universidade federal do rio de janeiro o secreto bailado do mar: uma leitura de...
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
O SECRETO BAILADO DO MAR: uma leitura de No Tempo Dividido e Mar Novo
de Sophia de Mello Breyner Andresen
Marcela Leite Medina
2010
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O SECRETO BAILADO DO MAR: uma leitura de No Tempo Dividido e Mar Novo
de Sophia de Mello Breyner Andresen
Marcela Leite Medina
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientadora: Prof. a Doutora Angélica Maria Santos Soares
Rio de Janeiro Junho de 2010
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O SECRETO BAILADO DO MAR:
uma leitura de No Tempo Dividido e Mar Novo de Sophia de Mello Breyner Andresen
Marcela Leite Medina
Orientadora: Professora Angélica Maria Santos Soare s
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pó s-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Examinada por: __________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Angélica Maria Santos So ares- UFRJ _________________________________________ Prof. Doutor Antonio Jose Jardim e Castro- UFRJ _________________________________________ Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira- UFRJ _________________________________________ Profa. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria- UF RJ, Suplente _________________________________________ Profa. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira- UFR J, Suplente
Rio de Janeiro Junho de 2010
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FICHA CATALOGRÁFICA
MEDINA, Marcela Leite. O secreto bailado do mar: uma leitura de No Tempo
Dividido e Mar Novo d e Sophia de Mello Breyner Andresen / Marcela Leite Medina - Rio de Janeiro: UFRJ, CLA, 2010.
viii, 106 f., 30cm Orientadora Angélica Maria Santos Soares. Dissertação (Mestrado) - UFRJ/ CLA/ Programa de
Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2010.
Referências Bibliográficas: f. 103 – 106. 1. ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. 2. Mitologia
grega. 3. Poesia e imagem. I. SOARES, Angélica Mari a Santos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Ciência da Literatura (Teoria Literária). III. Título.
Rio de Janeiro Junho de 2010
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RESUMO
O SECRETO BAILADO DO MAR: uma leitura de No Tempo Dividido e Mar Novo
de Sophia de Mello Breyner Andresen
Marcela Leite Medina
Orientadora: Professora Angélica Maria Santos Soare s
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessári os para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Litera tura (Teoria Literária).
Essa leitura de No Tempo Dividido e Mar Novo é um
exercício de interpretação que se move no diálogo d e Sophia de Mello Breyner Andresen com a vasta mitologia mediterrânea (sobretudo com a que antecede a cultur a indo-européia). Para além das maravilhosas estórias de d euses e homens, e orientados, principalmente, pelos pensame ntos de Walter Otto e Eudoro de Souza, buscamos o universo religioso dos mitos: rituais que, de fato celebrava m a maravilhosa presença dos deuses. Nesse sentido, privilegiamos Homero e Hesíodo; a beleza divina de seus versos nos conduziu por uma luminosidade de poesia em que forças míticas e poéticas relacionam-se intimamente no corpo das imagens, secreto bailado do mar.
Palavras chave: Mito, poesia, imagem.
Rio de Janeiro Junho de 2010
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ABSTRACT
THE SECRET DANCE OF THE SEA: a reading of No Tempo Dividido e Mar Novo
by Sophia de Mello Breyner Andresen
Marcela Leite Medina
Orientadora: Professora Angélica Maria Santos Soare s
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessári os para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Litera tura (Teoria Literária).
This reading of No Tempo Dividido e Mar Novo is an
interpretation exercise that moves in the dialogue between Sophia de Mello Breyner Andresen and the wide Medit erranean mythology (above all, the one that precedes the Ind o-European culture). Beyond the wonderful stories of men and gods, and mainly guided by the thoughts of Walter O tto and Eudoro de Souza, we seek for the religious universe of the myths: rituals that actually celebrated the wonderf ul presence of the gods. We also privileged the poetry of Homer and Hesiod; its divine beauty enlightened the paths to the poetry in which mythic and poetic forces rel ate intimately on the images body, secret dance of the sea.
Key-words: Myth, poetry, image.
Rio de Janeiro Junho de 2010
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Às muitas vozes que dizem e
contradizem e compõem a unidade que aqui se escreve “nós”.
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SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO -------------------------------------- ----- 9
2. MITO E POESIA: A DANÇA DAS IMAGENS ------------- ----- 17
2.1 – “A dura luz de Creta”: centelhas de um mundo muito
antigo -------------------------------------------- -- 17
2.2 – O tempo do homem: “eu fechado e interior”- ----- 33
2.3 – O “primeiro dia que era mar” e depois ---- ----- 65
2.4 – “Abolição da morte”: a viagem de Orfeu --- ----- 89
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS --------------------------- -----100
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS --------------------- -----103
Rio de Janeiro Junho de 2010
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1.INTRODUÇÃO
Mar Sonoro 1
Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim. A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo intimamente a tua voz Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho Seres um milagre criado só para mim.
Entre os mais celebrados poetas portugueses encontr a-
se Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 – 2004). Pela
aura de pureza essencial, talvez a força do mar em seus
poemas, ou por sua própria figura, “bela, harmonios a e
serena” 2, como a teriam imaginado os alunos de Cleonice
Berardinelli, a “musa e sílfide” 3 de Eduardo Lourenço
parece ser um daqueles poetas cujo nome é capaz de invocar
a própria poesia.
É interessante o relato de seu filho Miguel, sobre a
casa em que morou a família, na Travessa das Mónica s, em
Lisboa:
Naquela casa aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira era que os poetas eram todos figuras extraordinárias, que apareciam a horas imprevistas e diziam coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor, e que
1 ANDRESEN, 1998a, p. 84. 2 BERARDINELLI, 2001, p. 88. 3 LOURENÇO, 2001, p.91.
10
esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina familiar. Vinham e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica, e jogava futebol comigo no jardim. A segunda coisa sobre poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para ser escutada: é oral, não cabe nos livros 4.
A lembrança de Miguel Tavares encanta um pouco mais a
figura da escritora, e nos parece sempre que a poes ia veio
naturalmente para si, como um modo de ser. É ela pr ópria
quem explica em sua Arte Poética V :
Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema português, chamado Nau Catrineta . Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura. Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio. 5
Nascida na cidade do Porto, no dia 6 de novembro de
1919, Sophia viveu com a família de ascendência
dinamarquesa em uma enorme propriedade, a Quinta do Campo
Alegre, da qual ainda hoje resta parte no Jardim Bo tânico
do Porto. O extravagante jardim e os verões na prai a da
Granja marcaram fortemente a infância da escritora, e os
horizontes e paisagens de seus poemas. A misteriosa dança
do mar é presença poderosa em toda a sua poesia:
No Mar Passa 6
4 TAVARES, 1999, s.p. 5 ANDRESEN, 1998c, p. 349. 6 ANDRESEN, 1998b, p. 22.
11
No mar passa de onda em onda repetido O meu nome fantástico e secreto Que só os anjos do vento reconhecem Quando os encontro e perco de repente.
Apesar de ter nascido e crescido no Porto, foi em
Lisboa que Sophia Andresen passou mais de sessenta anos de
sua vida. Em 1936, matriculou-se no curso de Filolo gia
Clássica na Faculdade de Letras de Lisboa, alimenta ndo,
assim, a intensa paixão que desde a precoce leitura de
Homero viria a nutrir pela civilização grega.
Repetidas viagens à Grécia, ao longo da vida, anima ram
o inexplicável encanto que vemos notadamente manife sto, com
mais ou menos intensidade, desde seu primeiro livro Poesia
(1944), até O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997).
Os dois volumes de que buscamos nos aproximar nesse
estudo – No Tempo Dividido (1954) e Mar Novo (1958) – não
deixam oculto o entusiasmo de tão amada escritora
portuguesa pelo mundo grego. Posteriormente, ambos foram
publicados juntos no ano de 1985, porque segundo a autora
“pertencem a um mesmo ciclo e são na realidade um m esmo
livro” 7. Além disso, alguns poemas situados
cronologicamente entre Coral (1950) e No Tempo Dividido
foram anexados a essa edição sob o título Poemas de um
livro destruído 8.
7 ANDRESEN, 1985, nota da autora. 8 Os poemas serão citados pela Obra Poética .
12
Sophia casou-se em 1946, com o advogado e jornalist a
Francisco Souza Tavares. Sobre ela própria e a uniã o do
casal, transcrevemos a fala um tanto ousada de Eugê nio de
Andrade para a revista Relâmpago :
"(...) tinha esse encanto de quem está sempre em estado de graça. A graça da poesia. Todos os seus amigos estavam, de um ou outro modo, enamorados dela. Talvez daí que, todos eles, tivessem discordado do seu casamento, e o considerassem um desastre. Mas havia nesse juízo alguma injustiça, como se viu anos depois. A Sophia ficou a dever ao Francisco, além dos filhos, a consciência política, que lhe permitiu vir a ser ela a escrever os mais notáveis poemas da Revolução de Abril." 9
A antologia Grades (1970) reuniu seus poemas mais
contundentes. Um dos mais conhecidos, o poema “Porq ue” 10,
encontra-se também em Mar Novo :
Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não. Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não.
9 ANDRADE, 2001, p. 95. 10 ANDRESEN, 1998b, p. 71.
13
Muitos estudos referem-se a um conjunto de “poemas de
resistência política”. Embora a expressão não const e na
antologia, o título Grades e o teor dos poemas, de fato
põem em evidência uma rigorosa concepção de poesia,
expressa em texto que consta na antologia, e que ha via sido
originalmente publicado como posfácio do Livro Sexto
(1962): a busca por justiça, que abordaremos no seg undo
capítulo.
Por ora, arriscaríamos comentar que No Tempo Dividido
e Mar Novo sublinham um determinado momento na vida da
escritora em que ela passa, junto ao marido, a assu mir,
cada vez mais clara e abertamente, oposição ao regi me
salazarista.
A partir de 1958, ambos apóiam o candidato à
presidência Humberto Delgado, e, como conseqüência
Francisco Souza Tavares é banido da vida pública. N o ano
seguinte, ele tem participação fundamental na Revol ta da
Sé, em que foi um dos contatos civis dos militares que
intentaram contra o regime vigente. De acordo com
informações do arquivo eletrônico do Centro de Docu mentação
25 de Abril 11, da Universidade de Coimbra e dirigido por
Boaventura de Sousa Santos, foi Tavares o primeiro político
a falar, no dia 25 de abril de 1974, à população qu e, no
11 O site não menciona o autor do texto, disponível e m: <http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=sousata vares >, acessado em: 04/02/2010.
14
Largo do Carmo, esperava a rendição de Marcello Cae tano,
sucessor de Antônio de Oliveira Salazar desde 1968.
E dias depois, no 1º de Maio, era de Sophia a sente nça
repetida por milhares de manifestantes em Lisboa: “ A poesia
está na rua”. 12 Ela fez parte de várias organizações de
resistência política, foi membro fundador da Comiss ão
Nacional de Socorro aos presos políticos, tendo sid o também
eleita deputada à assembléia constituinte (1975-76) .
Ao contrário do marido, que manteve intensa ativida de
na vida pública, Sophia, nos últimos trinta anos de sua
vida, dedicou-se intensamente à escrita. E produziu obras
primas como Geografia (1967), em que ela nos oferece suas
duas primeiras, e belíssimas Artes Poéticas; Dual (1972) e
O Nome das Coisas (1977), em que aprofunda o admirável
diálogo com Fernando Pessoa, e como aponta Eduardo
Lourenço, ela iniciaria somente no Livro Sexto (1962); em
Ilhas (1989), livro que sucedeu Navegações (1983), ela nos
deixa sua ultima Arte Poética , e ainda em Musa (1994),
reitera o tema da antiguidade grega, que entremeia toda a
sua poesia.
Considerando tão extensa obra poética, gostaríamos de
situar No Tempo Dividido e Mar Novo entre os momentos
iniciais da formação de uma consciência de mundo qu e se
traduz em uma vivência poética, ou diríamos, simple smente,
poesia de viver, que carrega em si os ecos de uma
12 QUEIROZ, 2004, s.p.
15
antiqüíssima forma de consciência religiosa, que re siste
ainda no mitológico mundo tão visitado poeticamente .
Privilegiando a poesia de Homero e Hesíodo como
elevado testemunho de fé, buscamos os enviesados ca minhos
das tradições religiosas do mediterrâneo: a tensão do
eventual trânsito entre o mais antigo complexo mito lógico e
a religião que se tornou dominante na Grécia Helêni ca, e
que teve origem nesse complexo.
Assim, buscamos a Grécia antiga, e as cicatrizes de
uma cisão que se vê, ainda hoje aberta, o tempo dividido ; e
buscamos também um tempo anterior a esse: o misteri oso
tempo que precede à divisão das coisas, e elas pode m,
ainda, volver-se em símbolos.
Voltamo-nos, então, para as pesquisas de estudiosos
como, Walter Friedrich Otto, Jaa Torrano, Eudoro de Souza,
e Ronaldes de Melo e Souza, que se debruçaram sobre a
civilização grega arcaica para tentar apreender o s entido
de outra consciência religiosa, o sentido da potênc ia das
musas, que concedem a Orfeu todo o dom da criação a través
de sua poesia.
O que pretendemos aqui não é mais que um exercício
interpretativo que busca apenas delicada aproximaçã o.
Tentamos não ferir demais o corpo dos poemas, desta cando
fragmentos soltos sem a presença próxima do todo. O s poemas
aparecem inteiros, quase sempre que mencionados, - eles são
o sangue que tentamos tocar.
16
Procuramos também não abafar demais a voz própria d as
imagens. Nesse sentido, a orientação é dada pelo pe nsamento
de Octavio Paz: “A imagem explica-se a si mesma” 13, i.e.,
ela será o indício de si mesma, e não um enigma a s er
desvendado.
Com uma vasta obra que compreende não somente poesi a,
mas também teatro, prosa, literatura infantil, e en saio,
além de traduções de autores como Dante, Shakespear e e
Eurípides, Sophia de Mello Breyner Andresen dispens a
maiores apresentações.
13 PAZ, 2005, p. 47.
17
2. MITO, POESIA E IMAGEM
2.1 – “A dura luz de Creta”: centelhas de um mundo muito
antigo
À Grécia regressaremos – à fascinante e tão distant e
claridade de um mundo de deuses e de homens, que ao longo
de tantas épocas seduziu poetas, estudiosos, e muit os
outros amantes de tão singular cultura.
Um mundo que, na poesia de Sophia de Mello Breyner
Andresen, é a imagem dos tempos primordiais, da “Pr imeira
Liberdade” 14, quando era tudo “mar e luz/ dansa, brisa,
ramagens e segredos” 15 , e o divino cheiro salgado do mundo
grego exala por toda parte nos poemas da escritora
portuguesa.
Mas simplesmente mencionar o “mundo grego” desperta
imediatamente um ambíguo sentimento de longínqua di stância
e desconfiada proximidade... Diante da vastidão dos campos
de investigação, e da inumerável quantidade de publ icações
a respeito do assunto, é preciso estar atento: nem todos os
caminhos vão dar na Grécia.
Como brevemente explicitado na introdução, seguire mos
na senda aberta por Walter F. Otto, um dos primeiro s a
14 ANDRESEN, 1998b, p. 27. 15 A autora recupera a grafia etimológica que foi abo lida em 1911, encontrada em vocábulos como “dansa”, “Orpheu”, “Eu ridyce”, “Delphos”, e também em seu próprio nome.
18
desviar-se da orientação positivista e racionalista , que
nos séculos XIX e XX dominou o campo de pesquisas d e
mitologia grega, e que alimentou a noção de ingenui dade
primitiva que, até hoje, encontramos em tantos estu dos
relativos aos sagrados mitos gregos.
Walter Otto argumenta que o regresso a esse fascina nte
mundo é uma jornada que não pode evitar as vias da
religião. Ao contrário, há que se fazer o grande es forço de
considerar tão remota fé para além das perspectivas
religiosas do mundo moderno, que tendem a julgá-la
superficial e infantil. A religião não é apenas mai s um
acessório da vida em sociedade – ela é o que manife sta
aquilo que é digno de veneração para um povo.
É incoerente que todo o respeito que se nutre por u ma
civilização tão requintada como a grega não alcance o
domínio da religião. Tanto admiramos suas artes, su as
ciências, sua poesia, mas tendemos a classificar co mo
fantasiosas as divindades, e infantil a vívida cren ça que
os gregos a elas dedicam - ainda que se veja claram ente em
todas essas extraordinárias obras, por isso mesmo a té hoje
admiradas, que o divino é o que fundamenta todo o s er e o
acontecer.
A partir dessas considerações é que gostaríamos de
enveredar pelos caminhos que, na poesia de Sophia d e Mello
Breyner, remontam ao passado grego: norteados pelo universo
19
dramático da mitologia, que é a religião - iluminad os pela
“dura luz de Creta” 16:
Ressurgiremos Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos E em Delfos centro do mundo Ressurgiremos na dura luz de Creta Ressurgiremos ali onde as palavras São o nome das coisas E onde são claros e vivos os contornos Na aguda luz de Creta Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo São o reino do homem Ressurgiremos para olhar a terra de frente Na luz limpa de Creta Pois convém tornar claro o coração do homem E erguer a negra exatidão da cruz Na luz branca de Creta
Ressurgir evoca o sentido de renascer. Um renascer que
acontece na luz, na terra, na antiguidade grega. A anáfora
de “ressurgiremos”, no início das três primeiras es trofes,
e mais uma vez no penúltimo verso da terceira estro fe, é
combinada com a gradação de adjetivos 17 associados à “luz
de Creta”, expressão que se repete em todas as estr ofes.
“Dura”, “aguda”, “limpa”, “branca”, a luz de Creta é a
possibilidade de ressurgimento em um mundo muito an tigo: um
mundo “onde as palavras são o nome das coisas”, ond e nomear
é ser; um mundo em que “pedra, estrela e tempo” com põem o
divino reino do homem; um mundo que só faz sentido, só
16 ANDRESEN, 2003, p. 25. Com exceção desse poema do Livro Sexto (1962), não aparecerá, nesse estudo, outro poema de Sophia de Melo Breyner Andre sen que não pertença a No Tempo Dividido e Mar Novo. 17 FERREIRA, 2006, p. 205.
20
torna-se “reino” pela imediata presença do divino; um mundo
em que se olha a “terra de frente”.
Os “claros e vivos contornos” da poesia de Sophia s ão
como a luz de Creta. Nela lampejam centelhas das tã o
antigas tradições religiosas em que se encontram as
expressões originárias da religião grega. “Erguer a negra
exatidão da cruz / na luz branca de Creta” será rev olver as
assombrosas profundidades terrenas de onde emergem os raios
que aquecem a consciência religiosa dos gregos.
A principio, é preciso considerar as extraordinária s
dimensões do mundo onde viveram os povos que viriam a ser
gregos, e os povos que seriam, um dia, helenizados. Creta
foi o berço da requintada civilização mediterrânea que
prosperou na Idade de Bronze, e foi também o apogeu de uma
cultura que, desde o início do Neolítico até as gra ndes
invasões do século XII a.C., estendeu-se sobre a An atólia,
a península balcânica, as Cíclades e Creta, – isto é, a
maior parte do mundo que os gregos viriam a povoar 18.
Nessa cultura, de origem médio-oriental, e
completamente estranha ao espírito indo-europeu e s emítico,
é que se supõe ter nascido o culto à Grande Deusa, que hoje
conhecemos como a Pótnia minóica; nela é que residem as
origens autenticamente religiosas de quase todos os mitos
que englobam a religião grega.
18 SOUZA, 1973, p. 81.
21
Diminuto é o conhecimento que possuímos dos atos de sse
antiqüíssimo culto. Por vezes, podem-se somente vis lumbrar
imagens das cenas cultuais através da sua freqüente
representação plástica em monumentos da civilização creto-
micênica. De fato, a carência de documentação é de tal
ordem, que inviabiliza completamente a tentativa de
ordenar, em uma sucessão de períodos históricos, a
transição das antigas tradições religiosas do medit errâneo
à religião que se tornou dominante na Grécia Helêni ca. Mais
evidente e passível de consideração é a forte tensã o entre
a nova cosmovisão – fundamental para o mundo helêni co – com
que nos presenteia Homero, e a cosmovisão mais anti ga, da
qual os achados arqueológicos são testemunhos de um a
indiscutível predominância:
“Sob os arruinados templos dos deuses olímpicos, os destroçados palácios e baluartes dos heróis homéricos, as cinzas dos varões ilustres e a poeira das cidades renomadas, jazem os ídolos femininos da Egeida: total ou parcialmente nua, esteatopígia, ‘em forma de violino’, com o busto envolto em uma estola de onde emergem os seios proeminentes, de pé ou acocorada, o kteís triangular, as ancas desmedidamente largas, o umbigo enorme, que os véus não disfarçam, solitária e altaneira sobre as cumeadas, nas cavernas e nas fragas da montanha, ou escoltada de animais, soberana das feras, cingida de serpentes, sobrepujada de pombas, ladeada de leões, leopardos, cervos, touros ou machos caprinos, - Grã-Madre ou Doce Virgem –, a anônima Senhora de Creta, das Ciclades e da Anatólia, foi, sem dívida, a suprema, senão única divindade do Mediterrâneo Oriental, antes que os gregos ali viessem a cumprir a sua missão histórica.” 19
19 SOUZA, 1973, p. 81-82.
22
A Terra Mater , a grande deusa primordial, reinava
absoluta em tempos muito anteriores a Homero. Mãe d e todos
os deuses, a divindade ctônica por excelência é tid a pelos
estudiosos do mundo antigo como a magnânima potênci a de
todo uma diacosmese , uma ordem cósmica em que todas as
divindades encontram-se ligadas à terra, e entram e m
intimidade tanto com a vida quanto com a morte.
De fato, o culto dos mortos foi determinante em tod a a
religião primeva. Para os devotos dessa fé, a vida
encontrava-se toda emparelhada com a morte. A condi ção do
morto não era a de apartado do mundo dos viventes, mas sim
a de integrado, ou reintegrado ao seio materno da T erra, e
por isso mesmo, venerável e mais poderoso. Os antig os ritos
de sepultamento celebram o retorno do corpo sem vid a à
Terra, venerado corpo nutriz de todos os corpos, de onde
são oriundas todas as bênçãos, e tudo o que engendr a a vida
terrena.
De acordo com Walter Otto 20, terra, sangue, geração, e
morte são as grandes realidades dominantes dessa tã o antiga
religião em que quase todas as divindades são prove nientes
do mundo subterrâneo e da morte. Assim sucede com a s
20 OTTO, 2005, p. 13. Grande parte das informações referentes às Erínias encontra-se no ousado estudo publicado pelo alemão em 1929. O rigo r de sua pesquisa e o amplo panorama da religião grega por ele descorti nado fazem desse livro, na opinião de Ordep Serra, tradutor da obra e conhecido helenista brasileiro, uma leitura essencial para a compreensão do mundo homérico, até hoje.
23
Erínias. Guardiãs e representantes da venerada orde m de
mundo telúrica, elas já habitavam o tenebroso ventr e da
terra muito antes que o Olimpo viesse a ser esplênd ida
morada do poderoso Zeus, rei dos imortais.
Claramente, as Erínias pertencem à linhagem dos deu ses
primordiais. Nas Eumênides , tragédia de Ésquilo, elas
apresentam-se como filhas da Noite, muitíssimo resp eitada
deidade primordial, que também é dada como mãe das Moiras,
as fiandeiras do destino, três antigas deusas que d ispunham
sobre o nascimento, as bodas e a morte dos seres hu manos, e
sobre as quais falaremos no próximo capítulo. Na Teogonia ,
as Erínias são filhas de Gaia, venerável deusa
Terra 21(v.173-85): quando o filho Crono, a pedido da mãe,
ceifa o pênis de seu pai, Urano, a Terra recebe as gotas de
sangue do membro mutilado, e delas gera as duras Er ínias.
Homero silencia o horrível episódio do nascimento d as
deusas que, no entanto, conhece bem. Elas aparecem tanto na
Odisséia , quanto na Ilíada . Na primeira, Édipo comete uma
atrocidade: mata o pai e casa-se com a mãe. Ele não o sabe,
mas pouco importa. A mãe se enforca, e amaldiçoa o filho.
Édipo passa então a sofrer a incansável perseguição das
“Erínias maternas” (v.280) 22, que lhe infligem infinita
desgraça. Na segunda, Alteia invoca as potências ct ônicas
para que tirem a vida do próprio filho, porque Mele agro
21 HESÍODO, 2007, p. 111. 22 HOMERO, s.d., p.191.
24
havia matado o tio na guerra. Nesse caso, também po uco
importa que não tenha sido uma ação direta da vonta de, que
na guerra, bem poderia ter sido o tio a matar o sob rinho.
Os direitos da mãe são irrevogáveis, e “do Erebo fu ndo
Erínis despiedosa, pela treva errando, ouviu-lhe as pragas”
(9,470-71) 23.
Nas Eumênides , de Ésquilo, autor muito posterior a
Homero, elas alevantam-se furiosas contra Orestes, que
matara a mãe, Clitemnestra. Apolo, que havia ordena do a
vingança do Rei por ela assassinado, acolhe e prote ge
Orestes da insaciável sede de sangue das Erínias, q ue
querem caçá-lo até a morte pelo assassinato da mãe. As
antiqüíssimas deidades eram conhecidas pela fúria
implacável com que zelavam pelas sagradas leis da t erra e
do sangue. Por força das maldições e pragas, seu po der de
vingança era invocado desde as profundezas das trev as.
Se em uma interpretação moderna, poderíamos eximir de
alguma culpa Édipo e Meleagro, com base na noção de vontade
– os gregos sequer fazem uso de um vocábulo para de signar a
noção de vontade do mundo moderno 24 – as Erínias não
cederiam a nenhum tipo de argumentação, porque a ve nerada
norma à que elas respondem tampouco teria sido o re sultado
de qualquer tipo de argumentação, e dessa maneira, não
seria passível de alteração por via da retórica. As sim que
23 HOMERO, 1958, p. 176. 24 OTTO, 2006, p. 120.
25
na tragédia de Ésquilo, é celebrada a instauração d o
tribunal de sangue, que julgará a culpa ou a inocên cia de
Orestes. Mas para a dura verdade das Erínias, só os fatos
são reconhecíveis. Condições e razões de um crime, ou
afronta pouco importam. Um filho matou a mãe - isso é o que
elas sabem; que esse filho sofra as mais terríveis
desgraças – essa é a lei de sangue que elas defende m.
Nesse sentido, portanto, as Erínias não devem ser
entendidas como fruto de uma suposta necessidade hu mana de
solucionar questões. Bem como qualquer dos grandes deuses,
elas vêm a ser agentes de toda uma diacosmese , ou seja,
ordenadoras de um “universo natural, humano e divin o,
segundo as específicas determinações de sua própria
essência”. 25 As Erínias são, de fato, sentido e realidade
de todo um mundo, e sendo deusas tão antigas, sua a tuação
estende-se tanto sobre os domínios da morte, quanto os da
vida.
Se considerarmos o universo religioso em que se ins ere
o culto às deusas ctônicas, e se, mais ainda, aband onarmos
a caduca, mas ainda viva noção de ingenuidade mític a,
poderemos vislumbrar um pouco do gênio do universo do qual
elas são guardiãs.
Aos que lhes permanecessem fiéis, sua afável bênção
era concedida. Por isso, os atenienses lhes ofereci am
sacrifícios nas núpcias. Para eles, eram as mãos da s
25 SOUZA, 1973, p. 80.
26
Erínias 26 que traziam as bênçãos da terra: saúde, paz,
fertilidade e riqueza. Em Atenas, suas imagens nada tinham
de horror, e elas eram chamadas Semnai , “veneráveis”. Em
outros lugares elas eram ditas Pótniai , “soberanas”, ou
Eumênides , “propícias”. A antiga Deméter, divindade que
teria conservado mais abundantemente característica s da
Pótnia minóica 27 era tida como Mãe-Terra sob o epíteto de
Deméter Erinys .
Nesse universo, na diacosmese que queríamos muito
brevemente ilustrar, estão situados pais, filhos e irmãos
em um mesmo plano - na inflexível lei das Erínias, o
maternal, os laços de sangue, e o feminino têm prim azia.
Elas respondem aos imperativos da mais antiga de to dos os
deuses, a índole de seu culto pertence ao múltiplo
substrato religioso que deu corpo ao complexo mitol ógico
mediterrâneo que antecede a cultura indo-européia.
Eudoro de Souza, outro importante pensador que muit o
citamos ao longo de todo esse trabalho, afirma que a
unidade religiosa do mediterrâneo oriental é fato
assegurado: a Terra Mãe, “deusa de infinitos nomes” , teria
sido a sua mais celebrada divindade. Sua relação co m as
divindades masculinas, seus filhos e amantes, é de tal
distinção que os arqueólogos insistem em classificá -los
como seus acólitos, ou paredros, como se o único pr opósito
26 OTTO, 2005, p. 14. 27 SOUZA, 1973, p. 87.
27
de sua existência fosse ressaltar as propriedades d e
maternal fecundidade da venerada divindade feminina . Em
Creta, a relação da Pótnia com o deus de epifania
tauromórfica e fitomórfica a que chamamos Dioniso n ão é
diferente. É o Deus, e não a Deusa que todo ano é
sacrificado nos rituais sagrados que celebram o dra ma
primordial.
Bem diversa é a relação entre as divindades que
brilham no céu do Olimpo. Os mais esplêndidos deuse s de
Homero não respondem à soberania da Deusa-Mãe, nem habitam
grutas, vales, ou rios: proximidades da vida humana . As
antigas epifanias zoomórficas e fitomórficas que
caracterizavam a santidade dos elementos naturais n a antiga
fé são apenas ligeira lembrança em Homero. As forma s das
mais importantes divindades da religião olímpica sã o todas
antropomorfas - o divino revela-se exclusivamente s ob a
forma humana.
O que a poesia épica vem cantar é o reinado do supr emo
patriarca do Olimpo: Zeus. Não chega a surpreender que este
nome seja o único entre os nomes dos mais cultuados deuses
da Hélade que se desvia do substrato egeo-asiânico da
língua grega. De acordo com o memorável professor l uso-
brasileiro, o nome Zeus deriva de uma palavra que, sem
28
dúvida, na linguagem indo-européia significava “céu
luminoso”. 28
O Olimpo, esplêndida morada dos deuses, é inacessív el
aos homens, encontra-se muito acima deles, “onde a sede, é
sabido, se encontra sempre tranqüila (...) escampad o,
infinito, o éter por cima se estende, impregnado de luz
irradiante” (6,42-45) 29.
O reino da morte, anteriormente sagrado, na Ilíada , é
“hedionda mansão, terror dos homens, de que as mesm as
deidades se horrorizam” (20,50-51) 30. O morto não é mais
venerado com o epíteto “demétrio” 31, parente de Deméter,
aquele que tem seu corpo reunido ao corpo terra, co rpo que
em si embala toda a morte e todo o nascimento. Ele agora é
uma sombra, que pertence a um reino muitíssimo dist ante, e
vaga sem consciência ou vigor, na forma de sua vida
passada. Por isso, nos tempos de Homero, a prática mais
comum não era o sepultamento, e sim a cremação, poi s se
acreditava estar satisfazendo o desejo do morto de desatar
rapidamente todos os laços que o uniam às coisas da vida.
Então, destruir o corpo significava libertar o espí rito, e
auxiliar sua travessia para o reino de Hades.
O que vemos aí é que, pela primeira vez distinguem- se
ser e ter sido. Os domínios da vida e da morte já n ão se
sobrepõem, e o sagrado agora nada mais tem a ver co m o ter
28 SOUZA, 1973, p. 88. 29 HOMERO, s.d., p. 108. 30 HOMERO, 1958, p. 364. 31 OTTO, 2005, p. 21.
29
sido - pertence inteiramente a esse novo domínio do ser,
que por sua vez, encontra-se também dividido entre o
preponderante plano da perfeição etérea, e o plano dos
elementos naturais.
De fato, em Homero, já nem se pode avistar reflexos da
“aguda luz de Creta”. A poesia épica é iluminada pe la
distinta claridade do Olimpo através da chama já al ta do
espírito helênico. Uma das divindades mais fortemen te
presente nos versos do poeta épico, aquela que dá n ome e
protege a cidade mais importante da Grécia, pouco f az
recordar a maternal exuberância da Pótnia minóica em toda a
sua fertilidade. Atena, a sagaz, é toda do pai. Con cebida
unicamente pelo cérebro de Zeus, ela nasce destituí da da
característica essencial de todo o feminino, que é a
maternidade.
Homero evita tocar nas condições anormais do
nascimento da deusa, mas Hesíodo, na Teogonia nos conta um
antigo e ainda mais assombroso mito sobre a origem de
Atena, no qual ela teria possuído uma mãe: a deusa Métis, a
Astúcia, “mais sabia que os deuses e homens mortais ”
(v.887) 32. Zeus a teria desposado, mas a conselho da Terra
e do Céu, ele “engoliu-a ventre abaixo” (v.890) 33 para que
a Deusa lhe indicasse o bem e o mal, e depois gerou Atena
da própria cabeça.
32 HESÍODO, 2007, p. 149. 33 HESÍODO, 2007, p. 149.
30
A tenebrosidade desse mito revela o quão arcaica de ve
ter sido a origem de Atena. Bem se pode imaginar o quão
horrível terá parecido, à clareza do espírito da ép oca de
Homero, tão anormal origem - a devoração da mãe grá vida, e
aberração do nascimento pela cabeça correspondem a uma
figuração mítica muito antiga, também marcada por u ma
variedade de epifanias vegetais, animais, humanas, e
inclusive formas híbridas. Nela, o sentimento
incomensurável e incontornável do religioso está
profundamente ligado à forma, à matéria; o que a po esia de
Homero silencia, mas não emudece completamente. É o caso de
divindades do porte de Dioniso e Deméter.
O poeta menciona superficialmente Dioniso, apesar d e
seu inebriante culto ter estremecido toda a Grécia por
séculos e séculos. O deus do vinho, bebida conhecid a como o
sangue da terra, tem a epifania de um touro, e tamb ém a de
um arbusto.
Nos cultos da Arcádia, a Deméter Erínia foi venerad a
como égua, e fecundada por Possêidon em forma de ca valo. 34
Das mais reverenciadas manifestações da deusa Terra , no
mundo homérico, encontra-se restrita apenas ao plan tio do
trigo, e não há qualquer indício de sua ligação com
Perséfone, ou com o mundo dos mortos. Porém, em Elê usis 35,
cidade vizinha a Atenas, os mistérios das duas deus as
34 OTTO, 2005, p. 23 35 SOUZA, 1973, p. 108.
31
atraíram milhares e milhares de fiéis até o início da Era
Cristã. Ainda que o culto não tenha sido documentad o,
devido à sua própria natureza, os sagrados mistério s de
Deméter mereceram inúmeros monumentos em seu louvor .
Por entre os silêncios daquele que foi considerado o
educador da Grécia, pode-se ouvir certo respeito pa ra com
essa antiqüíssima ordem universal. Como vimos antes , alguns
de seus elementos ainda estão presentes nos poemas
homéricos. Mas a antiga lei já não corresponde à es fera
divina mais venerada.
Essa metamorfose na consciência religiosa dos grego s
marca fortemente a tragédia de Ésquilo. Atena, a de usa sem
mãe, preside o tribunal que irá declarar Orestes in ocente
ou culpado. Seu voto é que, em última instância, de cidirá a
sorte do filho matricida. Apolo, que exigira o ato de
vingança contra a mulher que matara seu próprio mar ido, o
grande Rei Agamêmnon, argumenta sobre o predomínio do
progenitor na geração, e Atena, em sua própria natu reza,
encontra-se inclinada à ordem em que os direitos pa ternais
são preponderantes.
De fato, o que está em jogo nas Eumênides não é a
culpabilidade de Orestes, mas a legitimidade de dua s
verdades que atravessam a consciência religiosa dos gregos:
a verdade surda, inflexível e terrena das divindade s
primordiais, a quem de nada vale o arbítrio humano; contra
a verdade lúcida, jurídica e celestial das divindad es
32
olímpicas, que fundamenta o juízo, e sanciona a von tade do
homem.
Com o voto de Atena, pela lei da cidade, que se faz
através da argumentação de Apolo, ou seja, da arte de
persuasão por via do logos , Orestes é absolvido. As antigas
deusas da vingança têm de se conformar, e por fim, são
convertidas em protetoras do direito, prometendo à cidade
as bênçãos da terra.
O terceiro volume da famosa trilogia esquiliana é d os
raros momentos em que entram em choque deidades ctô nicas e
olímpicas. Seu desfecho conciliatório deixa entreve r o que,
desde Homero, seria o destino da divina estirpe
mediterrânea: não o imediato desaparecimento, e sim o
confinamento a um novíssimo plano que se tornaria c ada vez
menos sagrado - o plano dos elementos naturais.
33
2.2 – O tempo do homem: “eu fechado e interior”
Até aqui, nos conduziu a “aguda luz de Creta”, por
caminhos que atravessam o vastíssimo universo relig ioso da
Grécia. Sophia de Melo Breyner Andresen, tal qual É squilo,
ou Goethe, e tantos outros, pertence ao conjunto de grandes
artistas, gregos ou não, em que fulgura a chama gre ga do
divino – chama que talvez nunca deixe completamente de
iluminar o eventual trânsito entre a antiga religiã o
mediterrânea e a religião dominante na Grécia Helên ica:
Assim Os Claros Filhos 36 Assim os claros filhos do mar largo Atingidos no sonho mais secreto Caíram de um só golpe sobre a terra E foram possuídos pela morte
O primeiro poema de No Tempo Dividido remonta ao que
seria o destino dos filhos do Mediterrâneo: a queda . Seu
destino era caírem “sobre a terra”, quando o divino alçava
o esplendor do céu; e era serem “possuídos pela mor te”,
quando o reino da morte perdia toda sua antiqüíssim a
santidade.
Não por acaso, esse é o poema de abertura de No Tempo
Dividido . Nele se constrói a imagem do crucial golpe que
determina uma profunda cisão, e divide o tempo das origens
36 ANDRESEN, 1998b, p. 21.
34
- que se tende a chamar de primitivo, mas que nos p oemas é
um tempo de pura liberdade - de todo o tempo que su cedeu, e
que foi todo ele assinalado, no ocidente, pela hele nidade
histórica.
É a mitologia grega o golpe que atinge os “claros
filhos do mar largo” em seu “sonho mais secreto”. O u, nas
enfáticas palavras de Eudoro de Souza, “A religião grega é
a eutanásia do mito pré-helênico” 37.
A mitologia grega, como a conhecemos, nasce quando
Homero e Hesíodo denominam e ordenam os deuses em u m
arranjo cósmico em que o reino da morte é destituíd o de sua
santidade, e o sagrado eleva-se a um novo plano esp iritual,
que só existe em relação ao também estreante plano natural.
Assim, eles enunciam nos mitos, sob a forma de poes ia, a
inversão na disposição do arranjo cósmico que deter minava o
mundo anterior ao mundo helênico.
Antes disso – a própria possibilidade de enunciação
dos deuses fora da dramatização ritual já opera a d ivisão
no universo religioso em que reina a deusa primordi al,
porque quebra em dois o fenômeno que em tempos mais antigos
teria sido inconcebível separadamente. Os dois aspe ctos
desse mesmo fenômeno são o mito e o rito.
O mito, sob a forma ritual, integrava a celebração
dramática do culto em um poderoso dinamismo que era a
expressão de todo um mundo. Nesse mundo podiam se e ncontrar
37 SOUZA, 1973, p. 30.
35
deuses e homens, quer dizer, o caráter do sagrado a li se
revelava, intervindo na vida, instaurando possibili dade de
renovação da ordem presente.
Segundo Walter Otto, o termo mythos , simplesmente quer
dizer “palavra”. Mas originalmente ele não indicava palavra
que fala do passado, e sim palavra que fala do real 38.
Palavra que, somente diante da gratuidade do ato re ligioso,
exprime uma vivência singular da realidade.
Muitas vezes considerou-se, equivocadamente, que os
atos do culto fossem menos importantes, ou que não
comportassem a profundidade de sentido das palavras . E por
isso o mito foi dado como a explicação verbal dos a tos do
culto, e o rito como a representação em atos das pa lavras
do mito. Mas a verdade é que para a realidade apree nsível
no universo dramático do culto, mito e rito são
indissociáveis – o pensamento significado ainda não se
distingue do ato significante 39.
Esse mundo, com naturalidade, é chamado de primitiv o,
porque nele não se exprime a realidade apreensível no
âmbito da pura racionalidade, e nem o juízo é o lug ar
primeiro da verdade:
“Na ambiência do primitivo – ao que dizem – participam um no outro, dois mundos que otimisticamente nós proclamamos como distintos, mas que na pessimística verdade, andam sempre separados, é certo que todos nós procedemos e agimos, em circunstâncias normais, como se assim
38 OTTO, 2006, p. 39. 39 SOUZA, 1973, p. 117.
36
fosse, saibamos ou não, que assim não é. Mas, distintos ou separados, os conhecemos pela infinidade de nomes que a história da filosofia registrou, - como os do sensível e do inteligível, do particular e do universal, do concreto e do abstrato, da matéria e do espírito, do corpo e da alma, do imanente e do transcendente, do finito e do infinito, do tempo e da eternidade, e assim por diante até a saciedade do mais hábil catalogador.” 40
Também pertence à lista de Eudoro de Souza um outro
par: fazer e conhecer. A ambiência desse mundo é si mbólica
- anterior à cisão entre fazer e conhecer, anterior à
preponderância do pensar, em detrimento do fazer, s obre o
domínio do que chamamos conhecimento.
O mundo dito primitivo só adquire significação pela
presença divina, e por isso, só pode ser concebido no drama
ritual, momento em que se manifestam os deuses. O
conhecimento de mundo é sagrado, não se dá a pensar , e sim
a vivenciar.
O domínio da religião é, primeiramente, o domínio d o
fazer, e não o do pensar. Religião é, nas palavras de
Souza, “ato em si mesmo significativo” 41 . É por meio de uma
ação que o divino se manifesta na consciência humana, qu er
dizer, a noção abstrata do divino, no momento da ce lebração
festiva, revela-se, gratuitamente, na desenvoltura do
corpo, em um fazer que também se diz. Mas esse dize r não
diz sobre um mundo nem para que o mundo se lhe revele, ele
40 SOUZA, 1973, p. 99. 41 SOUZA, 1973, p. 96.
37
diz o próprio mundo no acontecer desenvolvido no corpo, e
que somente dessa forma concreta se pode dizer.
Nesse sentido é que, tanto Walter Otto, quanto Eudo ro
de Souza advertem que não há lugar para magia no âm bito do
religioso, como o descrevemos acima. Otto considera que o
mágico tem a ver com a transgressão da ordem natura l, das
regras gerais que podem vir a restringir a vontade do
homem42.
Corresponde ao transgredir de que nos fala Otto, a
noção de magia como exercício de um desejo, fruto d e uma
técnica que visa provocar ou impedir alguma coisa 43, que
consta no estudo publicado em 1994 na revista Colóquio-
Letras , em que Clara Rocha propõe examinar as relações
entre poesia e magia na obra de Sophia de Mello Bre yner
Andresen.
A professora da Universidade Nova de Lisboa
exemplifica seu argumento com uma situação em que o shaman
recitaria o “mito, sob forma de poema, (...) porque essa
recitação pode induzir determinado efeito” 44. E mostra
claramente que, no âmbito da magia, gestos e palavr as do
shaman são meios para atingir um fim.
Além disso, o feiticeiro também não poderia prescin dir
da alegoria, quer dizer, do elemento representativo , já que
não opera através de coisas, e sim de representaçõe s.
42 OTTO, 2005, p. 18. 43 ROCHA, 1994, p. 167. 44 ROCHA, 1994, p. 166.
38
Assim, no “ritual mágico religioso” 45 efeito e
representação se confundiriam por força de um desej o.
A origem da poesia estando ligada a tais “cultos
mágico-religiosos” 46, faz saltar à vista aquela noção de
utilidade que nos é tão familiar, aquela confiança na
técnica que nos parece tão acertada.
Mas Thomas M. Greene, autor da teoria das relações
entre magia e poesia em que se apóia o estudo de Cl ara
Rocha, parece ter ciência de que se a poesia é mági ca, sua
magia não poderia ser tão grosseiramente reduzida.
Então, ele diferencia a magia primeira, a poesia, d a
magia segunda, a do feiticeiro. Em ambas haveria um a
suposta “energia libidinal” 47 que, na primeira articula a
“injunção do espírito” 48, força para a qual tenderia o
discurso poético, a “concreção do verbum e da res ” 49 que
traduz uma maneira particular, e ao mesmo tempo
assimiladora, de um sujeito projetar-se sobre o uni verso
caótico; e na segunda seria mero esforço de ação qu e tem
seu poder na confusão representacional entre signos e
referentes: “representação investida de desejo” 50.
Notamos que é exatamente o inerente “fazer” do
religioso que desclassifica a magia do feiticeiro. Na
verdade, a noção de representação, por sua vez, ine rente à
45 ROCHA, 1994, p. 166. 46 ROCHA, 1994, p. 166. 47 ROCHA, 1994, p. 169. 48 ROCHA, 1994, p. 170. 49 ROCHA, 1994, p. 170. 50 ROCHA, 1994, p. 169.
39
operação mágica, já exprime a equivocada aproximaçã o entre
magia e religião que permite tais conclusões.
O “fazer”, os atos do culto religioso são a ação
humana que exprime o encontro do homem com o divino . Ela
não existe para que se encontrem deuses e homens, e sim
porque os homens celebram um mundo em que deuses e homens
se encontram, e esse encontro, ocorrido na ocasião da
reunião do mito e rito, é uma singular vivência da
realidade.
Os atos do rito não têm a finalidade de representar o
sentido do mito, bem como as palavras do mito não s ão a
“explicação fantástica dos atos pragmáticos do cult o” 51,
simplesmente porque esses não são atos pragmáticos. A
essência dramática da religião é a gratuidade de se us atos,
e o rito é, de fato, o próprio acontecer mítico que se dá
no drama ritual.
Essa reunião é simbólica. O simbólico, de acordo co m
Eudoro de Souza, não corresponde à outra coisa, não é a
representação de algo, não significa coisa diversa daquilo
que é; e naturalmente, também não é a própria coisa , quer
dizer, não se identifica completamente com ela. Sím bolo é
mesmo aquilo que ele próprio significa embora apare ça sob
outra forma, ou em outro plano da realidade:
“(...) a relação externa converte-se em
conexão tão íntima que chega a tangenciar a
51 OTTO, 2006, p. 41.
40
identidade, quando se reúnem ( symballesthai: symbolon ) coisa concreta e noção abstrata, por virtude da festividade ou do sacrifício da própria vida.” 52
É essa força de reunião que o ato poético herda do ato
religioso, e que Greene chama de “injuntiva”. Essa é a
força “mágica”, no sentido de sobrenatural, da reun ião da
palavra com a coisa na cerimônia religiosa, que Cla ra Rocha
identifica na reunião de signo e significado da lin guagem
da poesia.
O sobrenatural, aquilo que invoca a transgressão do s
horizontes do natural, não tem a ver com o desejo, com a
humana vontade, e sim com as trevas do mistério, a outra
categoria da poesia originada da mitologia que vere mos mais
detalhadamente nos capítulos três e quatro.
À luz de Thomas Greene, a autora assinala duas
concepções de linguagem: disjuntiva e essencialista . Na
esteira essencialista, que admitiria a possibilidad e da
reunião simbólica entre palavra e coisa, signo e
significado, ela insere o pensamento de Martin Heid egger, a
poesia de Sophia de Mello Breyner, e a poesia que t eve
origem nos “cultos mágico-religiosos” 53.
Por caminhos enviesados, Clara Rocha conclui, como já
tantos concluíram, e também esse estudo o fará, que se
trata de uma poética essencialista. Concordamos com sua
52 SOUZA, 1973, p. 100. 53 ROCHA, 1994, p. 166.
41
interpretação da poesia andreseniana como “religaçã o com o
divino (...) procurada no reencontro com a physis , espaço
das origens e inteireza” 54. Entretanto, consideramos que a
poesia é religação somente na medida em que se apro xima das
categorias da religião, e não da magia.
Ainda nos estendemos na observação da “tradição
disjuntiva” de Greene, apenas pela oportunidade de maior
esclarecimento das noções de símbolo e alegoria. Pa ra o
professor de Yale, disjuntiva seria a história, de
Aristóteles a Paul de Man e Saussure, do próprio pe nsamento
ocidental, que se orienta pela original distância e ntre
palavra e coisa, signo e significado - dentro de um a
concepção de linguagem como mera convenção, ferrame nta.
Para Paul de Man, por exemplo, o símbolo seria uma
tentativa romântica e impossível de identificação a bsoluta
entre palavra e coisa, signo e significado, no caso da
poesia, e consistiria em um discurso de má fé. Seri a,
então, a alegoria a linguagem da boa fé, na medida em que
admite a condição arbitrária da linguagem 55.
Mencionando Aristóteles, Rocha aponta para os
primórdios da filosofia. O que faz perfeito sentido , se
considerarmos a observação de Eudoro de Souza, que afirma
que, de Xenófanes até Platão, o alegorismo foi dado como
54 ROCHA, 1994, p. 177. 55 ROCHA, 1994, p. 167.
42
meio mais eficaz de reparar uma injustiça 56. O autor,
seguindo o argumento etimológico, sustenta que aleg oria
( állo agoreúein ) significa exatamente dizer outra coisa,
diferente da que ficou expressa 57.
A “tradição disjuntiva” seria a que principiou no
caminhar da filosofia como busca por uma verdade no bre,
elevada, - para além da verdade dramática dos atos do culto
e da verdade poética das palavras do mito – e foi
exatamente por via da interpretação alegórica que o
filósofo se teria esforçado em provar que expressar ia mais
adequadamente que o sacerdote e que poeta, a verdad e. E o
grego jamais pôde conceber qualquer verdade desliga da do
sentido e da presença do sagrado.
Contudo, o filósofo teria ido buscar fora dos atos do
rito, e fora das palavras do mito, um sentido que n a
religião e na poesia é simbólico, só vive incorpora do
nelas. Na exegese alegórica, a concretude da imagem é
abreviada à abstração do conceito, i.e., a metade c oncreta
do símbolo torna-se mera representação de um sentid o que
vive fora do próprio corpo.
Na República , de Platão, a famosa alegoria da caverna
representa a verdade como luminosidade do mundo ext erior.
Na alegoria, há a necessidade de adaptação gradual, tanto
do prisioneiro que se liberta da escuridão interior , quanto
56 SOUZA, 1973, p. 92. 57 SOUZA, 1973, p. 174.
43
do homem livre que retorna à caverna por responsabi lidade
moral para com seus semelhantes.
Para Martin Heidegger, esse esforço de adaptação do
olhar à luz da verdade, representa a noção platônic a de
paidéia 58, caminho metodológico e pedagógico em que o
alcance da verdade advém de um esforço em direção a o
exterior, ao inteligível – do exercício do pensamen to
lógico discursivo.
Sem o propósito de aprofundar questões relativas à
história da filosofia, apenas assinalamos a interpr etação
alegórica como um caráter fundamental do edificar d a
linguagem racional.
E nesse sentido, a própria estrutura do pensamento irá
sempre, forçosamente separar em componentes, tudo a quilo
que atravessar, e, portanto, no que diz respeito ao ato
religioso, será sempre mutiladora da simbólica inst auradora
da verdade do mito, na medida em que terá que repre sentar
de forma inteligível, aquilo que no sensível já vei o a ser.
No luminoso passado grego encontram-se edificadas a s
fundações do imenso arranha-céu do pensamento lógic o que,
por toda a história do ocidente, é o que alicerça a
construção do que se tende a chamar exclusivamente de
verdade até os nossos dias.
Mas fundações e edificações só são possíveis na med ida
da demarcação do terreno a que Homero teria dado início, e
58 MICHELAZZO, 1999, p. 44.
44
que, primeiro Hesíodo, e posteriormente Ésquilo ter iam
executado até o fim: a glorificação do império de Z eus, que
tem sua condição de existência na conseqüente
“subexistência tartárica” 59 das divindades primordiais.
Assim sucede na Teogonia , de Hesíodo. A “Titanomaquia”
narra o episódio em que Zeus derrota seu pai, Crono s, e o
oculta, junto aos irmãos, os titãs, “sob a treva ne voenta”
(v.729) 60 do tártaro, “tão longe sob a terra quanto é da
terra o céu” (v.720) 61.
Encerrados os limites dos elementos terrenos , o
predomínio de seu antiqüíssimo caráter sagrado é de slocado
para a também nova dimensão celestial, sob a perfei ta
feição humana. Então, simultaneamente, e pela prim eira
vez, irrompem duas noções que viriam a nortear o cu rso de
toda a civilização ocidental: a noção de natureza, e a
noção de homem. Uma é demarcada a partir das fronte iras
estabelecidas em torno da outra, e, por conseguinte , elas
só existem dentro dessa relação.
Daí em diante, os deuses, que antes habitavam as
proximidades da vida humana, e se faziam presentes nas
festividades religiosas, nos rituais sagrados, come çam a
afastar-se cada vez mais, dando lugar aos deuses qu e não
pertencem ao mundo dos homens – a Grécia parte ao e ncontro
de seu glorioso destino: as artes e as ciências.
59 SOUZA, 1973, p. 159. 60 HESÍODO, 2007, p. 141. 61 HESÍODO, 2007, p. 141.
45
Apesar de colocada em termos relativamente simples, a
questão não se resolve simploriamente, posto que o complexo
mitológico pré-helênico não poderia ser inteirament e
traduzido e interpretado pelos gregos, seja em form a de
poesia ou em forma de teoremas filosóficos.
Os deuses de maneira alguma deixam de existir com o u
na poesia épica. O mundo homérico é todo encantado pela
beleza da presença divina. Seus mais venerados deus es não
hesitam em interferir na vida humana, ao contrário,
convivem e mostram-se, e apaixonam-se, e por demais se
assemelham aos homens, apesar de já estarem para se mpre
distantes na sua condição de imortais.
Tampouco morrem os deuses com a filosofia. É certo que
ela lhes modifica o modo de existência na medida em que
nega a dramática concepção de mundo do ritual relig ioso, e
a poética concepção de mundo da mitologia. Mas tamb ém não
resta dúvida da devoção do filósofo grego aos deuse s por
toda a história da Grécia.
Se por um lado, o culto das divindades olímpicas nã o
resiste ao declínio da dominação helênica; por outr o, as
mais antigas divindades sobrevivem até os primeiro séculos
da Era Cristã – seu culto só desaparece, de fato, c om a
violenta dominação da outra religião.
A religião grega é um fogo que, desde Homero, arde
sublime em direção ao majestoso céu, mas que se ali menta,
ainda, da carne da terra. A ambiência feminina dos rituais
46
dionisíacos e dos mistérios de Deméter, celebrações em que
se apresentam os deuses que morrem e renascem, é qu e dá
corpo e vida longa à original verdade dos mitos pré –
helênicos.
Há muitas expressões que, de alguma forma, servem p ara
designar o que temos chamado de pré-helênico: pré-h omérico,
cretense, minóico, micênico, mediterrâneo, egípcio. A
aparente falta de cuidado com a denominação tempora l é, na
verdade, certa forma de resguardo ante a ansiedade
histórica que insistiria em perfilar a complexa
estratificação religiosa de tão antigas tradições c ulturais
em uma seqüência lógica e cronológica de cosmovisõe s.
Eudoro de Souza observa que as vias da religião não se
devem limitar ao traçado da história. Um traçado qu e, em
geral, tende a circunscrever a religião dentro do â mbito do
conceitualizado e do conceitualizável 62, circulando em
torno do que seja o pensamento relativo aos deuses e homens
em uma determinada cultura.
O assombroso mundo a que vamos chamando pré-helênic o,
buscando da cultura o culto, e da religião, o fazer ; é
anterior ao aparecimento do homem, e só adquire
significação pela presença dos deuses. Nele, as mon tanhas,
os vales, os rios, as grutas não são meros componen tes da
natureza, simplesmente porque essa é uma noção que só se
estabelece conjugada à própria noção de homem.
62 SOUZA, 1973, p. 95.
47
A natureza, como conjunto de conceitos e experiênci as
científicas, e o ser, como coleção de estados da al ma, eram
noções totalmente ignoradas pelos gregos 63. Eles só podiam
conceber as montanhas, os vales, os rios e as gruta s como
sendo eles próprios manifestações da imediata prese nça das
divindades. O que diz respeito a uma religiosidade
essencialmente desumana, na exata medida da plenitu de de
uma consciência viva da presença divina em todo ser e
acontecer.
Trata-se de uma verdade concebida pela dramatização
dos mitos, e marcada pela multiplicidade do livre m ovimento
do ritmo da vida em toda a sua excessividade e desm esura;
e, entretanto, o triunfo do antropomorfismo fixado pela
poesia épica inaugura, na cultura helênica, a divin ização
do homem e a dessacralização da natureza, que vão d ar na
ascendência do mito do homem e na decadência do rit o
divino.
Eudoro de Souza afirma que o aparecimento do homem é
um fenômeno cronologicamente determinado, do ponto de vista
cultural, pelo período helênico: o ser humano perfe ito, na
Hélade, orgulhava-se de ter nascido grego, e não bá rbaro;
homem, e não mulher; livre, e não escravo. 64
Esse é o mundo em que o tempo é dividido. Esse é o
tempo da interpretação poética dos mitos, que se co njuga
63 OTTO, 2006, p. 39. 64 SOUZA, 1973, p. 135.
48
perfeitamente com a ordem da nova instituição da pólis ; o
tempo da própria mitologia grega – esse é o tempo q ue soa
nas origens de toda a cultura do ocidente, e seus e cos
ressoam até os nossos dias. Esse é o tempo do nasci mento do
mais grego de todos os mitos:
O mito grego do ser humano, soberbamente ritualizado na epopéia do homem em marcha para a posse absoluta da idéia de si mesmo, é o prólogo em que se anuncia a destinação histórica da civilização ocidental, cujo epílogo se denuncia na crise atual do humanismo. 65
Os atos que dramatizam essa ordem de mundo que
circunda as repetitivas vias do antropocentrismo, e que
mantêm a vigência cultural do mito do homem no ocid ente, se
processualizam no esforço civilizatório de formação
educacional herdado da paidéia de Platão, e centrado na
elaboração da figura ideal do homem.
A ritualização da auto-representação do homem consa gra
um mundo que não cede mais espaço à aparição do div ino em
toda a sua plenitude. A realidade não pode mais ser
concebida pela presença dos deuses. Os limites da h umana
perspectiva passam a ser os limites da própria real idade, e
a realidade passa a ser a interioridade do homem.
No universo poético de Sophia Andresen, a imagem do
“eu fechado e interior” traduz aprisionamento, sufo camento:
65 SOUZA, R. 1986, p.36.
49
III 66
As paredes são brancas e suam de terror A sombra devagar suga o meu sangue Tudo é como eu fechado e interior Não sei por onde o vento possa entrar
Toda essa verdura é um segredo Um murmúrio em voz baixa para os mortos A lamentação húmida da terra Numa sombra sem dias e sem noites
O tenebroso murmúrio dos mortos é a “lamentação húm ida
da terra”, mistério da “verdura”, do verdor, do ete rno viço
de não cessar de nascer e também de morrer, que jam ais se
limita a qualquer perspectiva que o homem possa imp or.
O vento não tem por onde entrar onde “tudo é como e u
fechado e interior”, onde a natureza é interiorizad a pelo
homem, quer dizer, só se dá a conhecer através do s entido
íntimo que o homem lhe impõe.
O vento não tem interior. No poema “Marinheiro Sem
Mar”, que melhor veremos adiante, há um “reino puro / de
espaço e de vazio” e “de verde frio”. Reino de vazi o
interior, a natureza não tem sentido íntimo, e niss o
consiste sua pureza. Intimidade é o ponto de vista do
homem, “todo ele, olhar volvido para dentro” 67. Prisão de
“paredes brancas”, “sombra sem dias e sem noites” é o
próprio sujeito, é a humana e dominadora perspectiv a de um
mundo em que os deuses não têm mais lugar.
66 ANDRESEN, 1998b, p. 13. 67 SOUZA, 1973, p. 143.
50
O tempo dividido é o tempo sem deuses e sem memória ,
em que “tardes inertes morrem no jardim”:
No Tempo Dividido 68 E agora ó Deuses que vos direi de mim? Tardes inertes morrem no jardim. Esqueci-me de vós e sem memória Caminho nos caminhos onde o tempo Como um monstro a si próprio se devora.
A imagem do tempo como monstro que devora a si mesm o
diz respeito ao tempo “sem deuses”, que é o tempo d o homem:
o tempo “sem memória”, que é o tempo da eterna reit eração
do próprio tempo do homem.
“Sem memória” não quer dizer domínio completo do
esquecimento como faculdade humana. “Sem memória” é
esquecimento da presença dos deuses. “Sem memória” é o
tempo que, como um monstro, devora a si mesmo, divi dido,
desprovido do sentido originário de Mnemosýne e das Musas,
que pertence ao plano telúrico, sensível, e não ao
inteligível.
Na ordenação genealógica de Hesíodo, na Teogonia , a
deusa Memória é a quinta divindade desposada por Ze us, que
Torrano descreve como potência uranida, que tem seu poder
no domínio da luminosidade desveladora 69.
De sua união com Zeus, Mnemosýne gera as Musas, para o
esquecimento ( lesmosýne ) “dos males e pausa de aflições”
68 ANDRESEN, 1998b, p. 34. 69 TORRANO, 2007, p. 26.
51
(v.55) 70. Elas cantam as glórias de Zeus, e a força de seu
canto, mantenedora do poder olímpico no domínio da
aparição, é manifestação do poder de presentificaçã o dessas
divindades geradas no ventre da Memória. E, como ve remos no
último capítulo, o vigor de presença é moldado pela força
da correnteza noturna, no pendor de ocultação das p otências
do não-ser descendentes do Caos e da Noite.
De fato, como mãe e potência de desocultação, guard iã
dos limites entre a luz da presença e a treva de
esquecimento, Mnemosýne concede poder de presentificação às
Musas para que cantem e dancem o sentido de um novo mundo:
No ritmo de transe da dança em que se ritualiza o trânsito da virtualidade caótica para a realidade cósmica, elas cantam a memória das origens, e não do originado. 71
É importante observar o verbo que, na Teogonia ,
designa a ação pela qual as Musas manifestam seus p oderes:
mélpomai 72, cantar-dançar. Torrano aponta para o sentido da
unidade entre palavra música e gesto com que os gre gos
sentiram o canto e a dança. Essa relação diz respei to à
experiência do sagrado nas culturas helênica e pré-
helênica.
Ainda hoje, guardamos lembrança do poder mítico em
certos gestos, como o de unir as mãos, ou erguer os braços
em direção ao céu. Na origem, esses atos não repres entam
70 HESÍODO, 2007, p. 105. 71 SOUZA, R. 2001, p. 18. 72 TORRANO, 2007, p. 22.
52
fé, eles são manifestações do sagrado no corpo huma no. A
dança, em seus primórdios, corresponde a esse carát er de
manifestação.
De acordo com o diálogo Da Dança 73, atribuído a
Luciano, tal qual Eros, o mais antigo dos deuses, a dança
teria nascido com o próprio universo, e presidiria ao
harmonioso movimento das esferas. A dança primordia l,
experiência sagrada no ato religioso é como uma
continuação, no ritmo do corpo, da renovada repetiç ão do
próprio ritmo cósmico.
A reunião dos gestos na dança do rito, com as palav ras
e a música no canto do mito revela o sagrado mundo em que
se encontram deuses e homens, mundo dessa forma ins taurado,
e só dessa forma é que dá a conhecer sua verdade.
Na Teogonia , as Musas sabem dizer pseudéa , e também,
se querem, dão a ouvir alethéa (v.28) 74. Na tradução de
Torrano, respectivamente, mentiras símeis aos fatos , e
revelações 75. Ambas pertencem ao belo canto que as deusas
ensinam ao poeta enquanto ele pastoreava ovelhas ao pé do
Hélicon.
Sem intenção de discutir questões relativas à tradu ção
dos termos, gostaríamos de assinalar que, bem como treva e
luz, pseudéa não está relacionado à alethéa em uma relação
de oposição excludente. Pseudéa não é a mentira, feito do
73 SOUZA, 1973, p. 303. 74 HESÍODO, 2007, p. 103. 75 A tradução segue a proposta de Martin Heidegger.
53
comportamento humano. É Mentira como uma força que encobre.
De fato, trata-se de uma forma divina que Hesíodo n omeia
entre os filhos da Noite, junto a Léthe .
E uma vez mais se apresenta a difícil tarefa de
desviar da dominante perspectiva do humano para mel hor
compreender o divino na cultura grega. Vale a pena reiterar
que os deuses não são personificações de sentimento s,
faculdades psicológicas, ou forças da natureza, ele s são
realidades que tem seu fundamento no sentido e na
interconexão das coisas - não se dão ao pensamento ou a
explicações, mas sim a vivenciar.
Alethéa é o subtraído da treva do esquecimento. Léthe ,
a divindade que impõe um véu, para além do esquecim ento
como fenômeno psicológico, também ultrapassa o âmbi to do
humano por ser uma potência de ocultação. Filha da Noite,
que desdobra a linhagem de divindades que marcam pe la
privação, Léthe subtrai à luz, vela, e contrapõe-se “de
modo simétrico e especular a Mnemosýne” 76.
Descendente da estirpe divina primordial da Terra e do
Céu, Mnemosýne, em seu vigor mítico, também não é
personificação da memória, representação da função
psicológica de rememoração. Somente em um contexto tardio
do pitagorismo e platonismo 77 é que se tornaram possíveis
tais considerações. Divindade telúrica e sensível, com seu
76 TORRANO, 1997, p. 32. 77 SOUZA, R. 2001, p. 15.
54
corpo de águas profundas e cristalinas de fonte, a filha de
Gaia é memória divina e concreta das origens, é mem ória da
própria força originária que “preside à gênese de t udo que
existe”. 78
Alinhando os sentidos de mito e culto, memória e
cultura, Ronaldes de Melo e Souza aponta para uma p oética
cultural que compreenderia todas as manifestações
criativas, e não somente artísticas do ser humano. Isto
porque a propulsão criadora imanente à memória está
presente em todas as criações humanas, sejam elas
artísticas, religiosas, científicas, filosóficas:
A poeticidade da memória, que subage na formação cultural dos povos de outrora e de agora, constitui o objeto privilegiado de uma poética generalizadora da cultura, que inclui e transcende a poética restrita das artes compaginadas nos tratados estéticos. 79
Ainda nessa perspectiva, consideremos, então, cultu ra
como a celebração de um mito dominante que institui rigor
de projeção mundial e vigor de fascinação vital 80, e que só
perdura historicamente enquanto dura a dramatização
ritualística de seus mitos dominantes. O culto como imagem
prototípica de tudo que é, explica a cultura que o
engendra, e só existe na sua relação com o mito. Af astados,
o primeiro transforma-se em um mero ato cerimonial que já
não se pode experimentar como possibilidade de
78 SOUZA, R. 2001, p. 15. 79 SOUZA, R. 2001, p. 10. 80 SOUZA, R. 2001, p. 9.
55
transfiguração existencial; e o último converte-se em
simples relato de um passado primordial que já não se
repete ou renova no presente.
O esquecimento dos deuses dá-se na cisão entre mito e
culto, que proporciona o enfraquecimento da força c riativa
da cultura - tempo “sem memória”, em que a memória criadora
é degenerada em uma repetitiva faculdade de rememor ação
toda voltada para a consagração do mito do homem.
A memória cultural, originalmente poética, quando
tomada unicamente por rememoração, apenas fortalece os
axiomas básicos de conduta social, sem, entretanto,
instaurar a possibilidade de criação de novos valor es e
paradigmas históricos. Assim, a cultura fica reduzi da a um
formalismo ritual que reitera um mito desprovido de sua
potência criativa, que apenas se repete 81.
Em face de tais considerações, e reunindo as imagen s
dos dois poemas, interpretamos o tempo dividido com o o
tempo do “eu fechado e interior”, em que “tardes in ertes
morrem no jardim”: é como se o homem sufocasse em s i mesmo,
em um tempo que devora a si próprio, inteiramente d ividido
pelo humano horizonte, que se impõe como sentido ín timo do
mundo, transformando-o em uma prisão de “paredes br ancas”:
mundo “sem memória”, construção da monstruosa repet ição de
infinitos reflexos do próprio homem.
81 SOUZA, R. 2001, p. 9.
56
Soam corpos sem nome, a contar o futuro “como se fo sse
o único presente” na repetitiva equação do tempo “s em
memória”:
IV 82 Porque será que não há ninguém no mundo Só encontrei distância e mar Sempre sem corpo os nomes ao soar E todos a contarem o futuro Como se fosse o único presente Olhos criavam outras as imagens Quebrando em dois o amor insuficiente Eu nunca pedi nada porque era Completa a minha esperança
É significativa a expressão “olhos criavam outras
imagens” como uma visão, um ponto de vista que queb ra em
dois o amor, divide.
Em Hesíodo, Eros, Amor, “o mais belo entre os Deuse s
imortais” (v.120) 83, descendente do Caos, é divindade tão
antiga quanto a Dança, que preside à harmonia do mo vimento
dos astros.
O amor quebrado em dois, que também veremos adiante na
imagem do “primeiro amor morto tão cedo”, remonta a o tempo
dividido como feito de um tempo muito antigo, que v emos
também no poema “Senhor”: “muito tempo antes de eu ter
vindo/ já se tinha a tua obra dividido” 84.
E, contudo, nunca se pediu nada, porque, há, talvez , o
que não tenha sido dividido: a esperança é “complet a”.
82 ANDRESEN, 1998b, p. 14. 83 HESÍODO, 2007, p. 109. 84 ANDRESEN, 1998b, p. 47.
57
Entretanto, a simples existência de uma visão divis ora
parece responsabilizar o ponto de vista como mutila dora
ação humana.
No poema “As Três Parcas”, não há apenas o eu a ron dar
a mágoa da distância e das trocadas imagens. Somos todos
nós cegos, trocados, presos, dominados, perdidos do império
pelos deuses inventado:
As Três Parcas 85 As três Parcas que tecem os errados Caminhos onde a rir atraiçoamos O puro tempo onde jamais chegamos As três Parcas conhecem os maus fados. Por nós elas esperam nos trocados Caminhos onde cegos nos trocamos Por alguém que não somos nem amamos Mas que presos nos leva e dominados. E nunca mais o doce vento aéreo Nos levará ao mundo desejado E nunca mais o rosto do mistério Será nosso rosto conquistado Nem nos darão os deuses o império Que à nossa espera tinham inventado.
O poema “As três parcas” remonta à uma denominação das
Moiras em que elas se apresentam já ambientadas pel o
sincretismo religioso. Mas na genealogia é que melh or se
dispõe seu tenebroso domínio.
Hesíodo apresenta duas origens das Moiras: em uma e las
seriam filhas de Zeus e da Deusa Têmis (v.900-05) 86, que
sucedeu a deusa Gaia no famoso oráculo de Delfos, a ntes que
85 ANDRESEN, 1998b, p. 56. 86 HESÍODO, 2007, p. 151.
58
a cidade viesse a sediar o futuro santuário de Febo Apolo;
na outra, que seria a filiação mais antiga, e remon ta às
raízes infernais das Moiras, elas são filhas da Noi te
(v.212-218) 87, que também dá a luz a Móros , divindade da
morte e da fatalidade. Também em Ésquilo elas perte ncem à
linhagem da Noite e são dadas como irmãs das Erínia s.
Bem como as irmãs, as Moiras são deusas ordenadoras de
todo um arranjo cósmico sagrado determinado pelas p otências
da vida e da morte. Em conhecida representação, ela s fiam o
destino do recém-nascido. Na Ilíada (20, 98-99), os deuses
podem impedir que padeça Aquiles só até onde as fia ndeiras
permitem: “ao depois lhe estale o fio curto que des de o
berço as Parcas dobam” 88. Walter Otto explica que o fado,
Aisa 89, tem significado idêntico à Moira e frequentemente
se intercambia com ele.
Também no poema, as três Parcas fiam, e conhecem os
maus fados. Elas nos esperam nos caminhos em que no s
trocamos pelo que não somos nem amamos.
E caminhamos cegos de nós mesmos, presos no tempo q ue
dividimos, onde já não há mais vento, e não há mais o
império dos deuses.
No tempo dividido, para sempre perdidos do mundo pu ro
e desejado do “doce vento aéreo” da presença divina , do
“rosto do mistério”, os homens renunciam:
87 HESÍODO, 2007, p. 113. 88 HOMERO, 1958, p. 366. 89 OTTO, 2006, p. 242.
59
Este é o Tempo 90 Este é o tempo Da selva mais obscura Até o ar azul se tornou grades E a luz do sol se tornou impura Esta é a noite Densa de chacais Pesada de amargura Este é o tempo em que os homens renunciam.
A imagem da “noite densa de chacais” traz um animal de
mal augúrio, que se alimenta de carniça e costuma r ondar
cemitérios. Parente dos cães selvagens e lobos, o c hacal
aciona a figura do cão no domínio subterrâneo e inf ernal, a
que corresponde também Cérbero, cão de várias cabeç as que
guarda os portões do reino de Hades. O antiqüíssimo deus
egípcio Anúbis era representado com uma cabeça de c hacal 91,
e era o guardião dos ritos funerários.
Angústia, sufocamento, amargura, e morte pesam na
dantesca “selva mais obscura”, que é também humano feito:
esquecimento dos deuses e renuncia dos homens compõ em o
tempo em que “até o ar azul se tornou grades”, e “a luz do
sol se tornou impura”. Como uma moral, a poesia inv oca a
responsabilidade dos homens na composição do tempo.
E o tempo deste poema, incluído na antologia Grades ,
de 1971, é composto também do “tempo vivido”, do pe so de
uma atmosfera carregada de duas guerras mundiais, e da
90 ANDRESEN, 1998b, p. 68. 91 CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1990, p. 231.
60
guerra colonial. Assim, a amargura da experiência d a
ditadura, a tensão social e política de Portugal em guerra
com suas colônias, e de todo o mundo ocidental pós- guerra,
não são, para a escritora, como um sentido externo que
determina a poesia:
A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. 92
Também publicado na antologia, o trecho faz parte d o
discurso proferido em 11 de junho de 1964, data em que
Sophia de Mello Breyner Andresen foi laureada com o Grande
Prêmio da Poesia da Sociedade Portuguesa dos Escrit ores,
pelo Livro Sexto ( 1962). Nessa Arte Poética 93, ela afirma
que a sua poesia evolui dentro uma atenta busca:
Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenômeno quer ver todo o fenômeno. É apenas uma questão de atenção, de seqüência e de rigor.
E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar justiça pela própria natureza de sua poesia. E a busca por justiça é sempre uma coordenada fundamental de toda obra poética” 94
Para Sophia, antes do homem, pedra, árvore e rio
conduzem o espírito que anima a rigorosa busca por justiça 92 ANDRESEN, 2003, p. 74. 93 Somente na Antologia (1ª a 5ª ed.), o texto foi denominado Arte Poética III . 94 ANDRESEN, 2003, p. 73.
61
da poesia. Mencionando Ésquilo, e o tema da justiça , a
escritora portuguesa dialoga com a consciência mora l e
religiosa da civilização grega.
Entretanto, sequer começamos a perceber a questão, sem
que antes nos afastemos do âmbito das religiões mod ernas. O
povo grego jamais pôde conceber religião sob uma ót ica que
abrevia tudo à estreiteza do homem 95. O justo não tem a ver
com sentimentos, vontades subjetivas, ou mandamento s
superiores a que se deve obediência, e para os quai s a
justificativa de sucesso ou falha encontra-se na di sposição
interior do homem. Justiça, para o grego, é uma rea lidade
de compreensão e saber objetivos, que adquire senti do na
interconexão das coisas, em sua ordem natural, que por isso
mesmo é justa, e divina:
Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa confiança na evolução do homem, confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, conseqüente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência 96.
95 OTTO, 2005, p. 7. 96 ANDRESEN, 2003, p. 74.
62
A busca por justiça atravessa os domínios da fé, os
domínios da consciência do homem, e é, para o poeta , a
busca por uma ordem de mundo em que ele quer integr ar seu
canto. Ordem que, no conhecido prefácio de Eduardo Lourenço
à Antologia , seria “a amorosa das coisas e dos gestos que o
nome justo e a visão clara subtraem à perpétua evan escência
para que fiquem na nossa memória como anjos em perp étua e
fulgurante vigília” 97.
Se, nesse estudo, optamos por investigar as tradiçõ es
religiosas do mediterrâneo, não deixamos de reconhe cer a
recorrente presença da religião católica na composi ção do
sagrado ao longo da obra poética de Sophia.
Há, inclusive, quem interprete a escritora portugue sa
como um poeta católico. Mais comum é que seja vista como um
poeta pagão. Entretanto, ambas as definições parece m
demasiado simples, diante da grandeza do sagrado pr esente
em seus poemas, como veremos no belíssimo “Santa Cl ara de
Assis”, e no poema “Senhor”:
Senhor 98 Senhor se da tua pura justiça Nascem os monstros que em minha roda eu vejo É porque alguém te venceu ou desviou Em não sei que penumbra os teus caminhos Foram talvez os anjos revoltados. Muito tempo antes de eu ter vindo Já se tinha a tua obra dividido
97 LOURENÇO, 1975, p. II. 98 ANDRESEN, 1998b, p. 47.
63
E em vão eu busco a tua face antiga És sempre um deus que nunca tem um rosto Por muito que eu te chame e te persiga
Seja o divino evocado como Senhor, ou como antigos
deuses do paganismo, o tempo dividido é sempre o te mpo do
divino sem rosto. Os caminhos da pura justiça foram
vencidos, desviados na “penumbra”: “selva mais obsc ura”,
“tardes inertes mortas no jardim”, ”sombra sem dias e sem
noites”.
A busca por justiça confunde-se com a busca pela
antiga face divina, cujo caráter profundamente medi terrâneo
imprime todo um universo poético de pureza, de libe rdade,
de luz limpa e branca, que veremos no próximo capít ulo.
Contudo, a esperança não reside no inalcançável mun do
da “primeira liberdade”. A esperança reside na comp letude,
na inteireza:
Santa Clara de Assis 99 Eis aquela que parou em frente Das altas noites puras e suspensas. Eis aquela que soube na paisagem Adivinhar a unidade prometida: Coração atento ao rosto das imagens, Face erguida, Vontade transparente Inteira onde os outros se dividem.
A luz do verso “era completa a minha esperança”, do
poema IV 100 , reflete melhor na imagem de Santa Clara de
99 ANDRESEN, 1998b, p. 37.
64
Assis, que “soube na paisagem / adivinhar a unidade
prometida”.
É de um forte caráter pictórico o adivinhar da
unidade: “coração atento ao rosto das imagens”, “fa ce
erguida”, “vontade transparente” – inteireza, compl etude,
mesmo “onde os outros se dividem”.
O poema inicia com uma pausa, tanto por ser “parar”
seu primeiro verbo, quanto pela divisão das estrofe s. Os
dois primeiros versos destacados articulam um parti cular
descanso na respiração do poema. Paragem diante das “altas
noites puras e suspensas” - pausa diante da suspens ão
noturna que exige adivinhação, e não dedução, o cor ação, e
não a cabeça, o rosto das imagens, e não o sentido dos
pensamentos.
A “vontade transparente” deixa aparecer, através de
si, a unidade adivinhada em frente da pureza das no ites. E
nos parece que a completude da esperança vem do tra nsluzir
de uma luz noturna, sombria, na própria luz branca e limpa
de tudo que é puro e divino na poesia andreseniana.
100 ANDRESEN, 1998b, p. 14.
65
2.3 – “O primeiro dia que era mar” e depois
O poema “Primeira liberdade” traz uma bela imagem d os
tempos primordiais, do “primeiro dia que era mar lu z /
dansa, brisa, ramagens e segredos”:
Primeira Liberdade 101 Eu falo da primeira liberdade Do primeiro dia que era mar e luz Dansa, brisa, ramagens e segredos E um primeiro amor morto tão cedo Que em tudo que era vivo se encarnava.
No universo poético de Sophia de Mello Breyner
Andresen, a dança é um dos elementos que compõem a
liberdade dos tempos primordiais. “Dansa” e “segred os” são
os dois únicos elementos que, no poema, não pertenc em ao
âmbito dos elementos da natureza, que são “mar”, “l uz”,
“brisa” e “ramagens”.
Mar, luz e vento estão fortemente presentes em toda a
obra poética da autora. Nos dois volumes aqui selec ionados,
eles aparecem amiúde entrelaçados em imagens que re metem a
uma elevada pureza, que vemos em poemas como “No ma r
passa”, “Ressurgiremos”, “Primeira Liberdade”, “Lib erdade”.
Há muitos estudos críticos concentrados em desvenda r o
sentido dessas imagens tão constantes dos elementos
primordiais. Por conta dessa constância é que
101 ANDRESEN, 1998b, p. 27.
66
exaustivamente se classifica tal poesia como essenc ialista,
quer dizer, como via poética em busca das essências . Já em
1955, David Mourão-Ferreira, por ocasião da recente
publicação de No Tempo Dividido , afirma que a expressão
poética de Sophia reflete uma “rara exigência de
essencialidade” 102 .
Carlos Ceia, em seu estudo intitulado Iniciação aos
mistérios de Sophia de Mello Breyner Andresen 103 (1996),
também reconhece o caráter essencialista de que se fala, e
estabelece em sua leitura crítica uma “via elementa l”,
ocupando-se de investigar a aparição dos quatro ele mentos,
e a maneira como eles são hierarquizados no trabalh o com as
imagens poéticas 104 . Mais adiante falaremos sobre esse
estudo.
Por ora, citamos Jorge de Sena, quem melhor descrev e a
presença dos “símbolos marinhos e aéreos”, que tem a ver
com uma “contenção clássica” que “apela para um sen so
hierático do divino” 105 .
A expressão “contenção clássica” sintetiza duas
importantes características da poesia de Sophia And resen: a
primeira é sua linguagem contida, de disposição ora l, a
simplicidade expressiva que é harmoniosamente conju gada à
segunda, os temas da Grécia, e dos tempos primordia is.
102 MOURÃO-FERREIRA, 1979, p. 132. 103 Este livro é parte de sua tese de doutoramento apr esentada à universidade de Cardiff, no Reino Unido, em 1993: " The Way of Delphi: A Reading of the Poetry of Sophia de Mello Breyner Andresen". 104 CEIA, 1996, p. 139. 105 SENA, 1988b, p. 173.
67
Assim, essa linguagem contida, depurada, que
freqüentemente apresenta construções anafóricas e
comparativas, e raramente revela-se em uma metrific ação
totalmente livre, persiste na reiteração dos mesmos temas e
imagens. Até aqui, já rapidamente reconhecemos boa parte
deles: mar, vento, brisa, a antiguidade grega (Cnos sos,
Delphos, Creta), luz, terra, ramagens. À medida qu e
percorremos os poemas, repercutem as imagens, inten sifica-
se a sua força vertical de sustentação. As imagens são como
pilares estruturais, fixadas tanto no subsolo, quan to na
superfície. E quanto mais elevadas, mais vertiginos a é sua
profundidade.
Como a luz de Creta, a poesia de Sophia ergue-se em
“claros e vivos contornos” que encerram uma ligação
contígua com o essencial, e lhe conferem um uniform e tom de
solenidade religiosa que solicita pronunciação, ou, aquele
“senso hierático do divino” de que nos fala Jorge d e Sena.
Em No Tempo Dividido e Mar Novo, deparamo-nos com
versos que freqüentemente permitem execução como
decassílabos, que vemos nos poemas “Assim Os Claros
Filhos”, “Primeira Liberdade”, “A Liberdade”.
David Mourão-Ferreira atribui à recorrência da métr ica
certa monotonia 106 , no sentido que Charles Du Bos
considerava toda grande arte monótona pela insisten te
repetição de imagens e temas, mas também, monotonia na
106 MOURÃO-FERREIRA, 1979, p. 135.
68
própria acepção da palavra: uniformidade de tom. E, ainda
assim, o poeta e escritor a admite “profundamente
sibilina”.
Carlos Ceia é de opinião diversa, e sustenta que a
monotonia não tem tanto a ver com a evidente unifor midade
de tom concedida pelo recurso da métrica, e sim com “a
rotina dos temas que tocam aspectos soltos da cultu ra
greco-romana, raramente recriados com originalidade ” 107 .
Há que se questionar, como uma poesia que apresenta
uma insistência temática e imagística de tal grau p oderia
se valer de “aspectos soltos” daquele mundo que tan to a
fascina. E principalmente, como seriam eles “rarame nte
recriados com originalidade”, se a criação poética é
precisamente aquele outro gênero de ação humana, qu e, tal
qual o ato religioso, é capaz de instaurar a catego ria do
simbólico:
“(...) no símbolo, sob um aspecto sensível, interceptam-se duas ou mais linhas de inteligibilidade e que no mesmo ponto do acontecer interferem dois ou mais graus de realidade. Fora desta categoria do simbólico, não é possível compreender a ação ritual, entender os entes mitológicos nem apreender a essência de qualquer obra de arte.” 108
A claridade e a vivacidade dos contornos dessa poes ia
reluzem e vivem em uma dinâmica de expressividade s imples,
depurada, oral, que chega a atingir um grau rituali zante,
107 CEIA, 1996, p. 29. 108 SOUZA, 1973, p. 79.
69
ou, novamente nas exatas palavras de Jorge de Sena, “assume
um tom de sibila mítica” 109 .
O “mundo poético depurado” 110 de Sophia, também
identificado por Saraiva e Lopes na abrangente História da
Literatura Portuguesa , é instaurado por uma simbólica
criadora que sintetiza, no próprio corpo do poema, através
de seus aspectos formais (persistente reiteração te mática e
imagética, e a uniformidade de tom conferida por ce rta
homogeneidade da métrica) a solene tonalidade ritua l e
misteriosa que, por sua vez, também caracteriza as imagens
dos tempos primordiais que figuram nos poemas.
Não por acaso, iniciamos a leitura do poema “Primei ra
Liberdade” afirmando que “dansa” e “segredos” são o s dois
únicos elementos não pertencentes ao âmbito da natu reza, e
que figuram na composição das imagens do tempo prim ordial.
No poema “Assim os claros filhos” 111 vemos também a
alusão ao mistério na expressão “sonho secreto”; em “As
Três Parcas” 112 há o “rosto do mistério”; e também, mais
adiante, em “No poema” 113 há o “fogo mais secreto” da
poesia, “que esteve sempre muito longe e muito pert o”.
Logo entenderemos que a presença e a ligação desses
elementos não são, de forma alguma, arbitrárias, se
atentarmos para o fato de que o segredo é um mandam ento no
109 SENA, 1988a, p. 202. 110 SARAIVA & LOPES, s.d., p. 1098. 111 ANDRESEN, 1998b, p. 21. 112 ANDRESEN, 1998b, p. 56. 113 ANDRESEN, 1998b, p. 89.
70
gênero de celebrações religiosas que descrevemos ao longo
do texto.
O exemplo maior desse gênero de festividade cultual
são os mistérios de Elêusis, já mencionados no deco rrer do
estudo. O iniciado nos mistérios de Deméter que for am, sem
sombra de dúvida, os mais ilustres ritos da Hélade, era
obrigado, de acordo com as leis atenienses, a silen ciar
tudo o que aprendera. Não porque se tratasse de liç ões
incompreensíveis, mas porque não podia revelar ao p rofano
aquilo que gratuitamente lhe fora dado contemplar 114 .
Profanar os mistérios, dizer o que nunca poderia se r
expresso exclusivamente sob a forma da palavra, era dito
“dançar fora” 115 , ou seja, mencionar o teor da revelação
fora do contexto pelo qual ele pode unicamente reve lar-se:
o drama ritual. Sem a dança, não existem os mistéri os.
Concluímos que não se deve chamar de “aspectos
soltos”, quaisquer elementos de tão depurado univer so
poético, especialmente aqueles que são insistenteme nte
recuperados, somente porque o esquema classificatór io
desenhado pelo trabalho do crítico foi incapaz de a preendê-
los. E é a própria natureza pura, límpida e contida desse
universo o que intimida e desafia a crítica.
Apesar de tudo, o extenso trabalho do professor
Carlos Ceia consegue ser bastante esclarecedor no t ocante a
114 SOUZA, 1973, p. 109. 115 SOUZA, 1973, p. 113.
71
diversas imagens. E quando ele afirma que o element o da
terra revela, em Sophia Andresen, seu lado mais
nostálgico 116 , concordamos com ele. A mágoa de não poder
alcançar a “Primeira liberdade”, de não “aceder à u nidade
primordial” 117 permeia toda a poesia da escritora.
A Liberdade 118 A liberdade que dos deuses eu esperava Quebrou-se. As rosas que eu colhia, Transparentes no tempo luminoso, Morreram com o tempo que as abria.
O ato de colher rosas, como bem aponta Ceia, está
ligado a “idéia de um momento de liberdade primordi al que o
mito de Perséfone encerra, para simbolizar a morte e o
renascer das plantas”. 119
No Hino a Deméter , supostamente atribuído a Homero, a
beleza de sua filha com Zeus, Perséfone, é descrita como a
de uma “jovem de tez fresca como um botão de rosa” 120 . Ela
colhia flores em um luxuriante prado no momento em que foi
raptada por Hades, o senhor dos mortos. A juventude de um
botão de rosa simboliza a beleza virginal de uma fl or por
desabrochar, todo o poder de fecundidade da deusa, que é
levada ao mundo subterrâneo, onde passa a reinar ef êmera,
no reino do não ser.
116 CEIA, 1996, p. 117. 117 CEIA, 1996, p. 40. 118 ANDRESEN, 1998b, p. 23. 119 CEIA, 1996, p. 120. 120 MARQUETTI, 2008, p. 13.
72
O botão de rosa é a jovem semente, Perséfone, rapta da
pelo deus dos infernos, que, na primavera, retorna das
profundezas junto às flores e aos frutos, unindo-se
novamente à mãe-terra Deméter. A existência das dua s deusas
está entrelaçada, e uma só tem continuidade na outr a.
Em verdade, não são apenas duas, mas três deusas qu e
comparecem no Hino a Deméter . A venerada trindade,
importantíssima para a mitologia pré-helênica e hel ênica,
que formavam Deméter, Perséfone e Hécate, reflete t rês
aspectos da divindade feminina primordial: deusa mã e,
divindade agrícola da fecundidade, e divindade port adora de
uma secreta e lunar sabedoria.
Hécate é deusa lunar, separada do mundo, por vezes
confundida com Perséfone, deusa infernal. Ela está em sua
caverna quando o Sol vê o rapto de Perséfone, e ao mesmo
tempo une-se a Deméter na busca pelo testemunho do Sol. Em
uma versão do mito, Deméter é levada ao mundo infer nal em
busca de Perséfone, e noutra é Hécate. Quando Demét er, a
mãe de Perséfone une-se a ela no mito, Hécate reapa rece
para recebê-la, tornando-se sua companheira.
As três deusas integram um mundo virginal, um mundo
maternal, e um mundo lunar, ou infernal 121 que invocam o
tartárico, o subterrâneo e o infernal como potência
originária, força geradora de tudo que existe.
121 MARQUETTI, 2008, p.7.
73
Deméter, Perséfone e Hécate, todas se caracterizam por
aspectos noturnos. A escuridão sempre associada à t erra,
que vemos no epíteto “a negra” dado a Deméter, em
Phigalia 122 ; a escuridão do reino dos mortos, do qual
Perséfone é rainha. A escuridão da caverna habitada por
Hécate. A escuridão das profundezas do útero da ter ra, das
fendas, das grutas e do inferno. O negrume do solo que é o
útero que recebe a semente, e que somente dele é qu e ela
pode brotar.
As rosas que apenas morrem com o “tempo luminoso” s ão
as rosas transparentes, que não renascem, não tomam parte
na unidade da eterna renovação da natureza, que é u m
cíclico não cessar de nascer e morrer.
A transparência, quando figura no mundo do tempo
dividido, é como a perda da translucidez que passa através
da escuridão, e por isso é que é preciso “erguer a negra
exatidão da cruz / na luz branca de Creta”. Transpa rente é
a morte à margem da vida:
Soneto de Eurydice 123 Eurydice perdida que no cheiro E nas vozes do mar procura Orpheu Ausência que povoa terra e céu E cobre de silêncio o mundo inteiro Assim bebi manhãs de nevoeiro E deixei de estar viva e de ser eu Em procura de um rosto que eram o meu O meu rosto secreto e verdadeiro
122 MARQUETTI, 2008, p. 7. 123 ANDRESEN, 1998a, p. 33.
74
Porém nem nas marés, nem na miragem Eu te encontrei. Erguia-se somente O rosto liso e puro da paisagem
E devagar tornei-me transparente Como morte nascida à tua margem E no mundo perdida esterilmente
Considerando as antiqüíssimas origens do conhecido
mito de Orfeu e Eurídice, provavelmente empréstimo do mito
de Dioniso 124 , não teria sido a história de amor o sentido
inaugural da relação entre ambos, e sim sua afinida de com o
tenebroso reino dos mortos.
De acordo com Eudoro de Souza, Eury-díke , “profunda
diiudicatio” 125 , é divindade que também pertence ao mundo
dos mortos, como se o mito órfico designasse em Eur ídice um
particular aspecto de Perséfone 126 .
No soneto, Eurídice é quem busca Orfeu. Mas não em seu
familiar reino de profundezas subterrâneas. Eurídic e
procura Orfeu “no cheiro e nas vozes do mar”, local que o
mito aponta como destino final do corpo do poeta,
despedaçado por mulheres trácias. E não encontra ne m na
maré, nem nas miragens o seu “rosto secreto e verda deiro”.
Eurídice procura em vão o rosto que “eram” o seu, e
desfigurada, desterrada das profundezas subterrânea s de sua
natureza, como na expressão “deixei de estar viva e de ser
124 SOUZA, 1973, p. 292. 125 SOUZA, 1973, p. 293. 126 SOUZA, 1973, p. 293.
75
eu”, torna-se morte nascida à margem, separada, est éril,
transparente.
No poema “A Anêmona dos dias” 127 , vemos que na vitória
daquele que “profanou o mar” e “traiu o arco azul d o
tempo”, a anêmona, “suja e calcada”, passa a ser ad jetivada
como transparente:
A Anêmona dos dias Aquele que profanou o mar E que traiu o arco azul do tempo Falou de sua vitória Disse que tinha ultrapassado a lei Falou de sua liberdade Falou de si próprio como um Messias Porem eu vi no chão suja e calcada A transparente anêmona dos dias
Entretanto, como convenientemente assinala Carlos
Ceia, as anêmonas, junto às medusas, corais, e búzi os são
seres tão antigos que despertam o sentido do mistér io
noturno das profundezas marinhas 128 . Assim aparecem medusas
e anêmonas, no poema “Cais” 129 :
Cais Para um nocturno mar partem navios, Para um nocturno mar intenso e azul Como um coração de medusa Como um interior de anêmona. Naturalmente Simplesmente Sem destruição e sem poemas, Para um nocturno mar roxo de peixes
127 ANDRESEN, 1998b, p. 64. 128 CEIA, 1996, P. 76. 129 ANDRESEN, 1998b, p. 78.
76
Sem destruição e sem poemas Assombrados por miríades de luzes Para um nocturno mar vão os navios. Vão O seu rouco grito é de quem fica No cais dividido e mutilado E destruído entre poemas pasma.
Para um “nocturno mar intenso e azul / como um cora ção
de medusa/ como um interior de anêmona” partem os n avios.
O mar está profundamente relacionado à escuridão. N ão
por acaso, o elemento líquido é presença e sentido
constante nos mitos pré-helênicos. Importantes sant uários
de Cnosso encontram-se em grutas, locais que remete m ao
negrume das profundezas rochosas da terra, e também à água
do mar, que nas proximidades oceânicas da geografia
mediterrânea, infiltra-se pelas cavidades úmidas da s
grutas, lugar em que também podem brotar as águas d as
fontes, que emergem do interior de profundas fendas .
A repetição do verso “sem destruição sem poemas”
conjugada com os advérbios “simplesmente” e “natura lmente”
instaura um modo de ser “como um coração de medusa/ como um
interior de anêmona”, que remete à unidade primordi al,
impressa nessas primevas flores do mar - a unidade cósmica
de deusa mãe, do eterno feminino, que se encontra p erdida
no “cais dividido e mutilado”.
A ausência de poemas na integridade desse mundo de
profundezas remonta à indiscutível origem mitológic a da
poesia, que figura como sendo um dos primeiros mome ntos em
77
que o mito aparece dissociado do rito. Desse ponto de
vista, a poesia já nasce profanação.
Porém, luz do mito e luz da poesia são como as
miríades 130 de luzes do poema: não iluminam, assombram. Como
a luz do mistério, que só sombriamente é que se rev ela,
acendendo emoções, causando pasmo.
Em “Marinheiro Real”, o marinheiro que vem do mar “ vem
tranqüilo ritmado inteiro”:
Marinheiro Real 131
Vem do mar azul o marinheiro Vem tranqüilo ritmado inteiro Perfeito como um deus, Alheio às ruas.
Como também aponta Eduardo Prado Coelho, no univers o
poético de Sophia, a adjetivação das imagens denota que “as
coisas são no seu essencial modo de ser” 132 , como é o caso
de “mar azul”. O mar é o mar, é azul, e é também “r eino
puro” 133 , “puro espaço e lúcida unidade”, de onde volve o
marinheiro “tranqüilo ritmado inteiro”, em harmonia com o
elemento fecundador da renovação cíclica da terra, ou, como
bem o descreve Eudoro de Souza: “depósito imenso e
130 Miríades é a palavra grega para o número dez mil. Esse número simboliza plenitude, fertilidade e abundância no re ino de Cristo. Santo Irineu fala do tempo messiânico, em que as vi nhas teriam cada uma dez mil galhos, e cada galho dez mil ramos, cad a ramo dez mil sarmentos, e cada semente semeada produziria dez mi l grãos. (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1990, p. 334). 131 ANDRESEN, 1998b, p. 72. 132 COELHO, 1980, p. 21. 133 ANDRESEN, 1998b, p. 50 .
78
inesgotável do princípio que, como seiva ou sangue ou
sêmen, sustenta toda a vida vegetal e animal” 134 .
O marinheiro real, que vem do mar “alheio às ruas”
contrasta imensamente com a imagem do “marinheiro s em mar”.
No “tempo dividido / das ruas sem piedade”, da “pod ridão”
transparece a ausência de “medusas, conchas e corai s”:
Marinheiro Sem Mar 135 Longe o marinheiro tem Uma serena praia de mãos puras Mas perdido caminha nas obscuras Ruas da cidade sem piedade Todas as cidades são navios Carregados de cães uivando à lua Carregados de anões mortos e frios E ele vai baloiçando como um mastro Aos seus ombros apóiam-se as esquinas Vai sem aves nem ondas repentinas Somente sombras nadam no seu rastro Nas confusas redes do seu pensamento Prendem-se obscuras medusas Morta cai a noite com o vento E sobe por escadas escondidas E vira por ruas sem nome Pela própria escuridão conduzido Com pupilas transparentes e de vidro Vai nos contínuos corredores Onde os polvos da sombra o estrangulam E as luzes como peixes voadores O alucinam Porque ele tem um navio mas sem mastros Porque o mar secou Porque o destino apagou O seu nome dos astros Porque o seu caminho foi perdido
134 SOUZA, 1973, P. 20. 135 ANDRESEN, 1998b, p. 50.
79
O seu triunfo vendido E ele tem as mãos pesadas de desastres E é em vão que ele se ergue entre os sinais Buscando a luz da madrugada pura Chamando pelo vento que há no cais Nenhum mar lavará o nojo de seu rosto As imagens são eternas e precisas Em vão chamará pelo vento Que a direito corre pelas praias lisas Ele morrerá sem mar e sem navios Sem rumos distantes e sem mastros esguios Morrerá entre paredes cinzentas Pedaços de braços e restos de cabeças Boiarão na penumbra das madrugadas lentas E ao Norte e ao Sul E ao Leste e ao Poente Os quatro cavalos do vento Sacodem as suas crinas E o espírito do mar pergunta: “Que é feito daquele Para quem eu guardava um reino puro De espaço e de vazio De ondas brancas e fundas E de verde frio?” Ele não dormirá na areia lisa Entre medusas, conchas e corais Ele dormirá na podridão E ao Norte e ao Sul E ao Leste e ao Poente Os quatro cavalos do vento Exactos e transparentes O esquecerão Porque ele se perdeu do que era eterno E separou seu corpo da unidade E se entregou ao tempo dividido Das ruas sem piedade.
80
A cidade “sem piedade”, do “cais dividido e mutilad o”,
onde aportam os navios, afasta o marinheiro da “ser ena
praia de mãos puras”.
No espaço da cidade “morta cai a noite com o vento ”, e
as medusas são “obscuras”. “Pupilas transparentes e de
vidro” não transluzem a escuridão, e as luzes da ci dade
“como peixes voadores / o alucinam”.
Todas as cidades são equiparadas a navios, “mas na vios
sem mastros / porque o mar secou / porque o destino apagou
/ o seu nome dos astros”. Mas ao caminhar pelas esq uinas
escuras da cidade ele vai “baloiçando como um mastr o”.
A partir desses versos é interessante pensar a
divindade feminina cretense, que tem em Deméter uma de suas
mais altas manifestações, e seu constante parentesc o
simbólico com a árvore, pilar ou coluna, que era
representado sob a forma de cilindros ou tubos 136 .
Feito de madeira e em formato cilíndrico, o mastro, no
poema, pode apontar para a simbologia da árvore, qu e
aprofunda suas raízes no subterrâneo e no infernal, e assim
pode subir cada vez mais em direção ao celestial, n o
ininterrupto trânsito da terra ao céu. A árvore est abelece
comunicação entre três níveis cósmicos diferentes, o
subterrâneo, a superfície e o celestial, e assim pr omove a
comunhão do mundo ctônico e do mundo urânico, simbo lizando
136 MARQUETTI, 2008, p.3.
81
a plenitude do eterno feminino, o dinamismo da eter na
renovação da vida.
Nesse sentido, também o mastro, no navio, é o que
promove a comunhão entre as profundezas do mar, e a s
alturas celestiais. A imagem do mastro “baloiçando” é como
o bailar do mar que fecunda a terra, renovando a vi da.
Trata-se do contínuo e cíclico movimento das ondas, dos
rios que brotam do interior da terra e vão desemboc ar no
mar, em um incessante bailado.
Em “Marinheiro sem mar“, o mar, sêmen que fecunda a
terra secou, e seu espírito indaga:
Que é feito daquele Para quem eu guardava um reino puro De espaço e de vazio De ondas brancas e fundas E de verde frio?
A ambiência de “verde frio” do poema parece o mar e m
que se refugia Dioniso, deus da árvore 137 , dendrites ou
éndendros , substância das plantas verdes e das flores,
phloios . Ele também é representado como nascido de flores
aquáticas ou sobre golfinhos, e é chamado pelásgios , aquele
que é do mar, e limnaios , do lago 138 . Também o culto de
Dioniso reflete a ambiência feminina da mitologia p ré-
helênica, marcado por sua epifania vegetal, e sua a derência
ao elemento líquido.
137 SOUZA, 1973, p. 20. 138 MARQUETTI, 2008, p.3.
82
Assim ocorre na arte cretense, que reflete em todas as
suas manifestações a pulsante ebriedade do rito dio nisíaco,
e, desse modo, sempre apresenta os seres viventes c omo
dançarinos flutuantes, como figuras que “balançam a lheias à
gravidade terrestre” 139 , bamboleantes, como que celebrando
“o dinamismo perpétuo do corpo movente da vida”.
Assim ocorre no ritmo da poesia de Sophia, que é o
balanço da liberdade, muitas vezes, situado na pure za do
cenário da praia, e no ininterrupto tombar das onda s do
mar:
Liberdade 140
Aqui nesta praia onde Não há nenhum vestígio de impureza, Aqui onde há somente Ondas tombando ininterruptamente, Puro espaço e lúcida unidade, Aqui o tempo apaixonadamente Encontra a própria liberdade.
Pureza, lucidez, clareza iluminam as imagens de
liberdade, que se intensificam com a repetição da p alavra
”aqui” por três vezes, intercalando os versos, como fazem
as ondas do mar. Em contra partida, em espaços que não
conduzem à liberdade, temos duas imagens de “Marinh eiro sem
mar” e “Cais”, respectivamente: a imagem da cidade de
esquinas “sem aves nem ondas repentinas”, das “ruas sem
piedade”, de “obscuras medusas”, que se aproxima da imagem
139 SOUZA, R. 1986, p.35. 140 ANDRESEN, 1998b, p. 60.
83
do cais “dividido e mutilado”, ponto da cidade de o nde
partem os navios para o mar.
O tempo “sem destruição” é o tempo da liberdade, cl aro
como a praia, mas também noturno, como a intensidad e do
mar. Vigoram treva e luz entrelaçadas uma a outra, reunidas
no todo em que se opõem e complementam. É muito
significativo que este seja tido como um tempo “sem
poemas”.
Também em “Não te ofenderei” há um mundo “com árvor es
e céus mas sem poemas”, que é o mundo “simples e di fícil /
cotidiano e límpido” que o poeta não quer ofender c om um
“canto” de “remorso”:
Não te ofenderei 141 Não te ofenderei com poemas Param os meus olhos quando penso em ti Não farei do meu remorso um canto Com árvores e céus mas sem poemas Demasiado humano para ser dito O teu mundo era simples e difícil Quotidiano e límpido
Somente cantando é que o poeta pode dizer o que diz . E
novamente nos deparamos com a natureza originalment e
profana da poesia, que, se por um lado constitui um a ofensa
à integridade do ato religioso, que é instaurador d a
verdade e do conhecimento nos tempos primordiais, t ambém no
141 ANDRESEN, 1998b, p. 66.
84
cais, o tempo dividido “com poemas pasma” porque a poesia,
tal qual o mito, guarda alguma herança da dimensão
religiosa, na medida em que também é capaz de insta urar a
categoria do simbólico.
No corpo da poesia, imagens se fundem na fundação d e
um mundo inteiro, singular, outro, que exatamente p or ser
outro, de outra forma não se pode fundar. A poesia é
símbolo – ela diz o que é, sem deixar de ser justam ente
aquilo que vem a ser, ou, nas palavras de Sophia: “ poesia é
a própria existência das coisas em si, como realida de
inteira, independente daquele que a conhece”. 142
No universo poético de Sophia, o mesmo sentido das
imagens que remetem aos temas das tradições religio sas
helênicas e pré-helênicas, encontra-se no repetitiv o e
ritualizante caráter da forma. A própria respiração da
métrica é como uma oração que invoca pronunciação, ou seja,
convida ao acontecer do poema, o revestimento dramá tico que
se dá no momento da recitação.
Assim como os dizeres do mito alcançam sua mais alt a
verdade apenas dentro da dramatização característic a do
universo religioso, a celebração ritual; também os dizeres
das imagens do poema alcançam sua mais alta verdade pela
dramatização característica da poesia, a recitação.
No invocar do próprio acontecer do poema, é como se as
imagens subitamente aderissem às palavras, e a próp ria
142 ANDRESEN, 1960, p. 53.
85
unidade primordial dos tempos invocados fosse, ela mesma,
conquistada no reino que ali se desvela misteriosam ente:
No poema 143 No poema ficou o fogo mais secreto O intenso fogo devorador das coisas Que esteve sempre muito longe e muito perto
É secreto, devorador das coisas o fogo que ficou na
poesia. A chama da poesia, “que esteve sempre muito longe e
muito perto”, guardou sempre o fogo mítico que ilum ina
obscurecendo, devorando coisas, alimentando-se do q ue reúne
em si, numa dinâmica em que a noite do segredo é
primordial, quer dizer, o velamento é mais sagrado que o
desvelamento.
Não só o aspecto simbólico, da reunião, ou religaçã o,
o acontecimento que se dá na forma, sendo a síntese da
própria forma e do conteúdo, em que os dois planos se
encontram e interceptam, um transparece através do outro;
mas também, um só vem a luzir através do outro pela luz do
mistério, que só ilumina assombrando.
No âmbito do religioso é o ato ritualístico, o flui do
movimento do humano corpo, que em um bailado, se mo ve no
ritmo da incessante renovação do corpo movente da v ida, e
então o canto desperta com a dança, e o mito enche- se do
saber primordial das origens.
143 ANDRESEN, 1998b, p. 89.
86
Se por um lado, a origem profana da poesia, na
mitologia, é exatamente o momento da primeira cisão entre a
dança e o canto, o rito e o mito, por outro lado el a nunca
perde completamente seu original caráter ritualísti co, que
diz respeito tanto ao aspecto simbólico quanto ao s ecreto,
que até aqui, buscamos apontar tanto no mito quanto nos
poemas.
A partir dessas reflexões, parece pertinente tocar no
corpo em que se dá o bailado da poesia, o corpo que vibra
na pronunciação, na realização dramática do ato poé tico.
No corpo da imagem é que se dá o rito da poesia. Em
outras palavras: o movimento da poesia é, nas orige ns, uma
fixação do sagrado gestual do rito no ritmo, na
harmonização das imagens, das formas do poema. Isto é, o
genuíno movimento poético, que se dá no ritmo estab elecido
pelas formas verbais, tem suas raízes no próprio mo vimento
do corpo, na dança, no rito, que é o próprio aconte cer
mítico.
Nesse estudo, entendemos a palavra imagem de acordo
com a concepção de Octavio Paz, que nada tem a ver com o
caráter psicológico evocado pela palavra imaginação . Imagem
é “toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o
poeta diz e que unidas compõem um poema” 144 .
Conhecemos muitas designações para tais expressões
verbais: comparações, metáforas, símiles, etc. E to das elas
144 PAZ, 2005, p.37.
87
aproximam-se na medida em que se direcionam a prese rvar a
“pluralidade de significados da palavra sem quebrar a
unidade sintática da frase ou do conjunto de frases ” 145 .
Mas diferentemente do sentimento de absoluta certez a
que nos garantem raciocínios e conceitos científico s,
porque aproximam as mais distantes realidades atrav és do
homogeneizante processo de categorização do pensame nto
lógico, a imagem pode conduzir a sentimentos pertur badores
do ponto de vista da lógica, porque aproxima realid ades
heterogêneas sem mutilação, sem que elas percam seu caráter
único, sua própria maneira de ser. A imagem, em sua
expressão, não é função verbal, não é meio para o f im, não
é ferramenta do sentido.
A imagem diz o indizível, ronda o incontornável
silêncio do que é inconcebível para o conceito, a
representação, enfim, para a linguagem racional.
De fato, as mais altas imagens nada representam, e sim
apresentam, instauram uma realidade concreta, e são o
próprio sentido do que concretamente reúnem em si.
Sobre a poesia andreseniana, Saraiva e Lopes afirma m
que as imagens “organizam-se segundo suas próprias forças
de coesão, sem argamassa de uma retórica analisável ” 146 .
Quer dizer, vibram em um ritmo próprio, como que
145 PAZ, 2005, p.37. 146 SARAIVA & LOPES, s.d., p. 1098.
88
purificadas para degustação, para encantar o gosto da
oralidade, e parece ser esse ritmo a conduzir o pas so.
Silêncio incontornável das imagens, no universo de
Sophia, é o mistério do “fogo mais secreto”, “ramag ens e
segredos”, a “negra exatidão da cruz”, escuridão da s “altas
noites puras”, das profundezas da terra e do fundo do mar
que contornam e contém o corpo das imagens – é o ca ráter
noturno, subterrâneo, e infernal que reconhecemos n a
descendente verticalidade de muitas das imagens est udadas
até aqui.
89
2.4 – “Abolição da morte”: A viagem de Orfeu
Hesíodo, na Teogonia (v.116-20), narra que, na
linhagem mais antiga das divindades a que pertence Gaia, no
começo de tudo era o Caos:
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sem pre, Dos imortais que tem a cabeça do Olimpo nevado, E Tártaro nevoento do fundo do chão de amplas vias, E Eros: o mais belo entre Deuses imortais 147
Caos, o nada primordial, a escuridão abissal é
princípio gerador de tudo. Dele nasceu Gaia, das ma is
veneráveis manifestações entre as divindades da Ter ra, que
inicia uma genealogia ao parir igual a si mesma Ura no, o
“céu constelado” (v.127) 148 . Diretamente do Caos desdobra-se
toda uma outra genealogia tartárica, que principia por
Érebos e Noite negra, que unida a Érebos em amor ge ra Éter
e Dia, marcando a polaridade da luz e da treva na l inhagem
do Caos.
Na sucessão de genealogias da Terra, primeiro Crono ,
filho que detestou o pai, Urano, e cortou-lhe o pên is, como
vimos no episódio do nascimento das Erínias; e depo is Zeus
com Crono, que vimos na “Titanomaquia”, determinam a
147 HESÍODO, 2007, p. 109. 148 HESÍODO, 2007, p. 109.
90
destruição do arranjo cósmico anterior na constitui ção do
novo arranjo.
De acordo com Ronaldes de Melo e Souza, a polaridad e
das potências divinas determina uma dupla dimensão de ordem
cósmica e desordem caótica:
O poema teo-cosmogônico de Hesíodo revela que o drama vital e a trama mortal mutuamente se implicam. O Cosmos é fundamentalmente o Caos momentaneamente detido no incontido ímpeto do movimento intempestivo. A constrangedora razão diurna jamais se absolve da avassaladora paixão noturna. O processo agônico de constituição cósmica e de destruição caótica nunca se resolve no estabelecimento normativo de um ordenamento definitivo, simplesmente porque a conexão instituidora de uma diacosmese sempre se manifesta dependente da sucessão dilaceradora das dinastias divinas 149 .
Tanto Crono quanto Zeus, ambos dependem da interven ção
da sabedoria ctônica. É nas entranhas de Gaia que C rono se
esconde “oculto em tocaia” (V.174) 150 para por as mãos na
foice dentada do pai, Urano. Pela “veloz noite negr a” (v.
481) 151 , Réia leva Zeus a Licto, onde “recebeu-o a Terra
prodigiosa / na vasta Creta para nutri-lo e criá-lo ”
(v.479-80) 152 .
A dinastia de Zeus é consagrada com a “Titanomaquia ”,
mas o “Hino a Hécate” glorifica, sobretudo, uma sab edoria
muito antiga, noturna, relacionada à lua.
149 SOUZA, R. 2001: p. 17. 150 HESÍODO, 2007, p. 111. 151 HESÍODO, 2007, p. 127. 152 HESÍODO, 2007, p. 127.
91
Walter Otto lembra que também em Homero, a imagem d a
“rainha silenciosa que irrompe com o rosto escuro e despede
calafrios da morte” 153 é muito vívida.
No universo poético andreseniano, a imagem da noite é
belíssima em seus “jardins suspensos”, “pátios de l uar e de
silêncio”, “adros de vento e vazio”:
Luar 154
Toma-me ó noite em teus jardins suspensos Em teus pátios de luar e de silêncio Em teus adros de vento e vazio
Noite Bagdad debruçada no teu rio País de brilhos e do esquecimento Com teu rumor de cedros e teu lento Círculo azul do tempo
Luar oriental, Bagdá brilha na correnteza noturna q ue
propaga o rumor dos cedros, árvore conífera, que ec oa nas
subterrâneas raízes da noite. Silêncio, vazio e
esquecimento são os domínios desse país, que, no en tanto, é
um país de brilhos.
Mãe dos segredos e dos mistérios, no seio da noite
precipitam-se as Musas de Hesíodo, que “ocultas por muita
névoa / vão em renques noturnos lançando belíssima voz”
(v.9-10) 155 .
A voz das Musas que rebenta na noite é o princípio do
canto do poeta na Teogonia . Dançando “em volta da fonte
153 OTTO, 2005, p. 135. 154 ANDRESEN, 1998b, p. 81. 155 HESÍODO, 2007, p. 103.
92
violácea com pés suaves” (v.3) 156 , as deusas cantam a
soberania do ordenamento cósmico do mais forte filh o de
Crono, a grandiosidade de Zeus. As deusas interpela m
Hesíodo em versos hexâmetros, verso tradicional da epopéia
grega e dos oráculos dados em Delfos 157 , cuja origem teria
sido atribuída a Orfeu.
Essas Musas não dançam no Olimpo, “elas têm grande e
divino o monte Hélicon” (v.2) 158 , mais antigo santuário
grego. Na verdade, essas forças invisíveis são deus as tão
antigas que sua origem pertence ao múltiplo e inume rável
substrato das divindades mediterrâneas que se unifi cam sob
a diacosmese da deusa mãe. Somente em um estágio já bem
avançado da cultura grega, as Musas foram convertid as em
potências espirituais.
As Musas heliconíades são divindades telúricas,
cultuadas no jorrar das fontes, nas correntezas dos rios,
no silêncio das montanhas e dos vales, indissociáve is da
terra - “de todos sede irresvalável sempre” (v.117) 159 .
Como aponta Ronaldes de Melo e Souza citando
Pausânias, o mais antigo santuário grego das Musas era o
Leibethron 160 , o riachinho, nome dado também à parte da
montanha de Hélicon.
156 HESÍODO, 2007, p. 103. 157 TORRANO, 1997, p. 30. 158 HESÍODO, 2007, p. 103. 159 HESÍODO, 2007, p. 109. 160 SOUZA, R. 2001, p. 15.
93
O fluir do rio, que nasce das fontes em direção ao mar
é renovação ininterrupta das águas, correnteza da v ida e da
morte em que fluem as forças germinativas da nature za. Tão
veneráveis eram os rios para os gregos, que Hesíodo afirma
que para tocar as correntes magníficas de um rio é preciso
antes purificar as mãos para não atrair a cólera do s
deuses: “Não deveis atravessar jamais as águas dos rios de
eterno curso, antes de ter pronunciado uma prece”. 161
O bailado das águas das fontes, dos rios e do mar é
nascente da sabedoria primordial da terra, origem e fim de
tudo que existe, e é também o manancial do poder cr iativo
das musas, que vibra em perfeita sintonia com as pr óprias
forças germinativas da natureza.
A invisível dança ao redor da fonte é o fluir
incessante da água com que brilha o canto das Musas na
Noite negra, e o que fulgura é a sabedoria das orig ens, a
força originária das potências tartáricas e subterr âneas.
Filha do Caos, dela descendem as trevas do Sono, da Morte e
do Esquecimento - a Noite é suspensão, expressão do não-ser
em que se manifesta a plenitude resplandecente das Musas
através da palavra cantada do poeta arrebatado por seus
incontidos poderes.
As Musas ritualizam o trânsito da treva à luminosid ade
no transe da dança e do canto, que incessantemente
dramatiza o eterno devir do mundo. Mediado pelas Mu sas, o
161 CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1990, p. 781.
94
poder da poesia de Orfeu, filho da Musa suprema Cal íope e
de Apolo, o deus Musageta, consiste em soar a memór ia das
origens, em cantar, não as formas de existência, ma s a
existência em si, o ser e acontecer das coisas: flu ir
ininterrupto que jamais deixa de nascer e de morrer .
Eudoro de Souza cita o fragmento de Estrabão, em qu e o
autor de Geografia afirma serem a Trácia e a Ásia os locais
de origem das melodias, ritmos e instrumentos music ais. E
que o Hélicon teria sido constituído montanha sagra da das
Musas pelos Beócios, que eram trácios, tal qual Orf eu,
conhecido como dos mais antigos cultores da música 162 .
Assim, as Musas heliconíades precedem as Musas
olímpicas na Teogonia . As mais antigas deidades são mais
veneráveis porque participam da memória das origens , e em
sua plenitude vigoram as forças originárias, como v isões da
descida ao véu materno. A subida ao céu paterno das glórias
de Zeus, realizada e presentificada nas vozes das M usas, só
é possível e se mantém através do poder das divinda des
subterrâneas da estirpe da Noite, do Esquecimento e da
Morte, enfim, do Caos.
Poetas do todas as épocas, entre eles Sophia,
dedicaram veneração às Musas, e também a Orfeu. Com o o
poeta da Trácia, nenhum outro antes dele o foi
verdadeiramente “antes de descer aos infernos, ante s de lá,
162 Citado em SOUZA, 1973, p. 308.
95
por debaixo, ter contemplado os germes e as raízes das
coisas” 163 .
Por sua lira, por seu canto, pela melodia de sua
poesia ficou conhecido Orfeu, aquele que ousou empr eender a
descida ao terrível reino de Perséfone por amor a s ua
esposa Eurídice. Dizia-se dele que era capaz de ser enar
feras, apaziguar tempestades, encantar as plantas, os
homens e até os deuses - e assim é que foi capaz de
propiciar as divindades do mundo subterrâneo.
No “Soneto de Eurydice”, vimos que o sentido origin al
da relação entre Orfeu e Eurídice residiria nas pro fundezas
do mundo subterrâneo, visto que as histórias de amo r são
frequentemente reconhecidas como invenções tardias.
No último poema desse estudo, “Eurydice”, vemos o e u
que se lança na tarefa órfica de, através do “canto de
amor”, buscar a “abolição da morte”:
Eurydice 164 Este é o traço que traço em redor do teu corpo amad o e perdido Para que cercada sejas minha Este é o canto de amor em que te falo Para que escutando sejas minha Este é o poema – engano do teu rosto No qual eu busco a abolição da morte
O traço é o canto, é o poema. Esse é o engano. E
talvez o engano não seja como um humano confundir,
163 SOUZA, 1973, p. 144. 164 ANDRESEN, 1998b, p. 12.
96
ludibriar, mas sim, como algo que oculta – o poema cerca e
oculta. E ao fim, sabe-se engano, não recupera o co rpo
amado e perdido. É busca pela abolição da morte.
Mas abolição da morte não seria a imortalidade, o s er
eterno, e sim a transposição do limite dos horizont es que
envolvem a experiência comum:
Que todo poeta, que todo artista de gênio alguma vez ultrapassou esse horizonte; que toda poesia, que toda arte, nos traz mensagens dos infernos – lá, onde as coisas têm a origem primeira e o termo final –, não sabemos quem o possa duvidar. 165
Em A Divina Comédia , é o próprio poeta, Dante, a
empreender viagem ao mundo subterrâneo, e seu guia é
Virgílio, autor da Eneida , que conhece o reino dos
infernos, porque poeta foi. A catábase poética, a
assombrosa viagem ao mundo subterrâneo é a aventura da
própria poesia, canto que traça, e ao mesmo tempo e ngana:
Orfeu em busca de Eurídice, o eu que se expõe na demanda do eterno feminino é o que dispõe na mística ocultação do ignoto rosto das sombras. 166
Toda poesia é sombria, desprende o tenebroso rosto do
mistério, o traço do engano. É como se fosse um mod o de
claridade diferente, o da poesia, que deixa transpa recer a
própria luz do mistério, que só obscuramente é que se
revela.
165 SOUZA, 1973, p. 179. 166 SOUZA, R. 2001, p. 18.
97
Não nos esquecemos que nesses interstícios obscuros é
que podemos construir nossos castelos de interpreta ção. Os
silêncios, o emudecer, o pasmo que provoca a singul ar
completude do ato poético frequentemente levam o cr ítico e
o estudioso de poesia a invocar a transcendência, a
transposição de limites.
E se o mistério da poesia invoca transcendência, nã o
há duvida da força do caráter descendente em seu mo vimento.
Como há uma transcendência para cima, há também uma para
baixo, afirma Eudoro de Souza, e como se nos puxass e a
orelha, completa: “tão difícil é que à nossa invoca ção
responda a de baixo como a de cima. Fácil é só agit armo-nos
no imanente” 167 .
A aventura de Orfeu, e também de Dante e Virgílio, é a
travessia de todo poeta. Em 1985, Sophia escreve qu e poesia
“é a relação do homem com o real, é a transformação do caos
em cosmos, é o ato pelo qual um homem assume toda a
responsabilidade do seu destino” 168 . A aventura da poesia
não passa sem o dificílimo esforço da travessia, se m rigor
obstinado e sem paixão de vigor inexplicável.
No canto em busca da “abolição da morte”, há um
esforço de escuta, que também aparece na Arte Poética IV de
Sophia Andresen, e consiste em um exercício de “equ ilíbrio
especial da atenção, numa tensão especial da
167 SOUZA, 1973, p. 144. 168 ANDRESEN, in HORTAS, 1985, p.70.
98
concentração” 169 para ouvir o poema-acontecimento, deixar “o
poema dizer-se” 170 por inteiro.
O que diz a fala da poesia em sua singular claridad e,
o “canto de amor” que é “abolição da morte”, são re lances
luminosos de profundezas noturnas, subterrâneas, aq uilo que
provoca o acontecer do poema, o que faz nascer a po esia, o
“como, onde e por quem é feito” 171 o poema-acontecimento, e
que, como recorda a autora, os antigos nomearam Mus a.
Para Andresen, a noção de poesia como acontecimento
exige do poeta atenção, rigor e silêncio para escut ar o
poema que emerge:
Mas sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível – como a película de um filme – ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir de uma obstinada paixão por esse ser e acontecer. 172
Sensibilidade da “película de um filme” para escuta r o
acontecimento do poema que se dá na ressonância das
imagens. Sensibilidade translúcida para fazer apare cer o
acontecer das coisas.
A palavra cantada brilha, é luz que acende um mundo ,
faz aparecer o acontecer das coisas. E no secreto brilho
do canto, que derrama luz espalhando sombra, a danç a das
imagens é que conduz o ritmo.
169 ANDRESEN, 1998c, p. 166. 170 ANDRESEN, 1998c, p. 166. 171 ANDRESEN, 1998c, p. 166. 172 ANDRESEN, 1998c, p. 167.
99
Será talvez essa a “umbilical referência” à origem do
mistério da poesia como palavra-canto e palavra
encantatória de que fala Eduardo Lourenço:
Mas o mistério – ao mesmo tempo o do poeta e do universo que através dele é nomeado – em plena luz, ou naquilo que mais perto dela se aproxima. Poesia, mistério repassado de claridade, a poucos poetas contemporâneos se aplica tão óbvia e viva evidência como a Sophia de Mello Breyner Andresen. 173
173 LOURENÇO, 1975, p. I.
100
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
VI 174 Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força do não ser
Peço-te que venhas e me dês Um pouco de ti mesmo onde eu habite
Buscamos, nesse estudo, uma aproximação que apontar ia
traços da composição de uma poética andreseniana no s
meandros de sua formação, mas que permeiam toda a o bra. Os
caminhos que percorremos na leitura de No Tempo Dividido e
Mar Novo , conduzidos pela “aguda luz de Creta”, buscavam o
diálogo da poesia com o complexo mitológico mediter râneo,
especialmente o substrato que teria precedido a cul tura
indo-européia.
A naturalmente elevada luminosidade dos deuses na
poesia de Homero, e a polaridade da luz e da treva dentro
do esforço organizacional, e, portanto, já racional , das
genealogias dos deuses na poesia de Hesíodo guiaram os
movimentos do exercício de interpretação desse estu do, que
se deu no compasso de claridade e sombra da poesia de
Sophia de Mello Breyner.
No balanço da poesia, bailamos com as imagens, como
quem entra no mar e sabe que, ali dentro, o domínio dos
174 ANDRESEN, 1998b, p. 16.
101
próprios movimentos depende da harmonização com as forças
daquele universo.
Deixamos com isso, apenas um traçado iniciático, qu e
possivelmente indicará caminhos para um estudo mais
avançado da obra de Sophia em sua maturidade. Um ca minho da
eternidade, da primeira liberdade, e que, tendo par tida,
não tem chegada. Um caminho que rejeita a essência do homem
como idéia, o homem como ideal essência de ser huma no, e
mais ainda, a idéia do homem como essência de tudo aquilo
que é.
Em sua Arte Poética I 175 , Andresen escreve sobre uma
“ânfora de barro pálido” 176 que ela encontra em uma loja,
que “é como uma loja de Creta” 177 . E põe-se a falar sobre a
beleza poética da ânfora, uma beleza que não é esté tica, e
nada tem de comum com a sua função ou utilidade. Is so faz
parte das outras coisas lá fora, que “vêm de um mun do onde
a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao
sol nem à lua, nem a Ísis, nem a Deméter (...) Mund o que
pode ser um habitat, mas não é um reino” 178 .
A ânfora realmente dá de beber quando traz
“deslumbramento de estar no mundo, religação” 179 . Para
Sophia, a beleza poética é esse misterioso caminho por onde
o mundo dividido pode tornar-se reino. E “o reino a gora é
175 ANDRESEN, 1998c, p. 94. 176 ANDRESEN, 1998c, p. 94. 177 ANDRESEN, 1998c, p. 94. 178 ANDRESEN, 1998c, p. 94. 179 ANDRESEN, 1998c, p. 94.
102
só aquele que cada um tece por si mesmo encontra e
conquista, a aliança que cada um tece” 180 .
Diante da tentativa de elaboração de uma poética de
Sophia de Mello Breyner Andresen, essa será, então, uma
poética de religação, de vivida integração, ou rein tegração
do ser humano com seu próprio tempo, um compromisso em
assumir “toda a responsabilidade do seu destino” 181 .
Por suas palavras e atos, a grande escritora
portuguesa revela a existência como um poetar, um
invencionar-se em busca de sua singularidade vital. Talvez
por isso, o nome Sophia , tal qual Orfeu , seja capaz de
invocar a própria poesia.
180 ANDRESEN, 1998c, p. 94. 181 ANDRESEN, in: HORTAS, 1985, p.70.
103
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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