, e Manuel de Melo e Albuquerque, haviam burlado as eleições
para o senado daquela edilidade.168
Nessa mesma carta, Pereira da Fonseca reiterava as
ameaças que havia recebido por parte do escrivão, Bento Mouzinho, em plena sessão de
vereação, segundo o qual José Pereira houvesse de “morrer como havia morrido o
capitão-mor antecessor”.169
Mesmo diante desse indício, não seria de todo possível
culpar Bento Ferreira Mouzinho da morte de Luís Ferreira Freire.
No entanto, quando da devassa instaurada após a acusação do Capitão-mor
João de Teive Barreto e Meneses (1734-1739), vinte e três anos depois do assassinato
de Luís Ferreira Freire, no momento da expedição do parecer, em 5 de novembro de
1745, concluiu-se a investigação apontando como único culpado Bento Ferreira
Mouzinho. Segundo, os ministros do Concelho Ultramarino, de posse de todo o arsenal
de consultas, pareceres e devassas instauradas, Ferreira Mouzinho seria “o principal
agressor de tão atroz delito”, mesmo que o Capitão-mor Luís Ferreira Freire tivesse se
utilizado de toda a prudência possível para que não lhe matassem, Bento Mouzinho o
teria feito com uma “espingardada”, antes que finalizasse seu governo no Rio Grande.170
Disso se compreende o porquê de Ferreira Freire utilizar-se de 50 soldados que,
segundo os oficiais camarários, haviam sido deslocados da Fortaleza para a proteção
particular da casa de Ferreira Freire.171
No entanto cabem algumas ponderações sobre a devassa na qual o escrivão
camarário do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, havia sido considerado culpado do
assassinato do Capitão mor Luís Ferreira Freire (1718-1722). A primeira delas remeter-
se-ia a própria carta queixa que havia sido enviada à Corte com vistas a denunciar as
“sinistras intenções e o orgulhoso ânimo” de Bento Mouzinho. O denunciante do
escrivão Bento Ferreira foi o então Capitão mor do Rio Grande, João de Teive Barreto e
Menezes (1734-1739) que, segundo a devassa, “andarão sempre em contínuas questões
168 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 02, Doc. 114.
169 Ibidem.
170 Ibidem, Cx. 05, Doc. 297.
171 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06
(1713-1720). Fl. 139.
301
um contra o outro”.172
Ao analisarem-se os documentos manuscritos avulsos do
Concelho Ultramarino, referentes à Capitania do Rio Grande, averiguou-se que a
primeira contenda opondo João de Teive e Bento Ferreira Mouzinho deveu-se aos
gastos excessivos do capitão mor com papel e correios para a Capitania de Pernambuco,
como constava em uma carta, datada de 02 de março de 1736, para D. João V.173
Mesmo que o emitente dessa carta tenha sido o Provedor da Fazenda Real da Capitania
do Rio Grande, o Dr. Timóteo de Brito Quinteiro, a epístola havia sido redigida por
Bento Ferreira Mouzinho, que então ocupava, concomitantemente, os ofícios de
escrivão da Fazenda Real,174
escrivão da Câmara do Natal e juiz de órfãos da Capitania
do Rio Grande.175
Além de haver manuscrito a carta, Bento Ferreira Mouzinho anexou a mesma
uma certidão que havia sido expedida pelo Dr. Tomás da Silva Pereira, ouvidor geral da
Capitania da Paraíba, em sindicância à Provedoria da Fazenda do Rio Grande, na qual o
ouvidor instituiu limites nos custos arcados pela provedoria com gastos de papel e
correios por parte dos capitães-mores.176
Acredita-se que Bento Ferreira Mouzinho,
diante de algumas ingerências do Capitão mor João de Teive, como se verá a seguir,
tenha apoiado seu superior imediato na Fazenda Real, o Provedor Timóteo de Brito
Quinteiro.
No entanto, as dissidências entre o Capitão mor, João de Teive Barreto e
Menezes (1734-1739) e o Provedor da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande,
Timóteo de Brito Quinteiro, prosseguiram pelo ano de 1736 em diante, pois, dezesseis
dias depois do envio da primeira missiva, em 18 de março de 1736, o provedor enviava
para D. João V outra carta, com vistas a informar que João de Teive estaria a lhe
pressionar para que saísse da provedoria da Fazenda Real a ajuda de custo das despesas
que esse capitão havia tido ao assistir a arrematação dos dízimos reais das Ribeiras do
Açú e do Apodi.177
Disso decorreu um longo conflito, que havia envolvido outros
oficiais da administração régia local e da Capitania de Pernambuco, promovido pelas
ingerências do capitão mor em jurisdições que não eram de sua alçada, como havia
172 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.
173 Ibidem., Cx. 03, Doc. 210.
174 Ibidem.
175 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 198. 176
AHU-RN, loc. cit. 177
Ibidem., Cx. 03, Doc. 211.
302
afirmado, de maneira taxativa, o Governador de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira, em
represália ao Capitão João de Teive e em apoio ao Provedor da Fazenda, Timóteo de
Brito Quinteiro.178
Não obstante, essa disputa pela ajuda de custo, perpetrada pelo Capitão mor,
prosseguiria até 1739 quando, por morte de Timóteo de Brito Quinteiro entre 1737 e
1738, Bento Ferreira Mouzinho viria a assumir, de maneira interina, a Provedoria da
Fazenda Real da Capitania do Rio Grande.179
Diante do vai e vem de consultas,
pareceres, alvarás e certificados, D. João V acreditou na possibilidade de João de Teive
receber a protelada ajuda de custo pelo suporte oferecido durante as arrematações dos
contratos dos dízimos das Ribeiras do Açú e do Apodi.180
Todavia, quando Bento
Ferreira Mouzinho assumiu o ofício de provedor tratou de enviar uma longa
representação à D. João V, em 08 de janeiro 1739, na qual esclarecia a ausência do
Capitão mor, João de Teive, durante as diligências de arrematação dos referidos
contratos, ausentando-se diversas vezes ou tratando de assuntos não relativos aos
interesses da Fazenda Real, mas sim de cunho pessoal e que, por isso, lhe parecia ser
“afectação ou produto de mal afecto” a representação feita por João de Teive para
barganhar a ajuda de custo.181
A representação de Bento Ferreira Mouzinho foi decisiva para o indeferimento
da solicitação de ajuda de custo por parte do Capitão mor, pois D. João V, acatou a
sugestão do Provedor Bento Ferreira Mouzinho sobre não se conceder esse auxílio em
face do alto salário anual que João de Teive recebia, bem como por não ser de sua
alçada a participação nas diligências de arrematação dos dízimos, algo que competia
exclusivamente a Fazenda Real e aos seus oficiais.182
A representação de Ferreira
Mouzinho para D. João V prosseguia pintando a administração de João de Teive
Barreto e Menezes relatando as perseguições que esse capitão mor havia feito a ele, bem
como por “seu terrível ódio nas máquinas que contra o meu procedimento fulmina, com
arguições falsas”, Bento culpava esse capitão mor também de descaminhos da Real
Fazenda.183
178 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 211.
179 Ibidem.
180 Ibidem.
181 Ibidem.
182 Ibidem.
183 Ibidem.
303
Mais uma vez, Bento Mouzinho jogava com a escrita como um mecanismo
político legítimo de negociação com El Rey, em detrimento de terceiros, especialmente
dos capitães-mores. Noutro documento Mouzinho, em 13 de fevereiro de 1739,
afirmava que seria “[...] o melhor cronista [...] do decurso do governo” de João de Teive
Barreto, descrevendo todos os erros, embaraços e excessos desse capitão mor durante a
administração da Capitania do Rio Grande.184
O Provedor Bento Mouzinho havia
concluído sua representação culpando também Caetano de Melo e Albuquerque por
fomentar as discórdias entre João de Teive e o próprio Bento Ferreira Mouzinho, assim
como entre esse capitão mor e os camarários e demais justiças da capitania. Nesse
momento, possivelmente, os interesses que vinculavam Bento Ferreira Mouzinho à
família Melo e Albuquerque já haviam se esvaído, pois Caetano de Melo e
Albuquerque, filho de Manuel de Melo e Albuquerque, passou a se opor ao antigo
aliado de seu pai.
As dissensões entorno da ajuda de custo ao Capitão mor João de Teive,
alcançou inclusive seu sucessor, Francisco Xavier de Miranda Henrique (1739-1751), o
qual havia sido intimado a informar a D. João V os andamentos da devassa que havia
sido instaurada a partir da denúncia de João de Teive.185
Com isso, o novo Capitão mor,
Miranda Henriques, avisava em seu parecer, datado de 12 de maio de 1742, que havia
“acabado de se completar o depoimento das testemunhas” sobre o assassinato do
Capitão mor Luís Ferreira Freire (1718-1722), mas que por desatenção do ministro
responsável tornou-se público que o culpado do crime havia sido o Coronel Bento
Ferreira Mouzinho.186
Ainda assim, avançava Miranda Henriques, Bento Mouzinho
havia se aproveitado do ofício de provedor da Fazenda Real, que desempenhava
interinamente, para deslocar o curso da devassa e favorecer as inquirições à seu favor,
aproveitando-se para isso de uma ordem de Sua Majestade sobre serem remetidos
presos todos os devedores da Fazenda Real.187
Coincidentemente, no rol de devedores figuravam algumas das testemunhas do
assassinato do Capitão mor Luís Ferreira Freire (1718-1722), dentre as quais o
documento cita Teodósio Freire de Amorim – que devia mais de quatrocentos mil réis a
Fazenda Real –, Domingos da Silveira – cuja dívida ultrapassava trezentos mil réis –,
184 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 211.
185 Ibidem.
186 Ibidem.
187 Ibidem.
304
José Pinheiro, Hilário de Castro, Roque da Costa e José de Melo, os quais mudaram os
seus depoimentos em favor de Bento Ferreira Mouzinho que associado ao almoxarife da
Fazenda Real, Manuel Antônio Pimentel de Melo, poderia evitar as prisões desses
devedores do erário régio, o que os havia motivado a serem as testemunhas de defesa.188
Salienta-se que o almoxarife Manuel Antônio Pimentel de Melo era filho de Estevão
Velho de Melo e de Joana Ferreira de Melo,189
ambos amigos pessoais e de longa data
de Bento Mouzinho, como discutido no início desse capítulo.
Diante de tudo isso, pode-se compreender os motivos que levaram o Capitão
João de Teive Barreto e Menezes (1734-1739) a denunciar o escrivão da Fazenda Real,
Bento Ferreira Mouzinho, pela morte do Luís Ferreira Freire (1718-1722). Tal denúncia
baseou-se, mais uma vez, em lutas por espaço de representação, bem como em conflitos
decorrentes da superposição de jurisdições entre diferentes oficiais da administração, as
quais possuíam nas correntes de solidariedades verticais e horizontais, a mola
propulsora dos conflitos para a expansão ou retração dos interesses pessoais e de grupos
específicos da sociedade colonial, na Natal setecentista.
Visto tudo isto, ressalta-se que mesmo diante da postura de coalizão e de
indiferença assumida pelo Capitão-mor Luís Ferreira Freire para com os membros do
concelho municipal, o escrivão Bento Ferreira Mouzinho continuaria “com o seu
perverso procedimento, causando bandos e fomentando inimizades com diabólica
astúcia”,190
que com o seu “mal intencionado ânimo aos capitães-mores que vem
governar esta capitania [...] pelo não o conhecerem na sua primeira entrância, se deixam
levar de sua aparente brandura”.191
Porventura, iludido com tudo isso, a autoproteção de
Ferreira Freire de nada havia adiantado, pois faleceria em 01 de março de 1722,192
uma
188 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 211.
189 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. CX02. DOC. 0069 (f. 15v) 190
AHU-RN, op. cit., Cx. 05, Doc. 297. 191
Ibidem. 192
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0845, Fl.
008v.
305
semana depois do atentado que havia sofrido193
que, com um único tiro, lhe fizera
dezoito feridas.194
Mesmo assim, as autoridades consultadas durante a devassa o Capitão-mor,
João de Teive Barreto e Menezes, o Provedor da Fazenda Real, o Dr. Teotônio
Fernandes Temudo, e o Juiz Ordinário, o Coronel Bonifácio da Rocha Vieira
apresentaram posicionamentos distintos, os dois últimos divergindo do Capitão mor.
Talvez, isso devesse, mais uma vez, aos laços de solidariedade, posto que o recém-
nomeado Provedor da Fazenda, Teotônio Fernandes Temudo, se aliaria a Bento Ferreira
Mouzinho para lucrar com os desvios do contrato do “gado do vento”195
e Bonifácio da
Rocha Vieira era casado com Inácia Gomes Freire,196
filha de Antônio Dias Pereira e de
Maria Gomes Freire,197
que possuíam várias relações de compadrio com Teodósio
Freire de Amorim – umas das testemunhas que havia mudado o relato em favor de
Bento Mouzinho para não ser remetido preso por dívidas a erário régio. Teodósio Freire
havia sido padrinho de batismo de Antônio e de Maria, filhos de Antônio Dias Pereira e
de Maria Gomes Freire,198
dividindo o apadrinhamento de Maria com Catarina de
Amorim, esposa de Domingos da Silveira199
– outro devedor da Fazenda Real que havia
testemunhado em favor de Bento Ferreira Mouzinho. Diante disso, pode-se
compreender o porquê do juiz ordinário, Bonifácio da Rocha Vieira, ser contrário à
devassa, juntamente com o provedor da Fazenda Real, sobre o assassinato do Capitão
mor Luís Ferreira Freire por Bento Ferreira Mouzinho, pois ambos possuíam interesses
familiares e econômicos em jogo.
O Provedor da Fazenda, Teotônio Fernandes Temudo, afirmava em seu parecer
que não se devesse “fazer caso desses capítulos atentando ao tempo” que havia
193 DIAS, Gonçalves. Anotações ao catálogo dos capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. t. 17. 13ª série, n. 15, 3º trim./1854. p. 38-40. 194
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0843, Fl.
008. 195
BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos, Fiscalidade e
Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, v. 5.
n. 9, jan.-jun., 2016, p. 242-243. 196
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1727-1740. DSC 02735. 197
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP-FIA-CX01.DOC0057
(46v). 198
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (30); IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (35). 199
Ibidem., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (30).
306
transcorrido, ou seja, 23 anos depois.200
Essa mesma opinião também era partilhada pelo
juiz ordinário Bonifácio da Rocha Vieira.201
Na contramão disso, afirmava o Capitão
mor João de Teive sobre o caráter imprescindível de se proceder nas investigações. Para
isso, esse capitão mor tratou de levantar provas e testemunhas que contribuíssem com as
investigações em andamento. A primeira das testemunhas arroladas foi o escrivão da
Câmara do Natal, Manuel Álvares Bastos, que havia sido citado pelo Capitão mor João
de Teive Barreto e Menezes (1734-1739), em 8 de outubro de 1739, para que efetuasse
uma busca nos livros da câmara e informasse a quantidade geral de cartas que haviam
sido redigidas, contra quem e a quem foram escritas.202
Essa diretiva de João de Teive
visava comprovar aquilo que ele mesmo havia escrito na carta-queixa, na qual declarava
que Bento Mouzinho havia se utilizado da escrivania camarária do Natal para escrever
cartas infames e injuriosas contra os capitães-mores, os coadjutores da matriz, os
provedores da Fazenda Real e pessoas de distinção social da Capitania do Rio
Grande.203
O escrivão Manuel Álvares Bastos respondeu por certidão de 12 de outubro
de 1739, que foram encontradas 38 registros de cartas contrárias a diversas autoridades
da capitania, dentre elas sobre os Capitães mores Domingos Amado (1714-1718), Luís
Ferreira Freire (1718-1722), José Pereira de Fonseca (1722-1728), sobre o Provedor
José Soares, o coadjutor da matriz Antônio de Andrade, o juiz ordinário Manuel
Tavares Guerreiro, dentre outros. Álvares Bastos finalizava a certidão reiterando que
aquelas cartas haviam sido escritas e registradas por Bento Ferreira Mouzinho, no
tempo que foi escrivão do Senado da Câmara do Natal.204
Outra testemunha arrolada por João de Teive foi o tabelião público Sebastião
Cardoso Batalha, pertencente à família Rodrigues de Sá, como visto no capítulo
anterior. Esse depoimento, assim como aquele efetuado pelo escrivão concelhio,
Manuel Álvares Bastos, eram estratégicos para que a devassa corresse em favor das
pretensões de João de Teive, dado que ambos fossem oficiais autorizados pela própria
natureza e finalidade de seus ofícios, além de que detinham em suas mãos as provas
manuscritas de suas afirmações. Assim, Cardoso Batalha havia respondido, em 02 de
dezembro de 1739, a portaria de João de Teive para que esse tabelião passasse cópia da
200 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.
201 Ibidem.
202 Ibidem.
203 Ibidem., Cx. 03, Doc. 211.
204 Ibidem., Cx. 05, Doc. 297.
307
interdição feita pelo ouvidor geral da Paraíba, Tomás da Silva Pereira, do exercício
indevido de quatro ofícios simultâneos na administração da Capitania do Rio Grande
por Bento Ferreira Mouzinho.205
E, por fim, Batalha atestava, ainda, que Rodrigo
Guedes Alcoforado Mouzinho, havia comprado o contrato dos dízimos reais
arrematados por Dionísio da Costa Soares e seu cunhado Miguel de Oliveira, ficando
como fiador dessa transação o escrivão da Fazenda Real, Bento Ferreira Mouzinho, pai
do comprador e com quem Rodrigo ainda residia,206
ambas as práticas consideradas
imorais, de acordo com o regimento da Fazenda.207
Diante de tudo isso, a complicada situação na qual se encontrava o escrivão
Bento Mouzinho agravava-se cada vez mais. Alguns dos vários delitos que havia
cometido quando do exercício de seus ofícios vinham à tona em um momento bastante
crítico de sua carreira nos quadros da administração local. As testemunhas de defesa e
de acusação caminhavam entre a sobriedade evidente de seus lugares de fala e a pressão
de não serem remetidos presos por dívidas, o que invalidava sorrateiramente os
depoimentos desses, mas que mostrava, mais uma vez, o quanto era determinante os
laços familiares e clientelares nos destinos individuais, bem como quanto e quais eram
os interesses em jogo.
Assim, para se concluir as investigações sobre os crimes de Bento Ferreira
Mouzinho, D. João V havia ordenado, em 08 de agosto de 1740, que o Governador da
Capitania de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire de Andrade, informasse, através
de seu parecer, acerca da conflituosa relação entre o Capitão mor João de Teive Barreto
e Menezes e o escrivão da Fazenda Real Bento Ferreira. O Governador Freire de
Andrade havia respondido, em 14 de julho de 1741, com uma recapitulação dos crimes
cometidos tanto por João de Teive quanto por Bento Mouzinho. Mas, acrescentava o
governador, que seria importante o envio de um ministro que procedesse às
investigações de maneira mais acurada, posto que diante das informações apresentadas
por ambas as partes seria “impossível se saber a verdade”.208
Diante disso, D. João
ordenou ao Ouvidor Geral da Paraíba, Inácio de Souza Jácome Coutinho, que fosse ao
205 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.
206 Ibidem.
207 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 99. 208
AHU-RN, loc. cit.
308
Rio Grande devassar o caso e em seguida informasse com o seu parecer a realidade da
situação.209
Em 20 de março de 1744, Jácome Coutinho havia respondido a solicitação
anterior informando que “as perturbações, enredos e inquietações em que se acha essa
capitania em ter o capitão mor dela, provedor da Fazenda Real, juízes ordinários e
Câmara geralmente é constante por todos que a causa total delas é o dito escrivão Bento
Ferreira”, o ouvidor acrescentava também que isso se devia ao “gênio orgulhoso e modo
dissimulado” de Ferreira Mouzinho.”210
O parecer final daquele ministro seria que o
escrivão passasse para a Capitania de Itamaracá a servir o ofício de juiz de órfãos do
qual havia se tornado proprietário, para o “sossego dessa capitania e de seus
vassalos”.211
Com o assassinato de Luís Ferreira Freire a Capitania do Rio Grande totalizava
em três, o número de capitães-mores que haviam perdido suas vidas na carreira
administrativa do ultramar, registrava em tom soberbo um termo de vereação, datado de
02 de março de 1722, redigido pelo próprio Bento Ferreira Mouzinho, ainda escrivão da
Câmara do Natal.212
Tudo isso demonstra que os conflitos de jurisdição que
constantemente entrecortaram a pacatez da vida na América portuguesa, haviam
ocorrido geralmente pelas lutas entorno da representação do poder. Embates esses,
decorrentes da má definição de competências e da sobreposição de atribuições dos
diferentes ofícios, que traduziam lutas por representação e hegemonia de poder.213
No
entanto, adir-se, ainda, que, possivelmente, a causa do assassinato do Capitão Luiz
Ferreira Freire houvesse sido motivada também por questões de cunho pessoal que, não
raro, tendiam a se imiscuírem com a dimensão institucional, algo que acabava por gerar
os conflitos jurisdicionais.
Essa última hipótese pode ser pensada a partir de uma carta redigida pelo
escrivão Bento Ferreira Mouzinho, em 10 de novembro de 1722, na qual constasse
como emitentes os oficiais camarários da Cidade do Natal e endereçada a José Pereira
209 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.
210 Ibidem.
211 Ibidem.
212 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do
Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0845, Fl.
008v. 213
MENEZES, Mozart Vergetti de. Jurisdição e poder nas Capitanias do Norte (1654-1755).
Saeculum/UFPB, v. 14, 2006, p. 11-26.
309
da Fonseca (1722-1728), sucessor de Luiz Ferreira Freire no governo da Capitania do
Rio Grande. Essa missiva se remetia a solicitação da expulsão da Capitania do Rio
Grande de duas mulheres que, conforme a epístola, eram consideradas “escandalosas e
de mal viver”.214
A epístola começava, de maneira sagaz, por elogiar “o sossego e a
satisfação do povo da capitania” a partir da nomeação do novo capitão, que havia
ocorrido em março de 1722, bem como do desempenho satisfatório de seu governo. Na
sequência, a carta solicitava que o Capitão-mor José Pereira expulsasse da capitania
Guiomar de Oliveira e Maria de Melo, pois além de serem meretrizes, atribuía-se a
Maria de Melo a culpa pela morte do antecessor Capitão-mor, Luiz Ferreira Freire, dado
que seria clamor na cidade que os irmãos dessa mulher o haviam cometido o crime pela
forma com que Ferreira Freire e ela viviam.215
Essa mensagem parecia se tratar de uma tentativa de eximir da possibilidade de
culpas que poderia então recair sobre o escrevente. Visto que na devassa instaurada após
a denúncia de João de Teive, o escrivão Bento Mouzinho seria, já década de 1740,
apontado como o verdadeiro assassino, como visto anteriormente. Curioso seria o fato
de que a carta que solicitava a retirada de Guiomar de Oliveira, mas principalmente de
Maria de Melo, e não estaria assinada pelo escrivão Bento Ferreira, como era
costumeiro. No entanto, averígua-se que se tratava da própria letra do escrivão.
Somava-se a essa demanda, que no momento de redação da missiva, Maria de Melo
estava como concubina do então Provedor da Fazenda Real, José Soares. Acrescentava-
se a isso, que a missiva afirmava que poderia ocorrer com esse oficial o mesmo que
havia recaído sobre o anterior Capitão-mor do Rio Grande, Luís Ferreira Freire (1718-
1722).216
Cogita-se, pela série de informações apontadas, que a missiva tinha como
objetivo explícito a retirada de Maria de Melo da Capitania do Rio Grande, bem como
de fornecer ao Capitão-mor José Pereira da Fonseca, então responsável pelo governo do
Rio Grande, uma leitura sobre os fatos que haviam ocorrido antes de sua chegada a essa
capitania. Isso incidira diretamente na possibilidade de direcionar o posicionamento e a
visão desse capitão-mor, caso houvesse a instauração de investigações sobre o
assassinato de Luiz Ferreira Freire, pois estaria a imputar aos irmãos de Maria de Melo
214 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720
– 1728). Fl. 78. 215
Ibidem. 216
Ibidem.
310
o crime que havia retirado à vida desse agente. Acredita-se, a partir disso, que,
possivelmente o escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, também
possuísse algum envolvimento com Maria de Melo, o que lhe teria motivado a executar
Luiz Ferreira Freire.
Talvez, em face desse possível envolvimento de Ferreira Mouzinho com Maria
de Melo, o teria motivado a escrever a carta. Mas, para se isentar de possíveis suspeitas
não tivesse assinado a mesma. Além disso, a carta também jogava com o potencial de
que, mesmo se apresentando “despretensiosamente”, construir uma versão sobre o
assassinato de Ferreira Freire, imputando aos Rodrigues de Sá o crime, posto que, como
afirmou a dita carta, muitos moradores quisessem “satisfazer paixões, arguia culpa em
muitos que na dita morte não pecaram nem seria verdadeiramente”.217
Em outra carta,
datada de 10 de novembro de 1722, o Capitão José Pereira havia acolhido de bom grado
os elogios de seu governo e afirmava que “só protesto fazer-lhes a vontade no que toca a
minha comadre e a minha afilhada ainda que seja em desabono de minha pessoa”.218
Essa interlocução acena, ainda, para o fato de como o escrivão camarário, ou
mesmo os oficiais honoráveis da câmara, sabiam lidar com aquilo que era uma das
principais prerrogativas dessa instituição: a comunicação. Se junta a isso, o fato de
poderem abonar ou desaprovar a gestão dos governantes da capitania, dado que ao final
de cada mandato desses, os oficiais camarários eram requisitados a passarem essas
certidões de como os agentes administrativos, os governadores e capitães-mores,
portaram-se durante o decurso do exercício de seus postos. E essa possibilidade foi
cogitada no momento da solicitação do favor por parte dos camarários ao Capitão José
Pereira da Fonseca, pois como afirmava a carta, “fica este povo aclamando excelências
ao bom governo com que V. M.ce
os rege, que Sua Majestade tendo notícia, como lhe
daremos, saberá desempenhar estes favores”.219
Os oficiais camarários, e muito
provavelmente o próprio escrivão Bento Ferreira Mouzinho que havia redigido a carta,
sabia, além do jogar com as prerrogativas da câmara de conceder as certidões
abonatórias aos capitães-mores, exercer a capacidade de negociação com os
representantes diretos d’El Rey e, consequentemente, alinhavar as determinações régias
217 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720
– 1728). Fl. 78. 218
Ibidem., Fl. 78v. 219
Ibidem.
311
aos interesses locais, a partir da grande economia de troca de favores que perpassava
todos os âmagos da administração.
Depreende-se da análise dessa carta a tendência para que disputas e interesses
de nível pessoal, familiar ou clientelar ganhassem conotações e feições institucionais, ao
opor os envolvidos nos conflitos, bem como os órgãos administrativos nos quais
estivessem inseridos. Assim, em muitos casos, seria através da transposição de rixas
entre famílias e mesmo de indivíduos que se deram os conflitos jurisdicionais, que além
de disputas por representação de poder, caracterizavam-se também por embates de nível
pessoal, sobretudo com a possibilidade de envolver sentimentos, como ódio e paixão.
Poder-se-ia compreender, a partir desse conflito, a atmosfera cultural da sociedade do
Antigo Regime, onde os privilégios do exercício de um ofício passavam, de maneira
persistente, pela autonomia de decisão dos oficiais. Contudo, esses conflitos
jurisdicionais, entre a câmara e os capitães-mores não terminaram em 1722, posto que
tais contendas arrastar-se-iam por toda a década de 1720, como se verá a seguir, ao
opor, mais uma vez, o escrivão da câmara, Bento Ferreira Mouzinho, a capitão-mor e,
no próximo caso, José Pereira da Fonseca,220
o mesmo que na carta analisada
anteriormente era elogiado pelo “bom governo”, por haver “os libertado da servidão dos
Egípcios”.221
Sobre as divergências entre Bento Ferreira Mouzinho e José Pereira da
Fonseca a devassa analisada anteriormente também havia lançado subsídios como se
verá a seguir.
4.6 A crise política de 1720
Na segunda década do século XVIII, Bento Ferreira Mouzinho servia como
escrivão da Câmara da Cidade do Natal desde 1715,222
há, pelo menos, sete anos antes
220 A série de conflitos e embates na Capitania do Rio Grande, que envolveu toda a década de 1720,
opondo a Câmara do Natal e, mais especificamente, o escrivão da Câmara Bento Ferreira Mouzinho, ao
Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca, foi estudada mais detalhadamente Abimael Lira.
Para saber mais, ver LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. “ENTRE O AUSTERO CAPITÃO E O
MALIGNO ESCRIVÃO”: DISPUTAS DE PODER E CULTURA POLÍTICA NA ADMINISTRAÇÃO
DA CAPITANIA DO RIO GRANDE NO SÉCULO XVIII. In: VII Encontro Estadual de História da
ANPUH – RN. 26-29 de jun., 2016. 221
Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720
– 1728). Fl. 78. 222
Ibidem., Livro 06 (1713-1720). Fl. 77v.
312
da chegada de José Pereira da Fonseca à Capitania do Rio Grande.223
Todavia, aufere-se
que a presença de José Pereira, bem como suas atitudes, passou a incomodar homens
importantes da capitania pouco tempo depois de sua chegada àquela localidade. Deduz-
se isso da primeira menção que se fez à Pereira da Fonseca, referindo-se a este, em tom
de insatisfação. Isto ocorreu, em maio de 1722, quando os oficiais da Câmara do Natal
reuniram-se em vereação e deliberaram uma solicitação ao capitão-mor, tendo como
objetivo a devolução aos seus senhores dos tapuias cativos que estavam sob
administração do Sargento-mor Antônio Rodrigues Santiago.224
Tal solicitação apontava, ainda, para o fato de que um agente direto da Coroa
passou a se envolver em negócios de cunho comercial na capitania, algo que era
terminantemente proibido pela legislação da época. Acrescenta-se, ainda, quão rápido
fora a inserção daquele agente em querelas locais. Por algum motivo, não se sabe ao
certo qual, José Pereira havia se apoderado de alguns tapuias que estavam sendo
administrados pelo sargento-mor. Possivelmente, quando Pereira da Fonseca havia
assumido o posto de capitão-mor, ao chegar à Fortaleza dos Reis Magos deparou-se
com um de seus subordinados na posse de alguns nativos, algo que levou José Pereira a
se apoderar desses indígenas a fim de obter algum lucro, principalmente ao passar a
administrar aqueles indígenas e, quiçá, os fazerem escravos ou até mesmo os venderem
posteriormente. Não contava o capitão com a interferência da câmara em seus planos,
ao solicitar que o mesmo devolvesse os cativos aos seus respectivos proprietários.
Eventualmente, os senhores dos tapuias cativos e os oficiais camarários,
podiam se tratar das mesmas pessoas, já que eram os “homens bons”, 225
ou seja,
pessoas possuidoras de cabedal, terras e escravos. Nesse momento, em específico, parte
dos escravos de que dispunham as elites da Capitania do Rio Grande eram,
possivelmente, provenientes de grupos indígenas aprisionados nas guerras recém-
terminadas nos sertões da mesma capitania. Adir-se, ainda, que no tempo da referida
solicitação, Bento Ferreira, já fosse escrivão da câmara e quem havia redigido a petição.
Esse momento, provavelmente, demarcaria o início dos embates entre os camarários da
223 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 88.
224 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0860. 225
O termo “homens bons” poder a ideia de vizinhos honrados, honrados por possuírem terras e cabedal.
Ver NEVES, Guilherme Pereira das. Verbete: homens bons. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário
do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 286.
313
Cidade do Natal e o capitão-mor, sendo essas indisposições encabeçadas por Bento
Ferreira Mouzinho, como se verá a diante.
Todavia, ao longo do período colonial, não somente na Capitania do Rio
Grande, como também em diversas outras possessões ultramarinas, as câmaras
municipais foram constituídas enquanto lócus dos melhores da terra.226
A câmara era
formada por um corpo de homens que se reuniam em torno de interesses comuns.
Desses interesses poder-se-ia mencionar como exemplo a proteção de seus negócios, de
si mesmos e de suas famílias, de homens estranhos, provenientes de outras áreas,
alheios à realidade e aos interesses dos locais, mas, que porventura viessem a ameaçar
ou interferir nas já estruturadas relações econômicas e sociais estabelecidas, mesmo os
que estivessem a serviço direto de Sua Majestade.
Uma prática recorrente na Capitania do Rio de Janeiro foi à incorporação dos
indivíduos adventícios, muitos dos quais podiam ter, ou não, vindo prestar serviços
militares e/ou administrativos,227
incluindo também os serviços judiciais, às famílias os
redes clientelares locais. Tal incorporação se processava mediante, sobretudo, a prática
de casamentos, mas poderia ocorrer também a partir de relações de apadrinhamento,
dentre outras maneiras. Muitos desses adventícios haviam se incorporado as famílias
locais e haviam passado a agir de acordo com os interesses também locais. Tais
interesses estavam diretamente relacionados com o processo de formação da economia
colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite.228
O caso do Rio de Janeiro pode ser
acionado para se pensar que, no contexto de chegada de José Pereira da Fonseca ao Rio
Grande, o mesmo não quisera criar vínculos efetivos com os melhores da terra. Desse
modo, ao temer o fato de o capitão mor não querer se inserir nas já montadas redes de
poder e, mais ainda, temerosos que aquele homem, a serviço D’el Rey, delatasse
situações de irregularidades administrativas no Rio Grande, trataram logo de afrontá-lo,
demonstrando o poder que detinham, que fosse: a privilegiada comunicação com o
226 A ideia de melhores da terra serve para designar os homens de qualidade que viviam em uma
determinada localidade. Muitos destes ingressavam nas câmaras municipais almejando as benesses que
delas provinham, visto se tratar de um canal direto de comunicação com o rei e, além disso, gozarem de
foro privilegiado. Para saber mais ver BICALHO, Maria Fernanda B. As câmaras ultramarinas e o
governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda B.; GOUVÊA, Maria de Fátima
S. (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 192. 227
FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial (séculos XVI-XVII). In: Ibidem; BICALHO, Maria Fernanda B.; GOUVÊA, Maria de Fátima
S. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos, op.cit. p. 41. 228
Ibidem.
314
reino, através do dispositivo das petições.229
Isso poderia vir a complicar a situação do
Capitão José Pereira naquelas paragens.
Todavia, apesar do princípio das aversões entre o escrivão e o capitão-mor,
Bento Ferreira Mouzinho e José Pereira da Fonseca, respectivamente, se remeterem a
banal questão sobre a gerência de alguns nativos tapuias que haviam sido feitos cativos
– provavelmente ainda nos últimos conflitos travados durante a Guerra dos Bárbaros na
Capitania do Rio Grande230
–, quando o capitão-mor os tomou do sargento-mor Antônio
Rodrigues, vale salientar que José Pereira devolveria, em seguida, os índios aos seus
respectivos proprietários.231
Contudo, essa atitude não foi suficiente para refrear os
ânimos insidiosos dos oficiais camarários e do próprio escrivão contra o capitão mor,
pois estas malquerenças atravessaram várias outras disputas, ao longo da década de
1720.
Os embates entre a câmara e o capitão ganharam novas dimensões em 1723. A
possibilidade de figurar nos circuitos da governança local abria margem para que
aqueles que conseguissem tal proeza distinguissem do restante da população, reforçando
os princípios de prestígio e status que eivavam o cotidiano pela América portuguesa e
demais partes do Império.232
Ressalta-se que esses proveitos não se restringiram apenas
ao nível individual, mas também ao nível familiar, posto que ocupar um ofício
camarário significava igualmente assegurar os interesses das famílias e a possibilidade
de representação direta dos mesmos, bem como de se municiarem de todo o arsenal de
chances e ganhos, que advinham da comunicação imediata com a Coroa e com outras
instituições do Império, assim como dos bens dos concelhos.233
229 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 352. 230
Para saber mais sobre a Guerra dos Bárbaros na Capitania do Rio Grande entre o início da década de
1680 e 1720, mais especificamente sobre os desdobramentos desta no sertão do Rio Grande e o processo
de territorialização dos rincões desta capitania ver SILVA, Tyego Franklim da. A ribeira da discórdia:
terras, homens e relações de poder na territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. 231
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0860. 232
CURVELO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. O Senado da Câmara de Alagoas do Sul:
Governança e poder local no sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. p. 86,99. 233
De acordo com António Manuel Hespanha, mesmo a emergência de concepções individualistas de
sociedade não conseguiram suplantar a ideia de que a família se constituía em uma sociedade
naturalmente auto organizada. Portanto, pensar deve-se pensar as ações individuais como que ligadas às
obrigações morais que vinculavam os indivíduos a um mesmo pai de família. Para saber mais, ver
315
As disputas entre o capitão mor e o escrivão passaram a tomar novas feições
em novembro de 1723. Neste período, no dia 22, os oficiais da Câmara do Natal
escreveram e enviaram uma carta a D. João V sobre a falta de capacidade para governar
a Capitania do Rio Grande por parte de José Pereira da Fonseca.234
Nessa mesma carta,
assinada por Bento Ferreira Mouzinho, Pereira da Fonseca aparecia como um homem
inconstante, austero e retirado. 235
Essas características descreviam o perfil de um
homem severo, que agia pelas próprias razões e pelos impulsos repentinos que o
moviam, algo capaz de levá-lo a mudar de um momento para outro, inabilitando-o para
o exercício do posto mais importante da capitania. Além disso, por se tratar de uma
pessoa retirada, ou seja, recolhida, que não gostava de diálogo com seus pares sociais,
acabava por dificultar e fragilizar ainda mais a situação. Pois, não demoraria muito para
que José Pereira fosse, cada vez mais, sendo distanciado do ciclo social.
Aquela mesma carta tratava de representar José Pereira da Fonseca, ainda,
como um homem descomposto, sem juízo e não temente a Deus.236
Desse modo, o
perfil de José Pereira, traçado pelos oficiais da câmara, haviam denegriado severamente
sua imagem. Na verdade, a carta acabava mesmo por construir uma representação
daquele oficial que, progressivamente, o tornava menos apto e ainda menos próprio para
capitanear o Rio Grande. Ressalta-se que por descreverem Pereira da Fonseca como não
temente a Deus, os oficiais da câmara intentavam mesmo alertar o soberano de que
aquele homem não respeitaria ou temeria a mais ninguém, com objetivo de inspirar
receio no próprio rei para que este retirasse José Pereira da Capitania do Rio Grande.
Com isso, os camarários haviam incorrido naquilo que Russell-Wood afirmou ser uma
das vias dos poderes locais atingirem seus objetivos, que seja a negociação direta com
rei.237
E a carta prosseguia, elencando uma série de aspectos negativos que envolviam
o capitão-mor. Dentre os quais se menciona, ainda, o fato de Pereira ser “homem
HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos
histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social, v. 28, 1993. 234
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 92. 235
Ibidem; Retirado significa pessoa que esta apartada (ou separada) da comunicação da gente. Ver
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino: áulico, anatômico, arquitectônico. Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. Disponível em:
http://www.brasiliana.ups.br/en/dicionario/1/edital. Acesso em: 28/10/2015. Ver verbete “edital”. 236
Ibidem. 237
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. Revista
Brasileira de História, v. 18, n. 36, p. 187-250.
316
destemido a Deus em todas as suas ações, pouco observante da religião cristã e inimigo
capital do sacerdócio”.238
Quanto a estes últimos pontos, podem-se aventar que em um
mundo eminentemente orientado por valores cristão católicos, que servia de atmosfera
valorativa para a ação moral dos homens, descrever José Pereira como antirreligioso
seria equivalente a afirmar que seria um homem alienado, um verdadeiro “louco”, que
estava aquém e além de si e da própria realidade no qual estava imerso, o que tornava
ainda menos hábil sua permanência como capitão-mor do Rio Grande.
Diante de tudo isso, o capitão-mor havia tratado também de se munir de
cabedal humano, para melhor enfrentar os tempestuosos dias que estavam por vir com
um pouco mais de segurança. Para isso, Pereira da Fonseca havia procedido à
elaboração de laços de amizade e de solidariedade que muito o ajudaram, ou até mesmo
embaraçaram ainda mais sua situação. Vale ressaltar que, os homens que passaram a
fazer parte do grupo de Pereira da Fonseca, eram indivíduos que partilhavam de seu
cotidiano em suas lides militares diárias. O que se pode asseverar, mediante a leitura dos
termos de vereação, foi à formação de um grupo, mais especificamente de uma rede
clientelar,239
sob a liderança do Capitão José Pereira, e um seu comparte, por nome José
de Oliveira Velho, que era juiz ordinário e comissário geral de cavalaria.240
Estes
homens foram acusados pelos oficiais camarários de chefiarem um grupo que agia na
Capitania do Rio Grande. Em que sentido ou de que forma, tal atuação não havia ficado
clara no termo. Percebe-se, com isso, animosidades, pelo próprio tom com que os
oficiais da câmara se referiram àqueles indivíduos.
Constatou-se, ainda, que a rede clientelar de José Pereira da Fonseca era
formada pelo Sargento-mor Pedro Mendes de Morais, o Soldado Fradique Correia da
Costa e pelo Juiz Ordinário José de Oliveira Velho, todos indicados, em solicitação feita
pelos oficiais da câmara ao Sargento-mor, José de Morais Navarro, para serem
presos.241
Apesar de o motivo da prisão não ser apontado, denota-se, ainda, a imputação
238 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 92.
239 As redes clientelares se caracterizaram pela troca de favores entre os imbricados, criava a obrigação
moral de receber a mercê, mas, ao mesmo tempo, o dever de retribuir o favor. Para saber mais, ver
GOUVÊA, Maria de Fatima Silva; FRAZAO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marilia Nogueira dos. Redes
de poder e conhecimento na governaçao do Império Português, 1688-1735. Revista Topoi. v. 5, n. 8. Rio
de Janeiro, jan./jun., 2004.
240 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0933. 241
Ibidem.
317
de uma atuação irregular por parte daqueles homens por toda a Capitania do Rio
Grande242
.
A disputa se acirraria ainda mais em 21 de novembro de 1723, quando da
abertura do cofre onde estavam guardados os pelouros243
contendo o nome dos oficiais
que haviam sido eleitos para o ano de 1724. Constava na lista de eleitos para este ano,
os nomes do Comissário Geral de Cavalaria, José de Oliveira Velho, e do Alferes
Antônio da Silva de Carvalho, para juízes ordinários, o Coronel Carlos de Azevedo do
Vale e os Capitães Félix Barbosa de Araújo e Hilário de Castro Rocha, para servirem de
vereadores, e, por fim, para procurador e tesoureiro do concelho, havia sido eleito
Gregório de Oliveira e Melo.244
Parecia que os ventos da sorte estavam a soprar, de maneira favorável, para o
grupo do capitão-mor. Posto que, naquela abertura dos pelouros, ambos os ofícios de
juízes ordinários, além de um dos de vereador, haviam sido providos, em pessoas que
pertenciam à coligação de José Pereira. Dentre os quais, José de Oliveira Velho,
mencionado anteriormente, Antônio da Silva de Carvalho – como veremos em seguida
– e Carlos de Azevedo do Vale. Aos quais se acrescentavam o Almotacé José Pinheiro
Teixeira, escolhido pelos próprios oficiais que compunham o núcleo do concelho em
1724. Contudo, essa vitória, conseguida à custa da boa sorte, não tardaria a ser desfeita
e transformar-se-ia em estopim de diversos conflitos que se seguiram, anos a fio, pela
década de 1720.
Próximo ao fim do mês de fevereiro de 1724, no dia 25, havia ocorrido uma
eleição de barrete,245
em vista da substituição de Antônio da Silva de Carvalho, que
242 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0933. 243
A eleição de pelouros consiste na elaboração de três listas, nas quais figuravam os nomes dos
candidatos elegíveis para os ofícios camarários. Estas listas eram, cada uma, colocadas em uma bola de
cera, a que se chamava pelouro e, posteriormente, depositadas em sacos e posto em um cofre, o qual seria
fechado por três cadeados, cabendo às respectivas três chaves a três indivíduos que ocupassem os postos
de juiz ordinário mais velho, o de escrivão e do vereador mais velho. Os cofres eram abertos a cada ano,
no decorrer de três anos, aonde se chamava uma criança de até 7 anos para por a mão no saco e retirar
uma das bolas, a fim de se saber quem foram os indivíduos que haviam ocupado os ofícios de juízes
ordinários, vereadores e procuradores do concelho no ano posterior. Para saber mais ver CURVELO,
Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul de
Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2014. p. 83. 244
LOPES, op. cit., Documento 0902. 245
Eleição de barrete consistia em na escolha ou nomeação de algum indivíduo que estivesse, ou não,
presente na câmara no momento do impedimento de algum outro oficial escolhido pelo sistema comum
(pelouro). Representava também a possibilidade de inserção de indivíduos sem que necessitasse passar
318
havia sido impedido de assumir o ofício de juiz ordinário, pois havia cometido crime.246
Todavia, o termo de vereação não deixa claro qual foi esse delito. No entanto, infere-se
que na década anterior, Antônio da Silva de Carvalho, havia sido notificado diversas
vezes e penalizado com multa de $ 6.000 réis,247
consistindo, talvez, nisso o crime a que
o termo havia se remetido. Desse modo, quem viria a substituir Antônio Carvalho no
ofício de juiz ordinário seria o Comissário Geral de Cavalaria, Manuel de Melo e
Albuquerque,248
que fazia parte da facção do escrivão.
Assim, além de perder um dos ofícios de juiz ordinário, a facção de Pereira da
Fonseca perderia, ainda, um dos de vereador. Nesse caso, por impedimento de Carlos de
Azevedo do Vale, de assumir o dito ofício, uma vez que era cunhado de José de Oliveira
Velho249
e, provavelmente, assim como este, um dos partidários do capitão-mor.
Outro acontecimento, que se somaria aos anteriores, havia ocorrido em 04 de
setembro de 1724, quando foi revogada a eleição do Capitão José Pinheiro Teixeira da
Cunha250
para o posto de almotacé, que serviria nos meses de setembro e de outubro,251
visto que esse capitão havia questionado, de maneira proposital e desagradável, o
Senado da Câmara do Natal, mostrando-se contrário as deliberações dos edizes com a
nomeação para o ofício de juiz ordinário de Manuel de Melo e Albuquerque. Pinheiro
Teixeira havia se mostrado, naquela sessão, favorável a ocupação deste ofício pelo
Sargento-mor Antônio da Silva de Carvalho que, segundo o termo, seria parente de
Teixeira da Cunha e, portanto, apoiado pelo Capitão-mor José Pereira.252
Ao que parece os envolvidos nesse conflito representavam os interesses de
duas famílias sobre o ofício de juiz ordinário. Pois, além de o termo se referir ao
parentesco existente entre José Pinheiro e Antônio da Silva, tendo aquele, cinco anos
mais tarde, sido padrinho do casamento do filho do segundo,253
o que demonstrava se
pelo processo de indicação e sorteio. Para saber mais, ver CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da
câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul de Pernambuco (1654-1751).
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. p. 85-86. 246
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0909. 247
Ibidem., Doc.(s) 0486, 0496, 0566, 0770, 0818. 248
Ibidem., Doc. 0909. 249
Ibidem. 250
Ibidem. 251
Ibidem., Doc. 0921. 252
Ibidem., Doc. 0933. 253
Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de
Casamentos, 1727-1740. DSC 02740.
319
tratar de um reforço das redes de poder que já os vinculavam,254
que possivelmente já
existia entre o pai do nubente e o capitão José Pinheiro na época, e antes mesmo,
daquele conflito. Salienta-se também que Manuel de Melo e Albuquerque e Caetano de
Melo e Albuquerque se tratavam de pai e filho, respectivamente.255
Tal constatação
corrobora com a afirmação de Charles Boxer que, ao se referir à composição das
câmaras municipais ao longo do século XVIII, havia afirmado que estas instituições
tenderam, progressivamente, a tornarem-se oligarquias. No sentido de que foram se
perpetuando no poder local ao eleger e reeleger os oficiais que as compunham, assim
como a provisão dos próprios ofícios, em regime de rotatividade, neles mesmos e em
seus parentes, “contrariando o que estabelecia o regimento de 1504”.256
Àquela situação havia demonstrado o quanto os interesses familiares estavam
presentes nas estruturas administrativas da Capitania do Rio Grande na década de 1720.
Acrescenta-se a isso, os laços de solidariedade estamentais, o corporativismo e o
clientelismo das oligarquias locais, algumas vezes incentivados pela própria Coroa, as
quais tinham como objetivo a incorporação de seus elementos ao aparelho estatal.257
Essa situação levava a um indivíduo bem situado no interior dos órgãos políticos e
administrativos locais a apoiarem, de maneira mútua, outros parentes, principalmente ao
visualizarem o caráter nobilitador da instituição camarária. Mas, o foco principal das
duas famílias, tanto de Manuel de Melo e Albuquerque quanto a de José de Oliveira
Velho, seria a disputa pelo ofício de juiz ordinário, cuja nomeação e posse caracterizar-
se-ia pela “presidência do concelho municipal”258
da Cidade do Natal, representando,
além de “prestígio, a autoridade máxima, em questões judiciárias, na cidade e em seu
termo”259
e, no caso da Câmara do Natal, na década de 1720 até 1759,260
a gerência
administrativa/judicial de toda a Capitania do Rio Grande.
254 Sobre a caracterização e as relações hierárquicas nas redes de poder ver CUNHA, Mafalda Soares da.
A casa de Bragança – 1560-1640. Práticas senhoriais e redes clientelares. Lisboa: Estampa, 2000. 255
Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (17). 256
BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. BARRETO, Anna Olga de Barros
(trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 290. 257
PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e
território nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. In: Penélope. Fazer e desfazer a História, n.
6, Lisboa, 1991, p. 124. 258
CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no
Sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2014. p. 86. 259
Ibidem.
320
Todavia, o Capitão mor José Pereira apoiava a entrada no posto de juiz
ordinário do Sargento-mor Antônio da Silva de Carvalho que, possivelmente, seria mais
um dos componentes da rede clientelar do capitão-mor no Rio Grande. Ao que parece,
Caetano de Melo pertencia ao grupo contrário ao de José Pereira da Fonseca, assim,
situando-se do lado do escrivão Bento Ferreira Mouzinho que, provavelmente, seria um
dos que encabeçavam o grupo. Caetano Albuquerque, em vereação, delatou que José
Pereira havia tomado 200$000 réis emprestados ao cofre dos defuntos e ausentes,261
algo impensável, de acordo com regimento e que poderia levar à aplicação de penas.262
Desse modo, tomando o ponto de vista do grupo contrário ao capitão-mor, depreende-se
que este objetivava a inserção de Antônio da Silva naquele posto para encobrir sua
desfeita e, consequentemente, aliviar e adiar a situação até que pudesse restituir o
dinheiro que havia sido tomado emprestado. Essa situação constituir-se-ia, além da
anterior, em mais um caso de exercício ilegítimo de poder por parte do capitão-mor.
Antônio da Silva de Carvalho parecia ser um homem dos mais próximos a José
Pereira. Atesta isso a forma com que esse capitão havia se referido àquele seu
partidário, em carta, de 25 de julho de 1725, como se tratando de “homem muito
pacífico, bem quisto e aparentado com o povo desta cidade [do Natal], [não submetido]
a parcialidades, por ser de boa vida”263
.
Nessa altura do conflito percebe-se a formação de dois grupos antagônicos, a
disputarem a hegemonia política na Capitania do Rio Grande. Um destes grupos, sob a
liderança do então Capitão-mor, José Pereira da Fonseca, que reunia pessoas ligadas à
esfera de poder militar da mesma capitania e, por isso detentora de certa influência. Tal
grupo, possivelmente, era formado por cinco pessoas. Além de José Pereira, José de
Oliveira Velho, Pedro Mendes de Morais, Fradique Correia da Costa e Antônio da Silva
de Carvalho, todos estes detentores de patentes militares, tratando-se de um capitão-
mor, um comissário geral de cavalaria, um sargento, um soldado e um sargento-mor,
260 1759 representou o último ano em que a capitania do Rio Grande possuiria apenas uma câmara, visto
que no ano seguinte deu-se a elevação das missões dos índios a categoria de vilas, o que, por
conseqüência, levaria a constituição de outras câmaras municipais por outras áreas do Rio Grande. Para
saber mais ver LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do
Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2005. p. 24, 122, 129. 261
Ibidem. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal (1672-1815).
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento 0933, Fl.(s) 045-046. 262
Ibidem. 263
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 114.
321
respectivamente. Vale salientar que dentre aqueles cinco homens, apenas José de
Oliveira possuía terras na Capitania do Rio Grande, a qual localizava na Ribeira do
Açú.264
Ressalta-se, ainda, que José de Oliveira havia ocupado vários outros postos
dentro da Câmara da Cidade do Natal. Dentre esses, Oliveira Velho foi vereador, juiz
ordinário e almotacé, algo que demonstrava proeminência no cenário político de então,
assim como Fradique Correia e Antônio da Silva que, mais tarde, ocuparam diversos
outros ofícios no interior da Câmara do Natal.265
O outro grupo a disputar interesses na política local era constituído e liderado
pelo Capitão Bento Ferreira Mouzinho, escrivão da Câmara do Natal, pelo Comissário
Geral de Cavalaria, Manuel de Melo de Albuquerque, e o Juiz Ordinário João Guedes
Alcoforado. Afora esses três homens, poder-se-ia mencionar também os demais oficiais
camarários que haviam constituído a Câmara da Cidade do Natal, em diferentes
momentos da década de 1720. Ressalta-se, ainda, que apenas estas três últimas figuras
haviam se envolvido diretamente com as disputas entre o capitão e o escrivão.
Acrescenta-se a este grupo mais um quarto nome, o Ouvidor Geral da Paraíba, Tomás
da Silva Pereira, que se não atuou como integrante direto, muito contribuiu para a
retirada do juiz ordinário eleito ao substituí-lo pelo por outro que era da preferência de
Bento Mouzinho e de seu grupo.
Vale mencionar, ainda, que na mesma vereação na qual foi impedido Antônio
da Silva de Carvalho de assumir o posto de juiz ordinário, outro homem, por nome
Carlos de Azevedo do Vale, também havia sido impedido de tomar posse do ofício de
vereador. Dos motivos elencados no termo de vereação, consta que Carlos Azevedo
seria cunhado de José de Oliveira Velho, então eleito como juiz ordinário e dos que
compunham a rede de apoio do capitão-mor do Rio Grande. Esta situação havia seguido
as orientações legais dispostas nas Ordenações Filipinas (1603) de que era vetada a
existência no interior das câmaras municipais de parentes de até quarto grau.266
Mas
poderia também se configurar como um indicativo de que Carlos Azevedo, por ser
264 CARTA de Sesmaria doada José de Oliveira Velho (RN 1), em 17 de agosto de 1735. Plataforma
SILB- RN 0434. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 05/10/2015. 265
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
1041. 266
Para saber mais sobre as eleições de oficiais no período colonial da História do Brasil, ver
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.
Liv. I, Tít. 67.
322
cunhado de José de Oliveira, estivesse vinculado ao grupo do capitão-mor, o que,
talvez, houvesse motivado os camarários a vasculharem a vida daquele homem,
impedindo-o, assim, que mais um dos possíveis integrantes da facção de Pereira da
Fonseca, chegasse à Câmara do Natal.
Outro ponto interessante no perfil social de ambos os grupos, foi o fato de se
constituírem de pessoas que possuíam postos militares e judiciais semelhantes, visto que
um e outro possuíam um comissário geral de cavalaria e um juiz ordinário, o que
demonstrava que o apoio dado por estes homens aos indivíduos que lideravam os
grupos não ocorria aleatoriamente, como “massa de manobra”, tão somente. Mas se
fazia mediante interesses próprios, ou até mesmo querelas que envolviam as funções
que desempenhavam atrelados a disputas por prestígio e proeminência em outros
âmagos da administração e, consequentemente, questões de status. Isso demonstrava a
intrincada rede de interesses e o constante jogo político que havia movimentado a
máquina burocrática nas diversas partes do Império. Aqueles homens que haviam
servido de base de apoio aos agentes “encabeçadores” das disputas, vislumbravam a
tomada de partido como uma via para galgarem determinadas posições no interior da
sociedade da Capitania do Rio Grande, sobretudo quando se tem em vista que o grupo
vencedor das querelas seria aquele que se projetaria no cenário político e administrativo
do Rio Grande, acabando por se beneficiarem das inúmeras benesses que daí proviesse.
Transcorridos dois dias após a tumultuada vereação de 25 de fevereiro de 1724,
os oficiais da Câmara de Natal enviavam uma carta ao governador de Pernambuco. O
por levar à carta-queixa, de uma capitania a outra, foi o próprio escrivão da câmara,
Bento Ferreira Mouzinho. Essa situação assinalava o quanto Mouzinho estava
interessado para que aquelas notícias chegassem a uma autoridade de maior gradação na
hierarquia administrativa, afim de que fossem tomadas as medidas necessárias contra o
Capitão mor José Pereira e, quem sabe, culminasse com na retirada deste oficial da
capitania.
Naquela carta, eram denominados de “revoltosos” que estavam a atuar e,
consequentemente perturbar toda a Capitania do Rio Grande, além do Capitão-mor José
Pereira, o próprio juiz ordinário, em exercício na câmara, José de Oliveira Velho.
Contudo, porventura, para disfarçar um pouco o real motivo que o levava a se deslocar
por tão longas plagas, Mouzinho trazia a guisa, juntamente com a carta-queixa, outra
323
carta destinada a conseguir em Pernambuco adornos e apetrechos para paramentar a
Câmara do Natal.267
Parecia mesmo que o objetivo do escrivão consistia basicamente em retirar do
seu caminho, não se sabe ao certo por quais motivações maiores, os dois indivíduos que
exerciam os maiores postos administrativos na capitania naquele momento que era: o
Juiz Ordinário José de Oliveira Velho e o Capitão-mor José Pereira da Fonseca.
Talvez, dos motivos aventados, fosse o fato de ambos, capitão e juiz, se
fazerem sempre presentes na Cidade do Natal, quiçá na própria câmara, observando e
especulando a situação fiscal, judicial e administrativa e, talvez, questionando as
atitudes indevidas do escrivão diante de questões relacionadas às finanças.
Diferentemente dos demais oficiais dessa instituição, principalmente os vereadores,
muitos dos quais residiam entre doze e dezesseis léguas de distância da cidade e que
estavam muito empenhados com a criação de seus próprios gados.268
Devido a isso, José
Pereira da Fonseca havia afirmado, em 25 de julho de 1725, que os oficiais daquela
câmara não viriam naquela instituição “senão de ano a ano quando tomam posse e as
mais direções que lhes pertencem, deixam ao dito escrivão, que como se vê com estas
larguezas faz os papéis que lhe parece e os faz assinar o que quer, sem verem o que
assinam”.269
Vale salientar que até o ano anterior, ou seja, 1723, o juiz ordinário da Câmara
do Natal, João Guedes Alcoforado, era o sogro do escrivão camarário, Bento Mouzinho,
e que, de um modo ou de outro, acabava por apoiar as ações do genro.270
Outro motivo aventado para que Bento Mouzinho quisesse retirar Pereira da
Fonseca de seu caminho poderia relacionar-se com uma questão de terras. Pois,
constatou-se que aquele agente seria grande sesmeiro pela Capitania do Rio Grande,
possuindo terras em diferentes localidades, havendo recebido, ao todo, seis concessões
de sesmarias 271
e requerido mais uma diretamente ao rei.272
Daquelas seis sesmarias,
267 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0934. 268
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 111. 269
Ibidem. 270
Ibidem. 271
CARTAS de Sesmarias doadas a Bento Ferreira Mousinho, em 20 de abril de 1725; em 04 de outubro
de 1719; em 02 de dezembro de 1724; 25 de outubro de 1742; em 26 de abril de 1735; em 21 de outubro
de 1719. Plataforma SILB- RN 0999; RN 0996; RN 0997; RN 0519; RN 0375; RN 0401. Disponível
em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 05/10/2015.
324
três foram recebidas até o ano do conflito.273
Destas a primeira e a terceira foram doadas
diretamente pela câmara, por se tratar de chãos de terra, e a segunda pelo capitão-mor
Luiz Ferreira Freire. Todavia, das autoridades da câmara que haviam passado a primeira
e a terceira cartas de sesmarias, consta como uma das autoridades presentes Manuel de
Melo de Albuquerque, cujas relações amistosas com Bento Ferreira Mouzinho haviam
levado, inclusive, a ambos burlar as eleições para o Senado da Câmara do Natal, em
1724.274
Tal situação se consubstanciava em uma intrincada cadeia de relações de
favores, em que a concessão de um privilégio a uma pessoa, criava, necessariamente, o
ato de receber, mas, acima disto, a obrigação “moral” de retribuir o benefício. Esta
mesma cadeia de favores que começava com o rei, iria se afunilando na própria
hierarquia administrativa e de poder, criando uma espiral de poder.275
Isso havia
contribuindo para que Mouzinho burlasse as eleições da câmara, apoiando a posse de
Manuel de Melo de Albuquerque no cargo de juiz ordinário. Quiçá, no vislumbre do
recebimento de outras vantagens materiais ou mesmo simbólicas.
Ressalta-se que, em 11 de novembro de 1723, Bento Mouzinho, enquanto
escrivão da câmara houvesse ficado com uma das chaves do cofre no qual estavam os
sacos contendo as bolas de cera, dentro das quais estavam os nomes dos candidatos a
ocuparem, nos três anos vindouros, os ofícios da cúpula camarária.276
A outra chave
havia ficado em poder do vereador mais velho, João Guedes Alcoforado277
que, como
mencionado anteriormente, se tratava do sogro de Bento Ferreira Mouzinho.278
Possivelmente, de algum modo, isto pôde ajudar o escrivão, a saber, de antemão, o que
estava por vir, mesmo que houvesse todo um cuidado, envolto por sigilo quase absoluto
272 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 176.
273 CARTAS de Sesmarias doadas a Bento Ferreira Mousinho, em 04 de outubro de 1719; em 21 de
outubro de 1719; em 02 de dezembro de 1724.. Plataforma SILB- RN 0996; RN 0401; RN 0997.
Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 05/10/2015. 274
AHU-RN, op. cit., Cx. 2, Doc. 114. 275
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos.
Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,
jan.- jun., 2004. 276
LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
0902. 277
Ibidem. 278
AHU-RN, op. cit., Cx. 2, Doc. 111.
325
no que concerne a divulgação das eleições para os postos de oficiais das câmaras.279
Sigilo que, porventura, as ambições de um escrivão sedento por poder e prestígio o faria
quebrar.
Nesse sentido, a disputa que havia envolvido o cargo de juiz ordinário da
Câmara do Natal se arrastaria por quase todo o ano de 1724, com inúmeras idas e vindas
dos indivíduos. Ora, Manuel de Melo assumia o cargo, ora Antônio da Silva, com a
aprovação do Ouvidor Geral da Paraíba, Tomás da Silva Pereira. Situação essa que,
mais uma vez, demonstrava os códigos culturais vigentes na administração da Capitania
do Rio Grande, na segunda década do século XVIII.
Não obstante, os resquícios daquele jogo de interesses, cujo principal objetivo
era o controle político da Câmara da Cidade do Natal, havia se arrastado para além do
ano de 1724. Ambos, escrivão e capitão-mor, encontravam em diminutas questões
administrativas e burocráticas relacionadas ao cotidiano da Capitania do Rio Grande,
mais “lenha” para abastecer a imensa “fogueira das vaidades” que consumia suas
pacatas vidas. Diante disso, 22 de julho de 1725 foi um dia muito longo na história da
Capitania do Rio Grande. Longo e denso, visto que naquela data, os oficiais camarários
escreveram e enviaram três cartas a D. João V, nas quais relatavam ao rei as atitudes e
os comportamentos do Capitão mor José Pereira da Fonseca.
Na primeira carta, os oficiais concelhios informavam a El’rey que José Pereira
não havia aceitado a proibição vinda diretamente do reino que estipulava que as
câmaras, assim como seus oficiais, estavam terminantemente proibidas de concederem
cartas ou certidões que abonassem a atuação dos capitães-mores.280
Todavia, o então
Capitão mor do Rio Grande havia conseguido aquele conjunto de documentos mediante
atos coercitivos, nos quais teria obrigado um juiz a redigir e lhe conceder tal documento.
Para isso, o mesmo capitão também havia obrigado inúmeras pessoas a servirem como
testemunhas de que o juiz lhe tivesse passado a carta abonatória, na qual se relatava, por
extenso, sua atuação no posto de capitão-mor do Rio Grande.281
Já a segunda carta, expedida na mesma data da anterior e também endereçada a
D. João V, tendo como mesmos remetentes os oficiais da Câmara do Natal, possuía o
mesmo caráter informativo que a primeira e, inclusive, o mesmo alvo: José Pereira da
279 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004. Liv. I, Tít. 67. 280
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 105. 281
Ibidem.
326
Fonseca. Conforme esta correspondência, o capitão mor não estava fornecendo recursos
humanos para acompanharem os serviços judiciais praticados fora do senado da câmara
ou dos próprios cartórios locais.282
Essa prática era conhecida como diligências, e
tinham como um dos objetivos aprisionarem homens que, por algum motivo, se
achassem criminosos e, por isso, tivessem de pagar pelos crimes que haviam cometido.
Quanto à terceira carta, com os mesmos remetentes, destinatário, objetivos,
havendo, inclusive, sido despachada no mesmo dia, mês e ano das anteriores, relatava
que os oficiais concelhios do Natal se queixavam a D. João V das parcialidades de José
Pereira no que concerne a uma questão entre dois juízes ordinários. Os camarários
acusavam abertamente o capitão-mor de transgredir as leis que estavam postas, assim
como, a própria ordem estabelecida na Capitania do Rio Grande.283
Todas aquelas cartas haviam apresentado José Pereira da Fonseca como um
homem insolente, descomedido e sem juízo. Cujas atitudes, em muitos pontos, afligiam
as pessoas Capitania do Rio Grande, lhes retirando a paz e o sossego de que gozam e,
com isso, prejudicando os vassalos de Sua Majestade, assim como, o andamento e o
desenvolvimento dessa capitania. Nestas mesmas cartas, constava, ainda, que o que
mais desejam os homens daquela localidade seria se livrarem do autoritarismo de um
homem prepotente e arrogante, que não temia nem mesmo a Deus e que isso era algo
preocupante. Na primeira carta, os oficiais da câmara tentavam mesmo mostrar, por
meio de um exemplo factível, o quanto o capitão-mor do Rio Grande não temia sequer a
autoridade régia, visto que havia transgredido uma ordem real. Na segunda carta, os
camaristas haviam apresentado José Pereira como um homem que não mais conseguiria
dar conta de suas obrigações, provenientes do posto em que ocupava. Na última carta
enviada naquele mesmo dia a D. João V, mais uma vez por meio de exemplos, os
homens bons tratavam de mostrar para El’rey quanto mal fazia para a capitania ser
administrada por um homem metido em preferências injustas.
Vale ressaltar que todas aquelas cartas haviam sido manuscritas por Bento
Ferreira Mouzinho e que, por acaso, podiam estar relacionadas com a proximidade do
fim do período de tempo para o qual foi provido no posto de capitão-mor do Rio
Grande, José Pereira. Com isso, os oficiais da câmara intentavam desprestigiarem, ao
máximo que podiam a imagem de Pereira da Fonseca e, quem sabe, orientar a decisão
282 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 106.
283 Ibidem., Doc. 107.
327
real de retirá-lo da capitania antes mesmo que findasse o seu mandato de uma vez por
todas. Todavia, sabe-se que José Pereira da Fonseca capitanearia o Rio Grande por mais
alguns anos. Visto que este agente havia permanecido por um período de dois
“mandatos”, ou seja, por seis anos, cujo exercício no posto foi de 1722 até 1728.
Acrescentar-se-ia, a isso, um quarto combustível a içar a fogueira das vaidades
naquele período. Este se remetia a uma acusação feita a José Pereira da Fonseca na qual
esse capitão havia mandado soltar alguns presos que se encontravam na Fortaleza dos
Reis Magos.284
Tal atitude motivava os oficiais da Câmara do Natal a enviarem, em
julho de 1725, uma carta de acusação daquele capitão-mor a D. João V.285
Nessa,
relatava-se que Pereira da Fonseca havia mandado soltar dois criminosos. O primeiro
deles por nome de Inácio Duarte e o segundo, Domingos da Fonseca, ambos haviam
sido acusados do roubo de uma espingarda e por haverem assassinado duas outras
pessoas pela Capitania do Rio Grande.286
Dois dias após a confecção do primeiro “malote” de cartas enviadas e um dia
após a última carta, José Pereira de alguma forma havia tomado conhecimento do que
lhe haviam orquestrado os oficiais camarários, juntamente com o escrivão concelhio,
Bento Ferreira Mouzinho. Pois Pereira da Fonseca havia tratado, logo em seguida, de
enviar uma série de carta a D. João V, com o objetivo explícito de responder as
acusações atribuídas a sua pessoa, bem como, explicando as atitudes que o haviam
movido a tomar aquelas drásticas decisões no governo do Rio Grande. Na primeira
desta série, Pereira da Fonseca se preocupou em justificar o porquê havia mandado
soltar os presos da cadeia.287
Justificava-se ao reiterar que os juízes ordinários não
estavam preocupados em realizar as devassas dos crimes e que por não haverem culpas
formadas, não havia motivo de os manterem prisioneiros.288
Nesta mesma carta, Pereira
da Fonseca, atribuía a Bento Ferreira Mouzinho a responsabilidade por todas as
acusações que recaíam sobre ele.289
Ressaltava o capitão mor, em carta de 25 de julho de 1725, que o escrivão
Bento Ferreira havia maquinado uma série de acusações contra a sua pessoa, assim
como, a todos os capitães-mores que até o Rio Grande haviam ido, mesmo a serviço do
284 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 110.
285 Ibidem.
286 Ibidem.
287 Ibidem., D. 111.
288 Ibidem.
289 Ibidem.
328
rei. Tais atitudes do escrivão eram costumeiras, visto se tratar do único membro da
Câmara do Natal, que vivia nessa cidade, e os demais oficiais estavam a várias léguas
de distância, deixando ao escrivão as funções e direções que lhes competiam, e que por
esse escrivão se ver livre, acabava por fazer inúmeros crimes contra os que não lhe
convinham.290
Pereira da Fonseca encerrava esta carta acusando as ambições do
escrivão, atrelada a iminente falta de justiça naquelas paragens, acerca da ruína do
anterior capitão-mor – Luiz Ferreira Freire –, que ao não se submeter a parcialidades,
havia pagado com a própria. Pereira atribuía ao escrivão à morte desse capitão-mor.
A outra carta escrita por José Pereira à D. João V, dava razão ao fato de não
mandar pessoas para cobrirem as diligências, visto que nelas os juízes ordinários,
juntamente, com os oficiais camarários cobravam excessivas despesas aos moradores,291
os quais não tinham condições de pagá-las, o que levavam muitos deles a serem presos
injustamente. Seria possível cogitar, de acordo com a explicação supra que o capitão
estivesse pleiteando o apoio das pessoas “mais humildes” da capitania, a fim de
amenizar a aspereza de seu mandato, decorrente das disputas com os camarários e com
o escrivão concelhio. Mas, para isso, José Pereira tentava primeiro convencer D. João
V, desfazendo a imagem que havia sido construída pelos oficiais camarários sobre sua
pessoa nas cartas que haviam seguido para o reino.
Os conflitos entre José Pereira e Bento Ferreira Mouzinho chegaram ao
extremo quando, em 25 de julho de 1725, o capitão mor havia se tornado vítima de um
atentado a tiro.292
De acordo com o relato de Pereira da Fonseca, o possível assassino
havia saído da casa do escrivão, Bento Ferreira, e ao se deparar com o dito capitão na
porta da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, que a esta santa fazia uma oração, o
referido homem havia lhe disparado um tiro de raspão com uma catana – espécie de
espingarda –, e não conseguindo matá-lo, como supostamente havia colocado o capitão,
que seria o principal objetivo do delinquente, havia perseguido o criminoso, clamando
que o povo ajudasse a pegá-lo. No entanto, se começava a juntar gente, vários
moradores da cidade, inclusive o juiz ordinário daquele ano, Manuel de Queiroz, a fim
de ajudá-lo ou socorrê-lo e no meio do tumulto que se fez ao seu redor, havia culminado
290 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 111.
291 Ibidem., Doc. 112.
292 Ibidem., Doc. 113.
329
com a fuga do assassino pelo mato que cercava a cidade inteira.293
O capitão finalizava
a delação, atribuindo a Nossa Senhora da Apresentação o milagre por haver sobrevivido
ao atentado e, com isso, dava conta a El’rey da precária situação da justiça naquela
capitania.294
Nessa carta, José Pereira, de modo intencional, se livrava de duas culpas que
lhe haviam sido imputadas. A primeira delas que se remetia a primeira carta enviada
pelos oficiais camarários, ainda em 1723, na qual aqueles homens atribuíam a Pereira da
Fonseca características de um homem não religioso, não temente a Deus e inimigo
capital do sacerdócio. Visto que o próprio capitão havia mencionado, quando de seu
atentado a tiro, que havia sido salvo por um milagre da santa padroeira da cidade. Além
disso, Fonseca se apresentava naquela carta como sendo um homem muito católico,
visto que acreditava em milagres, ao se remeter a questões religiosas presentes em seu
cotidiano, como, por exemplo, rezar nas portas da igreja, dentre outras características
citadas na carta.
Na segunda missiva, culpava Bento Mouzinho do atentado a tiro que havia
sofrido, pois o criminoso tinha saído da residência desse escrivão. Outro fato que atesta
a relação entre o atentado a tiro sofrido pelo capitão-mor e as suas inimizades com a
câmara, foi o fato de que o juiz ordinário, então empossado na mesma instituição, não
quisera investigar o caso. E quando solicitado por José Pereira, o juiz respondeu que
não havia motivo algum para proceder à investigação, visto que o atentado não teria se
consumado, ou seja, não havia resultado na morte e nem sequer em ferimento do
sobredito capitão-mor.295
Naquele mesmo dia, tratando-se da última carta da série que havia sido escrita
por José Pereira para se eximir das culpas que haviam sido a ele atribuídas, constava a
informação de que este oficial havia feito chegar a Sua Majestade as inúmeras
perturbações que causavam na Capitania do Rio Grande, retirando do povo a paz de
viverem naquele lugar, o escrivão camarário Bento Ferreira Mouzinho, juntamente com
um morador da Cidade do Natal, o Comissário Geral de Cavalaria, Manuel de Melo e
Albuquerque, que, naquele mesmo ano de 1725, era um dos oficiais dessa edilidade,
pois estava a ocupar o ofício de juiz ordinário, mesmo que houvesse sido eleito no
293 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 113.
294 Ibidem.
295 Ibidem.
330
barrete.296
Desta vez, Pereira da Fonseca havia acusado Manuel Albuquerque e Bento
Mouzinho de haverem burlado as eleições para o Senado da Câmara do Natal, mesma
denúncia apresentada quando do acirramento dos conflitos, entre 1723 e 1724.
José Pereira havia afirmado, ainda, naquela mesma carta, que o Ouvidor Geral
da Paraíba, Tomás da Silva Pereira, havia procedido em favor de Manuel de Melo de
Albuquerque, pois os três haviam se apresentado ao capitão-mor, todos inquietos, por
haverem sonegado a carta de usança297
do juiz ordinário eleito, Antônio da Silva de
Carvalho, o impedindo de assumir por crime, substituindo-o pelo próprio Manuel de
Melo, sorteado na eleição de barrete.298
Ainda segundo aquele capitão-mor, tudo isso se
devia a “indústria do dito escrivão Bento Ferreira”.299
Sabe-se que José Pereira da Fonseca havia permanecido no posto de capitão-
mor da Capitania do Rio Grande durante seis anos, três anos a mais, para além dos quais
ele havia sido inicialmente provido. Ressalta-se que o preenchimento do ofício de
capitão mor, em diversas partes do império, possuía período de tempo delimitado, na
maioria deles, por espaço de tempo de três anos, os quais foram muito bem aplicados
para os capitães-mores antecessores de José Pereira no Rio Grande, existindo algumas
exceções à regra.300
Possivelmente D. João V não havia visto muitos fundamentos nos
argumentos apresentados nas várias cartas-queixas enviadas pelos oficiais da Câmara da
Cidade do Natal. Ou, até os percebera, mas quisera mesmo conceder mostras do poder
que detinha sobre a Capitania do Rio Grande que, além de fazer valer sua primeira
escolha, algo que corroborava se tratar de um ato consciente, pois não havia retirado
Pereira da Fonseca antes do término do período para o qual havia sido provido. D. João
objetivava mesmo, além demonstrar a eficácia de sua escolha, conceder uma lição aos
camarários, posto que houvesse renovado, por mais um mandato, o provimento de
Pereira da Fonseca, durante mais três anos.
296 Eleição de barrete ocorria quando, por algum motivo, um indivíduo eleito no pelouro estava impedido
de assumir o cargo. Rapidamente se faziam uma eleição improvisada, na qual muitos dos indivíduos que
estavam presentes naquela sessão eram chamados para assumirem no lugar do inabilitado. 297
Carta de usança é uma espécie de foral, no qual os oficiais eleitos, ou no pelouro ou no barrete, podem
tomar posse efetiva de seus cargos. A concessão de tal carta também ocorre com os indivíduos que
exercem algum cargo, seja em serventia, seja em propriedade. 298
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 114. 299
Ibidem. 300
OLIVEIRA, Leonardo Paiva de. Muitos soldados, poucos fidalgos: Candidatos ao governo do Rio
Grande (1700-1751). Revista Acadêmica Historien, Petrolina , n. 10, jan../jun., 2014, 97-110.
331
Injúria do destino havia sido o fato de ter José Pereira da Fonseca, após
capitanear o Rio Grande, passado seus últimos dias de vida encarcerado na Prisão do
Limoeiro, em Lisboa.301
Para onde eram remetidos todos aqueles homens que
houvessem cometido atos errôneos ou inadequados na administração, como excessos e
transgressões das leis e ordens do Império. Esse documento se trata de uma consulta
realizada pelo Concelho Ultramarino a D. João V,302
sobre um requerimento anterior de
José Pereira da Fonseca, solicitando a El’rey licença para tratamento de saúde fora da
prisão em que se encontrava.
Naquele mesmo pedido, datado de 12 de setembro de 1731, constava no relato
de José Pereira, que esse agente havia sido enviado preso para Corte de Lisboa, “sem
culpas formadas, por intervenção de informações falsas de alguns de seus inimigos”.
Sabe-se assim, que, talvez, José Pereira da Fonseca, ex-capitão-mor do Rio Grande,
passou seus últimos anos de vida preso na Cadeia do Limoeiro, pois seu pedido havia
sido impugnado pelo rei. Com a idade já muito avançada, contando pouco mais de
sessenta anos e com a saúde bastante debilitada, se encontrava ainda, acometido por
inúmeros “achaques”.303
Assim terminava a vida de um homem que havia servido ao rei
em inúmeras localidades, durante pouco mais de quarenta anos.
Supõe-se que dos inimigos de que tratava Pereira da Fonseca em seu pedido,
um deles, possivelmente, seria o próprio escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira
Mouzinho, que não havia poupado esforços para retirá-lo do Rio Grande, algo que
somente viria a ocorrer em 1728, pois o provimento de Pereira da Fonseca no posto de
capitão-mor não seria mais prorrogado.
Quanto ao escrivão camarário, Bento Ferreira Mouzinho, este ainda continuava
a atuar por vários anos na Capitania do Rio Grande. Enquanto seu inimigo, o ex-
capitão-mor estava preso em Lisboa, Mouzinho permanecia na serventia da escrivania
da Câmara da Cidade do Natal. Ofício este que exerceria até o final de dezembro de
1732.304
E, já em 1733, Bento Ferreira Mouzinho apareceia na documentação como
301 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 173.
302 Ibidem.
303 Ibidem.
304 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento
1136.
332
escrivão da Fazenda Real, Alfândega e Almoxarifado da Cidade do Natal305
e, em 1738
como Provedor da Real Fazenda do Rio Grande.306
Ressalta-se que apenas em 1745, após devassa efetuada por solicitação do
então Capitão-mor do Rio Grande, João de Teive Barreto e Menezes, averiguou-se que
o escrivão da Câmara do Natal, Bento Mouzinho, com o auxílio de uma pistola, teria
sido o culpado pelo atentado a tiro de José Pereira, que não se consumou por aquele
escrivão haver “errado o fogo”.307
Acrescentava, ainda, que o culpado de Pereira da
Fonseca haver terminado seus últimos dias de vida preso, devia-se a grande quantidade
de cartas sobre esse capitão mor que haviam sido enviadas por Bento Ferreira Mouzinho
à D. João V, ao longo do governo de Pereira da Fonseca na Capitania do Rio Grande.308
Tudo isso corrobora com a afirmação de Charles Boxer de que as câmaras
municipais constituíram-se como adversárias mordazes e acerbas dos ministros
enviados pela Coroa para as possessões ultramarinas, criticando até mesmo “altos
funcionários do governo”, principalmente quando estivessem em jogo interesses de
algum grupo local.309
Mesmo que para alcançarem seus objetivos tivessem de lançar
mão, como pontuou Russell-Wood, ora da negociação, ora da pressão.310
Em ambos os
conflitos entre o escrivão Bento Ferreira Mouzinho e os dois capitães-mores, percebe-
se, inicialmente, que o escrivão camarário utilizou-se da negociação com D. João V,
mas como não se obtinha os resultados que pretendia, havia partido para a pressão, ao
utilizar-se do confronto físico, no mais das vezes injusto, no qual surpreendia suas
vítimas matreiramente. Pareceu ao Concelho Ultramarino ser viável a expulsão deste
indivíduo para fora da Capitania do Rio Grande.311
O que levaria Mouzinho a se mudar
para a Vila de Goiana, na antiga Capitania de Itamaracá, onde passaria a exercer o
ofício de juiz de órfãos,312
do qual seria proprietário.313
Mais tarde, Bento Ferreira
305 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 177.
306 Ibidem., Cx. 4. Doc. 242.
307 Ibidem., Cx. 5, Doc. 297.
308 Ibidem.
309 BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. BARRETO, Anna Olga de Barros
(Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 298. 310
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de
História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998, p. 187-150. 311
AHU-RN, loc. cit. 312
AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 20, Doc. 1529. 313
“Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional: Rio de Janeiro,
BN, v. 28, 1906. p. 470.
333
Mouzinho envolver-se-ia nessa vila noutra série de conflitos com os oficiais camarários,
decorrente de sua atuação indevida quando da ocupação do ofício de juiz de órfãos.314
Esse longo conflito entre o escrivão e o capitão-mor, permite-nos entrever a
cultura política do Antigo Regime português, no início do século XVIII, na Capitania do
Rio Grande, que havia se caracterizado por uma intrincada relação de interesses
individuais, responsáveis por mobilizar inúmeros indivíduos, assim como, interesses
familiares ou de grupos dentro das estruturas administrativas implantadas pela Coroa no
ultramar. Nesse ínterim, o estudo da série de conflitos que havia envolvido o escrivão
da camarário da Cidade do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, e o Capitão-mor do Rio
Grande, José Pereira da Fonseca, ao longo da segunda década daquele século, evidencia
a atmosfera cultural em que aqueles indivíduos estavam submersos.
Tais conflitos, além de, sumariamente, demonstrarem posições políticas
contrárias, tomadas por dois indivíduos distintos na administração da Capitania do Rio
Grande, havia mostrado, ainda, o quanto ambos se aproximavam, partilhando de
códigos, símbolos e representações de um universo mental comum. Este universo seria
a cultura política do Antigo Regime português que havia orientado a atuação de
inúmeros homens que estiveram a serviço da Coroa, sobrepondo seus próprios
interesses ao interesse maior da Coroa portuguesa.
Todavia, esta série de embates abre margem para que se possa vislumbrar a
atuação do rei enquanto árbitro supremo nas relações de vassalagem que se espalhavam
pelas conquistas, pois a recorrência, através de cartas, requerimentos e petições, servia
mesmo para reforçar sua autoridade, não submetida a desejos caprichosos das elites
locais. Servia, ainda, para se identificar um momento não somente de crise na
administração da Capitania do Rio Grande, quando da formação de duas facções
contrárias a se digladiarem pela hegemonia política da Câmara da Cidade do Natal.
Teria sido este um momento de luta pelo reordenamento político da capitania, o que
resultou mesmo no processo de consolidação das disposições de mando sobre a o Rio
Grande, pois foi justamente nesse momento que a influência da família Albuquerque
passou a ser questionada, sendo os focos irradiadores destas questões sufocadas como,
por exemplo, a morte de Luiz Ferreira Freire e o banimento para a prisão do Limoeiro
314 AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 77, Doc. 6491.
334
de José Pereira da Fonseca, dois homens que, a serviço do rei, tentaram proceder a este
reordenamento.
O Capitão Bento Ferreira Mouzinho, após a saída de José Pereira da Fonseca
do posto de capitão-mor, havia permanecido como escrivão da Câmara do Natal até
1732,315
chegando mesmo acumular esse ofício com a escrivania da Fazenda Real do
Rio Grande, com o Juizado de Órfãos e com a Provedoria dos Defuntos e Ausentes.316
Essa situação confirmava a asserção de Laura de Mello e Souza, ao assegurar que “a
natureza do poder foi vista como eminentemente contraditória, tendendo ora à
centralização, ora a autonomia”,317
posto que se por um lado Ferreira Mouzinho fosse
capaz de impor limites aos projetos da Coroa, pensados para a Capitania do Rio Grande,
por outro, seria um grande aliado na viabilização dos trâmites burocráticos e
administrativos, como declarava os oficiais da Câmara do Natal, em 08 de outubro de
1732, por ser Bento Mouzinho “pessoa com capacidade, conhecimento e fidelidade” e
que por isso seria “conveniente ao serviço de Sua Majestade e utilidade pública”.318
No
entanto, indica-se que, em 02 de dezembro de 1732, o Ouvidor Geral e Corregedor da
Paraíba, Tomás da Silva Pereira, suspenderia Ferreira Mouzinho de três dos quatro
ofícios que então ocupava, deixando-o servir apenas como escrivão da Fazenda Real.319
Salienta-se, como se verá a seguir, que quando Bento Ferreira Mouzinho ingressou na
escrivania da Real Fazenda envolver-se-ia noutra série de conflitos, muitos dos quais
motivados pelas ambições desse escrivão por obtenção de riqueza, prestígio, poder e
status, configurando-se como um dos integrantes de um movimento que se deflagraria
pelos sertões da Capitania do Rio Grande e cujas notícias chegaram até Lisboa,
movimento esse que seria batizado pelos conselheiros do Concelho Ultramarino como a
Revolta dos Magnatas, como assim ficaria conhecido na historiografia local.
4.7 “A Revolta dos Magnatas”
315 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de
Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 316
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297. 317
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 14-15. 318
AHU-RN, loc. cit. 319
Ibidem.
335
Mormente, na escrivania da Real Fazenda, Ferreira Mouzinho não deixaria de
se envolver em questões litigiosas, mesmo que para isso arrastasse seu próprio filho nos
esquemas.320
Em 1739, iniciar-se-ia outra sucessão de conflitos entre Bento Ferreira
Mouzinho e o novo Capitão-mor do Rio Grande, João de Teive Barreto e Menezes
(1734-1739), decorrente das atuações indevidas daquele frente à escrivania da Fazenda,
onde havia permanecido como serventuário até 1737321
e, depois, quando Ferreira
Mouzinho assumiu, interinamente, o ofício de provedor da Fazenda Real,322
o que os
levaram a se oporem em contínuas questões.323
Na década de 1740, quando já corria a devassa sobre a atuação de Bento
Ferreira Mouzinho, discutida anteriormente, este estava a liderar um grupo formado,
além dele, por Teotônio Fernandes Temudo, então Provedor da Fazenda Real, Lauriano
Correia de Lira – arrematador do contrato do gado do vento no ano de 1741 –, Inácio
Pereira de Souza – fiador do anterior –, Nuno Guedes – parente da esposa de Bento
Mouzinho – e Rodrigo Guedes Alcoforado Mouzinho, filho do sobredito escrivão da
Fazenda Real.324
Esse grupo estava a disputar interesses pela arrematação dos contratos
da Real Fazenda do Rio Grande, sobretudo na Ribeira do Apodi, com outro bando,
formado pelos irmãos Pinto da Cruz, sendo estes apoiados pelos oficiais camarários,325
no movimento que ficaria conhecido como Revolta dos Magnatas, que foi de 1741 até
1744,326
ano que se concluíram todas as etapas de investigação sobre as ações de
Mouzinho nos diferentes ofícios pelos quais havia passado na administração local da
Capitania do Rio Grande.327
De acordo com Lívia Barbosa o grupo liderado por Bento Ferreira Mouzinho
“consistia na apropriação do gado do vento, mas também de uma parte de todo o gado
pertencentes aos moradores e de suas fazendas na Ribeira do Apodi.”328
Vale lembrar
320 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.
321 Ibidem., Cx. 03, Doc. 220.
322 Ibidem., Cx. 04, Doc(s). 242, 251.
323 Ibidem., Cx. 05, Doc. 297.
324 Cf. BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos, Fiscalidade e
Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, v. 5.
n. 9, jan.-jun., 2016, p. 242-243. 325
Ibidem., p. 248. 326
Ibidem., p. 229. 327
AHU-RN, loc. cit. 328
BARBOSA, op. cit., p. 243.
336
que além de Bento Ferreira Mouzinho ocupar o ofício de escrivão da Fazenda Real,329
era também coronel da Ribeira do Apodi,330
o que lhe concederia além de prestígio
social, a possibilidade de intimidação dos moradores daquela área. Na pesquisa de Lívia
Barbosa apontou-se, ainda, que “caso houvesse alguma reclamação, o provedor da
fazenda seria responsável por julgar o contratador, devido aos privilégios do contrato, e
inocentaria Inácio de Sousa e os seus sócios.”331
Aquela autora concluiu que o grupo ligado ao Provedor da Fazenda Real,
Teotônio Fernandes Temudo, do qual Bento Mouzinho era aliado, saiu vitorioso e
fortalecido do embate,332
mesmo que a política adotada pelo Capitão mor Francisco
Xavier de Miranda Henriques fosse de aproximação com os camarários e, portanto,
contrária às intenções dos oficiais da Fazenda, dando continuidade as mesmas
estratégias conflituosas adotadas pelo seu antecessor João de Teive Barreto e Menezes
em face da alçada do Provedor da Fazenda, Teotônio Fernandes Temudo, com o
objetivo explícito de ampliar sua jurisdição sobre a dimensão fazendária da capitania.333
Diante disso, pode-se compreender, a partir da análise da Revolta dos
Magnatas, que as informações prestadas pelo Capitão mor Francisco Xavier de Miranda
Henriques, sucessor de João de Teive, em 19 de maio de 1742, a D. João V ao longo das
inquirições que fizeram parte da devassa sobre os procedimentos de Bento Ferreira
Mouzinho, também carregava interesses meticulosos, ligados às pretensões dos
capitães-mores do Rio Grande em expandir as suas jurisdições por sobre a Fazenda Real
dessa capitania. Isso justificaria o parecer de Miranda Henriques em favor de João de
Teive Barreto e Menezes, quando em resposta a um decreto de D. João V, segundo o
qual João de Teive teria sido incriminado pelo zelo que tinha com a Fazenda Real de
maneira injusta, posto que “se se tirasse a devassa, ficassem nela culpados outros que
tem administrado” a Fazenda Real.334
329 BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos, Fiscalidade e
Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, v. 5.
n. 9, jan.-jun., 2016, p. 243. 330
Fundo documental do IHGRN. Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17
(1728 – 1736). Fl. 159. 331
Para saber mais sobre a “Revolta dos Magnatas” e os contornos que esse conflito assumiu, ver
BARBOSA, op. cit., p. 243. 332
Ibidem., p. 250. 333
Ibidem., p. 249. 334
AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 211.
337
Após cinco longos anos de inquérito, a devassa concluiu que “a causa total
delas é o dito Escrivão Bento Ferreira e que este com gênio orgulhoso e modo
dissimulado, maquinaria astutamente todos esses problemas”.335
O parecer de Inácio de
Souza Jácome Coutinho, Ouvidor Geral da Paraíba, em 30 de agosto de 1745, foi que
Bento Mouzinho saísse da Capitania do Rio Grande para a Vila de Goiana, onde
passaria a exercer o ofício de Juiz de Órfãos, do qual era proprietário. D. João V, diante
de todos os fatos, acatou a sugestão do Ouvidor e expulsou Mouzinho da Capitania do
Rio Grande, “para o sossego dela e de seu povo”.336
4. 8 “Não pai, mas sim padrasto dos miseráveis órfãos”
Um ano após a saída forçada do Rio Grande, em 15 de maio de 1746, Bento
Ferreira Mouzinho já se encontrava exercendo o ofício de juiz de órfãos da Vila de
Goiana,337
do qual possuía título de propriedade.338
Pois, em carta daquele mesmo dia,
reportava-se a D. João V sobre os costumes que existiam naquela localidade, de os
credores ajuizarem os viúvos, antes mesmo de se procederem aos inventários e as
partilhas, algo que prejudicava sorrateiramente aos herdeiros órfãos.339
Mesmo que agisse de modo pertinente para com os interesses de seu ofício, do
povo da dita Vila e à bem do serviço d’El Rey, reverbera-se a atmosfera de impunidade
que havia encoberto, levianamente, os inúmeros conflitos com diversas autoridades
régias, os roubos e os desvios do erário da Fazenda Real, as mortes que havia cometido,
tanto no reino quanto no Rio Grande e as tentativas de assassinatos. Ferreira Mouzinho
havia ganhado o direito de exercer a propriedade de um ofício, considerado estratégico,
por interferir diretamente na reestruturação do patrimônio das famílias. Essa situação se
caracterizaria, como alegou Laura de Mello e Souza, na “busca oscilante da justa
medida” que, via de regra, pautava-se “ora pela violência, ora pela contemporização”,340
mas cuja finalidade precípua seria assegurar o equilíbrio político de disposição dos
335 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297.
336 Ibidem.
337 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 64, Doc. 5429.
338 “Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
BN, v. 28, 1906. p. 470. 339
AHU-PE, loc. cit. 340
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 15.
338
poderes sociais e, consequentemente, garantir a sobrevivência do mando institucional
pelo Império.
Todavia, não tardaria para que Bento Ferreira Mouzinho se envolvesse
novamente em altercações pelas novas paragens. Sua atuação no ofício de juiz de órfãos
da Vila de Goiana renderiam à D. João V outras dificuldades na administração dessa
localidade. Porquanto, em requerimento de 11 de maio de 1748, Manuel Ferreira da
Costa havia solicitado a D. João V puder demandar Ferreira Mouzinho na justiça letrada
de Pernambuco, posto que ele houvesse tomado um empréstimo de pouco mais de $
600.000,00 reis, mas que estaria em faltas com o pagamento.341
De acordo com Manuel
da Costa, Bento Ferreira se fiava na condição de ser juiz de órfãos da Capitania de
Itamaracá, onde seria tido por “poderoso”, além de não se poder abrir inquérito contra
ele na dita capitania, pois somente existiam justiças leigas.342
Essa petição além de
demarcar o início das contendas de Bento Ferreira na Vila de Goiana, pontuava, ainda, o
prestígio de que esse agente social desfrutava na Capitania de Itamaracá, visto que
gozava de alguns privilégios inerentes à jurisdição de seu ofício, como o fato de não
poder ser julgado pelas justiças leigas.343
Manuel Ferreira da Costa era natural da
Província de Entre-Douro-e-Minho,344
senhor do Engenho Nossa Senhora do Carmo, na
Freguesia da Várzea,345
mas que morava, havia muitos anos, na Vila de Santo Antônio
do Recife,346
era possuidor de uma grande fortuna, avaliada em sessenta mil cruzados
quando, em 22 de junho de 1773, solicitava a D. José I a licença para dividir sua
herança ainda em vida.347
Em abril de 1749, os oficiais da Câmara da Vila de Goiana, José Ferreira da
Costa, Antônio Gomes Coelho, André Mendes e Manuel Rodrigues Sepeda, em carta à
D. João V, queixavam-se dos abusos cometidos pelo Juiz de Órfãos, Bento Ferreira
Mouzinho, juntamente com o Ouvidor da Capitania de Itamaracá, Lourenço da Silva de
Melo, e o Padre Jorge Aires de Miranda. De acordo com os oficiais camarários, este
grupo estaria a “fabricar máquinas com que perturbam esta república, querendo
341 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 67, Doc. 5696.
342 Ibidem.
343 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. 2. ed. Lisboa: Fundação Colouste Gulbenkian,
1984. Liv. I, Tít. 88. 344
AHU-PE, op. cit., Cx. 114, Doc. 8788. 345
Ibidem., Cx. 71, Doc. 5994. 346
Ibidem., Cx. 114, Doc. 8788. 347
Ibidem.
339
intrometer-se em tudo”.348
Ao que parece, Ferreira Mouzinho havia se consorciado com
o grupo que ele mesmo havia denunciado em 11 de maio de 1746, quando havia
ingressado no juizado dos órfãos da Vila de Goiana, posto que nessa denúncia houvesse
afirmado que alguns párocos das freguesias e credores ajuizavam as dívidas deixadas
pelos falecidos antes de se efetivarem a partilha dos bens.349
Possivelmente, Ferreira
Mouzinho viu-se atraído pelos lucros que adviessem desse esquema, isto o levaria a
planejar e executar mais um crime, como se verá a seguir.
O padre Jorge Aires de Miranda, sócio de Bento Ferreira Mouzinho em alguns
crimes ocorridos pela Vila de Goiana, era proprietário dos ofícios de escrivão concelhio
e de tabelião da referida localidade, nos quais serviam André Mendes ,350
que nas duas
representações efetuadas pelos oficiais da Câmara da Vila de Goiana, havia assinado a
primeira e efetuado esse mesmo procedimento, bem como redigido a segunda carta,
juntamente com demais oficiais camarários que serviram nos anos de 1749 e 1753.351
Não foi possível de se identificar as motivações que levavam André Mendes a se opor,
de maneira tenaz, ao juiz de órfãos Bento Ferreira Mouzinho. No entanto, pode-se
cogitar que antes da chega desse magistrado, André possuísse uma participação mais
ativa na sociedade entre o Padre Jorge Aires de Miranda e o Ouvidor Lourenço da Silva
de Melo, nas armações que realizavam pela Capitania de Itamaracá para obterem, de
maneira dividendos materiais.
Os excessos de Bento Mouzinho no ofício de juiz de órfãos impeliram os
oficiais da Câmara de Goiana, André Mendes, Antônio de Albuquerque de Melo,
Antônio de Sampaio Correia e Bartolomeu Caetano Pereira, a enviarem, mais uma vez,
outra carta, em 19 de dezembro de 1753, dessa feita, para D. José I – sucessor de D.
João V. Nessa carta, acusavam o juiz de órfãos de ser o motor de várias vexações pela
localidade, inclusive do crime de latrocínio.352
Esses oficiais suplicavam, ainda, que
Ferreira Mouzinho fosse expulso da dita capitania para o “sossego daquele povo”, e
complementavam a denúncia afirmando que “[...] este senhor tomando posse do ofício
de juiz de órfãos desta capitania não tem cessado de demonstrar não pai, mas sim
348 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 69, Doc. 5803.
349 Ibidem, Cx. 64, Doc. 5429.
350 “Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
BN, v. 28, 1906. p. 470. 351
AHU-PE, op. cit., Cx. 114, Doc. 8788; Ibidem., Cx. 75, Doc. 6295. 352
Ibidem., Cx. 75, Doc. 6295.
340
padrasto dos miseráveis órfãos”.353
Tal carta havia motivado os membros do Conselho
Ultramarino a redigirem uma consulta à D. José I, em 16 de dezembro de 1754, acerca
dos roubos e demais desordens que provocava na Vila de Goiana, o Juiz de Órfãos
Bento Ferreira.354
O parecer de D. José, por meio do secretário de Estado, Diogo de
Mendonça Corte-Real, instituía que o Governador de Pernambuco se informasse de toda
a situação e que o Ouvidor da Paraíba fosse devassar o caso. Acrescentava D. José, “que
achando o que maior parte do que nela se diz ser certo”, ordenasse que Bento Ferreira
fosse para Olinda e, na sequência, partisse para o sequestro de todos os seus bens, a fim
de ressarcir as famílias agravadas.355
Um ano mais tarde, em 15 de dezembro de 1755, o Ouvidor Geral da Capitania
da Paraíba, Domingos Monteiro da Rocha, enviava ao Conselho Ultramarino o
resultado da residência do Juiz de Órfãos, Bento Ferreira, e duas devassas sobre o
sumiço de uma moça, por nome Ana de São Pedro, no qual estava envolvido Bento
Ferreira e seus familiares.356
Na primeira devassa, executada pelo então Juiz de Órfãos
da sobredita vila, Rodrigo Guedes Alcoforado Mouzinho – filho de Bento Ferreira
Mouzinho –, em 1754, não se encontrou nenhum culpado,357
mas o pai da moça
desaparecida, Manuel Correia Viana,358
estava a solicitar que se fizesse outra
investigação.359
Porém, na segunda devassa, efetuada pelo Ouvidor Monteiro da Rocha,
foi declarado como culpado Bento Ferreira Mouzinho, juntamente com seu filho que
naquele ano estava a servir o ofício de Juiz de Órfãos da Vila de Goiana, Rodrigo
Guedes, sua esposa, Jerônima Guedes Alcoforado e outro filho de Ferreira Mouzinho360
– que, talvez fosse Bento Ferreira Guedes ou Jerônimo Guedes.361
De acordo com a
devassa, Bento Mouzinho se fiaria em sua “fidalguia e cargo que exerce”, para cometer
353 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 75, Doc. 6295.
354 Ibidem, Cx. 77, Doc. 6491.
355 CONSULTA feita ao Conselho Ultramarino sobre se desonerar Bento Ferreira Mouzinho da ocupação
de juiz dos órfãos, por causa dos roubos e desordens que tem praticado. Coleção Documentos Históricos
da Biblioteca Nacional. v. 89. p. 201-202. 356
CARTA do Ouvidor Geral da Paraíba o Bacharel Domingos Monteiro da Rocha, a Vossa Majestade
referindo-se a segunda devassa que mandou instaurar sobre o desaparecimento de uma moça, em Goiana,
Capitania de Itamaracá. Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. v. 89. p. 237-238. 357
Ibidem. 358
AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 20, Doc. 1529. 359
CARTA do Ouvidor Geral da Paraíba o Bacharel Domingos Monteiro da Rocha... loc. cit. 360
Ibidem. 361
FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia Pernambucana. v. 1. In: Anais da
Biblioteca Nacional. v. XLVII, 1918. p. 140.
341
toda a série de atrocidades de que lançara mão na Capitania de Itamaracá para benefício
próprio.362
Mesmo diante de toda essa investigação e do resultado da segunda devassa,
Bento Ferreira Mouzinho continuava como proprietário do ofício de juiz de órfãos, pois
em 15 de maio de 1755, escrevia para D. José I sobre uma lei que havia sido
promulgada no reino e que concedia um aumento considerável nos salários dos
ministros e demais oficiais de justiça e através dessa carta, Mouzinho estava preocupado
se essa diretiva iria implicar também no salário que recebia anualmente da propriedade
do ofício de juiz de órfãos da Capitania de Itamaracá.363
Por fim, Ferreira Mouzinho tentava sua última cartada para reverter à sua
complicada situação em que se encontrava, acusando o Ouvidor Domingos Monteiro da
Rocha de estar mancomunado com o Provedor da Fazenda Real da Vila de Goiana, João
Lopes Vidal, o qual lhe nutria “paixões e ódios” terríveis.364
Ao se procurar o
fundamento dessa assertiva, observou-se que João Lopes Vidal, proprietário do ofício
de provedor da Fazenda Real da Capitania de Itamaracá,365
havia se envolvido em uma
longa querela com os Guedes Alcoforado, envolvendo João Guedes Alcoforado – o pai
–, e João Guedes Alcoforado – o filho –, sendo o segundo o procurador dos interesses
do primeiro na Capitania de Itamaracá,366
sendo ambos, pai e avô de D. Jerônima
Guedes Alcoforado, esposa de Bento Ferreira Mouzinho.
Essa contenda havia sido motivada pelas dívidas que João Guedes, o velho,
devia a Fazenda Real da sobredita Capitania e que após o ingresso de João Lopes Vidal
no ofício de provedor dessa instituição, procedeu-se a cobrança dos débitos, após 25 de
abril de 1732.367
Antes disso, Manuel Dias Aranha, almoxarife da Fazenda, alertava a D.
João V, em 28 de abril de 1732, que a dívida de João Guedes Alcoforado nunca havia
sido cobrada pelos seus antecessores, posto que esse agente possuísse grande intimidade
com antigos almoxarifes, bem como devido à fama de criminosos que seus filhos
362 CARTA do Ouvidor Geral da Paraíba o Bacharel Domingos Monteiro da Rocha, a Vossa Majestade
referindo-se a segunda devassa que mandou instaurar sobre o desaparecimento de uma moça, em Goiana,
Capitania de Itamaracá. Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. v. 89. p. 237-238. 363
AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 79, Doc. 6572. 364
Ibidem. 365
“Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
BN, v. 28, 1906. p. 470. 366
AHU-PE, op. cit., Cx. 43, Doc. 3867. 367
Ibidem.
342
ostentavam por toda a Capitania de Itamaracá.368
Quase dois meses depois, em 16 de
junho de 1732, o Provedor Lopes Vidal, em carta para D. João V, informava que já
havia posto editais para a arrematação do Engenho São João, de propriedade dos
Guedes Alcoforado.369
No entanto, o Engenho somente seria arrematado no final da
década de 1740, em 25 de janeiro de 1748, o Padre José Gomes de Amorim solicitava a
prisão preventiva do antigo proprietário do engenho, João Guedes Alcoforado, bem
como a devolução de alguns utensílios que este agente havia retirado da capela da
propriedade.370
Foi devido a tudo isso que Bento Ferreira Mouzinho havia tentado driblar as
conclusões da devassa efetuada por Domingos Monteiro da Rocha, pois segundo o
acusado esse ouvidor havia atuado conforme as orientações de João Lopes Vidal, um
dos implicados na contenda da arrematação do Engenho São João Batista, de
propriedade da família Guedes Alcoforado, pois Ferreira Mouzinho seria casado com
uma das herdeiras. No entanto, essa acusação foi desmentida, em 10 de março de 1759,
pela sindicância instaurada pelo sucessor de Monteiro da Rocha na Ouvidoria da
Paraíba, João Rodrigues Colaço, segundo o qual as evidências eram gritantes, como
apontado pelas testemunhas levantadas.371
Mesmo assim, pondera-se, que a família
tanto poderia contribuir de maneira positiva para as pretensões dos indivíduos, quanto
negativa. Isso fica evidente no episódio da querela que havia envolvido o Engenho São
Batista, pertencente aos Guedes Alcoforado, aos quais Bento Mouzinho estaria
vinculado através do casamento com uma das herdeiras da casa.
Ao fim e ao cabo, de acordo com a carta enviada pelo Ouvidor Domingos
Monteiro da Rocha à D. José I, em 8 de abril de 1757, o Juiz de Órfãos Bento Ferreira
Mouzinho, após a residência efetuada, foi sentenciado por todas as atrocidades
cometidas na Vila de Goiana, dentre as quais o assassinato de Ana de São Pedro, filha
de Manuel Correia Viana, e de um escravo desse senhor. Tudo isso, segundo o ouvidor,
teria sido motivado pelos “ódios e aversões” que sobre Manuel Correia nutria Ferreira
Mouzinho. Todavia, não foi possível averiguar o que estaria envolvido nessas aversões.
A penalidade de Bento Ferreira Mouzinho foi à suspensão do ofício que então ocupava
e como seria inimaginável residir onde havia cometido tão cruel e sagaz dolo, teria de
368 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 44, Doc. 4023.
369 Ibidem., Doc. 3995.
370 Ibidem., Cx. 67, Doc. 5662.
371 AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 21, Doc. 1600.
343
sair imediatamente de Goiana, sendo remetido preso ao “Tribunal da Relação”.372
Possivelmente, Bento Ferreira Mouzinho teria terminado seus últimos dias de vida
encarcerado nesse Tribunal ou mesmo às voltas, gastando toda a fortuna que havia
amontoado ao longo de quarenta e dois anos de roubos, assassinatos, latrocínios e
desvios, “em capa do zelo do serviço de Deus [...] e de Sua Majestade”.373
A partir da biografia de Bento Ferreira Mouzinho, nas engrenagens
administrativas locais do Império português, pôde-se compreender os dilemas e os
impasses que constantemente entrecruzaram o exercício do mando institucional nas
áreas de conquista e, nesse caso, de modo particular, nas periféricas Capitanias do Rio
Grande e de Itamaracá, na primeira metade século XVIII. Contanto, afirma-se que as
ações que foram levadas a cabo por aquele agente social não sobrevieram subitamente,
mas que tiveram como substrato toda a cultura política do Antigo Regime português,
formada por mecanismos de sociabilidade complexos, muitas vezes ambivalente, que se
caracterizavam por práticas de indistinção entre os universos público e privado, mas
nem por isso seria menos importantes ou ilegítimas, dado o próprio caráter moral e
jurídico – a sociedade polissinodal do Antigo Regime – que lhes serviam de
ancoradouro.
A trajetória de Bento Ferreira Mouzinho seria emblemática também da
possiblidade de ascensão social, através da barganha de bens materiais – como
sesmarias – ou simbólicos – patentes das companhias locais de ordenanças –, nas
rígidas estruturas estamentais do Antigo Regime, embora confirmasse que, para isso,
seria necessária a chancela d’El Rey, que fazia girar, pela economia do “dom” ou de
“mercês”, a espiral do poder. Ressalta-se que para obter tais benesses, raramente seria
possível individualmente, e as várias alianças de Bento Mouzinho entorno da
hegemonia pelo poder, reiteram o sobrepeso das redes clientelares, da família e da
parentela para o sucesso ou para o fracasso de um agente social.
372 AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 20, Doc. 1529.
373 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297.
344
Ao fim e ao cabo, o percurso de Ferreira Mouzinho reverbera os limites do
mando institucional, impostos pelo oficialato, nas estruturas administrativas locais do
Império português. Exemplo disso foram os conflitos jurisdicionais, as lutas por
representatividade do poder, a força dos potentados locais contra os ministros nomeados
por El’ Rey, forjando as relações espaciais de poder, cuja natureza era concebida pela
Coroa, ora tendendo à centralização e a violência, ora ao autogoverno e a
contemporização, mas cuja finalidade precípua era manter o exercício do mando no
ultramar.
Além disso, pôde-se perceber com a trajetória de Bento Ferreira Mouzinho,
que a escrivania da Câmara Municipal do Natal, configurou-se como o primeiro ofício
desempenhado na longa carreira administrativa que esse homem desenvolveu no
ultramar, caracterizando-se, portanto, como um mecanismo nobilitador, juntamente com
outros dispositivos controlados pelas câmaras municipais, dado que um indivíduo
reinol, fugitivo e criminoso, como Bento Ferreira Mouzinho, havia conseguido galgar
outros postos na administração local e a partir dele ascendido socialmente na hierarquia
estamental do Antigo Regime. Depreende-se, ainda, que o caráter nobilitador atribuído
pela historiografia às câmaras municipais durante o período colonial não se relacionou,
necessariamente, apenas com a ocupação dos postos mais proeminentes dos concelhos
municipais, como juiz ordinário ou vereador, mas que essa nobilitação passava também
pelo ofício de escrivão camarário, talvez, pelo simples fato de figurar na governança da
terra ou pela habilidade da escrita que detinha, diante de uma sociedade
majoritariamente iletrada.
Não obstante, adir-se ainda, que a diferenciação social seria um fim não apenas
inerente ao exercício de um determinado ofício, mas que seu alcance dependia muito
das estratégias tramadas pelos agentes sociais, com a finalidade de adquirir status e
proeminência social. Para isso, os indivíduos careciam saber “ler” nas entranhas do
sistema social e de poder, sob a égide dos quais se davam o desenrolar da vida cotidiana
e as possibilidades de ascensão social e econômica. A partir do percurso de Bento
Mouzinho, verificou-se que esse indivíduo não apenas estava imerso na cultura política
do Antigo Regime, mas que também era consciente disso e que sabia quais eram os
caminhos que deveria percorrer para se inserir dentro desse universo, cuja política de
mercês era o elemento chave para a promoção da nobilitação social. Provavelmente, por
isso, Mouzinho preteriu correr o risco de perder o tabelionado público, ao livrar as
345
culpas de um criminoso, mas que em contrapartida lhe seria cedida à serventia da
escrivania da Câmara do Natal. Com isso, Bento Ferreira ganharia triplamente.
Primeiro, passaria a figurar em uma agência de reprodução de distinção social, em nível
local, o que lhe tiraria ou mesmo amenizaria a mácula dos crimes que havia cometido
no reino; segundo, teria a possibilidade de contemporizar com os homens mais nobres
da terra, de onde, possivelmente, decorresse o vantajoso casamento que havia adquirido
com uma Guedes Alcoforado; e, terceiro jogava com todo o arsenal de possibilidades
provenientes do mecanismo político de gestão e sobrevivência do Império: a escrita.
Mesmo que, inicialmente, fosse facultada a todos os súditos a possibilidade de
escreverem para El Rey, através do dispositivo das petições, as câmaras municipais
continuaram a ser o melhor e mais efetivo lócus para a comunicação interinstitucional,
sobretudo com rei, com quem tinham o privilégio de se comunicar diretamente. E Bento
Ferreira Mouzinho soube como ninguém administrar isso a seu favor, posto que durante
os dezessete anos que serviu como como serventuário do ofício de escrivão, foi capaz
de colocar fim na trajetória de diversos capitães-mores, compreendidos como os
representantes diretos de Sua Majestade nas conquistas. Mouzinho utilizou-se da escrita
enviando longas e persistentes delações para o reino, mesmo que muitas fossem
enviadas em nome dos oficiais camarários, como asseverou o Capitão-mor João de
Teive Barreto e Menezes, que haviam implicado nas séries de desgraças que haviam
recaído sobre alguns de seus antecessores, como Domingos Amado, Luís Ferreira Freire
e José Pereira da Fonseca, mesmo que todos estes capitães-mores tivessem concedido a
Mouzinho alguma benesse.
Essa situação faz-nos pensar sobre as inúmeras demonstrações de como um
agente social, mesmo ocupando um ofício auxiliar da justiça e, por isso, considerado de
importância política menos expressiva, foi capaz de estabelecer limites aos projetos
mais amplos da Coroa lusa, sobretudo quando enfrentava e depunha os capitães-mores.
Ou mesmo, quando conseguiu retirar das mãos de uma importante família local – os
Melo e Albuquerque – a posse da procuração de plenos poderes sobre os ofícios de
escrivão da Câmara do Natal e de tabelião público do Rio Grande, mesmo que houvesse
se filiado a esta família nos momentos iniciais de inserção social nessa capitania. Visto
tudo isto, fica patente a funcionalidade do ofício de escrivão camarário no interior das
edilidades, sobretudo quando além de dominarem a escrita – fundamental para o
346
exercício do ofício –, sabiam ler nas entranhas do sistema social, ao lidar com ambos os
mecanismos de maneira política para a promoção da distinção e da diferenciação social.
347
Considerações Finais
Esta dissertação visou analisar e discutir a atuação dos agentes sociais que
foram providos no ofício de escrivão da Câmara do Natal, bem como o papel de broker
– espécie de intermediário – nas concêntricas relações institucionais estabelecidas entre
o reino – centro – e a Capitania do Rio Grande – periferia –, no contexto administrativo
e burocrático do Império português, entre os anos de 1613 e 1759. Particularmente
nesse período, posto que se tenha partido nesse estudo da realidade local, cuja tônica da
organização governativa da Capitania do Rio Grande não anularia outras diversas
possibilidades que pudessem emergir sobre esse ofício em outras conjunturas – espacial
e temporalmente localizadas. O ano de 1613 demarcaria a criação, via ordem régia, do
ofício de escrivão da Câmara do Natal, de maneira conjunta com esta mesma edilidade e
dos demais ofícios, sinalizando, desde esse momento, o princípio que orientaria o
exercício desse ofício, que fosse o estabelecimento de uma via de comunicação entre
essa capitania e outras instâncias do mando institucional pelo Império. Considerou-se o
ano de 1759 como emblemático para as discussões que se trouxe nesse texto, devido ao
aparecimento de outras câmaras municipais pelo Rio Grande, o que havia acarretado na
redução do termo de jurisdição do Concelho da Cidade do Natal, bem como na
emergência de outros ofícios de escrivão camarário, cujos ocupantes possuíam outro
perfil social e econômico, dado que os mestres das escolas dos índios, em grande parte,
passaram a assumir a escrivania das novas edilidades.
No primeiro capítulo, objetivou-se compreender o papel e a representatividade
social dos escrivães, de modo geral, e dos escrivães camarários, de maneira particular,
para a sociedade colonial, através da redação do expediente manuscrito, que se
configurava como o principal elemento definidor e instaurador desse ofício no contexto
da administração da Coroa lusa. Isso foi possível através da investigação efetuada nas
Ordenações Filipinas. Nesse capítulo, tentou-se também reconstituir os procedimentos
administrativos dos escrivães camarários do Natal, confrontando-os com as prescrições
legais contidas nas Ordenações Filipinas. Após isso, averiguou-se que a função de
agentes da escrita que coubera aos escrivães concelhios havia ultrapassado a binária
divisão da comunicação/interligação entre a Capitania do Rio Grande – periferia – e o
reino – centro –, entendida também como comunicação transcontinental, visto que a
348
Câmara do Natal também havia mantido diálogo constante com outras instituições ou
oficiais, tanto no interior da própria capitania – intracapitania –, como com as vizinhas
Capitanias de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Bahia – intercapitanias.
Com esse estudo, pôde-se compreender que a ideia de centro e periferia, para o
caso da situação analisada, havia sido demarcada por um caráter dinâmico, posto que a
Câmara do Natal enquanto periferia possuía outros centros para além do próprio reino.
Exemplo disso seria a submissão política em relação ao governo geral da Bahia até o
início do século XVIII e a consequente subordinação ao governo da Capitania de
Pernambuco, a partir de 1701. Além disso, tem-se a sujeição judicial à Ouvidoria Geral
da Paraíba, desde a criação desse órgão, em 1687. Dessa forma, a Capitania do Rio
Grande, assim como a própria Câmara do Natal, mesmo que tivesse o privilégio de se
comunicar diretamente com o rei, a quem era subordinada, também possuía outras
instâncias consideradas como centro e com as quais mantinha efetiva comunicação. No
entanto, adir-se ainda, que a própria Câmara do Natal podia ser considerada como
centro, em relação às diversas aldeias e ribeiras com as quais também se comunicava
para fins administrativos. No interior dessa densa rede comunicativa situavam-se os
escrivães, entendidos nesse capítulo enquanto brokers, pois eram os mediadores de toda
essa intensa rede de comunicação política e institucional, configurando-se como os
principais responsáveis pela sua redação.
O segundo capítulo tinha como finalidade reconstituir o perfil social e
econômico dos escrivães da Câmara do Natal. Para isso, identificaram-se as origens dos
agentes que foram providos na escrivania dessa edilidade, assim como seus bens
materiais – sesmarias, chãos de terra, gados e escravos – e simbólicos – patentes das
companhias de ordenanças locais – com a finalidade de compreender a inserção desses
agentes no interior da elite local. Mesmo que seus patrimônios fossem considerados
modestos, foi possível perceber o traçado geral dos padrões societários vigentes na
sociedade do Antigo Regime. Nesse capítulo percebeu-se, quando se analisou as origens
geográficas dos escrivães concelhios, bem como de sua movimentação em conflitos
pelo ultramar, das solicitações de sesmarias em diferentes capitanias e por haverem
galgado outros postos ou ofícios em diferentes partes do Império, que o processo de
conquista/colonização das áreas de expansão passava também pela escrivania camarária,
visto que a possibilidade de servir a El Rey e de si inserir nos aparatos administrativos
locais havia funcionado para cooptar agentes sociais para os longínquos rincões da
349
América, onde se instalaram as novas praças do além-mar, mormente na prestação de
serviços que do empenho desses homens pudessem advir, em nome da Coroa lusa.
No terceiro capítulo, com o desígnio de apresentar a dimensão venal que havia
encoberto o exercício do ofício de escrivão camarário pelas possessões imperiais
portuguesas, discutiu-se as conotações assumidas por essa prática para o caso da
monarquia portuguesa e as vizinhas. Demonstrou-se, ainda, nesse capítulo sob quais
circunstâncias haviam incorrido as provisões em concessão perpétua – propriedade – e
em concessão precária – temporária – para a escrivania camarária da Cidade do Natal,
bem como do tabelionado do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande –
ambos anexos –, reiterou-se que, mesmo não constando nas provisões para o ofício de
escrivão, parte significativa dos serventuários precários desse ofício haviam se
destacado nos conflitos que formaram a Guerra dos Bárbaros, tanto nessa capitania,
quanto nas vizinhas Capitanias de Pernambuco, Paraíba e Ceará. Adir-se, ainda, que,
além das provisões perpétuas e temporárias para o ofício de escrivão da Câmara do
Natal, se verificou também a concessão de procuração de plenos poderes sobre o ofício
de escrivão camarário, o que não se verificou na historiografia sobre o tema em outras
localidades do Império português e da Monarquia de Espanha.
Ainda sobre o terceiro capítulo, perceberam-se as estratégias de controle do
ofício de escrivão camarário do Concelho do Natal nas mãos de uma família que não
possuía a concessão perpétua desse ofício, mas a posse de uma procuração de plenos
poderes, concedida pelo verdadeiro proprietário. Nesse sentido, a escrivania camarária
do Natal tornou-se um mecanismo para prestigiar parentes e aderentes da família
Rodrigues de Sá, bem como das demais famílias que a este se integrou por meio do
casamento ou das relações de compadrio, como os Melo e Albuquerque e os Cardoso
Batalha. Verificou-se, ainda, que a tentativa de oligarquização desse ofício por essas
famílias, deu-se na esteira do caráter estratégico da escrivania camarária do Natal, posto
que além do ocupante desse ofício tivesse acesso irrestrito à memória institucional da
principal agência de representação e regulamentação, em nível local, o escrivão da
câmara era, ainda, o responsável pelo resguardo de uma das chaves do cofre onde
estavam as listas dos elegíveis para postos honoráveis do concelho, e disso poderia –
como se viu que ocorreu – elaborar estratégias de manipulação da escolha desses postos.
Soma-se a isso, que a escrivania camarária poderia ser desempenhada, de maneira
concomitante, com outro parente que estivesse a exercer os postos honoráveis dos
350
concelhos, e isso abriria margem para a indução da representação dos interesses de uma
determinada família, em detrimento de outras.
Por fim, o quarto capítulo, que tinha como objetivo discutir os problemas de
jurisdição, alçada e conflitos entre os escrivães camarários e outros agentes da
administração portuguesa, foi esboçado por meio da trajetória emblemática de Bento
Ferreira Mouzinho. Escrivão da Câmara do Natal durante dezessete anos, seu percurso
ascensional na estrutura hierárquica estamental do Antigo Regime, serviu para se pensar
– além das relações de poder e dos conflitos por espaço jurisdicional, quase todos os
dilemas que constantemente atravessaram a administração do Império português, pelos
inúmeros problemas estruturais que aponta, como os limites do mando institucional, as
mercês, as redes clientelares, a dimensão familiar, a cultura política do Antigo Regime
português. Enfim, essa trajetória fez-nos pensar acerca da própria natureza do poder da
Coroa portuguesa, que ora inclinou-se à centralização, ora ao autogoverno nas regiões
de conquista. Através da análise da escrivania de Mouzinho, percebeu-se que havia
margem para a indissociação entre o exercício do ofício, o poder político que daí
adviesse e os ganhos materiais possibilitados pela barganha dos mecanismos que se
encontravam sob a custódia das instituições nas quais aquele agente social havia
desempenhado os ofícios, demonstrando como nas sociedades de Antigo Regime havia
essa constante tensão entre a dimensão pública e a privada – mas que nem por isso
ilegítimas – no exercício dos ofícios administrativos e burocráticos da Coroa Lusitana
por todo o Império.
Ao fim e ao cabo, buscou-se trazer para a discussão acadêmica algumas
reflexões sobre a história dos escrivães camarários, a partir de uma grande quantidade
de fontes documentais – encontrados em arquivos tanto no Brasil quanto em Portugal,
cuja maioria caracterizou-se por sua originalidade e pelo seu ineditismo –, sobre os
quais se foi possível levantar diversas questões pertinentes à história desses escrivães
camarários, na Capitania do Rio Grande, entre 1613 e 1759. Finalmente, conclui-se que
a escrivania concelhia do Natal, mesmo sendo considerado um ofício auxiliar na esfera
da justiça, foi ocupada por homens embebidos pela cultura política do Antigo Regime,
os quais não deixaram de se utilizar dos instrumentos mentais dessa atmosfera cultural
para se munirem em suas ações diárias na busca por prestígio, poder, status e
diferenciação social, cuja materialidade se deu na esteira do exercício do principal
mecanismo político da Época Moderna: a escrita.
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