universidade federal do rio grande do norte centro … · temporais justificam-se, na medida em...

380
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA I: NATUREZA, RELAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS E PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS “UM IMPÉRIO DE PAPEL”: Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal (1613-1759) ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA Natal-RN 2018

Upload: others

Post on 19-Jul-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA I: NATUREZA, RELAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS E

PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS

“UM IMPÉRIO DE PAPEL”:

Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal

(1613-1759)

ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA

Natal-RN

2018

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA I: NATUREZA, RELAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS E

PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS

“UM IMPÉRIO DE PAPEL”:

Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal

(1613-1759)

ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA

Natal-RN

2018

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA

“UM IMPÉRIO DE PAPEL”:

Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal

(1613-1759)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História, Área de Concentração

em História e Espaços, Linha de Pesquisa I:

Natureza, relações econômico-sociais e

produção dos espaços, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como

requisito parcial para obtenção do Grau de

Mestre em História.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Fátima Martins Lopes;

Coorientador: Prof. Dr. Antônio Filipe Pereira

Caetano.

Natal, 2018

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’
Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

ABIMAEL ESDRAS CARVALHO DE MOURA LIRA

“UM IMPÉRIO DE PAPEL”:

Um histórico do ofício de escrivão da Câmara do Natal

(1613-1759)

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Fátima Martins Lopes (Orientadora)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

_________________________________________________________

Prof. Dr. Antonio Filipe Pereira Caetano (Coorientador)

Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

_________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Roberta Giannublio Stumpf (Examinadora Externa)

Universidade Nova de Lisboa, Centro de História D’ Aquém e D’ Além-mar (UNL)

_________________________________________________________

Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia (Examinador Interno)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo (Examinador Interno/Suplente)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Natal, 26 de janeiro de 2018.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

Aos meus pais, Jacinta e Lira,

por haverem desde cedo me ensinado que

a educação é o melhor mecanismo de transformação social.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

AGRADECIMENTOS

Agradecer consiste em uma tarefa nobre, porém sua prática pode ser

tragicamente ingrata, sobretudo quando se corre o risco iminente de se esquecer de

alguém que, de uma forma ou de outra, contribuiu para a viabilização deste trabalho.

Mesmo assim, prossigamos nessa empreitada.

À Deus, pelo dom da vida, pela sabedoria e pela fé, que serviram-me de

combustível para que enfrentasse com discernimento os vários obstáculos dessa jornada.

Às Virgens da Conceição e das Vitórias pela interseção em mais um coroamento

de minha jornada pessoal e profissional, as quais recorri, persistentemente, a pedir-lhes

uma luz para o corredor tenebroso do mundo acadêmico, eivado por vaidades soberbas e

exibicionismos tacanhos.

Aos meus pais, Jacinta e Lira, por todo o apoio emocional e por haverem, desde

o princípio, acreditado em minhas potencialidades, não medindo esforços para que eu

chegasse até aqui. Agradeço-lhes também pelas lições de vida, moral e esperança, que

desde cedo demonstraram que a educação se configurava como o melhor mecanismo

para transformação da realidade social. À mainha, que desde sempre me ensinou que

humildade e sabedoria eram faces de uma mesma moeda. Ao meu pai, o maior leitor

dos meus textos e grande incentivador de minha trajetória profissional, com quem dividi

várias noites em claro para a elaboração de todo este trabalho.

À Dr.ª Fátima Martins Lopes, que com maestria e paciência acolheu a orientação

desta pesquisa, em um momento difícil de minha vida, pulverizado por várias

incertezas. Muito obrigado pela leitura atenta e perspicaz deste texto, bem como pelas

enriquecedoras reuniões de orientação, sem a sua valiosa ajuda, jamais teria chegado até

aqui.

Ao Dr. Antonio Filipe Pereira Caetano, meu coorientador – e com quem partilho

o fascínio pela História e a paixão pelas ciências da saúde –, que da “Comarca das

Alagoas” cumpria com serenidade a missão da orientação, indicando-me o melhor

caminho, mas deixando-me em aberto às possibilidades de escolha.

À Dr.ª Carmen Alveal, por haver acreditado em mim quando a procurei para

tentar a seleção do mestrado, pela incomensurável disponibilidade nos dois primeiros

anos da orientação, pelo acesso irrestrito ao rico acervo documental do Laboratório de

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

Experimentação em História Social (LEHS/UFRN). Enfim, esta pesquisa se

materializou também pelo pouco dos princípios sobre a “disciplina americana” que

aprendi com a senhora.

À Dr.ª Anna Paula Lima Costa, à Dr.ª Narla Sathler Musse, ao Dr. Leão Xavier

da Costa Neto, orientadores em diferentes projetos de pesquisa, quando ainda era aluno

do Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Agradeço também à Dr.ª Olívia Medeiros,

que leu meus primeiros rascunhos do projeto de pesquisa do mestrado e pelos valiosos

concelhos em alguns momentos difíceis que enfrentei nesse percurso.

Ao Dr. Lígio José de Oliveira Maia, pela bolsa de Ações Acadêmicas Integradas,

na qual entrei em contato com os escrivães camarários e pela participação na Banca de

Qualificação dessa dissertação, juntamente com o Dr. Helder Alexandre Medeiros de

Macedo.

À Luann Alves de Araújo, secretário do Programa de Pós-graduação em História

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, à quem muito devo pelos trâmites

burocráticos durante esses dois últimos anos, mas pelo grande amigo que ganhei e que

levarei pela vida.

Ao Laboratório de Imagens da UFRN (LABIM-UFRN), nas pessoas de Iris

Alvares e Rafael Arquino, que gentilmente disponibilizaram-me grande parte dos

documentos utilizados nessa pesquisa.

Aos amigos que fiz durante minha estadia no mestrado, Raphael Torres, Patrícia

Morais e Djair Silva, que tornaram a solidão da pesquisa algo menos pesaroso e mais

humano; Agradeço também à Monique Maia de Lima, com quem compartilhei essa

trajetória, dividindo sonhos e angústias.

Aos Mestres, Fagner David, Khalil Jobim e Keidy Matias, amigos que me

incentivaram a trilhar o percurso do mestrado, inclusive ao ler e opinar sobre meu

projeto de pesquisa.

Aos amigos da Geologia, Abraão Dantas, Karoline Arruda e Vinicius Silva pela

amizade e pelos reprises sobre o Arcgis. Espero que assim como as rochas ígneas, nossa

amizade sobreviva às intempéries do tempo e da vida.

À Gabriel Gomes pelo apoio descomedido e a disponibilidade imediata nesses

últimos meses, quando precisava ausentar-me da Odontologia; à Luiz Miguel pela

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

compreensão sobre a ausência da dupla e ao Júlio Holanda, que nossa amizade seja

resistente assim como o dente é o órgão mais rígido do corpo humano.

À Wendell Oliveira e Cristiane Mirelle, amigos que levo desde a graduação.

Agradeço também, de modo particular, à Luciere Cavalcante, pelo grande incentivo na

minha carreira acadêmica e com quem tive a satisfação de escrever os primeiros artigos

científicos.

À minha tia Graça Barbosa, pois acredito que a gramática com a qual me

presenteou, há dez anos, contribuiu para eu chegasse até aqui. À tia e madrinha

Francisca Barbosa de Moura pela positividade de tudo o que sempre me deseja. Às tias

Lúcia Barbosa e Fátima Moura, pelo suporte à mainha em minha longa ausência. Aos

tios Francisco Barboza e Teresa Dantas, pela estadia que me concederam ao chegar à

capital potiguar. Ao meu avô, Geraldo Barbosa de Moura – in memoriam –, pelas

longas histórias sobre sua vida na Segunda Guerra Mundial, que muito despertou meu

interesse pela História.

À Narcisa Alves de Medeiros, minha “tia”, secretária da Pró-reitoria de

Planejamento da UFRN, uma são-tomeense de aura ilustre e de coração nobre que

jamais mensurou esforços para contribuir com o sucesso de seus conterrâneos.

À Prof.ª Edlinda Cândida, que ao rigor preciso, me ensinou as primeiras letras e

as operações matemáticas básicas e de quem fui aluno no reforço durante quase uma

década;

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, minha segunda casa, a quem

muito devo toda a minha formação profissional. Agradeço também à Pró-reitoria de

Assuntos Estudantis da UFRN, na pessoa de Maria das Graças de Sousa Pereira da

Costa, pelo auxílio a minha permanência na Universidade.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),

pela bolsa concedida, sem o apoio da qual esta pesquisa jamais teria se materializado.

Se a muitos agradeço a contribuição que deram a esse texto, apenas eu sou

responsável pelos equívocos que aqui cometi.

São Tomé-RN, Outono de 2018.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

“Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?”

Fernando Pessoa, Poema em linha reta, 1972.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

RESUMO

Esta dissertação analisa o ofício de escrivão da Câmara do Natal e a função

desempenhada por estes oficiais na administração burocrática do Império português,

com a finalidade de compreender a sua atuação e seu papel de intermediários nas

relações entre o reino – centro – e a Capitania do Rio Grande – periferia. As balizas

temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que

fossem estabelecidos os ‘modos de governo’ na Capitania do Rio Grande, criando uma

câmara com seus respectivos oficiais, e, entre eles, o ofício de escrivão dessa edilidade.

Findou-se a análise em 1759, quando por ordem do Marquês de Pombal, elevaram-se os

aldeamentos indígenas existentes no Rio Grande à categoria de vilas, resultando na

criação de novas câmaras, com seus respectivos escrivães concelhios, que possuíam

outro perfil. Utilizou-se os Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal

e os Livros de Termos de Vereação dessa instituição; bem como, os registros paroquiais

da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação; os Documentos Históricos, da

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; os Documentos Avulsos e o Livro de Registro

de Consultas Mistas, do Arquivo Histórico Ultramarino – disponíveis online. Serviu-se

também do Livro de Registro Geral de Mercês de D. Pedro II e dos Processos do

Tribunal do Santo Ofício de Évora, sob a guarda do Arquivo Nacional da Torre do

Tombo, também online. Esses conjuntos documentais foram analisados com um

cruzamento intensivo de dados, baseado nos métodos indiciário e onomástico, sob a

perspectiva da relação centro e periferia. Averiguou-se as práticas dos escrivães da

Câmara do Natal, confrontando-as às prescrições estabelecidas pelas Ordenações

Filipinas. E, por meio disso, aclarou-se o papel de broker – espécie de intermediário –

desempenhado pelos escrivães camarários do Natal nas redes institucionais de

circulação de informações pelo Império, nos níveis intracapitania, intercapitanias e

transcontinental. Estabeleceu-se o perfil social e econômico dos agentes providos na

escrivania concelhia do Natal, com o propósito de compreender a representatividade

desses oficiais na sociedade local. Discutiu-se o caráter venal desse ofício, interligando-

os às polêmicas e controvérsias dessa prática para a Coroa portuguesa. E estabeleceu-se,

por fim, a trajetória emblemática de ascensão social de Bento Ferreira Mouzinho, –

português, criminoso e fugitivo –, que foi escrivão da Câmara do Natal durante

dezessete anos, chegando a assumir, posteriormente, o ofício de provedor da Real

Fazenda do Rio Grande e juiz de órfãos da Capitania de Itamaracá. Ao fim e ao cabo,

percebeu-se que o processo de conquista/colonização também passava pelo ofício de

escrivão da Câmara do Natal, sobretudo diante da mobilidade dos agentes que foram

providos nesse ofício. Soma-se a isso, a importância do escrivão concelhio como

intermediário entre o universo letrado e o iletrado, assim como para a comunicação

interinstitucional no Império. Por fim, compreendeu-se o caráter estratégico desse ofício

no contexto da geopolítica local, verificada na disputa pelo domínio hegemônico da

escrivania por algumas famílias.

Palavras-chave: Escrivão da Câmara; Centro e Periferia; Provisão de ofícios;

Venalidade de ofícios; Biografia/trajetória administrativa.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

ABSTRACT

This dissertation analyzes the role of scrivener of the Assembly of Natal and the

function developed for these officers in the bureaucratic administration of the

Portuguese Empire, for the purpose of understanding their operation and their role as

intermediaries in the relation between reign - center - and the Captaincy of Rio Grande -

suburb. The temporal beacons are justified, in so far as, in the year of 1613, D. Filipe II

ordered that were implemented the “modes of government” in the Captaincy of Rio

Grande, creating an assembly with its related officers, and, between them, the function

of scrivener of this building. The analysis ended in 1759, when for the order of Marquis

of Pombal, elevated the existing indigenous settlements in the Rio Grande to the village

category, resulting in the creation of new assemblies, with their respective counties

scriveners, who had another kind of profile. It was used the Books of Files and

Provision of Senate of Assembly of Natal and the Books of Terms of Council of this

institution; as well as the parish records of Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação; Historical Documents of the National Library of Rio de Janeiro; Single

Documents and the Book of Mixed Query Log of Ultramarine Historical Archive -

available online.It was also used the Book of General Registration of Mercy of D. Pedro

II and the Processes of the Court of Holy Office of Évora under the guard of National

Archive of Tower of Tombo, also online. These documentary sets were analyzed with

intensive data crossing, based on indicia and onomastic methods, under the perspective

of the relation center and suburb. It was examined the scrivener practices of the

Assembly of Natal, confronting them to the established prescriptions by Ordenações

Filipinas. This way was clarified the function of the broker - a kind of intermediary -

developed by the assembling scriveners of Natal in the institutional networks of

circulation of information by the Empire, in the levels of intracaptaincy, intercaptaincy

and transcontinental. It was established the social and economic profiles of the agents

provided in the county secretary of Natal, for the purpose of understanding the

representativeness of these officers in the local society. It was discussed the venal

character of this role, interconnecting them to the polemic and controversy of this

practice to the Portuguese Crown. It was established, lastly, the emblematic trajectory of

social ascension of Bento Ferreira Mouzinho, - Portuguese, criminal and fugitive -, who

was scrivener from Assembly of Natal for seventeen years, even assuming, posteriorly,

the role of provider of the Royal Treasury of Rio Grande and judge of orphans of

Captaincy of Itamaracá. Finally, it was realized that the process of

conquest/colonization also passed by the role of scrivener of Assembly of Natal,

especially according to the mobility of the agents who were provided in this function.

Add to that, the importance of the county scrivener as intermediary between literate

universe and illiterate, even as to the interinstitutional communication in the Empire.

Lastly, it was understood the strategic character of this role in the local geopolitical

context, verified in the contention for hegemonic domain of the script for some families.

Keywords: Scrivener of Assembly; Center and Suburb; Officers of roles; Officers of

venality; Biography/trajectory administrative.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 01 - Percentual da correspondência entre a Câmara da Cidade do Natal e outros

espaços sociais do Império português (1659-1759) ..................................................... 109

Gráfico 02 - Macroorigens geográficas dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759)

...................................................................................................................................... 131

Gráfico 03 - Naturalidade dos escrivães da Câmara de Natal por circunscrição

geográfica do Império (1613-1759) .............................................................................. 148

Gráfico 04 - Proporção entre escrivães sesmeiros e escrivães não-sesmeiros na

Capitania do Rio Grande (1613-1759) ......................................................................... 163

Gráfico 05 - Justificativas apresentadas pelos indivíduos que ocuparam o ofício de

escrivão da Câmara do Natal para a obtenção de carta de sesmaria (1613-1759)........ 171

Gráfico 06 - Escrivães que obtiveram concessão de chãos de terra no termo de Natal

após exercerem a escrivania da câmara (1659-1759) ................................................... 178

Gráfico 07 - Percentual de escrivães camarários do Natal com patentes nas Ordenanças

Locais (1613-1759) ...................................................................................................... 181

Gráfico 08 - Tipologia das patentes dos escrivães da Câmara do Natal nas Companhias

de Ordenanças e na Tropa paga da Capitania do Rio Grande (16131-1759) ............... 183

Gráfico 09 - Tempo de serviço e modalidade do provimento para o ofício de escrivão

da Câmara do Natal (1613-1759) ................................................................................. 198

Gráfico 10 - Autoridades que proveram o ofício de escrivão da Câmara do Natal

(1613-1759) .................................................................................................................. 206

Gráfico 11 - Acumulação do ofício de escrivão da Câmara do Natal com outros ofícios

da administração local (1613-1759) ............................................................................. 212

Gráfico 12 - A família Rodrigues de Sá e sua parentela: casamentos, batismos e

apadrinhamentos (1697-1759) ...................................................................................... 225

Gráfico 13 - A família do escrivão da Câmara do Natal Bento Ferreira Mouzinho .... 294

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

LISTA DE MAPAS

Mapa 01 - Comunicação intracapitania do Rio Grande através da Câmara do Natal com

as porções central e oriental da Capitania (1659-1759) ................................................. 87

Mapa 02 - Comunicação intracapitania do Rio Grande através da Câmara do Natal com

as porções central e ocidental da Capitania (1659-1759) ............................................... 91

Mapa 03 - Comunicação intercapitanias da América Portuguesa, via Câmara do Natal

(1659-1760) .................................................................................................................. 100

Mapa 04 - Comunicação transcontinental entre as cidades do Natal e Lisboa via

Câmara do Natal (1659-1759) ...................................................................................... 108

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

LISTA DE TABELAS

Tabela 01 - TIPOLOGIAS DOCUMENTAIS REDIGIDAS PELOS ESCRIVÃES

CONCELHIOS E RESPECTIVOS VALORES AUFERIDOS DA REDAÇÃO DO

EXPEDIENTE INSTITUCIONAL (1603) .................................................................... 72

Tabela 02 - Tipologias documentais emitidas pelos escrivães da Câmara do Natal

(1682) ............................................................................................................................. 78

Tabela 03 - Lista nominal dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759) ................ 129

Tabela 04 - Origem geográfica dos escrivães da Câmara do Natal por circunscrição e

localidade (1613-1759) ................................................................................................. 136

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

LISTA DE ABREVIATURAS

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino;

ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo;

DHBN – Documentos Históricos da Biblioteca Nacional;

IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano;

IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro;

IHGRN – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte;

SILB – Sesmarias do Império Luso-Brasileiro;

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

Sumário

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 19

CAPÍTULO I – OS ESCRIVÃES CAMARÁRIOS: Regimento, Práticas, emolumentos

e fluxos da comunicação institucional ............................................................................ 35

1.1 As Ordenações Filipinas (séc. XVII-XVIII)............................................................. 38

1.1.1 A criação do ofício de escrivão da Câmara do Natal (1613) ................................. 45

1.2 As práticas organizacionais dos escrivães na Câmara .............................................. 47

1.1.1 Assentos da comunicação institucional ................................................................. 50

1.1.2 Registros da Câmara .............................................................................................. 57

1.1.3 A tutela entre os ofícios da câmara ........................................................................ 65

1.3 Emolumentos e salários ............................................................................................ 71

1.4 Os escrivães como intermediários nas redes institucionais de circulação de

informações administrativas pelo Império ..................................................................... 81

1.4.1 A comunicação intracapitania do Rio Grande ....................................................... 86

1.4.2 A comunicação intercapitanias da América Portuguesa (1659-1759) ................... 99

1.4.3 A comunicação transcontinental via Câmara do Natal ........................................ 107

CAPÍTULO II - HOMENS DE PRÉSTIMOS E CONSIDERÁVEIS CABEDAIS: O

perfil social dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759) ....................................... 120

2.1 As origens dos escrivães concelhios do Natal ........................................................ 128

2.1.1 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos de Portugal ...................................... 138

2.1.2 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos das Capitanias do Norte .................. 148

2.1.3 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos da Capitania do Rio Grande ............ 155

2.2 O perfil social dos escrivães da Câmara do Natal .................................................. 162

2.2.1 A posse de gados, sesmarias, escravos, chãos de terras e patentes ..................... 169

CAPÍTULO III – A ESCRIVANIA DA CÂMARA DO NATAL: Concessões,

provimentos e acumulação de ofícios ........................................................................... 190

3.1 A venalidade de ofícios nas Monarquias Europeias (sécs. XV-XVIII) .................. 191

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

3.1.1 Provimentos e acumulações de ofícios ................................................................ 195

3.2 Sangue do mesmo sangue ou parentes da mesma parentela? ................................. 217

3.2.1 A família Rodrigues de Sá e o ofício de escrivão da Câmara do Natal ............... 222

CAPÍTULO IV - “UM MALIGNO ESCRIVÃO”: Bento Ferreira Mouzinho sob o

reinado de D. João V (1715-1755) ............................................................................... 259

4. 1 O alvor de um século sombrio ............................................................................... 264

4. 2 As origens, a travessia do Atlântico e a chegada ao Rio Grande .......................... 268

4.3 “Causando bandos e fomentando inimizades diabólicas” ...................................... 277

4.4 Família, prestígio e poder ....................................................................................... 292

4.5 “O principal agressor de tão atroz delito” .............................................................. 298

4.6 A crise política de 1720 .......................................................................................... 311

4.7 “A Revolta dos Magnatas” ..................................................................................... 334

4. 8 “Não pai, mas sim padrasto dos miseráveis órfãos” .............................................. 337

Considerações Finais .................................................................................................... 347

FONTES ....................................................................................................................... 352

FONTES MANUSCRITAS ......................................................................................... 352

FONTES IMPRESSAS ................................................................................................ 353

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 355

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

19

INTRODUÇÃO

O estabelecimento da “geografia política”1 de disposição de cargos e ofícios,

no reino e no ultramar, havia obedecido ao paradigma jurisdicionalista2 que predominou

em Portugal no Antigo Regime.3 Esse paradigma provém do medievo, pois, de acordo

com António Manuel Hespanha, o pensamento político naquele período compreendia a

sociedade como um corpo social formado por diversas partes, ou seja, por grupos

sociais e instituições, cujas atuações possuíam funções específicas e imprescindíveis

para o funcionamento adequado de todo o corpo.4 Desse modo, esse cunho corporativo

da sociedade portuguesa do Antigo Regime fora transposto para as estruturas

administrativas e burocráticas, tornando-se a jurisdição o limite máximo e possível da

autonomia do exercício do poder político de cada ofício ou função que possuíam os

distintos grupos sociais.5

A expansão ultramarina portuguesa,6 entre os séculos XV-XVI, transpôs uma

série de instituições, bem como de ofícios, existentes no reino, para o além-mar.7 Em

face do processo de complexificação da administração portuguesa proveniente,

sobretudo, da expansão territorial do Império8 e, com isso, de pessoas vivendo sob a

égide da Coroa, carecia-se cada vez mais de um aparato burocrático que fosse capaz de

suprir as demandas da vida em sociedade. Este momento caracterizou-se, por um lado,

pela expansão das áreas de colonização e, por outro lado, pelo alargamento progressivo

do próprio corpo administrativo, sumarizado pelo estabelecimento de diversas

1 HESPANHA, António Manuel. História das Instituições, épocas medieval e moderna. Coimbra:

Livraria Almedina, 1982. p. 250. 2 op. cit. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc. XVII. Coimbra:

Almedina, 1994. 3 FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime

nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2001; ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Lisboa: Editora Estampa, 1987. 4 HESPANHA, op. cit., 1994. p. 286-287, 300.

5 Ibidem, p. 299-300.

6 BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. BARRETO, Anna Olga de Barros

(trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 7 Para Maria Fernanda Bicalho, o processo de formação do Império português havia ocorrido mediante a

trasladação de vários mecanismos políticos, jurídicos e administrativos presentes em Portugal para todas

as áreas sob o domínio da Coroa. Para saber mais, ver BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o

império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 367. 8 Sobre a expansão territorial do Império português, ver BOXER, loc. cit.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

20

instituições e órgãos que, por sua vez, haviam passado a demandar a criação de novos

ofícios, cargos e/ou funções,9 tanto no reino quanto no além-mar.

Dentre essas instituições, citam-se as câmaras, as ouvidorias, os tribunais, as

provedorias, os almoxarifados, as alfândegas, dentre outros órgãos da administração de

modo geral. Desses, muitos possuíam congêneres reinóis.10

Ressalta-se, ainda, que ao

crescimento do aparato administrativo equivalesse no mesmo grau, modo e intensidade,

a expansão numérica de oficiais especializados como, por exemplo, os desembargadores

e os juízes.11

À demanda por esses agentes régios, acompanhava-se igualmente da

premente necessidade da presença de oficiais que os pudessem auxiliar nas atividades

de redação e registro das matérias, tanto de agravo quanto de apelação, as quais eram

levadas a cabo pelos escrivães correspondentes.

O ofício de “escrivão” era característico da instauração e do primado da escrita

como mecanismo político e normativo, cuja demanda acarretou na hiperespecialização

dessa função, culminando na presença regular de oficiais escreventes não apenas na

esfera da justiça de última instância, como também no exercício da escrivania pelo

escrivão da câmara, do escrivão do almoxarifado, do escrivão da alfândega, do escrivão

da provedoria, do escrivão da ouvidoria, do escrivão da chancelaria, do escrivão dos

órfãos e de uma ampla miríade de oficiais escreventes, responsáveis pela produção e

9 Sobre a expansão das áreas de colonização e a posterior formação da elite colonial, a qual havia se

atrelado a ampliação do corpo administrativo, ver RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial:

Brasil (1530-1630). São Paulo: Alameda, 2009. 10

A ideia de congênere reinol provém das discussões de Maria Fernanda Baptista Bicalho acerca das

semelhanças expressivas entre as câmaras em Portugal e as que foram instaladas nas conquistas

ultramarinas. Para saber mais, ver BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do

Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.).

O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2001; Sobre a estrutura funcional da burocracia portuguesa, no reino e nas

conquistas, ver SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos. A administração no Brasil colonial e o governo

do império. In: FRAGOSO, op. cit. Sobre os tribunais instalados na América portuguesa, ver

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus

desembargadores (1609-1751). Berilo Vargas (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 11

Os termos “oficial” e “oficiais” remetem-se a designação genérica atribuída a qualquer indivíduo que

desempenhasse alguma função ou atividade no âmago administrativo e burocrático da Coroa portuguesa,

mas também pode ser atribuído aos indivíduos que exerciam quaisquer outras atividades, seja mecânicos

ou das letras, porém, ressalta-se, que existe uma diferença entre essas duas dimensões da palavra ofício,

sobretudo relacionada com a questão simbólica de menosprezo que se tinha contra os oficiais mecânicos.

Para saber mais, ver BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico,

architectonico...Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. Disponível em:

http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/oficial. Acesso em: 08/05/2017. O “oficialato” e a

amplitude de sua atuação foram trabalhados como um polo independente de poder no contexto do

universo político do Império português. Para saber mais, ver HESPANHA, António Manuel. Às

Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

21

registro manuscrito, sem a qual não seria possível a articulação das diversas partes que

compunham um Império geograficamente tão vasto e disperso.

Dessa forma, ao atentar-se para a composição do quadro de oficiais da

administração portuguesa presentes nos concelhos municipais, segundo António Manuel

Hespanha, os ofícios de escrivães corresponderam a 24,66%, dos quais os escrivães

camarários – ou escrivães do público, judicial e notas –, constituíam 40% daquela

percentagem.12

Caracterizando, de acordo com Hespanha, “a plena implantação da

forma escrita que permitiu a manutenção de espaços políticos espacialmente tão

dispersos [...]. Lisboa era então um relais de uma imensa rede de comunicação política,

que se estendia do Índico ao Brasil”,13

perfazendo, como prossegue a afirmação daquele

autor, “um império de papel, em que a correspondência do rei, dos vice-reis, dos

governadores, dos capitães, substituíam laços políticos mais efetivos”.14

Nesse sentido, apropriando-se da ideia de “império de papel”, esboçada por

António Manuel Hespanha, utilizou-se dela como título deste trabalho com a finalidade

precípua de metaforizar a relação entre a quantidade significativa de escrivães – como

apontado anteriormente por Hespanha, para o caso do reino ainda no século XVII –,

presentes nas estruturas administrativas portuguesa, sobretudo em nível concelhio, bem

como ao associar a importância daqueles oficiais como os principais responsáveis pela

escrituração da comunicação política e institucional, nas redes de circulação de

informações pelo Império português, nos níveis intracapitania, intercapitanias e

transcontinental.

Nesse ínterim, assim como as câmaras municipais foram uma permanência da

organização administrativa do Portugal medieval, os ofícios que compunham essa

estrutura – com algumas minuciosas diferenças que variaram no tempo e no espaço –

também o foram, ao se instituírem o modelo concelhio na administração política e

burocrática local das possessões ultramarinas modernas.15

Desse modo, no universo do

oficialato local, que atuavam nas câmaras das cidades ou vilas espalhadas de um

12 Hespanha, António Manuel. Às vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc.

XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 268. 13

Ibidem, p. 291. 14

Ibidem. 15

BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;

BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos

trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2001. p. 191.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

22

extremo a outro das conquistas, estavam os juízes ordinários, os vereadores, os

procuradores, os tesoureiros, os almotacés, os juízes de órfãos e os escrivães de órfãos e,

por fim, os escrivães das câmaras.16

Estes últimos, os de escrivão da câmara, cuja importância na engrenagem

administrativa lusitana pode ser localizada desde os tempos medievais, quando já

ocupavam um lugar de destaque na sociedade, sendo os responsáveis pela produção e

registro manuscrito que normatizava a vida em sociedade no Portugal da Idade Média.17

No decorrer do tempo, identificou-se no desempenho daquele ofício indivíduos

pertencentes aos mais diversos níveis sociais, mas que possuíam o diferencial da escrita.

Além disso, por estar envolto no registro de tantos e tão variados conjuntos

documentais, aquele que ocupava o ofício de escrivão no interior dos mais distintos

órgãos da administração e, em particular do escrivão concelhio, necessitavam prestar

juramento18

e observar a discrição e limpeza de mãos no desempenho de suas

atividades19

.

Os escrivães das câmaras ou concelhos municipais faziam parte do núcleo das

municipalidades, integrando o rol dos ofícios de cúpula,20

cabendo-lhes a escrita dos

atos formais, administrativos e judiciais cotidianos, sob a responsabilidade daquelas

instituições.21

Os agentes que serviram no ofício de escrivão camarário distinguiam-se,

dos demais oficiais dessa instituição, por serem os principais responsáveis pela redação

16 BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;

BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos

trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2001. p. 192-193. 17

COSTA, Marisa. Do ofício de escrivão. A propósito dos agentes da escrita na Chancelaria de D. Pedro

I. Disponível em:

http//www.academia.edu/277112/Do_of%C3%ADcio_de_escriv%C3%A3o._A_prop%C3%B3sito_dos_

agentes_da_escrita_na_chancelaria_de_D._Pedro_I. Acesso em: 10/09/2015. 18

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. 19

Os indivíduos que haviam ocupado os ofícios de escrivão concelhio deviam no ato de nomeação jurar

que prestariam discrição no desempenho de seus ofícios e também “limpeza de mãos”, ou seja, de acordo

com a documentação consultada, “limpeza de mãos” remeter-se-ia ao ganho de valores remuneratórios

provenientes apenas de suas atividades cotidianas, não lançando mão de outros tipos de proveitos, em

quaisquer dimensões que fossem, durante e por meio do exercício do ofício. AHU-RN, Papéis Avulsos,

Cx. 3, Doc. 177. 20

Os “ofícios de cúpula”, para Luiz Alberto Rezende, foram aqueles desempenhados no âmago das

edilidades, mas que detinham uma importância significativa no que tocava as decisões tomadas pelos

oficiais camarários sobre a realidade das municipalidades. Para saber mais, ver REZENDE, Luiz Alberto

Ornellas. Um ofício central: o escrivão da câmara municipal de Vila Rica, 1711-1724. IV Conferência

Internacional de História Econômica. 2012; BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-

1825. Anna Olga de Barros Barreto (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 286-287. 21

PORTUGAL. loc. cit.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

23

da comunicação escrita, por conhecerem, relativamente, a legislação portuguesa22

e pelo

fato de serem ofícios locais, mas cujo provimento poderia ser efetuado diretamente pelo

rei.23

As pesquisas e os estudos sobre os escrivães, em particular do ofício de

escrivão desempenhado nas câmaras das cidades ou vilas, na América portuguesa são,

relativamente, escassos. Contudo, podem-se dividir as referências que se fazem a esses

oficiais em quatro conjuntos distintos. O 1º conjunto remete-se aos textos legislativos,

produzidos em Portugal, entre os séculos XVI-XVII, a fim de fundamentar e normatizar

as práticas cotidianas do ofício de escrivão das câmaras;24

no 2º conjunto figuram as

obras produzidas por autores no final do século XIX e na primeira metade do século

XX,25

no qual os escrivães emergiam como referências esporádicas, auxiliando outros

oficiais da administração.

Já o 3º conjunto compreende os autores que produziram seus estudos na

segunda metade do século XX. Foram trabalhos realizados por pesquisadores

estrangeiros, mas também frutos das pesquisas realizadas por alunos vinculados aos

nascentes programas de pós-graduação no Brasil. Essas pesquisas ligavam-se às

discussões sobre instituições, cidades e autonomia de governo, resultantes da

instauração de novos paradigmas historiográficos, mediante a influência de estudos

lusitanos e de revisões sobre os conceitos de poder e de Antigo Regime, aonde se

reiteram a necessidade de estudos mais aprofundados sobre o ofício de escrivão,

enquanto uma atividade proeminente em âmbito camarário.26

No último e 4º conjunto,

22 SOUSA, Avanete Pereira de. Poder político local e vida cotidiana: A Câmara Municipal da Cidade de

Salvador no século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 1996. p.60. 23

REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. A Câmara Municipal de Vila Rica e a consolidação das elites

locais, 1711-1736. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas. São Paulo: USP, 2015. p. 42. 24

PORTUGAL. Ordenações Afonsinas. Ed. Fac-símile. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998;

Ibidem. Ordenações Manuelinas. Ed. Fac-símile. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984;

Ibidem. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. 25

VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História Geral do Brasil: Antes da sua separação e

independência de Portugal. vol. 1. 9. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975; ABREU, Capistrano de.

Capítulos de História Colonial, 1500-1800. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 1988; FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato

político brasileiro. 3. ed. Porto Alegre: Globo, 2001; PRADO JR., Caio. Formação do Brasil

Contemporâneo. 23. ed. 7ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1942; HOLANDA, Sérgio Buarque de.

História geral da civilização brasileira. v. 11. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1993. 26

SOUSA, loc. cit.; SOUZA, George Felix Cabral de. Os Homens e os Modos da Governança. A

câmara Municipal do Recife no século XVIII. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal

de Pernambuco, Recife, 2002; CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul:

governança e poder local no Sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) -

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

24

decorrente do anterior, tomam-se parte às pesquisas acadêmicas – resumos, artigos,

monografias, dissertação e teses – que se debruçam sobre o cotidiano administrativo de

algumas instituições locais, enfatizando cargos e/ou ofícios existentes em seu interior,

neste complexo, as referências aos escrivães das câmaras adquirem certo relevo, mas

figuram ainda em parcos estudos, visto que aqueles trabalhos detêm-se a analisar e

discutir cargos, ofícios, funções e indivíduos que os ocupavam, considerados de maior

prestígio para a política27

, para a justiça28

e para a economia local29

.

O ofício de escrivão da câmara caracterizou-se por seu prestígio perante uma

sociedade majoritariamente iletrada e inculta, o que os fez distinguirem-se não somente

do restante da população, como também daqueles que estavam situados em seu próprio

nível econômico e social, ou até mesmo acima destes. Apesar de estarem subordinados

aos demais oficiais camarários – como aos juízes ordinários, aos vereadores e aos

procuradores –, como se evidencia nas Ordenações Filipinas (1603-1917), tanto do

Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014; LISBOA, Breno Almeida Vaz. Poder e arrecadação

de impostos na América portuguesa: A administração de contratos pela Câmara Municipal de Olinda

(1690-1727). In: Revista de História (Rio de Janeiro), Dossiê Câmara Municipal: fontes, formação e

historiografia do poder local no Brasil Colônia e Império, ano 5, v. 1, n. 1, 2014. p. 19-41; LEMES,

Fernando Lobo. Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás: Controle sobre a vida e os espaços da cidade.

In: Revista de História (Rio de Janeiro), loc. cit. p. 42- 68; OLIVEIRA, Pablo Menezes. As câmaras em

Minas Gerais no século XVIII: Entre enquadramentos administrativos e desventuras tributárias. In:

Revista de História (Rio de Janeiro), loc. cit. p. 221-250; DIAS, Thiago Alves. Comércio e câmaras:

Regulamentação e vigilância. In: Revista de História (Rio de Janeiro), loc. cit., p. 161. SOUZA,

Williams Andrade. O bom governo da municipalidade: Notas sobre a Câmara Municipal de Recife e sua

organização para a administração da cidade (1829-1849). In: Revista de História (Rio de Janeiro), loc.

cit. p. 201-220. 27

MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Magistrados a serviço do Rei: A administração da justiça e os

ouvidores gerais na comarca do Rio de Janeiro (1710-1790). Dissertação (Mestrado em História) –

Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013; Ibidem. Poder, administração e justiça: Os ouvidores

gerais no Rio de Janeiro (1624-1696). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura: Arquivo Geral da

cidade do Rio de Janeiro, 2010; ENES, Thiago. De como administrar cidades e governar impérios:

almotaçaria portuguesa, os mineiros e o poder (1745-1808). Dissertação (Mestrado em História Social) –

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. 28

PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo à sombra das Leis: Antonio Soares Brederode entre a justiça e a

criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. 29

MENEZES, Mozart Vergetti. Colonialismo em Ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na capitania

da Paraíba (1647-1755). Tese (Doutorado em História Econômica). Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2005; DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte

(1760-1821). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

25

ponto de vista da produção manuscrita, quanto da própria hierarquia administrativa da

instituição concelhia, os escrivães das câmaras podiam utilizar-se dos três instrumentos

subversivos que estavam ao seu alcance – a pena, a tinta e o papel – e, com isso

burlarem as decisões dos seus superiores, colocando-os diante de verdadeiros embates.

Ressalta-se, também, que o escrivão concelhio era um dos únicos oficiais

camarários que recebiam remuneração30

– visto que a atividade de porteiro era outra

função desempenhada no âmago dos concelhos municipais, cuja prática se auferia

ganhos numéricos valorativos.31

Além de perceberem valores fixos, devidos a

escrituração processada no interior das câmaras, os escrivães dos concelhos municipais

obtinham emolumentos, prós e percalços, mormente derivados do exercício de

escrituração aberto ao público da localidade, na redação de cartas, testamentos,

inventários e bilhetes, por linha manuscrita ou folha redigida.32

Acrescenta-se também

que esses oficiais, de acordo com as Ordenações Filipinas (1603-1917), deviam ainda

cobrar o que lhes eram devidos de cada tipologia documental que passasse pelo seu

crivo.33

Vale acrescentar inclusive, que o caráter patrimonial com o qual os ofícios de

escrivão das câmaras da América portuguesa foram se revestindo ao longo dos séculos

XVII e XVIII,34

havia funcionado no sentido de incrementar as fortunas e os

patrimônios pessoais de algumas famílias, caracterizando-se por sua transmissibilidade

por herança ou por doação.35

De acordo com Jeannie Menezes, as estratégias

patrimoniais para a obtenção de ofícios caracterizaram-se, por um lado, pela prestação

de serviços à Coroa e, por outro lado, pela retribuição dos mesmos favores pelo rei com

a concessão de propriedades de ofícios.36

Essa autora, através de estudo de caso,

afirmou que alguns arranjos matrimoniais na colônia tiveram como dote a propriedade

30 BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;

BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos

trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2001. p. 192; PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho

Editorial, 2004. Liv. I, Tít. 82, § 1º, nota 1. 31

Ibidem., Liv. I, Tít. 87. 32

Ibidem; Ibidem. Ordenações Afonsinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 1998. Liv. I, Tít. 71. 33

Ibidem. 34

BICALHO, op. cit. 35

SILVA, Francisco Ribeira da. Venalidade e hereditariedade de dos ofícios públicos em Portugal nos

séculos XVI e XVII: Alguns Aspectos. In: Separata da Revista do Centro de História da

Universidade do Porto, V. 8, p. 203. 36

MENEZES, Jeannie. Ofícios de família: estratégias patrimoniais no mercado matrimonial colonial

(sécs. XVII-XVIII). Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, vol. 5, n. 9, jul. 2013. p. 132.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

26

de ofícios auxiliares de justiça – como, por exemplo, os ofícios de escrivão camarário e

de tabelião público –, dos quais a autora cita o tabelionato da Cidade de Olinda e da

Vila do Recife, entre os séculos XVII e XVIII, no interior do patrimônio da família

Cardoso e Sá, por quatro gerações distintas, mas com as mesmas conotações

estratégicas em relação à funcionalidade do ofício enquanto dote de casamento37

.

Diante do exposto, verifica-se que os ofícios de escrivão das câmaras ou

concelhos das cidades e vilas reinóis e ultramarinas, espalhadas do Oriente aos rincões

da América, congregou em seu interior questões variadas, abrangentes e controversas

que, ao sabor das circunstâncias políticas e administrativas – em nível reinol, regional e

local – traduziram modos de pensar, fazer e agir de agentes sociais imbricados no

exercício do mando institucional pelo Império lusitano afora.38

Desse modo, a tipologia dos próprios ofícios refletiria a mesma estrutura

jurisdicionalista da administração ou mesmo aquilo que se tem chamado de civilização

do papel selado,39

como observa-se da configuração numérica dos ofícios na

constelação dos poderes que,

[...] Na verdade, se retirarmos do conjunto dos

oficiais dos concelhos – os almotacés (9% do total)

e os vereadores (17% do total) –, nada menos que

um terço dos restantes oficiais é constituído por

escrivães – dos quais os escrivães do público,

judicial e notas [ou escrivães das câmaras]

representam cerca de 40% – e um quinto por

juízes.40

A “civilização do papel selado” era composta, de acordo com o levantamento

efetuado por António Manuel Hespanha – para o caso de Portugal, no século XVII –,

por cerca de 24,66% dos ofícios concelhios corresponderem, percentualmente, aos

oficiais que se dedicavam a redação dos atos formais, administrativos e judiciais,

37 MENEZES, Jeannie. Ofícios de família: estratégias patrimoniais no mercado matrimonial colonial

(sécs. XVII-XVIII). Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, vol. 5, n. 9, jul. 2013. p. 132. 38

Sobre os agentes do mando institucional e os limites e possibilidades que estes conferiam as instâncias

de poder, ver SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra: política e administração na América

portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 39

HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc.

XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 268. 40

Ibidem.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

27

cotidianos: os escrivães.41

Deste valor, os escrivães do público, judicial e notas, ou

simplesmente escrivães da câmara,42

representavam quase a metade – cerca de 40% –

daquele valor. Percentuais que aumentariam, significativamente, caso se pensasse no

contexto macroscópico do próprio Império, aonde a virtualidade da escrita, de acordo

com Justino Magalhães, cimentou laços políticos mais efetivos, cujo alicerce da

estrutura concelhia e da própria economia colonial assentavam-se na escrita.43

Para

António Manuel Hespanha, julgar e escrever eram, pois, as tarefas paradigmáticas da

administração oficial na Época Moderna.44

Não obstante, diante de tudo isso, o interesse em pesquisar o ofício de escrivão

da Câmara do Natal, na Capitania do Rio Grande, decorreu da constância com a qual

esses oficiais eram citados e remetidos na documentação alusiva ao período colonial da

História do Brasil, com as quais corriqueiramente deparei-me, ao longo de pouco mais

de sete meses, durante o qual participei na condição de bolsista de Ações Acadêmicas

Integradas, uma parceria entre o Departamento de História da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte (UFRN) e da Reitoria dessa mesma instituição, do Projeto

“Manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino e o Rio Grande do Norte: Poder e

Cultura no espaço colonial”. No interior desse projeto, coordenado pelo Prof. Dr. Lígio

José de Oliveira Maia, coube-me a tarefa de transcrever a documentação manuscrita

avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino, sobre a Capitania do Rio Grande do Norte, no

período que foi do início do século XVII até o primeiro vinteno do século XVIII.

Ressalta-se que essa documentação estava organizada e encontrava-se já digitalizada

pelo Projeto Resgate Barão do Rio Branco, como uma das atividades comemorativas em

alusão ao aniversário de quinhentos anos do descobrimento do Brasil. Nesse corpus

41 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc.

XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 268. 42

BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;

BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos

trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2001. p. 192. 43

MAGALHÃES, Justino. Escrita e municipalismo na transição do Brasil colônia e na ideação do Brasil

independente. Revista de História Regional, vol. 19, n. 2, 2014. p. 302. 44

HESPANHA, op. cit.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

28

documental encontravam-se diversas cartas, requerimentos, provisões e alvarás régios

que versavam sobre os escrivães da Câmara do Natal, mormente envolvidos em

querelas com outros agentes do poder, em nível local. Tal fato impeliu-me a empreender

a pesquisa sobre quem eram esses homens que, esporadicamente, foram capazes de

colocar limites e de estabelecer relações conflitivas e de disputa, ora centrífugas, ora

centrípetas, aos projetos macro da Coroa portuguesa para as terras americanas,

sobretudo na Capitania do Rio Grande.

Além dos documentos manuscritos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino

de Lisboa referente à Capitania do Rio Grande do Norte, utilizou-se também os que se

remetiam as Capitanias de Pernambuco, Paraíba e Ceará (séculos XVII-XVIII). Fez-se

uso também dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-

1815); dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1760);

dos documentos presentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (séculos XVII-

XVIII); dos registros do Livro de Batismo de Cunhaú, São José de Mipibú,

Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714); dos registros dos Livros de Casamento

e óbito da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785); das

Cartas de Sesmarias presentes na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso

Brasileiro); dos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional; e do vol. 9 do Livro de

Registros de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). Esses treze

conjuntos documentais foram analisados por meio do método de cruzamento intensivo

das fontes, cuja premissa básica foi o método indiciário e onomástico, de Carlo

Ginzburg.45

Desse modo, observou-se com o adensamento da pesquisa na documentação,

assim como na bibliografia, que o cerne da questão não estaria apenas nos homens que

haviam ocupado o ofício de escrivão concelhio do Natal, mas que situações similares

àquelas, envolvendo os escrivães camarários e outros agentes do poder régio,

espalhavam-se de um extremo a outro da América portuguesa, propiciado pelo padrão

de entendimento das relações políticas e valorativas, advindos do Antigo Regime

português, que serviu de elemento estruturante das relações sociais na América lusa.

Soma-se isso, a própria compreensão do oficialato administrativo como uma entidade

45 Utilizando-se de princípios de outras ciências para enriquecer a análise histórica, ver GUINZBURG,

Carlos. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. CAROTTI, Frederico (trad.). São Paulo:

Companhia das Letras, 1989. GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado

historiográfico. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

29

que gozava de autonomia de base jurisdicionalista que, de modo geral, também se

impôs a pretensa centralização régia, dado o caráter de tutela de um ofício sobre outro.

Decorre de tudo isso a necessidade de se pesquisar e compreender os limites e o alcance

das atividades desenvolvidas pelos escrivães da Câmara do Natal, sobretudo quando se

atentou para o caráter de intermediários nas concêntricas relações de comunicação

estabelecidas entre o reino – centro – e a Câmara do Natal – periferia –, bem como entre

esta e as porções mais distais que compreendiam – excentricamente em relação à Natal

–, o restante da Capitania do Rio Grande, como se visualizou adiante.

A pesquisa sobre os escrivães da Câmara Municipal do Natal tornou possível,

ainda, a compreensão dos padrões societários do Antigo Regime europeu que vigeram

na Capitania do Rio Grande, os quais foram trasladados para as possessões d’além-mar

com os homens, as mulheres e as instituições, em suas travessias pelo Atlântico, no

decorrer dos séculos XVI e XVIII, os quais, mormente, formaram a elite local da

Capitania do Rio Grande. Salienta-se que as estratégias de promoção e diferenciação

social que inúmeros indivíduos haviam utilizado, distinguiram-se de um local para outro

nas possessões lusas na América. Contudo, fez-se necessário entender as

particularidades que haviam envolvido as diferentes porções dos domínios lusos pelo

ultramar, bem como de suas elites coloniais. Para o caso dos escrivães concelhios da

Cidade do Natal, como também visualizado na historiografia e apontado por Roberta

Giannubilo Stumpf, as trajetórias individuais foram similares, ou seja, mesmo que as

localidades aonde foram traçadas fosse geográfica, social e historicamente distintas, foi-

se possível observar algumas particularidades.46

Desse modo, de acordo com Adriano

Comissoli, seria devido à diversidade social e cultural que entremeou a realidade das

diversas câmaras espalhadas pelo além-mar, que partilharam distintas realidades coevas

pela América portuguesa afora, isso são fatores que ainda impulsionam e movimentam a

investigação dos perfis sociais dos ocupantes de ofícios concelhios.47

Os escrivães camarários eram, assim, os detentores da habilidade da escrita e,

portanto, os intermediários do processo comunicativo48

que interligava o “centro” –

46 STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações

de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Universidade de

Brasília, Brasília, 2009. p. 53. 47

COMISSOLI, Adriano. “Tem servido na governança, e tem todas as qualidades para continuar”: perfil

social dos oficiais da Câmara de Porto Alegre (1767-1828). In: Topoi, v. 13, n. 25, jul./dez. 2012, p. 2. 48

HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc.

XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 269.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

30

reino – e a “periferia” – ultramar. Era através da escrita que o centro se comunicava

com a periferia, instruindo as autoridades que estavam distantes da fonte do poder em

seus modos de procederem para a efetivação das vontades de El’ Rey, cujo principal

obstáculo era a distância geográfica, mas cuja presença se transmutava por meio de uma

representação escrita.49

Nessa medida, escrever era um ato administrativo, mas,

sobretudo político, na medida em que envolvia interesses, segregava e hierarquizava

indivíduos, mas que também mobilizava, conduzindo a enfrentamentos e ao

estabelecimento de interesses individuais e coletivos. Soma-se a isso, como assevera

Justino Magalhães, que os escrivães eram oficiais sempre presentes, acompanhando os

detentores do poder, agindo em representação, ou sendo eles próprios autoridades

delegadas.50

Foi frente à imprescindível necessidade de se estabelecer um canal efetivo de

comunicação entre a Capitania do Rio Grande – periferia – e o reino – centro – que, em

1613, El’ Rey ordenou por regimento expedido a Gaspar de Sousa, que viria ocupar o

Governo Geral do Estado do Brasil, que dotasse a referida Capitania de uma câmara e

de seus respectivos oficiais.51

No rol de ofícios que foram criados para servirem na

câmara, citam-se, dentre outros, o de escrivão concelhio.52

Em suma, as balizas temporais adotadas nessa pesquisa, os anos entre 1613 e

1759, justificam-se na medida em que caracterizaram, respectivamente, o

estabelecimento de “modos de governo” na Capitania do Rio Grande, quando El’ Rey

ordenou, por regimento expedido a Gaspar de Sousa, em 1613, que viria a ocupar o

posto de governador do Estado do Brasil, que fossem criados na Capitania do Rio

Grande uma câmara e seus respectivos oficiais, dentre os quais o primeiro ofício de

escrivão daquele concelho. Findar-se-á a análise no ano em que, por ordem de D.

Sebastião José de Carvalho e Melo – o Marquês de Pombal –, elevou-se os cinco

aldeamentos missionários indígenas existentes na Capitania do Rio Grande – Guaraíras,

Guajirú, Apodi, Mipibú e Igramació – à categoria de vilas, consubstanciando, com isso,

na emergência de cinco novas câmaras na referida Capitania, cada uma contando com

os seus respectivos escrivães camarários, os quais possuíam outro perfil social, político

49 MAGALHÃES, Justino. Escrita e municipalismo na transição do Brasil colônia e na ideação do Brasil

independente. Revista de História Regional, vol. 19, n. 2, 2014. 50

Ibidem., p. 303. 51

MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro:

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I, p. 416. 52

Ibidem.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

31

e econômico, visto que, quando da criação das primeiras vilas, os Mestres das Escolas

dos índios tinham sido escolhidos para exercerem o ofício de escrivão camarário.53

Neste trabalho, utilizou-se como fundamento jurídico legal, para a

compreensão do exercício do ofício de escrivão da Câmara do Natal, as Ordenações

Filipinas (1603-1917). Visto que no momento da instalação da câmara dessa cidade, em

1613, e, com isso, da nomeação de seu primeiro escrivão concelhio, essas prescrições já

estavam em vigor desde – pelo menos teoricamente – 1603. O objetivo geral desta

pesquisa remeteu-se a analisar a atuação dos escrivães e seu papel na administração do

Império Português, a partir da realidade da Capitania do Rio Grande, bem como a

função de intermediários nas concêntricas relações entre o reino – centro – e a Capitania

do Rio Grande – periferia –, no contexto da administração do Império. Para isso,

pretendeu-se compreender o papel e a representatividade dos escrivães na sociedade

colonial através da escrita – Lugar Social –; reconstituir os procedimentos

administrativos dos escrivães, seu comportamento social e seu perfil institucional – as

Práticas –; e, por fim, discutir os problemas de jurisdição, alçada e conflito entre os

escrivães e outros funcionários da administração portuguesa – Relações de

Poder/Espaço jurisdicional.

Desse modo, a fim de compreender o papel e a representatividade dos escrivães

camarários para a sociedade colonial, havia se procedido no primeiro capítulo, “Os

escrivães camarários nas Ordenações Filipinas”, identificação das atribuições – alçadas,

competências e rendimentos – que cabia, segundo a legislação, aos atores sociais que

eram providos no ofício de escrivão camarário. Para isso, se havia utilizado das

Ordenações Filipinas (1603). Teoricamente, este corpus legislativo foi pensado à luz do

paradigma jurisdicionalista de Antigo Regime. Nesse capítulo, confrontaram-se as

práticas institucional-administrativas dos escrivães concelhios da Câmara do Natal, com

as prescrições do regimento desse ofício, expresso pelas Ordenações Filipinas (1603),

53 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o

diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de

Pernambuco, Recife, 2005, p. 478-479.

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

32

por meio da análise dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal e

dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal. Fundos documentais

esses manuscritos diretamente pelos escrivães camarários do Natal, no período que foi

de 1659 até 1759. Nesse capítulo, pôde-se visualizar, ainda, o estabelecimento, por meio

do vai e vem da correspondência, bem como pela manuscrição de diversas tipologias

documentais pelos escrivães camarários do Natal, de vias institucionais da comunicação

administrativa, nos níveis intra e intercapitanias, mas também transcontinental. A partir

disso, discutiu-se o papel dos escrivães como intermediários ou broker’s nas relações de

comunicação pelo Império da Câmara do Natal com outros espaços sociais e

administrativos, as quais haviam contribuído para forjar um sentido de unicidade e

coesão as dispersas porções da monarquia portuguesa.

A fim de esboçar o perfil social dos escrivães da Câmara da Cidade do Natal,

na Capitania do Rio Grande, entre os anos de 1613 a 1759, no segundo capítulo,

intitulado de “Homens de préstimos e consideráveis cabedais”, analisou-se como os

indivíduos que desempenharam o ofício de escrivão da Câmara do Natal adquiriram,

por meio do exercício deste, bens materiais e simbólicos, ascendendo socialmente na

escala hierárquica do Antigo Regime, formando um grupo social específico, que havia

aliado poder e conhecimento para a obtenção de prestígio e riqueza durante e após o

exercício da escrivania da Câmara da Cidade do Natal. Bem como correlacionando, por

meio da tabulação de dados advindos dos “Livros de Cartas e Provisões do Senado da

Câmara de Natal” quem eram esses indivíduos que assumiram a escrivania da Câmara

do Natal, de que estratos sociais provieram e o que fizeram para receber tal mercê,

percebendo-os enquanto elementos chave para o funcionamento da engrenagem

burocrática local, a fim de analisar a atuação dos escrivães diante das formas

constitucionais, entendendo o papel que deviam desempenhar na administração do

Império. Para isso, utilizou-se da análise e do cruzamento de três diferentes fundos

documentais, todos diretamente redigidos pelos escrivães camarários no decorrer do

referido recorte temporal. O primeiro remete-se aos Livros de Cartas e Provisões do

Senado da Câmara do Natal, a partir do qual se identificou: os nomes dos escrivães, o

ano do provimento, as ocupações, quem os havia nomeado, as patentes militares ou das

companhias de ordenanças que receberam quando do exercício da escrivania e

concessões de chãos de terras, pela Câmara da Cidade do Natal, durante o exercício no

referido ofício. Já o Livro de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal,

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

33

segundo conjunto, possibilitou a identificação de outras ocupações desempenhadas

pelos escrivães desse concelho. O terceiro conjunto documental formado pelo banco de

dados da Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro), mediante o qual

identificou os escrivães que haviam recebido concessões de sesmarias, se possuíam

gados. O quarto conjunto seria constituído pelos registros de óbitos da Igreja de Nossa

Senhora do Rosário, através dos quais se pôde verificar a posse de escravos pelos

agentes que exercerem a escrivania da Câmara do Natal.

No terceiro capítulo “A escrivania da câmara do natal: concessões,

provimentos e acumulação de ofícios”, discutiu-se a questão da venalidade do ofício de

escrivão dessa edilidade, bem como a possibilidade de controle desse ofício por uma

determinada família. Em seguida, trouxe-se o exemplo da família Rodrigues de Sá, que

havia monopolizado os provimentos e o exercício desse ofício, através de uma

procuração de plenos poderes, que havia sido concedida pelo verdadeiro proprietário.

Por fim, analisou-se também a trama do estabelecimento de redes familiares e

clientelares, cujo principal dispositivo de cooptação tenha sido a escrivania da Câmara

do Natal, entendida por àquela família, bem como as demais que a ela se integrou por

meio dos casamentos ou dos apadrinhamentos, como um ofício estratégico, em nível

institucional local.

Ao fim e ao cabo, o quarto capítulo, intitulado de “Um maligno escrivão:

Bento Ferreira Mouzinho sob o reinado de D. João V (1715-1755)”, objetivou-se

discutir os limites e as possibilidades de um reinol que havia fugido da prisão que se

encontrava, no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, acusado de assassinato, para a

Capitania do Rio Grande, onde ingressou no Concelho Municipal do Natal no ofício de

escrivão dessa edilidade, permanecendo no desempenho dessa escrivania durante

dezessete anos, ou seja, de 1715 até 1732, colocando limites na atuação de vários

capitães-mores, ao utilizar-se da escrita dentro da Câmara do Natal, como um

mecanismo político de negociação com Lisboa. Assim, seria por meio do desempenho

desse ofício, que Bento Ferreira Mouzinho conseguiria ascender na escala hierárquica

da sociedade estamental do Antigo Regime, utilizando-se de todas as estratégias

possíveis da cultura política dessa período, conseguindo tornar-se provedor da Real

Fazenda do Rio Grande e, mais tarde, quando foi expulsos dessa capitania para a Vila

de Goiana, na vizinha Capitania de Itamaracá, onde tornar-se-ia proprietário do ofício

de juiz de órfãos, mas onde também incorreria de maneira indébita, cometendo diversos

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

34

latrocínios. A análise dessa trajetória possibilitou-nos pensar, ainda, o universo mental

da sociedade de Antigo Regime, bem como na forma que Coroa portuguesa lidava com

as forças locais para assegurar seu domínio de mando, algumas vezes fazendo-se

violenta e taxativa, noutras apenas contemporizando, o que nos possibilita compreender,

a partir do caso emblemático de Bento Ferreira Mouzinho a própria natureza do mando

institucional da Coroa Lusa na Capitania do Rio Grande, na primeira metade do século

XVIII.

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

35

CAPÍTULO I – OS ESCRIVÃES CAMARÁRIOS: Regimento, Práticas,

emolumentos e fluxos da comunicação institucional

“[...] não sei como não treme a mão a todos

os ministros de pena [...]. Eles são os que, com um

advérbio, podem limitar ou ampliar as fortunas; [...]

com uma cifra podem adiantar direitos e atrasar

preferências; [...] com uma palavra, podem dar ou

tirar o peso à balança da justiça”.

(Padre Antônio Vieira, Sermões, 1655).1

O Padre Antônio Vieira em seu Sermão da Terceira Dominga da Quaresma

(1655) expôs, sabiamente, a importância e os perigos que cercavam os oficiais que

manipulavam a tríade de instrumentos mais nocivos, para a sorte ou para o azar, de

qualquer homem no alvorecer e passar da Idade Moderna: a pena, a tinta e o papel.

Indubitavelmente, aquela comunicação havia se processado mediante conhecimento

derivado da própria vivência daquele padre, pois era filho de Cristóvão Vieira Ravasco

que durante muito tempo havia servido a Coroa lusa como escrivão de uma das seções

da Casa de Suplicação.2 Ressalta-se que Padre Vieira havia chamado a atenção em seu

sermão à influência desfrutada pelos escrivães em três das sete grandes esferas

funcionais da administração,3

que fossem a Coroa, a Fazenda e a Justiça,

respectivamente, às quais o padre acrescentava, posteriormente, a igreja. Reverbera-se

que essa discussão transcendesse o imediatismo do plano meramente administrativo da

Coroa, pois se situava, possivelmente, no amplo domínio teológico que Antônio Vieira

detinha.4

Todavia, se se toma aquela asserção em sentido literal, percebe-se que sua

elucidação enfatizava principalmente o caráter “danoso” da atuação dos homens que

haviam assumido as escrivanias dos diversos órgãos políticos, administrativos e/ou

1 VIEIRA, Padre Antônio. Sermão da Terceira Dominga da Quaresma (1655). In: Ibidem. Sermões

(Parte 1). Ministério da Cultura: Fundação Biblioteca Nacional. 2 VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: Jesuíta do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 17-24.

3 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 283. 4 SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século

XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 11.

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

36

religiosos que compunham o Império. Na base disso, estava o poder que esses oficiais

detinham sobre os próprios escritos, e, com isso, a possibilidade de os manipularem

conforme a suas vontades. No entanto, esta concepção negligenciava que as formas e/ou

estilos de procederem daqueles oficiais não ocorriam de modo aleatório – ou a depender

das pretensões de algum oficial hierarquicamente superior – 5 nas instituições nas quais

desempenhavam seus ofícios. A atuação dos escrivães, de modo geral, e dos escrivães

camarários em particular, no tocante as suas atividades e competências no cotidiano

administrativo, foram orientadas do ponto de vista normativo, ao longo de mais de

quatrocentos anos, pelos diversos conjuntos jurídicos que haviam servido de base para a

regulamentação da vida em sociedade no Portugal do Antigo Regime6 e, posteriormente

nas possessões ultramarinas.

O conjunto de leis que se remetia aos ofícios de escrivão,7 desempenhado nos

mais distintos órgãos da administração imperial, objetivava lançar as bases para a

viabilização de um modelo administrativo que fosse calcado no sistema escrito,

escolhido como o principal mecanismo da comunicação política da Época Moderna. Ao

mesmo tempo, aquela legislação processava o enquadramento do perfil social dos seus

principais responsáveis, mediante uma regulamentação que restringia até mesmo o

acesso dos indivíduos àqueles ofícios. Desse modo, o sistema jurídico e, nesse caso, de

modo mais específico as Ordenações Filipinas, tinha como objetivo criar, manter e

alargar uma padronização para a comunicação política, a fim de sustentar e facilitar o

entendimento entre os polos envolvidos, os quais estavam situados a montante ou a

jusante do intrincado sistema político-administrativo do Antigo Regime, dos quais, em

última instância, possivelmente, estivesse El’ Rey.8

Salienta-se que as Ordenações não haviam se constituído como a única via

jurídica a orientar as atividades administrativas, as alçadas, as competências e os

5 António Manuel Hespanha havia afirmado que não existia uma sistemática de hierarquias entre os

oficiais de mesma instituição, mas que a atuação desses agentes pautar-se-ia em um caráter de tutela entre

cada um dos ofícios. Para saber mais, ver HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan:

Instituições e poder político, Portugal, século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. 6 FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime

nos Trópicos: A dinâmica Imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2010. 7 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004; Ibidem. Ordenações Afonsinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

1998; Ibidem. Ordenações Manuelinas. Ed. Fac-símile. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 8 HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:

Ler História, n. 8, 1986.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

37

rendimentos da ampla miríade de cargos e ofícios existentes pelo Império português na

Era Moderna. As Ordenações eram apenas mais uma das inúmeras alternativas

existentes e qualquer análise dos ofícios que compunham a máquina administrativa do

Império, podem sofrer flexibilizações significativas quando se atenta para o casuísmo,

possível em domínios tão amplos e dispersos como os da Coroa lusa. A partir disso, se

pode entender que os estudos sobre um mesmo ofício em diferentes porções físicas e

temporais do Império português oferecem resultados distintos, pois os capitais sociais e

econômicos atribuídos àqueles que desempenhavam o ofício de escrivão camarário,

variavam conforme a importância e o estatuto político de cada terra onde esses ofícios

fossem desempenhados.

Assim, a legislação aplicada ao padrão bipolarizado da comunicação escrita,9

no qual o escrivão camarário se situava na condição de mediador,10

almejava além da

funcionalidade do sistema, orientá-los no desempenho de suas práticas cotidianas.11

Algo que se tornava possível, sobretudo por meio de uma regulamentação escrita, a qual

todos os escrivães camarários devessem observância. Salienta-se que a legislação, neste

caso concernente aos escrivães das câmaras estipulava vários preceitos, que iam desde

as formas de provimento para àqueles ofícios, passando pela definição das alçadas e

competências, até as obrigações devidas aos mesmos. Pontuavam, ainda, diversas

restrições àqueles oficiais e impunham, habitualmente, os valores provenientes de seus

emolumentos, que geralmente eram constituídos por valores percebidos pelos escrivães

além do ordenado – que era fixo e anual, os valores auferidos dependiam também de

cada terra, inclusive se deviam ou não recebê-los –, mas não apontava nada sobre as

9 HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:

Ler História, n. 8, 1986. 10

António Manuel Hespanha coloca no seu texto “Centro e Periferia nas estruturas administrativas do

Antigo Regime”, que a adoção da escrita, como uma forma política e administrativa, funcionou também

no sentido de promover a discriminação social dos indivíduos, posto que havia operado uma clivagem no

meio social que iria caracterizar toda a época moderna: a distinção entre alfabetizados e analfabetos.

Assim, diante da mensagem escrita, os primeiros eram marginalizados das decisões do processo político e

administrativo, passando a dependerem de mediadores que detivessem certo cabedal cultural,

materializado no fato de saberem ler e escrever. Desse modo, utilizar-se-á, aqui, o conceito de mediadores

para se compreender o alcance e a amplitude do próprio ofício de escrivão cuja existência, segundo

aquele autor, seria sintomática, do ponto de vista estrutural, como um elemento que diferenciava dois

sistemas político-administrativos que se contemporizavam: a sociedade patriarcal-comunitária e o sistema

concelhio. Para saber mais, ver Ibidem., p. 47. 11

O termo “oficial” ou “oficiais” será aplicado neste texto para designar os funcionários que faziam parte

do aparelho político-administrativo da Coroa portuguesa na Época Moderna, tendo como base as

referências que sobre estes constam dos três conjuntos jurídicos que em análise. Para saber mais ver:

Ibidem. Às Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político Portugal (séc. XVII). Coimbra: Livraria

Almedina, 1994.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

38

propinas – presente ou dom em dinheiro ou espécie –.12

As Ordenações Filipinas

tentavam controlar também as assinaturas daqueles oficiais nas várias tipologias

documentais que passassem por seus crivos.13

Desse modo, neste capítulo, analisar-se-á o significado que os escrivães

concelhios foram assumindo no interior das câmaras municipais na Época Moderna,

através das determinações sobre suas práticas, nomeadamente, a partir da análise das

Ordenações Filipinas (1603). A partir disso, buscar-se-á compreender o papel que os

escrivães deviam, do ponto de vista jurídico, desempenharem na administração do

Império português e, a medida do possível, confrontar-se-á com essas prescrições as

práticas que foram levadas a cabo pelos escrivães da Câmara do Natal, entre os séculos

XVII e XVIII, a fim de que se possa perceber os limites da aplicação das determinações

jurídicas e possíveis contravenções a essas normatizações.

1.1 As Ordenações Filipinas (séc. XVII-XVIII)

As Ordenações Filipinas (1603-1917) foram um dos principais códigos

jurídicos de Portugal responsável pela organização das esferas da administração, em

assuntos relativos à Fazenda, à Guerra, à Consciência e aos negócios do ultramar14

e,

sintomaticamente, da própria justiça. A publicação desse conjunto havia acontecido em

um momento de solidificação dos domínios portugueses do Oceano Índico ao Atlântico,

e se havia voltado principalmente para normatizar as atribuições do poder, em nível

local, materializados pelas câmaras municipais espalhadas pelas cidades e vilas do

Império. Com base nesse conjunto de leis, se apresentava as competências e as alçadas

dos escrivães camarários, bem como outras características que haviam demarcado esse

ofício. Na sequência, descreveram-se os principais títulos elencados nas Ordenações

12 STUMPF, Roberta Giannubilo. Dos homens que serviam entre papéis e letras. Escrivães das câmaras

na América portuguesa. NUEVO MUNDO-MUNDOS NUEVOS, 2017, nota 7, p. 7; PORTUGAL.

Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. Liv. I, Tít. 71. 13

PORTUGAL. op. cit. 14

De acordo com António Manuel Hespanha, entre os séculos XVI e XVIII, as atividades relacionadas ao

poder apareciam em sete grandes zonas funcionais, as quais se distribuíam consoante os objetivos de cada

instituição pensadas como partes menores do corpo social mais amplo, são elas: “Justiça”, “Estado”,

“Guerra”, “Graça”, “Consciência”, “Fazenda” e “Governo”. HESPANHA, António Manuel. Às

Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político Portugal (séc. XVII). Coimbra: Livraria Almedina,

1994. p. 283.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

39

sobre as práticas administrativas do ofício de escrivão da câmara, bem como as diretivas

que apontavam para a produção da escrita oficial do Império desempenhada por esses

oficiais.15

Antes disso, pontua-se algumas considerações acerca do alcance e dos limites

das Ordenações Filipinas, a fim de que se possa compreender o papel político que havia

desempenhado para a administração portuguesa.

Nesse sentido, do ponto de vista histórico, as Ordenações Filipinas foram

provenientes de uma série de compilações processadas ainda no final da Idade Média e

início dos tempos Modernos que havia resultado na edição dos códigos anteriores como,

por exemplo, das Ordenações Afonsinas e, seguidamente, das Ordenações Manuelinas.

Dito isto, ressalta-se que o sistema político-administrativo no momento da edição das

Ordenações Afonsinas, tentava sobrepujar os interesses da Coroa aos sistemas político-

administrativos locais, cujo mecanismo de ação fosse implementar no reino o poder do

rei e dos órgãos políticos da administração palatina.16

Contudo, reverbera-se, de acordo

com António Manuel Hespanha, que ainda no final do século XVIII, “a coroa

contentou-se, por um lado, com um poder simbólico (esse bem definido) sobre o reino;

e por outro, com o controle das fronteiras [...] como locais de cobrança dos tributos mais

decisivos na estrutura financeira do reino”.17

Desse modo, ainda segundo António Manuel Hespanha, poder-se-ia

compreender que os corpos legislativos não foram pensados no sentido de substituir o

sistema local de organização política e administrativa, mas fornecer elementos que

possibilitassem seu controle, reiterando a ideia de autogoverno.18

E isso abria margem

para a coexistência dos três níveis da administração – palatina, concelhia e patriarcal-

comunitária –,19

com suas próprias formas e tecnologias político-administrativas.

Foi nesse contexto que o rei havia tomado, entre outras iniciativas, a adoção do

Direito Romano como a base legal de sustentação da autoridade régia.20

Esse ato

culminava não somente na adesão àquele corpo legislativo, como também na tentativa

15 A ideia de “escrita oficial”, enquanto produto da atuação tanto dos escrivães, quanto dos tabeliães,

baseia-se no fato de que a sua atividade, nos diversos órgãos da administração, constituía-se,

fundamentalmente, na produção escrita – ou manuscrita - da documentação oficial – cartas, alvarás,

requerimentos, consultas - que constituía a comunicação política. 16

HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:

Ler História, n. 8, 1986. p. 55. 17

Ibidem, p. 58. 18

Ibidem, p. 59. 19

Ibidem, p. 58. 20

SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português: fontes de direito. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. p. 154.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

40

de seu genuíno predomínio21

para a resolução das diversas querelas internas –

especialmente inerentes à administração –, cuja finalidade era instituir um modelo

administrativo pautado na tecnologia “escritural”,22

que permitia, com isso, o

alargamento progressivo do âmbito espacial do poder, “vencendo o tempo, criando uma

memória administrativa mais certa e comprovável [...] e um novo recorte do caso sub

judice”.23

Ressalta-se que a utilização do Direito Romano em Portugal, não sobreveio

subitamente, mas como uma ação progressiva,24

intensificada no decorrer do tempo,

subsistindo, concomitantemente, com outros modelos legislativos, uns mais específicos

que outros, como, por exemplo, o direito canônico, além do direito comum, os

foraleiros e as próprias leis costumeiras.25

Reverbera-se que até os finais do Antigo

Regime, o Direito Romano teve de transigir-se com as práticas políticas tradicionais das

comunidades camponesas.26

Desse modo, a doutrina jurídica, expressa no corpo das

Ordenações Filipinas, permite compreendê-las como uma das inúmeras vias de

informação da realidade social, pois haviam sido adotadas em momento específico, mas

politicamente significativo, por agentes sociais que carregavam estratégias de ações e

pretensões e que pertenciam a grupos característicos da sociedade de Antigo Regime,

que detinham extraordinário peso político.

Nesse sentido, pode-se afirmar que as Ordenações Filipinas resultavam da

reunião da vasta produção legislativa que havia existido no Portugal tardo-medieval,27

e

que adveio do caráter que o rei progressivamente foi assumindo no desempenho da

função legislativa, a quem coubesse a responsabilidade pela produção normativa.28

Os

primeiros passos para a compilação das chamadas “leis fundamentais”, as quais

correspondiam à parte primeva e expressiva das Ordenações Filipinas, havia ocorrido

21 Gustavo Cabral aponta, historicamente, que “[...] o Direito Romano seria o direito do Sacro Império, e

o direito deste também, por consequência, seria romano. [...], seria o direito da comunidade cristã

universal, já que o Império seria o braço temporal da Respublica Christiana. [...] valeria onde quer que

houvesse um reino cristão [...]”. Para saber mais, ver CABRAL, Gustavo César Machado. Direito

natural e iluminismo no direito português do final do Antigo Regime. Dissertação (Mestrado em

Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011. p. 59. 22

HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:

Ler História, n. 8, 1986. p. 59. 23

Ibidem., p. 47. 24

CABRAL, op. cit., p. 59. 25

Ibidem., p. 59-60. 26

HESPANHA, op. cit., p. 60. 27

CABRAL, op. cit., p. 62. 28

Ibidem., p. 60.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

41

ainda no século XV – apesar da edição de muitas dessas leis datarem do primeiro

quartel do século XII –,29

com início no reinado de D. João I e o término com D. Afonso

V, que havia “emprestado” seu nome a primeira compilação de leis de Portugal do

período Moderno, cuja vitalidade e eficácia perduraram por pouco mais de 70 anos – as

Ordenações Afonsinas –,30

e que haviam precedido as Ordenações Manuelinas e as

Ordenações Filipinas, respectivamente.

Atenta-se que as Ordenações Filipinas podem ser compreendidas como

símbolos da integração social. Pois, de acordo com Pierre Bourdieu “[...] os símbolos

são os instrumentos por excelência da integração social: enquanto instrumentos de

conhecimento e de comunicação”.31

Ressalta-se que esse conjunto jurídico havia agido

em sentido duplo. Primeiro, por haver se caracterizado como instrumento de

conhecimento, promovendo a difusão de formas específicas e terminantemente pré-

determinadas de fazer, agir, pensar e reproduzir de todos os cargos e ofícios da

monarquia portuguesa; e, em segundo lugar, distinguiram-se como um dos principais

instrumentos da comunicação política e administrativa institucional, subsidiando e

conformando às práticas do oficialato em suas formas de proceder, frente a oficiais que

desempenhavam atividades nas mesmas instituições administrativas, ou mesmo situadas

tanto abaixo, quanto acima da engrenagem burocrática institucional do Império.

No entanto, salienta-se que essa posição de destaque das Ordenações Filipinas

não excluísse além dos casuísmos, o aprendizado que era repassado pela força dos

costumes locais, entre os próprios oficiais da escrita. Desse modo, as Ordenações

tiveram como objetivo precípuo servirem de modelo, ou seja, como instrumentos de

conhecimento e de comunicação, ao estabelecerem um consenso mínimo sobre o

sentido da administração lusa em suas possessões reinóis e ultramarinas, mas que havia

contribuído para a reprodução da ordem social.32

Reverbera-se que nem todas as

câmaras do Império possuíssem a sua disposição um exemplar das Ordenações e que

29 As Cortes de Lamego são compreendidas como uma invenção histórica que tinha como objetivo

fundamentas, do ponto de vista ideológico, o fim do domínio espanhol e a restauração portuguesa de

1640. De acordo com Gustavo Cabral mesmo que este acontecimento tenha sido fictício, as prescrições

dela provenientes foram aceites em Portugal e em seus domínios até a adoção da constituição, em 1822.

Para saber mais, ver CABRAL, Gustavo César Machado. Direito natural e iluminismo no direito

português do final do Antigo Regime. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011. p. 62. 30

Ibidem. 31

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. TOMAZ, Fernando (trad.). Rio de Janeiro: Editora Bertrand

Brasil, 1989. p. 10. 32

Ibidem.

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

42

nesse caso as leis extravagantes e a força dos costumes locais acabavam por se

transformarem em instrumentos que também orientavam as suas competências e

alçadas.

No entanto, em alguns casos, as Ordenações Filipinas forneceram parte do

tônus da cultura política e administrativa que havia prevalecido pelo Império português

no Antigo Regime. Essa cultura era responsável por reunir e conformar as práticas

sociais dos cargos e ofícios que existissem pelo Império. As Ordenações possuíam,

ainda, a função de intermediar e, ao mesmo tempo, de servir de instrumento de

clarificação das distintas atribuições dos integrantes do oficialato administrativo,

mesmo que o caráter de tutela ficasse encoberto diante dos direitos e dos privilégios

garantidos aos oficiais em seus provimentos e pela inerente complexidade do aparato

administrativo, com sobreposição de deveres e de jurisdições que, não raro, suscitavam

em longas querelas.

Isso pode ser explicado, de acordo com Pierre Bourdieu, pois era na condição

de “[...] instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento

que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de

imposição ou de legitimação da dominação”.33

Nesse sentido, as Ordenações haviam

funcionado enquanto instrumentos de comunicação e de conhecimento. Soma-se a isso,

o fato de que os efeitos ideológicos consistiam basicamente na imposição de sistemas de

classificação política, grosso modo, disfarçados em nomenclatura de classificação

científica como, por exemplo, religiosas e mesmo jurídica. 34

E isso havia sido delegado

as Ordenações Filipinas, enquanto uma taxonomia jurídica, cuja principal finalidade foi

estabelecer o ordenamento dos corpos de oficiais e da sociedade em geral, sobretudo

daqueles que possuíssem ações desviantes das condutas morais requeridas.

Pontua-se, ainda conforme as asserções de Pierre Bourdieu, que a “função

social do simbolismo”35

devesse ser compreendida como a “autêntica função política

[...] que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração

‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’.”36

Nesse sentido, a função social do

simbolismo, expresso nas Ordenações Filipinas, referentes as atribuições funcionais e

33 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. TOMAZ, Fernando (trad.). Rio de Janeiro: Editora Bertrand

Brasil, 1989. p. 11. 34

Ibidem., p. 14. 35

Ibidem. 36

Ibidem., p. 10.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

43

de utilidade dos escrivães camarários nas engrenagens administrativas, podiam ser

compreendidas como uma parte dos recursos políticos que foram responsáveis pela

reprodução do exercício efetivo do poder – tanto de conhecimento quanto de

comunicação –, no cotidiano das câmaras municipais.

O aparecimento dos escrivães camarários estava diretamente ligado ao projeto

de elaboração de um modelo municipal de administração – em curso desde fins da Idade

Média.37

Esse projeto foi o fator desencadeador de transformações nos níveis políticos e

culturais das comunidades, cuja adoção do sistema escrito, como um mecanismo efetivo

da comunicação política, sinalizava para a operacionalidade que esse sistema possuía ao

possibilitar a conexão, em caráter relacional, entre os centros e as periferias da

monarquia portuguesa.38

A adoção do sistema escritural anulava as particularidades

regionais e jogava com as formas tradicionais de administração local,39

“com o qual se

podia contemporizar no plano institucional, mas ao qual se dava uma guerra sem trégua

no plano simbólico”.40

Tudo isso, fez dos escrivães, principalmente dos escrivães camarários, os

instrumentos políticos utilizados pela Coroa portuguesa para estabelecer uma ordem

administrativa onicompreensiva, baseada eminentemente na tecnologia escrita. Todavia,

ressalta-se que a implantação desse sistema não houvesse eliminado os sistemas

político-administrativos não escritos, ou seja, aqueles utilizados pelas comunidades

camponesas nas áreas periféricas. Longe disso, pois ambos haviam vigorado

coetaneamente, mesmo que o sistema escritural constantemente reafirmasse uma

pretensa hegemonia. Assim, tanto o sistema “escritural” quanto os escrivães, seriam

indicativos da divisão entre dois mundos que não se anulavam, mas que na verdade

conviviam de maneira às vezes conflitual, às vezes compromissória, promovendo um

equilíbrio de insumos heterogêneos, funcionalmente orquestrados num campo de forças.

Assim, foi diante das novas circunstâncias advindas do processo de expansão

territorial no além-mar, amplamente caracterizada pela disseminação de instituições

reinóis, bem como dos corpos de oficiais que concediam vivacidade aos aparelhos

administrativos – e sobre os quais a integração dos diversos domínios do Império

37 HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:

Ler História, n. 8, 1986. p. 46-47. 38

Ibidem., p. 55. 39

Ibidem., p. 60 40

Ibidem.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

44

dependia diretamente –, que impeliram Felipe I de Portugal, em observância a

demandas e situações outras que emergiam constantemente em diferentes pontos, a

ordenar uma revisão dos diplomas em vigor nas Ordenações Manuelinas (1512-1603).41

Este ato havia culminado com a promulgação das Ordenações Filipinas, em 1603,42

cuja aplicabilidade havia se estendido até o século XIX, mesmo que a maior parte das

disposições deste corpus proviessem das Ordenações precedentes.43

Ressalta-se, ainda,

que, em 1603, data da promulgação do novo código, reinava em Portugal há pouco mais

de vinte anos, ou seja, desde 1580, a Dinastia Filipina, que havia processado a união

política da Península Ibérica sob a égide da Coroa de Espanha, após a Guerra da

Sucessão Portuguesa.

Estrutural e funcionalmente as Ordenações Filipinas (1603) foram compostas

por cinco Livros, cujas denominações seguiam as mesmas lógicas numéricas de

disposições em algarismos romanos, nesse quesito não se diferenciando de suas

precedentes. Cada Livro das Ordenações Filipinas (1603) havia sido composto por uma

quantidade variável de títulos que, de modo geral, contabilizam no total, 511 inscrições

– ou títulos –, os quais rotulavam os preceitos jurídicos de que seu corpus se referia.

Aponta-se que nas Ordenações Filipinas figurasse um item que não havia constando

nem nas Ordenações Afonsinas (1446/7-1511) e nem nas Ordenações Manuelinas

(1512-1603), que são os chamados “Aditamentos” – ou acréscimos feitos às leis, acerca

de situações específicas que haviam aparecido após a revisão e edição do novo

conjunto. Os Aditamentos se subdividiam, por sua vez, de acordo com os Livros que

haviam composto, no conjunto, as Ordenações Filipinas (1603).

Justifica-se, para os fins dessa pesquisa, que se utilizará nesse trabalho dos

preceitos jurídicos acerca das alçadas e competências que recaíam sobre o ofício de

escrivão camarário contidos nas Ordenações Filipinas (1603), posto que quando da

fundação da Câmara do Natal e do estabelecimento do primeiro ofício de escrivão dessa

edilidade, em 1613, àquelas prescrições legais já estivessem em vigor, pelo menos

41 BARBOSA, Conceição Aparecida. Termos e conceitos da Ordem do Juízo nas ordenações do

reino: permanência e mudanças. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo,

2012. p. 27. 42

Ressalta-se que as Ordenações Filipinas estavam prontas em 1595 no reinado de Filipe II, mas

entraram vigor apenas em 1603, quando Filipe III já governava. Para saber mais ver Ibidem., p. 40. 43

CABRAL, Gustavo César Machado. Direito natural e iluminismo no direito português do final do

Antigo Regime. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do

Ceará, Fortaleza, 2011. p. 165.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

45

teoricamente, há pouco mais de dez anos. Reverbera-se que a criação da escrivania

concelhia da Cidade do Natal, no início da segunda década do século XVII, havia

correspondido, em grande medida, a vital demanda por comunicação, por parte dos

moradores da Capitania do Rio Grande, com outras instâncias administrativas, ora

localizadas no reino, ora na própria América portuguesa e, de modo especial, com

El’Rey.

1.1.1 A criação do ofício de escrivão da Câmara do Natal (1613)

Assim, o ofício de escrivão do Senado da Câmara da Cidade do Natal foi

criado por ordem de El’ Rey, em regimento expedido a D. Gaspar de Sousa, que foi

ocupar o Governo-geral do Estado do Brasil, em 1613.44

O novo Governador Geral

havia sido incumbido de dotar a Capitania do Rio Grande de modos de governo,45

por

meio do qual, dentre outros ofícios e funções, estabelecia o de escrivão da câmara. Esse

ofício, segundo o regimento, era de imprescindível e urgente necessidade de ser

instituído, tendo em vista as despóticas atuações dos capitães-mores, assim como as

inúmeras queixas destes, não existindo na sobredita capitania escrivão, por intermédio

do qual, se pudesse estabelecer comunicação, tanto em matéria de agravo, quanto de

apelação ao Supremo Tribunal da Relação, na Bahia.46

O regimento de Gaspar de Sousa deixa entrever que a criação do ofício de

escrivão da Câmara do Natal – e, talvez, dos demais concelhos fundados por toda a

América portuguesa e mais possessões lusa –, estivesse diretamente relacionado com a

necessidade de se principiar o ordenamento e o enquadramento funcional dos espaços

de conquista aos ditames do mando institucional da administração central. 47

Esse

processo havia correspondido de modo precípuo, à instauração de vias comunicativas

44 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro:

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I, p. 416. 45

Os modos de governo foram o estabelecimento de uma instância de poder local, a câmara ou o

concelho municipal, responsável pela gestão administrativa e judicial da localidade, bem como

econômica, pelo estabelecimento da Provedoria da Real Fazenda. 46

MENDONÇA, loc. cit. 47

Sobre a natureza do mando institucional pela América portuguesa, ver SOUZA, Laura de Mello. O sol

e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das

Letras, 2006. p. 14-15.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

46

entre essas duas esferas. Os modos de governo, a que se referia um dos itens do

regimento do novo Governador geral, se remetia a criação de uma câmara municipal em

Natal que, possivelmente, devesse seguir as orientações prescritas pelas Ordenações

Filipinas.

Nesse sentindo, o Livro I das Ordenações Filipinas (1603) continha 100

títulos, os quais versavam sobre o oficialato ligado a esfera da justiça nos quatro níveis

gerais de organização espacial da administração, que seja local, senhorial, periférica e

palatina. Foi nesse livro que se havia fixado os preceitos que lançavam as bases da

atuação dos escrivães camarários, de modo específico no Título 71.48

Contudo, essa

divisão acerca do que cabia aos ofícios não era tão precisa e bem delimitada em apenas

um título, visto que as práticas a serem levadas a cabo por um ofício podiam seguir as

prescrições de outros e vice-versa. Exemplo disso foi o ofício de escrivão da câmara,

que além de dever observância a título específico, os agentes sociais deviam atentar

também para as prescrições postas no Título 67, que se referia as formas de eleição dos

oficiais camarários,49

bem como ao Título 82, que discorria sobre os valores a serem

granjeados pelos escrivães da Fazenda Real e da Câmara50

ou, em casos omissos,

orientava-se que se seguisse o que estivesse posto para os escrivães do judicial,

conforme o regimento desses oficiais.51

Desse modo, a primeira referência ao ofício de escrivão da câmara foi efetuada

no Título 67, no qual se descrevia como se havia de fazer a eleição dos oficiais

concelhios como, por exemplo, dos juízes ordinários, dos vereadores e dos

procuradores, os quais perfaziam o núcleo das edilidades e eram considerados ofícios

honoráveis. Esses, por sua vez, após elegerem os oficiais da cúpula que iriam servir no

ano seguinte, deviam realizar eleição semelhante para prover os demais cargos e ofícios

da edilidade, dentre os quais o de escrivão da câmara, tesoureiro, juiz de órfãos e

escrivão de órfãos.52

No entanto, de acordo com o Título 71, que discorre de maneira mais profusa

sobre o ofício de escrivão camarário, mesmo que inicialmente a escolha dos agentes

48 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. 49

Ibidem., Liv. I, Tít. 67. 50

Ibidem., Liv. I, Tít. 82. 51

STUMPF, Roberta Giannubilo. Dos homens que serviam entre papéis e letras. Escrivães das câmaras

na América portuguesa. NUEVO MUNDO-MUNDOS NUEVOS, 2017, p. 7 52

PORTUGAL. op. cit., Liv. I, Tít. 67.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

47

sociais que seriam providos no ofício de escrivão fosse da alçada dos oficiais que

compunham a cúpula camarária – juízes ordinários, vereadores e procuradores –, esse

direito havia sido continuamente usurpado pelo rei e que, inclusive foi motivo de

grandes e persistentes queixas no reinado de D. João III, motivando-o a declarar que não

mais tornaria a prover esse ofício, mas que na prática foram completamente esquecidas

e as provisões reais para as escrivanias concelhias tornaram-se uma constante, sendo

largamente difundidas com o passar dos anos e das sucessões de reinados.53

No entanto,

pondera-se, a análise acerca dos provimentos no ofício de escrivão da Câmara do Natal

será efetuada de maneira mais detido no terceiro capítulo desse trabalho.

Ainda assim, no geral, o Título 71 discorria de maneira enfática sobre as práticas

organizacionais dos escrivães camarários, apontava também sobre as formas de se

efetuarem o assentamento da comunicação institucional, quais eram esses registros que

deviam ser executados por esses oficiais e aponta, ainda, para a questão da tutela que

existia entre os ofícios camarários e onde os escrivães das edilidades estavam situados

nesse universo. A seguir, deter-se-á, pormenorizadamente, a esmiuçar cada uma dessas

diretivas apresentadas pelo regimento do ofício de escrivão, confrontando, para isso,

com situações práticas que foram levadas a cabo pelos escrivães do Concelho Municipal

do Natal, entre os séculos XVII e XVIII. Do mesmo modo, se fará com as indicações do

Título 82 que se remetia a questão dos rendimentos do ofício a partir da manuscrição de

cada tipologia documental que devesse passar pelo crivo do escrivão concelhio.

1.2 As práticas organizacionais dos escrivães na Câmara

O regimento de todos os escrivães das câmaras municipais do Império havia

passado por diferentes tipos de reordenamentos, ao longo de pouco mais de 157 anos.

Essas reorientações sofridas pela legislação, de modo geral, e pelos regimentos dos

diversos grupos sociais que compunham a sociedade lusitana reinol e ultramarina,

caracterizaram-se por mutações que, como visto anteriormente, muito refletia os sabores

53 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. nota 1.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

48

das circunstâncias estruturais e conjunturais de cada período, enfrentados pela Coroa

lusa.

Nesse ínterim, o Título 71 do Livro 1º das Ordenações Filipinas (1603) havia

versado sobre o regimento dos escrivães das câmaras, tanto em Portugal quanto do

além-mar. Esse regimento caracterizou-se por apresentar o conjunto das práticas

organizacional-administrativas,54

que foram levadas a cabo pelos escrivães concelhios,

rotineiramente, no exercício de seus ofícios, realizados no interior das edilidades.

Aquelas práticas estavam relacionadas ao assentamento da comunicação institucional

concelhia – o registro de todas as tipologias documentais, dos alvarás régios, dos

acordos burocrático-institucionais, das injúrias verbais e das cartas testemunháveis e da

escrita dos requerimentos –, dos registros próprios da câmara – dos livros de receitas e

despesas, dos registros das despesas miúdas dos concelhos e dos registros do gado –

bem como de outras funções organizacionais – tais como: o exercício de tutela do

expediente institucional, as chaves do cofre do senado e a leitura e publicação dos

regimentos.

De acordo com Raphael Bluteau, a palavra regimento era sinônima de governo,

de direção, de administração e/ou de serviço, prestados em algum lugar. Segundo esse

autor, a palavra regimento expressava um determinado modo de se proceder, e que era

estabelecido por uma autoridade superior no âmago institucional.55

Assim, seria através

do regimento do escrivão camarário que esses oficiais eram orientados em suas

maneiras de proceder cotidianamente, como esses oficiais prestariam seus serviços de

redação da comunicação administrativa escrita e, portanto, oficial do Império. Essa

regulamentação sobre o ofício de escrivão da câmara havia sido estabelecida por Filipe I

de Portugal, quando havia mandado rever e reorganizar as Ordenações Manuelinas

(1512-1603).

Desse modo, como havia asseverado Raphael Bluteau, o regimento de qualquer

ofício era determinado por uma autoridade superior da instituição. Essa autoridade, para

54 Os termos “práticas organizacionais e administrativas” definem-se enquanto conceitos operatórios,

elaborados pelo autor, para descreverem o conjunto de atividades e competências que couberam aos

escrivães concelhios em seus exercícios formais de redação, bem como de outras atividades

desenvolvidas cotidianamente no núcleo físico das câmaras municipais. 55

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra:

Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. Disponível em: <

http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/tabellia%C3%B5>. Acesso em: 28 de fevereiro de 2017.

Ver verbete “regimento”.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

49

o caso de Portugal e de seus domínios, foi o próprio rei. Ressalta-se que o poder político

era, portanto, compartimentalizado entre os diversos grupos sociais que compunham os

membros do corpo social maior, gozando de autonomia política e jurídica. O que

harmonizava a convivência entre as partes desse corpo social era a noção do pacto

político, tecido entre vassalos e soberano, que, a partir de questões como prestígio,

honra, status e etiqueta, cimentavam essa convivência de forma coerente. Ao rei, na

condição de cabeça desse corpo social, competia o estabelecimento da justiça,

uniformizando o corpo e promovendo a harmonia entre as demais partes que o

compunham, dado que cada um dos membros devesse realizar aquilo que lhes fossem

próprios.56

Para António Manuel Hespanha, termos como pai, mãe, vizinho, clérigo,

escrivão, etc., se remetiam diretamente as qualidades pertencente à própria natureza

individual, “com a consequência de que, então os elementos em que a sociedade se

analisa não são os individuais, mas os grupos de indivíduos portadores de uma mesma

função e titulares de um mesmo estatuto [...] [e] o estatuto social provém de uma ‘posse

de Estado’ e não da situação atual da pessoa”.57

O regimento dos escrivães concelhios foi o elemento que havia conferido a

esses oficiais aquela posse de estado, bem como uma parcela do poder político que

estava eminentemente disperso pela constelação dos poderes. Para António Manuel

Hespanha, o “oficialato”, mediante as garantias regimentais e estatutárias, foi um

membro dotado de autonomia, um verdadeiro “centro autônomo de poder”, visto que o

paradigma jurisdicionalista,58

enquanto fundamento da ação política e administrativa no

Antigo Regime português havia limitado, sobremaneira, a capacidade de ação efetiva da

Coroa.59

Sendo assim, o regimento dos escrivães camarários deviam ser concebidos

como elementos que conferiam além da posse de estado, uma parcela do poder político

56 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 299-300. 57

Ibidem., p. 308. 58

O paradigma jurisdicionalista remete-se a palavra jurisdição que, de acordo com Raphael Bluteau,

trata-se de uma espécie de poder que o público concede e que o bom governo introduziu para a decisão

das causas. Geralmente, ainda segundo esse autor, a palavra jurisdição diz respeito a autoridade de um

ofício de justiça ou de outra dignidade. António Manuel Hespanha, o significado do paradigma

jurisdicionalista configurar-se-ia como o limite máximo e possível da autonomia do exercício do poder

político de cada ofício ou função que compunham os distintos grupos sociais e as instituições que, juntos,

formam o corpo social mais amplo. Para saber mais ver BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez &

latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 –

1728. Disponível em: < http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/jurisdi%C3%A7%C3%A3o>.

Acesso em: 28 de fevereiro de 2017. Ver verbete “jurisdição”; HESPANHA, op. cit., 299-300. 59

Ibidem., p. 276-287.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

50

no Império português do Antigo Regime, através do qual fosse possível compreender os

deveres que a esses oficiais coubessem executar, mas também “os direitos que cada um

desses oficiais gozavam no desempenho de suas funções”.60

Pontua-se, ainda, que o regimento do escrivão da câmara estruturava-se,

inicialmente, por um parágrafo que introduzia a necessidade de elaboração de um livro

de receitas do concelho. Depois desse parágrafo de abertura, o regimento subdividia-se

em dez outros parágrafos que se remetiam às atividades de redação do expediente

institucional, ao qual se atrelava também o caráter de supervisão do referido ofício sobre

os demais exercidos em âmbito concelhio. Salienta-se que a análise dos parágrafos que

haviam composto o regimento do ofício de escrivão da câmara, constante nas

Ordenações Filipinas (1603-1917), será realizado aqui por meio de casos

exemplificativos, extraídos da própria documentação burocrática processada pelos

escrivães concelhios do Senado da Câmara do Natal.

1.1.1 Assentos da comunicação institucional

O regimento dos escrivães da câmara presente nas Ordenações Filipinas

(1603) determinava que de todos os assentos elaborados pelos escrivães, quer fossem

por mandado dos demais oficiais concelhios ou até mesmo através de requerimentos

efetuados pelas partes, aqueles oficiais deviam levar desse registro a quantia de seis

réis.61

Em meio a inúmeros outros requerimentos, manuscritos pelos escrivães

concelhios do Natal, cita-se um, datado de 16 de maio de 1677, no qual o escrivão

Manuel de Amorim havia registrado um termo de vereação, no qual, em comum acordo

com os oficiais camarários, haviam estabelecido que nenhum indivíduo de fora da

capitania pudesse assumir ofícios na Câmara do Natal.62

Com isso, esses oficiais

realizavam uma espécie de defesa dos interesses dos imbricados naquele sistema de

60 CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul

de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,

Recife, 2014. p. 103. 61

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 9. 62

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0084.

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

51

poder por aquelas funções, inviabilizando legalmente que essa situação pudesse vir a

acontecer, porém, o próprio termo havia apresentado como exceção a essa diretriz, os

indivíduos adventícios que fossem letrados.63

Desse requerimento realizado pelos

oficiais camarários, aquele escrivão havia auferido seis reis, prescritos em seu

regimento.

Outra espécie de requerimento, dessa feita em solicitação das partes

envolvidas, ou seja, instadas por outros agentes que não faziam parte do núcleo das

edilidades, bem como que não constasse neles interesses próprios da câmara, também se

cobrava desses documentos seis réis para a redação deles, realizada pelo escrivão

concelhio. Sobre essa situação de requerimento efetuado por uma parte, pode-se

mencionar a que foi registrada pelo escrivão da Câmara do Natal, o Comissário Geral de

Cavalaria, Zacarias de Oliveira Ribeiro, em 22 de agosto de 1683, no qual constava que

o povo solicitava que exonerasse de suas funções de Ouvidor e Provedor dos Defuntos e

Ausentes da Capitania do Rio Grande, Simão Pita Porto Carreiro, pelos crimes que o

mesmo efetuava pela dita capitania, em face de suas pretensas atribuições.64

Da redação

desse requerimento das partes, Oliveira Ribeiro obteve a quantia de seis reis, prescrita

nas Ordenações.

A quantia de seis reis foi auferida pelos escrivães camarários quando esses

oficiais assentassem nos livros da câmara documentos de natureza judicial, tais como

obrigações, fianças e outros de gêneros semelhantes.65

Exemplo de termo de fiança,

redigido pelo escrivão da Câmara do Natal, o Capitão Francisco de Oliveira Banhos, em

28 de julho de 1693, no qual constava que o Alferes Manuel Trigueiros Soares havia

apresentado aos oficiais camarários seu principal fiador e pagador, o Capitão Pedro da

Costa Faleiro, tendo como finalidade assegurar que no prazo de dois meses o sobredito

tabelião nomeado, solicitasse que sua esposa e demais familiares viessem da Capitania

da Paraíba, visto que ele havia assumido o tabelionato do público, judicial e notas, para

o qual foi provido pelo Capitão-mor da Capitania, Sebastião Pimentel (1692-1693).

Entretanto, caso a família do Alferes Manuel Trigueiros Soares não viesse para o Rio

Grande, esse agente devia pagar 20 cruzados de multa, para as despesas do Concelho do

63 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0084. 64

Ibidem., Documento 0213. 65

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 9.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

52

Natal.66

Do registro dessa fiança, o escrivão Oliveira Banhos havia barganhado a soma

de seis reis, como era então estipulado em seu regimento.

Quanto aos termos de obrigação, também escritos pelos escrivães camarários e

dos quais esses oficiais obtinham seis réis, pode-se citar como exemplo, um termo de

obrigação, datado de 14 de junho de 1715, redigido pelo escrivão da Câmara do Natal,

Carlos da Rocha. Nesse documento constava que o Alferes Antônio da Silva de

Carvalho rezingava sobre a passagem efetuada no rio através de suas terras, as quais

haviam sido recebidas por data de sesmaria, doadas por Sua Majestade.67

Redigir

documentos de natureza judicial, bem como requerimentos efetuados tanto pelos

oficiais concelhios como por partes individuais, reforçava a condição dos escrivães

concelhios como importantes instrumentos de poder e de conhecimento nos mais

diversos circuitos sociais da Capitania do Rio Grande, pois partilhavam com os

indivíduos implicados nesses tipos documentais de sonhos, angústias, tristezas e

pretensões, relacionadas eminentemente a individualidade de homens e mulheres, bem

como de suas famílias. Isso fazia com que aquele ofício fosse considerado estratégico

no plano local e, portanto, cobiçado por famílias e indivíduos sedentos dos ganhos que

pudessem obter de seu exercício.

Outra determinação do regimento havia definido, ainda, o valor de oito réis por

cada alvará que por esses oficiais fosse redigido.68

Quanto à redação de alvarás pelos

escrivães camarários, verificou-se que esses oficiais eram responsáveis por elaborarem,

geralmente, cópias dessa tipologia documental, visto que os alvarás de que se tem

notícia na documentação alusiva ao Senado da Câmara do Natal, remetiam-se aos

enviados por El’ Rey, a fim de dar cumprimento a alguma decisão régia. Exemplo disso,

em meio a outros, foi a cópia de um alvará do Príncipe Regente de Portugal, D. Pedro,

no qual estipulava que dos contratos processados pela Fazenda Real do Rio Grande,

houvesse de se retirar propinas com vistas a sanar as despesas de fornecimento de

munição para as fortalezas.69

Esse alvará foi trasladado por Antônio de Barros Alfenas –

66 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0390. 67

Ibidem., Documento 0488. 68

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 10. 69

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl.67.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

53

escrivão da câmara em 1678 e em 1680. Desse registro, o escrivão havia recebido a

quantia de 8 réis pela transcrição do referido alvará para os Livros de Cartas e Provisões

do Senado da Câmara do Natal. O primeiro parágrafo do regimento dos escrivães

camarários encerrava-se reiterando que esses oficiais deviam seguir o que estivesse

expressamente provido e determinado naquele regimento, sobretudo o que haviam de

levar em termos remuneratórios e de regras procedimentais de suas atividades

organizacionais. No mais, o que não estivesse expressamente aprovisionado nessas

determinações, passaria a ser regrado pelos direcionamentos do regimento dos escrivães

do judicial.70

Aquele texto reverbera, ainda, que quanto aos valores que fossem granjeados

pelos escrivães concelhios de suas atividades de redação do expediente institucional e

administrativo, haviam de ser geridos também pelas cominações expressas no Título 82,

do Livro I das Ordenações Filipinas (1603). Esse título estipulava o que havia de levar,

monetariamente, de seus exercícios de manuscrição da comunicação política e

administrativa do Império. Esse mesmo item apontava que, tanto os escrivães da

Fazenda Real quanto os escrivães das câmaras municipais, deviam receber das

escrituras que realizassem.71

Os escrivães concelhios também eram responsáveis pela elaboração dos

mandados – uma espécie de ordem escrita, proferida por uma autoridade judicial ou

administrativa com a finalidade de realizar uma diligência –, assim como os acórdãos –

documento que indicavam a uniformidade dos oficiais concelhios em algum assunto ou

matéria de legislatura de interesse da edilidade –, firmados em âmbito camarário,

deviam ser manuscritos pelos escrivães da câmara em um livro próprio para essas

matérias.72

Nesse sentido, as matérias concernentes aos acórdãos e, consequentemente,

aos mandados promulgados pela Câmara Municipal do Natal, entre 1672 e 1815, foram

registrados em diversos livros de termos de vereação, cuja durabilidade variou conforme

as demandas pela comunicação escrita. Isso havia resultado na edição de livros,

nomeados pelas periodizações que abrangiam os termos manuscritos, por inúmeros

escrivães concelhios que serviram entre a segunda metade do século XVII e a segunda

década do século XIX.

70 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 10. 71

Ibidem., Liv. I, tít. 82. 72

Ibidem., Liv. I, Tít. 71. § 3.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

54

Esses livros de termos de vereação do Senado da Câmara do Natal

caracterizavam-se por apresentar quase todas as questões ligadas a vida cotidiana dessa

cidade, mas também de outras localidades e povoações espalhadas por toda a Capitania

do Rio Grande. As temáticas sobre as quais esses termos versaram abrangiam questões

relativas à higiene, a urbanização, ao abastecimento e a inúmeros outros problemas

relacionados a questões vivenciais, como, por exemplo, a fim de dirimir conflitos e

embates entre pessoas ou grupos sociais mais amplos, fiscalizando, gerenciando e

regulamentando as ações desviantes dos padrões estabelecidos pelos camarários. No

mais, esses termos de vereação diziam respeito à gestão municipal e a gerência da

cidade e do espaço de abrangência da atuação do Concelho Municipal da Cidade do

Natal, que até 1759 havia cingido toda a Capitania do Rio Grande.73

Desse modo, o fato

de os escrivães camarários fazerem-se presente, essencialmente, no âmbito camarário,

participando das reuniões e manuscrevendo as decisões tomadas nos acórdãos, fizeram

daqueles oficiais importantes instrumentos de conhecimento e de informações

privilegiadas, tanto os que versavam sobre a esfera local quanto os que adviessem do

próprio reino, e essas possibilidades podiam ser aproveitadas por àqueles agentes para

obterem dividendos sociais e econômicos como, por exemplo, bons casamentos,

patentes militares das ordenanças, terras e gados.

Nesse sentido, verificou-se que os escrivães camarários do Concelho do Natal,

além de estarem encarregados de manuscreverem os mandados e os acórdãos realizados

no interior do núcleo da municipalidade, também eram incumbidos de lerem os mesmos

mandados para os demais oficiais concelhios, como se constatou, mediante a leitura dos

termos de vereação. Exemplo disso, datado de janeiro de 1682, foi o acórdão registrado

pelo escrivão, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa, no qual constava que os oficiais

concelhios haviam ordenado aquele escrivão que lesse o conteúdo dos livros de posturas

e dos livros de vereação, para que os oficiais executivos se esmerassem em suas tarefas,

estipuladas pelos mandados e pelas posturas municipais, a fim de respaldar o procurador

da concelho, o Capitão Manuel Gomes da Câmara, na cobrança dos débitos que os

73 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo); LOPES, Fátima

Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no

século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. p.

478-479.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

55

indivíduos deviam àquele senado.74

Nesse contexto, os escrivães desempenhavam o

papel de tradutores dos códigos culturais estipulados em âmbito camarário, visto que ao

lerem esses documentos tentavam explicar aos oficiais executivos a imprescindibilidade

de se realizar as determinações postas. Outro ponto significativo foi que os escrivães

nesse momento lançavam mão da memória institucional concelhia, como repositários e

guardiães das principais informações da edilidade, o que reiterava, ainda mais, a

proeminência da figura desse oficial não apenas para os andamentos burocráticos, mas,

acima de tudo, para interligar os curtos mandatos dos oficiais transitórios – como os

juízes, os vereadores, os procuradores e os almotacés –, assegurando, com isso, a

eficácia da gestão e prática administrativa local aos ditames macros do Império.

Aos escrivães concelhios competia também escreverem nos atos de injúrias

verbais que envolvesse indivíduos nos termos das municipalidades, sobretudo naqueles

que houvesse a necessidade de passarem pelas câmaras municipais.75

Para o caso da

Capitania do Rio Grande, encontrou-se exemplo desses documentos. Ressalta-se, a

título exemplificativo, um auto de injúria datado de 1 de julho de 1786, no qual o

escrivão da câmara, Inácio Nunes Correia Tomás, havia registrado que o Capitão

Joaquim de Morais Navarro havia desobedecido às ordens do Senado da Câmara do

Natal acerca do provimento de duas reses para serem repartidas entre o povo, face a

situação de extrema necessidades pelas quais os moradores daquela municipalidade

passavam a época. Assim, além de se recusar a cumpri tal determinação, Morais

Navarro, juntamente com um mulato armado, haviam afrontado, ainda, o Coronel

Francisco da Costa, maltratando-o com palavras e o ameaçando de morte.76

Evidencia-

se que de cada auto de injúria, os escrivães concelhios obtinham a quantia de quatorze

réis.77

Entretanto, não se observa se o caso foi levado a julgamento ou se estancou por

essa ação citatória. Nessas circunstâncias, os escrivães foram os responsáveis por

transcreverem a injúria cometida contra a câmara que, possivelmente, havia sido

relatada pelo Coronel Francisco da Costa. Nesse meio termo, o escrivão camarário havia

tratado de intermediar o mundo não letrado e o mundo letrado, reduzindo a escrito

74 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0177. 75

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 4. 76

LOPES, op. cit., Documento 2545. 77

PORTUGAL. loc. cit.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

56

aquilo que o havia sido transmitido oralmente, com o passo a passo dos acontecimentos

que haviam impelido o registro do auto de injúria.

Da competência dos escrivães camarários eram também as redações das cartas

testemunháveis e dos requerimentos que fossem efetuados aos oficiais concelhios,

sobretudo aqueles que carecessem de serem assinados ou selados por esses

representantes do poder local.78

No rol das cartas testemunháveis acrescentavam-se as

cartas patentes – documentos que conferiam gradações militares das ordenanças locais a

alguns indivíduos –, as cartas de provisão de ofícios – cédulas que concediam, por

extenso, a um indivíduo as atribuições a serem desempenhadas em algum ofício da

administração –, as cartas de doação de sesmarias ou de chãos de terra – documentos

caracterizados por transmitirem a posse legal de uma determinada gleba– ou doações de

chãos de terra, para a construção de casas de morada em uma localidade, dentre outras.

Verifica-se que, em 23 de julho de 1683, o escrivão da câmara, o Capitão

Antônio Lopes de Lisboa, havia redigido um requerimento, em nome das viúvas e dos

órfãos da Capitania do Rio Grande, efetuado ao Senado da Câmara do Natal para que o

juiz de órfãos, o Alferes Antônio de Castro Rocha, fosse punido pela errônea conduta

que vinha seguindo no exercício daquele ofício.79

Desse modo, a aproximação do

escrivão concelhio de estratos mais vulneráveis da sociedade como, por exemplo, dos

órfãos e das viúvas, fizera com que aqueles oficiais adquirissem inserção na intimidade

das famílias, compartilhando com elas de alguns problemas enfrentados diariamente na

gestão dos bens deixados por pais e maridos, visto que muitos desses oficiais eram

constantemente chamados para servirem de procuradores desses desvalidos, pois

possuíam dois diferenciais basilares para se empreender a busca pela partilha de bens

deixados em herança, que era saber ler e escrever. Muitas vezes, na ausência de oficiais

competentes nessas alçadas, como o juiz e o escrivão de órfãos, os escrivães concelhios

eram chamados para tutorarem os bens desses desamparados familiares.

Citando-se caso análogo sobre cartas testemunháveis, para o caso da Cidade do

Natal, verifica-se a provisão do Conde Vice-rei, Dom Vasco Mascarenhas – Conde de

Óbidos –, em 02 de junho de 1674, da serventia dos ofícios de tabelião público e

78 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 5. 79

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0211.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

57

escrivão da câmara, à Diogo Rodrigues Pereira,80

que foi escrivão da câmara em 1663,

1664 e 1674. O responsável por trasladar essa provisão foi o escrivão camarário

Domingos Vaz Velho. Outro exemplo de carta testemunhável que necessitava do

selamento e afixação do sinete dos oficiais concelhios foi à doação de chãos de terra.

Essa carta de doação também era redigida pelo escrivão camarário, bem como também

recebidas por estes oficiais. Para o caso do Concelho do Natal, verifica-se a doação de

chão de terras no termo dessa edilidade, dentre vários outros, a Manuel Álvares Bastos

pelos oficiais concelhios na terra do Rio da Lagoa, que havia sido anteriormente

concedida ao seu pai, o Licenciado Francisco Álvares Bastos.81

Ressalta-se a

impossibilidade de visualização da data de concessão dessa carta, posto que o

documento encontrava-se em más condições.

Essa carta de doação de chão de terra foi manuscrita, indubitavelmente, pelo

próprio Álvares Bastos, visto que esse escrivão havia se remetido, no título do

documento, ao anterior possuidor das terras, o Licenciado Francisco Álvares Bastos,

como sendo seu próprio pai.82

Visto isso, depreendem-se como os escrivães das câmaras

puderam se aproveitar de sua privilegiada posição no interior do núcleo das edilidades,

responsáveis que foram pela gestão até mesmo do acesso a posse da terra, como visto

anteriormente, para beneficiarem-se a si mesmos ou a seus familiares, ao utilizarem-se

de seu poder de influência e barganha, garantido pelos largos anos que serviam nas

instituições concelhias, bem como nas relações amistosas – mas às vezes também

contrárias –, travadas com outros oficiais concelhios, o que culminava no recebimento

de mercês que, por sua vez, aumentavam progressivamente suas posses, garantindo,

com isso, distinção social na lógica da cultura política do Antigo Regime.

1.1.2 Registros da Câmara

Verifica-se no regimento do escrivão camarário, que constava no Título 71 das

Ordenações Filipinas (1603), que existiam registros processados não para serem

80 Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal.

Livro 2 (1673-1690). Fl. 32. 81

Ibidem., Livro 9 (1743-1754). Fl. 1. 82

Ibidem., Fl. 1v.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

58

difundidos, mas para ficarem resguardados na memória institucional de cada concelho.

Nessa situação têm-se os livros de receitas e despesas das câmaras, os registros das

despesas miúdas, essenciais para o andamento do desempenho administrativo e

burocrático concelhio, mas também inscrições que se remetiam ao plano econômico de

controle de alguns produtos de exportação da capitania, como, por exemplo, o registro

do gado.

De maneira precípua, o parágrafo de abertura do regimento dos escrivães

concelhios remetia-se a estipular que esse oficial camarário devia, a cada ano, elaborar

um livro de receitas, no qual constassem todas as rendas da câmara, de maneira

sequencial, uma abaixo da outra, bem como nomeando a quem estivessem arrendadas,

os fiadores, os valores do arrendamento e o tempo em que deviam ser pagos.83

Entretanto, não foi possível identificar a existência desses referidos livros para o caso da

Câmara do Natal.84

Todavia, verificou-se nominalmente a referência a um exemplar

desses livros em um termo de vereação, datado do mês de abril de 1682, no qual

constava que depois de realizada a vereação daquele dia, os oficiais da câmara, haviam

solicitado ao escrivão daquela edilidade, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa, que

elaborasse um inventário dos livros da câmara, visto que o escrivão não o possuía.85

Não obstante, os oficiais empreenderam uma busca pelos ditos livros, e haviam

encontrado um livro de Receitas e Despesas que havia sido elaborado no período em

que havia servido de Juiz Ordinário, Antônio Vaz Gondim, e de escrivão, o Capitão

Francisco de Oliveira Banhos. Entretanto, o ano em que o livro de Receitas e Despesas

elaborado por Oliveira Banhos e Vaz Gondim, não constava no documento devido ao

desgaste do tempo. Entrementes, mesmo cruzando-se informações presentes no

catálogo, não foi possível auferir a data de elaboração desse livro de Receitas e

Despesas, visto que o Capitão Francisco de Oliveira Banhos foi escrivão da câmara de

83 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. 84

Ressalta-se que no período de levantamento de dados, bem como das fontes para a presente pesquisa, a

instituição que possui a guarda dessa documentação, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do

Norte, estava passando por reformas estruturais de suas instalações, havendo inclusive transferido parte

da documentação para um outro abrigo enquanto durasse a reforma e, devido a desorganização do acervo

haver sido proibida a entrada de pesquisadores e de outros interessados na organização. Contudo,

acredita-se que esses livros de registros das receitas e das despesas da Câmara do Natal estejam

resguardados naquela instituição. 85

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0183.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

59

Natal durante 13 anos, porém em períodos distintos, assim como também não foi

possível verificar o ano em que Antônio Vaz Gondim serviu como juiz, pois a

referência que se tem sobre esse agente menciona-o, caso não se trate de um homônimo,

como capitão-mor do Rio Grande e não como juiz ordinário da Câmara do Natal.86

Mesmo não constando a data em que aquele livro de Receitas e Despesas do

Senado da Câmara do Natal havia sido redigido pelo escrivão concelhio, consta no

termo de vereação de abril de 1682, de acordo com o escrivão, o Capitão Antônio Lopes

de Lisboa e demais oficiais concelhios. Contudo, salienta-se no termo de vereação que,

ao encontrarem o livro, aqueles oficiais o descreveram como sendo composto por 92

folhas e algumas contas de procuradores que haviam servido em anos anteriores.87

Ao

final da vereação, constava, ainda, que os oficiais camarários haviam lavrado outro

termo às folhas 07 e 08, ao destinar as poucas folhas que ainda restavam para carga e

descarga de despesas por parte dos procuradores, bem como para se elaborar novo livro

para inventariar os livros que pertenciam à Câmara da Cidade do Natal.88

Evidencia-se que sobre o século XVII e ao longo do século XVIII, encontrou-

se na documentação relativa aos termos de vereação daquela edilidade, referências

esparsas a existência de livros de receitas e despesas, e que mencionavam em alguns

casos que os escrivães haviam sido os responsáveis por sua elaboração, bem como

aqueles que eram encarregados da guarda e manuscrição dos mesmos livros. Exemplo

disso, foi que em 30 de dezembro de 1683, consta em um termo de vereação que o

procurador e tesoureiro da Câmara do Natal, Antônio Freire, havia sido encarregado de

lançar no livro de receitas todas as despesas e débitos relativos ao concelho.89

Aufere-se

disso, que não apenas os escrivães concelhios, no caso de Natal, estivessem incumbidos

da onerosa tarefa de descrever as despesas e receitas do concelho – como prescrevia as

Ordenações Filipinas (1603) –, visto que essa legislação estipulava que aos escrivães

das câmaras competisse tal atividade, em período anual de tempo. Esse código

determinava, ainda, que os escrivães camarários estivessem incumbidos de assentar no

86 Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal.

Livro 2 (1673-1690). Fl. 5. 87

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). Documento

0183. 88

Ibidem. 89

Ibidem., Documento 0221.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

60

livro de receitas, completamente todas as despesas efetuadas pelo tesoureiro – ou a

quem tal ofício servisse.90

Em outro termo de vereação, datado de 29 de dezembro de 1774, constava que

o escrivão da câmara, Francisco Pinheiro Teixeira, descarregasse no livro de receita os

foros daquele ano, assim como a quantia de 9$028 réis que havia sido arrecadada pelo

Alferes Estevão da Cunha Mendonça.91

Um mês antes, em 22 de novembro de 1774, os

oficiais da Câmara do Natal haviam acordado, dentre outras matérias, que mandariam

que o procurador, o Tenente Antônio da Silva de Carvalho, pusesse capa no livro de

receita e despesas do ano de 1774.92

Desse modo, no primeiro caso, o escrivão

camarário estava realizando, de forma prática, o que previa o primeiro parágrafo de seu

regimento e, não obstante, o segundo caso demonstrava que a responsabilidade pelo

livro de receitas e despesas da Câmara do Natal, não era de competência exclusiva do

escrivão concelhio – como prescreviam as Ordenações Filipinas (1603) –, mas também

do procurador camarário e, como se verificou da análise dos termos de vereação,

sempre se tratavam de pessoas distintas, que desempenhavam ambos os ofícios

coetaneamente. Situação essa que se remete aquilo que António Manuel Hespanha

denominou de “atividade de tutela”, cuja ação de um superior dirigia-se a verificar o

cumprimento ou não das atividades de outro oficial.93

Assim, incumbidos da organização, abertura, manuscrição e resguardo dos

livros de receitas e despesas das edilidades, reiteram-se através dessas atividades, mais

uma vez, que os escrivães concelhios eram, de fato, detentores de uma quantidade de

dados e de informações imprescindíveis a gestão eficaz dos termos das municipalidades

e, para o caso da Câmara do Natal, no período que foi de 1613 até 1759, de toda a

Capitania do Rio Grande, visto ser a única povoação da capitania com foros de

municipalidade. Tudo isso, fazia da figura do escrivão concelhio uma peça chave para

os andamentos as práticas e para a memória administrativa da instituição concelhia

daquela capitania, o que dispunha esse ofício como um instrumento influente em nível

90 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 1. 91

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

1959. 92

Ibidem., Documento 1955. 93

HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 269.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

61

local, mas também regional, através da barganha de motes políticos que muito

acrescentavam poder e prestígio social.

Nessa relação de atividades, de competência do escrivão da câmara, também

eram enumeradas atribuições como o registro sistemático da despesa miúda dos

concelhos. Sobre esses gastos, os escrivães deviam tomar nota, em livro apropriado para

isso, dos dispêndios praticados por todos os oficiais camarários que fossem

considerados de menor conta, mas que eram imprescindíveis ao funcionamento da

instituição concelhia. Exemplo dessas despesas miúdas eram aquelas efetivadas para a

compra de papel, de tinta, penas especiais para a manuscrição, livros e móveis.

Tais artefatos eram, em sua maioria, instrumentais primordiais de que os

escrivães concelhios muniam-se para registrarem o expediente dos concelhos. Salienta-

se que esses itens, em meio a inúmeros outros, precisavam ser comprados, ora na vila

ou cidade e seu termo, ora em localidades mais distantes, como outras praças de maior

vulto comercial. Todavia, quando se exauria o estoque de papel, tinta ou pena – quase

sempre não se tratava de um estoque propriamente dito, como foi possível vislumbrar

da leitura da documentação, mas sim de quantidades avulsas de material –, era

indubitavelmente necessário adquirir-se mais. Esses objetos constituíam-se, em parte,

na despesa miúda contraída pelos oficiais concelhios a fim de darem continuidade à

redação do expediente institucional.

Sobre essa despesa miúda, o segundo parágrafo do regimento dos escrivães

camarários havia discorrido, indicando que todos esses gastos efetuados pelos oficiais

camarários, deviam ser realizados perante o escrivão concelhio, sendo esse oficial

responsável também por registrar os valores das referidas despesas, mas em um título

ou canhenho a parte. Após registrar as despesas miúdas em papel separado, o mesmo

escrivão ficava também responsável por levar esses registros à vereação, mostrando-os

aos vereadores, os quais, por fim, ao verificarem a imprescindibilidade das mesmas

solicitava ao escrivão da câmara que as assentasse em livro apropriado do concelho.94

Para o caso da Cidade do Natal, verifica-se que uma das demandas mais recorrentes

sobre essas despesas miúdas concelhias, remetiam-se a falta de papel, constantemente

propalada nos termos de vereação daquela municipalidade. Citando caso análogo,

poder-se-ia mencionar a necessidade de mandar-se comprar papel, registrada em 01 de

94 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 2.

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

62

junho de 1715,95

ou quando, em 04 de abril de 1719, os oficiais registravam a realização

do mesmo pedido, dessa feita ao procurador, o Sargento-mor Bartolomeu da Costa, para

que comprasse papel, isso logo após haverem registrado em termo de vereação que

haviam elaborado um livro para registro do gado.96

Ainda acerca da demanda sobre

papel, o termo de vereação de 04 de junho de 1800, frisava que por haver sido

completamente preenchido o livro de registros, havia a necessidade de se fazer outro.

Isso havia levado o escrivão da câmara, Manuel de Barros Coelho a requerer mais papel

para isso, em contrapartida não havia papel por toda a Cidade do Natal senão ao preço

de um vintém a folha – o que parecia ser algo bastante caro, sobretudo devido à ênfase

concedida no termo de vereação –, que mesmo diante do valor, os oficiais camarários

decidiram fazer o livro, não obstante o preço que tivesse de pagar para isso.97

Todavia, além da despesa miúda com papel para satisfazer a demanda do

expediente burocrático da instituição concelhia, outros itens são mencionados nos

termos de vereação, quando, por exemplo, os oficiais camarários solicitaram a compra

de uma campainha para a câmara, em 15 de junho de 1712.98

Outro exemplo de despesa

miúda foi que os oficiais camarários providenciaram, em 16 de abril de 1748, um

armário para alojarem e, consequentemente, resguardarem das intempéries físicas, os

livros e papéis daquele concelho, já que o que existia na câmara estava “incapaz e as

baratas estarem comendo os papéis”.99

Nesse mesmo termo, menciona-se o

levantamento de um inventário do cartório da Cidade do Natal, efetuado pelo Ouvidor

Geral e Corregedor, Antônio Ferreira Gil, e, após isso, o termo havia registrado, ainda, a

entrega de um sinete ao vereador mais velho e de um tinteiro ao escrivão, o Capitão

Manuel Antônio Pimentel de Melo.100

Talvez aquele tinteiro já fosse velho demais ou que a demanda pelo expediente

escritural fosse significativo, visto que não havia durado por muito tempo, pois em 17

de fevereiro de 1750, ou seja, dois anos depois, consta também em outro termo de

vereação, que os oficiais concelhios haviam mandado vir um tinteiro de estanho para a

95 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). Documento

0712. 96

Ibidem., Documento 0804. 97

Ibidem., Documento 3566. 98

Ibidem., Documento 0615. 99

Ibidem., Documento 1488. 100

Ibidem.

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

63

Câmara do Natal e o procurador, Gonçalo Freire de Amorim – agente que assumiu o

ofício de procurador face ao impedimento de Teodósio de Amorim –, havia também

mandado comprar um pano-de-Hamburgo, com a finalidade de revestir as cadeiras do

senado daquela câmara.101

Assim, as despesas que aos vereadores parecessem ser boas e

bem feitas, cabiam ao escrivão concelhio assentar no livro da câmara, por quem e por

que tais despesas haviam sido feitas.102

Mesmo que, em algumas situações, tais despesas

miúdas não houvessem sido processadas perante o escrivão.

Essa constante busca por papel, tinta, penas e tinteiro, assim como a feitura e

abertura de novos livros de registro, extremamente recorrentes na documentação alusiva

a Câmara Municipal do Natal, são sintomáticas daquilo que Antônio Manuel Hespanha

havia denominado de um verdadeiro “Império de papel”, no qual a troca de

correspondências foi responsável por cimentar laços políticos significativos, através da

representação escrita, que fazia falar os ausentes físicos. Essas demandas por utensílios

utilizados para a efetivação da comunicação escrita, na Câmara do Natal, eram

indicativas também da intensidade e recorrência da busca por essa via de interlocução,

enquanto uma procura social da administração escrita e, com isso, pela busca dos

serviços de redação, os quais cabiam aos escrivães camarários. Tudo isso, funcionou no

sentido de reforçar o lugar de destaque que esses oficiais ocupavam nas hierarquias

econômicas, políticas e sociais das comunidades locais e regionais.

Àqueles oficiais, de acordo com seu regimento, cabia, ainda, o registro e o

assento do gado que existisse pelo termo da municipalidade. O oitavo parágrafo

determinava também que fossem feitas as contas e descargas do gado, as quais deviam

ser minutadas de maneira unitária em cada página, exclusivamente para esse tipo de

registro.103

Para o caso da Capitania do Rio Grande, se verifica que os escrivães

camarários do Natal, de fato, foram os encarregados, incontáveis vezes, de proceder a

essas anotações sobre os rebanhos de toda aquela capitania.104

Caso que exemplifica

isso, foi que, 04 de maio de 1667, o escrivão da câmara, Afonso de Góis Pereira, havia

101 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

1527. 102

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 2. 103

Ibidem., § 8. 104

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659

– 1668). Fl(s). 19, 20v, Fl. 58v, Fl. 59v; Ibidem., Livro 3 (1691 – 1702). Fl(s). 92v, 93v, 97; Ibidem.,

Livro 7 (1720 – 1728). Fl. 180. Ibidem., Livro 09 (1743 – 1754). Fl(s). 102v, 103, 129,. 201v, 243v.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

64

registrado uma série de marcas de ferrar o gado, pertencentes a seis criadores da

capitania, são eles: André da Rocha Rangel, Antônio da Fonte Rangel, Antônio Diniz,

Luiz Pereira da Cunha, Antônio de Faria Machado e Manuel de Souza.105

De acordo

com as Ordenações Filipinas (1603-1917), de cada um dos registros dos gados, os

escrivães concelhios levavam $ 8,00 réis, quer fosse muito, quer fosse pouco ou

desprezível o valor de tal quantia.106

Encontra-se também na documentação da Câmara do Natal, sobretudo nos

Livros de Cartas e Provisões daquele senado, que os indivíduos que quisessem ou

tivessem a necessidade de transportar gado do Mipibú – um aldeamento indígena

situada na porção leste da Capitania do Rio Grande e ao sul da Cidade do Natal – para a

Capitania da Paraíba, deviam requerer, para isso, licença da Câmara do Natal, mas

tinham por obrigação registrar a sobredita licença em Tamatanduba, uma povoação

situada a meio caminho entre as Capitanias do Rio Grande e da Paraíba. Essa

determinação, em meio a outras, havia sido registrada em um termo de vereação, datado

de 01 de janeiro de 1682.107

De acordo com essa diretiva, observa-se uma relativa circulação de bens e de

produtos entre as vizinhas Capitanias do Rio Grande e da Paraíba, o que demonstrava a

existência de relações comerciais que haviam culminado no fluxo não apenas de

produtos comercializáveis, mas também de pessoas. Ressalta-se que ao registrar os

ferros de marcas os gados, bem como esses mesmos animais, assim como as licenças

para exportação, e nome dos proprietários, os escrivães concelhios tinham a

possibilidade de travarem contatos com importantes indivíduos que se dedicavam a

pecuária pelos sertões da Capitania do Rio Grande, algo que, possivelmente, pudesse

abrir margem para que aqueles oficiais também se inserissem nessas lucrativas

atividades. Reitera isso, como se verá detalhadamente no próximo capítulo, que muitos

escrivães eram sesmeiros e que nas justificativas que haviam apresentado para

105 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659

– 1668). Fl. 61v. 106

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 8. 107

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0177.

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

65

solicitarem a posse de terra, quando das petições das sesmarias, vários deles

asseveraram que eram possuidores de gados vacuns e cavalares.108

Assim, o exercício do ofício de escrivão também pôde ser utilizado pelos

próprios oficiais, visto que muitos foram também sesmeiros e criadores de gado pelos

sertões da Capitania do Rio Grande, como um meio privilegiado de obtenção de

informações sobre o mercado de seus principais produtos de comercialização, influindo

para a representação dos interesses de abastados pecuaristas, bem como de facções, as

quais os escrivães concelhios, na condição de agentes políticos, ligaram-se em diversos

momentos. Situação similar, estudada por Barbosa e Fonseca, havia ocorrido em 1741

na Ribeira do Apodi, nos sertões da Capitania do Rio Grande, quando da cobrança de

um imposto sobre o gado que era criado livre e sem marcas dos ferros de seus

respectivos proprietários, denominado de contrato do gado do vento.109

Nesse conflito,

denominado de Revolta dos Magnatas, averiguou-se o envolvimento de oficiais da

administração local em meio às facções que disputavam entre si a hegemonia pela

arrecadação do referido contrato. Nesse conflito, como será analisado no último capítulo

desse texto, figurava o então escrivão da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande,

Bento Ferreira Mouzinho,110

que havia sido escrivão da Câmara do Natal, entre 1715 e

1732.

1.1.3 A tutela entre os ofícios da câmara

Na sequência, o regimento dos escrivães previa que esse oficial concelhio não

pudesse manuscrever nenhuma despesa que fosse efetuada pelos oficiais camarários

sem o acordo prévio entre os vereadores e os demais oficiais do concelho. Esse acordo

devia ser registrado em livro, porém em título separado, devia, obrigatoriamente, que

constar a assinatura dos vereadores e mais oficiais concelhios que haviam participado da

108 Carta de Sesmaria doada a Francisco de Oliveira Banhos, em 06 de dezembro de 1676. Plataforma

SILB – RN 0033. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 10/05/2017. 109

BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. da. A Ribeira dos interesses: Contratos, fiscalidade e

conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, vol.

5, n. 9, jan.-jun., 2016. 110

Ibidem.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

66

dita decisão.111

Essa cláusula do regimento dos escrivães camarários relegava a

atividade de redação da comunicação escrita institucional e administrativa do Império

ao plano hierárquico daquele órgão, pois, para a dimensão numérica, os escrivães

concelhios não podiam como visto acima, executar sua principal tarefa – a redação –,

sem que, para isso, passasse pela supervisão das autoridades da edilidade. Esse item

restringia a atuação dos escrivães face aos gastos da municipalidade, mas a finalidade

precípua remetia-se ao controle e ao balanço das receitas e despesas dos concelhos

municipais, bem como reitera, mais uma vez o caráter de supervisão ou tutela que a

cada oficial cabia realizar sobre o outro.

Porém, vale à pena ressaltar, que desde a retomada das atividades da Câmara

Municipal do Natal, em 1659, até 29 de dezembro de 1682, esse concelho não possuía

nenhum exemplar das Ordenações Filipinas, como evidencia um termo de vereação

datado daquele mesmo dia, no qual constava que após a realização da prestação de

contas pelo procurador, o Capitão Manuel Gomes da Câmara, o qual havia conferido

juntamente com os demais oficiais concelhios o livro de carga e despesa daquele senado

e, após isso, retirou-se efeitos – espécie de produto restante – das receitas para poderem

comprar um livro das Ordenações, visto que não havia nenhum exemplar no Senado da

Câmara do Natal até aquele momento.112

Assevera-se que mesmo em face da ausência

de um exemplar das Ordenações Filipinas, a que o termo de vereação fazia alusão,

observa-se que vários dos preceitos sobre a atuação dos escrivães das câmaras são

seguidos, salvo algumas particularidades que caracterizaram, grosso modo, o exercício

desses agentes no Concelho Municipal do Natal, entre os séculos XVII e XVIII. Muito

provavelmente, essas peculiaridades sejam produzidas pelo próprio caráter dúbio que os

preceitos aludiam, processando inúmeras vezes uma indistinção entre as alçadas e

competências de todos os oficiais ligados a administração.

Contudo, questiona-se esse caráter de tutela do expediente institucional, para o

caso da edilidade do Natal, efetuado pelos demais oficiais concelhios sobre o escrivão

camarário, visto que parte significativa dos oficiais da cúpula camarária eram senhores

de terra situadas no interior da capitania e onde muitos, possivelmente, vivessem,

111 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 1. 112

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0198.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

67

realizando suas lides diárias nas fazendas, sejam envolvidos no cultivo da cana-de-

açúcar, do algodão ou da mandioca, seja na criação de gados. Reverbera isso, uma carta

enviada pelo Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca, ao rei D. João V,

defendendo-se de algumas acusações que lhes foram imputadas. Nesse documento,

Pereira da Fonseca asseverava que o escrivão da Câmara do Natal, o Coronel Bento

Ferreira Mouzinho, era o responsável por maquinar todas as acusações contra sua

pessoa, visto ser ele o único membro da câmara que morava naquela cidade, e os demais

oficiais concelhios residissem há várias léguas de distâncias, envolvidos nas atividades

do criatório, e que, por isso, deixavam àquele escrivão todas as funções e as direções

que lhes competiam, e por ser livre, acabava fazendo inúmeros crimes contra quem não

lhe conviesse.113

Esse relato efetuado pelo Capitão-mor do Rio Grande deixa entrever que a

possível atividade de tutela, sob a alçada das demais autoridades concelhias sobre o

exercício das atividades de manuscrição do expediente institucional, desempenhadas

pelo escrivão camarário, pelo menos para o caso do Natal, em 1726, não havia

frutificado, mormente as grandes distâncias que separavam a edilidade dos locais de

moradia dos oficiais camarários. O Capitão-mor, José Pereira da Fonseca, apontava,

ainda, que os oficiais camarários estavam envolvidos em algumas atividades pelos

sertões da Capitania do Rio Grande, como a criação de gado e o cultivo da mandioca.

Cogita-se, ainda, os limites dessa atividade de tutela, numa localidade como Natal entre

a segunda metade do século XVII e a primeira metade do século XVIII, onde existia

uma relativa circularidade dos homens nos ofícios da câmara – como se verá no capítulo

seguinte –, face à diminuta camada de homens bons e, portanto, aptos ao exercício da

governança da terra.

Outra atribuição dos escrivães das câmaras, e que constavam nas Ordenações

Filipinas (1603), era a guarda de uma das chaves da arca do concelho municipal.114

Essa

arca era uma espécie de cofre, que possuía cadeados e onde ficavam confinadas as bolas

de pelouros para as eleições. Ainda nessa mesma arca ficavam também guardadas as

escrituras, as quantias referentes à cobrança de taxas, multas e impostos efetuados pelos

oficiais camarários, bem como joias, ouro e pedras preciosas. Sobre a conservação de

113 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 111.

114 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 6.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

68

uma das chaves da arca do concelho ficarem em poder do escrivão camarário, encontra-

se na documentação da edilidade do Natal inúmeras referências a esse procedimento,

figurando como uma prática bastante recorrente entre a segunda metade do século XVII

até os fins do século XVIII. Exemplo disso, e que foge um pouco a regra de apenas uma

das chaves do cofre ficar com o escrivão, havia ocorrido em 21 de novembro de 1713,

quando, após a abertura do pelouro que elegia os oficiais da câmara para o exercício de

1714, o escrivão da Câmara do Natal, Domingos Dias de Barros, havia ficado como

único incumbido de todas as chaves do cofre da municipalidade.115

Já em 1714, pouco mais de um ano após aquela vereação, em 27 de dezembro,

verificou-se mais uma vez, a prática de o escrivão camarário deter em sua posse uma

das chaves da arca da Câmara do Natal. Dessa feita, a responsabilidade sobre as chaves

do cofre havia recaído sobre dois outros oficiais da referida câmara, além do próprio

escrivão concelhio, Estevão Velho de Melo. As outras duas chaves haviam ficado em

poder do juiz ordinário mais velho, Manuel Tavares Guerreiro, e a outra com o vereador

mais velho, o Alferes Inácio Pereira.116

Averigua-se, ainda, que essa prática de se

distribuir as chaves da arca da Câmara do Natal entre os agentes que assumiram esses

três ofícios – o de juiz ordinário, o de vereador e o de escrivão –, caracterizou-se como

uma prática organizacional de caráter rotineiro para o caso dessa edilidade. Corrobora

isso, dois, dentre vários outros casos, nos quais couberam a esses agentes o resguardo e

a segurança das chaves do cofre daquela câmara. Elucida isso, uma observação

realizada em um termo de abertura de pelouro, em 21 de novembro de 1732, no qual

constava que posteriormente a retirada de um rol de oficiais eleitos para 1733, à chave

do cofre havia ficado de posse do juiz ordinário mais velho, o Coronel João Pereira de

Veras, outra com o vereador mais velho, o Coronel João de Lima Ferraz e a terceira

com o escrivão da câmara, Dionísio da Costa Soares.117

A possibilidade de ficar com uma das chaves do cofre da câmara, colocava o

escrivão na condição de um dos guardiões não apenas dos pelouros, mas de escrituras,

tombos, forais, privilégios, dinheiros, joias e pedras preciosas que pertencessem às

edilidades. Visto tudo isto, reitera-se mais uma vez tanto a situação privilegiada que

115 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0664. 116

Ibidem., Documento 0698. 117

Ibidem., Documento 1128.

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

69

esses oficiais galgaram no âmago da administração local, bem como a condição de

instrumentos de poder e conhecimento, as quais se junta nesse caso à possibilidade de

os escrivães atuarem, de modo decisivo, na escolha intencional dos oficiais que serviam

nas câmaras, pois por estar de posse de uma das chaves do cofre onde se colocavam as

bolas de cera influía nesse sentido. Conjectura-se que, diante da legislação que estava

prevista para isso, no caso dos ofícios eletivos – de juízes, de vereadores ou de

procuradores – não podiam ser exercidos em um mesmo mandato por indivíduos que

fossem parentes ou cunhados até o quarto grau de consanguinidade.118

Todavia, essas determinações não se aplicavam a relação diametral entre os

ofícios da cúpula camarária e o de escrivão concelhio, o que havia aberto margem para a

manipulação e efetivação de interesses de determinadas famílias. Exemplo disso, havia

ocorrido em 1723, quando era escrivão da Câmara do Natal o Coronel Bento Ferreira

Mouzinho e Juiz Ordinário João Guedes Alcoforado, os quais eram, respectivamente,

genro e sogro.119

Nesse mesmo ano, o escrivão Ferreira Mouzinho foi acusado pelo

Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca, de redigir várias acusações falsas

contra esse capitão-mor. De acordo com a vítima, o escrivão procedia de forma errada

no desempenho de seu ofício por ser apoiado por seu sogro.120

Assim, em face da

concepção polissinodal do poder, este seria exercido de maneira repartida, delegada e os

oficiais da administração possuíam autonomia de decisão, visto que exercer um ofício

significava desempenhar suas funções e usufruir de seus privilégios, algo que invalidava

o caráter de tutela que cabia a cada um dos oficiais concelhios sobre outrem.

O regimento dos escrivães concelhios prescrevia, ainda, que esses oficiais

fossem encarregados das tarefas de lerem e publicarem, mensalmente, no início de cada

vereação o regimento dos almotacés e dos demais oficiais da vereação.121

Nesse sentido,

constata-se que essa tarefa também havia figurado no rol das atividades dos escrivães da

Câmara do Natal. Exemplo disso foi o fato de que no primeiro dia do mês de janeiro de

1682, um termo de vereação descrevia que os oficiais concelhios haviam mandado o

escrivão, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa, ler os Livros de Postura e os Livros de

Vereação diante dos demais oficiais concelhios a fim de que fossem executados todos

118 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 67. 119

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 02, Doc. 114. 120

Ibidem., Doc. 111. 121

PORTUGAL. op. cit., Liv. I, tít. 71. § 7.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

70

os mandados e posturas, com a intenção de respaldar o procurador, o Capitão Manuel

Gomes da Câmara, na cobrança dos débitos que as pessoas deviam ao Senado da

Câmara do Rio Grande.122

De modo mais específico, o escrivão concelhio do Natal

igualmente havia efetuado, por distintas vezes, a determinação de ler o regimento e

demais resoluções para os almotacés que serviam no interior e exterior da edilidade,

assim como de outros oficiais. Outro exemplo, nesse contexto, foi quando os oficiais

camarários acordaram de ir a Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, situada na

Cidade do Natal, em 19 de fevereiro de 1791, para a posse do novo Governador da

capitania, Caetano da Silva Sanchez, onde o escrivão, Inácio Nunes Correia Tomás,

havia de ler a nomeação daquele Governador.123

De acordo com Teresa Fonseca, essa

atividade em entradas régias ou de prelados, bem como em cerimônias festivas ou de

quebra de escudos faziam parte das tarefas que competiam aos escrivães, mas que

extrapolavam os liames das determinações postas por seus regimentos.124

Visto tudo isto, observa-se ainda que o regimento dos escrivães concelhios

advertisse, no sétimo parágrafo, que caso esses oficiais não lessem o regimento e outras

resoluções, bem como não assinassem nos respectivos documentos acerca do exercício

do ofício dos almotacés e demais oficiais camarários, os mesmos escrivães podiam ser

penalizados com uma multa de $ 200 réis para as despesas do concelho, em cada vez

que não procedessem conforme o que estava estipulado nas Ordenações. Essa

penalização seria aplicada pelo procurador do concelho, o qual ficava responsável por

escrever sobre o dito escrivão camarário, assim como enviar essas informações ao

escrivão da almotaçaria.125

Não obstante, os escrivães camarários também eram encarregados de

realizarem a leitura de documentos avulsos da edilidade, não apenas de nomeação de

outros oficiais concelhios ou de outras esferas da administração política da capitania.

Isso ocorreu, em 20 de janeiro de 1678, quando o escrivão da câmara havia lido os

acordos firmados pelos oficiais que haviam servido anteriormente no âmago da

122 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0177. 123

Ibidem., Documento 2882. 124

FONSECA, Teresa. O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas

administrativas. In: Ibidem.; CUNHA, Mafalda Soares da (eds.). Os Municípios no Portugal Moderno:

dos forais manuelinos às reformas liberais. Lisboa: Edições Colibri & CIDEHUS-EU, 2005. p. 4. 125

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71. § 7.

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

71

instituição concelhia, cabendo aos atuais ocupantes dos ofícios de decisão, concordarem

ou não em manter vigentes as disposições precedentes.126

Por fim, o desempenho de todo esse extenso rol de atividades pelos escrivães

concelhios acabava por projetá-los politicamente no cenário local de extensão dos

termos das municipalidades, onde, mormente, desempenhavam seus ofícios. A posição

de destaque que esses oficiais haviam passado a gozar, se devia, sobretudo, ao

progressivo processo de organização da vida política e administrativa pelo Império, sob

os auspícios da monarquia portuguesa. Isso decorria do caráter estrutural que os

escrivães camarários desempenhavam na administração e, consequentemente, na

configuração geral dos sistemas de poderes que formavam o Império, responsável pela

comunicação escrita que havia alargado, espacial e temporalmente, a esfera da atuação

política d’El Rey.

1.3 Emolumentos e salários

O Título 82 do Livro I das Ordenações Filipinas (1603-1917) foi elaborado

exclusivamente para elencar cada uma das tipologias documentais que eram das alçadas

dos escrivães das câmaras e dos escrivães da Fazenda Real. Deter-se-á nesse item a

enfatizar cada um desses documentos que eram redigidos pelos escrivães concelhios,

correlacionando-os com os valores emolumentares que seriam barganhados por aqueles

oficiais na manuscrição do expediente institucional, bem como de outros registros

escritos que careciam de passar por seus crivos. Para isso, elaborou-se uma tabela na

qual se demonstra quais eram os documentos a serem redigidos e os valores

correspondentes previstos na legislação. Objetivou-se, com isso, perceber os limites e o

alcance do que José Viriato Capela havia observado para o caso de vários municípios do

Minho, como “avultados ordenados e chorudas propinas” auferidas pelos escrivães

camarários, em alguns concelhos reinóis.127

126 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0096. 127

CAPELA, José Viriato. O Minho e os seus municípios. Estudos econômicos-administrativos sobre o

município português nos horizontes da reforma liberal. Dissertação (Mestrado em História das

Instituições e Cultura Moderna e Contemporânea) – Universidade do Minho, Braga, 1995. p. 145.

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

72

Abaixo, visualizam-se na Tabela 1, as determinações das Ordenações

Filipinas (1603) para os valores que correspondiam a cada tipologia documental

manuscrita pelos escrivães camarários. Tais documentos dividiam-se, de modo geral,

em cartas, termos, alvarás e registros referentes a injúrias verbais ou aos assentamentos

do gado. Desse modo, de acordo com as Ordenações Filipinas (1603), a correlação

entre documento e valor percebido pelos escrivães camarários dessa atividade,

organizava-se da seguinte forma:

Tabela 01 - TIPOLOGIAS DOCUMENTAIS REDIGIDAS PELOS ESCRIVÃES

CONCELHIOS E RESPECTIVOS VALORES AUFERIDOS DA REDAÇÃO DO

EXPEDIENTE INSTITUCIONAL (1603)

Tabela 01: TIPOLOGIAS DOCUMENTAIS REDIGIDAS PELOS

ESCRIVÃES CONCELHIOS E RESPECTIVOS VALORES AUFERIDOS DA

REDAÇÃO DO EXPEDIENTE INSTITUCIONAL (1603)

Tipologias documentais Valores previstos

Injúrias verbais 14 réis

Registros do gado (qualquer que seja) 8 réis

Termo de obrigação 6 réis

Termo de fiança 6 réis

Termo de requerimento 6 réis

Alvará 8 réis

Carta de pergaminho de ofício de

Desembargador

150 réis

Carta de pergaminho do ofício de Corregedor 150 réis

Carta de pergaminho do ofício de Juiz de

Fora

150 réis

Carta de oficiais concelhios 150 réis

Carta de confirmação de Cavaleiro de alguma

ordem

150 réis

Carta de Almotacé (que servem durante 3

meses)

150 réis

Carta de ajudante de Escrivão 150 réis

Carta de ajudante de Tabelião 150 réis

Cartas para Mosteiros e pessoas eclesiásticas

possuírem bens de raiz

150 réis

Carta de procuração e uso de letras de

Letrados

150 réis

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

73

Cartas quaisquer de autorização ou de licença

de ofícios

150 réis

Carta de doação de terras 500 réis

Carta de confirmação de jurisdição 500 réis

Carta de Alcaidaria-mor 500 réis

Carta de privilégio ou outras semelhantes 500 réis

Alvará e provisão 60 réis

Alvará com valor de carta por tempo

ilimitado

100 réis

Carta de diligência 30 réis

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.128

Demonstram-se na Tabela 1, os valores, em réis, que cabiam aos escrivães

concelhios mediante a redação de cada uma das tipologias documentais que passassem

por suas mãos. Segundo Raphael Bluteau, a tipologia carta remeter-se-ia a um papel que

estivesse escrito a alguma pessoa ausente.129

Ou seja, seria a essa possibilidade de falar

aos ausentes que, de acordo com Marília Nogueira dos Santos, a carta podia ser

compreendida como um instrumento de dominação dupla, visto que esses documentos

fossem dotados de conteúdo documental e simbólico, mas que também representavam a

publicitação desta mesma dominação – sendo um tipo de escrita oficial do Império –

que tornava a todos visível.130

Quanto ao significado de termo, não foi possível verificar

a origem ou o sentido da palavra para a tipologia documental que representava. Porém,

verifica-se que os termos constituem-se como espécies de acordos que os oficiais de

uma determinada edilidade chegavam, de forma conclusiva, sobre um determinado

assunto de interesse local (grifos nosso).

Quanto ao “alvará”, de acordo com Raphael Bluteau, trata-se de uma

terminologia de origem arábica, mas também utilizada pelos castelhanos, remetia-se a

uma cédula, espécie de diploma, expedida pelos príncipes.131

Era por meio das cartas e

128 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir do conjunto: PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed.

Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. Liv. I, Títs. 71, 82. 129

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra:

Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. Disponível em: <http://

http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/carta>. Acesso em: 28 de março de 2017. Ver verbete

“carta”. 130

SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o papel da

correspondência no Império português do século XVII. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria

Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 173. 131

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra:

Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. Disponível em: <http://

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

74

dos alvarás que o Império moldava-se, mediante a conexão de suas diversas partes,

formando também redes de poder, segundo Marília Nogueira dos Santos, foi através

dessas duas tipologias que o Império “ia sendo escrito.”132

Os alvarás, que tinham força de lei, eram publicados para informar a população

sobre as decisões régias relativas a questões de abrangência geral. Muitos desses alvarás

eram enviados de Lisboa, ou seja, emanados do reino – Portugal – para as possessões

ultramarinas – na América, na África e na Ásia. Outros documentos, porém, possuíam

significado mais restrito, remetendo-se mesmo a dimensão privada dos bens de raiz.

Exemplo desses eram as cartas de doações de terra – também chamadas de cartas de

sesmarias ou de chãos de terra. Mais um registro de bem de raiz foi todos aqueles que se

remetessem ao assentamento do gado vacum, qualquer tipo de documento que se fizesse

desse bem. “Ressalta-se também que das tipologias documentais elencadas, chama-se a

atenção para a expedição das provisões”, as quais se remetiam ao exercício de diversos

ofícios, tanto aqueles desempenhados no âmago da instituição camarária, como os que

foram realizados no interior das ouvidorias gerais ou das corregedorias das comarcas,

bem como a comunicação manuscrita de licenças para o desempenho de ofícios

mecânicos.

Nesse rol, elencam-se também as cartas de registro de bens de raiz de

indivíduos religiosos ou em nome de mosteiros e abadias, os quais, ao que parece,

conforme as prescrições específicas das Ordenações Filipinas (1603), deviam ser

tratadas de maneira distinta dos demais indivíduos de uma mesma sociedade. Aponta-

se, ainda, para as cartas de confirmação de jurisdições, geralmente delegadas a agentes

sociais que eram incumbidos de cargos ou ofícios de mando e/ou de chefia. Nesse

conjunto, podem-se mencionar as cartas de jurisdição dos capitães-mores, dos

ouvidores, dos corregedores, dos provedores da fazenda, os quais possuíam sob suas

alçadas a competência da gestão de espaços geograficamente determinados, bem como

de responsabilidades e competências que lhes caberiam. Salienta-se, ainda, que, de

acordo com as Ordenações Filipinas (1603), os valores estipulados nesse regimento

podiam ou não sofrer algumas alterações, conforme os costumes e as aplicações que

http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/alvar%C3%A1>. Acesso em: 28 de março de 2017. Ver

verbete “alvará”. 132

SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o papel da

correspondência no Império português do século XVII. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria

Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 176.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

75

fossem comuns a cada comunidade.133

Desse modo, a própria legislação, que havia

entrado em vigor em 1603, com a publicação do Código Filipino, que havia se remetido

ao ofício de escrivão concelhio havia sofrido distorções e adaptações, que muito

refletiam os costumes de cada paragem. Isso ratificava a discussão da sobreposição das

leis costumeiras de cada localidade, por sobre a legislação oficial.134

Observa-se, ainda, de acordo com a Tabela 1, que existia uma gradação

remuneratória entre as diversas tipologias documentais manuscritas pelos escrivães

camarários. Possivelmente, um dos fatores dessa diferenciação entre o valor

remuneratório de cada documento, correspondesse diretamente à extensão física dos

mesmos, o que acarretava em gastos com tinta e papel – pergaminho – diferentes, aos

quais, de modo provável, somar-se-ia o trabalho de manuscrição efetuado por aquele

escrivão, bem como a necessidade burocrática de essas tipologias passarem pelas mãos

de outros oficiais como, por exemplo, dos juízes ordinários, dos vereadores e/ou dos

procuradores, carecendo, com isso, da assinatura e sinete – espécie de carimbo – desses

oficiais concelhios e da aplicação do selo da edilidade.135

Nesse sentido, observou-se anteriormente que o papel era um instrumento

essencial ao desempenho cotidiano das atividades políticas e institucionais concelhias

de registro do expediente burocrático, para o caso da Capitania do Rio Grande. Tal fato

era indicativo, ainda, do grau de desenvolvimento técnico e administrativo que os

escrivães concelhios puderam oferecer, por meio das câmaras, ao prestarem serviços de

manuscrição de tipos documentais de interesse da própria população local, que operava

transformações políticas e culturais de grande mote para a Coroa lusitana, mediante a

atuação desses oficiais especializados, em âmbito local.

Como um desses mecanismos de transformação cultural e política, poder-se-ia

citar aqui, o papel que a comunicação escrita havia desempenhado, ao suplantar outras

vias de comunicação institucional, produzindo efeitos institucionais em espacialidades

distantes do centro de irradiação do poder.136

133 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 71.§ 10. 134

Para saber mais sobre a supremacia das leis costumeiras sobre o direito oficial português moderno, ver

CABRAL, Gustavo César Machado. Direito natural e iluminismo no direito português do final do

Antigo Regime. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade Federal do

Ceará, Fortaleza, 2011. 135

PORTUGAL. op. cit., § 5. 136

HESPANHA, António Manuel. Centro e Periferias nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime.

In: Ler História, n. 8, 1986. p. 47.

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

76

Para António Manuel Hespanha, a introdução do sistema escrito havia induzido

a discriminação social que será latente durante todo o período Moderno como, por

exemplo, a clássica distinção que havia oposto alfabetizados e analfabetos. Essa

situação processava a marginalização de uma parcela da sociedade em Portugal, pois

decorria disso a necessidade de mediadores entre aqueles dois mundos – letrado e não

letrado –, que manipulassem as habilidades da leitura e da escrita.137

Nesse sentido, no

contexto da Capitania do Rio Grande, os escrivães da Câmara do Natal foram os

responsáveis por mediarem o mundo letrado e o mundo não letrado, e vice-versa,

sobretudo por meio da redação dos tipos documentais citados na Tabela 1, a partir dos

quais os escrivães figuravam como intermediários, tanto no sentido ascendente quanto

descendente, da comunicação institucional manuscrita, no interior do sistema de

organização administrativo e político do Império luso.

Observou-se também, ainda de acordo com Tabela 1, que os valores previstos

para a redação de cada tipo de documento eram significativos para a sociedade de

Antigo Regime, culminando com a possibilidade de os escrivães concelhios angariarem

quantias consideráveis no exercício de seus ofícios. A gradação valorativa expressa

naquela tabela de cada tipo documental havia variado consoante a recorrência, bem

como a abrangência do alcance de cada um dos documentos. Em primeiro lugar,

figuravam os tipos documentais que concediam privilégios, doações e jurisdições, os

quais se remetiam a camadas importantes da sociedade do Antigo Regime e

economicamente favorecidas. Seguiam-se a esses, as provisões dos altos escalões da

administração judicial – desembargadores, ouvidores e juízes de fora –, na sequência os

que se relacionavam a esfera da administração local – oficiais concelhios, almotacés,

ajudantes de tabelião e de escrivão –, depois os bens de religiosos, dentre outros. Os

alvarás e as provisões estavam em terceiro lugar, acompanhadas, por conseguinte, por

outros documentos mais usuais no cotidiano administrativo das comunidades locais.

Assevera-se que essas diferenciações valorativas pela escrita de cada tipo documental

reproduziam a recorrência e as especificidades de cada objeto de escritura, aos quais se

somavam também a extensão dos mesmos, com gastos de tinta e papel diferentes e,

como se viu em itens anteriores, eram relativamente caros e difíceis de serem acessados.

Evidencia isso, que nas Ordenações Filipinas (1603), de acordo com António Manuel

137 HESPANHA, António Manuel. Centro e Periferias nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime.

In: Ler História, n. 8, 1986. p. 47.

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

77

Hespanha, o montante remuneratório dos emolumentos notariais eram contabilizados

por linha, no Antigo Regime.138

Tudo isso, havia traduzido no desenvolvimento gradual, porém ininterrupto,

que possibilitava a existência simultânea do sistema de comunicação escrito e do

universo administrativo tradicional oral. Os vários tipos documentais, responsáveis por

esse reorquestramento, funcionaram como mecanismos tradutores das mensagens que se

pretendia repassar, tanto do sentido oral para o escrito, quanto do escrito para o oral,

sendo os escrivães, no geral, mas também os tabeliães, os principais mediadores de tal

processo. Isso havia aberto margem para as interações entre esses dois mundos, que

conviveram coetaneamente, mesmo que a Coroa fomentasse o registro escrito, visando

funções de controle e de recurso.139

Entretanto, ressalta-se que a via da comunicação

escrita foi assinalada por uma uniformização estritamente metódica, cujos arranjos

dependiam da tipologia documental em apreço, mas cuja viabilização aniquilava os

localismos possibilitando, com isso, o entendimento entre ambos os polos do canal

interativo, sendo esse o sentido primordial e basilar para a gerência do vasto Império.

Porém, acerca da possibilidade de sobreposição da legislação costumeira às leis

oficialmente editadas diretamente pelo centro de poder da monarquia portuguesa,

aludem-se os valores atribuídos pela própria redação da comunicação escrita,

processada pelos escrivães concelhios. Exemplo disso, mas de modo mais restrito a

edição de cartas para o exercício de ofícios, tanto na edilidade como em outros órgãos

da administração, na Capitania do Rio Grande, datado de 01 de janeiro de 1682, foi o

termo de vereação que havia se remetido aos valores a serem pagos pelos indivíduos

que necessitassem de algumas tipologias de cartas de provisão de ofício, como se

observa abaixo, na Tabela 2.

138 HESPANHA, António Manuel. Centro e Periferias nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime.

In: Ler História, n. 8, 1986. p. 48. 139

Ibidem., p. 46.

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

78

Tabela 02 - Tipologias documentais emitidas pelos escrivães da Câmara do Natal

(1682)

Tabela 02. TIPOLOGIAS DOCUMENTAIS EMITIDAS PELOS ESCRIVÃES

DA CÂMARA DO NATAL (1682)

Tipo de documento Valor previsto

Carta Patente de Capitão de

Infantaria da Ordenança

10 Cruzados (4.000 réis)

Carta Patente do Posto de Alferes 2.000 réis

Carta de Provisão de Escrivão 10 tostões (1000 réis)

Carta de Provisão de Tabelião 10 tostões (1000 réis)

Carta de Provisão de Meirinho 640 réis

Carta de Provisão de Escrivão das

Varas

320 réis

Carta de Provisão de Juiz de Vintena 1 cruzado (400 réis)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.140

Os valores previstos, referidos na Tabela 2, eram as quantias pagas por cada tipologia

documental ao Concelho do Natal. Observa-se que existia uma gradação nesses pagamentos,

assim como existia para aqueles que foram listados na Tabela 1. Assim, verifica-se também que

os valores previstos para serem pagos aquela edilidade havia se estruturado consoante o

significado político de cada ofício ou patente listada. Entretanto, não foi possível perceber

quanto o escrivão, de modo particular, levava de cada um desses documentos que por eles eram

redigidos. Contudo, na sequência do termo de vereação que havia estipulado tais valores,

verifica-se que o salário do escrivão da Câmara do Natal havia sofrido um reajuste,

equiparando-se as somas percebidas por esses mesmos oficiais em outras vilas e cidades pelo

Império.141

Esse reajuste perfez $ 5 mil réis, totalizando em $ 15 mil réis a serem pagos como

vencimento ao escrivão camarário daquela edilidade.142

No entanto, salienta-se que esses

vencimentos do escrivão concelhio haviam oscilado no decorrer do tempo, visto que em 2 de

maio de 1711, o salário desse oficial também havia sofrido outro reajuste de 2 mil réis, porém,

de acordo com o termo, tal vencimento totalizava a quantia de 14 mil réis e não de 17 mil réis

140 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir do conjunto: LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos

Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal (1672-1815). Instituto Histórico e

Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento 0177. 141

Ibidem. 142

Ibidem.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

79

como esperado.143

Soma-se a isso, que os cargos e os ofícios sobre os quais a câmara

estipulava o valor a ser cobrado das cartas de provisão de ofício, remetiam-se

diretamente àquelas ocupações cujo provimento dar-se-ia pelo próprio concelho.

Exemplo disso foi às cartas patentes das companhias de ordenança locais,

providas pelos capitães-mores, mesmo que em alguns casos os camarários se

imiscuíssem nas escolhas. As companhias de ordenanças locais constituíram-se como

outro polo autônomo de poder, em nível local.144

Acrescentam-se aqueles documentos,

os ofícios que eram desempenhados em outras localidades que estivessem sob a alçada

dos respectivos concelhos como, por exemplo, ocorria com as provisões nos ofícios de

juiz e de escrivão de vintena – responsáveis pela aplicação da justiça em povoações

muito distantes do núcleo da municipalidade e que tivessem uma quantidade

significativa de moradores. Bem como, dos ofícios ligados à administração periférica,

oportunamente dos ofícios de escrivão e de tabelião.

Averigua-se que, possivelmente, os valores que haviam sido determinados pelo termo

de vereação, explicitado na Tabela 2, também tenham sido atualizados sobre aquele que

anteriormente se pagava da manuscrição dos mesmos. Com isso, os escrivães também teriam a

sua parcela no mote, visto que também se havia determinado que todos aqueles indivíduos que

tivessem provisões de ofícios e cartas patentes precisassem registrá-las novamente na edilidade.

Esse termo demonstra, ainda, como os interesses dos escrivães camarários coadunavam-se aos

dos demais oficiais concelhios. Ressalta-se também que essa determinação fazia com quê

constantemente afluísse dividendos para a Câmara do Natal, posto que as provisões, sobretudo,

aquelas que se encontravam citadas na Tabela 2, eram de duração anual – para o caso dos juízes

de vintena e dos escrivães dessa vara –, quanto aos de tabelião e de escrivão podiam, inclusive,

serem trimestrais, como se verá adiante.145

Observa-se, ainda, segundo a Tabela 2, que os valores de algumas tipologias

documentais sofreram alterações em relação aquilo que estava estabelecido pelas

Ordenações Filipinas (1603) – como analisado na Tabela 1 –, visto que as cartas de

provisão para os ofícios de escrivão e de tabelião custavam ambas, de acordo com o

143 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0569. 144

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003. p. 376. 145

LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. “Homens de préstimos e consideráveis cabedais”: o perfil

do grupo social de escrivães da câmara de Natal, Capitania do Rio Grande. III Encontros Coloniais.

Natal, 14-17 de jun. de 2016. p. 8. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/encontroscoloniais-

lehs/textos/ABIMAEL-MOURA.pdf>. Acesso em: 24/02/2017.

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

80

regimento dos escrivães concelhios, a soma de $ 150 réis.146

Enquanto isso, nos termos

de vereação da Câmara do Natal estes valores correspondiam à quantia de 10 tostões, ou

seja, de $ 100 réis, ou seja, relativamente inferior àquilo que indicava as Ordenações.147

Todavia, tais disparidades reiteram o parágrafo 10 do regimento dos escrivães, segundo

o qual os valores dos tipos documentais obedeciam, precipuamente, aos costumes das

localidades, no que concerniam a levar menos ou mais da manuscrição dessas

cédulas.148

Os três primeiros agrupamentos de tipos documentais, de acordo com a Tabela

1, lavrados pelos escrivães das câmaras municipais, expressavam valores significativos

para o contexto pessoal e social mais amplo, visto que os valores auferidos por esses

oficiais podiam ser compreendidos como elementos polivalentes, indiciadores de uma

determinada condição social e aquisitiva na hierárquica sociedade estamental do Antigo

Regime, na qual honra, prestígio, poder e status eram elementos nobilitadores e

diferenciadores que caminhavam de mãos dadas, ora dilatando, ora contraindo a

imagem desses mesmos agentes diante de seus pares sociais. Diante disso, pode-se

compreender, de acordo com Joaquim Romero Magalhães e Maria Helena Cruz Coelho,

que o ofício de escrivão camarário fosse ocupado no reino por pessoas geralmente

nobres, porém de recursos modestos.149

O desempenho do ofício de escrivão da Câmara do Natal, nesse período, era

indicativo de uma condição social diferenciada, em meio a vários outros ofícios

desempenhados em âmago concelhio – visto que não granjeassem ordenado anual, nem

emolumentos ou propinas do exercício de seus ofícios –, bem como também em outros,

situados exteriormente a essa instituição – a situação de indivíduos que não

pertencessem à edilidade. Verifica-se com isso, que os agentes que haviam ocupado a

escrivania da Câmara do Natal, detiveram um relativo poder de barganha, em âmbito

local, posto que os valores auferidos da redação do expediente administrativo propiciar-

lhes-iam considerável poder de barganha. Reitera-se que os escrivães camarário

146 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 82.§ 12. 147

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0177. 148

PORTUGAL. op. cit. Tít. 71.§ 10. 149

COELHO, Maria Helena Cruz; MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio. Das origens às

cortes constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. p. 49.

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

81

angariavam quantias em dinheiro não apenas por meio da escrita documental, mas

também pelo recebimento de ordenados fixos, pagos anualmente pela Coroa,

consorciando ganhos emolumentares aos vencimentos salariais.150

Sobre essa questão, o

terceiro capítulo apresenta os valores devidos à avaliação do ofício de escrivão

camarário da Cidade do Natal, em dois diferentes momentos do século XVIII,

assinalando como esses valores implicavam, inclusive, no processo de escolha para a

concessão perpétua desse ofício.151

1.4 Os escrivães como intermediários nas redes institucionais de circulação de

informações administrativas pelo Império

Nesse tópico, pretende-se compreender os escrivães camarários como

intermediários ou broker’s, que atuavam principalmente no interior da periférica

Câmara Municipal da Cidade do Natal, remetendo-se não apenas a Capital do Império –

Lisboa –, mas também com diferentes porções da Capitania do Rio Grande, de modo

específico, e da América portuguesa, de forma geral. Desse modo, com a finalidade de

conferir uma dinamicidade a esse item, bem como uma visualização prática dessas

imputações, lançou-se mão de casos práticos, relativos ao exercício burocrático dos

escrivães concelhios da Câmara do Natal, a título exemplificativo, com o objetivo de

verificar os limites e as amplitudes dessa atuação, em face do deblaterado e irrestrito

controle processado pela regulamentação dos ofícios, prescritos nas Ordenações

Filipinas (1603), analisadas nos itens anteriores.

Ademais, depreende-se, mediante a documentação consultada, que algumas das

atribuições estipuladas pelas Ordenações Filipinas (1603), aplicaram-se a realidade

vivenciada e as práticas organizacionais desenvolvidas pelos escrivães camarários no

cotidiano administrativo do Concelho do Natal. Outras prescrições, porém, não foram

possíveis de se confrontar devido, sobretudo, aos limites das fontes disponíveis.

Constatou-se, ainda, o envolvimento desses mesmos agentes em atividades burocráticas

150 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 177-178. 151

Sobre a venalidade de ofícios pelas monarquias ibéricas, ver CHATURVEDULA, Nandini &

STUMPF, Roberta (Orgs). Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e

venalidade (séculos XVII-XVIII). Lisboa: CHAM – Centro de História do Além-Mar, 2012.

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

82

provenientes das especificidades econômicas regionais que assinalaram a economia da

Capitania do Rio Grande, diferenciando-se das demais capitanias como, por exemplo, a

criação do gado – vacum e/ou cavalar –, como se viu acima.

Salienta-se, de acordo com E. Bott, que o broker ou intermediário havia se

caracterizado pela funcionalidade de mediador entre diferentes pessoas, grupos,

instituições, áreas ou localidades. Entretanto, como assevera aquele autor, essa

intermediação entre os grupos sociais podia ocorrer sem que necessariamente todos os

implicados se conhecessem.152

Esses broker’s ou intermediários são os responsáveis

pelas articulações entre as redes densas de relacionamento, apontadas e discutidas por

Tiago Luis Gil.153

Desse modo, entende-se os escrivães camarários como broker’s ou

intermediários que situados no interior da Câmara do Natal, um órgão administrativo

essencialmente periférico da monarquia portuguesa, entre 1613 e 1759, foram os

principais encarregados da redação ou manuscrição do expediente institucional que se

remetia, em sentido bilateral, ora ao reino – Lisboa –, ora às demais capitanias da

América portuguesa e mesmo com diferentes espaços de sociabilidade no interior da

própria Capitania do Rio Grande, cujas atribuições burocráticas haviam agido no

sentido de integrar diferentes porções do Império ultramarino português, conferindo

significado, unicidade e coesão.

Reitera-se, ainda, que o conceito de broker também significasse corretor.

Assim lança-se mão deste termo, de maneira mais enfática, a Antropologia Política,

posto que essa ideia de intermediário, em face de suas ações, passasse, pouco a pouco, a

acumular benefícios pessoais ou de grupo – que sejam materiais ou simbólicos –, pela

sua posição de intermediário, enquanto uma prática eminentemente social. Logo, essa

condição diferencia o broker de um simples intermediário ocasional.154

Assim pensar o Império português significa compreender uma entidade de

poder que não foi geograficamente contínua, mas uma extensão recortada por longas

distâncias, tanto físicas quanto temporais, que separavam o rei de parte significativa de

seus vassalos e, consequentemente, o reino/centro político da monarquia – situado em

152 Sobre o papel do broker ou intermediário, ver BOTT, E. Família e rede social. Papéis, normas e

relacionamentos externos em famílias urbanas comuns. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 153

GIL, Tiago Luis. Redes e camadas de relacionamentos na economia: metodologias para o estudo da

confiança mercantil na América Portuguesa do Antigo Regime. In: Revista de Indias, vol. LXXV, n.

264. 2015. p. 421. 154

Para saber mais sobre essa discussão, ver GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida

cotidiana. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

83

Lisboa – das inúmeras possessões territoriais, do Oceano Índico ao Atlântico.155

De

maneira específica, para os fins da presente pesquisa, o caso da América lusa, cujas

políticas sociais e econômicas eram muitas vezes concebidas e formuladas diretamente

em Lisboa, como havia afirmado Russell-Wood.156

No entanto, esses obstáculos

naturais eram, em grande medida, remediados pela intensa troca de cartas, que se

configurava enquanto o mecanismo político de ação representativa mais efetiva, ou seja,

era por meio dessa correspondência que inúmeros conflitos eram resolvidos ou até

mesmo gerados.157

Assim, eram as práticas de escrita uma das condições culturais

indispensáveis à formação, ao desenvolvimento e a sobrevivência do Império, que

haviam subsidiado também a coesão e o desenvolvimento da monarquia portuguesa.158

Em face disso, Marília Nogueira dos Santos, havia reiterado a necessidade de

uma investigação minuciosa, a fim de se elucidar quais e quem foram os agentes

responsáveis pela atividade de redação da comunicação manuscrita na colônia.159

Para o

caso da Capitania do Rio Grande, entre 1613-1759, como esboçado parcialmente ao

longo desse capítulo, verificou-se que entre os principais incumbidos dessa tarefa de

escrituração do expediente institucional e administrativo, em âmbito concelhio, fossem

os escrivães camarários. Sobre esses oficiais havia recaído a responsabilidade de

registrar as decisões concelhias que aludiam à gestão e ao gerenciamento da Capitania

do Rio Grande.

Porém, ressalta-se que, para o caso da Capitania do Rio Grande, se encontrava

também na documentação referências esparsas aos secretários de governo, os quais

eram responsáveis pela manuscrição de tipologias documentais que houvessem de

passar pelo crivo dos capitães-mores, em assuntos relacionados ao provimento de

ofícios civis, militares e das companhias de ordenanças locais, como também por

assuntos relacionados à segurança, a guerra e a própria administração da Capitania.

Outros responsáveis pela comunicação escrita naquela capitania eram os tabeliães do

público, judicial e notas, sobretudo nos documentos que carecessem de “fé pública”.

155 SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o papel da

correspondência no Império português do século XVII. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria

Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 174. 156

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de

História. v. 18, n. 36, São Paulo, 1998. 157

Ibidem., p. 174. 158

Ibidem., p. 172-173. 159

Ibidem., p. 175.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

84

Para o caso da Cidade do Natal, entre o final do século XVII e a primeira

metade do século XVIII, verificou-se que um dos ofícios de tabelião do público, judicial

e notas era de provimento anexo com o ofício de escrivão dessa municipalidade, e que

havia inclusive sido concedido, via concessão perpétua, por duas ocasiões, nas duas

primeiras décadas do século XVIII. Visto isso, reafirma-se que o recurso à prática

escrita do expediente institucional concelhio, configurou-se, reiteradamente, como o

principal dispositivo instrumental lançado pela Coroa para governar suas possessões

d’além-mar.160

Tudo isso fazia dos escrivães concelhios privilegiados instrumentos de

conhecimento, visto que poder e informações consubstanciavam-se como duas faces de

uma mesma moeda e, portanto, inseparáveis.161

A produção manuscrita dos escrivães do Senado da Câmara do Natal foi

corresponsável pelo estabelecimento de uma rede de circulação de informações, que

circunscrevera e interligara diferentes espacialidades sociais e geográficas, entre os

séculos XVII e XVIII. Tais atribuições foram elementos definidores que inseriam a

Capitania do Rio Grande no contexto macro de movimentação de informações, ideias e

discussões pelo Império português. A conjuntura subsidiária essencial dessa produção

escrita foi o desempenho da própria gestão administrativa da Capitania do Rio Grande,

cuja “normalidade” foi entrecortada por alguns eventos específicos, mas com durações

variáveis, como, por exemplo, a invasão holandesa (1637-1654) e a Guerra dos

Bárbaros (1680-1720).

Durante a Guerra dos Bárbaros, havia ocorrido uma intensificação da

interlocução, por meio da troca de cartas e da expedição de alvarás e de mandados, entre

os oficiais concelhios – por meio da Câmara do Natal – e de outras autoridades locais –

os capitães-mores, sobremaneira –, mas também com outras capitanias da América lusa

– nesse caso com a Capitania de Pernambuco – e também com o próprio reino. Desse

modo, a circularidade de informações, com o vai e vêm de correspondências entre as

autoridades locais e outros agentes do poder, consubstanciou-se através da redação

160 SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o papel da

correspondência no Império português do século XVII. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria

Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 192. 161

Ibidem., p. 175.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

85

manuscrita dos escrivães camarários, uma forma de integração entre diferentes espaços

sociais e geograficamente habitados do mundo luso americano na época.162

Desse modo, através da tabulação de dados que constavam nos Livros de

Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1759), buscou-se mapear as

especialidades geográficas citadas nos documentos administrativos redigidos ou

trasladados pelos mesmos escrivães dessa edilidade, no período que foi de 1659 até

1759. Para isso, elaboraram-se mapas, por meio do Sistema de Informação Geográfica

(SIG) denominado de Arcgis,163

através do qual se vislumbrou sistematizar as

informações acerca das diferentes espacialidades que mantinham correspondência direta

com a Câmara do Natal – a relação entre remetente e destinatário –, aonde os escrivães

concelhios se apresentavam na condição de principais intermediários desse processo,

redigindo ou mesmo transcrevendo as diferentes tipologias documentais – cartas,

alvarás, provisões, patentes militares das ordenanças, requerimentos, datas de sesmarias

ou chãos de terra, dentre outras. Essas correspondências eram os principais mecanismos

que haviam interligado diferentes porções do Império português à Capitania do Rio

Grande – nesse caso, de modo mais específico, com a Câmara do Natal.

Nesse ínterim, objetivou-se elaborar uma rede institucional que articulasse a

circulação de informações – por meio de diferentes tipos documentais –, a fim de se

visualizar os espaços administrativos e geográficos que mantinham comunicação

constante com a Câmara do Natal, por meio da troca de correspondências, redigidas

pelos escrivães concelhios, entre os oficiais camarários – juízes ordinários, vereadores e

procuradores – e outros agentes de poder, situados tanto a montante quanto a jusante do

intrincado complexo administrativo luso americano.

Por meio da análise da troca de correspondências, que constava nos Livros de

Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1759), verificou-se que a rede

institucional de circulação de informações da qual a Câmara do Natal figurava como um

dos principais polos, sendo os escrivães camarários os incumbidos pela redação desses

elementos, processou-se, como se verá adiante, em três diferentes níveis espaciais, que

162 Sobre a circulação de informações e a integração de diferentes espacialidade sociais e geográficas, ver

SANTOS, Milton; ELIAS, Denise. Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos e teóricos e

metodológicos da Geografia. 6. ed. São Paulo: EDUSP, 2008. 163

O Arcgis consiste em um Sistema de Informação Geográfica (SIG) utilizado para a criação de mapas,

compilação de dados geográficos, análise de informações mapeadas e gestão de informações geográficas

em bancos de dados. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cpd/servicos/computadores-e-

aplicativos/softwares-disponiveis/software-licenciado-arcgis. Acesso em: 31 de Abril de 2017.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

86

sejam: intracapitania, intercapitanias e transcontinental. Dimensões essas, ligadas

eminentemente as questões jurisdicionais, que sobrepuseram uns espaços a outros, e

com os quais se tinha que manter um canal comunicativo efetivo, que pudesse viabilizar

os andamentos dos trâmites burocráticos, em consonância com as subdivisões

administrativas do Império luso.

1.4.1 A comunicação intracapitania do Rio Grande

O nível intracapitania do Rio Grande havia se caracterizado pela

movimentação de informações, através da troca de correspondências, que ocorria no

interior da própria capitania, efetuada sobremaneira entre a Câmara do Natal e outras

localidades situadas em diferentes porções geográficas da capitania, mas que estavam

sob a gestão daquele concelho. Verificou-se, ainda, que existiam duas áreas dentro da

Capitania do Rio Grande com as quais a Câmara do Natal carteava-se em maior

proporção: a área oriental e outros quinhões, situados de maneira difusa, a ocidente e a

sul dessa capitania.

Reitera-se que a porção oriental da Capitania do Rio Grande, sobretudo aquela

fronteiriça ao mar, havia se distinguido por serem as dimensões geográficas de maior

ocupação durante os primeiros anos de conquista. Essas aglomerações deviam-se,

sobremodo, as condições geomorfológicas e climáticas que caracterizavam a área.

Nesse sentido, o domínio geomorfológico que havia demarcado a parte oriental da

Capitania do Rio Grande era constituído pela Planície Costeira, que abrangia uma faixa

estreita, porém extensa, ao longo do litoral, com o clima úmido em zona de Mata

Atlântica, cujos períodos de chuvas mais intensos se davam durante o inverno.164

A

essas condições, somaram-se as características físicas e químicas dos Latossolos, que

compreendiam solos profundos, muito evoluídos devido ao estágio de intemperização,

que originaram o vulgarmente chamado massapê.165

Essas condições, em conjunto,

favoreceram para que a parte oriental da Capitania do Rio Grande fosse à detentora do

164 PFALTZGRAFF, Pedro A. S.; TORRES, Fernanda S. M. (Orgs.). Geodiversidade do Estado do Rio

Grande do Norte: Programa Geologia do Brasil. Levantamento da Geodiversidade. Recife: CPRM,

2010. p. 81. 165

Ibidem., p. 114.

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

87

único engenho de cana-de-açúcar, entre os séculos XVII e XVIII.166

Tudo isso, atrelado

a outras questões que serão esboçadas e discutidas mais a frente, haviam funcionado

para congregar uma quantidade significativa de pessoas vivendo na porção oriental

daquela capitania.

Nesse sentido, nos Mapas 01 e 02, buscou-se sistematizar visual e

espacialmente, a circunscrição dessas localidades, com as quais o Conselho do Natal

estabelecia comunicação, como se observa a seguir.

Mapa 01 - Comunicação intracapitania do Rio Grande através da Câmara do Natal com

as porções central e oriental da Capitania (1659-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira a partir dos Livros de Cartas e Provisões do

Senado da Câmara do Natal (1659-1759), com base no SIG Arcgis.167

166 Para saber mais sobre o único engenho existente no Rio Grande do Norte, que pertencia à família

Albuquerque Maranhão, ver MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à historio do Rio Grande do

Norte. 2. ed. Natal: Cooperativa Cultural, 2002. 167

Elaborado pelo autor, Abimael Lira, com base no SIG Arcgis, a partir do conjunto: Fundo documental

do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759).

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

88

No que havia tocado ao nível de interlocução intracapitania do Rio Grande,

averigua-se, de acordo com o Mapa 01, que a comunicação estabelecida pela Câmara

do Natal, via redação dos escrivães concelhios, processava-se tendo como destino ou

mesmo como emissário, as localidades que possuíam um contingente populacional

significativo. Ora essa comunicação ocorria em sentido bilateral, ou seja, quando havia

uma troca de cartas ou de outros documentos partindo tanto da Câmara do Natal, quanto

das demais localidades em direção àquela instituição, ora o envio dessas

correspondências sucedia-se de modo unívoco. Na relação de povoações que

mantinham interlocução, ou seja, tanto recebendo como emitindo comunicação com a

Câmara do Natal destacava-se, sobretudo, os aldeamentos indígenas que, mais tarde,

foram elevados à categoria de vilas, cuja administração, inicialmente, era da alçada dos

religiosos jesuítas – Aldeias de Guaraíras e de Guajirú –, dos capuchinhos – Aldeias de

Apodi e de Mipibú – e dos carmelitas – Aldeia de Igramació –, as quais estavam

submetidas ao Regimento das Missões.168

Ressalta-se que essas missões e, mais tarde vilas, possuíam contingentes

populacionais expressivos, bem como indivíduos que sabiam ler e escrever como o caso

dos missionários. O intenso vai e vem de cartas entre a Câmara e essas missões

remetiam-se, ainda, a necessidade constante de controle e supervisão que a Coroa

impetrava para essas localidades, na tentativa de integrar tanto os habitantes quanto os

próprios missionários aos ditames mais gerais do Império. Nesse sentido, o poder local

agia em representação dos interesses reinóis na colônia, dessa feita, a eles cabiam

instruir, controlar e supervisionar as missões indígenas, bem como promoverem a

diferenciação social dos indivíduos, através da concessão de patentes militares de

ordenanças para atuarem nessas mesmas localidades.

168 De acordo com Fátima Martins Lopes, a população da extinta Aldeia de Guajirú, no momento inicial

de instalação da Vila de Extremoz do Norte, em 1761, era de 1429 pessoas. No mesmo ano, a população

contabilizada que formava a Aldeia de Guaraíras, em seguida Vila de Arez, era de 949 pessoas. Já a

Aldeia ou Missão de Mipibú, contava com uma população de 1235 índios e 30 casais brancos, quando de

sua elevação à classe de Vila de São José de Mipibú, em 20 de maio de 1759. Outra Missão que foi

elevada a categoria de vila, foi a de Igramació, situada próxima às margens da desembocadura do rio que

denomina a Ribeira do Cunhaú. Porém, para que pudesse ser alçada à hierarquia de vila, à Missão de

Igramació, juntara 248 pessoas que viviam em duas malocas – espécie de aldeia pequena – que eram

próximas, somou-se a esses números também às 353 pessoas que viviam na povoação de Utinga, mais

851 pessoas que já residiam na Missão de Igramació, totalizando 1452 índios, aos quais somara-se ainda

4 luso-brasileiros e 4 pardos. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio

Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) -

Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. p. 47.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

89

Assim, por ser a Câmara do Natal a única instituição responsável pelo

gerenciamento da Capitania do Rio Grande até 1759, bem com das demais localidades e

povoações do interior, havia uma grande demanda de ordem geopolítica no que

competia à consolidação da posse da terra pela Coroa portuguesa. Nesse sentido, em

face dessas demandas cabia à administração instaurar projetos de ocupação e de

controle das terras e dos povos que estavam sob a tutela d’El Rey,169

daí a

imprescindibilidade de se estabelecer vias de comunicação institucional com essas

localidades, com vistas ao alcance daqueles objetivos mais amplos. Assevera-se essa

perspectiva do controle dos aldeamentos indígenas, via Câmara do Natal, o fato de que

parte significativa dos conteúdos dessa interlocução haviam se remetido as provisões

nos quadros de oficiais das ordenanças, nos quais várias vezes, os próprios escrivães

concelhios eram nomeados para postos como de Capitão, Coronel, Tenente-coronel,

Tenente, Sargento e Alferes, os quais podiam ser de cavalaria ou da tropa de pé.

Verificou-se, ainda, de acordo com o Mapa 01, que eram desses aldeamentos –

da Aldeia de Mipibú e da Aldeia de Guaraíras – que havia ocorrido uma relativa troca

de cartas com a Câmara da Cidade do Natal. Entretanto, na proporcionalidade dessas

correspondências predominavam o envio de documentos pela Câmara do Natal para os

aldeamentos. No caso da conexão entre a Aldeia de Mipibú e a Câmara da Cidade do

Natal apenas 2,22% da correspondência obedecia a esse sentido. Os outros 97,77% da

troca de informações era representado pelo envio de manuscritos entre a Câmara do

Natal e a Aldeia de Mipibú.170

Esses apontamentos reiteram a perspectiva esboçada

acima, de que o controle era a principal atividade que a Câmara do Natal tentava impor,

através dessa comunicação manuscrita, aos aldeamentos indígenas.

A correspondência, bilateral, entre a Câmara do Natal e a Aldeia de Guaraíras,

como visto no Mapa 1, cumpria-se na simetria de 87,50% e, no sentido inverso, de

apenas 12,50%.171

Essas disparidades, no que se referiam à equivalência da troca de

correspondências, podem ser explicadas conforme as obrigações que recaíam sobre a

instituição municipal e, como visto anteriormente, toda a gerência administrativa e

burocrática da Capitania do Rio Grande eram de responsabilidade dos oficiais da

169 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o

diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de

Pernambuco, Recife, 2005. p. 31. 170

Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1760). 171

Ibidem.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

90

Câmara Municipal do Natal, dentre as quais, por exemplo, citam-se: a higiene, a

urbanização, o abastecimento, a resolução de conflitos e embates entre pessoas ou

grupos sociais, a fiscalização, o gerenciamento e regulamentação nas esferas

econômicas, políticas e sociais mais amplas.

Foi sobre esse mesmo universo de questões que o envio de correspondências

entre a Câmara do Natal e as demais porções centro-orientais da Capitania do Rio

Grande faziam alusão. Como se podem perceber, a partir da análise do Mapa 01, as

relações sociais, via troca de cartas ou de outras tipologias documentais, entre a Câmara

do Natal e as localidades de Goianinha, Utinga, das Ribeiras do Potengi, do Jundiaí e do

Ceará Mirim, e com a Aldeia Velha e a Aldeia de Guajirú, obedeciam à grandeza de

100% da comunicação. Risória exceção fazia-se sobre a interlocução processada entre a

Câmara do Natal e a Ribeira do Cunhaú, também situada na porção sul-oriental da

Capitania do Rio Grande, cujo volume era da ordem de 90%, e o remanescente, ou seja,

os 10% restante, efetivava-se no sentido Ribeira do Cunhaú-Câmara do Natal.172

Isto se

explicava pelo fato de haver sido o Engenho de Cunhaú o único núcleo econômico

relacionado à produção de açúcar de toda a Capitania do Rio Grande,173

bem como pelo

fato de vários dos componentes da família Albuquerque Maranhão, proprietários desse

engenho, haverem servido como oficiais da Câmara do Natal, entre os séculos XVII e

XVIII.

Via de regra, observou-se também a preponderância do envio de cartas entre a

Câmara do Natal e as localidades centro-sul e ocidental da Capitania do Rio Grande, na

ordem de 100%.174

Ou seja, percebeu-se que apenas o Conselho Municipal do Natal

remetia comunicação com as Ribeiras do Ceará, do Apodi, do Açú e do Seridó, bem

como com o distrito do Rio Banabuiú, como se verifica, a seguir, a partir da análise do

Mapa 02.

172 Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1760).

173 Para saber mais sobre a família Albuquerque Maranhão, estirpe proprietária desse engenho por

aproximadamente trezentos anos, ver COSTA, Helensandra Lima da. A Família do Tesouro: a

monumentalização da família Albuquerque Maranhão e a luta pelo poder no Rio Grande do Norte (1889-

1914). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.

p. 12-13. 174

Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1760).

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

91

Mapa 02 - Comunicação intracapitania do Rio Grande através da Câmara do Natal com

as porções central e ocidental da Capitania (1659-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

175

Na Ribeira do Apodi existia também uma missão indígena que no período do

Diretório dos Índios também foi elevada a categoria de vila. Nessa aldeia que, mais

tarde foi denominada de Vila de Portalegre, em carta datada de 27 de setembro de 1761,

existiam 438 moradores,176

aos quais se somavam os religiosos que faziam parte dessas

missões. Ressalta-se, de acordo com Olavo de Medeiros Filho, que a etnia Tarairiú

dominava as bacias hidrográficas dos Rios Açú e Apodi, bem como de seus respectivos

175 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, com base no SIG Arcgis, a partir do conjunto: Fundo documental

do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759). 176

LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o

diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de

Pernambuco, Recife, p. 140.

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

92

afluentes.177

Segundo Tyego Franklim da Silva, ao estudar o processo de

territorialização do sertão do Açú, durante as décadas de 1680 e 1720, as primeiras

tentativas de conquista e povoação dessa área haviam ocorrido durante o governo de

Antônio Vaz Gondim (1654-1663/ 1673-1677). Porém, foi no governo de Geraldo de

Suni (1679-1681), que se havia concedido as primeiras sesmarias das Ribeiras do

Seridó, do Apodi e do Açú, figurando a pecuária como o principal mecanismo de

motivação econômica que havia orientado as solicitações dos povoadores.178

No período

que foi de 1701 até 1720, foram doadas na Ribeira do Apodi 23 sesmarias e na Ribeira

do Açú, 19 sesmarias. Desse modo, observa-se que as áreas centro-ocidentais da

Capitania do Rio Grande eram extremamente dinâmicas, contando com populações

bastante diversas tanto de indígenas quanto de luso brasileiros. Tais disparidades

sociais, atreladas às motivações econômicas, impulsionaram uma série de conflitos no

contexto da Guerra dos Bárbaros, o que havia ocasionado um intenso envio de

correspondências para aquelas regiões geográficas da Capitania do Rio Grande, no

episódio que ficou conhecido como a Guerra do Açú.179

Salienta-se, ainda, que vários escrivães eram possuidores de datas de sesmarias

pelos sertões da Capitania do Rio Grande, sobretudo nas Ribeiras do Açú e do Apodi,180

onde, peremptoriamente, haviam interligado a influência administrativa que detinham

em âmbito camarário ao recebimento de mercês efetuadas pelas edilidades, reforçando

com isso, suas posições de destaque e influência social, local e regional. Atrela-se a

isso, que alguns escrivães foram nomeados para patentes militares das companhias de

ordenança que atuavam no interior da capitania, para as Ribeiras do Açú, do Apodi e do

Seridó. Essas situações fizeram com que os escrivães fossem os principais destinatários

de algumas dessas correspondências, sobretudo no que tocava as cartas de provisão que

os nomeava para oficial de alguma das companhias de ordenança espalhadas por

àquelas ribeiras.

177 MEDEIROS FILHO, Olavo. Ribeira do Açu. Subsídios para a sua história. Mossoró: Fundação

Guimarães Duque, 1988. Coleção Mossoroense, série B. n. 535. p. 7. 178

SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na

territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 60. 179

Para saber mais esse conflito, ver PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e

colonização no sertão nordeste do Brasil (1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da EDUSP, 2002. 180

SILVA, op. cit., .p. 84-85.

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

93

Nesse sentido, como se visualiza no Mapa 02, não se identificou nos Livros de

Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1760), nenhuma referência a

tipos documentais que houvessem sido enviados por alguma das cinco localidades

elencadas naquele mapa – Ribeira do Ceará, Ribeira do Apodi, Ribeira do Açú, Ribeira

do Seridó ou Distrito do Banabuiú – à Câmara do Natal, pelo menos para o período

pesquisado. O grosso da comunicação havia sido enviado pelo Concelho do Natal a

cada uma das respectivas localidades apontadas no Mapa 02. Dos 1337 documentos

que compõem a comunicação intracapitania do Rio Grande, 2,16% (29 documentos)

referiam-se à comunicação com a Ribeira do Apodi, 0,44% (6 documentos) diziam

respeito a Ribeira do Seridó, 4,63% (62 documentos) aludiam-se a correspondência com

a Ribeira do Açú, 0,29% (4 documento) a conexão com a Ribeira do Ceará e 0,07% (1

documento), a interlocução processada com o Distrito do Rio Banabuiú.

Grosseiramente, os principais itens dessas correspondências são as provisões para o

exercício dos ofícios de juiz de vintena, de escrivão de vintena, para os postos das

companhias militares de ordenança das ribeiras, bem como de cartas variadas que, a

depender de alguns contextos podiam remeter-se a guerra, sobretudo realizada contra os

indígenas no processo de expansão das áreas de criação na Capitania do Rio Grande,

associada que foi a interiorização do povoamento e ao adensamento de atividades

econômicas relacionadas à criação de gado pelos sertões daquela capitania.

Ainda no nível de comunicação intracapitania do Rio Grande, distingue-se as

vias de conversação manuscrita, por meio da troca de inúmeras tipologias documentais,

levadas a cabo entre diferentes instituições administrativas, a partir da redação ou

manuscrição efetuada pelos escrivães concelhios da Câmara do Natal. Desse modo,

percebe-se que a edilidade do Natal mantinha contato e diálogo frequente com outros

representantes locais do poder, como com o Capitão-mor do Rio Grande, com o

Provedor da Fazenda Real dessa mesma capitania, com alguns oficiais da Fortaleza dos

Reis Magos, com as Companhias Militares de Ordenança local, com o povo da capitania

do Rio Grande, por meio de cartas, bandos, editais e alvarás, bem como com os

moradores da Cidade do Natal, por meio de cartas convocatórias que solicitavam a

presença do destinatário e, por fim, entre os próprios oficiais camarários. Não obstante,

elaborou-se, percentualmente, a proporcionalidade dessas interações comunicativas,

desenvolvidas entre a Câmara do Natal, a Fazenda Real, a Fortaleza dos Reis Magos, as

Companhias Militares de Ordenanças locais e as demais vias interativas.

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

94

Em primeiro lugar, figura a troca de correspondências entre a Câmara do Natal

e os capitães-mores do Rio Grande, entre 1659 e 1760, que havia encerrado em 553

documentos, dos quais 11,39% (63) foram emitidos pela Câmara do Natal para os

capitães-mores da Capitania do Rio Grande e 88,60% (490) foram processados em

sentido inverso, ou seja, dos capitães-mores para os oficiais concelhios. Em segundo

lugar, encontram-se as correspondências deliberativas sobre a gestão da própria

instituição concelhia, com 144 documentos produzidos nesse sentido. Já em terceiro

lugar pode-se alocar a comunicação desenvolvida entre a Câmara do Natal e as

Companhias Militares de Ordenanças locais, que haviam totalizado a expedição de 61

documentos nesse mesmo sentido. O quarto lugar foi ocupado, proporcionalmente,

pelas interações sociais e institucionais entre a Fazenda Real do Rio Grande, num total

de 23 documentos, dos quais 52,17% (12) foram manuscritos no Real Erário com

destino a Câmara do Natal, e os outros 47,82% (11) haviam sido remetidos dessa

instituição para àquela. Seguidamente, em quinto lugar, aloja-se a comunicação

desenvolvida entre a câmara e a população da Cidade do Natal, perfazendo 74

documentos, dos quais 22,97% (17) eram relativos à correspondência no sentido

Câmara do Natal para o povo da referida cidade, os 77,02% (57) aludiam às petições

efetuadas pelo povo dessa municipalidade à instituição concelhia. Existiam, ainda, 227

documentos restantes, que faziam referência direta a troca de informações entre a

Câmara do Natal e todo o povo da Capitania do Rio Grande – expedição de bandos ou

mandados –, os quais se remetiam apenas a esse sentido da conexão institucional.

Destaca-se que aos escrivães concelhios havia recaído toda a redação dessa

vasta produção documental, que associados aos longos períodos de tempo nos quais

serviam no âmago das edilidades, faziam desse oficial o conhecedor da memória

institucional e administrativa local e regional, mas também de embates e conflitos entre

aqueles agentes de poder, o que havia aberto margem para que esses escrivães

camarários tomassem partido em querelas levadas a cabo pelo fissuramento do tecido

social, operado entre as facções que lutavam pela possibilidade de representação do

poder político.

Os capitães-mores eram os oficiais responsáveis, essencialmente, pela defesa e

pela segurança dos territórios que estavam sob suas jurisdições. Cabia a esses oficiais,

com algumas restrições, a provisão de alguns ofícios ligados à justiça e à fazenda, bem

como dos postos das tropas militares pagas das capitanias, podendo nomear ou indicar

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

95

também indivíduos para as patentes militares das companhias de ordenanças locais.181

Somam-se a isso, doações de sesmarias concedidas também pelos capitães-mores.

Assim, sobre essas dimensões relacionadas à provisão de ofícios ou de postos na

administração, havia versado parte significativa da comunicação enviada pelos capitães-

mores à câmara do Natal, inclusive dos próprios ofícios de escrivão e de tabelião, para o

início da primeira metade do século XVII. Exemplo disso foi à provisão efetuada pelo

Capitão-mor do Rio Grande, Antônio Vaz Gondim, por concessão precária do ofício de

escrivão da câmara, concedida ao Ajudante Francisco de Oliveira Banhos.182

Ou quando

esse mesmo capitão-mor havia provido na serventia de tabelião do público, judicial e

notas da Cidade do Natal, o Sargento-mor Francisco Rodrigues.183

Quanto ao envio de cartas da Câmara do Natal ao Capitão-mor do Rio Grande,

encontraram-se na documentação vários tipos de cartas, dentre as quais se podem citar

as cartas queixas contrárias às atuações indevidas por parte dos capitães-mores.

Exemplo de um tipo dessas foi a que os oficiais da câmara escreveram ao Capitão-mor,

Luís Ferreira Freire (1718-1722), ao advertirem essa autoridade que o mesmo se

abstivesse das condutas irregulares a que procedia pela Capitania do Rio Grande.184

Percebe-se com esse registro, que a câmara do Natal, bem como os seus oficiais, eram

encarregados também do gerenciamento moral e valorativo da cidade, influindo,

inclusive, nas atuações disparates dos capitães-mores, os quais eram oficiais providos

diretamente pelo rei e sobre os quais os oficiais concelhios não tinham nenhum tipo de

jurisdição. Nessas situações, os escrivães colocavam-se no entremeio de duas poderosas

instâncias de poder e autoridade local. Isso podia colocá-los diante de verdadeiros

embates, aos quais competiam, inclusive, atuarem como informantes privilegiados para

um dos polos dessas rixas.

Verificou-se também uma quantidade significativa de documentos elaborados

pelos escrivães camarários para serem utilizados no próprio âmbito concelhio, tais

como: citações a determinados oficiais, nomeações de oficiais através do sistema de

barrete, elaboração das listas de pelouros, registros dos indivíduos eleitos para os

181 CUNHA, Mafalda Soares da. Governo e governantes do Império português do Atlântico. In:

BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia do Amaral. Modos de governar: idéias e práticas

políticas no Império português. São Paulo: Alameda, 2005. p. 71. 182

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659

– 1668). Fl. 8. 183

Ibidem., Fl. 10. 184

Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720 – 1728). Fl. 31.

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

96

mandatos de juízes ordinários, vereadores e de procuradores, etc. Pode-se citar a título

exemplificativo, a lista de oficiais eleitos para o Senado da Câmara do Natal, em 16 de

abril de 1661, onde saíram nos pelouros: para juiz mais velho, o Capitão Francisco de

Mendonça Eledesma, para o outro ofício de juiz, Francisco Pires, para vereador mais

velho, Antônio Gonçalves de Ferreira, para vereador mais moço, Inácio Pestana, e para

procurador, Francisco Rodrigues. Esse termo foi redigido pelo escrivão da câmara,

Domingos Vaz Velho, quem também havia concedido o juramento a esses oficiais.185

Em quarto lugar, figurava a comunicação entre a câmara e as companhias de

ordenanças locais, por meio das cartas patentes ora efetuadas pelo capitão-mor, ora

efetuada pelos próprios oficiais concelhios. As companhias militares de ordenanças

locais caracterizavam-se como outra instância de poder em nível local.186

Essas

organizações, de acordo com Christiane Mello, eram constituídas por homens

recrutáveis com idades que variassem entre 18 e 60 anos, mas que fossem capazes de

combater, os quais não podiam eximir-se das tarefas relacionadas ao serviço militar não

remunerado.187

Exemplo disso foi a nomeação para a patente de Capitão das

Ordenanças, efetuada pelo Capitão-mor Valentim Tavares Cabral (1663-1670), à Pedro

da Silva Cardoso.188

Contudo, encontra-se nessa documentação menções a patentes que

foram concedidas também pelos governadores gerais, como havia ocorrido com a

nomeação de Luiz Pereira Barbosa, que foi escrivão da Câmara do Natal em 1666, para

o posto de Ajudante de Sargento-mor das Ordenanças, através de uma provisão do

Conde de Óbidos e Governador Geral do Brasil, D. Vasco de Mascarenhas, datada de 9

de maio de 1664, cuja justificativa foi que Pereira Barbosa havia servido nas guerras

contra os holandeses durante 12 anos.189

Para esse último caso, ressalta-se que o próprio

Luiz Pereira, a época do registro da carta patente, em 4 de junho de 1666, fosse escrivão

da Câmara do Natal, e que havia inclusive trasladados para o livros de registros dessa

edilidade sua própria provisão.190

185 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659

– 1668). Fl. 11. 186

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003. p. 376. 187

MELLO, Christiane Figueiredo Pagano. Forças militares no Brasil Colonial. Corpos de Auxiliares e

de Ordenanças na Segunda Metade do Século XVIII. Rio de Janeiro: E-Papers, 2009. p. 34. 188

Fundo documental do IHGRN. op. cit., Fl. 55v. 189

Ibidem., Fl. 56 190

Ibidem.

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

97

Observa-se a partir daquele registro que os escrivães podiam utilizar-se do

desempenho de sua função de redatores da comunicação política para solicitaram

mercês régias a diferentes agentes do poder, mesmo que as justificativas para isso não

sejam, como observado acima, o desempenho do ofício de escrivão, mas as experiências

militares angariadas em largos anos de prestação de serviços a Coroa em conflitos

importantes para assegurar o domínio luso na América. Observa-se, como se verá no

próximo capítulo, que os escrivães utilizaram-se do desempenho desse ofício para

ascenderem na hierarquia dessas companhias, e cada vez que eram nomeados, pouco

antes ou pouco depois, eram agraciados com uma patente das companhias de

ordenanças locais, configurando o exercício daquele ofício como um mecanismo de

retroalimentação positiva e ascensional, em suas carreiras administrativas e militares.

Na sequência, existia a via bilateral processada pela comunicação entre a

Câmara do Natal e a Fazenda Real. O Real Erário na Capitania do Rio Grande

incumbia-se do tratamento sobre as questões fiscais dessa capitania.191

Desse modo, na

troca de correspondências entre essas instituições haviam figurado, dentre outras

temáticas, a possibilidade de demandas de oficiais concelhios que deviam a Fazenda

Real,192

informações sobre o pagamento de determinados ofícios193

e o registro de

mandados por ordens dos provedores nas câmaras.194

Exemplo desse tipo de

comunicação, se pode mencionar o registro de uma petição encaminhada pelo

procurador da Fazenda Real do Rio Grande, na condição de procurador de Francisco

Álvares de Lima, que havia adquirido a concessão perpétua do ofício de escrivão da

câmara e de tabelião do público, judicial e notas da Cidade do Natal, ao corregedor da

comarca, pedindo a esse oficial, informações a respeito do ordenando do ofício de

escrivão concelhio.195

Percebe-se disso, que a relação entre o proprietário do ofício de escrivão

camarário e os serventuários, para esse caso específico, constituía-se através de um

intermediário que nessa situação era o procurador da Fazenda Real, despessoalizando as

191 BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Os primórdios da Real Fazenda: a Provedoria da Fazenda Real do

Rio Grande no início do século XVII. III Encontros Coloniais. Natal, 14-17 de jun. de 2016. p. 4.

Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/encontroscoloniais-lehs/textos/LIVIA-BARBOSA.pdf>.

Acesso em: 11/05/2017. 192

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 Livro de Cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro

3 (1691 – 1702). Fl. 54. 193

Ibidem., Livro 5 (1708 – 1713). Fl. 122. 194

Ibidem., Fl. 77 195

Ibidem., Fl. 122.

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

98

interações entre aqueles agentes. Em sentido inverso, a câmara podia se comunicar com

a Fazenda Real sobre questões relacionadas ao recolhimento de impostos, multas ou

contratos. Exemplo disso se pode citar a carta enviada pelos oficiais da Câmara do Natal

ao Provedor da Fazenda Real, João da Costa e Silva, sobre os contratos das carnes da

Capitania do Rio Grande.196

Essa situação reiterava a posição dos escrivães concelhios

como agentes detentores de importantes informações sobre a economia da capitania,

intermediando relações entre esferas distintas da administração do Império, como a

justiça de primeira instância – representada pelas edilidades – e a dimensão fiscal.

Por fim, têm-se a comunicação processada entre a câmara e a população da

Capitania do Rio Grande, por meio de bandos, editais e alvarás que objetivavam

informar a população de decisões tomadas na edilidade, ou remetidas pelo rei, ou pelos

governadores gerais do Estado do Brasil, mas também pelos governadores e capitães

generais de Pernambuco, assim como pelos ouvidores da Paraíba. Como exemplo dessa

comunicação entre a Câmara do Natal e a população do Rio Grande, tem-se o envio de

um bando pelo governador de Pernambuco, que havia mandado lançar na Cidade do

Natal, para divulgar que se estavam em busca de pessoas para irem para as Minas dos

Cariris Novos, trabalharem na mineração desse lugar.197

Esse tipo de comunicação

como se reforçará no próximo item, colocava os escrivães camarário como os primeiros

oficiais que entravam em contato com determinações superiores, de interesse não

apenas institucional, mas também social.

Nessas condições, o exercício desse ofício havia funcionado como um

mecanismo para que grupos de pressão da sociedade local obtivessem informações

exclusivas de assuntos relativos à dimensão dos interesses econômicos, como a questão

do ouro recém-descoberto na vizinha Capitania do Ceará, nas minas de São José dos

Cariris Novos. Essa possibilidade nos impele a pensar se, de fato, informações como

essa eram mesmo veiculadas publicamente para que a população tivesse acesso ou se

corria apenas nos circuitos de famílias ou grupos específicos, cujos representantes

figuravam no interior do concelho municipal. Tudo isso ajuda a compreender os

interesses familiares no monopólio do ofício de escrivão em seus interstícios, os quais

ultrapassavam os limites do prestígio social, fincando raízes nas dimensões econômicas

196 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). FL. 110v. 197

Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09 (1743 – 1754). Fl. 244.

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

99

para a obtenção de dividendos materiais, reificando a intercorrente ideia de que o poder

e a informação caminhavam de mãos dadas nas sociedades do Antigo Regime

português.

1.4.2 A comunicação intercapitanias da América Portuguesa (1659-1759)

De maneira contínua, prossegue-se essa análise da rede institucional de

circularidade de informações administrativas e burocráticas no nível intercapitanias, que

havia se distinguido pela determinação de comunicação entre a Câmara do Natal,

situada na Capitania do Rio Grande, e outras capitanias – sobretudo com as que estavam

fisicamente mais próximas, do ponto de vista geográfico, mas também com outras,

localizadas, em porções mais distais da América lusa, com as quais se correspondia

consoante a organização estrutural da administração da monarquia portuguesa, como se

verificar no Mapa 03.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

100

Mapa 03 - Comunicação intercapitanias da América Portuguesa, via Câmara do Natal

(1659-1760)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

198

No Mapa 03 foi possível visualizar as interações institucionais, através do

envio e do recebimento de correspondências manuscritas que a Câmara da cidade do

Natal havia estabelecido com locais de sociabilidades administrativas, fixados em outras

capitanias da América portuguesa e, consequentemente, com outros agentes sociais

detentores do poder de mandos institucional, religioso, judicial e de segurança ou de

defesa. Jurisdicionalmente, consta nos Livros de Cartas e Provisões do Senado da

Câmara do Natal (1659-1759), que a Capitania do Rio Grande respondia

administrativamente, entre 1659 e 1701, direto ao Governo Geral, situado na Cidade de

198 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, com base no SIG Arcgis, a partir do conjunto: Fundo documental

do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759).

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

101

Salvador, na Capitania da Bahia.199

Deve-se a isso, o fato de o Rio Grande haver

deixado de ser uma capitania hereditária e quando foi revertida a condição de capitania

real, no final do século XVI,200

sua jurisdição havia ficado sob a alçada do Governo

Geral do Estado do Brasil desde aquele século, cuja data certa dessa reversão aos

domínios reais ainda corre indefinida, até 1701.

Constatou-se que a Câmara do Natal havia estabelecido diferentes vias de

interlocução com outras capitanias localizadas geograficamente de maneira proximal à

Capitania do Rio Grande. Esse diálogo, através da troca de correspondências em sentido

bilateral, foi estabelecido entre a Câmara do Natal e a Capitania de Pernambuco, entre a

Câmara do Natal e Capitania da Paraíba e entre a Câmara do Natal e a Capitania do

Ceará. Salienta-se, ainda, que outra via intercapitanias foi efetuada, de modo distal

fisicamente, entre a Câmara do Natal e a Cidade de Salvador.

Percentualmente mais expressiva, a conexão entre a Câmara do Natal e a

Capitania da Paraíba, a qual equivalia a 12% da comunicação efetuada pela Câmara do

Natal, no período que foi de 1659 até 1759 – 260 documentos remetidos ou destinados

entre esses dois polos –, como se pode verificar mediante a análise do Gráfico 01. A

dimensão desse grau de difusão entre essas capitanias explica-se pela subordinação, do

ponto de vista judicial, da Câmara do Natal e, consequentemente, de toda a Capitania do

Rio Grande, à jurisdição da Ouvidoria Geral da Paraíba.201

Desse modo, como a

Capitania do Rio Grande estava sob a jurisdição do Ouvidor e Corregedor Geral da

Paraíba, cuja principal atribuição era a fiscalização da atuação dos oficiais que

representavam a justiça em nível local, como no caso dos juízes ordinários, dos

escrivães e dos tabeliães, bem como das estruturas físicas – as obras arquitetônicas de

utilidade pública em geral – e também demográfica e territorial. Sob a alçada dos

ouvidores e dos corregedores gerais, estava, ainda, o acompanhamento das eleições

municipais para a própria Câmara do Natal. Releva-se que aos ouvidores não cabia

199 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl. 15v, 41v, 42, 48v, 104v, 108; Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 57v. 200

BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Os primórdios da Real Fazenda: a Provedoria da Fazenda Real do

Rio Grande no início do século XVII. III Encontros Coloniais. Natal, 14-17 de jun. de 2016. p. 2.

Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/encontroscoloniais-lehs/textos/LIVIA-BARBOSA.pdf>.

Acesso em: 11/05/2017. 201

PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo à sombra das Leis: Antonio Soares Brederode entre a justiça e a

criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade

Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. p. 92.

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

102

intromissão na esfera de atuação dos juízes de fora.202

Assim, eram sobre essas

temáticas, grosso modo, que se havia consubstanciado a troca de correspondências entre

a Câmara do Natal e a Capitania da Paraíba.

Em terceiro lugar, a transmissão de informações mais relevantes intercapitanias

foi levada a cabo entre a Câmara do Natal e a Capitania de Pernambuco, que equivalia,

percentualmente, a 8% – 170 documentos – da correspondência entre aquela edilidade e

outros espaços sociais da monarquia portuguesa, entre a segunda metade do século

XVII e a primeira metade do século XVIII. Elucida-se que esse grau de comunicação se

devia, nomeadamente, ao processo de anexação da Capitania do Rio Grande ao governo

de Pernambuco, promovida em 1701.203

Contudo, verifica-se na documentação que

existisse uma comunicação incipiente no período anterior a essa incorporação

administrativa.204

Essa comunicação consistia, basicamente, na emissão de alvarás,

bandos, cartas patentes e de provisões por parte dos governadores e capitães-generais da

Capitania de Pernambuco para a Câmara do Natal, bem como no envio por esse órgão

concelhio de cartas informativas de acontecimentos que haviam ocorrido na Cidade do

Natal e em toda a Capitania do Rio Grande.205

Outros agentes do poder também eram

contatados através da troca de correspondências, entre a Câmara do Natal e a Vila do

Recife, com, por exemplo, com o Bispo de Pernambuco ou com o Ouvidor Geral dessa

capitania.206

No caso da comunicação entre a Câmara do Natal e os Bispos de Pernambuco,

a mesma havia consistido no fato de a jurisdição eclesiástica do Rio Grande, nesse caso

da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande, sediada na Cidade do

Natal, remeter-se, peremptoriamente, ao Bispado de Pernambuco, desde 1614 até 1623,

quando voltou a pertencer ao Bispado da Bahia. Entretanto, ressalta-se que apenas em

1676 havia ocorrido o religamento definitivo que colocou a Matriz da Apresentação sob

a tutela do Bispado de Olinda,207

explica-se disso a comunicação constante entre a

Câmara do Natal e esse bispado, bem como com o Cabido da Sé. Com relação ao

202 Ibidem., p. 59.

203 RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro. A Companhia Geral de

Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 62-63. 204

Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1815). 205

Ibidem. 206

Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690). Fl(s). 96v,

116; Ibidem., Livro 5 (1708 – 1713). Fl. 119v. 207

PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. A construção da Paróquia: Espaço e participação na

Capitania do Rio Grande do Norte. Rev. Espacialidades [online]. vol. 3, n. 2, 2010. p. 6.

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

103

estabelecimento de comunicação com a Ouvidoria de Pernambuco, referia-se ao fato de

que, quando havia ocorrido o processo de anexação das Capitanias do Norte, a alçada da

justiça havia passado a pertencer também à Pernambuco, o que se modificaria

progressivamente com a criação da Ouvidoria da Paraíba, em 4 de dezembro de 1687,

com o objetivo de aplicar a justiça, devido a distância do Tribunal da Relação da Bahia,

o que fez com que muitas pessoas ficassem sem condições de solicitar agravo ou

apelação.208

A esse tribunal, a Capitania do Rio Grande havia passado a subordinar-se

judicialmente, visto que sua jurisdição incluía além da circunscrição territorial da

cabeça da comarca – a Capitania da Paraíba –, as Capitanias do Rio Grande e de

Itamaracá, consideradas anexas, mas que antes eram da alçada da Ouvidor Geral da

Bahia, porém face a distância geográfica que as separavam, esse oficial quase nunca

chegava a essas localidades.209

Distalmente, quando comparados às proximidades das Capitanias de

Pernambuco e da Paraíba com a do Rio Grande, averigua-se que a Câmara do Natal

havia mantido comunicação também com a Capitania da Bahia, nomeadamente com a

Cidade de Salvador, que era a sede do Governo Geral do Estado do Brasil, onde

estavam instalados os órgãos administrativos e burocráticos centrais, sob a alçada do

governador geral e, mais tarde, dos vice-reis. Observa-se que a comunicação entre a

Câmara do Natal e a Cidade de Salvador havia sido mais efetiva nas primeiras décadas

após o domínio holandês, quando, até o início do século XVIII, pertencia e respondia

jurisdicionalmente, à Capitania da Bahia.

No entanto, reverbera-se, que a sujeição da Capitania do Rio Grande à

jurisdição da Bahia foi revertida, em 1701, ao domínio da Capitania de Pernambuco,

originada a partir da instauração de disputas políticas, de caráter conflitivo, entre os

governadores-gerais, sediados na Bahia de Todos os Santos, e os Governadores e

Capitães-generais de Pernambuco. No cerne dessa questão, se encontravam pleitos entre

grupos sociais pela hegemonia do mando político, administrativo e, portanto,

institucional das Capitanias do Norte. De acordo com Vera Lúcia Costa Acioli, em seu

Jurisdição e Conflitos, a subordinação progressiva daquelas capitanias havia ocorrido

no contexto da nova realidade política experimentada no Pós-Restauração, quando

208 PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo à sombra das Leis: Antonio Soares Brederode entre a justiça e a

criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. p. 84. 209

Ibidem., p. 86.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

104

imbuídos pelo imaginário social que se havia criado envolta da figura dos restauradores,

os quais cresceram em poder, prestígio e influência. Assim, foi possível visualizar no

governo de André Vidal de Negreiros, em 1657, bem como no comando de seus

sucessores, uma série de conflitos que objetivavam a anexação progressiva das

Capitanias de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Ceará ao domínio da Capitania

Pernambuco.210

Vale destacar também que a insistência nas longas distâncias que

espaçavam o Rio Grande da Bahia seria alguns dos empecilhos que entravavam o

processo de gestão burocrática, assim como a prestação de ajudas e socorros ao Rio

Grande no contexto mais amplo da Guerra dos Bárbaros.211

Outro exemplo disso, foi a

necessidade de os capitães-mores do Rio Grande prestarem pleito e homenagem ao

governador geral, em Salvador, algo que ocasionava uma viajem extensa, custosa e

extremamente perigosa.212

Diante de tudo isso, o vice-rei da Bahia, António Luís Coutinho, enviava uma

carta à Câmara do Natal demitindo de si a jurisdição da Capitania do Rio Grande, em

1701.213

Mormente, com o passar dos anos, havia ocorrido algumas restrições por parte

dos governadores de Pernambuco em questões internas ao Rio Grande, a revelia de

alguns direitos garantidos pelo tempo de suas práticas, o que acabava culminando em

longas solicitações e queixas que visavam o retorno à jurisdição do governador geral, na

Bahia de Todos os Santos.214

O conteúdo tipológico da comunicação entre a Câmara do

Natal e a Cidade de Salvador, remeter-se-ia ao envio, por parte deste, de portarias, de

cartas de confirmação de ofício, de cartas patentes, de cartas de diligência, de alvarás e

também de provisões, à Câmara do Natal. Já o concelho do Natal enviava cartas com a

210 Para saber mais sobre a estruturação da administração da América portuguesa no século XVII, bem

como as transformações pelas quais passou, ver ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos:

Aspectos da administração Colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE,

1997. 211

SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na

territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 101-103. 212

Para saber mais sobre as relações entre os capitães-mores do Rio Grande, o Governo Geral da Bahia e

o Governo de Pernambuco, ver BARBOSA, L. B. S. Da homenagem que presto a Vossa Senhoria:

relações entre os capitães-mores do Rio Grande e os governadores de Pernambuco (segunda metade do

século XVII). In: V Encontro Internacional de História Colonial, 2014, Maceió-AL. Anais do V

Encontro de Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina

(Século XVI ao XIX), Maceió, 19 a 22 de agosto de 2014 [recurso eletrônico]. Maceió: EDUFAL, 2014.

v. s/v. p. 801-808. 213

Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara. Caixa 01.

Livro 1 (1659 – 1668). Fl. 15v. 214

Ibidem., Caixa 02. Livro 08 (1738 – 1743). Fl. 101; Ibidem., Livro 09 (1743 – 1754). Fl. 70.

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

105

finalidade de serem dirimidas dúvidas acerca de determinadas formas de se proceder em

situações específicas da gestão burocrática. Percebeu-se também que depois do processo

de anexação da Capitania do Rio Grande ao governo de Pernambuco, a intensidade da

comunicação entre a Câmara do Natal e o Governo Geral, em Salvador, havia sofrido

uma brusca redução.

Correspondia a intensidades comunicativas ínfimas, travadas entre a Câmara

do Natal e outras capitanias da América portuguesa, têm-se a via entre o Concelho do

Natal e a Capitania do Ceará, a qual havia obedecido à ordem de 0,13% – 3 documentos

apenas –, não chegando sequer a 1%. Em verdade, todos os três documentos foram

enviados da Capitania do Ceará para a Capitania do Rio Grande, ora pela Câmara de

São José do Ribamar – 2 documentos –, ora pelo Capitão-mor do Ceará Grande – 1

documento. Nos mesmos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal

(1659-1759), verificou-se a existência de alguns documentos relativos ao período em

que as Ribeiras do Ceará Grande e do Ceará de Cima, bem como do próprio Rio

Jaguaribe, pertenciam, administrativamente, à jurisdição da Capitania do Rio Grande,

em assuntos relativos à gestão burocrática e fazendária.215

No entanto, não existe

nenhuma referência que se remeta a pensar o processo de separação da Capitania do

Ceará da Capitania do Rio Grande, sobretudo na dimensão fazendária, no final do

século XVII, bem como os resultados positivos e negativos para ambas as capitanias,

visto que o Rio Grande, depois dessa bifurcação havia passado a sofrer com constantes

crises econômicas, que afligiam, sobretudo, o balanço da Provedoria da Fazenda Real

dessa capitania, com falta de recursos financeiros até para saldar os pagamentos dos

filhos da folha.

Visto tudo isto, assevera-se, ainda, que se careça de estudos que se dediquem a

pesquisar, de modo mais detido, as relações entre o Governo Geral da Bahia com a

Capitania do Rio Grande, nos mais diferentes estratos da hierarquia administrativa, na

segunda metade do século XVII, quando esta capitania pertencia à jurisdição do

governo de Salvador. Do mesmo modo, necessita-se também de trabalhos que

examinem o progressivo processo de submissão e restrição econômica e administrativa

215 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de Cartas e Provisões do Senado da Câmara. Livro 4

(1702 – 1707). Fl. 133; Ibidem., Livro 2 (1673 – 1690). Fl(s). 62v, 66, 66v.

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

106

da Capitania do Rio Grande à Capitania de Pernambuco, iniciada em 1701.216

Assim

como, as diversas formas de resistência empreendidas pelos órgãos institucionais do Rio

Grande, ao burlarem e quebrarem essa intrincada hierarquia administrativa.

No mesmo sentido, demanda-se de investigações que deslindem a íntima

relação entre os ouvidores gerais da Paraíba e a fiscalização imposta ao exercício dos

oficiais camarários, entre o final do século XVII até o início do século XIX, momento

no qual, de acordo com a historiografia, a Capitania do Rio Grande passou a contar com

a figura de um ouvidor. A atuação dos ouvidores gerais da Paraíba com a Câmara do

Natal referia-se, de modo geral, as eleições concelhias e ao envio de cartas de usança,

por meio das quais os oficiais camarário podiam, de fato, assumir e exercer suas

atividades. Ressalta-se, ainda, que alguns documentos dos Livros de Cartas e Provisões

do Senado da Câmara do Natal mencionavam a existência de uma ouvidoria na

Capitania do Rio Grande, a partir da segunda metade do século XVII, o que

descredencia as análises que afirmam que essa localidade somente havia passado a

contar com a figura de um ouvidor próprio no século XIX. Os documentos que faziam

alusão a possível existência desse órgão da justiça, referem-se às provisões reais para os

ofícios de ouvidor, escrivão e meirinho da Ouvidoria do Rio Grande.217

Para o ofício de

ouvidor dessa capitania havia sido nomeado Pedro da Costa Faleiro,218

para o ofício de

escrivão dessa ouvidoria, João Pinheiro.219

Existe também a referência a uma provisão

efetuada pelo Capitão-mor do Rio Grande, Valentim Tavares Cabral (1663-1670), para

o ofício de meirinho da ouvidoria, porém não foi possível identificar o nome do

indivíduo. Assim, seria por meio do resultado dessas pesquisas que se poderiam

estabelecer análises mais acuradas sobre a realidade social, política, econômica,

administrativa e burocrática da Capitania do Rio Grande, no contexto macro da

monarquia portuguesa, entre os séculos XVII e XVIII.

216 Há pouco mais de um mês Thiago Alves Dias defendeu sua tese de doutoramento trabalhando a

questão do monopólio mercantil indireto, exercido pelo governo de Pernambuco, quando da anexação da

Capitania do Rio Grande, em 1701. Para saber mais, ver DIAS, Thiago Alves. Monopólio Indireto:

Colonização mercantil no norte do Estado do Brasil (c. 1710 – c. 1780). Tese (Doutorado em História

Econômica) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. 217

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659

– 1668). Fl(s). 43v, 54v; Ibidem., Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 28. 218

Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 28, 52v,

87. 219

Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659 – 1668). Fl. 43v.

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

107

Visto tudo isto, assevera-se que as interações entre a Câmara do Natal, por

meio da redação do expediente institucional efetuada pelos escrivães concelhios, havia

fomentado a formação de redes institucionais de circulação de informações

administrativas que estavam diretamente ligadas ao desenvolvimento da maquinaria

burocrática, em nível local, do Império português. Esses canais da comunicação

institucional colocavam os escrivães como peças fundamentais, visto que

desempenhavam funções estruturais, afinal tinha-se a necessidade de conformar as

sociedades ultramarinas aos ditames dos Impérios modernos, pincipalmente através de

vínculos escritos entre si.

Esses vínculos caracterizavam-se pelo sobrepeso da difusão e da durabilidade

desses mecanismos, os quais faziam falar aos ausentes, tornando-se ainda mais

complexo as relações culturais e políticas, responsáveis que foram pelo estabelecimento

de um sentido mínimo de unicidade e coesão do Império português, ao reduzir os

interesses sociais mais amplos e dispersos, recheados de peculiaridades locais e

regionais, as formalidades e estruturas de tipologias documentais rígidas e específicas,

porém onicompreensivas. O que fazia dos escrivães camarários além de tradutores de

códigos culturais para universos completamente díspares – a relação entre mundo

letrado e mundo não letrado –, porém coevos, os principais agentes cimentadores da

administração escritural, ao possibilitar, operacionalmente, as ligações entre os centros e

as periferias da monarquia portuguesa. Cuja trama, dar-se-ia, de modo relacional, como

havia afirmado Russell-Wood, sendo as questões de centro e de periferia relativos, os

quais dependiam do referencial que se tomava como base.220

1.4.3 A comunicação transcontinental via Câmara do Natal

Quanto ao nível transcontinental, ou seja, quando a Câmara do Rio Grande,

sediada no continente americano, estabelecia vias comunicativas com Lisboa, situada no

reino. Ressalta-se que essa comunicação possuía um caráter basicamente bilateral –

mesmo que, em alguns casos, de maneira unívoca, sobretudo quanto à relação entre a

220 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de

História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998.

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

108

Câmara do Natal e outras localidades da própria Capitania do Rio Grande – através da

troca de cartas e de outros documentos.

Mapa 04 - Comunicação transcontinental entre as cidades do Natal e Lisboa via

Câmara do Natal (1659-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

221

O exame da comunicação entre a Câmara do Natal e os demais espaços de

sociabilidade do Império, apurando-se a intensidade das correspondências entre aquela

edilidade e a Cidade de Lisboa, no nível transcontinental, cuja magnitude havia

adsorvido, percentualmente, entorno de 14% (270 documentos) do montante final da

interlocução entre a Capitania do Rio Grande e outras porções do Império. Atribui-se

essa valoração a questão de ser Lisboa o centro decisório de todas as políticas

221 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, com base no SIG Arcgis, a partir do conjunto: Fundo documental

do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759).

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

109

implementadas na América portuguesa e a sede do poder régio, de onde provinham as

determinações a serem seguidas no ultramar.222

Atentou-se, ainda, para o sentido de bilateralidade entre a comunicação

processada por àqueles escrivães, no intuito de verificar a intensidade da comunicação,

em meio a diferentes espaços sociais e geográficos. Porém, ressalva-se que a

intensidade desses vai e vêm de correspondências variavam em graus distintos. Abaixo,

no Gráfico 01, verifica-se, percentualmente, o grau proporcional da comunicação entre

a Câmara do Natal, na Capitania do Rio Grande, com outros espaços sociais do Império

luso.

Gráfico 01 - Percentual da correspondência entre a Câmara da Cidade do Natal e outros

espaços sociais do Império português (1659-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

223

222 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de

História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998. 223

Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir do conjunto: Fundo documental do IHGRN. Livro de

cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1759).

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

110

Como se pode verificar, mediante a análise do Gráfico 01, a Câmara do Natal

estabelecia comunicação com diversos espaços institucionais do Império português, por

meio da manuscrição de inúmeras tipologias documentais que funcionavam como

mecanismos de interação e interlocução, cuja responsabilidade, ora pela redação direta

dessa comunicação, ora pela transladação da mesma – espécie de transcrição das

informações contidas em documento avulso para o registro em livro institucional

específico –, eram da alçada dos escrivães concelhios, como abordado ao longo desse

capítulo, no qual se discorreu sobre as atribuições e competências dos escrivães

camarários no âmago das edilidades, pormenorizando, inclusive, os valores

estabelecidos pelo regimento desses oficiais quando da escrituração das várias

tipologias documentais de sua alçada. Desse modo, ressalta-se, ainda, que as

quantidades numéricas e, consequentemente, percentuais da correspondência entre

diferentes espaços sociais, espalhados pelos domínios da monarquia lusa, com a câmara

municipal da Cidade do Natal, havia se desenvolvido consoante a hierarquização

administrativa, que sobrepunha determinadas localidades a outras, em face da alocação

de redutos representativos do poder de mando institucional, administrativo, burocrático,

econômico, religioso e militar. Seria nesse sentido, que se processou a dinâmica de

comunicação – intra e intercapitanias e transcontinental – que havia interligado a

Câmara do Natal a diferentes localidades do Império, estabelecendo uma rede

institucional de circulação de informações administrativas, burocráticas, mas também de

ideias.

No nível intracapitania do Rio Grande, ou seja, através da comunicação

desenvolvida entre a Câmara do Natal e o restante dessa capitania, observou-se que o

percentual de 62% – que corresponde a 1337 documentos –, havia figurado,

percentualmente, em primeiro lugar nas relações sociais travadas pela Câmara do Natal

com outros espaços de sociabilidade da própria capitania, que pode ser explicando pelo

fato de que esse concelho foi o único existente por toda a Capitania do Rio Grande,

entre 1613 – data de sua fundação – até 1759 –, quando havia ocorrido a elevação de

alguns aldeamentos indígenas a categoria de vilas e, consequentemente, com a criação

de outros concelhos municipais.224

Essa questão estrutural explica a intensidade da

224 Para saber mais sobre a elevação dos antigos aldeamentos indígenas a condição de vilas, ver LOPES,

Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

111

correspondência entre a Câmara do Natal e as demais povoações do interior da

Capitania do Rio Grande, visto que foi o órgão administrativo responsável pela gestão

burocrática de toda essa capitania.225

Em face disso, a Câmara do Natal, por meio da atuação de seus oficiais – juízes

ordinários, vereadores, procuradores e escrivães camarários – tinham de dirigir,

gerenciar, corrigir e punir quase todos os assuntos inerentes à condição do próprio devir

social. Entretanto, a Capitania do Rio Grande, com uma enorme extensão territorial, não

possuía apenas Natal como um aglomerado urbano e populacional significativo –

mesmo que durante quase 200 anos tenha sido a única localidade com foros de

municipalidade.226

Constatou-se que existiam, de maneira dispersa, algumas povoações

que possuíam uma quantidade ínfima, porém expressiva, de pessoas vivendo de maneira

fixa em lugarejos situados as margens de importantes fluxos fluviais que entrecortavam

as terras daquela capitania. Essa situação havia acarretado na emergência de alguns

conflitos, bem como na necessidade de nomeação – por parte da Câmara do Natal – de

oficiais pedâneos, que residissem e percorressem essas localidades com vistas à

resolução de constantes embates que neles emergiam.

Nesse sentido, a nomeação de escrivães e de juízes de vintena, encarregados,

respectivamente, por prescreverem e dirimirem conflitos que ocorriam nas ribeiras,

povoações, arraiais e freguesias, situadas remotamente dos núcleos dos concelhos

municipais. A nomeação desses oficiais era de alçada dos juízes ordinários ou dos juízes

de fora, a depender da organização da justiça em cada vila ou cidade. Os escrivães e os

juízes de vintena eram os principais incumbidos pela imposição das leis e na execução

de diligências a territorialidades afastadas dos termos das municipalidades. Esses

oficiais pedâneos podiam, ainda, enviar agentes às prisões, bem como mandar prender

pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco,

Recife, 2005. 225

BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A câmara da cidade do Natal: o cotidiano administrativo de

uma câmara periférica (1720-1759). Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Natal, 2015. p. 33. 226

BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A câmara da cidade do Natal: o cotidiano administrativo de

uma câmara periférica (1720-1759). Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Natal, 2015. p. 30.

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

112

indivíduos envolvidos em disputas. Eram responsáveis também pela aplicação do

Direito Consuetudinário, valendo-se, muitas vezes, do próprio clamor do povo.227

Diversas localidades da Capitania do Rio Grande foram prodigamente providas

com juízes e com escrivães de vintena, em face da demanda pela resolução de conflitos,

mas com a finalidade precípua de aplicar pelas ribeiras e mais povoações, as leis da

justiça, dirimindo conflitos ou encaminhando-os aos juízes ordinários da Câmara do

Natal. Exemplo disso, e que se insere no interior das comunicações efetuadas entre a

Câmara do Natal e o restante da Capitania do Rio Grande, havia correspondido à

nomeação dos juízes de vintena, bem como de seus respectivos escrivães, para as

Ribeiras do Açú, do Apodi e do Mipibú, e de outras povoações como, por exemplo,

Utinga e Goianinha.228

Os escrivães camarários da Cidade do Natal eram encarregados

também de redigirem as provisões dos juízes e dos escrivães de vintena,229

as quais,

geralmente, eram determinadas pelos próprios oficiais concelhios – juízes ordinários ou

vereadores.230

Tais sítios, muitos dos quais voltados eminentemente para a atividade pecuária

que havia assolado os sertões das Capitanias do Norte,231

eram onde residiam e

trabalhavam inúmeros sesmeiros, que necessitavam do registro de suas propriedades

fundiárias – as sesmarias –, dos seus gados, dos ferros de marcar os animais criados no

esteio das fazendas e de outras atividades relativas à burocracia administrativa. Todas

essas demandas eram processadas pela Câmara do Natal e cabia, sobretudo, ao escrivão

concelhio, o registro manuscrito desses documentos.232

De modo grosseiro, foram essas

atividades que haviam levado ao estabelecimento de comunicação entre a Câmara do

Natal e outras localidades da capitania, originando um fluxo de informações

intracapitania do Rio Grande.

227 Para saber mais sobre a atuação dos juízes vintenários e o alcance de sua atuação na aplicação da

justiça, ver PIRES, Maria do Carmo. Em Testemunho de Verdade: Juízes de vintena e poder local na

comarca de Vila Rica (1736-1808). Belo Horizonte: UFMG, 2005. 228

Fundo documental do IHGRN. Livros de Cartas e provisões do Senado da Câmara. (1659 – 1815). 229

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Livro I, Tit. 82, § 14. 230

PIRES, Maria do Carmo. Em Testemunho de Verdade: Juízes de vintena e poder local na comarca

de Vila Rica (1736-1808). Belo Horizonte: UFMG, 2005. p. 25. 231

Para saber mais sobre o fenômeno da pecuária nos sertões das capitanias situadas ao norte da América

portuguesa, especificamente o caso da Capitania do Ceará, entre os séculos XVII-XIX, ver ROLIM,

Leonardo Cândido. Tempo das carnes no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de

carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690- c. 1802). Dissertação (Mestrado em História) -

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. 232

Fundo documental do IHGRN. loc. cit.

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

113

Nesse sentido, verifica-se que a densidade das interações sociais, travadas entre

a Câmara Municipal do Natal com outras localidades situadas na porção setentrional da

América portuguesa, bem como com o reino, através da manuscrição ou da trasladação

de diferentes tipologias documentais efetuadas pelos escrivães concelhios, constituem-

se, em distintos graus, relações de sociabilidade burocrática no interior da hierarquia

administrativa do universo de poderes luso-brasileiros. De acordo com Tiago Luis Gil,

que havia estudado as redes e as camadas de relacionamento, na região sul da América

portuguesa, entre os séculos XVIII e XIX, as diferenças de densidade das relações

sociais refletiam, como consequência disso, graus de interação e confiança semelhantes,

duas variáveis que estavam extremamente próximas entre si.233

Para o caso da Câmara

do Natal, a intensidade da troca de correspondências não refletia, necessariamente, uma

questão de confiança entre os diferentes polos das relações de sociabilidade, mas sim de

práticas institucionais que eram moldadas pela própria hierarquia administrativa de

disposição dos poderes e, portanto, não variando ao sabor das circunstâncias. Porém,

essas práticas institucionais, como se viu anteriormente, não eram estáticas ou imóveis,

visto que possuíam uma relativa dinamicidade, alterando-se ou adaptando-se conforme

as demandas propugnadas por situações estruturais. Exemplo disso foi à demissão da

jurisdição da Capitania do Rio Grande do Governo Geral da Bahia,234

cuja

responsabilidade havia passado para os governadores e capitães generais de

Pernambuco, devido às difusas distâncias que separavam aquelas duas esferas, o que

dificultava a eficiência da gestão administrativa, no esteio da qual se tinha as disputas

por representação de poder.

Desse modo, aplicando-se o conceito de broker ou de intermediário,

precipuamente discutido por E. Bott,235

cujo papel remeter-se-ia a função de mediador

entre diferentes grupos sociais de relacionamento, pode-se pensar o escrivão concelhio

da Câmara do Natal enquanto um broker ou intermediário, o qual por meio da

manuscrição de diversas tipologias documentais havia interligado diversos espaços

233 GIL, Tiago Luis. Redes e camadas de relacionamentos na economia: metodologias para o estudo da

confiança mercantil na América Portuguesa do Antigo Regime. In: Revista de Indias, 2015, vol. LXXV,

n. 264, p. 421. 234

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de Cartas e Provisões do Senado da Câmara. Livro 1

(1659 – 1668). Fl. 15v. 235

Para saber mais sobre a ampla discussão sobre a funcionalidade do broker ou do intermediário na

interligação de diferentes grupos sociais, ver BOTT, E. Família e rede social. Papéis, normas e

relacionamentos externos em famílias urbanas comuns. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

114

sociais de relacionamento administrativo do Império português à Câmara do Natal. Essa

atuação dos escrivães camarários do Natal forjava o que se denomina conceitualmente

de “redes densa” de relacionamento. Segundo Tiago Luis Gil, essas redes densas

constam de relacionamentos sociais não homogêneos, o que significa que nem todos os

implicados em uma rede se conhecessem entre si, necessariamente, para que ela pudesse

existir, e aqueles que interagem entre si, não o faziam com a mesma intensidade,

cabendo ao intermediário – ou broker – a tarefa de conectar ou integrar tais grupos.236

Ao abstrair-se dessas conceituações, corroboram-se, mais uma vez, que aos

escrivães coubera esse papel de intermediário entre diferentes localidades e órgãos

administrativos existentes pela monarquia portuguesa. Todavia, isso não significa que

todos os componentes dessa rede densa de relacionamentos institucionais se

conhecessem entre si. Possivelmente, os escrivães da Câmara do Natal conheciam

apenas os demais oficiais concelhios daquela edilidade, os ouvidores gerais da Paraíba e

os capitães-mores do Rio Grande, mas, quase nunca, o rei, os governadores gerais ou

vice-reis do Estado do Brasil, o governador e capitão general de Pernambuco, dentre

outros agentes sociais embutidos nessa rede de correspondências que havia interligado a

Câmara do Natal a outras partes do Império luso. A tabulação de uma vasta quantidade

de informações em gráficos viabiliza a percepção de regularidades, de elementos e de

problemas de forma prática e utilitária, características funcionais essas que não podiam

ser viáveis nos mais eloquentes textos escritos.237

Partindo-se desse princípio

estabeleceu-se a tabulação dos dados constantes nos Livros de Cartas e Provisões do

Senado da Câmara do Natal, referentes às trocas de comunicação entre os oficiais da

Câmara do Natal, por meio da redação institucional e burocrática dos escrivães, com

outros agentes do poder situados em diversas espacialidades do mundo luso americano

da época que, juntos, formaram a monarquia portuguesa.

A partir disso, montaram-se os gráficos e os mapas de redes relacionais de

circulação de informações institucionais e burocráticas, entre a Câmara do Natal e

outras diferentes localidades, obedecendo-se, para isso, a hierarquização em níveis

espaciais, que eram interconectados por meio da comunicação escrita, processada pelos

escrivães concelhios do Natal, entre 1659-1759. Foi a partir disso, que se conseguiu

236 GIL, Tiago Luis. op. cit., p. 422.

237 GIL, Tiago Luís. Formas alternativas de visualização de dados na área de História: Algumas notas de

pesquisa. In: Revista História, São Paulo, n. 173, jul./dez., 2015, p. 432.

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

115

sistematizar os dados referentes às diferentes localidades, oficiais, ministros e

instituições que mantinham diálogo com a Câmara do Natal, em assuntos relacionados à

administração burocrática, possibilitando o estabelecimento de redes sociais densas de

relacionamento ao demonstrar a circulação de informações e de ideias no interior dessas

redes.

Visto tudo isto, depreende-se da análise dos títulos referentes aos escrivães e

aos tabeliães nas Ordenações Filipinas (1603-1917), bem como dos aditamentos feitos

a estes, que esse corpus jurídico havia se caracterizado, por um lado, pela transladação

dos preceitos existentes no código predecessor, na revisão e discussão deste e, por

outro, pelo estabelecimento de uma lógica objetiva no que tangia as diretivas de cada

ofício, ao tornar mais claros os direitos e os deveres de cada ofício, cargo ou função no

interior daquilo que António Manuel Hespanha havia denominado de “sociedade

corporativa”, devido à imprescindibilidade de cada grupo social para o funcionamento

adequado de toda a sociedade.238

Percebeu-se, ainda, que o Código Filipino havia processado o enquadramento

funcional do ofício de escrivão ao âmago da justiça, em suas quatro esferas

jurisdicionais: local, senhorial, periférico e palatino. Tudo isso havia servido para

conceder maior inteligibilidade e dinamicidade à atuação do oficialato político e

administrativo, tanto no reino quanto no ultramar, ao reger, à luz de uma jurisprudência

mais objetiva que as predecessoras, os parcos cabedais humanos que tornaram possível

a existência do próprio Império.

Depreende-se dessa análise, que o ofício de escrivão foi construído

historicamente, em face das buscas eventuais por parte da população – a questão da

escrituração de documentos de compra e venda de terras, inventários e aforamentos, por

exemplo –, mas também ao sabor de circunstâncias sociais mais estruturais – como, por

exemplo, a expansão marítima e as conquistas no ultramar – e pela necessidade básica e

238 HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 299-300.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

116

vital do estabelecimento de uma comunicação política efetiva – no contexto dos

Impérios marítimos.

Observou-se, nomeadamente no decurso das “grandes navegações”, que a

expansão territorial lusitana, levada a cabo por meio de inúmeras conquistas, haviam

colocado sob a jurisdição da Coroa de Portugal terras, homens e modos de viver

díspares. Disso resultava a necessidade de regulamentar, bem como de se estabelecer

um meio de comunicação eficiente, que permitisse integrar tão longínquas e distintas

possessões aos anseios metropolitanos, cuja viabilização foi favorecida através da

implantação do sistema escrito e, consequentemente, devido ao corpo de oficiais por ela

responsável: os escrivães camarários.

Por fim, nesse ínterim, averiguou-se que a comunicação escrita – ressalvadas

algumas limitações e certos exageros –, havia sido alçada à condição privilegiada de

mecanismo político de primeira grandeza, ao costurar, por assim dizer, às conquistas

entre elas e estas ao reino. Isso havia se tornado viável por meio do desempenho dos

escrivães camarários que, ao se inserirem em tal processo, haviam figurado na qualidade

de intermediários, pois eram os responsáveis por manuscreverem as várias tipologias

documentais – cartas, bilhetes, alvarás, despachos, etc. –, indispensáveis ao cotidiano

administrativo, social e político do Império. Essas demandas contribuíram para que os

escrivães concelhios se transformassem em tradutores dos códigos morais e valorativos

do Antigo Regime, posto que por suas mãos passassem informações e deliberações

advindas do reino para as conquistas e vice-versa. Desse modo, o ofício de escrivão da

câmara, de acordo com António Manuel Hespanha, perfez um grupo que representava

pouco mais de 40% dos oficiais da administração em nível local, fazendo do Império

português nada “[...] mais do que um império ‘de papel’, em que a correspondência do

rei, dos vice-reis, dos governadores, dos capitães, substituíram laços políticos mais

efetivos”,239

e, mais que isso, de toda a sociedade do Antigo Regime português.240

Ademais, depreende-se, mediante a documentação consultada, que algumas das

atribuições estipuladas pelas Ordenações Filipinas (1603), aplicaram-se a realidade

vivenciada e as práticas organizacionais desenvolvidas pelos escrivães camarários no

cotidiano administrativo e burocrático do Concelho do Natal. Outras prescrições,

239 HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 291. 240

Ibidem.

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

117

porém, não foram possíveis de serem verificadas devido, sobretudo, aos limites das

fontes disponíveis. Constatou-se, ainda, o envolvimento dos escrivães camarários em

atividades burocráticas provenientes das especificidades econômicas regionais que

haviam assinalado a Capitania do Rio Grande, diferenciando-se das demais capitanias

como, por exemplo, a criação de gado.

Para o caso da Câmara do Natal, o estabelecimento dessa instituição foi

efetivada devido às inúmeras queixas que El’ Rey havia recebido de seus vassalos

acerca das atuações despóticas e indevidas dos capitães-mores. Tais circunstâncias

estruturais, do mesmo modo, haviam balizado a criação dos ofícios de escrivão

camarário. Como se conferiu na análise do regimento de Gaspar de Souza, em 1613, o

principal objetivo com a efetivação do ofício de escrivão concelhio, na Cidade do Natal,

foi o estabelecimento de comunicação entre os moradores do Rio Grande com outras

instâncias, sobretudo ligadas à justiça régia.

Nesse sentido, se discutiu também os limites e o alcance da comunicação

levados a cabo pelos escrivães da câmara, de modo geral, e do Concelho de Natal, de

maneira mais específica. Para isso, analisaram-se as atribuições que haviam competido,

pelo menos teoricamente, a esses oficiais, a partir do exame do regimento dos escrivães

das câmaras que constavam nas Ordenações Filipinas, datado de 1603. Vislumbrou-se,

nesse documento jurídico, que a função basilar dos escrivães concelhios remeter-se-ia a

condição de difusores da comunicação manuscrita, eleita como o mecanismo

institucional que havia possibilitado a formação e o desenvolvimento do Império

português, através da virtualidade da presença escrita, transmutada nas mais diferentes

tipologias documentais, cuja redação direta ou trasladação competia aos escrivães

camarários. Averiguou-se, em seguida, que mesmo sendo os responsáveis principais

pela formação e sustentação das vias de comunicação intra e interinstitucional pelo

Império, os escrivães das câmaras não procediam na realização dessas tarefas de modo

aleatório, mas que deviam ser supervisionados por outros oficiais concelhios como, por

exemplo, os procuradores ou vereadores, em nível local, e pelos ouvidores gerais da

Paraíba, em nível mais amplo.

Apuraram-se, ainda, quais foram, particularmente, os tipos documentais sob a

alçada de manuscrição dos escrivães camarários, por meio da análise do regimento dos

escrivães concelhios. Em meio a isso, distinguiram-se também os valores que foram

auferidos como emolumentos dessa prática de escrituração pelos concelhos. Em face

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

118

disso, tabularam-se, graficamente, as tipologias documentais redigidas pelos escrivães

concelhios, bem como os valores de cada um desses documentos, provenientes de dois

diferentes fundos documentais. No primeiro deles, um preceito das Ordenações

Filipinas (1603-1917), alusivos tanto ao que levavam de seus exercícios os escrivães

das câmaras, como os escrivães da Fazenda Real. Em seguida, sistematizaram-se os

manuscritos oficiais administrativos, com seus respectivos valores, para o caso da

Câmara do Natal, observando-se, de modo comparativo, as alterações valorativas entre

os regimentos jurídicos e os termos de vereação da edilidade do Natal, nos quais

constavam os valores atualizados que custavam para a emissão de cartas patentes, cartas

de provisões, dentre outras tipologias documentais.

Nesse ínterim, corroborou-se com a ideia de que os escrivães das câmaras

portuguesas caracterizavam-se como elementos intermediários nas conexões relacionais

entre os centros e as periferias da monarquia lusa, ao serem mediadores entre os súditos

e as autoridades e as autoridades entre si. Estas autoridades podiam ter diferentes

jurisdições e atuarem em localidades distintas do Império português. Exemplo disso

foram às redes de relações institucionais e burocráticas, travadas entre a Câmara do

Natal e outros espaços sociais e administrativos do Império português, por meio da

redação de cartas, mandados, provisões, bilhetes e uma miríade de outros instrumentos

documentais. Constatou-se, ainda, que aquelas relações concêntricas não fossem apenas

processadas pelos escrivães no sentido ultramar-reino, mas também intra e

intercapitanias. Apurou-se isso, por meio da verificação de dados e informações sobre

redes sociais de comunicação entre a Câmara do Natal e outras instâncias

administrativas, ora presentes na própria Capitania do Rio Grande, ora situadas nas

vizinhas Capitanias da Paraíba e de Pernambuco, mas também localizadas de maneira

mais distal como, por exemplo, em Salvador, na Capitania da Bahia, ou até mesmo no

reino, essencialmente com a cidade de Lisboa.

Enfim, reiterou-se nesse capítulo o papel de intermediários ou de broker’s dos

escrivães camarários, situação essa que fez dos agentes históricos que haviam ocupado

aqueles ofícios, privilegiados instrumentos de conhecimento e, consequentemente, de

poder, inseridos, pois, nas engrenagens administrativas e burocráticas do Império. Essa

funcionalidade dos escrivães concelhios lhes haviam permitido angariar poder, prestígio

e status, através do recebimento de mercês como, por exemplo, terras – sesmarias – e

patentes militares das ordenanças. Por fim, assevera-se que foi graças a esse vai e vem

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

119

de correspondências, com a troca de inúmeras tipologias documentais redigidas pelos

escrivães concelhios, que havia se tornado possível à existência e a viabilidade do

Império português, recortado por distâncias longas e incomensuráveis, separando as

diversas possessões, física e temporalmente, mas cuja presença transmutava-se pelas

virtualidades da escrita.

No próximo capítulo, pretende-se esboçar o perfil social dos escrivães da

Câmara do Natal, ao elencar o recebimento de sesmarias e chãos de terra, dentro e fora

da Capitania do Rio Grande, bem como o recebimento de patentes militares das

ordenanças locais, se possuíam ou não escravos – tanto negros, quanto índios – e se

eram possuidores de gados, tanto vacum como cavalar, constituindo, ao todo, os bens

de raiz daqueles agentes. Traçar-se-á, também, a circularidade dos homens que

assumiram a escrivania da Câmara do Natal em outros ofícios dessa edilidade, assim

como, possivelmente, em outras funções dentro da administração lusa americana.

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

120

CAPÍTULO II - HOMENS DE PRÉSTIMOS E CONSIDERÁVEIS CABEDAIS:

O perfil social dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759)

“Domingos Amado, Capitão Mayor da Cap.nia

do Rio Gr.de

e G.or

da Fortaleza dos Sanctos

Reys Magos [...] Faço saber aos que esta minha

carta patente virem [...] que avendo respeito aos

serviços prestados por Caetano de Melo e

Albuquerque que tem servido a Sua Majestade

[...] com louvável procedimento e ser hum

dos homens nobres desta Capitania [...]

o eleijo e nomeyo Capitão de Infantaria de

Ordenança do destricto desta cidade [...]”.

(Capitão-mor Domingos Amado, Natal, 21/02/1717).1

A discussão sobre o conceito operacional de elite, especialmente relacionada

ao contexto do Antigo Regime, subsidiou e incrementou diversas polêmicas devidas ao

alcance, significado e incongruências derivadas dessa categorização. De acordo com

Nuno Gonçalo Monteiro, com o crescimento progressivo das atividades desenvolvidas

no meio urbano ocorreu, igualmente, o alargamento dos setores terciários a elas

associados, a que também equivaleu à ampliação do conceito de nobreza.2 Assim, a fim

de se evitar a banalização e a consequente descaracterização do “ser nobre”, a doutrina

jurídica havia fomentado a denominação de “estado intermediário” ou “estado

privilegiado”, situado entre a antiga nobreza e o grupo mecânico.3

Nuno Gonçalo Monteiro defendeu, ainda, que as elites locais, no Portugal dos

finais do Antigo Regime, ou a “nobreza institucional” – categoria atribuída aos

indivíduos que faziam parte dos concelhos municipais –, ao compor os ofícios da

governança concelhia não correspondiam, necessariamente, àqueles indivíduos nobres

na acepção direta do termo, visto que as formas de recrutamento desses oficiais haviam

1 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720

– 1728). Fl. 82v-83. 2 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO,

José (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). vol. 4. Lisboa: Editorial Estampa,

1993. p. 249-283. 3 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América

portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Brasiliense, n. 2, nov., 2005, p. 28.

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

121

variado de forma significativa de localidade para localidade, e que teria aberto vetores

de identificação também distintos. Diante disso, deve-se valorizar a diversidade

expressa pela base de recrutamento dos oficiais concelhios, pois, “não era o estatuto

geral delimitado pela legislação, mas sim os usos de cada terra e as relações de força no

terreno que definiam o limiar de acesso às nobrezas camarárias”.4

Para Laima Mesgravis, em seu estudo Os aspectos estamentais da estrutura

social do Brasil Colônia, a possessão Americana portuguesa havia, pelo menos nos

primeiros séculos da conquista, atraído parquíssimos povoadores que pertenciam, de

fato, à nobreza de sangue reinol. Os espaços de conquista, na América e nas demais

possessões do ultramar, não eram o habitat da primeira nobreza e nem da nobreza de

sangue, conceitos não divergentes, porém intimamente relacionados.5

Nesse sentido, ressalta-se, de acordo com Gabriel Parente Nogueira, que

investigou as práticas de nobilitação processadas no âmago da Câmara Municipal da

Vila de Santa Cruz do Aracati, na Capitania do Siará Grande, entre 1748 e 1804, que se

deve compreender que os estudos dos concelhos presentes em localidades, tais como

Salvador, Recife e Rio de Janeiro, não devem ser aplicados para as demais partes da

América lusa, visto que as especificidades que orientaram as dinâmicas sociais

cotidianas em cada uma dessas cidades haviam obedecido, sobremaneira, a elementos

diversos, principalmente quando se atenta para os itens fundamentais vinculados às

produções econômicas locais,6 as quais se acrescenta o status, ora de centro, ora de

periferia, que essas mesmas espacialidades assumiram nas concêntricas relações entre

reino e as conquistas.7 Ainda segundo Gabriel Parente, os grupos sociais que estiveram

direta ou indiretamente vinculados às relações de força do mando institucional do poder,

a depender das especificidades regionais, também foram outros.8

Dessa forma, em consequência das duas variáveis – tipos de produtos para a

economia e do status espacial –, cada localidade possuiu perfis sociais distintos, o que

4 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo

Regime”. In: Análise Social, n. 141. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 1997, p. 356. 5 MESGRAVIS, Laima. Os aspectos estamentais da estrutura social do Brasil Colônia. In: Estudos

Econômicos, n. 13. São Paulo: USP/IPE, 1983. p. 803. 6 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: práticas de nobilitação e

hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado e

História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. p. 147. 7 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de

História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998. 8 NOGUEIRA, op. cit., p. 147.

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

122

fazia com que os integrantes de cada edilidade se diferenciassem na mesma proporção.

Assim, pensar os escrivães concelhios da Câmara Municipal da Cidade do Natal, entre

1613 e 1759, remeter-se-ia a compreendê-los enquanto indivíduos que estiveram

situados no interior de uma instituição concelhia periférica, responsável pela gestão da

Capitania do Rio Grande, onde a pecuária caracterizava-se como o principal produto na

pauta de exportação intracapitania e intercapitanias.9 Esses dois fatores adquirem ainda

maior sobrepeso quando se verifica a posse de terras – sesmarias – e de gados – vacuns

e cavalares – pelos mesmos escrivães camarários, como se verificará adiante. Salienta-

se, com isso, que nobreza e poder eram dois valores dominantes e essenciais na cultura

política do Antigo Regime.10

Em cujo seio social caracteristicamente rural e tradicional,

tem na posse da terra um mecanismo político de primeira grandeza, como fator do

fundamento material do poder e da diferenciação social e, em face dessa estratificação,

a atribuição de um conjunto de direitos e de deveres em função de seu estado.11

Para José Damião Rodrigues, ao analisar as Nobrezas locais e a apropriação

do espaço, no reinado de D. Manuel, teria sido a elevação de alguns lugares à categoria

de vilas, a fase cimeira da gênese das nobrezas locais.12

Outro fator de formação de uma

elite local, apontado por Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo, ao debruçar-se

sobre a governança e o poder local em Alagoas, no sul da Capitania de Pernambuco,

entre 1654-1751, no contexto da extensiva produção açucareira dessas paragens, havia

sido resultante das novas condições sociais que emergiram no período post bellum, com

o fortalecimento da elite local, que era representada nos diversos ofícios da Câmara de

Alagoas do Sul e nos demais relacionados à governança da terra.13

Foi na guerra contra

os holandeses que a nobreza de Olinda, na Capitania de Pernambuco, também passou a

insistir em uma condição e em um tratamento diferenciados, motivos que eivaram

atitudes arrogantes e, muitas vezes, audazes, de pedidos de privilégios, em face da

9 Para saber mais sobre a dinâmica da economia da cidade do Natal, sobretudo relacionada a pecuária, ver

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 4. ed. Natal: Flor de Sal,

2015; CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Fundação José

Augusto, 1984; CASCUDO, Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: Prefeitura Municipal, 1947;

DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte (1760-1821).

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011. 10

RODRIGUES, José Damião. Histórias Atlânticas: Os Açores na Primeira Modernidade. Ponta

Delgada: Centro de História de Além-mar, 2012. p. 83. 11

Ibidem., p. 83-84. 12

Ibidem., p. 86. 13

CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul

de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,

Recife, 2014. p. 78.

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

123

prestação de serviços nos vários conflitos para a restauração do domínio português nas

Capitanias do Norte da América portuguesa.14

Para Ronald Raminelli, depois da guerra

empreendida contra os flamengos, muitos ofícios foram concedidos a indivíduos que

atuaram nas diversas fases desse conflito, como que em retribuição pelos serviços

prestados a Coroa lusitana.15

No caso da instauração de uma edilidade na Vila do Recife, no século XVIII,

George Félix Cabral de Souza aponta a preponderância econômica que aquela vila

passou a fruir diante da possível decadência da Cidade de Olinda.16

Desse modo, a

composição institucional camarária, bem como da elite do Recife, no século XVIII, era

representada por ricos mercadores reinóis – mascates – e por endividados senhores de

engenho – nobres.17

Em Salvador, como estudado por Avanete Pereira de Sousa, no

século XVIII, a elite local dessa cidade era formada pelos indivíduos que exerceram as

funções de vereador e de procurador, composta, fundamentalmente, por burocratas,

senhores de terra e, de maneira diminuta, por grandes comerciantes.18

Diferentemente

da Câmara Municipal de Vila Rica onde, segundo Luiz Alberto Ornellas Rezende, a

elite local passou a compreender que, a partir de 1714, o controle das prerrogativas

concelhias era essencial para a consolidação de seu poder na região, constituída por uma

profunda perturbação política e social de indivíduos paulistas, reinóis, baienses e

cariocas, embebidos pela idealização da riqueza rápida da mineração do ouro.19

Porém,

ressalta-se que, de acordo com Roberta Giannubilo Stumpf, a sociedade mineira não

fora estruturada apenas consoante critérios hierárquicos locais, visto que vários de seus

componentes lançaram mão das tradicionais estratégias de distinção social, por meio de

solicitações de mercês régias como, por exemplo, de hábitos das ordens militares.20

14 MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos. Nobres contra mascates. Pernambuco (1666-

1715). São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 141-142. 15

RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: Monarcas, Vassalos e governo a distância. São Paulo:

Alameda, 2008. p. 66. 16

SOUZA, George Felix Cabral de. Os Homens e os Modos da Governança. A câmara Municipal do

Recife no século XVIII. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,

Recife, 2003. p. 99-115. 17

Ibidem., p. 122-123. 18

SOUSA, Avanete Pereira. Poder político local e vida cotidiana: A Câmara Municipal da cidade de

Salvador no século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 1996. p. 76, 59. 19

REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. A Câmara Municipal de Vila Rica e a consolidação das elites

locais, 1711-1736. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

p. 15, 27. 20

Para saber mais sobre as estratégias empreendidas pelos moradores das Minas setecentistas para a

obtenção de distinções sociais, ver STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

124

Visto tudo isto, presume-se que foi por meio da ocupação dos ofícios

concelhios e da prestação de inúmeros serviços relacionados às municipalidades, que as

elites locais forjaram-se e fizeram-se representar, segregando e hierarquizando pessoas e

interesses familiares e clientelares. Constatou-se, ainda, por meio dessa revisão

bibliográfica, que essas elites locais eram constituídas por senhores de terra e de

escravos, bem como por indivíduos que haviam servido nos vários conflitos que

afligiram o domínio português pela América em momentos distintos, mormente na

Guerra de Restauração que opusera luso-brasileiros aos flamengos, entre 1624 e 1654,

caracterizando os vitoriosos do post bellum. Para o caso da Capitania do Rio Grande, no

que tange ao perfil social dos escrivães camarário da Cidade do Natal, a guerra contra os

neerlandeses e a posse de terras, bem como de outros cabedais, figuraram como

elementos definidores, como se verá adiante, até mesmo na conquista da propriedade

desse ofício. Ressalta-se que outro conflito que demarcou o perfil desses escrivães foi à

participação na Guerra do Açú,21

no contexto maior da Guerra dos Bárbaros, que havia

envolvido os sertões da Capitania do Rio Grande e das demais Capitanias do Norte, bem

como da Bahia, no período que foi de 1650 até 1720.22

Reitera aquela hipótese, conforme análise de Carmen Alveal, que foi no

período da Restauração, ou seja, após o domínio batavo sobre as Capitanias do Norte da

América lusa, que se efetivou uma política de colonização de caráter mais definitiva na

Capitania do Rio Grande, com o consequente incentivo por parte das autoridades régias

e locais. Nesse ínterim, o combate militar aos indígenas que persistiam na resistência à

dominação portuguesa, atrelou-se a distribuição de terras, com a finalidade expressa de

garantir a ocupação e o povoamento do território. Como formas de incentivo, a essa

trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese

(Doutorado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2009. 21

Para o caso específico do conflito ou Guerra do Açú, como ficou mais conhecido, que envolveu os

impactos da territorialização dos sertões da Capitania do Rio Grande, opondo índios contra os

colonizadores luso-americanos, ver SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens

e relações de poder na territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em

História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. 22

Para saber mais sobre esse conflito que envolveu todas as capitanias do Norte e a da Bahia, ver

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e colonização no sertão nordeste do Brasil

(1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da EDUSP, 2002; PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra

dos Bárbaros: resistência e conflito no Nordeste Colonial. Recife: Fundap/CEP, 1990.

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

125

política associaram-se outras medidas como, por exemplo, a concessão de patentes

militares e a ocupação dos ofícios concelhios.23

Ainda de acordo com Carmen Alveal, foram esses sesmeiros-militares que

ocuparam, de fato, os principais postos ou ofícios no interior da Câmara Municipal do

Natal, na segunda metade do século XVII, formando a elite política e senhorial ou a

elite local da Capitania do Rio Grande. Essa autora sustenta, ainda, que a Câmara do

Natal projetou-se como um espaço de poder utilizado como uma via alternativa por

moradores de outras localidades, sobretudo de Olinda e de Felipéia, que não

conseguiam se inserirem nos circuitos sociais de poder dessas localidades que, há

muito, já estavam estabelecidos.24

Isso corrobora com a afirmação de Roberta

Giannubilo Stumpf, segundo a qual todos aqueles que compunham uma determinada

família deviam, necessariamente, estarem empenhados para aumentar o cabedal

material e simbólico de suas estirpes e, para isso, os integrantes de uma mesma

linhagem precisavam aceitar tacitamente seus destinos.25

Salienta-se, consoante às perspectivas esboçadas por José Damião Rodrigues,

que os agentes que haviam composto os elencos dos ofícios de cada concelho municipal

não possuíam, geralmente, a mesma origem social e econômica. Essa diretriz refletir-se-

ia diametralmente nas fronteiras que demarcavam cada um dos inúmeros microcosmos

camarários e institucionais. Porém, assevera aquele autor, que o fato de pertencerem ao

núcleo das edilidades, representava um fator de clivagem e de distinção social, a

separarem aqueles que pertenciam ao grupo da governança, em cada localidade, do

restante da população.26

Essa situação fazia com que os componentes desse grupo

consistissem na “face visível do poder e de serem olhados como os ‘donos do poder

local”.27

Carmen Alveal, entretanto, deteve-se a deslindar o perfil social dos indivíduos

que haviam ocupado, através de eleições, os ofícios de juiz ordinário, vereador e

23 ALVEAL, Carmen. A Formação da Elite na Capitania do Rio Grande no pós-Restauração (1659-1691).

In: Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime. Lisboa, 18-

21, maio, 2011. p. 2. 24

Ibidem., p. 4. 25

STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações

de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Universidade de

Brasília, Brasília, 2009. p. 50. 26

RODRIGUES, José Damião. “As elites locais no Açores em finais do Antigo Regime”. In:

ARQUIPÉLAGO HISTÓRIA. 2ª série, IX. 2005, p. 365. 27

Ibidem., p. 360.

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

126

procurador da Câmara do Natal, entre os anos de 1659 e 1691. A esses oficiais

acrescenta-se, com a presente pesquisa, o perfil social dos escrivães concelhios do

Natal, entre 1613 e 1759. Por fim, reitera-se que as qualidades sociais dos homens que

haviam acorrido para a América portuguesa eram, em geral, de indivíduos que estavam

ligados à nobreza rasa e aos plebeus reinóis, os quais não encontravam oportunidades

para ascenderem socialmente na escala hierárquica do Antigo Regime, e a América

figurava como um lugar propício para a avidez de conquista de notoriedade e de

reconhecimento régio. Desse modo, o ingresso nas elites locais predispunha a esses

indivíduos o acesso às condições favoráveis de enobrecimento. Esses elementos eram

constantemente atraídos pelas inúmeras políticas de incentivo à mobilidade para a

colônia, para servirem nas armas, na burocracia ou para a exploração das riquezas

naturais dessas localidades, ocupando espaços de poder, prestígio e status, em nível

local, gestando famílias e abrilhantando os próprios sobrenomes, adquirindo

reconhecimento social e assegurando aos seus descendentes méritos pessoais e

familiares que retroalimentavam as glórias de ascendentes e descendentes de uma

mesma Casa.28

A seguir, deter-se-á na abordagem do perfil social dos homens que haviam

ocupado o ofício de escrivão da Câmara do Natal, no período que foi de 1613 até 1759.

Destaca-se, ainda, que o exercício desse ofício constituiu-se como vetor de inserção

desses indivíduos no rol da elite local da Cidade do Natal e, consequentemente, da

Capitania do Rio Grande, visto que o concelho dessa municipalidade foi à única

instituição camarária de toda aquela capitania durante aquele período. Para isso,

utilizou-se dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672 até

1815); dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659 à 1760);

dos Documentos Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referentes as

Capitanias do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Ceará (séculos XVII-

XVIII); dos documentos presentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (séculos

XVII-XVIII); dos registros do Livro de Batismo de Cunhaú, São José de Mipibú,

Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714); dos registros dos Livros de Casamento

da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785); das Cartas de

28 STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações

de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Universidade de

Brasília, Brasília, 2009. p. 51-52.

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

127

Sesmarias presentes na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso Brasileiro); dos

Documentos Históricos da Biblioteca Nacional; e do vol. 9 do Livro de Registros de

Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722); e do Livro de Óbitos da Igreja

de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal (década de 1750).

Esses treze conjuntos documentais, acima expostos, foram analisados por meio do

cruzamento intensivo de dados, a partir do método indiciário e onomástico, proposto

por Carlo Ginzburg.29

Com a análise do perfil social dos escrivães da Câmara Municipal do Natal

possibilitar-se-ia uma compreensão mais acurada dos padrões societários vigentes no

Antigo Regime europeu, que foram transplantados para as possessões d’além-mar

juntamente com os homens e as instituições que atravessaram o Oceano Atlântico, ao

longo dos séculos XVI e XVIII, caracterizando a elite local da Capitania do Rio Grande.

Soma-se a isso, que o estabelecimento do perfil social dos escrivães concelhios do Natal

abriu margem para uma compreensão da atuação social e institucional desses agentes no

próprio exercício do ofício.

Ressalta-se que as táticas de promoção social que os indivíduos lançaram mão

variaram para cada uma das partes que haviam composto as possessões lusas na

América, porém, como se faz necessário compreender as especificidades que

envolveram as diferentes porções da América portuguesa, bem como de suas elites

coloniais, como afirma a própria historiografia, percebeu-se com o estudo dos escrivães

concelhios da Cidade do Natal, que as trajetórias individuais desse grupo, mormente

associado às elites locais, assemelharam-se em alguns aspectos as demais elites, que

independentemente das paragens aonde foram delineadas, pode-se ressalvar algumas

peculiaridades. Seria essa diversidade sociocultural, de acordo com Adriano Comissoli,

que havia permeado as diferentes câmaras espraiadas pelo ultramar, com diferentes

realidades coetâneas pela América portuguesa afora, e que ainda movimentam e

impulsionam a investigação do perfil social de seus integrantes.30

29 Utilizando-se de princípios de outras ciências para enriquecer a análise histórica, ver GUINZBURG,

Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. CAROTTI, Frederico (trad.). São Paulo:

Companhia das Letras, 1989. GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado

historiográfico. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989. 30

COMISSOLI, Adriano. “Tem servido na governança, e tem todas as qualidades para continuar”: perfil

social dos oficiais da Câmara de Porto Alegre (1767-1828). In: Topoi, v. 13, n. 25, jul./dez. 2012, p. 2.

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

128

2.1 As origens dos escrivães concelhios do Natal

De acordo com o levantamento efetuado a partir do cruzamento dos treze

conjuntos documentais mencionados supra, verificou-se que o ofício de escrivão da

Câmara do Natal fora ocupado por 42 indivíduos, em um período de 146 anos, que foi

de 1613 até 1759. Ressalta-se, ainda, que esses agentes ocuparam aquela escrivania

mediante diferentes tipologias de provimento, como se verá adiante, as quais variaram

significativamente ao sabor de circunstâncias estruturais e conjunturais, com durações

também distintas. A partir dessa informação subsidiária, buscar-se-á nesse capítulo

reconstruir o perfil social dos homens que ocuparam o ofício de escrivão do Concelho

do Natal e, para isso, empregar-se-á o método prosopográfico, posto em prática por

Peter Burke, no clássico Veneza e Amsterdã: Um estudo das elites do século XVII,31

no

qual esse autor havia se esmerado em elaborar estudos de biografias coletivas de modo

crítico, por meio da qual foi possível assegurar que as ações políticas resguardam em

suas sombras semoventes interesses pessoais ou de grupos.32

Abaixo, observa-se na

Tabela 03 a lista nominal dos 42 indivíduos que serviram no ofício de escrivão do

Senado da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759.

31 BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. EICHENBERG, Rosaura

(trad.). São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. 32

Ibidem., p. 8.

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

129

Tabela 03 - Lista nominal dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

33 * Proprietário da

escrivania camarária do Natal sem efetivo exercício.

33 Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira, através dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da

Câmara do Natal (1659-1759), do Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1759) e do Livro de Registro de Consultas Mistas do Concelho Ultramarino (1713-1722).

TABELA 03. Lista nominal dos escrivães da Câmara do Natal

por tipologia do provimento (1613-1759)

Afonso de Gois Pereira

Alexandre de Melo e Pinto

Alexandre Lopes

Antônio Barbalho

Antônio Barbalho e Abreu

Antônio Lopes de Lisboa

Antônio Lopes Pereira

Antônio Pereira Chaves

Ascenco de Gois Pereira

Bento Ferreira Mouzinho

Caetano de Melo e Albuquerque

Carlos da Rocha

Diogo Rodrigues Pereira

Dionísio da Costa Soares

Domingos Dias de Barros

Domingos Vaz Velho

Estevão Velho de Melo

Francisco Alvares de Lima*

Francisco de Oliveira Banhos

Francisco de Sousa e Oliveira

Francisco de Souza de Gusmão

Gaspar Rabelo Gondim

João Batista Freire

João de Barros Couto

José Barbosa de Souza

José Martins de Morais

José Ribeiro Riba*

Luiz Pereira Barbosa

Manuel Alvares Bastos

Manuel Antônio Pimentel de Melo

Manuel de Amorim

Manuel de Melo e Albuquerque (Pai)

Manuel de Melo e Albuquerque (Filho)

Manuel Rodrigues Macial

Manuel Rodrigues Taborda

Manuel Trigueiros Soares

Pero Vaz Pinto

Ruperto Bezerra

Sebastião Cardoso Batalha

Teodósio Freire de Amorim

Zacarias de Oliveira Ribeiro

Zacarias Vital Pereira

TOTAL: 42

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

130

Reitera-se, ainda, que o período compreendido entre 1614 e 1659 – totalizando

45 anos –, tem-se uma lacuna acerca das informações sobre os indivíduos que serviram

naquele ofício, visto que se caracterizou como um período nodal para a História da

Capitania do Rio Grande, de modo particular, mas também para a própria História do

Brasil, pois em 1624 havia ocorrido a invasão holandesa da porção geográfica situada

mais ao norte da América lusa. Com esse evento, parte significativa da documentação

administrativa, referente ao período precedente, ter-se-ia perdido, bem como ocorrera à

suspensão das atividades burocráticas empreendidas pela Coroa portuguesa nessa

porção da América.

A partir do estudo prosopográfico empreendido nesse capítulo tratou-se de

verificar e formular questões sobre esses indivíduos acerca do nascimento, do

casamento, das relações de compadrio, família, origens sociais e geográficas, posições

econômicas e ocupações, bem como retomando pontos de discussões sobre a cultura

política do Antigo Regime, que amplamente permeou a vida cotidiana dos homens

naquela centúria, e, aqui, sobretudo, daqueles que haviam ocupado a escrivania da

Câmara do Natal. Abaixo, elenca-se no Gráfico 02 a compartimentalização dos

escrivães da Câmara do Natal, por hora bastante, oriundos do reino e aqueles

provenientes das Capitanias do Norte.

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

131

Gráfico 02 - Macroorigens geográficas dos escrivães da Câmara do Natal (1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira, 2016.

34

De acordo com o Gráfico 02, não se foi possível identificar as origens de

47,61% (20) dos agentes que desempenharam a escrivania camarária do Natal. Ainda

assim, conjectura-se que o significado de tais dados poderia, possivelmente, remeterem-

se à mobilidade desses homens pelo Império ultramarino português, principalmente

ligado às questões da esfera militar, posto que se verifique que quando ocorria à

mudança de Capitão-mor, estes indicavam, por meio de novas provisões, um novo

indivíduo para o exercício do referido ofício. Possivelmente, os recém-nomeados para a

escrivania concelhia do Natal, cuja origem não foi possível precisar, se tratassem de

militares subalternos ligados por laços de hierarquia e/ou de amizade aos novos

capitães-mores e, portanto, de significativa confiança dos mesmos, que visualizavam no

provimento do ofício de escrivão concelhio a possibilidade de inserirem indivíduos a

eles vinculados, de forma a os transformarem em informantes daquilo que era discutido

34

Gráfico elaborado pelo autor Abimael Lira, partir do Livro de Registros de Batismo de Cunhaú, São

José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714), dos Livros de Registro de Casamento da

Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785), das Cartas de Sesmarias presentes

na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso Brasileiro), dos Documentos Manuscritos Avulsos do

Arquivo Histórico Ultramarino, referentes às Capitanias do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e

Ceará, dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-1759), do Catálogo de

Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-1815) e dos Processos da Inquisição de Évora

relacionados ao Tribunal do Santo Ofício constantes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, BORGES

DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4. Mossoró: Fundação Vingt-

Un Rosado, 1993.

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

132

no núcleo das edilidades. Esses agentes da escrivania camarária do Natal que não foram

identificados, leva-nos a relativizar os números de oficiais advindos do reino e do

ultramar, cujo rastreamento poderia elevar ou mesmo reduzir aqueles números.

Ainda segundo o Gráfico 02, verifica-se que a escrivania da Câmara do Natal

foi ocupada por uma quantidade considerável de indivíduos advindos das Capitanias do

Norte, o qual perfez o total de 35,71% (15) e uma menor parcela dos oriundos do Reino,

16,66% (7). Essa situação leva-nos a conjecturar algumas possibilidades interpretativas.

Primeiramente, que o ofício de escrivão concelhio da Cidade do Natal não

fosse um elemento muito atrativo aos olhos dos adventícios provenientes do reino, visto

que o além-mar ofereceria aos reinóis outras oportunidades de ganhos de status e de

prestígio social, como a participação, sobretudo no núcleo das edilidades – juízes

ordinários, vereadores e procuradores das câmaras –, bem como de ascensão na escala

hierárquica do Antigo Regime ligados sobremaneira à perspectiva de enriquecimento

rápido que assolou o ideário de homens e mulheres que não encontravam chances de

ascensão econômica em suas comunidades de origem, conforme estudos da área

demonstram. As pesquisas que existem sobre as origens dos oficiais camarários

apontam para a participação significativa de reinóis, nas regiões mais ao sul,

principalmente nas áreas de constantes flutuações e movimentações de pessoas,35

nos

momento iniciais de instalação das vilas e a consequente ausência de naturais da terra.36

Já nas áreas de ocupação mais antigas, como a das Capitanias do Norte, essa ocupação

de reinóis nos ofícios camarários já não seria mais tão importante, mas continuaram

sendo buscadas pelos recém-chegados.37

Vale salientar, ainda, que os deslocamentos entre o reino e as outras partes do

Império eram motivados por uma série de fatores. Dentre esses, destaca-se as

possibilidades de enriquecimento e a vinda de indivíduos por questões de degredo,

sobretudo devido o cometimento por parte destes, de crimes contra a religião, aos quais

se somavam outros delitos de ordem civil, a fim de punir os criminosos.38

Porém, como

35 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). Dissertação

(Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. p. 66-74. 36

BRANDÃO, Michelle Cardoso. Forjando status e construindo autoridade: perfil dos homens bons e

formação da primeira elite social em Vila do Carmo (1711-1736). Dissertação (Mestrado em História) –

Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009. p. 69. 37

SOUZA, George Felix Cabral de. Os Homens e os Modos da Governança. A câmara Municipal do

Recife no século XVIII. Recife: Gráfica Flamar, 2003. p. 122-123. 38

COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados. In: Revista

Textos de História. v. 6, n. 1 e 2. 1998. p. 79.

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

133

afirma Charles Boxer, essa movimentação não foi um traço característico de indivíduos

que tivessem passado por situações de revezes em suas vidas sociais, nem mesmo por

aqueles que não encontravam inserção nas estruturas econômicas, mas um sem número

de agentes que já possuíam um arcabouço mínimo no reino, transferiram-se para o

além-mar. Exemplo disso, foram os incontáveis funcionários coloniais que foram para

a América e aí se fixaram, mormente muitos outros tenha conseguido retornar aos

torrões natal.39

Efetivamente, ao analisar o perfil dos homens bons da Câmara do Natal,

Kleyson Bruno Chaves Barbosa averiguou que 26,82% dos homens que compunham a

governança dessa edilidade – compreendendo os ofícios de juiz ordinário, vereador e

procurador –, entre 1720 e 1759, eram originários do reino. Esse autor ressalta, ainda,

que esses adventícios lançaram mão da política de casamentos com os integrantes da

elite política local, o que lhes possibilitou a inserção nos meandros locais do poder.40

De acordo com Luis Vidigal, a ocupação e o desempenho dos lugares

camarários, tais como o de juiz ordinário, o de vereador ou de procurador,

consubstanciaram-se como elementos promotores da nobilitação pessoal e de grupo.41

Além desses ofícios, pode-se acrescentar, dentre outros, o de escrivão camarário, visto

que, conforme havia apontado Roberta Stumpf, servir nas instituições concelhias

caracterizava-se como uma oportunidade de elevação do status social,42

posto que isso

operasse uma diferenciação hierárquica entre aqueles que ocupavam ofícios de menor

prestígio dentro das próprias câmaras – os porteiros, os meirinhos e os carcereiros –,

como, e em grau maior, daqueles que não andavam na governança da terra, os quais

eram numericamente mais significativos, pois compreendiam o grosso da população.

Isso seria indicativo, ainda, de certo grau de poder simbólico, pois os oficiais

39 Para saber mais sobre os problemas que afligiram os primeiros anos do processo de colonização nas

terras americanas sob o domínio português, ver BOXER, Charles. A idade do ouro no Brasil: dores de

crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 35. 40

BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. Perfis camarários de uma capitania periférica: Os Homens Bons

na câmara da cidade do Natal (1720-1759). In: VI Encontro Internacional de História Colonial:

mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e identidades, 2017, Salvador: Anais Eletrônicos [do] VI

Encontro Internacional de História Colonial: mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e

identidades. Salvador: EDUNEB, 2016. v. 1. p. 993. 41

VIDIGAL, Luis. No microcosmo social português: uma aproximação comparativa à autonomia das

oligarquias camarárias no fim do Antigo Regime político (1750-1830). In: VIEIRA, Alberto (coord.). O

município no mundo português. Funchal: CEHA/ Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998. p.

139. 42

STUMPF, Roberta Giannubilo. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações

de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Universidade de

Brasília, Brasília, 2009. p. 64.

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

134

camarários ocupavam postos administrativos que a maioria da população sequer

aspirasse galgar, contribuindo mais ainda para distinguirem-se dos demais.43

Nesse sentido, na ocupação da escrivania da Câmara do Natal, percebeu-se

que, de fato, existiu uma pequena quantidade de reinóis que haviam ocupado o ofício de

escrivão da Câmara do Natal, estes, de acordo com o Gráfico 02, perfizeram 16,66%

(7) dos agentes que foram providos na escrivania dessa edilidade. Sobre eles, pode-se

conjecturar que se utilizaram de diferentes políticas de integração social com a elite

política local, fundindo-se com essa e, mediante isso, estruturando relações sociais que

influíram de maneira significativa, adicionando elementos reinóis, possivelmente vistos

como nobilitantes, às famílias locais. Adir-se, ainda, como apontado anteriormente, que

existiram dois períodos distintos e significativos para se compreender a inserção desses

homens na sociedade local da Capitania do Rio Grande, que seja o Antibellum e o Pós-

bellum. No primeiro período, os reinóis deviam se inserir nas redes familiares e

clientelares que já estivessem montadas. No segundo período – o Pós-bellum –, esses

elementos advindos do reino ajudaram a criar essas redes.

Em segundo lugar, como outra hipótese explicativa para a ocupação da

escrivania da Câmara de Natal por uma maior quantidade de agentes provenientes das

Capitanias do Norte, seja uma consequência da política de conquista e ocupação do

território da Capitania do Rio Grande, efetuadas pelos incentivos concedidos pela Coroa

lusitana, mediante a qual coubera aos primeiros conquistadores e povoadores da terra,

bem como aos seus descendentes, o acesso aos ofícios e benesses concelhios. Como

vetores dessa condição de acesso, figuravam a participação na guerra empreendida

contra os neerlandeses, no contexto mais amplo da dominação batava sobre a porção

setentrional da América portuguesa no século XVII, assim como a interiorização da

colonização das terras americanas, com o avanço da criação do gado e a busca por

metais preciosos, aos quais haviam se somado as lutas que, para isso, foram necessárias

de serem travadas contra os diversos grupos indígenas que habitavam a região. No caso

da Capitania do Rio Grande, destaca-se o conflito conhecido como a Guerra do Açú, na

conjuntura mais ampla da Guerra dos Bárbaros.

43 CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul

de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pernambuco,

Recife, 2014. p. 80.

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

135

Essa categorização de “conquistadores” ou de “primeiros povoadores” havia

funcionado durante longos anos e em diversas possessões portuguesas, espraiadas pelo

além-mar, inclusive nas capitanias vizinhas, como uma justificativa sui generis para o

acesso e a permanência de determinados indivíduos ou grupos familiares no interior das

agências de poder local, ou seja, das câmaras municipais. De acordo com Evaldo Cabral

de Mello, havia certa tendência de se encontrar entre os primeiros senhores de engenho,

oficiais régios e concelhios, os quais deslocavam os rendimentos desses ofícios para a

estruturação da empresa açucareira.44

Essas disposições demonstravam o imbricamento

da esfera de poder local com um dos principais mecanismos de distinção social do

período, que seja a posse senhorial de terras, o que seria um dos fatores para a inserção

de nomes nas listas de elegíveis dos concelhos. Situação essa que se cristalizaria após a

expulsão dos holandeses da porção norte do América portuguesa, onde muitos desses

senhores de engenhos, que ajudaram a restabelecer o domínio lusitano nessas paragens,

haviam passado a se utilizarem da prerrogativa de “conquistadores” ou de “primeiros

povoadores”, justificando, com isso, o acesso a determinadas benesses régias.

Conforme ideias de Edmundo Zenha, depreende-se que as elites que

dominaram a governança da terra pela América Lusa afora, caracterizaram-se por uma

adaptação de seu perfil relacionado ao processo de conquista,45

pois, como asseverou

João Fragoso, a América nada mais seria que uma “conquista” e não uma colônia46

e,

por esse mesmo motivo, seria justificado a continuidade do privilégio de acesso aos

postos camarários aos descendentes dos conquistadores, como uma forma de retribuição

aos serviços oferecidos a Coroa na parte meridional da possessão portuguesa na

América. Esse acesso privilegiado pode ser compreendido mediante aquilo que Arthur

Curvelo observou para o caso de Alagoas do Sul, entre 1654 e 1751, que o acesso aos

ofícios camarários seria uma espécie de abonação da representatividade das elites locais,

44 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. 3. ed. revista.

São Paulo: Alameda, 2008. p. 133. 45

ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial,

1948. p. 136-138. 46

FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra

do Rio de Janeiro (1600-1750). In: Ibidem; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antonio

Carlos Jucá de. (orgs.). Conquistadores e Negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos

trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 35.

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

136

garantindo-lhes, com isso, barganhas políticas que do exercício desses ofícios

adviessem.47

Visto tudo isto, depreende-se o sentido primordial da identificação precisa das

origens geográficas dos escrivães camarários, a fim de se compreender as dinâmicas de

inserção desses homens nos quadros de oficiais locais, bem como no seio da própria

elite local, por ser um dos ofícios que também figuravam de modo privilegiado no

cenário da governança da terra. Nesse ínterim, podem-se verificar, ainda, indícios das

correntes de deslocamentos que se estabeleceram ao longo do processo de ocupação da

Capitania do Rio Grande, com a vinda de homens – mas também de mulheres, mesmo

que em menor grau –, de diferentes porções do Império, sobremodo com uma análise

mais detida das origens geográficas dos escrivães concelhios. Assim, mediante a

utilização do método onomástico possibilitou-se o reconhecimento da origem

geográfica de 22 indivíduos que serviram na escrivania da Câmara do Natal, entre 1613

e 1759, algo que permitiu averiguar dados importantes acerca da composição social da

elite local da Capitania do Rio Grande, entre os séculos XVII e XVIII. A partir disso, se

enumerou, a seguir, as regiões de onde esses mesmos agentes provieram tanto do reino

quanto da própria América portuguesa, extrapolando a binária divisão entre reinóis e

luso-brasílicos, como se pode visualizar na Tabela 04.

Tabela 04 - Origem geográfica dos escrivães da Câmara do Natal por circunscrição e

localidade (1613-1759)

TABELA 04. ORIGEM GEOGRÁFICA DOS ESCRIVÃES DA

CÂMARA DE NATAL POR CIRCUNSCRIÇÃO E LOCALIDADE (1613-1759)

CIRCUNSCRICÃO LOCALIDADE/DENOMINAÇÃO

NO REGISTRO QUANTIDADE

PORTUGAL

LISBOA 3

LAGOS 1

SÃO MIGUEL DE VILA

FRANCA, ALFOZ DA VILA DE

BARCELOS

1

47 CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul

de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande

do Norte, Recife, 2014. p. 202.

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

137

VILA DE BUARCOS,

FREGUESIA DE SÃO PEDRO,

ARCEBISPADO DE COIMBRA

1

ALCOBAÇA 1

CAPITANIA DO RIO

GRANDE

CIDADE DO RIO GRANDE

(NATAL) 1

FREGUESIA DE NOSSA

SENHORA DA

APRESENTAÇÃO

5

CAPITANIA DA

PARAÍBA CIDADE DA PARAÍBA 3

CAPITANIA DE

ITAMARACÁ

FREGUESIA DE SÃO COSME E

DAMIÃO DE IGARASSU 1

CAPITANIA DE

PERNAMBUCO

PRAÇA DO RECIFE 1

OLINDA 1

SÃO LOURENÇO DA MATA 1

FREGUESIA DE SANTO

AMARO DO JABOATÃO 1

SUAPE 1

Não identificados 20

TOTAL: 42

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.48

Observa-se, mediante a análise da Tabela 04, que o ofício de escrivão

concelhio da Cidade do Natal foi ocupado por indivíduos provenientes de diferentes

porções geográficas do Império ultramarino português e percebeu-se, em seguida, a

preponderância daqueles agentes advindos da própria América lusa. Essa situação

48 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos seguintes conjuntos documentais: Livro de Registros

de Batismo de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714), dos Livros

de Registro de Casamento da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785), das

Cartas de Sesmarias presentes na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso Brasileiro), dos

Documentos Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referentes às Capitanias do Rio

Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Ceará, dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara

do Natal (1659-1759), do Catálogo de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-1815) e

dos Processos da Inquisição de Évora relacionados ao Tribunal do Santo Ofício constantes no Arquivo

Nacional da Torre do Tombo.

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

138

demonstra um relativo grau de conexão e circulação de pessoas entre as Capitanias do

Norte.

2.1.1 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos de Portugal

Mediante a pesquisa sobre as origens dos escrivães camarários do Natal, pode-

se apontar diferentes motivações que incitaram a vinda daqueles indivíduos para a

Capitania do Rio Grande. Como exemplo dessas motivações, para a vinda de reinóis

que, mais tarde, serviram como escrivães do Senado da Câmara do Natal, pode-se citar

o caso de Pero Vaz Pinto, que havia ocupado a escrivania daquela edilidade quando de

sua instalação, em 1613.

Vaz Pinto era casado com Catarina Martins, natural de Lagos – zona ocidental

do Algarve – de onde, possivelmente, aquele escrivão também proviria. Sua esposa era

filha legítima do mercador Diogo Martins e de sua mulher Guiomar Gonçalves.49

Essas

informações são provenientes de um processo movido pelo Santo Ofício, no Tribunal da

Inquisição de Évora, contra a esposa de Pero Vaz, acusada de crimes contra a fé

católica, devido à prática de judaísmo, de heresia e de apostasia.50

De acordo com aquele processo, o rol de culpas que havia recaído sobre a

esposa de Pero Vaz Pinto devia-se a outra ação que havia sido movida

concomitantemente contra uma sua cunhada, por nome de Branca Simões.51

Devido ao

mal estado do documento, não se pode asseverar se essa cunhada seria irmã de seu

marido, Pero Vaz Pinto, ou se seria casada com um irmão da própria acusada.

Entretanto, verificou-se da análise desse processo que Catarina Martins havia sido presa

em março de 1586 e sentenciada a tormento um ano e cinco meses depois – em 02 de

agosto de 1587. Sua cunhada, Branca Simões, natural de Lagos, era filha de João

Simões e de Beatriz Lopes, casada com o mercador Duarte Dias, e foi acusada dos

mesmos crimes cometidos pela cunhada, sendo presa e sentenciada nos mesmos dias

49 Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de Catarina Martins. Tribunal do Santo

Ofício: Inquisição de Évora. Proc. nº 7834. Cód. ref. PT/TT/TSO-IE/021/7834. 50

Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de Catarina Martins. Tribunal do Santo

Ofício: Inquisição de Évora. Proc. nº 7834. Cód. ref. PT/TT/TSO-IE/021/7834. 51

Ibidem.

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

139

que Catarina Martins o fora.52

Apesar de que o cárcere tenha sido liberado para

Catarina, sua cunhada Branca Simões não tivera a mesma sorte, visto que os

inquisidores, em 04 de novembro de 1587, ordenaram que ela devesse cumprir sua

penitência na Cidade de Évora.53

Possivelmente, após sua esposa libertar-se do cativeiro da Inquisição eborense,

Pero Vaz Pinto tenha preferido construir uma nova vida, distante da trágica situação em

que se encontrara parte de sua família, metida nas investigações e nos cárceres da

Inquisição, e a América, de modo mais específico à pacata Capitania do Rio Grande,

eram lugares ideais para a reconstrução de suas vidas sociais e econômicas que,

provavelmente, depauperara-se diante do fatídico acontecimento. Desse caso,

depreende-se que um dos homens que havia servido na escrivania do Concelho do

Natal, no alvorecer do século XVII, tivera parte de sua família vigiada e perseguida

pelos tentáculos da Inquisição eborense. Mais que isso, observa-se que Pero Vaz estava

inserido numa família de mercadores e que, talvez, assim como sua esposa,

verossimilmente, e a cunhada desta, partilhasse das mesmas práticas consideradas

heréticas pela Inquisição.

O estudo sobre o caso da família de Pero Vaz abriu margem para se questionar

uma possível origem cristã-nova para ele e para todos aqueles seus familiares, situação

essa que se coaduna com a afirmação de António Manuel Hespanha de que havia uma

“[...] hostilidade social em relação aos escrivães (ou, em geral, aos letrados) e, entre nós

a frequente equiparação entre letrado e cristão-novo”.54

Outro indício dessa origem

cristã-nova de Vaz Pinto seria o fato de seu sogro, da cunhada e do marido de sua

esposa serem todos cristãos-novos.

A situação de Pero Vaz Pinto abre-nos pontos de discussão no que tange aos

limites, possibilidades e alcances da aplicabilidade da própria legislação que orientou a

vida administrativa no reino e no ultramar, posto que, as Ordenações Filipinas (1603-

1917) impunham constantemente restrições ao acesso e ao exercício dos ofícios ligados

a administração ou a burocracia da Coroa lusa aos indivíduos de origem cristã-nova.55

52 Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de Branca Simões. Tribunal do Santo

Ofício: Inquisição de Évora. Proc. nº 5286. Cód. ref. PT/TT/TSO-IE/021/5286. 53

Ibidem. 54

HESPANHA, António Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In:

Ler História, n. 8, 1986. p. 47. 55

BOXER, Charles. O império marítimo português (1415-1825). Barreto, Anna Olga de Barros (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 263.

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

140

Vale ressaltar que a distinção entre cristão velho e cristão novo passaria por mudanças

consideráveis na segunda metade do século XVIII, quando o Marquês de Pombal

aboliu, em 1773, tais diferenças.

De fato, segundo as Ordenações, estava vetado o acesso daqueles indivíduos –

de origem cristã-nova – a diversos ofícios da administração, nos concelhos municipais,

inclusive no ofício de escrivão concelhio, como nas outras instituições administrativas e

no clero, exigindo-se, para isso, “pureza de sangue”.56

Não obstante, como assegurou

Charles Boxer, em Pureza de sangue e raças infectas, isso seria quase impossível, em

face da diminuta quantidade de homens de que a Coroa dispunha, o que levava “[...] os

cristãos-novos a conseguirem se infiltrar nesses postos ou ocupações proibidas, em

especial nas zonas remotas do Império ultramarino [...]”.57

Talvez esses limites fossem

esquecidos quando se necessitava de mãos e braços para a empreitada da colonização e,

mais que isso, de homens hábeis para o exercício da escrita oficial do Império,

responsável que foi por interligar as diferentes porções da Coroa português, conferindo-

lhe unicidade e coesão.

Não obstante, sabe-se que Pero Vaz Pinto ocupou a escrivania da Câmara do

Natal, concomitantemente, com a escrivania da Real Fazenda do Rio Grande.58

Ademais, verifica-se que Vaz Pinto tenha assumido efetivamente ambas as escrivanias

e, mais que isso, tenha sido um dos escrivães redatores do Auto de Repartição das

Terras da Capitania do Rio Grande, de 1614, na qual a doação de sesmarias nessa

Capitania haviam sido revistas, objetivando-se, com isso, o processamento de um

inquérito no qual levantasse aquelas sortes de terra que haviam sido ocupadas de fato,

bem como as que, até a aquela presente data, não tivessem sido povoadas.59

Em retribuição aos serviços prestados pela redação do Auto de Repartição de

Terras do Rio Grande, Vaz Pinto havia recebido a doação de uma data de terras,

concedida pelo Governador-Geral do Estado do Brasil, D. Gaspar de Souza,60

descrita

como “o melhor porto de pescarias que há e está defronte da Fortaleza”.61

Contudo,

56 BOXER, Charles. O império marítimo português (1415-1825). Barreto, Anna Olga de Barros (trad.).

São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 290. 57

Ibidem., p. 281. 58

MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro:

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I, p. 416. 59

TEXEIRA, Rubenilson Brazão. Terra, casa e produção. Repartição de terras da Capitania do Rio

Grande (1614). In: Revista Mercator, Fortaleza, v. 13, n. 2, mai./ago. 2014. p. 105-124. 60

Ibidem., p. 111. 61

Ibidem., p. 111; 121.

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

141

averígua-se, em um requerimento do Alferes João de Miranda Floresta ao Rei D. Filipe

III, datado de 12 de agosto de 1637, no qual esse militar solicitava a mercê da

propriedade do ofício de escrivão da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande, que, por

aquele tempo, Pero Vaz Pinto já seria falecido, sem, no entanto, deixar herdeiros

capazes de assumir o ofício, pois o filho mais velho não passaria, naquela data, dos oito

anos de idade.62

Cogita-se, portanto, a possibilidade de que esse ofício pudesse ser

transmitido hereditariamente, mesmo que não obstante, os filhos de Pero Vaz não

tenham assumido as funções que lhes competiam.

Outro caso de português que aportara a Capitania do Rio Grande e que, mais

tarde, serviria na escrivania da Câmara do Natal, foi o Capitão Antônio Lopes de

Lisboa. Oriundo da mesma cidade que a seu sobrenome seria incorporado,63

não se sabe

ao certo quando se fixou em Natal. A primeira menção que existe sobre esse agente, na

Capitania do Rio Grande, remetia-se ao registro de um numeramento do posto de

Alferes da Fortaleza dos Santos Reis.64

Antônio Lopes serviu a Coroa portuguesa por

um período de 32 anos, de 1674 até 1706, havendo participado de diversos embates que,

em momentos distintos, afligiram os domínios lusos na América, nas Capitanias de

Pernambuco e do Rio Grande, desde as batalhas empreendidas contra um levante do

Quilombo dos Palmares, até as entradas promovidas aos sertões do Rio Grande, contra

os indígenas.65

Apesar de Antônio Lopes haver-se deslocado para a Capitania do Rio Grande

devido às funções estritamente militares que ocupara nas milícias D’El Rey, verifica-se

que foi provido pela primeira vez no ofício de escrivão da Câmara do Natal, em 1678,66

havendo exercido esse mesmo ofício por uma década.67

Em carta de 31 de maio de

1688, o Governador-geral do Brasil, Mathias da Cunha, ordenava ao Capitão-mor do

Rio Grande, Pascoal Gonçalves de Carvalho (1685-1688), que suspendesse Antônio

62 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc. 4.

63 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1761-1769. 64

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl. 15v. 65

AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 22, Doc. 2015. 66

Fundo documental do IHGRN. op. cit., Fl. 106v. 67

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo).

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

142

Lopes daquele ofício, visto que o provimento que o mesmo havia recebido do governo-

geral teria terminado.68

Como se verá adiante, Antônio Lopes de Lisboa constituiu família no Rio

Grande, entrelaçando sua descendência com importantes famílias locais e enraizando-se

naquela capitania, chegando a ocupar diversos ofícios, além do de escrivão concelhio,

da Câmara do Natal. Averígua-se que Antônio Lopes antes de ser escrivão camarário,

tenha exercido os ofícios de procurador e de almotacé, nos anos de 1675 e 1676,

respectivamente.69

Lopes de Lisboa conseguiu, ainda, obter diversas concessões de

sesmarias pela Capitania do Rio Grande e do Ceará,70

bem como chãos de terra na

Cidade do Natal.71

Além disso, Antônio Lopes de Lisboa era proprietário de barcos que

faziam carregamento e abastecimento de sal naquela municipalidade.72

Verifica-se com

a trajetória de Antônio Lopes a inserção e a participação de um escrivão, de origem

reinol, em diversas atividades econômicas pela Capitania do Rio Grande, indo desde a

agricultura praticada nas suas sesmarias, passando pela criação de gado vacum73

e, no

transporte do sal.74

Participando, também, como oficial camarário, visto que após

exercer a escrivania camarária, seria eleito vereador para dois mandatos, em 1693 e em

1696.75

Essa situação demonstra o envolvimento de um escrivão concelhio de origem

reinol em diversas atividades de ordem econômica na Capitania do Rio Grande, o que

levava a que se imiscuíssem tais atividades. Mas a ocupação do ofício de escrivão e,

mais tarde, de outros postos dentro da hierarquia camarária, leva-nos a conjecturar que a

inserção de Lopes de Lisboa nessa instituição muito tivesse haver com a necessidade de

68 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume I. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,

1929. p. 287-288. 69

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). 70

Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de Lisboa em 13 de outubro de 1680. Plataforma SILB –

CE 0013. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017; Carta de sesmaria

doada a Antônio Lopes de Lisboa em 09 de maio de 1706. Plataforma SILB – RN 0056. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017; Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de

Lisboa em 24 de março de 1676. Plataforma SILB – RN 0030. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017; Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de

Lisboa em 07 de novembro de 1674. Plataforma SILB – RN 0023. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017. 71

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 74v. 72

LOPES, loc. cit., Doc. 0576. 73

Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de Lisboa em 13 de outubro de 1680. Plataforma SILB –

CE 0013. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/01/2017. 74

LOPES, loc. cit. 75

Ibidem.

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

143

representar e defender seus interesses, provenientes da agricultura de suas terras, da

criação de gados e do transporte do sal, em uma das principais agências de

regulamentação da produção em nível local da Capitania, o Concelho do Natal.

Também lisboeta era Francisco Álvares de Lima,76

que foi o primeiro

indivíduo a adquirir a propriedade do ofício de escrivão da Câmara do Natal, juntamente

com o de tabelionado do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande, em 16 de

outubro de 1704,77

a qual perdurou até dezembro de 1717, quando faleceu sem deixar

herdeiros.78

Francisco Álvares era filho de Gaspar Gonçalves de Lima79

que, mediante

os serviços militares prestados por seu pai à Coroa portuguesa, especificamente aqueles

desempenhados no contexto das Guerras de Restauração no Portugal peninsular, foi o

motivo pelo qual os conselheiros do Conselho Ultramarino resolveram nomeá-lo para

aquela propriedade, devido à existência de um Alvará de Lembrança de ofício80

espécie de carta concedida pelo Rei como garantia de retribuição material aos serviços

prestados pelos vassalos em diversos contextos, sobretudo no caso de guerras.

Entretanto, ao que parece, Francisco Álvares não chegou a assumir efetivamente a

escrivania da Câmara do Natal, como deixa entrever uma carta enviada pelos oficiais

dessa edilidade ao rei D. João V, na qual essas autoridades queixavam-se da

necessidade que esse proprietário viesse para a Capitania do Rio Grande exercer, como

era sua obrigação, seu ofício, posto que em face dos diminutos rendimentos que eram

pagos aos serventuários, não existia ninguém que os quisesse servir.81

Contudo, mesmo

diante daquela exigência efetuada pelos oficiais concelhios, Álvares de Lima havia

permanecido como morador em Lisboa, como atesta a nomeação, dois anos depois, para

o ofício de Almoxarife dos Fornos do Vale do Zebro,82

nas proximidades de Lisboa.

No entanto, Francisco Álvares de Lima conseguiu nomear um procurador83

para resolver as pendengas relacionadas à escolha de serventuários – espécie de

substituto, ao qual se pagava a terça parte dos rendimentos obtidos do ofício –, mediante

76 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc. 70.

77 Ibidem., Cx. 1, Doc. 60.

78 Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, códice 21. Livro de Registro

de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 79

Ibidem. 80

Ibidem. 81

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc. 70. 82

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro II, liv.

1, f. 351v; Ibidem., liv. 1, número de ordem 37, f. 351v 83

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl(s). 74-79.

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

144

o provimento por concessão precária ou temporária, bem como as questões relacionadas

com os valores do ordenado que cabeiam aqueles que exercessem as serventias dos

ofícios de escrivão camarário e de tabelião público. O procurador dos interesses de

Francisco Álvares de Lima, na Capitania do Rio Grande, seria o Capitão Manuel de

Melo e Albuquerque.84

Outro proprietário reinol da escrivania da Câmara do Natal foi o Comissário

Geral de Cavalaria José Ribeiro Ribas, havendo adquirido essa propriedade de ofício,

por meio de edital, em dezembro de 1717,85

assim como ocorreu para o provimento do

anterior proprietário.86

Ribeiro Ribas, nasceu em 1670, era filho de Miguel Ribeiro e de

Justa Ribas, sendo natural de São Miguel de Vila Franca, arrabaldes da Vila de

Barcelos.87

José Ribeiro transferiu-se para a América portuguesa quando contava apenas

15 anos de idade, para ajudar seu irmão, Simão Ribeiro Ribas, na condição de assistente

de uma loja que esse possuía na Praça do Recife.88

Ao que parece, José Ribeiro Ribas

não chegou a exercer de fato a escrivania da Câmara do Natal,89

tarefa essa que coubera

a vasta quantidade de serventuários durante o período no qual aquele agente deteve a

propriedade desse ofício,90

juntamente com um dos ofícios de tabelião do público,

judicial e notas da Capitania do Rio Grande.91

O que se sabe sobre a trajetória de José Ribeiro Ribas, na Capitania de

Pernambuco, foi que se tornou um importante homem de negócios em Recife, atuando

em alguns postos militares e servindo na câmara dessa mesma vila em duas ocasiões.92

José Ribas havia exercido, ainda, o ofício de escrivão da Alfândega do Recife,93

além

do que possuía vários outros empregos no serviço de Vossa Majestade.94

84 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl(s). 74-79. 85

Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, códice 21. Livro de Registro

de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 86

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60. 87

MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Nobres e Mascates na Câmara do Recife, 1713-1738”. In:

Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), v. LIII, 1981. p.

193. 88

SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la câmara

municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca,

Salamanca, 2007. p. 307 89

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 4, Doc. 227. 90

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). 91

Arquivo Histórico Ultramarino, loc. cit. 92

SOUZA, op. cit., p. 836-837. 93

AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 34, Doc. 3102; 94

AHU-RN, op. cit., Cx. 4, Doc. 227.

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

145

Lisboeta era também o Sargento-mor Dionísio da Costa Soares,95

filho de

Manuel Borges Soares e de Jacinta da Costa Pródiga,96

que iniciou sua trajetória nas

engrenagens administrativas da Capitania do Rio Grande, no exercício do ofício de

escrivão do Concelho do Natal, no período que foi de 1731 a 1736.97

O percurso de

Costa Soares no âmbito da burocracia local daquela capitania, foi coroado com a

provisão régia para o ofício de Provedor da Real Fazenda do Rio Grande, de 1754 até

1756.98

De origem lusa, era o coimbrão Manuel Rodrigues Taborda, natural da Vila de

Buarcos, situada na Freguesia de São Pedro, Bispado de Coimbra.99

Essa vila devido a

sua localização às margens do Oceano Atlântico, faria com que Buarcos sofresse,

sucessivamente, com questões de saques e de pilhagem, sendo destruída por diversas

vezes. Manuel Rodrigues Taborda era filho de Maria de Sá e eram ambos oriundos

daquela localidade.100

Taborda tornar-se-ia escrivão da Câmara do Natal, por nomeação

do Capitão-mor Antônio de Carvalho e Almeida (1701-1705), em 31 de dezembro de

1704, substituindo o anterior ocupante, Carlos da Rocha, posto que esse houvesse

renunciado ao ofício por justa causa, e já ter Manuel Rodrigues Taborda servido há

vários anos a Vossa Majestade nos “honrosos cargos da república”, sendo, inclusive,

morador da Cidade do Natal.101

E, por fim, era proveniente do reino, mais precisamente de Alcobaça, de onde

havia fugido da prisão do mosteiro cisterciense dessa localidade, o Coronel Bento

Ferreira Mouzinho,102

o qual desempenhou, a título de serventia, o ofício de escrivão da

Câmara do Natal de 1715 até 1732,103

e sobre o qual se deterá, pormenorizadamente, no

sexto capítulo desse trabalho. De acordo com a devassa levantada, na década de 1740,

sobre Ferreira Mouzinho, este havia fugido da prisão daquele Mosteiro, onde estava a

95 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1727-1740. 96

Ibidem. 97

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). 98

Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09

(1743 – 1754). Fl. 253. 99

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1697. 100

Ibidem. 101

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 32. 102

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297. 103

LOPES, op. cit.

Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

146

cumprir pena por haver matado um homem, para a Capitania do Rio Grande.104

Contudo, cogita-se que a vinda de Bento Ferreira Mouzinho para a Cidade do Natal

estivesse relacionada à existência de laços de parentesco entre esse oficial e algum seu

parente ou aderente que aqui já estivesse instalado, quando Ferreira Mouzinho escolheu

esse destino. Pois, como afirmou George Félix Cabral de Souza, em Elite y ejercicio de

poder em el Brasil colonial, as redes de parentesco exerciam significativo sobrepeso

antes do transeunte resolver cruzar o oceano.105

Essa hipótese será adensada no próximo

capítulo, ao tentar-se reconstituir as redes de parentesco – consanguíneas e espirituais –

das quais o Coronel Bento Ferreira Mouzinho fazia parte, nas Capitanias do Rio

Grande, Itamaracá e Pernambuco.

Depreende-se da análise das origens geográficas desses 7 indivíduos que

ocuparam a escrivania da Câmara do Natal, ao longo do século XVII e da primeira

metade do século XVIII, que as motivações que os impeliram a se transferirem do reino

para a América portuguesa são as mais díspares, partindo de questões relacionadas

sobremaneira a dimensão familiar. Mesmo que os condicionantes sociais dessas

escolhas houvessem variado significativamente, em cada caso, encontram-se fatores que

se coadunam com os contextos políticos mais amplos que demarcaram o Império, como

também a própria política de mobilidade dentro do Império incentivada pela Coroa.

Alguns autores associam as correntes de deslocamento que se destinaram as

Américas a fatores relacionados às perseguições ou crimes religiosos que assolaram, de

maneira mais rígida, o Portugal reinol, bem como outras partes da Europa.106

A

transferência de Pero Vaz Pinto e de sua família insere-se, talvez, nesse universo, posto

que entre o rol de atos-crimes que culminaria com degredo para o Brasil, figurassem os

atentados contra a igreja ou contra a religião,107

e a fuga das malhas da inquisição fazia

com que vários cristãos-novos acorressem para terras longínquas e ainda não

exploradas, onde, devido ao isolamento que possuíam, pudessem desenvolver suas

crenças e seus costumes religiosos.108

Esse mesmo caráter de isolamento e, portanto, de

104 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). 105

SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la câmara

municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca,

Salamanca, 2007. p. 347. 106

COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados. In: Revista

Textos de História. vol. 6 – n. 1 e 2. 1998. p. 79, 89. 107

Ibidem., p. 89. 108

Ibidem., p. 80.

Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

147

proteção, que envolviam as conquistas, nesse caso a Capitania do Rio Grande, também

fora vislumbrado, com algum grau de probabilidade, por Bento Ferreira Mouzinho, ao

escolher rumar para a Capitania do Rio Grande, onde se refugiaria das culpas que

haviam recaído sobre ele, quando do assassinato de um compatriota.

Motivação bastante distinta da anterior havia induzido a ida de José Ribeiro

Ribas para a Vila do Recife, ainda em plena mocidade. Ribas talvez houvesse feito a

travessia do Atlântico embebido da possibilidade de acrescentamento social, ou mesmo

na crédula tarefa de honrar os laços consanguíneos com o irmão, ou vice-versa, na qual

se incluía as variadas e enormes possibilidades de acrescentamento social, tanto pessoal

quanto familiar.

Quanto aos reais motivos que impulsionaram Antônio Lopes de Lisboa e

Dionísio da Costa Soares a abandonarem seus torrões natais e lançarem-se ao mar, na

empreitada de uma nova vida na Capitania do Rio Grande, talvez houvessem sido

movidos por aquilo que Luiz Felipe de Alencastro compreendeu como sendo

características próprias ao perfil dos agentes sociais que demarcaram, mormente, os

homens que serviram a Coroa portuguesa. Segundo Alencastro, os vassalos D’El Rey

dividir-se-iam em duas categorias: os “homens coloniais” e os “homens ultramarinos”.

Antônio Lopes e Dionísio da Costa que se radicaram na Capitania do Rio Grande,

podiam ser caracterizados como exemplares do “homem colonial”, ou seja, que “[...]

circula em diversas regiões do Império, mas joga todas as suas fichas na promoção

social e econômica acumulada numa determinada praça, num enclave colonial”,109

posto

que tanto Costa Soares como Antônio Lopes de Lisboa haviam servido também nas

Capitanias de Pernambuco e da Paraíba antes de chegarem ao Rio Grande e aí

estabelecerem-se.110

109 Luiz Felipe de Alencastro discute o perfil de dois diferentes agentes sociais que foram moldados

durante o processo de formação do Brasil no contexto do Atlântico Sul, que seja o ‘homem ultramarino’ e

o ‘homem colonial’. O primeiro caracterizar-se-ia por ir ao ultramar adquirir benesses materiais e

simbólicas e retornar ao reino para galgar do prestígio que conseguiu amontoar. O segundo, seria aquele

homem que destinou-se ao além-mar e que conseguiu acumular patrimônio físico e social, porém fixou-se

em algum enclave colonial. Nesse ínterim, para Alencastro, a chave explicativa desses perfis e da própria

formação do Brasil seria o tráfico negreiro, fenômeno que associou e cimentou, por meio das trocas

mercantis, o espaço Atlântico, no qual as relações entre a América e a África se caracterizaram por serem

elementos complementares de um único sistema de exploração. Para saber mais ver ALENCASTRO,

Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes. A Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia

das Letras, 2000. 110

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1727-1740; AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, Doc. 366.

Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

148

2.1.2 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos das Capitanias do Norte

Não muito diferentes dos motivos que impeliram os reinóis a se deslocarem por

variadas porções do Império, foram os fundamentos que orientaram o deslocamento de

indivíduos intercapitanias da América portuguesa. Ressalta-se, de acordo com o

Gráfico 02, que 35,71% (15) dos agentes identificados que ocuparam a escrivania da

Câmara do Natal eram oriundos da própria América portuguesa. No entanto, o

“recrutamento” desses indivíduos não havia ocorrido de maneira uniforme, visto que se

tiveram representantes de quatro diferentes capitanias no exercício do ofício de escrivão

camarário do Natal, especialmente advindos das chamadas “Capitanias do Norte”, cuja

distribuição pode-se visualizar abaixo, no Gráfico 03.

Gráfico 03 - Naturalidade dos escrivães da Câmara de Natal por circunscrição

geográfica do Império (1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

111

111 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos conjuntos: Livro de Registros de Batismo de Cunhaú,

São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (1681-1714), dos Livros de Registro de

Casamento da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (1727-1785), das Cartas de

Sesmarias presentes na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso Brasileiro), dos Documentos

Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referentes às Capitanias do Rio Grande do Norte,

Paraíba, Pernambuco e Ceará, dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal (1659-

1759), do Catálogo de Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-1815) e dos Processos

da Inquisição de Évora relacionados ao Tribunal do Santo Ofício constantes no Arquivo Nacional da

Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

149

Segundo Carmen Alveal, como esboçado anteriormente, as instâncias de poder

existentes na Capitania do Rio Grande – de modo mais específico, a Câmara do Natal –,

bem como o universo de possibilidades de acrescentamento material e simbólico –

expressos pela concessão de sesmarias e de patentes militares das Companhias de

Ordenanças locais –, haviam funcionado como importantes mecanismos de atração de

indivíduos que não encontravam espaço de atuação política em Olinda ou em

Filipéia.112

Possivelmente, essa situação se deva ao fato de que ambas as localidades já

possuíssem, há época, seus próprios circuitos sociais do poder já encerrados, em face de

uma quantidade numérica significativa de homens com maior prestígio social e

econômico, mas cujas redes já estivessem hermeticamente fechadas.

Acrescenta-se a isso, os incentivos propagados pela Coroa portuguesa no

sentido de assegurar o domínio efetivo do território, situado na porção mais setentrional

da América, pretensões essas que faziam parte da geopolítica lusa. Exemplo disso, de

acordo com Carmen Alveal, foi o registro de um alvará, que ordenava ao Provedor da

Real Fazenda do Rio Grande, a necessidade de afixar editais sobre as terras que eram

dadas em sesmaria.113

Para aquela autora, isso demonstraria a necessidade de ocupação

do território com moradores reinóis ou mesmo por aqueles nascidos na América

portuguesa, dentre os quais se destacavam os mestiços, originando-se disso a publicação

dos editais,114

cujo objetivo precípuo era fomentar a distribuição de sesmarias para

indivíduos originários das Capitanias de Pernambuco e da Paraíba, os quais deviam

encaminhar-se à Capitania do Rio Grande.115

A isso, possivelmente, se deveu a

ocupação da escrivania concelhia do Natal por indivíduos advindos das capitanias

circunvizinhas, como se pode verificar a seguir.

Da Capitania de Pernambuco, de modo mais restrito de Suape, adviera o

Capitão Zacarias Vital Pereira.116

Nomeado para a serventia dos ofícios de escrivão da

Torre do Tombo, BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4.

Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 1993. 112

ALVEAL, Carmen. A Formação da Elite na Capitania do Rio Grande no pós-Restauração (1659-

1691). In: Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime.

Lisboa, 18-21, maio, 2011. p. 4. 113

“Registro de um Alvará por que se ordena ao Provedor da Fazenda do Rio Grande do Norte pôr editais

sobre as terras que se tem dado de sesmaria”. In: Documentos Históricos. v. 25. Rio de Janeiro: 1928. p.

456-457. Apud ALVEAL, op. cit., p. 2. 114

Ibidem. 115

Ibidem. 116

AHU-CE, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc(s). 64, 69.

Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

150

Câmara do Natal e de tabelião público, pelo Capitão-mor Sebastião Nunes Colares

(1701-1708),117

Vital Pereira exerceria a escrivania concelhia da Cidade do Rio Grande

entre 1706 e 1707.118

Após isso, Zacarias Pereira transferir-se-ia para a Capitania do

Ceará, aonde viria a obter a patente de coronel de Infantaria dessa capitania,119

chegando, inclusive a ocupar ofícios proeminentes na governança local, visto que seria

juiz ordinário da Vila de São José do Ribamar.120

Todavia, o Coronel Zacarias Vital Pereira envolver-se-ia em algumas querelas

relacionadas à transferência da Vila de Aquiraz para São José do Ribamar, algo que

motivou em sua prisão, executada pelo Capitão-mor do Ceará, Manuel da Fonseca

Jaime,121

da qual sairia ileso, motivando-o a pedir ao rei, D. João V, por meio de

requerimento enviado ao Concelho Ultramarino, em 29 de julho de 1720, recompensa

pelos danos morais que havia sofrido naquela circunstância.122

Porém, pouco mais de

cinco anos depois, em 8 de agosto de 1725, o Ouvidor-geral da Capitania do Ceará, José

Coelho Machado, enviaria carta, juntamente com uma devassa dos crimes cometidos

por Zacarias Vital Pereira nas Capitanias do Rio Grande e do Ceará.123

Em face disso,

Vital Pereira foi provisoriamente remetido preso para a cadeia de Pernambuco, a fim de

pagar pelos crimes que havia cometido, sendo posteriormente solto por ordem de D.

Manuel Rolim de Moura, governador da Capitania Pernambuco.

Observa-se da carreira do Coronel Zacarias Vital Pereira um relativo grau de

mobilidade desse agente social, que costurou e, ao mesmo tempo, interligou diferentes

espacialidades pelos domínios lusitanos na parte setentrional da América. Essa

volubilidade de homens, sobretudo nas estruturas administrativas e burocráticas do

Império, demonstra a necessidade constante que impeliu a Coroa de resolver os

problemas de escassez de recursos humanos, movimentando os parcos contingentes

habilitados que detinha, ao desempenho do mando institucional, notabilizada nessa

movimentação constante das peças que compunham o “tabuleiro de xadrez” do Império

ultramarino português.

117 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 199. 118

Ibidem. 119

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, Doc. 69. 120

Ibidem., Cx. 1, Doc. 64. 121

Ibidem. 122

Ibidem. 123

AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 32, Doc. 2895.

Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

151

A trajetória de Vital Pereira acena, ainda, para a questão da alocação de ofícios

da governança local e de patentes militares, de acordo com a proeminência social dos

sujeitos, mediante uma gradação na hierarquia de importância para a Coroa desses

mesmos espaços. Pois, se na Capitania do Rio Grande Zacarias Pereira, contando com a

patente de capitão, conseguira ocupar os ofícios de escrivão concelhio do Natal e de

tabelião público, na Capitania do Ceará conseguiria tornar-se coronel de Infantaria e

juiz ordinário da Vila de São José do Ribamar, o que demonstra que os meandros desse

sistema de poder ainda estivessem abertos nas duas primeiras décadas do século XVIII,

ao possibilitar a inserção de um adventício originário de Capitania de Pernambuco de

forma tão rápida. Soma-se a isso, possivelmente, que os circuitos do poder local do Rio

Grande – a Câmara do Natal, especificamente –, já possuíssem, na altura da chegada de

Zacarias Vital Pereira, uma elite política já consolidada, mormente no contexto da

Restauração portuguesa.

Ainda da Capitania Duartina, proviria para o exercício do ofício de escrivão

concelhio do Rio Grande, Domingos Dias de Barros. Esse escrivão era originário de São

Lourenço da Mata,124

região leste da Capitania de Pernambuco, banhada pelas águas do

Rio Capibaribe. Dias de Barros ingressou na Câmara do Natal no ofício de almotacé,

em 1688,125

tornando-se escrivão concelhio dessa edilidade 21 anos depois, em 14 de

junho de 1709.126

Domingos de Barros permaneceu no desempenho desse ofício durante

cinco anos, ou seja, até 1713, havendo também se dedicado, cumulativamente, durante

dois anos, ao ofício de tabelião público, em 1709 e em 1713,127

possivelmente em

decorrência de ambos os ofícios serem propriedades anexas um do outro.

Oriundo da Praça do Recife era Francisco de Oliveira Banhos,128

cuja inserção

nas engrenagens administrativas da Capitania do Rio Grande deu-se no ofício de

escrivão das datas e demarcações, em 1660, por provisão que deles fez o Capitão-mor

Antônio Vaz Gondim (1654-1663/1673-1677).129

Um ano depois, em 1661, Oliveira

Banhos seria mais uma vez nomeado pelo sobredito capitão-mor para o mesmo ofício

124 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1773. 125

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 126

Ibidem., Doc. 0487. 127

Ibidem., Doc. 0487, Fl. 002. 128

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação op. cit., 1752-1761. 129

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659

– 1668). Fl. 8.

Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

152

de escrivão das datas e demarcações do Rio Grande.130

Nesse mesmo ano de 1661,

contando já com a patente de ajudante, Francisco de Oliveira seria provido para a

escrivania da Câmara do Natal,131

que desempenharia diversas vezes ao longo da

segunda metade do século XVII, mas em períodos distintos, a título de provimento

precário, mormente com o exercício concomitante de outros ofícios da administração

burocrática em nível local, tais como os ofícios de escrivão dos órfãos, de inquiridor,

contador, distribuidor e escrivão da Almotaçaria, em 1663;132

escrivão dos órfãos,

escrivão da Câmara e tabelião público, em 1664;133

escrivão da Câmara e tabelião

público, entre 1667 e 1668.134

O Ajudante Francisco de Oliveira Banhos estabelecer-se-

ia, em caráter definitivo, na Capitania do Rio Grande após contrair matrimônio e

estabelecer uma numerosa descendência que se entrelaçou com ramos importantes de

diferentes estirpes locais.

Da Cidade de Olinda era Manuel de Melo e Albuquerque – o Velho –, filho de

André de Albuquerque e Maria do Espírito Santo Arcoverde,135

Manuel de Melo serviu

durante dois anos como Alferes da Companhia de Ordenança de Domingos Francisco

Mendonça e foi Tenente de uma tropa de cavalos de Lázaro Frazão Caldeira, ambos na

Capitania de Pernambuco,136

antes de rumar para a Capitania do Rio Grande. A primeira

referência que consta sobre Manuel de Melo e Albuquerque trata-se da menção desse

agente no ofício de escrivão da Câmara do Natal, em 1690.137

Em seguida, doze anos

depois, em 22 de novembro de 1702, ganhava a patente de Capitão da Ordenança da

Ribeira do Assú.138

Mais tarde, assumiria, ainda, diversos outros ofícios da cúpula

camarária do Natal, o que o levaria a figurar sempre no grupo da gente da governança

local. Ressalta-se que, no final da primeira metade do século XVIII, mais precisamente

em 1746, dois filhos de Manuel de Melo e Albuquerque – Caetano e outro, homônimo

130 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659

– 1668). Fl. 10v. 131

Ibidem., Fl. 12. 132

Ibidem., Fl. 38. 133

Ibidem., Fl. 59. 134

Ibidem., Fl. 38v. 135

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 284. 136

Fundo documental do IHGRN, op. cit., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 11. 137

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). p. 62. 138

Fundo documental do IHGRN. loc. cit.

Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

153

do pai – também vieram a desempenhar o ofício de escrivão concelhio daquela

edilidade, como se verá posteriormente.139

À aproximadamente 27 km da Cidade de Olinda – e a 18 km da Vila do Recife

–, nascia na Freguesia de Santo Amaro do Jaboatão – difusamente conhecida por haver

sido palco da Batalha dos Guararapes, na qual, na primeira metade do século XVII,

luso-brasileiros lutaram contra os flamengos pela hegemonia territorial da Coroa

portuguesa –, Teodósio Freire de Amorim, filho de Gonçalo Freire de Carvalho e de

Catarina de Amorim, sendo seu pai português, natural da Vila de Amarante,

Arcebispado de Braga, e sua mãe natural da referida freguesia.140

Teodósio de Amorim

assumiria a escrivania da Câmara do Natal em 1743,141

com a patente de Alferes, e

seria, nesse mesmo ano, eleito almotacé para os meses de maio e junho.142

Originário da vizinha Capitania da Paraíba era o Alferes Zacarias de Oliveira

Ribeiro,143

que foi nomeado tabelião público do judicial e notas da Capitania do Rio

Grande, pelo Capitão-mor Manuel Muniz (1682-1685), em 11 de janeiro de 1680.144

O

Comissário Zacarias de Oliveira Ribeiro desempenharia o ofício de escrivão da Câmara

do Natal entre 1683 e 1687.145

Contudo, sabe-se que já em 1696, Oliveira Ribeiro ter-

se-ia transferido novamente para a Capitania da Paraíba, onde havia aparecido como

morador em um requerimento efetuado ao rei D. Pedro II, no qual solicitava, em 7 de

setembro de 1696, juntamente com Luiz Queixada de Luna, Antônio de Almeida de

Castro e Pedro da Silva Lima, poder recorrer das culpas de que era acusado em uma

residência – tipo de investigação sobre conduta de um juiz ou ouvidor –, tirada sobre o

Ouvidor Geral da Paraíba, Diogo Rangel de Castelo Branco.146

Também da Capitania da Paraíba era o Alferes Manuel Trigueiros Soares, que

havia sido provido, em 28 de julho 1693, para o ofício de tabelião público pelo Capitão-

139 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). p. 271. 140

Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de habilitação de João Gomes Freire para

comissário do Santo Ofício. 141

LOPES, loc. cit., p. 261. 142

Ibidem., Doc. 1365. 143

Carta de Sesmaria doada a Zacarias de Oliveira Ribeiro e outros, em 03 de outubro de 1680.

Plataforma SILB – RN 0033. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:

07/07/2017. 144

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl. 83. 145

LOPES, loc. cit. 146

AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 200.

Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

154

mor da Capitania do Rio Grande, Sebastião Pimentel (1692-1693).147

Trigueiros Soares

teria, ainda, assinado um termo de fiança naquele mesmo dia, após o reconhecimento

pelos camarários do seu fiador e principal pagador, Pedro da Costa Faleiro, assegurando

que mandaria vir da Capitania da Paraíba sua esposa e seus familiares.148

Manuel Soares

seria escrivão da Câmara do Natal entre 1694 e 1696,149

falecendo repentinamente nesse

último ano, seria sucedido no ofício por Carlos da Rocha, por portaria do Capitão-mor

Antônio de Carvalho e Almeida (1701-1705), que ordenava ao dito Carlos da Rocha

que fosse exercer aquele ofício que estava vago, visto a imprescindível necessidade do

mesmo para se assistir as diligências do Concelho do Natal.150

Advindo da extinta Capitania de Itamaracá, mais precisamente da Freguesia de

São Cosme e Damião de Igarassu, era Estevão Velho de Melo, filho de Amaro

Gonçalves Maciel e de sua esposa, Catarina de Sena.151

Estevão Velho de Melo serviu

em três diferentes períodos na serventia do ofício de escrivão do Senado do Natal, entre

1713-1717, em 1719 e entre 1725-1726.152

A entrada de Estevão Velho naquele ofício

deu-se por “deixação” de Domingos Dias de Barros – escrivão da Câmara do Natal

entre 1709-1713 –, levando o Capitão-mor do Rio Grande, Domingos Amado (1715-

1718), por solicitação efetuada pelo próprio Estevão Velho de Melo, a provê-lo na

serventia da escrivania concelhia do Natal, em 14 de junho de 1716, pois estaria no

exercício daquele ofício havia algum tempo, a rogo dos oficiais camarários.153

Quatro

dias depois, em 18 de junho de 1716, Estevão Velho era agraciado, pelo mesmo capitão-

mor que o proveu anteriormente no ofício de escrivão do Concelho do Natal, com a

patente de Capitão de Cavalos do Distrito da Cidade do Natal e das Ribeiras do Ceará-

mirim e do Potengi, figurando em sua justificativa toda a série de serviços que até então

havia prestado a Sua Majestade durante o período de “[...] dois anos, sete meses e vinte

e cinco dias, em praça de Cabo de Esquadra de Infantaria no Terço Paulista da conquista

dessa campanha, ocupando o posto de Alferes de uma Companhia dos de a cavalos

147 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. (no prelo). Doc. 0390. 148

Ibidem. 149

Ibidem. 150

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 27. 151

TRINDADE, João Felipe. O Escrivão da Fazenda Real, Estevão Velho de Mello. Natal, 26 jun.

2012. Disponível em: <https://putegi.blogspot.com.br/search?q=Estev%C3%A3o+Velho+de+Melo>

Acesso em: 13/09/2017. 152

LOPES, loc. cit. 153

Fundo documental do IHGRN. op. cit., livro 06 (1713-1720). Fl.44v.

Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

155

[...]”, a que se acrescentava na mesma carta patente, “[...] achando-se em algumas

ocasiões de guerra contra o gentio bárbaro, [...] e ter servido o cargo de Almotacé e de

presente estar servindo [...] na ocupação de escrivão da Fazenda Real”.154

Curioso seria

o fato de Estevão Velho de Melo não haver pontuado o exercício do ofício de escrivão

da câmara, onde estaria, naquela altura, com três anos de efetivo exercício.

Visto tudo isto, compreende-se que vários foram os motivos que haviam levado

a transferência dos indivíduos que ocuparam a escrivania da Câmara do Natal a saírem

de suas paragens de origem para a Capitania do Rio Grande. Verificou-se, ainda, que

vários deles já possuíssem alguma patente militar nas companhias de ordenanças locais,

antes mesmo do ingresso no ofício de escrivão concelhio, algo que ficará mais evidente

no tópico que tratará dessa questão, bem como no que se refere à barganha de terras,

com a consequente criação de gado, no contexto da interiorização das conquistas

portuguesas, processada pelo incremento da atividade pecuária pelos sertões da

Capitania do Rio Grande.

2.1.3 Os escrivães da Câmara do Natal oriundos da Capitania do Rio Grande

Como asseverou Nuno Gonçalo Monteiro, em Os Concelhos e as

Comunidades, os poderes municipais tenderam a ser, pelo próprio sistema de escolha de

seus componentes, oligarquizados,155

passando de geração em geração. Exemplo disso,

na Capitania do Rio Grande, foi à ocupação de alguns dos ofícios da Câmara do Natal e,

em particular, do ofício de escrivão camarário, por alguns indivíduos de uma mesma

família. Acresce-se a isso, o fato de que a hegemonia do poder por algumas estirpes foi

materializada e institucionalizada, na Capitania do Rio Grande, por meio de um acórdão

realizado pelos oficiais da Câmara do Natal, em 16 de maio de 1677, que vetava o

acesso de forasteiros aos cargos e ofícios daquela municipalidade.156

Verificava-se, com

isso, o estabelecimento de um mecanismo político, em nível local, que concederia uma

espécie de proteção e de segurança às famílias que já andavam na governança municipal

154 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 45v. 155

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel

(coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 288. 156

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0084.

Page 156: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

156

da Cidade do Natal. Essa situação corrobora com a afirmação de Nuno Gonçalo

Monteiro, segundo o qual a tendência para a oligarquização do poder camarário se

configuraria enquanto uma possibilidade legal que os locais tinham para subsistir às

autoridades centrais.157

Curiosamente, dentre os onze indivíduos que assinaram aquele

requerimento, constava o nome do Capitão Francisco de Oliveira Banhos – retratado no

tópico anterior como oriundo da Capitania de Pernambuco –, que foi escrivão da

Câmara do Natal em diferentes períodos da segunda metade do século XVII.

Evidencia-se, no entanto, que esse termo restritivo havia aberto margem para o

ingresso de forasteiros que fossem letrados.158

Talvez, essa estreita brecha que ficava

aberta no referido termo se remetesse a uma estratégia, desenvolvida pela elite política

local, para filtrar não apenas o acesso aos postos camarários, mas também com o

objetivo implícito de atrair indivíduos de maior qualidade social para aquele sistema de

poder e, talvez, de modo secundário, refinando as possibilidades de melhoramento

social das próprias famílias locais, mediante a instauração de laços matrimoniais entre

os adventícios letrados e as filhas dos poderosos locais.

A força que esse termo adquiriu foi tamanha que, ao se apresentar mesmo

portando uma provisão do Governador Geral do Estado do Brasil, Afonso Furtado de

Castro do Rio de Mendonça, para os ofícios de Ouvidor e de Provedor da Capitania do

Rio Grande, na pessoa de Lázaro de Freitas de Bulhões,159

datada de novembro de 1676

– ou seja, um ano antes da aprovação do termo que restringia o acesso de pessoas de

fora da capitania aos ofícios locais, fora objetada pelos oficiais da Câmara do Natal, em

157 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel

(coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 289. 158

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0084. 159

Diferentemente do que se aponta na historiografia, constatou-se que a Capitania do Rio Grande

possuiu Ouvidoria própria entre 1659 e 1684, datas relativas, respectivamente, a primeira e a última

provisão do ofício de ouvidor, em meio a esparsa documentação, encontrou-se também provisões para os

ofícios de escrivão e de meirinho da Ouvidoria do Rio Grande, a qual fora provida em agentes radicados

na mesma Capitania como, por exemplo, Pedro da Costa Faleiros. Com a extinção desse órgão e a criação

da Ouvidoria Geral da Paraíba em 1688, a Capitania do Rio Grande, bem como a de Itamaracá e a do

Ceará passaríam à jurisdição judiciária do Ouvidor Geral da Paraíba. Fundo documental do IHGRN.

Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 35v; MENEZES,

Mozart Vergetti. Colonialismo em Ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na capitania da Paraíba

(1647-1755). Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 51;

PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo à sombra das Leis: Antonio Soares Brederode entre a justiça e a

criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. p. 92, nota 68; CAETANO, Antônio Filipe Pereira. Conflitos

judiciais, espaços de jurisdição e estruturação administrativa da justiça na Capitania do Rio Grande

(Comarca da Paraíba/ Rio Grande do Norte, 1789-1821). In: Revista Espacialidades [online]. vol. 9, jan-

jun, n. 1. 2016. p. 88.

Page 157: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

157

observância do termo anteriormente descrito.160

Pondera-se que em razão do tempo

administrativo, como explicitou Heloísa Belloto, no qual a conformação territorial do

Império, entrecortado por dilatadas distâncias físicas e temporais, foram vetores de erros

e de distorções tanto na esfera administrativa, quanto militar.161

Nesse sentido, pode-se

explicar que, mesmo que o termo restritivo dos oficiais concelhios do Natal tenha sido

sancionado um ano depois das provisões de Lázaro de Freitas de Bulhões, para os

ofícios de ouvidor e de provedor da Capitania do Rio Grande, possivelmente, esse

indivíduo tenha chegado à Cidade do Natal, onde havia efetuado os provimentos nos

ditos ofícios, quando aquele termo já estivesse em vigor, ou seja, depois de 16 de maio

de 1677.

Em face disso, ressaltava os oficiais camarários – cuja data está ilegível –, em

carta ao Governo Geral, sobre o porquê de não haverem dado posse à Lázaro de Freitas

de Bulhões, posto que seria “[...] em prejuízo do povo desta capitania [...]”.162

E,

continua a carta, por existir “[...] um termo que assinado por muitos do povo da

Capitania que impedia aceitar-se homem nessa cidade que não fosse morador nela e de

qualidade, exceto homem vindo do reino [...]”.163

Para manter a resistência a diretiva do

Governo Geral sobre a nomeação de Lázaro de Freitas, os camarários escreveram uma

carta, em 4 de dezembro de 1678, ao Governador João Fernandes Vieira, a fim de que

este “apadrinhasse a causa” no partido deles.164

Não obstante, a carta enviada ao Governo Geral redundou em severa represália

por parte do Governador Geral, Roque da Costa Barreto, que, em carta escrita da Bahia,

em 5 de agosto de 1679, afirmou que a resposta da carta remetida a ele deveria ser “[...]

mandar todos presos a esta cidade para serem castigados como mereciam [...] pois V.

M.ces

são súditos e não tem jurisdição para fazer a suas vontades contra as disposições

do Governo Geral [...] e que tratem de obedecer o que lhes ordenar [...]”.165

Depreende-

se dessa disputa, que mesmo que os representantes do poder local tentassem resistir as

160 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). 161

BELLOTO, Heloísa L. O Estado português no Brasil: Sistema administrativo e fiscal. In: SILVA,

Maria Beatriz N. da (coord.). O Império luso-brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editora Estampa, 1986. p.

265; BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 353. 162

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl. 35v. 163

Ibidem. 164

Ibidem. 165

Ibidem., Fl. 48v.

Page 158: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

158

investidas do centro – estabelecendo estratégias próprias –, esse também possuía

mecanismos de controle e de punição efetivos que tinha em vista alinhavar as forças

centrífugas locais às diretrizes do poder central. O fechamento dessa disputa ocorreu

com uma carta em que os novos oficiais, empossados em 1680, se retrataram com o

Governador Geral e na qual informavam também que haviam investido, por fim, Lázaro

de Freitas de Bulhões no ofício de Provedor,166

como se pode averiguar em uma carta,

datada de 22 de outubro de 1679, na qual aqueles oficiais tentavam se eximir das culpas

pelas quais haviam vetado o acesso de Lázaro de Bulhões, recolocando-as nos oficiais

camarários que haviam servido em 1678. Mais uma vez, observa-se a influência do

chamado tempo administrativo que, conforme Heloísa Belloto, paralisaria, retardaria e

dificultaria a ação administrativa, em um período no qual a travessia Atlântica levaria

alguns meses.167

Visto tudo isto, observa-se, ainda, que mesmo diante das represálias do

Governador-Geral, Roque da Costa Barreto, ao referir-se que os camarários locais não

possuíam poder ou jurisdição para impetrar dispositivos avessos as determinações

daquele comando, verifica-se, para o caso do ofício de escrivão concelhio, que diversos

agentes ligados às oligarquias locais – quer por vínculos consanguíneos ou clientelares

–, foram preponderantes, como se observa no Gráfico 03, onde consta que 40,00% (6)

dos escrivães camarários do Natal, com suas origens identificadas, eram naturais da

Capitania do Rio Grande.

Natural e morador na Cidade do Rio Grande do Norte foi Alexandre de Melo e

Pinto, filho de José de Melo da Costa e de Dona Maria do Espírito Santo.168

Melo e

Pinto havia exercido a serventia, em título precário ou temporário, do ofício de escrivão

camarário do Natal em 1746, ano em que também exerceram o mesmo ofício outros três

escrivães: os Capitães Manuel de Melo e Albuquerque, Manuel Álvares Bastos e

Manuel Antônio Pimentel de Melo.169

Esses dois últimos também eram naturais da

166 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl. 48v. 167

BELLOTO, Heloísa L. O Estado português no Brasil: Sistema administrativo e fiscal. In: SILVA,

Maria Beatriz N. da (coord.). O Império luso-brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editora Estampa, 1986. p.

265. 168

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1740-1752. DSC02845 169

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 271.

Page 159: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

159

Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande,170

sendo Manuel Álvares

Bastos filho do Licenciado Francisco Álvares Bastos,171

o Capitão Manuel Antônio

Pimentel de Melo, filho do Tenente Coronel Estevão Velho de Melo e de Joana Ferreira

de Melo,172

e o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque filho de outro Manuel de Melo

e Albuquerque e de Dona Eugênia Rodrigues de Sá.173

Sendo, portanto, esses dois

últimos agentes filhos de ex-escrivães camarários.

O Licenciado Manuel Álvares Bastos ter-se-ia dedicado, através de concessão

precária, na serventia do ofício de escrivão concelhio do Natal em dois períodos

distintos, a primeira vez em 1732174

e a segunda por um espaço de tempo mais longo,

que foi de 1738 a 1746.175

Nesse derradeiro ano de 1746, Manuel Álvares Bastos teria

alcançado uma provisão de um ano para permanecer naquela serventia de ofício, por

nomeação do Capitão-mor do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques

(1739-1751).176

Contudo, essa provisão seria recusada por parte dos oficiais camarários

do Natal, que em termo de declaração, datado de 15 de junho de 1746, afirmavam que o

referido escrivão havia se antecipado em requerer novamente a dita serventia, posto que

os oficiais camarários não mais o admitissem no exercício do referido ofício, por já ser

notória sua incapacidade.177

Em justificação ao Capitão-mor Francisco Xavier de

Miranda Henriques, os oficiais camarários expunham que Manuel Álvares Bastos havia

mentido ser licenciado, como era público ser seu pai – Francisco Álvares Bastos – e, por

fim, aqueles oficiais pediam que o Capitão-mor nomeasse outro “sujeito” que fosse

capaz.178

Na sequência, têm-se a nomeação de Manuel Antônio Pimentel de Melo para a

serventia de escrivão camarário da Cidade do Natal, também efetuada de maneira

precária ou temporária, efetuada pelo Capitão-mor Francisco Xavier de Miranda

170 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1740-1752. DSC02849 171

Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09

(1743 – 1754). Fl. 1v. 172

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. CX02. DOC. 0069 (f. 15v). 173

Ibidem., CX01. DOC. 0057 (f. 35v). 174

Fundo documental do IHGRN. Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17

(1728 – 1736). Fl. 72v. 175

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 176

Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09

(1743 – 1754). Fl. 49. 177

Ibidem., Fl. 50. 178

Ibidem.

Page 160: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

160

Henriques (1739-1751), em observância a ser Manuel Antônio “homem de suficiência e

capacidade” para o exercício do sobredito ofício, em substituição a Manuel Álvares

Bastos.179

Manuel Antônio Pimentel de Melo permaneceria nessa serventia durante dois

longos períodos, que foi de 1746 até 1753 e de 1760 à 1767.180

Francisco de Souza e Oliveira, também natural e morador da Freguesia de

Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande,181

era filho de Feliz de Souza e de

Antônia Leite de Oliveira. Antes de se fixar na sobredita freguesia, Souza e Oliveira foi

morador na Ribeira do Jaguaribe, como consta de seu casamento com Tecla Pinheiro

Teixeira.182

Francisco de Souza e Oliveira foi serventuário do ofício de escrivão da

Câmara do Natal em 1747, onde consta como sendo sua ocupação o ofício de escrivão

público do judicial.183

Natural da Cidade do Rio Grande era Caetano de Melo e Albuquerque, filho do

então Provedor da Fazenda Real, o Tenente Manuel de Melo e Albuquerque – que

serviu o ofício de escrivão da Câmara do Natal, em 1690 –, e de sua esposa, Dona

Eugênia Rodrigues de Sá.184

O Sargento-mor Caetano de Melo e Albuquerque, serviria

o ofício escrivão da Câmara do Natal, a título de serventia, em 1737,

concomitantemente com o exercício da escrivania dos órfãos daquela edilidade.185

O

irmão de Caetano Albuquerque, o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque – homônimo

de seu pai –, também havia desempenhado a escrivania concelhia do Natal, por duas

ocasiões, nos anos de 1746 e 1747.186

Como se observa no parágrafo anterior, a escrivania do Concelho do Natal fora

ocupada, em momentos distintos, por indivíduos que estavam vinculados por laços de

consanguinidade, uns mais próximos, como apontado acima – um pai e dois filhos –, e,

noutros casos, por agentes que tinham ligações familiares mais distantes. Isso

demonstraria que o processo de “oligarquização” das câmaras municipais espraiadas

179 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09

(1743 – 1754). Fl. 51. 180

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 181

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1785. DSC. 02677. 182

Ibidem., Livro de Casamentos, 1727-1740. DSC. 0118. 183

LOPES, loc. cit., p. 276. 184

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. CX01. DOC. 0057 (f. 17). 185

LOPES, op.cit., p. 226. 186

Ibidem., p. 272, 277.

Page 161: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

161

pelo ultramar, observado por Nuno Gonçalo Monteiro, para o caso dos ofícios elegíveis

– juiz ordinário, vereador e procurador –,187

havia alcançado, para o caso da Câmara do

Natal, o ofício de escrivão dessa instituição.

Salienta-se, ainda, que a patrimonialização, ou seja, a incorporação do ofício de

escrivão aos bens de uma determinada família ocorreria com o domínio do ofício, como

em outras partes do Império, garantida pela “carta de propriedade”. Esse documento era

um instrumento de caráter jurídico, no qual o rei concedia manuscritamente, a um

vassalo a posse nominal do exercício de um ofício, sem indicação prévia de prazo,

podendo, inclusive, ser transmitido hereditariamente, desde que, para isso, os sucessores

assim recorressem à El Rey. Nesse sentido, observou-se, para o caso da Câmara do

Natal, que o ofício de escrivão dessa instituição havia sido patrimonializado por dois

indivíduos de ascendências diversas, em momentos distintos da primeira metade do

século XVIII, através da obtenção de carta de propriedade. Contudo, a escrivania

concelhia do Natal havia sido “oligarquizada”, isto é, dominada por agentes que

integravam uma mesma parentela, através da serventia por provimento precário ou

mesmo temporário desse ofício e não da propriedade. A serventia consistia no repasse

do proprietário a terceiros, do direito de servir no ofício, por período de tempo

previamente estabelecido, a partir da cobrança da terça parte dos rendimentos que

deviam ser pagos a cada ano.188

Como se verá no próximo capítulo, constatou-se que o

ofício de escrivão concelhio do Natal, na primeira metade do século XVIII, tendeu a ser

dominado por uma família que já andava na governança local, presumindo, como

indicou Nuno Gonçalo Monteiro, na equiparação dos componentes da administração da

Coroa com os efetivos dos concelhos municipais.189

Ressalta-se que a quantidade expressiva de agentes advindos de outras

paragens – das Capitanias de Itamaracá, Paraíba e Pernambuco, bem como do reino –

para a ocupação do ofício de escrivão da Câmara do Natal, relacione-se ao processo de

expansão das áreas de conquistas, bem como da frente de colonização que se

empreendia nas áreas recém-integradas, o que se leva a compreender que esse processo

187 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel

(coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 289. 188

STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia portuguesa do século XVIII. In:

STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:

Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-mar, 2012.

p. 286, nota 31. 189

MONTEIRO, op. cit., p. 289-290.

Page 162: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

162

passava também pelo desempenho da escrivania concelhia que, assim como as demais

esferas da administração, foram utilizadas para cooptar agentes sociais interessados em

se instalarem em uma nova praça colonial, garantindo a posse dessas para a Coroa lusa.

Em face disso, explica-se a diminuta quantidade de indivíduos originários da Capitania

do Rio Grande, cujas referências a esses agentes somente começaram a aparecer a partir

da terceira e quarta década do setecentos. Alguns deles identificados como filhos de

indivíduos provenientes de Pernambuco ou de Itamaracá, havendo, inclusive, exercido a

escrivania camarária, assim como seus progenitores. Nessa fase, têm-se os filhos

advindos do enraizamento das famílias que haviam chegado entre o final do século

XVII e o início do século XVIII, que a partir da barganha de sesmarias, patentes, da

posse de escravos e gados, se tornaram a elite política e econômica da Capitania do Rio

Grande.

No próximo capítulo, enfatizar-se-á mais detidamente a família enquanto

instituição elementar no processo de estruturação social do Antigo Regime, destacando

o sobrepeso dessa organização no acesso ao ofício de escrivão camarário do Natal, entre

o final do século XVII e a primeira metade do século XVIII – mesmo que, em algumas

situações, essa possibilidade tenha se arrastado até as duas primeiras décadas do século

XIX. Para isso, se analisará a história de uma família específica – os Rodrigues de Sá –,

que durante largo período de tempo teve diversos de seus membros, parentes ou

aderentes, ocupando, a título precário, a escrivania da Câmara do Natal. A seguir passa-

se a análise do perfil social e econômico dos escrivães da Câmara do Natal.

2.2 O perfil social dos escrivães da Câmara do Natal

Em seu estudo A formação da Elite na Capitania do Rio Grande no pós-

Restauração (1659-1691), Carmen Alveal havia reiterado que os ofícios honoráveis da

Câmara do Natal – juiz ordinário, vereador e procurador – haviam sido ocupados por

agentes sociais que haviam participado da Restauração do domínio português na

Capitania do Rio Grande. Acrescenta-se a isso, o envolvimento que estes homens

tiveram na chamada Guerra dos Bárbaros, quando da interiorização da pecuária

naquela capitania. A partir desses dois eventos, começava-se a cimentar o processo de

formação da elite da Capitania do Rio Grande, posto que muitos granjeassem mercês

Page 163: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

163

como patentes das companhias de ordenanças locais e sesmarias pelos sertões dessa

capitania, no requerimento das quais se tinham, em meio a outras justificativas, a luta

contra os neerlandeses e o combate ao gentio bárbaro.190

Assim, ao estabelecer o perfil social dos integrantes dessa elite camarária, que

era proprietária de terras e detentora de patentes das companhias de ordenanças, o que

fazia com que esses homens configurassem como um “grupo seleto” no universo social

local, ao formar a elite política e econômica da Capitania do Rio Grande, Carmen

Alveal conseguiu rastrear 134 indivíduos que haviam ocupado os ofícios honoráveis da

Câmara do Natal. Para o caso dos escrivães dessa municipalidade, percebeu-se que dos

42 indivíduos que haviam ocupado esse ofício, ao longo dos 146 anos analisados, 27

daqueles eram possuidores de sesmarias, como se pode verificar da análise do Gráfico

04.

Gráfico 04 - Proporção entre escrivães sesmeiros e escrivães não-sesmeiros na

Capitania do Rio Grande (1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira, em 26/06/2016.

191

190 ALVEAL, Carmen. A Formação da Elite na Capitania do Rio Grande no pós-Restauração (1659-

1691). In: Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime.

Lisboa, 18-21, maio, 2011. 191

Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do

Natal (1659-1759), dos Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do Rio Grande do Norte e das

cartas de sesmarias constantes na Plataforma SILB – Sesmarias do Império Luso-brasileiro. Disponível

em: http://www.silb.cchla.ufrn.br.

Page 164: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

164

O Gráfico 04 habilita-nos a verificar a quantidade total de escrivães que

possuíam datas de sesmarias e aqueles que não as detiverem. No entanto, ressalta-se que

essas propriedades de terras foram doadas tanto na Capitania do Rio Grande, quanto nas

circunvizinhas Capitanias da Paraíba e do Ceará. Entretanto, aponta-se que a maioria

desses escrivães possuíssem terras na Capitania do Rio Grande, dos quais se constatou

que 23 escrivães possuíam títulos de sesmarias nessa capitania, 2 escrivães camarários

assenhoraram-se, exclusivamente, de terras na Capitania do Ceará, e 1 acumulou

propriedades em ambas as Capitanias. Apenas 1 escrivão era proprietário de único título

de sesmaria na Capitania da Paraíba. Ressalta-se que um mesmo escrivão possuiu mais

de uma gleba de terras. Isso aumenta sensivelmente a quantidade total de sesmarias em

relação ao número total de escrivães. Reitera-se, ainda, que o acesso às datas de

sesmarias pelos agentes que exerceram a serventia do ofício de escrivão concelhio da

Câmara do Natal ocorre em três momentos distintos: antes, durante e após o provimento

no ofício de escrivão camarário.

Para exemplificar um escrivão que era detentor de terras apenas na Capitania

do Rio Grande, tem-se o Alferes Manuel Rodrigues Taborda, natural da Vila de

Buarcos, na Freguesia de São Pedro, Arcebispado de Coimbra.192

Taborda foi escrivão

da Câmara do Natal entre 1704-1706,193

recebeu quatro concessões de sesmarias pela

Capitania do Rio Grande, a primeira delas em 17 de abril de 1714,194

seguidas por

outras três concessões. A segunda carta tratar-se-ia de uma sesmaria urbana, situada na

Cidade do Natal e contígua a outras terras do mesmo Alferes Manuel Rodrigues

Taborda. Essa sesmaria urbana havia sido concedida em 06 de outubro de 1719, após

fazer referência de que pretendia fazer casas e que já estaria a ocupar a terra

requerida.195

Na terceira carta, concedida em 16 de outubro de 1716, no Riacho da Cruz,

na Ribeira do Apodi, Manuel Taborda alegava possuir gado e outras criações.196

Na

192 Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, ano de 1697. 193

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl(s). 32, 105V. 194

Carta de sesmaria doada a Manuel Rodrigues Taborda em 17 de abril de 1714. Plataforma SILB –

RN 0372. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 195

Ibidem., em 05 de outubro de 1716. Plataforma SILB – RN 0982. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 196

Ibidem., em 16 de outubro de 1716. Plataforma SILB – RN 0347. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017.

Page 165: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

165

última dessas cartas peticionadas, quatro dias após a anterior, em 20 de outubro de

1716, suplicava a mercês de outra gleba de terras também situada na Ribeira do Apodi,

alegando, para isso, que era morador na Capitania do Rio Grande, pretendendo criar

nela gados, visto que já possuísse rebanhos vacuns e cavalares.197

Como exemplo de escrivão camarário que havia adquirido título de sesmaria na

Capitania do Ceará, ter-se-ia a figura de Zacarias Vital Pereira, que havia exercido a

serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal entre 1706 e 1707, juntamente com

o tabelionado do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande.198

Um ano

depois, em 22 de janeiro de 1708, o Capitão Zacarias Vital Pereira estava a peticionar a

propriedade de uma sesmaria encravada na Ribeira do Banabuiú, visto que não possuía

terras para a criação de gados vacuns e cavalares que detinha.199

Possivelmente, a posse

de terras e de rebanhos de gados transformara o Capitão Zacarias Vital Pereira em uma

pessoa de importante prestígio social na Capitania do Cerará, na segunda década do

século XVIII, dado que em 1720 estivesse a solicitar à D. João V a confirmação da

patente de Coronel de Infantaria dessa Capitania,200

havendo anteriormente exercido o

honorável ofício de juiz ordinário da Vila de São José do Ribamar.201

Reitera-se que na

esteira desse processo de nobilitação estivesse o exercício do ofício de escrivão

concelhio do Natal, do qual, possivelmente decorresse certa dose de prestígio social.

O caso da Zacarias Vital Pereira, assim como de vários outros escrivães

concelhios, arrolados ao longo desse texto, advindos tanto do ultramar quanto do reino,

sinalizava, ainda, para o fato de que a sociedade móvel, em fase de elaboração, durante

o processo de conquista/colonização, passaria também pelas provisões do ofício de

escrivão camarário, visto que as nomeações para essa escrivania eram utilizadas como

mecanismos para atraírem elementos humanos de diferentes partes do Império.

Nesse meio termo, assevera-se a possibilidade de acumular propriedades de

sesmarias por um mesmo sesmeiro em diferentes capitanias. Esse havia sido o caso do

escrivão concelhio do Natal, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa, que serviu nesse

197 Carta de sesmaria doada a Manuel Rodrigues Taborda em 20 de outubro de 1716. Plataforma SILB –

RN 0349. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 198

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 86. 199

Carta de sesmaria doada a Zacarias Vital Pereira em 22 de janeiro de 1708. Plataforma SILB – CE

0301. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 200

AHU-CE, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 69. 201

Ibidem., Doc. 64.

Page 166: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

166

ofício durante quase uma década, desde 1679 até 1688.202

Pontua-se que Antônio Lopes

já seria sesmeiro antes de ingressar no ofício de escrivão camarário, visto que a primeira

concessão de sesmaria que obteve datasse do ano de 1674 e a segunda de 1676.203

Em

ambas as cartas, Lopes de Lisboa justificava ser o descobridor e primeiro povoador das

ditas terras, que antes se encontravam em poder do gentio bárbaro.204

Além disso,

afirmava, na primeira carta, não possuir terras, mas que pretendia criar gados.205

Com as

mesmas justificativas, acrescidas de que pretendia ajudar no povoamento da Capitania

do Ceará, o Capitão Antônio Lopes de Lisboa requereu data de sesmaria no Rio Choró,

na Ribeira do Ceará, e que a dita terra não teria sido povoada até o momento por

homens brancos, suplicando que o Capitão-mor do Ceará, Sebastião de Sá, lhe fizesse

esta mercê, pois teria tido gastos consideráveis de sua fazenda na luta que empreendeu

aos gentios bárbaros que ali habitavam, reduzindo-os a fé cristã.206

Contudo, observa-se que no momento em que requereu essa última carta de

sesmaria, Lopes de Lisboa ainda se encontrasse no exercício do ofício de escrivão da

Câmara do Natal,207

o que abre margem para se discutir o grande envolvimento dos

oficiais da Câmara do Natal, sem exceção dos ofícios que desempenhassem nessa

edilidade, durante os embates que afligiram no pós-Restauração, no contexto local da

Guerra dos Bárbaros, contribuindo para a expansão das áreas de colonização da

Capitania do Rio Grande, ao incorporar novos espaços, ora aos domínios reais dessa

capitania,208

ora ao do Ceará. E o exercício da escrivania concelhia do Natal, mais uma

vez, concederia condições de fixação a esses novos colonos.

202 Fundo documental do IHGRN. op. cit., Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 44v; Ibidem., Livro 2 (1673 –

1690). Fl. 106v; LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da

Câmara do Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p.

24, 28, 32, 35, 39, 43, 45, 48, 51, 55. 203

Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de Lisboa em 03 de novembro de 1674. Plataforma SILB –

RN 0023. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017; Ibidem., em 19 de

março de 1676. Plataforma SILB – RN 0030. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca.

Acesso em: 26/09/2017. 204

Ibidem., em 03 de novembro de 1674. Plataforma SILB – RN 0023. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017; Ibidem., em 19 de março de 1676.

Plataforma SILB – RN 0030. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:

26/09/2017. 205

Ibidem. 206

Ibidem., em 13 de outubro de 1680. Plataforma SILB – CE 0013. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 207

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 28. 208

Recentemente, foi defendida uma dissertação no Programa de Pós-graduação em História da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que discutia essa temática da influência e envolvimento

Page 167: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

167

Também sesmeiro foi o escrivão da Câmara do Natal Zacarias de Oliveira

Ribeiro, que se dedicou a esse ofício durante dois períodos, juntamente com o

tabelionato do judicial e notas da Capitania do Rio Grande.209

No primeiro deles, entre

1682 até 1685,210

constava em sua provisão que, inicialmente, Oliveira Ribeiro teria

então assumido a escrivania da Câmara do Natal e o tabelionato do público, judicial e

notas da Capitania do Rio Grande, devido à ausência de seu anterior ocupante, o Alferes

Antônio de Barros Alfenas, que se encontrava em viagem à Bahia e que,

posteriormente, iria ao Rio de Janeiro.211

Quando Zacarias Ribeiro assumiu a escrivania

da Câmara do Natal em 1682,212

seria proprietário de uma data de sesmarias nas

proximidades do Rio Butis, na Capitania da Paraíba, onde, segundo a carta, era então

morador, cuja concessão ocorreu em 03 de outubro de 1680,213

ou seja, apenas dois anos

antes de assumir a escrivania concelhia do Rio Grande. A justificativa apresentada por

Zacarias Ribeiro seria a necessidade de terras para apascentar gados.214

Mesmo que o

Comissário Geral de Cavalaria, Zacarias de Oliveira Ribeiro, não tivesse ascendido aos

postos honoráveis da Câmara do Natal, serviria em outras escrivanias pela Capitania do

Rio Grande, como o ofício de escrivão de órfãos215

e a escrivania da Real Fazenda do

Rio Grande.216

Visto tudo isto, pode-se inferir que o ofício de escrivão da Câmara do Natal

havia sido ocupado em momentos distintos, por uma quantidade significativa de

homens detentores da posse de glebas de terras. Mesmo que para a nomeação nesse

ofício ser possuidor de datas de sesmarias não fosse imperativo, essa constatação

subsidia outras conjecturas que estejam associadas à posse de cabedais significativos

dos oficiais da Câmara do Natal nos embates que se travavam no interior da Capitania do Rio Grande

contra o gentio bárbaro. Para saber mais, ver ALENCAR, Júlio César Vieira. “Para que enfim se

colonizem estes sertões”: a Câmara de Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722). Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017. 209

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl. 69; Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690).

Fl. 75, 79v, 86, 104. 210

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 20, 28. 211

Fundo documental do IHGRN. op. cit., Fl.69. 212

Ibidem. 213

Carta de sesmaria doada a Zacarias de Oliveira Ribeiro em 03 de outubro de 1680. Plataforma SILB

– PB 1165. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 214

Ibidem., em 03 de outubro de 1680. Plataforma SILB – PB 1165. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 215

Fundo documental do IHGRN, op. cit., Fl. 83v. 216

Ibidem., Fl. 86v.

Page 168: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

168

para a ocupação da serventia de ofícios, dado que esse regime de provimento consistiria

no fato de que quem o pleiteasse, pudesse oferecer por ele o maior lance ao proprietário

dos ofícios, e, com isso, barganhando o direito ao exercício da escrivania concelhia e do

tabelionado público, com a remuneração anual que receberia pelos mesmos, bem como

os demais proes e percalços que ao ordenado se somavam. Assim, não seria,

necessariamente, o sesmeiro que se tornaria escrivão da Câmara do Natal, mesmo que

situações como essa também ocorressem como se visualizou anteriormente. Contudo, o

exercício da escrivania camarária também havia sido desempenhado por indivíduos que

apenas mais tarde, após a passagem por esse ofício, obtiveram uma gleba de terras.

Noutros casos, porém, como se visualiza no Gráfico 04, o percentual de 33,08% (16)

dos escrivães sequer possuiu a posse de terras. Nesse caso, ressalva-se que não se exclui

a possibilidade de um escrivão mesmo não sendo o titular da sesmaria, estaria vincado a

elite fundiária do Rio Grande por laços de parentesco consanguíneo, como se

visualizará posteriormente.

A averiguação de que 64,28% (27 sesmeiros) dos homens que exerceram o

ofício de escrivão camarário na Cidade do Natal, como constam no Gráfico 04, pode

ser indicativo de uma possível similitude com o perfil dos escrivães concelhios da

Capitania do Ceará, apontados por Gabriel Parente Nogueira, que, segundo esse autor,

compunham a “elite tradicional” da Vila de Santa Cruz do Aracati, entre 1748-1804,

cuja base dessa conceituação sustenta-se na posse de terras pelos componentes dos

quadros de oficiais camarários.217

Aquele conceito cunhado por Gabriel Parente, no

interior do qual também engloba, dentre outros ofícios, o de escrivão concelhio, também

havia se baseado na posse de gados por essa “elite tradicional”, em claro contraponto

com a “elite mercantil” – formada por indivíduos provenientes da Capitania de

Pernambuco e do reino –, mesmo que esse autor assevere a não existência, na Capitania

do Ceará, de uma rígida divisão entre ambos os grupos.218

A seguir, passa-se a análise

da posse de outros cabedais que constituíam o patrimônio dos escrivães camarários do

Natal, como a propriedade de gados – vacuns e cavalares –, bem como de outras

criações, além de escravos, patentes das companhias de ordenanças locais e a

217 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: práticas de nobilitação e

hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado em

História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. p. 121-122, 162, nota 254. 218

Ibidem., p. 146.

Page 169: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

169

acumulação de outros ofícios no interior e no exterior da Câmara Municipal do Natal,

como brevemente apontado nos exemplos citados anteriormente.

2.2.1 A posse de gados, sesmarias, escravos, chãos de terras e patentes

Quando se analisa as datas de sesmarias que foram concedidas aos indivíduos

que ocuparam a escrivania da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759, percebe-se que a

constante alusão nas justificativas apresentadas por esses oficiais da alegação de que

estavam a requerer as glebas de terra com o objetivo de criarem gados, em outros casos,

que já fossem possuidores desses rebanhos, tanto vacuns quanto cavalares, mas que não

tinham aonde os pudesse criar, ou mesmo que pretendia plantar, mas que não possuíam

terras onde o fizessem. Ao todo, identificou-se 42 diferentes justificativas para que

recebessem a concessão de terras que suplicavam, como se percebe, a seguir, na análise

do Gráfico 05.

Page 170: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

170

Page 171: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

171

Gráfico 05 - Justificativas apresentadas pelos indivíduos que ocuparam o ofício de

escrivão da Câmara do Natal para a obtenção de carta de sesmaria (1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

219

Page 172: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

172

Verifica-se no Gráfico 05, que em meio as 42 diferentes justificativas

apresentadas pelos agentes que exerceram a escrivania da Câmara do Natal, entre 1613-

1759, para obterem a concessão de uma data de sesmaria, figurava em sexto, sétimo e

oitavo lugares, as alegações de que eram possuidores de gados vacuns, gados cavalares

e/ou que simplesmente que tinham gados, sem que necessariamente apresentassem as

suas espécies.

Ainda assim, os números faziam alusão expressiva à posse de gados pelos

indivíduos que assumiram a escrivania camarária do Natal. Isso corrobora com o estudo

de Muirakytan Kennedy de Macedo, segundo o qual o sertão da Capitania do Rio

Grande havia se caracterizado pelas lides entorno da pecuária, sobretudo nas Ribeiras

do Apodi, Assú e, mais tarde, do Seridó.220

Conforme Tyego Franklin da Silva, os

desdobramentos advindos do criatório de gado nos sertões da Capitania do Rio Grande,

foi um dos mecanismos responsabilizados pela expansão do território português na

América. Ainda de acordo com esse autor, na Capitania do Rio Grande o processo não

foi diferente, o adensamento do território com as atividades pecuárias ocorreram pelas

ribeiras dos principais rios que banhavam essa capitania, e onde habitavam os diversos

agrupamentos indígenas. Assim, do contraponto das perspectivas esboçadas pelos luso-

brasílicos no trato do gado no território e os indígenas que nele subsistiam, ocorreria a

Guerra do Açú, no sentido de integrar esse território aos anseios da Coroa lusa.221

Sobre a participação de escrivães concelhios nos embates que ocorreram com

os grupos indígenas que habitavam os sertões da Capitania do Rio Grande, observa-se

na análise do Gráfico 05, que os indivíduos que lutaram nesses momentos utilizaram-se

disso para justificarem o acesso à posse de terras. Nesse sentido, tem-se nesse último

219 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir das cartas de sesmarias constantes na Plataforma SILB –

Sesmarias do Império Luso-brasileiro. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:

26/09/2017. Entretanto, ressalva-se que devido ao fato de a quantidade de justificativas variarem de uma

carta de petição de terras para outra, não sendo esse número fixo, visto que em algumas cartas constam

até dez ou doze razões expostas nas sobreditas datas, enquanto noutras tem-se apenas duas ou três, os

valores apontados no Gráfico 05 sofrem algumas ligeiras alterações, bem como um único escrivão

camarário sesmeiro poderia possuir mais de um título de terras. 220

A formação do patrimônio das famílias que se situaram no interior da Capitania do Rio Grande, foi

extensivamente estudado, para o caso da Ribeira do Rio Seridó, por Muirakytan Macedo, segundo o qual

a pecuária possuiu um sobrepeso considerável na estruturação das relações. Para saber mais, ver

MACEDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do

Seridó (séc. XVIII). Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, Natal, 2007. 221

SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na

territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 17.

Page 173: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

173

gráfico, que aqueles oficiais estavam a pleitearem glebas que, segundo eles, haviam sido

habitadas pelo gentio bárbaro, ou quando afirmavam ser “descobridor das terras com

risco de vida”, que “pretendiam pacificar os índios”, ou quando solicitavam a concessão

das datas de sesmarias ao afirmarem que as mesmas “nunca haviam sido povoadas por

estarem em poder do gentio bravo”.222

Todas estas justificativas são indiciárias do envolvimento direto dos escrivães

camarários do Natal, assim como os demais integrantes dessa edilidade, nos inúmeros

conflitos e reveses sociais pela posse da terra e expansão dos domínios lusos, no sertão

da Capitania do Rio Grande, entre a segunda metade do século XVII e as duas primeiras

décadas do século XVIII. Exemplifica essa situação, quando o Tabelião José Martins de

Morais, que foi escrivão da Câmara em 1678,223

requereu a posse de uma data de

sesmaria próxima ao Rio Açú, dentre outras coisas, afirmava que seria o descobridor

das ditas terras e, além disso, possuía gados vacuns e cavalares. Martins de Morais

reiterava aquelas explanações afiançando que as terras que estaria suplicando “nunca foi

povoada por estar em poder do gentio bravo”.224

Essa última fundamentação da petição

também foi esboçada pelo Tabelião Manuel de Amorim,225

que exerceu a escrivania

camarária da Cidade do Natal, em dois períodos, em 1672 e de 1674 até 1678.226

As petições de datas de sesmarias são elucidativas dos vínculos que se teciam

entre diferentes agentes que ocuparam, concomitantemente ou em períodos distintos, o

ofício de escrivão do Concelho Municipal do Natal, entre 1613 e 1759, trazendo

informações sobre possíveis redes clientelares ou mesmo familiares, que interligavam

esses indivíduos tanto ao exercício da escrivania camarária, quanto para a obtenção de

mercês régias, como, por exemplo, a concessão de terras. Exemplo disso, se pode citar a

petição conjunta de duas datas de terras, ainda na segunda metade do século XVII,

efetuada por quatro agentes que foram escrivães da Câmara da Cidade do Natal naquela

222 Cartas de sesmarias constantes na Plataforma SILB – Sesmarias do Império Luso-brasileiro.

Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 223

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 20; Fundo

documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690).

Fl. 37v, Fl. 38, 38v. 224

Carta de sesmaria doada a José Martins de Morais em 25 de março de 1670. Plataforma SILB – RN

0031. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 225

Carta de sesmaria doada a Manuel de Amorim em 19 de março de 1676. Plataforma SILB – RN

0030. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 226

LOPES, op. cit., p. 1, 7, 10, 13, 16, 20.

Page 174: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

174

mesma centúria, antecipando os momentos iniciais da eclosão dos embates no interior

da Capitania do Rio Grande, quando do contexto mais amplo da Guerra dos Bárbaros.

No primeiro caso, tem-se a solicitação efetuada por Diogo Rodrigues Pereira e

Antônio Pereira Chaves, em 09 de julho de 1674, na qual solicitavam a mercê de uma

gleba de terras entre os Rios Mipibú e Pium. Alegavam esses agentes que eram

radicados na Capitania do Rio Grande havia mais de dez anos, e que pediam aquelas

terras, pois ainda não as possuíam, dado que pretendiam, ainda, plantar e que eram

donos de gados e outras criações que não tinha onde acomodar.227

Ambos haviam sido

escrivães da Câmara da Cidade do Natal. O tabelião Antônio Pereira Chaves havia

exercido a escrivania camarária em dois períodos, primeiro em 1688, e depois entre os

anos de 1690-1691.228

Já Diogo Rodrigues Pereira também foi escrivão daquela

municipalidade em dois momentos, cujo mandato inicial foi em 1663 e o segundo

mandato, juntamente com a provisão no ofício de tabelião público, ocorreu em 02 de

junho de 1674,229

no mesmo ano que havia recebido a concessão de uma sesmaria.230

Cogita-se que ambos fossem, com alguma probabilidade, familiares, dado a interação

entre os dois para o recebimento da sesmaria e por levarem um sobrenome similar.

Outros dois indivíduos que foram escrivães camarários e que receberam

concessões de sesmaria, de maneira conjunta, foram o Capitão Antônio Lopes de Lisboa

e o Tabelião Manuel de Amorim. Essa concessão foi realizada a esses dois indivíduos,

juntamente com Domingos Fernandes de Araújo, Manuel Afonso Fragoso, Gonçalo

Leitão Arnoso, Bento da Costa de Brito e Luís Brito Bezerra, em 24 de março de 1676.

Nessa mesma carta constava que os suplicantes eram moradores nas Capitanias do Rio

Grande e de Pernambuco, contudo não explícita as origens de cada um deles.231

No

entanto, sabe-se que Gonçalo Leitão Arnoso foi grande sesmeiro na Capitania do Rio

Grande, sogro do Capitão-mor Bernardo Vieira de Melo por casamento que esse

227 Carta de sesmaria doada a Diogo Rodrigues Pereira e Antônio Pereira Chaves, em 09 de julho de 1674.

Plataforma SILB – RN 0021. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:

26/09/2017. 228

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 55, 62, 66. 229

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659

– 1668). Fl. 32. 230

Carta de sesmaria doada a Diogo Rodrigues Pereira e Antônio Pereira Chaves, em 09 de julho de 1674.

Plataforma SILB – RN 0021. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:

26/09/2017. 231

Carta de sesmaria doada a Antônio Lopes de Lisboa, Manuel de Amorim e outros, em 24 de março de

1676. Plataforma SILB – RN 0030. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:

26/09/2017.

Page 175: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

175

contraiu com Dona Catarina Leitão, filha de Gonçalo Arnoso,232

cujos significados

políticos desse enlace matrimonial, no contexto da ocupação das terras situadas na

Ribeira do Assú, foram ostensivamente trabalhados por Tyego Franklin da Silva.233

Contudo, isso seria indicativo de que os escrivães concelhios do Natal haviam se

envolvido com redes clientelares, cujos componentes se ligavam a estratos

proeminentes da sociedade colonial não apenas da Capitania do Rio Grande, mas

também da Capitania de Pernambuco. Desses envolvimentos, podem-se cogitar,

inclusive, as nomeações para o ofício de escrivão da Câmara do Natal, mesmo que não

se possam verificar documentalmente essas ligações.

A posse de tão largas extensões de terras, mesmo que muitas estivessem

direcionadas para as atividades pecuárias e do criatório em geral, demandavam, em

menor medida, quando comparado com a produção canavieira, de recursos humanos

para lidarem com as atividades diárias nas fazendas de criar gado e nas plantações de

subsistências das famílias.234

Essa situação estrutural contribuía para a posse de

escravos que pudessem se envolver no trabalho cotidiano com os gados e com a

produção de gêneros alimentícios que, como apresentado por Câmara Cascudo, eram a

mandioca e a farinha proveniente desta, o cultivo do milho e do feijão e de algumas

frutas, para o caso de alguns sítios que rodeavam a Cidade do Natal.235

Nesse sentido, verificou-se que alguns escrivães concelhios do Natal detiveram

a posse de escravos. Entretanto, não podem ser comparados aos grandes plantéis das

zonas produtoras de cana-de-açúcar, mas não se excluiu a possibilidade de tê-los, em

uma sociedade que, como havia afirmado Laura de Mello e Souza, assentada

eminentemente na escravidão, onde “leis, relações de produção, hierarquia social,

232 BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4. Mossoró:

Fundação Vingt-Un Rosado, 1993. p. 247. 233

SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na

territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 80-81. 234

Em dissertação escrita sobre a necessidade de escravos nas fazendas de criar gado, Luiz Cleber Moraes

Freire, mostra o quão foi requerida nessas propriedades de criatório a presença da mão-de-obra escrava,

não apenas na condição de vaqueiros, mas também nos serviços ligados à lavoura que naquelas fazendas

também se instaurou. Esse autor chama a atenção ainda para atividades desenvolvidas por esses escravos

nas fazendas em condições completamente distintas das lides roça, como, por exemplo, exercendo

trabalhos como ferreiro, marceneiro, alfaiate, dentre outros. Para saber mais, ver FREIRE, Luiz Cleber

Moraes. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: Agropecuária, escravidão e riqueza em Feira de Santa,

1850-1888. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. 235

CASCUDO, Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: Prefeitura Municipal, 1947. p. 119.

Page 176: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

176

conflitualidade, exercício do poder, tudo teve, no Brasil, que se medir com o

escravismo”.236

No entanto, reverbera-se que não foi possível averiguar a posse de escravos

pela maioria dos escrivães camarários da Cidade do Natal, o que perfez 71,42% (30).237

Entretanto, tem-se que se pontuar o caráter esparso da própria documentação alusiva à

propriedade desses cativos, visto que os dados encontrados se remetiam a um livro de

batismos – manuscrito entre as duas últimas décadas do final do século VXII e a

primeira década do século XVIII –, alguns livros de casamentos da Freguesia de Nossa

Senhora da Apresentação do Rio Grande, nos quais se encontraram referências

esporádicas aos casamentos contraídos por alguns escravos e, por fim, um Livro de

Óbitos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, da Freguesia de

Nossa Senhora da Apresentação, bem mais significativo para a pesquisa sobre os

homens e as mulheres de cor, bem como sobre os grupos indígenas que foram

escravizados, na Natal Setecentista. Mormente, esse livro traz informações sobre

inúmeros escravos que foram sepultados ou que tiveram seus corpos velados na Igreja

do Rosário, contendo nos registros os nomes de seus proprietários atuais e passados,

suas idades estimadas quando de seus falecimentos, se eram casados, solteiros ou

viúvos, enfim, um campo vasto para a pesquisa documental que ainda se encontra em

aberto, mas cuja análise pode contribuir para a compreensão da formação étnica, social

e cultural da Capitania do Rio Grande, no século XVIII. Acresce-se a isso,

possivelmente, a falta de recursos econômicos dos escrivães, o que lhes havia

impossibilitado a formação de uma escravaria. Adir-se, ainda, que algumas localidades

da América portuguesa sobreviveram sem a mão-de-obra escrava, empregando,

inúmeras vezes, mão de obra livre e paga.

Todavia, identificou-se que 28,57% (12) dos escrivães da Câmara do Natal

eram senhores de escravos. Porcentagem essa, mesma que bem inferior à quantidade

total de escrivães concelhios, era representativa de uma parcela da sociedade estamental

escravagista que se estabeleceu nos trópicos. Ressalta-se, ainda, que a posse de escravos

236 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do

século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 56-57. 237

Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir do Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú,

Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal –

1683-1712; Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de

Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759; Paróquia de Nossa Senhora da

Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de Casamentos, 1740-1752.

Page 177: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

177

pelos escrivães camarários da Cidade do Natal não ocorreu de maneira uniforme, dos 31

escravos rastreados para os 12 escrivães, existia uma média de pouco mais de dois

cativos para cada escrivão, sendo que um único desses oficiais possuísse até sete

escravos. Com isso, observa-se uma escravaria pequena, o que reforçaria o pouco poder

aquisitivo desse grupo. Este seria o caso do Alferes Manuel Rodrigues Taborda, senhor

de sete escravos identificados, que se chamavam Joana, Damiana, Vicente, João, Luzia,

Luiza de Arda, Benedito e Antônio, os quais foram batizados na Igreja Matriz de Nossa

Senhora da Apresentação, entre 1683 e 1712.238

Outro possuidor de escravos foi Carlos

da Rocha, que teria sido escrivão da Câmara do Natal, em 1704 e 1709.239

Esse

escrivão, que se situava na média de dois cativos para cada proprietário, batizou

Antônio, filho de uma tapuia que também seria sua escrava.240

Salienta-se, ainda, que se tentou verificar a distribuição das nações ou das

possíveis origens, dos 31 escravos identificados, que foram de propriedades dos

escrivães camarários da Cidade do Natal. Porém, desse número 67,74% (21) dos

escravos não foi possível de se identificar suas naturalidades. Os outros 32,26% (10)

dividiam-se, de maneira desigual, pelo gentio de Arda (1), gentio de Guiné (1), Gentio

da Costa da Mina (2), crioulos (2), crioulos da Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1) e tapuia (3). No entanto, deve-se atentar que a origem muitas vezes

registrada se refere ao local de embarque dos escravos para a venda e não,

necessariamente, a localidade de onde eles pertenciam, devido aos grandes

deslocamentos de onde haviam sido comprados para onde eram vendidos, no próprio

continente africano.241

Isso indicaria o caráter híbrido das origens dos escravos

pertencentes aos escrivães concelhios do Natal, entre a segunda metade do século XVII

e a primeira metade do século XVIII. O Coronel Caetano de Melo e Albuquerque, por

exemplo, era possuidor de escravos da Costa da Mina, de Guiné e tapuia.242

238 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX02. DOC0069 (1v);

IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069 (3v); IAHGP-FIA-CX02. DOC0069 (8); IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069

(8v); IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069 (38v); 239

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 27. 240

Livro de Batismos de Cunhaú, op. cit., IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069 (5v). 241

THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800).

MOTTA, Marisa Rocha (trad.). Rio de Janeiro: Elieser, 2004. 242

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1740-1752; Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal /

Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759.

Page 178: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

178

Além de sesmarias, gados e escravos, o patrimônio dos escrivães da Câmara do

Natal havia se constituído, materialmente, pela barganha de chãos de terra no termo da

cidade. De acordo com Raquel Gleizer, os chãos de terra se configuravam enquanto

glebas que eram doadas pela instituição camarária e que se situavam no rossio ou termo

da edilidade, possuindo, geralmente, dimensões inferiores quando comparadas às

extensas sesmarias, das quais se diferenciavam também pelo caráter jurisdicional na

dada da concessão.243

Como mencionado anteriormente, os chãos de terra foram

concedidos pelos honoráveis oficiais concelhios, enquanto as sesmarias, mesmo que se

configurassem como doações régias, eram, no geral, concedidas localmente pelos

Capitães-mores, cujos sesmeiros, ao adquirir o título de posse, deviam requerer a

confirmação real. Nesse sentido, no Gráfico 06, pode-se observar a posse de chãos de

terra pelos escrivães da Câmara do Natal.

Gráfico 06 - Escrivães que obtiveram concessão de chãos de terra no termo de Natal

após exercerem a escrivania da câmara (1659-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

244

243 GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros estudos sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007. p.

58. 244

Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do

Natal – Fundo documental do IHGRN (1659-1760). Livros 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.

Page 179: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

179

De acordo com o Gráfico 06, apenas 35,71% (15) dos escrivães concelhios do

Natal obtiveram a doação de chãos de terra no termo dessa cidade. Dentre as principais

justificativas apresentadas pelo conjunto dos escrivães da câmara, tem-se a necessidade

de obterem os ditos chãos para que pudessem construir casas para morar na Cidade do

Natal, muitos alegavam que ainda não as possuía. Isso seria, possivelmente, indiciário

de uma chegada recente à localidade, por parte daqueles homens que haviam vindo

ocupar a escrivania camarária local. Em outras cartas constavam de solicitações de

chãos de terra que haviam pertencido aos familiares dos suplicantes, após o falecimento

do pai ou mesmo do sogro, com o objetivo de fixarem as glebas no universo patrimonial

da mesma família. Exemplo disso foi à petição efetuada pelo escrivão da Câmara do

Natal, Manuel Álvares Bastos, em 1743, na qual havia requerido aos oficiais honoráveis

daquele concelho que lhe concedessem a posse de um chão de terra que anteriormente

teria pertencido ao seu falecido pai, o Licenciado Francisco Álvares Bastos.245

A forma de proceder do escrivão Manuel Álvares, seria indicativa, ainda, das

estratégias utilizadas pela elite na Capitania do Rio Grande de assegurar a consolidação

de seus patrimônios, visto que muitos outros indivíduos se valiam de diversas táticas

para impetrarem a posse de chãos de terra, mormente se encontrassem devolutos, ou que

os herdeiros dos falecidos não requisitassem novo título de posse sobre as mesmas

glebas.

Aponta-se, ainda, que o patrimônio dos escrivães concelhios não se construiu

apenas tendo como base a materialidade conferida pela posse dos bens que possuíam.

Na sociedade hierárquica e estamental do Antigo Regime, o substrato do mando e ao

mesmo tempo dos desmandos institucionais e sociais, perpassavam pelo caráter

fortemente militarizado das estruturas sociais que atravessavam a própria dimensão

administrativa, como afirmou Kalina Vanderlei da Silva, em sua obra O miserável soldo

& a boa ordem da sociedade colonial.246

Ainda de acordo com essa autora, tal situação

245 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09

(1743 – 1754). Fl. 1v. 246

SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:

Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.

66.

Page 180: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

180

poderia ser verificada devido ao enquadramento geral “da população livre urbana em

hierarquias militares”.247

Essa situação pode ser compreendida, a partir das ponderações efetuadas por

Raymundo Faoro sobre as milícias coloniais. Segundo esse autor, as milícias que se

constituíram pela América portuguesa, foram responsáveis por “moldarem a sociedade

do interior, assegurando-lhe com seu vínculo ao rei, à disciplina, a obediência e o

respeito à hierarquia”.248

Caso a sociedade que se sedimentava nos trópicos não

dispusessem do aparato miliciano “o tumulto se instalaria nos sertões ermos, nas vilas e

cidades”.249

Ainda conforme as explanações de Raymundo Faoro, as patentes “atraíam

todas as cobiças” e pela América portuguesa “embranquece e nobilita”.250

Para Maria Fernanda Bicalho, as ordenanças haviam se constituído como “um

pólo autônomo de poder em nível local”, dado o caráter genérico da militarização pelo

Império e o controle do mecanismo de recrutamento que seria compreendido como um

fator de intimidação social local.251

Desse modo, as patentes nas companhias de

ordenança locais ou na tropa paga, podiam ser compreendidas como símbolos de poder

e prestígio social, que se catalisavam na representatividade de autoridade e obediência,

por aqueles indivíduos que detivessem maior e menor gradação na hierarquia desses

agrupamentos milicianos.

Em face disso, para o caso da Capitania do Rio Grande, de modo mais

específico para os escrivães camarários aqui em análise, tem-se que constantemente os

indivíduos eram reportados nos diferentes tipos documentais que foram mobilizados

nessa pesquisa, como, por exemplo, nos termos de vereação do Senado da Câmara do

Natal, nos livros de cartas e provisões dessa instituição, nos registros de batismo,

casamento e óbito da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, dentre os demais

conjuntos, sempre se fazendo taxativa a alusão às patentes militares que possuíam,

fossem essas nas companhias de ordenanças, fossem nos regimentos da tropa paga.

Nesse sentido, a fim de se compreender a transformação do capital material em capital

247 SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:

Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.

66. 248

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo:

Globo, 2012. p. 178. 249

Ibidem., p. 179. 250

Ibidem., p. 177. 251

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003. p. 376.

Page 181: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

181

simbólico,252

visto que os postos de ordenanças, como afirmou António Manuel

Hespanha baseassem na honra que conferiria aos seus ocupantes,253

buscou-se rastrear

as patentes militares, bem como uma possível ascensão no interior da hierarquia dessas

instituições, efetuadas pelos escrivães camarários da Cidade do Natal. Abaixo, no

Gráfico 07, buscou-se apresentar as proporções relativas de escrivães concelhios

daquela edilidade que detiveram patentes nas companhias de ordenanças locais e/ou na

tropa paga, na Capitania do Rio Grande.

Gráfico 07 - Percentual de escrivães camarários do Natal com patentes nas Ordenanças

Locais (1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

254

252 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tomaz, Fernando (trad.). 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 1998. 253

HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 191. 254

Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do

Natal; do Catálogo dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal; da Base de Dados SILB –

Sesmarias do Império Luso-Brasileiro; dos Livros de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação; do Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia

de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759; dos Livros de Casamento da Freguesia

de Nossa Senhora da Apresentação; e dos Documentos Manuscritos Avulsos das Capitanias do Rio

Grande do Norte, Paraíba, Ceará e Pernambuco.

Page 182: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

182

Verifica-se que grande parte dos escrivães da Câmara do Natal, entre 1613 e

1759, eram detentores de patentes militares das companhias de ordenanças locais,

perfazendo, percentualmente, 76,19% (32) desses agentes. Contudo, tais números são

indicativos de diretrizes mais amplas que abrangiam o Império. Como mencionado no

tópico anterior, todos os indivíduos do sexo masculino, em idade apta – cujos limites

variavam de um autor para outro –, deviam ser alistados nas milícias de ordenanças.

Esse quadro era composto por patentes de diferentes estratos da hierarquia dessas

companhias, indo desde alferes até o posto de coronel, identificados, respectivamente,

como o de menor e o de maior gradação na hierarquia local do oficialato das ordenanças

da Capitania do Rio Grande. Nesse rol, figurava, ainda, o posto de tenente-coronel,

considerado juntamente com de coronel como uma das irregularidades que,

possivelmente, existiram nas organizações militares pela América portuguesa, conforme

apontou José Eudes Gomes.255

Ressalta-se que, em alguns casos, foi possível averiguar

a ascensão dos escrivães camarários nesses postos, no decorrer do tempo em que

emergisse a necessidade de novas provisões. No entanto, aponta-se que nem todos esses

agentes, mesmo que nomeados diversas vezes, haviam grassado de ascensão nessas

hierarquias.

Quanto aos indivíduos que não detiveram patentes, o percentual infere que

constituíssem 23,80% (10) dos homens que haviam ocupado a escrivania concelhia da

Cidade do Natal. Elucida-se, de maneira pontual, que os postos de ordenanças que

foram ocupados pelos escrivães concelhios do Natal, bem como a possibilidade de

ascensão que puderam galgar no interior dessas companhias, são mais significativas

para se compreender a conversão do capital material dos escrivães – materializados na

posse de terras e gados, bem como no domínio de escravos –, em capital simbólico,

através dos tipos de patentes que cooptaram nas milícias da capitania. Assim, a seguir,

demonstra-se no Gráfico 08 como ocorreu a distribuição desses agentes responsáveis

pela escrita oficial e institucional pelo Império, nas estruturas das Ordenanças locais do

Rio Grande, entre 1613 e 1759.

255 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará

setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p.

90-91.

Page 183: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

183

Gráfico 08 - Tipologia das patentes dos escrivães da Câmara do Natal nas Companhias

de Ordenanças e na Tropa paga da Capitania do Rio Grande (16131-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

256

Pontua-se que a quantidade total de patentes (77), apresentadas no Gráfico 08,

seja constituída quase pelo dobro da quantidade total de escrivães (42). Isso se justifica,

ao passo que um único escrivão, ao longo do exercício desse ofício – geralmente

nomeado mais de uma vez –, havia obtido a concessão de várias patentes ao longo de

sua carreira administrativa. A trajetória de Manuel de Melo e Albuquerque – o velho –

seria representativa desse acúmulo de patentes em um único escrivão, ascendo na

hierarquia das ordenanças, pois teria sido Alferes da Companhia de Ordenança de

Domingos Francisco Mendonça, Tenente de uma tropa de cavalos de Lázaro Frazão

Caldeira,257

Capitão da Ordenança da Ribeira do Assú258

e, por fim, Comissário Geral

256 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do

Natal; do Catálogo dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal; da Base de Dados SILB –

Sesmarias do Império Luso-Brasileiro; dos Livros de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação; do Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia

de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759; dos Livros de Casamento da Freguesia

de Nossa Senhora da Apresentação; e dos Documentos Manuscritos Avulsos das Capitanias do Rio

Grande do Norte, Paraíba, Ceará e Pernambuco. 257

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 11. 258

Ibidem.

Page 184: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

184

de Cavalaria.259

A trajetória administrativa, em alguns casos, não se restringiu apenas ao

ofício de escrivão concelhio, mas que havia alcançado também os “honoráveis ofícios

desta República”, formados pelos ofícios de juiz ordinário, vereador e procurador da

Câmara do Natal, bem como em outros ofícios situados tanto nessa edilidade, quanto na

Real Fazenda do Rio Grande, como se verá adiante.

Efetuadas essas ressalvas, parte-se para a análise do Gráfico 08. De acordo

com esse diagrama, a patente de “capitão” constituía-se como a tipologia de maior

representatividade para a qual os escrivães camarários da Cidade do Natal tenham sido

providos, no período analisado. Esses capitães, de acordo com Ana Paula Pereira Costa,

faziam parte da camada de altas patentes das companhias de ordenanças.260

Salienta-se

que os oficiais que ascendiam até a patente de capitão eram encarregados de algumas

obrigações peculiares a esta gradação, mas que se associavam diretamente a principal

prática levada a cabo pelos escrivães camarários, que fosse o registro escrito

institucional. Ressalta-se que essas patentes foram, em grande parte, obtidas durante o

exercício do ofício de escrivão da Câmara do Natal. Os capitães de ordenanças eram os

responsáveis pelos alistamentos dos indivíduos aptos a ingressarem nessas companhias,

bem como da confecção de listas que eram enviadas aos capitães-mores, mesmo que em

alguns casos, como pontuou José Eudes Gomes, ocorresse diversas reclamações dos

capitães-mores, a quem estavam subordinados àqueles oficiais, e para os quais se

remetiam as listas dos recrutados.261

Na sequência, de acordo com o Gráfico 08, visualiza-se que outra quantidade

considerável de escrivães concelhios haviam sido providos nas patentes de alferes,

equivalendo, percentualmente à 15,58% (12) dos escrivães da Câmara do Natal. Os

alferes, juntamente com os postos de sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-

estandartes e tambor, perfaziam os postos de oficiais inferiores.262

Os alferes eram

encarregados de auxiliarem, juntamente com os sargentos, o capitão-mor de

259 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 112. 260

COSTA, Ana Paula Pereira. Organização militar, poder de mando e mobilização de escravos armados

nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas colonial. In: Revista de História

Regional, 2006, p. 113. 261

GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará

setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p.

231. 262

COSTA, loc. cit.

Page 185: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

185

ordenanças.263

Em seguida, retirados os indivíduos que não possuíam nenhuma patente,

os quais haviam correspondido a 12,98% (10) dos escrivães, ter-se-ia os sargentos-

mores. Nessa patente, foram nomeados 9,09% (7) dos escrivães da Câmara do Natal.

Conforme as explanações de Kalina Vanderlei, os sargentos-mores faziam parte das

tropas pagas e eram os responsáveis pela garantia da disciplina e da eficiência das tropas

de ordenanças.264

Logo depois, figuravam as nomeações para os postos de cavalaria, na

patente de capitão de cavalaria, com 6,49% (5) dos escrivães nomeados para essa

gradação, que existiam, eventualmente, como afirmou António Manuel Hespanha, para

enquadrar militarmente a gente dos concelhos.265

Após se verificar que 76,19% (32) dos agentes que exerceram o ofício de

escrivão concelhio da Cidade do Natal possuíam patentes de ordenanças, pode-se

afirmar, como pontuou José Eudes Gomes, mencionado anteriormente, que a sociedade

colonial constituiu-se a partir de bases militarizadas. Disso, havia decorrido a própria

concepção social dos indivíduos acerca de si e de outros, bem como de sua posição na

hierarquia social que, tendencialmente, encaminhava-se para a reprodução da mesma

estruturação da sociedade estamental do Antigo Regime. Observa-se isso, sobretudo, no

fato de que as nomeações para algumas patentes de ordenanças – principalmente na de

capitão de companhia – ser conferida a indivíduos que detivessem a posse senhorial de

terras. A esses, cabiam também serem providos nas patentes máximas dos regimentos

ou das companhias nas quais suas glebas estivessem inseridas. Reafirmava-se, com isso,

a preeminência social dos indivíduos de forma dupla, visto que a posse de terras seria

necessária para a obtenção de algumas patentes dentro da hierarquia das ordenanças e,

ao mesmo tempo, a concessão dos postos de maior gradação estavam reservados aos

indivíduos que possuíssem terras situadas dentro do limite de atuação ou de

representatividade de cada companhia.

Tudo isso fazia das companhias de ordenanças uma organização institucional

que prestigiava, em grande medida, quem já assim o fosse na sociedade pela posse de

títulos de terra. Em seu interior, a diferenciação social radicava-se na barganha de

263 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará

setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 264

SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:

Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.

80. 265

HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 188, nota 20.

Page 186: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

186

patentes mais altas, quando comparada às demais que existissem em cada companhia, o

que processava, assim, a diferenciação entre os senhores de terras. Tal possibilidade

incitava em maiores prestações de serviços a El Rey, movimentando, ainda mais, a

economia de mercês, ao jogar com as vaidades pessoais de enobrecimento, prestígio e

status que gerava, consequentemente, distinção social.

A análise do perfil social dos escrivães da Câmara Municipal do Natal

possibilitou averiguar o traçado geral dos padrões societários vigentes no Antigo

Regime europeu. Com isso, verificou que esses arquétipos fizeram-se amplamente

presentes na Capitania do Rio Grande, a começar pelas possíveis escolhas que influíram

desde a decisão de deixar as suas comunidades de origem, para se fiarem nas inúmeras

possibilidades ofertadas no ultramar, mesmo que nem sempre obtivessem o êxito que

esperavam, mas munidos dos ideais de solidariedade, de amor e das obrigações morais

e, consequentemente jurídicas, que serviam de substrato para a instituição familiar na

sociedade do Antigo Regime.

Verificou-se também que o exercício da escrivania concelhia do Natal havia

sido ocupada por homens provenientes de diferentes partes do Império, principalmente

das Capitanias do Norte. Essa situação possibilita-nos, ainda, visualizar o relativo grau

de mobilidade dos agentes sociais, que havia sido responsável por costurar e, ao mesmo

tempo, interligar diferentes espacialidades pelos domínios lusitanos na parte setentrional

da América portuguesa. Essa volubilidade de homens, sobretudo nas estruturas

administrativas e burocráticas do Império, demonstraria a necessidade constante que

impeliu a Coroa de resolver os problemas de escassez de recursos humanos,

movimentando os parcos contingentes habilitados que detinha, ao desempenho do

mando institucional, notabilizada nessa movimentação constante das peças que

compunham o “tabuleiro de xadrez” do Império ultramarino português, entre os séculos

XVII e o início do século XVIII.

Nesse rol, distingue-se a quantidade expressiva de agentes advindos de outras

paragens para a ocupação do ofício de escrivão da Câmara do Natal. Isso ocorria devido

ao processo de expansão das áreas de conquistas, bem como da frente de colonização

Page 187: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

187

que se empreendia nas áreas recém-integradas, o que se leva a compreender que esse

processo passava também pelo desempenho da escrivania concelhia que, assim como as

demais esferas da administração, eram utilizadas para cooptar agentes sociais

interessados em se instalarem em uma nova praça colonial, garantindo a posse dessas

para a Coroa lusitana.

Soma-se a isso, que as percentagens calculadas para a ocupação do ofício de

escrivão da Câmara do Natal, havia se caracterizado também por se tratar de um

universo amostral, ainda que diminuto, das origens dos grupos sociais que constituíram

a sociedade colonial na Cidade do Natal, entre os séculos XVII e XVIII, cuja

preponderância foi marcada pelo afluxo de indivíduos, sobretudo advindos das

capitanias mais adjacentes, como Pernambuco, Paraíba e Itamaracá. Essa mobilidade

também pode ser verificada quando os agentes não mais serviam a escrivania concelhia

e rumavam para outras paragens como, por exemplo, para a Capitania do Ceará, cuja

sociedade ainda estaria em fase de elaboração, o que possibilitou a um escrivão da

Câmara do Rio Grande vir a se tornar juiz ordinário da Vila de São José do Ribamar.

Essa movimentação de pessoas, principalmente em busca de terras e patentes militares,

contribui para se pensar os sentidos de ascensão e diferenciação social. A esses

números, acrescentar-se-iam, também, os agentes de origem reinol, provenientes de

diferentes partes do Portugal peninsular, que haviam formado, como afirmou Luiz

Felipe de Alencastro, os homens coloniais, pois esses agentes oriundos de cidades

como Lisboa, Coimbra e Lagos, apostaram todas as suas fichas em Natal, um enclave

colonial situado na periferia do Império, mormente fixando-se aí e estabelecendo

família vindo, pouco a pouco, a se constituírem na elite da Capitania do Rio Grande,

detentora de patentes, terras, ofícios e escravos.

Têm-se também os indivíduos originários da própria Capitania do Rio Grande.

Assinala-se que as referências a esses agentes somente começaram a aparecer a partir da

terceira ou quarta década do setecentos. Alguns deles identificados como filhos de

indivíduos provenientes de Pernambuco ou de Itamaracá, havendo, inclusive, alguns,

exercido a escrivania camarária, assim como seus progenitores. Nessa fase, têm-se os

filhos advindos do enraizamento das famílias que haviam chegado entre o final do

século XVII e o início do século XVIII, que a partir da barganha de sesmarias, patentes,

da posse de escravos e gados, haviam se tornado a elite política e econômica da

Capitania do Rio Grande. Sobre a posse de gados, verificou-se que havia se

Page 188: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

188

caracterizado como a principal justificativa apresentada pelos agentes que assumiram a

escrivania da Câmara do Natal para obterem a concessão de terras, o que a assemelharia

ao traçado geral da elite sertaneja, que devido às condições fisiográficas locais não

ficaram conhecidas pela posse de engenhos ou de lavouras de cana-de-açúcar, mas pela

posse de gados vacuns e cavalares.

Soma-se a isso, que aos capitães-mores cabia o provimento das patentes das

companhias de ordenanças locais, as quais estavam diretamente subordinadas a esse

oficial. Mesmo assim, era necessária a confirmação régia, ou por parte do capitão-

general e/ou do governador-geral. Às câmaras municipais, nesse caso o Concelho da

Cidade do Natal, competiria o registro dessas provisões. De acordo com Maria

Fernanda Bicalho, as companhias de ordenanças haviam se constituído em outro polo

autônomo de poder em nível local, dado que os seus responsáveis maiores tinham o

faculdade de controlar as listas daqueles que podiam servir em guerras.

Acresce-se a isso, o fato de que a posse de patentes militares também era

indicativa da importante militarização da sociedade de Antigo Regime, mais baseada

nos critérios de hierarquia, respeito e submissão que daí decorria do que do próprio fato

de estarem preparados militarmente para qualquer enfrentamento que aparecesse. O

alistamento era efetuado pelo capitão de ordenanças, posto esse que muitos escrivães

camarários detiveram, talvez em face da necessidade que existia de manuscrever os

alistamentos, o que garantia ao escrivão um triplo prestígio social e ao mesmo tempo

certo temor com relação a esse oficial, visto que a ele caberia o recrutamento dos

indivíduos para as situações de guerras ou de conflitos.

Visto tudo isto, sublinha-se, ainda, a ausência de religiosos no desempenho do

ofício de escrivão da Câmara do Natal – diferentemente do que havia ocorrido em

outras praças como, por exemplo, da vizinha Capitania de Pernambuco –, e enfatiza-se a

feição militar desses agentes da escrita, inclusive em situações que os mesmo não

possuíam patentes. Outro elemento importante de se frisar nessa análise sumariza-se

pela presença de redes familiares, também deslocadas da Cidade de Olinda e da Vila do

Recife, mas situados fora do eixo tanto mercantil quanto aristocrático da Capitania de

Pernambuco.

Por fim, tem-se que estabelecimento do perfil social dos escrivães concelhios

do Natal abriu margem para a compreensão da atuação social e institucional desses

agentes no próprio exercício do ofício, ao privilegiar ou facilitar o acesso de familiares a

Page 189: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

189

determinadas benesses como, por exemplo, os chãos de terra que eram conferidos pelo

núcleo da edilidade, bem como facilitando o ingresso e a permanência de indivíduos

vinculados por laços sanguíneos, religiosos ou de afinidade nos ofícios honoráveis da

edilidade, que, mormente, desaguavam no universo das redes clientelares, sendo os

acessos aos bens materiais e simbólicos os pontos nodais da eficiência da instituição

familiar da elite política e econômica da Capitania do Rio Grande. Essa eficiência seria

afirmada e reafirmada pelo prestígio social de seus componentes, mas, acima de tudo,

pelo peso e pelo significado do sobrenome que carregavam como se verificará no

próximo capítulo.

Page 190: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

190

CAPÍTULO III – A ESCRIVANIA DA CÂMARA DO NATAL: Concessões,

provimentos e acumulação de ofícios

“[...] Pareceo ao Conselho que Vossa Mag.de

faça mercê a Jozep Ribr.o Riba da Propriedade

dos ditos officios de escrivão da Câmara do

Natal e de tabelião público em satisfação do

Alvará de lembrança de officios de justiça ou

Fazenda [...] que foi dado em satisfação de seus

relevantes serviços obrados nas Guerras de

Pernambuco e nas maes importantes ocazioens

que houve nella com os Hollandezes [...].”

(Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, 17/03/1718).1

De acordo com Maria Fernanda Bicalho a expansão ultramarina portuguesa,

desde o século XV, havia colocado à Coroa lusa o enfrentamento de novos dilemas,

bem como, propiciou a emergência de uma série de novas possibilidades com a

conquista do Novo Mundo, a partir do século XVI. Isso advinha, sobretudo, da larga

margem de prestação de serviços à monarquia, aberta à extensa rede de vassalos, diante

das inúmeras guerras e conflitos que haviam se alastrado pelo ultramar na empreitada da

efetivação da colonização. De igual modo, ambas as situações sobrevieram à

monarquia, como fatores de ampliação da extensão do diâmetro de ação da Coroa.2

Ainda conforme Fernanda Bicalho havia sido no pós-Restauração, a partir do

regime brigantino, que se teria efetuado o pacto entre a Coroa e os conquistadores-

restauradores d’além-mar, assentes nas câmaras municipais, como as principais

instituições agenciadoras da formação das elites, em nível local.3 Essa política havia

sido subsidiada pela tom geral ditado pela cultura política do Antigo Regime, cujo vetor

foi a economia de mercês4 ou, como definiu Maria de Fátima Silva Gouvêa, pela

“comunicação pelo dom”, que se estruturava pela presença de um benfeitor e de um

beneficiado, ao instaurar laços afetivos e econômicos entre ambos os extremos da

1 Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de Registro

de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 2 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América

portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. In: Almanack Brasiliense, n. 2, nov., 2005, p. 22. 3 Ibidem., p. 31.

4 Ibidem., p. 29.

Page 191: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

191

relação.5

Conquanto, a Coroa tenha arrogado para si o monopólio, em primeira

instância, dessa estruturação social e institucional pelo Império – tanto no reino quanto

no ultramar –, ao controlar o acesso aos ofícios da governança local6

– ofícios

camarários, ofícios eleitos pela câmara e os ofícios intermédios, bem como os próprios

cargos superiores da monarquia e os de grande importância.7

A seguir, discutir-se-á, de maneira específica, a extensão da dimensão venal

dos ofícios que havia feito parte do universo cultural e mental das monarquias europeias

modernas, a fim de se observar como essa prática foi pensada e vivenciada não apenas

na Península Ibérica, mas também nos impérios vizinhos para, em seguida, se discutir o

tempo de serviço e as modalidades de provimento na escrivania da Câmara do Natal.

3.1 A venalidade de ofícios nas Monarquias Europeias (sécs. XV-XVIII)

O acesso aos ofícios camarários, sobretudo daqueles remunerados – escrivão

da Câmara e tabelião (do público judicial e notas) –,8

também denominados de

intermédios e aos quais se acrescentavam os ofícios de juízes de órfãos, meirinhos

dentre outros,9 podiam ser providos através de duas modalidades: a concessão precária –

temporária – ou em concessão perpétua – propriedade –.10

A obtenção dessas mercês

dava-se por três vias, são elas: em gratuidade, em remuneração de serviço ou por

compra.11

Sobre essa última via, conforme havia observado Nandini Chaturvedula, a

historiografia portuguesa tem reiteradamente afirmado o caráter limitado da prática de

compra e/ou venda de ofícios, do caráter venal ou transacionável que envolvia mesmos,

nomeadamente quando se comparado à realidade de outras monarquias europeias

coevas, como a Espanha e a França.12

Entretanto, conforme apontou Fernanda Olival,

5 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes

de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8, jan.- jun.,

2004, p. 98. 6 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América

portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. In: Almanack Brasiliense, n. 2, nov., 2005, p. 29. 7 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime

português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 631-632. 8 Ibidem., p. 632.

9 Ibidem., p. 619.

10 Ibidem., p. 631-632.

11 Ibidem., p. 624.

12 CHATURVEDULA, Nandini. Entre particulares: venalidade na Índia portuguesa no século XVII. In:

STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:

Page 192: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

192

Portugal também havia registrado o fenômeno da venalidade não apenas de ofícios

administrativos, mas também de honras, desde o século XV.13

Ainda de acordo com

essa autora, no reino, a quantidade variável de práticas venais dos ofícios

administrativos, estava diretamente condicionada a sua transmissão, mesmo que as

investigações sobre esse tema sejam recentes e esporádicas.14

Olival sugere que a

venalidade dos ofícios administrativos tenha sido mais acentuada nas regiões das ilhas –

Açores e Madeira –, bem como pelo além-mar, quando se comparam essas áreas ao

Portugal reinol.15

Não obstante, Francisco Andújar de Castillo tenha assegurado, para o caso da

Espanha do Antigo Regime e das Índias, que não houvesse existido absolutamente

nenhum ofício administrativo ou de governo isento da prática venal.16

Para o caso do

Império português, voltando-se especificamente para o Brasil no século XVIII, Alberto

Gallo tenha inferido que o regime de ofícios português caracterizava-se por uma

diferença estrutural, decorrente da mentalidade moral e social que o balizava, do regime

espanhol e das demais monarquias da Europa contemporâneas, visto que a Coroa lusa

“no vendíam ofícios por precio”.17

Esse autor havia deduzido, ainda, que no Brasil, a

venda de ofícios pela Coroa foi bem mais frequente e até mesmo consistente do que se

pode supor, visto que inúmeros ofícios de pena – principalmente as escrivanias e os

tabelionados –, municipais, políticos e da Fazenda Real haviam sido vendidos e

comprados no decorrer do setecentos.18

Não obstante, ressalta-se que pairava nas tradições portuguesas a concepção de

justiça no que tocava a distribuição das mercês efetuadas pelo soberano, posto que El

Rey estivesse a retribuir os bons serviços prestados por vassalos leais e empenhados. A

partir disso, recorria-se à dispensa daquelas concessões remuneratórias, que contribuíam

Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar,

2012. p. 268. 13

OLIVAL, Fernanda. Economía de la merced Y venalidade em Portugal (siglos XVII y XVIII). In:

CASTILLO, Francisco Andújar; FUENTES, María del Mar Felices de la. (eds.). El poder del dinero.

Ventas de cargos y honores em el Antiguo Régimen. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2011. p. 345. 14

Ibidem., p. 346. 15

Ibidem. 16

CALTILLO, Francisco Andújar. Necesidad y venalidade: España e Indias, 1704-1711. Madrid: Centro

de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. p. 13. 17

GALLO, Alberto. La venalidade de oficios públicos em Brasil durante el siglo XVIII. In: BELINGERI,

Marco (coorde.). Dinámicas de Antiguo Régimen y orden constitucional: representación, justicia y

administración em Iberoamérica, siglos XVIII-XIX. Turin: Otto Editore, 2000. p. 98-99. 18

Ibidem.

Page 193: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

193

para o acrescentamento político e social dos atores.19

Assim, a “economia de mercês”

reafirmava a dimensão compensadora e justa que estava em volta na figura do rei, ao

premiar os integrantes dos corpos sociais, garantia a solidificação dos laços de

vassalagem que interligavam os súditos ao soberano.20

Em outro estudo, Fernanda

Olival havia salientado que a economia da mercê atraía vários servidores, mas a

concessão de benesses em troca de dinheiro, seria capaz de “destruir o esforço dos

vassalos para servirem com valor a res publica”.21

E, complementava aquela autora, a

“economia da mercê e venalidade eram amiúde indissociável no contexto das práticas

portuguesas, muito embora à partida se pudessem afigurar contraditórias na sua

essência”.22

Na contramão disso, tem-se que, como havia afirmado Fernanda Olival, a

Coroa portuguesa não havia se valido dos diversos modos de venalidade de ofícios

devido a questões de dimensão histórica e cultural, como apontadas anteriormente.

Segundo essa autora, tal fato se devia a reduzida participação da monarquia lusa em

contextos de guerra como, inusitadamente, tenha ocorrido com a Coroa de Espanha.

Soma-se a isso a compleição negativa da sociedade e de “fortes censuras morais,

sobretudo dos tratadistas”.23

Em outro estudo, Roberta Stumpf havia apontado, ainda,

que eram escassos os indícios sobre a venda de ofícios em Portugal, quando

comparados às vizinhas França e Espanha, pois se o caráter venal da administração não

fosse, mormente, compreendido como ilegal, seria, no mais, considerado imoral por

seus contemporâneos, sobretudo do ponto de vista político e teológico.24

Contudo, como havia ponderado Francisco Ribeiro da Silva, a venalidade de

ofícios públicos na França tornar-se-ia um “sistema completo, oficial e legalizado”, a

partir do século XVII, mesmo que na centúria anterior já estivesse em vigor. Outras

monarquias, de acordo com aquele autor, também haviam conhecido de perto a

19 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em

Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001. 20

Ibidem. 21

Ibidem., Mercado de hábitos e serviços em Portugal (século XVII-XVIII). In: Análise Social, v. 38,

2003, p. 746. 22

Ibidem., p. 747. 23

STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia Portuguesa do século XVIII. In:

STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:

Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar,

2012. p. 284. 24

Ibidem., Venalidad de oficios em la monarquia portuguesa: um balance preliminar. In: CASTILLO,

Francisco Andújar; FUENTES, María del Mar Felices de la. (eds.). El poder del dinero. Ventas de

cargos y honores em el Antiguo Régimen. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2011. p. 332-333.

Page 194: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

194

alienação de ofícios públicos da administração, sendo, inclusive, incentivada pelos

soberanos na Espanha, na Prússia, na Inglaterra e em algumas partes dos territórios

italianos.25

Mas quanto a Portugal, Francisco Ribeiro havia concluído que mesmo que a

legislação e a atmosfera mental não favorecessem o caráter venal da administração, a

mesma havia sido não apenas tolerada como praticada no decorrer dos séculos XVI e

XVII, sendo verificada mais presente na esfera do governo local, em detrimento dos

altos postos da administração e da justiça, era mesmo anterior ao domínio Filipino e que

ao longo desse tempo, a venalidade de ofícios havia propiciado “uma certa mobilidade

social”26

nas estruturas administrativas do Antigo Regime português.27

Por fim, compreende-se que apenas o adensamento das pesquisas, em nível

local e regional, tornar-se-ão capazes de preencher as lacunas quanto as temática da

venalidade de ofícios pela Coroa lusa, dado que, como apontou Alberto Gallo, a

quantidade de ofícios menores de justiça ou fazenda – principalmente as escrivanias e

os tabelionados –, que haviam sido providos ora por meio de doação, ora via compra,

foram extremamente significativos.

Para o caso de Sevilha, em meados do século XVIII, Francisco Gil Martínez ao

analisar a situação dos ofícios passíveis de venda, havia percebido que as escrivanias,

em geral, constituíram-se como a segunda categoria de ofícios que mais haviam sido

alienados na Cidade de Sevilha naquele recorte temporal.28

Para Miguel Ángel

Extremera, em La pluma e la vida, a funcionalidade dos escrivães, de modo geral, para

sociedade espanhola moderna residia na dimensão da cultura escrita, visto que, para

esse autor “leer y escribir significan um atributo de poder”. Para Miguel Extremera, os

escrivães se não faziam parte da elite econômica faziam, para aquele autor, parte de uma

elite cultural,29

posto que os escrivães além de serem criadores de cultura escrita,

haviam atuado também como eslabón – uma espécie de link – entre governantes e

25 SILVA, Francisco Ribeiro da. Venalidade e hereditariedade dos ofícios públicos em Portugal nos

séculos XVI e XVII. Alguns aspectos. In: Separata da Revista do Centro de História da Universidade

do Porto, v. 8, 1988, p. 203. 26

Ibidem., p. 212-213. 27

Ibidem., p. 213. 28

MARTÍNEZ, Francisco Gil. El Estado de los oficios patrimonializados en Sevilla a madiados del

siglo XVIII. p. 735. Disponível em: https://ifc.dpz.es/recursos/publicaciones/33/01/54gil.pdf. Acesso em:

20/10/2017. 29

EXTREMERA, Miguel Ángel Extremera. La pluma y la vida: Escribanos, cultura escrita y sociedad en

la España Moderna (siglos XVI-XVIII). In: Cuadernos de cultura escrita. Año III-IV, 2003-2004. p.

188.

Page 195: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

195

governados e que, por fim, detinham o privilégio de “la información”.30

Em decorrência

disso, possivelmente, ter-se-ia suscitado disputas entre os componentes de alguns

segmentos sociais locais para o domínio desse ofício, principalmente com o objetivo de

assegurarem esse caráter privilegiado de acesso as informações, levando muitos atores

sociais a solicitá-lo em concessão precária – temporária – ou em concessão perpétua –

em propriedade –, como se verá a seguir, para o caso da escrivania da Câmara do Natal.

3.1.1 Provimentos e acumulações de ofícios

A escrivania concelhia do Natal foi criada, juntamente com a instituição

camarária dessa localidade em 1613, por ordem d’El Rey D. Filipe II.31

Desde a sua

criação até 1759, quando havia ocorrido a elevação dos aldeamentos indígenas à

condição de vilas e, consequentemente, com a criação de outros ofícios de escrivão

camarário pela Capitania do Rio Grande,32

a escrivania da Câmara Municipal do Natal

havia sido ocupada por 42 agentes sociais, em três diferentes regimes de exercício

identificados, os quais foram: concessão precária (temporária), concessão perpétua (em

propriedade) e através de procurações de plenos poderes.

A modalidade de provimento denominada em propriedade, consistia na dada

do ofício em regime vitalício e na potencial transmissão hereditária dessa concessão,

cujo repasse era considerado semiautomático, visto que, para isso, fosse preciso prévio

consentimento régio.33

Ressalta-se, de acordo com Roberta Stumpf, que essa

modalidade de provimento fosse privativa do monarca, pois as cartas de propriedade

eram emitidas apenas no reino.34

Ainda conforme essa autora, mesmo que se

encontrassem evidências da utilização do conceito “em propriedade” no século XVII,

30 EXTREMERA, Miguel Ángel Extremera. La pluma y la vida: Escribanos, cultura escrita y sociedad en

la España Moderna (siglos XVI-XVIII). In: Cuadernos de cultura escrita. Año III-IV, 2003-2004. p.

205. 31

MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil. Tomo I. Rio de

Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. p. 416. 32

LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o

diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de

Pernambuco, Recife, 2005. 33

STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime

português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, nota 8, p. 614. 34

Ibidem., p. 619.

Page 196: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

196

esse termo foi bastante difundido ao longo do Setecentos,35

conferindo aos portadores

desses documentos prestígio social na sociedade do Antigo Regime.36

No entanto, Roberta Stumpf também havia pontuado que os ofícios, mesmo

aqueles que haviam sido concedidos em propriedade, não eram “bens patrimoniáveis

(livres ou vinculados)”37

e que o estatuto jurídico dos proprietários fazia com que esses

detivessem “apenas seu domínio, usufruindo de suas rendas e privilégios”,38

não se

tratando, portanto, de um bem particular39

e apetecível de deixá-lo como herança aos

seus filhos – como em contrário ocorria com os bens de raiz no direito sucessório –,

mesmo que o direito consuetudinário, baseado na primogenitura, tenha pesado na

momento da transmissão da titularidade do ofício quando por morte do proprietário

anterior.40

No caso dos dois provimentos em propriedade, identificados para o ofício de

escrivão da Câmara do Natal, em dois diferentes períodos da primeira metade do século

XVIII, verificou-se que ambos foram concedidos em remuneração de serviços prestados

tanto por familiares quanto pelo próprio pretendente à carta de propriedade do ofício,

como se verá adiante.

A concessão precária de ofícios da administração fundamentava-se na

permissão temporária para o exercício ou para a função,41

geralmente de três anos, mas

que se caracterizava por um prazo relativamente curto, no término do qual retornava as

mãos do monarca “quem, direta ou indiretamente, através de seus tribunais e

autoridades no reino e no ultramar, prorrogava o tempo de serviço do antigo titular ou

tornava a provê-los em um novo oficial”.42

De acordo com Roberta Stumpf essa forma

de concessão também podia ser denominada em serventia43

e, assim como o regime em

propriedade, ser concedida mediante o pagamento ou não de donativo à Coroa

inicialmente e, mais tarde, a Junta da Fazenda de cada capitania.44

Contudo, reverbera-

se que não se identificou, ao longo do período analisado, o pagamento de donativo para

o provimento, nem em propriedade nem em concessão precária, no ofício de escrivão

35 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime

português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, nota 32, p. 620. 36

Ibidem., p. 621. 37

Ibidem., p. 624. 38

Ibidem. 39

Ibidem. 40

Ibidem., nota 45, p. 623. 41

Ibidem., p. 614. 42

Ibidem., p. 615. 43

Ibidem., p. 614. 44

Ibidem., p. 618, 628.

Page 197: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

197

da Câmara do Natal. Acrescenta-se a isso, que trinta e oito atores sociais foram providos

por concessão precária no exercício da escrivania camarária do Natal, entre 1613 e

1759, por períodos de tempo que variaram de dois meses, no mínimo, até três anos, no

máximo, mesmo que em alguns casos essas provisões foram renovadas no mesmo

indivíduo ao longo de vários anos.

Ainda sobre a concessão precária ou em serventia, salienta-se que foi a partir

do Decreto de 18 de maio de 1722, que os oficiais que serviam através dessa forma de

provimento ficavam obrigados a arcarem com o pagamento da terça parte dos

rendimentos anuais do ofício à Coroa, do mesmo modo que os serventuários pagavam

também a dita terça parte do que rendiam os ofícios anualmente aos seus proprietários.45

Ainda assim, não foi possível averiguar na documentação consultada os valores que

eram pagos pelos serventuários do ofício de escrivão da Câmara do Natal aos

proprietários do ofício ou à Coroa.

Visto tudo isto, infere-se que os ofícios intermédios podiam “estar sujeitos a

várias modalidades de provimento e transmissão”, como havia afirmado Roberta

Stumpf ao analisar o ofício de juiz de órfãos da Capitania do Rio de Janeiro.46

O mesmo

também havia ocorrido com o ofício de escrivão da Câmara do Natal, para o qual se

identificou uma modalidade de provimento atípica e não presente na literatura sobre o

tema, que fosse o provimento mediante procurações de plenos poderes.

Ao se buscar o significado de procuração e de procurador em dicionários da

época averiguou-se que, segundo Raphael Bluteau, procuração seria “o poder de tratar

algum negócio cometido a alguém por escritura [...] ato, escritura em virtude da qual

pode alguém tomar juridicamente algum negócio a sua conta e solicitar os interesses da

pessoa que lhe cometeu”.47

E havia sido justamente com esse sentido que as duas

provisões por procuração de plenos poderes do ofício de escrivão da Câmara do Natal

foi concebida. Pois, de acordo com o teor desse documento, o procurador daquele

ofício, ao qual se juntava também o de tabelião do público, judicial e notas da Capitania

do Rio Grande, tinha plenos poderes sobre ambos, podia tomar posse em seu próprio

nome, realizar o juramento e ser investido no ofício – do mesmo modo que deviam fazer

45 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime

português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 626. 46

Ibidem., p. 618. 47

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...

Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. v. 2. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>. Acesso em: 12/03/2018. Ver verbete “procuração”.

Page 198: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

198

os proprietários –, bem como lhe estava facultada as possibilidades de escolher e

destituir os serventuários, de determinar os valores a serem pagos pelos mesmos, enfim

de representar todos os interesses do proprietário em seu próprio nome.48

No Gráfico

09, abaixo, verifica-se percentualmente o tempo de serviço e as modalidades de

provimentos identificados para o ofício de escrivão concelhio do Natal, entre 1613 e

1759.

Gráfico 09 - Tempo de serviço e modalidade do provimento para o ofício de escrivão

da Câmara do Natal (1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

49

Através da análise do Gráfico 09, observa-se que grande parte dos agentes que

foram providos no ofício de escrivão da Câmara do Natal, havia ocorrido por meio da

concessão precária – temporária – do exercício desse ofício, no qual 93,10% (54) das

48 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 74; Ibidem., Livro 06 (1713-1720) Fl. 129v. 49

Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do

Natal (1659-1760); Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, códice 21.

Livro de Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246; AHU-

RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60.

Page 199: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

199

cartas de provisões identificadas remetiam-se a essa forma de concessão, para as quais

foram nomeados 38 indivíduos.50

Ressalta-se que a quantidade total de cartas de

provisões rastreadas, apresentam números ligeiramente superiores a quantidade total de

indivíduos que serviram naquele ofício. Explica-se esse fato, ao se ressalvar que

inúmeras vezes um mesmo indivíduo exerceu o ofício de escrivão concelhio, da

concessão precária – temporária –, por mais de uma ocasião e que para cada um desses

períodos, ter-se-ia que obter uma nova carta de provisão para o referido ofício. Exemplo

disso foi o Sargento-mor Manuel Antônio Pimentel de Melo, que havia exercido a

escrivania concelhia do Natal em dois períodos, de 1746-1753 e de 1760-1767. Para o

primeiro intervalo de tempo, tem-se 10 cartas de provisões identificadas em seu nome

em regime temporário de exercício, que foram concedidas por diferentes intervalos de

tempo, que variavam de três meses até um ano.51

Constatou-se, ainda, que as provisões em concessão precária da escrivania

concelhia do Natal, ao que parece, no geral possuíam prazos de validade máxima de um

ano, estipulados nas próprias cartas, como se evidencia no caso citado anteriormente,

aonde o Sargento-mor Manuel Antônio Pimentel de Melo havia obtido suas provisões, a

quem, segundo uma delas, já estava “reservada”.52

Ainda assim, verificou-se na

documentação situações de provisões por tempo de três anos, mas em números

inexpressivos. Noutros casos, esse vencimento era substancialmente inferior, variando

entre dois, três ou seis meses, no limite dos quais não se poderia extrapolar, mas que um

mesmo agente tinha a possibilidade de solicitar outra vez as autoridades competentes

nova provisão, desde que a câmara, o proprietário ou o procurador e o capitão-mor

assim o avalizasse.

Mesmo não se remetendo a uma provisão de meses para o exercício da

escrivania concelhia do Natal, tem-se que a renovação do provimento do Capitão

Manuel Álvares Bastos para o ofício de escrivão da Câmara do Natal em 1746,53

o qual

estava exercendo, continuamente, desde 1738,54

não tenha sido renovada. Em carta ao

Capitão-mor do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques (1739-1751), os

50 Fundo documental do IHGRN. Livro de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1760).

51 Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09 (1743 – 1754). Fl. 51, 71v,

89v, 115v, 128, 161v, 203, 245v; Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro

10 (1755-1760). Fl. 49, 160v. 52

Ibidem., Fl. 49. 53

Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09 (1743 – 1754). Fl. 49. 54

Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 08 (1738 – 1743). Fl. 12.

Page 200: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

200

oficiais camarários davam conta de que Álvares Bastos tinha “se adiantado” as

disposições do edizes ao buscar nova carta de provisão temporária para a escrivania

camarária, dado que fosse notória a sua incapacidade para permanecer no exercício do

ofício, principalmente por haver mentido, pois havia afirmado ser licenciado, como

reconhecidamente o era seu falecido pai, Francisco Álvares Bastos.55

Em face desse

impedimento que havia vetado a permanência de Manuel Bastos no exercício

temporário da escrivania do Natal viria, em seguida, a assumir esse ofício também em

concessão precária, Manuel Antônio Pimentel de Melo,56

cujo pai também foi escrivão

dessa edilidade na segunda década do século XVIII.

No que concerne às provisões em concessão precária por reduzidos períodos

de tempo, têm-se, como exemplo, a primeira nomeação efetuada para servir de escrivão

da Câmara do Natal ao Alferes Manuel Rodrigues Taborda, em 22 de outubro de 1706.

De acordo com essa carta, o Capitão-mor do Rio Grande, Sebastião Nunes Colares

(1701-1708), nomeava Rodrigues Taborda por tempo de três meses, enquanto não

chegasse à provisão do Governador e Capitão General de Pernambuco. Salienta-se que

essa provisão tenha ocorrido pela vacatura em que deixou o ofício Zacarias Vital

Pereira, que havia cometido um crime57

– o mesmo Zacarias Pereira que, visto no

capítulo anterior, viria a ganhar, em 22 de janeiro de 1708, uma data de sesmarias,

vindo a ocupar os honoráveis ofícios da Vila de São José do Ribamar.58

Não obstante, a

provisão da escrivania concelhia do Natal em tempo reduzido não tenha ocorrido apenas

em função de situações limites como a apresentada anteriormente. Essas foram

realizadas diversas vezes ao longo da segunda metade do século XVII, na Capitania do

Rio Grande. Exemplifica isso, a primeira provisão de Antônio Lopes de Lisboa, em 22

de junho de 1679, no qual foi provido, pelo Capitão-mor do Rio Grande, Geraldo de

Suny (1679-1681), durante dois meses, “enquanto Sua Alteza o houver assim por bem

ou o governador geral não ordenar o contrário”.59

Percebe-se que as nomeações efetuadas por pequenos espaços de tempo para

escrivania camarária do Natal, na segunda metade do século XVIII, ter-se-ia se

55 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09

(1743 – 1754). Fl. 50. 56

Ibidem., Fl. 51. 57

Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 105v. 58

Carta de sesmaria doada a Zacarias Vital Pereira em 22 de janeiro de 1708. Plataforma SILB – CE

0301. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 26/09/2017. 59

Fundo documental do IHGRN. op. cit., Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 44v.

Page 201: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

201

justificado na medida em que se precisava de recursos humanos para se levar a cabo o

expediente institucional concelhio e que, mormente o tempo administrativo, como havia

pontuado Heloísa Belloto,60

muito retardasse a chegada das provisões ora do Governo-

Geral, na Bahia, ora dos Governadores e Capitães-generais de Pernambuco, sob a

jurisdição dos quais os Capitães-mores do Rio Grande estiveram submetidos, na

segunda metade do século XVII à Capitania da Bahia e, a partir de 1701, à Capitania de

Pernambuco. Apesar de que aquelas “distorções” objetivassem, minimamente, a

funcionalidade do processo administrativo e burocrático na Capitania do Rio Grande, o

provimento de ofícios menores da justiça, em caráter emergencial ou corriqueiro, como

havia lançado mão constantemente os capitães-mores, não deixavam de suscitar

conflitos, devidos à sobreposição de jurisdição e a conflitos por representação de poder.

O mesmo Antônio Lopes de Lisboa, concessionário precário da escrivania da

Câmara do Natal durante quase uma década, de 1679 até 1688,61

foi o estopim nesse

último ano de uma querela envolvendo o Capitão-mor do Rio Grande, Pascoal

Gonçalves de Carvalho (1685-1688), e o Governador-Geral, D. Mathias da Cunha. Em

carta enviada da Bahia, em 31 de maio de 1688, Mathias da Cunha rechaçava o Capitão-

mor Pascoal Gonçalves por haver contrariado suas disposições quando este havia

nomeado para a serventia de Provedor da Fazenda, Manuel Duarte de Azevedo, mas que

continuava permitindo que Antônio Lopes de Lisboa exercesse o ofício de escrivão sem

provisão do Governo-Geral.

Em retaliação aquela situação, Mathias da Cunha ordenava que se declarassem

nulos todos os documentos que Lopes de Lisboa houvesse produzido naquele ofício

depois de finda sua provisão pelo governo geral, visto que quando os agentes se fiavam

nisso, serviam de três em três meses, contrariando as novas disposições que haviam sido

postas, visto que sequer pagavam as meias anatas, em grave prejuízo para a Coroa.62

Após essa determinação, Antônio Lopes não havia retornado mais ao exercício do ofício

60 BELLOTO, Heloísa L. O Estado português no Brasil: Sistema administrativo e fiscal. In: SILVA,

Maria Beatriz N. da (coord.). O Império luso-brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editora Estampa, 1986. p.

265. 61

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl. 106v; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume I. Rio de Janeiro:

Biblioteca Nacional, 1929. p. 287-288. 62

Ibidem.

Page 202: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

202

de escrivão da Câmara do Natal, mesmo que viesse, mais tarde, a ser vereador dessa

edilidade, eleito para dois mandatos, o primeiro em 1693 e o segundo 1696.63

Constata-se, de acordo com o Gráfico 09, que apenas de 3,44% (2) das

provisões identificadas para o ofício de escrivão da Câmara do Natal, para o período

analisado, tenham sido efetuados em concessão perpétua – propriedade. A carta de

propriedade desse ofício, juntamente com um dos dois ofícios de tabelião do público,

judicial e notas da Capitania do Rio Grande, os quais eram anexos um do outro, foram

concedidos em dois momentos distintos da primeira metade do século XVIII, a dois

indivíduos de origens diversas e que não apresentavam nenhum grau de parentesco

consanguíneo. Contudo, reitera-se que em ambos os casos, a concessão perpétua da

carta de propriedade foi concedida em remuneração aos serviços militares prestados

pelos agentes em conflitos tanto no reino – na Guerra de Sucessão Espanhola –, quanto

nas Capitanias do Norte – durante a Guerra dos Holandeses.

O primeiro desses agentes a obter a concessão perpétua do ofício de escrivão

da Câmara do Natal, foi Francisco Álvares de Lima. Posto que, quando El Rey havia

ordenado, após se verificar a ausência de proprietários naqueles ofícios, que no prazo de

oito dias os indivíduos que pretendessem adquirir àquela propriedade, apresentassem

seus papéis correntes – espécie de folha corrida dos serviços prestados pelo próprio

candidato ou por seus familiares à Coroa –, na secretaria do Concelho Ultramarino, o

tinha feito apenas Francisco Álvares.

Francisco Álvares havia apresentado um alvará de lembrança de ofício pelos

serviços que foram prestados por seu pai, Gaspar Gonçalves de Lima, nas Guerras da

Sucessão Espanhola, onde esse ator social havia perdido a própria vida. Diante disso, os

conselheiros do Conselho Ultramarino votaram por unanimidade e pela falta de outros

opositores para que Álvares de Lima obtivesse a carta de propriedade.64

No entanto, por

ser morador em Lisboa, onde desempenhava o ofício de Tesoureiro da Inconfidência, na

Tesouraria-mor dos Três Estados, havia-lhe sido facultada a alternativa de tomar posse

63 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0382, Fl.(s)

106-106v; Doc. 0443, Fl.(s) 126v-127. 64

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60.

Page 203: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

203

por meio de procurador, bem como de nomear serventuário para o exercício de ambos

os ofícios.65

Assim, os procuradores instituídos por Francisco Álvares de Lima foram João

Batista Campeli e Paulo Campeli de Azevedo.66

Sobre João Batista Campeli tem-se que

era “descendente de pais e avós que figuravam entre as principais pessoas de Guarda”.67

George Félix Cabral de Souza, em Tratos e Mofratas, pintava Batista Campeli como um

comerciante de origem italiana, que havia aportado na Capitania de Pernambuco em

1688, “sem que a atividade de mercador lhe atingisse ou maculasse a honra e prosápia

de funcionário”.68

Ao que parece, João Batista Campeli estava envolvido com uma rede

mais ampla que visualizava na posse de procurações de ofícios administrativos uma

fonte de dividendos, se não materiais – dados os diminutos valores que podiam ser

auferidos anualmente desses ofícios –, mas sociais ou de prestígio. A segunda

alternativa seria mais plausível, dado que, conforme havia pontuado Roberta Stumpf, as

cartas de propriedade conferiam certo prestígio, mesmo em casos de ofícios de estatuto

inferior, pois haviam sido concedidas por órgãos régios.69

Afirma-se isso, posto que

Campeli também fosse procurador do ofício de escrivão da Fazenda Real de

Pernambuco, cujo proprietário era Teófilo Homem da Costa.70

Contudo, Batista Campeli não havia chegado a atuar na Capitania do Rio

Grande como procurador dos direitos de Francisco Álvares de Lima sobre aqueles

ofícios, visto que havia substabelecido em Recife, em 19 de dezembro de 1705, a

Manuel de Melo e Albuquerque como procurador, com plenos poderes, sobre os

referidos ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de tabelião do público, judicial e

notas da Capitania do Rio Grande.71

65 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 74. 66

Ibidem. 67

SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la Cámara

Municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidad de Salamanca,

Salamanca, 2007. p. 313. 68

Ibidem., Tratos e mofratas: O grupo mercantil do Recife colônia (c. 1654-1759). Recife: Editora

Universitária – UFRE, 2012. p. 448. 69

STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime

português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 621. 70

DANTAS, Aledson M. S. Meu ofício, moeda e sustento: propriedade de ofícios na Capitania de

Pernambuco no período pos-bellum. In: Revista Acadêmica Historien (Petrolina), ano 5, n. 10. jan./jun.,

2014, p. 238. 71

Fundo documental do IHGRN, loc. cit.

Page 204: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

204

Ao que parece, aquela procuração de plenos poderes sobre esses ofícios em

Manuel de Melo e Albuquerque, vigoraria até 1718, ano em que seria encartado o novo

proprietário, José Ribeiro Ribas, por falecimento de Francisco Álvares de Lima, sem

que houvesse deixado herdeiros. José Riba, por seu turno, nomearia outro procurador

para esses ofícios na Capitania do Rio Grande, como se verá a seguir.72

Reitera-se que

Manuel de Melo e Albuquerque, enquanto procurador de Francisco Álvares, havia

tomado posse e feito os juramentos dos referidos ofícios e, em seguida, nomeado

Zacarias Vital Pereira como primeiro serventuário daqueles ofícios.73

Porém, em 17 de

julho de 1713, os oficiais da Câmara do Natal, em carta à D. João V, solicitavam que

Francisco Álvares viesse para a Capitania do Rio Grande servir ambos os ofícios, dado

que devido aos valores cobrados pelo procurador de Álvares de Lima, possivelmente

ainda Manuel de Melo e Albuquerque, não houvesse pela Capitania pessoa alguma que

o quisesses servir.74

Mesmo assim, Francisco de Lima jamais viria exercer pessoalmente

a escrivania do Concelho do Natal, pois postergaria as deliberações, com a chancela da

Coroa, ao lhe ser facultada a possibilidade de nomear serventuários para ambos os

ofícios.

Transcorridos treze anos após a nomeação de Francisco Álvares de Lima, esse

faleceria em 1717, sem, contudo, deixar herdeiros.75

A referência à falta de herdeiros de

Francisco Álvares para a escrivania da Câmara do Natal e do tabelionato público aponta

para aquilo que havia sido afirmado por Roberta Stumpf acerca da transmissão

hereditária dos ofícios. De acordo com essa autora, mesmo que a transmissão de um

ofício dependesse da chancela do rei, “era resguardado o direito dos herdeiros” não pelo

direito sucessório, mas pelo direito consuetudinário.76

Mas a situação era diferente,

Álvares de Lima não havia deixado herdeiros e dessa forma os ofícios ficavam vagos,

retornando as mãos do monarca e tornando-se disponíveis para uma nova concessão.

Isso impelido às autoridades, por ordem régia, que se afixassem editais na Capitania do

Rio Grande e às portas do Concelho Ultramarino durante vinte dias, para que quem

72 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720) Fl. 129v. 73

Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 74. 74

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 70. 75

Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de

Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 76

STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime

português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 623-624.

Page 205: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

205

quisesse candidatar-se a propriedade dos ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de

tabelião púbico da Capitania do Rio Grande, o fizesse no referido prazo. Dentro desse

tempo, três indivíduos apresentaram suas folhas corridas com a relação de serviços que

haviam prestado a Coroa lusitana, foram eles: José Ribeiro Ribas, Antônio de Ataíde de

Paiva e Tomé Peixoto Barreto.77

Todos possuíam em comum o fato de haverem servido

a Coroa em postos militares e/ou administrativos.

Conquanto, saiu vitorioso José Ribeiro Riba, devido haver apresentado um

alvará de lembrança de ofício, de justiça ou fazenda, adquirido pelo seu sogro,

Domingos da Costa de Araújo, nas Guerras de Pernambuco, que foram travadas contra

os flamengos. Além disso, em comparação com o que apresentaram os demais

candidatos, os ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de tabelião público da

Capitania do Rio Grande, eram avaliados em $ 40.000,00 reis, o mesmo lote que

também perfazia o alvará de lembrança de ofício apresentado por Ribeiro Riba.78

Após

isso, José Ribeiro havia tratado de nomear procurador com plenos poderes sobre ambos

os ofícios na Capitania do Rio Grande, para o qual foi escolhido o então provedor da

Fazenda Real, João da Costa e Silva, que o substabeleceria na pessoa de Bento Ferreira

Mouzinho,79

que já estava na serventia daqueles ofícios desde 1715.80

Com isso, por fim, Manuel de Melo e Albuquerque e Bento Ferreira Mouzinho,

correspondiam aos 3,44% (2) dos indivíduos que foram providos no ofício de escrivão

da Câmara do Natal, através de uma procuração de plenos poderes, o que lhes teria

possibilitado dispor desses ofícios como se fossem os próprios donos, tomando posse,

juramentado, escolhendo e destituindo serventuários. Com o substabelecimento da

procuração, esses agentes haviam passado a controlar, localmente, um vetor de inserção

na principal agência de representação da Capitania e difusora de nobilitação, a qual,

possivelmente, lhes teria contribuído, ainda, como um mecanismo de cooptação de

novos componentes para as suas redes clientelares.

Ainda sobre a questão dos provimentos, pode-se visualizar no Gráfico 10, logo

depois, quais foram às autoridades que haviam competido os provimentos nos ofício de

77 Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de

Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 78

Ibidem. 79

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 129v. 80

Ibidem., Fl. 77v.

Page 206: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

206

escrivão camarário do Natal, verificados no decorrer do século XVII e primeira metade

do século XVIII.

Gráfico 10 - Autoridades que proveram o ofício de escrivão da Câmara do Natal

(1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

81

Visivelmente, espreita-se no Gráfico 10, que 78,33% (47) das provisões

efetuados para o ofício de escrivão da Câmara do Natal, foram realizadas pelos capitães-

mores da própria Capitania do Rio Grande. Todas essas provisões consistiam na dada

do ofício através da modalidade de concessão precária, ou seja, do exercício

temporário, verificadas por toda a segunda metade do século XVII e a primeira metade

do século XVIII. Infere-se da leitura dessas cartas de provisões o caráter de

eventualidade que as demarcavam, visto que em quase todas elas continha a alusão “por

81 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir dos Livros de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do

Natal (1659-1759); Documentos Históricos da Biblioteca Nacional; Documentos Manuscritos Avulsos

referentes à Capitania do Rio Grande do Norte existente no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa;

Livro de Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). Códice 21. 9º v. Fl. 244-

246.

Page 207: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

207

tempo de três meses somente, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário e não

chegar à provisão do governo geral”, o que assinalava a casualidade das provisões que

foram efetuadas pelos capitães-mores.82

No entanto, verificou-se anteriormente, no caso

da suspensão de Antônio Lopes de Lisboa, que as tais provisões não seriam

convenientes ao serviço d’El Rey, pois propiciava aos providos a possibilidade de se

esquivarem do pagamento das meias anatas – imposto pago a Coroa sobre as provisões

de ofícios –, e, portanto, sendo prejudicais ao erário régio.

Contudo, possivelmente, foi em face do chamado tempo administrativo, com

os consequentes atrasos advindos do mesmo e as prementes demandas diárias, que

levaram os capitães-mores do Rio Grande a proverem as concessões precárias do ofício

de escrivão camarário do Natal. Depreende-se que, algumas vezes, os capitães-mores

foram requisitados que assim o procedessem pelos próprios oficiais camarários perante

a urgência de não poderem adiar as atividades administrativas e burocráticas dos

concelhos por faltas de provisões. Exemplo disso foi à carta escrita pelos oficiais da

Câmara do Natal, em 22 de abril de 1687, que requisitava ao Capitão-mor, Pascoal

Gonçalves de Carvalho (1685-1688), que provesse o ofício de escrivão daquele

senado.83

Essas situações, em alguns momentos, acabaram por gerar conflitos de

jurisdição entre os Capitães-mores do Rio Grande e o Governo Geral, na segunda

metade do século XVII,84

a quem estavam subordinados e, na primeira metade do

século XVIII, com os Governadores e Capitães-Generais de Pernambuco.85

Depois dos capitães-mores do Rio Grande, de acordo com o Gráfico 10, pode-

se afirmar que a autoridade que mais havia emitido cartas de provisões para a concessão

precária do ofício de escrivão concelhio da Cidade do Natal, foram os Governadores e

Capitães-Generais de Pernambuco, responsáveis por 6,66% (4) dos provimentos. Essas

provisões são verificadas apenas na primeira metade do século XVIII. Provavelmente,

em decorrência da anexação da Capitania do Rio Grande, em 1701, com a submissão

administrativa e militar aos Governadores e Capitães-generais da Capitania de

Pernambuco.86

Exemplo disso foi provisão, por concessão precária, exarada pelo

82 Fundo documental do IHGRN. Livros de cartas e provisões do Senado da Câmara (1659-1760).

83 Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 98.

84 Ibidem., Livro 1 (1659 – 1668). Fl. 9v.

85 Ibidem., Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17 (1728 – 1736). Fl. 7v.

86 ALVEAL, Carmen M. O. A Anexação da Capitania do Rio Grande em 1701: Estratégia da coroa ou

interesse de grupo da Capitania de Pernambuco?. In: CAETANO, Antonio Filipe Pereira. (Org.).

Page 208: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

208

Governador e Capitão General de Pernambuco, Francisco de Castro Morais, em 06 de

março de 1705, através da qual nomeava Manuel Rodrigues Taborda no ofício de

escrivão da Câmara, por tempo de um ano.87

Em seguida, conforme o Gráfico 10 tem-se as provisões em concessão

perpétua executadas para a escrivania da Câmara do Natal pelo próprio rei, às quais

corresponderam a 3,33% (2). Sobre essas provisões, verificou-se anteriormente que as

duas encontradas remetiam-se ao provimento do ofício de escrivão do Concelho

Municipal do Natal, em propriedade. A primeira delas em 16 de outubro de 1704,

quando D. Pedro II havia nomeado Francisco Álvares de Lima88

e a segunda,

transcorridos treze anos depois, em dezembro de 1717, quando D. João V havia

nomeado o Comissário Geral de Cavalaria, José Ribeiro Riba, para a propriedade dos

ofícios de escrivão camarário da Cidade do Natal e tabelião público do Rio Grande.89

Com o mesmo percentual anterior, havia ocorrido também às provisões em

concessão precária para o ofício de escrivão concelhio do Natal, efetuadas por parte do

Ouvidor Geral da Paraíba – 3,33% (2). Quanto às provisões exaradas por esses oficiais,

aponta-se que localizaram duas. A primeira delas, talvez em decorrência de uma

solicitação efetuada pelos próprios oficiais camarários, quando requereram ao Dr.

Jerônimo Correia do Amaral que permitisse que Estevão Velho de Melo continuasse no

exercício do ofício de escrivão da Câmara do Natal.90

O motivo dessa representação,

havia sido o fato de que Estevão Velho estava exercendo também o ofício de escrivão

da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande.91

Mesmo diante disso, os oficiais

camarários obtiveram resposta satisfatória, dado que o Ouvidor Joaquim Amaral havia

concedido a provisão a Estevão Velho de Melo.92

Identificaram-se, ainda, os provimentos através das procurações de plenos

poderes instituídas pelos próprios proprietários do ofício de escrivão camarário, cujo

montante perfez 3,33% (2). No que diz respeito a essa forma de provimento, há que se

Dinâmicas Sociais, Políticas e Judiciais na América Lusa: Hierarquias, Poderes e Governo (Século

XVI-XIX). 1. ed. Recife: Editora UFPE, 2016, v. 1, p. 135-158. 87

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 35. 88

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60. 89

Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de

Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 90

Fundo documental do IHGRN. op. cit., Livro 06 (1713-1720) Fl. 21v. 91

Ibidem. 92

Ibidem., Livro 06 (1713-1720) Fl. 23v.

Page 209: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

209

efetuarem algumas ressalvas. Primeiro que não se tratavam de provisões de fato, mas

em procurações de plenos poderes concediam aos seus portadores larga margem de

autonomia para disporem dos ofícios de escrivão e de tabelião como bem entendessem.

Esses procuradores podiam desde escolherem serventuários – quando não fossem eles

mesmos quem assumiam de fato o exercício –, destituírem os escolhidos, fixarem os

valores a serem cobrados aos serventuários.

Diante disso, considerou-se que tais procurações constituíram-se, na verdade,

em provisões, que possibilitavam aos procuradores controlarem localmente e na prática

a propriedade de um ofício que pertencia a terceiros. A primeira procuração encontrada

foi substabelecida por Francisco Álvares de Lima em Manuel de Melo e Albuquerque,93

cuja duração se estendeu por toda a vida daquele proprietário. A segunda procuração foi

instituída por José Ribeiro Riba, e havia sido sub-rogada em Bento Ferreira

Mouzinho,94

mas não se pôde averiguar até quando havia permanecido nas mãos desse

agente.

Em percentuais menores, mas não menos importantes, foram às provisões

realizadas pelo Vice-rei, pelo Bispo de Pernambuco e pelos oficiais da Câmara do

Natal, as quais, de acordo com o Gráfico 10, corresponderam, cada uma, à 1,66% (1).

Exemplo de nomeação efetuada pelo Vice-rei do Estado do Brasil foi à designação de

por concessão precária de Diogo Rodrigues Pereira, em 01 de maio de 1664, para os

ofícios de escrivão da Câmara do Natal e tabelião público da Capitania do Rio Grande,

efetuados por Dom Vasco de Mascarenhas, Conde de Óbidos, que então exercia o

Governo Geral do Estado do Brasil.95

Quanto à única referência a provisão efetuada

pelo Bispo de Pernambuco, Dom Estevão Brito de Figueiredo, verifica-se que foi a

nomeação, também via concessão precária, de José Martins de Morais, em 16 de maio

de 1678, para escrivão interino do Senado da Câmara do Natal. Essa provisão havia

ocorrido devido à ausência de Manuel de Amorim que então servia o ofício, mas que se

encontrava em viajem pelos sertões da Capitania do Rio Grande.96

De igual modo, tem-

se apenas uma única referência à provisão em concessão precária – temporária – do

ofício de escrivão da Câmara do Natal efetuada pelos próprios oficiais dessa edilidade,

93 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 74 94

Ibidem., Livro 6 (1713 – 1720) Fl. 129v. 95

Ibidem., Livro 1 (1659 – 1668). Fl. 32. 96

Ibidem., Livro 2 (1673 – 1690). Fl. 38v.

Page 210: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

210

quando proveram, por portaria, a Estevão Velho de Melo nesse ofício, em 20 de

novembro de 1713.97

Assim, percebeu-se a partir da análise das autoridades que expediram cartas de

provisão para o ofício de escrivão da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759, que devido

ao fato desse ofício se constituir como pertencente ao universo dos “ofícios locais” –

que compreendiam os ofícios honoráveis para o governo das Câmaras, bem como seus

auxiliares ou intermédios, no interior dos quais figuravam os escrivães concelhios,

dentre outros oficiais, apontados por António Manuel Hespanha98

–, suas provisões não

podiam ser efetuadas diretamente pelos oficiais honoráveis dos concelhos, como

demonstram as solicitações que esses edizes da Câmara do Natal efetuaram, em alguns

momentos, ora ao Capitão-mor do Rio Grande, ora ao Ouvidor Geral da Paraíba, para

que esses oficiais provessem a escrivania concelhia do Natal.

Não raras vezes a provisão do ofício de escrivão pelos capitães-mores acabava

por suscitar disputas jurisdicionais sobre a quem caberia, de fato, os provimentos para

aquele ofício, como exemplificado no caso da contenda entre o Capitão-mor Pascoal

Gonçalves de Carvalho (1685-1688) e o Governador Geral Mathias da Cunha, acerca

das provisões das serventias trimestrais de Antônio Lopes de Lisboa.

Assim, as asserções apresentadas anteriormente, baseadas principalmente em

uma documentação local, corroboram com a afirmação de Roberta Stumpf sobre o fato

de que os provimentos dos ofícios temporários deviam ocorrer através da figura do rei,

de forma direta ou indireta e, neste caso por meio das provisões efetuadas pelos

tribunais ou autoridades, tanto no reino quanto no além-mar.99

Talvez para que

pudessem efetuar certo controle da câmara ou mesmo para servirem de “olhos” dessas

autoridades dentro das principais instituições de representação da elite local. Entretanto,

ressalta-se que várias vezes os indivíduos nomeados faziam parte das extensas famílias

locais – como se verá no próximo item o caso da Família Rodrigues de Sá –, ou que

mesmo quando veio de outras localidades – reino ou demais capitanias do Norte –, se

imiscuíram nas redes clientelares e/ou familiares da Capitania do Rio Grande. Isso,

possivelmente, inviabilizava qualquer tentativa de controle da instituição concelhia ou

97 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720) Fl. 1v. 98

HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 160-161. 99

STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime

português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 615.

Page 211: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

211

mesmo da condição de informantes ou de olhos privilegiados das autoridades régias e

do próprio rei, no exercício de escrivão camarário do Natal.

No entanto, salienta-se que mesmo que a diretiva geral orientasse que os

provimentos do ofício de escrivão da Câmara do Natal devessem ser efetuados, na

segunda metade do século XVII, pelo Governo Geral da Bahia e, na primeira metade do

século XVIII, pelo Governo de Pernambuco, tal medida não foi possível de ser seguida

à risca devido à imprescindibilidade do escrivão camarário para as práticas

administrativas dessa instituição. Isso pode ser visualizado na maior percentagem

adquirida pelos provimentos em concessão precária efetuados pelos capitães-mores,

que se por um lado objetivava agilizar os trâmites administrativos, por outro lado tinha

grandes consequências políticas, posto que a querela acerca dos provimentos de ofícios

também envolviam interesses de grupo na sociedade da Cidade do Natal, entre os

séculos XVII e XVIII, principalmente os atores sociais envolvidos no processo de

Restauração, os quais foram os principais interessados na sujeição administrativa e

militar da Capitania do Rio Grande ao Governo de Pernambuco.100

Em meio a tudo isso, percebeu-se, ainda, certa tendência, sobretudo na segunda

metade do século XVII, para o acúmulo de cargos e ofícios na administração da

Capitania do Rio Grande, com participação, inclusive, dos escrivães camarários.

Segundo António Manuel Hespanha, a acumulação de cargos e ofícios havia sido uma

constante no Portugal peninsular do século XVII, sobretudo no que se reporta aos

ofícios menores das vilas e cidades espalhadas pelo território.101

Assim, no Gráfico 11,

a seguir, apresentam-se os ofícios que foram acumulados com a escrivania da Câmara

do Natal, entre 1613 e 1759.

100 PUNTONI, Pedro. “Paulistas x Mazombos”. In: Ibidem., A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e

a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec/Edusp/Fapesp, 2002, p. 241-

289; ALVEAL, C. M. O. A Anexação da Capitania do Rio Grande em 1701: Estratégia da coroa ou

interesse de grupo da Capitania de Pernambuco?. In: Antonio Filipe Pereira Caetano. (Org.). Dinâmicas

Sociais, Políticas e Judiciais na América Lusa: Hierarquias, Poderes e Governo (Século XVI-XIX). 1.

ed. Recife: Editora UFPE, 2016, v. 1, p. 135-158. 101

HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 161-186.

Page 212: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

212

Gráfico 11 - Acumulação do ofício de escrivão da Câmara do Natal com outros ofícios

da administração local (1613-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

102

Conquanto, observa-se, no Gráfico 11, quando excetuados a porcentagem de

indivíduos que nunca acumularam ofícios na administração da Capitania do Rio

Grande, os quais perfizeram um montante de 22,22% (14), as maiores quantidades

seguintes são constituídas pela acumulação da escrivania concelhia do Natal com o

102 Elaborado pelo autor Abimael Lira, a partir LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos

de Vereação do Senado da Câmara do Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio

Grande do Norte (no prelo).; Fundo documental do IHGRN (1659-1760). Livros de cartas e provisões da

câmara, n.os

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.

Page 213: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

213

ofício de tabelião do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande, ao

contemplar 15,87% (10) dos agentes. Ressalta-se, que esses percentuais podem ser

explicados devidos a ambos os ofícios serem propriedades anexas um do outro. Desse

modo, possivelmente, quando se efetuava a concessão precária de um deles, o outro

também seria provido na mesma pessoa.

Não obstante, salienta-se que a Capitania do Rio Grande possuísse, entre o

final do século XVII e a primeira metade do século XVIII, dois ofícios de tabelião. Isso

justificava o motivo de se haver colocado a acumulação do ofício de escrivão da

Câmara do Natal, em dois diferentes seguimentos variáveis no Gráfico 11. Desses, o

tabelionado do público, judicial e notas era, como mencionado anteriormente, anexo da

escrivania concelhia do Natal.103

Já o segundo ofício de tabelião – que correspondia à 14,28% (9), de acordo

com o Gráfico 11, de indivíduos que o aglomeraram com a escrivania da Câmara do

Natal –, cuja documentação ao aludir àquele ofício ora simplesmente como tabelião, ora

como escrivão público do judicial, constituía-se em outro ofício, cuja carta de

propriedade foi requerida, em dois momentos, na última década do século XVII. A

primeira solicitação da concessão perpétua desse ofício havia sido requerida por

Manuel Trigueiros Soares, em 06 de setembro de 1695, ao apresentar os serviços

prestados nas Capitanias da Paraíba e do Rio Grande, nas lutas contra o gentio

Tapuia.104

Contudo, D. Pedro II resolveu nomeá-lo apenas para a serventia trienal do

dito ofício,105

sem pagamento de donativo. Ressalta-se que Manuel Trigueiros Soares já

desempenhava esse ofício há algum tempo, como havia pontuado nas justificativas para

o pleito da concessão,106

o qual havia desempenhado, cumulativamente, com a

escrivania concelhia do Natal, em 1694.107

Três anos após o requerimento de Trigueiros

Soares, em 18 de janeiro de 1698, uma nova solicitação para a propriedade do ofício de

tabelião ou escrivão judicial seria realizada. Dessa feita, o suplicante seria Gonçalo da

Costa Faleiro, que ao apresentar uma lista mais extensa, quando comparado com

103 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60; Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino,

Consultas Mistas, Códice 21. Livro de Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-

1722). 9º v. Fl. 244-246. 104

AHU-RN, op. cit., Doc. 41. 105

Ibidem. 106

Ibidem. 107

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 78.

Page 214: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

214

Manuel Trigueiros, durante 12 anos, nas Capitanias da Paraíba e do Rio Grande, tanto

em postos militares como honoráveis da república.108

Essa lista de serviços culminaria

em sua nomeação, através de D. Pedro II, para a propriedade do ofício de tabelião do

judicial da Capitania do Rio Grande.109

Entretanto, pontua-se que existissem alguns vínculos entre Manuel Trigueiros

Soares e Gonçalo da Costa Faleiro, posto que além de serem originários da Capitania da

Paraíba, haviam servido nos mesmos conflitos na Capitania do Rio Grande, como se

depreende da análise das folhas corridas que, cada um no seu devido tempo,

apresentaram como justificativas para o pleito da propriedade. Soma-se a isso, que, em

28 de julho de 1693, após haver sido provido pelo Capitão-mor, Sebastião Pimentel

(1692-1693), no ofício de tabelião, Manuel Trigueiros teria apresentado como seu fiador

Pedro da Costa Faleiro,110

possivelmente, irmão de Gonçalo Faleiro, sob a propriedade

do qual havia sido serventuário do ofício de tabelião entre 1701 e 1704, quando veio a

falecer.111

Em seguida, conforme análise do Gráfico 11, o ofício de almotacé havia

aparecido acumulado com a escrivania da Câmara do Natal, perfazendo 15,87% (10)

dos casos – na mesma proporção entre o acúmulo da escrivania camarário do Natal com

o ofício de tabelião do público, judicial e notas –, constituiu-se como outro ofício que os

agentes que foram providos na escrivania da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759,

amontoaram. O almotacé era o oficial eleito pelos edizes, em alguns casos convocados

entre aqueles que haviam servidos nos ofícios honoráveis no ano anterior, para gerir e

fiscalizar o abastecimento de itens básicos de subsistência, aos quais cabiam, ainda, a

fiscalização das deliberações dos oficiais de cúpula camarária para o povo, gerenciando,

ainda, a construção de obras públicas e particulares e zelando pela limpeza das cidades e

vilas onde desempenhavam suas funções.112

Outro ofício acumulado com a escrivania concelhia do Natal, era o de escrivão

da Fazenda Real do Rio Grande que, juntamente com os ofícios de provedor, almoxarife

108 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 46.

109 Ibidem.

110 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0390, Fl(s).

109-109v. 111

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 27. 112

SOUSA, Avanete Pereira. Poder político local e vida cotidiana: A Câmara Municipal da cidade de

Salvador no século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 1996. p. 64.

Page 215: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

215

e porteiro, constituíam o quadro de funcionários da Fazenda Real da Capitania do Rio

Grande, comprovadamente desde a década de 1670.113

Competia ao escrivão da

Fazenda a organização das contas e dos trâmites burocráticos.114

Exemplo dessa

acumulação, pode-se citar Estevão Velho de Melo, que em três mandatos como escrivão

da Câmara – 1713-1717, 1719, 1725-1726 –,115

havia acumulado este ofício juntamente

com o de escrivão da Real Fazenda da Capitania do Rio Grande.

Ao fim e ao cabo, a partir dessa análise do perfil social dos escrivães da

Câmara do Natal, observa-se que os agentes que haviam ocupado essa escrivania eram

homens de préstimos e consideráveis cabedais. Seus préstimos podiam ser visualizados

tanto quando requisitavam a propriedade daquele ofício, elencando uma série

significativa de serviços prestados à Coroa Lusa – por si ou por seus familiares –, tanto

no reino quanto no ultramar, mormente envolvidos nas diversas guerras e conflitos que

se abateram sobre os domínios do Império, ao longo do século XVII e da primeira

metade do século XVIII.

Os serviços prestados pelos escrivães camarários do Natal a El Rey, também se

fizeram sentir em um momento crucial para a ampliação da frente de colonização,

sobretudo nos sertões das Capitanias do Norte, ao lutarem pelo avanço da fronteira

interna, que separava os espaços já integrados à colonização portuguesa – o litoral –,

daqueles que grassavam na barbárie dominada pelo gentio – o sertão. Demonstrava isso,

o extenso rol de justificativas apresentadas pelos escrivães camarários do Natal ao

requererem a posse de terras que havia, muitas vezes, conquistado “à custa do perigo de

suas vidas e com dispêndio de suas próprias fazendas”. Isso fazia com que o processo

de conquista/colonização do território também passasse pela escrivania concelhia, como

um reduto de atração de agentes sociais de diferentes partes do Império. Esses homens,

ao mesmo tempo em que lutavam pelo estabelecimento das diretrizes geopolíticas do

Império português na América, jogavam também com a possibilidade de enobrecimento

e de distinção social, impregnados pela cultura política do Antigo Regime, que tinha na

posse da terra a gênese cimeira de prestígio social e de poder político.

113 BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Nos trâmites da fiscalidade: Aspectos administrativos da

Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1660-1720). Monografia (Graduação em História) –

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 44 114

Ibidem., p. 49. 115

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 125, 130, 135,

140, 146, 176, 180.

Page 216: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

216

Salienta-se que a grande mobilidade desses homens, como observado no

primeiro tópico desse capítulo, quer entre as Capitanias do Norte, quer entre o reino e a

Capitania do Rio Grande, caracterizou-se por essa busca constante por condições que

favorecessem a ascensão social, muitas vezes podada em seus locais de origem, devido

ao fechamento hermético dos circuitos sociais de poder, há muito já instaurados. Assim,

a América figurava como o espaço apropriado para a prestação de serviços à Coroa de

Portugal o que, mais tarde, lhes serviriam para requerer a El Rey as ambicionadas

mercês régias – como concessões perpétuas ou concessões precárias de ofícios,

patentes das ordenanças locais e títulos de terra –, que movimentavam e dinamizavam a

vida social, conferindo coesão entre os súditos situados do Oriente aos rincões da

América.

Como pontuou Laura de Mello e Souza, para que se possa compreender a

dinâmica da vida social na América portuguesa dos séculos XVII e XVIII, há que se

levar em consideração as especificidades que conferiram àquela sociedade a dimensão

escravista que, em todos os aspectos, a fazia diferir, consideravelmente, das sociedades

do Antigo Regime, na Europa. Mesmo que movidos também pela profusa religiosidade

cristã que caracterizava aquela sociedade, o que fazia figurar em suas justificativas pela

posse de terras a vontade que muitos tinham para converter à fé cristã o gentio bárbaro,

os escrivães da Câmara do Natal também haviam se utilizado desse discurso para se

proverem de escravos que trabalhassem em suas terras. Deduz-se isso, mediante a posse

de cativos que aqueles homens também detiveram, mesmo que dentre os de origem

identificada constassem a pequena preponderância de originários de África, também

figurava representantes tapuia, muitos, provavelmente, adquiridos nos embates travados

no sertão durante a Guerra dos Bárbaros.

A seguir, a partir da análise de uma família que havia tido oito de seus

integrantes servindo no ofício de escrivão concelhio, na primeira metade do século

XVIII, busca-se traduzir, minimamente, a relação entre a escrivania camarária do Natal,

bem como o valor social desse ofício para as redes familiares e clientelares, na Natal

setecentista.

Page 217: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

217

3.2 Sangue do mesmo sangue ou parentes da mesma parentela?

Segundo Raphael Bluteau, a definição do termo “família” se remetia “as

pessoas de que se compõem uma casa, pais, filhos e domésticos”.116

Entretanto,

verifica-se na explicação desse autor um alargamento do conceito para além das

relações estritamente sanguíneas, ao apontar que os “domésticos” também entravam no

rol do que se entendia, à época, como constituintes de uma mesma família. Esses

domésticos, possivelmente, se reportavam aos “agregados” das famílias como, por

exemplo, aqueles indivíduos que ingressavam no âmago familiar através dos laços

espirituais, formando uma extensa parentela que conferia, talvez pela quantidade e

aderência, a mesma medida de poder político e de prestígio social. Acrescenta-se a

esses, os criados, os escravos, os bens e até mesmo os amigos, ou seja, tudo e todos os

que estivessem sob a hegemonia de um pai de família.117

Essa ideia reitera a afirmação

de Sheila de Castro Farias, segundo a qual o termo “família” relacionava-se

corriqueiramente aos elementos que estavam situados fora do perímetro da

consanguinidade, abarcando aqueles que habitavam um mesmo espaço, bem como a

parentela, sendo passível de inclusão aqueles indivíduos que participavam de relações

rituais – o batismo e o casamento –, e, por fim, aos elementos das alianças políticas. 118

Não obstante, Raphael Bluteau havia ampliado um pouco mais aquele sentido

ao se reportar a “família nobre”, na acepção da qual se tem uma “ordem de

descendentes, que trazendo seu princípio de numa pessoa, se vai continuando, e

estendendo de filhos a netos, de maneira que faz uma parentela, ou linhagem, a qual da

antiguidade, e nobreza das coisas feitas é chamada nobre.”119

Tal significação parte da

ideia de que a família era constituída por todos aqueles agentes que descendessem de

um ancestral comum, o que não se limitava à concepção da família nuclear, constituída

meramente por pais e filhos, e que, por isso, tratava de interligar uma quantidade mais

significativa e, ao mesmo tempo, variável de agentes sociais que, como se verá a seguir,

116BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...

Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. v. 2. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>. Acesso em: 12/09/2017. Ver verbete “família”. 117

HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos

histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social, v. 28. 1993. p. 967-968. 118

FARIA, Sheila Castro. História da Família. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro Flamarion.

Domínios da História. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1997. p. 256. 119

BLUTEAU, Raphael, op. cit., Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>.

Acesso em: 12/09/2017. Ver verbete “família”.

Page 218: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

218

fazia com que os interesses de particulares ou de grupos específicos da sociedade se

fizessem sempre presentes nas câmaras municipais, a compor facções que se

digladiavam pelos interesses de representação no sistema local de poder.

Nesse ínterim, cabe ressaltar, de acordo com António Manuel Hespanha, em

“Carne de uma só carne”, quando o autor empreende uma reconstituição e discussão

sobre o universo mental e institucional da família, no contexto das práticas sociais do

Antigo Regime, o fato de ser a família uma experiência modelar comum a todos, posto

que “todos tinham uma família”.120

Para esse autor, esta era uma das razões de essa

instituição se fazer corriqueiramente presente no discurso social e político do Antigo

Regime. Aquele autor vai apontar, ainda, que nem sequer a emergência de concepções

individualistas da sociedade havia conseguido quebrar a ideia de que a família se

constituía numa espécie de sociedade “naturalmente auto-organizada”,121

fundamentada

no amor, o qual era responsável por tecer “entre todos os elementos da família uma rede

afectiva”.122

Essa “rede afectiva”, a que fizera alusão António Manuel Hespanha, remeter-

se-ia ao amor entre os membros de uma mesma família,123

o que implicava uma série de

obrigações morais e jurídicas,124

dos pais sobre os filhos – querem legítimos, querem

naturais ou mesmo espúrios –, e destes para com os seus pais.

Situação possível, de acordo com Pedro António Almeida Cardim, em seu “O

poder dos afectos. Ordem amorosa e dinâmica política no Portugal do Antigo Regime”,

devido à coesão comunitária ser garantida por uma série de sentimentalidades, como o

sentimento de pertença a um determinado grupo e por “crenças partilhadas acerca de

questões básicas – como a noção de humanidade, de comunidade, da sua origem e do

seu fim”, entendidos como as razões interiores que eram responsáveis por dirigirem o

processo político no Antigo Regime.125

Esta ordem amorosa e a confiança política daí

120 HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos

histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social, v. 28. 1993. p. 951. 121

Ibidem., p. 951. 122

Ibidem., p. 954. 123

Ibidem., p. 955. 124

Ibidem., p. 957. 125

CARDIM, Pedro António Almeida. O poder dos Afectos: Ordem amorosa e dinâmica política no

Portugal do Antigo Regime. Tese (Doutorado em História) – Universidade Nova de Lisboa, 2000. p. 5-6.

Page 219: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

219

decorrente, estavam presentes na família126

e, entre outros, no comércio127

e na

amizade.128

Nesse sentido, compreende-se a afirmação de Ângela Barreto Xavier e de

António Manuel Hespanha, em “As Redes Clientelares”, segundo os quais, baseados na

concepção microfísica do poder, subjaziam nas instituições e aparelhos da burocracia

lusa, elementos estruturantes das relações sociais que, de modo informal – mas nem por

isso menos importantes –, eram mecanismos responsáveis por condicionarem a ordem

institucional cotidiana, a execução e a própria finalidade do exercício do poder, posto

que orientassem os “modos de ver, pensar e agir” dos elementos humanos imbricados

na esfera do mando institucional.129

Isso influenciava ao nível das representações, bem

como no efetivo das práticas sociais e, segundo aqueles autores, o que seria,

“A razão pela qual relações de natureza meramente

institucional ou jurídica tinham tendência para se

misturarem e coexistirem com outras relações

paralelas [...] que se assumiam como tão ou mais

importantes do que as primeiras, e se baseavam em

critérios de amizade, parentesco, fidelidade, honra

e serviço”.130

Desse modo, aqueles critérios de afeição e de simpatia, no mais das vezes

recíprocos entre os elementos familiares – visto que não se isentava a possibilidade de

existência de disputas entre ramos de uma mesma estirpe, pela hegemonia do grupo –,

eram os responsáveis pela instauração da “lógica clientelar”, que determinava e dirigia o

tom moral – e ao mesmo tempo jurídico – da obrigatoriedade de concessão de

benefícios aos mais próximos, dos mais amigos, dos familiares, daqueles que

estivessem inseridos nos circuitos sociais mais contíguos.

Esse raciocínio clientelar era encampado no universo de todos os tipos de

relações sociais travadas no dia-a-dia, ditando na verdade a corporificação da natureza

126 CARDIM, Pedro António Almeida. O poder dos Afectos: Ordem amorosa e dinâmica política no

Portugal do Antigo Regime. Tese (Doutorado em História) – Universidade Nova de Lisboa, 2000. p. 205. 127

Ibidem., p. 297. 128

Ibidem., p. 393. 129

XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,

António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

p. 339. 130

Ibidem.

Page 220: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

220

das estruturas sociais.131

Ainda mais se se leva em consideração o caráter diminuto da

parcela da população suscetível de figurar nos sistemas locais de poder – nas câmaras

municipais –, dado que o próprio sistema de escolha para os elegíveis e,

consequentemente, para os eleitos, tendia a restringir o acesso aos ofícios camarários

“aos mais nobres ou da governança da terra”, o que pressupunha que os escolhidos

fossem da própria gente da governança ou “filhos e netos de quem o fosse”.132

Essas

eram as situações estruturais das relações sociais do Antigo Regime, baseadas em laços

físicos e morais de parentesco, os quais encontravam respaldo no universo mental e

jurídico da sociedade coeva pré-contemporânea.

Esse mesmo universo também seria responsável por subsidiar a constatação de

José Damião Rodrigues, ao analisar O provimento de ofícios da Fazenda Real nas Ilhas

Atlânticas, de que existia “uma coincidência entre os efectivos da Câmara e um domínio

da administração da Coroa”.133

Isso, talvez, decorresse do fato de as câmaras municipais

serem instâncias de poder, mas também de conhecimento – o que levava ambos os

fatores a se constituírem como faces visíveis de uma mesma moeda –, para a obtenção

de informações privilegiadas. Essa situação beneficiava e favorecia uns grupos políticos

– e grupos familiares na concepção que era imbuída os agentes sociais –, em detrimento

de outros, sobremaneira daqueles que não figuravam no rol da governança da terra.

Partindo de uma prerrogativa similar, mas focando sua análise na transmissão

hereditária da concessão de ofícios da administração por parte da Coroa, têm-se a

pesquisa de Jeannie Menezes, intitulada de “Ofícios de família”, no qual a autora havia

buscado discutir a prática de concessão perpétua de ofícios da administração através do

matrimônio, em um momento fulcral de arranjos e rearranjos sociais e políticos para a

Coroa, que seja na virada do seiscentos para o setecentos. Para isso, a autora, em um

primeiro momento, havia estabelecido uma revisão bibliográfica que discutia os limites

e as possiblidades de discussões sobre o conceito de família no período colonial e a

instituição do casamento. Em seguida, Menezes passou a deslindar uma trama entorno

131 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,

António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

p. 339. 132

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel

(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 288. 133

RODRIGUES, José Damião. O provimento de ofícios da Fazenda Real nas Ilhas Atlânticas: O caso

dos Açores. In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas

Monarquias Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de

História de Além-Mar, 2012. p. 118.

Page 221: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

221

das estratégias desenvolvidas por indivíduos pertencentes às famílias Cardoso, Siqueira

e os Sá e Moraes, no sentido de reter o ofício de tabelião do público, judicial e notas da

Cidade de Olinda e da Vila do Recife no interior dessas famílias, com a finalidade de se

servir dele como dote no mercado matrimonial daquelas localidades.134

Desse modo, Jeannie Menezes concluiu que a posse da concessão perpétua do

ofício de tabelião público por aquelas famílias, havia funcionado no sentido de dotar

mulheres de uma mesma linhagem e de mantê-las no mercado matrimonial.135

Mas as

justificativas apresentadas, desde a primeira geração foram às mesmas: o histórico do

ofício na família e os serviços militares prestados pelos varões à Coroa portuguesa.136

A

autora também havia observado que a forma de concessão do ofício de tabelião do

público, judicial e notas da Cidade de Olinda e da Vila do Recife, havia variado ao

longo do tempo, pois se no início era em concessão precária – temporária –, depois

passou a ser em concessão perpétua – propriedade –, aliando-se aisso, de modo

simultâneo, a prática de utilização do mesmo para a dotação das mulheres de uma

mesma estirpe.137

Essa tessitura reafirma, mais uma vez, a preponderância e o imbricamento dos

interesses familiares nas estruturas administrativas do Antigo Regime, de modo especial

no interior concelhio, que, como havia afirmado Maria Fernanda Bicalho, foram às

agências institucionais responsáveis por fomentar a formação das redes de poder pela

América portuguesa, misturando as teias do poder político à esfera econômica.138

Essa

situação havia levado José Damião Rodrigues, em “São Miguel no século XVIII”, a

afirmar que no interior do sistema concelhio, era quase impossível a conquista e a

manutenção do poder, sem a força e a vitalidade que a ele imprimia o sobrepeso da

parentela e toda a sistemática de alianças políticas e sociais que a mesma propiciava.

Algo que implicava diretamente na obrigação moral e jurídica de as famílias honrarem

as relações clientelares e as responsabilidades verticais e horizontais que daí

proviesse.139

134 MENEZES, Jeannie. ‘Ofícios’ de família: estratégias patrimoniais no mercado matrimonial colonial

(sécs. XVII-XVIII). In: Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. v. 5. n. 9, jul. 2013. 135

Ibidem, p. 145. 136

Ibidem., p. 146. 137

Ibidem., p. 145. 138

BICALHO, Maria Fernanda. Redes de Poder na América portuguesa – O caso dos homens bons do

Rio de Janeiro (ca. 1790-1822). In: Revista Brasileira de História. v. 18. n. 36, São Paulo, 1998. 139

RODRIGUES, José Damião. São Miguel no século XVIII: Casa, Elites e Poder. Ponta Delgada: Nova

Gráfica/LDA, 2003. p. 602.

Page 222: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

222

Assim, a família, o sistema de parentesco, o peso social e político dessas

dimensões atrelado às câmaras municipais, na condição de principais agências de

representação e distinção social, somados a outros condicionantes como “amizade, a

fidelidade, a honra e a prestação de serviços”, como havia observado Maria de Fátima

Gouvêa, foram os elementos responsáveis por cimentar uma lógica clientelar nas

relações sociais do Antigo Regime,140

que tinham na “economia do dom” – estudada

por António Manuel Hespanha141

– ou na “economia de mercês” como havia definido

Fernanda Olival – seus elementos estruturantes.142

Ainda segundo Maria de Fátima

Gouvêa, o desenvolvimento de redes de poder, formadas por relações clientelares,

imaginava a comunicação pelo dom que se caracterizava pela presença de “um benfeitor

e de um beneficiado, caracterizando, portanto, uma economia de favores”.143

Diante de todo esse “pano de fundo”, que explicava as relações sociais no

Antigo Regime, pretende-se analisar as situações de provimento – concessão precária,

concessão perpétua e procuração de plenos poderes – de alguns agentes sociais para o

ofício de escrivão da Câmara do Natal, interligando essa discussão com a dimensão

institucional do casamento, da família, do sistema de parentesco, das redes clientelares e

da “economia do dom”, a fim de se compreender as implicações desses debates aos

limites e possibilidades do exercício efetivo da escrivania camarária do Natal, entre o

final do século XVII e a primeira metade do século XVIII, bem como nos elementos

condicionantes das práticas do poder político, em nível concelhio.

3.2.1 A família Rodrigues de Sá e o ofício de escrivão da Câmara do Natal

Como discutido anteriormente, a ideia de família que se tinha para o período

colonial abarcava, para além dos vínculos consanguíneos, todas as demais conexões que

140 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos.

Redes de podere conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,

jan.- jun. 2004, p. 97. 141

HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: HESPANHA,

António Manuel (Coord.). História de Portugal – Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Estampa, 1993. p. 339-

349. 142

OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o estado moderno. Honra, mercê e venalidade em

Portugal (1641-1789). Évora: Estar, Coleção Thesis, 2000. 143

GOUVÊA et. al. op. cit. p. 98.

Page 223: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

223

interligassem um indivíduo a um determinado pai de família. De igual modo, esse liame

que se operava entre os indivíduos e que garantia o desenrolar cotidiano das estruturas

sociais, em nível doméstico e institucional, era garantido por mecanismos mentais,

lastreados na própria prática jurídica, mas também pela forma como cada um dos

componentes das comunidades concebiam a si e aos outros. Dito isso, sublinha-se que

se verificou no levantamento de informações sobre o perfil social dos escrivães da

Câmara do Natal, mais especificamente no momento em que se procedeu ao

estabelecimento dos laços de parentesco dos homens que foram providos para aquela

escrivania, da existência de ligações por meio sanguíneos, de rituais religiosos e,

ademais, por aquilo que se tem denominado de parentela, mesmo que essas pessoas

estivessem relacionadas por geração – agnados – ou por afinidade – cognados. Com

isso, averiguou-se que alguns dos agentes providos no ofício de escrivão camarário do

Concelho do Natal, entre 1690 e 1753, mesmo que de maneira esporádica, pertenceram

a uma mesma família.

Assim, de modo geral, tem-se que oito agentes, com vínculos familiares entre

si rastreados, haviam sido providos no ofício de escrivão da Câmara do Natal, desde a

última década do século XVII até o final da primeira metade do século XVIII – números

esses que subiriam para doze, se o recorte temporal desse trabalho fosse estendido até

1815. Não obstante, curioso também seria o fato de que três desses atores houvessem

contraído matrimônio com três mulheres, pertencentes à família Rodrigues de Sá,

mormente, eram eles também os pioneiros dessa estrutura familiar que haviam exercido

a escrivania camarária do Natal e, em seguida, netos e bisnetos destes.

Contudo, vale ressaltar, que entre 1613 – ano de instalação da Câmara do Natal

– e 1704, não se verificou a concessão perpétua – propriedade – do ofício de escrivão

deste concelho, mas através da concessão precária – temporária –, como se visualizou

no item anterior.144

Constatação essa que invalidava a possibilidade de ser aquele ofício

propriedade de algum elemento da família Rodrigues de Sá, diferentemente do que

havia ocorrido com a família Cardoso – e as agregadas a esta, por meio do matrimônio –

, estudada por Jeannie Menezes.

Apesar dos Rodrigues de Sá não deterem a concessão perpétua da escrivania

da Câmara do Natal, pondera-se, como pontuou Mafalda Soares da Cunha, em “O

144 Fundo documental do IHGRN. Cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 1 (1659 – 1668);

Ibidem., Livro 2 (1673 – 1690); Ibidem., Livro 3 (1691 – 1702); Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707).

Page 224: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

224

provimento de ofícios menores nas Terras Senhoriais”, que

existia a possiblidade de

algumas concessões, mesmo que de maneira omissa ou sutil, pudessem se referir a

provimentos em regime de propriedade, inclusive em casos no qual a Coroa se arrogava

no direito de dispô-los a qualquer momento – com cláusulas instituídas nas cartas de

provisão de ofício. Parece, para àquela autora, que não raras vezes as provisões

precárias ou em serventias sem tempo definido, pudessem “ocultar um ofício em

propriedade.” 145

Mesmo diante dessa assertiva, e da não constatação documental dessas

considerações, para o caso da escrivania do Concelho do Natal, se cabe conjecturar

outras possibilidades explicativas para a constatação sobre a presença de oito escrivães

camarários, advindos de uma única família – de acordo com acepção que se tem

levantado para esse termo no tópico anterior. A seguir, no Gráfico 12, observa-se a

configuração familiar dos Rodrigues de Sá, e os agentes que foram incorporados a esta

família por meio dos matrimônios e que, mais tarde, foram providos para o exercício do

ofício de escrivão da Câmara do Natal, ora de forma temporária, ora através da

procuração.

145 CUNHA, Mafalda Soares da. O provimento de ofícios menores nas Terras Senhoriais. In: STUMPF,

Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas: Provimento,

controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2012. p. 29-30.

Page 225: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

225

Gráfico 12 - A família Rodrigues de Sá e sua parentela: casamentos, batismos e

apadrinhamentos (1697-1759)

Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.146

Grá

fico

12

. A

Fam

ília

Rod

rigu

es d

e S

á

e su

a p

aren

tela

: ca

sam

ento

s, b

atis

mos

e

apad

rinh

amen

tos

(169

7-1

759

)

Page 226: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

226

Como visto no Gráfico 12, a estrutura familiar dos Rodrigues de Sá

apresentava algumas peculiaridades significativas, que a fazem destoar dos padrões de

“normalidade” para as demais famílias da Capitania do Rio Grande, no final do século

XVII e alvorecer do século XVIII, posto que possuam seu tronco no Padre Simão

Rodrigues de Sá.147

Esse padre era filho de Maria de Sá – natural de Pernambuco – e de

Simão Rodrigues – proveniente de Viseu, Portugal –, no testamento do qual, datado de

1 de novembro de 1680, constava que o Padre Simão Rodrigues estava a ocupar a

dignidade de cônego, com o qual ele havia assinado o termo de Irmão da Misericórdia,

em 23 de abril de 1696, exercendo nessa altura o posto de Arcediago da Sé de Olinda.148

Contudo, não se conseguiu precisar a data, nem quando ou como, o Padre Simão

Rodrigues de Sá havia aportado à Capitania do Rio Grande.

Conquanto, de acordo com o historiador José Rodrigues da Silva Filho, ao

pesquisar sobre a trajetória desse padre e conjecturar sua genealogia, afirmou que

aquele padre já estava na Capitania do Rio Grande por volta de 1697, sendo então

vigário da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, na Cidade do Natal, onde

havia permanecido na condição de vigário colado até 1714, datando desse ano o último

documento por ele assinado na referida freguesia, quando, possivelmente, veio a

falecer.149

Silva Filho reiterou, substancialmente, o prestígio de que o Padre Simão

Rodrigues de Sá galgava na sociedade da Capitania do Rio Grande, visto que se tratava,

à época, da maior autoridade religiosa de toda aquela capitania, posto que a única

freguesia que existia até meados do século XVIII, foi a de Nossa Senhora da

146 COUTO, Domingos Lorêto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. In: Anais da Biblioteca

Nacional. v. 15, Rio de Janeiro: 1903. p. 84; FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia

Pernambucana. v. 1. In: Anais da Biblioteca Nacional. v. XLVII, 1918. p. 198; SILVA FILHO, José

Rodrigues da. Padre Simão Rodrigues de Sá, um patriarca de batina. In: II Encontros Coloniais, Natal,

29-30, maio, 2014. p. 1; Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape,

Camaratuba e Natal (Matriz de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712);

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livros de Casamentos

(1724-1785). Plataforma SILB – Sesmarias do Império Luso-Brasileiro. Disponível em:

http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 24/09/2016; Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos

Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos,

1750-1759; Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) – Fundo Sesmarias;

Livro de Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN. GAIO, Felgueiras.

Nobiliário de famílias de Portugal / Felgueiras Gaio (1750-1831). Braga: Agostinho de Azevedo

Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, 1938-1942. 147

COUTO, loc. cit. 148

FONSECA, loc. cit. 149

SILVA FILHO, loc. cit.

Page 227: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

227

Apresentação, por ele chefiada, cuja jurisdição se estendia pela totalidade daquele

território.150

De acordo com Domingos de Lorêto Couto, em “Desagravos do Brasil e

glórias de Pernambuco”, Eugênia Rodrigues de Sá era filha natural do Padre Simão

Rodrigues de Sá, após o nascimento da qual havia se ordenado presbítero.151

Salienta-se

que foi após a chegada do referido padre à Capitania do Rio Grande que havia

começado a surgir na documentação referências à presença da família Rodrigues de Sá,

cujos componentes se faziam quase sempre presentes no estabelecimento de relações

rituais entre os elementos que carregavam o mesmo sobrenome – batizados e

casamentos –, mas também, e de maneira conjunta, nas solicitações de sesmarias pelas

Capitanias do Rio Grande e de Pernambuco e de chãos de terra na Cidade do Natal,

entre às décadas de 1680 e 1730. Dentre a série de nomes mais recorrentes têm-se –

além da já citada Eugênia Rodrigues de Sá –, Flávia Rodrigues de Sá, Luiza Rodrigues

de Sá, Felipa Rodrigues de Sá, Genovesa Rodrigues de Sá e Matheus Rodrigues de Sá.

Contudo, reverbera-se que não há como afirmar, categoricamente, que todos estes

agentes fossem irmãos de Eugênia Rodrigues e, portanto, filhos do Padre Simão

Rodrigues de Sá, contudo, nesse texto, sugere-se a possibilidade que todos estes

indivíduos estivessem sob a tutela152

do referido padre.

Diante disso, tem-se uma mesma parentela, excepcionalmente quando se

visualiza as relações estabelecidas entre aqueles agentes – batismo, casamento,

solicitações de sesmarias e chãos de terra. Assim, como visto no tópico anterior, a ideia

de família abarcava também aqueles atores sociais que eram incorporados ao universo

da parentela por meio das relações rituais de caráter religioso, bem como pelas alianças

política entorno da hegemonia pelo poder. Ambas as situações podiam ser

constantemente verificadas no caso dos Rodrigues de Sá, bem como nas demais famílias

150 SILVA FILHO, José Rodrigues da. Padre Simão Rodrigues de Sá, um patriarca de batina. In: II

Encontros Coloniais, Natal, 29-30, maio, 2014. p. 2. 151

COUTO, Domingos Lorêto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. In: Anais da Biblioteca

Nacional. v. 15. Rio de Janeiro: 1903. p. 84 152

De acordo com António Manuel Hespanha, a família seria constituída pelos indivíduos que estivessem

sujeitados aos poderes de mesmo pater famílias, nestas estavam englobadas todas as gerações de

parentesco consanguíneo e/ou por afinidade, interligados por vínculos morais e jurídicos, que não se

extinguiam com a maioridade, mas que permaneciam in potestate até a velhice. Para saber mais, ver

HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos

histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social. v. 28, 1993, p. 957.

Page 228: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

228

que a esta se aliou por meio dos matrimônios, dos apadrinhamentos ou pela busca de

objetivos materiais e políticos comuns.

Entrementes, sabe-se que Eugênia Rodrigues de Sá casara-se com o Tenente

Manuel de Melo e Albuquerque, sendo este natural de Olinda153

e filho de André de

Albuquerque, que foi Capitão e Governador da Capitania da Paraíba154

– neto, portanto,

de Jerônimo de Albuquerque e de Dona Maria do Espírito Santo Arcoverde – e de sua

primeira mulher Dona Catarina de Melo – filha de Dom Cristóvão de Melo, cunhada de

seu próprio pai.155

Manuel de Melo antes de se instalar definitivamente na Capitania do

Rio Grande, foi Alferes de Infantaria de Ordenança na Capitania de Pernambuco, onde,

logo em seguida, foi provido no posto de Tenente de Infantaria de Cavalos.156

Com esta

última patente, Melo e Albuquerque havia batizado, juntamente com sua esposa,

Eugênia Rodrigues de Sá, ao seu primeiro filho, Caetano de Melo e Albuquerque, em 28

de março de 1701, o qual havia tido como padrinhos o Padre Simão Rodrigues de Sá –

avô do batizando – e Dona Catarina Leitão, esposa do Capitão Maior, Bernardo Vieira

de Melo.157

Não obstante, constatou-se também que o primeiro ofício exercido por

Manuel de Melo foi a escrivania da Câmara do Natal, em 1690, por meio de concessão

precária,158

onde havia permanecido por apenas um ano.

Visto tudo isto, cabe destacar que o Tenente Manuel de Melo e Albuquerque já

estava pela Capitania do Rio Grande, de acordo com a documentação consultada, pelo

menos sete anos antes da chegada do Padre Simão Rodrigues de Sá àquela localidade,

posto que houvesse exercido o ofício de escrivão da Câmara do Natal em 1690 e o

Padre Simão Rodrigues de Sá, segundo pontuou o historiador José Rodrigues da Silva

Filho, constar assinando a documentação da Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação apenas a partir de 1697, indicando que não necessariamente sua ocupação

no ofício de escrivão da Câmara do Natal, decorresse dos laços matrimoniais contraídos

com Eugênia Rodrigues de Sá. Salientam-se, ainda, os limites dessas constatações, pois

153 COUTO, Domingos Lorêto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. In: Anais da Biblioteca

Nacional. v. 15. Rio de Janeiro: 1903. p. 84. 154

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 284. 155

FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia Pernambucana. v. 1. In: Anais da

Biblioteca Nacional. v. XLVII, 1918. p. 325. 156

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 100. 157

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (f. 17). 158

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 62.

Page 229: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

229

não se encontrou o registro do casamento desses dois agentes sociais, com o qual se

poderia definir se a ligação entre o Tenente Manuel de Melo e Albuquerque e Eugênia

Rodrigues de Sá fosse, mormente, anterior a sua chegada à capitania, implicando na

inserção desse ator na escrivania concelhia do Natal, hipótese essa que não seria

descartada, mas que adquiriria certa credibilidade ao se verificar que mais indivíduos

relacionados a esta família haviam sido providos na escrivania da Câmara do Natal, no

decorrer do século XVIII.

Entretanto, quando da nomeação por concessão perpétua de Francisco Álvares

de Lima para os ofícios de escrivão da câmara e de tabelião do público, judicial e notas

da Capitania do Rio Grande, em 16 de outubro de 1704,159

Manuel de Melo e

Albuquerque havia sido substabelecido procurador dos direitos de Francisco Álvares

sobre esses ofícios, em 19 de dezembro de 1705, visto que Álvares de Lima além de ser

morador em Lisboa, também exercia o ofício de tesoureiro da Junta da Inconfidência, o

que lhe inabilitava a tomar posse efetiva daqueles ofícios.160

Com essa procuração,

Manuel de Melo e Albuquerque passava a gozar do direito de tomar posse dos referidos

ofícios em nome de Francisco de Lima, bem como de arrendá-los a serventuários –

mesmo que para isso necessitasse de confirmação do Governador de Pernambuco –, e

todos os demais direitos necessários.161

A posse dessa procuração por Melo e

Albuquerque sinalizava a explicação para o fato de, mais tarde, seus dois filhos –

Caetano e Manuel de Melo e Albuquerque, sendo este homônimo do pai – serem

providos na escrivania concelhia do Natal, como também outros parentes como, por

exemplo, Sebastião Cardoso Batalha e José Barbosa de Sousa, analisados a seguir.

Desse modo, a posse de uma procuração de plenos poderes, substabelecida

pelo proprietário dos ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de tabelião público da

Capitania do Rio Grande, a um dos componentes da rede familiar dos Rodrigues de Sá,

mais uma vez, demonstra o poder de interferência sobre os rumos da administração e,

consequentemente, dos limites do mando institucional da Coroa nas áreas de conquistas,

que lhes havia imprimido a família, a parentela, os amigos e, no geral, as redes

clientelares resultantes das interações entre esses subgrupos da sociedade. Esses

elementos combinavam-se de diferentes maneiras e, de modo visível ou invisível, se

159 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 60.

160 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl(s). 74-79. 161

Ibidem.

Page 230: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

230

orquestravam para planejar e determinar os rumos da administração. Assim, mesmo que

a família Rodrigues de Sá não detivesse a propriedade nominal da escrivania concelhia

e do tabelionato de notas, possuíam a propriedade real e, portanto, factível dos ditos

ofícios, cabendo-lhes decidir e dirigir seu sistema de acesso na Capitania do Rio

Grande, no início do século XVIII. Isso havia possibilitado, ainda, que os mais

próximos fossem providos nesses ofícios, reforçando os laços familiares e, ao mesmo

tempo, contribuindo para o enobrecimento social da família, da mesma forma que

fortalecia as ligações entre seus membros. De posse da procuração de plenos poderes

da escrivania camarária do Natal, a família Rodrigues de Sá havia conseguido obter

informações privilegiadas sobre a Capitania do Rio Grande, em nível micro, e, além

disso, situavam-se macroscopicamente no universo da geopolítica do Império.

Pontua-se, ainda, de acordo com o registro de batismo de Caetano de Melo e

Albuquerque, que o seu pai, o Tenente Manuel de Melo e Albuquerque, estivesse, em

28 de março de 1701, no exercício do ofício de Provedor da Fazenda Real da Capitania

do Rio Grande,162

ou seja, quatro anos após a chegada do Padre Simão Rodrigues de Sá

àquela capitania. Nesse momento, Melo e Albuquerque já estava vinculado pelo

matrimônio aos Rodrigues de Sá, devido ao seu casamento com Eugênia, e, ao mesmo

tempo, estava reafirmando os vínculos clientelares que o ligavam ao seu sogro,

porquanto o haver escolhido para padrinho do seu primeiro filho, ao lado da esposa do

capitão-mor do Rio Grande, o que demonstrava a oficialização e a publicação das

ligações de Melo e Albuquerque com as duas mais emblemáticas figuras políticas da

Capitania naquele momento, o representante de Deus – o vigário da Freguesia – e a

esposa do representante do Rei – o Capitão Maior –, aos quais se somavam o próprio

Manuel de Melo e Albuquerque, responsável pela dimensão fazendária da capitania.

Circunstâncias essas indicativas da formação de uma rede clientelar, interligando os

responsáveis pelas três principais esferas da administração, em nível local, da Capitania

do Rio Grande.

Daí em diante, a trajetória de Manuel de Melo e Albuquerque nas estruturas

administrativas da Capitania do Rio Grande, havia incorrido em caráter duplamente

ascensional, pois se havia ocupado via concessão precária a escrivania da Câmara do

Natal, em 1690, com a patente de tenente, onze anos depois, tornar-se-ia provedor da

162 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (f. 17).

Page 231: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

231

Real Fazenda e cinco anos mais tarde, em 20 de agosto de 1706, ascenderia para o

comando de Capitão de Infantaria de Cavalos das Ribeiras de Goianinha, Cunhaú e

Mipibú, por provisão do Capitão-mor do Rio Grande, Sebastião Nunes Colares (1701-

1708).163

Reitera-se que Melo e Albuquerque quando dessa provisão, estava a

desempenhar o posto de Capitão de Infantaria da Ordenança da Ribeira do Assú.164

Assumindo, após sua provisão para Capitão de Cavalos e quando de sua passagem pelo

ofício de provedor, diversos outros ofícios no interior do Concelho Municipal do Natal,

indo desde vereador, no qual exerceu onze mandatos – seguidamente de 1709-1714,

1716-1718, 1721-1722 –, de almotacé treze vezes – 1710,1712, 1714, 1715, 1716, 1722,

1725, 1738, 1740, 1741, 1742, 1744, 1745 –, juiz ordinário – uma única vez, em 1724 –

e de juiz de órfãos – por duas ocasiões, em 1732 e 1733.165

Ao que tudo indica a nomeação de Manuel de Melo e Albuquerque em anos

consecutivos para o ofício de vereador da Câmara do Natal, possivelmente, se havia

dado na esteira da troca de favores que envolviam os concessionários precários da

escrivania concelhia do Natal a este agente, visto que a Manuel de Melo foi concedida,

via procuração de plenos poderes por sobre esse ofício, a faculdade de nomear e

destituir os arrendatários desse ofício. Nesse sentido, a concessão precária do ofício de

escrivão a determinados indivíduos, funcionava como um vetor para a elaboração e

reforço das redes clientelares, o que implicava em contrapartidas por parte dos

beneficiados. Corroboram essas constatações, o fato de coincidirem nos dois primeiros

períodos de mandato de Melo e Albuquerque no ofício de vereador – 1709-1714 e

1716-1718 –, a duração da concessão perpétua do ofício de escrivão camarário do Natal

em Francisco Álvares de Lima, de quem seria Manuel Albuquerque procurador na

Capitania do Rio Grande.

Além disso, para alguns mandatos de oficiais da Câmara, Manuel de Melo

havia sido escolhido por eleição de barrete,166

que ocorria quando outro oficial eleito

por pelouros – o sistema normal – fosse impedido de assumir por causas pré-

estabelecidas na legislação – como parentesco, crime, dentre outros. De acordo com

Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo, as eleições de barrete seria uma via

163 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 100. 164

Ibidem. 165

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 166

Ibidem., Doc. 0630, Fl.(s) 069v-070; Doc. 0631, Fl.(s) 070-070v.

Page 232: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

232

alternativa de ingresso nos concelhos municipais por indivíduos cujos nomes não

figuravam nas indicações do sistema de pelouro.167

Outro indício das alianças entre Manuel de Melo e os serventuários do ofício

de escrivão foi à possibilidade de ambos, no exercício dos ofícios concelhios, ficarem

responsáveis pelas chaves do cofre da câmara, onde constavam os róis dos elegíveis

para os ofícios honoráveis, como se pode verificar, em 21 de setembro de 1709, quando

o vereador mais velho, o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque, havia ficado com

uma das chaves do cofre, a segunda com o escrivão camarário Domingos Dias de

Barros e a terceira com juiz ordinário o Sargento-mor Roque da Costa Gomes.168

Ou,

quando, em 21 de novembro de 1724, uma chave havia ficado com Melo Albuquerque,

então juiz ordinário, e a segunda chave com Bento Ferreira Mouzinho, escrivão da

Câmara do Natal.169

Curiosamente, em 25 de julho de 1725, Manuel de Melo e

Albuquerque foi acusado, juntamente com o escrivão concelhio do Natal, Bento

Mouzinho, de burlarem as eleições para essa edilidade pelo Capitão-mor do Rio Grande,

José Pereira da Fonseca.170

Adir-se, ainda, que Manuel de Melo e Albuquerque, de acordo com a carta

patente de Capitão de Cavalos das Ribeiras de Goianinha, Mipibú e Cunhaú, sempre

havia agido com “grande valor e zelo” e, dentre outras coisas, havia acompanhado, com

custeio próprio da viagem, as entradas efetuadas pelo Terço do Mestre de Campo

Manuel Álvares de Morais Navarro, com dispêndios de suas “próprias fazendas”, aos

sertões da Capitania do Rio Grande,171

em um momento crucial que havia envolvido

aquela capitania na chamada “Guerra dos Bárbaros”. Por tudo isso, a concessão dessa

patente de capitão de cavalos havia sido deferida em sua pessoa, cuja posse foi-lhe

concedida por Manuel Gomes Torres, juiz ordinário da Câmara do Natal.172

Visto tudo isto, frisa-se que a escrivania da Câmara do Natal foi ocupada por

um agente social descendente de duas tradicionais famílias da Capitania de

167 CURVELO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. O Senado da Câmara de Alagoas do Sul:

governança e poder local no sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) –

Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. p. 85. 168

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0501, Fl.(s)

009-009v. 169

Ibidem., Doc. 0936, Fl.(s) 047-047v. 170

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 02, Doc. 114. 171

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 100v. 172

Ibidem., Fl. 101.

Page 233: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

233

Pernambuco, os Albuquerque – com tronco em Jerônimo de Albuquerque, que foi

Capitão-mor do Rio Grande entre 1603 e 1610 – 173

e a família Melo. Demonstra-se,

com isso, o prestígio e a influência do Padre Simão Rodrigues de Sá na Capitania do

Rio Grande, o qual havia conseguido casar uma filha natural com um neto de Jerônimo

de Albuquerque. Pontua-se, ainda, que mesmo sendo o ofício de escrivão concelhio

considerado pela historiografia como de estatuto social inferior no conjunto dos demais

ofícios desempenhados em âmago camarário, pois era considerado um “ofício

intermédio” pelo seu caráter “auxiliar” ou como um “ofício menor da justiça”, mas que

mesmo assim não tenha impedido o seu provimento e exercício por pessoas de origem

social mais abastada. O caso de Manuel de Melo e Albuquerque confirma com a

afirmação de Roberta Giannublio Stumpf sobre o fato de o ofício de escrivão camarário

“não dar nem tirar nobreza”.174

Nesse meio termo, reitera-se, mais uma vez, a necessidade de se perceber as

especificidades que envolviam, e a um só tempo distinguiam as realidades locais

vivenciadas por toda a América portuguesa e demais possessões lusas, quer no reino ou

no ultramar, responsáveis que foram por arquitetarem as relações individuais e

familiares entorno da hegemonia pelo poder, bem como das estratégias das quais se

lançavam mão cotidianamente. Com isso, indica-se que diferentemente do Porto,175

de

Almada,176

Chaves,177

Ponta Delgada,178

Coimbra,179

Gouveia,180

Vila de Cuba,181

Seda,

Terena e em Évora,182

onde o ofício de escrivão camarário havia sido ocupado por

173 TEIXEIRA, Rubenilson. Terra, casa e produção: repartição de terras da capitania do Rio Grande

(1614). In: Revista Mercator, Fortaleza, v. 13, n. 2, mai./ago., 2014. p. 108. 174

STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo

Regime português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 622. 175

SILVA, Francisco Ribeiro. O Porto e seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder. v.

1, p. 493-494. 176

VIEIRA, A. dos P. Almada no tempo dos Filipes. Administração, sociedade, economia e cultura

(1580-1640). Almada: Câmara Municipal, 1995. p. 104-106 177

BORRALHEIRO, R. C. P. O município de Chaves entre o absolutismo e o liberalismo (1790-

1834). Braga: Ed. A., 1997. p. 87. 178

RODRIGUES, José Damião. Poder municipal e oligarquias urbanas. Ponta Delgada no século

XVII. Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1994. p. 79. 179

SOARES, Sérgio da Cunha. O município de Coimbra da Restauração ao pombalismo. Poder e

poderosos na Idade Moderna. Tese (Doutorado em Política) – Faculdade de Letras da Universidade de

Coimbra. v. I, 1995. p. 499. 180

MOTA, Eduardo. Administração municipal em Gouveia em finais de setecentos. Gouveia:

Publicações Gaudela, 1990. p. 58. 181

BORGES, Emília Salvado. Homens, fazenda e poder no Alentejo do setecentos. Lisboa: Colibri,

2000. p. 19, 323. 182

FONSECA, Teresa. O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas

administrativas. In: CUNHA, Mafalda Soares da & FONSECA, Teresa (dir.). Os Municípios no

Page 234: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

234

figuras nobres, mas de parcas condições,183

na Capitania do Rio Grande, esse ofício foi

preenchido por algumas figuras de proa da Natal setecentista. O que também se

constatou para os casos da Vila de Santa Cruz do Aracati, na Capitania do Siará

Grande184

e em Alagoas do Sul.185

Essas constatações implicavam, por parte dos agentes sociais e de suas

parentelas, a estarem atentos nas possibilidades oferecidas por todos os lócus de poder,

mesmo que estivessem inseridos em contextos econômicos e sociais diversos. Isto,

talvez, tenha sido vislumbrado por Manuel de Melo e Albuquerque ao assumir a

escrivania camarária do Natal, a qual seria ao longo da primeira metade do século XVIII

ocupada também por dois dos seus três filhos.

Acresce-se a isso, que o ofício de escrivão concelhio do Natal era considerado

estratégico para a obtenção de informações privilegiadas, quiçá nos destinos das

próprias eleições camarárias, já que ao escrivão coubesse à guarda de uma das chaves

do cofre onde ficavam os róis dos elegíveis, como visto no capítulo anterior, que não

raro, podiam suscitar em ilegalidade, como será constatado no capítulo seguinte,

envolvendo, inclusive, Manuel de Melo e Albuquerque e o então escrivão da Câmara do

Natal, Bento Ferreira Mouzinho.

Além disso, o ofício de escrivão camarário foi desempenhado,

concomitantemente, com outros ofícios no interior do Concelho do Natal, sobretudo

com o ofício de almotacé, como se viu anteriormente. Aponta-se também que não

existiam restrições, no contexto analisado, quanto à questão de parentesco entre os

ocupantes da escrivania camarária e outros oficiais de provimento eletivo – juiz

ordinário, vereador e procurador. Diferentemente da taxação jurídica que recaía sobre os

Portugal Moderno. Dos Forais Manuelinos às Reformas Liberais. Lisboa: Edições Colibri e

CIDEHUS/EU, 2005. p. 76. 183

COELHO, Maria Helena da Cruz & MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder Concelhio. Das

origens às cortes constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. p. 49. 184

NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: práticas de nobilitação e

hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado em

História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. p. 122 185

CURVELO, Arthur A. S. C. O Senado da Câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no

Sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de

Pernambuco, Recife, 2014. p. 77-78.

Page 235: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

235

ofícios honoráveis186

e que foram insistentemente cumpridas pelos camarários do Natal,

como se pode percebe da leitura dos termos de vereação dessa edilidade.187

Outro tutelado do Padre Simão Rodrigues de Sá e, possivelmente, concunhado

do Tenente Manuel de Melo e Albuquerque – à época, ainda procurador de Francisco

Álvares de Lima sobre os direitos de propriedade dos ofícios de escrivão camarário e do

tabelionado de notas da Capitania do Rio Grande –, que havia ocupado por concessão

precária a escrivania concelhia da Cidade do Natal, foi Sebastião Cardoso Batalha,188

em três momentos distintos, primeiro, entre 1717-1718, segundo em 1729 e, pela última

vez, entre 1737-1738.189

Sebastião Batalha era casado com Flávia Rodrigues de Sá,190

com quem tivera quatro filhos, Augustinho Cardoso Batalha,191

Antônio Cardoso

Batalha,192

Ângela Custódia193

e Maria do Nascimento.194

A primeira referência à

presença de Sebastião Cardoso na Capitania do Rio Grande, data de 07 de março de

1705, quando foi provido por concessão precária durante três meses no ofício de

meirinho de campo, pelo Capitão-mor do Rio Grande, Antônio de Carvalho e Almeida

(1701-1705).195

Nesse ofício, Sebastião Batalha havia sido encarregado de proceder à

realização de prisões, citações e execuções de mandados judiciais que fossem

solicitados pelos oficiais de justiça.196

De acordo com aquela carta de provisão,

Sebastião Cardoso Batalha era provido nesse ofício por haver findo o tempo da provisão

de Antônio da Gama Luna.197

Seis meses depois de sua nomeação para meirinho de

186 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

1984. Liv. I. Tít. 62. 187

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 188

Ibidem., p. 141. 189

Ibidem., p. 141, 144, 193, 226, 231, 265. 190

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (29v) 191

Ibidem. 192

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (40). 193

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (25). 194

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1727-1740. SAM 2383. 195

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl. 90. 196

XIMENES, Expedito Eloísio. Autos de Querela e Denúncia...: edição de documentos judiciários do

século XIX no Ceará para estudos filológicos. Fortaleza: LCR, 2006. p. 132. 197

Fundo documental do IHGRN, loc. cit.

Page 236: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

236

campo, em 07 de setembro de 1705, na Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação do

Rio Grande, batizava ao seu filho primogênito, Augustinho Cardoso Batalha.198

Em 01 de janeiro de 1711, Sebastião Batalha havia sido eleito avaliador da

Câmara do Natal, em substituição a Maurício Bocarro Ribeiro que se encontrava

impedido de exercer esse ofício,199

cuja posse foi-lhe concedida em 05 de janeiro

daquele mesmo ano.200

No ano seguinte, em 24 de maio de 1712, Batalha havia, mais

uma vez por meio de eleição, sido escolhido para ser olheiro em Natal – uma espécie de

fiscal – para a cobrança de um tributo por cada rês que fosse abatida naquela cidade.201

Diferentemente de Manuel de Melo e Albuquerque que havia ingressado na

Câmara do Natal no ofício de escrivão concelhio, seu concunhado, Sebastião Cardoso

Batalha, houvesse ingressado em um ofício de menor prestígio social dentro do universo

camarário, como era o de meirinho de campo. Conjectura-se, que essa situação se

devesse ao fato de que a família já possuísse Manuel de Melo e Albuquerque como

representante dos interesses desse grupo na Câmara do Natal e que, por isso, nem todos

os membros de um mesmo clã pudessem dela participar.

Evidencia-se que a tez de Sebastião Cardoso Batalha era mestiça, como se

pode constatar no registro de casamento de sua neta, Rosa Maria da Encarnação, com o

Alferes Manuel Gonçalves Branco, no qual a nubente havia sido descrita como que

possuindo “casta de neófito” para ambas as ascendências.202

De acordo com Raphael

Bluteau, o termo “neófito” seria utilizado pelos eclesiásticos para se referirem ao gentio

recém-convertido à fé cristã.203

No entanto, ressalta-se que em nenhum dos três registros de batismo dos filhos

de Sebastião Cardoso Batalha fez-se referência expressa a sua possível origem

indígena.204

Talvez, isso se devesse ao fato de que o celebrante desses ritos religiosos

198 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (29v) 199

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0551, Fl.(s)

030-030v. 200

Ibidem., Doc. 0552, Fl.(s) 030-030v. 201

Ibidem., Doc. 0612 Fl.(s) 060-060v. 202

SILVA, Daisy de Assis. Casaram-se solenemente em face da igreja: Matrimônio, mestiçagens e

dinâmicas de apadrinhamento na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-61). Monografia

(Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 38. 203

Ibidem. 204

Livro de Batismos, op. cit., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (29v); IAHGP-FIA-CX01. DOC0057

(40); IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (25).

Page 237: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

237

fosse o próprio tutor de Cardoso Batalha, ou seja, o Padre Simão Rodrigues de Sá.205

Também não foi possível constatar referências à cútis de Sebastião Cardoso ou mesmo

de seus quatro filhos nos registros de casamento deles.206

Interessante salientar que dois

filhos de Sebastião Cardoso Batalha se casaram com dois filhos de Francisco da Gama

Luna,207

que era o ferreiro da Cidade do Natal e o responsável pelas obras de ferragem

da câmara dessa municipalidade.208

Assim, em 06 de junho de 1735, Antônio Cardoso

Batalha casou-se com Ana Maria da Apresentação209

e, quatro anos depois, em 25 de

novembro de 1739, Maria do Nascimento, filha de Sebastião Batalha, contraiu

matrimônio com Domiciano da Gama Luna.210

Reverbera-se que em nenhum desses

registros constava a indicação a tonalidade da pele ou a ascendência dos envolvidos,

diferentemente do que havia ocorrido no registro de casamento da neta de Sebastião

Batalha.

A historiadora Daisy de Assis Silva havia pontuado que, para o caso dos

assentos matrimoniais, a não referência à cor dos nubentes expressamente nos registros

não significava, necessariamente, que os mesmos fossem brancos, mas que tal atitude

estivesse ligada as questões de “conveniência”, que muito dependiam da condição e do

prestígio social dos envolvidos.211

Reitera-se que no momento do casamento de sua

neta, Sebastião Cardoso Batalha já gozasse de significativo prestígio e distinção social

na Natal da primeira metade do século XVIII, pois já havia desempenhado os ofícios de

escrivão da câmara e de tabelião público,212

além de estar vinculado a uma das mais

importantes famílias locais, que figuravam em diversos postos das ordenanças, da

própria câmara e na igreja da Cidade do Natal.

205 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX01. DOC0057

(29v); IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (40); IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (25). 206

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1782. DSC02678; Ibidem., Livro de Casamentos, 1727-1740. DSC 02743; DSC 02775;

SAM 2383. 207

Ibidem., SAM 2383; DSC 02775. 208

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 1394, Fl.(s)

008-008v; Doc. 1648, Fl.(s) 036-036v; Doc. 1666, Fl. 043. 209

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, op. cit., DSC 02775. 210

Ibidem., SAM 2383. 211

SILVA, Daisy de Assis. Casaram-se solenemente em face da igreja: Matrimônio, mestiçagens e

dinâmicas de apadrinhamento na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-61). Monografia

(Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 38. 212

LOPES, loc. cit.

Page 238: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

238

Como apontado por Charles Boxer, em Pureza de sangue e raças infectas, foi

comum “[...] a insistência na ‘limpeza de sangue’ como qualificação essencial para a

ocupação de cargos e funções administrativas da Coroa, [...] foram características do

Império ultramarino, em diversos graus”.213

Devido a esse princípio, os indivíduos de

origem mourisca, judaica e negra foram corriqueiramente excluídos da participação do

universo administrativo luso por todas as partes do Império, mas não os agentes de

origem indígena, pois, como havia afirmado Charles Boxer, “[...] era mais fácil [obter a

dispensa] se o candidato tivesse algum remoto antepassado ameríndio ou protestante

europeu de raça branca do que se lhe corresse nas veias sangue judeu ou negro”.214

Ressalta-se, ainda, que Sebastião Cardoso Batalha havia adquirido três

sesmarias nos arredores da Cidade do Natal, ao longo da primeira metade do século

XVIII.215

A posse de terras, como apresentadas por José Damião Rodrigues, no seu

livro Histórias Atlânticas: Os Açores na primeira modernidade, além de ser “o

fundamento material do poder e da diferenciação social”, era o grande responsável pela

“hierarquização em ‘estados’ ou ‘ordens’ que assentava no reconhecimento de um

status e se visualizava na honra e forma de tratamento devido às pessoas de

qualidade”.216

Somam-se a isso que Batalha houvesse detido a concessão precária do

ofício de tabelião do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande,217

e em 1715

os dois cartórios da Cidade do Natal, que atuavam tanto na área cível, quanto criminal,

também estavam em suas mãos,218

bem como havia sido, mais tarde, provido por

concessão temporária no ofício de escrivão dos órfãos.219

Concomitantemente às provisões de Sebastião Batalha em ofícios civis da

administração havia ocorrido também sua nomeação para postos nas companhias de

213 BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. BARRETO, Anna Olga de Barros

(trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 282. 214

Ibidem., p. 273. 215

Carta de sesmaria doada a Sebastião Cardoso Batalha em 03 de setembro de 1706. Plataforma SILB –

RN 0947; Carta de sesmaria doada a Sebastião Cardoso Batalha em 09 de setembro de 1718. Plataforma

SILB – RN 0973. Carta de sesmaria doada a Sebastião Cardoso Batalha em 16 de janeiro de 1753.

Plataforma SILB – RN 1036. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em:

24/09/2017. 216

RODRIGUES, José Damião. Histórias Atlânticas: Os Açores na primeira modernidade. Ponta

Delgada: Centro de História de Além-mar, 2012. p. 83. 217

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720) Fl. 24v, 36; Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 08

(1738 – 1743). Fl. 54. 218

Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06 (1713-1720) Fl. 24v. 219

Ibidem., Fl. 76.

Page 239: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

239

ordenanças locais. Primeiramente, para a patente de tenente220

e, em seguida, para

Sargento-mor.221

Com tudo isso, comprovadamente, Cardoso Batalha ter-se-ia

nobilitado no seio da sociedade da Natal Setecentista. Salienta-se que o patrimônio

formado por Sebastião Cardoso Batalha tenha se constituído, além de terras, ofícios

administrativos e patentes nas ordenanças locais, pela propriedade de escravos, visto

que em 10 de maio de 1751, houvesse sepultado um escravo originário da Costa da

Mina, por nome Simão, na Igreja do Rosário dos Homens Pretos, na Cidade do Natal.

222 Diante de tudo isso, observa-se a trajetória ascensional galgada por Sebastião

Cardoso Batalha, o que demonstrava que a pecha de “neófito” que lhe havia sido

imputada quando do casamento de sua neta, não se tornou impeditivo para o seu

processo de nobilitação e, possivelmente, “embranquecimento”.

A família Cardoso Batalha gozava não apenas de prestígio social na Natal

Setecentista, mas também de reconhecimento político. Demonstra isso o rol de

testemunhas do casamento do Tenente Antônio Cardoso Batalha com Ana Maria da

Apresentação. Nesse matrimônio se fizeram presentes, além dos pais dos nubentes, o

Capitão-mor da Capitania do Rio Grande, João de Teive Barreto e Meneses, o provedor

da Fazenda Real, o Dr. Timóteo de Brito Quinteiro, o Comissário Geral de Cavalaria,

Manuel de Melo e Albuquerque, e sua esposa, Dona Eugênia Rodrigues de Sá – tia do

noivo –, bem como o primo, o Sargento-mor Caetano de Melo e Albuquerque e sua

esposa, Violante Rodrigues de Sá.223

Diante de tudo isso, verifica-se que Sebastião Cardoso Batalha, em face de seu

concunhado Manuel de Melo e Albuquerque, tivera uma carreira modesta na

administração local da Capitania do Rio Grande, mas caracteristicamente ascensional e,

portanto, emblemática. Essa constatação poder-se-ia ligar ao fato, além da tonalidade de

sua cútis, de ser Melo e Albuquerque oriundo de uma poderosa e importante família da

Capitania de Pernambuco, cujas redes se espraiavam pelas demais Capitanias do Norte,

e cuja aliança matrimonial com a filha do Reverendo Vigário da Cidade do Natal, o

Doutor Simão Rodrigues de Sá, possivelmente, houvessem contribuído sobremaneira

220 Fundo documental do IHGRN. Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17

(1728 – 1736). Fl. 2. 221

Ibidem., Fl. 3v. 222

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de Nossa

Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759; Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação /

Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de Casamentos, 1785. DSC. 02677 223

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, op. cit., DSC 02775.

Page 240: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

240

para o progresso de sua trajetória na administração da Capitania do Rio Grande. De

igual modo, os vínculos que existiam entre Cardoso Batalha e o Padre Simão Rodrigues,

possivelmente abriram-lhe muitas portas que, provavelmente, não haveria conseguido

galgar sem o apoio político de seu possível sogro.

O terceiro tutelado do Vigário Simão Rodrigues que também havia

desempenhado por concessão precária o ofício de escrivão da Câmara do Natal, foi

José Barbosa de Sousa, em 01 de março de 1709,224

quando Manuel de Melo e

Albuquerque ainda detinha a procuração dos direitos de nomeação e posse do

proprietário desse ofício, Francisco Álvares de Lima.225

Casado com Luíza Rodrigues

de Sá,226

o primeiro registro da presença de José Barbosa de Sousa na Capitania do Rio

Grande data de 03 de outubro de 1706, quando havia requerido uma sesmaria na Cidade

do Natal, alegando serem essas terras devolutas.227

Possivelmente, essa petição

demarcasse a chegada de José Barbosa ao Rio Grande apenas com sua esposa Luíza de

Sá, pois em de 28 de fevereiro de 1707, batizava na Paróquia de Nossa Senhora da

Apresentação do Rio Grande, seu primeiro filho, José Barbosa de Sousa – homônimo de

seu pai –, sendo padrinhos o Padre Simão Rodrigues de Sá e Maria Felipa Neri.228

Ressalta-se que do matrimônio entre José Barbosa de Sousa e Luíza Rodrigues

de Sá, nasceram, ainda, dois outros filhos, Atanásio, batizado em 16 de maio de 1709229

e Rosa Maria, que recebeu os santos óleos em 02 de junho de 1711.230

Pondera-se

também que depois do nascimento de seus dois primeiros filhos e quando de sua

provisão para os ofícios de escrivão, distribuidor e contador da Câmara do Natal,

Barbosa de Sousa almejasse se fixar definitivamente na Capitania do Rio Grande. Logo,

em 28 de janeiro de 1709, solicitasse uma gleba de terras ao Concelho do Natal para

construir sua casa.231

Ao que parece, José Barbosa havia tido uma passagem rápida pelo

224 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 5 (1708

– 1713). Fl. 17. 225

Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707). Fl(s). 74-79. 226

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (34v) 226

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (39). 227

Carta de sesmaria doada a José Barbosa de Sousa em 03 de outubro de 1706. Plataforma SILB – RN

0949. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/09/2017. 228

Livro de Batismos, op. cit., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (34v). 229

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (39). 230

Ibidem.,IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (46) . 231

Carta de sesmaria doada a José Barbosa de Sousa em 28 de janeiro de 1709. Plataforma SILB – RN

0957. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 28/09/2017.

Page 241: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

241

ofício de escrivão camarário do Natal, acumulando esse ofício com de contador e

distribuidor do Senado da Câmara do Natal, apenas no ano de 1709.232

O patrimônio de Barbosa de Sousa não foi de todo modesto, pois além de

acumular três ofícios na administração local, havia sido possuidor de duas sesmarias e

senhor de alguns escravos. Sobre esses cativos, têm-se apenas os registros de três

escravos, cujas nações ou a possível origem não foram relatadas no documento. Assim,

constava no livro de registros de óbitos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos

Homens Pretos, na Capitania do Rio Grande, que José Barbosa era proprietário de uma

escrava por nome Dorotéia, falecida em 24 de junho de 1755, quando contava apenas

dezesseis anos de idade.233

Quatro anos mais tarde, em 27 de outubro de 1759, Barbosa

de Sousa sepultava mais uma escrava por nome Inocente, que era filha de outra sua

escrava, chamada Antônia.234

Mesmo que se tenha identificado apenas três escravos,

José de Sousa poderia possuir mais cativos, sobretudo para trabalharem na cultura da

mandioca com a qual aquele senhor esteve envolvido, como se verá a seguir.

Entretanto, mesmo com aquela passagem rápida pelos ofícios da administração

concelhia da Capitania do Rio Grande, José Barbosa de Sousa havia, possivelmente,

traçado a sua vida nas lides com a farinha de mandioca, ou no cultivo desse tubérculo,

ou mesmo como comerciante do mesmo, uma vez que em 17 de junho de 1711, em

termo de requerimento, Barbosa de Sousa, juntamente com Francisco da Gama Luna,

Antônio da Gama Luna, Sebastião Cardoso Batalha, Francisco Pinheiro Teixeira e

vários outros moradores da Capitania do Rio Grande, queixavam-se das determinações

do Corregedor, Jerônimo Correia do Amaral, que havia ordenado a vinda para a

Capitania do Rio Grande de padrões de medidas de meio alqueire e quarta, algo que,

segundo aqueles agentes, provocavam grandes prejuízos.235

Esses homens aproveitaram

o mesmo requerimento e solicitaram que os oficiais da Câmara do Natal resolvessem

também os problemas decorrentes dos altos valores da farinha.236

232 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 5 (1708

– 1713). Fl. 17. 233

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de Nossa

Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759. 234

Ibidem. 235

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0575, Fl(s).

041v-042v. 236

Ibidem.

Page 242: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

242

O patrimônio de José Barbosa de Sousa, assim como de seus possíveis

concunhados, o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque e o Sargento-mor Sebastião

Cardoso Batalha, são indicativos do processo de sedimentação da elite da Capitania do

Rio Grande, no início do século XVIII, cujas estratégias de formação e composição dos

bens – materiais e/ou simbólicos – basearam-se no acúmulo de terras, escravos, gado –

vacum ou cavalar –, no comércio de gêneros alimentícios, e de recepção de patentes

militares nas companhias de ordenanças locais. A esses se somavam também o

exercício dos ofícios administrativos, tanto honoráveis quanto remunerados, mesmo que

como havia afirmado Roberta Stumpf os ofícios não fossem bens patrimoniáveis (livres

ou vinculados), mas que podiam gerar renda aqueles que o detivesse.237

A isso se

somava o prestígio decorrente de andar entre os da governança da terra, o que fazia

desses ofícios cobiçados pelas famílias locais e por alguns agentes sociais já detentores

de certo cabedal.

Fenômeno semelhante a esse havia ocorrido na Capitania de São Paulo no

início do século XVIII, como havia pontuado Ilana Blaj, ao referir-se ao crescente

processo de mercantilização dessa praça, a qual havia se atrelado a formação de uma

sociedade inflexivelmente hierarquizada, gestada na esteira das interações mercantis

estabelecidas entre a Vila de São Paulo de Piratininga e as regiões mineradoras, tanto

nas Minas, quanto em Cuibá.238

Em outro texto, Blaj havia assegurado também que a

consolidação das fortunas constituídas, sobretudo, por meio das atividades mercantis,

havia passado a ser considerada essencial para a escolha e a nomeação para ofícios de

maior prestígio social.239

Contudo, verifica-se, ainda, para o caso do ofício de escrivão camarário do

Natal, que o ingresso nesse ofício ter-se-ia transformado em vetor de acesso às mercês

que eram concedidas pela Câmara do Natal ou mesmo por intermédio dessa, como os

chãos de terras, as indicações para as patentes militares das companhias de ordenanças

locais, os ofícios honoráveis dos concelho, bem com pelas indicações que os

componentes dessa instituição pudessem realizar para o provimento de ofícios de justiça

237 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo

Regime português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 624- 625. 238

BLAJ, Ilana. Agricultores e comerciantes em São Paulo nos inícios do século XVIII: o processo de

sedimentação da elite paulistana. In: Revista Brasileira de História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998. 239

Ibidem., A trama das tensões: O processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São

Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Fapesp, 2002. p. 293.

Page 243: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

243

– tabelião público ou meirinho de campo – ou de fazenda – almoxarife, alcaide ou

escrivão da fazenda.

Na terceira e quarta década do século XVIII, havia exercido o ofício de

escrivão camarário do Natal dois netos do Padre Simão Rodrigues de Sá, filhos de

Eugênia Rodrigues e do Comissário Geral de Cavalaria Manuel de Melo e

Albuquerque.240

O primeiro deles foi o Sargento-mor Caetano de Melo e Albuquerque,

mediante provisão por concessão precária, em 1737,241

o qual foi sucedido, quase uma

década depois, por seu irmão e homônimo de seu pai, o Capitão Manuel de Melo e

Albuquerque, entre 1746-1747.242

Como mencionado anteriormente, Caetano de Melo e Albuquerque havia sido

batizado em 28 de março de 1701,243

datando, possivelmente, desse mesmo ano seu

nascimento na Capitania do Rio Grande, posto que em 01 de outubro de 1718, assentava

praça de soldado em uma companhia da tropa paga da Cidade do Natal, contando, nessa

altura, dezessete anos de idade.244

Os assentamentos de praça configuravam-se como

registros do ingresso de indivíduos no posto de soldados das companhias de ordenanças

ou nas tropas pagas das localidades onde exerciam suas atividades militares. Esses

documentos caracterizam-se pela riqueza de informações sobre os detalhes físicos dos

agentes históricos, descrevendo a estatura, a cútis, o tipo de cabelo e peculiaridades

relacionadas ao fenótipo dos agentes sociais. Além disso, os assentamentos de praça

trazem dados sobre a filiação, a naturalidade e os valores que eram auferidos pelos

militares e quanto deviam arcar com as despesas de seus uniformes. Por tudo isso, se

constituem em conjuntos documentais ricos, que podem contribuir não apenas para o

estudo numérico dos contingentes militares locais, mas também para se perceber a

inserção étnica das tropas que guarneciam as fronteiras do Império. Para o caso da

Capitania do Rio Grande, têm-se diversos livros de assentamentos de praça que ainda

não foram estudados, sendo um universo possível de investigação que ainda se encontra

em aberto.

240 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. FIA. CX01. DOC. 0057 (f.

17), IAHGP. FIA. CX01. DOC 0057 (f. 35v) 241

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 4, Doc. 227. 242

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 271, 276. 243

Livro de Batismos, op. cit., IAHGP. FIA. CX01. DOC. 0057 (f. 17). 244

Livro Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN.

Page 244: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

244

Contudo, tentou-se, a partir daqueles conjuntos documentais, observar os

aspectos fenotípicos dos escrivães do Concelho do Natal, no período em análise, com a

finalidade de conceder além de nome e sobrenome, os traços físicos desses agentes

sociais da escrita na Capitania do Rio Grande. Entretanto, pontua-se que dos 42

indivíduos que exerceram a escrivania camarária do Natal, apenas dois foram

identificados nos Livros de Assentamentos de Praças. No entanto, a exiguidade desses

números pode ser compreendida quando atenta-se para a afirmação de Kalina Vanderlei

sobre a divisão de a estrutura militar que vigorava para o Império. De acordo com essa

autora, o regimento prescrevia que a organização dos efetivos seria constituída pelas

“[...] tropas profissionais e pagas, regulares, a 1ª linha; e as unidades de cidadãos,

gratuitas, temporárias, resquícios das hostes medievais e baseadas nos recrutamentos

dos concelhos, que são as ordenanças [...], a 2ª linha”.245

Nesse sentido, como se verá

adiante, parte significativa dos escrivães do Concelho Municipal do Natal era portadores

de patentes das companhias de ordenanças locais, muitos dos quais ascenderam nessa

hierarquia durante e após o exercício do ofício de escrivão camarário.

Não obstante, localizaram-se apenas dois assentamentos de praça de homens

que ocuparam a escrivania concelhia do Natal. Dentre esses, cita-se o assentamento de

Caetano de Melo e Albuquerque, cujo registro traça o perfil fenotípico desse agente.

Nessa matrícula, consta que Caetano Albuquerque, aos dezessete anos de idade, em 01

de outubro de 1718, tinha “cor alva de rosto, cabelo crespo e reto, sobrancelhas

arqueadas e grossas”.246

Cinco anos depois, contando, possivelmente, vinte e dois anos

de idade, em 04 de setembro de 1723, Caetano de Melo assumia o primeiro ofício

camarário de sua trajetória administrativa local na Capitania do Rio Grande, ao

substituir Antônio Henriques de Sá no ofício de tesoureiro dos defuntos e ausentes.247

Em 30 de novembro desse mesmo ano, Caetano de Melo e Albuquerque foi nomeado

para a patente de Sargento-Maior do Regimento da Gente de Pé do Coronel Antônio

Pinto da Cruz, da Ribeira do Apodi.248

245 SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:

Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.

39. 246

Livro de Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN. 247

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 165. 248

Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720

– 1728). Fl. 92.

Page 245: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

245

A mesma carta patente trazia a guisa, ainda, toda a extensa lista de serviços

militares prestado por Caetano Albuquerque pela Capitania do Rio Grande, no decorrer

de apenas vinte e dois anos de idade. Essa descrição tinha em vista servir de justificativa

para a concessão da patente de Sargento-maior, mesmo que seu ingresso fosse

relativamente recente nas estruturas militares da terra, nessa carta obliterava-se o tempo

dos serviços em favor de sua extensão e quantidade, prestados à Sua Majestade,

sobretudo com gastos substanciais das “próprias fazendas” do nomeado. Prosseguia a

carta relatando que Caetano de Melo e Albuquerque havia servido em diversos postos, a

começar pelo de Alferes da Companhia de Cavalos de Estevão Velho de Melo, depois

de Capitão de Infantaria da Gente de Pé da Cidade do Natal, cuja companhia havia

organizado as suas próprias custas para se apresentar durante os momentos festivos e na

semana santa, pela Cidade do Natal.249

Delongava-se a carta patente, rememorando o assentamento de praça de

soldado de infantaria paga, citado anteriormente, no qual Caetano de Melo e

Albuquerque havia servido em uma das companhias que havia sido reduzido o Terço

dos Paulistas da Campanha do Assú, do qual era Capitão Francisco Ribeiro Garcia,

ascendendo, na sequência, ao posto de cabo de esquadra.250

Mais tarde, Caetano de

Melo transferir-se-ia, com esse último posto, para a Companhia de Mateus Mendes

Pereira, onde estava a servir quando de sua nomeação por carta patente para o posto de

sargento-maior.251

Nesse meio termo, Melo e Albuquerque também auxiliou na

guarnição da Fortaleza da Barra do Rio Grande, quando das ausências do capitão

responsável, havia contribuído também como cabo de tropa, na prisão de criminosos e

em várias outras diligências solicitadas pela Fazenda Real, o promover, inclusive,

diversas entradas, com recursos próprios, aos sertões do Assú e do Apodi e em suas

respectivas ribeiras.252

Por todos esses serviços, o Capitão-mor do Rio Grande, José

Pereira da Fonseca (1722-1728), o elegia para o posto de sargento-maior.253

Esse longo

rol de serviços, justificavam-se, segundo Kalina Vanderlei, devido os sargentos-mores

de a tropa paga possuírem como função basilar no disciplinamento dos terços,

249 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720

– 1728). Fl. 92. 250

Ibidem. 251

Ibidem. 252

Ibidem. 253

Ibidem.

Page 246: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

246

garantindo “eficiência, disciplina, e lealdade” devidos a falta de confiança das tropas

burocráticas – as ordenanças.254

Pontua-se, ainda, que Caetano de Melo e Albuquerque havia sido grande

possuidor de terras pela Capitania do Rio Grande, ao reter a propriedade total de seis

sesmarias.255

Curioso seria que no primeiro requerimento dessas posses, Caetano

Albuquerque juntamente com a viúva Maria Fernandes de Araújo, em 16 de abril de

1706, na Ribeira do Caranhú,256

tivesse apenas cinco anos de idade, como se pode

verificar a partir do cruzamento do registro de seu batismo e do assentamento de praça

de soldado.257

Tal solicitação, em meio a essa peculiaridade, seria indicativa,

provavelmente, das estratégias de enobrecimento e de formação do patrimônio familiar

de que lançavam mão a elite local na Capitania do Rio Grande, no início do século

XVIII. Dado que mesmo que a solicitação fosse efetuada com o nome de Caetano de

Melo e Albuquerque encabeçando o requerimento e secundado pelo da viúva Maria

Fernandes de Araújo, as justificativas de que as referidas terras estavam devolutas e que

ambos pretendiam criar gados, apresentadas pelos suplicantes, foram suficientes para

induzir a concessão da dita gleba.258

Mais uma vez tem-se o poder de influência da

família e das redes clientelares sobre o universo de possibilidades dos agentes sociais

na América portuguesa, particularmente no que se refere à sedimentação do patrimônio

dos indivíduos, posto que se cogite que a viúva Maria Fernandes de Araújo pertencesse

à rede clientelar que envolvia os Rodrigues de Sá e os Melo e Albuquerque, pois

sempre figurava entre os demais componentes dessas famílias, quer fossem em

254 SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:

Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.

80. 255

Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB

– RN 0053; Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 08 de setembro de 1717.

Plataforma SILB – RN 0385. Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 10 de

dezembro de 1736. Plataforma SILB – RN 0453; Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e

Albuquerque em 29 de outubro de 1739. Plataforma SILB – RN 0483. Carta de sesmaria doada a

Caetano de Melo e Albuquerque em 22 de novembro de 1730. Plataforma SILB – RN 1122; Carta de

sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 30 de dezembro de 1736. Plataforma SILB – RN

1161. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 256

Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB

– RN 0053. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 257

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. FIA. CX01. DOC. 0057 (f.

17); Livro de Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN. 258

Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB

– RN 0053. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017.

Page 247: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

247

solicitações de terras ou em cerimônias religiosas de batismo e de casamento, nesse

último caso, extensivamente visualizados no Gráfico 12.

Na carta de sesmaria solicitada por Maria Fernandes e Caetano Albuquerque,

em 16 de abril de 1706, de terras na Ribeira do Caranhú, faziam-se referências

expressas aos sesmeiros confrontantes com as terras pleiteadas, o Vigário Simão

Rodrigues de Sá e José Monteiro, que haviam efetuado o requerimento de título de

sesmaria oito dias antes, em 08 de abril de 1706.259

Ressalta-se que Caetano de Melo e

Albuquerque era neto, pela via materna, do Reverendo Simão Rodrigues,260

e José

Monteiro era casado com Maria Felipa Neri, filha da viúva Maria Fernandes de

Araújo.261

Adir-se, ainda, que o Padre Simão Rodrigues de Sá e Maria Felipa Neri

foram padrinhos, em 28 de fevereiro de 1707, de José, filho de Luíza Rodrigues de Sá e

de José Barbosa de Sousa262

– que foi escrivão da Câmara do Natal, em 1709.263

Três

meses depois dessas concessões, em 23 de julho de 1706, também nas margens do Rio

Caranhú, obtiveram data de sesmaria Matheus Rodrigues de Sá e Domingos Lopes.264

Presume-se que Matheus de Sá fosse filho do Padre Simão Rodrigues e, portanto, irmão

de Felipa, Luíza, Flávia, Eugênia e Genovesa Rodrigues de Sá.

No entanto, verifica-se que, em 06 de novembro de 1708, José Monteiro e

Maria Fernandes de Araújo haviam sido padrinhos de Flora, filha de Violante Dias e de

seu esposo Matheus Rodrigues de Sá.265

Reitera-se que um ano antes, Matheus

Rodrigues, no dia 08 de setembro de 1707, havia se vinculado ao Capitão Manuel de

Melo e Albuquerque e a Eugênia Rodrigues de Sá por meio do apadrinhamento de seu

filho Manuel,266

o qual viria a servir como escrivão da Câmara do Natal entre 1746-

1747.267

Juntamente com Matheus Rodrigues de Sá, solicitou também posse daquela

259 Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB

– RN 0053. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 260

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (f. 17). 261

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (34v). 262

Ibidem. 263

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 5 (1708

– 1713). Fl. 17. 264

Carta de sesmaria doada a Mateus Rodrigues de Sá em 23 de julho de 1706. Plataforma SILB – RN

0055. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 265

Livro de Batismos, op. cit., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (38v). 266

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (35v). 267

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 226.

Page 248: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

248

sesmaria Domingos Lopes,268

que era casado com Dória Fernandes de Souza,269

sendo

esta filha da viúva Maria Fernandes de Araújo.270

Desse modo, mais uma vez, percebe-se o sobrepeso das relações familiares que

muito tendiam para se transformarem em relações do tipo clientelar. Nesse caso em

análise, deslindam-se as astúcias encampadas pelos agentes sociais para obterem

vantagens materiais – como a posse de terras –, a partir da organização cruzada dos

componentes familiares que, no geral, formavam uma mesma rede clientelar e, no

limite, uma mesma família, com a finalidade de burlarem a fiscalização régia quanto ao

acúmulo de terras no interior de um mesmo clã, dispunham para isso, os seus

integrantes em solicitações de terras distintas. Essas constatações ratificam a afirmação

de António Manuel Hespanha sobre o sentido alargado de família para o período

Moderno, no interior da qual se tinha elementos de diversas gerações vinculados por

consanguinidade – agnados – ou por afinidade – cognados –, cujas interações eram

cimentadas por deveres recíprocos, traçando, com isso, os limites da relevância social

de cada estirpe.271

Ainda de acordo com aquele autor, as relações familiares perfaziam

uma porção das relações patrimoniais, posto que fizessem “[...] os filhos parte da pessoa

do pai, só este era titular de direitos e obrigações, adquirindo para si os direitos

patrimoniais dos filhos e sendo responsável pelas suas perdas [...]”.272

Papéis esses

desempenhados pelo Padre Simão Rodrigues de Sá e pelo Comissário Geral de

Cavalaria Manuel de Melo e Albuquerque, porventura, os principais mentores dos

estratagemas de que lançavam mão seus filhos e filhas, ou mesmo em nome destes, na

Capitania do Rio Grande, em busca de enobrecimento, prestígio, poder e status, no

decorrer do século XVIII.

O Sargento-mor Caetano de Melo e Albuquerque possuía, portanto, um

patrimônio formado além da posse de terras e de patentes das companhias de

ordenanças, pela remuneração advinda do posto de sargento maior na tropa paga e do

268 Carta de sesmaria doada a Domingos Lopes em 23 de julho de 1706. Plataforma SILB – RN 0055.

Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca . Acesso em: 20/10/2017. 269

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP-FIA-CX02. DOC.0069

(13). 270

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (31v). 271

HESPANHA, António Manuel. A Família. Fundamentos Antropológicos da família do Antigo

Regime: os sentimentos familiares. In: MATOSO, José (dir.). In: HESPANHA, António Manuel

(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 246-247. 272

Ibidem., p. 248.

Page 249: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

249

obtinha do provimento precário no ofício de escrivão do Concelho Municipal da Cidade

do Natal, pela propriedade de gados e escravos. Confirmava a posse desses dois últimos

conjuntos de bens, as alegações constantes nas cartas de sesmarias requeridas pelo

Sargento-mor Caetano Albuquerque, segundo o qual justificava possuir gados vacuns e

cavalares,273

corrobora veementemente essa possiblidade o registro, em 16 de agosto de

1744, das suas marcas de ferrar gado, registradas nos Livros de Cartas e Provisões do

Senado da Câmara do Natal.274

Sobre a posse de escravos tem-se notícia de que, em 14

de dezembro de 1750, Caetano de Melo e Albuquerque havia sepultado na Igreja de

Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal uma escrava de sua

propriedade por nome Luíza, do gentio da Costa da Mina.275

Depois de haver servido à Câmara do Natal no ofício de tesoureiro dos

defuntos e ausentes, entre 1723 e 1724,276

o Sargento-mor Caetano de Melo e

Albuquerque passava nesse último ano ao exercício do ofício de almotacé.277

Transcorridos sete anos, Caetano Albuquerque voltava ao Concelho do Natal escolhido

novamente para almotacé, desempenhando esse ofício nos anos de 1732, 1733 e em

1735.278

Reverbera-se que em 1734, Melo e Albuquerque assumia o mais prestigioso

posto da Câmara do Natal, sendo eleito juiz ordinário para um mandato letivo.279

Não

obstante, esse agente havia encerrado sua carreira na administração local da Concelho

Municipal da Cidade do Natal em 1737, quando havia servido nessa edilidade no ofício

de escrivão camarário.280

Desse modo, depreende-se que o exercício do ofício de escrivão concelhio do

Natal, mesmo que considerado de menor prestígio social quando comparado aos ofícios

honoráveis desse concelho – como juiz ordinário, vereador e procurador –, fosse alvo de

273 Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 16 de abril de 1706. Plataforma SILB

– RN 0053; Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 08 de setembro de 1717.

Plataforma SILB – RN 0385. Carta de sesmaria doada a Caetano de Melo e Albuquerque em 10 de

dezembro de 1736. Plataforma SILB – RN 0453. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca .

Acesso em: 20/10/2017. 274

Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 09

(1743 – 1754). Fl. 17v. 275

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia de Nossa

Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759. 276

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 165. 277

Ibidem., Documento 0921, Fl.(s) 037v-038. 278

Ibidem., Documento 1111, Fl.(s) 116-116v; Documento 1150, Fl.(s) 141-142; Documento 1185, Fl.(s)

165-165v. 279

Ibidem., Documento 1170, Fl.(s) 154-154v. 280

Ibidem., p. 226.

Page 250: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

250

interesse de homens detentores de grossos cabedais, como analisado no decorrer desse

tópico o caso da família Rodrigues de Sá e sua parentela. Possivelmente, o desempenho

desse ofício fosse atrativo pelo ordenado anual auferido, bem como pelos demais proes

e percalços que se somavam. Além disso, a possibilidade de figurar entre os elementos

da governança da terra pode ser aventada como outro indício, visto que isso promovia o

prestígio e a distinção social do indivíduo e de seu clã. Pondera-se também o caráter

estratégico que envolvia o ofício de escrivão camarário, ao possibilitar aos seus

encarregados acesso irrestrito a memória institucional da Câmara do Natal, do mesmo

modo que as informações privilegiadas provenientes da comunicação interinstitucional

que interligava diferentes órgãos da administração do Império, nas dimensões

intracapitania, intercapitanias e transcontinental.281

No entanto, percebe-se que os valores auferidos do ordenado proveniente da

concessão precária do ofício de escrivão da Câmara do Natal, não haviam satisfeito as

ambições de um potentado local como o Coronel Caetano de Melo e Albuquerque.

Infere-se isso, mediante a análise de uma carta enviada pelos oficiais da Câmara do

Natal à D. João V, em 31 de janeiro de 1737, na qual aqueles honoráveis senhores

davam conta a El’ Rey daquilo que eles denominaram de “escasso rendimento do

serventuário do ofício de escrivão da Câmara do Natal, o Coronel Caetano de Melo e

Albuquerque.”282

Nesse documento, redigido pelo próprio Caetano Albuquerque,

constava a solicitação de que fossem revistos o salário do serventuário daquele ofício,

pois este recebia $ 25.000,00 réis de emolumentos por ano, dos quais $ 12.000,00 réis

era o ordenado e $ 4.000,00 réis as propinas para compra de materiais como penas,

papel e tinta.283

O Ouvidor Geral da Paraíba, Tomás da Silva Pereira, em face dos

parcos recursos que eram barganhados pelo escrivão concelhio do Natal, havia

concedido um acrescentamento de $ 12.000,00 réis, sendo que, mais tarde, lhes foram

retirados pelo Corregedor Jorge Salter de Mendonça, ao justificar a ilegitimidade do

aumento, dado que os ouvidores não podiam realizar esse ato, sem consentimento

prévio de El Rey.284

281 Sobre as dimensões e as vias de comunicação interinstitucional pelo Império nos níveis intra e

intercapitanias e transcontinental, mediante a atuação dos escrivães concelhios da cidade do Natal, ver o

Tópico 1.4 – Os escrivães como intermediários nas redes institucionais de circulação de informações

pelo Império. p. 80. 282

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 227. 283

Ibidem. 284

Ibidem.

Page 251: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

251

Afora a primeira solicitação, aquela carta requeria, ainda, que se incrementasse

um reajuste no salário do serventuário do ofício de escrivão, mediante uma propina

advinda da arrematação do contrato das carnes da Capitania do Rio Grande, como era

prática nas capitanias circunvizinhas.285

Caso não fosse possível este efeito, dever-se-ia

conceder uma praça de soldado pago em uma das duas tropas que guarneciam a Cidade

do Natal, para que o serventuário pudesse se sustentar.286

Nesse ínterim, os oficiais

camarários afirmavam que se tais concessões não fossem efetivadas, não existiria

facilidade para que o serventuário prosseguisse no exercício do referido ofício, algo que

traria, irreversivelmente, danos significativos aos andamentos da administração local,

pois não se podia obrigar o proprietário do ofício, o Comissário Geral de Cavalaria José

Ribeiro Riba, de servi-los, dado que este fosse radicado na Capitania de Pernambuco.287

Essa carta que, na sequência, trouxe algumas ingerências para o proprietário da

escrivania camarária do Natal, suscitava alguns questionamentos significativos. Dentre

os quais se percebe, para além das questões estritamente salariais, derivados do

exercício desse ofício, os jogos de poder acerca da hegemonia e do destino daquela

escrivania, eivados por interesses familiares, clientelares e, consequentemente,

patrimoniais. Verossimilmente, pode-se conjecturar que devido ao fato de a família

Melo e Albuquerque ser a detentora da procuração de plenos poderes sobre o ofício de

escrivão da Câmara do Natal, desde 19 de dezembro de 1705, quando Manuel de Melo e

Albuquerque – pai de Caetano de Melo –, havia sido substabelecido procurador do

então proprietário, Francisco Álvares de Lima.288

Provavelmente essa procuração tenha

sido renovada nos Melo e Albuquerque quando ocorreu à nomeação do posterior

proprietário, José Ribeiro Riba. Assim, trinta e dois anos depois, intermediando os

provimentos naquela escrivania, a família tentava se apoderar da propriedade do ofício

de escrivão camarário da Capitania do Rio Grande, ao denunciar a exiguidade do salário

do serventuário, do qual teria, ainda, que pagar a “terça parte da avaliação do ofício” ao

proprietário e os “novos direitos”,289

sendo tais alegações consideradas como

285 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 227.

286 Ibidem.

287 Ibidem.

288 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702

– 1707). Fl(s). 74-79. 289

A terça parte da avaliação do ofício de escrivão da Câmara do Natal constituía-se na possibilidade de

os proprietários nomearem serventuários para o exercício do referido ofício quando os primeiros

estivessem impossibilitados de assumirem, de fato, o exercício do mesmo. Com isso, estabelecia-se

previamente o período de tempo da serventia (geralmente de três anos, mesmo que na Capitania do Rio

Page 252: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

252

artimanhas para convencer D. João V de cessar os direitos de propriedade de José

Ribeiro.

Tudo isso se justificava em virtude de Ribeiro Riba – proprietário do ofício –

residir em Pernambuco, como delatava a dita carta, e não poder servir presencialmente

esse ofício.290

A denúncia seria sintomática de um contexto mais amplo, no qual a Coroa

portuguesa começava a ensejar uma política régia que vislumbrava a redução do

acúmulo de ofícios em únicas famílias ou pessoas, com a finalidade expressa de ampliar

a rede de súditos, bem como dos pactos estabelecidos. Acresce-se a isso, de acordo com

Roberta Stumpf, que o provimento dos ofícios em serventia, a partir do Decreto de

Fevereiro de 1741, havia transformado o dinheiro no imperativo primeiro de escolha

daqueles que pudessem exercer as serventias de ofícios, pois segundo aquela autora “era

só o dinheiro, e apenas este, que servia de base à concessão dos novos cargos dados em

serventia”,291

esperando-se disso vantagens econômicas que incrementavam os cofres

reais.

Assim, a Coroa passava a olhar com outros olhos a figura do serventuário e a

própria dimensão venal dos ofícios, visualizando a retirada de benefícios entre as

transições que antes eram efetuadas apenas por particulares. As diversas formas de

donativos – o “benefício secreto”, o “donativo gracioso”, o “donativo voluntário

gracioso” –, que em diversas ocasiões trataram de encobrir ou ocultar o mérito

pecuniário, como apontado por Francisco Andújar Castillo,292

ou mesmo os leilões dos

ofícios americanos, apontavam para as novas diretrizes das políticas de provimento de

cargos e ofícios pela Coroa portuguesa, sobretudo no ultramar, que, conforme Roberta

Stumpf, ainda que estivesse calcada na avaliação da “[...] importância social e pela

experiência dos candidatos, a ‘aptidão profissional’ e a riqueza passaram a ganhar

Grande tenha sido verificada a preponderância de provisões em tempos menores, de dois ou três meses e

de até um ano, apenas, a qual se denominou, de acordo com a bibliografia de provisão precária). Em

1722, seria instituída a cobrança da terça parte dos rendimentos dos ofícios, tanto de ordenando anual,

acrescidos dos demais proes e percalços. Os novos direitos eram constituídos por uma taxa paga pelos

serventuários dos ofícios à Coroa portuguesa, sem o pagamento dos quais não poderia servir no ofício.

Para saber mais, ver STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia portuguesa do

século XVIII. In: STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas

Monarquias Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII). Lisboa: Centro de

História de Além-mar, 2012. p. 286; 294, nota 31. 290

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 227. 291

STUMPF, op. cit., p. 295. 292

CATILLO, Francisco Andújar. Venalidad de oficios y honores. Metodología de investigación. In:

STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:

Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-mar, 2012.

p. 176.

Page 253: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

253

destaque”.293

Tal situação fazia com que os serventuários de ofícios passassem a

usufruir de maior prestígio diante da Coroa.

Tudo isso corrobora para explicar a decisão de D. João V quanto ao escasso

rendimento do serventuário do ofício de escrivão da Câmara do Natal, o Coronel

Caetano de Melo e Albuquerque, cujo parecer, em 28 de maio de 1738, foi favorável a

este, em detrimento do proprietário, José Ribeiro Riba, desonerando-se o Coronel

Caetano Albuquerque do pagamento da terça parte que cabia a Ribeiro Riba, que

“enquanto não vir servir-lhe [no dito ofício] não pague o serventuário coisa alguma, e

ficará cessado esta zelosa representação feita a favor do serventuário”,294

mesmo em

face da justificativa apresentada por José Ribeiro de ter quase 70 anos de idade,

acometido por vários achaques, falto da vista, casado e pai de dez ou doze filhos,

arrolando, na sequência, o extenso rol de serviços prestados ao longo de pouco mais de

quarenta anos à Coroa.295

Não obstante, verifica-se que Caetano de Melo e Albuquerque havia exercido a

serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal durante pouco mais de um ano,

possivelmente, em decorrência de duas cartas queixas que foram enviadas pelos oficiais

da Câmara do Natal, em 1738, que davam conta dos abusos da família de Manuel de

Melo e Albuquerque, principalmente de Caetano de Albuquerque.296

Na primeira carta,

os oficiais da Câmara do Rio Grande que serviam naquele ano, assinada por Francisco

Diniz da Penha, Domingos da Cunha Linhares, Francisco Barreto, Lourenço de Araújo

Correa e José Pinheiro Teixeira, afirmavam que vivia há muitos anos na Capitania do

Rio Grande uma família de vida absoluta, cujos progenitores eram Manuel de Melo e

Albuquerque e Caetano de Melo e Albuquerque, sendo este filho do primeiro, e muitos

outros parentes, com inúmeros maus procedimentos.297

Ainda segundo essa carta, essa

família tinha o apoio de quase todos os capitães-mores que haviam governado a

Capitania do Rio Grande, e, nesse momento, grassavam do total apoio do Capitão-mor

293 STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia portuguesa do século XVIII. In:

STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas:

Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-mar, 2012.

p. 296. 294

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 227. 295

Ibidem. 296

Ibidem., Doc(s). 240, 241. 297

Ibidem., Doc. 240.

Page 254: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

254

João de Teive Barreto e Menezes, que lhes havia concedido suporte em troca de apoios

mútuos.298

No rol daqueles nefastos procedimentos da família Melo e Albuquerque,

chama à atenção a alegação dos oficiais da Câmara do Natal, de que aqueles homens

maquinavam “contra as pessoas que ocupam lugares e ofícios da República e Fazenda

Real, com o projeto de se inserirem neles de que dão tão más contas, como o dito

Caetano de Melo”.299

Essa afirmativa, em especial, liga-se diretamente a discussão

desenvolvida anteriormente sobre as reais intenções da carta enviada por Caetano

Albuquerque, sobre a escassez do salário do serventuário do ofício de escrivão da

Câmara do Natal.300

Com alguma probabilidade, a estratégia de que lançou mão para se

isentar do pagamento da terça parte dos rendimentos daquele ofício, se remetesse a

determinação régia do proprietário deslocar-se para a Cidade do Natal, algo que,

possivelmente, Caetano de Melo presumisse que Ribeiro Ribas não o faria, levando-o a

alegar na carta de 31 de janeiro de 1737, que o proprietário era impossibilitado de

exercer esse ofício, dado que residisse na Capitania de Pernambuco.301

Contudo, a denúncia efetuada pelos camarários não havia obtido resposta. Isso

os levaria a enviar uma segunda carta, em 23 de fevereiro de 1738, à D. João V, na qual

os oficiais da Câmara do Natal reiteravam, mais uma vez, “as malignas influências da

família Melo e Albuquerque”, sobretudo os maus procedimentos de Manuel e de

Caetano, apoiados pelo Capitão-mor João de Teive Barreto e Menezes.302

Dessa feita, o

motivo seria a nomeação efetuada pelo Capitão-mor Barreto e Menezes, provendo

Caetano de Melo e Albuquerque novamente no ofício de escrivão concelhio, em

desagrado geral de todos os “respúblicos”.303

No entanto, mais uma vez, a carta não

obteve resposta. Essa situação pode-se sustentar na natureza eminentemente oligárquica

dos poderes locais no Antigo Regime, como apontado por Nuno Gonçalo Monteiro, que

“caracterizavam-se nos centros de autoridade naquelas sociedades.”304

Ainda conforme

esse autor, essa situação seria proveniente “[...] mais da precariedade dos instrumentos

298 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 240.

299 Ibidem.

300 Ibidem., Doc. 227.

301 Ibidem.

302 Ibidem., Doc. 241.

303 Ibidem.

304 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel

(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 292.

Page 255: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

255

de controlo da coroa do que da vitalidade de seus recursos próprios.”305

Situação essa

que levava, constantemente, ao fato da quebra das normas comunitárias locais a serem

corriqueiramente imputadas “[...] aos ricos e poderosos” senhores da terra.306

Ainda

assim, ao que parece, Caetano de Melo e Albuquerque não se susteve no ofício de

escrivão da Câmara do Natal, retornando para o posto de soldado da tropa paga, da

Companhia de Francisco Ribeiro Garcia.307

Mesmo assim, em 1746 e 1747, o Capitão Manuel de Melo e Albuquerque,

filho do Comissário Geral de Cavalaria homônimo e irmão do Sargento-mor Caetano de

Melo e Albuquerque, servia também por concessão precária o ofício de escrivão da

Câmara do Natal.308

Porém com uma passagem mais rápida e tranquila, dado que não

havia se envolvido em nenhuma querela, visto que, em seguida, candidatar-se-ia ao

posto de Capitão-mor de Cabo Frio,309

perdendo-se depois o rastreamento sobre esse

agente.

Nesse capítulo verificou-se o sobrepeso da instituição familiar em diferentes

momentos e situações, o que se leva a afirmar, como explicou António Manuel

Hespanha, que mesmo com o advento da sociedade Moderna, na qual a dimensão

individual começou a ganhar sentido, a família continuava a ser um dos mais sólidos

elementos estruturantes da sociedade de Antigo Regime, da qual muito dependia o êxito

ou mesmo o fracasso do próprio indivíduo.

Desse modo, a ideia de família que se tinha para esse período devia ser

compreendida em sentido mais alargado, no interior da qual se tinham os parentes

consanguíneos e aqueles cujos vínculos eram construídos pelas afinidades

corriqueiramente instituídas pela dimensão religiosa das relações de compadrio e de

305 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel

(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 292. 306

Ibidem., p. 292-293. 307

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 04, Doc. 254. 308

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 271, 276. 309

AHU-RN,op. cit., Cx. 05, Doc. 285.

Page 256: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

256

casamento ou mesmo de amizade. Os familiares cognados, ou seja, aqueles cujos

vínculos se davam na esteira das afinidades políticas e sociais formavam, juntamente

com os descendentes e ascendentes sanguíneos, a parentela, tão essencial para a garantia

de prestígio, status e poder numa sociedade estamental do Antigo Regime.

A força da parentela pôde ser visualizada extensivamente no tópico pertinente

à família Rodrigues de Sá e as demais famílias que a esta se uniu, quer pelo matrimônio,

quer pelo batismo ou mesmo pelas alianças políticas entorno da hegemonia pelo poder,

que serviu para ditar, via de regra, a formação do patrimônio familiar dos Rodrigues de

Sá, em consonância com os rumos trilhados pela política da Coroa portuguesa, que

tinham nas instituições administrativas locais o espaço da gênese das elites locais.

Ressalta-se que a fortuna dessa família foi construída tendo como base a posse de terras

– sesmarias e chãos de terras –, de gados – vacuns e cavalares –, de escravos –

africanos ou mesmo indígenas – e nesse meio termo pulverizado pelo prestígio que

advinha do exercício dos ofícios honoráveis – como o de juiz ordinário, vereador e

procurador –, como também de ofícios intermédios como tabelião público e escrivão da

Câmara do Natal, essencialmente estratégico para as disposições e objetivos dessa

família.

Apontam-se, ainda, como demonstrando ao longo do texto, que a escrivania

concelhia daquela edilidade foi compreendida pelos Rodrigues de Sá, os Melo e

Albuquerque e os Cardoso Batalha, como uma via passível de obtenção de dividendos

monetários, por meio do exercício de seus provimentos por concessão precária, mas

com ordenado anual fixo, ao qual se somava os demais proes e percalços, mas também

e, talvez, acima de tudo, como um elemento de formação e reforço das redes familiares

e clientelares que se teciam na trama política da concessão desse ofício, de modo

temporário, aos seus integrantes através dos poderes conferidos pelas procurações.

Possibilitando o ingresso na organização concelhia do Natal, posto que seu provimento

se desse com base na negociação entre o procurador do ofício e aqueles que pretendiam

exercê-lo. Com isso, os Rodrigues de Sá conseguiram inserir os integrantes que a essa

família se somou através dos casamentos sem que necessariamente passassem pelo

sistema convencional de pelouros, dirigidos a eleger os agentes para os ofícios

honoráveis. Mas, mesmo assim, a família Rodrigues de Sá, juntamente com os Melo e

Albuquerque, asseguravam que alguns de seus integrantes estivessem na câmara. Disso,

se salienta que o ofício de escrivão camarário do Natal, provavelmente, foi visualizado

Page 257: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

257

por aquela família como o meio mais efetivo de sempre se fazerem presentes, por meio

do exercício deste por algum de seus elementos, na principal instituição administrativa

local, cuja prática assegurava não apenas o acesso à memória institucional local, como

também a todo o universo de informações possíveis na geopolítica local e do Império,

devido ao próprio caráter daquela instituição, contribuindo para concatenar os interesses

dessas famílias aos ditames macros da política imperial, mas também influindo para que

essas mesmas disposições, em nível local, se orientassem conforme seus interesses.

Adir-se, ainda, que a prática efetiva do ofício de escrivão da Câmara do Natal,

fosse passível de ser desempenhada coevamente com familiares que se ocupavam dos

ofícios honoráveis da república, como também elucidado para o caso da família Melo e

Albuquerque. Isso as colocaria em posição de vantagem diante de outros grupos

familiares que também tinham interesse em se fazerem representar no núcleo da

municipalidade. Essa situação, talvez, tenha contribuído também para que os Rodrigues

de Sá, os Melo e Albuquerque e os Cardoso Batalha influíssem nas determinações do

Concelho do Natal a fim de protegerem seus próprios interesses clientelares. Como

visto no Capítulo III, os escrivães eram encarregados da guarda, dentre outras coisas,

das chaves do cofre do concelho. Esse direito, com alguma probabilidade influiu

diretamente para que o Comissário Geral de Cavalaria, Manuel de Melo e Albuquerque,

tenha se mantido quase intacto ao longo de dez anos consecutivos no ofício de vereador

do Senado da Câmara do Natal, desde 1709 até 1718, contrariando as disposições

prescritas na legislação. Reverbera-se que nesse mesmo período em que foi vereador

durante dez anos, Manuel Albuquerque fosse também procurador da propriedade do

ofício de escrivão da Câmara do Natal e tabelião do judicial e notas da Capitania do Rio

Grande, do qual era titular Francisco Álvares de Lima, detendo sobre aquele ofício

plenos poderes, desde tomar posse até escolher ou destituir serventuários para os

mesmos.

A posse dessa procuração conferiu a família Rodrigues de Sá e aos Melo e

Albuquerque um importante elemento no jogo político de cooptação de agentes sociais

para as suas redes clientelares que, como se verá no Capítulo VI, foi passível de

instaurar desordens e desentendimento na Capitania do Rio Grande, em um momento no

qual o então Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca (1722-1728), veio a

descobrir a fraude que Manuel de Melo e Albuquerque, juntamente com o escrivão

Bento Ferreira, haviam, juntos, burlado as eleições para o Senado da Câmara do Natal

Page 258: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

258

para o mandato de 1724. Reverbera-se que, nesse caso, se foi possível se descobrir o

dolo para a ocupação dos ofícios honoráveis da Câmara do Natal, mas se pode imaginar

as inúmeras vezes que aquele agente, a partir do fato de deter a procuração de plenos

poderes do ofício de escrivão, não havia se utilizado desse dispositivo para manobrar as

eleições concelhias, garantindo sempre a presença de representantes de sua família para

os mandatos. Por tudo isso, a escrivania concelhia do Natal foi visualizada como

estratégica e, por isso mesmo, controlada no interior dessa família entre 1706 até 1718,

quando a referida procuração havia passado para as mãos de outro agente social, como

se verá adiante.

Page 259: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

259

CAPÍTULO IV - “UM MALIGNO ESCRIVÃO”: Bento Ferreira Mouzinho sob o

reinado de D. João V (1715-1755)

“Dou a vossa Real Mag.de

conta

das perturbações, que causa neste povo

hum malignum Escrivão da Camara desta Ci.de

por nome Bento Ferreira Mouzinho,

que com hua pena trahidora emforma, e

faz Capitulos contra todos

os que athe aqui tem vindo

a este lugar[...].”

(Capitão-mor José Pereira da Fonseca, Natal, 25/07/1725).1

De acordo com Laura de Mello e Souza, a escolha da análise das trajetórias ou

de biografias de administradores não teria, necessariamente, interesse em suas

dimensões pessoais ou individuais em si, algo que explicaria algumas escolhas

efetuadas por àquela autora de personagens quase que “subsidiários” para o seu O sol e

a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII, mas que

com suas carreiras na burocracia lusa, sobretudo instauradas pela América portuguesa,

concederam sentido e dinamicidade à administração do Império. Souza apontaria, ainda,

que questões estruturais da sociedade Setecentista eram passíveis de serem visualizadas

e extensivamente discutidas, ao se atentar para os percursos dos agentes sociais

imbricados na esfera do exercício do poder político, tais como “[...] os limites do mando

em conquistas ultramarinas; a teoria e a prática da concessão de dons e mercês; a

promiscuidade entre governo, poder e ganhos ilícitos [...]”.2

Contudo, para se compreender as trajetórias desenvolvidas pelos agentes

históricos, nesse caso nas estruturas administrativas da época Moderna, como pontuou

António Manuel Hespanha, ao discutir a questão sobre A mobilidade social nas

sociedades do Antigo Regime, ter-se-ia que compreender, em um primeiro momento,

“os quadros mentais” que serviram não apenas de substrato para o desenrolar da vida

cotidiana, mas que também condicionaram, orientaram, dirigiram e, em última

1 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 114.

2 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do

século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 19.

Page 260: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

260

instância, conferiram sentido a atuação de homens e mulheres, bem como as formas

com as quis estes agentes haviam se relacionado, rotineiramente, com o poder político.3

Para aquele autor, questões como “justiça, graça e misericórdia”, que se constituíam

como o tripé da teologia dos tempos modernos, cingiam, do mesmo modo, a “teoria dos

atos humanos” e, em maior intensidade, comporia axiomaticamente as ações e o sentido

de governar.4

Entrementes, ao monarca também se referiu António Manuel Hespanha, como

sendo o principal responsável pela instauração das mutações na sociedade do Antigo

Regime, principalmente no que respeita a dimensão da ascensão social, pois o rei seria

compreendido como a força extraordinária “que por escrito, emancipa, legitima e

enobrece”.5 Apenas a figura do rei caberia à promoção nos quadros da hierarquia social

e mesmo administrativa, ora como princípio instituidor, ora a título de chancela.

Percebe-se, nesse capítulo, que táticas semelhantes as que lançavam mão os

grupos sociais ligados à alta administração – sobre os quais se tem mais notícias, em

face da quantidade de pesquisas sobre a nobreza administrativa –, eram compartilhados

também pelos estratos sociais inferiores da administração, presentes nas instituições de

representação local do poder. Essas disposições podiam ser visualizadas no emprego de

mecanismos de afirmação política, através das alianças matrimoniais, dos conchavos

amistosos e dos interesses familiares, que alinhavavam as determinações superiores da

política imperial, às forças centrífugas das vontades individuais e, consequentemente,

das oligarquias locais em que estivessem inseridos.

Assim, o traçado do percurso de Bento Ferreira Mouzinho pode ser compreendido

por meio das várias fontes documentais atinentes a esfera administrativa de governo

como, por exemplo, das cartas patentes, das consultas, dos pareceres, dos alvarás –

régios e locais –, das representações e das devassas, enfim, dados pertinentes a sua

atuação na administração local da Capitania do Rio Grande, bem como em documentos

manuscritos pelo próprio Ferreira Mouzinho, sobre outros agentes régios.

As discussões empreendidas a partir do trajeto de Bento Ferreira Mouzinho

contribuem, ainda, para a compreensão do funcionamento da intrincada engrenagem

administrativa colonial, instaurada pelos portugueses em suas possessões d’além mar.

3 HESPANHA, António Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. In: Revista

Tempo. v. 11, n. 21, 2006, p. 124. 4 Ibidem., p. 125.

5 Ibidem., p. 123.

Page 261: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

261

Dentre os pontos analisados, citam-se a troca de favores, a formação de alianças

políticas, o patrimonialismo e os conflitos jurisdicionais, permeados por disputas de

representação do poder. Essas, dentre outras problemáticas, serviram como fundamentos

estruturantes para o entendimento dos mecanismos da cultura política do Antigo Regime

português, fazendo-se amplamente presentes no cotidiano institucional da administração

das possessões ultramarinas. De acordo com Yamê Galdino de Paiva, a noção de

cultura política, responsável por abarcar todo o complexo cultural de uma determinada

época, seria responsável por traduzir os códigos culturais, os sistemas de valores e os

modos de ação, específicos dos agentes sociais.6 Atrela-se a isso, a ideia de Antigo

Regime nos trópicos, segundo a qual a sociedade estamental do Antigo Regime, que

existia no Portugal reinol, havia sido trasladada para as possessões americanas,

juntamente com as instituições administrativas e os milhares de homens e mulheres que

haviam resolvido cruzar o Atlântico.7

De acordo com Serge Berstein, as ações dos agentes históricos podiam ser

compreendidas, de modo mais amplo, quando se atenta para o fato de que ocorreriam

nos corpos sociais coletivos, ao partilharem crenças, normas, valores, costumes e

tradições comuns, fazendo usos que também seriam comuns. Com isso, os agentes

sociais haviam construído uma ideia de mundo na qual compartilhavam tais

concepções, o que concederia significado simbólico e material próprio que, inclusive,

pode ser temporal e espacialmente localizados.8 Este conjunto de valores sociais,

decorrentes da atmosfera cultural que submergia homens e mulheres, mergulhados no

ideal da distinção social que, como visto anteriormente, se processava aquém e além das

próprias vontades, tinha na política de mercês, concedida por El Rey, o ponto nodal para

a difusão ou a para a retração das ambições individuais.

O presente capítulo pretende a partir da trajetória de Bento Ferreira Mouzinho,

que havia exercido a serventia do ofício de escrivão do Senado da Câmara do Natal,

6 A cultura política de Antigo Regime Português fora responsável por orientar a ação dos indivíduos que

estavam presentes na burocracia, Yamê Galdino, em um estudo de caso, trabalhou com um ouvidor da

capitania da Paraíba. Para saber mais, ver PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo a sombra das Leis:

Antônio Soares Brederode: Entre a Justiça e a Criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802).

Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. p. 4. 7 Sobre o caráter estamental da sociedade portuguesa gestada nos trópicos, com base na cultura política do

Antigo Regime, ver FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.).

O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 8 BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Dir.). Para

uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

Page 262: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

262

entre 1715 e 1732, mas também em outras estruturas administrativas locais da Capitania

do Rio Grande, descrever e analisar o percurso desse agente que, imbuído pela lógica da

cultura política do Antigo Regime português, sintetizaria, em parte, os dilemas que

constantemente permearam o exercício do mando institucional da Coroa lusitana,

sobretudo nas áreas de conquista pelo ultramar. Nesse caso em apreço, que havia

envolvido, mormente, a sobredita capitania, mas também as possessões portuguesas

adjacentes – as vizinhas Capitanias de Pernambuco, Paraíba e Itamaracá –, poder-se-ia

lançar subsídios para o entendimento dos jogos políticos que eivaram a trama de

formação dos espaços sociais e administrativos, nessas capitanias na primeira metade do

século XVIII.

A biografia de Bento Ferreira Mouzinho seria indiciária para se perceber os

arranjos e rearranjos entorno da hegemonia pelo poder, na Capitania do Rio Grande, no

decorrer das décadas de 1720, 1730 e 1740, nas quais àquele agente havia se envolvido

em diversas querelas em nível local – mas que não raras vezes, chegava até Lisboa –,

carreando governadores, capitães-mores, ouvidores-gerais, provedores, oficiais

camarários e milicianos daquelas paragens, bem como das contíguas Capitanias de

Itamaracá, Paraíba e Pernambuco. A história de Ferreira Mouzinho indica, ainda, como

se havia processado a conformação territorial do Império ultramarino português, no

século XVIII, entrecortado por longas distâncias físicas e temporais, que separavam

Lisboa – o centro político do Império – das possessões ultramarinas, nesse caso,

especialmente da periférica Capitania do Rio Grande, ao recorrer ao processo escrito

para a gestão dos espaços políticos.

A partir do alcance da comunicação manuscrita, poder-se-ia compreender a

partir do caso limite de Bento Ferreira Mouzinho, como se dava os mecanismos de

gestão à distância, instaurado pela Coroa no ultramar, sempre recorrendo aos pareceres

dos oficiais régios situados nas diferentes possessões do Império, para poder se

posicionar perante desavenças e conflitos jurisdicionais e, assim, melhor gerir seus

domínios.

Mediante o roteiro de Bento Mouzinho seria possível compreender a atuação dos

homens infraletrados como, nesse caso, o próprio biografado, que mesmo que não

possuísse nenhuma especialização adquirida nas cátedras de ensino superior, sabia ler e

escrever, e por conta disso havia se ocupado da redação dos processos burocráticos, nas

estruturas administrativas locais das Capitanias do Rio Grande e de Itamaracá. Ambas

Page 263: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

263

as aptidões – saber ler e escrever –, de acordo com Miguel Ángel Extremera, possuía

um sentido incomensurável nas sociedades do Antigo Regime, posto que esses oficiais

servissem como intermediários entre “una minoría culta y una mayoría iletrada”, mas

que faziam parte de “la selecta minoría de ciudadanos que gozaba de un primerísimo

privilegio: la información”.9

Do saber ler e escrever havia decorrido, sem sombra de dúvidas, a rápida

ascensão social vivenciada por Bento Ferreira Mouzinho nas estruturas administrativas

da Capitania do Rio Grande. Isso o habilitaria, posteriormente, a vir ocupar o ofício de

Provedor da Real Fazenda do Rio Grande, bem como barganhar sesmarias, chãos de

terras, patentes militares e diversos ofícios da administração local. Somar-se-ia,

também, a tais privilégios os limites que esse escrivão havia sido capaz de impor à

trajetória de outros agentes sociais, principalmente dos capitães-mores do Rio Grande,

aos quais também se juntaram, mais tarde, já na Capitania de Itamaracá, as vidas de

pessoas “comuns” dessa sociedade no início da segunda metade do século XVIII.

Observou-se nesses conflitos jurisdicionais que quando a negociação não

resolvia, sobremodo por meio do vai e vem de cartas cruzando o Atlântico, a maioria

das quais endereçadas à D. João V, com a finalidade de induzir as determinações régias,

o escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, e os integrantes das diversas

redes clientelares das quais fez parte, lançavam mão do enfrentamento direto. Isso

exemplificaria, conforme havia demonstrado Russell-Wood, que os poderes locais

foram hábeis em se utilizarem ora da negociação com o reino, ora da pressão, sobretudo

quando a primeira alternativa não se coadunasse com os interesses locais.10

A

conflituosa relação entre Ferreira Mouzinho e José Pereira da Fonseca, traduz

pontualmente e fielmente essa dimensão.

As várias desavenças nas quais Ferreira Mouzinho havia se envolvido, ao

longo da primeira metade do século XVIII, muitas das quais provavelmente ele mesmo

houvesse “maquinado”, como corriqueiramente era afirmado e reafirmado pelos demais

oficiais régios implicados nessas pendengas, sinalizavam também para o entendimento

dos limites do mando institucional da Coroa lusitana nas áreas de conquista, ora

9 EXTREMERA, Miguel Ángel Extremera. La pluma y la vida: Escribanos, cultura escrita y sociedad en

la España Moderna (siglos XVI-XVIII). In: Cuadernos de cultura escrita, Año III-IV, 2003-2004. p.

205. 10

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. In: Revista

Brasileira de História [online]. v. 18, n. 36, 1998. p. 187-250.

Page 264: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

264

tendendo a contemporização, ora a violência, mas na esteira das duas situações, se

tivesse mesmo a necessidade maior de assegurar o domínio político sobre aquelas áreas.

Nesse sentido, partir-se-á do método indiciário e onomástico, proposto por

Carlo Ginzburg,11

a fim de se reconstituir a trajetória administrativa de Bento Ferreira

Mouzinho, em meio à documentação esparsa que traz elementos de seu percurso nas

estruturas administrativas locais das Capitanias do Rio Grande. As quais se somavam o

exercício de outros ofícios, como, por exemplo, de juiz de órfãos na adjacente Capitania

de Itamaracá – para onde seria expulso, em meados da década de 1740. O caminho

vencido por esse agente também se daria nas Capitanias da Paraíba e de Pernambuco,

onde, mormente, aquele homem havia se relacionado com outros agentes da

administração lusa e da sociedade colonial.

Reitera-se, mais uma vez, que o percurso de Bento Ferreira Mouzinho

constitui-se emblemático e sintético para a compreensão mais acurada, e a título

exemplificativo, dessa pesquisa. Pontua-se que o caminho trilhado por aquele agente

concatena-se com os problemas e os dilemas mais amplos, que constantemente

irromperam pelo Império. Essa biografia exemplifica, ainda, o universo palpável da

ascensão social na sociedade do Antigo Regime – a partir de uma economia de mercês –

, bem como das táticas empregadas pelos agentes sociais que, no geral, permitiam

pensar as relações espaciais de poder que construíram, entrecortaram e dinamizaram o

tecido social no Antigo Regime.

4. 1 O alvor de um século sombrio

O alvorecer do século XVIII seria marcado por profundas convulsões sociais,

advindas das transformações políticas processadas ainda no final do século XVII, que se

abateram, de forma obscura, sobre os dois lados do Atlântico. No reino, se digladiavam

as correntes políticas, divididas sobre a causa da Sucessão Espanhola que se arrastou de

1703 até 1713 e que, mormente, acabava por embaraçar e, malgrado, indispor a própria

população ao se filiarem ora a Inglaterra, ora a França, que se opunham uma à outra no

11 GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: A micro-história e

outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.

Page 265: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

265

objetivo comum de ascender ao trono de Espanha.12

Nesse meio termo, ainda era vívido

o medo, quase generalizado, de possíveis tentativas de reconquista do território luso por

meio da Coroa espanhola, o que se distanciava sobejamente após a assinatura de

acordos diplomáticos entre a França, Portugal e Espanha, em 1701. Temor esse que se

alastrava, também, em relação às demais monarquias nascentes, como a Holanda e a

Inglaterra.13

Não obstante, ocorria nesse meio termo a reorquestração dos interesses sobre a

América portuguesa, em detrimento da ruína que se processava nas possessões orientais,

o que fazia que a América lusa passasse a ser vista, pela Coroa, com outros olhos no

início do século XVIII, sobretudo no que pesava a dimensão do comércio no Atlântico

sul.14

Esse fato também estaria diretamente ligado à descoberta do ouro na região das

Minas, em 1693, que se por uma lado propiciava a El Rey dispor de novos elementos

para a movimentação da economia de mercês, por outro cedia margem para a

instauração de novas carreiras administrativas, muitas das quais espreitadas como que

em retribuição pela prestação de serviços à Sua Majestade.15

Os primeiros tempos do século XVIII também haviam se caracterizado pela

elevação dos ânimos na América portuguesa, representada pela série de conflitos que se

irradiavam de norte a sul dessa conquista. Mesmo que eivadas por problemas em níveis

locais, cujas implicações também eram de ordem local, as guerras que emergiam pela

América lusa do século XVIII se caracterizavam, de modo geral, pelos reclames dos

conquistadores/colonizadores, transformados em verdadeiros potentados locais, por

privilégios exclusivistas de disporem das terras e dos ofícios da governança local, contra

os interesses de inserção de outros colonos. Isso levava os grupos envolvidos a se

12 ARMSTRONG, Rodrigo Penteado. O POMO DA DISCÓRDIA: A Colônia de Santíssimo

Sacramento e a Rivalidade entre Portugal e Espanha no Sistema Interestatal do Século XVIII. Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. p. 44. 13

Ibidem., p. 51. 14

Luiz Felipe de Alencastro se reportou a crescente importância que o Brasil, conectado juntamente com

as possessões portuguesas na África, sobretudo com Angola, foram adquirindo ao longo dos séculos,

através do estabelecimento de vias comerciais que interligavam entrepostos situados nesses dois lados do

Atlântico. Para saber mais, ver ALENCASTRO, L. F. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no

Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 15

ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. “A conquista do Centro-sul:

fundação da Colônia de Sacramento e o “achamento” das Minas”. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA,

Maria de Fátima S. (Orgs.). O Brasil colonial. v. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 267-

334.

Page 266: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

266

digladiarem entre si. Essas disposições divergiam sensivelmente dos embates do século

precedente que tinham no exercício do mando institucional a principal causa.16

Nesse sentido, na região das Minas, rebentava o conflito que havia ficado

conhecido como a Guerra dos Emboabas, que opusera os paulistas aos adventícios –

luso-brasileiros provenientes de Salvador, Rio de Janeiro, Pernambuco e também do

reino –, entre 1707-1709.17

Na vizinha Capitania de Pernambuco eclodia a Guerra dos

Mascates, que conforme apresentou George Félix Cabral de Souza, tivera a questão

municipal como o elemento chave do conflito, estendendo-se entre 1710 e 1711, ao

opor os endividados senhores de engenho – vincados a elite de Olinda – aos ricos

mercadores reinóis – instalados na Praça do Recife. Esses últimos agentes lutavam pela

redução do termo da Cidade de Olinda, com o estabelecimento da Câmara Municipal da

Vila do Recife.

Os conflitos não findavam por aí. Como havia afirmado Luciano Raposo de

Almeida Figueiredo, em seu estudo Revoltas, fiscalidade e Identidade Colonial na

América Portuguesa, os motins se espraiavam pelo restante das possessões lusas no

ultramar. Exemplo disso foi a Revolta do Maneta, que havia eclodido em Salvador da

Bahia, em 1711, ao envolver questões comerciais como, por exemplo, o monopólio do

sal e a elevação drástica dos impostos. A esse conflito, somar-se-ia outro nessa mesma

capitania, apenas um ano depois do primeiro, ou seja, em 1712, que havia se

caracterizado pelo levante de negros sublevados em Camamu e Maragugipe. Ainda nas

Minas, já em 1717, havia ocorrido uma série de conflitos decorrentes dos embates entre

os potentados do Rio das Velhas. Mais a oeste, ter-se-ia revoltas também no Cuibá, em

Mato Grosso.18

A esses embates somavam-se, desde meados do século XVII, até as

duas primeiras décadas do século XVIII, a Guerra dos Bárbaros, que havia envolvido

as Capitanias do Norte – Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará –, bem como os

sertões da Bahia, ao assolar os territórios situados a oeste da América portuguesa, ao

16 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do

século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 81-82. 17

BRANDÃO, Michelle Cardoso. Forjando status e construindo autoridade: perfil dos homens bons e

formação da primeira elite social em Vila do Carmo (1711-1736). Dissertação (Mestrado em História) –

Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009. p. 69. 18

FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na

América Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1769). Tese (Doutorado em História)

– Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. p. 382.

Page 267: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

267

opor os diversos grupos indígenas que aí residiam à expansão da frente de

colonização.19

Somar-se-ia a isso, em nível local, mas de modo pacífico, que no ano de 1701,

havia ocorrido à anexação da Capitania do Rio Grande à Capitania de Pernambuco.

Conforme havia pontuado Carmen Alveal, esse processo foi proveniente dos interesses

de um grupo local na Capitania do Rio Grande que estava diretamente vinculado com a

açucarocracia, como parte de um projeto mais amplo de sujeição das demais capitanias

“da repartição do Norte” à jurisdição da Capitania de Pernambuco. Coadunar-se-ia, a

essa hipótese, os interesses expansionistas dos envolvidos no processo de

Restauração.20

A isso, se acrescentaria, ainda, as constantes ameaças estrangeiras. De

acordo com Laura de Mello e Souza, “o século XVIII, portanto, teve início sob o signo

da crise, mesmo que em grande parte, o sentido permanecesse encoberto”.21

Foi nesse contexto truculento e eivado de incertezas que, possivelmente,

nascera Bento Ferreira Mouzinho, filho de Antônio Mouzinho.22

Contudo, não se

encontrou seu registro de batismo e nenhum outro documento que fizesse alusão a sua

idade, algo que se leva a conjecturar que ele tenha nascido entre a última década do

século XVII e a primeira década do século XVIII, posto que, como se verá adiante, em

6 de junho de 1715, já se encontrasse registros de sua presença pela Capitania do Rio

Grande.23

Certo foi, que Bento Ferreira antes de partir para a América portuguesa,

encontrava-se preso no Mosteiro de Alcobaça, sob a acusação de assassinato de outro

homem.24

Esse mosteiro estava situado na região da Estremadura, em uma área

caracterizada pela fertilidade de seus solos, e foi uma construção dos Monges

Cistercienses, entre os séculos XII e XIII.25

Alcobaça localizava-se em uma área

19 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e colonização no sertão nordeste do

Brasil (1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da EDUSP, 2002; PIRES, Maria Idalina da Cruz.

Guerra dos Bárbaros: resistência e conflito no Nordeste Colonial. Recife: Fundap/CEP, 1990. 20

ALVEAL, C. M. O. A Anexação da Capitania do Rio Grande em 1701: Estratégia da coroa ou interesse

de grupo da Capitania de Pernambuco?. In: Antonio Filipe Pereira Caetano. (Org.). Dinâmicas Sociais,

Políticas e Judiciais na América Lusa: Hierarquias, Poderes e Governo (Século XVI-XIX). 1ed. Recife:

Editora da UFPE, 2016, v. 1, p. 135-158. 21

SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do

século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.108. 22

Sesmaria concedida a Bento Ferreira Mouzinho, em 19 de outubro de 1719. Plataforma SILB:

RN0401. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 21/10/2017. 23

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720) Fl. 77. 24

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297. 25

GONÇALVES, Maria Beatriz. Os Monges de Alcobaça e a política agrária de D. Dinis. Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1997. p. 110.

Page 268: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

268

delimitada a oeste pelo Oceano Atlântico e a leste pela Serra dos Candeeiros, encravada

na metade do caminho entre Lisboa e Coimbra.26

Possivelmente, foi devido a essa

fisiografia local, recheada de possibilidades, que Bento Ferreira Mouzinho havia

conseguido fugir daquele Mosteiro para a remota Capitania do Rio Grande.27

Salienta-se, ainda, que em 1706 subiu ao trono de Portugal D. João V, do qual

Bento Ferreira Mouzinho foi contemporâneo e de quem, reconhecidamente, obteve

diversas mercês ao longo de sua carreira administrativa nos trópicos que, de forma

limite, havia coincidido com este reinado. O Duque de Bragança havia herdado de seu

pai, D. Pedro II, um reino enfraquecido e sobrecarregado por vultosas dívidas, as quais

foram, mais tarde, saudadas e reequilibradas com o ouro proveniente da região das

Minas. Com o auxílio desse metal, dar-se-ia princípio ao impulso “da indústria

metalúrgica, da fabricação de sedas, de louças e de papel, entre outras”. Mesmo assim,

D. João V havia ficado taxado como “um fanático ensandecido quando realizava a

construção do Palácio de Mafra”.28

4. 2 As origens, a travessia do Atlântico e a chegada ao Rio Grande

Na América portuguesa, como visto anteriormente, as disposições e

vicissitudes sociais e políticas não eram muito diferentes daquelas que haviam afligido

o Portugal reinol no contexto da Guerra de Sucessão, mesmo que por motivações

diversas, assim como, outros eram também os contextos regionais, locais e humanos,

implicados nesses reveses. A menos de uma década, ter-se-ia ocorrido, em 1693, o

descobrimento do ouro, depois de séculos de buscas frustradas. A descoberta desse

metal, conforme havia pontuado Laura de Mello e Souza, era fator de instauração de

desequilíbrios sociais significativos. Exemplo disso foi o estabelecimento dos fluxos de

pessoas de São Paulo, do Rio de Janeiro, da Bahia, do reino e de outras partes do

26 COCHERIL, Maur. Alcobaça: abadia cisterciense de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da

Moeda, 1987. p. 21. 27

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297. 28

RIBEIRO, Maria Dulcyene. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, Matemática e

ensino da Engenharia Militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. Tese (Doutorado em Educação) –

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 10-20.

Page 269: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

269

Império e do mundo para a região das Minas, pelo fascínio do enriquecimento rápido

que das bateias aluviais pudessem advir.29

Contudo, o estabelecimento de vias de mobilidade para o Novo Mundo, muitas

vezes, teve como finalidade o acrescentamento social, como mencionado anteriormente,

ligado sobremaneira à perspectiva de enriquecimento rápido que havia assolado o

ideário de homens e mulheres que não encontravam chances de ascensão econômica em

suas comunidades de origem, mesmo que tal opção também lhes fosse negada nas

regiões mineradoras.30

Outro elemento decisivo na escolha do destino para o qual se

queria rumar, como havia pontuado George Félix Cabral de Souza, foram às redes de

parentesco, que influíam decisivamente antes do transeunte resolver cruzar o

Atlântico.31

Possivelmente, além de estar imbuído pela concepção de acrescentamento

social, Bento Ferreira Mouzinho havia escolhido rumar para a Capitania do Rio Grande,

em meio às inúmeras possibilidades existentes – sobretudo quando se atenta para o

poder de atração que sobre os portugueses exercia a região aurífera das Minas –, talvez,

devido à existência de algum vínculo social ou afetivo. A escolha daquela capitania

podia estar relacionada aos vínculos familiares que o ligavam a algum parente já

instalado no Rio Grande. Sobre essa possibilidade, atenta-se para um requerimento de

título de sesmaria, datado de 26 de abril de 1735, ou seja, vinte anos depois de seu

primeiro registro na Capitania do Rio Grande, no qual Ferreira Mouzinho suplicava ao

Capitão-mor, João de Teive Barreto e Meneses (1734-1739), que lhe passasse carta de

data e sesmaria de seis léguas de terra de comprimento, por uma légua de largura, na

Ribeira do Trairi, a qual havia obtido por meio de compra efetuada aos herdeiros de seu

falecido pai, Antônio Mouzinho, sendo que daquelas seis léguas, três já haviam sido

adquiridas por meio de compra da parte que pertencia ao seu irmão, Manuel Bezerra do

Vale, e a outra parte foi comprada por seu cunhado, Manuel Guedes de Moura, que era

casado com uma filha do falecido. Salientava Bento Ferreira, na mesma petição, que

29 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do

século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 79-81. 30

Ibidem. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal,

2004. 31

SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la câmara

municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca,

Salamanca, 2007. p. 347.

Page 270: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

270

possuía o direito jure domine da referida terra, posto que sua família fosse das primeiras

povoadoras da região.32

Através da análise dessa petição, depreende-se que Ferreira Mouzinho contasse

com a presença de alguns elementos familiares consanguíneos na Capitania do Rio

Grande. No entanto, não se pode precisar a data em que a família havia conseguido a

posse dessa gleba, visto que não se encontrou na documentação consultada nenhuma

referência à data de sesmaria em nome de Antônio Mouzinho. Isso inviabiliza afirmar

que a ida para a Capitania do Rio Grande se havia dado pela presença de seu pai nessa

localidade, ou mesmo que houvessem embarcado, juntamente com esse agente e outros

irmãos para o Novo Mundo. Contudo, verifica-se que Manuel Bezerra do Vale, irmão

de Bento Ferreira Mouzinho, já estivesse fixado na Capitania do Rio Grande desde, pelo

menos 1710. Depreende-se isso, mediante a leitura das justificativas que Bezerra do

Vale havia apresentado para efetuar a solicitação de uma concessão de sesmaria, datada

de 26 de janeiro de 1710. Nessa petição, Manuel Bezerra declarava que já ocupava as

terras pleiteadas, juntamente com Antônio Martins do Vale, há mais de oito anos, cujo

título de posse da referida terra havia pertencido, anteriormente, ao Alferes João do

Vale.33

Isso implicava na presença de Manuel Bezerra desde, teoricamente, 1702.

Vestígio ao qual se devia, possivelmente, a vinda para a Capitania do Rio Grande de

Bento Ferreira Mouzinho, ao fugir dos cárceres de Alcobaça.

Diante disso, conjectura-se que Bento Mouzinho fora impelido, em sua

travessia pelo Atlântico, da possibilidade de reconstrução de sua vida social nos

trópicos, distante das tormentas do crime que havia cometido no reino. Ainda assim, a

realidade social da Capitania do Rio Grande, na altura em que Bento Ferreira nela

aportou, não seria das mais ordeiras da América portuguesa, posto que os locais

estivessem a contemporizar o iminente perigo dos ataques indígenas, que subitamente

se insurgiam pelos sertões daquela capitania, sempre na espreita da Cidade do Natal.

Esse clima de tensão e receio generalizado por toda a Capitania do Rio Grande

era decorrente, do ponto de vista macroscópico, da Guerra dos Bárbaros, que

afugentavam as porções interiores do continente americano, sobretudo no norte da

América lusa, começando desde a Bahia, passando por Pernambuco, Paraíba e chegando

32 Sesmaria concedida a Bento Ferreira Mousinho, em 26 de abril de 1735. IHGRN – Fundo Sesmarias,

Livro III, n. 211, Fls. 96-98. 33

Sesmaria concedida a Manuel Bezerra do Vale e Antônio Martins do Vale, em 26 de janeiro de 1710.

IHGRN – Fundo Sesmarias, Livro II, n. 83, Fls. 43-44.

Page 271: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

271

até o Rio Grande e o Ceará. A Guerra dos Bárbaros seria a denominação concedida à

série de conflitos que havia envolvido os diversos povos indígenas e os agentes

responsáveis pela conquista dos sertões, cujos embates se desenvolveram da segunda

metade do século XVII até as duas primeiras décadas do século XVIII.34

No interior

desse grande conflito motivado pela expansão das áreas de criação do gado, com o

adensamento da povoação do território, têm-se, para o caso da Capitania do Rio Grande,

a Guerra do Açú, responsável pelo processo de territorialização da região banhada pelas

águas do Rio Açú, que entre 1684 e 1720 opusera conquistadores aos grupos indígenas

que se situavam nessa região, para a formação de um novo espaço social na Capitania

do Rio Grande, a partir da implementação da atividade pecuária.35

Nesse contexto, era comum a ocorrência de entradas e de bandeiras, com vistas

ao aprisionamento de índios, sobretudo efetivadas pelos oficiais das companhias de

ordenanças locais, mas também pela tropa paga ou mesmo por companhias de

particulares. Salienta-se que a estrutura militar que agia no Império dividia-se entre a

tropa paga e, portanto, regular, que figurava na 1ª linha e, na 2ª linha, se encontravam as

ordenanças, constituídas por cidadãos empenhados devido à obrigatoriedade dos

vínculos de vassalagem, cujo recrutamento se dava pelos próprios concelhos

municipais. A essas organizações se somavam, em momentos de crise, os terços

auxiliares.36

Assim, como deliberava os preceitos sobre as organizações das tropas no

Império, nas quais deviam servir nas ordenanças “toda a população masculina livre não

recrutada pela tropa de linha, nem pertencente às milícias, entre dezesseis e sessenta

anos, segundo uns autores, e dezoito e sessenta anos, segundo outros”,37

poder-se-ia

compreender o ingresso de Bento Ferreira Mouzinho nessas organizações, no primeiro

registro que demarca sua presença na Capitania do Rio Grande. Aponta-se, ainda, que a

compreensão da estrutura do oficialato das companhias de ordenanças locais seja um

elemento decisivo para o entendimento da própria estruturação da sociedade do Antigo

34 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e colonização no sertão nordeste do

Brasil (1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da USP, 2002. p. 34-35. 35

SILVA, Tyego Franklim. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações depoder na

territorialização do Assu colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 16-17. 36

SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:

Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.

39. 37

Ibidem., p. 61.

Page 272: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

272

Regime na América portuguesa, dado o caráter cada vez mais crescente, que a

militarização passaria a assumir pelo Império.

De acordo com Kalina Vanderlei, o enquadramento funcional de toda a

população urbana – com exceção dos escravos – e, portanto, da massa livre, nas

hierarquias militares das companhias de ordenanças locais, foi o principal elemento

responsável pelo caráter militarizado que pintava a administração institucional, mas

também toda a sociedade colonial.38

Indicativo dessa impregnação da sociedade pela

dimensão militar, poderia ser visualizada na leitura que os elementos sociais faziam de

si mesmos e dos outros. Percebe-se isso, quando se observa na documentação que o

tratamento dispensado aos agentes passava corriqueiramente pela referência às patentes

que detivessem no interior das hierarquias milicianas, quer fossem da tropa paga ou da

tropa burocrática.

Ainda conforme pontuou Kalina Vanderlei, a situação de militarização da

sociedade proviria da mesma feição que grassava na sociedade portuguesa reinol que,

sem sombra de dúvidas, havia se estendido para o além-mar.39

Graças a isso, reverbera

aquela autora, a Coroa lusitana pôde assegurar o domínio do mando institucional nas

diversas partes da sociedade colonial.40

Diante disso, têm-se que Bento Ferreira Mouzinho, certamente por ser

encontrar em idade apta, pouco depois de aportar à Capitania do Rio Grande, o que

havia acontecido em 1714, como deixa entrever uma carta de Bento Mouzinho escrita à

D. João V, em 1739, na qual esse agente afirmava ter “vinte e cinco anos nesta

Capitania sempre em ofícios e lugares públicos de escrivão do judicial e da Câmara,

provedor comissário dos defuntos e ausentes, juiz de órfãos, escrivão da Fazenda Real e

agora provedor dela”.41

seria provido, em 6 de junho de 1715, no posto de Alferes da

Companhia de Ordenança de João Carvalho de Lima, na Ribeira do Potengi.42

Esse

provimento foi efetuado pelo então Capitão-mor do Rio Grande, Domingos Amado

(1715-1718) que, exatamente um ano antes, em 6 de junho de 1714, seria nomeado para

38 SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:

Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: 2001. p.

66. 39

Ibidem., p. 56. 40

Ibidem., p. 44. 41

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 211. 42

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720) Fl. 77.

Page 273: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

273

o comando geral da referida Capitania.43

Pontua-se que essa provisão de Ferreira

Mouzinho para o posto de alferes, teria sido manuscrita por Estevão Velho de Melo que,

no momento, exercia a serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal. Com esse

agente, verificar-se-ia, ao longo das décadas de 1720 até o início de 1740, nexos a

interliga-lo à Bento Ferreira Mouzinho.

Como visto acima, Bento Mouzinho passaria a figurar no quadro miliciano

local da Capitania do Rio Grande no posto de alferes, sua nomeação ocorria em face do

afastamento de Gonçalo de Freitas que o exercia anteriormente.44

Com essa patente,

deveria, juntamente com um sargento-mor, servir de oficial auxiliar ao capitão-mor de

ordenanças responsável pela companhia da qual fazia parte.45

Ressalta-se, ainda, que ao

capitão-mor de ordenanças coubesse à escolha ou a indicação do alferes e do sargento-

mor que os auxiliaria, garantindo-lhes que muitos dos providos fossem elementos de sua

inteira confiança.46

Diante disso, conjectura-se que após aportar na Capitania do Rio

Grande e, talvez, devido aos possíveis vínculos familiares que já existissem nessa

localidade, Bento Ferreira Mouzinho seria uma das pessoas de confiança do Capitão

João Carvalho de Lima, pois o teria provido nessa patente para servir-lhe de auxiliar no

comando da Companhia da Ribeira do Potengi. Evidencia-se o prestígio da ocupação

que coubera a Ferreira Mouzinho, dado que, teoricamente, cada companhia de

ordenança seria composta por 10 esquadras de 25 homens,47

o que lhe conferiria não

apenas poder simbólico por meio de sua patente, mas também prestígio social e político.

Conforme José Eudes Gomes chamou a atenção, a própria estrutura

hierárquica dessas companhias de ordenanças refletia a divisão social prescrita pela

organização estamental lusitana do Antigo Regime. Corrobora-se, com isso, que a posse

de terras seria o vetor de acesso as insignes dos postos superiores de comando das

companhias de ordenanças e, consequentemente, de distinção social. Isso decorria do

fato de as câmaras municipais serem as responsáveis pelo provimento das patentes de

capitão-mor de ordenanças, as quais cabiam aos indivíduos que fossem senhores de

43 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 77 .

44 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720) Fl. 77. 45

GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará

setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 46

Ibidem. 47

Ibidem, p. 58.

Page 274: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

274

terras na mesma localidade.48

Mesmo nesses casos, o capitão-mor era responsável pela

indicação de todos os oficias sob seu comando, com confirmação régia ou do capitão-

mor ou governador-geral, a essas autoridades coube à concessão das patentes apenas aos

senhores da terra, dado o efeito político dessas trocas, sem o devido serviço d’Armas.

Neste final do XVII, as patentes passaram a ser mais vigiadas e sua distribuição

diminuída.49

Contudo, reitera-se, que não se encontrou na documentação consultada, posse

de terras pelo Capitão João Carvalho de Lima – que havia provido Bento Ferreira no

comando de alferes. Isso sinalizaria para a frouxidão que as prescrições legais

enfrentavam quando se chocavam com as realidades locais.

Seis meses após a nomeação para o posto de alferes de uma Companhia de

Ordenanças, em 22 de dezembro de 1715, Bento Ferreira Mouzinho seria provido pelo

Capitão-mor do Rio Grande, Domingos Amado – o mesmo que teria confirmado a sua

nomeação na patente de alferes –, para os ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de

tabelião do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande.50

Com esse

provimento, Ferreira Mouzinho passaria a integrar o núcleo da principal agência de

representação das elites locais da Capitania do Rio Grande, mesmo que investido em

um ofício não honorável, sobreviria figurar entre os indivíduos da governança da terra,

algo que por si só, lhe conferiria prestígio e distinção social. Somar-se-ia, ainda, com o

ingresso de Bento Ferreira na escrivania camarária do Natal, a possibilidade de esse

agente se inserir nas redes de poder local, onde invisivelmente também estavam os

potentados locais, a movimentarem-se no tabuleiro político da capitania.

Com aquela provisão, o novo escrivão da Câmara do Natal, o Alferes Bento

Mouzinho, passaria a dividir o cotidiano institucional com os membros da nobreza

local. Integrava-se, assim, aos dois principais polos de poder da Natal Setecentista, que

fossem: a câmara e as companhias de ordenanças locais. Dessa inserção na escrivania

camarária, dar-se-ia princípio as amistosas relações que o vincularia aos elementos das

principais famílias locais e das quais, possivelmente, obteria dividendos simbólicos e

materiais, como se verá adiante.

48 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará

setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 49

Ibidem., p. 132-133. 50

Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06

(1713-1720), Fl. 77 v.

Page 275: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

275

Observa-se também que sua investidura no ofício de escrivão concelhio

somente teria ocorrido após haver sido designado para o comando de alferes. Disso,

deduz-se que o provimento em determinados ofícios camarários fosse diretamente

dependente da nomeação do agente social para uma patente importante na hierarquia

das ordenanças locais. Isso ocorria, talvez, a partir de um mecanismo de

retroalimentação desse sistema, no qual galgar um determinado ofício camarário fosse

condicionado ao indivíduo deter um posto específico nas ordenanças e, conforme isso

fosse ocorrendo, poder-se-ia chegar a outras ocupações de maior prestígio social e

influência política nas localidades. Acrescenta-se a isso, que no levantamento do perfil

social dos escrivães concelhios da Câmara do Natal, entre 1613 e 1759, vistos no

capítulo anterior, não se observou o exercício do ofício de escrivão dessa edilidade

sendo concedido a indivíduos que estivessem, quando da nomeação, a ocupar postos

inferiores ao de alferes, nas companhias de ordenanças.

Corroboraria essa hipótese, que dentre as justificativas apresentadas pelo

Capitão-mor Domingos Amado (1715-1718), para o provimento do Alferes Bento

Ferreira naqueles ofícios, figurasse a ressalva de que além de ser uma pessoa de

satisfação e merecimentos “pela boa informação que dele deram os oficiais da câmara e

por ter já servido o dito ofício de tabelião com boa satisfação”.51

Dessa maneira,

depreende-se que Ferreira Mouzinho houvesse, em algum momento não muito distante,

servido no tabelionado da Cidade do Natal. Provavelmente, isso teria ocorrido antes de

sua nomeação para o posto de alferes de ordenança, o que o inabilitou a exercer a

escrivania camarária do Natal, pois como o Capitão-mor, Domingos Amado (1715-

1718), teria afirmado no mesmo documento, ambos os ofícios andavam anexos um do

outro.52

Observa-se também que o anterior ocupante da escrivania camarária do Natal,

o Capitão Estevão Velho de Melo – o mesmo que teria redigido a nomeação de Bento

Ferreira para o posto de alferes de ordenança –, detivesse, quando de sua saída daquele

ofício, uma patente superior a de Bento Ferreira Mouzinho.53

Nesse sentido, como

pontuou José Eudes Gomes, a patente de capitão de ordenança seria concedida,

geralmente, a agentes que detivessem a posse da terra, o que representaria a

51 Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06

(1713-1720), Fl. 77 v. 52

Ibidem. 53

Ibidem.

Page 276: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

276

“preocupação régia em respeitar a autoridade representada pelo senhorio das terras”.54

Essa situação demonstraria como o poder miliciano – representado nesse caso pela

posse de patentes das companhias de ordenanças –, o poder camarário – mediante o

exercício dos ofícios dessa instituição e nesse caso em apreço da escrivania camarária,

que seria de caráter eminentemente patrimonial – e a posse de terras, estavam

indissociavelmente imbrincados na constituição do perfil social da elite política da

Capitania do Rio Grande, dada a fusão entre esses três elementos.

A primeira provisão do Alferes Bento Ferreira Mouzinho para o ofício de

escrivão concelhio, assinalaria também para o caráter patrimonial de ambos. De acordo

com as informações do Capitão do Rio Grande, Domingos Amado (1715-1718), o

tabelionado do público, judicial e notas dessa capitania, bem como a escrivania

camarária do Natal, eram ofícios anexos um do outro.55

Como se discutiu no capítulo

anterior, a propriedade desses ofícios foi concedida, em dois diferentes períodos do

século XVIII, a dois indivíduos.

No momento que o Alferes Bento Ferreira havia assumido a serventia de

ambos os ofícios, a propriedade deles pertencia, desde 16 de outubro de 1704, ao

Cavaleiro do Hábito de São Bento de Avis, Francisco Álvares de Lima, radicado em

Lisboa, que então estaria a exercer o ofício de tesoureiro dos bens dos confiscados na

Junta da Inconfidência,56

na Corte. No entanto, Álvares de Lima para garantir a

concessão da carta de propriedade dos ofícios de escrivão da Câmara do Natal e de

tabelião público do Rio Grande, estabeleceu, em 28 de março de 1705, João Baptista

Campeli e Paulo Campeli de Azevedo procuradores com plenos poderes sobre os

mesmos e inclusive com a capacidade de substabelecer outros procuradores.57

Ante isso,

nove meses depois, em 19 de dezembro de 1705, os Campelis haviam substabelecido

Manuel de Melo e Albuquerque como mandatário na Capitania do Rio Grande, também

gozando das prerrogativas de plenos poderes sobre aqueles ofícios.58

Possivelmente, Manuel de Melo e Albuquerque ainda seria o procurador

substabelecido de Francisco Álvares de Lima, sobre os direitos da propriedade do ofício

54 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará

setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 55

Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77 v. 56

Ibidem., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 74. 57

Ibidem. 58

Ibidem.

Page 277: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

277

de escrivão e de tabelião público, em 1715. Afirma-se isso, pois a outra procuração

identificada, com as mesmas conotações e regalias da anterior, somente foi encontrada

após a escolha do novo proprietário desses ofícios, em dezembro de 1717, quando El

Rey havia escolhido, por meio de edital, o Comissário Geral de Cavalaria do Recife,

José Ribeiro Riba, por falecimento de Francisco Álvares, sem que deixasse herdeiros.59

Quando da nomeação do Alferes Bento Mouzinho para as serventias desses ofícios, em

22 de dezembro de 1715,60

servia nesse mesmo ano de almotacé da Câmara do Natal, o

Comissário Geral de Cavalaria, Manuel de Melo e Albuquerque,61

após uma estada de

seis anos consecutivos no ofício de vereador da Câmara do Natal.62

A escolha do Comissário Manuel de Melo e Albuquerque, enquanto procurador

com plenos poderes sobre a escrivania camarária do Natal e do tabelionado público do

Rio Grande, do Alferes Bento Ferreira Mouzinho, demarcaria, com alguma

probabilidade, o início dos laços que vincularam esse escrivão a Manuel de Melo e a sua

grande parentela, que contribuiria, inclusive, para a formação de uma rede clientelar

mais extensa. A atuação dessa rede marcaria profundamente o caráter de instabilidade

social e política na Capitania do Rio Grande na década de 1720, ao disputar com outra

facção local a hegemonia política pelos ofícios honoráveis do Concelho da Cidade do

Natal, sobretudo os de juiz ordinário.

4.3 “Causando bandos e fomentando inimizades diabólicas”

Ao que parece, a saída de Estevão Velho de Melo da escrivania da Câmara do

Natal, seguida da entrada de Bento Ferreira Mouzinho, seria na verdade um desiderato

das disposições do então Provedor da Fazenda Real do Rio Grande, João da Costa e

Silva, juntamente com o Capitão-mor Domingos Amado. Como se verá adiante, esses

três agentes formaram, juntamente com Estevão Velho de Melo, uma rede clientelar,

que havia se caracterizado, pela prestação mútua de serviços materiais e mesmo

59 Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, Códice 21. Livro de

Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl. 244-246. 60

Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77 v. 61

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0708, Fl.(s)

102-102v. 62

Ibidem., p. 96, 106, 117, 119, 125.

Page 278: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

278

simbólicos. Na contrapartida dos quais, se teria a submissão política, como apontou

Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, onde figuraria o “effectus em troca

de affectus”.63

Essa seria, possivelmente, a primeira rede de apoio político na qual Bento

Mouzinho havia se filiado. A primeira de muitas, pois, como se verá adiante, esse gente

estabeleceria várias outras alianças, mesmo que nas palavras do Capitão mor João de

Teive Barreto e Menezes, em carta à D. João V, em 3 de dezembro de 1739, fosse, na

verdade, “causando bandos e fomentando inimizades diabólicos”.64

Segundo Raphel Bluteau, o termo “bando” se referia a “[...] partido, partes,

parcialidade [...] ser do bando de alguém [...] ser do mesmo bando, facção”.65

A partir

disso, se pode pensar que Bento Mouzinho foi extremamente hábil no estabelecimento

de grupos políticos pela Capitania do Rio Grande. Coligações essas que mudaram ao

sabor das circunstâncias conforme os interesses do próprio Ferreira Mouzinho. A

passagem da carta do Capitão mor, João de Teive, assinala, ainda, que a formação

dessas facções políticas jogava também com a instauração de intrigas e ingerências

entre seus membros, cujo responsável por orquestrar essas tramas seria o próprio Bento

Mouzinho.66

Assinala-se, ainda, que mesmo que a primeira provisão de Bento Ferreira

Mouzinho tenha ressaltado a atuação satisfatória, como afirmava o Capitão-mor

Domingos Amado (1715-1718), quando se referiu ao desempenho desse agente no

tabelionado público da Cidade do Natal – antes de assumir esse ofício de forma

conjunta com a escrivania camarária, em 1715 –, verificou-se também que aquele

documento houvesse omitido a conduta tabelional irregular de Ferreira Mouzinho.

Destaca-se que esse alferes, quando assumiu sua primeira provisão no ofício de tabelião

público, ter-se-ia envolvido em uma contenda litigiosa, ao culpar o Aferes Antônio

Barbosa, do assassinato do Coronel Manuel Nobre67

cujos verdadeiros criminosos

haviam sido Manuel Correia Pestana e seu cunhado, Gregório Oliveira da Costa.68

63 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,

António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

p. 143. 64

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297. 65

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...

Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. v. 2. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>. Acesso em: 03/03/2018. Ver verbete “bando”. 66

AHU-RN, loc. cit. 67

Ibidem., Cx. 03, Doc. 211. 68

Ibidem., Cx. 05, Doc. 297.

Page 279: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

279

O Capitão Manuel Correia Pestana havia sido vereador da Câmara do Natal,

eleito para o mandato de 1713,69

não assumindo o honorável ofício posto que houvesse

sido provido para almoxarife da Fazenda Real nesse mesmo ano.70

Além disso, Manuel

Pestana era casado com Úrsula Ferreira de Melo, filha de Estevão Velho de Melo – com

quem Correia Pestana também contemporizava nas lides burocráticas da Real Fazenda,

ao exercer o ofício de almoxarife –71

e de Joana Ferreira de Melo.72

Assim, decorria

disso, provavelmente, o fato do tabelião público, Bento Ferreira Mouzinho, haver

isentado de suas culpas Manuel Pestana e seu cunhado, Gregório de Oliveira, quando do

crime que haviam cometido. Essa situação, curiosamente, demonstra o sobrepeso das

relações clientelares do Antigo Regime, visto que Estevão Velho de Melo

“compensaria” o favor prestado por Bento Ferreira Mouzinho, pouco tempo depois, ao

isentar seu genro, Correia Pestana, do crime de assassinato que havia cometido, ao lhe

deixar vaga à serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal, que acumulava

juntamente com escrivania da Fazenda Real, desde 1713, por sua “própria vontade”.73

Essa situação caracterizar-se-ia como sintomática da indissociação, que

prevaleceu na sociedade do Antigo Regime, entre os interesses da esfera pública e da

esfera privada, onde quase sempre prevaleciam as vontades familiares. De acordo com

Sérgio Buarque de Holanda, essas foram as características que haviam demarcado o

perfil do “funcionário patrimonial”, dado que a gestão política seria caracterizada pela

presença de interesses escusos, no mais das vezes pessoais, mas não objetivos, como

ocorria no Estado Burocrático.74

No entanto, deve-se considerar, conforme os

apontamentos de António Manuel Hespanha, que a presença dos interesses familiares

amoldando o direcionamento institucional não seria de todo ilegítimo, visto que a

compreensão da instituição familiar se constituía de maneira modelar na experiência

69 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0628, Fl.(s)

068v-069. 70

Ibidem., Doc. 0655, Fl.(s) 080v-081. 71

Ibidem., Doc. 0837, Fl.(s) 004. 72

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1727-1740. 73

Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77 v. 74

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p. 207-

208.

Page 280: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

280

social. Disso provinha toda a série de obrigações morais e jurídicas que tocavam aos

integrantes de um mesmo clã em qualquer situação que estivessem.75

Talvez, em face dessas regras que permeavam o tecido social mais amplo,

sobre as obrigações dos integrantes de uma mesma estirpe, assim como da forma de

proceder do Capitão Estevão Velho de Melo, que havia interferido – mesmo que a custa

da penalização de um inocente –, pela estabilidade social de sua família, ao trocar a

serventia de um ofício na administração local por um favor prestado, não fosse de todo

compreendida como imoral pela sociedade. Disso, possivelmente, decorresse a

possibilidade de Bento Ferreira Mouzinho, mais uma vez, servir não apenas de tabelião

público, mas também de escrivão camarário do Natal. No entanto, mesmo que houvesse

conseguido novamente ser provido no tabelionato da Cidade do Natal, Mouzinho teria

abandonado essas atividades após se filiar ao partido do Capitão Estevão Velho,

libertando seu genro, Manuel Pestana, da penalização do crime que havia cometido,

imputando-o a Antônio Barbosa.76

Após isso, Bento Ferreira Mouzinho recolheu-se aos

sertões do Rio Grande, largando o ofício de tabelião por medo de visita do corregedor

da capitania.77

Transcorrido algum tempo para que aquele delito caísse no esquecimento,

afirmava o então Capitão-mor João de Teive Barreto e Menezes (1734-1739), em 03 de

dezembro de 1739, Bento Ferreira havia retornado a solicitar a serventia do ofício de

tabelião, ao qual se juntava a escrivania camarária do Concelho do Natal. Segundo

aquele capitão-mor, essa situação se deu com certa facilidade, devido a ambos os ofícios

possuírem rendimentos anexos.78

Assim, o Alferes Bento Ferreira Mouzinho havia

conseguido a primeira provisão para a serventia do ofício de escrivão da Câmara do

Natal, em 22 de dezembro de 1715,79

no qual permaneceria servindo, continuamente,

até 1732.80

75 HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos

histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social. v. 28. 1993. p. 951, 954, 955,

957. 76

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297. 77

Ibidem. 78

Ibidem. 79

Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77 v. 80

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 1125, Fl.(s)

123v.

Page 281: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

281

Após dois anos de efetivo desempenho na serventia da escrivania camarária do

Natal, em 15 de maio de 1717, o Alferes Bento Ferreira Mouzinho seria agraciado com

patente de Tenente de Cavalos das Ribeiras de Goianinha, Cunhaú e Mipibú.81

De

acordo com António Manuel Hespanha, essas companhias de cavalos serviram para

processar o enquadramento militar – em certo sentido, diferenciador das companhias de

infantaria – dos componentes dos núcleos das edilidades.82

Ressalta-se, conforme as

ponderações desse autor, que o desempenho desses postos milicianos, em nível local,

não era passível de se auferir ganhos monetarizados, pois seus proveitos advinham da

honra que seria conferida aos titulares, sobretudo aqueles de altas patentes.83

Infere-se

dessas ponderações, que em 1717 o escrivão da Câmara Bento Ferreira Mouzinho seria

reconhecido publicamente como um elemento da governança local, pois estaria em uma

companhia que seria ocupada preferencialmente por homens de cabedais significativos,

sobretudo daqueles que compunham os ofícios de cúpula das edilidades – como juiz

ordinário, vereador e procurador.

Evidencia-se que a promoção do escrivão concelhio do Natal, o Alferes Bento

Ferreira Mouzinho, para o posto de tenente de Cavalos estivesse diretamente

relacionada com as trocas de favores processadas entre esse agente e outros integrantes

de sua rede clientelar, nesse caso, especialmente com Manuel de Melo e Albuquerque,

já que esse agente foi sido provido, em 20 de agosto de 1706, para o posto de Capitão

de Infantaria de Cavalos das Ribeiras de Goianinha, Cunhaú e Mipibú,84

onde estaria

servindo quando Bento Ferreira ascendeu ao posto de tenente de cavalos da mesma

companhia e dos mesmos distritos. Assim, como visto anteriormente, aos capitães das

companhias seria facultada a escolha dos oficiais que os auxiliavam no comando do

regimento.85

A partir dessa diretiva, pode-se compreender que as companhias de

ordenanças, conforme apontou Maria Fernanda Bicalho, haviam se constituído em uma

fonte autônoma de poder em nível local.86

Ainda mais quando se visualiza que o

81 Fundo Documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do senado da câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77 v. 82

HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. nota 20, p. 198. 83

Ibidem.,. p. 191. 84

Fundo documental do IHGRN, op. cit., Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 100. 85

GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará

setecentista. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 58. 86

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003. p. 376.

Page 282: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

282

provimento em seus quadros dar-se-ia através dos favoritismos, que embasavam as

relações sociais nas estruturas mentais do Antigo Regime, e que, não raras vezes, além

de poder simbólico, prestígio e status, a concessão de patentes de ordenanças

funcionava no sentido de cooptar indivíduos para as redes clientelares, ao jogarem com

suas vaidades pessoais de ganho de poder simbólico, possíveis através da barganha de

patentes das ordenanças.

Mas seria através de sua nomeação para a patente de Capitão de Infantaria de

Ordenança da Ribeira de Goianinha, concedida em 13 de agosto de 1718,87

que se pôde

averiguar a lista de serviços que o então Tenente de Cavalos, Bento Ferreira Mouzinho,

havia prestado a El Rey desde que houvesse aportado na Capitania do Rio Grande, como

forma de justificar a nomeação para a graduação de Capitão de Infantaria que estaria a

pleitear. Nesse rol, enumerava-se a participação militar de Ferreira Mouzinho nas

companhias de ordenanças pelas quais havia passado. A primeira gradação que havia

ocupado nessas organizações, a serviço de Sua Majestade, foi no posto de soldado e

depois de alferes da Companhia da Ribeira do Potengi.88

Assim, com as patentes de soldado e de alferes, Bento Ferreira havia feito

diversas entradas aos sertões da Capitania do Rio Grande, muitas custeadas por ele

mesmo, mas sempre a guerrear contra o “gentio bárbaro”, em várias ocasiões que

haviam sido necessárias.89

A carta patente para o posto de Capitão de Infantaria, pintava

Ferreira Mouzinho como sendo “muy obediente aos seus oficiais maiores, dando inteiro

cumprimento em tudo que por eles foi ordenado com muito honrado procedimento”.90

Acrescentava essa carta, que no momento de sua expedição, em 13 de agosto de 1718,

Mouzinho estivesse a ocupar a patente de tenente de cavalos, bem como servindo no

Senado da Câmara do Natal, na condição de escrivão dessa instituição.91

Por tudo isso, se justificaria a concessão do posto de Capitão de Infantaria da

Ribeira de Goianinha à Bento Ferreira Mouzinho. Percebe-se que esse tipo de carta –

cuja tipologia denomina-se de carta patente –, configura-se como uma espécie de

memorial dos serviços militares prestados, além de que muito jogavam com a questão

da memória e da representação que seus providos tinham quanto as suas próprias

87 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 99v. 88

Ibidem. 89

Ibidem. 90

Ibidem. 91

Ibidem.

Page 283: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

283

trajetórias pessoais. A carta, não raro, seria o lugar reservado para a descrição daquilo

que abrilhantava os percursos militares dos candidatos a uma patente mais alta. Assim,

ao mesmo tempo em que a carta patente fazia lembrar, de maneira inversa, promovia o

esquecimento. Atenta-se a isso, pois nesses relatos não constavam as motivações que

haviam impelido Ferreira Mouzinho a rumar para os sertões do Rio Grande – que como

visto no início desse capítulo, se remetia aos crimes que primeiro teria cometido no

reino e, no segundo momento, quando havia incorrido em delito no ofício de tabelião

público, durante o exercício da primeira provisão para o tabelionado. Por fim, reitera-se

que a carta patente do posto Capitão de Infantaria, não fizesse referência alguma a vida

pregressa de Mouzinho no reino.

Infere-se, a partir da leitura desse documento, que Bento Ferreira Mouzinho,

possivelmente, não gostasse de rememorar seu passado obscuro na Corte. Afinal, isso

poderia lhe trazer restrições quanto ao sucesso de suas ambições. A partir dessa carta

patente, compreende-se que a vida social daquele agente havia começado no Novo

Mundo, com suas ações valorosas nos rompantes conflitos que o opusera aos índios, nas

diversas patentes que até então havia se ocupado nas companhias de ordenanças locais,

prestando relevantes serviços a El Rey e no exercício da escrivania da câmara

municipal. Esses serviços, mais tarde, lhes serviriam como moeda de troca, no contexto

da economia de mercês, que movimentava e dinamizava o Império, para a obtenção de

benesses reais, as quais se haviam se configurado como a base estruturante da cultura

política, na sociedade portuguesa do Antigo Regime.

Esse percurso inicial de Bento Ferreira Mouzinho, nas estruturas

administrativas e milicianas locais da Capitania do Rio Grande – assim como toda a sua

trajetória na administração ultramarina –, seria um caso emblemático para se perceber,

como afirmou Maria Fernanda Bicalho, o universo de possibilidades que as conquistas

das áreas d’além-mar haviam passado a oferecer, não apenas para a Coroa lusitana, mas

também aos vassalos, sobretudo devidas às diversas demandas por prestação de serviços

militares à El Rey que, na sequência, foram arrolados a fim de se receber as tão

desejadas mercês régias.92

Pois, como acrescenta Maria de Fátima Silva Gouvêa,

92 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América

portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. In: Almanack Brasiliense, n. 2, nov., 2005. p. 23.

Page 284: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

284

sempre se fazia algo na espera de uma recompensa, a partir da tríade “dar, receber e

retribuir”.93

Não tardaria para que esses serviços fossem novamente acionados como

justificativas para as extensas solicitações de terras efetuadas por Bento Ferreira

Mouzinho. Assim, ao pleitear a posse de uma data de sesmaria localizada na Ribeira do

Rio Pium, em 19 de outubro de 1719, o Capitão Bento Ferreira, alegaria que além de

não possuir terras para morar, também não as teria para poder plantar ou mesmo para

criar gados.94

Essas terras requeridas por Bento Ferreira confrontavam com as sesmarias

de outros senhores de origem reinol como, por exemplo, Antônio Lopes de Lisboa95

que havia exercido a escrivania da Câmara do Natal, entre 1679-1688 –,96

e o Coronel

Carlos de Azevedo do Vale.97

Cogita-se, possivelmente, que existisse algum vínculo

entre esses três reinóis, sobretudo quando se atenta ao último sobrenome do Coronel

Carlos de Azevedo, pois possuía a mesma alcunha do irmão de Bento Mouzinho, o

Manuel Bezerra do Vale. Contudo, não foi possível rastrear a verossimilhança

documental desse vínculo. Em seguida, constata-se no título de sesmaria que dois dias

depois de efetuado o requerimento de posse, em 21 de outubro de 1719, o Capitão

Bento Ferreira Mouzinho havia obtido a carta de doação da gleba de terra, em

deferimento que dela fez o Capitão-mor, Luiz Ferreira Freire (1718-1722).98

Aponta-se que essa carta de solicitação de título de sesmaria, havia passado

também pelas mãos do Provedor da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande, João da

Costa e Silva, e do escrivão da Fazenda, Estevão Velho de Melo.99

De acordo com o

Capitão-mor João de Teive Barreto e Meneses (1734-1739), em carta à D. João V, de 03

de dezembro de 1739, Bento Ferreira Mouzinho havia “caído nas graças” do então

recém-nomeado Provedor Costa e Silva, o qual lhe introduziu “por errado” e pela

93 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos.

Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,

jan.- jun., 2004, p. 121. 94

Carta de sesmaria doada a Bento Ferreira Mouzinho em 19 de outubro de 1719. Plataforma SILB –

RN 0401. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 19/09/2017. 95

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1761-1769. 96

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 2 (1673

– 1690). Fl. 44v, 106v; LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do

Senado da Câmara do Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no

prelo). p. 24, 28, 32, 35, 39, 43, 45, 48, 51, 55. 97

Carta de sesmaria doada a Bento Ferreira Mouzinho em 19 de outubro de 1719. Plataforma SILB –

RN 0401. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 19/09/2017. 98

Ibidem. 99

Ibidem.

Page 285: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

285

primeira vez no ofício de tabelião público.100

Acrescenta-se a isso, que diante das

relações de troca de favores entre o Provedor Costa e Silva, o escrivão da Câmara do

Natal, Bento Ferreira Mouzinho, o Capitão-mor do Rio Grande Domingos Amado e o

então escrivão da Fazenda Real dessa capitania, Estevão Velho de Melo, haviam

estabelecido uma rede clientelar. Essa seria baseada, possivelmente, na troca de

concessões materiais, mas, além disso, de informações privilegiadas entre esses

representantes das três principais esferas da administração, em nível local, da Capitania

do Rio Grande: a Câmara do Natal, a Provedoria Real da Fazenda e a Fortaleza dos

Santos Reis.

Conjectura-se que esses homens tivessem em comum as suas origens exteriores

à Capitania do Rio Grande, aonde, com alguma probabilidade, haviam aportado quase

de maneira concomitante, como se pode verificar de suas provisões para os ofícios que

exerceram nessa capitania.

Como visto anteriormente, Bento Ferreira Mouzinho era oriundo do reino,101

Estevão Velho de Melo proviria da Freguesia de São Cosme e Damião de Igarassu, na

Capitania de Itamaracá,102

João da Costa e Silva teria arribado no Rio Grande em 1714,

onde havia permanecido até 1719,103

e, por fim, Domingos Amado, que por mais de

dezoito anos serviu a El Rey na Província da Beira e em outras partes do Império, sendo

nomeado para o posto de Capitão-mor do Rio Grande, em 06 de junho de 1714,104

do

qual tomaria posse um ano depois, em 20 de junho de 1715.105

Destaca-se que Estevão Velho de Melo havia passado a servir o ofício de

escrivão da Câmara do Natal em 1713, por solicitação dos oficiais da Câmara do Natal

ao então Capitão-mor do Rio Grande, Salvador Álvares da Silva (1711-1715).106

Pouco

antes de ser nomeado escrivão da Câmara, Velho de Melo teria sido agraciado também

100 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.

101 Ibidem.

102 TRINDADE, João Felipe. O Escrivão da Fazenda Real, Estevão Velho de Mello. Natal, 26 jun.

2012. Disponível em: <https://putegi.blogspot.com.br/search?q=Estev%C3%A3o+Velho+de+Melo>

Acesso em: 13/09/2017. 103

BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Nos trâmites da fiscalidade: Aspectos administrativos da

Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1660-1723). Monografia (Graduação em História) –

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 38. 104

AHU-RN, op. cit., Cx. 01, Doc. 77. 105

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 31. 106

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0665, Fl.(s)

084-084v.

Page 286: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

286

com o provimento para o exercício da almotaçaria, nos meses de setembro e outubro de

1713.107

No ano seguinte, em 1714, Estevão de Melo passaria a exercer a escrivania da

Fazenda Real da Capitania do Rio Grande, por provimentos dos Governadores Gerais

do Estado do Brasil e pelo Governador de Pernambuco, Félix José Machado.108

Nesse meio termo, o Alferes Bento Ferreira Mouzinho foi nomeado para a

escrivania da Câmara do Natal, em 1715.109

Com tudo isso, depreende-se da análise

dessas provisões, que João da Costa e Silva, Domingos Amado e Bento Ferreira

Mouzinho, haviam chegado coetaneamente à Capitania do Rio Grande. Isso, talvez,

fosse indicativo da motivação para o fomento dos laços de amizades, os impulsionando,

em seguida, a elaborarem uma rede clientelar, a interligar os componentes das três

principais estruturas administrativas locais. Soma-se a essa rede, Estevão Velho de

Melo, que havia se fixado nessa capitania havia algum tempo, pelo menos desde 09 de

julho de 1703, quando se constata sua presença na Cidade do Natal, apadrinhando uma

escrava de Manuel Rodrigues Taborda.110

Mas a vinda de Velho de Melo para o Rio

Grande, como apontado no capítulo anterior, havia sido motivada pela prestação de

serviços como cabo de esquadra no Terço Paulista de Domingos de Morais Navarro,111

que tinha como objetivo conter as sublevações do gentio durante a Guerra dos

Bárbaros.

Com a nomeação de Estevão Velho para Capitão de Cavalos, assim como

havia ocorrido com Bento Ferreira Mouzinho e outros escrivães que haviam servido

nesse ofício, entre 1613 e 1759, constata-se que o provimento da serventia da escrivania

camarária da Cidade do Natal, tenha ocorrido, geralmente, em homens que haviam

lutado nos diversos embates e conflitos que, em conjunto, formaram a chamada Guerra

dos Bárbaros.

Ao que tudo indica, se a atuação durante a Restauração portuguesa havia

funcionado, para o caso do ofício de escrivão da Câmara de Natal, como elemento

107 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0647, Fl.(s)

077v-078. 108

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 83. 109

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77v. 110

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP-FIA-CX02. DOC. 0069

(8v). 111

Fundo documental do IHGRN, op. cit., Fl. 45v.

Page 287: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

287

facilitador de acesso a propriedade desse ofício, juntamente com o tabelionado do

público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande, para a serventia dos mesmos se

havia levado em consideração as relações políticas e militares dos contextos locais.

Exemplo disso foi às entradas aos sertões da Capitania do Rio Grande, a luta contra os

indígenas e a consequente expansão daquilo que se denominou no capítulo anterior da

fronteira interna, que separava o mundo civilizado – representado pelo litoral leste do

Rio Grande e onde estavam sediadas as principais instituições do mando português –,

do mundo da barbárie – dito como aquele habitado pelos indígenas e ainda não inserido

na lógica do domínio português. Desse modo, mais uma vez, constata-se que o processo

de conquista/colonização, também passava pela escrivania camarária do Natal, como

um mecanismo que se prestava a fixação dos recursos humanos que vinham contribuir

com o avanço do domínio português para os sertões.

Ao se retornar novamente a rede clientelar sugerida pela constante troca de

favores entre Domingos Amado, Estevão Velho, Bento Ferreira Mouzinho e João da

Costa e Silva, foi verificada, por exemplo, a rápida ascensão que Bento Ferreira

Mouzinho grassou no interior da hierarquia das companhias de Ordenanças. Pois, se

1715 deixaria de ser soldado e passaria a Alferes,112

em 15 de maio de 1717, alçaria ao

posto de Tenente de Cavalos das Ribeiras de Cunhaú, Goianinha e Mipibú,113

ambas as

patentes providas pelo Capitão-mor, Domingos Amado.114

Enquanto isso, para o caso

dos ganhos auferidos através dessa rede clientelar por Estevão Velho de Melo, observa-

se a barganha de um chão de terra na Cidade do Natal, para poder exercer os ofícios que

desempenhava na administração local, como havia alegado em sua petição, datada de 09

de maio de 1716,115

bem como as provisões para o ofício de escrivão da Fazenda Real

da Capitania do Rio Grande.

Adiciona-se, a isso, que aquela solicitação de chão de terra por Estevão Velho

de Melo, bem como seu deferimento, tenha sido redigida por Bento Ferreira

Mouzinho.116

Estevão de Melo havia conseguido também protelar, por provisões

112 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77. 113

Ibidem., Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720 – 1728). Fl. 179v. 114

Ibidem., Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06 (1713-1720). Fl. 77;

Ibidem., Livro 7 (1720 – 1728). Fl. 179v. 115

Carta de chão de terra doada a Estevão Velho de Melo, em 09 de maio de 1716. Plataforma SILB:

RN 1162. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 19/09/2017. 116

Ibidem.

Page 288: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

288

temporárias, efetuadas pelo Capitão-mor Domingos Amado, até 1718 para a sua

permanência no ofício de escrivão da Fazenda Real, enquanto não chegavam às

provisões dos Governadores de Pernambuco ou dos vice-reis do Estado do Brasil.117

Adir-se, ainda, que àquele capitão-mor havia provido Estevão Velho de Melo algumas

vezes na serventia do ofício de escrivão da Câmara do Natal,118

concedendo-lhe,

inclusive, uma patente de capitão de cavalos.119

Não obstante, pondera-se que os ganhos obtidos por Domingos Amado não

sejam passíveis de se verificar documentalmente. Contudo, deve-se inclinar para a

hipótese de que o caráter de acesso privilegiado às informações que eram obtidas pelos

escrivães camarários e da Fazenda, bem do acesso que esses oficiais tinham à memória

institucional, posto que ficassem sob suas tutelas os livros de cartas e provisões, os

livros de rendas e despesas do sendo, as chaves dos cofres da câmara – onde, ficavam

resguardados objetos valiosos, como ouro e joias, mas também as listas dos elegíveis

para os postos honoráveis da câmara120

–, houvessem sido as vantagens obtidas pelo

Capitão-mor Domingos Amado, posto que “relações assimétricas de amizade – relações

de poder – tivessem tendência para derivar em relações do tipo clientelar”.121

Após a saída de Domingos Amado do posto de Capitão-mor do Rio Grande,

em 1718, verifica-se que a rede clientelar formada entre Bento Ferreira Mouzinho, João

da Costa e Silva e Estevão Velho de Melo ainda permaneceria sólida por algum tempo.

No entanto, percebe-se que o grupo vislumbrou a inserção de outro integrante no intuito

de compensar a perda do apoio político de Domingos Amado. O possível comparte que

entraria nesse grupo seria o novo Capitão-mor do Rio Grande, Luiz Ferreira Freire

(1718-1722). Presume-se tal probabilidade, dado que Ferreira Freire nomearia, pouco

depois de sua chegada à capitania, Bento Ferreira Mouzinho para Capitão de Infantaria

da Ribeira de Goianinha.122

117 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 83.

118 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl.44v. 119

Ibidem. 120

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. 2. ed. Lisboa: Fundação Colouste Gulbenkian,

1984. Liv. I, Tít. 71. 121

XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,

António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

p. 340. 122

Fundo documental do IHGRN, op. cit., Fl. 99v.

Page 289: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

289

Outro indicativo da possível tentativa de inserção de Luiz Ferreira Freire

àquela rede clientelar, havis sido o deferimento efetuado por àquele Capitão-mor do

requerimento de 19 de outubro de 1719, no qual Bento Mouzinho, solicitava a posse,

em título de sesmaria, de uma propriedade encravada nas proximidades do Rio

Pirangi.123

Nessa mesma solicitação, verificou-se a influência decisiva que prestou para o

deferimento do pedido do suplicante as ponderações de Estevão Velho de Melo, então

escrivão da Fazenda Real, e do Provedor da mesma, João da Costa e Silva. Pois, quando

Luiz Ferreira Freire requereu informações sobre a situação das terras ao escrivão da

Fazenda, Estevão Velho respondeu que as glebas peticionadas não estavam dadas a

ninguém e que em face do que havia ordenado El’ Rey, as mesmas deviam ser

concedidas a quem, de fato, residisse na capitania, como seria o caso do suplicante,

Bento Ferreira Mouzinho. Tais Alegações foram reafirmadas categoricamente pelo

provedor Costa e Silva.124

Outra tentativa de aproximação entre Luís Ferreira Freire e

Bento Ferreira Mouzinho, foi quando aquele Capitão-mor solicitou à Câmara do Natal a

indicação de pessoas para o ofício de almoxarife, devido ao falecimento de Manuel

Correia Pestana,125

sendo escolhidos os Capitães André Rodrigues da Conceição, João

Moreira e Manuel Guedes de Moura,126

sendo este cunhado e sócio de Bento Ferreira

Mouzinho.127

Tudo isso demonstra a intrínseca associação entre o exercício político dos

ofícios e a barganha de ganhos que deles pudessem advir. Relações essas que eram

regidas por uma lógica clientelar, que se pautavam, de acordo com Ângela Barreto

Xavier e António Manuel Hespanha, na concessão de mercês aos mais amigos e que se

banalizava no cotidiano social, materializando na verdade o princípio das estruturas

sociais.128

123 IHGRN – Fundo Sesmarias, Livro III, n. 198, Fl. 43.

124 Ibidem.

125 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720

– 1728). Fl. 30. 126

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0837, Fl.

004. 127

Sesmaria concedida a Bento Ferreira Mousinho, em 26 de abril de 1735. IHGRN – Fundo Sesmarias,

Livro III, n. 211, Fls. 96-98. 128

XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In: HESPANHA,

António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

p. 339.

Page 290: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

290

No entanto, ao que parece, com a saída de João da Costa e Silva, em 1719, da

Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande,129

a rede clientelar ficaria esfacelada.

Restaria apenas o Tenente Coronel Estevão Velho de Melo e o Capitão Bento Ferreira

Mouzinho. A amizade entre ambos se arrastaria ao longo das décadas de 1720 e 1730,

quando desempenharam simultaneamente os ofícios de escrivão camarário do Natal –

em 1719 e 1725-1726.130

Ou no juizado de órfãos, em 1730, quando Bento Ferreira era

o juiz dessa vara, e Estevão Velho o tesoureiro dela.131

Cogita-se que a amizade entre Estevão de Melo e Ferreira Mouzinho tenha

sobrevivido até a morte daquele, que, provavelmente, teria ocorrido entre às décadas de

1730 e 1740, já que em 1746 seus herdeiros estavam a pedir, por meio de requerimento

a D. João V, que perdoassem as propinas que haviam sido recebidas de maneira

indevida dos contratos dos dízimos da Capitania do Ceará por seu pai, a partir de 1732

em diante.132

Os vínculos entre Bento Mouzinho e Estevão Velho caracterizar-se-ia

como uma amizade inquebrável, mesmo que ao longo desses anos, possivelmente,

estivessem em causa posições políticas distintas.133

Certo seria que Bento Ferreira

Mouzinho se uniria, mais tarde, com outras figuras importantes da Capitania do Rio

Grande, com as quais estabeleceria novas redes clientelares, pautadas numa “economia

de mercês” ou “economia de favores”.134

Com tudo isso, percebe-se que as redes clientelares que haviam interligado

diferentes indivíduos por meio da troca de favores materiais, simbólicos ou a título de

informação, configuraram-se como uma constante no universo local da Capitania do Rio

Grande, no início da primeira metade do século XVIII. Adir-se, ainda, que essas redes

eram justapostas no espaço integrando não apenas os indivíduos, mas também as

instituições nas quais esses agentes estivessem inseridos. Assim, por meio disso, cada

129 BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Nos trâmites da fiscalidade: Aspectos administrativos da

Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1660-1723). Monografia (Graduação em História) –

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 38. 130

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 146; 176; 180. 131

Ibidem, p. 197. 132

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 315. 133

Sobre amizades inquebráveis Xavier e Hespanha apontaram a discussão sobre esse sentimento em

Aristóteles. Para saber mais ver XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes

Clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4.

Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 342. 134

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida.; SANTOS, Marília Nogueira dos.

Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,

jan.- jun., 2004, p. 98.

Page 291: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

291

um dos integrantes das redes clientelares havia contribuído para o engrandecimento e a

solidificação dessas estruturas, através do fornecimento de recursos que estivesse ao

alcance imediato de cada um dos envolvidos, mesmo que para isso lançassem mão de

suas posições políticas no interior das instituições das quais faziam parte, dado que, não

raras vezes, os elementos de troca que reforçavam os vínculos relacionais entre os

membros das redes, foram os dispositivos de benefícios controlados pelas instituições

onde estivessem inseridos. Isso acenaria, ainda, para o próprio processo de formação

das fortunas das famílias no Antigo Regime, lançando mão da apropriação do

patrimônio do erário régio em benefício próprio, sobretudo para fins particulares.

Essa rede formada pelo escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira

Mouzinho, e os demais integrantes – assim como as várias outras que formaria ao longo

de sua trajetória administrativa no além-mar –, sinalizava para a relação indissociável

entre poder e conhecimento na gestão do Império português. Sobre isso, Maria de

Fátima Silva Gouvêa, discutiu o caráter imprescindível das redes de poder e

conhecimento para a sustentação da governação do Império, sobretudo após deslindar a

complexidade das redes familiares, de parentesco e até mesmo comerciais, que

envolviam vários altos oficiais – como, por exemplo, a família Lencastre –, imbuídos do

governo, em diferentes porções do ultramar.135

Assim, com a presente trajetória administrativa do escrivão da Câmara do

Natal, Bento Ferreira Mouzinho, poder-se-ia perceber que as estratégias de que haviam

se utilizado os componentes dos altos círculos administrativos do Império, também

foram constantemente acionados pelos oficiais menores da administração que, situados

localmente, também visualizavam nas redes de poder e conhecimento seu caráter

imprescindível para a garantia da hegemonia do poder político, bem como da

possibilidade de se utilizarem delas para promoção da distinção e da diferenciação

social. Isso seria possível devido ao fato de esses agentes sociais partilharem os mesmos

códigos culturais, provenientes da cultural política do Antigo Regime, que servia de

atmosfera mental e valorativa, bem como de pano de fundo das práticas e das estratégias

tecidas pelos indivíduos e seus grupos, em uma sociedade impregnada pela necessidade

da busca de prestígio, como vetor de enobrecimento.

135 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida.; SANTOS, Marília Nogueira dos.

Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,

jan.- jun., 2004, p. 101-102.

Page 292: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

292

No entanto, como apregoou António Manuel Hespanha, a ascensão social nas

sociedades do Antigo Regime, era demarcada pelo seu caráter extraordinário que apenas

proviria do poder do rei e que, como afirmou aquele autor, “quase não se via; pouco se

se esperava e mal se desejava”.136

Em contrapartida, em face do percurso de Bento

Ferreira Mouzinho, sobretudo de sua rápida ascensão no interior da hierarquia das

ordenanças, como se visualizou anteriormente, percebe-se que mesmo que a chancela

maior dependesse de El Rey para que o indivíduo pudesse galgar a ascensão social na

sociedade do Antigo Regime, os agentes sociais eram capazes de, no plano local,

traçarem estratégias que lhes possibilitassem chegar a serem merecedores das benesses

régias. O caminho trilhado por Bento Ferreira Mouzinho representaria essa

possibilidade, mas também acrescentava a ela que nem sempre seria necessário que Sua

Majestade necessitasse tomar conhecimento do que ocorria no universo local. E como

se viu no início desse texto, possuir uma patente de ordenanças, sobretudo nos postos

mais altos, seria sinônimo de prestígio e de distinção social. Desse modo, pode-se

afirmar que as câmaras municipais e os capitães mores, assim como o rei, também

haviam desempenhado o papel de instrumentos da promoção da mobilidade social nas

estruturas da sociedade do Antigo Regime, configurando-se como vias de agenciamento

retroalimentares, ao passo que os camarários ao concederem chãos de terras e os

capitães mores das capitanias proverem as patentes das companhias de ordenanças

locais, possibilitaria aos agraciados subir nos escalões da hierarquia social e mais

possibilidades lhes eram facultadas no interior da sociedade do Antigo Regime. O

ingresso no ofício de escrivão da Câmara do Natal por Bento Ferreira Mouzinho, logo

após ser provido na patente de alferes, indicaria isso. Sobretudo se se leva em

consideração o caráter miliciano da sociedade Setecentista.

4.4 Família, prestígio e poder

Com essas mesmas conotações, dar-se-ia a segunda provisão do Alferes Bento

Ferreira Mouzinho para o ofício de escrivão da câmara e de tabelião, em 1716, também

136 HESPANHA, António Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. In: Revista

Tempo. v. 11, n. 21, 2006, p. 122-123.

Page 293: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

293

efetuada pelo Capitão-mor, Domingos Amado.137

No entanto, esse ano seria demarcado,

no universo pessoal e familiar de Ferreira Mouzinho pelo nascimento de seu filho

primogênito.138

Para António Manuel Hespanha, “o amor dos pais pelos filhos, era

superior a todos os outros, funda-se no sentimento de que os pais se continuam nos

filhos”.139

Seria a partir dessa concepção, segundo aquele autor, que se fundamentaria a

hierarquização das noções de amor na sociedade do Antigo Regime, confluindo,

inclusive, para o universo jurídico, visto que estaria na base da própria questão

sucessória no momento da transmissão das heranças. Hespanha acrescentaria, ainda, que

“o pai amava mais os filhos do que a mulher”, pelo fato dos filhos representarem a

possibilidade de continuação dos pais e consequentemente de uma mesma casa.140

Nesse sentido, pode-se, a partir dos apontamentos de António Manuel

Hespanha sobre o universo que envolvia o amor filial nas sociedades do Antigo

Regime, inferir a importância do nascimento do primeiro filho para Bento Ferreira

Mouzinho. Contudo, não se existe fontes que fossem possíveis de retratar o significado

desse momento para aquele escrivão, posto que também não se encontrou nem mesmo o

registro de batismo de Rodrigo Guedes Alcoforado Mouzinho. Possivelmente, Rodrigo

não houvesse nascido na Capitania do Rio Grande, mas fosse originário da vizinha

Itamaracá, onde parte significativa da família Guedes Alcoforado, pela ascendência de

sua mãe, Jerônima Guedes, fosse radicada.141

Não obstante, pode-se afirmar que

Rodrigo Guedes iria se fazer presente em alguns momentos críticos, como se verá

adiante, da vida de seu pai. Principalmente, envolvendo-se juntamente com o escrivão

Bento Mouzinho em algumas contendas litigiosas, tanto na Capitania do Rio Grande,

quanto na de Itamaracá.

Reverbera-se que, conforme apontou José Victoriano Borges da Fonseca, em

seu clássico Nobiliarquia Pernambucana, o escrivão e, posteriormente, Coronel Bento

Ferreira Mouzinho, iria constituir uma descendência significativa, ligando-se a

importantes famílias das Capitanias do Rio Grande, de Itamaracá, Paraíba e

137 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77v. 138

Fundo documental do IHGRN. Livro de Assentamento de Praça. Livro 1, Fl. 142. 139

HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos

histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social. v. 28. 1993, p. 955. 140

Ibidem., p. 956. 141

BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4. Mossoró:

Fundação Vingt-Un Rosado, 1993. p. 140.

Page 294: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

294

Pernambuco, mesmo que em alguns momentos os membros dessa organização familiar

houvessem privilegiado o casamento endogâmico. A seguir, no Gráfico 13 apresenta-se

a configuração da rede familiar de Bento Ferreira Mouzinho.

Gráfico 13 - A família do escrivão da Câmara do Natal Bento Ferreira Mouzinho

Gráfico 13. Fonte: Elaborado pelo autor, Abimael Lira.

142

Page 295: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

295

Como se observa no Gráfico 13, o tronco da família da esposa de Bento

Ferreira Mouzinho, remonta a João Guedes Alcoforado – ou João Guedes de Moura –,

possivelmente o bisavô de Jerônima – não se pode afirmar veementemente que fosse

seu avô devido a grande quantidade de homônimos na família. João Guedes de Moura

havia sido designado por carta régia do Rei Felipe III, em 15 de dezembro de 1634, que

levantasse uma companhia de 200 homens, entre as regiões do Douro e do Minho, e

rumasse para a Cidade do Porto, onde havia embarcado para socorrer à Capitania da

Paraíba.143

João Guedes Alcoforado era casado com Catarina de Albuquerque Silva da

Rocha – filha de Afonso Coelho Velho e neta, portanto, de Pedro Coelho Velho –, com

quem tivera quatro filhos, Afonso Guedes Alcoforado, Felipe Guedes Alcoforado,

Pedro Guedes da Silva e João Guedes Alcoforado,144

os quais seguiram com o pai, João

Guedes, no Galeão São Bento para defender a Capitania da Paraíba da invasão

holandesa.145

Segundo Felgueiras Gaio e José Victoriano Borges da Fonseca, o bisavô da

esposa de Bento Mouzinho, João Guedes Alcoforado, havia sido fidalgo da Casa Real,

capitão de infantaria, de cavalos e de mar e guerra durante a Dinastia Filipina. Além

disso, havia servido também no Brasil, como alcaide-mor da Vila da Conceição, na

Capitania de Itamaracá, vindo a falecer em São Tomé, durante o exercício do posto de

governador dessa praça.146

Através desse breve histórico da família de Jerônima Guedes Alcoforado,

pode-se perceber que com esse matrimônio, o escrivão da Câmara do Natal, Bento

Ferreira Mouzinho, ligava-se a uma das famílias mais poderosas da Capitania de

Itamaracá e, mais tarde, da Paraíba que, como se verá adiante lhe traria outros

dividendos materiais e alguns problemas políticos. Assim, Bento Mouzinho também

142 Elaborado pelo autor, Abimael Lira, a partir de BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano.

Nobiliarchia Penambucana. v. 4. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 1993. p. 140; Livro de

Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz de Nossa

Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. Plataforma SILB – Sesmarias do Império

Luso-Brasileiro; Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro

de Casamentos, 1740-1752; AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 229; AHU-PB, Papéis Avulsos,

Cx. 11 Doc. 933; GAIO, Felgueiras. Nobiliário de famílias de Portugal / Felgueiras Gaio (1750-1831).

Braga: Agostinho de Azevedo Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, 1938-1942. v. 17. p. 25; 143

AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 22. 144

GAIO, Felgueiras. Nobiliário de famílias de Portugal / Felgueiras Gaio (1750-1831). Braga: Agostinho

de Azevedo Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, 1938-1942. v. 17. p. 24-25. 145

AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 229. 146

GAIO, op. cit., p. 25; BORGES DA FONSECA, op. cit., p. 409-410.

Page 296: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

296

havia se preocupado com um momento que mais implicações sociais traziam para a vida

pessoal e social dos indivíduos no século XVIII: o casamento. Essa “consciência”,

possivelmente o houvesse impelido a contrair matrimônio com D. Jerônima Guedes

Alcoforado. O próprio epíteto de “dona” que figurava no nome da esposa do escrivão da

câmara seria desde logo indicativo de sua preeminência e posição social, pois as

mulheres que sustentavam essa alcunha eram, em geral, porque detinham a posse de

terras, conforme pontuou Raphael Bluteau.147

Nesse sentido, buscou-se confirmar a posse de terras por D. Jerônima Guedes,

através da qual se averiguou a retenção de uma data de sesmaria, concedida em 03 de

janeiro de 1740, pelo então Capitão mor da Capitania do Rio Grande, Francisco Xavier

de Miranda Henriques (1739-1751).148

Essa carta havia sido peticionada por D.

Jerônima Guedes Alcoforado e por sua filha, Maria Guedes Alcoforado. A localização

da referida gleba situava-se no Riacho Bento Ferreira, na Ribeira do Açú.149

Curiosamente, o topônimo do fluxo fluvial era o mesmo que o do marido e do pai das

requerentes. Reverbera-se que não se identificou a posse de terras por Bento Ferreira

Mouzinho na Ribeira do Açú, porém esse agente foi nomeado em 1736 para a patente

de Coronel da Ribeira do Apodi,150

onde, como se verá adiante, esse agente possuía

interesses comerciais e fiscais ligados à pecuária bovina. Essa data de sesmaria de

Jerônima Guedes sinaliza, ainda, para o jogo de conveniências e vantagens processado

pelas redes clientelares, pois a sobredita carta havia passado também pelo deferimento

do Provedor da Fazenda Real do Rio Grande, o Dr. Teotônio Fernandes Temudo,151

que

seria sócio do marido da requerente nos negócios do imposto do gado do vento, na

Ribeira do Apodi.152

Segundo apontou Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, na Nobiliarquia

Pernambucana, o escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, juntamente

147 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...

Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728. v. 2. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/dicionário/edicao/1>. Acesso em: 31/10/2017. Ver verbete “dona”. 148

CARTA de Sesmaria doada a Jerônima Guedes Alcoforado e Maria Guedes Alcoforado, em 03 de

janeiro de 1740. Plataforma SILB- RN 0488. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca.

Acesso em: 05/03/2018. 149

Ibidem. 150

Fundo documental do IHGRN. Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17

(1728 – 1736). Fl. 159. 151

CARTA de Sesmaria doada a Jerônima Guedes Alcoforado, loc. cit. 152

BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos, Fiscalidade e

Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, v. 5.

n. 9, jan.-jun., 2016, p. 242-243.

Page 297: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

297

com sua esposa, Jerônima Guedes Alcoforado, tinham outros filhos além de Rodrigo

Guedes Alcoforado Mouzinho e Maria Guedes Alcoforado. Dentre esses, poder-se-ia

citar o nome de outros como, por exemplo, Bento Ferreira Guedes, Jerônimo Guedes e

Bernarda Guedes.153

O matrimônio entre Bento Ferreira e Jerônima Guedes, vincularia aquele

escrivão a outras importantes famílias da Capitania do Rio Grande, como por exemplo,

com o oficial da Câmara do Natal, o Coronel Roberto Gomes Torres, que era casado

com D. Isabel Guedes, irmã, portanto, D. Jerônima Guedes e cunhada de Bento Ferreira

Mouzinho. Assinala-se esse vínculo entre Mouzinho e os Gomes Torres, visto que em

diferentes momentos do século XVIII, haviam servido como oficiais honoráveis da

Câmara do Natal o Coronel Roberto Torres e o seu pai, o Coronel Manuel Gomes

Torres.154

Esse havia ocupado o honorável ofício de juiz ordinário da Câmara do Natal,

dentre outras vezes, em 1715,155

quando o Alferes Bento Ferreira Mouzinho havia

ingressado na Câmara do Natal como escrivão.156

Assim, observa-se por meio desse caso, que não existissem limitações para o

exercício da escrivania da Câmara do Natal, de maneira concomitante, com outros

parentes exercendo os honoráveis ofícios concelhios. Outro exemplo dessa mesma

situação envolvendo o Capitão Bento Ferreira Mouzinho, foi que serviria o ofício de

escrivão da Câmara do Natal em 1723 e 1724, simultaneamente com seu sogro, o Juiz

Ordinário João Guedes Alcoforado.157

Essa situação poderia facilitar que os rumos da

administração incorressem para o processo de oligarquização dos ofícios municipais,

como chamou a atenção Nuno Gonçalo Monteiro. De acordo com esse autor as câmaras

tendiam, pelo próprio processo de escolha de seus integrantes a serem cada vez mais

oligarquizadas.158

No entanto, a participação conjunta do Capitão Bento Ferreira Mouzinho, que

exercia a serventia do ofício de escrivão camarário, e seu sogro no de juiz ordinário,

153 FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia Pernambucana. v. 1. In: Anais da

Biblioteca Nacional, vol. XLVII, 1918. p. 140. 154

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 155

Ibidem., Doc. 0733, FL(s) 113-113v. 156

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77v. 157

LOPES, op. cit., p. 164, 169. 158

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as Comunidades. In: HESPANHA, António Manuel

(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Editora Estampa, 1998. p. 288.

Page 298: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

298

implicava na emergência de outras questões. Exemplo disso seria a tendência à fraude

das eleições municipais, dado que cada uma das três chaves do cofre onde se guardavam

os pelouros, como os nomes dos elegíveis, bem como com objetos de valor e as somas

de dinheiro arrecadadas pela câmara, deviam ficar, cada uma, respectivamente nas mãos

do escrivão da edilidade, outra com o juiz ordinário e a terceira com o vereador mais

velho. Posteriormente, discutir-se-á como essas diretivas, estipuladas pela própria

legislação – as Ordenações Filipinas (1603-1917) – foram capazes de condicionarem a

escolha dos integrantes da cúpula camarária do Natal na década de 1720.

Adir-se, ainda, que o filho primogênito do escrivão da Câmara do Natal,

Rodrigo Guedes Alcoforado Mouzinho, associar-se-ia ao seu pai, Bento Ferreira, já na

década de 1740, em algumas querelas acerca da arrematação dos Contratos do Gado do

Vento – imposto pago pelos proprietários dos animais que não fossem registrados –, na

Ribeira do Apodi, juntamente com outros sócios do dito escrivão, em um movimento

que ficaria conhecido na historiografia como Revolta dos Magnatas.

4.5 “O principal agressor de tão atroz delito”

Após o esfacelamento da primeira rede clientelar, o escrivão da Câmara do

Natal, Bento Ferreira Mouzinho, se aliaria a Manuel de Melo e Albuquerque nas peitas

contra o novo Capitão-mor do Rio Grande, Luís Ferreira Freire (1718-1722), cujo

estopim teria sido o fato de esse capitão haver tomado por amásia uma sobrinha de

Manuel de Melo e Albuquerque. Em linhas gerais, este conflito foi esboçado por

Marcos Arthur Viana da Fonseca, ao realizar um levantamento historiográfico sobre o

governo de Luís Ferreira Freire e, contando com outros conjuntos documentais,

concedeu inteligibilidade distinta aos embates entre os oficiais camarários e aquele

capitão-mor, segundo o qual a administração de Ferreira Freire teria ocorrido pelo apoio

militar de seus subordinados.159

Ainda assim, sabe-se que Bento Ferreira Mouzinho, à

época do governo de Luís Ferreira Freire, permanecia na serventia do ofício de escrivão

159 FONSECA, Marcos A. V. da. 'A perdição de toda a capitania': jurisdições e governabilidade na

administração do capitão-mor Luís Ferreira freire (1718-1722). In: V Seminário Internacional História

e Historiografia, 2016, Recife. Anais Eletrônicos do V Seminário Internacional História e

Historiografia. Recife: Editora UFPE, 2016. p. 1266-1276.

Page 299: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

299

da Câmara do Natal e que Manuel de Melo e Albuquerque, encontrava-se nos anos de

1718, 1721 e 1722 exercendo o ofício de vereador daquela edilidade.160

Assim, quando o Alferes Bento Mouzinho passou a exercer a escrivania

camarária do Concelho do Natal em 1715,161

o Comissário Geral de Cavalaria, Manuel

de Melo e Albuquerque, já estaria presente nos quadros da Câmara do Natal havia cinco

anos.162

Decorria disso, possivelmente, o estabelecimento de laços de solidariedade

entre esses dois homens, os quais haviam sido estreitados ainda mais quando Ferreira

Mouzinho havia sido provido para o posto de Tenente de Cavalos das Ribeiras de

Cunhaú, Goianinha e Mipibú,163

da qual Manuel de Melo seria Capitão de Cavalos,

desde 1706.164

Essa vinculação entre Manuel de Melo e Bento Ferreira, somadas às

atitudes de Luís Ferreira Freire para com os edizes, possivelmente, faria com que o

Capitão Bento Ferreira Mouzinho vingasse as atrocidades cometidas por esse capitão-

mor, principalmente contra a família Melo e Albuquerque.

Como apontou Tarcísio de Medeiros Filho ao dedicar sua análise sobre a

administração de Luís Ferreira Freire, a sobrinha de Manuel de Melo e Albuquerque que

teria sido raptada foi Maria de Sá, filha de Matheus Rodrigues de Sá,165

que era irmão

de Eugênia Rodrigues de Sá, portanto, sobrinha, cunhado e esposa de Melo e

Albuquerque, respectivamente.166

Somar-se-ia ao rapto, o fato de que quando Manuel de

Melo enviou uma carta para que Luís Ferreira Freire devolvesse sua sobrinha e sua

escrava, aquele capitão-mor mandaria, em seguida, prendê-lo dentro da câmara escura

da Fortaleza dos Santos Reis.167

De acordo com Tarcísio Medeiros, Vicente de Lemos e

Gonçalves Dias, o Capitão-mor Luís Ferreira Freire teria sofrido um atentado a tiro em

22 de fevereiro de 1722, falecendo uma semana depois, mas que jamais se havia

descoberto o verdadeiro culpado do crime.

160 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 161

Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 77v. 162

LOPES, op. cit., p. 96. 163

Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720

– 1728). Fl. 179v. 164

Ibidem. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 4 (1702 – 1707). Fl. 107. 165

LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do

Norte: 1701-1822. v. 2. Natal: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1980. p. 35-36. 166

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (f. 17);

LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. op. cit., p. 35-36. 167

DIAS, Gonçalves. Anotações ao catálogo dos capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte.

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. t. 17. 13ª série, n. 15, 3º trim./1854. p. 38-40.

Page 300: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

300

Contudo, tem-se uma pista sobre o assassino de Ferreira Freire quando, em 25

de julho de 1725, o então Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca (1722-

1728), que havia substituído Luís Ferreira Freire, após o crime que lhe tirou a vida,

enviou uma carta à D. João V, na qual relatava que o escrivão da Câmara do Natal,

Bento Ferreira Mouzinho, e Manuel de Melo e Albuquerque, haviam burlado as eleições

para o senado daquela edilidade.168

Nessa mesma carta, Pereira da Fonseca reiterava as

ameaças que havia recebido por parte do escrivão, Bento Mouzinho, em plena sessão de

vereação, segundo o qual José Pereira houvesse de “morrer como havia morrido o

capitão-mor antecessor”.169

Mesmo diante desse indício, não seria de todo possível

culpar Bento Ferreira Mouzinho da morte de Luís Ferreira Freire.

No entanto, quando da devassa instaurada após a acusação do Capitão-mor

João de Teive Barreto e Meneses (1734-1739), vinte e três anos depois do assassinato

de Luís Ferreira Freire, no momento da expedição do parecer, em 5 de novembro de

1745, concluiu-se a investigação apontando como único culpado Bento Ferreira

Mouzinho. Segundo, os ministros do Concelho Ultramarino, de posse de todo o arsenal

de consultas, pareceres e devassas instauradas, Ferreira Mouzinho seria “o principal

agressor de tão atroz delito”, mesmo que o Capitão-mor Luís Ferreira Freire tivesse se

utilizado de toda a prudência possível para que não lhe matassem, Bento Mouzinho o

teria feito com uma “espingardada”, antes que finalizasse seu governo no Rio Grande.170

Disso se compreende o porquê de Ferreira Freire utilizar-se de 50 soldados que,

segundo os oficiais camarários, haviam sido deslocados da Fortaleza para a proteção

particular da casa de Ferreira Freire.171

No entanto cabem algumas ponderações sobre a devassa na qual o escrivão

camarário do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, havia sido considerado culpado do

assassinato do Capitão mor Luís Ferreira Freire (1718-1722). A primeira delas remeter-

se-ia a própria carta queixa que havia sido enviada à Corte com vistas a denunciar as

“sinistras intenções e o orgulhoso ânimo” de Bento Mouzinho. O denunciante do

escrivão Bento Ferreira foi o então Capitão mor do Rio Grande, João de Teive Barreto e

Menezes (1734-1739) que, segundo a devassa, “andarão sempre em contínuas questões

168 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 02, Doc. 114.

169 Ibidem.

170 Ibidem, Cx. 05, Doc. 297.

171 Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 06

(1713-1720). Fl. 139.

Page 301: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

301

um contra o outro”.172

Ao analisarem-se os documentos manuscritos avulsos do

Concelho Ultramarino, referentes à Capitania do Rio Grande, averiguou-se que a

primeira contenda opondo João de Teive e Bento Ferreira Mouzinho deveu-se aos

gastos excessivos do capitão mor com papel e correios para a Capitania de Pernambuco,

como constava em uma carta, datada de 02 de março de 1736, para D. João V.173

Mesmo que o emitente dessa carta tenha sido o Provedor da Fazenda Real da Capitania

do Rio Grande, o Dr. Timóteo de Brito Quinteiro, a epístola havia sido redigida por

Bento Ferreira Mouzinho, que então ocupava, concomitantemente, os ofícios de

escrivão da Fazenda Real,174

escrivão da Câmara do Natal e juiz de órfãos da Capitania

do Rio Grande.175

Além de haver manuscrito a carta, Bento Ferreira Mouzinho anexou a mesma

uma certidão que havia sido expedida pelo Dr. Tomás da Silva Pereira, ouvidor geral da

Capitania da Paraíba, em sindicância à Provedoria da Fazenda do Rio Grande, na qual o

ouvidor instituiu limites nos custos arcados pela provedoria com gastos de papel e

correios por parte dos capitães-mores.176

Acredita-se que Bento Ferreira Mouzinho,

diante de algumas ingerências do Capitão mor João de Teive, como se verá a seguir,

tenha apoiado seu superior imediato na Fazenda Real, o Provedor Timóteo de Brito

Quinteiro.

No entanto, as dissidências entre o Capitão mor, João de Teive Barreto e

Menezes (1734-1739) e o Provedor da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande,

Timóteo de Brito Quinteiro, prosseguiram pelo ano de 1736 em diante, pois, dezesseis

dias depois do envio da primeira missiva, em 18 de março de 1736, o provedor enviava

para D. João V outra carta, com vistas a informar que João de Teive estaria a lhe

pressionar para que saísse da provedoria da Fazenda Real a ajuda de custo das despesas

que esse capitão havia tido ao assistir a arrematação dos dízimos reais das Ribeiras do

Açú e do Apodi.177

Disso decorreu um longo conflito, que havia envolvido outros

oficiais da administração régia local e da Capitania de Pernambuco, promovido pelas

ingerências do capitão mor em jurisdições que não eram de sua alçada, como havia

172 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.

173 Ibidem., Cx. 03, Doc. 210.

174 Ibidem.

175 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). p. 198. 176

AHU-RN, loc. cit. 177

Ibidem., Cx. 03, Doc. 211.

Page 302: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

302

afirmado, de maneira taxativa, o Governador de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira, em

represália ao Capitão João de Teive e em apoio ao Provedor da Fazenda, Timóteo de

Brito Quinteiro.178

Não obstante, essa disputa pela ajuda de custo, perpetrada pelo Capitão mor,

prosseguiria até 1739 quando, por morte de Timóteo de Brito Quinteiro entre 1737 e

1738, Bento Ferreira Mouzinho viria a assumir, de maneira interina, a Provedoria da

Fazenda Real da Capitania do Rio Grande.179

Diante do vai e vem de consultas,

pareceres, alvarás e certificados, D. João V acreditou na possibilidade de João de Teive

receber a protelada ajuda de custo pelo suporte oferecido durante as arrematações dos

contratos dos dízimos das Ribeiras do Açú e do Apodi.180

Todavia, quando Bento

Ferreira Mouzinho assumiu o ofício de provedor tratou de enviar uma longa

representação à D. João V, em 08 de janeiro 1739, na qual esclarecia a ausência do

Capitão mor, João de Teive, durante as diligências de arrematação dos referidos

contratos, ausentando-se diversas vezes ou tratando de assuntos não relativos aos

interesses da Fazenda Real, mas sim de cunho pessoal e que, por isso, lhe parecia ser

“afectação ou produto de mal afecto” a representação feita por João de Teive para

barganhar a ajuda de custo.181

A representação de Bento Ferreira Mouzinho foi decisiva para o indeferimento

da solicitação de ajuda de custo por parte do Capitão mor, pois D. João V, acatou a

sugestão do Provedor Bento Ferreira Mouzinho sobre não se conceder esse auxílio em

face do alto salário anual que João de Teive recebia, bem como por não ser de sua

alçada a participação nas diligências de arrematação dos dízimos, algo que competia

exclusivamente a Fazenda Real e aos seus oficiais.182

A representação de Ferreira

Mouzinho para D. João V prosseguia pintando a administração de João de Teive

Barreto e Menezes relatando as perseguições que esse capitão mor havia feito a ele, bem

como por “seu terrível ódio nas máquinas que contra o meu procedimento fulmina, com

arguições falsas”, Bento culpava esse capitão mor também de descaminhos da Real

Fazenda.183

178 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 211.

179 Ibidem.

180 Ibidem.

181 Ibidem.

182 Ibidem.

183 Ibidem.

Page 303: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

303

Mais uma vez, Bento Mouzinho jogava com a escrita como um mecanismo

político legítimo de negociação com El Rey, em detrimento de terceiros, especialmente

dos capitães-mores. Noutro documento Mouzinho, em 13 de fevereiro de 1739,

afirmava que seria “[...] o melhor cronista [...] do decurso do governo” de João de Teive

Barreto, descrevendo todos os erros, embaraços e excessos desse capitão mor durante a

administração da Capitania do Rio Grande.184

O Provedor Bento Mouzinho havia

concluído sua representação culpando também Caetano de Melo e Albuquerque por

fomentar as discórdias entre João de Teive e o próprio Bento Ferreira Mouzinho, assim

como entre esse capitão mor e os camarários e demais justiças da capitania. Nesse

momento, possivelmente, os interesses que vinculavam Bento Ferreira Mouzinho à

família Melo e Albuquerque já haviam se esvaído, pois Caetano de Melo e

Albuquerque, filho de Manuel de Melo e Albuquerque, passou a se opor ao antigo

aliado de seu pai.

As dissensões entorno da ajuda de custo ao Capitão mor João de Teive,

alcançou inclusive seu sucessor, Francisco Xavier de Miranda Henrique (1739-1751), o

qual havia sido intimado a informar a D. João V os andamentos da devassa que havia

sido instaurada a partir da denúncia de João de Teive.185

Com isso, o novo Capitão mor,

Miranda Henriques, avisava em seu parecer, datado de 12 de maio de 1742, que havia

“acabado de se completar o depoimento das testemunhas” sobre o assassinato do

Capitão mor Luís Ferreira Freire (1718-1722), mas que por desatenção do ministro

responsável tornou-se público que o culpado do crime havia sido o Coronel Bento

Ferreira Mouzinho.186

Ainda assim, avançava Miranda Henriques, Bento Mouzinho

havia se aproveitado do ofício de provedor da Fazenda Real, que desempenhava

interinamente, para deslocar o curso da devassa e favorecer as inquirições à seu favor,

aproveitando-se para isso de uma ordem de Sua Majestade sobre serem remetidos

presos todos os devedores da Fazenda Real.187

Coincidentemente, no rol de devedores figuravam algumas das testemunhas do

assassinato do Capitão mor Luís Ferreira Freire (1718-1722), dentre as quais o

documento cita Teodósio Freire de Amorim – que devia mais de quatrocentos mil réis a

Fazenda Real –, Domingos da Silveira – cuja dívida ultrapassava trezentos mil réis –,

184 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 211.

185 Ibidem.

186 Ibidem.

187 Ibidem.

Page 304: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

304

José Pinheiro, Hilário de Castro, Roque da Costa e José de Melo, os quais mudaram os

seus depoimentos em favor de Bento Ferreira Mouzinho que associado ao almoxarife da

Fazenda Real, Manuel Antônio Pimentel de Melo, poderia evitar as prisões desses

devedores do erário régio, o que os havia motivado a serem as testemunhas de defesa.188

Salienta-se que o almoxarife Manuel Antônio Pimentel de Melo era filho de Estevão

Velho de Melo e de Joana Ferreira de Melo,189

ambos amigos pessoais e de longa data

de Bento Mouzinho, como discutido no início desse capítulo.

Diante de tudo isso, pode-se compreender os motivos que levaram o Capitão

João de Teive Barreto e Menezes (1734-1739) a denunciar o escrivão da Fazenda Real,

Bento Ferreira Mouzinho, pela morte do Luís Ferreira Freire (1718-1722). Tal denúncia

baseou-se, mais uma vez, em lutas por espaço de representação, bem como em conflitos

decorrentes da superposição de jurisdições entre diferentes oficiais da administração, as

quais possuíam nas correntes de solidariedades verticais e horizontais, a mola

propulsora dos conflitos para a expansão ou retração dos interesses pessoais e de grupos

específicos da sociedade colonial, na Natal setecentista.

Visto tudo isto, ressalta-se que mesmo diante da postura de coalizão e de

indiferença assumida pelo Capitão-mor Luís Ferreira Freire para com os membros do

concelho municipal, o escrivão Bento Ferreira Mouzinho continuaria “com o seu

perverso procedimento, causando bandos e fomentando inimizades com diabólica

astúcia”,190

que com o seu “mal intencionado ânimo aos capitães-mores que vem

governar esta capitania [...] pelo não o conhecerem na sua primeira entrância, se deixam

levar de sua aparente brandura”.191

Porventura, iludido com tudo isso, a autoproteção de

Ferreira Freire de nada havia adiantado, pois faleceria em 01 de março de 1722,192

uma

188 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 03, Doc. 211.

189 Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712. IAHGP. CX02. DOC. 0069 (f. 15v) 190

AHU-RN, op. cit., Cx. 05, Doc. 297. 191

Ibidem. 192

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0845, Fl.

008v.

Page 305: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

305

semana depois do atentado que havia sofrido193

que, com um único tiro, lhe fizera

dezoito feridas.194

Mesmo assim, as autoridades consultadas durante a devassa o Capitão-mor,

João de Teive Barreto e Menezes, o Provedor da Fazenda Real, o Dr. Teotônio

Fernandes Temudo, e o Juiz Ordinário, o Coronel Bonifácio da Rocha Vieira

apresentaram posicionamentos distintos, os dois últimos divergindo do Capitão mor.

Talvez, isso devesse, mais uma vez, aos laços de solidariedade, posto que o recém-

nomeado Provedor da Fazenda, Teotônio Fernandes Temudo, se aliaria a Bento Ferreira

Mouzinho para lucrar com os desvios do contrato do “gado do vento”195

e Bonifácio da

Rocha Vieira era casado com Inácia Gomes Freire,196

filha de Antônio Dias Pereira e de

Maria Gomes Freire,197

que possuíam várias relações de compadrio com Teodósio

Freire de Amorim – umas das testemunhas que havia mudado o relato em favor de

Bento Mouzinho para não ser remetido preso por dívidas a erário régio. Teodósio Freire

havia sido padrinho de batismo de Antônio e de Maria, filhos de Antônio Dias Pereira e

de Maria Gomes Freire,198

dividindo o apadrinhamento de Maria com Catarina de

Amorim, esposa de Domingos da Silveira199

– outro devedor da Fazenda Real que havia

testemunhado em favor de Bento Ferreira Mouzinho. Diante disso, pode-se

compreender o porquê do juiz ordinário, Bonifácio da Rocha Vieira, ser contrário à

devassa, juntamente com o provedor da Fazenda Real, sobre o assassinato do Capitão

mor Luís Ferreira Freire por Bento Ferreira Mouzinho, pois ambos possuíam interesses

familiares e econômicos em jogo.

O Provedor da Fazenda, Teotônio Fernandes Temudo, afirmava em seu parecer

que não se devesse “fazer caso desses capítulos atentando ao tempo” que havia

193 DIAS, Gonçalves. Anotações ao catálogo dos capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte.

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. t. 17. 13ª série, n. 15, 3º trim./1854. p. 38-40. 194

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0843, Fl.

008. 195

BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos, Fiscalidade e

Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, v. 5.

n. 9, jan.-jun., 2016, p. 242-243. 196

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1727-1740. DSC 02735. 197

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP-FIA-CX01.DOC0057

(46v). 198

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (30); IAHGP-FIA-CX01.DOC0057 (35). 199

Ibidem., IAHGP-FIA-CX01. DOC0057 (30).

Page 306: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

306

transcorrido, ou seja, 23 anos depois.200

Essa mesma opinião também era partilhada pelo

juiz ordinário Bonifácio da Rocha Vieira.201

Na contramão disso, afirmava o Capitão

mor João de Teive sobre o caráter imprescindível de se proceder nas investigações. Para

isso, esse capitão mor tratou de levantar provas e testemunhas que contribuíssem com as

investigações em andamento. A primeira das testemunhas arroladas foi o escrivão da

Câmara do Natal, Manuel Álvares Bastos, que havia sido citado pelo Capitão mor João

de Teive Barreto e Menezes (1734-1739), em 8 de outubro de 1739, para que efetuasse

uma busca nos livros da câmara e informasse a quantidade geral de cartas que haviam

sido redigidas, contra quem e a quem foram escritas.202

Essa diretiva de João de Teive

visava comprovar aquilo que ele mesmo havia escrito na carta-queixa, na qual declarava

que Bento Mouzinho havia se utilizado da escrivania camarária do Natal para escrever

cartas infames e injuriosas contra os capitães-mores, os coadjutores da matriz, os

provedores da Fazenda Real e pessoas de distinção social da Capitania do Rio

Grande.203

O escrivão Manuel Álvares Bastos respondeu por certidão de 12 de outubro

de 1739, que foram encontradas 38 registros de cartas contrárias a diversas autoridades

da capitania, dentre elas sobre os Capitães mores Domingos Amado (1714-1718), Luís

Ferreira Freire (1718-1722), José Pereira de Fonseca (1722-1728), sobre o Provedor

José Soares, o coadjutor da matriz Antônio de Andrade, o juiz ordinário Manuel

Tavares Guerreiro, dentre outros. Álvares Bastos finalizava a certidão reiterando que

aquelas cartas haviam sido escritas e registradas por Bento Ferreira Mouzinho, no

tempo que foi escrivão do Senado da Câmara do Natal.204

Outra testemunha arrolada por João de Teive foi o tabelião público Sebastião

Cardoso Batalha, pertencente à família Rodrigues de Sá, como visto no capítulo

anterior. Esse depoimento, assim como aquele efetuado pelo escrivão concelhio,

Manuel Álvares Bastos, eram estratégicos para que a devassa corresse em favor das

pretensões de João de Teive, dado que ambos fossem oficiais autorizados pela própria

natureza e finalidade de seus ofícios, além de que detinham em suas mãos as provas

manuscritas de suas afirmações. Assim, Cardoso Batalha havia respondido, em 02 de

dezembro de 1739, a portaria de João de Teive para que esse tabelião passasse cópia da

200 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.

201 Ibidem.

202 Ibidem.

203 Ibidem., Cx. 03, Doc. 211.

204 Ibidem., Cx. 05, Doc. 297.

Page 307: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

307

interdição feita pelo ouvidor geral da Paraíba, Tomás da Silva Pereira, do exercício

indevido de quatro ofícios simultâneos na administração da Capitania do Rio Grande

por Bento Ferreira Mouzinho.205

E, por fim, Batalha atestava, ainda, que Rodrigo

Guedes Alcoforado Mouzinho, havia comprado o contrato dos dízimos reais

arrematados por Dionísio da Costa Soares e seu cunhado Miguel de Oliveira, ficando

como fiador dessa transação o escrivão da Fazenda Real, Bento Ferreira Mouzinho, pai

do comprador e com quem Rodrigo ainda residia,206

ambas as práticas consideradas

imorais, de acordo com o regimento da Fazenda.207

Diante de tudo isso, a complicada situação na qual se encontrava o escrivão

Bento Mouzinho agravava-se cada vez mais. Alguns dos vários delitos que havia

cometido quando do exercício de seus ofícios vinham à tona em um momento bastante

crítico de sua carreira nos quadros da administração local. As testemunhas de defesa e

de acusação caminhavam entre a sobriedade evidente de seus lugares de fala e a pressão

de não serem remetidos presos por dívidas, o que invalidava sorrateiramente os

depoimentos desses, mas que mostrava, mais uma vez, o quanto era determinante os

laços familiares e clientelares nos destinos individuais, bem como quanto e quais eram

os interesses em jogo.

Assim, para se concluir as investigações sobre os crimes de Bento Ferreira

Mouzinho, D. João V havia ordenado, em 08 de agosto de 1740, que o Governador da

Capitania de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire de Andrade, informasse, através

de seu parecer, acerca da conflituosa relação entre o Capitão mor João de Teive Barreto

e Menezes e o escrivão da Fazenda Real Bento Ferreira. O Governador Freire de

Andrade havia respondido, em 14 de julho de 1741, com uma recapitulação dos crimes

cometidos tanto por João de Teive quanto por Bento Mouzinho. Mas, acrescentava o

governador, que seria importante o envio de um ministro que procedesse às

investigações de maneira mais acurada, posto que diante das informações apresentadas

por ambas as partes seria “impossível se saber a verdade”.208

Diante disso, D. João

ordenou ao Ouvidor Geral da Paraíba, Inácio de Souza Jácome Coutinho, que fosse ao

205 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.

206 Ibidem.

207 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 99. 208

AHU-RN, loc. cit.

Page 308: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

308

Rio Grande devassar o caso e em seguida informasse com o seu parecer a realidade da

situação.209

Em 20 de março de 1744, Jácome Coutinho havia respondido a solicitação

anterior informando que “as perturbações, enredos e inquietações em que se acha essa

capitania em ter o capitão mor dela, provedor da Fazenda Real, juízes ordinários e

Câmara geralmente é constante por todos que a causa total delas é o dito escrivão Bento

Ferreira”, o ouvidor acrescentava também que isso se devia ao “gênio orgulhoso e modo

dissimulado” de Ferreira Mouzinho.”210

O parecer final daquele ministro seria que o

escrivão passasse para a Capitania de Itamaracá a servir o ofício de juiz de órfãos do

qual havia se tornado proprietário, para o “sossego dessa capitania e de seus

vassalos”.211

Com o assassinato de Luís Ferreira Freire a Capitania do Rio Grande totalizava

em três, o número de capitães-mores que haviam perdido suas vidas na carreira

administrativa do ultramar, registrava em tom soberbo um termo de vereação, datado de

02 de março de 1722, redigido pelo próprio Bento Ferreira Mouzinho, ainda escrivão da

Câmara do Natal.212

Tudo isso demonstra que os conflitos de jurisdição que

constantemente entrecortaram a pacatez da vida na América portuguesa, haviam

ocorrido geralmente pelas lutas entorno da representação do poder. Embates esses,

decorrentes da má definição de competências e da sobreposição de atribuições dos

diferentes ofícios, que traduziam lutas por representação e hegemonia de poder.213

No

entanto, adir-se, ainda, que, possivelmente, a causa do assassinato do Capitão Luiz

Ferreira Freire houvesse sido motivada também por questões de cunho pessoal que, não

raro, tendiam a se imiscuírem com a dimensão institucional, algo que acabava por gerar

os conflitos jurisdicionais.

Essa última hipótese pode ser pensada a partir de uma carta redigida pelo

escrivão Bento Ferreira Mouzinho, em 10 de novembro de 1722, na qual constasse

como emitentes os oficiais camarários da Cidade do Natal e endereçada a José Pereira

209 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.

210 Ibidem.

211 Ibidem.

212 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara do

Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Doc. 0845, Fl.

008v. 213

MENEZES, Mozart Vergetti de. Jurisdição e poder nas Capitanias do Norte (1654-1755).

Saeculum/UFPB, v. 14, 2006, p. 11-26.

Page 309: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

309

da Fonseca (1722-1728), sucessor de Luiz Ferreira Freire no governo da Capitania do

Rio Grande. Essa missiva se remetia a solicitação da expulsão da Capitania do Rio

Grande de duas mulheres que, conforme a epístola, eram consideradas “escandalosas e

de mal viver”.214

A epístola começava, de maneira sagaz, por elogiar “o sossego e a

satisfação do povo da capitania” a partir da nomeação do novo capitão, que havia

ocorrido em março de 1722, bem como do desempenho satisfatório de seu governo. Na

sequência, a carta solicitava que o Capitão-mor José Pereira expulsasse da capitania

Guiomar de Oliveira e Maria de Melo, pois além de serem meretrizes, atribuía-se a

Maria de Melo a culpa pela morte do antecessor Capitão-mor, Luiz Ferreira Freire, dado

que seria clamor na cidade que os irmãos dessa mulher o haviam cometido o crime pela

forma com que Ferreira Freire e ela viviam.215

Essa mensagem parecia se tratar de uma tentativa de eximir da possibilidade de

culpas que poderia então recair sobre o escrevente. Visto que na devassa instaurada após

a denúncia de João de Teive, o escrivão Bento Mouzinho seria, já década de 1740,

apontado como o verdadeiro assassino, como visto anteriormente. Curioso seria o fato

de que a carta que solicitava a retirada de Guiomar de Oliveira, mas principalmente de

Maria de Melo, e não estaria assinada pelo escrivão Bento Ferreira, como era

costumeiro. No entanto, averígua-se que se tratava da própria letra do escrivão.

Somava-se a essa demanda, que no momento de redação da missiva, Maria de Melo

estava como concubina do então Provedor da Fazenda Real, José Soares. Acrescentava-

se a isso, que a missiva afirmava que poderia ocorrer com esse oficial o mesmo que

havia recaído sobre o anterior Capitão-mor do Rio Grande, Luís Ferreira Freire (1718-

1722).216

Cogita-se, pela série de informações apontadas, que a missiva tinha como

objetivo explícito a retirada de Maria de Melo da Capitania do Rio Grande, bem como

de fornecer ao Capitão-mor José Pereira da Fonseca, então responsável pelo governo do

Rio Grande, uma leitura sobre os fatos que haviam ocorrido antes de sua chegada a essa

capitania. Isso incidira diretamente na possibilidade de direcionar o posicionamento e a

visão desse capitão-mor, caso houvesse a instauração de investigações sobre o

assassinato de Luiz Ferreira Freire, pois estaria a imputar aos irmãos de Maria de Melo

214 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720

– 1728). Fl. 78. 215

Ibidem. 216

Ibidem.

Page 310: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

310

o crime que havia retirado à vida desse agente. Acredita-se, a partir disso, que,

possivelmente o escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, também

possuísse algum envolvimento com Maria de Melo, o que lhe teria motivado a executar

Luiz Ferreira Freire.

Talvez, em face desse possível envolvimento de Ferreira Mouzinho com Maria

de Melo, o teria motivado a escrever a carta. Mas, para se isentar de possíveis suspeitas

não tivesse assinado a mesma. Além disso, a carta também jogava com o potencial de

que, mesmo se apresentando “despretensiosamente”, construir uma versão sobre o

assassinato de Ferreira Freire, imputando aos Rodrigues de Sá o crime, posto que, como

afirmou a dita carta, muitos moradores quisessem “satisfazer paixões, arguia culpa em

muitos que na dita morte não pecaram nem seria verdadeiramente”.217

Em outra carta,

datada de 10 de novembro de 1722, o Capitão José Pereira havia acolhido de bom grado

os elogios de seu governo e afirmava que “só protesto fazer-lhes a vontade no que toca a

minha comadre e a minha afilhada ainda que seja em desabono de minha pessoa”.218

Essa interlocução acena, ainda, para o fato de como o escrivão camarário, ou

mesmo os oficiais honoráveis da câmara, sabiam lidar com aquilo que era uma das

principais prerrogativas dessa instituição: a comunicação. Se junta a isso, o fato de

poderem abonar ou desaprovar a gestão dos governantes da capitania, dado que ao final

de cada mandato desses, os oficiais camarários eram requisitados a passarem essas

certidões de como os agentes administrativos, os governadores e capitães-mores,

portaram-se durante o decurso do exercício de seus postos. E essa possibilidade foi

cogitada no momento da solicitação do favor por parte dos camarários ao Capitão José

Pereira da Fonseca, pois como afirmava a carta, “fica este povo aclamando excelências

ao bom governo com que V. M.ce

os rege, que Sua Majestade tendo notícia, como lhe

daremos, saberá desempenhar estes favores”.219

Os oficiais camarários, e muito

provavelmente o próprio escrivão Bento Ferreira Mouzinho que havia redigido a carta,

sabia, além do jogar com as prerrogativas da câmara de conceder as certidões

abonatórias aos capitães-mores, exercer a capacidade de negociação com os

representantes diretos d’El Rey e, consequentemente, alinhavar as determinações régias

217 Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720

– 1728). Fl. 78. 218

Ibidem., Fl. 78v. 219

Ibidem.

Page 311: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

311

aos interesses locais, a partir da grande economia de troca de favores que perpassava

todos os âmagos da administração.

Depreende-se da análise dessa carta a tendência para que disputas e interesses

de nível pessoal, familiar ou clientelar ganhassem conotações e feições institucionais, ao

opor os envolvidos nos conflitos, bem como os órgãos administrativos nos quais

estivessem inseridos. Assim, em muitos casos, seria através da transposição de rixas

entre famílias e mesmo de indivíduos que se deram os conflitos jurisdicionais, que além

de disputas por representação de poder, caracterizavam-se também por embates de nível

pessoal, sobretudo com a possibilidade de envolver sentimentos, como ódio e paixão.

Poder-se-ia compreender, a partir desse conflito, a atmosfera cultural da sociedade do

Antigo Regime, onde os privilégios do exercício de um ofício passavam, de maneira

persistente, pela autonomia de decisão dos oficiais. Contudo, esses conflitos

jurisdicionais, entre a câmara e os capitães-mores não terminaram em 1722, posto que

tais contendas arrastar-se-iam por toda a década de 1720, como se verá a seguir, ao

opor, mais uma vez, o escrivão da câmara, Bento Ferreira Mouzinho, a capitão-mor e,

no próximo caso, José Pereira da Fonseca,220

o mesmo que na carta analisada

anteriormente era elogiado pelo “bom governo”, por haver “os libertado da servidão dos

Egípcios”.221

Sobre as divergências entre Bento Ferreira Mouzinho e José Pereira da

Fonseca a devassa analisada anteriormente também havia lançado subsídios como se

verá a seguir.

4.6 A crise política de 1720

Na segunda década do século XVIII, Bento Ferreira Mouzinho servia como

escrivão da Câmara da Cidade do Natal desde 1715,222

há, pelo menos, sete anos antes

220 A série de conflitos e embates na Capitania do Rio Grande, que envolveu toda a década de 1720,

opondo a Câmara do Natal e, mais especificamente, o escrivão da Câmara Bento Ferreira Mouzinho, ao

Capitão-mor do Rio Grande, José Pereira da Fonseca, foi estudada mais detalhadamente Abimael Lira.

Para saber mais, ver LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. “ENTRE O AUSTERO CAPITÃO E O

MALIGNO ESCRIVÃO”: DISPUTAS DE PODER E CULTURA POLÍTICA NA ADMINISTRAÇÃO

DA CAPITANIA DO RIO GRANDE NO SÉCULO XVIII. In: VII Encontro Estadual de História da

ANPUH – RN. 26-29 de jun., 2016. 221

Fundo documental do IHGRN. Caixa 02 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 7 (1720

– 1728). Fl. 78. 222

Ibidem., Livro 06 (1713-1720). Fl. 77v.

Page 312: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

312

da chegada de José Pereira da Fonseca à Capitania do Rio Grande.223

Todavia, aufere-se

que a presença de José Pereira, bem como suas atitudes, passou a incomodar homens

importantes da capitania pouco tempo depois de sua chegada àquela localidade. Deduz-

se isso da primeira menção que se fez à Pereira da Fonseca, referindo-se a este, em tom

de insatisfação. Isto ocorreu, em maio de 1722, quando os oficiais da Câmara do Natal

reuniram-se em vereação e deliberaram uma solicitação ao capitão-mor, tendo como

objetivo a devolução aos seus senhores dos tapuias cativos que estavam sob

administração do Sargento-mor Antônio Rodrigues Santiago.224

Tal solicitação apontava, ainda, para o fato de que um agente direto da Coroa

passou a se envolver em negócios de cunho comercial na capitania, algo que era

terminantemente proibido pela legislação da época. Acrescenta-se, ainda, quão rápido

fora a inserção daquele agente em querelas locais. Por algum motivo, não se sabe ao

certo qual, José Pereira havia se apoderado de alguns tapuias que estavam sendo

administrados pelo sargento-mor. Possivelmente, quando Pereira da Fonseca havia

assumido o posto de capitão-mor, ao chegar à Fortaleza dos Reis Magos deparou-se

com um de seus subordinados na posse de alguns nativos, algo que levou José Pereira a

se apoderar desses indígenas a fim de obter algum lucro, principalmente ao passar a

administrar aqueles indígenas e, quiçá, os fazerem escravos ou até mesmo os venderem

posteriormente. Não contava o capitão com a interferência da câmara em seus planos,

ao solicitar que o mesmo devolvesse os cativos aos seus respectivos proprietários.

Eventualmente, os senhores dos tapuias cativos e os oficiais camarários,

podiam se tratar das mesmas pessoas, já que eram os “homens bons”, 225

ou seja,

pessoas possuidoras de cabedal, terras e escravos. Nesse momento, em específico, parte

dos escravos de que dispunham as elites da Capitania do Rio Grande eram,

possivelmente, provenientes de grupos indígenas aprisionados nas guerras recém-

terminadas nos sertões da mesma capitania. Adir-se, ainda, que no tempo da referida

solicitação, Bento Ferreira, já fosse escrivão da câmara e quem havia redigido a petição.

Esse momento, provavelmente, demarcaria o início dos embates entre os camarários da

223 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 01, Doc. 88.

224 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0860. 225

O termo “homens bons” poder a ideia de vizinhos honrados, honrados por possuírem terras e cabedal.

Ver NEVES, Guilherme Pereira das. Verbete: homens bons. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário

do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 286.

Page 313: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

313

Cidade do Natal e o capitão-mor, sendo essas indisposições encabeçadas por Bento

Ferreira Mouzinho, como se verá a diante.

Todavia, ao longo do período colonial, não somente na Capitania do Rio

Grande, como também em diversas outras possessões ultramarinas, as câmaras

municipais foram constituídas enquanto lócus dos melhores da terra.226

A câmara era

formada por um corpo de homens que se reuniam em torno de interesses comuns.

Desses interesses poder-se-ia mencionar como exemplo a proteção de seus negócios, de

si mesmos e de suas famílias, de homens estranhos, provenientes de outras áreas,

alheios à realidade e aos interesses dos locais, mas, que porventura viessem a ameaçar

ou interferir nas já estruturadas relações econômicas e sociais estabelecidas, mesmo os

que estivessem a serviço direto de Sua Majestade.

Uma prática recorrente na Capitania do Rio de Janeiro foi à incorporação dos

indivíduos adventícios, muitos dos quais podiam ter, ou não, vindo prestar serviços

militares e/ou administrativos,227

incluindo também os serviços judiciais, às famílias os

redes clientelares locais. Tal incorporação se processava mediante, sobretudo, a prática

de casamentos, mas poderia ocorrer também a partir de relações de apadrinhamento,

dentre outras maneiras. Muitos desses adventícios haviam se incorporado as famílias

locais e haviam passado a agir de acordo com os interesses também locais. Tais

interesses estavam diretamente relacionados com o processo de formação da economia

colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite.228

O caso do Rio de Janeiro pode ser

acionado para se pensar que, no contexto de chegada de José Pereira da Fonseca ao Rio

Grande, o mesmo não quisera criar vínculos efetivos com os melhores da terra. Desse

modo, ao temer o fato de o capitão mor não querer se inserir nas já montadas redes de

poder e, mais ainda, temerosos que aquele homem, a serviço D’el Rey, delatasse

situações de irregularidades administrativas no Rio Grande, trataram logo de afrontá-lo,

demonstrando o poder que detinham, que fosse: a privilegiada comunicação com o

226 A ideia de melhores da terra serve para designar os homens de qualidade que viviam em uma

determinada localidade. Muitos destes ingressavam nas câmaras municipais almejando as benesses que

delas provinham, visto se tratar de um canal direto de comunicação com o rei e, além disso, gozarem de

foro privilegiado. Para saber mais ver BICALHO, Maria Fernanda B. As câmaras ultramarinas e o

governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda B.; GOUVÊA, Maria de Fátima

S. (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 192. 227

FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite

senhorial (séculos XVI-XVII). In: Ibidem; BICALHO, Maria Fernanda B.; GOUVÊA, Maria de Fátima

S. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos, op.cit. p. 41. 228

Ibidem.

Page 314: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

314

reino, através do dispositivo das petições.229

Isso poderia vir a complicar a situação do

Capitão José Pereira naquelas paragens.

Todavia, apesar do princípio das aversões entre o escrivão e o capitão-mor,

Bento Ferreira Mouzinho e José Pereira da Fonseca, respectivamente, se remeterem a

banal questão sobre a gerência de alguns nativos tapuias que haviam sido feitos cativos

– provavelmente ainda nos últimos conflitos travados durante a Guerra dos Bárbaros na

Capitania do Rio Grande230

–, quando o capitão-mor os tomou do sargento-mor Antônio

Rodrigues, vale salientar que José Pereira devolveria, em seguida, os índios aos seus

respectivos proprietários.231

Contudo, essa atitude não foi suficiente para refrear os

ânimos insidiosos dos oficiais camarários e do próprio escrivão contra o capitão mor,

pois estas malquerenças atravessaram várias outras disputas, ao longo da década de

1720.

Os embates entre a câmara e o capitão ganharam novas dimensões em 1723. A

possibilidade de figurar nos circuitos da governança local abria margem para que

aqueles que conseguissem tal proeza distinguissem do restante da população, reforçando

os princípios de prestígio e status que eivavam o cotidiano pela América portuguesa e

demais partes do Império.232

Ressalta-se que esses proveitos não se restringiram apenas

ao nível individual, mas também ao nível familiar, posto que ocupar um ofício

camarário significava igualmente assegurar os interesses das famílias e a possibilidade

de representação direta dos mesmos, bem como de se municiarem de todo o arsenal de

chances e ganhos, que advinham da comunicação imediata com a Coroa e com outras

instituições do Império, assim como dos bens dos concelhos.233

229 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003. p. 352. 230

Para saber mais sobre a Guerra dos Bárbaros na Capitania do Rio Grande entre o início da década de

1680 e 1720, mais especificamente sobre os desdobramentos desta no sertão do Rio Grande e o processo

de territorialização dos rincões desta capitania ver SILVA, Tyego Franklim da. A ribeira da discórdia:

terras, homens e relações de poder na territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. 231

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0860. 232

CURVELO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. O Senado da Câmara de Alagoas do Sul:

Governança e poder local no sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) –

Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. p. 86,99. 233

De acordo com António Manuel Hespanha, mesmo a emergência de concepções individualistas de

sociedade não conseguiram suplantar a ideia de que a família se constituía em uma sociedade

naturalmente auto organizada. Portanto, pensar deve-se pensar as ações individuais como que ligadas às

obrigações morais que vinculavam os indivíduos a um mesmo pai de família. Para saber mais, ver

Page 315: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

315

As disputas entre o capitão mor e o escrivão passaram a tomar novas feições

em novembro de 1723. Neste período, no dia 22, os oficiais da Câmara do Natal

escreveram e enviaram uma carta a D. João V sobre a falta de capacidade para governar

a Capitania do Rio Grande por parte de José Pereira da Fonseca.234

Nessa mesma carta,

assinada por Bento Ferreira Mouzinho, Pereira da Fonseca aparecia como um homem

inconstante, austero e retirado. 235

Essas características descreviam o perfil de um

homem severo, que agia pelas próprias razões e pelos impulsos repentinos que o

moviam, algo capaz de levá-lo a mudar de um momento para outro, inabilitando-o para

o exercício do posto mais importante da capitania. Além disso, por se tratar de uma

pessoa retirada, ou seja, recolhida, que não gostava de diálogo com seus pares sociais,

acabava por dificultar e fragilizar ainda mais a situação. Pois, não demoraria muito para

que José Pereira fosse, cada vez mais, sendo distanciado do ciclo social.

Aquela mesma carta tratava de representar José Pereira da Fonseca, ainda,

como um homem descomposto, sem juízo e não temente a Deus.236

Desse modo, o

perfil de José Pereira, traçado pelos oficiais da câmara, haviam denegriado severamente

sua imagem. Na verdade, a carta acabava mesmo por construir uma representação

daquele oficial que, progressivamente, o tornava menos apto e ainda menos próprio para

capitanear o Rio Grande. Ressalta-se que por descreverem Pereira da Fonseca como não

temente a Deus, os oficiais da câmara intentavam mesmo alertar o soberano de que

aquele homem não respeitaria ou temeria a mais ninguém, com objetivo de inspirar

receio no próprio rei para que este retirasse José Pereira da Capitania do Rio Grande.

Com isso, os camarários haviam incorrido naquilo que Russell-Wood afirmou ser uma

das vias dos poderes locais atingirem seus objetivos, que seja a negociação direta com

rei.237

E a carta prosseguia, elencando uma série de aspectos negativos que envolviam

o capitão-mor. Dentre os quais se menciona, ainda, o fato de Pereira ser “homem

HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos

histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social, v. 28, 1993. 234

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 92. 235

Ibidem; Retirado significa pessoa que esta apartada (ou separada) da comunicação da gente. Ver

BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino: áulico, anatômico, arquitectônico. Coimbra:

Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. Disponível em:

http://www.brasiliana.ups.br/en/dicionario/1/edital. Acesso em: 28/10/2015. Ver verbete “edital”. 236

Ibidem. 237

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. Revista

Brasileira de História, v. 18, n. 36, p. 187-250.

Page 316: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

316

destemido a Deus em todas as suas ações, pouco observante da religião cristã e inimigo

capital do sacerdócio”.238

Quanto a estes últimos pontos, podem-se aventar que em um

mundo eminentemente orientado por valores cristão católicos, que servia de atmosfera

valorativa para a ação moral dos homens, descrever José Pereira como antirreligioso

seria equivalente a afirmar que seria um homem alienado, um verdadeiro “louco”, que

estava aquém e além de si e da própria realidade no qual estava imerso, o que tornava

ainda menos hábil sua permanência como capitão-mor do Rio Grande.

Diante de tudo isso, o capitão-mor havia tratado também de se munir de

cabedal humano, para melhor enfrentar os tempestuosos dias que estavam por vir com

um pouco mais de segurança. Para isso, Pereira da Fonseca havia procedido à

elaboração de laços de amizade e de solidariedade que muito o ajudaram, ou até mesmo

embaraçaram ainda mais sua situação. Vale ressaltar que, os homens que passaram a

fazer parte do grupo de Pereira da Fonseca, eram indivíduos que partilhavam de seu

cotidiano em suas lides militares diárias. O que se pode asseverar, mediante a leitura dos

termos de vereação, foi à formação de um grupo, mais especificamente de uma rede

clientelar,239

sob a liderança do Capitão José Pereira, e um seu comparte, por nome José

de Oliveira Velho, que era juiz ordinário e comissário geral de cavalaria.240

Estes

homens foram acusados pelos oficiais camarários de chefiarem um grupo que agia na

Capitania do Rio Grande. Em que sentido ou de que forma, tal atuação não havia ficado

clara no termo. Percebe-se, com isso, animosidades, pelo próprio tom com que os

oficiais da câmara se referiram àqueles indivíduos.

Constatou-se, ainda, que a rede clientelar de José Pereira da Fonseca era

formada pelo Sargento-mor Pedro Mendes de Morais, o Soldado Fradique Correia da

Costa e pelo Juiz Ordinário José de Oliveira Velho, todos indicados, em solicitação feita

pelos oficiais da câmara ao Sargento-mor, José de Morais Navarro, para serem

presos.241

Apesar de o motivo da prisão não ser apontado, denota-se, ainda, a imputação

238 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 92.

239 As redes clientelares se caracterizaram pela troca de favores entre os imbricados, criava a obrigação

moral de receber a mercê, mas, ao mesmo tempo, o dever de retribuir o favor. Para saber mais, ver

GOUVÊA, Maria de Fatima Silva; FRAZAO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marilia Nogueira dos. Redes

de poder e conhecimento na governaçao do Império Português, 1688-1735. Revista Topoi. v. 5, n. 8. Rio

de Janeiro, jan./jun., 2004.

240 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0933. 241

Ibidem.

Page 317: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

317

de uma atuação irregular por parte daqueles homens por toda a Capitania do Rio

Grande242

.

A disputa se acirraria ainda mais em 21 de novembro de 1723, quando da

abertura do cofre onde estavam guardados os pelouros243

contendo o nome dos oficiais

que haviam sido eleitos para o ano de 1724. Constava na lista de eleitos para este ano,

os nomes do Comissário Geral de Cavalaria, José de Oliveira Velho, e do Alferes

Antônio da Silva de Carvalho, para juízes ordinários, o Coronel Carlos de Azevedo do

Vale e os Capitães Félix Barbosa de Araújo e Hilário de Castro Rocha, para servirem de

vereadores, e, por fim, para procurador e tesoureiro do concelho, havia sido eleito

Gregório de Oliveira e Melo.244

Parecia que os ventos da sorte estavam a soprar, de maneira favorável, para o

grupo do capitão-mor. Posto que, naquela abertura dos pelouros, ambos os ofícios de

juízes ordinários, além de um dos de vereador, haviam sido providos, em pessoas que

pertenciam à coligação de José Pereira. Dentre os quais, José de Oliveira Velho,

mencionado anteriormente, Antônio da Silva de Carvalho – como veremos em seguida

– e Carlos de Azevedo do Vale. Aos quais se acrescentavam o Almotacé José Pinheiro

Teixeira, escolhido pelos próprios oficiais que compunham o núcleo do concelho em

1724. Contudo, essa vitória, conseguida à custa da boa sorte, não tardaria a ser desfeita

e transformar-se-ia em estopim de diversos conflitos que se seguiram, anos a fio, pela

década de 1720.

Próximo ao fim do mês de fevereiro de 1724, no dia 25, havia ocorrido uma

eleição de barrete,245

em vista da substituição de Antônio da Silva de Carvalho, que

242 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0933. 243

A eleição de pelouros consiste na elaboração de três listas, nas quais figuravam os nomes dos

candidatos elegíveis para os ofícios camarários. Estas listas eram, cada uma, colocadas em uma bola de

cera, a que se chamava pelouro e, posteriormente, depositadas em sacos e posto em um cofre, o qual seria

fechado por três cadeados, cabendo às respectivas três chaves a três indivíduos que ocupassem os postos

de juiz ordinário mais velho, o de escrivão e do vereador mais velho. Os cofres eram abertos a cada ano,

no decorrer de três anos, aonde se chamava uma criança de até 7 anos para por a mão no saco e retirar

uma das bolas, a fim de se saber quem foram os indivíduos que haviam ocupado os ofícios de juízes

ordinários, vereadores e procuradores do concelho no ano posterior. Para saber mais ver CURVELO,

Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul de

Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,

Recife, 2014. p. 83. 244

LOPES, op. cit., Documento 0902. 245

Eleição de barrete consistia em na escolha ou nomeação de algum indivíduo que estivesse, ou não,

presente na câmara no momento do impedimento de algum outro oficial escolhido pelo sistema comum

(pelouro). Representava também a possibilidade de inserção de indivíduos sem que necessitasse passar

Page 318: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

318

havia sido impedido de assumir o ofício de juiz ordinário, pois havia cometido crime.246

Todavia, o termo de vereação não deixa claro qual foi esse delito. No entanto, infere-se

que na década anterior, Antônio da Silva de Carvalho, havia sido notificado diversas

vezes e penalizado com multa de $ 6.000 réis,247

consistindo, talvez, nisso o crime a que

o termo havia se remetido. Desse modo, quem viria a substituir Antônio Carvalho no

ofício de juiz ordinário seria o Comissário Geral de Cavalaria, Manuel de Melo e

Albuquerque,248

que fazia parte da facção do escrivão.

Assim, além de perder um dos ofícios de juiz ordinário, a facção de Pereira da

Fonseca perderia, ainda, um dos de vereador. Nesse caso, por impedimento de Carlos de

Azevedo do Vale, de assumir o dito ofício, uma vez que era cunhado de José de Oliveira

Velho249

e, provavelmente, assim como este, um dos partidários do capitão-mor.

Outro acontecimento, que se somaria aos anteriores, havia ocorrido em 04 de

setembro de 1724, quando foi revogada a eleição do Capitão José Pinheiro Teixeira da

Cunha250

para o posto de almotacé, que serviria nos meses de setembro e de outubro,251

visto que esse capitão havia questionado, de maneira proposital e desagradável, o

Senado da Câmara do Natal, mostrando-se contrário as deliberações dos edizes com a

nomeação para o ofício de juiz ordinário de Manuel de Melo e Albuquerque. Pinheiro

Teixeira havia se mostrado, naquela sessão, favorável a ocupação deste ofício pelo

Sargento-mor Antônio da Silva de Carvalho que, segundo o termo, seria parente de

Teixeira da Cunha e, portanto, apoiado pelo Capitão-mor José Pereira.252

Ao que parece os envolvidos nesse conflito representavam os interesses de

duas famílias sobre o ofício de juiz ordinário. Pois, além de o termo se referir ao

parentesco existente entre José Pinheiro e Antônio da Silva, tendo aquele, cinco anos

mais tarde, sido padrinho do casamento do filho do segundo,253

o que demonstrava se

pelo processo de indicação e sorteio. Para saber mais, ver CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da

câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no Sul de Pernambuco (1654-1751).

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. p. 85-86. 246

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0909. 247

Ibidem., Doc.(s) 0486, 0496, 0566, 0770, 0818. 248

Ibidem., Doc. 0909. 249

Ibidem. 250

Ibidem. 251

Ibidem., Doc. 0921. 252

Ibidem., Doc. 0933. 253

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro de

Casamentos, 1727-1740. DSC 02740.

Page 319: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

319

tratar de um reforço das redes de poder que já os vinculavam,254

que possivelmente já

existia entre o pai do nubente e o capitão José Pinheiro na época, e antes mesmo,

daquele conflito. Salienta-se também que Manuel de Melo e Albuquerque e Caetano de

Melo e Albuquerque se tratavam de pai e filho, respectivamente.255

Tal constatação

corrobora com a afirmação de Charles Boxer que, ao se referir à composição das

câmaras municipais ao longo do século XVIII, havia afirmado que estas instituições

tenderam, progressivamente, a tornarem-se oligarquias. No sentido de que foram se

perpetuando no poder local ao eleger e reeleger os oficiais que as compunham, assim

como a provisão dos próprios ofícios, em regime de rotatividade, neles mesmos e em

seus parentes, “contrariando o que estabelecia o regimento de 1504”.256

Àquela situação havia demonstrado o quanto os interesses familiares estavam

presentes nas estruturas administrativas da Capitania do Rio Grande na década de 1720.

Acrescenta-se a isso, os laços de solidariedade estamentais, o corporativismo e o

clientelismo das oligarquias locais, algumas vezes incentivados pela própria Coroa, as

quais tinham como objetivo a incorporação de seus elementos ao aparelho estatal.257

Essa situação levava a um indivíduo bem situado no interior dos órgãos políticos e

administrativos locais a apoiarem, de maneira mútua, outros parentes, principalmente ao

visualizarem o caráter nobilitador da instituição camarária. Mas, o foco principal das

duas famílias, tanto de Manuel de Melo e Albuquerque quanto a de José de Oliveira

Velho, seria a disputa pelo ofício de juiz ordinário, cuja nomeação e posse caracterizar-

se-ia pela “presidência do concelho municipal”258

da Cidade do Natal, representando,

além de “prestígio, a autoridade máxima, em questões judiciárias, na cidade e em seu

termo”259

e, no caso da Câmara do Natal, na década de 1720 até 1759,260

a gerência

administrativa/judicial de toda a Capitania do Rio Grande.

254 Sobre a caracterização e as relações hierárquicas nas redes de poder ver CUNHA, Mafalda Soares da.

A casa de Bragança – 1560-1640. Práticas senhoriais e redes clientelares. Lisboa: Estampa, 2000. 255

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal (Matriz

de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712). IAHGP. CX01. DOC0057 (17). 256

BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. BARRETO, Anna Olga de Barros

(trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 290. 257

PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e

território nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. In: Penélope. Fazer e desfazer a História, n.

6, Lisboa, 1991, p. 124. 258

CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no

Sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de

Pernambuco, Recife, 2014. p. 86. 259

Ibidem.

Page 320: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

320

Todavia, o Capitão mor José Pereira apoiava a entrada no posto de juiz

ordinário do Sargento-mor Antônio da Silva de Carvalho que, possivelmente, seria mais

um dos componentes da rede clientelar do capitão-mor no Rio Grande. Ao que parece,

Caetano de Melo pertencia ao grupo contrário ao de José Pereira da Fonseca, assim,

situando-se do lado do escrivão Bento Ferreira Mouzinho que, provavelmente, seria um

dos que encabeçavam o grupo. Caetano Albuquerque, em vereação, delatou que José

Pereira havia tomado 200$000 réis emprestados ao cofre dos defuntos e ausentes,261

algo impensável, de acordo com regimento e que poderia levar à aplicação de penas.262

Desse modo, tomando o ponto de vista do grupo contrário ao capitão-mor, depreende-se

que este objetivava a inserção de Antônio da Silva naquele posto para encobrir sua

desfeita e, consequentemente, aliviar e adiar a situação até que pudesse restituir o

dinheiro que havia sido tomado emprestado. Essa situação constituir-se-ia, além da

anterior, em mais um caso de exercício ilegítimo de poder por parte do capitão-mor.

Antônio da Silva de Carvalho parecia ser um homem dos mais próximos a José

Pereira. Atesta isso a forma com que esse capitão havia se referido àquele seu

partidário, em carta, de 25 de julho de 1725, como se tratando de “homem muito

pacífico, bem quisto e aparentado com o povo desta cidade [do Natal], [não submetido]

a parcialidades, por ser de boa vida”263

.

Nessa altura do conflito percebe-se a formação de dois grupos antagônicos, a

disputarem a hegemonia política na Capitania do Rio Grande. Um destes grupos, sob a

liderança do então Capitão-mor, José Pereira da Fonseca, que reunia pessoas ligadas à

esfera de poder militar da mesma capitania e, por isso detentora de certa influência. Tal

grupo, possivelmente, era formado por cinco pessoas. Além de José Pereira, José de

Oliveira Velho, Pedro Mendes de Morais, Fradique Correia da Costa e Antônio da Silva

de Carvalho, todos estes detentores de patentes militares, tratando-se de um capitão-

mor, um comissário geral de cavalaria, um sargento, um soldado e um sargento-mor,

260 1759 representou o último ano em que a capitania do Rio Grande possuiria apenas uma câmara, visto

que no ano seguinte deu-se a elevação das missões dos índios a categoria de vilas, o que, por

conseqüência, levaria a constituição de outras câmaras municipais por outras áreas do Rio Grande. Para

saber mais ver LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do

Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História) – Universidade

Federal de Pernambuco, Recife, 2005. p. 24, 122, 129. 261

Ibidem. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal (1672-1815).

Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento 0933, Fl.(s) 045-046. 262

Ibidem. 263

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 114.

Page 321: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

321

respectivamente. Vale salientar que dentre aqueles cinco homens, apenas José de

Oliveira possuía terras na Capitania do Rio Grande, a qual localizava na Ribeira do

Açú.264

Ressalta-se, ainda, que José de Oliveira havia ocupado vários outros postos

dentro da Câmara da Cidade do Natal. Dentre esses, Oliveira Velho foi vereador, juiz

ordinário e almotacé, algo que demonstrava proeminência no cenário político de então,

assim como Fradique Correia e Antônio da Silva que, mais tarde, ocuparam diversos

outros ofícios no interior da Câmara do Natal.265

O outro grupo a disputar interesses na política local era constituído e liderado

pelo Capitão Bento Ferreira Mouzinho, escrivão da Câmara do Natal, pelo Comissário

Geral de Cavalaria, Manuel de Melo de Albuquerque, e o Juiz Ordinário João Guedes

Alcoforado. Afora esses três homens, poder-se-ia mencionar também os demais oficiais

camarários que haviam constituído a Câmara da Cidade do Natal, em diferentes

momentos da década de 1720. Ressalta-se, ainda, que apenas estas três últimas figuras

haviam se envolvido diretamente com as disputas entre o capitão e o escrivão.

Acrescenta-se a este grupo mais um quarto nome, o Ouvidor Geral da Paraíba, Tomás

da Silva Pereira, que se não atuou como integrante direto, muito contribuiu para a

retirada do juiz ordinário eleito ao substituí-lo pelo por outro que era da preferência de

Bento Mouzinho e de seu grupo.

Vale mencionar, ainda, que na mesma vereação na qual foi impedido Antônio

da Silva de Carvalho de assumir o posto de juiz ordinário, outro homem, por nome

Carlos de Azevedo do Vale, também havia sido impedido de tomar posse do ofício de

vereador. Dos motivos elencados no termo de vereação, consta que Carlos Azevedo

seria cunhado de José de Oliveira Velho, então eleito como juiz ordinário e dos que

compunham a rede de apoio do capitão-mor do Rio Grande. Esta situação havia seguido

as orientações legais dispostas nas Ordenações Filipinas (1603) de que era vetada a

existência no interior das câmaras municipais de parentes de até quarto grau.266

Mas

poderia também se configurar como um indicativo de que Carlos Azevedo, por ser

264 CARTA de Sesmaria doada José de Oliveira Velho (RN 1), em 17 de agosto de 1735. Plataforma

SILB- RN 0434. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 05/10/2015. 265

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

1041. 266

Para saber mais sobre as eleições de oficiais no período colonial da História do Brasil, ver

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.

Liv. I, Tít. 67.

Page 322: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

322

cunhado de José de Oliveira, estivesse vinculado ao grupo do capitão-mor, o que,

talvez, houvesse motivado os camarários a vasculharem a vida daquele homem,

impedindo-o, assim, que mais um dos possíveis integrantes da facção de Pereira da

Fonseca, chegasse à Câmara do Natal.

Outro ponto interessante no perfil social de ambos os grupos, foi o fato de se

constituírem de pessoas que possuíam postos militares e judiciais semelhantes, visto que

um e outro possuíam um comissário geral de cavalaria e um juiz ordinário, o que

demonstrava que o apoio dado por estes homens aos indivíduos que lideravam os

grupos não ocorria aleatoriamente, como “massa de manobra”, tão somente. Mas se

fazia mediante interesses próprios, ou até mesmo querelas que envolviam as funções

que desempenhavam atrelados a disputas por prestígio e proeminência em outros

âmagos da administração e, consequentemente, questões de status. Isso demonstrava a

intrincada rede de interesses e o constante jogo político que havia movimentado a

máquina burocrática nas diversas partes do Império. Aqueles homens que haviam

servido de base de apoio aos agentes “encabeçadores” das disputas, vislumbravam a

tomada de partido como uma via para galgarem determinadas posições no interior da

sociedade da Capitania do Rio Grande, sobretudo quando se tem em vista que o grupo

vencedor das querelas seria aquele que se projetaria no cenário político e administrativo

do Rio Grande, acabando por se beneficiarem das inúmeras benesses que daí proviesse.

Transcorridos dois dias após a tumultuada vereação de 25 de fevereiro de 1724,

os oficiais da Câmara de Natal enviavam uma carta ao governador de Pernambuco. O

por levar à carta-queixa, de uma capitania a outra, foi o próprio escrivão da câmara,

Bento Ferreira Mouzinho. Essa situação assinalava o quanto Mouzinho estava

interessado para que aquelas notícias chegassem a uma autoridade de maior gradação na

hierarquia administrativa, afim de que fossem tomadas as medidas necessárias contra o

Capitão mor José Pereira e, quem sabe, culminasse com na retirada deste oficial da

capitania.

Naquela carta, eram denominados de “revoltosos” que estavam a atuar e,

consequentemente perturbar toda a Capitania do Rio Grande, além do Capitão-mor José

Pereira, o próprio juiz ordinário, em exercício na câmara, José de Oliveira Velho.

Contudo, porventura, para disfarçar um pouco o real motivo que o levava a se deslocar

por tão longas plagas, Mouzinho trazia a guisa, juntamente com a carta-queixa, outra

Page 323: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

323

carta destinada a conseguir em Pernambuco adornos e apetrechos para paramentar a

Câmara do Natal.267

Parecia mesmo que o objetivo do escrivão consistia basicamente em retirar do

seu caminho, não se sabe ao certo por quais motivações maiores, os dois indivíduos que

exerciam os maiores postos administrativos na capitania naquele momento que era: o

Juiz Ordinário José de Oliveira Velho e o Capitão-mor José Pereira da Fonseca.

Talvez, dos motivos aventados, fosse o fato de ambos, capitão e juiz, se

fazerem sempre presentes na Cidade do Natal, quiçá na própria câmara, observando e

especulando a situação fiscal, judicial e administrativa e, talvez, questionando as

atitudes indevidas do escrivão diante de questões relacionadas às finanças.

Diferentemente dos demais oficiais dessa instituição, principalmente os vereadores,

muitos dos quais residiam entre doze e dezesseis léguas de distância da cidade e que

estavam muito empenhados com a criação de seus próprios gados.268

Devido a isso, José

Pereira da Fonseca havia afirmado, em 25 de julho de 1725, que os oficiais daquela

câmara não viriam naquela instituição “senão de ano a ano quando tomam posse e as

mais direções que lhes pertencem, deixam ao dito escrivão, que como se vê com estas

larguezas faz os papéis que lhe parece e os faz assinar o que quer, sem verem o que

assinam”.269

Vale salientar que até o ano anterior, ou seja, 1723, o juiz ordinário da Câmara

do Natal, João Guedes Alcoforado, era o sogro do escrivão camarário, Bento Mouzinho,

e que, de um modo ou de outro, acabava por apoiar as ações do genro.270

Outro motivo aventado para que Bento Mouzinho quisesse retirar Pereira da

Fonseca de seu caminho poderia relacionar-se com uma questão de terras. Pois,

constatou-se que aquele agente seria grande sesmeiro pela Capitania do Rio Grande,

possuindo terras em diferentes localidades, havendo recebido, ao todo, seis concessões

de sesmarias 271

e requerido mais uma diretamente ao rei.272

Daquelas seis sesmarias,

267 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0934. 268

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 111. 269

Ibidem. 270

Ibidem. 271

CARTAS de Sesmarias doadas a Bento Ferreira Mousinho, em 20 de abril de 1725; em 04 de outubro

de 1719; em 02 de dezembro de 1724; 25 de outubro de 1742; em 26 de abril de 1735; em 21 de outubro

de 1719. Plataforma SILB- RN 0999; RN 0996; RN 0997; RN 0519; RN 0375; RN 0401. Disponível

em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 05/10/2015.

Page 324: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

324

três foram recebidas até o ano do conflito.273

Destas a primeira e a terceira foram doadas

diretamente pela câmara, por se tratar de chãos de terra, e a segunda pelo capitão-mor

Luiz Ferreira Freire. Todavia, das autoridades da câmara que haviam passado a primeira

e a terceira cartas de sesmarias, consta como uma das autoridades presentes Manuel de

Melo de Albuquerque, cujas relações amistosas com Bento Ferreira Mouzinho haviam

levado, inclusive, a ambos burlar as eleições para o Senado da Câmara do Natal, em

1724.274

Tal situação se consubstanciava em uma intrincada cadeia de relações de

favores, em que a concessão de um privilégio a uma pessoa, criava, necessariamente, o

ato de receber, mas, acima disto, a obrigação “moral” de retribuir o benefício. Esta

mesma cadeia de favores que começava com o rei, iria se afunilando na própria

hierarquia administrativa e de poder, criando uma espiral de poder.275

Isso havia

contribuindo para que Mouzinho burlasse as eleições da câmara, apoiando a posse de

Manuel de Melo de Albuquerque no cargo de juiz ordinário. Quiçá, no vislumbre do

recebimento de outras vantagens materiais ou mesmo simbólicas.

Ressalta-se que, em 11 de novembro de 1723, Bento Mouzinho, enquanto

escrivão da câmara houvesse ficado com uma das chaves do cofre no qual estavam os

sacos contendo as bolas de cera, dentro das quais estavam os nomes dos candidatos a

ocuparem, nos três anos vindouros, os ofícios da cúpula camarária.276

A outra chave

havia ficado em poder do vereador mais velho, João Guedes Alcoforado277

que, como

mencionado anteriormente, se tratava do sogro de Bento Ferreira Mouzinho.278

Possivelmente, de algum modo, isto pôde ajudar o escrivão, a saber, de antemão, o que

estava por vir, mesmo que houvesse todo um cuidado, envolto por sigilo quase absoluto

272 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 176.

273 CARTAS de Sesmarias doadas a Bento Ferreira Mousinho, em 04 de outubro de 1719; em 21 de

outubro de 1719; em 02 de dezembro de 1724.. Plataforma SILB- RN 0996; RN 0401; RN 0997.

Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em: 05/10/2015. 274

AHU-RN, op. cit., Cx. 2, Doc. 114. 275

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos.

Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In: Topoi, v. 5. n. 8,

jan.- jun., 2004. 276

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

0902. 277

Ibidem. 278

AHU-RN, op. cit., Cx. 2, Doc. 111.

Page 325: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

325

no que concerne a divulgação das eleições para os postos de oficiais das câmaras.279

Sigilo que, porventura, as ambições de um escrivão sedento por poder e prestígio o faria

quebrar.

Nesse sentido, a disputa que havia envolvido o cargo de juiz ordinário da

Câmara do Natal se arrastaria por quase todo o ano de 1724, com inúmeras idas e vindas

dos indivíduos. Ora, Manuel de Melo assumia o cargo, ora Antônio da Silva, com a

aprovação do Ouvidor Geral da Paraíba, Tomás da Silva Pereira. Situação essa que,

mais uma vez, demonstrava os códigos culturais vigentes na administração da Capitania

do Rio Grande, na segunda década do século XVIII.

Não obstante, os resquícios daquele jogo de interesses, cujo principal objetivo

era o controle político da Câmara da Cidade do Natal, havia se arrastado para além do

ano de 1724. Ambos, escrivão e capitão-mor, encontravam em diminutas questões

administrativas e burocráticas relacionadas ao cotidiano da Capitania do Rio Grande,

mais “lenha” para abastecer a imensa “fogueira das vaidades” que consumia suas

pacatas vidas. Diante disso, 22 de julho de 1725 foi um dia muito longo na história da

Capitania do Rio Grande. Longo e denso, visto que naquela data, os oficiais camarários

escreveram e enviaram três cartas a D. João V, nas quais relatavam ao rei as atitudes e

os comportamentos do Capitão mor José Pereira da Fonseca.

Na primeira carta, os oficiais concelhios informavam a El’rey que José Pereira

não havia aceitado a proibição vinda diretamente do reino que estipulava que as

câmaras, assim como seus oficiais, estavam terminantemente proibidas de concederem

cartas ou certidões que abonassem a atuação dos capitães-mores.280

Todavia, o então

Capitão mor do Rio Grande havia conseguido aquele conjunto de documentos mediante

atos coercitivos, nos quais teria obrigado um juiz a redigir e lhe conceder tal documento.

Para isso, o mesmo capitão também havia obrigado inúmeras pessoas a servirem como

testemunhas de que o juiz lhe tivesse passado a carta abonatória, na qual se relatava, por

extenso, sua atuação no posto de capitão-mor do Rio Grande.281

Já a segunda carta, expedida na mesma data da anterior e também endereçada a

D. João V, tendo como mesmos remetentes os oficiais da Câmara do Natal, possuía o

mesmo caráter informativo que a primeira e, inclusive, o mesmo alvo: José Pereira da

279 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,

2004. Liv. I, Tít. 67. 280

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 105. 281

Ibidem.

Page 326: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

326

Fonseca. Conforme esta correspondência, o capitão mor não estava fornecendo recursos

humanos para acompanharem os serviços judiciais praticados fora do senado da câmara

ou dos próprios cartórios locais.282

Essa prática era conhecida como diligências, e

tinham como um dos objetivos aprisionarem homens que, por algum motivo, se

achassem criminosos e, por isso, tivessem de pagar pelos crimes que haviam cometido.

Quanto à terceira carta, com os mesmos remetentes, destinatário, objetivos,

havendo, inclusive, sido despachada no mesmo dia, mês e ano das anteriores, relatava

que os oficiais concelhios do Natal se queixavam a D. João V das parcialidades de José

Pereira no que concerne a uma questão entre dois juízes ordinários. Os camarários

acusavam abertamente o capitão-mor de transgredir as leis que estavam postas, assim

como, a própria ordem estabelecida na Capitania do Rio Grande.283

Todas aquelas cartas haviam apresentado José Pereira da Fonseca como um

homem insolente, descomedido e sem juízo. Cujas atitudes, em muitos pontos, afligiam

as pessoas Capitania do Rio Grande, lhes retirando a paz e o sossego de que gozam e,

com isso, prejudicando os vassalos de Sua Majestade, assim como, o andamento e o

desenvolvimento dessa capitania. Nestas mesmas cartas, constava, ainda, que o que

mais desejam os homens daquela localidade seria se livrarem do autoritarismo de um

homem prepotente e arrogante, que não temia nem mesmo a Deus e que isso era algo

preocupante. Na primeira carta, os oficiais da câmara tentavam mesmo mostrar, por

meio de um exemplo factível, o quanto o capitão-mor do Rio Grande não temia sequer a

autoridade régia, visto que havia transgredido uma ordem real. Na segunda carta, os

camaristas haviam apresentado José Pereira como um homem que não mais conseguiria

dar conta de suas obrigações, provenientes do posto em que ocupava. Na última carta

enviada naquele mesmo dia a D. João V, mais uma vez por meio de exemplos, os

homens bons tratavam de mostrar para El’rey quanto mal fazia para a capitania ser

administrada por um homem metido em preferências injustas.

Vale ressaltar que todas aquelas cartas haviam sido manuscritas por Bento

Ferreira Mouzinho e que, por acaso, podiam estar relacionadas com a proximidade do

fim do período de tempo para o qual foi provido no posto de capitão-mor do Rio

Grande, José Pereira. Com isso, os oficiais da câmara intentavam desprestigiarem, ao

máximo que podiam a imagem de Pereira da Fonseca e, quem sabe, orientar a decisão

282 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 106.

283 Ibidem., Doc. 107.

Page 327: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

327

real de retirá-lo da capitania antes mesmo que findasse o seu mandato de uma vez por

todas. Todavia, sabe-se que José Pereira da Fonseca capitanearia o Rio Grande por mais

alguns anos. Visto que este agente havia permanecido por um período de dois

“mandatos”, ou seja, por seis anos, cujo exercício no posto foi de 1722 até 1728.

Acrescentar-se-ia, a isso, um quarto combustível a içar a fogueira das vaidades

naquele período. Este se remetia a uma acusação feita a José Pereira da Fonseca na qual

esse capitão havia mandado soltar alguns presos que se encontravam na Fortaleza dos

Reis Magos.284

Tal atitude motivava os oficiais da Câmara do Natal a enviarem, em

julho de 1725, uma carta de acusação daquele capitão-mor a D. João V.285

Nessa,

relatava-se que Pereira da Fonseca havia mandado soltar dois criminosos. O primeiro

deles por nome de Inácio Duarte e o segundo, Domingos da Fonseca, ambos haviam

sido acusados do roubo de uma espingarda e por haverem assassinado duas outras

pessoas pela Capitania do Rio Grande.286

Dois dias após a confecção do primeiro “malote” de cartas enviadas e um dia

após a última carta, José Pereira de alguma forma havia tomado conhecimento do que

lhe haviam orquestrado os oficiais camarários, juntamente com o escrivão concelhio,

Bento Ferreira Mouzinho. Pois Pereira da Fonseca havia tratado, logo em seguida, de

enviar uma série de carta a D. João V, com o objetivo explícito de responder as

acusações atribuídas a sua pessoa, bem como, explicando as atitudes que o haviam

movido a tomar aquelas drásticas decisões no governo do Rio Grande. Na primeira

desta série, Pereira da Fonseca se preocupou em justificar o porquê havia mandado

soltar os presos da cadeia.287

Justificava-se ao reiterar que os juízes ordinários não

estavam preocupados em realizar as devassas dos crimes e que por não haverem culpas

formadas, não havia motivo de os manterem prisioneiros.288

Nesta mesma carta, Pereira

da Fonseca, atribuía a Bento Ferreira Mouzinho a responsabilidade por todas as

acusações que recaíam sobre ele.289

Ressaltava o capitão mor, em carta de 25 de julho de 1725, que o escrivão

Bento Ferreira havia maquinado uma série de acusações contra a sua pessoa, assim

como, a todos os capitães-mores que até o Rio Grande haviam ido, mesmo a serviço do

284 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 110.

285 Ibidem.

286 Ibidem.

287 Ibidem., D. 111.

288 Ibidem.

289 Ibidem.

Page 328: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

328

rei. Tais atitudes do escrivão eram costumeiras, visto se tratar do único membro da

Câmara do Natal, que vivia nessa cidade, e os demais oficiais estavam a várias léguas

de distância, deixando ao escrivão as funções e direções que lhes competiam, e que por

esse escrivão se ver livre, acabava por fazer inúmeros crimes contra os que não lhe

convinham.290

Pereira da Fonseca encerrava esta carta acusando as ambições do

escrivão, atrelada a iminente falta de justiça naquelas paragens, acerca da ruína do

anterior capitão-mor – Luiz Ferreira Freire –, que ao não se submeter a parcialidades,

havia pagado com a própria. Pereira atribuía ao escrivão à morte desse capitão-mor.

A outra carta escrita por José Pereira à D. João V, dava razão ao fato de não

mandar pessoas para cobrirem as diligências, visto que nelas os juízes ordinários,

juntamente, com os oficiais camarários cobravam excessivas despesas aos moradores,291

os quais não tinham condições de pagá-las, o que levavam muitos deles a serem presos

injustamente. Seria possível cogitar, de acordo com a explicação supra que o capitão

estivesse pleiteando o apoio das pessoas “mais humildes” da capitania, a fim de

amenizar a aspereza de seu mandato, decorrente das disputas com os camarários e com

o escrivão concelhio. Mas, para isso, José Pereira tentava primeiro convencer D. João

V, desfazendo a imagem que havia sido construída pelos oficiais camarários sobre sua

pessoa nas cartas que haviam seguido para o reino.

Os conflitos entre José Pereira e Bento Ferreira Mouzinho chegaram ao

extremo quando, em 25 de julho de 1725, o capitão mor havia se tornado vítima de um

atentado a tiro.292

De acordo com o relato de Pereira da Fonseca, o possível assassino

havia saído da casa do escrivão, Bento Ferreira, e ao se deparar com o dito capitão na

porta da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, que a esta santa fazia uma oração, o

referido homem havia lhe disparado um tiro de raspão com uma catana – espécie de

espingarda –, e não conseguindo matá-lo, como supostamente havia colocado o capitão,

que seria o principal objetivo do delinquente, havia perseguido o criminoso, clamando

que o povo ajudasse a pegá-lo. No entanto, se começava a juntar gente, vários

moradores da cidade, inclusive o juiz ordinário daquele ano, Manuel de Queiroz, a fim

de ajudá-lo ou socorrê-lo e no meio do tumulto que se fez ao seu redor, havia culminado

290 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 111.

291 Ibidem., Doc. 112.

292 Ibidem., Doc. 113.

Page 329: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

329

com a fuga do assassino pelo mato que cercava a cidade inteira.293

O capitão finalizava

a delação, atribuindo a Nossa Senhora da Apresentação o milagre por haver sobrevivido

ao atentado e, com isso, dava conta a El’rey da precária situação da justiça naquela

capitania.294

Nessa carta, José Pereira, de modo intencional, se livrava de duas culpas que

lhe haviam sido imputadas. A primeira delas que se remetia a primeira carta enviada

pelos oficiais camarários, ainda em 1723, na qual aqueles homens atribuíam a Pereira da

Fonseca características de um homem não religioso, não temente a Deus e inimigo

capital do sacerdócio. Visto que o próprio capitão havia mencionado, quando de seu

atentado a tiro, que havia sido salvo por um milagre da santa padroeira da cidade. Além

disso, Fonseca se apresentava naquela carta como sendo um homem muito católico,

visto que acreditava em milagres, ao se remeter a questões religiosas presentes em seu

cotidiano, como, por exemplo, rezar nas portas da igreja, dentre outras características

citadas na carta.

Na segunda missiva, culpava Bento Mouzinho do atentado a tiro que havia

sofrido, pois o criminoso tinha saído da residência desse escrivão. Outro fato que atesta

a relação entre o atentado a tiro sofrido pelo capitão-mor e as suas inimizades com a

câmara, foi o fato de que o juiz ordinário, então empossado na mesma instituição, não

quisera investigar o caso. E quando solicitado por José Pereira, o juiz respondeu que

não havia motivo algum para proceder à investigação, visto que o atentado não teria se

consumado, ou seja, não havia resultado na morte e nem sequer em ferimento do

sobredito capitão-mor.295

Naquele mesmo dia, tratando-se da última carta da série que havia sido escrita

por José Pereira para se eximir das culpas que haviam sido a ele atribuídas, constava a

informação de que este oficial havia feito chegar a Sua Majestade as inúmeras

perturbações que causavam na Capitania do Rio Grande, retirando do povo a paz de

viverem naquele lugar, o escrivão camarário Bento Ferreira Mouzinho, juntamente com

um morador da Cidade do Natal, o Comissário Geral de Cavalaria, Manuel de Melo e

Albuquerque, que, naquele mesmo ano de 1725, era um dos oficiais dessa edilidade,

pois estava a ocupar o ofício de juiz ordinário, mesmo que houvesse sido eleito no

293 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 113.

294 Ibidem.

295 Ibidem.

Page 330: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

330

barrete.296

Desta vez, Pereira da Fonseca havia acusado Manuel Albuquerque e Bento

Mouzinho de haverem burlado as eleições para o Senado da Câmara do Natal, mesma

denúncia apresentada quando do acirramento dos conflitos, entre 1723 e 1724.

José Pereira havia afirmado, ainda, naquela mesma carta, que o Ouvidor Geral

da Paraíba, Tomás da Silva Pereira, havia procedido em favor de Manuel de Melo de

Albuquerque, pois os três haviam se apresentado ao capitão-mor, todos inquietos, por

haverem sonegado a carta de usança297

do juiz ordinário eleito, Antônio da Silva de

Carvalho, o impedindo de assumir por crime, substituindo-o pelo próprio Manuel de

Melo, sorteado na eleição de barrete.298

Ainda segundo aquele capitão-mor, tudo isso se

devia a “indústria do dito escrivão Bento Ferreira”.299

Sabe-se que José Pereira da Fonseca havia permanecido no posto de capitão-

mor da Capitania do Rio Grande durante seis anos, três anos a mais, para além dos quais

ele havia sido inicialmente provido. Ressalta-se que o preenchimento do ofício de

capitão mor, em diversas partes do império, possuía período de tempo delimitado, na

maioria deles, por espaço de tempo de três anos, os quais foram muito bem aplicados

para os capitães-mores antecessores de José Pereira no Rio Grande, existindo algumas

exceções à regra.300

Possivelmente D. João V não havia visto muitos fundamentos nos

argumentos apresentados nas várias cartas-queixas enviadas pelos oficiais da Câmara da

Cidade do Natal. Ou, até os percebera, mas quisera mesmo conceder mostras do poder

que detinha sobre a Capitania do Rio Grande que, além de fazer valer sua primeira

escolha, algo que corroborava se tratar de um ato consciente, pois não havia retirado

Pereira da Fonseca antes do término do período para o qual havia sido provido. D. João

objetivava mesmo, além demonstrar a eficácia de sua escolha, conceder uma lição aos

camarários, posto que houvesse renovado, por mais um mandato, o provimento de

Pereira da Fonseca, durante mais três anos.

296 Eleição de barrete ocorria quando, por algum motivo, um indivíduo eleito no pelouro estava impedido

de assumir o cargo. Rapidamente se faziam uma eleição improvisada, na qual muitos dos indivíduos que

estavam presentes naquela sessão eram chamados para assumirem no lugar do inabilitado. 297

Carta de usança é uma espécie de foral, no qual os oficiais eleitos, ou no pelouro ou no barrete, podem

tomar posse efetiva de seus cargos. A concessão de tal carta também ocorre com os indivíduos que

exercem algum cargo, seja em serventia, seja em propriedade. 298

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 2, Doc. 114. 299

Ibidem. 300

OLIVEIRA, Leonardo Paiva de. Muitos soldados, poucos fidalgos: Candidatos ao governo do Rio

Grande (1700-1751). Revista Acadêmica Historien, Petrolina , n. 10, jan../jun., 2014, 97-110.

Page 331: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

331

Injúria do destino havia sido o fato de ter José Pereira da Fonseca, após

capitanear o Rio Grande, passado seus últimos dias de vida encarcerado na Prisão do

Limoeiro, em Lisboa.301

Para onde eram remetidos todos aqueles homens que

houvessem cometido atos errôneos ou inadequados na administração, como excessos e

transgressões das leis e ordens do Império. Esse documento se trata de uma consulta

realizada pelo Concelho Ultramarino a D. João V,302

sobre um requerimento anterior de

José Pereira da Fonseca, solicitando a El’rey licença para tratamento de saúde fora da

prisão em que se encontrava.

Naquele mesmo pedido, datado de 12 de setembro de 1731, constava no relato

de José Pereira, que esse agente havia sido enviado preso para Corte de Lisboa, “sem

culpas formadas, por intervenção de informações falsas de alguns de seus inimigos”.

Sabe-se assim, que, talvez, José Pereira da Fonseca, ex-capitão-mor do Rio Grande,

passou seus últimos anos de vida preso na Cadeia do Limoeiro, pois seu pedido havia

sido impugnado pelo rei. Com a idade já muito avançada, contando pouco mais de

sessenta anos e com a saúde bastante debilitada, se encontrava ainda, acometido por

inúmeros “achaques”.303

Assim terminava a vida de um homem que havia servido ao rei

em inúmeras localidades, durante pouco mais de quarenta anos.

Supõe-se que dos inimigos de que tratava Pereira da Fonseca em seu pedido,

um deles, possivelmente, seria o próprio escrivão da Câmara do Natal, Bento Ferreira

Mouzinho, que não havia poupado esforços para retirá-lo do Rio Grande, algo que

somente viria a ocorrer em 1728, pois o provimento de Pereira da Fonseca no posto de

capitão-mor não seria mais prorrogado.

Quanto ao escrivão camarário, Bento Ferreira Mouzinho, este ainda continuava

a atuar por vários anos na Capitania do Rio Grande. Enquanto seu inimigo, o ex-

capitão-mor estava preso em Lisboa, Mouzinho permanecia na serventia da escrivania

da Câmara da Cidade do Natal. Ofício este que exerceria até o final de dezembro de

1732.304

E, já em 1733, Bento Ferreira Mouzinho apareceia na documentação como

301 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 173.

302 Ibidem.

303 Ibidem.

304 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). Documento

1136.

Page 332: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

332

escrivão da Fazenda Real, Alfândega e Almoxarifado da Cidade do Natal305

e, em 1738

como Provedor da Real Fazenda do Rio Grande.306

Ressalta-se que apenas em 1745, após devassa efetuada por solicitação do

então Capitão-mor do Rio Grande, João de Teive Barreto e Menezes, averiguou-se que

o escrivão da Câmara do Natal, Bento Mouzinho, com o auxílio de uma pistola, teria

sido o culpado pelo atentado a tiro de José Pereira, que não se consumou por aquele

escrivão haver “errado o fogo”.307

Acrescentava, ainda, que o culpado de Pereira da

Fonseca haver terminado seus últimos dias de vida preso, devia-se a grande quantidade

de cartas sobre esse capitão mor que haviam sido enviadas por Bento Ferreira Mouzinho

à D. João V, ao longo do governo de Pereira da Fonseca na Capitania do Rio Grande.308

Tudo isso corrobora com a afirmação de Charles Boxer de que as câmaras

municipais constituíram-se como adversárias mordazes e acerbas dos ministros

enviados pela Coroa para as possessões ultramarinas, criticando até mesmo “altos

funcionários do governo”, principalmente quando estivessem em jogo interesses de

algum grupo local.309

Mesmo que para alcançarem seus objetivos tivessem de lançar

mão, como pontuou Russell-Wood, ora da negociação, ora da pressão.310

Em ambos os

conflitos entre o escrivão Bento Ferreira Mouzinho e os dois capitães-mores, percebe-

se, inicialmente, que o escrivão camarário utilizou-se da negociação com D. João V,

mas como não se obtinha os resultados que pretendia, havia partido para a pressão, ao

utilizar-se do confronto físico, no mais das vezes injusto, no qual surpreendia suas

vítimas matreiramente. Pareceu ao Concelho Ultramarino ser viável a expulsão deste

indivíduo para fora da Capitania do Rio Grande.311

O que levaria Mouzinho a se mudar

para a Vila de Goiana, na antiga Capitania de Itamaracá, onde passaria a exercer o

ofício de juiz de órfãos,312

do qual seria proprietário.313

Mais tarde, Bento Ferreira

305 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 177.

306 Ibidem., Cx. 4. Doc. 242.

307 Ibidem., Cx. 5, Doc. 297.

308 Ibidem.

309 BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. BARRETO, Anna Olga de Barros

(Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 298. 310

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e Periferia no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de

História. v. 18, n. 36. São Paulo, 1998, p. 187-150. 311

AHU-RN, loc. cit. 312

AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 20, Doc. 1529. 313

“Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional: Rio de Janeiro,

BN, v. 28, 1906. p. 470.

Page 333: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

333

Mouzinho envolver-se-ia nessa vila noutra série de conflitos com os oficiais camarários,

decorrente de sua atuação indevida quando da ocupação do ofício de juiz de órfãos.314

Esse longo conflito entre o escrivão e o capitão-mor, permite-nos entrever a

cultura política do Antigo Regime português, no início do século XVIII, na Capitania do

Rio Grande, que havia se caracterizado por uma intrincada relação de interesses

individuais, responsáveis por mobilizar inúmeros indivíduos, assim como, interesses

familiares ou de grupos dentro das estruturas administrativas implantadas pela Coroa no

ultramar. Nesse ínterim, o estudo da série de conflitos que havia envolvido o escrivão

da camarário da Cidade do Natal, Bento Ferreira Mouzinho, e o Capitão-mor do Rio

Grande, José Pereira da Fonseca, ao longo da segunda década daquele século, evidencia

a atmosfera cultural em que aqueles indivíduos estavam submersos.

Tais conflitos, além de, sumariamente, demonstrarem posições políticas

contrárias, tomadas por dois indivíduos distintos na administração da Capitania do Rio

Grande, havia mostrado, ainda, o quanto ambos se aproximavam, partilhando de

códigos, símbolos e representações de um universo mental comum. Este universo seria

a cultura política do Antigo Regime português que havia orientado a atuação de

inúmeros homens que estiveram a serviço da Coroa, sobrepondo seus próprios

interesses ao interesse maior da Coroa portuguesa.

Todavia, esta série de embates abre margem para que se possa vislumbrar a

atuação do rei enquanto árbitro supremo nas relações de vassalagem que se espalhavam

pelas conquistas, pois a recorrência, através de cartas, requerimentos e petições, servia

mesmo para reforçar sua autoridade, não submetida a desejos caprichosos das elites

locais. Servia, ainda, para se identificar um momento não somente de crise na

administração da Capitania do Rio Grande, quando da formação de duas facções

contrárias a se digladiarem pela hegemonia política da Câmara da Cidade do Natal.

Teria sido este um momento de luta pelo reordenamento político da capitania, o que

resultou mesmo no processo de consolidação das disposições de mando sobre a o Rio

Grande, pois foi justamente nesse momento que a influência da família Albuquerque

passou a ser questionada, sendo os focos irradiadores destas questões sufocadas como,

por exemplo, a morte de Luiz Ferreira Freire e o banimento para a prisão do Limoeiro

314 AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 77, Doc. 6491.

Page 334: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

334

de José Pereira da Fonseca, dois homens que, a serviço do rei, tentaram proceder a este

reordenamento.

O Capitão Bento Ferreira Mouzinho, após a saída de José Pereira da Fonseca

do posto de capitão-mor, havia permanecido como escrivão da Câmara do Natal até

1732,315

chegando mesmo acumular esse ofício com a escrivania da Fazenda Real do

Rio Grande, com o Juizado de Órfãos e com a Provedoria dos Defuntos e Ausentes.316

Essa situação confirmava a asserção de Laura de Mello e Souza, ao assegurar que “a

natureza do poder foi vista como eminentemente contraditória, tendendo ora à

centralização, ora a autonomia”,317

posto que se por um lado Ferreira Mouzinho fosse

capaz de impor limites aos projetos da Coroa, pensados para a Capitania do Rio Grande,

por outro, seria um grande aliado na viabilização dos trâmites burocráticos e

administrativos, como declarava os oficiais da Câmara do Natal, em 08 de outubro de

1732, por ser Bento Mouzinho “pessoa com capacidade, conhecimento e fidelidade” e

que por isso seria “conveniente ao serviço de Sua Majestade e utilidade pública”.318

No

entanto, indica-se que, em 02 de dezembro de 1732, o Ouvidor Geral e Corregedor da

Paraíba, Tomás da Silva Pereira, suspenderia Ferreira Mouzinho de três dos quatro

ofícios que então ocupava, deixando-o servir apenas como escrivão da Fazenda Real.319

Salienta-se, como se verá a seguir, que quando Bento Ferreira Mouzinho ingressou na

escrivania da Real Fazenda envolver-se-ia noutra série de conflitos, muitos dos quais

motivados pelas ambições desse escrivão por obtenção de riqueza, prestígio, poder e

status, configurando-se como um dos integrantes de um movimento que se deflagraria

pelos sertões da Capitania do Rio Grande e cujas notícias chegaram até Lisboa,

movimento esse que seria batizado pelos conselheiros do Concelho Ultramarino como a

Revolta dos Magnatas, como assim ficaria conhecido na historiografia local.

4.7 “A Revolta dos Magnatas”

315 LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de

Natal (1674-1823). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (no prelo). 316

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297. 317

SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do

século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 14-15. 318

AHU-RN, loc. cit. 319

Ibidem.

Page 335: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

335

Mormente, na escrivania da Real Fazenda, Ferreira Mouzinho não deixaria de

se envolver em questões litigiosas, mesmo que para isso arrastasse seu próprio filho nos

esquemas.320

Em 1739, iniciar-se-ia outra sucessão de conflitos entre Bento Ferreira

Mouzinho e o novo Capitão-mor do Rio Grande, João de Teive Barreto e Menezes

(1734-1739), decorrente das atuações indevidas daquele frente à escrivania da Fazenda,

onde havia permanecido como serventuário até 1737321

e, depois, quando Ferreira

Mouzinho assumiu, interinamente, o ofício de provedor da Fazenda Real,322

o que os

levaram a se oporem em contínuas questões.323

Na década de 1740, quando já corria a devassa sobre a atuação de Bento

Ferreira Mouzinho, discutida anteriormente, este estava a liderar um grupo formado,

além dele, por Teotônio Fernandes Temudo, então Provedor da Fazenda Real, Lauriano

Correia de Lira – arrematador do contrato do gado do vento no ano de 1741 –, Inácio

Pereira de Souza – fiador do anterior –, Nuno Guedes – parente da esposa de Bento

Mouzinho – e Rodrigo Guedes Alcoforado Mouzinho, filho do sobredito escrivão da

Fazenda Real.324

Esse grupo estava a disputar interesses pela arrematação dos contratos

da Real Fazenda do Rio Grande, sobretudo na Ribeira do Apodi, com outro bando,

formado pelos irmãos Pinto da Cruz, sendo estes apoiados pelos oficiais camarários,325

no movimento que ficaria conhecido como Revolta dos Magnatas, que foi de 1741 até

1744,326

ano que se concluíram todas as etapas de investigação sobre as ações de

Mouzinho nos diferentes ofícios pelos quais havia passado na administração local da

Capitania do Rio Grande.327

De acordo com Lívia Barbosa o grupo liderado por Bento Ferreira Mouzinho

“consistia na apropriação do gado do vento, mas também de uma parte de todo o gado

pertencentes aos moradores e de suas fazendas na Ribeira do Apodi.”328

Vale lembrar

320 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 05, Doc. 297.

321 Ibidem., Cx. 03, Doc. 220.

322 Ibidem., Cx. 04, Doc(s). 242, 251.

323 Ibidem., Cx. 05, Doc. 297.

324 Cf. BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos, Fiscalidade e

Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, v. 5.

n. 9, jan.-jun., 2016, p. 242-243. 325

Ibidem., p. 248. 326

Ibidem., p. 229. 327

AHU-RN, loc. cit. 328

BARBOSA, op. cit., p. 243.

Page 336: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

336

que além de Bento Ferreira Mouzinho ocupar o ofício de escrivão da Fazenda Real,329

era também coronel da Ribeira do Apodi,330

o que lhe concederia além de prestígio

social, a possibilidade de intimidação dos moradores daquela área. Na pesquisa de Lívia

Barbosa apontou-se, ainda, que “caso houvesse alguma reclamação, o provedor da

fazenda seria responsável por julgar o contratador, devido aos privilégios do contrato, e

inocentaria Inácio de Sousa e os seus sócios.”331

Aquela autora concluiu que o grupo ligado ao Provedor da Fazenda Real,

Teotônio Fernandes Temudo, do qual Bento Mouzinho era aliado, saiu vitorioso e

fortalecido do embate,332

mesmo que a política adotada pelo Capitão mor Francisco

Xavier de Miranda Henriques fosse de aproximação com os camarários e, portanto,

contrária às intenções dos oficiais da Fazenda, dando continuidade as mesmas

estratégias conflituosas adotadas pelo seu antecessor João de Teive Barreto e Menezes

em face da alçada do Provedor da Fazenda, Teotônio Fernandes Temudo, com o

objetivo explícito de ampliar sua jurisdição sobre a dimensão fazendária da capitania.333

Diante disso, pode-se compreender, a partir da análise da Revolta dos

Magnatas, que as informações prestadas pelo Capitão mor Francisco Xavier de Miranda

Henriques, sucessor de João de Teive, em 19 de maio de 1742, a D. João V ao longo das

inquirições que fizeram parte da devassa sobre os procedimentos de Bento Ferreira

Mouzinho, também carregava interesses meticulosos, ligados às pretensões dos

capitães-mores do Rio Grande em expandir as suas jurisdições por sobre a Fazenda Real

dessa capitania. Isso justificaria o parecer de Miranda Henriques em favor de João de

Teive Barreto e Menezes, quando em resposta a um decreto de D. João V, segundo o

qual João de Teive teria sido incriminado pelo zelo que tinha com a Fazenda Real de

maneira injusta, posto que “se se tirasse a devassa, ficassem nela culpados outros que

tem administrado” a Fazenda Real.334

329 BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos, Fiscalidade e

Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-1744). In: Revista Ultramares, v. 5.

n. 9, jan.-jun., 2016, p. 243. 330

Fundo documental do IHGRN. Caixa 06 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 17

(1728 – 1736). Fl. 159. 331

Para saber mais sobre a “Revolta dos Magnatas” e os contornos que esse conflito assumiu, ver

BARBOSA, op. cit., p. 243. 332

Ibidem., p. 250. 333

Ibidem., p. 249. 334

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, Doc. 211.

Page 337: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

337

Após cinco longos anos de inquérito, a devassa concluiu que “a causa total

delas é o dito Escrivão Bento Ferreira e que este com gênio orgulhoso e modo

dissimulado, maquinaria astutamente todos esses problemas”.335

O parecer de Inácio de

Souza Jácome Coutinho, Ouvidor Geral da Paraíba, em 30 de agosto de 1745, foi que

Bento Mouzinho saísse da Capitania do Rio Grande para a Vila de Goiana, onde

passaria a exercer o ofício de Juiz de Órfãos, do qual era proprietário. D. João V, diante

de todos os fatos, acatou a sugestão do Ouvidor e expulsou Mouzinho da Capitania do

Rio Grande, “para o sossego dela e de seu povo”.336

4. 8 “Não pai, mas sim padrasto dos miseráveis órfãos”

Um ano após a saída forçada do Rio Grande, em 15 de maio de 1746, Bento

Ferreira Mouzinho já se encontrava exercendo o ofício de juiz de órfãos da Vila de

Goiana,337

do qual possuía título de propriedade.338

Pois, em carta daquele mesmo dia,

reportava-se a D. João V sobre os costumes que existiam naquela localidade, de os

credores ajuizarem os viúvos, antes mesmo de se procederem aos inventários e as

partilhas, algo que prejudicava sorrateiramente aos herdeiros órfãos.339

Mesmo que agisse de modo pertinente para com os interesses de seu ofício, do

povo da dita Vila e à bem do serviço d’El Rey, reverbera-se a atmosfera de impunidade

que havia encoberto, levianamente, os inúmeros conflitos com diversas autoridades

régias, os roubos e os desvios do erário da Fazenda Real, as mortes que havia cometido,

tanto no reino quanto no Rio Grande e as tentativas de assassinatos. Ferreira Mouzinho

havia ganhado o direito de exercer a propriedade de um ofício, considerado estratégico,

por interferir diretamente na reestruturação do patrimônio das famílias. Essa situação se

caracterizaria, como alegou Laura de Mello e Souza, na “busca oscilante da justa

medida” que, via de regra, pautava-se “ora pela violência, ora pela contemporização”,340

mas cuja finalidade precípua seria assegurar o equilíbrio político de disposição dos

335 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297.

336 Ibidem.

337 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 64, Doc. 5429.

338 “Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:

BN, v. 28, 1906. p. 470. 339

AHU-PE, loc. cit. 340

SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do

século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 15.

Page 338: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

338

poderes sociais e, consequentemente, garantir a sobrevivência do mando institucional

pelo Império.

Todavia, não tardaria para que Bento Ferreira Mouzinho se envolvesse

novamente em altercações pelas novas paragens. Sua atuação no ofício de juiz de órfãos

da Vila de Goiana renderiam à D. João V outras dificuldades na administração dessa

localidade. Porquanto, em requerimento de 11 de maio de 1748, Manuel Ferreira da

Costa havia solicitado a D. João V puder demandar Ferreira Mouzinho na justiça letrada

de Pernambuco, posto que ele houvesse tomado um empréstimo de pouco mais de $

600.000,00 reis, mas que estaria em faltas com o pagamento.341

De acordo com Manuel

da Costa, Bento Ferreira se fiava na condição de ser juiz de órfãos da Capitania de

Itamaracá, onde seria tido por “poderoso”, além de não se poder abrir inquérito contra

ele na dita capitania, pois somente existiam justiças leigas.342

Essa petição além de

demarcar o início das contendas de Bento Ferreira na Vila de Goiana, pontuava, ainda, o

prestígio de que esse agente social desfrutava na Capitania de Itamaracá, visto que

gozava de alguns privilégios inerentes à jurisdição de seu ofício, como o fato de não

poder ser julgado pelas justiças leigas.343

Manuel Ferreira da Costa era natural da

Província de Entre-Douro-e-Minho,344

senhor do Engenho Nossa Senhora do Carmo, na

Freguesia da Várzea,345

mas que morava, havia muitos anos, na Vila de Santo Antônio

do Recife,346

era possuidor de uma grande fortuna, avaliada em sessenta mil cruzados

quando, em 22 de junho de 1773, solicitava a D. José I a licença para dividir sua

herança ainda em vida.347

Em abril de 1749, os oficiais da Câmara da Vila de Goiana, José Ferreira da

Costa, Antônio Gomes Coelho, André Mendes e Manuel Rodrigues Sepeda, em carta à

D. João V, queixavam-se dos abusos cometidos pelo Juiz de Órfãos, Bento Ferreira

Mouzinho, juntamente com o Ouvidor da Capitania de Itamaracá, Lourenço da Silva de

Melo, e o Padre Jorge Aires de Miranda. De acordo com os oficiais camarários, este

grupo estaria a “fabricar máquinas com que perturbam esta república, querendo

341 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 67, Doc. 5696.

342 Ibidem.

343 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. 2. ed. Lisboa: Fundação Colouste Gulbenkian,

1984. Liv. I, Tít. 88. 344

AHU-PE, op. cit., Cx. 114, Doc. 8788. 345

Ibidem., Cx. 71, Doc. 5994. 346

Ibidem., Cx. 114, Doc. 8788. 347

Ibidem.

Page 339: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

339

intrometer-se em tudo”.348

Ao que parece, Ferreira Mouzinho havia se consorciado com

o grupo que ele mesmo havia denunciado em 11 de maio de 1746, quando havia

ingressado no juizado dos órfãos da Vila de Goiana, posto que nessa denúncia houvesse

afirmado que alguns párocos das freguesias e credores ajuizavam as dívidas deixadas

pelos falecidos antes de se efetivarem a partilha dos bens.349

Possivelmente, Ferreira

Mouzinho viu-se atraído pelos lucros que adviessem desse esquema, isto o levaria a

planejar e executar mais um crime, como se verá a seguir.

O padre Jorge Aires de Miranda, sócio de Bento Ferreira Mouzinho em alguns

crimes ocorridos pela Vila de Goiana, era proprietário dos ofícios de escrivão concelhio

e de tabelião da referida localidade, nos quais serviam André Mendes ,350

que nas duas

representações efetuadas pelos oficiais da Câmara da Vila de Goiana, havia assinado a

primeira e efetuado esse mesmo procedimento, bem como redigido a segunda carta,

juntamente com demais oficiais camarários que serviram nos anos de 1749 e 1753.351

Não foi possível de se identificar as motivações que levavam André Mendes a se opor,

de maneira tenaz, ao juiz de órfãos Bento Ferreira Mouzinho. No entanto, pode-se

cogitar que antes da chega desse magistrado, André possuísse uma participação mais

ativa na sociedade entre o Padre Jorge Aires de Miranda e o Ouvidor Lourenço da Silva

de Melo, nas armações que realizavam pela Capitania de Itamaracá para obterem, de

maneira dividendos materiais.

Os excessos de Bento Mouzinho no ofício de juiz de órfãos impeliram os

oficiais da Câmara de Goiana, André Mendes, Antônio de Albuquerque de Melo,

Antônio de Sampaio Correia e Bartolomeu Caetano Pereira, a enviarem, mais uma vez,

outra carta, em 19 de dezembro de 1753, dessa feita, para D. José I – sucessor de D.

João V. Nessa carta, acusavam o juiz de órfãos de ser o motor de várias vexações pela

localidade, inclusive do crime de latrocínio.352

Esses oficiais suplicavam, ainda, que

Ferreira Mouzinho fosse expulso da dita capitania para o “sossego daquele povo”, e

complementavam a denúncia afirmando que “[...] este senhor tomando posse do ofício

de juiz de órfãos desta capitania não tem cessado de demonstrar não pai, mas sim

348 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 69, Doc. 5803.

349 Ibidem, Cx. 64, Doc. 5429.

350 “Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:

BN, v. 28, 1906. p. 470. 351

AHU-PE, op. cit., Cx. 114, Doc. 8788; Ibidem., Cx. 75, Doc. 6295. 352

Ibidem., Cx. 75, Doc. 6295.

Page 340: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

340

padrasto dos miseráveis órfãos”.353

Tal carta havia motivado os membros do Conselho

Ultramarino a redigirem uma consulta à D. José I, em 16 de dezembro de 1754, acerca

dos roubos e demais desordens que provocava na Vila de Goiana, o Juiz de Órfãos

Bento Ferreira.354

O parecer de D. José, por meio do secretário de Estado, Diogo de

Mendonça Corte-Real, instituía que o Governador de Pernambuco se informasse de toda

a situação e que o Ouvidor da Paraíba fosse devassar o caso. Acrescentava D. José, “que

achando o que maior parte do que nela se diz ser certo”, ordenasse que Bento Ferreira

fosse para Olinda e, na sequência, partisse para o sequestro de todos os seus bens, a fim

de ressarcir as famílias agravadas.355

Um ano mais tarde, em 15 de dezembro de 1755, o Ouvidor Geral da Capitania

da Paraíba, Domingos Monteiro da Rocha, enviava ao Conselho Ultramarino o

resultado da residência do Juiz de Órfãos, Bento Ferreira, e duas devassas sobre o

sumiço de uma moça, por nome Ana de São Pedro, no qual estava envolvido Bento

Ferreira e seus familiares.356

Na primeira devassa, executada pelo então Juiz de Órfãos

da sobredita vila, Rodrigo Guedes Alcoforado Mouzinho – filho de Bento Ferreira

Mouzinho –, em 1754, não se encontrou nenhum culpado,357

mas o pai da moça

desaparecida, Manuel Correia Viana,358

estava a solicitar que se fizesse outra

investigação.359

Porém, na segunda devassa, efetuada pelo Ouvidor Monteiro da Rocha,

foi declarado como culpado Bento Ferreira Mouzinho, juntamente com seu filho que

naquele ano estava a servir o ofício de Juiz de Órfãos da Vila de Goiana, Rodrigo

Guedes, sua esposa, Jerônima Guedes Alcoforado e outro filho de Ferreira Mouzinho360

– que, talvez fosse Bento Ferreira Guedes ou Jerônimo Guedes.361

De acordo com a

devassa, Bento Mouzinho se fiaria em sua “fidalguia e cargo que exerce”, para cometer

353 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 75, Doc. 6295.

354 Ibidem, Cx. 77, Doc. 6491.

355 CONSULTA feita ao Conselho Ultramarino sobre se desonerar Bento Ferreira Mouzinho da ocupação

de juiz dos órfãos, por causa dos roubos e desordens que tem praticado. Coleção Documentos Históricos

da Biblioteca Nacional. v. 89. p. 201-202. 356

CARTA do Ouvidor Geral da Paraíba o Bacharel Domingos Monteiro da Rocha, a Vossa Majestade

referindo-se a segunda devassa que mandou instaurar sobre o desaparecimento de uma moça, em Goiana,

Capitania de Itamaracá. Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. v. 89. p. 237-238. 357

Ibidem. 358

AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 20, Doc. 1529. 359

CARTA do Ouvidor Geral da Paraíba o Bacharel Domingos Monteiro da Rocha... loc. cit. 360

Ibidem. 361

FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia Pernambucana. v. 1. In: Anais da

Biblioteca Nacional. v. XLVII, 1918. p. 140.

Page 341: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

341

toda a série de atrocidades de que lançara mão na Capitania de Itamaracá para benefício

próprio.362

Mesmo diante de toda essa investigação e do resultado da segunda devassa,

Bento Ferreira Mouzinho continuava como proprietário do ofício de juiz de órfãos, pois

em 15 de maio de 1755, escrevia para D. José I sobre uma lei que havia sido

promulgada no reino e que concedia um aumento considerável nos salários dos

ministros e demais oficiais de justiça e através dessa carta, Mouzinho estava preocupado

se essa diretiva iria implicar também no salário que recebia anualmente da propriedade

do ofício de juiz de órfãos da Capitania de Itamaracá.363

Por fim, Ferreira Mouzinho tentava sua última cartada para reverter à sua

complicada situação em que se encontrava, acusando o Ouvidor Domingos Monteiro da

Rocha de estar mancomunado com o Provedor da Fazenda Real da Vila de Goiana, João

Lopes Vidal, o qual lhe nutria “paixões e ódios” terríveis.364

Ao se procurar o

fundamento dessa assertiva, observou-se que João Lopes Vidal, proprietário do ofício

de provedor da Fazenda Real da Capitania de Itamaracá,365

havia se envolvido em uma

longa querela com os Guedes Alcoforado, envolvendo João Guedes Alcoforado – o pai

–, e João Guedes Alcoforado – o filho –, sendo o segundo o procurador dos interesses

do primeiro na Capitania de Itamaracá,366

sendo ambos, pai e avô de D. Jerônima

Guedes Alcoforado, esposa de Bento Ferreira Mouzinho.

Essa contenda havia sido motivada pelas dívidas que João Guedes, o velho,

devia a Fazenda Real da sobredita Capitania e que após o ingresso de João Lopes Vidal

no ofício de provedor dessa instituição, procedeu-se a cobrança dos débitos, após 25 de

abril de 1732.367

Antes disso, Manuel Dias Aranha, almoxarife da Fazenda, alertava a D.

João V, em 28 de abril de 1732, que a dívida de João Guedes Alcoforado nunca havia

sido cobrada pelos seus antecessores, posto que esse agente possuísse grande intimidade

com antigos almoxarifes, bem como devido à fama de criminosos que seus filhos

362 CARTA do Ouvidor Geral da Paraíba o Bacharel Domingos Monteiro da Rocha, a Vossa Majestade

referindo-se a segunda devassa que mandou instaurar sobre o desaparecimento de uma moça, em Goiana,

Capitania de Itamaracá. Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. v. 89. p. 237-238. 363

AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 79, Doc. 6572. 364

Ibidem. 365

“Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:

BN, v. 28, 1906. p. 470. 366

AHU-PE, op. cit., Cx. 43, Doc. 3867. 367

Ibidem.

Page 342: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

342

ostentavam por toda a Capitania de Itamaracá.368

Quase dois meses depois, em 16 de

junho de 1732, o Provedor Lopes Vidal, em carta para D. João V, informava que já

havia posto editais para a arrematação do Engenho São João, de propriedade dos

Guedes Alcoforado.369

No entanto, o Engenho somente seria arrematado no final da

década de 1740, em 25 de janeiro de 1748, o Padre José Gomes de Amorim solicitava a

prisão preventiva do antigo proprietário do engenho, João Guedes Alcoforado, bem

como a devolução de alguns utensílios que este agente havia retirado da capela da

propriedade.370

Foi devido a tudo isso que Bento Ferreira Mouzinho havia tentado driblar as

conclusões da devassa efetuada por Domingos Monteiro da Rocha, pois segundo o

acusado esse ouvidor havia atuado conforme as orientações de João Lopes Vidal, um

dos implicados na contenda da arrematação do Engenho São João Batista, de

propriedade da família Guedes Alcoforado, pois Ferreira Mouzinho seria casado com

uma das herdeiras. No entanto, essa acusação foi desmentida, em 10 de março de 1759,

pela sindicância instaurada pelo sucessor de Monteiro da Rocha na Ouvidoria da

Paraíba, João Rodrigues Colaço, segundo o qual as evidências eram gritantes, como

apontado pelas testemunhas levantadas.371

Mesmo assim, pondera-se, que a família

tanto poderia contribuir de maneira positiva para as pretensões dos indivíduos, quanto

negativa. Isso fica evidente no episódio da querela que havia envolvido o Engenho São

Batista, pertencente aos Guedes Alcoforado, aos quais Bento Mouzinho estaria

vinculado através do casamento com uma das herdeiras da casa.

Ao fim e ao cabo, de acordo com a carta enviada pelo Ouvidor Domingos

Monteiro da Rocha à D. José I, em 8 de abril de 1757, o Juiz de Órfãos Bento Ferreira

Mouzinho, após a residência efetuada, foi sentenciado por todas as atrocidades

cometidas na Vila de Goiana, dentre as quais o assassinato de Ana de São Pedro, filha

de Manuel Correia Viana, e de um escravo desse senhor. Tudo isso, segundo o ouvidor,

teria sido motivado pelos “ódios e aversões” que sobre Manuel Correia nutria Ferreira

Mouzinho. Todavia, não foi possível averiguar o que estaria envolvido nessas aversões.

A penalidade de Bento Ferreira Mouzinho foi à suspensão do ofício que então ocupava

e como seria inimaginável residir onde havia cometido tão cruel e sagaz dolo, teria de

368 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 44, Doc. 4023.

369 Ibidem., Doc. 3995.

370 Ibidem., Cx. 67, Doc. 5662.

371 AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 21, Doc. 1600.

Page 343: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

343

sair imediatamente de Goiana, sendo remetido preso ao “Tribunal da Relação”.372

Possivelmente, Bento Ferreira Mouzinho teria terminado seus últimos dias de vida

encarcerado nesse Tribunal ou mesmo às voltas, gastando toda a fortuna que havia

amontoado ao longo de quarenta e dois anos de roubos, assassinatos, latrocínios e

desvios, “em capa do zelo do serviço de Deus [...] e de Sua Majestade”.373

A partir da biografia de Bento Ferreira Mouzinho, nas engrenagens

administrativas locais do Império português, pôde-se compreender os dilemas e os

impasses que constantemente entrecruzaram o exercício do mando institucional nas

áreas de conquista e, nesse caso, de modo particular, nas periféricas Capitanias do Rio

Grande e de Itamaracá, na primeira metade século XVIII. Contanto, afirma-se que as

ações que foram levadas a cabo por aquele agente social não sobrevieram subitamente,

mas que tiveram como substrato toda a cultura política do Antigo Regime português,

formada por mecanismos de sociabilidade complexos, muitas vezes ambivalente, que se

caracterizavam por práticas de indistinção entre os universos público e privado, mas

nem por isso seria menos importantes ou ilegítimas, dado o próprio caráter moral e

jurídico – a sociedade polissinodal do Antigo Regime – que lhes serviam de

ancoradouro.

A trajetória de Bento Ferreira Mouzinho seria emblemática também da

possiblidade de ascensão social, através da barganha de bens materiais – como

sesmarias – ou simbólicos – patentes das companhias locais de ordenanças –, nas

rígidas estruturas estamentais do Antigo Regime, embora confirmasse que, para isso,

seria necessária a chancela d’El Rey, que fazia girar, pela economia do “dom” ou de

“mercês”, a espiral do poder. Ressalta-se que para obter tais benesses, raramente seria

possível individualmente, e as várias alianças de Bento Mouzinho entorno da

hegemonia pelo poder, reiteram o sobrepeso das redes clientelares, da família e da

parentela para o sucesso ou para o fracasso de um agente social.

372 AHU-PB, Papéis Avulsos, Cx. 20, Doc. 1529.

373 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, Doc. 297.

Page 344: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

344

Ao fim e ao cabo, o percurso de Ferreira Mouzinho reverbera os limites do

mando institucional, impostos pelo oficialato, nas estruturas administrativas locais do

Império português. Exemplo disso foram os conflitos jurisdicionais, as lutas por

representatividade do poder, a força dos potentados locais contra os ministros nomeados

por El’ Rey, forjando as relações espaciais de poder, cuja natureza era concebida pela

Coroa, ora tendendo à centralização e a violência, ora ao autogoverno e a

contemporização, mas cuja finalidade precípua era manter o exercício do mando no

ultramar.

Além disso, pôde-se perceber com a trajetória de Bento Ferreira Mouzinho,

que a escrivania da Câmara Municipal do Natal, configurou-se como o primeiro ofício

desempenhado na longa carreira administrativa que esse homem desenvolveu no

ultramar, caracterizando-se, portanto, como um mecanismo nobilitador, juntamente com

outros dispositivos controlados pelas câmaras municipais, dado que um indivíduo

reinol, fugitivo e criminoso, como Bento Ferreira Mouzinho, havia conseguido galgar

outros postos na administração local e a partir dele ascendido socialmente na hierarquia

estamental do Antigo Regime. Depreende-se, ainda, que o caráter nobilitador atribuído

pela historiografia às câmaras municipais durante o período colonial não se relacionou,

necessariamente, apenas com a ocupação dos postos mais proeminentes dos concelhos

municipais, como juiz ordinário ou vereador, mas que essa nobilitação passava também

pelo ofício de escrivão camarário, talvez, pelo simples fato de figurar na governança da

terra ou pela habilidade da escrita que detinha, diante de uma sociedade

majoritariamente iletrada.

Não obstante, adir-se ainda, que a diferenciação social seria um fim não apenas

inerente ao exercício de um determinado ofício, mas que seu alcance dependia muito

das estratégias tramadas pelos agentes sociais, com a finalidade de adquirir status e

proeminência social. Para isso, os indivíduos careciam saber “ler” nas entranhas do

sistema social e de poder, sob a égide dos quais se davam o desenrolar da vida cotidiana

e as possibilidades de ascensão social e econômica. A partir do percurso de Bento

Mouzinho, verificou-se que esse indivíduo não apenas estava imerso na cultura política

do Antigo Regime, mas que também era consciente disso e que sabia quais eram os

caminhos que deveria percorrer para se inserir dentro desse universo, cuja política de

mercês era o elemento chave para a promoção da nobilitação social. Provavelmente, por

isso, Mouzinho preteriu correr o risco de perder o tabelionado público, ao livrar as

Page 345: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

345

culpas de um criminoso, mas que em contrapartida lhe seria cedida à serventia da

escrivania da Câmara do Natal. Com isso, Bento Ferreira ganharia triplamente.

Primeiro, passaria a figurar em uma agência de reprodução de distinção social, em nível

local, o que lhe tiraria ou mesmo amenizaria a mácula dos crimes que havia cometido

no reino; segundo, teria a possibilidade de contemporizar com os homens mais nobres

da terra, de onde, possivelmente, decorresse o vantajoso casamento que havia adquirido

com uma Guedes Alcoforado; e, terceiro jogava com todo o arsenal de possibilidades

provenientes do mecanismo político de gestão e sobrevivência do Império: a escrita.

Mesmo que, inicialmente, fosse facultada a todos os súditos a possibilidade de

escreverem para El Rey, através do dispositivo das petições, as câmaras municipais

continuaram a ser o melhor e mais efetivo lócus para a comunicação interinstitucional,

sobretudo com rei, com quem tinham o privilégio de se comunicar diretamente. E Bento

Ferreira Mouzinho soube como ninguém administrar isso a seu favor, posto que durante

os dezessete anos que serviu como como serventuário do ofício de escrivão, foi capaz

de colocar fim na trajetória de diversos capitães-mores, compreendidos como os

representantes diretos de Sua Majestade nas conquistas. Mouzinho utilizou-se da escrita

enviando longas e persistentes delações para o reino, mesmo que muitas fossem

enviadas em nome dos oficiais camarários, como asseverou o Capitão-mor João de

Teive Barreto e Menezes, que haviam implicado nas séries de desgraças que haviam

recaído sobre alguns de seus antecessores, como Domingos Amado, Luís Ferreira Freire

e José Pereira da Fonseca, mesmo que todos estes capitães-mores tivessem concedido a

Mouzinho alguma benesse.

Essa situação faz-nos pensar sobre as inúmeras demonstrações de como um

agente social, mesmo ocupando um ofício auxiliar da justiça e, por isso, considerado de

importância política menos expressiva, foi capaz de estabelecer limites aos projetos

mais amplos da Coroa lusa, sobretudo quando enfrentava e depunha os capitães-mores.

Ou mesmo, quando conseguiu retirar das mãos de uma importante família local – os

Melo e Albuquerque – a posse da procuração de plenos poderes sobre os ofícios de

escrivão da Câmara do Natal e de tabelião público do Rio Grande, mesmo que houvesse

se filiado a esta família nos momentos iniciais de inserção social nessa capitania. Visto

tudo isto, fica patente a funcionalidade do ofício de escrivão camarário no interior das

edilidades, sobretudo quando além de dominarem a escrita – fundamental para o

Page 346: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

346

exercício do ofício –, sabiam ler nas entranhas do sistema social, ao lidar com ambos os

mecanismos de maneira política para a promoção da distinção e da diferenciação social.

Page 347: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

347

Considerações Finais

Esta dissertação visou analisar e discutir a atuação dos agentes sociais que

foram providos no ofício de escrivão da Câmara do Natal, bem como o papel de broker

– espécie de intermediário – nas concêntricas relações institucionais estabelecidas entre

o reino – centro – e a Capitania do Rio Grande – periferia –, no contexto administrativo

e burocrático do Império português, entre os anos de 1613 e 1759. Particularmente

nesse período, posto que se tenha partido nesse estudo da realidade local, cuja tônica da

organização governativa da Capitania do Rio Grande não anularia outras diversas

possibilidades que pudessem emergir sobre esse ofício em outras conjunturas – espacial

e temporalmente localizadas. O ano de 1613 demarcaria a criação, via ordem régia, do

ofício de escrivão da Câmara do Natal, de maneira conjunta com esta mesma edilidade e

dos demais ofícios, sinalizando, desde esse momento, o princípio que orientaria o

exercício desse ofício, que fosse o estabelecimento de uma via de comunicação entre

essa capitania e outras instâncias do mando institucional pelo Império. Considerou-se o

ano de 1759 como emblemático para as discussões que se trouxe nesse texto, devido ao

aparecimento de outras câmaras municipais pelo Rio Grande, o que havia acarretado na

redução do termo de jurisdição do Concelho da Cidade do Natal, bem como na

emergência de outros ofícios de escrivão camarário, cujos ocupantes possuíam outro

perfil social e econômico, dado que os mestres das escolas dos índios, em grande parte,

passaram a assumir a escrivania das novas edilidades.

No primeiro capítulo, objetivou-se compreender o papel e a representatividade

social dos escrivães, de modo geral, e dos escrivães camarários, de maneira particular,

para a sociedade colonial, através da redação do expediente manuscrito, que se

configurava como o principal elemento definidor e instaurador desse ofício no contexto

da administração da Coroa lusa. Isso foi possível através da investigação efetuada nas

Ordenações Filipinas. Nesse capítulo, tentou-se também reconstituir os procedimentos

administrativos dos escrivães camarários do Natal, confrontando-os com as prescrições

legais contidas nas Ordenações Filipinas. Após isso, averiguou-se que a função de

agentes da escrita que coubera aos escrivães concelhios havia ultrapassado a binária

divisão da comunicação/interligação entre a Capitania do Rio Grande – periferia – e o

reino – centro –, entendida também como comunicação transcontinental, visto que a

Page 348: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

348

Câmara do Natal também havia mantido diálogo constante com outras instituições ou

oficiais, tanto no interior da própria capitania – intracapitania –, como com as vizinhas

Capitanias de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Bahia – intercapitanias.

Com esse estudo, pôde-se compreender que a ideia de centro e periferia, para o

caso da situação analisada, havia sido demarcada por um caráter dinâmico, posto que a

Câmara do Natal enquanto periferia possuía outros centros para além do próprio reino.

Exemplo disso seria a submissão política em relação ao governo geral da Bahia até o

início do século XVIII e a consequente subordinação ao governo da Capitania de

Pernambuco, a partir de 1701. Além disso, tem-se a sujeição judicial à Ouvidoria Geral

da Paraíba, desde a criação desse órgão, em 1687. Dessa forma, a Capitania do Rio

Grande, assim como a própria Câmara do Natal, mesmo que tivesse o privilégio de se

comunicar diretamente com o rei, a quem era subordinada, também possuía outras

instâncias consideradas como centro e com as quais mantinha efetiva comunicação. No

entanto, adir-se ainda, que a própria Câmara do Natal podia ser considerada como

centro, em relação às diversas aldeias e ribeiras com as quais também se comunicava

para fins administrativos. No interior dessa densa rede comunicativa situavam-se os

escrivães, entendidos nesse capítulo enquanto brokers, pois eram os mediadores de toda

essa intensa rede de comunicação política e institucional, configurando-se como os

principais responsáveis pela sua redação.

O segundo capítulo tinha como finalidade reconstituir o perfil social e

econômico dos escrivães da Câmara do Natal. Para isso, identificaram-se as origens dos

agentes que foram providos na escrivania dessa edilidade, assim como seus bens

materiais – sesmarias, chãos de terra, gados e escravos – e simbólicos – patentes das

companhias de ordenanças locais – com a finalidade de compreender a inserção desses

agentes no interior da elite local. Mesmo que seus patrimônios fossem considerados

modestos, foi possível perceber o traçado geral dos padrões societários vigentes na

sociedade do Antigo Regime. Nesse capítulo percebeu-se, quando se analisou as origens

geográficas dos escrivães concelhios, bem como de sua movimentação em conflitos

pelo ultramar, das solicitações de sesmarias em diferentes capitanias e por haverem

galgado outros postos ou ofícios em diferentes partes do Império, que o processo de

conquista/colonização das áreas de expansão passava também pela escrivania camarária,

visto que a possibilidade de servir a El Rey e de si inserir nos aparatos administrativos

locais havia funcionado para cooptar agentes sociais para os longínquos rincões da

Page 349: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

349

América, onde se instalaram as novas praças do além-mar, mormente na prestação de

serviços que do empenho desses homens pudessem advir, em nome da Coroa lusa.

No terceiro capítulo, com o desígnio de apresentar a dimensão venal que havia

encoberto o exercício do ofício de escrivão camarário pelas possessões imperiais

portuguesas, discutiu-se as conotações assumidas por essa prática para o caso da

monarquia portuguesa e as vizinhas. Demonstrou-se, ainda, nesse capítulo sob quais

circunstâncias haviam incorrido as provisões em concessão perpétua – propriedade – e

em concessão precária – temporária – para a escrivania camarária da Cidade do Natal,

bem como do tabelionado do público, judicial e notas da Capitania do Rio Grande –

ambos anexos –, reiterou-se que, mesmo não constando nas provisões para o ofício de

escrivão, parte significativa dos serventuários precários desse ofício haviam se

destacado nos conflitos que formaram a Guerra dos Bárbaros, tanto nessa capitania,

quanto nas vizinhas Capitanias de Pernambuco, Paraíba e Ceará. Adir-se, ainda, que,

além das provisões perpétuas e temporárias para o ofício de escrivão da Câmara do

Natal, se verificou também a concessão de procuração de plenos poderes sobre o ofício

de escrivão camarário, o que não se verificou na historiografia sobre o tema em outras

localidades do Império português e da Monarquia de Espanha.

Ainda sobre o terceiro capítulo, perceberam-se as estratégias de controle do

ofício de escrivão camarário do Concelho do Natal nas mãos de uma família que não

possuía a concessão perpétua desse ofício, mas a posse de uma procuração de plenos

poderes, concedida pelo verdadeiro proprietário. Nesse sentido, a escrivania camarária

do Natal tornou-se um mecanismo para prestigiar parentes e aderentes da família

Rodrigues de Sá, bem como das demais famílias que a este se integrou por meio do

casamento ou das relações de compadrio, como os Melo e Albuquerque e os Cardoso

Batalha. Verificou-se, ainda, que a tentativa de oligarquização desse ofício por essas

famílias, deu-se na esteira do caráter estratégico da escrivania camarária do Natal, posto

que além do ocupante desse ofício tivesse acesso irrestrito à memória institucional da

principal agência de representação e regulamentação, em nível local, o escrivão da

câmara era, ainda, o responsável pelo resguardo de uma das chaves do cofre onde

estavam as listas dos elegíveis para postos honoráveis do concelho, e disso poderia –

como se viu que ocorreu – elaborar estratégias de manipulação da escolha desses postos.

Soma-se a isso, que a escrivania camarária poderia ser desempenhada, de maneira

concomitante, com outro parente que estivesse a exercer os postos honoráveis dos

Page 350: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

350

concelhos, e isso abriria margem para a indução da representação dos interesses de uma

determinada família, em detrimento de outras.

Por fim, o quarto capítulo, que tinha como objetivo discutir os problemas de

jurisdição, alçada e conflitos entre os escrivães camarários e outros agentes da

administração portuguesa, foi esboçado por meio da trajetória emblemática de Bento

Ferreira Mouzinho. Escrivão da Câmara do Natal durante dezessete anos, seu percurso

ascensional na estrutura hierárquica estamental do Antigo Regime, serviu para se pensar

– além das relações de poder e dos conflitos por espaço jurisdicional, quase todos os

dilemas que constantemente atravessaram a administração do Império português, pelos

inúmeros problemas estruturais que aponta, como os limites do mando institucional, as

mercês, as redes clientelares, a dimensão familiar, a cultura política do Antigo Regime

português. Enfim, essa trajetória fez-nos pensar acerca da própria natureza do poder da

Coroa portuguesa, que ora inclinou-se à centralização, ora ao autogoverno nas regiões

de conquista. Através da análise da escrivania de Mouzinho, percebeu-se que havia

margem para a indissociação entre o exercício do ofício, o poder político que daí

adviesse e os ganhos materiais possibilitados pela barganha dos mecanismos que se

encontravam sob a custódia das instituições nas quais aquele agente social havia

desempenhado os ofícios, demonstrando como nas sociedades de Antigo Regime havia

essa constante tensão entre a dimensão pública e a privada – mas que nem por isso

ilegítimas – no exercício dos ofícios administrativos e burocráticos da Coroa Lusitana

por todo o Império.

Ao fim e ao cabo, buscou-se trazer para a discussão acadêmica algumas

reflexões sobre a história dos escrivães camarários, a partir de uma grande quantidade

de fontes documentais – encontrados em arquivos tanto no Brasil quanto em Portugal,

cuja maioria caracterizou-se por sua originalidade e pelo seu ineditismo –, sobre os

quais se foi possível levantar diversas questões pertinentes à história desses escrivães

camarários, na Capitania do Rio Grande, entre 1613 e 1759. Finalmente, conclui-se que

a escrivania concelhia do Natal, mesmo sendo considerado um ofício auxiliar na esfera

da justiça, foi ocupada por homens embebidos pela cultura política do Antigo Regime,

os quais não deixaram de se utilizar dos instrumentos mentais dessa atmosfera cultural

para se munirem em suas ações diárias na busca por prestígio, poder, status e

diferenciação social, cuja materialidade se deu na esteira do exercício do principal

mecanismo político da Época Moderna: a escrita.

Page 351: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

351

Page 352: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

352

FONTES

FONTES MANUSCRITAS

Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Livros de Cartas e Provisões

do Senado da Câmara do Natal – Fundo documental do IHGRN (1659-1760). Livros

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.

IHGRN – Fundo Sesmarias, Livro III, n. 198, Fls. 43.

Livro Assentamento de Praça no ano de 1718 – Arquivo Histórico do IHGRN.

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte. Livro

de Casamentos, 1697.

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU-RN), Papéis Avulsos.

AHU-CE, Papéis Avulsos.

AHU-PB, Papéis Avulsos.

AHU-PE, Papéis Avulsos.

AHU-RN, Papéis Avulsos.

Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, códice 21.

Livro de Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º v. Fl.

244-246.

Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Consultas Mistas, códice 21.

Livro de Registro de Consultas mistas do Conselho Ultramarino (1713-1722). 9º

vol. Fls. 244-246.

Page 353: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

353

Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de Branca Simões. Tribunal

do Santo Ofício: Inquisição de Évora. Proc. nº 5286. Cód. ref. PT/TT/TSO-

IE/021/5286.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Processo de Catarina Martins.

Tribunal do Santo Ofício: Inquisição de Évora. Proc. nº 7834. Cód. ref. PT/TT/TSO-

IE/021/7834.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Registo Geral de Mercês, Mercês de

D. Pedro II, liv. 1, f. 351v.

FONTES IMPRESSAS

CONSULTA feita ao Conselho Ultramarino sobre se desonerar Bento Ferreira

Mouzinho da ocupação de juiz dos órfãos, por causa dos roubos e desordens que tem

praticado. Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. vol. 89. p. 201-

202.

Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume I. Rio de Janeiro: Biblioteca

Nacional, 1929.

LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação do Senado da

Câmara de Natal (1672-1815). Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do

Norte. No prelo.

Livro de Batismos de Cunhaú, São José de Mipibú, Mamanguape, Camaratuba e Natal

(Matriz de Nossa Senhora da Apresentação da cidade do Natal – 1683-1712.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Cidade do Natal / Freguesia

de Nossa Senhora da Apresentação. Livro de Óbitos, 1750-1759

Page 354: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

354

“Informação da Capitania de Pernambuco (1749)”. In: Anais da Biblioteca Nacional,

Rio de Janeiro, BN, Volume 28, 1906.

Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação / Capitania do Rio Grande do Norte.

Livros de Casamentos, 1727-1782.

PORTUGAL. Ordenações Afonsinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1998.

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. Brasília: Senado Federal,

Conselho Editorial, 2004.

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 1984.

PORTUGAL. Ordenações Manuelinas. Ed. Fac-símile. 2. Ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1984.

MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação administrativa do Brasil.

Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I, p. 416.

CARTA do Ouvidor Geral da Paraíba o Bacharel Domingos Monteiro da Rocha, a

Vossa Majestade referindo-se a segunda devassa que mandou instaurar sobre o

desaparecimento de uma moça, em Goiana, Capitania de Itamaracá. Coleção

Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. vol. 89. p. 237-238.

Page 355: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

355

REFERÊNCIAS

ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial, 1500-1800. 7. ed. Belo

Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração

Colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997.

ALENCAR, Júlio César Vieira. “Para que enfim se colonizem estes sertões”: a

Câmara de Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722). Dissertação – Mestrado em

História – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017.

ALENCASTRO, L. F. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul.

São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. v. 1. História da Vida Privada

no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997-1998.

ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. “A conquista

do Centro-sul: fundação da Colônia de Sacramento e o “achamento” das Minas”. In:

FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima S. (orgs.). O Brasil colonial. v. II. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

ALVEAL, C. M. O. A Anexação da Capitania do Rio Grande em 1701: Estratégia da

coroa ou interesse de grupo da Capitania de Pernambuco?. In: Antonio Filipe Pereira

Caetano. (Org.). Dinâmicas Sociais, Políticas e Judiciais na América Lusa:

Hierarquias, Poderes e Governo (Século XVI-XIX). 1ed. Recife: editora UFPE, 2016, v.

1.

_____________. A formação da elite na capitania do Rio Grande no pós-

Restauração (1659-1691). In.: Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios

Ibéricos de Antigo Regime. Lisboa, 18 a 21 de Maio de 2011.

Page 356: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

356

ARMSTRONG, Rodrigo Penteado. O POMO DA DISCÓRDIA: A Colônia de

Santíssimo Sacramento e a Rivalidade entre Portugal e Espanha no Sistema Interestatal

do Século XVIII. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Rio de Janeiro: 2014.

BARBOSA, Conceição Aparecida. Termos e conceitos da Ordem do Juízo nas

ordenações do reino: permanência e mudanças. São Paulo: Universidade de São

Paulo, 2012.

BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A câmara da cidade do Natal: o cotidiano

administrativo de uma câmara periférica (1720-1759). Monografia (Graduação em

História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015, 87 p.

_____________. Perfis camarários de uma capitania periférica: Os Homens Bons na

câmara da cidade do Natal (1720-1759). In: 6. Encontro Internacional de História

Colonial: mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e identidades, 2017,

Salvador. Anais Eletrônicos [do] 6. Encontro Internacional de História Colonial:

mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e identidades. Salvador: EDUNEB,

2016. v. 1.

BARBOSA, L. B. S. Da homenagem que presto a Vossa Senhoria: relações entre os

capitães-mores do Rio Grande e os governadores de Pernambuco (segunda metade

do século XVII). In: V Encontro Internacional de História Colonial, 2014, Maceió-AL.

Anais do V Encontro de Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder

na Expansão Ultramarina (Século XVI ao XIX), Maceió, 19 a 22 de agosto de 2014

[recurso eletrônico]. Maceió: EDUFAL, 2014. v. s/v. p. 801-808.

BARBOSA, L. B. S.; FONSECA, M. A. V. A Ribeira dos interesses: Contratos,

Fiscalidade e Conflitos na Revolta dos Magnatas (Capitania do Rio Grande, 1741-

1744). In: Revista Ultramares, vol. 5. nº 9, jan-jun, 2016.

BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Nos trâmites da fiscalidade: Aspectos

administrativos da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1660-1720).

Page 357: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

357

Monografia – Graduação em História – Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

Natal, 2016.

BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Os primórdios da Real Fazenda: a Provedoria da

Fazenda Real do Rio Grande no início do século XVII. III Encontros Coloniais. Natal,

14-17 de jun. de 2016.

BELLOTO, Heloísa L. O Estado português no Brasil: Sistema administrativo e fiscal.

In: SILVA, Maria Beatriz N. da (coord.). O Império luso-brasileiro (1750-1822).

Lisboa: Editora Estampa, 1986.

BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean Pierre; SIRINELLI, Jean-

François (Diretores). Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

BICALHO, Maria Fernanda B. “Centro e Periferia: pacto e negociação política na

administração do Brasil colonial”. In.: Leituras. Revista da Biblioteca Nacional. n. 6.

Lisboa: primavera 2000.

BICALHO, Maria Fernanda B. As Câmaras Ultramarinas e o governo do Império.

In.: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima

(Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-

XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

_____________. Conquista, mercê e poder local: a nobreza da terra na América

portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Brasiliense, n. 2, nov.

2005.

_____________. A cidade e o império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

_____________. As fronteiras da negociação: as Câmaras municipais na América

portuguesa e o poder central. In: NADARI, Eunice; Pedro, Joana Maria; IOKOI, Zilda

Page 358: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

358

M. G. Anais do Simpósio Nacional da ANPUH, História e Fronteiras. São Paulo:

Humanitas/ FFLCH-USP/ANPUH, 1999.

______________. Redes de Poder na América portuguesa – O caso dos homens bons do

Rio de Janeiro (ca. 1790-1822). In: Revista Brasileira de História. vol. 18. n. 36 São

Paulo, 1998.

BLAJ, Ilana. Agricultores e comerciantes em São Paulo nos inícios do século XVIII: o

processo de sedimentação da elite paulistana. In: Revista Brasileira de História. vol.

18, n. 36. São Paulo, 1998.

BLAJ, Ilana. A trama das tensões: O processo de mercantilização de São Paulo

colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Fapesp, 2002.

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico,

architectonico...Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 – 1728.

BORGES DA FONSECA, Antônio José Victoriano. Nobiliarchia Penambucana. v. 4.

Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 1993.

BORRALHEIRO, R. C. P. O município de Chaves entre o absolutismo e o

liberalismo (1790-1834). Braga: Ed. A., 1997.

BOTT, E. Família e rede social. Papéis, normas e relacionamentos externos em

famílias urbanas comuns. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. TOMAZ, Fernando (Trad.). Rio de Janeiro:

Editora Bertrand Brasil, 1989.

BOXER, Charles R. O império marítimo português (1415-1825). Anna Olga de

Barros Barreto (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Page 359: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

359

____________. A idade do ouro no Brasil: dores de crescimento de uma sociedade

colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

BRANDÃO, Michelle Cardoso. Forjando status e construindo autoridade: perfil dos

homens bons e formação da primeira elite social em Vila do Carmo (1711-1736).

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Juiz de Fora: 2009.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Título

IX, Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado,

por delegação do Poder Público. Brasília: Senado, 1998.

BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII.

EICHENBERG, Rosaura (trad.). São Paulo: Editora Brasiliense, 1991

CABRAL, Gustavo César Machado. Direito natural e iluminismo no direito

português do final do Antigo Regime. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará,

2011.

CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Conflitos judiciais, espaços de jurisdição e

estruturação administrativa da justiça na Capitania do Rio Grande (Comarca da Paraíba/

Rio Grande do Norte, 1789-1821). In: Revista Espacialidades [online]. vol. 9, jan-jun,

n. 1. 2016.

CAMARINHAS, Nuno. A Casa da Suplicação nos finais do Antigo Regime (1790-

1810). Cadernos do Arquivo Municipal. 2º Série, n.º 2, jul./dez. 2014.

CAPELA, José Viriato. O Minho e os seus municípios. Estudos econômicos-

administrativos sobre o município português nos horizontes da reforma liberal.

Dissertação – Mestrado em História das Instituições e Cultura Moderna e

Contemporânea. Braga: Universidade do Minho, 1995.

Page 360: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

360

CARDIM, Pedro António Almeida. O poder dos Afectos: Ordem amorosa e dinâmica

política no Portugal do Antigo Regime. Tese – Doutorado em História Cultural e das

Mentalidades Modernas –, Universidade Nova de Lisboa, 2000.

CARVALHO NETO, Inacio Bernardino de. A Evolução do Direito Sucessório do

conjugue e do companheiro no Direito Brasileiro: Da necessidade de alteração do

código civil. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.

CASCUDO, Câmara L.. História da Cidade do Natal. Natal: Prefeitura Municipal,

1947.

_____________. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Fundação José

Augusto, 1984.

CASTILLO, Francisco Andújar. Necesidad y venalidade: España e Indias, 1704-1711.

Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008.

____________. Venalidad de oficios y honores. Metodología de investigación. In:

STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas

Monarquias Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (século XVII e XVIII).

Lisboa: Centro de História de Além-mar, 2012.

CHATURVEDULA, Nandini. Entre particulares: venalidade na Índia portuguesa no

século XVII. In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e

ofícios nas Monarquias Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e

XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2012.

COCHERIL, Maur. Alcobaça: abadia cisterciense de Portugal. Lisboa: Imprensa

Nacional/Casa da Moeda, 1987.

COELHO, Maria Helena Cruz; MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio.

Das origens às cortes constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação

Autárquica, 1986.

Page 361: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

361

COELHO, Maria Virgínia Aníbal. Perfil de um poder concelhio: Santarém durante o

reinado de D. José. Lisboa: Universidade de Coimbra. Faculdade de Ciências Sociais e

Humanas,1993. Tese – Doutorado em Sociologia e Economia Históricas – Universidade

Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências e Humanas.

COMISSOLI, Adriano. “Tem servido na governança, e tem todas as qualidades

para continuar”: perfil social dos oficiais da Câmara de Porto Alegre (1767-1828). In.:

Topoi. v. 13, n. 25, jul./dez. 2012.

COMISSOLI, Adriano. Câmaras municipais na América portuguesa: entre o

universal e o específico. Hist. R., Goiânia, v. 21, n. 1, p. 1-4, jan./abr. 2016.

______________. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808).

Dissertação de Mestrado (História). UFRJ: 2006.

COSENTINO, Francisco Carlos. Monarquias pluricontinental, o governo sinodal e os

governadores-gerais do Estado do Brasil. In.: GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica

Imperial no Antigo Regime Português: escravidão, governos, fronteiras, poderes,

legados: sec. XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.

COSTA, Ana Paula Pereira. Organização militar, poder de mando e mobilização de

escravos armados nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas

colonial. In: Revista de História Regional. 2006.

COSTA, Célio Juvenal; CRUBELATI, Ariele Mazoti; LEMES, Amanda Barbosa;

MONTAGNOLI, Gilmar Alves. História do Direito Português no período das

Ordenações Reais. In: International Congresso of History. 21 a 23 de set. 2011.

COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados.

In: Revista Textos de História. vol. 6 – n.os

1 e 2. 1998.

COSTA, H. J. de Almeida. “Ordenações”. In.: ________. Dicionário de História de

Portugal, III, Lisboa, 1968.

Page 362: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

362

COSTA, Helensandra Lima da. A Família do Tesouro: a monumentalização da família

Albuquerque Maranhão e a luta pelo poder no Rio Grande do Norte (1889-1914).

Dissertação – Mestrado em História – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2013.

COSTA, Marisa. Do ofício de escrivão. A propósito dos agentes da escrita na

Chancelaria de D. Pedro I. Disponível em:

http//www.academia.edu/277112/Do_of%C3%ADcio_de_escriv%C3%A3o._A_prop%

C3%B3sito_dos_agentes_da_escrita_na_chancelaria_de_D._Pedro_I. Acesso em:

10/09/2015.

COUTO, Domingos Lorêto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. In:

Anais da Biblioteca Nacional. vol. 15. Rio de Janeiro, 1903.

CUNHA, Mafalda Soares da. Governo e governantes do Império português do

Atlântico. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia do Amaral. Modos de

governar: idéias e práticas políticas no Império português. São Paulo: Alameda, 2005.

_____________. O provimento de ofícios menores nas Terras Senhoriais. In: STUMPF,

Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias

Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de

História de Além-Mar, 2012.

CURVELO, Arthur A. S. C. O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e

poder local no Sul de Pernambuco (1654-1751). Dissertação em História (Mestrado).

Recife: UFPE, 2014.

DANTAS, Aledson M. S. Meu ofício, moeda e sustento: propriedade de ofícios na

Capitania de Pernambuco no período pos-bellum. In: Revista Acadêmica Historien

(Petrolina). ano 5, n. 10. jan/jun 2014.

Page 363: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

363

DIAS, Gonçalves. Anotações ao catálogo dos capitães-mores e governadores do Rio

Grande do Norte. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. t. 17. 13ª

série, n.º 15, 3º trim./1854.

DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do

Norte (1760-1821). Dissertação – Mestrado em História –, Programa de Pós-graduação

em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal: 2011.

_____________. Monopólio Indireto: Colonização mercantil no norte do Estado do

Brasil (c. 1710 – c. 1780). Tese – Doutorado em História Econômica – Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2017.

DUARTE, Luís Miguel. Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481).

Vol. 2. p. 97. Tese (Doutorado em História) - Universidade do Porto, 1993.

ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Lisboa: Editora Estampa, 1987.

ENES, Thiago. De como administrar cidades e governar impérios: almotaçaria

portuguesa, os mineiros e o poder (1745-1808). Dissertação (Mestrado em História

Social) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Federal Fluminense.

2010.

EXTREMERA, Miguel Ángel Extremera. La pluma y la vida: Escribanos, cultura

escrita y sociedad en la España Moderna (siglos XVI-XVIII). In: Cuadernos de cultura

escrita. Año III-IV, 2003-2004.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro.

3. ed. São Paulo: Globo, 2001.

FARIA, Sheila Castro. História da Família. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO,

Ciro Flamarion. Domínios da História. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1997.

Page 364: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

364

FERREIRA, Vieira. Juízes e Tribunais do Primeiro Império e da Regência. Boletim

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1937.

FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Revoltas, Fiscalidade e Identidade

Colonial na América Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1769).

Tese – Doutorado em História – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.

FIRMINO, Chrystiane Castellucci. As mulheres nas Constituições e nos Códigos

Civis Portugueses e Brasileiros dos sécs. XIX e XX. Coimbra, 2012, 92 f. Dissertação

(Mestrado em Estudos Feministas) Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.

FONSECA, Antônio José Vitoriano Borges. Nobiliarquia Pernambucana. vol. 1. In:

Anais da Biblioteca Nacional. v. XLVII, 1918. p. 198.

FONSECA, Marcos A. V. da. 'A perdição de toda a capitania': jurisdições e

governabilidade na administração do capitão-mor Luís Ferreira freire (1718-

1722). In: V Seminário Internacional História e Historiografia, 2016, Recife. Anais

Eletrônicos do V Seminário Internacional História e Historiografia. Recife: Editora

UFPE, 2016.

FONSECA, Teresa. O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e

práticas administrativas. In.: ___________; CUNHA, Mafalda Soares da (ed.). Os

Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais.

Lisboa: Edições Colibri & CIDEHUS-EU, 2005.

FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza

principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: ___________; ALMEIDA, Carla

Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (orgs.). Conquistadores e

Negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos

XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua

primeira elite senhorial (séculos XVI-XVII). In.: __________; BICALHO, Maria

Page 365: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

365

Fernanda B.; GOUVÊA, Maria de Fátima S. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a

dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2001.

FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O

Antigo Regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII).

2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

FRAGOSO, João; GOUVEIA, Fátima (Orgs.). Na trama das redes. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2006.

FREIRE, Luiz Cleber Moraes. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: Agropecuária,

escravidão e riqueza em Feira de Santa, 1850-1888. Dissertação – Mestrado em História

– Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

GALLO, Alberto. La venalidade de oficios públicos em Brasil durante el siglo XVIII.

In: BELINGERI, Marco. Dinámicas de Antiguo Régimen y orden constitucional:

representación, justicia y administración em Iberoamérica, siglos XVIII-XIX. Turin:

Otto Editore, 2000.

GAIO, Felgueiras. Nobiliário de famílias de Portugal / Felgueiras Gaio (1750-1831).

Braga: Agostinho de Azevedo Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, 1938-1942.

GIL, Tiago Luís. Formas alternativas de visualização de dados na área de História:

Algumas notas de pesquisa. In: Revista História, São Paulo, n. 173, jul./dez. de 2015.

____________. Redes e camadas de relacionamentos na economia: metodologias

para o estudo da confiança mercantil na América Portuguesa do Antigo Regime. In:

Revista de Indias, 2015, vol. LXXV, nº 264.

GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In.: A

micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.

Page 366: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

366

______________. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. CAROTTI,

Frederico (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

_____________. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro

perseguido pela Inquisição. AMOROSO, Maria Betânia (trad.). São Paulo: Companhia

das Letras, 2006.

GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros estudos sobre São Paulo. São Paulo:

Alameda, 2007.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 8. ed. Petrópolis:

Vozes, 1999.

GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no

Ceará setecentista. Dissertação – Mestrado em História – Universidade Federal

Fluminense, Niterói, 2009.

GONÇALVES, Maria Beatriz. Os Monges de Alcobaça e a política agrária de D.

Dinis. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia,

1997.

GOUVÊA, Maria de Fátima S.; FRAZÃO, Gabriel A.; SANTOS, Marília N. dos. Redes

de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In:

Topoi. vol. 5. n. 8, jan.- jun. 2004.

GOUVÊA, Maria de Fátima. Redes governativas portuguesas e centralidades régias

no mundo português, c. 1680-1730. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de

Fátima. Na trama das redes: política e negócios no mundo português, séculos XVI-

XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

Page 367: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

367

HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In:

__________, (orgs.). História de Portugal – Antigo Regime. v. 4. Lisboa: Estampa,

1993.

_____________. A Família. Fundamentos Antropológicos da família do Antigo

Regime: os sentimentos familiares. In: MATOSO, José (dir.). In. HESPANHA, António

Manuel (coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. vol. 4. Lisboa: Editora

Estampa, 1998.

_____________. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. In: Revista

Tempo, v. 11, n. 21, 2006.

______________. Às vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal,

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.

______________. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos

histórico-antropológico da família na época moderna. In: Análise Social. vol. 28. 1993.

______________. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo

Regime. In: Ler História, n. 8, 1986.

______________; SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num Império Oceânico. In.

____________. (coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. vol. 4. Lisboa:

Editora Estampa, 1998.

HOLANDA, Sérgio Buarque (dir.). História geral da civilização brasileira: 1 – O

processo de emancipação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,

1956.

HOMEM, Armando Luís de Carvalho. O Desembargo Régio (1320-1433). Porto:

Universidade do Porto, 1985.

Page 368: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

368

_____________. Os oficiais da Justiça central régia os finais da Idade Média portuguesa

(ca. 1279 – ca. 1521). Medievalista online (Lisboa), v. s/v, ano 5, nº 6, 2009.

KRAUSE, Thiago Nascimento. Em busca da Honra: a remuneração dos serviços da

guerra holandesa e os hábitos das Ordens Militares (Bahia e Pernambuco, 1641-

1683). Rio de Janeiro: ICHF-DH-UFF, 2010. (DISSERTAÇÃO).

LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. Capitães-mores e governadores do Rio

Grande do Norte: 1701-1822. v. 2. Natal: Instituto Histórico e Geográfico do Rio

Grande do Norte, 1980.

LIMA, Monique Maia de. Regida por Deus e organizada pela Coroa: a cidade do

Natal e os reflexos do poder simbólico no século XVIII. III Encontros Coloniais.

Natal, 14-17 de jun. de 2016.

LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. “ENTRE O AUSTERO CAPITÃO E O

MALIGNO ESCRIVÃO”: DISPUTAS DE PODER E CULTURA POLÍTICA NA

ADMINISTRAÇÃO DA CAPITANIA DO RIO GRANDE NO SÉCULO XVIII. In:

VII Encontro Estadual de História da ANPUH – RN. 26-29 de jun. 2016.

________________. “Entre o austero capitão e o maligno escrivão”: disputas de poder e

cultura política na administração da capitania do Rio Grande no século XVIII. In: VII

Encontro Estadual de História ANPUH-RN, Natal-RN, de 26 a 29 de julho de 2016. No

prelo.

________________. “Homens de préstimos e consideráveis cabedais”: o perfil do grupo

social de escrivães da câmara de Natal, Capitania do Rio Grande. III Encontros

Coloniais. Natal, 14-17 de jun. de 2016.

LISBOA, Breno Almeida Vaz. Poder e arrecadação de impostos na América

portuguesa: A administração de contratos pela Câmara Municipal de Olinda (1690-

1727). In: Revista de História (Rio de Janeiro), Dossiê Câmara Municipal: fontes,

Page 369: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

369

formação e historiografia do poder local no Brasil Colônia e Império, ano 5, v. 1, n. 1,

2014.

LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande

do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Recife, 2005. 699 f. Tese

(Doutorado em História do Norte-Nordeste) Programa de Pós-graduação em História.

Universidade Federal de Pernambuco.

LOURO, Rosana de Melo. As Ordenações Afonsinas e os judeus em Portugal.

Revista Brasileira de História das Religiões. Ano II, n. 6, fev. 2010.

MACEDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano

familiar nos sertões do Seridó (séc. XVIII). Tese – Doutorado em Antropologia Social –

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.

MACHADO, Maria de Fátima. Os órfãos e os enjeitados da cidade e do termo do

Porto (1500-1580). Tese (Doutorado em História) – Universidade do Porto, 2010.

CUNHA, Mafalda Soares da. A casa de Bragança – 1560-1640. Práticas senhoriais e

redes clientelares. Lisboa: Estampa, 2000.

MAGALHÃES, Justino. Escrita e municipalismo na transição do Brasil colônia e na

ideação do Brasil independente. Revista de História Regional. vol. 19, n.º 2, 2014.

MARTÍNEZ, Francisco Gil. El Estados de los oficios patrimonializados en Sevilla a

madiados del siglo XVIII.

MEDEIROS FILHO, Olavo. Ribeira do Açu. Subsídios para a sua história. Mossoró:

Fundação Guimarães Duque, 1988. Coleção Mossoroense, série B. n. 535.

MELLO, Christiane Figueiredo Pagano. Forças militares no Brasil Colonial. Corpos

de Auxiliares e de Ordenanças na Segunda Metade do Século XVIII. Rio de Janeiro: E-

Papers, 2009.

Page 370: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

370

MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos. Nobres contra mascates.

Pernambuco (1666-1715). São Paulo: Cia das Letras, 1995.

_____________. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração

pernambucana. 3. ed. revista. São Paulo: Alameda, 2008.

MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Magistrados a serviço do Rei: A administração

da justiça e os ouvidores gerais na comarca do Rio de Janeiro (1710-1790). Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense. Niterói: 2013.

______________. Poder, administração e justiça: Os ouvidores gerais no Rio de

Janeiro (1624-1696). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura: Arquivo Geral da

cidade do Rio de Janeiro, 2010.

MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Nobres e Mascates na Câmara do Recife,

1713-1738”. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico

Pernambucano, v. LIII, 1981.

MENDES, Paulo. O Marquês de Pombal e o perdão aos judeus: Inquisição,

legislação e solução final da questão do perdão aos judeus com o novo enquadramento

jurídico pombalino. Lisboa, 2011. 131f. Dissertação (Mestrado em Ciências da

Religião) Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais.

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia.

MENEZES, Jeannie. ‘Ofícios’ de família: estratégias patrimoniais no mercado

matrimonial colonial (sécs. XVII-XVIII). In: Revista Brasileira de História & Ciências

Sociais. Vol. 5. n. 9. jul. 2013.

MENEZES, Mozart Vergetti de. Jurisdição e poder nas Capitanias do Norte (1654-

1755). Saeculum (UFPB), v. 14, 2006.

Page 371: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

371

MENEZES, Mozart Vergetti. Colonialismo em Ação: Fiscalismo, Economia e

Sociedade na capitania da Paraíba (1647-1755). 300f. Tese (Doutorado em História

Econômica). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

MESGRAVIS, Laima. Os aspectos estamentais da estrutura social do Brasil

Colônia. In.: Estudos Econômicos. n. 13. São Paulo: USP/IPE, 1983.

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 4. ed.

Natal: Flor de Sal, 2015.

____________. Introdução à historio do Rio Grande do Norte. 2. ed. rev. Natal:

Cooperativa Cultural, 2002.

MONTEIRO, Helena Maria Matos. A Chancelaria régia e os seus oficiais (1464-

1465). Porto, 1997, vol. I, 105f. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de

Letras. Universidade do Porto.

MONTEIRO, Nuno Gonçalo & CUNHA, Mafalda Soares da. “Governadores e

capitães-mores do império atlântico português nos séculos XVII e XVIII. In.:

_____________. CARDIM, Pedro. Optima Pars: Elites Ibero-Americanas do Antigo

Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005.

______________. “Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do

Antigo Regime”. In.: Análise Social, n. 141. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais,

1997.

______________. Os concelhos e as Comunidades. In. HESPANHA, António Manuel

(coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. vol. 4. Lisboa: Editora Estampa,

1998.

______________. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In:

MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). vol. 4.

Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

Page 372: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

372

MOTA, Eduardo. Administração municipal em Gouveia em finais de setecentos.

Gouveia: Publicações Gaudela, 1990.

NEVES, Guilherme Pereira das. Verbete: homens bons. In.: VAINFAS, Ronaldo (dir.).

Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: práticas de

nobilitação e hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804).

Dissertação de Mestrado (História) – Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: 2010.

O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América. CORRÊA, Ana Maria Martinez;

BELLOTTO, Manuel Leão (trads.). São Paulo: Editora da Unesp, 1992.

OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Mercê e

Venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001.

______________. Economía de la merced Y venalidade em Portugal (siglos XVII y

XVIII). In: CASTILLO, Francisco Andújar; FUENTES, María del Mar Felices de la.

(eds.). El poder del dinero. Ventas de cargos y honores em el Antiguo Régimen.

Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2011.

______________. Mercado de hábitos e serviços em Portugal (século XVII-XVIII). In:

Análise Social, vol. 38, 2003.

OLIVEIRA, Leonardo Paiva de. Muitos soldados, poucos fidalgos: Candidatos ao

governo do Rio Grande (1700-1751). Revista Acadêmica Historien, Petrolina , n. 10,

jan./jun., 2014: 97-110.

PAIVA, Yamê Galdino de. Vivendo a sombra das Leis: Antônio Soares Brederode:

Entre a Justiça e a Criminalidade. Capitania da Paraíba (1787-1802). João Pessoa:

CCHLA-UFPB (Dissertação), 2012.

Page 373: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

373

PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. A construção da Paróquia: Espaço e

participação na capitania do Rio Grande do Norte. Rev. Espacialidades [online]. vol. 3,

n. 2. 2010.

PFALTZGRAFF, Pedro A. S.; TORRES, Fernanda S. M. (orgs.). Geodiversidade do

Estado do Rio Grande do Norte: Programa Geologia do Brasil. Levantamento da

Geodiversidade. Recife: CPRM, 2010.

PIRES, Maria do Carmo. Administração e justiça nas freguesias da Comarca de Vila

Rica: Os oficiais vintenários. In: PAIVA, Eduardo França de (Org.). Brasil-Portugal.

Sociedades, culturas e formas de governar no mundo português (Séculos XVI-XVIII).

São Paulo: Annablume, 2006.

PIRES, Maria do Carmo. Em Testemunho de Verdade: Juízes de vintena e poder local

na comarca de Vila Rica (1736-1808). Belo Horizonte: UFMG, 2005.

PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência e conflito no

Nordeste Colonial. Recife: Fundap/CEP, 1990.

PRADO JR. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23. ed. 7ª reimpressão. São

Paulo: Brasiliense, 1942.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, colônia. In.:

SANTIAGO, Silviano (org.). Intérpretes do Brasil. v. 3. Rio de Janeiro: Editora Nova

Aguilar, 2000.

PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais

entre capital e território nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. In:

Penélope. Fazer e desfazer a História. n. 6, Lisboa, 1991.

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e colonização no sertão

nordeste do Brasil (1650-1720). São Paulo: HUCITEC: Editora da EDUSP, 2002.

Page 374: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

374

RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: Monarcas, Vassalos e governo a

distância. São Paulo: Alameda, 2008.

REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. A Câmara Municipal de Vila Rica e a

consolidação das elites locais, 1711-1736. Dissertação (Mestrado em História Social)

– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: USP, 2015.

_____________. Um ofício central: o escrivão da câmara municipal de Vila Rica,

1711-1724. IV Conferência Internacional de História Econômica. 2012.

RIBEIRO, Maria Dulcyene. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes,

Matemática e ensino da Engenharia Militar no século XVIII em Portugal e no Brasil.

Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, 2009.

RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil (1530-1630). São Paulo:

Alameda, 2009.

RODRIGUES, José Damião. “As elites locais no Açores em finais do Antigo

Regime”. In.: ARQUIPÉLAGO HISTÓRIA. 2ª série, IX. 2005.

_______________. Histórias Atlânticas: Os Açores na Primeira Modernidade. Ponta

Delgada: Centro de História de Além-mar, 2012.

_______________. O provimento de ofícios da Fazenda Real nas Ilhas Atlânticas: O

caso dos Açores. In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos

e ofícios nas Monarquias Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e

XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2012.

_______________. Poder municipal e oligarquias urbanas. Ponta Delgada no

século XVII. Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1994.

_______________. São Miguel no século XVIII: Casa, Elites e Poder. Ponta Delgada:

Nova Gráfica, LDA, 2003.

Page 375: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

375

ROLIM, Leonardo Cândido. Tempo das carnes no Siará Grande: dinâmica social,

produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690- c.

1802). João Pessoa: 2012 – Dissertação – Mestrado em História. Programa de Pós-

graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808.

In: Revista Brasileira de História [online]. vol. 18, n. 36, 1998. pp. 187-250.

______________. O governo local na América portuguesa: um estudo de divergência

cultural. In: Comparative Studies in Society and History, vol. 16, n., mar., 1974.

SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos. A administração no Brasil colonial e o

governo do império. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.

SANTOS, Beatriz Catão Crus. O Pináculo do Templo: O sermão do Padre Antônio

Vieira e o Maranhão do século XVII. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,

1997.

______________. O corpo de Deus na América: A Festa de Corpus Christi nas

cidades da América Portuguesa – século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005.

SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do norte: trajetórias

administrativas no Estado do Grão-Pará e Maranhão. São Paulo, 2008, 441 p. Tese

(Doutorado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Universidade de São Paulo.

SANTOS, Marília Nogueira dos. A escrita do Império: notas para uma reflexão sobre o

papel da correspondência no Império português do século XVII. In.: SOUZA, Laura de

Mello e; BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Orgs.). O Governo dos

povos. São Paulo: Alameda, 2009.

Page 376: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

376

SANTOS, Milton; ELIAS, Denise. Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos

e teóricos e metodológicos da Geografia. 6. ed. São Paulo: EDUSP, 2008.

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil colonial. São Paulo:

Perspectiva, 1979.

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil colonial: o Tribunal

Superior da Bahia e seus desembargadores (1609-1751). Berilo Vargas (trad.). São

Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SHILS, Edward. Centro e Periferia. Lisboa: Difel, 1974.

SILVA FILHO, José Rodrigues da. Padre Simão Rodrigues de Sá, um patriarca de

batina. In: II Encontros Coloniais, Natal, 29-30 de mai. 2014.

SILVA, Daisy de Assis. Casaram-se solenemente em face da igreja: Matrimônio,

mestiçagens e dinâmicas de apadrinhamento na Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1727-61). Monografia – Graduação em História – Universidade Federal

do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

SILVA, Francisco Ribeiro da. Venalidade e hereditariedade dos ofícios públicos em

Portugal nos séculos XVI e XVII: Alguns aspectos.

______________. O Porto e seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e

poder. vol. 1.

SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade

colonial: Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos séculos XVII

e XVIII. Recife: 2001.

SILVA, Tyego Franklin da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de

poder na territorialização do Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em

Page 377: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

377

História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Rio

Grande do Norte. 2015.

SOARES, Sérgio da Cunha. O município de Coimbra da Restauração ao

pombalismo. Poder e poderosos na Idade Moderna. Tese (Doutorado em Política) –

Faculdade de Letras. vol. I, 1995.

SOUSA, Avanete Pereira de. Poder local e cotidiano: a Câmara de Salvador no

século XVIII. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996.

_____________. Poder local e autonomia camarária no Antigo Regime: o senado da

Câmara da Bahia (século XVIII). In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera

Lúcia do Amaral (orgs.). Modos de governas: idéias e práticas políticas no Império

Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005.

SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la

câmara municipal de Recife (1710-1822). Tese – Doutorado em História – Universidade

de Salamanca, 2007.

______________. Os Homens e os Modos da Governança. A câmara Municipal do

Recife no século XVIII. Recife: Gráfica Flamar, 2003.

_______________. Tratos e mofratas: O grupo mercantil do Recife colônia (c. 1654-

1759). Recife: Editora Universitária – UFRE, 2012.

SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século

XVIII. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004.

SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América

portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Page 378: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

378

STUMPF, Roberta G. Formas de venalidade de ofícios na monarquia portuguesa do

século XVIII. In: STUMPF, Roberta G. CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e

ofícios nas monarquias ibéricas (séculos XVII e XVIII): provimento, controlo e

venalidade. Lisboa: Centro de História de Além-Mar da Universidade de Lisboa, 2012.

_______________. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as

solicitações de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas. Tese – Doutorado

em História – Universidade de Brasília. Brasília: 2009.

_______________. Formas de venalidade de ofícios na Monarquia portuguesa do

século XVIII. In: STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e

ofícios nas Monarquias Ibéricas: Provimento, controlo e venalidade (século XVII e

XVIII). Lisboa: Centro de História de Além-mar, 2012.

_______________. Venalidad de oficios em la monarquia portuguesa: um balance

preliminar. In: CASTILLO, Francisco Andújar; FUENTES, María del Mar Felices de

la. (eds.). El poder del dinero. Ventas de cargos y honores em el Antiguo Régimen.

Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2011.

_________________. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo

Regime português. In: Revista Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 29, p. 612-634.

_________________. Dos homens que serviam entre papéis e letras. Escrivães das

câmaras na América portuguesa. NUEVO MUNDO-MUNDOS NUEVOS, v. ano

2017, p. 1-13.

TEXEIRA, Rubenilson Brazão. Terra, casa e produção. Repartição de terras da

Capitania do Rio Grande (1614). In: Revista Mercator, Fortaleza, v. 13, n. 2, mai./ago.

2014. p. 105-124.

THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico

(1400-1800). MOTTA, Marisa Rocha (trad.). Rio de Janeiro: Elieser, 2004.

Page 379: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

379

TRINDADE, João Felipe. O Escrivão da Fazenda Real, Estevão Velho de Mello.

Natal, 26 jun. 2012. Disponível em:

<https://putegi.blogspot.com.br/search?q=Estev%C3%A3o+Velho+de+Melo> Acesso

em: 13/09/2017.

VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Colonial, 1500-1808. Rio de Janeiro:

Editora Objetiva, 2000.

____________. Antônio Vieira: Jesuíta do Rei. São Paulo: Companhia das Letras,

2011.

VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História Geral do Brasil: Antes da sua

separação e independência de Portugal. vol. 1. 9. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975.

VIDIGAL, Luis. No microcosmo social português: uma aproximação comparativa à

autonomia das oligarquias camarárias no fim do Antigo Regime político (1750-1830).

In: VIEIRA, Alberto (coord.). O município no mundo português. Funchal, CEHA/

Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998.

VIEIRA, A. dos P. Almada no tempo dos Filipes. Administração, sociedade,

economia e cultura (1580-1640). Almada: Câmara Municipal, 1995.

VIEIRA, Padre Antônio. Sermão da Terceira Dominga da Quaresma (1655).

In.:_______. Sermões (Parte 1). Ministério da Cultura: Fundação Biblioteca

Nacional.

XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes Clientelares. In.

HESPANHA, António Manuel (coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. vol.

4. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

XIMENES, Expedito Eloísio. Autos de Querela e Denúncia...: edição de documentos

judiciários do século XIX no Ceará para estudos filológicos. Fortaleza: LCR, 2006.

Page 380: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · temporais justificam-se, na medida em que, no ano de 1613, D. Filipe II ordenou que fossem estabelecidos os ‘modos de governo’

380

ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso

Editorial, 1948.