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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Andre Rezende Benatti AS TRAMAS DA CULTURA NA OBRA DE JOSEFINA PLÁ: ARTE, PALAVRA E IMAGINAÇÃO Rio de Janeiro/RJ

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · À minha nona, Ignês Benatti, que cursou apenas o ensino primário. AGRADECIMENTOS Como agradecemos e refletimos sobre o que esperamos que

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Andre Rezende Benatti

AS TRAMAS DA CULTURA NA OBRA DE JOSEFINA PLÁ: ARTE,

PALAVRA E IMAGINAÇÃO

Rio de Janeiro/RJ

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AS TRAMAS DA CULTURA NA OBRA DE JOSEFINA PLÁ: ARTE,

PALAVRA E IMAGINAÇÃO

Andre Rezende Benatti

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos: Literaturas Hispânicas).

Orientadora: Profa. Doutora Silvia Inés

Cárcamo de Arcuri

Rio de Janeiro/RJ

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AS TRAMAS DA CULTURA NA OBRA DE JOSEFINA PLÁ: ARTE,

PALAVRA E IMAGINAÇÃO

ANDRE REZENDE BENATTI

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos - Opção: Literaturas Hispânicas). Orientadora Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.

Profª. Drª. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (Presidente)

Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ

Profª. Drª. Elena Cristina Palmero González

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Profª. Drª. Livia Maria de Freitas Reis Teixeira

Universidade Federal Fluminense - UFF

Profª. Drª. Rosana Cristina Zanelatto Santos

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS

Prof. Dr. Ary Pimentel

Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ

Prof. Dr. Márcio Antônio de Souza Maciel (Supente)

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS

Prof. Dr. Victor Manuel Ramos Lemus (Suplente)

Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ

Rio de Janeiro/RJ, 23 de fevereiro de 2018.

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Ao meu avô, Antônio Renovato de Rezende, que não sabia ler nem escrever.

À minha avó, Maria Aspet de Rezende, que lia com bastante dificuldade.

Ao meu nono, Dovílio Benatti, que nunca chegou ao ensino médio.

À minha nona, Ignês Benatti, que cursou apenas o ensino primário.

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AGRADECIMENTOS

Como agradecemos e refletimos sobre o que esperamos que seja apenas o

início de uma jornada de busca pelo conhecimento?

Os agradecimentos de um trabalho, seja ele qual for, são, sem sombra de

dúvidas, um exercício de memória. A memória que conserva pequenos fragmentos

de acontecimentos e pessoas das mais diversas, mas que por algum motivo foram

armazenadas, que agora, no ato deste exercício, são possíveis de serem recriadas,

e terem suas lacunas preenchidas com aquilo que tal lembrança evoca em nós. A

memória é uma criação, como a literatura que dela se alimenta para, também, se

construir.

As memórias, neste caso, são de quatro anos de intensa aprendizagem.

Primeiramente, e não poderia deixar de ser assim, agradeço imensamente à

professora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri, que desde meu primeiro contato, tímido,

no começo de 2013, me abriu portas do Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas, na UFRJ. No entanto, a professora Silvia abriu muito mais que as portas

de um Programa de Pós-graduação, ela me deu a oportunidade de aprender com

ela, de aprender tudo o que ela teria para me ensinar, e, sinceramente, espero poder

ter correspondido à confiança que ela depositou em mim durante todos os anos de

orientação, trabalho e amizade. Muitíssimo obrigado, professora Silvia, por tudo o

que me proporcionou até aqui.

Com a abertura ao PPGLEN, proporcionada a mim pela professora Silvia, tive a

oportunidade de conhecer e ser aluno de professores que ajudaram extremamente

em minha formação acadêmica. Não posso deixar de agradecer especialmente aos

professores Ary Pimentel, Elena Cristina Palmero González, Pedro Paulo Garcia

Ferreira Catharina, Tânia Reis Cunha e Victor Manuel Ramos Lemos, dos quais fui

aluno durante o período de cumprimento de disciplinas. Agradeço também às duas

gestões de coordenação do PPGLEN e à Capes pelo apoio dado ao longo dos

quatro anos da pesquisa.

No PPGLEN, também, tive a satisfação de conhecer duas grandes amigas,

Alessandra Correa de Souza e Livia Santos de Souza, que hoje guardo com carinho

em minha memória, compartilhamos as angústias e alegrias do processo. Não podia

deixar de lembrar também outros amigos que fiz, Claudia Regina Rodrigues da

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Silva, Renata Dorneles Lima, Thiago José Moraes Carvalhal, que apesar da pouca

convivência tiveram grande importância durante esses anos de pesquisa.

Como não poderia deixar de ser, agradeço à Carin Cássia de Louro de Freitas,

que compartilha comigo, desde 2010, toda trajetória de pesquisa. Assim como,

durante esses anos também, meu grande amigo, crítico e companheiro de viagens,

Wellington Furtado Ramos, teve especial importância no processo de escrita, nas

discussões e na vida, de maneira geral. Entre as pessoas mais importantes de todo

meu processo de formação, até aqui, está também a professora e grande amiga

Rosana Cristina Zanelatto Santos, que, de maneira gentil, vigorosa, prestativa, e

com um conhecimento que vai além das teorias literárias e culturais, me ajudou,

debateu comigo, me corrigiu, quando necessário, me indicou referências, me

prestou o auxilio e o apoio sempre que precisei. Artur Zanelatto Santos, também

nunca me esquecerei de você, ainda mais neste momento tão especial.

Das pessoas que caminham comigo, observam e auxiliam, durante toda minha

formação acadêmica, talvez a de mais longa data seja meu primeiro orientador, lá da

época do primeiro projeto de ensino que participei. Professor, primeiro orientador,

banca da dissertação de Mestrado, hoje colega de trabalho e de sala, tenho muito a

agradecer ao Márcio Antônio de Souza Maciel por tudo o que me proporcionou.

Também agradeço a outro colega, Altamir Botoso, que, apesar do pouco tempo que

nos conhecemos, acredita e confia sempre em meu trabalho.

Por último, mas extremamente importante, agradeço à minha família. Agradeço

à minha mãe Juscelene Rezende Benatti, meu pai Reni Luiz Benatti, minha irmã

Maily Rezende Benatti e minha sobrinha Clélia Ignes, que me apoiaram

incondicionalmente desde o primeiro desejo de entrar em uma Graduação em

Letras, depois durante o Mestrado e também no Doutorado. Junto à família também

está minha inseparável amiga Luana Thatieli de Oliveira Gonzalez, sem a qual não

pude viver estes anos. Apoio que, além do financeiro, passou por um apoio

sentimental, espiritual, sem o qual jamais teria chegado ao fim desta etapa.

Muitíssimo obrigado a todos!

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Pelando la palabra esperanza le encontré pulpa de manzana y carozo de piedra

Pelando la palabra amor le hallé piel de durazno y carne de ceniza

Pelando la palabra verdad, llenó mis manos y al llegar a mi boca, no existía

Josefina Plá

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RESUMO

BENATTI, Andre Rezende. As tramas da cultura na obra de Josefina Plá: arte,

palavra e imaginação. Rio de Janeiro, 2017. Tese de Doutorado em Letras

Neolatinas (Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção:

Literaturas Hispânicas) do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da

Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

Esta pesquisa propõe uma reflexão acerca de uma modernidade distinta, calcada

por aspectos da cultura e das artes populares, nos ensaios da escritora hispano-

paraguaia Josefina Plá (1909-1999). Para a pesquisa, foram eleitos seis ensaios de

Plá que pudessem dar um panorama da grande complexidade que cerca a cultura

local. Desta forma, pensamos o universo artístico de Josefina Plá como uma síntese

complexa da cultura paraguaia, que, todavia, por conta disso, representa, também, a

cultura latino-americana. Buscamos aspectos críticos acerca da formação sócio-

cultural local, desenvolvidos em suas obras ensaísticas que são encontradas em

todo o seu projeto intelectual. Assim, demonstramos o convergir entre as culturas

guarani e espanhola e, em certa medida, africana, na formação cultural paraguaia,

explorando seu caráter híbrido. Com isso, exploramos uma modernidade autônoma

por parte da América Latina, uma modernidade que passaria pelo reconhecimento

daquilo que é próprio dessa região, sem medir enquanto superior ou inferior

qualquer fio que possa compor a trama cultural local. Pensamos, igualmente, no

projeto intelectual de Josefina Plá a respeito da valorização do percentual guarani da

cultura paraguaia. A pesquisa, por fim, está ancorada em diversos conceitos teóricos

e críticos, não obstante, ressaltamos as concepções de hibridação cultural de Néstor

García Canclini (2013), principalmente, e que são essenciais para o texto, assim

como as contribuições de Tício Esbocar (2014) e Édouard Glissant (2013), entre

outros importantes estudiosos e analistas que ajudam na composição da tese.

PALAVRAS-CHAVE: Modernidade; Cultura Popular; América Latina; Paraguai;

Josefina Plá.

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RESUMEN

BENATTI, Andre Rezende. As tramas da cultura na obra de Josefina Plá: arte,

palavra e imaginação. Tesis Doctoral sometida al Programa de Postgrado en

Letras Neolatinas de la Universidad Federal de Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

de los requisitos necesarios para la obtención del título de Doctora en Letras

Neolatinas (Estudios Literarios Neolatinos – Opción: Literaturas hispánicas).

Esta investigación propone una reflexión acerca de una modernidad distinta, calcada

por los aspectos de la cultura y de las artes populares, en los ensayos de la escritora

hispanoparaguaya Josefina Plá (1909-1999). Para la investigación, fueron elegidos

seis ensayos de Plá que pudieran dar un panorama de la gran complejidad que

cerca la cultura local. De esta forma, pensamos el universo artístico de Josefina Plá

como una síntesis compleja de la cultura paraguaya, que, sin embargo, por cuenta

de eso, representa, también, la cultura latinoamericana. Buscamos por aspectos

críticos acerca de la formación sociocultural local, desarollados en sus obras

ensayísticas que son encontradas en todo su proyecto intelectual. Así, demostramos

un convergir entre las culturas guaraní y española, en la formación cultural

paraguaya, explotando su carácter híbrido. Con ello, examinamos la modernidad

autónoma por parte de América Latina, una modernidad que pasaría por lo

reconocimiento de aquello que es propio de esa región, sin medir cuanto a lo

superior o inferior cualquier hilo que pueda componer la trama cultural local.

Pensamos, igualmente, en el proyecto intelectual de Josefina Plá con respecto a la

valoración de lo porcentual guaraní de la cultura paraguaya. La investigación, por fin,

está amparada en diversos conceptos teóricos y críticos, sin embargo, resaltamos

las concepciones de hibridación cultural de Néstor García Canclini (2013), sobre

todo, y que son esenciales para el texto, así como las contribuciones de Tício

Escobar (2014) y Édouard Glissant (2013), entre otros importantes estudiosos y

analistas que ayudan en la composición de la tesis.

PALABRAS CLAVE: Modernidad; Cultura Popular; América Latina; Paraguay;

Josefina Plá.

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ABSTRACT

BENATTI, Andre Rezende. As tramas da cultura na obra de Josefina Plá: arte,

palavra e imaginação. Doctoral thesis submitted to the Graduate Program in

Humanities and Neo-Latin languages of Federal University of Rio de Janeiro - UFRJ,

as part of the required assessments to receive the academic degree of PhD in Neo-

Latin Languages (Neo-Latin Literary Studies - Specialization: Hispanic literatures).

This research proposes to think on a distinct modernity, based on aspects of popular

culture and arts, in the essays of the Spanish-Paraguayan writer Josefina Plá (1909-

1999). For the research, we chose six essays of Plá which could give a great

complexity overview that surrounds the local culture. Thus, we think of the artistic

universe of Josefina Plá as a complex synthesis of the Paraguayan culture, which,

however, on account of this, also represents the Latin American culture. We look for

critical aspects about the local socio-cultural formation, built in her essays found

throughout her intellectual project. Therefore, we demonstrate a convergence

between the Guarani and Spanish cultures, in the Paraguayan cultural formation,

exploring its hybrid character. With that, we look for an autonomous modernity on the

part of Latin America, a modernity that would pass for the recognition of what is

proper of that region, without measuring as superior or inferior any thread that can

compose the local cultural fabric. We also think about the intellectual project of

Josefina Plá regarding the valorization of the Guarani percentage of the Paraguayan

culture. Finally, the research, is anchored in several theoretical and critical concepts,

nevertheless, we especially emphasize the conceptions of cultural hybridization of

Néstor García Canclini (2013), which are essential for the text, as well as the

contributions of Ticio Esbocar (2014) and Édouard Glissant (2013), among other

important scholars and analysts who help in the composition of the thesis.

KEYWORDS: Modernity; Popular culture; Latin America; Paraguay; Josefina Plá.

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ÍNDICE

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.....................................................................................13

CAPITULO 1 – JOSEFINA PLÁ E O PARAGUAI......................................................21

1.1 Sobre o início, o oceano e os amores..................................................................22

1.2 Sobre alguma correspondência e suas transformações......................................31

1.3 Sobre a morte, suas marcas e (re)criação...........................................................39

CAPÍTULO 2 - FACES DA MODERNIDADE.............................................................52

2.1 Modernidades em um contexto internacional.......................................................53

2.2 Modernidade latino-americana............................................................................59

CAPÍTULO 3 – SOBRE O PROCESSO HISTÓRICO DE FORMAÇÃO CULTURAL. ........................................................ ...........................................................................74

3.1 El barroco Hispano-guaraní e a criação local .....................................................75

3.1.1 Das conjunturas......................................................................................77

3.1.2 Das criações artísticas............................................................................84

3.2 Hermano negro ou sob a influência da cultura...................................................103

3.3 Espanhóis, guaranis e mestiços.........................................................................120

3.3.1 Dos artesanatos e seus substratos......................................................131

3.3.2 Das etapas de desenvolvimento histórico............................................134

CAPÍTULO 4 – A MODERNIDADE NA ARTE CRIADA PELA CULTURA POPULAR................................................................................................................148

4.1 Entre a artes e as estéticas................................................................................150

4.2 Entre o artesanato e a arte popular....................................................................153

4.2.1 Dos guaranis.........................................................................................156

4.4.2 Dos hispânicos......................................................................................165

4.3 Ñanduti e as rendas de dois mundos.................................................................171

4.4 Sobre a arte que é paraguaia.............................................................................185

CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………….194

REREFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................201

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A palavra “trama” remete a conceitos dos mais diversos. Podemos pensar

naquilo que se encarrega das ações que as personagens desenvolverão na história

em que estamos lendo, por exemplo, ou em conceitos que ligam a trama ao antigo

ofício da tecelagem.

O sentido metafórico da palavra trama extrapola o limite tanto da definição que

a liga ao enredo literário, quanto da que a liga à tecelagem. É pela trama que se

fazem os tecidos, sejam literários ou não. A trama, na tecelagem, é o que se refere

aos pequenos espaços que existem entre os fios quando se fabrica um tecido. Se a

trama é menor, temos espaçamentos menores entre si, se a trama é maior, temos

espaçamentos maiores.

Na tecelagem, aqui pensamos o tecer como metáfora da criação artística, são

necessários, diferentemente do tricô, dois fios que irão compor a trama e darão

origem ao tecido, depois de entrelaçados. O ato de tecer, assim como o da

linguagem, acompanha o desenvolvimento da humanidade desde seus primórdios e,

também como a linguagem, foi desenvolvido das mais diversas maneiras pelos

diferentes povos. Com a metáfora do ato tecer, da construção da trama, que por

meios de dois diferentes fios compõe um tecido, novo, repleto de pequenos espaços

cada qual cumprindo seu papel, é que buscamos a criação literária e artística da

América Latina e impõe-se algumas perguntas: Como o tecido cultural latino-

americano se faz? Quem o tece? Quais são os fios que compõem esta trama tão

heterogênea chamada América Latina?

Dessa forma, buscamos nos acercar da interessante trama artística de Josefina

Plá, artista hispano-paraguaia. Assim considerando a amplitude da obra de Plá, que

perpassa os diversos gêneros da escrita e também se desenvolve nas artes

plásticas, decidimos nos centrar em sua obra ensaística, na qual a artista revela

grande parte do processo de construção artística de suas obras, tanto literárias

quanto plásticas.

Os fios que irão compor o tecido da obra de Josefina Plá passam pelos viéses

da cultura popular e da modernidade, e poderíamos dizer que são estes os dois fios

principais da trama de sua obra. Cultura Popular e Modernidade, os fios condutores

de uma trama artística criada no coração da América Latina.

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Apesar de ter sido autora de uma quantidade significativa de textos nos

diversos gêneros e de eles terem significativa qualidade tanto estética quanto

cultural, Josefina Plá encontra-se em meio aos ditos, segundo o professor e poeta

Miguel Ángel Fernández (2009), escritores e artistas ocultados e/ou omitidos do

Paraguai e da literatura hispano-americana, que foram deixados de lado pelos mais

diversos motivos. Seu valor literário nunca entrou na “moda” ou “na lista dos mais

lidos”, tanto na academia quanto entre o público médio. Todavia, sua obra vem

sendo recuperada, lida e estudada nos meios acadêmicos.

No Brasil há cinco estudos em nível de Mestrado e dois em nível de Doutorado,

já concluídos acerca da obra de Plá. São respectivamente:

- A dissertação de Dora Angélica Segovia de Rodrigues intitulada Kuatía

Mba’apo: Josefina Plá e a poesia do Ñanduti, gusta vo?, orientada pela professora

Alai Garcia Diniz, defendida no ano 2000, no programa de Pós-graduação em

Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. Segundo a autora, “é uma

tentativa de destacar - a partir de um recorte na obra de Josefina Plá - alguns

aspectos da literatura no contexto social” (RODRIGUES, 2000, p.1). Ainda de acordo

com a autora, sua proposta inicial foi tentar demonstrar o feminino transnacional

“como Plá, propõe o ñandutí não somente como um bem simbólico transculturado,

mas também como a poética da mulher paraguaia.” (RODRIGUES, 2000, p.2).

Todavia, no percurso do trabalho a “fala da mulher paraguaia” mostrou-se

necessária para análise do texto literário. Por fim, o trabalho de Dora nos traz um

recorte da obra de Josefina Plá que associa narrativas e ensaios objetivando a

verificação da superfície comum entre a linguagem yopará e o artesanato nandutí

contidos neles; (RODRIGUES,2000, p.3).

- A dissertação de Elizabeth Souza Penha intitulada La mano en la tierra: os

contos interculturais de Josefina Plá (2006), orientada pelo professor Edgar Cézar

Nolasco dos Santos, no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade

Federal de Mato Grosso do Sul. Na dissertação são abordadas questões relativas

aos estudos culturais presentes na obra, tais como subalternidade e marginalidade

nas narrativas de Josefina Plá.

- A dissertação de Caroline Touro Beluque Eger intitulada Vozes na fronteira:

transculturalidade nos contos de Josefina Plá (2010), orientada pelo professor Paulo

Sérgio Nolasco dos Santos, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Letras

da Universidade Federal da Grande Dourados. Caroline Beluque estuda as

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narrativas de Plá sob a perspectiva dos Estudos Culturais contemporâneos,

conjugando a orientação teórico-critica do comparatismo na America Latina e

salientando, em primeira mão, a revitalização dessas teorias para a abordagem do

texto literário e da vinculação deste com o universo da cultura com o qual dialoga.

- A dissertação de Facunda Concepción Mongelos Silva intitulada A construção

da figura feminina nos contos de La Pierna de Severina, de Josefina Plá (2013),

orientada pela professora Rosana Cristina Zanelatto Santos, no Programa de Pós-

graduação em Estudos de Linguagens, na Universidade Federal de Mato Grosso do

Sul. O trabalho analisa quatro contos de Josefina Plá focalizando a construção da

figura da mulher paraguaia na obra. No trabalho, a autora explora a construção da

figura feminina também nas narrativas de Plá. Há, na pesquisa, um foco nos

preconceitos vividos pelas mulheres representadas por Josefina Plá em sua obra.

- A dissertação de Andre Rezende Benatti, Violência e Tragicidade no silêncio

feminino das personagens em La Pierna de Severina, de Josefina Plá (2013),

orientada pela professora Rosana Cristina Zanelatto Santos, no Programa de Pós-

graduação em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Benatti

discorre acerca da construção de personagens femininas, que de alguma maneira

são sempre acabam silenciadas na obra, a partir de um conceito de violência e

tragicidade. Na dissertação, o autor debruça-se sobre as microestruturas narrativas

do tempo, do espaço e da personagem que aliadas à violência, ao erotismo e a

tragicidade compõe os contos.

- A tese de Suely Aparecida de Souza Mendonca, A representação da mulher

paraguaia em contos de Josefina Plá (2011), orientada pelo professor Antonio

Roberto Esteves no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade

Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Assis. Mendonça realiza um

estudo no qual abrange as questões das relações entre a literatura e a vida social

paraguaias, levando em consideração várias tendências teóricas literárias, culturais,

especialmente no que concerne ao estudo das representações das relações entre o

feminino e os vários segmentos socioculturais do entorno local. De acordo com a

autora, a tese se realiza pela leitura de dez contos de Josefina Plá, nos quais são

abordados assuntos relativos ao papel da mulher das classes pobres. Assim, o

estudo de Mendonça se volta às relações entre literatura e vida social.

- A tese de doutorado de Maria Josele Bucco Coelho intitulada Mobilidades

culturais na contística rio-platense de autoria feminina: tracejando as poéticas da

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distância em Josefina Plá e Maria Rosa Lojo (2015), orientada pela professora Zila

Bernd, no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul. O estudo investiga as “poéticas da distância”1 em contos de Josefina

Plá e Maria Rosa Lojo enfatizando questões de mobilidade cultural nos contos de

ambas autoras. Bucco Coelho busca “a noção de distância engendra poéticas que

ressemantizam os construtos identitários e o imaginário rio-platense, atravessado - e

instituído - pelas mobilidades culturais.” (BUCCO COELHO, 2015, p.8)

Já em âmbito internacional, para além de diversos artigos e ensaios, se fazem

relevantes os estudos da tese doutorado de Ramón Atilio Bordoli Dolci intitulada “La

problemática del tiempo y la soledad en la obra de Josefina Plá”, defendida na

Universidad Complutense de Madrid, em 1981. Neste estudo o pesquisador analisa,

por meio das constituições do tempo e da solidão, a obra literária de Josefina Plá,

poesia, narrativa e teatro, assim como apresenta um apêndice com algumas obras

inéditas, até o momento, de Josefina Plá. Outra tese de Doutorado de grande

importância para o estudo da obra de Josefina Plá é a de Ángeles Mateo Del Pino,

intitulada “El componente mítico y su función simbólica en la poesía erótica de

Josefina Plá”, orientada pelo professor D. Osvaldo Rodríguez Pérez e defendida na

Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, em 1994. Na investigação Del Pino

revisa e estuda a obra poética de Josefina Plá a partir do que considera como o

componente imaginário essencial de sua obra: o amor. Ainda em âmbito

internacional, são dignos de considerações os estudos de José Vicente Pieró Barco

em sua tese intitulada “Literatura y sociedad. La narrativa paraguaya actual (1980-

1995)”, defendida na Universidad Nacional de Educación a Distancia (Madrid), em

2001 e que inclui o capítulo “Los relatos de Josefina Plá: una visión personal del

mundo”. Também a tese de Luiz A. Sonnino “El espíritu feminista en las obras de

dramaturgas latino-americanas”, defendida na City University of New York, em 1990,

e que inclui o capítulo “Teatro de tendencias universales. Josefina Plá: talento

anónimo”.

Nesta pesquisa, desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientada pela professora

Silvia Inés Cárcamo de Arcuri, concebemos o universo expressivo de Josefina Plá

1 Conceito desenvolvido ao longo da tese no qual a distância, seja ela espacial, temporal, ideológica, etc..., pode ser considerada como uma das bases constituintes da prática literária, uma vez que figura nos imaginários desde tempos imemoriais.

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como uma trama capaz de interpretar e sintetizar, de modo complexo, a cultura

paraguaia. Na sua obra converge o olhar crítico, focado em aspectos da realidade

política, social e cultural do Paraguai, e a estima pela capacidade de criação da

cultura paraguaia. Para demonstrar que essa convergência é determinante no

universo expressivo de Plá, levamos em conta as conexões existentes entre a obra

ficcional, ensaística e plástica da artista hispano-paraguaia. Buscando essas

vinculações no tecido que compõe sua obra, definimos um corpus formado por uma

seleção significativa da sua obra ensaística que nos dá margem maior para o

estabelecimento de uma proposta de modernidade alternativa, não “copiada” da

modernidade dos países centrais, mas que contempla as contribuições originais da

América Latina e como a cultura central sofre mudanças enriquecedoras na

América.

O ensaio na América Latina, diferentemente de outros gêneros, ou do próprio

ensaio em outras regiões do globo, é concebido de maneira díspar. Quando

tomamos enquanto objeto de estudo os ensaios de Josefina Plá, evidenciamos toda

a concepção de ensaio na América Latina. O primeiro e principal gênero

desenvolvido na região, desde sua criação, muito antes de narrativas ou poemas, o

ensaio mostrou e se identificou com o novo contimente. E a razão, assim como

afirma Gérman Arciniegas, é que a América, o Novo Mundo, nasceu enquanto uma

problemática para a Europa e o resto do mundo conhecido. O ensaio de um novo

mundo, conforme o crítico, que desafia o que, à época de sua criação, era

conhecido, mas que, na mesma medida, era tentador. O ensaio na América Latina

não se constrói enquando um divertimento ou coisa que o valha, mas sim como uma

reflexão sobre os problemas que permeiam cada época. Se, para Arciniegas, somos

um contimente muito mais de revoluções que de guerras, quiçá, possamos dizer que

o ensaio aqui produzido, também se configura de maneira “revolucionária”,

modificando sua própria maneira de construção e função, todavia tal afirmação

difícialmente encontra uma comprovação.

Dessa forma, propomos, por meio da análise dos ensaios de Josefina Plá,

verificar como se articula o popular e o erudito, a modernidade e a tradição, a partir

de um sentido aberto da cultura, o que nos parece um assunto central para indagar

a contribuição da autora à literatura e cultura latino-americana. Josefina Plá, em sua

obra ficcional, ensaística e plástica mescla motivos e expressões da cultura popular

com formas e técnicas da cultura erudita, lançando novos olhares à cultura popular,

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nos quais esta não deve ser vista de modo depreciativo, como se tivesse menos

valor que a cultura erudita. Semelhante ao que acontece com as percepções

contemporâneas da América Latina e do Paraguai que não depreciam a estes e

buscam valorizar o que eles têm de diverso, retirando o estigma do marginalizado, a

obra de Josefina Plá se realiza de maneira não depreciativa em relação a um gênero

ou outro da linguagem escrita e das artes plásticas, assim como integra, valorizando,

a cultura própria do Paraguai, a cultura popular a uma forma erudita. Logo, com o

desenvolver da pesquisa buscaremos averiguar se nossas hipóteses se concluem

em pequenas “verdades” em relação ao que pensamos sobre a obra de Josefina

Plá, ou, se ao contrário, a obra mais uma vez nos surpreenderá com outros saberes

que mudarão nossa hipótese inicial.

No decorrer do trabalho desenvolveremos nossos julgamentos com base nos

ensaios “Ñanduti – encrucijada de dos mundos”, “El barroco hispano guaraní”, “Las

artesanías en el Paraguay”, “Hermano negro: la esclavitud en el Paraguay”,

“Apuntes para una historia de la cultura paraguaya”, “Españoles en la cultura

paraguaya” e “Arte actual en el Paraguay”, e, ainda, sempre que possível e

pertinente, nos voltaremos também às obras literárias ficcionais e artísticas.

No capítulo 1, intitulado “Josefina Plá e o Paraguai”, exploramos o universo

biográfico de Josefina Plá, enquanto artista não nascida paraguaia, e seu contato,

ou, como a própria Josefina afirma, sua descoberta da cultura do país que adotou.

Exploramos, por meio de diversos textos, as relações que mantiveram Plá vinculada

ao Paraguai desde antes de o conhecer, assim como o desenvolvimento de sua

obra artística nos mais variados gêneros, o contato direto com a cultura do país e a

“divulgação” desta também em diversos seguimentos. Neste capítulo também

desenvolvemos uma reflexão acerca dos contatos e possíveis influências que Plá

teve na formação de sua vida intelectual.

Com relação ao capítulo 2, “Faces da modernidade”, atentamos para questões

acerca da modernidade no que se refere ao pensar o homem e a literatura,

principalmente. Primeiramente, focamos no que é a modernidade, como a

concebemos, para posteriormente focarmos nas especificidades da modernidade

construída na América Latina e, consequentemente, como Josefina Plá cria sua

obra.

Já o capítulo 3 é o que, propriamente, começamos as análises dos ensaios de

Josefina Plá. Optamos por uma escolha e ordenação de textos a serem analisados

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que privilegiassem questões de formação histórico-culturais da região, e delimitamos

a ordenação de ensaios respeitando uma ordem de acontecimentos históricos.

Dessa forma, nos desdobraremos em apreciações sobre os ensaios “El barroco

hispano-guarani”, “Hermano negro – la esclavitud en el Paraguay” e “Españoles en

la cultura del Paraguay”. As críticas se voltam para os processos de formação da

cultura paraguaia. Observaremos também, embora em menor grau, a analogia que

Josefina Plá faz o que chamamos de projeto intelectual, com relação à mulher

paraguaia.

No trato do Barroco hispano-guarani observamos as influências que a igreja, de

acordo com a ensaísta, teve no processo de hibridação da cultura guarani com a

cultura espanhola, tomando, também, como base um procedimento histórico de

contato entre as culturas. Da mesma forma que, ao analisarmos “Hermano negro”,

notamos que as relações mantidas desde o primeiro contato entre os povos

autóctones e os espanhóis, na região, refletiram, já durante o estabelecimento da

sociedade local, na forma como ela lida com a escravidão negra, marcada por

Josefina Plá como mais branda, em relação a outras regiões americanas, como o

Brasil, por exemplo. Finalizados o capítulo com a discussão sobre o processo

histórico e as influências dos espanhóis na consolidação da cultura paraguaia, no

ensaio analisado, Josefina Plá marca todo o percurso histórico do país e suas

relações com a cultura espanhola.

Com relação ao último capítulo, trataremos de explorar ensaios cujos objetos

de problematização foram resultados da hibridação ocorrida no longo processo de

consolidação da cultura paraguaia, processo este explorado no capítulo anterior.

Dessa forma, nos deteremos em ensaios que versem sobre artes, populares e/ou

eruditas, criadas no Paraguai. Analisaremos os ensaios “Las artesanías en el

Paraguay”, “Ñanduti: encrucijada de dos mundos” e dois textos, “Grupo arte nuevo”

e, em certa medida “Arte contemporáneo”, presentes em “Arte actual en Paraguay”.

Exploraremos, sempre que possível no capítulo, as relações que Josefina Plá

mantém com um projeto intelectual relacionado à mulher paraguaia como criadora e

mantenedora da cultura local.

Em todo o trabalho, nos voltaremos para o que concebemos enquanto

modernidade alternativa, que trata a cultura popular, relacionada fortemente pela

hibridação dos povos guaranis com os que chegaram à região do Paraguai, como

protagonista do sistema social criado no país. Todavia, não nos esquecemos, e

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reafirmaremos, ao final, com base também nas pesquisas já realizadas sobre a obra

de Josefina Plá e nos próprios ensaios que serão analisados, a preocupação de Plá

com o reconhecimento da mulher paraguaia enquanto a força que, de alguma

maneira, moveu o país, em seus aspectos sociais e culturais, desde o início do que

hoje conhecemos como cultura latino-americana.

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CAPITULO 1

JOSEFINA PLÁ E O PARAGUAI

Pensando o termo “margem”, como metáfora de parte da Literatura produzida

em divesas partes do mundo, em geografia, indica-se o lugar de encontro entre a

água e a terra ou areia, referindo-se à beira do rio, mar, lago ou lagoa. A margem

pode, ainda, se encontrar com pedras ou com obras construídas pela mão do

homem. As margens de um rio são classificadas de "margem direita" e "margem

esquerda" para quem se desloca no sentido da corrente. No entanto, quando se

trata da “margem” na literatura, temos, se pensarmos em Guimarães Rosa, a

possibilidade de haver mesmo uma terceira margem do rio. Por margem, também

podemos compreender aquela parte branca envolta de uma página escrita ou

impressa. A borda. A beira. A cercadura. É aquele lugar pouco visitado, onde todos

passam, mas no qual poucos se fixam para saber o que nele há.

Voltando à literatura, a margem povoa grande parte dos textos produzidos.

Assim como um rio que leva com força e rapidez, para os mais diversos lugares,

qualquer coisa que está em sua correnteza e deixa de levar, ou leva devagar,

brandamente, o que está à sua beira, à margem, a Literatura – esta com letra

maiúscula – no Ocidente carrega em suas águas mais tranquilas nomes europeus,

em sua grande maioria, de reconhecimento e de qualidade comprovados. Por outro

lado, assim como qualquer rio, a mesma Literatura deixa de levar consigo ou leva

suavemente, os nomes e as obras literárias que estão à margem do mundo

eurocêntrico, do turbilhão de ideias que somente à posteriori vai atingir outros

rincões mais lejanos.

A conjuntura literária criada no Paraguai desde o começo do século XX é

representada por escritores e artistas ignorados em diferentes partes do mundo,

intelectuais que não pertencem e, possivelmente, nunca pertencerão a esta

correnteza forte, ou cânone, que se faz no “rio” chamado Literatura. Dentre os

nomes de tal literatura damos destaque a Josefina Plá, escritora, artista plástica,

historiadora, jornalista, dramaturga, ensaísta, catedrática e critica de arte e literatura,

que de acordo com Rodríguez-Alcalá, entre os intelectuais hispano-americanos,

possui obras “cuyos ensayos de la historia del arte y de las letras paraguayas

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constituyen una aportación de mérito singular.”2 (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 1999, p.

91), mas que para Bordoli Dolci (1983, s/p.) “aunque nos pese, es desconocida a

extra fronteras de Paraguay”3.

1.1 Sobre o início, a travessia e os amores

Em seu livro História de la literatura paraguaya (1999), o crítico Hugo

Rodríguez Alcala considera que a Josefina Plá foi espanhola somente de

nascimento, mas paraguaia pelo destino e pela paixão nutrida pela terra de seu

esposo. Josefina Plá é, segundo com Ángeles Mateo Del Pino (2011), uma

espanhola da América, dada a profundidade com que optou pela terra americana

como diretriz de sua obra e de toda sua vida intelectual. Todavia, antes de

adentrarmos nos meandros da cultura presentes em sua obra, se faz necessário

“visitar” o percurso feito pela autora e como teve contato com a cultura do Paraguai,

posto que não nasceu no país, percurso este que se realiza de maneira singular e

interessante, o (re)conhecer da cultura paraguaia na trajetória de Josefina Plá é vital

para sua obra.

Com uma trajetória de andanças em seus primeiros anos de vida, por conta do

trabalho de seu pai com faróis:

Maria Josefa Teodora Plá Guerra Galvany. Una persona que nace en un faro y es hija del farero está tocada por el destino. La gente común no nace y juega y crece en un faro. Josefina Plá, así se la conoce, nació en 1903 en el faro de la isla de Lobos, vecina de la canaria Fuerteventura, y luego recorrió otros varios faros en su infancia siguiendo los destinos de su padre, el farero4. (ALMADA ROCHE, 2011, p.69)

Conforme afirma Mateo del Pino (2011), Josefina Plá, quando criança, trocou

de moradia diversas vezes, residindo em quase toda a costa espanhola, motivo pelo

qual não pôde frequentar com regularidade a mesma escola. No entanto, seu amor

pelos livros vem de muito cedo, pois seu pai era um homem, na medida do possível,

2 Trad. nossa: cujos ensaios da história da arte e das letras paraguaias constituem um aporte de mérito singular. 3Trad. nossa: ainda que nos pese, é desconhecida fora das fronteiras do Paraguai. 4 Trad. nossa: Maria Josefa Teodora Plá Guerra Galvany. Uma pessoa que nasce em um farol e é filha de um faroleiro está tocada pelo destino. As pessoas comuns não nascem e brincam e crescem em um farol. Josefina Plá, assim como a conhecemos, nasceu em 1903 no farol da ilha de Lobos, vizinha da canária Fuerteventura, e logo recorreu a outros vários fatos em sua infância seguindo os caminhos de seu pai, o faroleiro.

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culto, um leitor frequente, e possuía uma grande biblioteca que satisfazia a já

precoce inclinação literária de Josefina. De acordo com Bordoli Dolci (1981), a

menina teve interesse maior, como mais acesso, a leituras de Homero, Balzac,

Flaubert e Galdós. Todavia, na biblioteca de seu pai havia menos livros de poesia

que de outros gêneros, em um paradoxo, pois,

[…] a los catorce años publiqué mis primeros versos bajo profiláctico seudónimo. En seguida otros, con mi nombre, en una revista de San Sebastián, Donostia (…) a los pocos días aparecieron por casa unos señores muy desenvueltos, portando unas cámaras fotográficas; venían a ver a la poetisa prodigio. Me preguntaron si había leído a Rubén y a Amado Nervo, les contesté que no; les pregunté a mi vez si habían leído a Baudelaire y a Mallarmé, y me dijeron que no. Se fueron descontentos de ambos desencuentros, supongo, porque no publicaron nada.5 (PLÁ, apud BORDOLI DOLCI, 1981, p. 115)

Podemos perceber, pela própria fala da autora, a tradição literária presente

desde o começo de sua formação de leitora, e que iria repercutir, de alguma

maneira, em seu trabalho como escritora.

Para Mateo del Pino (2011), foi o próprio pai de Josefina Plá que despertou na

filha o interesse por sua pátria de adoção lendo apaixonadamente alguns relatos das

Missões Jesuítas no Paraguai, muitos anos antes dela conhecer Andrés Campos

Cervera. No entanto, seu verdadeiro contato com o Paraguai só se dará alguns anos

mais tarde, no verão de 1923, quando se muda para Villajoyosa, lugar no qual o

destino novamente a coloca diante do Paraguai, desta vez na figura de Andrés

Campos Cervera, que, coincidentemente, morava na mesma rua para onde Josefina

Plá se muda com a família a fim de passar uma temporada na casa de uma tia. De

acordo com Plá (apud BORDOLI DOLCI, 1981, p.115), ela, com quinze anos na

época, juntamente com sua família, foi convidada para uma festa na qual estava

Andrés, “vestido de blanco, com aquella mirada de sus ojos azules”, que

imediatamente se encantou com Josefina e pediu para tirar um retrato com ela. Na

época, Campo Cervera residia em Villajoyosa descansando de um longo período de

estudos, por conta de uma bolsa com a qual pesquisou a cerâmica de Manises, e

que resultou em uma feira de artes em Valencia. De acordo com Mateo del Pino

5 Trad. nossa: aos catorze anos publiquei meus primeiros versos sob profilático pseudônimo. Em seguida outros, com meu nome, em uma revista de São Sebastião, Donistia (....) Pouco dias depois apareceram em casa uns senhores muito desembaraçados, portando umas câmeras fotográficas; vinham ver a poetisa prodígio. Me perguntaram se eu havia lido Rubén e Amado Nervo, lhes respondi que não; lhes perguntei, em minha vez, se haviam lido Baudelaire e Mallarmé, e me disseram que não. Se foram descontentes de ambos desencontros, suponho, por que não publicaram nada.

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(2011,) é precisamente neste lugar que ele se encontrará com “Niní”, apelido de

Josefina Plá, dado por sua família.

Ella es una niña aún, y él es un hombre ya serio –treinta y seis años– pero la afinidad es indudable. Y el noviazgo comienza y ha de seguir a pesar de la obstinada oposición de la familia de la novia, encastillada en un rígido sentido pequeño burgués de la vida: “la vida con un artista no ofrece garantía de estabilidad moral ni económica”6 (PLÁ, 1991 p.142)

Josefina Plá em sua “Autosemblanza”, auto-esboço, em português, revela que

o momento em que conhece Andrés Campos Cervera foi para ela um dos momentos

mais importantes de sua vida.

Casi inmediatamente cometí otro disparate: me enamoré. La casa retumbó de truenos premonitorios. El novio, sin embargo, tras seis días de cortejo se ausentó rumbo al Paraguay nada menos; y mi padre, olvidándose de sus éxitos históricos ante el prodigio de las Misiones Jesuíticas, predijo el receso y evaporación del malhadado doncel. Sin embargo, veinte meses más tarde me llegó la petición de mano, aquello fue trágico. No sé cómo mis padres consintieron. Supongo que llegaron a la conclusión de que el hombre que había sido capaz de permanecer fiel, rodeado de todos los hechizos tropicales, era capaz de todo.7 (PLÁ apud MATEO DEL PINO, 2011, p. 73)

De tal modo que no decorrer dos vinte meses de separação de Plá e Campos

Cervera, quando este voltou ao Paraguai, o relacionamento se deu por meio de

cartas, assim como as petições para o casamento e o próprio casamento foi feito à

distância. De acordo com Almada Roche (2011), o casamento de Campos Cervera e

Plá foi feito por correspondência, pois o noivo estava no Paraguai no momento da

cerimônia, em seu lugar, na mesa de registros do matrimônio, estava Francisco

Villaespesa, a quem Campos Cervera delegou poderes para assinar a

documentação do casamento.

6 Trad. nossa: Ela é uma menina ainda, e ele é um homem já maduro – trinta e seis anos – mas a afinidade é indubitável. E o namoro começa e há de seguir apensar da obstinada oposição da família da namorada, enclausurada em um rígido sentido pequeno burguês da vida: “a vida com um artista não oferece garantia de estabilidade moral nem econômica. 7 Trad. nossa: Quase imediatamente cometi outro disparate: me apaixonei. A casa retumbou de trovões premonitórios. O namorado, no entanto, depois de seus dias de cortejo se ausentou rumo ao Paraguai nada menos; e meu pai esquecendo-se de seus êxitos históricos ante o prodígio das Missões Jesuíticas, predisse o recesso e evaporação do malfadado donzel. No entanto, vinte meses mais tarde me chegou uma petição à mão, aquilo foi trágico. Não sei como meus pais consentiram. Suponho que chegaram à conclusão de que o homem que havia sido capaz de permanecer fiel, rodeado de todos os feitiços tropicais, era capas de tudo.

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Após a realização do casamento à distância, Josefina Plá embarca, em 6 de

janeiro de 1927, rumo ao Paraguai, país no qual mergulharia em suas mais

profundas raízes e onde chegaria em 01 de fevereiro do mesmo ano.

Y crucé el océano, como Colón, con ese sueño a cuestas. Sueño grande como puede serlo una tierra nueva para una mujer; sueño identificado con el de un mundo de amor inagotable. Ahora bien, aunque este país nuevo figurase en los mapas y tuviese nombre e historia, para mí era ámbito desconocido: existía, pero yo debía descubrirlo8. (PLÁ, 1995, p. 25)

É interessante a meneira como Plá termina seu comentário sobre o Paraguai, a

existência em detrimento à descoberta. Percebemos um novo jogo de

descobrimento, um novo mundo sendo revisto, diferentemente do mundo de

Colombo. Plá conhecia a existência do Paraguai, todavia, deveria descobrir o que

esse lugar tinha de mais genuíno, e isso seria, propriamente, o conhecer o Paraguai.

Por meio de sua obra artística e literária, Plá conheceu e ajudou a desenvolver toda

a cultura paraguaia. Podemos, talvez, nos atrever a dizer que, de alguma maneira,

Plá descobriu o próprio Paraguai.

Na chegada ao Paraguai, Josefina Plá, agora já casada, se instala

primeiramente na casa do pai de Campos Cervera, local onde moraria por quase

dois anos até se mudar, em 1928, para a Rua Estados Unidos esquina com a Rua

República da Colômbia, quase no coração do Assunção, lugar onde viveu até seus

últimos dias. Na casa, Josefina ajudou seu marido a construir um forno, assim,

Campos Cervera a inicia na arte da cerâmica, a qual Josefina também desenvolveu

durante sua vida artística.

Josefina Plá se fixa no Paraguai vinda de uma Europa, e mais propriamente, de

um Espanha que vivia o auge de suas ideias modernistas. Logo, não podemos

deixar de pensar no trabalho de Plá como intelectual e artista em terras paraguaias

sem que este tenha, de alguma maneira, sido “influenciado” pelas profícuas e

profundas ideias originadas no modernismo. Todavia, não podemos esquecer que,

segundo Angel del Rio, em Historia de la literatura española (1998), a Espanha

sempre pertenceu a um ramo periférico da literatura e das artes na Europa, tendo

sua única glória no Século de Ouro, mas que, naquele começo de século XX, tem

8 Trad. nossa: E cruzei o oceano, como Colombo, com esse sonho nas costas. Sonho grande como pode sê-lo uma terra nova para uma mulher; sonho identificado com o de um mundo de amor inesgotável. Agora bem, ainda que este país novo figurasse nos mapas e tivesse nome e história, para mim era âmbito desconhecido: existia, mas eu devia descobri-lo.

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sua segunda onda de proveitoso sucesso artístico, que, posteriormente, vai ser

rasgado pelos percalços da Guerra Civil, principalmente.

Assim, percebemos que Josefina Plá chega na periferia da periferia, vinda de

uma Espanha que vive um momento contraditório, mas extremamente profícuo. De

um lado encontra-se uma Espanha com tendências “europeizadoras”, respondendo

a estímulos estéticos exteriores. Mas de outro lado encontra-se uma Espanha

voltada para si própria, para sua realidade e para aquilo que a particulariza, suas

raízes. Dessa maneira, não há como negar que a formação de Josefina Plá, anterior

à chegada ao Paraguai, passou por tais influências, se recordarmos, como já foi dito,

que o pai era um grande leitor, que possuía uma biblioteca, assim como no também

mencionado episódio com os jornalistas ao publicar seus primeiros poemas, que ao

ser questionada se havia lido os modernistas hispânicos, perguntou se os

questionadores haviam lido os clássicos europeus, confirmando suas raízes

clássicas de leitura, mas que, todavia, não deixou de ser influenciada, assim o

percebemos, pela forte tendência que surgia na Espanha de valorização do local,

durante a mesma época.

Logo após sua chegada ao Paraguai, Josefina Plá inicia sua verdadeira

vocação, a literária, a vocação escrita, mas que vai se tornar, pensando em sua obra

como um todo, poderíamos dizer, a vocação de ser paraguaia. Josefina absorve a

cultura paraguaia, desenvolvendo-a no campo da escrita e das artes plásticas.

No mesmo ano de sua chegada ao Paraguai, 1927, ano da também profícua

Generación de 279, Josefina Plá já principia seu profundo mergulho nas redes da

cultura do país que, ao longo do século XX, aprendeu a amar. Seu interesse pelo

Paraguai perpassa por todas as áreas. Ainda em 1927, afirma Hugo Rodríguez-

Alcalá (1999), Josefina Plá publica sua primeira obra, pouco depois de chegar ao

país. Tratava-se de uma peça de teatro intitulada Victima Propiciatoria, que foi

encenada em agosto do mesmo ano no Teatro Granados. Também em 1927 passa

a fazer parte da Sociedad de Autores Locales, assim como da redação dos jornais El

Orden e La Nación, de Assunção, desenvolvendo posteriormente trabalhos intensos

como jornalista e correspondente. Josefina Plá adentra na cultura paraguaia desde

sua chegada, ou ainda, desde antes de sua chegada ao país, por meio do amor a

Andrés Campos Cervera. De acordo com José Vicente Peiró Barco, no ensaio

9 É o nome dado ao grupo de importantes artistas espanhóis de vanguarda que, através do trabalho conjunto, expressaram uma atitude que encorajou uma forma casual de expressionismo.

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intitulado Ecos vanguardistas en la narrativa del Paraguay (2011), Josefina Plá,

durante sua juventude na Espanha, bebeu nas fontes da Generación de 27, da qual,

ainda segundo o crítico, era seguidora e trouxe a influência desta geração para seu

trabalho intelectual no Paraguai, influenciando, desse modo, também outros

intelectuais locais.

De acordo com Bordoli Dolci (1984), com seu espírito jovem e autêntico

Josefina Plá se integra rapidamente aos trabalhos locais, porém cabe destacar que

ainda se faz um mistério compreender de onde Josefina Plá extraia seu

extraordinário ímpeto de multiplicar-se em tantos distintos trabalhos quando se fala

em cultura Paraguaia, indo das artes plásticas ao trabalho jornalístico, todos como

extrema qualidade técnica e artística, o que não podemos afirmar com total

veemência que seja das influências que sofreu ainda jovem na Espanha, mas tal

fato também não pode ser descartado.

Tal espírito, ainda de acordo com Bordoli Dolci, trouxe grandes benefícios

também para Campos Cervera, que já havia feito outros trabalhos artísticos, mas

que se firmava dentro do que o crítico chama de “arte del fuego”, arte de fogo, em

referência à queima da cerâmica, arte também desenvolvida por Josefina ao longo

de sua vida artística, incentivada por Campos Cervera e depois de sua morte por

amor a este e a tudo que representa seu país. Tanto o é que dedicou mais de um

ensaio à temática. Desenvolveu, durante sua vida, inúmeras peças de cerâmica,

com as mais variadas formas, sempre remetendo ao local, à cultura que fecundou a

terra onde se encontra o Paraguai antes mesmo deste existir, cultura esta que não

coube apenas na estética da cerâmica, mas que Plá a transportou aos diversos

gêneros do campo das letras. Josefina Plá busca na cultura popular deste centro do

continente americano seu mote genuíno, seu coração, suas raízes, de onde este

lugar se formou.

Em 1928, apenas um ano após sua chegada ao Paraguai, Josefina Plá

colabora com Campos Cervera em uma série de peças, fazendo, assim, sua

primeira exposição de arte cerâmica no Paraguai; nesta mesma exposição o artista

mudaria seu nome para Julián de la Herrería. Apesar das dificuldades físicas para a

realização de tal trabalho na Assunção da época e as escassas exposições no país,

o trabalho de qualidade artística inegável tanto de Julián de la Herrería quando de

Josefina Plá, em menor quantidade, tiveram grande êxito.

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La importancia de este primer logro radica en que Josefina Plá, que había asimilado ávidamente los conocimientos impartidos de su esposo, en esta muestra de la que participa ya revela que ha logrado integrar, a su plástica, las figuras voluptuosas y telúricas pertenecientes a la mitología guaraní. No es de extrañar, por consiguiente, que su intervención en las exposiciones de Julián de la Herrería – en las cuales la exuberancia tropical del paisaje y los mitos aborígenes desempeñan un papel fundamental – fuera tan meritoria como exitosa.10 (BORDOLI DOLCI, 1984, p.120)

Assim, podemos denotar que o contato com a cultura do Paraguai se fez

presente em todo o seu fazer artístico desde o começo de sua carreira. A cultura

popular que é o resultado de uma integração contínua de pessoas e que resulta em

um fazer artístico distinto e que se constitui por um tipo de comunicação de

linguagem pela qual a comunidade expressa sua própria sobrevivência e

permanência enquanto sociedade. Esta mesma cultura adere à obra de Plá ao longo

de sua trajetória. Tal como a cultura popular que representa, grosso modo, o viver

de um povo, a arte popular de Plá representa seu próprio viver em meio a tantas

cores e formas do Paraguai.

Peter Burke, em Cultura Popular na Idade Moderna (1989), define a cultura

popular como aquela que não é oficial, que não é de elite, ou seja, a cultura das

classes subalternas. Para Burke existe a necessidade de se pensar nos artesãos e

camponeses do inicio da modernidade sob a égide de seu próprio mundo, longe dos

valores contemporâneos.

Todavia, não podemos deixar de fora as “inspirações”, aqui tratadas como

referências e aprendizados, que tanto Josefina quanto Julián tiveram antes de suas

criações, como a própria Josefina afirma em El espítiru del fuego (1991), quando ela

e Julián se conheceram. Ele estava na Espanha para estudar cerâmica de Manises,

que busca inspiração para sua criação na antiga cultura árabe que habitou as terras

espanholas antes da retomada cristã, com trabalhos e técnicas que fazem com que

as cerâmicas adquiram tons dourados e metálicos, incomum à época de surgimento,

que data por volta do começo do século XIV. São estes trabalhos que servem de

base para dar a Josefina e Julián o “pontapé” inicial de suas próprias criações, nas

quais não integram os motivos oriundos da cultura moçárabe do Sul da Espanha,

10 Trad. nossa: A importância deste primeiro logro reside em que Josefina Plá, que havia assimilado avidamente os conhecimentos partilhados por seu esposo, nesta mostra da que participa já revela que logrou integrar, a sua plástica, as figuras voluptuosas e telúricas pertencentes à mitologia guarani. Não é de estranhar, por conseguinte, que sua intervenção nas exposições de Julián de la Herrería – as quais a exuberância tropical da paisagem e os mitos aborígenes desempenham papel fundamental – fora tão meritória como exitosa.

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mas sim empregam técnica da cerâmica de Manises à cor local do Paraguai,

demonstrando mais uma vez estarem ligados, enquanto intelectuais, às correntes de

criação que perpassaram a Espanha da época, a saber a influência de parte dos

intelectuais da Generación de 27, como já afirmamos.

Josefina Plá continua sua trajetória e trabalho tanto no meio artístico quanto em

jornais de Assunção, tornando também a primeira locutora de rádio do país, no qual

tinha um programa cultural, e começa também, de acordo com Ángeles Mateo del

Pino (2011), a publicar gravuras no jornal El País, da capital paraguaia.

Em 1929, realizam, Josefina e Julián, uma nova exposição de cerâmicas no

Paraguai, para que o casal possa angariar fundos para ir à Europa. Já nesta época

todas as cerâmicas feitas por Josefina Plá e expostas se valem de motivos

indígenas e, portanto, podemos perceber que sua integração com a cultura

paraguaia já se encontra consolidada apenas dois anos após sua chegada e vai

sendo aprimorada posteriormente.

Na Europa, ainda em 1929, em Manises, começam a trabalhar de imediato

com a arte cerâmica Plá cria peças tanto baseadas nos artesanatos guaranis como

de outros povos, todos munidos de um aparato cultural popular. Trabalhos estes que

serão expostos, juntamente com os de Julián de la Herrería, no Círculo de Bellas

Artes de Madrid no final em 1931, alguns meses antes do retorno do casal ao

Paraguai. É inegável também o contato que Josefina Plá e Julián tiveram com toda a

efusiva vida cultural espanhola da terceira década do século XX. O interesse pela

cultura popular demonstrado por García Lorca, que já desde 1922, defendia como

podemos ver claramente no início da conferência, “Cante Jondo: primitivo canto

andaluz”, que o artista faz uma referência de que não se deve deixar cair em

esquecimento tudo o que ajudou a formar um povo, no caso o povo espanhol, assim

como nas distorções feitas por outros que introduzem determinadas parcelas de

suas culturas em detrimento às locais. Tudo é um composto.

Para Lorca, em “Cante Jondo: primitivo canto andaluz”, não se pode tratar os

temas folclóricos enquanto adaptações para ilustrar composições poéticas. De

acordo com Mota (2000), “Recusando o papel intuitivo, ingênuo e decorativo da arte

popular, ele a integra como estrutura criativa sempre disponível, desde que se

modifique a perspectiva que dela se tenha” (MOTA, 2000, p. 14). Lorca sempre parte

suas investigações de um tempo presente para que não se tenha a noção de

petrificação do passado. Todavia, não recusa o tradicional tampouco o primitivo,

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pois, em seu ensaio, vê como importante e positivo que a criação, o ato criativo, um

necessita do outro. Demonstrando, assim, que aquilo que é primitivo, que é o

passado da tradição, faz parte dos processos construtivos das artes. Josefina Plá

tem a mesma visão de tradição e modernidade criativa a partir da primitividade

paraguaia. A recuperação do ingênuo, por exemplo, feita pela artista vai além de

mera ilustração em suas obras, ela modifica a perspectiva que se tem da própria

construção da cultura paraguaia.

Não é possível que as canções mais emocionantes e profundas de nossa misteriosa alma sejam tachadas de taverneiras e sujas; não é possível que queiram amarrar o fio que nos une com o Oriente impenetrável braço da guitarra juerguista; não é possível que a parte mais diamantina de nosso canto queiran manchar com o vinho sombrio do vagabundo profissional.

Chegou o momento, pois, no qual as vozes dos músicos, dos poetas e dos artistas espanhóis se unam, por instinto de conservação, para definir e exaltar as claras belezas e as sugestões desses cantos. (GARCÍA LORCA, 2000, p.16. grifo do autor)

Aqui, temos o pensamento que García Lorca e outros intelectuais espanhóis

desenvolvem dentro da Espanha da época, pensamento este que perdura por muito

tempo e que se pensarmos a obra de Josefina Plá como uma obra que representa,

valoriza e edifica o culto àquilo que forma o Paraguai de maneira única, pois o

contato dela com o mundo artístico espanhol da época era grande. Percebemos que

está sua criação entranhada na cultura paraguaia, seu povo por adoção, cujas

raízes por vezes passam despercebidas, ou correm o risco de cair em

esquecimento. O projeto intelectual da artista, se pensarmos nestas influências,

passa muito próximo do resgate do popular feito por García Lorca, buscando as

raízes da cultura indígena paraguaia.

O retorno do casal ao Paraguai se dá em 1932. É então que Josefina Plá

retoma todas as suas atividades jornalísticas no país, até chegar a ser chefe da

redação do jornal El Liberal. Nos anos subsequentes à volta de Plá ao Paraguai há

no país uma instabilidade política que resulta no avanço boliviano ao norte

culminando na Guerra do Chaco que duraria até 1935. O conflito penetra

profundamente na sociedade paraguaia ao ponto de Josefina dedicar-lhe um livro de

poemas, Los treinta mil ausentes (elegia a los caídos del Chaco), e incluí-lo nas

histórias de alguns de seus contos, assim como de outras maneiras em manifestos e

peças teatrais, sempre reforçando os valores da sociedade paraguaia, valores estes

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que alcançaram toda a nação em um sentimento de patriotismo. Há, portanto, um

reconhecimento do que constitui a sociedade do país, pela artista, do que constitui o

povo paraguaio e sua alma paraguaia. De acordo com Bordoli Dolci (1984), os

artistas plásticos da época tiveram a ideia de organizar em Buenos Aires uma

exposição para divulgar a vitalidade cultural paraguaia tão ignorada no continente

americano, exposição esta que realizada em maio de 1933.

Durante esse período, Josefina Plá, juntamente com Roque Centurión Miranda,

escreve algumas peças teatrais, como, por exemplo, Episodios chaqueños, peça em

quatro atos, cujas falas das personagens eram tanto em espanhol quanto em

guaraní, e que levava ao palco os episódios da luta na frente da guerra do Chaco, e

também a peça Desheredado, traduzida para o guarani posteriormente. Houve,

portanto, uma preocupação com a realidade paraguaia por parte de Plá em sua

criação intelectual. É interessante a preocupação da artista em desenvolver uma

peça bilíngue e traduzir a outra a uma língua até então não oficial, mas falada por

quase toda a população. Segundo Mateo del Pino, (1994), Josefina também escreve

individualmente um livreto de ópera intitulado Porasy, ainda em 1933. Neste mesmo

ano, Plá corrige e recria um conjunto de poemas escritos por adolescentes, conjunto

este que mais tarde vai ser transformar na obra El Precio de los Sueños, publicado

em 1934.

No ano da publicação de El Precio de los Sueños, Josefina Plá e Julián de la

Herreria voltam à Europa, agora com uma bolsa de estudos do governo espanhol

para que Julian estudasse as cerâmicas de Manises, cidade espanhola na qual fixa

residência dando continuidade a seus trabalhos de ceramistas na Espanha.

1.2 Sobre suas transformações

Há em toda a obra de Josefina Plá, principalmente a desenvolvida após seu

retorno definitivo ao Paraguai, um apelo ao popular que especulamos ter relações

com algumas questões pertinentes à sua trajetória de formação enquanto intelectual,

das quais entedemos por bem abordar de maneira mais específica. Tais relações

decorrem do contato ou ainda da influência que o grupo Generación de 27 teve em

toda a vida intelectual da Espanha da época, período este no qual Josefina Plá teve

forte relação e intenso trânsito com Espanha, motivada e levada pelo recém-esposo

Julián de la Herrería.

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A cultura artística espanhola, de maneira geral, volta, na primeira metade do

século XX, a conhecer um esplendor digno do Século de Ouro com o surgimento de

poetas e intelectuais preocupados com a situação do país, e com inquietações

estético-culturais comuns entre si. Preocupados com uma ideia de nova arte, este

grupo de intelectuais da chamada Generación de 27, possuíam uma ansiedade

estética semelhante, assim como os mesmos interesses em relação à abordagem

usada na forma escrita, tudo devido à efervescência vivida na época e a grande

troca de informações e experiências das mais diversas, oriundas de um processo

mais acelerado de modernização.

De acordo com José García López (2003), desde o início da Primeira Guerra

Mundial o modernismo ficou, na Europa, praticamente liquidado. Todavia, alguns

poetas, liderados por Juan Ramón Jiménez, buscavam novas fórmulas de escrita

que permitissem ir além do que foi o modernismo em seu auge além de representar

o momento em que viviam. Somente conseguiriam alguns anos mais tarde com o fim

da guerra. O período é marcado por um intento de ruptura de uma cultura que

parecia esgotada e pelo surgimento de novos grupos intelectuais; surgem as escolas

de vanguardas, que tinham o objetivo de ruptura com a tradição e a criação de uma

arte inédita, de estética livre. A primeira, o Ultraismo que marca, para García López

(2003, p.684, grifo do autor), o “abandono de lo decorativo modernista y del

elemento anecdótico musical y emotivo, e instauración de una poesia esencialmente

metafórica e inspirada en los temas más dinámicos y deportivos del mundo

moderno11”.

Após um primeiro momento de quebra com toda a tradição proposto pelo

Ultraismo, há uma volta ao passado, às tradições. No entanto, diferente da

Gerneración del 9812 e do próprio Modernismo, neste momento a volta às tradições

não se lança contra nada, nem literária nem política. Se respeitam e valorizam os

mestres anteriores da mesma maneira que mantêm os avanços ultraístas. Segundo

García López (2003), é nesse momento que se estabiliza a volta ao popular nas

obras de Lorca e Alberti, que afeta tanto os temas quanto as formas de suas

poesias. “Lorca utilizará el romance o la copla de la tradición viva; Alberti, las formas

11 Trad. nossa: abandono do decorativo modernista e do elemento anedótico musicar e emotivo, e instauração de uma poesia essencialmente metafórica e inspirada nos temas mais dinâmicos e desportivos do mundo moderno. 12 É um grupo de m grupo de escritores, ensaístas e poetas espanhóis que foram afetados pela crise moral, política e social da Espanha em consequência da derrota militar na Guerra Hispano-Americana e na perda de Porto Rico, Cuba e Filipinas em 1898.

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graciosas de los cancioneiros de tradición medieval.13” (GARCÍA LÓPEZ, 2003, p.

685). A essas novas consolidações e configurações da intelectualidade espanhola

chamou-se, algum tempo depois, Generación de 27.

Historicamente, a Generación de 27 identifica o grupo de escritores espanhóis

que realizaram no ano de 1927, daí o nome, uma homenagem aos 300 anos da

morte de Luis de Góngora. O grupo tinha uma preocupação com a recuperação do

clássico espanhol em diálogo com as vanguardas literárias, o que diferencia o modo

de criação. De certo modo uma literatura revolucionária. Entre todos os poetas e

ensaístas que fizeram parte desta nova maneira de pensar a literatura e a cultura o

que mais nos desperta interesse é talvez o maior nome da Generación de 27,

Federico García Lorca, que também é uma das primeiras vítimas de seu próprio

tempo histórico.

Em termos de teatro e poesia, Federico García Lorca é extremamente

conhecido e amplamente estudado. Às suas poesias Josefina Plá dedica um artigo

intitulado “Siete definiciones de la poesía a traves de la obra de Federico García

Lorca”, publicado no jornal El País, de Assunção, em fevereiro de 1945. Todavia, a

construção da obra de Lorca e os alcances que estas dão a outras obras de arte são

baseadas em preceitos estéticos que o próprio artista possuía, e que influenciou

outros artistas com seu mesmo pensamento. Esses preceitos foram transmitidos ao

público por meio de conferências dadas diversas vezes por Lorca ao longo de seu

curto tempo de vida, e encontra-se, na atualidade, compilados em um volume

intitulado “Conferências” (2000), tradução brasileira, nas quais Lorca “conta” seu

posicionamento estético, sobressaltando questões ligadas à cultura popular.

De acordo com José Martínez Hernández (2011), Lorca cria uma concepção de

estética artística que é amplamente divulgada e adotada na Espanha da época.

Essa concepção gira em vários aspectos e épocas de grandes influências e

esplendor em todos os aspectos da vida cultural espanhola, buscando desde as

influências do Século de Ouro, passando pelo simbolismo, vanguardas, até chegar

ao neopopularismo de sua própria época. Ainda de acordo com Martínez Hernández

(2011), Lorca trabalha em uma definição desta estética em sua conferência

publicada, posteriormente, sob o título de “Teoría y juego del duende”.

13 Trad. Nossa: Lorca utilizará o romance ou a copla da tradição viva; Alberti, as formas graciosas dos cancioneiros de tradição medieval.

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En la estética lorquiana del duende el ser humano aparece como un fascinante e inagotable enigma. Su sabiduría nos dice que, si la lógica es la ley de la razón, la paradoja es la ley de la pasión. La condición humana es representada en aquellos aspectos que se resisten al uso de categorías reduccionistas basadas en la lógica de la disyunción, una lógica que sólo puede dejar satisfechos en este caso a quienes se contentan con una visión superficial de las cosas. Para entender al ser humano, parece decirnos la voz del duende, no nos sirve la técnica analítica de la división: o lo uno o lo otro. O instinto o razón, o determinismo o libertad, o inocencia o culpabilidad, o naturaleza o cultura. Por el contrario, para la estética del duende ser humano es ser, a la vez, lo uno y lo otro sin separación: ser en el Amor/Muerte, en la fatalidad/libertad, en la culpa/inocencia, en lo natural/cultural. Ser humano es ser en devenir, transitorio, mudable, en continua metamorfosis doliente y jubilosa. Es vivir en la paradoja, en el límite confuso de todos los contrarios, y habitar en él con autenticidad y dignidad. La teoría estética del duende de Federico García Lorca no se erige en juez de la condición humana, sino que la muestra atravesada e iluminada por la pasión, con su desvalimiento y fragilidad, con su radical incertidumbre, viviendo entre una lúcida ceguera y una ciega lucidez, mitad luz y mitad sombra, tan incapaz de gobernar su destino como de aceptarlo con resignación. En ella el arte es entendido como una prodigiosa mezcla de lucidez, coraje, piedad e inocencia, como una mirada que contempla cada día con asombro y entusiasmo el amanecer del mundo.14 (MARTÍNEZ HERNÁNDEZ, 2011, p.98)

Em outras palavras, a estética lorquiana expressada pelo crítico é uma estética

da modernidade. Da mesma forma que faz, em uma América Latina diversa de

Espanha, Josefina Plá. A estética de Lorca, para Martínez Hernández (2011), é

aquela que lida com o ser humano em sua completude, ou seja, aquela que lida com

algo instável e dual. Uma estética que, fazendo uma ponte ao que reclamamos

nesta pesquisa, se faz por meio de uma trama entre ideias que, aparentemente, são

opostas, criando um “tecido” novo, tal qual Josefina Plá também o faz no Paraguai.

No outono 1933, de acordo com Paco Tovar (2002), Lorca, em visita a Buenos

Aires, insiste em que sua obra não é popular, pois, para ele, sua obra é por

14 Trad. Nossa: Na estética lorquiana do duende o ser humano aparece como um fascinante e inesgotável enigma. Sua sabedoria nos diz que, se a lógica é a lei da razão, o paradoxo é a lei da paixão. A condição humana é representada naqueles aspectos que resistem ao uso de categorias reducionistas baseadas na lógica da disjunção, uma lógica que só pode deixar satisfeitos neste caso a quem se contentam com uma visão superficial das coisas. Para entender o ser humano, parece dizer-nos a voz do duende, não nos serve a técnica analítica da divisão: ou um lado ou o outro. O instinto da razão, o determinismo ou liberdade, ou inocência ou culpabilidade, ou natureza ou cultura. Pelo contrário, para a estética do duende ser humano é ser, talvez, o um e o outro sem separação: ser no Amor/Morte, na fatalidade/liberdade, na culpa/inocência, no natural/cultural. Ser humano é ser no futuro, transitório, mutável, em contínua metamorfose doente e jubilosa. É viver no paradoxo, no limite confuso de todos os contrários, e habitar nele com autenticidade e dignidade. A teoria estética do duende de Federico García Lorca não se elege juíza da condição humana, senão que a mostra atravessada e iluminada pela paixão, com seu desvelamento e fragilidade, com sua radical incerteza vivendo entre a lúcida cegueira e a cega lucidez, metade luz e metade sombra, tão incapaz de governar seu destino como de aceitá-lo como resignação. Nela a arte é entendida como uma prodigiosa mescla de lucidez, coragem piedade e inocência, como um olhar que contempla cada dia com assombro e entusiasmo o amanhecer do mundo.

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demasiado aristocrática. No entanto, segundo o crítico, o próprio Lorca admite que

sua arte literária e musical está impregnada de sua “raça”, de algo que é

genuinamente espanhol. É curioso, e aqui afirmamos o contato que Josefina tem

com Lorca e sua obra, que no mesmo ano e época em que Lorca estava na capital

argentina, segundo Bordoli Dolci (1984), Josefina Plá e Julián de la Herrería

organizam uma exposição de suas cerâmicas, cujo intuito era mostrar e divulgar a

cultura paraguaia, cultura essa formada, pelo próprio conteúdo da exposição, por

uma mescla do popular e do erudito.

Pelos interesses de Lorca e com o contato que de alguma maneira ele teve

com os intelectuais da época, tanto por sua obra e postura intelectual diante de sua

terra espanhola, pelas dimensões humanas com que aborda diferentes assuntos,

não é de se estranhar também na zona do Rio da Prata, Lorca tenha feito

“descendentes”. Podemos dizer de artistas que aderem a suas ideias de

“valorização” e de resgate, de não deixar morrer a cultura que formou seu lugar no

mundo. Da extrema importância da obra de Lorca para o mundo das Letras, Paco

Tovar (2002), afirma que: “también en los cotos de su interior mediterráneo, donde

alcanzó a instalarse en la memoria de la vanguardia poética inaugurada por Josefina

Plá, Augusto Roa Bastos y Hérib Campos Cervera.15 (TOVAR, 2002, p.96).

Ainda de acordo com Tovar, anos depois, em 1945, Josefina Plá se ocupa no

que o crítico chama de um dos trabalhos mais lúcidos da artista. Como já nos

referimos acima, em “Siete definiciones de la poesía a traves de la obra de Federico

García Lorca”, Josefina traz sete definições criada por ela para a poesia de Lorca.

Segundo Josefina Plá,

Cuando acabamos de leer sus versos tenemos la sensación de haber hallado de nuevo la poesía”. Que es como decir que deseamos una nueva definición. Sus poemas tienen acento de presagio, porque todos ellos son voz prestada a lo que fue, y el presagio no es sino un remorder de lo definitivamente olvidado. Vienen de eternidad y van a eternidad, bogando por el río efímero de nuestra sangre. Así, herederos de sus versos —laberinto entretejido de soles desvelados y lunas y mares por abrir— hemos de componer nosotros mismos la clave para atravesar su recinto metafórico y alcanzar el reducto final, donde la verdad acorralada se da vida y más semejante a uno mismo.16 (PLÁ, 1945, p.10)

15 Trad. Nossa: também nos cantos de seu interior mediterrâneo, onde conseguiu instalar na memória da vanguarda poética inaugurada por Josefina Plá, Augusto Roa Bastos e Hérib Campos Cervera. 16 Trad. Nossa: Quando acabamos de ler seus versos temos a sensação de haver achado uma nova poesia. Que é como dizer que desejamos uma nova definição. Seus poemas têm acento de

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Dessa forma, Josefina inicia suas sete reflexões baseadas na repetição da

palavra “cimbra”, cuja tradução para o português gira em torno de verga ou uma

peça flexível de madeira, uma ripa, uma virga. Plá delimita sete poemas de Lorca,

que pensa serem primordiais para a compreensão de sua poesia. Paco Tovar (2002)

afirma que, segundo Josefina, temos que entender que a poesia do artista não é

sozinha, mas diferente para cada um de seus leitores, e é neste ponto que ela se

realiza de forma absoluta, ou seja, não há uma definição para a poesia de Lorca, o

texto serve, então, para homenagear um dos poetas mais influentes da primeira

metade do Século XX. Homenagem esta que Paco Tovar (2002) nos demonstra em

três poemas de Josefina Plá (PLÁ apud TOVAR, 2002, p.97):

Federico García.

Por doce puertas rojas la muerte te quería.

Las abrió como doce

Versos de roja consonantes.

- Eran la muerte larga que tu verso conoce –

Doce bocas de versos te cantaban, amantes.

La besaste con labios de doce versos rojos.

Ella, amorosa y lenta, se te acostó en los ojos.

Este foi publicado, de acordo com o crítico, no jornal El País, em Assunção, no

dia 12 de julho de 1944, quase um ano antes do artigo sobre as definições

indefinidas da poesia lorquiana. Há, ainda, conforme uma nota expressa no artigo do

crítico espanhol, dois outros poemas, respectivamente “El poema del creciente” e

“La casada infiel”, que claramente existe uma “influencia” da obra lorquiana em suas

criações.

EL POEMA DEL CRECIENTE

El toro azul de la noche

astado de media luna,

se baja a beber el agua

secreta de la laguna

presságio, porque todos ales são voz emprestada ao que foi, e o presságio não é senão um remorder do definitivamente esquecido. Vem da eternidade e vai à eternidade boiando pelo rio efêmero de nosso sangue. Assim, herdeiros de seus versos - labirinto entretecido de sóis desvelados e luas e mares por abrir – compomos nos mesmo a chave para atravessar seu recinto metafórico e alcançar seu reduto final, onde a verdade ancorada se dá vida e mais semelhante a um mesmo.

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(Noche álamo, desnuda bajo la brisa clara.

Entre sus labios árabes, hay una almendra amarga.)

El toro azul de la noche

en blanco sueña su hembra.

Su lengua blanda de viento

acuesta delgada yerba.

(Pretales de oro fino, faroles de magnolia.

Un dolor de jazmines entre las venas llora.)

El toro azul de la noche

con su sed de girasoles;

la sombra, castillo antiguo

sin puentes para sus torres.

(Luna cande y añeja, pilonga del desvelo.

Mirándola, ha caído un niño dentro de un beso…)

El toro azul de la noche

por las montañas se ausenta.

Quedará la noche sola.

Ni yo misma estaré en ella.

(La noche, de rodillas, se atusa los luceros.

Sol viejo y desvelado se asoma a nuestros sueños…)

1940

Dessa forma, conforme Paco Tovar (2002) em suas notas, Josefina Plá faz

uma homenagem ao estilo popular da obra de Lorca e de imagens que remetem ao

próprio universo espanhol de Andaluzía. No poema, a todo o momento, Plá retoma

imagens típicas da região de onde Lorca era natural, Andaluzía, ao sul da Espanha,

última região a ser retomada dos árabes na Reconquista Cristã, séculos antes, mas

que sofreu tal influência da cultura árabe que suas características populares se

tornaram singulares no país. Imagens como as dos versos “(Noche álamo, desnuda

bajo la brisa clara./Entre sus labios árabes, hay una almendra amarga.)” nos quais

podemos perceber as influências andaluzas, como nas expressões “Noche álamo”,

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“lábios árabes” e “almendra amarga”, destintas de qualquer imagem que possa

haver no Paraguai. Assim como nos versos que se seguem, Josefina sempre retoma

imagens da cultura popular de Andaluzía, uma referência à obra de Lorca, como, por

exemplo, quando usa a expressão “sed de girasoles” a qual podemos fazer uma

alusão à expressão “girasoles ciegos” que significa uma ação infrutífera, estéril, vã,

mas que ao contrário nesta obra de Lorca jamais passará por esta ideia e sim pela

fertilidade de seus pensamentos.

Já no outro texto apontado por Paco Tovar (2002):

LA CASADA INFIEL

Y yo que me la llevé al río. . .

GARCÍA LORCA

La casada infiel viene en busca de los juncos

pisando zarzamoras y espinos y retamas

Mil noches de San Juan con sus incendios truncos

le trazan horizonte de agonizantes llamas

Busca el hueco en el limo donde plantó su pelo

el hueco que fue molde negado a las estrellas

En la ribera alerta se agazapa el recelo

Su cómplice alfabeto le rehúsan las huellas

No palpitan faroles Los grillos no se encienden

Los lirios han perdido su duelo con el viento

(Los peces de sus muslos se fueron ya río abajo)

Inmóviles los juncos su aguja al cielo tienden

El agua arrastra el último menguante soñoliento

y en la vieja colina cicatrizó el atajo

1978

Logo no início do soneto temos uma epígrafe e uma possível dedicatória, se

assim podemos aludir pela epígrafe, uma homenagem também à morte do poeta por

fuzilamento durante a Guerra Civil Espanhola. O próprio título do poema de Plá é

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igual ao de um poema de Lorca. Também é interessante como Josefina Plá dedica a

Lorca a forma fixa do soneto, diferindo do romance criado pelo artista, são, deste

modo, formas diferentes que se distanciam, marcando a aproximação de Plá da

tradição, soneto enquanto uma forma canônica e consagrada. A voz única do

cigano, no poema de Lorca, de tom machista, à voz de um eu lírico que a anula o

caráter condenatório do poema de Lorca. Há, nesse sentido, mais distancia e menos

identificação-reprodução dos princípios morais do mundo cigano criado pelo poeta

espanhol.

Algo que podemos verificar, dessa forma, é a inegável relação que Lorca e

suas obras tiveram sobre o modo como Josefina compreende o mundo paraguaio. O

universo da autora permeado por grandiosas referências à cultura popular guaraní,

um universo que ela trama, juntamente com o universo espanhol, para formar o

tecido de suas obras e que se constrói de maneira única no Paraguai durante toda

sua carreira intelectual.

1.3 Sobre a morte, suas marcas e (re)criação

Na Espanha de 1936, Josefina e Julián são surpreendidos pelo início da

Guerra Civil espanhola assim como toda a classe intelectual da época, pela morte

de García Lorca, e tomados pelo temor de não poderem voltar ao Paraguai, mas

seguem trabalhando com as cerâmicas. De acordo com Josefina Plá (1991), foram

inúteis os esforços realizados pelo casal para sair da Espanha, ainda que tivessem

de abandonar tudo. Plá via o marido ensimesmado e pálido, mas este nunca

confessou estar mal de saúde. Até que em julho de 1937, Julián “amaneció

quejándose: sentia una gran debilidad en los brazos.” (PLÁ, 1991, p.198). Nos dias

que se passaram, o estado de saúde de Julián piora. Neste trabalho, interessam-nos

os relatos acerca da vida e morte de Julián de la Herrería pelo fato de este período

deixar profundas marcas em Josefina Plá, marcas estas que serão representadas

em sua obra.

Com Julián doente e precisando se alimentar bem por recomendação médica,

e sofrendo com dores causadas pela reação de um remédio, uma das coisas que

marcam a vida de Josefina Plá durante este episódio, que é calcado pelas durezas

do estado de guerra civil em que se encontrava a Espanha no qual há a falta de

alimentos e todo tipo de recursos para a população, é o fato comentado pela própria

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Josefina em El Espítiru del Fuego, biografia escrita pela artista em homenagem a

seu esposo, a venda de ovos podres para que Plá alimentasse Julián.

Y cuando quiso prepararle unas yemas, los huevos resultaron podridos. Todos, unos tras otro: los doce.

Treinta años más tarde, la esposa dirá:

-He perdonado y olvidado, en mi vida, calumnias, intrigas, puerquezas, puñaladas por la espalda; pero no he podido perdonar ni olvidar al que me vendió a precio de oro unos huevos podridos, defraudando el alimento a un

enfermo.17 (PLÁ, 1991, p.198-199)

A cada dia que passa, as dores do casal são maiores. Julián, antes altivo e

imponente, agora definha, e Josefina torna-se uma “buena enfermera”, como relata

em El Espíritu del Fuego. Tomados pela angústia e pela dor, ambos vão se

“empoerando”, como nos lembra Ángeles Mateo del Pino (1994, p.65), e já não

conseguem mais se dedicar à cerâmica.

El médico ordena el remedio de urgencia: una sangría. Pero no surte efecto. El artista abre los ojos, incapaz de hablar. Su mirada azul busca desgarradoramente la de la esposa. En vano los ojos de ella angustiados bucean en esa mirada extraviada. Entre los dos se extiende ya un insalvable brazo de mar. Médico y practicante dan un paso atrás apartándose de la cama: ese paso atrás equivale a una sentencia. Un temblor imperceptible sacude aún las aletas de la nariz mientras que el siniestro livor que le cubrió las sienes, retrocede; retrocede la marea mortal, dejando su rastro cárdeno en los labios y las uñas. Ya su frío no es de este mundo y de esta carne.

Son las once y media del domingo 11 de julio de 1937. Un domingo espléndido de sol. 18 (PLÁ, 1991, p. 200)

17Trad. nossa: E quando quis preparar-lher umas gemas, os ovos estavam podres. Todos um atrás do outro: os doze. Trinta anos depois, a esposa dirá: - Perdoei e esqueci, em minha vida, calunias, intrigas, “puerqueza”, punhalada pelas coras; mas não posso perdoar nem esquecer ao que me vendeu a preço de outro uns ovos podres, fraudando o alimento de um doente. 18Trad. nossa: O médico recomenda o remédio com urgência: uma sangria. Mas não surte efeito. O artista abre os olhos incapaz de falar. Seu olhar azul busca pungentemente o da esposa. Em vão os olhos dela angustiados busca mete olhar extraviado. Entre os dois se estende já um insalvável braço de mar. Médico e estagiário dão um passo para trás separando-se da cama: esse passo para trás equivale a uma sentença. Um temor imperceptível sacode ainda as asinhas do nariz enquanto que o sinistro livor que cobriu as têmporas, retrocede; retrocede a maré mortal, deixando seu rastro cárdeo nos lábios e unhas. Já seu frio não é deste mundo e desta carne. São onze e meia de domingo 11 de julho de 1937. Um domingo esplendido de sol.

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De acordo com Ángeles Mateo del Pino (1994), logo após a morte do esposo,

Josefina Plá, com a ajuda de alguns amigos, faz um busto de Julián de la Herrería,

mas não consegue fazer o mesmo com as mãos do artista. Todavia, talvez como

que para compensar, Josefina recria as mãos de Julián em diversos de seus

poemas, uma impressão indelével de Julián na vida de Josefina, como nos afirma

Mateo del Pino (1994).

(Re)criação esta que se faz presente em diversos de seus poemas e que um

deles, intitulado Tus Manos, de 1939, aparece em três das coletâneas de poemas da

autora, respectivamente La raíz y la aurora, de 1960, Desnudo día, de 1968, e La

llama y la arena, de 1985:

Tus manos

De las más hondas raíces se me alargan tus manos,

y ascienden por mis venas como cegadas lunas

a desangrar mis sienes hacia el blancor postrero

y tejer en mis ojos su ramazón desnuda.

En mi carne de estío, como en hamaca lenta,

ellas la adolescente de tu placer columpian.

-Tus manos, que no son. Mis años, que ya han sido.

Y un sueño de rodillas tras la palabra muda-.

...Dedos sabios de ritmo, unánimes de gracia.

Cantaban silenciosos la gloria de la curva:

cadera de mujer o contorno de vaso.

Diez espinas de beso que arañan mi garganta,

untadas de agonía las diez pálidas uñas,

yo los llevo en el pecho como ramos de llanto.

1939

Plá também escreve outros poemas nos quais, em rápida análise, podemos

perceber a presença marcante da lembrança de Julián, como em Las Manos,

presente na coletânea Invención de la Muerte, de 1965; Una Mano, presente em

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Satélites oscuros, de 1966; e outros poemas com e sem títulos que também são

mencionadas mãos, assim como os criados mais posteriormente à morte de Julián,

nos quais há uma clara melancolia da artista pela morte do esposo.

Após a morte de Julián, Josefina, com muita dificuldade, inicia seu regresso ao

Paraguai, país de seu esposo, mas que ela aprendeu a conhecer de maneira

singular. Para regressar, Josefina vende todos seus pertences para conseguir

comprar o bilhete de Barcelona até Marselha, onde embarcaria para o Paraguai. No

entanto, como não havia condições de levar as peças de Julian, a artista as deixa no

Museu Nacional de Belas Artes de Valencia, peças que só conseguiu recuperar

muito tempo depois, em 1956.

Em 1938, Josefina Plá embarca rumo ao Paraguai. Porém, o governo

paraguaio receoso sobre a presença de Plá no país, vinda de uma Espanha em

plena Guerra Civil, a exila a cerca de 30 quilômetros de Assunção, em Clorinda, pois

supunham que Josefina tinha laços políticos com a Espanha em guerra. No entanto,

como Josefina desenvolvia um longo trabalho como jornalista, obteve credenciais

para entrar no país como correspondente jornalística, e em pouco tempo estava de

volta à sua casa em Assunção.

À época, o país se encontra em total instabilidade, apesar de ter vencido a

Guerra do Chaco, que como já mencionamos irá figurar algumas vezes nos contos

de Josefina Plá. São muitos os desastres causados pela guerra, por revoluções e

conflitos internos do país. Josefina reconhece a cultura paraguaia em meio a toda a

violência que se faz presente na época, assim como em outras épocas. Não

obstante, de acordo com Mateo del Pino (1994), é em meio a este Paraguai

conflituoso que Josefina Plá começa a desenvolver e a realizar um longo trabalho de

renovação artística e literária.

Diante do distinto cenário político, econômico e social que o Paraguai vivia em

1938, é, segundo Bordoli Dolci (1981), de se deduzir que o trabalho intelectual

encontrava diariamente dificuldades, por não haver segurança suficiente para

garantir a liberdade criadora, regalando o uso apenas de valores adequados aos

interesses do governo, que variavam frequentemente. Nem a neutralidade política

podia assegurar a liberdade criadora dos intelectuais da época.

Quizá este rasgo caracterizador – o definidor – de la sociedad paraguaya sirva para comprender y valorar mejor el esfuerzo ciclópeo desarrollado por Josefina Plá en las diversas áreas del arte; la constante actualización de su

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compromiso, la calidad de su apostolado intelectual y artístico.19(BOLDOLI DOLCI, 1981, p.129)

Podemos perceber a relação simbólica entre os esforços de Josefina Plá e a

marginalidade relegada ao Paraguai. De acordo com Bordoli Dolci (1981), ela se

lança a um trabalho múltiplo, atuando em diversas atividades desde a criação

literária à investigação cultural.

Com o início de uma grande atividade artística, Josefina Plá, já entre 1938 e

1939, cria diversas peças teatrais e também escreve para jornais e revistas

paraguaias vários textos de crítica teatral das mais diversas peças, assim como

pesquisa aspectos do teatro. Seus trabalhos no teatro, posteriormente, resultam em

obras ensaísticas como “El Teatro en el Paraguay” (1965) e “Cuatro Siglos de Teatro

Paraguayo” (1966), por exemplo. Ainda nesses anos, funda o primeiro jornal literário

de rádio do Paraguai, o “PROAL – Pro Arte y Literatura”, junto com Roque Centurión

Miranda, no qual foram lidos diversos de seus contos próprios, além de recriações

de contos infantis canônicos.

Com suas intensas atividades intelectuais e sua fidelidade à ideia de não deixar

desaparecer as memórias de seu falecido marido, funda, ainda nessa época, o

Museo de Cerámica y Bellas Artes “Julián de la Herrería, do qual, de acordo com

Mateo Del Pino (1994), foi proprietária e diretora e que, posteriormente, foi

reconhecido pela UNESCO.

Durante os anos quarenta do século XX, surge no Paraguai um grupo de

escritores preocupados com o panorama cultural que se forma no país, a chamada

geração dos 40, cujos principais nomes foram, conforme Hugo Rodríguez-Alcalá

(1999), Josefina Plá, Hérib Campos Cervera e Augusto Roa Bastos. Para Ángeles

Mateo del Pino (1994), os participantes do grupo se reúnem para discutir assuntos

ligados à cultura e sociedade paraguaia; o grupo se dissipa com o início da Guerra

Civil20 em 1947. No entanto, apesar das dificuldades políticas e de relação de

aceitação, Josefina Plá segue com um numeroso trabalho cultural, atuando com

grande ênfase na criação de textos dramáticos, obtendo diversos prêmios por suas

19 Trad. nossa: Talvez esta face caracterizadora – ou definidora – da sociedade paraguaia sirva para compreender e valorar melhor o esforço ciclópeo desenvolvido por Josefina Plá nas diversas áreas da arte; a constante atualização de seu compromisso, a qualidade de seu apostolado intelectural e artístico. 20 A Guerra civil paraguaia ou Revolução dos pynandí, do guarani, pés descalços, foi um conflito armado

ocorrido no Paraguai entre março e agosto de 1947.

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obras. Também trabalha ativamente como colaboradora e promotora de iniciativas

culturais em prol de um teatro novo, próprio do Paraguai. Além de continuar com

seus programas de rádio, que a partir de 1943 passam a ser de caráter mais

contínuo e que proporcionam a criação do programa “Cuentos de ayer y de hoy”, no

qual Plá faz a leitura de seus contos infantis, dentre outros programas relacionados

à questão feminina, à guerra etc.

Segundo Mateo del Pino (1994), sua ativa participação na vida cultural do

Paraguai a impulsiona à escrita de diversos livretos para as mais diversas ocasiões

especiais, preocupada também com os aspectos populares de tal cultura. Ainda

segundo a crítica, são numerosas as conferências que Josefina faz nas mais

diversas instituições sobre aspectos da cultura plástica universal e da arte popular

paraguaia, além do trabalho literário incessante. Assim como escrever artigos sobre

o mesmo assunto para publicações em jornais locais e estrangeiros. Anos depois

em uma entrevista, Armando Almada Roche questiona Josefina Plá se o poeta, e

aqui podemos expandir para o artista de modo geral, deveria escrever para o povo

ou para a própria arte.

Escribir para el pueblo, ¡qué más quisiera yo!; deseosa de escribir para el pueblo aprendía de él cuanto pude, mucho menos – claro está – de lo que él sabe. Escribir para el pueblo es, por de pronto, escribir para el hombre de nuestra raza, de nuestra tierra, de nuestra habla, tres cosas de inagotable contenido que no acabamos nunca de conocer. Y es mucho más, porque escribir para el pueblo nos obliga a rebasar las fronteras de nuestra patria, es escribir también para el hombre de otras razas, de otras tierras y de otras lenguas. Escribir para el pueblo es llamarse Cervantes en España, Shakespeare en Inglaterra, Tolstoi en Rusia. Es el milagro de los genios de la palabra. Tal alguno de ellos lo realizó sin saberlo, sin hacerlo, sin haberlo deseado siquiera. Día llegará en que sea la más consciente y suprema aspiración del poeta. E cuanto a mí, mera aprendiz del saber, no creo haber pasado de la folklorista, aprendiz, a mi modo, del saber popular.

Lo antipopular que ignora la insuperable dignidad del hombre se contrapone al pueblo, quien afirma esa misma dignidad, ya que en ella tiene su cimiento más firme la ética popular; como reza el antiguo adagio castellano: “Nadie es más que nadie”. Por esta frase hablaba Castilla, años ha, un pueblo de señores, que siempre ha despreciado al hombre popular y en cuyo hondo sentido al adagio manifiesta que “por mucho que valga un hombre, nunca tendrá valor más alto que el valor de ser hombre”.21(PLÁ apud ALMADA ROCHE, 2011, p.115)

21Trad. nossa: Escrever para o povo, o que mais quisera eu!; desejosa de escrever para o povo aprendia dele quanto pude, muito menos – está claro - do que ele sabe. Escrever para o povo é, por de repente, escrever para o homem de nossa raça, de nossa terra, de nossa fala, três coisas de inesgotável conteúdo que não acabamos nunca de conhecer. E é muito mais , porque escrever para o povo nos obriga a ultrapassar as fronteiras de nossa pátria, é escrever também para o homem de

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Em todo o trabalho artístico de Josefina Plá fica evidente o uso do popular.

Podemos perceber neste e em outros depoimentos da artista a importância que os

clássicos tiveram, em sua formação enquanto artista, são escritores que criavam

para o povo, a partir deste povo. O aprendizado do artista se dá, para Josefina Plá,

por meio do que ele aprende com o povo. Assim, podemos compreender as palavras

de Italo Calvino nas quais afirma que “clássico é um livro que nunca terminou de

dizer aquilo que tinha para dizer”, pois há de se convir que não existem meios para

se expor tudo sobre um povo. Os clássicos elucidados por Josefina Plá como

representantes de um povo o “pinta” na medida em que conseguem falar da

essência deste, do que os forma, de suas raízes. Formação esta que Josefina

implica em sua obra, trazendo aquilo que forma o povo paraguaio, ou seja, a cultura

popular, juntamente com a cultura erudita. O Paraguai heterogêneo.

A cultura popular paraguaia está sempre presente na vida intelectual de

Josefina Plá, seja para além do trabalho cultural no rádio, das conferências e da

criação de peças teatrais, da qual é ativamente participante na cena paraguaia, a

ponto de, juntamente com Roque Centurión Miranda, fundar a Escuela Municipal de

Arte Escénico, em Assunção em 1948. Josefina também dedica parte de seu tempo

a dar aulas de cerâmica no Centro Cultural Paraguayo-Americano. Mateo del Pino

(1994) reforça que a ela se deve a aparição dos primeiros ceramistas nativos que

continuam a obra de Julián de la Herrería; anos depois suas cerâmicas seriam

expostas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Também, nesse mesmo período,

década de 1940, Josefina apresenta parte de sua obra poética à imprensa

paraguaia; junto ao seu trabalho criativo literário/poético se dá seu trabalho crítico,

que aqui nos interessa em grande escala. Mateo del Pino (1994) revela que Plá

escreve diversos ensaios sobre a poesia lírica paraguaia assim como sobre seus

poetas.

outras raças, de outras terras, de outras línguas. Escrever para o povo é chamar Cervantes na Espanha, Shakespeare na Inglaterra, Tolstoi na Russia. É o milagre dos gênios da palavra. Talvez algum deles o realizou sem saber, sem fazer, sem haver desejado sequer. Dia chegará em que seja a mais consciente e suprema aspiração do poeta. E quanto a mim, mera aprendiz do saber, não creio haver passado de uma folclorista, aprendia, a meu modo, do saber popular. O antipopular que ignora a insuperável dignidad do homem se contrapõe ao povo, quem afirma essa mesma dignidad, já que ela tem seu cimento mais firme na ética popular; como reza o antigo adágio castelhado: “Ninguém é mais que ninguém”. Por esta frase falada em Castilha, há anos, em um povoado de senhores, que sempre desprezou o homem popular e em cujo fundo sentido ao adágio manifesta que “por muito que valha um homem, nunca terá o valor mais alto que o valor de ser homem”.

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Na década de 1950, segundo Mateo del Pino (1994), Josefina inicia pesquisas

sobre temas históricos nos Arquivo e Biblioteca Nacionais, cujos resultados virão

mais tarde, nas décadas seguintes. Ainda de acordo com a crítica, entre os anos de

1952 e 1953, se firma, juntamente com João Rossi, como uma das principais

críticas/teóricas e divulgadora dos princípios estéticos do “Arte Nuevo”, com o intuito

de renovar a arte paraguaia. “Se dice que el arte de hoy se divorcio del público.

Expresado así no es exacto. Es el público el que no se aproxima a él con suficiente

desprejuiciamiento. Nunca el arte trató más de acercarse al espectador"22 (PLÁ,

apud RODRIGUES, 2000, p. 16). Assim, Plá organiza com o Grupo Arte Nuevo23,

sobre o qual, segundo Plá (1997, p. 31), não havia um estatuto ou qualquer coisa

que regulamentasse o grupo, ou reuniões fixas, “era uma simple voluntad unívoca

que se manifestaba constantemente en la unanimidade de la acción. ”24 da qual faz

parte, a Primeira Semana de Arte Moderno Paraguayo, em 1954. Na mesma

década, Josefina expõe suas cerâmicas em diversões salões, obtendo vários

prêmios como o Diploma de Honra 1ª Classe no Salão de Artes Plásticas, no Rio de

Janeiro, em 1952.

Meses y años en los cuales el entusiasmo y el fervor, nacidos de la convicción de que a la par que se estaba haciendo algo que la cultura nacional necesitaba desesperadamente, se hacía también algo por la salvación individual de los artistas; afrontó y enfrentó situaciones, algunas veces riesgosas; otras veces quizá algo peor; porque el desdén, y sobre todo el ridículo pueden a veces operar psicológicamente peor – desintegrar la voluntad, desorientar, enfriar entusiasmo - que la abierta hostilidad que a lo mejor suscita o estimula en el individuo el potencial defensivo.25 (PLÁ, 1997, p. 31)

Faz-se interessante pensar também na produção de Plá e em sua trajetória

artística, como algo que, assim como ela própria coloca nas palavras, acima citadas,

22 Trad. Nossa: Se diz que a arte de hoje se divorciou do público. Expressão esta que não é exata. É o público o que não se aproxima a ela com suficiente “despreconceito”. Nunca a arte tratou de acercar-se mais do espectador. 23 Formado por um grupo de artistas que marcaram uma rubputa das formas acadêmicas de arte no Paraguai dos fins da primeira metade do século XX. 24 Trad. Nossa: era uma simples vontade unívoca que se manifestava constantemente na unanimidade da ação. 25 Trad. Nossa: Meses e anos nos quais o entusiasmo e o fervor, nascidos da convicção de que a par se estava fazendo algo que a cultura nacional necessitava desesperadamente, se fazia também algo para a salvação individual dos artistas; afrontou e enfrentou situações, algumas vezes perigosas; outras vezes talvez pior; porque o desdém, e sobretudo o ridículo podem as vezes operar psicologicamente pior – desintegrar a vontade, desorientar, esfriar o entusiasmo - que a aberta hostilidade que ao melhor suscita ou estimula no indivíduo o potencial defensivo.

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a cultura do país necessitava desesperadamente, ou seja, havia uma necessidade

de se autoconhecer, conhecer suas próprias raízes. Necessidade esta que vem a

partir de ideias tidas fora do país, observadas desde a Europa pelos diversos

intelectuais paraguaios que saíram do país e puderam perceber, lá fora, o que não

viam dentro de seu próprio lugar, ou seja, toda a riqueza e, por que não, beleza do

país e de suas tradições populares.

Entre processos de criação não só artística, mas também cultural e crítica, a

relação de Josefina Plá com a cultura paraguaia vai se aprofundando cada vez mais,

o que gera um volumoso número de publicações sobre todos os aspectos da cultura

do país. Passa a dirigir e fazer parte de conselhos editoriais de revistas de grande

circulação no Paraguai e dirige também programas de rádio locais. É somente nessa

época que Josefina Plá começa a ter reconhecimento pelo trabalho cultural que

desenvolve no país, consequentemente, o número de atividades aumenta, passa

também a colaborar, tratando de assuntos artes e letras, na rádio Nacional del

Paraguai. Traduz contos, escreve-os, realiza resenhas e artigos, até que em 1964

recebe o Prêmio Lavorel, que é dado ao escritor que mais se distinguiu por suas

atividades em prol da cultura paraguaia.

Na década de 1960 realiza diversas exposições de cerâmicas e publica

diversos livros sobre artes plásticas tais como: El Grabado en el Paraguay (1962),

Las artesanias en el Paraguay (1969), El barroco hispano-guaraní (1964), assim

como segue publicando textos em revistas de arte. De acordo com Mateo Del Pino

(1994), nesse mesmo período, reforçando ainda mais seu reconhecimento como

artista local, artista paraguaia, escreve um capítulo correspondente ao Paraguai para

a Enciclopedia del arte em América, de Vicente Gesualdo, que foi publicada em

Buenos Aires em 1968. Entretanto, apesar do grande número de atividades

desenvolvidas, nem todas expostas neste texto, Josefina Plá não detém sua

produção literária. Dessa época constam, por exemplo, as peças La cocina de las

sombras (1960) e Las ocho sobre el mar (1968), assim como uma série de contos

publicados na Revista Alcor, e ainda publica os contos de La mano en la tierra

(1963). E, em 1968, também figura em uma antologia intitulada Crónicas del

Paraguay, impressa na Argentina.

Com efeito, se pensarmos no começo de nosso texto, percebemos que a

primeira escrita por Plá, não se tratou de textos dramáticos e/ou narrativos, senão de

textos poéticos, estes que a autora, conforme Mateo Del Pino (1994), nunca deixou

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de escrever desde que chegou ao Paraguai. No entanto, tal produção não era, até

1960, publicada em forma de livros, com a exceção de El precio de los sueños, de

1934. Toda a produção poética de Josefina Plá foi publicada pela primeira vez em

jornais e revistas. Somente nos anos de 1960 é que sua produção vai começar a ser

compilada em forma de livros: La raiz y la aurora (1960), Rostros en el agua (1963),

Ivención de la muerte (1965), Satélites oscuros (1966), El polvo enamorado e

Desnudo día (1968).

El quehacer poético de Josefina Plá es constante decantación de la palabra. Este carácter inscribiría su lírica en la ambiguamente llamada “poesía culta”, pero tal rotulación no implica que no atienda a lo popular. En su verso laten profundas y universales cuestiones humanas, más allá de las divisiones y definiciones con que se intente catalogar la expresión poética. El amplísimo bagaje cultural de la poetisa no le permite obviar ciertos carriles que, inexorablemente, la conducen a una forma y decir elaborados.26(ALMADA ROCHE, 2011, p.114)

Em sua trajetória intelectual, Josefina Plá é sempre múltipla, trabalhando em

criações narrativas, poéticas e dramatúrgicas, mas realizando ao mesmo tempo

publicações críticas em forma de artigos e ensaios sobre cultura, arte e literatura.

Ainda segundo Mateo del Pino (1994), Josefina Plá realiza um trabalho notável no

que diz respeito à cultura paraguaia, que, para além da produção artística, realiza

diversos estudos dos aspectos culturais locais, tais como Apuntes para una historia

de la cultura paraguaya (1967) e Cuatro siglos de teatro en el Paraguay (1967).

À época, reforça Bordoli Dolci (1984, p.309):

América Latina continúa siendo la gran desconocida. El “boom” mostró, en un grado sorprendente, la interioridad polifacética de ese gran conglomerado humano y geográfico; los acontecimientos sociopolíticos fueron recreados literariamente: las luchas intestinas, las esperanzas democráticas que se desmoronaban, la instalación de dictaduras sangrientas en forma sucesiva, persistente y feroz.27

26Trad. nossa: O fazer poético de Josefina Plá é constante decantação da palavra. Este caráter inscreveria sua lírica na ambiguidade chamada “poesia culta”, mas tal rotulação não implica que não atenda ao popular. Em seus versos latem profundas e universais questões humanas, para além das divisões e definições com que se intente catalogar a expressão poética. A amplitude da bagagem cultural da poetisa não lhe permite esquecer certos trilhos que, inexoravelmente, a conduzem a uma forma e dizer elaborados. 27 Trad. nossa: América Latina continua sendo a grande desconhecida. O “boom” mostrou, em um grau surpreendente, a interioridade polifacéfica desse grande conglomerado humano e geográfico; os acontecimentos sociopolíticos foram recriados literariamente: as lutas intestinas, as esperanças democráticas e ditaduras sangrentas em forma sucessiva, persistente e feroz.

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Assim, podemos notar em que meio Josefina publica seus primeiros textos

narrativos e onde se reafirma enquanto escritora hispano-paraguaia, um momento

chave de invenção da América Latina interiorizada, das raízes deste local ainda

desconhecido. Tanto técnica quanto tematicamente, Josefina Plá consegue abarcar,

em sua produção intelectual da época, fenômenos sociais e culturais que se

perpetuam.

Se a década de 1950 foi para Josefina Plá a década de início de seu

reconhecimento enquanto artista hispano-paraguaia, a década de 1970 é, pelo que

podemos perceber, o período em que este reconhecimento intelectual se concretiza

em forma de prêmios e distinções e, marcadamente é também a década em que

Josefina volta a realizar, apesar de pequenas, mostras de cerâmicas. Em 1973, a

Galería Artesanos realiza uma exposição de suas peças de cerâmica em

homenagem ao “50 años de creación y pensamiento” (MATEO DEL PINO, 1994, p.

79), e, então, nessa época também volta a trabalhar com cerâmica, desta vez com

motivos Payaguá, repensando novamente o espírito formador do Paraguai.

Josefina Plá possui, ainda, uma variada produção intelectual sobre artes

plásticas. São diversos ensaios que serão publicados a partir dos anos de 1970, tais

como: El templo de Yaguarón, una joya barroca en Paraguay (1970), Historia y

catalogo del Museo de Bellas Artes (1970), Treinta y tres nombres em las artes

plásticas paraguayas (1973), Las imágenes peregrinas (las migajas de una herencia)

(1975), El barroco hispano-guaraní (1975), e, em 1977, publica com um texto

entusiasta e até certo ponto “pessoal”, poderíamos dizer, El espíritu del fuego:

biografia de Julián de la Herrería.

Junto a todo o labor intelectual, trabalhou como professora de escolas de teatro

e nunca deixou de realizar palestras e conferências. Voltamos a comentar que

Josefina Plá sempre conciliou suas atividades com a atividade criadora de literatura,

tanto é que nesses mesmos anos estréiam algumas peças escritas por ela, como El

empleo (1971), por exemplo, e publica as peças Hermano Francisco (1976) e Fiesta

en el río (1977), e o livro de poemas Luz Negra (1975).

Josefina Plá ainda produz, vale ressaltar, nessa mesma época, uma

empenhada escritura ensaística, centrada, conforme Mateo del Pino (1994), no

âmbito histórico-cultural do Paraguai, que a crítica ressalta: Hermano negro: la

esclavitud en el Paraguay (1972), Literatura paraguaya del siglo XX (1972),

Bilinguismo y tercera lengua en el Paraguay (1975), juntamente com Bartolomeu

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Meliá, Obras y aportes femeninos en la literatura nacional (1976) e The british in

Paraguay: 1850/1870 (1977).

Dentre a produção literária da década de 1980, podemos notar o entusiasmo

da artista em relação ao exercício da prosa e da poesia. Nesses anos são editados

os livros de contos El espejo y el canasto (1981), La pierna de Severina (1983), La

muralla robada (1989) e Maravillas de unas villas (1988), este último sendo uma

coletânea de contos infantis, para além seu único romance Alguien muere en San

Onofre de Cuaramí (1984), escrito em co-autoria com Ángel Pérez Pardella. No

âmbito da poesía, publica Follaje del tiempo (1981), Tiempo y tiniebla (1981),

Cambiar sueños por sombras (1984), La nave del olvido (1985), Los treinta mil

ausentes: elegía a los caídos del Chaco (1985) e La llama y la arena (1987).

Todavia, como já mencionado, Josefina não desliga momentos de criação

literária dos de criação crítica. Dessa última, durante a década de 1980,

encontramos também grande afinco em relação à crítica cultural paraguaia com

títulos como: Ñanduti: encrucijada de dos mundos (1983), texto no qual Plá discorre

sobre a arte do ñanduti, um renda que, assim como a própria Josefina Plá, não tem

sua origem no Paraguai, mas que passa a fazer parte da cultura deste local sendo

reconhecido enquanto símbolo do país; Arte actual en el Paraguay (1983), o qual

escreve em conjunto com Olga Blinder e Ticio Escobar; La cultura paraguaya y el

libro (1983); a versão hispânica de Los britânicos en el Paraguay: 1850/1870 (1984),

publicado anteriormente em inglês, também publica Españoles en la cultura del

Paraguay (1985); Apuntes para uma aproximación a la imaginería paraguaya (1985)

entre outros títulos de caráter literário, artístico e histórico. Também nessa mesma

década, publica diversos artigos sobre o feminino e a situação da mulher, pelos

quais foi considerada uma espécie de “ativista”.

La enorme tarea que Josefina Plá ha desarrollado en el ámbito de la cultura paraguaya ha llevado a la crítica a considerarla una figura señera, sin cuya presencia no podría entenderse el panorama intelectual de este país. Por este motivo, el Gobierno paraguayo le asignó, en 1990, una pensión vitalicia y el Centro de Artes Visuales inauguró una Sala con su nombre. De igual forma, recibió el Premio de la Sociedad Internacional de Juristas por su trabajo en defensa de los Derechos Humanos.28 (MATEO DEL PINO, 2011, p.77)

28 Trad. nossa: A enorme tarefa que Josefina Plá desenvolvou no âmbito da cultura paraguaia levou a crítica a considerar-la uma figura “señera”, sem cuja presença não poderia entender o panorama intelectual deste país. Por este motivo o Governo paraguaio lhe concedeu, em 1990, uma pensão

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Durante sua última década de vida, Josefina Plá, não deixa de criar tanto

literatura quanto crítica. No dia 11 de janeiro de 1999, morre Josefina Plá. De acordo

com Miguel Ángel Fernández, Josefina “Nunca quis renunciar a sua nacionalidade

espanhola, mas sua obra inteira é testemunho de seu afinco no Paraguai e em seu

universo imaginário se opõem, conjugam, e fundem os signos culturais de Espanha

e América com o esplendor das grandes criações.” (FERNÁNDEZ, 2012, p.7)

Assim, para Bordoli Dolci (1984), a árdua tarefa que Josefina Plá empreendeu

em sua vida obteve resultados fascinantes, resultados estes perpetuados depois de

sua morte e vivos em suas obras e ensinamentos. Para o crítico, por vezes, nos

colocamos arredios frente ao outro, ao estrangeiro, de forma até mesmo agressiva e

tudo isso se dá pelo simples fato de sermos sempre tão devotos do nosso local que

não permitimos a visão de fora. Sobre a “conquista” do coração da América, feita por

Plá, Bordoli Dolci (1984) ainda comenta que foi um trabalho difícil, pois muitos

relutaram e qualificaram inadequada a participação de alguém de fora, de uma

estrangeira no fazer cultural nacional paraguaio, porque, para muitos, seu

sentimento de nacionalidade paraguaia era confuso.

Josefina Plá abriu caminho por meio das diversas dificuldades enfrentadas

para o desenvolvimento literatura, artístico e cultural do país e deixou raízes nesta

sociedade, com uma carta de cidadania sem qualquer valor legal, mas com, talvez,

maior valor cultural, valor que se equipara, não relutamos em dizer, aos grandes

nomes da literatura paraguaia e, para além, da literatura latino-americana. Em uma

constante busca por resgatar sua pátria por adoção, a pátria que lhe foi apresentada

por Julián, do esquecimento em que se encontrava, desenterrando as origens

autênticas da cultura paraguaia em sua mais preciosa pérola. Se, no que diz

respeito de modernidade, há algo de genuíno nem toda a literatura paraguaia é a

literatura de Josefina Plá, que busca de maneira peculiar um diálogo único com a

modernidade.

vitalícia e o Centro de Artes Visuales inaugurou uma sala com seu nome. De igual forma, recebeu o Prêmio de la Sociedad Internacional de Juristas por seu trabalho em defesa dos Direitos Humanos.

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CAPÍTULO 2

FACES DA MODERNIDADE

Busca tú las leyes de la masa

en las galaxias y los quasar.

Yo busco la ley del aroma

en la rosa,

y ley de la curva

en la poma.

(Josefina Plá)

Em Os Filhos do Barro (2013), Octavio Paz relete sobre os pensamentos de

diferentes culturas em diversas linhas de tempo para ponderar que apenas na

modernidade a mudança foi vista como positiva, todavia, ela sempre aconteceu. O

modelo moderno, de Paz, não busca a eternidade, pois esta é uma maneira de

negação da mudança, a perfeição moderna seria alcançada por meio da História na

qual a mudança é o que abre as portas para o futuro. Mudar, modernizar torna-se,

portanto, necessário. Critica-se a tradição para que assim se avance. Desse modo, a

época moderna critica a tradição, contudo, de maneira paradoxal, pois esta mesma

época que foi de ruptura está fadada a tornar-se a nova tradição. Daí a ambiguidade

que perdura sempre na modernidade

O conceito de modernidade não está definido em apenas uma das obras de

Octavio Paz, mas diluído em vários de seus textos, a partir O arco e a líra em diante.

Assim, dialogando com outros escritos, como os de Baudelaire, por exemplo,

Octavio Paz pensa a modernidade como uma pretensão que concentra o passado e

o futuro. Nas palavras de Aline Maria de Carvalho Pogotto (2010), um convergir dos

tempos, um emaranhado no qual o passado dá formas ao futuro para que assim

possa começar o presente, um presente belo, que se configura enquanto “retorno às

origens, cuja reconciliação com a antiguidade objetivou uma melhor recepção do

novo; um momento de genuína liberdade, no qual o homem reinventa-se por

intermédio daquilo que lhe é consubstancial, a crítica.” (POGOTTO, 2010, p.137)

Logo, por modernidade, Octavio Paz, entende a convergência dos tempos,

passado, presente e futuro, pois o que impulsiona a mudança, a novidade, é a

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crítica, concebendo, assim, um presente único em cada época e lugar. De tal modo,

a modernidade se caracterizaria por ser múltipla, heterogênea.

Buscaremos neste capítulo nos aproximar das mais importantes concepções

de modernidade no universo da crítica ensaística e literária, para que possamos nos

voltar mais especificamente à América Latina e seus meandros, pois, voltando a

Octavio Paz, em Ruptura y convergencia, se nossa modernidade é incompleta ou

um híbrido histórico, que somente no primeiro tercio do século XX volta seus olhos

para as novas formas vindas da América, esta revelada à Europa já desde o século

XVI, é desta modernidade própria da América Latina que nos interessa ao ler os

ensaios de Josefina Plá, o voltar dos olhos da artista para seu próprio local, para sua

América paraguaia.

2.1 – Modernidade em um contexto internacional

Buscando nos acercar e nos acertar em meio a tantos conceitos existentes

sobre a modernidade, encontramos em Baudelaire nosso primeiro aporte, haja vista

que o próprio Baudelaire cunha o vocábulo modernité, que instaura o uso do termo

na estrutura da composição poética. A modernidade de Baudelaire se caracteriza

por uma relação dialética entre razão e paixão na construção poética, o que significa

que tal modernidade trabalha com os extremos humanos, razão e paixão.

De acordo com José Joaquín Brunner, em Términos Críticos de la Sociologia

Cultural (2002), de Carlos Altamirano, livro no qual se definem vários termos

sociológicos e culturais, o vocábulo Modernidade é um termo relativamente novo, no

que diz respeito aos registros oficiais, nas primeiras enciclopédias do século XVIII

nem ao menos constava. Todavia, com o passar dos séculos, desde estas primeiras

enciclopédias até o presente momento, os interesses mudaram, com o advento da

internet encontram-se em milhares de textos acadêmicos ou não, cujo termo

modernidade está presente. No entanto, não há qualquer descrição que dê conta da

multiplicidade de dimensões que a modernidade possui de maneira única.

Modernidades são sempre diferentes. Toda vez que se fala no termo leva-se em

conta um todo que o cunhou; toda a sociedade e o contexto e época desta; o

homem de determinado lugar e época, nas palavras de Brunner,' “La dificultad deriva

del hecho que la modernidad necesita ser analizada, simultáneamente, como época,

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estructura institucional, experiencia vital y discurso.”29 (BRUNNER, 2001, p.243).

Logo, percebemos que não há como abordar a modernidade sem levar em conta

tudo o que a rodeia, ou seja, investigar a modernidade é indagar a cultura, com

todos os seus aspectos, em um determinado tempo e espaço, confundindo-se ao

seu criador.

A modernidade é, podemos assim dizer, como o próprio ser humano, um ser

contraditório. Há um arredondamento em nível estrutural e semântico, o que é forma

estética do que é sentido. No entanto, todo este embate, visto sempre sob o aspecto

humano, torna-se mais palpável se pensarmos na contradição e/ou oposição de

ideias que giram em torno de todo sentido da vida humana, por exemplo, qual a

utilidade do bem sem o mal? O que é a paz se não há violência? O homem e tudo o

que rege sua vida em meio à sua sociedade necessita de essências harmônicas

opostas. Baudelaire, ao se valer da harmonização dos contraditórios no fazer

poético, aproxima a arte, no caso literária, mas que se pensarmos em arte em geral

como parte do homem não restringimos somente à literatura, à vida, mostrando que

a ficção é extremamente próxima da realidade empírica. A modernidade é, para

Baudelaire, uma representação dos conflitos do homem em um século XIX marcado

pelo desenvolvimento dos ambientes citadinos.

Em O pintor da vida moderna, Baudelaire demonstra claramente seu conceito

de modernidade quando afirma que o homem que se especializa em uma área, mas

o que se interessa e aprecia os assuntos do mundo, como um todo, é este o

verdadeiro artista, e somente este artista pode trabalhar com a modernidade, pois,

para Baudelaire, modernidade trata de “tirar da moda o que esta pode conter de

poético no histórico, de extrair o eterno do transitório [...] A modernidade é o

transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o

eterno e o imutável" (BAUDELAIRE, 1996, p.24)

Se na contemporaneidade vemos como plausível e concordamos com os

conceitos de modernidade de Baudelaire, o mesmo não ocorre em sua

contemporaneidade, tendo até mesmo alguns poemas proibidos. Duas instâncias: a

da teoria e da prática literária. Baudelaire, moderno por excelência, uniu o clássico

ao moderno, usou da dualidade humana em seus textos, denunciou os contrastes da

29 Trad. Nossa: A dificuldade deriva do fato de que a modernidade necessita ser analisada simultaneamente, como época, estrutura institucional, experiência vital e discurso.

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vida citadina, pois para ele modernidade e conflito são noções que não podem ser

separadas, porque todas as parcelas trabalhadas por ele faziam, e ainda fazem

parte do homem. Para que o homem consiga expressar a transitoriedade presente

na modernidade por meio da arte, Baudelaire afirma que é de suma importância a

imaginação, já que é ela quem cria a arte, que é condicionada a ser sempre criação,

nunca cópia do real empírico.

A modernidade baudelairiana é marcada pela ambiguidade, marcada pelo

específico de cada época; a modernidade é transitória. No entanto, toda existência

humana é marcada por esta mesma transitoriedade, todas as etapas da vida

humana, portanto são transitórias, o que nos resta é compreender qual a

especificidade da transitoriedade dessa época moderna. O próprio Baudelaire afirma

que, para tal, o artista deve perceber com agudeza sua própria época, captar um

todo que o cerca para que esta fase de transição pela qual passa não se apague e

desapareça com o tempo. Podemos pensar, portanto, na modernidade com grande

relação com o tempo.

O passado é interessante não somente pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem constituía o presente, mas igualmente como passado, por seu valor histórico. O mesmo ocorre com o presente. O prazer que obtemos com a representação do presente se deve não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade especial de presente. (BAUDELAIRE, 1996, p. 8)

Baudelaire, dessa maneira, expõe uma oposição entre passado e

modernidade, mas não por valores que qualifiquem ou desqualifiquem um ou outro,

e sim para afirmar o presente em correlação ao passado, pois uma obra moderna

não extingue uma obra de arte do passado, mas, de certa forma, a abandona, para

que possa se sedimentar sobre um forte terreno. Baudelaire propõe, ainda, a

modernidade não limitada a um tempo cronológico com data para começar e

terminar, mas sim como a maneira com que o artista, seja ele usando qual estética

foi lida com seu próprio presente, sem expurgar seu passado.

Houve uma modernidade para cada pintor antigo: a maior parte dos belos retratos que nos provêm das épocas passadas está revestida de costumes da própria época. São perfeitamente harmoniosos; assim, a indumentária, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada época tem seu porte, seu olhar e seu sorriso) formam um todo de completa vitalidade. Não temos o direito de desprezar ou de prescindir desse elemento transitório, fugidio, essas metamorfoses são tão freqüentes. Suprimindo-os, caímos forçosamente no vazio de uma beleza abstrata e indefinível, como a da

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única mulher antes do primeiro pecado. Se à vestimenta da época, que se impõe necessariamente, substituirmos uma outra, cometemos um contra-senso só desculpável no caso de uma mascarada ditada pela moda. Assim, as deusas, as ninfas e as sultanas do século XVIII são retratos moralmente verossímeis. (BAUDELAIRE, 1996, p. 24-25)

Apesar de a última afirmação parecer estranha e fantasiosa, “ora, como deusas

e ninfas pode ser verossímeis?”, devemos perceber que são verossímeis a época e

lugar em que foram criadas. Partindo desse princípio de relação entre passado e

presente proposto por Baudelaire percebemos uma afinidade desta mesma estrutura

com a ligeireza dos fenômenos que ocorrem ao ser humano, confirmando sua

ligação com o tempo, pois o que é moderno tornar-se-á obsoleto, ultrapassado,

antigo, cada vez mais rápido. Todavia, reafirmando Baudelaire, as relações com o

passado nunca deixarão de existir, pois sempre há de se ter algo para negar, algo

para servir de base ao novo.

No entanto, se pensarmos na leitura que Walter Benjamin (2015) faz sobre a

modernidade de Baudelaire em uma série de ensaios, uma leitura inacabada devido

a sua prematura morte, este não liga a modernidade baudelairiana apenas ao tempo

que passa rapidamente, à esfera do antigo, do obsoleto. Benjamin dá privilégios e

atenção ao próprio artista Baudelaire, pela inserção que ele faz do próprio conceito

de poética da modernidade em sua obra artística. Benjamim toma As flores do mal

como referência para compreender a modernidade pensada por Baudelaire, seu

interesse por tal tema tem relação com a (re)escritura da história pela perspectiva

dos vencidos.

Para Benjamin, a arte contemporânea não tem mais a função de suavizar e sim

de apontar os sujeitos em estado de alienação dentro da sociedade, e é justamente

nos escritos poéticos de As flores do mal, de Baudelaire que ele encontra a

representação deste declínio, que de acordo com Benjamin, o poeta escreve para

leitores de seu tempo que já não conseguem mais apreciar, na devida maneira, os

grandes clássicos da poesia lírica. Benjamin também identifica em Baudelaire a

figura do herói moderno que assume em suas obras a modernidade para realizar-se

em seu tempo. Assim, identifica o cerne da modernidade nos acontecimentos do

cotidiano que se realizam em contemplação estética.

De acordo com Marta D’Angelo,

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Na modernidade, quando a significação de cada coisa passa a ser fixada pelo preço, a poesia de Baudelaire é fundamental pela apropriação que faz dos elementos dessa cultura para revelar a dimensão do inferno instalado em seu interior. A subversão do sentido das palavras em As flores do mal é, segundo Benjamin, uma forma de contraposição à reativação do mito empreendida pelo capitalismo. A desarticulação das relações espaçotemporais, intrínseca à modernidade, encontra na lírica de Baudelaire uma forma de resistência. O tom aparentemente enigmático de suas alegorias está intimamente ligado à história, e é exatamente por não transcender a história que sua poesia contém enigmas e não mistérios. (D’ANGELO, 2006, p.237)

Já para o escritor e crítico estadunidense, do século XX, Marshall Berman, o

conceito de modernidade, trabalhado ao longo de Tudo que é sólido desmancha no

ar: a aventura da modernidade (1999), publicado em 1982, estaria ligado ao

conjunto de experiências compartilhadas por seres humanos em seu presente,

seguindo a mesma linha de Baudelaire. Berman também concebe o conceito de

modernização, discutido também por Nestor García Canclini em Culturas híbridas

(2013), definido pelos processos e progressos sociais ocorridos especialmente no

século XX, como descobertas científicas, industrialização, explosão demográfica etc.

Berman divide a modernidade em três fases: na primeira fase (séc. XVI – 1790)

a modernidade começava a ser experimentada pelo homem, que ainda não sabia

como esta se fazia e/ou quais seus efeitos sobre a vida cotidiana; na segunda fase

(1790 – séc. XIX) o homem toma consciência de estar em um momento de transição

histórica; na terceira fase (séc. XX) a modernização atinge seu ápice em todo o

mundo, no entanto perde cada vez mais contato com sua própria modernidade. No

século XIX, Berman cita Nietzsche e Marx como as duas figuras que melhor

relataram a modernidade de seu século. Para Marx, a modernidade se dá de forma

contraditória, pois ao mesmo tempo em que o homem alcança uma grande evolução

em todos os setores da vida, ele enfrenta vários problemas gerados por essa

evolução, problemas que se equiparam em tamanho com a própria evolução

humana. Desenvolvimento e miséria estariam, para Berman, em sua leitura da

modernidade de Marx, como uma marca da modernidade, no século XIX. Portanto,

essa seria um sinônimo de contradição, para Marx, tal contradição só seria superada

quando homens gerados pela modernidade, ou seja, operários, trabalhadores em

geral e toda classe subalternizada, governassem a sociedade.

Correndo na mesma esteira de Marx, o pensamento de Nietzsche, aludido por

Berman (1999), vê a sociedade moderna também como um reduto de contradições.

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Assim, o aumento do número de possibilidades que a modernidade traz para a vida

humana prejudica a especialização do homem em qualquer área de sua vida. O

homem moderno pensado por Nietzsche e Marx pode fazer o que quiser, no entanto,

não possui nada para que possa fazer algo.

Berman (1999) defende que o trabalho artístico na modernidade do século XX

desenvolveu-se em grande quantidade e também em grande qualidade. Para ele,

não há qualquer período da história que se equipare em brilhantismo artístico com a

primeira metade do século XX. No entanto, o próprio Marshall Berman afirma que

perdemos a capacidade, no início de século XX, de conectar cultura e vida em nosso

cotidiano. No século XIX, escritores e artistas viviam as contradições do não saber

muito sobre a modernidade; já no século XX houve uma maior divisão e uma menor

contradição em relação ao pensar a modernidade. Como exemplo dessa divisão e

“certeza” de não contradição, temos os futuristas do início do século XX que tinham

aversão a todo tipo de tradição, e em outro extremo têm-se intelectuais do século XX

que foram contra a modernização ao modelo dos artistas futurista que rechaça a

tradição.

Max Weber diz, conforme Berman, que o homem está condicionado à vida

moderna; essa modernidade seria como um cárcere para o homem. A “homem

massa”, este homem moderno perdeu a capacidade de se autogovernar, ele é

levado ao governo, no sentido de direcionamento de pensamento ideológico e

comportamental, que a sociedade ou o estado lhe impõe. Portanto, o modernismo,

em suas raízes modernas, especialmente no século XIX, repleto de contradições e

perguntas do homem a si mesmo poderia ajudar, e muito, a compreensão da

modernidade do século XX, na medida em que se pensa em ser humano pensa-se

em um ser contraditório, repleto de incertezas. Podemos concluir que a modernidade

pode ser vista como uma profunda aproximação do homem consigo mesmo. O

homem tido como um ser em constante contrariedade desde sua criação.

Quando pensamos nas estruturas institucionais que legitimam a modernidade

não podemos negar, de acordo com Brunner (2002), que uma sociedade que se

organiza burocraticamente com capitais e mercados, normas e associações

democráticas, é uma estrutura moderna de sociedade, no entanto o que dificulta tal

sentido são questionamentos ligados à explicação, em tal contexto, do que é

modernidade, pois há de se duvidar que somente esses compostos expliquem o que

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é modernidade, ou ainda como tais componentes se definem a si próprios dentro de

uma sociedade e de outras, e de outras regiões.

Definir o início ou o fim da modernidade torna-se algo não palpável, instável e

perdido no tempo e no espaço; Reforma protestante; Iluminismo; Revolução

Francesa; Revolução Industrial; Modernismo Estético. Todos esses acontecimentos

cada qual em seu tempo, em seu espaço, configurou-se d’alguma maneira como

uma modernidade específica. Um ponto de arranque para algo novo, que tinha

“prazo de validade” e que viria a se tornar algum dia a tradição que seria substituída

por uma nova modernidade. Ainda para Brunner, a narrativa padrão coloca que a

origem da modernidade se situa no século XVII, justamente pelo surgimento de uma

nova maneira de pensar a natureza e a sociedade. Ou seja, por conta de uma

modernização da própria sociedade no que diz respeito à ciência, engenharia e

teoria política. A modernidade nasce da própria mudança da sociedade como um

todo, da maneira de pensar, de agir, das ideias, dos discursos, das instituições, ou

seja, do pensamento da sociedade como um todo, e não apenas de um determinado

grupo que “cunhou” tais pensamentos.

Para Nicolás Casullo, no ensaio “La modernidad como autoreflexión”, presente

na obra Itinerarios de la modernidade, a modernidade é a crítica da crítica, crítica do

pensamento dado, que conforme a sociedade se moderniza, progride, aspira o seu

próprio ressurgimento, com uma nova faceta. Essa aspiração será fundamental na

América quando os letrados das jovens nações tiveram que pensar na organização

dos estados e das culturas modernas e tomaram como modelo a Europa ou se

compararam com os Estados Unidos. A queixa aparecia porque a realidade latino-

americana distava na europeia ou a norte-americana. Todo o conflito será o de

conciliar a modernidade com as tradições e a história particular da América.

2.2 - Modernidade latino-americana

Quando pensamos em América Latina, estranhamente colocamos no mesmo

“baú”, sem nos darmos conta, na maioria das vezes, cerca de dezenove países,

visto que os brasileiros, se pensarmos de maneira geral, nunca ou quase nunca se

admitem ou veem enquanto latino-americanos. Logo, para a maioria das pessoas,

latino-americanos são povos de origem ibérica cujo idioma é o espanhol. No entanto,

em se tratando de estudiosos do assunto, sabe-se que o Brasil também faz parte do

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subcontinente chamado América Latina. Contudo, nesta pesquisa, nos ateremos,

com mais afinco, à parte hispânica deste “bloco”, ou seja, à região cultural da

América Espanhola, da Hispano-América, o subcontinente de fala hispânica, mas no

qual coabitam as línguas e culturas quechua, náhuatl, maya, guaraní, aymara e

tantas outras em menor proporção. O nome Hispano-América faz, de alguma forma,

uma alusão ao antigo território da Hispania, uma das províncias do Império Romano

cujo território se estendia por toda a península Ibérica, incluindo Portugal. Todavia, o

uso que se dá ao termo na atualidade alude especialmente à Espanha, pois sua

própria pronuncia já a diferencia, já a deixa exclusiva ao âmbito espanhol

Espanha e Hispano-América, apesar de adotarem como língua oficial o

espanhol, salvo Paraguai, Bolívia e Peru, que adotam como oficiais também línguas

indígenas, nunca terão a mesma língua. De acordo com Bareiro Saguier (1972), que

juntamente com César Fernández Moreno e outros estudiosos desenvolvem uma

ideia diretriz de que não há consistência em fazer um estudo das culturas da

América Latina, mas em mostrar como a América Latina se manifestava, e podemos

dizer que ainda se manifesta, “em” e “através” de suas expressões culturais, das

experiências da própria língua, da cultura, do uso, da mestiçagem, da

(re)significação, ou seja, de um todo que permita dar continuidade. Assim, o que nos

interessa, no momento, são essas experiências que transformaram a América

Hispânica não em uma extensão de Espanha além-mar, mas em um lugar repleto de

experiências e percepções únicas do que o cerca e dele mesmo, pois sem ver a si

não há como ver o outro.

O que se veio a realizar na América, de acordo com Arturo Uslar Pietri em

Nuevo Mundo, Mundo Nuevo, não foi a permanência do mundo pré-colombiano, o

mundo indígena, tampouco foi um prolongamento da Europa, e aqui podemos

estender este pensamento não somente para a América Hispânica, mas para a

América como um todo. O que ocorreu foi diferente, foi mestiço desde o começo, foi

novo desde o começo: a experiência. Experiência por vezes mestiças, outras

creoulas, outras híbrida e em alguns casos diversa. Esse experimentar, sinônimo de

conhecer, sentir, saborear, provar, que desde seu início é trama, entrecruzamento

de duas concepções de mundo, de duas leituras dos alrededores: uma hispânica

sentida e saboreada por meio de várias invasões e retomadas que moldaram seus

olhos e culturas; outra local, da terra, indígena, transmitida pela oralidade, pela

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tradição que passa por gerações. Tramadas, essas duas culturas criam um tecido

distinto, novo.

A cultura racional do Renascimento, trazida pelos braços espanhóis, entra em

imediato choque com o universo mágico dos índios americanos. Há neste novo

mundo uma também nova visão do mundo, valores distintos, interpretações

diferenciadas, gostos, cheiros, formas, sabores e são nestes emaranhados culturais

distintos que se fará o que a modernidade conhece como América Latina. O

processo identitário latino-americano passou, dentre tantas coisas, pela adoção do

pictórico, do linguajar, da cultura popular destes povos que já habitavam o território

americano. Houve de início um rechaço às culturas locais, todavia, com o passar do

tempo houve também um reconhecimento desta enquanto parte essencial para a

construção da trama cultural latino-americana.

Cultura, para Terry Eagleton, em A ideia de cultura (2005), é uma das palavras,

controvertida a noção ou conceito de cultura, mais difíceis e complexas de se

determinar no linguajar humano. Na obra, o autor ainda a define como a mais nobre

das atividades humanas, dando definições que variam do cultivo alimentar para

manutenção da vida ao cultivo do espírito. A palavra, existente nas mais diversas

línguas, está associada aos mais diversos conceitos, das mais variadas “linhas” de

pensamento, o que era culto para o europeu do Renascimento não tinha sentido

para o indígena americano, assim como o contrário também ocorre. . Logo, há de se

percebera América Latina como um lugar múltiple, de seu nascimento à sua

modernidade. Um local onde convivem o “culto” e o “bárbaro” inseparavelmente

tramados.

Os países latino-americanos são atualmente resultado da sedimentação, da justaposição e entrecruzamento das tradições indígenas (sobretudo nas áreas mesoamericana e andina), do hispanismo colonial católico e das ações políticas educativas e comunicacionais modernas. Apesar das tentativas de dar à cultura de elite um perfil moderno, encarcerando o indígena e o colonial em setores populares, uma mestiçagem interclassista gerou formações híbridas em todos os estratos sociais. Os impulsos secularizadores e renovadores da modernidade foram mais eficazes nos grupos “cultos”, mas certas elites preservam seu enraizamento nas tradições hispano-católicas e, em zonas agrárias, também em tradições indígenas, como recursos para justificar privilégios da ordem antiga desafiados pela expansão da cultura massiva. (GARCÍA CANCLINI, 2013, p.73-74)

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O moderno latino-americano, portanto, ligado ao ser “culto” não se liga a tão

somente à modernização comunicacional, mecânica, ao moderno tecnológico, e sim

à incorporação destas facetas às matrizes tradicionais sociais locais, àquilo que é

“da terra”. Ainda de acordo com García Canclini, na América Latina, quando se fala

em modernidade, há de se compreender que o processo pelo qual ela passou é

completamente distinto do conhecido europeu: “tivemos um modernismo exuberante

com uma modernização deficiente.” (GARCÍA CANCLINI, 2013, p.67). O crítico

afirma que nossa colonização se deu através das nações mais atrasadas de toda

Europa, a saber Portugal e Espanha na grande maioria do território, e ainda

sofremos as consequências da Contra-Reforma e de diversas outras ações

antimodernas durante pelo menos três séculos até que começássemos a nos tornar

independentes e a nos autopromover e atualizar com o que o resto do mundo

pensava. Todavia, afirma García Canclini, a modernização da América Latina nunca

foi uma constante duradoura, houve, nas palavras do crítico, “ondas de

modernização” (GARCÍA CANCLINI, 2013, p.67). Metáfora interessante e visual,

pois o processo para alcançar o moderno na América Latina, assim como as ondas,

sempre nasceu e morreu para renascer e tornar a morrer de novo.

O que se entende por modernidade no âmbito latino-americano, e mais

precisamente hispano-americano é, pois, esta parcela da América Latina que nos

interessa investigar nesta pesquisa, que sempre se liga à questão identitária do ser

hispano-americano, do reconhecimento dos caracteres que fazem dos habitantes da

América Espanhola únicos, singulares no mundo. Talvez possamos dizer que a

América Hispânica já nasceu moderna, pois desde seu nascimento faz parte de um

projeto de expansão fundamental para a conquista do moderno e impelida pela

modernização europeia e por suas necessidades de mudança.

A América Latina é um dos frutos das possibilidades técnicas criadas pelo

homem dos séculos XV e XVI, e que se (re)criou aos moldes da cor local,

transformando-se a partir de suas próprias raízes. De acordo com Bosi (1992) em

Dialética da Colonização, as estruturas que mantiveram as políticas antigas na

Europa seguiram guerras e conquistas, as tensões internas de tais políticas,

causadas por sucessivos conflitos, das formações sociais foram “resolvidas” fora de

seus espaços, funcionaram

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[...] enquanto desejo, busca e conquista de terras e povos colonizáveis (...) a colonização não pode ser tratada como uma simples corrente migratória: ela é a resolução de carência e conflitos da matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo civilizatório”.

(BOSI, 1992, p. 13)

Alfredo Bosi ainda afirma que na formação do Brasil, aqui entendido em suas

instituições, povo e cultura, e disso podemos de alguma forma fazer uma relação

com a América Latina como um todo, há uma forte sensação de repulsa ao processo

colonizador do país, aceito pelo viés da mestiçagem de etnias e da consagração

religiosa, social e política. As relações criadas por Bosi em seu texto conectam os

processos de industrialização e politização do Brasil, nos quais se revezam

conservadores e liberais, desde o início do processo de independência do país, em

que celebram, portanto, as conquistas dos dominadores e dos vencidos da mesma

maneira, processos estes que de alguma maneira também fazem parte da

constituição da América Latina.

Percebemos que as relações interculturais na América Latina fazem parte de

um conjunto que se interliga pelo contato europeu, desde a colonização até sua

modernidade. Uma América, desse modo e tomando as denominações de Édouard

Glissant, em Introdução a uma poética da diversidade e Poética da relação (2005),

que é diversa. O crítico congrega essa denominação a uma noção de “Relação”,

ressaltando o quão importante se faz considerar aquilo que converge no que forma a

cultura dos povos, tanto em sua maioria quanto em sua minoria, quando se trata de

algo global, pois o dominante considera como válido apenas seu discurso. O

convergir dessas culturas vem “impondo”, usando um termo dominador,

transformações significativas nas sociedades. Os povos latino-americanos, dessa

forma, se veem às voltas com o duplo, ou seja, com aquilo que os constitui, por um

lado o enraizamento das tradições para que sobreviva, por outro a “Relação

cultural”.

[...]. Nos dias atuais, os problemas deslocaram-se. O problema é o enraizamento das comunidades, porque estas, disseminadas pelo mundo, foram dominadas através do ato da colonização; mas trata-se também do problema da Relação. Percebemos isso em todos os campos: político, econômico, etc. [...]. Vemos muito bem que as relações existem, mas não percebemos a Relação, no que concerne à expressão cultural das comunidades. Entretanto a Relação está aí, ela existe. Quer eu queira, quer não; aceite ou não – há pessoas que aceitam e pessoas que não aceitam – sou determinado por um certo número de relações que ocorrem no mundo.

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Não se trata mais da relação política, econômica ou militar, mas há essa coisa que acontece, que me impregna, quer eu queira, quer não. (GLISSANT, 2005, p. 52)

Então, percebemos a noção de “relação” de Glissant ligada à noção de

totalidade, do único, do aberto, daquilo que não necessita ser, de forma alguma,

escondido. Logo, a Relação é uma trama que mescla todas as facetas que por

algum motivo foram relegadas a ambientes sombrios e silenciosos na comunidade,

aquilo que de alguma forma firmou-se como desregramento, tentativa de libertação

que, desta maneira, pode se mostrar como realmente o é. Uma noção que dá à

comunidade uma completude identitária.

Quando falamos de América Latina, mais precisamente de sociedade e cultura

latino-americanas em relação ao que se conhece como modernidade, ou seja, o

padrão europeu de modernidade, a modernidade baudelairiana que trabalha com a

ambiguidade, precisamos nos manter atentos e repensar o contexto de criação

desta América Latina, deste lugar distinto de tudo, para que possamos compreender

que diferentemente do moderno europeu, que floresceu, de acordo com García

Canclini (2013), sobre o sedimento forte dos padrões clássicos. Na América Latina,

não houve ou há qualquer padrão clássico, nossos “clássicos” acabam de se fazer.

Há uma falta de padrão clássico para que haja uma modernidade, aos moldes

europeus, no entanto, não seria esta falta de padrão uma modernidade própria

latino-americana? De uma latino-américa que já nasceu moderna, mesmo que este

não seja o moderno europeu?

La heteronimia que hace que América Latina sea el área andina, pero no lo sea al mismo tiempo absolutamente, sino que sea ella y al mismo tiempo otras áreas más. Que se exprese en la irreverencia cultural de Borges, propia del mundo sudatlántico, zona de inmigración, pero que no lo sea al mismo tiempo, y se diga a menudo que ella es la parte «europea» de América, soslayando que es uno de los modos de esta cultura de apropiarse creativamente, entre otros, de Europa. Que el Caribe se adscriba a una cultura latinoamericana, y se integre por otra parte a un conjunto de sesgo propiamente caribeño o a veces parcialmente metropolitano. Esta heteronimia hace que un indígena pemón de la selva amazónica poco tenga que ver con un descendiente de la inmigración italiana de Buenos Aires, pero que sin embargo estén articulados por patrones vinculantes, a veces rizomáticos, a veces en base a una matriz centralizada, pero perfilados en historias de diseño relacional.30 (PIZARRO, 2004, p.23-24)

30 Tradução de Irene Kallina e Liege Rinaldi: A heteronímia faz com que a América Latina seja a área andina, mas não apenas ela, mas outras áreas, simultaneamente. A heteronímia se expressa na

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É dessa relação heterogênea, aludida por Ana Pizarro em El Sur y los

tropicos, no qual a crítica, usando a noção de sistema literário de Antonio Candido,

questiona a situação da modernidade tardia na América Latina, relação do

descendente formador espanhol europeu com o indígena local, que é feita a obra

Josefina Plá, artista31 hispano-paraguaia, e assim o dizemos, pois Plá nasce em

Espanha, mas desenvolve toda sua obra literária em território paraguaio, com

assustadora percepção de seu povo, ou seja, de seu lugar, no qual escreve desde a

terceira até a última década do século XX. Para Ana Pizarro (2004), essa

heteronímia tem relação com o desconhecer entre as áreas que formam a América.

Dessa forma, o focar-se apenas em um dos diversos aspectos que constituem a

América Latina prejudica os demais, pois projeta este uno como padrão, como

superior aos demais, relegando-os ao desconhecimento e ao pouco interesse do

público em conhecê-los e ainda mais em respeitá-los. Um caso dessa natureza é o

que acontece com a cultura popular guarani no Paraguai, relegada ao status

secundário ou terciário frente à valorização e reconhecimento extremos somente,

cabe citar, de culturas Incas na América do Sul, suas expressões artísticas são algo

de “segunda categoria” que são, por algum motivo, inexistentes, diga-se de

passagem, feitas com “menos qualidade”, “inferiores”, em detrimento ao que das

ditas grandes civilizações são sempre “melhores”. Fazemos, talvez

inconscientemente, com nossas culturas o que no século XIX foi largamente feito

conosco em relação à Europa, tudo o que viria do velho continente era qualificado

como melhor.

Miguel Ángel Fernández crítico e poeta paraguaio, responsável pelas edições

mais recentes da obra de Josefina Plá, estabelece um percurso na obra de Plá que

abrange toda sua produção artística:

Sua obra de ceramista teve como principal objetivo a recuperação de elementos formais da arte americana pré-hispânica e popular, seguindo os

irreverência cultural de Borges, própria do mundo do Atlântico sul, zona de imigração, porém que não seja ao mesmo tempo, e que se diga com frequência que ela é parte “europeia” da América, deixando de lado que é um dos modos desta cultura, entre outros, de se apropriar criativamente da Europa. A heteronímia que faz com que o Caribe se inscreva numa cultura latino-americana e integre-se, por outro lado, a um conjunto de viés propriamente caribenho ou, às vezes, parcialmente metropolitano. Esta heteronímia que faz com que um indígena da selva amazônica tenha pouco a ver com um descendente da imigração italiana de Buenos Aires, mas que, no entanto, estejam articulados por padrões que se vinculam, às vezes enraizados, às vezes com base em uma matriz centralizada, porém apresentados em histórias que se relacionam. (PIZARRO, 2006, p.15) 31 Tomamos Josefina Plá por artista hispano-paraguaia não em referência somente as artes plásticas produzidas por Plá, mas também pelo status de arte literária que possui sua obra escrita.

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rastros sinalizados por Julián de la Herrería, mas com acento próprio desde seus inícios. No campo literário, sua poesia se constitui como um ato de expressão radical no qual se reúnem a autenticidade existencial e a plasmação estética. Também na narrativa e no teatro, expressou os problemas de suas circunstâncias com acentos críticos, e, às vezes, os configurou mediante uma linguagem simbólica de alta tensão espiritual. Por sua vez, seu trabalho de pesquisa enfocava com grande rigor historiográfico os fatos sociais e a produção cultural. Teve tempo, além do mais, de fazer crítica literária e de arte com agudeza e precisão conceitual. Recordemos que foi fundadora e presidiu durante vários anos a seção paraguaia da Associação Internacional de Críticos de Arte. (FERNÁNDEZ, 2012, p. 38-39).

As várias formas de expressão artísticas de Josefina Plá se permeiam em um

sistema sociocultural que abrange diversas parcelas do fazer artístico, num

amálgama selado por meio da linguagem. Percebemos, em toda a extensão de sua

obra, um forte apego às questões sociais e culturais, principalmente em relação à

cultura popular do Paraguai. Configurações que poderiam para a artista, vinda de

uma Europa que vivia a modernidade, se configurar como estranho, no entanto, não

é depreciado por Plá. Ocorre o contrário, não existe uma relação de superioridade

e/ou inferioridade entre as culturas europeias e locais, presentes na obra de Josefina

Plá, na obra elas funcionam de maneira natural, em Relação, para retomar Glissant.

Josefina Plá vê na cultura popular paraguaia um primitivismo que enriquece a

estética modernista.

No entanto, a absorção sociocultural por Josefina Plá desse outro estranho

que era a sociedade paraguaia não existe se levarmos em consideração o conceito

pensado por Édouard Glissant em sua Poética da Relação, pois, para ele, esse

outro não existe. Esse outro seria uma “forma” criada por uma elite centralizadora

ocidental para tratar tudo aquilo que fosse diverso, que fosse diferente, ao

estabelecido pelo “padrão” eurocêntrico e ocidental. Ainda de acordo com o

pensamento desenvolvido por Glissant, não há uma relação de diferença, uma

cultura melhor ou pior, uma cultura popular ou erudita que devam estar uma sob a

outra; existem apenas as diversas culturas, sejam elas populares ou eruditas, cada

qual com suas particularidades, e foi essa diversidade cultural que Josefina Plá

reconheceu e adotou como sua, pois se um artista cria sua arte do mundo em que

habita, como poderia Josefina Plá criar sua arte de outra maneira senão

relacionando-a com o Paraguai?

O trato refinado para com a cultura popular dentro da obra de Plá reflete-se no

uso de formas/fôrmas poéticas como o soneto, a precisão métrica, a disposição das

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estrofes, o uso de metáforas e de outras figuras de linguagem, a estruturação

narrativa, o tom poético dos ensaios que se mesclam às rimas e aos leves tons dos

cantos populares, das reminiscências da cultura indígena guaraní. Esse intercâmbio

não diminui o questionamento que Plá faz da sociedade paraguaia. A artista se vale

do que há de mais genuíno da terra onde habita para questionar este mesmo lugar.

Nesse sentido, não nos parece incongruente aplicar as proposições de tradição

e de modernidade de Goytisolo, escritor e crítico espanhol do século XX, à obra de

Josefina Plá:

[…] no son pues términos excluyentes ni antitéticos: mi aprendizaje y el de otros creadores abiertos a horizontes más amplios tanto en el tiempo como en el espacio, apunta más bien a la idea opuesta. En una época literariamente tan árida como la nuestra, cuando el noventa por ciento de la humanidad sigue sin tener acceso real a los libros y la gran mayoría de quienes podrían enriquecerse con ellos los desdeña a favor del último gadget técnico vegetando así en un voluntario analfabetismo, esta conexión soterrada con las obras más originales y audaces de otras culturas y tiempos permite al escritor, como a las plantas del desierto cuyas raíces saben abrirse paso en el entorno petrificado en el que las más superficiales se secan, calar en la zonas profundas en busca de la preciosa veta que lo alimenta.

¡Planta del desierto!

¿Hay acaso mejor definición del escritor hoy – ese raro individuo en vía de extinción en la esterilidad cultural y moral de un mundo paulatinamente vuelto de espalda al fulgor de la palabra – que esa especie vegetal que con paciencia y tenacidad conquista su derecho a la vida y nos admira con su escueta pincelada de dolor en un paisaje de arena, piedra, espejismos, muerte y asolación?32(1995, p.203-204)

Flor não do deserto, mas flor do Chaco, a obra de Josefina Plá encontra entre a

tradição e a modernidade um tom, um balanceamento, não podendo nos esquecer

de que, em se tratando de arte, há que se ter todo um rigor e cuidado estilístico que

caracteriza a obra de arte, seja ela literária ou plástica. Por outro lado, a obra de arte

32 Trad. nossa: […] não são, pois termos excludentes nem antitéticos: mina aprendizagem, e a de outros criadores aberto a horizontes mais amplos tanto no tempo como no espaço, aponta melhor à ideia oposta. Em uma época literariamente tão árida como a nossa, quando noventa por cento da humanidade segue sem ter acesso real aos livros e a grande maioria de quem poderia enriquecer-se com eles os desdenha a favor do último gadget técnico vegetando assim em um voluntário analfabetismo, está conexão soterrada com as obras mais originais e audazes de outras culturas e tempos permite ao escritor, como às plantas do deserto cujas raízes sabem abrir passagem no entorno petrificado no que as mais superficiais secam, calar nas zonas profundas em busca da preciosa veta que o alimenta. Planta do deserto! Há por acaso melhor definição do escritor hoje – esse raro indivíduo em via de extinção na esterilidade cultural e moral de um mundo paulatinamente volto de costas ao fulgor da palavra – que essa espécie de vegetal que com paciência e tenacidade conquista seu direito à vida e nos admira com sua sucinta pincelada de dor na paisagem de areia, pedra, espelhismos, morte e assolação?

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se nutre também do elemento popular para conseguir emergir singularmente, porém

não apenas dele. O processo que une o popular e o erudito em Josefina Plá resulta

na constituição de obras de arte emblemáticas pela manutenção da diversidade

cultural e pela presença da crítica social. Em suas obras há uma presença que se

apropria criativamente tanto de traços europeus da tradição artística quanto locais

da tradição popular.

Tais referências populares nas obras artísticas de Josefina Plá representam

uma corrente distinta do que já se entendeu por modernidade na América Latina,

quando rememoramos, por exemplo, o polêmico texto Facundo: civilización y

barbárie, de Domingos Faustino Sarmiento, publicado em 1845, no qual o crítico

apresenta o popular, tudo o que está ligado ao campo e/ou à vida indígena da

América Latina como um atraso que precisa ser superado com o desenvolvimento

de comunicações que dessem fim ao “isolamento” que a América, em especial

Buenos Aires, para a qual ele escreve, assim como mudanças nas atividades

econômicas, nos valores das populações que se aproximassem cada vez mais, em

todos os aspectos, da civilização europeia.

Para Sarmiento, modernidade significa superar o passado, e junto dele tudo o

que constituiu a terra donde estava falando, ou seja, todo o popular deveria ser

superado em nome de algo novo advindo da Europa. A América Latina não possuía,

para Sarmiento, qualquer indicio anterior de civilização que necessitasse ser

superado, como na Europa.

Rivadavia viene de Europa, se trae a la Europa; mas todavía desprecia a la Europa; Buenos Aires (y por supuesto, decían, la República Argentina) realizará lo que la Francia republicana no ha podido, lo que la aristocracia inglesa no quiere, lo que la Europa despotizada echa de menos. Esta no era una ilusión de Rivadavia; era el pensamiento general de la ciudad, era su espíritu, su tendencia.33 (SARMIENTO, 1952, p. 79).

Para Sarmiento, a modernidade, o progresso e o desenvolvimento de um povo

somente existiam pela urbanização. Logo, o avanço da “civilização” se confundia

com refinamento e elegância, o que se igualava com os padrões parisienses e

33 Trad. Nossa: Rivadavia vem da Europa, se traz à Europa; mas ainda deprecia a Europa; Buenos Aires (e por tanto, diziam, a República Argentina) realizará o que a França republicana não pôde, o que a aristocracia inglesa não quer, o que a Europa tiranizada faz ainda menos. Esta não era uma ilusão de Rivadavia; era o pensamento geral da cidade, era seu espírito, sua tendência.

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londrinos. E tudo o que havia de genuíno na América Latina deveria ser substituído,

jamais integrado, como afirmam os críticos posteriores.

Em outra vertente, mas não menos importante, quando pensamos a

modernidade da América Latina, temos as percepções de Beatriz Sarlo em seu

ensaio Modernidade periférica, lançado originalmente em 1988 e traduzido há

poucos anos no Brasil. O livro volta-se para o Modernismo na Argentina, tratando de

compreender as vivências dos intelectuais do começo do século XX em meio à

modernização de Buenos Aires. Diferentemente de outros críticos, Sarlo pensa a

modernidade a partir dos novos grandes centros. Trata-se de um trabalho no qual a

autora visa aos sentimentos, ideias e desejos da época, de “reconstruir aquelas

dimensões da experiência diante da mudança cujos rastros, muitas vezes cifrados,

enigmáticos ou contraditórios, aparecem como traços e lembranças nos textos de

uma cultura” (SARLO, 2010, p.26). Para Sarlo, a questão da “modernidade

periférica” se relaciona a diferentes culturas que são colocadas de alguma maneira

na periferia, e isto, para a crítica, significa uma série de conflitos e tensões

inevitáveis. Todavia, tal ideia depende de onde se fala, pois o que falamos muda de

acordo com o lugar onde nos encontramos.

A ideia que girou em torno do ensaio de Beatriz Sarlo veio a “corrigir” o

pensamento da cultura da América Latina, por meio da teoria da dependência

postulado até aquele momento por Fernando Henrique Cardoso e Vilfredo Pareto. O

pensamento de Modernidade periférica, com sua ideia de periferia ou “ideias fora do

lugar” como questiona Roberto Schwarz, lança um novo olhar sobre a América

Latina em que não faz o uso de hierarquias das quais dependem os objetos da

cultura. A ideia de Beatriz Sarlo sobre a modernidade periférica perpassa pela

construção social dos temas da cultura.

Assim, ao pensar a modernidade, seja ela onde for, a primeira coisa que

devemos ter em conta é algo que a sintetiza e pela qual devemos nos pautar quando

a formos refletir: a diversidade. Ainda que haja distância entre sintetizar e

diversidade, nos valemos desta palavra, pois é somente por meio dela, cujo

significado gira em torno de aquilo que é diverso, que não é semelhante, diferente,

desigual, que reúne aspectos, tipos, características distintas, e que vai abraçar de

bom grado as questões que se fizeram presentes na obra de Josefina Plá, assim

como em outros artistas na América Latina do século XX. Artistas que usam daquilo

que é marginalizado, tratando-o como diverso, porém de igual valor.

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Em um caminho inverso ao que é proposto por Sarmiento, a ainda

desconhecida Maria Josefina Plá Guerra-Galvani, posteriormente Josefina Plá, sai

de uma Europa moderna, permeada por ideias e ideais revolucionários, para ir viver

no país de origem de seu recém-esposo, o ceramista Andrés Campos Cervera,

conhecido sob o pseudônimo de Julian de la Herreria. Ela sai do centro – a Espanha

– para ingressar na margem – o Paraguai. Plá, então, traz o centro para a margem,

valendo-se desse lugar do mundo que a acolheu e que foi absorvido por ela, levando

o Paraguai, sua cultura e sua literatura ao aprimoramento da forma na conjunção

margem-centro. Plá se vale da rica cultura popular paraguaia para criar uma obra

singular, densa, culta e refinada, reapropriando-se do popular de modo a

desestabilizar o binarismo ao qual se refere Jesús Martin-Barbero:

A invocação do povo legitima o poder da burguesia na medida exata em que essa invocação articula sua exclusão da cultura. E é nesse movimento que se geram as categorias ‘do culto’ e ‘do popular’. Isto é, do popular como inculto, do popular designando, no momento de sua constituição em conceito, um modo especifico de relação com a totalidade do social: a da negação, a de uma identidade reflexa, a daquele que se constitui não pelo que é, mas pelo que lhe falta (2013, p. 35).

Proveniente de uma parcela privilegiada da sociedade paraguaia de sua época,

com acesso à cultura e educação, Josefina Plá integra e valoriza a cultura popular

paraguaia, reconhecendo nesta cultura algo que enriquece a estética do

modernismo. Ela não nega o elemento popular na formação da cultura paraguaia,

não exibindo o que possa faltar a essa expressão, porém valorizando o que ela traz

como essencial para a constituição dessa cultura. Assim, muitas vezes sua obra

toca o folclórico, aqui tomado pela ótica de Martín-Barbero.

Folklore capta antes de tudo um movimento de separação e coexistência entre dois ‘mundos’ culturais: o rural, configurado pela oralidade, as crenças e a arte ingênua, e o urbano, configurado pela escrita, a secularização e a arte refinada: quer dizer, nomeia a dimensão do tempo na cultura, a relação na ordem das práticas entre tradição e modernidade, sua oposição e às se mistura (2013, p. 38).

Essa proposição folclórica pode ser percebida nos diversos trabalhos artísticos

de Josefina Plá, tanto no que diz respeito à literatura – e nela podemos citar alguns

títulos que compõem a obra Cuentos completos, organizada por Miguel Ángel

Fernandez, editada em 1996, e na qual constam títulos como “Anedoctas del folklore

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Naciente” e subtítulos como “Muralla robada” e “Cuentos folklóricos y fantásticos”,

além de “Cuentos de la tierra e folclóricos” – quanto nas artes plásticas, nas quais é

possível perceber um forte apego à cultura popular nas gravuras:

Figura 1 – Sem título

Fonte: VALLEJOS, 1995, p.1

Josefina Plá emprega em suas obras a técnica da xilogravura, que consiste na

utilização da madeira como matriz, o que possibilita a reprodução da imagem

gravada na matriz sobre papel ou outro suporte adequado. É um processo muito

parecido àquele utilizado nos carimbos, assim como àquele usado no artesanato em

cerâmica e nos bordados do ñandutí34, sobre o qual, para além de exercer a técnica,

confeccionando bordados, também escreveu um ensaio intitulado Ñandutí:

34 Trad. para português: teia de aranha. É uma renda tecida sobre bastidores em círculos radiais, criando motivos geométricos ou zoomórficos, em fio branco ou cores vivas. De preferência são usados em detalhes para vestuário, ornamentos religiosos, chapéus, leques, todos os tipos de artigos ornamentais. É o símbolo da cidade de Itauguá, nos arredores de Assunção, e é considerada como a rainha de todo o artesanato da República do Paraguai. Segundo a lenda, o Ñandutí foi criado por uma mulher indígena, que havia se inspirado em uma teia de aranha da selva, daí seu nome.

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encrucijada de dos mundos, falando da técnica e de sua inserção na cultura do

Paraguai. Logo, podemos pensar em uma modernidade que integre tanto cultura

popular como cultura erudita.

A primeira coisa que pensamos para tratar dessa modernidade diversa na obra

de Josefina Plá não poderia ser mais diversa aos nossos olhos e ouvidos que a

palavra que intitula seu ensaio: ñanduti. Pouco se há de conhecimento sobre o

ñanduti no Brasil, todavia, em seu país, não de total origem, mas que, assim como a

artista que escreveu o ensaio, foi seu país de adoção e transformação, é

extremamente conhecido, a ponto de ser uma das características e dos símbolos do

país, quando se trata de cultura popular. No entanto, o que nem todos se recordam

é que o ñanduti, assim como Josefina Plá, não tem sua origem no Paraguai, são

ambos do mesmo local, as Ilhas Canárias, na Espanha, ambos indo fazer-se e

realizar-se com importância em terras paraguaias, cada um a seu momento, até que

ambos se encontram, tanto nas palavras do ensaio quanto nas telas a serem

tecidos, pois podemos ousar dizer que assim como Josefina Plá teceu o ñandutí, o

ñandutí ajudou a tecer Josefina Plá enquanto artista da terra paraguaia. O ñandutí

assim como Josefina Plá se construíram, tal como os vemos hoje, por meio da

absorção da cultura popular paraguaia.

Percebemos que pensar a modernidade, no contexto desse país central da

América do Sul, e mais propriamente no que diz respeito à obra de Josefina Plá

enquanto criação moderna, é pensar, assim como dito anteriormente na

heterogeneidade, esta que existe mesmo dentro do que se pensa como homogêneo.

Dessa forma, mesmo tomando nesta pesquisa apenas as obras ensaísticas de

Josefina Plá, podemos pensar, também, a criação de uma poética da modernidade

em sua obra como um todo que conecta todos os gêneros desenvolvidos pela

intelectual.

Como posto no capítulo 1, Josefina Plá criou os mais diversos gêneros tanto

nas artes plásticas quanto em literatura, bem como ensaios e críticas jornalísticas,

literárias e culturais, portanto, se faz necessário pensar seu próprio projeto

intelectual com um projeto ligado a uma modernidade heterogênea defendida por

diversos teóricos e críticos. De acordo com Jesús Martín-Barbero, no ensaio

intitulado “Modernidades y destiempos latinoamericanos”, “[…] la modernidad en

América Latina exige ser pensada desde la heterogeneidad e hibridación de

temporalidades de que están hechas sus sociedades y sus pueblos.” (p.21). Essa

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modernidade que exige ser pensada pelo diferente, pelo heterogêneo. Se fizermos

um paralelo desta com a obra de Josefina Plá, podemos perceber a obra da

intelectual como um projeto que dialoga dentro de uma poética da modernidade

heterogênea, no qual a autora se vale das mais diversas técnicas, tradições,

gêneros, cultura popular e erudita, para criar uma obra singular na América Latina.

Assim, adentraremos, propriamente, nas análises dos ensaios de Josefina

Plá, nos quais a trama do popular e erudito; a trama das culturas se realiza em

forma ensaística. Perceberemos, primeiramente, que tal trama da modernidade,

segue, uma sequência de ensaios históricos, nos quais as culturas, tramadas,

tormam um novo “tecido” cultural, o “tecido” cultural paraguaio.

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CAPÍTULO 3

SOBRE O PROCESSO HISTÓRICO DE FORMAÇÃO CULTURAL

Para Stuart Hall, em Cultura e representação, a designação de cultura é, assim

como para Terry Eagleton, em A idéia da cultura, um dos conceitos mais complexos

das ciências humanas e sociais. Hall afirma que a cultura é vista como algo que

engloba o que melhor foi dito e pensado em uma sociedade, seja ela qual for, seus

grandes artistas, pensadores, escritores, filósofos, todos fazer parte da classe culta.

São os pertencentes à alta cultura de cada sociedade. Todavia, passa-se, afirma

Hall, em um sentido mais moderno, baseando-se nas influências da Nova História,

que coloca em destaque aqueles que foram preteridos durante séculos, a cultura

passou também a designar formas mais difundidas na sociedade como um todo,

aquilo que pertence ao cotidiano da maioria dos povos. A cultura ganha outra

alcunha, a de ser popular, cultura popular.

Dessa forma, Hall afirma que

A cultura, podemos dizer, está envolvida em todas essas práticas que não são geneticamente programadas em nós [...], mas que carregam sentido e valores para nós, que precisam ser significativamente interpretadas por outros, ou que dependem do sentido para seu efetivo funcionamento. A cultura, desse modo, permeia toda a sociedade. Ela é o que diferencia o elemento “humano” na vida social daquilo que é biologicamente direcionado. Nesse sentido, o estudo da cultura ressalta o papel fundamental do domínio simbólico no centro da vida em sociedade. (HALL, 2016, p. 21)

Assim, podemos assegurar que o estudo da cultura, especificamente no caso

dos ensaios de Josefina Plá, envolve o estudo das práticas, neste capítulo,

desenvolvidas e que permeiam a sociedade paraguaia desde seu início. O estudo

das práticas sociais enquanto domínio simbólico da própria sociedade paraguaia,

que para ser compreendida enquanto passível de criação artística de significativa

qualidade, seja em forma de objetos de arte ou de textos literários, por méritos

próprios. Há uma necessidade de interpretação significativa dos símbolos que

compõem a cultura paraguaia que se faz presente em sua literatura. Uma análise

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que permeia os símbolos que compõem uma sociedade se torna, sob tal

perspectiva, uma análise do próprio homem local.

Portanto, neste capítulo, nos deteremos na análise de três ensaios, a saber, “El

Barroco hispano-guaraní”, “Hermano negro – la esclavitud en el Paraguay” e

“Españoles en la cultura del paraguay”. Todos focando em aspectos da formação

histórico-cultural da região paraguaia, dando destaque sempre a dois pontos

específicos: o trato amistoso entre os diferentes povos e o papel da mulher na

criação e formação da cultura local.

3.1 El barroco Hispano Guaraní e a criação local

Severo Sarduy (1972), no texto “O Barroco e o Neobarroco”, publicado em

América Latina em sua Literatura, livro organizado por César Fernández Moreno,

afirma que o Barroco, desde sua origem, carrega em si a marca da ambiguidade. Da

palavra barroco, perdura a imagem de uma pérola irregular, de gosto até certo ponto

duvidoso, de lugar áspero e rochoso. Sarduy (1972) afirma que com o passar do

tempo, em uma espécie de esclarecimento e inversão de sua primeira acepção, a

palavra passa a designar não mais o natural, o bruto, e sim o rebuscado, o

elaborado, o minucioso.

O Barroco substitui uma coisa por outra, um elemento por outro para modificar

seu significado, reforçando o significado primeiro, intencionalmente. Sarduy (1972)

ainda afirma que o barroco é uma sucessão de ideias e conceitos que não

necessariamente se conectam ou atingem sentido completo. Seu sentido é sempre

inacabado. O Barroco é o lugar onde a ordem origina uma desordem; a retórica

sobrepõe-se para dar lugar a uma liberdade de máscaras em que as palavras criam

mais volume, mais intensidade. No Barroco e no conceito sobre o barroco de Severo

Sarduy, não há lugar para uma verdade absoluta e irrefutável, tudo é dúvida, são

perguntas sem respostas, respostas sem perguntas. Estética cultural híbrida por

natureza, o Barroco se adequa ao continente americano de forma única, insere-se

na cultura do novo mundo adquirindo novos temas e formas, ampliando sua própria

estética.

Por Barroco, de acordo com Bella Jozef (2005), se denomina uma forma de

cultura que se manifestou em toda a Europa entre os séculos XVII e XVIII e que,

posteriormente, foi levada também à América pelas mãos do colonizador europeu.

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Jozef (2005) afirma que o Barroco se desenvolveu em terras hispânicas como um

Renascimento hispanizado. Se a principal norma que dá forma ao Barroco é a

imitação, logo, o Barroco não se opõe ao Renascimento e, portanto, é um

desenvolvimento deste, mas diferente, não com o sentido de universalidade do

primeiro, e sim com um sentido de solidão.

O universalismo do Renascimento se alia a um otimismo que vitaliza suas

criações, o que não acontece ao Barroco, que se choca, na América, com o

pessimismo criado por meio das lendas do mundo indígena local e que é reforçado

pela derrota das antigas civilizações locais pelos europeus nas batalhas da

conquista.

As estruturas barrocas têm como característica a contradição estética e

ideológica. No entanto, Bella Jozef (2005) afirma que tal condição barroca é

resolvida quando ocorre, nas criações barrocas, a fusão dos elementos, partindo da

lei da fusão dos elementos de Aristóteles. Assim, o Barroco “concilia” a razão e a fé

em suas criações artísticas.

O Barroco nasce, assim, do confronto de ideias contraditórias, em tensão estrutural, submetidas a uma síntese dinâmica. Tensa realizar a utopia da conciliação na linguagem. A ambivalência existencial do homem barroco faz dele um ser dilacerado entre a idealidade espiritualista e transcendental e a materialidade profana, o medievalismo e o paganismo. O conflito entre o eu e o mundo provoca a acumulação dos elementos, “com a intensificação do pormenor e a densificação no conjunto”. (JOZEF, 2005, p.26)

Dessa forma, lendo o barroco enquanto dual e ambíguo, também enquanto

parte da modernidade, voltamos nossos olhos para o ensaio intitulado “El Barroco

hispano-guaraní”, de Josefina Plá. Publicado pela primeira vez em 1975, o texto se

firma como um dos grandes marcos da obra de Josefina Plá. No ensaio, Plá faz uma

releitura de um espaço perdido no tempo, que é a própria arte hispano-guaraní.

Entre outras questões, o texto nos força a pensar o que é a arte hispano-guaraní e

os processos históricos e culturais que permitiram sua criação.

Para a composição do ensaio, Josefina Plá se utiliza de três metodologias que

convergem entre si. Primeiramente, utiliza-se de um aparato documental de fontes

escritas para poder explicar a construção do processo cultural que deu origem à arte

barroca-guaraní. Depois, passa para um trabalho de campo, observando, à época

da escrita do ensaio, as peças de arte barrocas-guaraní. E o que se pode chamar de

terceiro método é a visão imposta ao texto de uma também artista plástica e literária

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sobre a arte barroca-guaraní. A arte criada por Josefina Plá é de algum modo uma

consequência das heranças coloniais que originaram o próprio barroco hispano-

guaraní.

3.1.1 Das conjunturas

Logo no início de seu ensaio, Josefina Plá afirma, apesar de deixar a ressalva

de que esta afirmação precisa ser confirmada no decorrer de seu texto, que desde o

começo da colonização o Paraguai foi mestiço. Tal afirmativa é corroborada por

Dionisio González Torres, no livro Cultura guaraní (2010), que apesar de não

mencionar diretamente a obra de Josefina Plá, afirma que “Desde temprano en la

Conquista se fue plasmado la nacionalidad paraguaya, iniciándose con el cruce del

español y la indígena guaraní y de los pocos españoles entre sí, prácticamente el

origen de nuestro pueblo está en el mestizaje.” (GONZÁLEZ TORRES, 2010 p. 225)

Por não haver na região qualquer indício de ouro e prata que pudesse ser

explorado, pouco interesse despertou na nobreza a colonização e povoamento do

local “y éste no tardó en ser la cenicienta del Virreinato”35 (PLÁ, 2006, p. 14). Dos

que chegaram à região paraguaia a maioria eram homens, mais acostumados a lidar

com os ambientes hostis e pouco confortáveis da região; as mulheres espanholas

eram pouquíssimas. Não era de se estranhar, portanto, o relacionamento

matrimonial entre um homem espanhol e uma mulher indígena. De acordo com

Josefina Plá, tal prática fez com que se criasse um núcleo cada vez maior de uma

população mestiça. Tal mestiçagem, de acordo com a ensaísta, estava completa já

no século XVIII e ainda afirma que:

Razonamientos basados en datos históricos y estadísticos permitirían afirmar en general, que el mestizaje consumó su proceso a mediados del XIX, cuando se extinguen prácticamente los últimos indígenas puros de las Misiones (guerra de 1865). No cabe duda de que ésta es una afirmación que debe ser revisada a fondo.36 (PLÁ, 2006, p. 12 – 13)

35 Tradução Nossa: E esta não demorou a ser a cinderela do Vice-reino. 36 Tradução nossa: Raciocínios baseados em dados históricos e estatísticos permitiriam afirmar em feral, que a mestiçagem consumou seu processo em meados do XIX, quando se extinguem praticamente os últimos indígenas puros das Missões (guerra de 1865). Não cabe dúvida de que esta é uma afirmação que deve ser revisada a fundo.

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Todavia, algo interessante afirmado por Josefina é que por conta desse fator

histórico é impossível estabelecer qualquer referência a aspectos sociais, políticos e

culturais da região paraguaia, e de sua formação, sem levar em conta a mestiçagem

ocorrida. Devido também à falta de interesse da metrópole pela colônia, a relação

desenvolvida entre espanhóis e nativos na região foi, de certa forma, amigável.

Houve uma integração destes a ponto de os locais ajudarem na manutenção da

colônia que, de acordo com Plá (2006), havia sido deixada à própria sorte.

Segundo Josefina Plá (2006), os guaranís, diferentemente das mais

conhecidas civilizações latino-americanas, não deixaram uma arquitetura

permanente, cheia de grandes monumentos a serem admirados na

contemporaneidade. Eram seminômades, talvez por isso tenham sido

menosprezados pela maioria das pessoas. No entanto, é interessante notar que, de

acordo com a ensaísta, “Los guaraníes poseían conocimientos botánicos notables, y

se ha dicho que el guaraní es el idioma que más nombres ha dado a la farmacopea,

después del griego y el latín.”37 (PLÁ, 2006, p. 15). O que sobressai na cultura local

guaraní é o que podemos chamar de seu legado cultural, não um legado

arquitetônico e histórico, mas o fato de ela ter de alguma maneira sobrevivido,

mesmo que passando por adaptações ao longo do tempo. Uma cultura não feita de

objetos palpáveis, mas da força de resistência, podemos dizer, ideológica, de seu

povo. Sobressaem, nesse sentido, alguns objetos artísticos de uso doméstico,

artesanatos e utensílios que já eram feitos, em algodão e barro, antes da chegada

dos espanhóis à região.

Com efeito, se os artesanatos tinham terreno fértil já desde antes da

colonização, no que se referia na Europa como belas artes, a colônia sofreu com

enorme atraso.

Esto en cuanto a las artesanías, terreno cotidiano y primario en que se manifiesta el espíritu de una cultura. Las bellas artes siguen mostrándose lerdas en aparecer, como se ha expresado, porque la sociedad que va surgiendo y consolidándose en el gobierno, en la administración y en las armas, es una sociedad pobre, aunque hidalga; de vida patriarcal y exigencias escasas, relativamente lenta en su crecimiento, ya que la

37 Tradução nossa: Os guaranis possuíam conhecimentos botânicos notáveis, e se diz que o guarani é o idioma que mais nomes deu à farmacopeia, depois de grego e latim.

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inmigración es prácticamente nula y precarios los contactos culturales.38 (PLÁ, 2006, p.19)

Em uma forma de governo, o mercantilismo, que extrai o máximo de suas

colônias, aquelas que não possuem riqueza mineral acabam por serem depreciadas

pela metrópole. O atraso social do período colonial paraguaio muito se deve à sua

falta de riquezas minerais, o que desestimulou à ocupação espanhola da região. O

desestímulo de colonização da região por parte dos espanhóis impediu que a

colônia se desenvolvesse, formando uma sociedade de fidalgos pobres, de

crescimento lento, sem possibilidades de desenvolvimento das belas artes. Todavia,

a colônia começa a sustentar-se por si própria a partir do momento em que cria

riquezas agrícolas ante a necessidade de sobrevivência; somente por esse meio

conseguiu-se começar a desenvolver algo em relação às belas artes. No entanto,

possivelmente a esse mesmo atraso se deve a grande hibridação cultural ocorrida

na região, por meio da mestiçagem cultural entre espanhóis e guaranís.

Mientras en otras ciudades coloniales se pavimentan de plata las calles al paso de virreyes y se llenan de palacios las rúas y de obras de arte los salones, en Asunción las casas son de adobe, cuando no de tapial: de paja los más de los techos. Todavía en 1749 dirá Fray Antonio José de Parras: "Sus edificios son pobres: algunas casas hay muy buenas". Y en 1761 Latorre: "Las casas son de fábrica liviana, muchas o las más techadas de paja".

Con tales materiales, es lógico que las edificaciones duraran poco; y así no es de extrañar que Aguirre, unos años más tarde, dijera en su Diario: "las más de las casas son de los días de los corrientes". También alude Aguirre a la modestia, rayana en pobreza, de los interiores. Todo el lujo se acumulará, ya finalizando el XVIII, en las puertas, rejas, vigas y zapatas, esmeradamente labradas, y de las cuales hoy no resta ninguna, pero de las que algunos bellos ejemplares pueden verse en las ilustraciones del libro de Lafuente Machaín.39 (PLÁ, 2006, p.21)

38 Tradução nossa: Isto em quanto os artesanatos, terreno cotidiano e primário em que se manifesta o espirito de uma cultura. As belas artes seguem mostrando-se lerdas em aparecer, como expressado, porque a sociedade que vai surgindo e consolidando-se no governo, na administração e nas armas, é uma sociedade pobre, ainda que fidalga; de vida patriarcal e exigências escassas, relativamente lenta em seu crescimento, já que a imigração é praticamente nula e precários são os contatos culturais. 39 Tradução nossa: Enquanto em outras cidades coloniais se pavimentam de prata as ruas ao passo de vice-reis e se enchem de palácios as ruas e de obras de arte os salões, em Assunção as caras são de adobe, quando não de taipa: de palha os tetos. Ainda em 1749 dirá Frei Antonio Jose de Parras: “Seus edifícios são pobres: algumas casas são muito boas”. E em 1761 Latorre: “As casas são de fabricação leviana, muitos ou a maioria dos tetos de palha. Com tais materiais, é logico que as edificações duraram pouco; e assim não é de se estranhar que Aguirre, uns anos mais tarde, disse em seu diário: “A maioria das casas são dos dias correntes”> Também alude Aguirre à modéstia, vizinha em pobreza, dos interiores. Todo o luxo se acumulará, já finalizando o século XVIII, nas portas, grades, vigas e sapatas, esmeradamente lavradas, e das quais

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Dessa forma, no Paraguai não se formaram artistas que tiveram suas obras

expostas nos grandes salões da América Latina. Até o século XVII, de acordo com

Josefina Plá (2006), não há qualquer nome que se possa aludir de uma chamada

arte paraguaia, assim como uma literatura local era inexistente. A ensaísta alerta

que tal fato se deu talvez pela precária condição socioeconômica na qual a colônia

se encontrava. As artes locais, produzidas por indígenas, também não encontraram

muito espaço na colônia. As poucas peças artísticas do Paraguai colonial foram de

intenção religiosa católica, imagens sacras e retratos importados da metrópole.

Para Stuart Hall (2016, p. 21), “nós concedemos sentido às coisas pela

maneira como as representamos – as palavras que usamos para nos referir a elas,

as histórias que narramos a seu respeito, as imagens que delas criamos, as

emoções que associamos a elas, as maneiras como as classificamos e

conceituamos, enfim, os valores que nelas embutimos”. Portanto, não poderia haver

qualquer representação genuinamente local na região, pois todos os valores que

eram embutidos neste espaço não eram locais, eram valores oriundos da metrópole

espanhola.

Josefina Plá afirma que, no começo do século XVII, quando se acreditava que

o Paraguai não era um lugar propício para o desenvolvimento das belas artes entra

em cena a Companhia de Jesus, que, com o forte poder da igreja católica sobre a

metrópole, ajuda a desenvolver determinadas regiões do país. Ainda, para Josefina,

as condições precárias da região fizeram com que a Companhia de Jesus

dominasse com mais facilidade a sociedade local.

La erección en provincia de un territorio aparentemente tan desamparado, tan alejado de los centros existentes de la colonización, desorientó al principio a muchos. […] En efecto, el empeño no fue arbitrario ni obra del azar; no cabría pensar tal cosa de la visión siempre tensa y lúcida de los dirigentes de la Compañía. Era la intención de los jesuitas “hambrientos de almas” desarrollar aquí a plenitud el sistema que ellos concebían como el mejor para la conversión y subsiguiente conservación de los cuerpos y almas de la gente nueva. En ninguna de las otras áreas habría sido ello posible, ya por la competencia civil, ya por la de otras órdenes religiosas.40 (PLÁ, 2006, p.32-33)

hoje não resta nenhuma, mas das que alguns belos exemplares poder ver-se nas ilustrações do livro de Lafuente Machaín. 40 Tradução nossa: A elevação na província de um território aparentemente tão desamparado, tão longe dos centros existentes da colonização, desorientou, a princípio, muito[...]. Na verdade, o empenho não foi arbitrário nem à obra do azar; não cabia pensar tal coisa da visão sempre tensa e lúcida dos dirigentes da Companhia. Era a intenção dos jesuítas “famintos de almas” desenvolver

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Daí a extrema influência que a igreja católica exerceu no Paraguai mesmo

depois da retirada da Companhia de Jesus de cena. Muito da arte barroca hispano-

guaraní se deve às influências dos jesuítas na região. De acordo com a ensaísta, o

objetivo da Companhia de Jesus na região era criar uma verdadeira “República de

Dios”, dadas às condições socioeconômicas locais.

Irlemar Chiampi, em Barroco e modernidade (2010), corroborando o

pensamento de Josefina Plá, afirma que o que motivou o projeto de colonização

missionária foi a possibilidade de criação e/ou restauração da Igreja de Roma. Daí

surgiu uma série de experimentos que “encontrava simplicidade e naturalidade da

vida indígena um estímulo para restituir o cristianismo primitivo” (CHIAMPI, 2010, p.

138). Os missionários jesuítas aprenderam o guarani e foram acusados de não

ensinar aos indígenas locais a língua espanhola, para, dessa maneira, terem maior

domínio sobre as populações da região. Todavia, tais artifícios tinham como base o

entendimento da mensagem cristã.

Hoy reconocemos lo que en aquellos tiempos no se había comprendido aún: que el aprendizaje del castellano por la simple presión del ambiente resultaba imposible: el nuevo idioma no podían imponerlo unos cuantos hispanoparlantes en una población de miles de almas, aunque esos pocos poseyesen plena autoridad. Los jesuitas cumplían las órdenes metropolitanas: en todas las Misiones había escuelas donde los indígenas que lo deseaban aprendían a leer y escribir, no sólo en su idioma sino también en castellano y latín. Pero es también un hecho lógico el poco o nulo resultado práctico de dicha enseñanza. Los indios no entendían el latín, aunque aprendían a leerlo y recitar en él oraciones. En cuanto al castellano no eran pocos los que lo entendían, pero se rehusaban a hablarlo. Los cronistas han señalado la afición del indio por la lectura; pero los únicos libros que en su mano se ponían eran los religiosos, y éstos cuando no estuvieron escritos en latín, lo estuvieron, en los últimos tiempos, en guaraní. (Cuando se editaron libros en Misiones, fue en este idioma, y no en español).41 (PLÁ, 2006, p.48)

aqui a plenitude do sistema que eles concebiam como o melhor para a conversão e subsequente conversação dos corpos e almas do novo povo. Em nenhuma das outras áreas havia sido possível, ou pela competência civil, ou por outras ordens religiosas. 41 Tradução nossa: Hoje reconhecemos o que naqueles tempos não se havia compreendido ainda: que a aprendizagem do castelhano pela simples pressão do ambiente era impossível: o novo idioma não podia impor-lhe uns quantos hispano-falantes a uma população de milhares de almas, ainda que esses poucos possuíssem plena autoridade. Os jesuítas cumpriam as ordens metropolitanas: em todas as Missões haviam escolas onde os indígenas que desejavam aprendiam a ler e escrever, não só em seu idioma senão também em castelhano e latim. Mas é também um fato lógico o pouco ou nulo resultado prático de dito ensino. Enquanto o castelhano não eram poucos os que entendiam, mas se recusavam a falá-lo. Os cronistas afirmam a afecção do índio pela leitura; mas os únicos livros que em suas mãos se punham eram os religiosos, e isto quando não estavam escritos em latim, o estiveram, nos últimos tempos, em guarani. (Quando se editaram livros nas Missões, foi neste idioma, e não em espanhol).

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Todavia, não podemos supor que os indígenas locais aceitavam todas as

condições a eles impostas. Josefina Plá alerta para que reconheçamos que os

habitantes locais tinham total clareza sobre o que era bom e mau para eles, tinham

sua moral própria, criada em suas tribos, que se distinguia das condições europeias,

e tinham lucidez disso. Plá afirma que os testemunhos são evidentes na contestação

da “pureza” do habitante local, mas também falam de sua inaptidão em assimilar

certas formas de conhecimento. Para Chiampi (2010), cria-se, por conta disso, um

processo de evangelização utópico dos indígenas da região. No entanto, para Plá

todos os críticos e estudiosos afirmam que a habilidade manual dos indígenas era

acima da média, assim como sua excelente memória com relação às formas e sua

fixação com a música, que com o direcionamento jesuíta produziu peças únicas no

campo das artes.

O direcionamento jesuíta na vida do indígena local preservou, de acordo com

Josefina Plá, alguns dos elementos culturais que possuía, mesmo que, em certos

casos, o objetivo era não a preservação da cultura propriamente dita, mas a

estabilidade da Missão.

a) El régimen de propiedad; en él introdujeron la administración a su cargo y la organización del comercio, que perfeccionó la autosuficiencia de las Misiones;

b) El sistema comunal de trabajo; sometiéndolo a régimen fijo y ampliándolo a empresas como la erección de iglesias y demás edificios comunales;

c) El régimen de parcialidades y cacicazgos; que ayudó a mantener el orden y la disciplina de los núcleos indígenas;

d) Ciertos conocimientos indígenas; (simples medicinales, plantas tintóreas).42 (PLÁ, 2006, p.50 – grifo da autora)

É interessante notar a relação existente entre as concessões feitas por ambas

as partes; tanto indígenas cedem de alguns lados, adotando determinadas normas

de vida europeias, quanto jesuítas adotam modos de vida e conservação da

sociedade provindos do mundo indígena. Apesar de a ensaísta marcar que nem

42 Tradução nossa: a) O regime de propriedade; nele introduziram a administração a seus cargos e a organização do comercio, que aperfeiçoou a autossuficiência das Missões; b) O sistema comunal de trabalho; submetendo-o ao regime fixo e ampliando-o a empresas com a elevação das igrejas e demais edifícios comuns; c) O regime de parcialidades e “cacicato”; que ajudou a manter a ordem e a disciplina dos núcleos indígenas; d) Centros conhecimentos indígenas; (simples medicamentos, plantas tintoras)

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todas as relações entre ambos foram pacíficas, também alerta para as concessões

de ambos.

Josefina Plá afirma que os indígenas adotaram a religião apresentada a eles

pela Companhia de Jesus e isso os obrigou a mudar, ao menos em parte, sua vida

social, todavia, questiona até que ponto eles assimilaram as essências de tal crença.

A ensaísta ainda afirma que registros testemunhais da época marcam que tal

adoção teve um caráter mais emocional que racional: “’No entienden sino lo que cae

bajo los sentidos’, dijo Charlevoix. [...] El índio asimiló el ritual, pero no los dogmas;

fue la suya una fe infantil hecha de imágenes concretas, limitadas,

bidimensionales.”43 (PLÁ, 2006, p. 51). Anos depois da expulsão dos Jesuítas da

colônia, os indígenas continuavam a praticar os hábitos corriqueiros da religião

católica, mas sem, ainda, a compreensão do significado total de tais práticas. Então,

o próprio indígena acreditava reconhecer práticas que se assemelhavam às

tradicionais já exercitas por eles antes do contato com a Companhia de Jesus.

Quase toda obra artística produzida nas missões durante os anos de ocupação

destas pela Companhia de Jesus é anônima. Tanto mestres quanto aprendizes eram

anônimos. As poucas obras de que se sabe o autor se dão por meio de algum tipo

de documento escrito, carta ou crônica, que revela a autoria de determinada obra,

não pela assinatura deste ou daquele artista, como estamos acostumados a

encontrar em obras de outros tempos e lugares, ao menos não em sua grande

maioria. Segundo Josefina Plá (2006), o anonimato se dava pelos Jesuítas terem a

convicção de que toda escultura, pintura etc, criada nas missões tinha o objetivo

chave de “Capitar almas” para a fé. De alguma maneira, a arte não era arte e sim

instrumento didático. Dessa forma, a arte das missões se assemelha, para Plá, à

arte medieval, na qual a personalidade do artista se esfumaça.

Todavia, é interessante notar que existem algumas poucas obras de arte

missioneiras que levam assinaturas de seus criadores. Tais obras são assinadas por

indígenas e não por jesuítas. Podemos pensar ser algo sintomático em relação à

“imposição” de uma nova cultura aos povos que já habitavam a região. De alguma

maneira, há uma resistência por parte do indígena.

43 Tradução nossa: ‘Não entendem senão o que cai sob os sentidos’, disse Charlevoix. [...] O índio

assimilou o ritual, mas não os dogmas; foi a sua uma fé infantil cheia de imagens concretas, limitadas, bidimensionais.

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Pese al dinamismo prodigioso del maestro jesuita, la obra misionera no es sin embargo concebible en sus características, y menos aún en su volumen, sin la intervención del indígena. Intervención que sin exageración puede calificarse de decisiva en el plano de lo cuantitativo; que resulta también definitivo en el momento de calificar el volumen artístico, ya que es ella la que imprime a éste acento diferencial.44 (PLÁ, 2006, p. 63)

É evidente o uso da mão indígena, mesmo que de certo modo “orientada” pela

Companhia de Jesus na criação do que Josefina Plá chamou de Barroco Hispano-

guarani. Também se faz necessário lembrar a utilização de materiais locais na

criação de tais peças de arte. Sob a aprovação, de início, jesuíta, os indígenas

locais, com sua cultura, mesmo que modificada, se integraram à colônia e

imprimiram seu diferencial.

3.1.2 Das criações artísticas

Quando se fala da criação de uma Arte Barroca Hispano-Guaraní, ligada às

Missões Jesuíticas, deve se ter em conta que esta mesma arte independe de

território. Podemos falar em Missões paraguaias, argentinas ou brasileiras, todavia,

em se tratando de arte produzida nessas Missões, não há uma distinção. “En su

actividad espiritual y en su proceso sociocultural, reflejados por fuerza en su labor,

las Misiones conservan hasta el fin su unidad.”45 (PLÁ, 2006, p.93). No entanto, há

de se perceber que não somente os fatores espirituais unem a arte barroca hispano-

guarani. Não devemos deixar de levar em conta o fato de que, apesar de serem

desenvolvidas em regiões distintas, essas artes são criadas em Missões que

seguem a mesma doutrina de vida, para além do estilo predominantemente

peninsular, que de alguma maneira se percebe nas criações, por conta de todo um

processo colonizador. Também não podemos fechar os olhos ao material humano

que criou tal arte. Trata-se de uma população tanto local quando vinda da Europa

que estava doutrinada pelas Missões e pelas coroas peninsulares. Dessa forma,

suas obras tratavam, de alguma maneira, de reconstruir sua fisionomia.

44 Tradução nossa: Pese ao dinamismo prodigioso do mestre jesuíta, a obra missioneira não é,

todavia, concebível em suas características, e menos ainda em seu volume, sem a intervenção indígena. Intervenção que, sem exagero, pode qualificar-se como decisiva no plano do quantitativo; que resulta também definitivo no momento de qualificar o volume artístico, já que é ela a que imprime este acento diferencial. 45 Tradução nossa: Em sua atividade espiritual e em seu processo sociocultural, refletidos pela força de seu trabalho, as Missões conservam até o fim sua unidade.

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No se yerra pues al englobar desde el punto de vista crítico – el único que acá interesa – toda la producción de las Misiones guaraníes (se hallen éstas o no en territorio paraguayo actual) bajo el título de barroco hispano-guaraní. No abarca esta denominación por tanto exclusivamente el arte asentado en los pueblos de fundación jesuítica y hoy paraguayos por razón de límites (ocho); ella debe extenderse a la totalidad de un arte que tuvo como elemento básico, objetivo y razón última una masa indígena identificada en el idioma, unificada por el ideal religioso bajo el signo de un pensamiento totalizador. Un arte que en ese ideal religioso, cernido por la sensibilidad autóctona, encontró las razones más profundas de su acento peculiar.46 (PLÁ. 2006, p. 94 – grifo da autora)

Josefina Plá alerta que se por um lado houve uma criação barroca marcada

pela relação entre povos guaranis e a religiosidade das Missões, houve também

uma criação barroca independente de tal relação. A ensaísta considera que toda a

arte barroca produzida na região dominada por povos guaranis, produzida ou não

sob a influência das Missões, deve ser considerada como arte Barroca Hispano-

Guaraní. No entanto, dada à importância que as Missões tiveram para tal tipo de

arte, é, segundo a autora, interessante notar como a melhor e mais completa parte

da arte barroca hispano-guaraní esteja em igrejas não jesuítas. Todavia, tal fato

talvez se explique pela própria expulsão dos jesuítas da região e o abandono das

missões.

[...] el ámbito del barroco hispano-guaraní, que no sólo abarca el producido en los pueblos del mapa espiritual jesuítico de las Misiones guaraníes, sino también, con las reservas que estudios más detenidos y documentados establecerán sin duda, el perteneciente a las distintas parroquias paraguayas, antiguamente iglesias de pueblos a cargo de misioneros no jesuitas o del clero secular, en cuyas obras intervino no solamente el elemento indígenas puro, sino también el mestizo, e inclusive, eventualmente, el criollo, y hasta el europeo; y también indios misioneros.47 (PLÁ, 2006, p.96)

46 Tradução nossa: Não se erra, pois, ao englobar desde o ponto de vista crítico - o único que aqui interessa - toda a produção das Missões guaranis (se encontrando estas ou não território paraguaio atual) sob o título de barroco hispano-guarani. Não abarca a esta denominação, portanto exclusivamente a arte feita nos povos de fundação jesuítica e hoje paraguaios por razão de limites (oito); ela deve estender-se à totalidade de uma arte que teve como elemento básico, objetivo e razão última uma massa indígena identificada no idioma, unificada pelo ideal religioso sob o signo de um pensamento totalizador. Uma arte que nesse ideal religioso, cernido pela sensibilidade autóctone, encontrou as razões mais profundas de seu acento popular. 47 Tradução nossa: […] o âmbito do barroco hispano-guarani, que não só abarca o produzido nos povos do mapa espiritual jesuítico das Missões guaranis, senão também, com as reservas que estudos mais atentos e documentados estabelecerão sem dúvida, o pertencimento às distintas paróquias paraguaias, antigamente igrejas de povoados a cargo de missionários não jesuítas ou do clero secular, em cujas obras interviu não somente o elemento indígena puro, senão também o mestiço, e inclusive, eventualmente, o crioulo, e até o europeu; e também índios missionários.

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Nesse sentido, é impossível pensar nas artes locais enquanto pertencentes a

outra coisa que não a uma hibridização cultural ocorrida na região desde seu

começo, como ressalta Josefina Plá em vários escritos.

Voltando à questão mais específica da obra de arte, Plá adverte para que

sejam levados em conta fatores fundamentais relativos à própria sociedade local

quando se pensa na criação artística. Fazendo um paralelo com os conceitos de

criação literária de Käte Hambuger (1986), para que possamos pensar a obra de

arte Barroca Hispano-Guaraní, a crítica afirma que criação literária e realidade

sempre estão em choque. Dessa “tensão contextual” (realidade vs. criação literária),

conforme afirma Käte Hambuger (1986), marcada pelo confronto é necessário

compreender que

[...] a criação literária é coisa diferente da realidade, mas também significa aparentemente contrário, ou seja, que a realidade é o material da criação literária. Pois é apenas aparente esta contradição, já que a ficção só é de espécie diversa da realidade porque esta é o material daquela. (HAMBURGER, 1986, p.02).

Se pensarmos a mesma relação em analogia à obra de arte vs. realidade,

perceberemos com mais clareza afirmação de Josefina Plá de que na criação do

Barroco Hispano-Guaraní o fator local é extremamente importante. Fator esse que a

ensaísta marca como: “[…] el pensamiento religioso hispánico, la mano de obra y el

fervor indígena […]”48 (PLÁ, 2006, p.94). Em proporções diferentes dentro e fora das

missões, no entanto, com a mesma essência. Cabe ressaltar que a denominação

Barroco Hispano-Guarani não abarca qualquer arte produzida fora dos domínios dos

povos guaranis.

Josefina alerta também para a intensa atividade artística, mesmo que não

reconhecida enquanto arte no momento de sua criação, que ocorreu no período de

mais de cento e cinquenta anos de ocupação Jesuíta na região. Apesar dos

rearranjos das Missões, as artes, sacras, não são interrompidas, pelo contrário,

ganham novas nuances e alcance com cada nova experiência da Missão. Os

trabalhos artísticos criados pelas mãos indígenas sob supervisão Jesuíta, eram

utilizados para adornar as inúmeras igrejas locais, locais de convivência de toda a

comunidade.

48 Tradução nossa: [...] o pensamento religioso hispânico, a mão de obra e o fervor indígena.

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Los templos de la época funcional, si no insumieron trabajo artístico en su arquitectura, lo acumularon en su ornato. Al hacerse más duraderos los edificios, la ornamentación se extendió, cubrió muros y techo. Las estructuras visibles de madera estaban todas decoradas. Todas las iglesias poseían altares, generalmente cuatro, además del altar mayor […] todos tallados, pintados y dorados. Las imágenes adornaban no solamente los altares y retablos, a menudo en gran número […] sino también las cúpulas, coros e intercolumnios, como en Santa Rosa; los coronamientos y frontones exteriores, como en San Miguel; las hornacinas de fachadas y muros laterales; las torres, como en Jesús, Concepción y Apóstoles. Furlong calcula en dos mil el número de imágenes realizadas en Misiones: seguramente fueron el doble. Al número de imágenes de bulto para los altares y la ornamentación interna hay que añadir los altares mismos, algunos hasta de catorce metros de altura; los techos artesonados, los falsos arcos, los púlpitos, columnas (estas se decoraban casi siempre con planchas talladas superpuestas), los doseles, balaustres, ménsulas, frisos, pilastras; los confesonarios, que eran "preciosos, grandes, dorados y pintados que parecen retablos"; los coros, puertas y ventanas, rejas, comulgatorios ("las barandillas de comunión son tan grandes que en algunas caben hasta ochenta personas; y en algunas partes están con mucho adorno de dorado y pintado, y muy costosos paños y lienzos"); los baptisterios (el de Santa Rosa era un verdadero retablo), los retablos y armarios de sacristía (el de Yaguarón es un monumental ejemplo), los altares portátiles, andas (en Santa María hay una muy bella), catafalcos, mesas, cofres, escaños, sillones, candelabros, algunos de ellos grandes como columnas. Las cúpulas de los templos de la última época fueron en su gran mayoría de madera (Santa Rosa, San Luis, San Miguel, San Ignacio Guazú, Borja); de madera fue, por supuesto, la trabajada para Córdoba.49 (PLÁ, 2006, p. 97)

Josefina Plá afirma, no trecho acima, a intensidade da produção artística sacra

da época e, como já exposto, que a produção estava sob tutela dos Jesuítas.

Todavia, dada a intensidade e a quantidade de produção, podemos levantar a

hipótese de que tal criação artística, em alguma medida, tenha escapado às

49 Tradução nossa: Os templos da época funcional se não se submeteram a um trabalho artístico em sua arquitetura, o acumularam em seu ornamento. Ao fazer mais duradouro os edifícios, a ornamentação se estendeu, cobriu muros e teto. As estruturas visíveis de madeira estavam todas decoradas. Todas as igrejas possuíam altares, geralmente quatro, além do altar maior [...] todos talhados, pintados e dourados. As imagens adornavam não só os altares e retábulos, sempre em grande número[...] senão também as cúpulas, coros e entre colunas, como em Santa Rosa; os coroamentos e paredões exteriores, como em São Miguel; os nichos das fachadas e muros laterais; as torres, como em Jesus, Concepção e Apóstolos. Furlong calcula em dois mil o número de imagens realizada nas Missões: seguramente foram o dobro. Ao número de imagens em volumes nos altares e a ornamentação interna há que adicionar os altares mesmos, alguns até de catorze metros de altura; os tetos artesoado, os falsos arcos, os púlpitos, colunas (estas se decoravam quase sempre com pranchas talhadas sobrepostas), os dosséis, balaústres, mísulas, frisos, pilastras; os confessionários, que eram “preciosos, grandes, dourados e pintados que parecem retábulos” ; os coros, as portas e janelas, grades, comungatórios (“as grades de comunhão são tão grandes que em algumas cabem até oitenta pessoas; e em algumas partes estão com muito adorno de dourado e pintados, e muito custosos panos e lenços”); os batistérios (o de Santa Rosa era um verdadeiro retábulo), os retábulos e armários da sacristia (o de Yaguarón é um monumental exemplo), os altares portáteis, anda (em Santa Maria há uma muito bela), catafalcos, mesas, cofres, cadeiras, tronos, candelabros, alguns deles grandes como colunas. As cúpulas dos templos da última época foram em sua grande maioria de madeira (Santa Rosa, São Luis, São Miguel, São Ignácio Guazú, Borja); de madeira foi, certamente, a trabalhada para Córdoba.

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influências religiosas das Missões e sofrido a influência de seus “criadores”. Pois,

como já afirmamos, as peças artísticas criadas nas Missões eram produzidas por

indígenas, que, de alguma maneira, reproduziam imagens trazidas pelos Jesuítas,

contudo, “adicionando” algo de local no fazer.

Para Stelamaris Coser (2005), no verbete “Híbrido, hibridismo e hibridação”,

presente na obra Conceitos de literatura e cultura, de Eurídice Figueiredo, a

hibridação presente na cultura latino-americana remete historicamente à

mestiçagem e ao sincretismo, características de boa parte dos mitos referentes à

América Latina. Talvez por sua grande quantidade os trabalhos artísticos não se

limitaram apenas à ornamentação de igrejas, se fazendo presentes também em

outros locais das Missões.

Portanto, não se pode negar às Missões seu papel primordial na construção de

toda uma parcela do “Novo Mundo” que esteve ligada diretamente a seu poder. Para

Jacques Lafaye (2004, p.597), “Foram os missionários os principais responsáveis

pelo fato de terem os primeiros estudos sérios da América e dos americanos

ultrapassado as descrições impressionistas iniciais”. Fato que não é de se estranhar,

devido à própria necessidade de manutenção da vida local.

Fueron, pues, las Misiones, a pesar de las vicisitudes que nunca, en una u otra forma, dejaron de afligirlas […] foco de actividad incesante, que creó en el seno de la comarca, hasta entonces enteramente virgen, una riqueza artística enorme, cuyo aspecto y valor sólo la fantasía puede hoy reconstituir.

Intentemos imaginarnos lo que fueron aquellos templos edificados por una multitud apenas emancipada de la vida silvícola (por gentes que hasta entonces no habían sabido trabajar el metal ni la madera) bajo la dirección de unos pocos sacerdotes blancos en el seno de esa misma selva, lejos de los centros donde el europeo elaboraba en sangre y en espíritu la cultura colonial; en un ámbito en que ésta no tenía entrada en sus formas laicas, del mismo modo que sus habitantes no podían traspasar los límites de la Reducción, sino en caso de necesidad. En esas selvosas soledades donde amagaba incesante el malón y acechaba el cazador de esclavos; donde al atardecer se escuchaba el rugido de los grandes felinos, y reptaban los monstruosos ofidios, se levantaba el templo como celoso pastor guardando el ordenado rebaño de las viviendas indígenas, y ofrecía a la mirada, aún antes de traspasar el umbral, la visión resplandeciente de sus oros y sus colores múltiples, de sus formas extrañas, reflejándose sus destellos, de detalle en detalle, bajo la magia cegadora de las luces, con los enormes cirios de pura cera colocados en candelabros de plata, de bronce o de madera, altos como columnas, tallados y dorados; las imágenes en actitudes tanto más fascinantes cuanto menos comprendidas. El templo era el trasunto de un mundo que el indio apenas conseguía entrever a través de sermones y ceremonias; el umbral de una felicidad abstracta de la cual sólo podía alcanzar el deslumbramiento, la reverberación, del encantamiento, como en los sueños. Podemos comprender el encandilamiento del indígena, y también intuir cuánto debió contribuir a la formación de ambiente, para el

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desarrollo de las Misiones, la idea, acariciada por el indio, en su humildad, como un milagro, de que en aquel fausto tenía él una parte; de que, en aquel fantástico mundo de esplendores, del cual los Padres poseían la clave, mucho era obra suya, resultado de su esfuerzo y de su fe. A través de esos fulgores creería entrever un anticipo del brillante premio que en el paraíso esperaba a los humildes de corazón. Si en alguna parte del barroco mereció llamarse arte religioso por excelencia, fue aquí, en este remoto y aislado ámbito de las Misiones guaraníes. Aquí alcanzó plenitud la virtualidad estético-religiosa, rudimentaria en su nivel, poderosa en su alcance, porque operó en el plano por excelencia de lo imaginativo y emocional.50 (PLÀ. 2006, p. 100-101)

Dessa forma, não há como negar a relação que a arte barroca hispano-guaraní

tem com as Missões Jesuítas no Paraguai. Arte esta que Irlemar Chiampi (2010)

afirma ser um dos pilares da construção da modernidade na América Latina, devido

à sua própria multiplicidade na qual se cruzam estéticas e culturas. Por meio da forte

ligação que a Companhia de Jesus tinha tanto com o “cânon” barroco metropolitano,

tido por críticos enquanto fenômeno cultural espanhol, quanto com a cultura popular

local, a própria estética barroca é modificada. O barroco na América Latina se

reinventa com as concepções do local, da cultura popular.

50 Tradução nossa: Foram, pois, as Missões, apesar das vicissitudes que nunca, de uma ou outra forma, deixaram de produzi-las [...] como de atividade incessante, que criou no seio da comarca, até então inteiramente virgem, uma riqueza artística enorme, cujo aspecto e valor só a fantasia pode hoje reconstituir. Tentamos imaginar o que foram aqueles templos edificados por uma multidão apenas emancipara da vida silvícola (por gentes que até então não sabiam trabalhar o metal nem a madeira) sob a direção de uns poucos sacerdotes brancos no seio dessa mesma selva, longe dos centros onde o europeu elaborava no sangue e no espírito a cultura colonial; em um âmbito em que esta não tinha entrada em suas formas laicas, do mesmo modo que seus habitantes não podiam ultrapassar os limites da Redução, senão em caso de necessidade. Nessas silvosas solidões onde ameaçava incessantemente o mal e espreitava o caçador de escravos; onde ao entardecer se escutava o rugido dos grandes felinos, e arrastavam os monstruosos ofídios, se levantava o tempo como zeloso pastor guardando o ordenado rebanho das vivendas indígenas, e oferecia ao olhar, ainda antes de ultrapassar o umbral, a visão resplandecente de seus ouros e suas cores multiples, de sus formas estranhas, refletindo seus lampejos, de detalhe em detalhe, sob a magia cega das luzes, com os enormes círios de pura cera colocados em candelabros de prata, de bronze ou de madeira, altos como colunas, talhados e dourados; as imagens em atitudes tanto mais fascinantes quanto menos compreendidas. O templo era o representante de um mundo que o índio apenas conseguis entrever através dos sermões e cerimonias; o umbral de uma felicidade abstrata da qual só podia alcançar o deslumbramento, a reverberação do encantamento, como nos sonhos. Podemos compreender tal deslumbramento do indígena, e também intuir quanto contribuiu à formação do ambiente, para o desenvolvimento das Missões, a ideia acariciada pelo índio, em sua humildade, como um milagre, de que naquele fausto tinha ele uma parte; de que, naquele fantástico mundo de esplendores, do qual os Padres possuíam a chave, muito era obra sua, resultado de seu esforço e de sua fé. Através desses fulgores creria entrever uma antecipação do brilhante prêmio que no paraíso esperava os humildes de coração. Se em alguma parte o barroco mereceu chamar-se arte religioso por excelência, foi aqui, neste remoto e ilhado ambiente das Missões guaranis. Aqui alcançou plenitude a virtualidade estético-religiosa, rudimentar em seu nível, poderosa em seu alcance, porque operou no plano da excelência do imaginativo e emocional.

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Levando em consideração que o barroco é uma estética que nasce na Europa

da primeira metade do século XVII, o ensaio de Josefina Plá reflete um contrassenso

em relação a este, pois trata-se de um ensaio, de alguma maneira, sobre a própria

América Latina. Já que devido, a fatores históricos, a estética Barroca Hispano-

Guaraní e a América Latina se fazem enquanto híbridos. Diversos ao que García

Canclini (1981, p.08) afirma ser uma “imposição dos padrões estéticos europeus”,

que se desdobram para a cultura como um todo e também aspectos da vida social,

impulsionados por questões econômicas.

Um dos grandes méritos, quando se trata do ensaio de Josefina Plá, está neste

ser, também, um pensamento que visa estabelecer as relações entre as concepções

estéticas, como veremos posteriormente, e questões relativas aos contextos de

produção. Houve, ao longo da formação da América Latina, e talvez possamos falar

de maneira geral, não nos restringindo a uma região especifica do globo, quando se

trata de arte, uma separação entre os marcos sociais que possibilitaram as criações

artísticas e as estéticas assumidas por cada uma em seu momento de criação.

Josefina Plá pensa o Barroco hispano-guarani, como vimos anteriormente, por meio

da própria formação histórica da região na qual a arte foi desenvolvida, não

havendo, assim, uma separação e/ou um modo de leitura no qual um possa ser

pensado em separado ao outro. Trata-se de um posicionamento que García Canclini

(1981) adverte que começa a ser desenvolvido apenas na segunda metade do

século XX. Vale ressaltar que a publicação original da obra El barroco hispano-

guaraní, de Josefina Plá, se deu em 1975; a ensaísta pensa sua própria época,

mesmo refletindo sobre o passado.

Pensamos, até o momento, por meio do texto de Josefina Plá, o modo como a

sociedade organizou-se para a possibilidade de criação de uma estética artística

diversa. De acordo com García Canclini (1981, p. 23), “o fundamental para o

surgimento da arte burguesa foi o fato de o sistema capitalista modificar o modo de

produzir arte, e não o de terem os artistas, pintado ou escrito, temas burgueses, ou

transmitido ideias burguesas.” (Grifo do autor). Se aplicarmos tal pensamento ao

surgimento de uma arte hispano-guaraní, perceberemos, por meio do contexto

histórico posto, que a inserção indígena em grande escala para a produção das

peças de arte feitas nas Missões modifica a própria criação artística.

Dessa forte relação que a criação artística barroca hispano-guaraní tem com as

Missões, Josefina Plá destaca, como já mencionado, a finalidade didática que a arte

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tem neste lugar. Também é interessante quando a ensaísta frisa que toda a criação

passou necessariamente pela supervisão de um jesuíta. Todavia, Plá menciona que

os missionários que chegaram ao Paraguai eram oriundos de diversas partes da

Europa. Logo, afirma a ensaísta, cada um deles tinha determinada referência

quando se tratava de artes plásticas.

El jesuita maestro, el importador de aquellas formas de pensamiento y de técnica que el indio debía hacer suyas, era el heredero nato de una cultura diferenciada en estilos y épocas numerosos. […] La Europa que esos hombre abandonaban – ha observado un autor - no era por cierto un panorama de estilo único, sino un mosaico de monumentos, estatuas y pinturas, en la cual convivían – en una unidad de ambiente elaborada por el tiempo – romántico y renacimiento, bizantino y mudéjar, barroco y gótico; de tal manera que en las subyacencias de sus espíritus esos estilos no habían cesado de tener vigencia.51 (PLÁ, 2006, p. 110)

De que maneira poderiam, então, “ensinar” um modelo único para seus

“aprendizes”? Desde o começo a arte Barroca Hispano-guaraní foi múltiple e, por

conta disso, única. A concepção de Josefina Plá dialoga com Lezama Lima na

medida em que aprecia o barroco hispano-guaraní enquanto uma criação única na

América Latina. A hibridação ocorrida no processo histórico de colonização permitiu

com que a arte barroca hispano-guaraní se consolidasse trazendo consigo a

constituição dos modos de vida locais. Todo um aparato cultural novo é agregado à

estética barroca. A América Latina recebe um barroco, agrega-o a si, integra-0 a seu

modo de vida e sua sociedade e devolve outro, acrescido de tudo o que há neste

lugar. Dessa forma, Lezama Lima afirma que na “fusão” entre a cultura latino-

americana e o Barroco nascem novos desdobramentos e novos excessos criativos,

assim, relacionando com o pensamento de Josefina Plá, percebemos Barroco

Hispano-guaraní como genuinamente parte da formação desta América Latina. No

ensaio de Josefina Plá fica evidente que a contribuição para tal surgimento genuíno

foi a ausência de unidade desde o começo da intervenção Jesuíta.

51 Tradução nossa: O professor jesuíta, o importador daquelas formas de pensamento e de técnica

que o índio devia fazer suas, era o herdeiro nato de uma cultura diferenciada em estilos e épocas numerosos. [...] A Europa que esses homens abandonavam - observou um autor - não era por certo um panorama de estilo único, senão um mosaico de monumentos, estátuas, pinturas, na qual conviviam - em uma unidade de ambiente elaborada pelo tempo - romântico e renascimento, bizantino e mudéjar, barroco e gótico; de tal maneira que nas subjacências de seus espíritos esses estilos não haviam cessado de ter vigência.

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A “consequência” para a falta de unidade entre as referências dos professores

jesuítas é primordial para, juntamente com o contato com a cultura local, gerar a

maior riqueza cultural da época, que é a própria estética barroca local. Não houve

nas Missões um único referencial central para ensinar o trabalho para os indígenas,

e sim, vários centros de referências, trazidos pelos variados professores.

A esta circunstancia primordial, se unieron otras menos raigales pero más concretas: el sistema de trabajo en los talleres, el aislamiento local, especialmente en lo que se refiere a la adaptación de formas a las especiales características del elemento catequizable. Y sobre todas ellas, actuando como factor aglutinante, la intervención masiva del indígena en el trabajo. [...]

La falta de modelos directos – cuadros para pintura, imágenes para escultura – sin hablar de la total prescindencia del modelo vivo, y por tanto la ignorancia de la anatomía, se reflejó acentuadamente en la producción.52 (PLÁ, 2006, p. 112 - 113)

Tais fatores foram de extrema importância para que os indígenas que, de

acordo com a própria ensaísta, não possuíam qualquer tipo de produção plástica,

inserissem em meio ao que aprendiam modelos próprios e/ou elementos de seu

cotidiano. No entanto, é curioso notar que por conta do isolamento que as Missões

mantinham do resto da colônia, “el indio de Doctrinas no tuvo jamás idea de otro arte

que no fuese ligado a la religión, expresión religiosa o derivado de ella.”53 (PLÁ,

2006, p. 114). Assim como não tinha a noção de arte plástica em sua cultura, tendo,

dessa forma, como modelo único o padrão europeu, que vimos não ser uno.

A Companhia de Jesus surge na Europa enquanto a maior defensora da

Contrarreforma, em uma época de contradições entre defensas e ataques aos

dogmas da Igreja. Dessa situação contraditória, surge a estética barroca. Todavia,

quando tal estética entra em contato com o que há no novo continente americano,

mesmo que tardiamente, há uma ressignificação da própria contradição, daí a

exuberância que o barroco teve na América Latina.

52 Tradução nossa: A esta circunstância primordial, se uniram outras menos rasas, mas mais concretas: o sistema de trabalho nos ateliês, o isolamento local, especialmente no que se refere à adaptação das formas a especiais características do elemento catequizável. E sobre todas elas, atuando como fatos aglutinante, a intervenção massiva do indígena no trabalho[...] A falta de modelos diretos – quadros para pintura, imagens para escultura – sem falar da total falta do modelo vivo, e, portanto, a ignorância da anatomia, se refletiram acentuadamente na produção. 53 Tradução nossa: o índio de Doutrinas não tema nunca ideia de outra arte que não fosse ligada à religião, expressão religiosa ou derivada dela.

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El jesuita, al diseñar la imagen, o al guiar su realización, o simplemente al elegir el modelo, tiene presente siempre “la necesidad de hacerla lo más elocuente posible en términos psicológicos a los ojos del converso”. Pero la elocuencia barroca aquí adquiere acento distinto, porque son también distintas las mentalidades con las cuales ha de enfrentarse el catequizador. […] en todos los asuntos profanos, y por tanto en materia de arte, procura tener presentes los sentimientos e ideas del pueblo en cuyo medio viven.54 (PLÁ, 2006, p. 115 - 116)

Pelo fragmento acima, podemos perceber a preocupação jesuíta, segundo

Josefina Plá, com o meio em que vivem, havendo uma preocupação com a

mensagem que os missionários queriam passar. Como posto anteriormente, os

Jesuítas estavam sob ordens da Igreja Católica e por conta destas ordens, que lhes

davam certa autonomia na colônia, conseguiram dialogar com os indígenas.

Frente a la cultural del indio, no solo limitada, sino organizada en su sistema distinto a la del europeo, el jesuita simplifica las formulas plásticas – o por lo menos elige, entre las fórmulas dadas, las más simple – siempre y cuando se conserve la integridad de la irradiación artística sobre el entendimiento del creyente. Recurre como instrumento principal a la enseñanza por la vista, adelantándose empíricamente a los conceptos modernos según las cuales la conciencia primitiva opera sobre imágenes ante que sobre ideas (ya en aquella época los jesuitas habían observado que a sus neófitos “les entraban mejor las cosas por los ojos que por el oído”). El mensaje de fe, para estas mentes sencillas, debe articularse en el principio de la grandeza espiritual de la religión y de sus ministros; en la deslumbrada esperanza de la vida ultraterrena; en la autoridad del espíritu; y estos factores o signos adquieren importancia primordial en el barroco local. Se trata aquí, como ya se ha dicho arriba, y habremos de insistir todavía, de un arte enteramente dedicado a la catequesis; está de sobra en él todo aquello que no sea elemento útil para la captación del indígena.55 (PLÁ, 2006, p. 116)

54 Tradução nossa: O jesuíta, ao desenhar a imagem, ou ao guiar sua realização, ou simplesmente ao eleger o modelo, tem presente sempre “a necessidade de fazê-lo o mais eloquente possível em termos psicológicos aos olhos do converso”. Mas a eloquência barroca aqui adquire acento distinto, por que são também distintas as mentalidades com as quais enfrenta o catequizador. [...] em todos os assuntos profanos, e, portanto em matéria de arte, procura ter presentes os sentimentos e ideias do povo cujo meio vivem. 55 Tradução nossa: Frente a cultura do índio, não só limitada, senão organizada em um sistema distinto ao europeu, o jesuíta simplifica as formulas plásticas – ou pelo menos elege, entre as fórmulas dadas, a mais simples - sempre e quando se conserve a integridade da irradiação artística sobre o entendimento do crente. Recorre como instrumento principal o ensino pela vista, adiantando-se empiricamente aos conceitos modernos segundo os quais a consciência primitiva opera sobre imagens ante que sobre ideias (já naquela época os jesuítas haviam observados que seus neófitos “lhes entravam melhor as coisas pelos olhos que pelo ouvido”). A mensagem de fé, para estas mentes simples, deve articular-se no princípio da grandeza espiritual da religião e de seus ministros; na deslumbrada esperança da vida ultraterrena; na autoridade do espirito; e estes fatores ou signos adquirem importância primordial no barroco local. Se trata aqui, como já dissemos acima, e haveremos de insistir ainda, de uma arte inteiramente dedicada à catequese; está sobrando nela toda aquela que não seja elemento útil para a captação do indígena.

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Dessa forma, não é de espantar que o Barroco local tenha assimilado parte da

cultura indígena, pois havia de se ter algum tipo de paralelo entre ambas

concepções religiosas, quase o sincretismo religioso ocorrido no Brasil durante a

escravidão. A cultura popular local se entrelaça à cultura barroca vinda da Europa,

dando origem a uma nova forma da própria arte barroca, a qual está calcada na arte

popular. Arte popular que Ticio Escobar (2014) vai definir como formas provenientes

de culturas as mais diversas, entre as quais engloba também a indígena. O barroco

foi uma das categorias que pôde mais firmemente se adaptar à cultura popular local.

A quase necessidade da contradição vivida pela arte barroca se funde com a

contradição da colonização, que tinha como regente a Companhia de Jesus, no

Paraguai.

Las misiones jesuíticas desarrollaron en el Paraguay un intenso trabajo de

talleres artesanales, pero la idea de considerar artísticas las producciones que allí se realizaban se encontraba al margen de las intenciones de los misioneros. Este desinterés se traducía en dos hechos claros. En primer lugar el sistema de trabajo de los talleres de escultura, pintura, retablo o grabado se basaba en la copia de modelos, celosamente controlada y en lo posible sim margen alguno para la creatividad del indio (filtrada, no obstante, en muchas piezas copiadas que pasaron a impregnarse de un carácter propio). En segundo lugar, esta práctica, aun remedada de la metrópoli, en la medida en que pudiese significar por lo menos destreza artesanal, estaba desvinculada por completo de la experiencia real del indio, de su vida cotidiana y por supuesto, de sus antiguos ritos y creencias.56 (ESCOBAR, 2014, p.50)

Assim, percebemos que, em princípio, havia um grande distanciamento entre o

que o indígena tinha que produzir, ou seja, a cópia dos modelos europeus, e o seu

dia a dia; a arte que ele produzia não o representava, nem a nada que o cercava.

Um cotidiano despojado de elementos estéticos, no qual os objetos produzidos

necessariamente deveriam ter uma utilidade, daí as relações que a arte popular tem

com o artesanato, que acima de tudo tem uma utilidade, uma função prática.

Escobar (2014) afirma que os indígenas eram considerados bons copistas de arte,

apesar dos erros, da imprecisão e da degradação da “verdadeira” arte.

56 Tradução nossa: As missões jesuíticas desenvolveram no Paraguai um intenso trabalho de ateliês artesanais, mas a ideia de considerar artísticas as produções que ali se realizavam se encontravam à margem das intenções dos missionários. Este desinteresse se traduzia em dois fatos claros. Em primeiro lugar o sistema de trabalho dos ateliês de escultura, pintura, retábulo ou gravura se baseada na cópia de modelos, zelosamente controlada e no possível sem margem alguma para a criatividade do índio (filtrada, não obstante, em muitas peças copiadas que passaram a impregnar-se de um caráter próprio). Em segundo lugar, esta pratica, ainda remedada da metrópole, na medida em que pudesse significar pelo menos a destreza artesanal, estava desvinculada por completo da experiência real do índio, de sua vida cotidiana e certamente, de seus antigos ritos e crenças.

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Com uma formação antitética, as culturas que criaram o barroco na América

eram uma estática e outra dinâmica, e o choque entre ambas as modificam.

Segundo Plá, o dinamismo do barroco, quando se choca com o estatismo indígena,

provoca uma mudança e readaptação dos conceitos básicos que regiam ambos.

El indio [...] aportó al trabajo, ya que no una tradición o una experiencia, sí una suma dada de capacidades diferenciadas, una imaginación y una sensibilidad organizadas peculiarmente. Aportó también un entusiasmo, un fervor no superado en las grandes épocas del arte cristiano. Cuando el arte comenzada ya “la escisión entre religión y oficio, preparando el advenimiento del polimorfismo artístico”, en los talleres misioneros el arte retrocede en virtud de una fe ingenua y pura hacia sus fuentes rituales y ofrendarias.57 (PLÁ, 2006, p.116 – 117)

Esses fatores terão reflexo quando se trata da criação de uma arte barroca na

região. Tudo que as criações representam extrapola o mero ornamento para adquirir

valor simbólico. O artista barroco desintegra a unidade da obra introduzindo uma

temática decorativa ornamental que só adquirirá significado em um conjunto total,

relacionado sempre à fé. “La lección simbólica e imaginativa de la decoración

medieval es sustituida por la lección descriptiva y sensible, es decir, por la lección

visual directa.”58 (PLÁ, 2006, p.117 – 118, grifo da autora). Dessa forma, ao

multiplicar os detalhes ornamentais, ele faz o mesmo com as representações da fé

como um todo, mas sempre sob a visão da fé jesuíta, cujos elementos são mais

dramáticos que os locais.

Os jesuítas, para Josefina Plá, baseando-se nas condições históricas,

perderam a oportunidade de retrair a arte decorativa a uma função unívoca, como no

medievo. Não se pensou em produzir um ponto de partida único para as criações.

Todavia, apesar dessa falta de centralização na produção, elas possuem um

denominador comum: a acumulação de símbolos, pela finalidade evangelizadora

que a criação artística tinha dentro das Missões. Toda a reiteração simbólica que era

produzida nas Missões visava a uma assimilação mental e memorialista da doutrina

cristã pelos indígenas. Para Tício Escobar (2014), as ações de uma igreja sempre

57 Tradução nossa: O índio […] contribuiu com o trabalho, já que não com uma tradição ou experiência, e sim uma soma dada de capacidades diferenciadas, uma imaginação e uma sensibilidade organizadas peculiarmente. Contribuiu também com um entusiasmo, um fervor não superado nas grandes épocas do cristianismo. Quando a arte começada já “a cisão entre religião e oficio, preparando o advento do polimorfismo artístico”, nos ateliês missionários a arte retrocede em virtude de uma fé ingênua e pura até suas fontes rituais e oferendas. 58 Tradução nossa: A lição simbólica e imaginativa da decoração medieval é substituída pela lição descritiva e sensível, ou seja, pela lição visual direta

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repercutem em toda parcela da vida de uma sociedade, pela articulação que tem

com um conjunto de práticas que transcendem o da sociedade na qual atua. Assim,

configuram-se como problema quando da criação de um sistema de doutrinas e

ritos, vindos das articulações externas, que diferem das práticas sociais locais. Há,

nesse caso, a produção de uma cultura da intolerância, da autoridade e violência,

que impõe suas verdades censurando outras opiniões que venham a divergir.

A compreensão dos dogmas, pela aceitação das imagens, significava

aceitação de toda a doutrina, com suas regras. “Todo este explica a su vez por qué

los jesuitas no incluyeron en su decorativa motivos profanos de origen o contenido

pagano (sirenas, tritones) que se encuentran en otras partes”59 (PLÁ, 2006, p. 121),

pois se abrissem margem à arte decorativa com temáticas pagãs vindas de Europa,

teriam que abrir às indígenas locais.

De acordo com Josefina Plá, um dos símbolos usados na arte missioneira é

uma das grandes provas da arte mestiça que ali se produzia: o sol humanizado.

Encontrado em algumas das igrejas do Paraguai, assim como em outras partes da

América Latina, como no Equador, Colômbia e Nicarágua, é a grande prova de um

“trasiego interregional de material iconográfico durante la colonia.”60. (PLÁ, 2006,

p.122) . Um símbolo é algo cujo grande significado é atribuído por um povo ou

comunidade. O valor simbólico de algo nunca recai sobre o objeto em si, mas as

propriedades que estes possuem são intrínsecas ao seu significado prático. Torna-

se algo novo e maior.

[…] Numerosos grabados de fecha anterior a la conquista del Perú, inclusive de fines del XV, ostentan esos mismos signos - sol, lunas, estrellas - humanizados y radiantes, acompañando personajes o escenas religiosas. Es posible hallarlas inclusive en pinturas: basta ver la Inmaculada de Juan de Juanes en la sacristía de la iglesia de Sot del Ferrer, en Castellón de la Plana, datada de 1519. Así pues, no creo sea posible seguir sosteniendo la autoctonía de esas representaciones. Aunque caídos en desuso en el Viejo Mundo, esos símbolos como otros muchos siguieron vigentes en la América colonial, al amparo de la distancia y la difícil censura.61 (PLÁ, 2006, p.122)

59 Tradução nossa: Tudo isto explica por sua vez por que os jesuítas não incluíram em sua decorativa motivos profanos de origem ou conteúdo pagão (sereias, tritões) que se encontram em outras partes 60 Tradução nossa: transferência inter-regional de material iconográfico durante a colônia. 61 Tradução nossa: Numerosas gravuras de data anterior à conquista do Peru, inclusive de fins do XV, ostentam esses mesmos signos – sol, luas, estrelas – humanizados e radiantes, acompanhando personagens ou cenas religiosas. É possível encontrá-las inclusive em pinturas: basta ver a Imaculada, de Juan de Juanes na sacristia da igreja de Sot del Ferrer, em Castellón de la Plana, datada de 1519. Assim pois, não creio que seja possível seguir sustentando a autoctonia dessas

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Todavia, Josefina Plá alerta que tal fato não significa que os indígenas locais

não vissem nesses símbolos uma maneira de cultivar seus próprios signos,

aproveitando a analogia simbólica que se fazia. A ensaísta afirma que se o símbolo

fosse efetivamente autóctone e local, ou seja, guarani, a presença dele na cultura

popular teria uma explicação. Os guaranís nunca possuíram qualquer simbologia

que justificasse o uso do “sol radiante” em suas criações junto aos jesuítas.

Contudo, ao conhecer estes símbolos enquanto pertencentes à fé cristã, justifica-se

o seu uso.

Dentre esses elementos simbólicos decorativos, Plá seleciona alguns

elementos que, nessas produções, foram condicionados às mais variadas peças que

influem em seu significado e conteúdo, no que diz respeito ao seu estilo. Como

primeiros fatores, Josefina Plá elenca os propósitos da Companhia de Jesus e as

suas exigências catequéticas, que determinaram tanto os modelos como o que seria

produzido na região, assim como o propósito destas produções, que seria o de

colocar o indígena local em contato com uma série de doutrinas pertencentes ao

cristianismo. Em segundo lugar, fatores históricos e estéticos das criações artísticas

que permitiram o aparecimento do barroco também influíram na arte produzida na

América. O conservadorismo da época, a efemeridade temática, a facilidade para a

produção oferecida pelos modelos vindos da Europa, a inclinação dos jovens

professores jesuítas por determinados modelos, ou seja, houve uma série de fatores

que influíram na própria produção da arte barroca hispano-guarani.

Como es lógico, sin embargo, no puede este arte evitar que en diversos momentos y eventualmente concurran a aumentar y diferenciar su acervo elementos barrocos sincrónicos, configurando una actualización parcial del estilo; esto sucede sobre todo hacia el final, con la intervención de maestros específicamente formados a fines del XVII o principios del XVIII, como Grimau o Brassanelli.

Hacia el final también, comienzan a incorporarse a la temática motivos locales, tomados a la fauna y a la flora terrígenas, en los cuales se reflejan el viraje y fijación de la sensibilidad indígena en la realidad circundante.62 (PLÁ, 2006, p. 124)

representações. Ainda que caídos em desuso no Velho Mundo, esses mesmos símbolos como outros muitos seguiram vigentes nas América colonial, ao amparo da distância e a difícil censura. 62 Tradução nossa: Como é lógico, no entanto, não pode esta arte evitar que em diversos momentos e eventualmente concorram a aumentar e diferenciar seu acervo de elementos barrocos sincrônicos, configurando uma atualização parcial de estilo; isso ocorre sobretudo também no final, com a intervenção de professores especialmente formados nos fins do XVII e princípio do XVIII, como Grimau ou Brassanelli.

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Como podemos perceber na citação acima, não havia meios dos quais os

jesuítas pudessem se valer para que a hibridação cultural que vivemos hoje

começasse a se realizar. No entanto, Josefina Plá afirma que tudo o que era parte

da cultura local que foi introduzida na arte barroca teve autorização dos padres

jesuítas. Motivos representacionais como flores, frutas, plantas em geral, animais da

fauna local, foram sendo introduzidos, primeiramente como decorativos, pois houve

certa resistência na incorporação às figuras religiosas.

Em seu ensaio, Plá deixa claro que, ainda que de maneira muito lenta, o meio

local passa a fazer modificações na própria concepção de arte barroca. A ensaísta

ainda afirma que essas aproximações dos pontos de contato entre as culturas

indígena e barroca são significativas para a concepção de arte barroca-guaraní, esta

arte que é fruto de uma hibridação cultural que historicamente desenvolvida desde o

início da colonização paraguaia. Como exemplo, Josefina Plá escreve sobre a obra

“El Cristo de la Humildad y la Paciencia”, que usa como cajado de apoio um talo de

milho, cultivado tipicamente na região, sobretudo, pelos indígenas. Há uma forte

presença da mistura de culturas que possibilita falar sobre uma representação

barroca que já não é mais a europeia, houve uma assimilação de ambas culturas.

Duas imagens simbólicas, tanto da cultura indígena, no caso o milho, quanto da

cultura cristã, representada por Cristo, funcionando juntas para representar um lugar

que já não é uma extensão da Europa, nem uma permanência do mundo anterior à

chegada dos europeus.

Plá também sinaliza enquanto símbolo que marca o começo do entrelaçamento

das culturas os crucifixos da Triple Faz,

[...] en los cuales, junto con los instrumentos de la Pasión y los de ritual de la Misa, pintados en los brazos de la Cruz, aparece en vez de la figura del Crucificado y ocupando la intersección de los maderos una faz triple diseñada con un simultaneísmo que anticipa notablemente a Picasso y a ciertos retratos de Dalí: una faz se funde en la siguiente de modo que las facciones les son comunes dos a dos; emblemas de la Santísima Trinidad que el Concilio de Trento declaró no litúrgicos, y que sin embargo se encuentran en América en gran número después de dicho Concilio.[…]63 (PLÁ, 2006, p.126)

No final também, começam a incorporar-se à temática motivos locais, tomados à fauna e a flora vinda desta terra, nos quais se refletem a alteração e a fixação da sensibilidade indígena na realidade circundante. 63 Tradução nossa: […] nos quais, junto com os instrumentos da Paixão e os rituais da Missa, pintados nos braços da Cruz, aparece em vez da figura do Crucificado e ocupando a interseção das

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Desse modo, Josefina Plá nos adverte do empenho tido pelos habitantes locais

para, de alguma maneira, adentrar o meio da vida colonial. Não havia, como já

dissemos, meios para que isso fosse impedido, mas, de alguma maneira, cremos,

baseados no exposto pela ensaísta, que com o passar do tempo os próprios jesuítas

que habitavam a região começaram a “permitir” a inserção e a mescla das culturas.

Todavia, não devemos esquecer que o indígena nunca teve uma participação direta,

ativa e decisiva em qualquer atividade relativa à ornamentação e/ou produção de

peças artísticas, tudo funcionava sob olhos de padres jesuítas.

Segundo Tício Escobar, os conhecimentos artísticos foram impostos aos

indígenas pela Companhia de Jesus, a fim de conseguirem uma destruição

sistemática de todos os fundamentos das culturas originais, que seriam substituídos

pelos valores do cristianismo. Daí a inserção tímida e lenta da cultura local nas

obras criadas na região. Todo o ritmo, as escolhas estilísticas, a interdependência

estrutural da obra de arte, as superfícies desenvolvidas, ou seja, a criação da obra

como um todo era pensada pelo professor jesuíta. “Pero ningún proyecto de

dominación puede ser completamente cumplido porque sus fuerzas son relativas y

porque los dominados cuentan con las propias, con las que resisten o, por lo menos,

negocian.”64 (ESCOBAR, 2014, p. 98)

Assim, de acordo com a hipótese levantada pela ensaísta, da não tomada de

decisões por parte dos indígenas, a seleção dos elementos decorativos nos quais se

começa a inserção da cultura guaraní ao barroco contribuiu para a própria formação

do barroco hispano-guaraní. O indígena teria, segundo Plá, uma predileção por

preencher os espaços do criar uma obra. Todavia, os desenhos são sempre simples,

há um preenchimento com formas do cotidiano.

[...] la mente del primitivo no reproduce las cosas tal como los ve, sino como las siente. Del cúmulo de motivos disponibles, el indígena elige aquellos que le resultan más elocuentes por razones de difícil intuición, pero que quizá podamos concretar diciendo que esa selección artística se realiza en él en el mismo plano en que originalmente se realizó su conversión: en el plano del corazón.

madeiras uma face triple desenhada com um simultaneismo que antecipa notavelmente a Picasso e a certos retratos de Dalí: uma face se funde no seguinte do modo que as facções lhe são comuns dois a dois; emblemas da Santíssima Trindade que o Concilio de Trento declarou não litúrgico, e que certamente se encontram na América em grande número depois do dito Concilio. [...] 64 Tradução nossa: Mas nenhum projeto de dominação pode ser completamente cumprido por que suas forças são relativas e por que os dominados contam com as próprias, com elas que resistem ou, pelo menos negociam.

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Hay en este arte pues una resistencia esencial al realismo. (Este se insinúa por fin, pero tarde, en vísperas ya de la expulsión). El indígena en presencia del modelo expresa su contenido tal como le llega a través de su emoción, de ahí el expresionismo inconsciente que a veces aflora en estas manifestaciones.

Así también repite sus asuntos sin variación, porque lo que le interesa es el asunto mismo, y no la personalidad. Esto le lleva a menudo a una verdadera estereotipia de las formas, como sucede con los Cristos.65 (PLÁ, 2006, p.

132)

Por conta de tais modos, perceber o mundo e conceber a criação artística do

barroco, na América como um todo, se modifica. Há no barroco do Novo Mundo uma

substituição da excessiva ornamentação típica do barroco europeu pela experiência

vivida no próprio local. Uma retórica ingênua e vital para a sobrevivência do local.

Formas e temas mais ingênuos, no entanto, vitais para a manutenção cultural, foram

adicionados à rebuscada estilística barroca, em substituição à excessiva

ornamentação europeia. Há, diferentemente de outras formas barrocas, uma

ingenuidade, talvez, excessiva, no Barroco hispano-guaraní, que substitui, segundo

Josefina Plá, as concepções técnicas faltantes em seus criadores. Falta, nas

palavras da ensaísta, entusiasmo pela forma e sobra fervor sobre o conteúdo. Ao

que percebemos havia uma necessidade de “falar” seus próprios conteúdos, fazer-

se substância, em substituição à técnica artística.

Plá afirma que os elementos decorativos da arte barroca hispano-guaraní se

encontram, sem que nada se separe, sem que nada fique solto; eles não se

subordinam uns aos outros; não há um elemento que domina o outro ou que está

em maior evidência; e o barroco se realiza por sua profusão de elementos. O

barroco hispano-guaraní não é excessivo, seus elementos são necessários para a

profusão das emoções locais. Não se realiza enquanto movimento, mas sim

enquanto abundância.

65 Tradução nossa: […] a mente do primitivo não reproduz as coisas tais como os vê, senão como as sente. Do acumulo dos motivos disponíveis, o indígena elege aqueles que resultam mais eloquentes por razoes de difícil intuição, mas que talvez possamos concretar dizendo que essa seleção artística se realiza nele no mesmo plano em que originalmente se realizou sua conversão: no plano do coração. Há nesta arte, pois, uma resistência essencial ao realismo. (Este se insinua por mim, mas tarde, em véspera já da expulsão). O indígena em presença do modelo expressa seu conteúdo tal como lhe chega através de sua emoção, daí o expressionismo inconsciente que as vezes aflora nestas manifestações. Assim também repete seus assuntos sem variação, porque o que lhe interessa é o assunto mesmo, e não a personalidade. Isto lhe leva frequentemente a uma verdadeira estereotipia das formas, como ocorre com os Cristos.

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Para substituir al elemento esencial de la emoción, el movimiento, los jesuitas utilizaron los vivos colores - que no son por ciento privativos de esta área, ya que se los encuentra también en otra área virreinales, y que tampoco fueron una invención suya, ya que son tradición bizantina, y en las basílicas y monasterios de Oriente el color desempeñó tan acentuado papel (recuérdense las iglesias del Sinaí) – pero que también acá revistieron rasgos peculiares en su distribución, contribuyendo a acentuar el sabor bizantinoide, oriental, de este despliegue barroco. El barroco en suma se despoja de crueldad y terror místico, para impregnarse de maravilla elemental. Este barroco no distrae la imaginación con el movimiento. La anega en el esplendor.66 (PLÁ, 2006, p. 136)

O barroco hispano-guaraní foge dos padrões fixos da estética artística para

tornar-se mais, nas palavras de Josefina Plá, emocional. O excesso ornamental,

como já dissemos, do barroco europeu adquire na América traços de essencial, pela

existência de uma necessidade de começar a moldar a arte tal qual a realidade

experimentada, uma realidade de “excessos” que não são excessos, que são

necessidades para a própria existência do local.

A planificação que o indígena local, enquanto produtor das peças artísticas,

promove às estéticas barrocas, substituindo a sobreposição de imagens, pode ser

compreendida se levarmos em conta, como já mencionado anteriormente, que os

habitantes da região, diferentemente de, por exemplo, grandes civilizações como

Maias, Astecas e Incas, não possuíam qualquer experiência plástica. As artes

plásticas entram em contato com um criador, entendido aqui como aquele que

“fabrica” a peça, inexperiente, sem técnica, que dependia da imaginação e da

sensibilidade para toda a criação.

El indio no asimila la forma como resultante de las líneas; capta el detalle, pero no el conjunto. En la línea a su vez no capta la función significativa, sino simplemente la delimitativa. Por eso, como se ha dicho ya, las forma no se funden las unas con las otras en la continuidad del movimiento; se asocian o yuxtaponen, simplemente, regresando a un esquema primario, de dominante estética. Así se despoja el barroco de su característica cualidad pictórica, y cuaja en una etapa a medio camino hacia lo medieval. Expresaremos quizá mejor el mecanismo que lleva al indígena a esta

66 Tradução nossa: Para substituir o elemento essencial da emoção, o movimento, os jesuítas utilizaram as vivas cores - que não são por certo privativas desta área, já que as encontramos também em outras áreas vice reinais, e que tampouco foram uma invenção sua, já que são tradição bizantina, e nas basílicas e monastérios do Oriente a cor desempenhou tão acentuado papel (recordem-se das igrejas de Sinaí) – mas também aqui revestiram de características peculiares em sua distribuição, contribuindo a acentuar o sabor bizantinoide, oriental, deste desdobramento barroco. O barroco, em suma, se despoja da crueldade e terror místico, para impregnar-se da maravilha elemental. Este barroco não distrai a imaginação com o movimento. A inunda no esplendor.

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expresión diciendo que para él la talla es primordialmente un modo de poner más en evidencia – y permanencia - un diseño. 67(PLÁ, 2006, p. 139)

A percepção distinta que o indígena tinha da criação artística se reflete por uma

hibridação cultural que ocorreu no processo histórico, nas concepções artísticas e

literárias da América Latina posterior a este período. Há na modernidade latino-

americana um emaranhado de cores, formas e desenhos que transpassam a

construção da região. Percebemos que todas as concepções modernas do que é

esta região do globo podem se dar, paralelamente, como uma decorrência de todo o

processo histórico que Josefina Plá aponta em seu ensaio.

A ensaísta assegura que podemos compreender as especificidades do Barroco

hispano-guarani se fixarmos em nossas mentes que se trata de uma arte criada em

uma região isolada e esquecida pela grande metrópole, devido à escassez de

recursos minerais. Uma região que só se firma com a interferência da Companhia de

Jesus. Trata-se de uma arte despida de qualquer tipo de crítica ou comparação

elementar. Ainda nas palavras de Josefina Plá, trata-se de uma “Arte por e para el

indígena” (PLÁ, 2006, p. 141), que estava cercado, por todas as partes nas Missões,

de uma cultura religiosa, na qual qualquer ação tinha por objetivo a realização da

vontade da Companhia de Jesus.

Como uma arte criada na ausência de artistas propriamente ditos, o barroco

hispano-guaraní encontrou como substituto para o indivíduo solitário que cria arte

para representar seu povo, o próprio povo que cria arte para se representar. Com

uma identificação coletiva local e um sentimento unânime, afirma Josefina Plá, os

artistas criadores dessa arte barroca tinham quase nenhum conhecimento de

estética artística se comparados a seus contemporâneos europeus. Todavia,

transcendem as expectativas de seus mestres jesuítas com o ingresso de seu

mundo insólito que readapta o destino da arte barroca nesta ilha paraguaia. Mística,

mas nunca chorosa, a arte barroca hispani-guarani retrocede até o símbolo para

67 Tradução nossa: O índio não assimila a forma como resultante das linhas; capta o detalhe, mas não o conjunto. Na linha não capta sua função significativa, senão simplesmente a delimitativa. Por isso, como dissemos já, as formas não se fundes umas com as outras na continuidade do movimento; se associam ou justapõem, simplesmente, regressando a um esquema primário de dominante estética. Assim se despoja o barroco de sua característica qualidade pictórica, e coalha na etapa a meio caminho até o medieval. Expressaremos talvez melhor o mecanismo que leva o indígena a esta expressão dizendo que para ele a escultura é primordialmente um modo de por mais em evidencia – e permanecia – um desenho.

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entrar com uma ingenuidade infantil em um mundo que mistura signos de duas

culturas distintas de tempos e espaços opostos que se entrelaçam, criando o novo.

3.2 Hermano negro ou sob a influência da cultura

Conforme afirma Eduardo Galeano em Las venas abiertas de América Latina,

obra na qual disserta a respeito da dependência e da subordinação da qual vem

sendo vítima a América Latina desde a chegada de espanhóis e portugueses, e,

posteriormente, ingleses, franceses, holandeses, e que na contemporaneidade,

principalmente do século XX, norte-americanos, ou seja, desde a invasão europeia

no século XVI – e aqui se entende invasão como ação de invadir, como incursão

feita contra um ou mais povos, por uma força militar – a América Latina vem sendo

violentada. De grande relevância e influência à época de sua publicação, o ensaio

remete a uma ampla bibliografia e não esconde o ponto de vista: é a visão anti-

imperialista, que pretende instalar o olhar dos oprimidos e das vítimas da história,

questionar a versão oficial do liberalismo.

No século XX, de acordo com Hannah Arendt em Sobre a violência, ensaio no

qual a filósofa alemã discorre sobre as relações de violência e poder, surge a

categoria “genocídio”, até então desconhecida e não tipificada juridicamente. Em

contraponto à afirmação arendtiana, o já referido Galeano afirma que a invasão do

continente americano no século XVI resultou no extermínio de milhões de indígenas.

Segundo Darcy Ribeiro, citado por Galeano,

Los índios de las Américas sumaban no menos que setenta millones, y quizá más, cuando los conquistadores extranjeros aparecieron en el horizonte; um siglo y medi después, se habían reducido, en total, a solo três millones y medio.68 (2011, p. 58-59).

Destarte, não se pode, no contexto atual, deixar de pensar a invasão da

América Latina e o extermínio indígena perpetrados pelos europeus, ainda que não

tipificados como genocídio. O conceito de violência, bem como outros conceitos

relativos às ciências humanas, possui matizes que por vezes se confundem e

confundem os estudiosos: eles podem ser concernentes a um choque entre

68 Trad. Nossa: Os índios das Américas somavam não menos de setenta milhões, e talvez mais, quando os conquistadores estrangeiros apareceram no horizonte; um século e meio depois, haviam se reduzido, no total, a só três milhões e meio.

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manifestantes e policiais em uma reunião acadêmica; à morte de seis milhões de

judeus nos Lager nazistas; ou ao extermínio de mais de sessenta milhões de

indígenas durante a conquista de toda a América; ou ainda, à escravização negra

que, durante séculos, provocou a morte de milhões de africanos e seus

descendentes na América como um todo.

Portanto, como falar da cultura e da literatura latino-americana sem se referir a

essa grande parcela de violência que formou/construiu, e ainda forma/constrói,

referencialidades continentais?

Em um continente invadido, violentado e usurpado, formado por processos de

mestiçagens os mais diversos, os tons da violência por vezes estão dissimulados, no

mais das vezes, pela linguagem. E se pensarmos, ainda mais longe, donde vem

nossa linguagem, nossa referência prima, voltamos à pequena região do Lácio na

qual se originou a latinidade. Latinidade essa que por séculos passou pelos mais

variados tipos de conflitos e violências e que se misturou e se reinventou e se

renovou, e se refez das mais diversas formas, pelos mais diversos contatos, seja

com povos “bárbaros”, seja com povos “indígenas”, até chegar ao novo mundo e ser

novamente reinventada.

No interior da atual América Latina cumpre destacar ademais a presença de outro mundo radicalmente não-latino: o africano [...]. No Caribe verde e transparente, nesse mar que docilmente deixa ver sua intimidade, nessas ilhas que nele se incrustam com luxuriosa orla dupla de musgo e areia, ocorreu durante os séculos XVI e XVII o impiedoso fenômeno do tráfico: a instrumentalização dos homens de uma cor por homens de outra cor. Cem milhões foram “caçados” e transladados da África; só uma terça parte deles teria chegado a seu destino americano. No entanto, este processo teve o surpreendente resultado que agora podemos ver: os escravos retribuíram a seus amos, transmitindo-lhes tudo o que puderam conservar de sua cultura, ensinando-lhes muitas coisas: desde cantar e dançar até lutar por sua liberdade. (MORENO, 1972, p. XVII e XVIII)

Assim, o tráfico não só ocorre no Caribe, mas em toda a América, de norte a

sul, de leste a oeste; em toda a América Latina, o contato com a cultura africana e

sua mestiçagem foi inevitável. No entanto, neste tópico, nos interessam as reflexões

sobre um lugar em particular desta América Latina, um lugar no qual até a

atualidade a confluência de culturas é forte, presente e “grita” incessantemente: o

Paraguai. Para tal, nos valeremos das assertivas da artista hispano-paraguaia

Josefina Plá em sua obra “Hermano negro – la esclavitud en el Paraguay”, publicada

em 1972, época de efervescência de ideias e conceitos relativos à formação da

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América Latina com todas suas mazelas, mesma época de publicação, por exemplo,

de Las venas abiertas de América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano.

Em seu estudo, Josefina Plá traça um perfil da vida cotidiana do escravo negro

no Paraguai a partir de relatos e documentos históricos. Josefina Plá busca a

história da escravidão no Paraguai desde seu início, com a chegada dos primeiros

escravos negros ao país, passando pela origem destes, suas características étnicas,

relatando também sobre o “mercado de escravos”, as condições diferenciadas do

escravo negro no Paraguai, a família escrava, suas condições perante o Estado,

comunidades religiosas, o resgate dos escravos fugitivos, as relações destes com

seus amos, sua participação na Grande Guerra, finalizando no aporte cultural do

negro no país. Além disso, há um importante apêndice no qual estão relatados

casos verídicos de contendas entre escravos e seus amos, avisos de procura de

novos amos, relatos sobre condições de vida, que foram registrados nos tribunais de

justiça do Paraguai pelos próprios escravos negros. “Hermano negro”, de Josefina

Plá, se faz como um dos mais importantes da história social do país, relatando de

forma ampla a escravidão no Paraguai.

Contudo, para que possamos nos valer com mais propriedade do que trata

Josefina Plá em seu ensaio histórico, precisamos compreender o contexto no qual a

autora fala, ou seja, uma América Latina dos fins dos anos sessenta e começo dos

anos setenta, assim como o contexto do qual a ensaísta fala, o período escravista

nesta mesma América Latina.

De acordo com Henry Louis Gates Jr, em Os negros na América Latina (2014),

obra no qual o autor a partir de uma série de documentários produzidas para a TV

estadunidense representa a situação do negro escravizado na América Latina,

desde o início da colonização, 1502 até 1866, cerca de 11 milhões e 200 mil

africanos conseguiram sobreviver dentro dos navios negreiros e fazerem a travessia

do oceano Atlântico para se tornarem escravos no Novo Mundo, o que torna ainda

mais curiosa a situação dos poucos escravos negros que entraram no Paraguai,

poucos em relação a 11,2 milhões de africanos traficados. Em seu ensaio, Josefina

afirma, de acordo com as pesquisas feitas por ela nos arquivos nacionais do

Paraguai que,

[...] en los trescientos años de tráfico de negros no habrían entrado en el Paraguay más que trescientos o cuatrocientos esclavos, o sea, un centenar o poco más por siglo; número notoriamente irrisorio e insuficiente para

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justificar el posterior contingente de mulatos y otros grados de color; y hemos visto como ya en los primeros años de colonia, las partidas comprobables rebasaron esa cifra. Hemos de admitir, pues, que el número de esclavos introducidos fue mucho mayor, aunque logicamente esa importación sufriese altibajos según las épocas.69 (PLÁ, 1972. p.25-26)

Todavia, mesmo afirmando que o número “oficial” de escravos a entrar no país

tenha sido muito pequeno, Josefina não descarta a entrada de escravos ilegais no

Paraguai, o que posteriormente afirmará como vindos, provavelmente, do Brasil,

pelas fronteiras secas. O que explicaria o número acentuado, segundo a ensaísta,

de descendentes de africanos existentes no Paraguai.

A preocupação de Josefina Plá em seu ensaio “Hermano Negro”, assim como

em outros textos da autora, tanto literários quanto críticos, vai de encontro às

preocupações de outros ensaístas, críticos, escritores e intelectuais da época de sua

escrita e publicação; pensar quem é e como se formou a América Latina. Nesse

texto, ela dedica especial atenção à questão da escravização negra, tão fortemente

marcada no Brasil e na América Central, mas que é sublimada e quase esquecida

no cone sul do continente. Contudo, Josefina Plá tende a suavizar a escravidão

negra do Paraguai.

O ato da escravização humana não é algo exclusivamente americano, nem

latino-americano, mas faz parte de toda uma constituição de um modelo social

ocidental70, que vem desde os primórdios de nossa civilização e que atravessou o

Atlântico para se firmar e transformar nas terras do Novo Mundo. Conforme Herbert

S. Klein, em La esclavitud africana en América Latina y el Caribe (1986), obra em

que Klein estuda, por meio de comparações, das origens até o término da

escravidão na extensa e difícil América Latina, desde a formação das sociedades

complexas foi conhecida a escravidão, a qual fazia o ser, pela privação de toda e

qualquer classe livre que ele tivesse, dependente por completo de seu amo. De

roupas a divindades religiosas, de tudo era privado ao ser escravizado. No entanto,

Klein afirma que, quando Colombo chega à América, apesar de haver uma herança

69 Trad. Nossa: Nos trezentos anos do tráfico de negros não haveriam entrado no Paraguai mais que trezentos ou quatrocentos escravos, ou seja, uma centena ou pouco mais por século; número notoriamente irrisório e insuficiente para justificar o posterior contingente de mulatos e outros graus de cor; e vimos como já nos primeiros anos da colônia as partidas comprovadas ultrapassam essa cifra. Temos que admitir, pois, que o número de escravos introduzidos foi muito maior, ainda que logicamente essa importação sofresse altos e baixos segundo as épocas. 70 Reforçamos aqui a questão da escravização como Ocidental, pois é deste lugar que falamos e neste que buscamos nossas referências, portanto o Oriente figura-se muito distante de nosso alcance.

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forte de uma estrutura legal e social herdada de Roma pela Europa cristã, a

escravidão já se encontrava em completo declínio. Não havia mais a necessidade de

se ter escravos na Europa. Estado e sociedade conseguiam manter-se pela força do

próprio trabalho. Não se pode, porém, afirmar que não havia escravos; estes não

eram relevantes, se comparados ao que ocorreu nos anos de tráfico atlântico.

Em “Hermano negro”, Josefina Plá tenta abarcar todas as facetas da vida do

escravo negro no Paraguai, no qual a autora utiliza como fonte histórica documentos

sobre a escravidão do Arquivo Nacional de Assunção com os quais também forma o

dito apêndice do trabalho, com quase cem páginas de documentos.

Ao começar a nadar no mar de documentos do Arquivo Nacional de Assunção,

Josefina Plá dá seu tom à obra histórica que está a escrever, desde a escolha

temática até a forma, por vezes poética: “No fueron seguramente estos esclavos los

únicos llegados en los primeros cuarenta años de la conquista. Algunos más

debieron desembarcar, anónimos, como a su humilde condición cuadraba.71” (PLÁ,

1972, p.18-19). Notando, então, o tom imposto pela autora de literatura no relato

histórico, nunca deixa de realizar uma análise global de sua temática e sempre

desconfia da harmoniosa relação entre escravos e amos, que é afirmada pelos

documentos pesquisados por Plá, assim como dos próprios fatos assegurados por

tais documentos. Apesar disso, sempre devemos desconfiar da relativa bondade

afirmada pela ensaísta em relação ao trato com os escravos.

O exemplo disso, logo no começo do livro, quando Josefina Plá relata a

chegadas dos primeiros escravos no país, ainda durante a conquista, na qual

apreende documentações e relatos históricos que afirmam a chegada de pouco s

mais dez escravos no país durante os quarenta anos de conquista da região, como

podemos perceber pela afirmação feita pela própria autora no parágrafo anterior,

quando falamos do tom poético e desconfiado sob qual Plá cria seu ensaio, que na

sequência afirma: “Que no serían muchos durante un cierto período, es indudable: la

facilidad de obtener siervos, o por lo menos servidores, en la gente de la tierra, fue

grande durante un tiempo.” (PLÁ, 1972, p.19)

Ainda no início do texto de Plá é importante ressaltar um documento

encontrado pela ensaísta com a data de 10 de setembro de 1571, que trata de uma

71 Trad. Nossa. Não foram seguramente estes escravos os únicos chegados nos primeiros quarenta anos da conquista. Alguns mais deveram desembarcar, anônimos, como sua humilde condição quadrava.

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Real Cédula72 feita em Madrid que dá ao “adelantado” ou adiantado, uma espécie de

governador do Rio da Prata, Ortiz de Zárate, a autorização de levar junto consigo

escravos negros oriundos de Portugal, Guiné e Cabo Verde.

Una estadística de Rosenblat, citada por Justo Pastos Benítez, da em 1570:

Tres mil mestizos y mulatos (sin delimitar cifras para uno y otro).

Tres mil blancos.

Doscientos cincuenta mil indios.

El mismo Rosenblat calcula, en 1650:

Quince mil negros y mulatos, sobra una población global de doscientos cincuenta mil habitantes, de los cuales quince mil son mestizos.

Veinte mil blancos.

Doscientos mil indios.” (PLÁ, 1972, p.19 – grifo da autora)

Por esta e outras afirmações, podemos perceber o caráter que Plá afirma em

toda sua obra, não somente em “Hermano Negro” e nos ensaios, do que é o

Paraguai, assim como seu povo e sua sociedade: um lugar mestiço. Todavia, a partir

dessas afirmações coletadas pela autora, observa Plá que tais informações, tais

números, podem ter fugido um pouco da realidade, pois mesmo em meados do

século XVIII quando se começa a exigir maior mão de obra em outros lugares do

globo, por conta do começo de uma industrialização das sociedades, no Paraguai

tais manobras não têm reflexo sobre um grande número de escravos na região. Para

a ensaísta, são mais realistas as afirmativas que relatam que os escravos negros

foram importados somente para o serviço doméstico: “En todo caso, corregiríamos

levemente la afirmación, diciendo que ‘fueron importados, más que para otra cosa,

para el servicio doméstico’.”73(PLÁ, 1972, p.20), confirmando, novamente, o caráter

desconfiado que Plá tem em suas observações e pesquisas nos arquivos históricos

paraguaios, mas que, em certa medida, ajuda, ao longo do texto, a reafirmar uma

falsa ideia de benevolência de amos com escravos e satisfação de escravizados.

Josefina Plá escreve acerca da origem desses escravos. Para tratar de tal

origem, a ensaísta, tomando as palavras de Juan Rengger, afirma que todos os

escravos que entraram no Paraguai vieram de mãos particulares e que nunca houve

72 Uma espécie de ordem dada pelo Rei espanhol durante os séculos XV e XIX, cujo conteúdo era a resolução de algum conflito jurídico, como nomeações, outorgas, ordens de condutas à sociedade ou pessoas, muito usadas nos domínios espanhóis ultramarinhos. 73 Trad. Nossa: Em todo caso, corrigiríamos levemente a afirmação dizendo que “foram importados, más que para outras coisas, para o serviço doméstico.

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um “mercado de negros” aos moldes do que se via nos países com fronteiras

marinhas, como Brasil e Argentina. Todavia, Plá não descarta a possibilidade de

haver surgido na época algum comerciante que introduzisse alguma “piezas” - dito

por ela desta mesma maneira, entre aspas, denotando a ironia presente no texto da

ensaísta ao tratar os escravos como objetos, da mesma maneira com que eram

tratados à época – mas em caráter esporádico e em pouca quantidade. Além do

porto de Buenos Aires, por onde, de acordo com Josefina Plá, entravam os escravos

vindos ao Paraguai, a ensaísta alerta para o fato de que possivelmente entraram

escravos negros pela fronteira seca com o Brasil. Tal fato rememorado por Josefina

Plá pensa a cultura do Paraguai não isoladamente, mas como uma teia de aranha,

lembrando a tradução da palavra ñanduti para o português. O quão mais do Brasil

ou de outras regiões da América Latina não entraram no Paraguai para formar o

país que recebeu Josefina Plá?

Em todo o ensaio de Plá a respeito da escravidão negra no Paraguai, notamos,

para além da pesquisa histórica realizada pela ensaísta, a grande atualidade e o

diálogo que o pensamento de Plá tem com questões que estão em voga quando

publica seu texto. Atentos aos questionamentos que marcaram sua época, podemos

perceber no texto de “Hermano negro” um diálogo com, por exemplo, o pensamento

de Frantz Fanon. Os críticos retomam o pensar da criação da América Latina e se

dedicam à questão da escravidão negra na região que reflete na própria concepção

de subcontinente que temos na contemporaneidade. Em contraposição, Josefina Plá

busca, através do registro histórico, um olhar sobre a escravidão negra do Paraguai

que se encontrava, e podemos dizer que ainda se encontra, subjugada e esquecida

no país.

A criação da crença de que na América Latina não há racismo origina-se na

primeira metade do século XX. Todavia, Frantz Fanon, ao publicar seu livro Pele

negra máscaras Brancas, em 1952, contraria esse pensamento, trazendo à tona

questões relativas ao racismo velado que proliferou na América Latina como um

todo. Apesar de o texto de Fanon ser publicado vinte anos antes do texto de Plá,

podemos pensar em uma época que se inicia nos anos de 1950 e que vai se

desenvolvendo em toda América Latina que busca toda a formação do

subcontinente. Dessa forma, percebemos um grande diálogo que, de algum modo,

Josefina Plá desenvolve, mesmo que indiretamente, com tais pensamentos.

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Um dos fatores mais interessantes que Josefina Plá afirma em seu ensaio diz

respeito ao comércio de escravos negros no Paraguai. Nunca, de acordo com Plá,

houve um comércio mercantil, propriamente dito, no paí;, não havia um “mercado

negreiro”. A própria região onde se localiza o Paraguai impediu, em grande parte, o

comércio escravo durante o período colonial.

Quanto às condições jurídicas e sociais do escravo negro paraguaio, Josefina

afirma que

Una de las disposiciones más notables de la vieja legislación. Invocada en documentos ya de la época independiente, es la que condicionaba la situación del siervo emancipado por el amo, quien podía revocar el acta de libertad y reducir nuevamente a la esclavitud al siervo por él manumitido “si se mostrase ingrato”. Por ley, también, el amo era heredero del esclavo emancipado y muerto ab intestato. No hay sin embargo noticia de que esta última ley hay sido aplicada localmente en la práctica. En cambio, en la cláusula de la ingratitud como para cubrir todas las facetas del humor de los amos, o las infinitas gradaciones del sentido de justicia.74 (PLÁ. 1972, p. 64 – grifo da autora)

Notamos que neste trecho há uma preocupação, por parte da ensaísta, com os

conceitos adotados pelo sistema escravocrata em relação ao que a lei afirma e o

que ela poderia afirmar. Há, por traz do discurso de Plá, uma reverberação do

discurso do sujeito branco espanhol, a “liberdade” do negro era condicional ao que

os senhores brancos decidissem, não havendo assim uma real libertação. O que

seria ingratidão por parte dos escravos emancipados? Ingratidão esta que poderia

ser afirmada se um emancipado se recusasse a realizar qualquer ordem de um

branco livre. Pois bem, o que seria então esta liberdade?

Frantz Fanon afirma em Pele negra, máscaras brancas que “o negro não passa

de uma criança.” (FANON, 2008, p. 41) nas Antilhas dominadas pela França em seu

período colonial. Menciona que todos os seus direitos civis e sociais deveriam

passar por um crivo de um senhor, responsável por conduzir este ser através de

seus dias. Josefina, em um grande diálogo com Fanon, não sabemos se proposital

ou não, assegura que

74 Trad. Nossa: Umas das disposições mais notáveis da velha legislação. Invocada em documentos já da época independente, é a que condicionava a situação de servo emancipado pelo ano, quem podia revogar a ata de liberdade e reduzir novamente a escravidão ao servo por ele alforriado “se se mostrasse ingrato”. Por lei, também, o amo era herdeiro do escravo emancipado e morto ab intestato. Não há, porém, notícias de que está última lei tenha sido aplicada localmente na prática. No entanto, na cláusula da ingratidão como para cobrir todas as facetas de humor dos amos, ou as infinitas gradações do senso de justiça.

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El esclavo no tenía personalidad civil; era en todos los aspectos un menor de edad. Más aún: desde cierto punto de vista y a pesar de su capacidad como sujeto de sacramento, no rebasaba el nivel de “cosa” […]. La Ley misma, al referirse a ellos, tiene a menudo expresiones que no toman en cuenta suficientemente la dignidad humana; el decreto de Libertad de Vientres habla de “Libertad de la cría”. Sin embargo, al esclavo lo vemos curiosamente citado a declarar en juicio y bajo juramento al igual del ciudadano libre; bien que, como es natural, su testimonio es impugnado por la parte contraria, por su situación de dependencia respecto al amo. Contrasentidos de éstos tiene la ley.75 (PLÁ, 1972, p. 65)

Como podemos perceber, o texto de Plá é claro ao se tratar do que

representava o escravo negro no país. Por mais que os escravos negros ficassem

restringidos aos trabalhos domésticos, não sendo explorados nas produções

agrícolas, como no Brasil, na Martinica e Antilhas, por exemplo, o status de “coisa”

do homem negro era o mesmo. Quando se submete um ser humano ao patamar de

uma coisa, não valendo mais que uma mesa ou uma cadeira, a este ser humano

pode-se causar tudo. Sofrimento, desespero, ameaças, agressões, torturas, nada é

demais, pois aquilo não é um ser humano, não há um reconhecimento de igualdade.

Outra categoria interessante ressaltada por Plá é que os escravos podiam

possuir bens móveis e podemos pensar, apesar da autora não afirmar, que tais bens

possam ser, também, outros escravos, desde que seus senhores os autorizassem, e

nesses bens eram incluídos desde roupas para o vestuário próprio a animais que

eles pudessem levar de um lado a outro. Todavia, esses mesmos direitos eram

cerceados, pois não se permitiam, mesmo aos escravos libertos, que usassem seda,

mantos, ouro ou pérolas; de acordo com Josefina Plá, também não podiam obter

terras, mesmo que fossem alforriados. Alfredo Boccia Romañach nos adverte que

“No puede escapar a un estudio de esta índole el grado de violencia que alcanzó el

trato de seres humanos sometidos a la humillación y a la brutalidad de los

poderosos, ni dejar de considerar el tiempo en el que se desarrollaron las

ocurrencias.76” (BOCCIA ROMAÑACH, 2005, p. 75)

75 Trad. Nossa: O escravo não tinha personalidade civil; era em todos os aspectos um menor de idade. Mais ainda: de certo ponto de vista e apesar de sua capacidade como sujeito de sacramento, não ultrapassava o nível de “coisa” [...]. A Lei mesma, ao referir-se sobre eles, tinham frequentemente expressões que não levam em conta suficientemente a dignidade humana; o decreto de Liberdade de Ventes gala da “Liberdade da criança”. Porém, ao escravo o vemos curiosamente citado ao declara em juízo e sob juramento igual ao cidadão livre; bem que, como é natural, seu testemunho é impugnado pela parte contrária, por sua situação de dependência e respeito a seu amo; Contrassensos destes que tem a lei. 76 Trad. Nossa: Não pode escapar a um estudo desta índole o grau de violência que alcançou o trato

de seres humanos submetidos à humilhação e a brutalidade dos poderosos, nem deixar de considerar o tempo no qual se desenvolveram as ocorrências.

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No entanto, de acordo com Plá, no sistema escravocrata paraguaio, o senhor

de escravos também tinha deveres. O amo, como Plá denomina, paraguaio deveria

vestir e alimentar seus escravos.

Estaba igualmente obligado el dueño a instruir a su siervo en la doctrina y dejarle el tiempo libre necesario para asistir a los oficios los domingos y fiestas de guardad; una ley del 18 de octubre de 1549 les aseguraba ese descanso “a la par de los otros cristianos”; el esclavo podía quejarse al juez, se el amo no cumplía estas obligaciones.77 (PLÁ, 1972, p.67)

Josefina Plá elenca diversos fatores que, para a ensaísta, fizeram com que a

escravidão no Paraguai seja considerada mais branda do que nos demais países da

América Latina. Contudo tais fatores devem ser questionados, pois não existe

qualquer tipo de escravidão branda. Desde o processo de colonização espanhola no

Paraguai, com a aliança entre europeus e indígenas, que servirão como mão de

obra barata, até a vinda dos poucos escravos negros ao país, todo o processo de

consolidação da região se deu de maneira, diferenciada. A cultura da aliança entre

as diferentes raças, de certa maneira, prosperou na região. A pobreza, uma das

características da colônia, que não possuía riquezas minerais nem agrícolas, tornou

quase a condição de amos precárias, em relação à sua economia, todavia, os

escravos sempre estavam em piores condições. No entanto, não se produziram

abismos diferenciais econômicos ou culturais, como é o caso do Brasil e de outras

ex-colônias espanholas.

As senzalas brasileiras eram afastadas da casa grande, havendo forte

distinção entre ambas. Já no Paraguai, os escravos viviam mais próximos a seus

amos, em espaços construídos exclusivamente para eles junto à casa principal. De

acordo com Alfredo Boccia Romañach, não existia distinção entre a servidão

escrava e a livre, ambas eram precárias, e a liberdade condicionada à vontade do

amo branco.

El esclavo servía a su amo sin limitación de tiempo o esfuerzo, aunque por ley […] descansaba los domingos (salvo alguna pequeña ocupación doméstica). Desde luego eran las suyas las faenas más pesadas o consideradas más bajas […]. Si el esclavo enfermaba, el amo tenía la obligación expresa de proporcionarle médico y remedios. Algunos amos

77 Trad. Nossa: Estava igualmente obrigado o dono a instruir seu servo na doutrina e deixar-lhe o tempo livre necessário para assistir à missa aos domingos e festa de guarda; uma lei de 18 de outubro de 1549 lhes assegurava esse descanso “à par dos outros cristãos”; o escravo podia queijar-se ao juiz, se o amo não cumpria estas obrigações.

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conscientes cumplían con esa obligación, pero hay motivos para suponer que en muchos casos esa atención no era ni muy esmerada ni muy escrupulosa.78 (PLÁ, 1972, p. 69-70)

Em seu ensaio, Josefina Plá sempre afirma como a escravidão negra do

Paraguai foi mais “branda” do que nos demais países da América Latina. Todavia,

sem deixar o olhar desconfiado a respeito dos documentos oficiais a que teve

acesso. No entanto, ela é categoria, havia uma relação de grande humanidade entre

servos e senhores. Outro fator que Josefina Plá atribui para a suavização da

escravidão negra no país é a semelhança das atitudes que algumas tribos locais

tinham com seus cativos de outras tribos. E também no que diz respeito à própria

construção do estado paraguaio, por meio destas hibridações culturais.

É interessante a analogia que Josefina Plá faz, em seu ensaio, de um quadro

do pintor espanhol Diego Velázquez, no qual o artista representa seu servo Juan

Pareja. Plá afirma que é o único registro de um servo, em terras espanhola, como

protagonista de uma obra artística. Para a ensaísta, Velázquez registra em seu

quadro a presença do ser humano, não a do escravo. Reorientando as noções da

pintura de Velázquez, Josefina Plá conjectura que se pode tomar o quadro do artista

espanhol como um “símbolo del sentido que la esclavitud asignó el espíritu

humanístico español [...] y que hallar su mejor representación en las magníficas

leyes indias.79 ” (PLÁ, 1975, p. 76)

Josefina Plá afirma que em geral, pela forma com que era estruturada a cultura

local, juntamente ao trabalho moderado dos escravos, havia a criação de vínculos

afetivos, algo que parece completamente descabido quando se trata da relação

violenta da escravidão humana. Ao afirmar um trabalho moderado escravocrata,

assim como a criação de vínculos entre amos e escravizados, Josefina Plá,

novamente reforça a visão do sujeito branco espanhol que tenta suavizar o violento

processo de escravidão negra em toda América Latina.

78 Trad. nossa: O escravo servia a seu amo sem limitações de tempo ou esforço, ainda que pela lei [...] descansava aos domingos (salvo algumas pequenas ocupações domésticas). Eram suas as tarefas mais pesadas ou consideradas mais baixas (...]. Se o escravo adoecia, o amo tinha a obrigação expressa de proporcionar-lhe médico e remédios. Alguns amos, conscientes, cumpriam com essa obrigação, más há motivos para supor que em muitos casos essa atenção não era nem muito esmerada nem muito escrupulosa. 79 Trad. nossa: Símbolo do sentido que a escravidão atribuiu ao espirito humanístico espanhol [...] e que fará sua melhor representação nas magnificas leis índias.

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[...] el esclavo se ligaba a la familia, se solidarizaba con la vida del hogar, iba a menudo más allá del simple deber servil para entrar en el ejercicio de altas virtudes humanas, dando ejemplo a los hombres libres. Conocido es el caso de Dionisio, el abnegado siervo del obispo Panés; éste lo había criado, ya mayor; Dionisio atendió con cariño a su anciano amo, valetudinario y privado de razón, bajo la égida de la familia García Díez.80 (PLÁ, 1972, p. 74)

Plá ainda afirma que é possível que no Paraguai, para além das leis criadas

pela coroa espanhola para proteger o escravo, a escravidão se tornou “mais branda”

devido à própria construção da sociedade local. Apesar das revoltas ocorridas, o

clima geral da colônia, desde seu povoamento, foi de tolerância e convivência, na

medida do possível, pacífica. É curioso e contraditório notar que Josefina Plá pouco

questiona a veracidade de tais documentos que afirma uma escravidão branda no

Paraguai na construção de seu ensaio, apesar de “lutar” contra escravidão e abusos

em seus textos literários. A ensaísta afirma que tal imaginário cultural se enraizou na

memória e nos costumes dos habitantes locais.

Ao citar Félix de Azara, em Viajes por la América Meridional, texto

originalmente de 1809, Plá afirma que os paraguaios tratavam seus escravos com

mais humanidade que o resto da América Latina, e que em troca os escravos negros

paraguaios eram mais leais e gratos a seus amos. Falta questionamento de Plá

sobre tal texto, pois trata-se da visão de um homem espanhol do século XIX que

reafirma uma ideia falsa de escravidão feliz. Para Ignacio Telesca, no texto intitulado

La Historiografía Paraguaya Y Los Afrodescendientes, Azara cria o mito do escravo

feliz no Paraguai, o que Telesca afirma não ser verdade. Para o crítico, muitos

escravos negros não se sentiam como hermanos de seus amos, tal como sugere

Josefina Plá desde o título de seu trabalho. Todavia, Telesca reconhece o valor da

obra da ensaísta como pioneira das discussões sobre a escravidão no país.

Plá sin lugar a dudas es la que comienza a arar la tierra archivística y quien va a dar la pauta de los temas a seguir investigando. Ya desde el título de su obra se puede apreciar el tinte de la misma. Sin dejar de realizar un análisis global y general de la temática, siempre insiste en esa supuesta

80 Trad. Nossa: […] o escravo se ligava à família, se solidarizava com a vida do lugar, ia frequentemente mais além do simples dever servil para entrar nos exercícios das altas virtudes humanas, dando exemplo aos homens livres. Conhecido é o caso de Dionísio, o abnegado servo do Bisco Panés; este o havia criado, já adulto; Dionísio atendeu com carinho a seu velho amo, debilitado e privado da razão, sob a égide da família García Díez.

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armoniosa relación entre los afrodescendientes y el resto de la sociedad.81 (TELESCA, 2008, p. 167)

O reconhecido esforço de Plá em seu ensaio se dá pela própria visão da

ensaísta de tratar o assunto de maneira global. Há uma distribuição de todo o

funcionamento da vida escrava no texto, que se inicia pensando sobre a chegada

dos escravos negros ao país e termina por ponderar sobre o aporte cultural do negro

no país. Aclara também como o estado e as instituições religiosas criaram acordos e

leis para também possuírem escravos negros que trabalhassem em obras públicas

ou atuassem na instituição religiosa.

No que diz respeito à escravidão nas comunidades religiosas, Josefina Plá

afirma, e comprova por meio de um apêndice, que era comum e louvável que se

deixasse um ou outro escravo como presente para a ordem, a fim de assegurar boa

vontade com preceitos celestiais. Assim a Igreja também se beneficiava da prática

escravocrata e a perpetuava.

Os escravos eram utilizados para as mais diversas atividades no país, e nas

comunidades religiosas não era diferente. O escravo negro paraguaio, como já dito,

foi amplamente utilizado nas cidades, e não no campo, como no Brasil; eram

escravos domésticos. Utilizados para os mais diversos trabalhos, tais como

carpintaria e alfaiataria, por exemplo, a eles eram ensinados determinados ofícios,

para que também contribuíssem com a renda de seus amos. Nas comunidades

religiosas, os escravos viviam nas redondezas dos conventos, e prestavam a eles os

mesmos tipos de serviços. No entanto, grande parte dos escravos que procuravam

“refúgio” nos conventos, que Josefina Plá afirma serem fugitivos de outras

comunidades religiosas ou amos, eram constituídos por mães solteiras.

Quizá la mayor ventaja que tenían los siervos en las comunidades religiosas, con respecto a los esclavos de los seglares, radicaba en la rapidez y acritud con que reaccionaban sus dueños ante cualquier atentado contra su propiedad esclava y en defensa de ella;82 (PLÁ. 1972, p.115 – 116)

81 Trad. Nossa: Plá sem dúvidas é a que começa a arar a terra arquivística e quem vai dar a pauta dos temas e seguir pesquisando. Já desde o título de sua obra se pode apreciar o tom da mesma. Sem deixar de realizar uma análise global e geral da temática, sempre insiste nessa suposta harmoniosa relação entre os afrodescendentes e o resto da sociedade. 82 Trad. Nossa: Talvez a maior vantagem que tinham os servos das comunidades religiosas, com respeito ao escravos dos leigos, ficava na rapidez e acidez com que reagiam seus donos antes de qualquer atentado contra sua propriedade escrava e em defesa dela;

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É interessante notar, a partir das considerações de Josefina Plá sobre a vida

do escravo na comunidade religiosa e antes disso sobre o escravo do estado, que

tais regimes, diferentemente dos particulares, permitiam, ao menos, que o escravo

tivesse acesso ao trabalho de forma um tanto quanto mais digna. Tinham

determinados ofícios que lhes permitiam certo reconhecimento na comunidade local.

Algo que a se notar no ensaio de Josefina Plá é a a firmação da ensaísta em

uma relativa suavidade da escravidão negra no Paraguai, e que ela se deve, em

grande parte, à própria condição da construção de uma região que de alguma

maneira, integra aos valores, crenças e cultura europeus trazidos pelo colonizador

também a mesma parcela indígena local. De certo modo Plá não percebe,

erroneamente, que todo e qualquer processo de escravidão nunca é suave, e

sempre se trata de um processo extremamente doloroso, mesmo que não percebido

pelo escravizado. De acordo com as pesquisas de Plá, foram poucos, por exemplo,

os casos de fugas e resgates de escravos fugidos, como no Brasil. Segundo as

fontes no Arquivo Nacional consultadas pela ensaísta, casos de fuga de escravos

configuravam exceção, a maioria permanecia com a família por toda a vida, desde o

nascimento. As escravas eram as que em maior grau permaneciam com a família.

Neste ponto falta ao ensaio de Josefina Plá o questionamento em relação aos

próprios documentos, e ao fato de que os escravizados devido a sua condição não

tinham meios para questionar, e na maioria das vezes, fugir, de seus amos.

No entanto, é interessante fazer um contraponto, pois diferentemente dos

casos brasileiros, a “mãe preta” nunca existiu no Paraguai, “‘las paraguayas

preferían amamantar al hijo, antes de confiarlo al ama negra’, dice Justo Pastor

Benítez, lo cual es explicable dado el distinto matiz de los valores sobre los cuales

se asentó la sociedad paraguaya.83 ” (PLÁ, 1972, p. 126). Ou seja, valores estes de

uma cultura que se formou, desde seu início, talvez pela falta de condições

econômicas, enquanto híbrida, condição necessária para a sobrevivência no local,

dado o relativo abandono da coroa espanhola à região.

Para Josefina Plá, baseada em suas pesquisas, de modo geral, o escravo

negro paraguaio tinha carinho por seus amos e por isso não os abandonava fugindo,

algo questionável notados os apêndices que a própria ensaísta coloca no final de

83 Trad. nossa: ‘as paraguaias preferiam amamentar seus filos, antes de confia-lo a ama negra’, disse Justo Pastor Benítez, o qual é explicável dado o distinto matiz dos valores sobre os quais se assentou a sociedade paraguaia.

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sua pesquisa. Só o deixava por motivo extremo ou pela liberdade, ou então, quando

forçado pela morte de seu dono. A ensaísta afirma que um dos casos mais patéticos

que encontrou no Arquivo Nacional foi o de um escravo que após a morte de seu

amo não queria deixar a família deste e recorre do “defensor de Pobre y Esclavos84”

(PLÁ, 1972, p. 127) para isso, mesmo a família querendo vender o escravo para

repartir o dinheiro e os demais bens do amo falecido.

Josefina ainda elenca três maneiras pelas quais o escravo conseguia sua

liberdade: 1) por lei ou ato governamental, 2) por vontade de seu amo, que lhe

concedia uma carta de liberdade (carta de alforria, no Brasil), 3) pelo pagamento de

sua liberdade feito pelo escravo, às custas de trabalhos extras remunerados,

podemos dizer, ou pelo pagamento desta por um terceiro.

Há uma preocupação, no decorrer do ensaio, de Josefina Plá pela afirmação

de que a condição de escravo no Paraguai foi mais suave que qualquer panorama

de escravidão na América Latina como um todo, assim reforçando o mito do escravo

feliz. Por mais que as leis que regiam a escravidão fossem as mesmas em toda

América Espanhola, e semelhantes nas outras regiões americanas, a ensaísta

reforça a todo momento um caráter humanitário, palavras dela, que caracteriza a

sociedade colonial paraguaia, mesmo em contradição ao caráter violento de todo

processo de escravização humana.

[...] la imagen del siervo como individuo cercenado de todo derecho ciudadano no se corresponde con la imagen real del esclavo al cual se reconocen todos los derechos de projimidad, al margen, claro, de la libertad. Los más flagrantes desafueros de los amos (que los hubo) no logran desvirtuar esta realidad: si en el resto de América Hispanica el siervo era a la ves hombre y cosa, en el Paraguay resultaba simplemente un hombre desafortunado al cual el hecho de estar privado de libertad lo hacía doblemente merecedor de compasión y amparo legal. Así vemos a esclavos presentarse al presidente de la República solicitando, no un derecho explícitamente contemplado en la ley, sino basado en la simple humanidad o consideración piadosa.85 (PLÁ, 1972, p. 147-148)

84 Trad. Nossa: defensor de Pobres e Escravos. 85 […] a imagem do servo como indivíduo cerceado de todo direito cidadão não se corresponde com a imagem real do escravo ao qual se reconhecem todos os direitos de proximidade, a margem, claro, da liberdade. Os mais flagrantes desaforos dos anos (que houveram) não logram desvirtuar esta realidade: se no resto da América Hispânica o servo era homem e coisa, no Paraguai era simplesmente um homem desafortunado ao qual o fato de estar privado de liberdade o fazia duplamente merecedor de compaixão e amparo legal. Assim vemos os escravos apresentar-se ao presidente da República solicitando, não um direito explicitamente contemplado na lei, senão baseado na simples humanidade ou consideração piedosa.

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Plá afirma que, devido às condições da escravidão negra local, a submissão

extrema dos escravos aos seus amos, não houve qualquer revolta coletiva por parte

dos servos. Todas os pedidos de mudança de amo partiram de iniciativas individuais

em busca de melhoras próprias da vida de cada servo por alguma desavença entre

este e seu amo. Não houve uma busca de liberdade coletiva de todos os escravos

negros paraguaios.

Os casos de rebeldia aberta dos escravos contra seus amos, no Paraguai, de

acordo com Plá, se dão por meio da fuga, oriunda de uma revolta do servo com seu

amo ou da não possibilidade de compra da liberdade pelo servo. No entanto, tal fuga

não ia além dos limites do território paraguaio. Não há registros de escravos que

tenham fugido do Paraguai com destino ao Brasil, por exemplo, apesar de existirem

registros de escravos fugidos do Brasil em direção do Paraguai, que, em princípio,

eram capturados e posteriormente extraditados.

Todos os negros e mulatos libertos da escravidão prestavam serviços ao

governo do país. Os libertos formavam parte da guarda do país. Havia, segundo a

pesquisa feita por Josefina Plá, regimentos inteiros formados por escravos libertos.

Todavia, antes da Guerra nenhum negro ou mulato ultrapassava o posto de

sargento, mas durante a guerra alguns se tornaram oficiais.

Somente depois do fim da guerra, afirma Plá, e talvez em virtude das

condições nas quais se encontrava o país, e não somente tendo em vista o decreto

de liberdade absoluta, uma nova situação do homem negro no Paraguai se instalou.

A totalidade de seus direitos de cidadãos fora adquirida, e o homem negro se juntou

à massa populacional, não mais ficando preso a um amo ou a serviço do estado.

Ao fim de seu ensaio Josefina Plá entra no assunto que talvez mais nos

interessa entre todos, que trata do aporte cultural do negro no Paraguai. Por mais

que o país seja reconhecidamente, inclusive em suas leis, um local onde a cultura

indígena se mescla, sobressaindo-se em relação às demais, há uma pequena, mas

significativa, parcela da cultura paraguaia que teve como aporte a negritude dos

tempos de escravidão.

Para Stuart Hall, em Cultura e representação, livro no qual o autor trata de

representações da cultura em diferentes âmbitos, a cultura

[...] não é tanto um conjunto de coisas [...], mas sim um conjunto de práticas. Basicamente, a cultura diz respeito à produção e ao intercâmbio de sentidos [...] entre os membros de um grupo ou sociedade. Afirmar que dois

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indivíduos pertencem à mesma cultura equivale a dizer que eles interpretam o mundo de maneira semelhante e podem expressar seus pensamentos e sentimentos de forma que um compreenda o outro. Assim, a cultura depende de que seus participantes interpretem o que acontece ao seu redor e “deem sentido” às coisas de forma semelhante (HALL, 2016, p. 19-20),

Compreendemos, portanto, em um diálogo com Caliban, de Retamar, que é

impossível haver povos de origem africana no Paraguai, sem que seu aporte cultural

de origem esteja presente no país. Se existem pessoas, existe cultura. A

compreensão desse aporte cultural se dá pela própria relação que se estabelece

entre esses ex-escravos que se apoiaram, conforme Josefina Plá, em suas canções

e músicas para preservar sua cultura narrativa e social.

Nos povoados de negros ou de pardos, de acordo com Plá, era de se esperar

que houvesse grande força e ascensão de uma cultura negra. No entanto, a

condensação de elementos culturais próprios não ocorreu, pois estes já haviam

sofrido demasiada mudança no decorrer histórico. A maior concentração e

desenvolvimento de uma cultura negra no país ocorre após a independência, com

grupos de negros livres que criam em uma mesma circunstância um ambiente

próprio, organizados de acordo com bases coletivas de preservação da tradição.

São apontados por Plá como os que mais influenciaram a cultura nacional mais

profundamente, cujos prolongamentos podem ser percebidos na

contemporaneidade, ainda que, para a ensaísta, com grandes mudanças.

El mestizaje, que se operó en ese grupo étnico, fundiéndolo, no sólo con el blanco, sino también con el aborigen, fue un nuevo factor en la desintegración o deterioro de esos elementos culturales. La segregación y enquistamientos, impuestos por el rechazo social, que operan como que el legitima reacción de defensa para conservar y acendrar los elementos propios, aquí no pudo funcionar, o funcionó en medida muy atenuada. Quizá debamos dar por sentado que todo tendió más bien a obrar sobre las formas específicas, diluyéndolas en la corriente común de la cultura popular. Un ejemplo curioso de este trasplante lo da el hecho de que en las Misiones, donde no tenía entrada el elemento negro, se desarrollasen, sin embargo, actuaciones de los llamados “cambarangás” o máscaras negras ( de apariencia fantástica y más grotesca que terrífica, pero de cuya inspiración africana no cabe dudar)86 . (PLÁ, 1972, p.168)

86 Trad. Nossa: A mestiçagem, que se realizou nesse grupo étnico, fundindo-o, não só com o branco, senão também com o aborígene, foi um novo fator na desintegração e deterioramento desses elementos culturais. A segregação e encaixe, impostos pelo rechaço social, que operam como que em legitima reação de defesa para conservar e purificar os elementos próprios, aqui não pode funcionar, ou funcionou em medida muito atenuada. Talvez devamos dar por certo que tudo tendeu melhor sobre as formas específicas, diluindo-as na corrente comum da cultura popular. Um exemplo curioso deste transplante o dá o fato de que nas Missões, onde não tinha entrada o elemento negro,

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Dentre as marcas que hoje permanecem dessa cultura, Josefina Plá destaca a

festa das Cambá la Mercé, realizada por mulheres negras descendentes de

escravos à Virgen de las Mercedes, que era evocada em pedidos de resgate de

escravos negros fugidos. A festa se estabelece em pontos fixos do país como em

Loma Campamento e Laurelty, lugares onde os grupos encontraram mais

oportunidades para desenvolver suas culturas.

No que diz respeito à influência da cultura africana na música, a grande marca

conhecida são os instrumentos de percussão que fazem parte hoje do folclore

desenvolvido no Caribe e no Brasil em torno de suas músicas próprias. No Paraguai,

estudiosos como Juan Max Boettner afirmam, para Josefina Plá, que na música

popular paraguaia não há, em sua criação, qualquer influência negra. No entanto, o

sincopado, que é, grosso modo, a alternância de ritmos fracos e fortes, que é uma

característica da música negra, está presente também na música paraguaia.

Boettner afirma que o sincopado paraguaio não é negro, mas Josefina Plá indaga

que na música aborígene não há a presença dessa alternância rítmica. A ensaísta

questiona, então, de onde teria surgido tal alternância senão da cultura negra

escravizada.

Josefina Plá afirma, também, haver influências de culturas negras nos

instrumentos musicais usados e nas danças praticadas no país, ainda que em

regiões restritas. Para a ensaísta, ainda que com extrema dificuldade, seria possível

encontrar rastros da influência africana na culinária e no vestuário paraguaios, assim

como em algumas formas folclóricas de espiritualidade. Para além disso, há também

trabalhos que envolviam destrezas manuais e de primeira necessidade, como

alfaiataria, carpintaria, sapataria, tecelagem, que já realizavam durante a escravidão,

e que, posteriormente, em liberdade continuaram a praticar como forma de

sobrevivência. Plá afirma que os negros eram muito mais habilidosos que os

indígenas nesses tipos de ofícios.

Para Plá, o aporte do negro na construção da cultura popular paraguaia, assim

como de seu folclore, necessita ser estudado, pois o tema é extremamente

interessante, todavia, não é o tema fundamental do trabalho que a ensaísta realizou.

Porém, a necessidade de investigar tal parcela da cultura paraguaia deve ser feita

com grande seriedade, pois seus vestígios estão desaparecendo cada vez mais. Se

se desenvolveram, porém, atuações dos chamados “cambaragás” ou máscaras negras (de aparência fantástica e mais grotesca que pavorosa, mas cuja inspiração africana não cabe dúvida).

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pensarmos que o texto de Plá foi publicado em 1972, podemos perceber a

importância dada pela ensaísta, já nessa época, com o cuidado de tudo aquilo que

de alguma forma, mesmo que modestamente, ajudou a construir o país.

3.3 Sobre espanhóis, guaranis e mestiços

Ao pensarmos o processo colonizador da América Latina como um todo, nos

fixamos nas grandes civilizações que existiam no subcontinente. Maias, Astecas e

Incas formam o grande panteão indígena quando se reflete sobre as chegadas dos

espanhóis na América. No entanto, em se tratando dos habitantes que já viviam na

região americana, devemos pensar também em milhares de povos distintos,

menores, mais atrasados, no que diz respeito ao avanço tecnológico e estrutural de

sua população. Destes, na colonização da parte Sul da América, adentrando ao Rio

da Prata, os espanhóis tomam conhecimento dos guaranís. É a partir dessa tomada

de conhecimento e de suas relações que nasce grande parte da cultura paraguaia

que se faz presente na atualidade.

De acordo com Rubén Bareiro Saguier,

Cultura Mestiza por definición histórica, la latinoamericana es resultante de la inserción ibérica inicial – la suplantación progresiva luego – en el tronco multiforme de las culturas amerindias, con el posterior agregado del elemento africano y de los aluviones inmigratorios.87 (BAREIRO SAGUIER, 1972, p.21)

Dessa forma, nossa cultura em geral é um emaranhado de diversas culturas, o

que dificulta a afirmação de uma identidade própria; a literatura latino-americana

tenta, de alguma forma, dar conta desta autoidentificação. Em Españoles en la

cultura del Paraguay, publicado em 1985, podemos perceber uma preocupação da

ensaísta em retomar temas que versam sobre a formação da cultura paraguaia

enquanto processo histórico, lembrando que os textos analisados anteriormente, a

saber, El Barroco hispano-guaraní e Hermano negro – La esclavitud en Paraguay,

versam também sobre o tema da criação de uma cultura própria, híbrida, e que tem

como ponto de partida bases históricas.

87 Trad. Nossa: Cultura Mestiça por definição história, a latino-americana é resultante da inserção ibérica inicial – a suplantação progressiva - no tronco multiforme das culturas ameríndias, com o posterior agregado do elemento africano e dos aluviões imigratórios.

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Quando da chegada dos espanhóis à região que hoje é o Paraguai, as

comunidades guaranís locais, de acordo com Plá, se encontravam no início de uma

espécie de Idade do Metal, na qual começavam a extrair e usar o ferro, embora com

bastante dificuldade. Todavia, o processo de desenvolvimento da população sofre

uma brusca interrupção. Com a chegada dos espanhóis, não havia mais a

necessidade de extração natural do metal, pois os europeus o traziam em relativa

abundância.

Josefina Plá afirma ser, em geral, amistoso o contato entre os povos guaranís

com o espanhol estrangeiro. Se produz, desse modo, um interesse recíproco entre

ambos, que irá se transformar em uma aliança de sangue, pois em uma espécie de

pacto os guaranís entregaram suas mulheres aos europeus, demonstrando

confiança e firma de acordo, como em seus costumes. Segundo Bareiro Saguier

(1979), essas relações se firmaram ainda mais com a chegada dos jesuítas. É a

partir daí, ou seja, desde o início da colonização das terras paraguaias, que se dá a

mestiçagem das raças. O Paraguai é híbrido desde sua criação, desde sua

concepção enquanto parte conhecida do mundo ocidental. “Y se inicia el mestizaje

en masa, mientras los guerreros de una y otra parte, unidos, llevan a cabo empresas

expedicionarias que para el español son fin: descubrimiento y conquista; y para el

guaraní, simplemente, obtención de medios para el afianzamiento de una

hegemonía.”88 (PLÁ, 1993, p.39).

Nesse sentido, cria-se um regime de dependência entre ambos os povos, que

fica muito maior por parte dos guaranís. Os guaranis não necessitam mais de uma

procura por metais, pois os espanhóis os têm e oferecem em quantidades

suficientes; os espanhóis já não têm mais o que descobrir, pois as regiões ao redor

já têm ocupantes em suas terras. No entanto, o grande problema, segundo Josefina

Plá, se verte em achar um foco comum de interesse de ambos os povos.

De acordo com Édouard Glissant,

As culturas do mundo sempre mantiveram contatos mais ou menos estreitos ou dinâmicos entre si, mas só na época moderna foi reunido um certo número de condições que precipitaram a natureza desses contactos.

88 Trad. Nossa: E se inicia a mestiçagem em massa, enquanto os guerreiros de uma ou outra parte, unidos, levam a cabo iniciativas expedicionarias que para o espanhol são fim: descobrimento e conquista; e para o guaraní, simplesmente, obtenção de medio para o financiamento de uma hegemonia.

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O sentimento difuso de consumação do mundo, no sentido geográfico, retirou à descoberta do outro aquilo que ela tinha de aventura ou de místico. (GLISSANT, 2011, p. 34)

A descoberta para ambos estava perdida. Espanhóis encontraram terras já

habitadas, e os guaranís tiveram seu desenvolvimento próprio, enquanto cultura,

quebrado. Ocorre, dessa forma, por meio, talvez, opressor, o que Glissant (2011)

chama de Relação que, partindo de um conceito de rizoma, se reconhece enquanto

múltiple, cria relações de identidade, por mais torta que possa parecer, com o outro.

Apesar da aliança de sangue ter frutificado e prosperado, o desenvolvimento da

cultura guaraní por si só comprometido, afirma Plá, e seria inútil tentar recomeçar ou

consertar a ruptura. Havia uma superioridade técnica muito grande do espanhol

sobre o guaraní, que por consequência acabava eliminando qualquer tentativa de

grupos, por mais isolados que possam ser os casos, de rebelar-se contra o

espanhol. Dessa forma, o espanhol suplanta e impõe sua cultura e modo de vida

acima do guaraní.

No decorrer do processo de colonização, a região que originalmente era parte

do Paraguai sofre inúmeras perdas e reduções. A vasta região original e a pouca

população europeia, aliada à massiva população indígena, dá lugar à criação de

cidades que majoritariamente são povoadas por descendentes mestiços, nascidos

das uniões dos homens espanhóis com as mulheres indígenas. Todavia, pouco a

pouco, elas desaparecem dada, principalmente, à pobreza da região. “El hecho del

mestizaje masivo, único en Hispanoamérica en las características de su proceso

social, acapara el panorama demográfico y es determinante en el desarrollo

constitutivo de la cultura colonial.”89 (PLÁ, 1993, p.40)

Um grande marco da colonização da região paraguaia, segundo Plá, é a falta

das mulheres espanholas. A esmagadora maioria das pessoas que vieram à região

com objetivos de colonização eram homens, e grande parte destes solteiros. Plá

ainda menciona que dentre os casados foram poucos os que trouxeram as esposas

e filhos espanhóis ao lugar recém conquistado, e destes a maioria pertencia às elites

de poder.

Todavia, esses grupos eram pequenos, em relação aos outros, o que tornou

ineficiente a pressão cultural inibidora da cultura local. Aliou-se a esse fator, de

89 Trad. nossa: O fato da mestiçagem masiva, único na Hispano-América, nas características de seu proceso social, monopoliza o panorama demográfico e é determinante no desenvolvimento cosntitutivo da cultura colonial.

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acordo com Josefina Plá, o crescente número de uniões matrimoniais de espanhóis

com mestiças e/ou indígenas. Assim, há um impedimento da manutenção/imposição

da cultura estrangeira espanhola enquanto única a ser desenvolvida no local.

Lo español y lo guaraní se conjugan, intercambian sus elementos materiales y espirituales durante la colonia en forma relativamente pacífica, patriarcal, en un espacio histórico que contribuye al proceso en virtud de los límites reducidos y definidos que a la expansión geopolítica imprimen ya, desde el comienzo, las circunstancias brevemente insinuadas.90 (PLÁ, 1993, p. 41)

Há uma troca de elementos que permitem uma hibridação cultural muito forte

no Paraguai. Tanto indígenas quanto espanhóis participam dela de maneira forte. No

entanto, essa hibridação ocorre por elementos distinto de ambos lados. No caso

espanhol, dado pelos homens e as poucas mulheres espanholas que vieram à

colônia, na mesma proporção. Do lado indígena, segundo Plá, ocorre principalmente

através da mulher; o homem indígena permaneceu recluso em sua tribo.

Josefina Plá afirma que a mulher guaraní traz uma cultura prática ao convívio

espanhol, que influi, por conta disso, ativamente na vida da cidade recém-criada.

Dessa forma, o idioma guaraní começa a fazer parte do dia a dia da cidade, da vida

cotidiana de cada um. Todo o aparato cultural relativo à transmissão de valores, à

descendência de costumes e ao idioma, será perpetuada na nova sociedade pela

mulher, e não pelo homem guaraní, que “permanecerá en su tribu intransfomado

como masa.”91 (PLÁ, 1993, p.42). Porém, juntamente com esse homem que

permaneceu na tribo, permaneceu também muito da cultura guaraní que não foi

incorporada de maneira concreta e total à nova vida. A mulher nas comunidades

indígenas locais ficavam afastadas dos rituais mais secretos da tribo, relegados

apenas aos homens. Para George Robert Coulthard, em La pluralidad cultural (1979,

p. 53), “Es imprescindible establecer desde el principio que no habría aportes

indígenas sin el intermediario castellano”92, pois toda a cultura indígena mantida foi

fixada, primeiramente, em língua espanhola. Logo, todo o aparato cultural que não

era mais dado pelo homem guaraní foi substituído pelo homem espanhol e sua

90 Trad. nossa: O espanhol e o guaraní se conjugam, intercambiam seus elementos materiais e espirituais durante a colono em forma relativamente pacífica, patriarcal, em um espaço histórico que contribui com o processo em virtude dos limites reduzidos e definidos que a expansão geopolítica imprime já, desde o começo, as circunstancias brevemente insinuadas. 91 Trad. nossa: permanecerá em sua tribo intransformado como massa. 92 Trad. nossa: É imprescindível estabelecer, desde o princípio que não haverias aportes indígenas sem o intermediário castelhano.

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forma de escrita. Podemos reafirmar, a partir disso, que a cultura paraguaia já

nasceu híbrida.

Esos hijos mestizos aprenderán a rezar en español; aunque lo harán también en guaraní, cuando llegue el momento de la traducción de las oraciones cotidianas a la lengua vernácula. Aprenderán a leer, y a escribir en algún caso, aunque no sea su “hobby” la lectura. (La mujer tardará en conocer los beneficios de la alfabetización)93 (PLÁ, 1993, p. 43)

Dessa forma, cria-se um cidadão que depende das duas leis, das duas

condições de cuidado cultural para sobreviver. Após passar os primeiros anos com a

mãe, de cultura guaraní, o filho homem passa a conviver mais ao lado do pai. Esse

fato faz com que pouco a pouco o filho substitua a cultura guaraní natural da mãe

pela cultura espanhola de seu pai. O reflexo na sociedade dessa “atitude cultural” se

fez enquanto evolução desta. Houve toda uma troca do que fez daquele lugar uma

aldeia indígena para transformá-la em uma cidade, nos moldes europeus. As casas,

primeiramente de palha e outros materiais, são substituídas por casas de um tipo,

ainda que rudimentar, de alvenaria, com telhas de barro. A estruturação passa a ser

a de uma sociedade europeia, distante do modelo da tribo. Talvez o caso mais

conhecido de um americano mestiço que se educou na Europa e que,

posteriormente, se volta para a América a fim de desmistifica-la é o do inca

Garcilaso de la Vega que a partir de Los comentarios reales, de 1609, cujo objetivo

era diminuir o menosprezo que a maioria dos espanhóis sentida do Novo Mundo,

caso, claro, que até certo ponto se difere do Paraguai.

Contudo, indiretamente, Josefina Plá afirma que é na primeira infância que se

formam as pessoas, e esta parte da educação que ficou, por diversos fatores

sociais, relegada à mãe fez com que os costumes básicos guaranís fossem, de

alguma maneira, preservados, também por meio de escrita em espanhol. Há uma

hibridação dos costumes e práticas sociais de ambas culturas. “Aligerará en lo

posible el vestido, preferirá ir descalzo a ir calzado.”94 (PLÁ, 1993, p. 43)

É interessante que, apesar de toda a hibridização ocorrida no país, ainda haja,

de acordo com Plá, uma separação nítida entre a população: os senhores e o povo.

93 Trad. nossa: Esses filhos mestiços aprenderão a rezar em espanhol; ainda que o farão também em guaraní, quando chegar o momento da tradução das orações cotidianas à língua vernácula. Aprederão a ler, e a escrever em alguns casos, ainda que não seja seu “hobby” a leitura. (A mulher tardará em conhecer os beneficios da alfabetização) 94 Trad. nossa: Aliviará no possível o vestido, preferirá ir descarço a ir calçado.

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Hibridização aqui vista, conforme afirma García Canclini (2002, p.124), como “el

conjunto de procesos en que estructuras o prácticas sociales discretas, que existían

en forma separada, se combinan para generar nuevas estructuras, objetos y

prácticas en los que se mezclan los antecedentes.”95. Divisão que açabarcava, sob a

insigne nos dos “senhores”, todos os espanhóis recém cegados ao continente, mas

que também se estende, posteriormente aos militares, depois aos mais ricos locais.

A ensaísta afirma que a alcunha se tornará um modo de vida no país. Do outro lado

se encontrava o povo que

[...] abarca la masa mestiza y el porcentaje indio asimilado. El señor es español; ya sea éste recién llegado (en documentos tardíos lo vemos distinguido con el calificativo de español – europeo) ya nacido en el país (criollo) o hijo de español y de mestiza (o inclusive de indígena pura) reconocido por el padre, llevando su apellido y viviendo bajo el mismo techo. El mestizo de primera sangre que predomina durante el siglo XVI (antes de terminar este siglo) constituye núcleo en el cual la sangre en uniones sucesivas y diversas se combinará, en las más diversas proporciones, con el español, con otros mestizos, y también con indígenas.96 (PLÁ, 1993, p. 44)

Junto a essa combinação, Plá assegura um terceiro elemento na constituição

do país, que é o elemento negro. Percebemos que, de alguma maneira, a

constituição dos povos que posteriormente formarão o Paraguai atual se realiza de

maneira muito próxima ao que se dá em toda América Latina. Com o diferencial que

nessa região há um predomínio de influência de povos indígenas e suas culturas.

Fato que difere em certo grau, por exemplo, da formação caribenha, na qual há um

predomínio de povos oriundos de África.

Josefina Plá afirma que a sociedade colonial paraguaia se distingue de todas

as colônias americanas por seu tom patriarcal, para com seu povo. Além de existir

um senhor espanhol e rico, há também o espanhol pobre, porém, ambos

permanecem com o mesmo status social, o que facilita as relações entre classes no

país. Tal relação quebra também as barreiras que são em toda sociedade impostas

95 Trad. Nossa: O conjunto de processos em que estruturas ou práticas sociais discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas nos que se mesclam os antecedentes. 96 Trad. Nossa: […] abarca a massa mestiça e a percentagem índia ilhada. O senhor é espanhol; seja este recém chegado (em documentos tardios o vemos distinguido com o qualitativo de espanhol – europeu) o nascido no país (crioulo) ou o filho de espanhol com mestiça (ou inclusive com indígena pura) reconhecido pelo pai, durante o século XVI (antes de terminar este século) constitui núcleo no qual o sangue em uniões sucessivas e diversas se combinará, nas mais diversas proporções, com espanhol, com outros mestiços e também com indígenas.

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aos mestiços, que passam a ocupar cargos e herdam propriedades de seus pais

espanhóis ou crioulos. Ou seja, a mestiçagem passa a fazer cada vez mais parte do

panorama social paraguaio. A ensaísta afirma que é possível que hajam famílias que

“permaneceram espanholas”, mas que tal divisão de casta não sobreviveu por muito

tempo. O espanhol, para Plá, juntamente com toda sua cultura se enraíza cada vez

mais no novo lugar, nas terras paraguaias, sem deixar de ser espanhol, mas ao

mesmo tempo deixando de ser espanhol. Segundo Bareiro Saguier (1979), quando

duas culturas entram em choque, nenhuma delas permanece a mesma. O guaraní

busca, também, uma consolidação de sua cultura e língua como partes da

sociedade local.

A convivência e sobrevivência das duas línguas, a espanhola e a guaraní, no

Paraguai da atualidade se vê também efetivada pelo próprio processo de

colonização que a região sofreu. O guaraní “sobrevive y se impone en cuanto pueda

comunicar con eficacia lo útil y necesario97” (PLÁ, 1993, p. 45) de todas as

exigências humanas que emergem desta realidade cultural, e, repetindo, como

afirma Bareiro Saguier (1979), pelas mãos dos jesuítas, que usaram da língua

guaraní para impor a cultura cristã e espanhola. Já o idioma español, “sobrevive y se

impone por el específico planteamiento que históricamente asume y al cual es capaz

de responder. ”98 (PLÁ, 1993, p. 46). A força do espanhol reside na manutenção das

relações com todas as outras colônias que estão à volta da nova sociedade

paraguaia. No entanto, é mais forte na capital do que no interior, onde predomina

ainda o guaraní. Dessa forma, a catequização jesuíta foi de grande estratégia para o

governo espanhol, pois faria com que houvesse uma aparente “permanencia de un

elemento cultural tan importante como es la lengua [...]”99 (BAREIRO SAGUIER,

1979, p. 24-25) dando a possibilidade de maior exploração daquele povo “[...] y, al

mismo tiempo, debilitamiento de la visión del mundo tradicional indígena.”100

(BAREIRO SAGUIER, 1979, p. 25), ou seja, há uma genialidade maldosa no fato de

“respeitar” e “apunhalar” ao mesmo tempo o povo guaraní, para que ajam conforme

os espanhóis desejavam.

97 Trad. nossa: sobrevive e se impõe enquanto possa comunicar com eficácia o útil e o necessário. 98 Trad. nossa: sobrevive e se impõe pela específica exposição que historicamente assume e à qual é capaz de responder. 99 Trad. nossa: permanência de um elemento cultural tão importante como é a língua [...] 100 Trad. nossa: [...] e, ao mesmo tempo, debilita a visão do mundo tradicional indígena.

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Toda hibridação ocorrida no Paraguai colonial não é realizada em pouco

tempo, há uma lentidão nas ocorrências das ações, na incorporação das formas e

dos usos de outros os elementos. É interessante também pensar no Paraguai

enquanto uma das colônias que não caiu nas graças da metrópole. Sua história pré-

hispânica não era tão suntuosa quanto a de outras regiões, nem estava tão

desenvolvida, não houve uma grande imigração de europeus para a região, que não

oferecia riquezas minerais para imediato abastecimento espanhol, o que ocasionou

um menor interesse da corte espanhola em se firmar na região, assim como,

também, retardou o desenvolvimento sociocultural e econômico paraguaio.

De acordo com Josefina Plá, a simplicidade dos elementos que compunham

juntos a cultura local, aliada a um ritmo lento, permite estabelecer, até certo ponto,

os traços que formam, em síntese, a cultura paraguaia. De todo esse aparato

cultural, os artesanatos, de acordo com a autora, é que sofrem com maior rapidez os

efeitos das mudanças ocasionadas pelas hibridações culturais. Dessa forma, há de

se considerar, para Plá, três fatores principais para a evolução destas atividades.

PRIMERO: que en los núcleos pobladores, bien que figurase, como a menudo se ha hecho constar, una proporción de individuos de procedencia hidalga superior quizás a la que se instaló en otras áreas, no se contasen sin embargo membros de la especificamente llamada nobleza o sea “títulos de la Corona”.

SEGUNDO: - no menos evidente y determinante – el lento y escaso pulso económico de la colonia. “Desde el principio fue éste un país de agricultores y ganaderos”.

TERCERO: el aislamiento, característica fundamental en el desarrollo de esta región.101 (PLÁ, 1993p. 47-48)

Segundo Plá, para além dos fatores mencionados que dizem, também, respeito

ao processo de colonização do Paraguai, se adicionam outras questões. Havia, na

época, muito poucos espanhóis e europeus em geral no Paraguai, não havia uma

elite estabelecida e forte. Não houve também, para Plá, por conta desses motivos,

uma variedade muito grande de artesanatos, nem uma divisão entre os que faziam e

vendiam dos que compravam as peças. Podemos pensar, portanto, numa sociedade

101 Trad. nossa: PRIMEIRO: que nos núcleos povoadores, que figurasse, como a princípio se fez constar, uma proporção de indivíduos de procedência fidalga superior, talvez, à que se instalou em outras áreas, não se contasse, porém, com membros da especificamente chamada nobreza, ou seja, “títulos da Coroa”. SEGUNDO: - não menos evidente e determinante - o lento e escasso pulso econômico da colônia. “Desde o princípio foi este um país de agricultores e pecuaristas. TERCEIRO: o isolamento, característica fundamental no desenvolvimento desta região.

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colonial no país que é um reflexo do próprio processo colonizador da região que não

buscou dividir, e sim integrar ao local. No entanto, nunca devemos esquecer que

todo o processo foi, de alguma forma, imposto aos indígenas que não tiveram

condições de recusar.

Josefina Plá afirma que a partir dessas considerações devemos nos fixar no

surgimento de um terceiro seguimento, o do homem mestiço, que forma parte do

Paraguai na atualidade, e já estava fixa no século XX, quando o ensaio foi escrito,

enquanto parte importante e majoritária da população local. Não há mais um reduto

indígena nem espanhol no país, e sim uma mescla de ambos, surgida por uma

relação, até certo ponto, de reciprocidade. Realiza-se, assim, uma base cultural

distinta, sem discriminação dos elementos oriundos tanto da cultura guaraní quanto

espanhola. Segundo Benjamin Abdala Junior em Margens da cultura: mestiçagem,

hibridismo & outras misturas, e que aqui podemos direcionar para o pensamento de

Josefina Plá em seu ensaio, “em termos culturais, diríamos, como Glissant, que o

mundo se criouliza. Isto é, torna-se cada vez mais mestiço, mesclado, abrindo-se

cada vez mais sem preconceito para a mistura, para a consideração das

formulações hibridas.” (ABDALA JUNIOR, 2004, p.18)

Houve casos, segundo a ensaísta, de tribos indígenas que permaneceram

isoladas, e que só no século XX começaram um processo de mestiçagem racial com

os chamados gringos. Todavia, esses casos são mais raros. O que Plá destaca

como fator principal e atuante da cultura do país é a parcela da população que

descende diretamente dos mestiços oriundos da época de colonização, que afirma

serem únicos em toda América Espanhola.

Los escritores nacionales, a partir del 1900, han tomado el tema, no abandonado ya desde entonces, aunque adopta hoy ciertos carices diversos; queriendo llegar al fondo del análisis de las imbricaciones, que, desde lo biológico, ascendiendo por causes potenciales del espíritu, deciden la forma de un nuevo pensar y sentir, en las generaciones mestizadas. El empuje de ambas culturas en pos de un concierto fértil, que sólo puede manifestarse en un cambio de formas, hasta ahora, tal como aparece diseñado por los hechos, atestiguan en estas formas la impronta indeleble del español. La cultura actual paraguaya es fundamentalmente hispánica.102 (PLÁ, 1993, p. 48)

102 Trad. nossa: Os escritores nacionais, a partir de 1900, tomam o tema, não abandonado desde então, ainda que adotem hoje certas “carices” diversas; querendo chegar ao fundo da análise das imbricações, que, desde o biológico, ascendendo por causas potenciais do espirito, decidem a forma de um novo pensar e sentir, nas gerações mestiças. O estímulo de ambas culturas em posse de um

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É interessante notar que a própria Josefina Plá, como escritora hispano-

paraguaia, também adota o tema dos mestiços para si em diversos de seus escritos,

principalmente os prosaicos. Com efeito, em seus textos, assim como nos textos de

outros escritores locais, os modos operantes das narrativas são hispânicos. Não há

uma narrativa que seja exclusivamente autóctone, em seus escritos, tampouco não

há também uma narrativa que seja propriamente espanhola. Ainda para Abdala

Junior (2004),

Se o estabelecimento de uma ordem hegemônica pressupõe a administração dos bens materiais e simbólicos nas redes nas quais exerce seu domínio, é importante para ele atenuar ou eliminar as diferenças que causem alguma distonia no sistema. Melhor que eliminar, convém ao hegemônico cooptar e incorporar de forma produtiva essas tensões. (ABDALA JUNIOR, 2004, p.18)

O que existe na obra de Plá são textos que se constroem, assim como seu

povo, mestiços, mas que diferentes deste aparentam uma maior profundidade com

relação à sua “parte” espanhola. Dessa forma, tomando a literatura como um

“produto” da cultura, podemos corroborar nosso pensamento com o de Plá, na

citação da página anterior, e afirmar, também, que a cultura paraguaia é, em muitos

aspectos, mais hispânica que guarani.

Não há como impedir que a mestiçagem de raças aconteça nos mais diferentes

lugares do mundo. Há sempre uma mescla ocorrendo. No entanto, quando se fala

de cultura paraguaia, a marca hispânica é permanente. Em outros lugares, a

influência cultural de outras nacionalidades, como ocorre no sul do Brasil, que são

distintas daquela que colonizou o país, são nítidas e inegáveis, todavia, no Paraguai

o que sobressai, acima de tudo, é a matriz espanhola. Não há, segundo Plá, uma

região no país que tenha maior influência italiana, francesa, inglesa ou portuguesa,

por exemplo. Toda a grande influência que há na formação da cultura hibrída

paraguaia ou é autóctone, indígena guaraní, ou hispânica.

De maneira geral, em relação à colonização hispânica, Charles Gibson, no

ensaio “As sociedades indígenas sob o domínio espanhol”, que compõe o segundo

volume de História da América Latina – América Latina colonial, organizado por

concerto fértil, que só pode manifestar-se em uma mudança de forças, até agora, tal como aparece desenhado por fatos, testemunham nestas formas a impronta indelével do espanhol. A cultura atual paraguaia é profundamente hispânica.

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Leslie Bethell, afirma que “A conquista foi intensa e destruidora, mas seu principal

efeito para a história maior é que ela colocou os índios sob a jurisdição espanhola e

tornou-os sujeitos à lei espanhola e a todo o espectro de controles e influências

espanholas, legais e ilegais.” (GIBSON, 2004, p. 273). Se pensarmos que a

sociedade guarani era, em comparação aos grandes impérios Inca, Maia e Asteca,

relativamente simples, não é estranho pensar na grandiosa influência que a

metrópole teve no processo de consolidação da sociedade paraguaia.

Contudo, também não há como negar a grande influência que a cultura guaraní

teve e ainda tem na cultura paraguaia, sendo necessário que assim se reconheça,

pois, segundo Plá, não há como o país negar parte do composto que ele se tornou

com o passar da colonização. O Paraguai, acima de tudo, é o resultado de uma

hibridação das culturas Guarani e espanhola. Embora com o advento da

contemporaneidade, e já o era na época de escrita do texto, haja uma grande

influência anglo-saxã, a ensaísta afirma que o mais substancial da cultura do país,

ou seja, seu espírito segue sem ser afetado por tal influência.

No importa que su efecto sobre las formas de vida y expresión sigan el compás que en otros países, y aparentemente cubran, desconfigurándolos, los matices de esa vida espiritual propia, bajo la marea del “cosmopolitismo”. Sólo aparentemente; el duro carozo permanece.103 (PLÁ, 1993, p. 49)

No ensaio que aqui analisamos, Plá defende a sua influência hispânica na

formação da cultura local, que é o objetivo de seu texto. Josefina Plá afirma que se

trata de pensar que a cultura local é criada quando ambas as outras, guaraní e

espanhola, “aceitam”, de certa forma, rever seus matizes, adaptando-se ambas,

modificando-se ambas, para uma permanência. Desse modo, criam algo novo, que

foi novo, talvez, lembrando a assertiva de Arturo Uslar Pietri, em Nuevo Mundo,

Mundo Nuevo, desde o início, foi novo mundo desde sempre, em se tratando de sua

criação.

3.3.1 Dos artesanatos e seus substratos

No decorrer de seu ensaio, Josefina Plá irá discorrer sobre os artesanatos que

sofrem modificações e influências com o contato das culturas. Começa pelos

103 Trad. nossa: Não importa que seu efeito sobre as formas de vida e expressão sigam o compasso que em outros países, e aparentemente cubram, desconfigurando, os matizes dessa vida espiritual própria, sob a maré do “cosmopolitismo”. Só aparentemente; o duro caroço permanece.

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artesanatos de substrato indígena, como a cerâmica, que ganha sensível melhora

técnica com a chegada dos espanhóis à região, que, posteriormente, devido à

dificuldade de importar louça europeia, ganha novos refinamentos. Todos os

produtos eram produzidos para atender às necessidades locais. A cerâmica artística

não é uma constante na colonização, ela surgirá muito depois desse período.

Posteriormente, explora questões acerca dos artesanatos à base de fios e

tecidos produzidos já anteriormente a chegadas dos espanhóis, mas que tinham,

assim como a cerâmica, também a função de responder ao uso prático no dia a dia

da tribo. Com o contato entre as culturas, passa-se a conhecer um uso diferente dos

tecidos, bem como da criação de formas mais delicadas destes. Todavia, “[…] la

artesanía del tejido tampoco experimentó modificación sensible en el curso de ella

debido siempre a la sencillez de la vida colectiva.”104 (PLÁ, 1993, p. 51). Na

fabricação de roupas, por exemplo, Plá afirma que não havia uma distinção entre

tecidos para esta e outras utilidades, pois a moda paraguaia não passava

facilmente, e os vestuários deveriam ser para durar a vida toda. Os artesanatos em

forma de cestaria também não sofreram muito com o contato com o colonizador em

suas técnicas, mas assumiram uma nova função na sociedade, como a confecção

de chapéus, por exemplo. Em relação aos artesanatos em couro, que como todos os

demais já eram produzidos pelos indígenas, houve uma melhora em relação à

técnica empregada para curtir o couro, assim como sua utilidade se fez presente em

mais aspectos da vida cotidiana, pela falta de produtos europeus.

Após uma apresentação dos artesanatos de substrato indígena que são

produzidos no Paraguai, Plá entra no que chama de “Artesanias transculturadas”,

que são artesanatos que não eram propriamente locais, mas que se transformaram

e se expandiram no país. A ensaísta cita os artesanatos em metais, joias, trabalhos

com madeira, bordados e rendas.

Quanto ao processo de colonização da região, Luis Rojas Villagra, em La

metamorfosis del Paraguay: Del esplendor inicial a su traumática descomposición,

de 2014, afirma que

El modo de sociedad mercantilista hegemónico en Europa entre los siglos XV y XVI, que daba centralidad a la acumulación de metales preciosos y al comercio exterior como mecanismos de enriquecimiento de una sociedad,

104 Trad. nossa: […] o artesanato de tecido tampouco experimentou modificação sensível no curso dela devido sempre à simplicidade da vida coletiva.

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impulsó los proyectos de búsqueda y colonización de nuevos territorios por parte de las potencias europeas de ese tiempo, como España, Portugal, Inglaterra, Holanda y Francia. Esa búsqueda de nuevas fuentes de recursos naturales y ampliación del comercio derivó en la invasión y ocupación progresiva de los territorios indígenas del posteriormente denominado continente americano, en la mayor parte de su geografía, desde el extremo norte hasta el extremo sur. 105 (ROJAS VILLAGRA, 2014, p. 30)

Dialogando com o pensamento de Josefina Plá e o modo colonizador espanhol,

podemos concluir que colônia Paraguaia não se manteve forte economicamente

devido à falta de recursos minerais que interessavam grandemente os espanhóis.

Essa falta de tais provisões reflete também na produção cultural da região. Os

artesanatos envolvendo metais foram pouco desenvolvidos, pois não havia grandes

reservas a serem exploradas. Somente nas Missões Jesuíticas tiveram algo de

desenvolvimento, devido ao poder e riqueza da igreja católica da época. No entanto,

houve certo trabalho com metais preciosos no país em sua maioria trazidos de fora,

trabalhos estes que a ensaísta afirma serem produtos que só foram possíveis pelo

processo de transculturação.

La orfebrería, de neta transculturación, se explaya con más imaginación que otras artesanías, y ello es explicable. En muchos de esos casos esas piezas vinieron del exterior (del Altiplano sobre todo, y a partir de la mitad del siglo XVIII). En las que fueron obra local, los joyeros paraguayos utilizando motivos barrocos durante mucho tiempo y hasta hoy, y a partir de cierta época motivos locales – fito y zoomorfos - (especialmente en los mates lograron piezas de sabor sumamente atractivo dentro de un cierto primitivismo formal.106 (PLÁ, 1993, p. 54)

Ao destacar a ourivesaria, Josefina Plá retoma o tema principal, podemos

dizer, de grande parte, se não toda, sua obra ensaística. Há um processo de

transculturação e hibridação cultural que marcou o Paraguai e sem o qual ele não

105 Trad. Nossa: O modo da sociedade mercantilista hegemônica na Europa entre os séculos XV e XVI, que dava centralidade e acumulação de metais preciosos ao comércio exterior como mecanismos de enriquecimento de uma sociedade, impulsionou os projetos de busca e colonização de novos territórios por parte das potências europeias desse tempo, como Espanha, Portugal, Inglaterra, Holanda e França. Essa busca de novas fontes de recursos naturais e ampliação do comércio derivou na invasão e ocupação progressiva dos territórios indígenas do posteriormente denominado continente americano, na maior parte de sua geografia, desde o extremo norte até o extremo sul. 106 Trad. Nossa: A ourivesaria, de nata transculturação, se espraia com mais imaginação que outros artesanatos, e isso é explicável. Em muitos desses casos essas peças vieram do exterior (de Altiplano sobretudo, e a partir da metade do século XVIII). Nas que foram obra local, os joalheiros paraguaios utilizando motivos barrocos durante muito tempo e até hoje, e a partir de certa época motivos locais – fito e zoomórfico – (especialmente nos mates lograram peças de sabor sumamente atrativo dentro de um certo primitivismo formal.

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pode existir. O mate, infusão indígena, se transformou, não em sua essência, ainda

se configura em sorver a água que está em meio à erva-mate. Todavia, seu modo

de preparo modificou-se. A cabaça, na qual os indígenas das tribos serviam a

infusão, foi adornada por prata e, algumas vezes, por ouro, na cidade de influência

espanhola.

A produção de mobiliário em madeira, também, afirma Plá, é resultado de

processos transculturais. Os móveis foram construídos nos moldes europeus com

madeiras locais, pois as ocas indígenas não possuíram qualquer coisa além de

redes, ou algum banco improvisado. Nessas peças mesclavam os motivos barrocos

com aspectos da flora da região. Assim como em outros trabalhos não

necessariamente mobiliários, feitos também em madeira, como afirmamos nas

apreciações anteriores do ensaio El Barroco Hispano-Guarani.

Quantos aos trabalhos dos bordados e rendas, aos quais damos atenção

especial a um deles no próximo capítulo, Josefina Plá também as vê como produtos

transculturais. A cultura guaraní não possuía, de acordo com a ensaísta, objetos de

artesanato que envolvessem o feitio de bordados ou de rendas, estes vieram todos

no fluxo da colonização. Todavia, figuram enquanto uma direta contribuição da

mulher espanhola no dia a dia da colônia, pelo caráter de artesanato para o lar, que

as peças possuíam. Bordados e rendas, como o ñandutí, se converteram em

patrimônio feminino paraguaio, sendo adotado por mulheres espanholas, mestiças e

indígenas. Ao ñandutí, a cultura popular cria diversas lendas, muitas com vertentes

indígenas, para seu surgimento, mostrando, dessa forma, a profundidade que a

renda adquiriu na cultura local.

3.3.2 Das etapas de desenvolvimento histórico

Partindo para outra esfera do ensaio, que Josefina Plá intitula “La cultura de la

colonia”, a ensaísta rememora o começo de seu texto quando menciona a dupla

frustração, tanto espanhola quanto guaraní, no período de chegada dos europeus à

região paraguaia. Espanhois “descobriram” uma terra já habitada e sem recursos

minerais abundantes, sem metais preciosos; Guaranís tiveram seu desenvolvimento

natural impedido, pois os conquistadores trouxeram o metal que eles apenas

começaram a manipular.

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[...] esa quiebra traslada la acción expansiva a la intimidad del hombre: se traduce en un oleaje interior cuyas manifestaciones serán la rebeldía, las dificultades para la adaptación. [...] Especulando sin compromiso, podríamos suponer que esa lucha íntima hallaría duplicación más compleja y apremiante en el ánimo del mestizo, heredero de una doble frustración. […] las huellas de esa lucha espiritual, de esa voluntad de ser truncada y no agotada, debe reflejarse en las manifestaciones que se llaman “del espíritu” - como si no lo fuese toda acción humana – y que preferimos llamar “superiores” en cuanto trascienden por sí mismas, en incesante proceso.107 (PLÁ, 1993, p. 61)

O mestiço carrega em si de toda um passado cultural de dois povos distintos.

Claro que no que diz respeito à sociedade local, a manutenção deste status social,

assim como sua construção, são, notadamente, baseados na sociedade espanhola.

Tudo o que rege tal sociedade é, em sua maioria, hispânico, todavia, o que rege o

espírito de seus habitantes é mestiço, é parte guaraní. Para Josefina Plá, o espirito

local se desenvolve por meio de diversas maneiras.

Uma das maneiras que Josefina Plá afirma que o pensamento espanhol se

manteve, de alguma forma, no Paraguai foi através dos livros. Dos poucos se

dedicavam à leitura, e quando o faziam liam livros espanhóis que representavam

modos de vida muito distantes do que ali se mantinha. Mesmo após muito tempo da

chegada e com a colônia já confirmada, os descendentes dos primeiros

colonizadores também mantinham, por meio de leituras e influências vindas da

Europa pelos espanhóis que recém-chegados e pelos livros trazidos por estes,

hábitos peninsulares, mesmo que nunca tivessem saído do Paraguai.

Todavia, há, também no período colonial, o que Josefina afirma ser quase uma

editora dentro das missões, que publicavam livros dos padres jesuítas, embora estes

permanecessem apenas no interior da missão, não sendo distribuídos nas demais

regiões da colônia. Somente no final do século XVIII e começo do XIX é que se

firmam as gráficas que editam textos produzidos na região. Os livros produzidos no

país nunca tiveram grande difusão até o século XIX. Ou seja, tudo o que era

propagado na região, em termos de livros e tudo o que era representado neles,

vinha da Europa.

107 Trad. nossa: […] essa quebra translada a ação expansiva à intimidade do homem: se traduz em um fluxo de onde interior cujas manifestações serão a rebeldia, as dificuldades de adaptação. [[[. Especulando sem compromisso, poderíamos supor que essa luta intima acharia duplicação mais complexa e urgente no ânimo do mestiço, herdeiro de uma dupla frustração. [...] as impressões dessa luta espiritual, dessa vontade de ser truncada e não esgotada, deve refletir-se nas manifestações que se chamam “do espirito” - como se não o fosse toda ação humana - e que preferimos chamar “superiores” enquanto transcendem por si mesmas, em incessantes processos.

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Outra forma de desenvolvimento do que a ensaísta chama de espírito local foi

o teatro. Plá afirma que os jesuítas foram grandes cultivadores do teatro, ferramenta

usada para catequese indígena. Para Rubén Barreiro Saguier,

[...] es preciso tener en cuenta que el aprendizaje de la lengua con fines de catequesis era uno de los instrumentos más eficaces de la penetración político-cultural. Por ello la literatura que se difundía en las lenguas aborígenes era eminentemente religioso-cristiana por su contenido, de servicio (sermones, catecismos, ejemplos, vidas de santos, etc.). No interesaban las tradiciones auténticas de los indios pues se trataba de remplazar las “supersticiones” indígenas por los principios de la “religión verdadera”.108 (BARREIRO SAGUIER, 1979, p.24)

Quando da expulsão destes do território colonial, grande parte dos indígenas

e/ou descendentes voltaram para suas tribos, contudo, levaram com eles parte dos

saberes adquiridos, dentre eles o teatro. Josefina Plá alerta que apesar de alguns

estudiosos afirmarem que os guaranís possuíam representações teatrais antes da

chegada dos espanhóis, tal fato não pode ser confirmado. O que se pode confirmar

por meio de documentos e crônicas é a existência de um teatro na época de domínio

jesuíta na região, e posterior a esta. No entanto, esse teatro era didático e religioso,

não tendo motivos de representação dos costumes locais. Apenas com a saída dos

jesuítas é que o teatro se volta, com grande dificuldade, para a crítica social e

representações de costumes.

Josefina Plá ainda aponta como as instruções da população, de maneira geral,

também foi um instrumento de manutenção cultural da época, tanto a pública quanto

a privada. Nessa medida, a ensaísta afirma que, dado o caráter pelo qual a nova

sociedade se construiu, e seu apelo e zelo ao autóctone, não se mostrou muito

interessada pelo cultivo das ditas belas artes. No entanto, se mostrou profícua

quando à produção e criação das artes populares. Devemos atentar, também, que

grande parte do desenvolvimento seja ele nas artes plásticas, seja nos artesanatos

representativos locais, se deu, na época colonial, dentro das missões jesuíticas.

Que hubo jesuitas maestros, españoles, es indudable; que se utilizaron modelos españoles, también. Pero los datos sueltos no permiten, en

108 Trad. nossa: […] é preciso ter em conta que a aprendizagem de uma língua com fim de catequese era um dos instrumentos mais eficazes de penetração político-cultural. Por isso a literatura que se difundia nas línguas aborígenes era eminentemente religiosa-cristã por seu conteúdo, de serviço (sermões, catecismos, exemplos, vidas de santos, etc.). Não interessavam as tradições autenticas dos índios pois se tratava de substituir as “superstições” indígenas pelos princípios da “religião verdadeira”.

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conjunto, establecer con visos categóricos, sino que entre los maestros – y si nos atenemos a los nombres conservados – no fueron mayoría los españoles, por lo cual debemos suponer que tampoco los modelos lo fuesen. Todo esto equivale a deducir que la influencia cuanti y cualitativa española en la plástica de las Misiones no es posible establecerla con exactitud ni mucho menos, y en todo caso, es difícil superase cuantitativamente a la italiana.109 (PLÁ, 1993, p. 77)

Dessa forma, não é estranho pensar que a cultura autóctone vivia no dia a dia

da colônia, ensinada pelas mães de ascendência indígena, tenha se sobreposto à

cultura espanhola, neste caso. Voltamos a afirmar, não é uma questão de estética

ou técnica avançada, mas, como lembra a própria ensaísta no começo se deu texto,

uma questão de espírito.

No que diz respeito às letras do período, que são extremamente importantes

para a consolidação da cultura local, Plá afirma que “La poesia culta durante, no ha

dejado sino rarísimos rastros. ”110 (PLÁ, 1993, p. 80). Também é total a ausência de

notícias sobre os cantos autóctones coloniais, o que é explicado no próprio ensaio

de Plá, ao assinalar que dos cantos e lendas da tribo ficavam os homens

encarregados, e foram as mulheres que ficaram na cidade, casadas com espanhóis.

Todavia, é abundante na região a tradução de poesias/canções hispânicas ao

guaraní, estas de certa forma modificadas em forma bilíngue. Podemos até mesmo

presumir que daí nasce o yopará, forma da língua paraguaia que mescla nuances de

espanhol com guaraní.

Josefina Plá assegura que o “romance” foi bastante desenvolvido na região,

por ter um cunho, desde sua estética, popular, e que até o século XX ainda era

cultivado no Paraguai. O Romance, de acordo com Massaud Moisés, no Dicionário

de termos literários, é uma “composição poética tipicamente espanhola, de origem

popular, de autoria não raro anônima e de temática lírica ou/e histórica, geralmente

escrito em versos de sete sílabas, ou redondilhos maiores. (MOISÉS, 2004, p. 400)

mas, no caso do Romance espanhol o verso é octasilabo. Entretanto, tampouco é

possível encontrar amostras de tais composições “romancescas” populares que

permitam uma visão mais conclusiva. As composições que persistiram são difíceis

109 Trad. nossa: Que houveram jesuítas mestres, espanhóis, é indubitável; que se utilizaram de modelos espanhóis, também. Mas os dados soltos não permitem, em conjunto, estabelecer com visão categórica, senão que entre estes mestres - e se não atentarmos aos nomes conservados – não foram a maioria espanhóis, pelo qual devemos supor que tampouco os modelos o fosse. Tudo isto equivale a deduzir que a influência quanti e qualitativa espanhola na plástica das Missões não é possível de se estabelecer com exatidão nem muito menos, e em todo caso, é difícil supera em quantidade à italiana. 110 Trad. nossa: A poesia culta durante, não há deixado senão raríssimos rastros.

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de classificar, uma vez que “[...] se trata más bien de romances cultos, cuya amplitud

de difusión desconocemos. Lo único que se puede afirmar es su neto patrón

hispánico, espíritu y forma.”111 (PLÁ, 1993, p. 80). Não há, também, formas poéticas

cantadas que restem grandes mostras preservadas. No entanto, das que restam a

influência hispânica é evidente, tanto em forma quanto em conteúdo.

Entre tanto, la musa popular concentra sus propios jugos.

Los españoles traen consigo, individualmente, y como grupo, un volumen dado de narrativa popular – cuentos, leyendas, fábulas - que formará la base aculturada – teórica – de un nuevo folklore; Pero pasando antes por el tamiz de la sensibilidad y la imaginación indígena.112 (PLÁ, 1993, p. 81)

Josefina ainda afirma que toda a cultura vinda com o colonizador espanhol

permaneceu estanque. As lendas, mitos e fábulas, espanholas, que mudam com a

evolução social não mudaram, neste caso. Ocorre um rompimento do que seria

necessário para a manutenção de uma sociedade espanhola na América. Há a

aparição do que podemos chamar de “vazios” deixados por membros da cultura

espanhola, as mulheres, que, ao menos a princípio, pouco faziam parte da vida da

nova sociedade. Tais “vazios” foram, no entanto, preenchidos pelo elemento

indígena, representado por meio da mulher indígena, que, assim como o homem

espanhol, não detinha todas as parcelas de sua própria cultura. Dessa forma, ocorre

o que, talvez, podemos chamar, nos baseando nas proposições de Garcia Canclini

(2013), de hibridação cultural. Nas narrativas, principalmente orais, há uma inserção

grande tanto do elemento espanhol quando do elemento indígena.

A transmissão de fábulas, mitos e lendas foi feita pela mulher guarani ao filho

mestiço, embora não possuísse todos os conhecimentos a respeito das histórias da

tribo, pois grande parte ficava a cargo dos homens. Logo, parte dessas narrativas

são preenchidas pelo elemento espanhol, presença forte e majoritária na vida

cotidiana da nova sociedade.

111 Trad. nossa: [...] se trata melhor de romances cultos cuja amplitude de difusão desconhecemos. O único que se pode afirmar é seu nato padrão hispânico, espirito e forma. 112 Trad. nossa: Entretanto, a musa popular concentra seus próprios jogos. Os espanhóis trazem consigo, individualmente, e como grupo, um volume dado de narrativas populares – contos, lendas, fábulas – que formarão a base aculturada – teórica - do novo folclore; Mas passando antes pela peneira da sensibilidade e da imaginação indígena.

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Así en el acervo folklórico (que hasta el momento no había sido todavía objeto ni mucho menos de análisis exhaustivo, aunque sí existen estudios interesantes, y sobre todo compilaciones, que cumplen un papel importantísimo y casi de últimos auxilios, a un caudal que va desapareciendo a ritmo acelerado en los últimos lustros, a causa del también acelerado ritmo del progreso) pueden detectarse sin gran esfuerzo elementos del folklore español y de otras procedencias; aunque éstas últimas, escasas, no interesan aquí, y sí sólo las hispánicas, o las que sin serlo originariamente, llegaron a través del español. Un ejemplo lo da el llamado arbitrariamente mito del lobisón (hombre lobo) que, aunque de origen europeo oriental, arraiga, parece, en el Noroeste español (Galicia) y llega al Paraguay en fecha no precisa, pero temprana; tanto como para que se lo dé como “mito” propio (en Argentina el hombre lobo se convierte en el hombre tigre por la simple razón de que localmente el tigre es la fiera típica)113 (PLÁ, 1993, p. 83)

Como podemos perceber, há uma típica adequação das histórias ao meio em

que estão sendo contadas. Relembrando a própria trajetória de Plá, de acordo com

Mateo del Pino (2002), ela se encarregou de uma série, “Cuentos de ayer y de hoy”,

em um programa rádio, no qual recriava contos já existente de diferentes

nacionalidades e épocas, contos clássicos, europeus, aos moldes locais, dando

novos sentidos e formas às conhecidas fábulas infantis. Uma relação semelhante

ocorre com diversos mitos e ledas, como na citada pela ensaísta, as histórias do

lobisomem, que também fazem parte do folclore brasileiro, nascem na Europa, e

vem, pelas mãos dos conquistadores, se transformar em solo americano. Há toda

uma recriação da mesma narrativa oral, que se adequa de região a região. As

histórias do lobisomem contadas no Paraguai dificilmente são iguais às contadas no

Brasil.

É interessante quando a ensaísta afirma que tais hibridações culturais se

constroem não apenas no âmbito das narrativas orais, como também em toda

parcela da sociedade paraguaia. Para Peter Burke, em Hibridismo cultural, “Práticas

hibridas podem ser identificadas na religião, na música, na linguagem, no esporte,

nas festividades e alhures. (BURKE. 2016, p. 28). Há cidades com nomes indígenas,

113 Trad. nossa: Assim no acervo folclórico ( que até o momento não havia tido todavia objeto nem muito menos análise exaustivo, ainda que sim sejam estudos interessantes, e sobre tudo compilações, que cumprem um papel importantíssimo e quase de últimos auxílios, a um caudal que vai desaparecendo a ritmo acelerado nos últimos lustros, por conta do também acelerado ritmo do progresso) podem detectar-se sem grande esforço elementos do folclore espanhol e de outras procedências; ainda que estas últimas, escassas, no que interessam aqui, e sim só as hispânicas, ou as que sem ser originalmente, chegaram através do espanhol. Um exemplo o dá o chamado arbitrariamente mito do lobisomem (homem lobo) que, ainda que de origem europeia orientar, fixa, parece, no Noroeste espanhol (Galícia), e chega ao Paraguai em data imprecisa, mas prematura; tanto como para que se dê como “mito” próprio (na Argentina o homem lobo se transforma no homem tigre pela simples razão de que localmente o tigre é a fera típica)

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mas com a tradição do padroeiro enquanto um santo católico, também se faz

presente o modo de vestir espanhol e parte de seus pratos típicos, que também

foram adaptados ao meio local. Burke (2016) ainda afirma que os indivíduos ou já

nasceram em uma cultura híbrida, por conta de pais de diferentes culturas, ou de

alguma maneira se tornaram híbridos porque se viram em meio a hibridação, isso

ocorre de bom grado ou não.

Nos anos iniciais da independência paraguaia, afirma Plá, houve tertúlias que

conseguiram, por sua constância, ainda que não em definitivo, dar início a uma cena

cultural própria do país. Todavia, esse fator só foi possível graças à imigração,

ocorrida por motivos da independência, que levaram famílias mais ricas e com

maiores conhecimentos relativos à alta cultura. “Fueron portadores de las primeras

bibliotecas de contenido predominantemente laico, ofreciendo un horizonte menos

limitado al pensamiento local: y podemos darlos como elementos activos en la

promoción de esas tertulias.”114 (PLÁ, 1993, p. 88). A ensaísta ainda afirma que,

salvo as Missões Jesuíticas, a influência hispânica na formação da nova sociedade

não se manifestou por meio de qualquer ação de grande porte, ou por intervenção

institucional, mas sim por ações cotidianas de manutenção social criadas dentro da

sociedade, por pessoas comuns.

Durante o governo de Francia, a cultura espanhola sofre um duro golpe no

Paraguai. Não há, segundo Plá, registros da entrada de espanhóis no país durante

os anos do dito governo. Nesse mesmo período governamental fixou-se uma lei que

proibia os homens espanhóis que residiam no país de se casar com uma mulher

também espanhola, era obrigatório que se casassem ou com uma mulher negra ou

com uma mulher indígena. Vale lembrar que o governo de Francia durou trinta e

cinco anos.

Fue la época en la que un paraguayo de claro nombre español, proclamaba que “había que raer a los españoles de la faz de la tierra paraguaya” […] La única literatura que en esos años se manifestó fue la de pasquín. Limitada también por el riesgo. Ignoramos la participación que en esta literatura, no siempre mural – aunque no hay modo de saber si los pasquines eran escritos a mano o impresos – pudieron tener elementos españoles descontentos; puesto que ninguno se ha conservado y nada puede rastrear en el Archivo. Si hay poesía en estos años, no es de pluma española: y sólo sobrevive el ovillejo escrito por un uruguayo, Buzó, a la muerte de Francia, y su

114 Trad. nossa: Foram portadores das primeiras bibliotecas de conteúdo predominantemente laico, oferecendo um horizonte menos limitado ao pensamento local: e podemos dá-los como elementos ativos na promoção dessas tertúlias.

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significativo poema glosa, escrito por Fulgencio Yegros en la prisión: testamento del desengaño.115 (PLÁ, 1993, p. 91)

Não é surpresa que a literatura tenha sido pouco desenvolvida nesse período

no país. Basta lembrar que em um contexto geral, na América Latina, os “modelos”

da época do que seria Literatura eram todos europeus, ainda estavam se criando ou,

quase todos os casos, não havia se iniciado um processo de criação de modelos

próprios de literatura.

A partir da morte de Francia, há uma rápida e intensa mudança nas estruturas

socioculturais paraguaias. Com a chegada de novos imigrantes europeu de diversas

nacionalidades, principalmente os que por iniciativa própria vinham ao país, neste

caso especialmente os espanhóis, há uma renovação e uma modernização no que

diz respeito a um despertar para horizontes mais amplos a própria cultura local. No

entanto, há uma grande diferenciação entre a cultura imigrante espanhola e a de

outras nacionalidades nesta época. Enquanto a intervenção de outros grupos foi

técnica, a espanhola foi cultural. De acordo com Alfredo Bosi, em Dialética da

colonização (1992), há uma consciência grupal que define a cultura de um local,

consciência esta que sempre menosprezará um ou outro substrato cultural que já se

fazia presente, mesmo que inconscientemente. De alguma maneira, a cultura

espanhola se qualifica enquanto superior à própria cultura do Paraguai.

Josefina Plá sugere que tal intervenção se deu pela contratação do professor

Antonio Bermejo, espanhol, por Solano López, para ajudar de desenvolver a limitada

vida cultural literária do país, que requeria esforços de adentramento e adaptação

em um ambiente completamente diverso. Nos oito anos que permaneceu no

Paraguai, Bermejo foi responsável, talvez, pelo próprio nascimento de uma cultura

literária própria da região.

La influencia hispánica, en esta época extraordinaria de la historia paraguaya, se manifiesta casi exclusivamente en los aspectos literarios, las instituciones académicas, el teatro. No trasciende a los aspectos materiales

115 Trad. nossa: Foi a época na que um paraguaio de claro nome espanhol, proclamava que “havia que retirar os espanhóis da face da terra paraguaia” [...] A única literatura que nesses anos se manifestou foi a de pasquim. Limitada também pelo risco. Ignoramos a participação que nesta literatura, não sempre mural – ainda que não há modo de saber se os pasquins eram escritos a mão ou impressos – puderam ter elementos espanhóis descontentes; posto que nenhum se conservou e nada pude rastrear no Arquivo. Sim há poesia nestes anos, não é de pluma espanhola: e só sobrevive o ovillejo escrito por um uruguaio, Buzó, à morte de Francia, e seu significativo poema glosa, escrito por Fulgencio Yegros na prisão: testamento de desengano.

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o de empresa, salvo en casos aislados; se manifiesta más bien al nivel de la presencia espiritual de las modalidades o pautas de conducta; es nula en los aspectos artísticos, salvo en lo ejemplarizador de una suntuaria que da cabida al arte y en el concepto idealista de éste que de esa minoría irradia. En la cocina y en el vestir, las nuevas influencias francesa, inglesa, alcanzan escasamente a lo popular; los detalles tradicionales hispánicos (mantillas, peinetas, abanicos) resisten, sólidos, a la solicitación de las nuevas modas. En la actualización literaria la presencia de Bermejo acapara la escena.116 (PLÁ, 1993, p. 113).

Durante todo o período da Grande Guerra, o Paraguai passou por diversas

transformações nas quais todo seu recente progresso foi completamente devastado.

É nesta parte que Plá reafirma, não ingenuamente, a extrema importância dos

imigrantes, em sua maioria espanhóis para a revitalização do país arrasado nos

anos da guerra. A eles se deve o renascimento econômico, técnico e cultural do país

nos anos posteriores ao conflito.

[...] entre los españoles, y como ya se insinuó aunque no faltan artesanos y comerciantes, son más caracterizantes y coherentes en su acción los profesores, periodistas, escritores, médicos, empresarios de espetáculos. Entre los italianos abundan más los músicos, los arquitectos y los industriales. (Más tarde, también los médicos). Entre los argentinos, periodistas, hombres de empresas (las grandes firmas yerbateras y madereras de la época son argentinas.117 (PLÁ, 1993, p. 116)

Podemos perceber, em todo o decorrer do ensaio, como Plá valoriza a

participação espanhola na cultura do Paraguai, em uma tentativa de afirmar “ a parte

hispânica” no processo de formação cultural paraguaio. Em sua grande maioria, os

exemplos dados, assim como as afirmações, são com bons olhos para as ações

executadas no período pelos espanhóis. Ações e movimentos que a ensaísta afirma

suplantar qualquer outra “raça” que também chegou à região paraguaia. É

interessante, também, como a ensaísta valoriza o trato hispânico do espirito que se

116 Trad. nossa: A influência hispânica, nesta época extraordinária da história paraguaia, se manifesta quase exclusivamente nos aspectos literários, as instituições acadêmicas, o teatro. Não transcende aos aspectos materiais ou de empreendimentos, salvo em casos isolados; se manifesta melhor ao nível da presença espiritual das modalidades ou pautas de conduta; é nula nos aspectos artísticos, salvo no exemplarizador de uma suntuária que cabe a arte e no conceito idealista desta que dessa minoria irradia. Na cozinha e no vestir, nas novas influências francesa, inglesa, alcançam escassamente o popular; os detalhes tradicionais hispânicos (mantas, pentes e leques) resistem, sólidos, à solicitação de novas modas. Na atualização literária a presença de Bermejo monopoliza a cena. 117 Trad. nossa: […] entre os espanhóis, e como se já se insinuou ainda que não faltem artesãos e comerciantes, são mais caracterizantes e coerentes em sua ação os professores, jornalistas, escritores, médicos, empresários de espetáculos. Entre os italianos abundam mais os músicos, os arquitetos e os industriais. (Mais tarde, também, os médicos). Entre os argentinos, jornalistas, homens de empresas (as grandes firmas ervateiras e madeireiras da época são argentinas.

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moldou na região. Em todas as afirmativas durante o ensaio, no que diz respeito à

influência espanhola, ela reforça a atuação hispânica no mundo voltado à

intelectualidade, que de alguma maneira, constrói a própria identidade local,

reforçando, também, sua identidade pessoal.

No que diz respeito à formação intelectual, no ensaio Plá, o Paraguai, deve aos

imigrantes espanhóis, subdivide as temáticas que julga mais relevantes: jornalismo,

teatro, poesia, artes, poesia popular e folclore, música e dança, e cátedra e livro.

Como se o país fosse uma invenção espanhola, o que não é real.

Para Josefina Plá, o jornalismo após o fim da guerra foi “revinventado” por

mãos espanholas. Nos anos do conflito armado o jornalismo paraguaio, de acordo

com a ensaísta, versava sobre forte nacionalismo, com o fim do conflito e a

chegadas dos imigrantes surge um novo modo operante de se conduzir os

periódicos. Os jornais passam a intensificar os aspectos culturais paraguaios, assim

como os trabalhos intelectuais que começam a ser desenvolvidos no país. Plá afirma

que a participação espanhola nos jornais paraguaios “[...] estuvo siempre inspirada

en un espíritu fervoroso de solidaridad con los problemas nacionales;”118 (PLÁ, 1993,

p. 120).

Acerca do teatro enquanto formador do intelectual paraguaio dos anos de pós-

guerra, Josefina afirma que foi uma das influências hispânicas mais notáveis. Por

conta de toda uma imigração de pessoas em grande parte hispânicas e devido

também ao grande desenvolvimento que o teatro teve na Espanha durante toda sua

história, não é de se espantar que os recém-chegados ao Paraguai desejassem ter

alguns entretenimentos que possuíam na Europa. Logo, o teatro espanhol foi

desenvolvido largamente no Paraguai da época. A tipicamente espanhola zarzuela

peça de poesia lírica cantada, acompanhada por instrumentos e por vezes dançada,

foi a modalidade teatral mais desenvolvida no país. Foram diversas as companhias

espanholas que vieram a Assunção para se apresentar nos teatros locais,

atendendo ao gosto do público consumidor e moldando o gosto dos novos

expectadores de teatro, os mestiços paraguaios.

Si durante esa época llegó al país poca literatura española, y los libros que llegaron, escasos, ofrece (si vamos a juzgar por las bibliotecas) una mayoría de traducciones de otros idiomas, especialmente el francés, esa falta de

118 Trad. nossa: [...] esteve sempre inspirada no espírito fervoroso de solidariedade com os problemas nacionais.

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contacto a través de la narrativa, y la ausencia casi total de textos de teatro, se compensan pues hasta cierto punto con el contacto directo bastante amplio con el teatro de la época, en el cual figuran nombres representativos españoles.119 (PLÁ, 1993, p. 124)

Para a ensaísta, se o teatro enquanto espetáculo teve grande repercussão e foi

desenvolvido em larga escala no país, o teatro literatura, ou seja, o texto dramático

permaneceu inoperante. Não havia, segundo Plá, dramaturgos paraguaios, nem

espanhóis no país que produzissem uma literatura teatral própria do Paraguai. Os

textos encenados, assim como os atores que participavam das peças eram todos

espanhóis.

Para Federico García Lorca, em uma fala sobre teatro feita em 1935,

El teatro es uno de los más expresivos y útiles instrumentos para la edificación de un país y el barómetro que marca su grandeza o su descenso. Un teatro sensible y bien orientado en todas sus ramas, desde la tragedia al vodevil, puede cambiar en pocos años la sensibilidad del pueblo; y un teatro destrozado. donde las pezuñas sustituyen a las alas, puede achabacanar y adormecer a una nación entera.120 (GARCIA LORCA, 1935, s/p)

A forma literária desenvolvida na época por mãos espanholas foi a poesia.

Todavia, esta, de acordo com Plá, só existiu por conta do escritor espanhol Victorino

Abente y Lago, que “escreveu o Paraguai”. Semelhante ao que a própria ensaísta

fez, absorveu todo o país de sua época, devastado pela guerra, o transformou em

poesia. Segundo Josefina Plá, sem Abente não haveria qualquer modo de

compreender a poesia paraguaia do fim do século XIX, e talvez a própria poesia

paraguaia da época não fosse a mesma.

No que diz respeito às artes plásticas, Josefina Plá afirma que os espanhóis,

de maneira geral, não tiveram grande influência na produção local, pois quase não

se produziu arte na região durante a segunda metade do século XIX. A única, talvez,

influência deixada pelos espanhóis foram as poucas peças trazidas pelos imigrantes

119 Trad. nossa: Se durante essa época chegou ao país pouca literatura espanhola, e os livros que chegaram, escassos, oferecem (se vamos julgar pelas bibliotecas) uma maioria de traduções de outros idiomas, especialmente o francês, essa falta de contato através da narrativa, e a ausência quase total de textos de teatro se compensam, pois, até certo ponto com o contato direto bastante amplo com o teatro da época, no qual figuram nomes representativos espanhóis. 120 Trad. nossa: O teatro é um dos mais expressivos e uteis instrumentos para a edificação de um país e o barômetro que marca sua grandeza ou descenso. Um teatro sensível e bem orientado em todos seus ramos, desde a tragédia ao vaudeville, pode mudar em poucos anos a sensibilidade do povo; e um teatro destroçado onde as luvas substituem as asas, pode alavancar e adormecer uma nação inteira.

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posteriormente à guerra. Não houve pintores espanhóis em meio aos recém-

chegados que perpetuassem alguma influência nas futuras gerações, ou que

deixasse sua “marca” registrada por meio de obras plásticas. Todavia, as famílias

espanholas, dada suas tradições europeias, tinham certo conceito de arte, ainda que

em nível muito baixo, e trouxeram consigo pequenos acervos artísticos do que

julgava pertinente. Muito da influência que se tem das artes da época foi perpetuada

por italianos e franceses.

Durante casi un cuarto de siglo, y con excepción de Vaamode, no llegó, pues, pintor alguno, español o no, que ejerciera o hubiese podido ejercer una influencia directa sensible. Cuando ya en la última década del siglo llegan algunos pintores extranjeros cuya influencia efectiva puede acusarse y documentarse, no se trata ya de españoles, sino de franceses e italianos. Nada hay de participación española en el lento y trabajoso desarrollo de las artes plásticas como empresa concreta cultural: son italianos y franceses sus vectores, desde la última década hasta entrado el XX.121 (PLÁ, 1993, p. 131)

Até mesmo a arquitetura da época, segundo Plá, tem como grandes

responsáveis os imigrantes italianos, não havendo grande participação espanhola.

Podemos perceber que grande parte da interferência espanhola se fixa no modo de

vida, muito mais do que em outras parcelas. O hispanismo está no que a ensaísta

liga ao espírito.

É interessante notar, no ensaio como um todo, que Josefina Plá sempre se

volta para o que, talvez, seja um dos pontos mais caros de toda sua trajetória

enquanto intelectual: a mulher. Tema que desenvolve em sua obra ficcional, poética,

dramatúrgica e ensaística. Em Españoles en la cultura del Paraguay, ao falar da

poesia popular cantada, no final do século XIX, Plá volta a afirmar a não participação

da mulher, podemos dizer, na consolidação de parte da cultura local. “La mujer

paraguaya, las del pueblo, sobre todo, no canta, ni aun em la intimidad del hogar.

Sólo en los cantos religiosos ha dejado durante siglos oír su voz. […] El varón era,

121 Trad. nossa: Durante quase um quarto de século, e com exceção de Vaamode, não chegou, pois, pintos algum, espanhol ou não, que exercesse ou pudesse exercer uma influência direta sensível. Quando já na última década do século chegam alguns pintores estrangeiros cuja influência efetiva pode acusar ou documentar, não se trata já de espanhóis, senão de franceses e italianos. Nada há de participação espanhola no lento e trabalhoso desenvolvimento das artes plásticas como empreendimento concreto cultural: são italianos e franceses seus vetores, desde a última década até o começo do século XX.

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pues, prácticamente único depositario de la sabiduría popular […]122 (PLÁ, 1993, p.

132). Dessa forma, a ensaísta afirma que toda a cultura folclórica que se preserva

depois da guerra que dizimou a grande maioria dos homens paraguaios não passa

de um fragmento de algo que deve ter sido extremamente mais rico e profundo.

Todo lo que de ese carácter conocemos hoy, rotulando de “folklore”, es residuo escaso del que debió ser rico caudal tradicional. A él pertenecen los pocos “compuestos” conocidos – bilingües algunos – las canciones religiosas, los “casos” de Perú Rimá, los ñeengá o “dichos”, los “refranes guaraníes” de los cuales Narciso R. Colmán llegó a reunir mil. Todos ellos, aun los guaraníes - y por eso los citamos – llevan la impronta española; a veces son meras traducciones del adagio castellano. Son “refranes en guaraní” no “refranes guaraníes”. No existe todavía el estudio lo suficiente concienzudo y detenido que el asunto requeriría para dejar de una vez asentado hasta qué punto lo hispánico ha calado en el espíritu popular.123 (PLÁ, 1993, p. 132-133)

Podemos compreender que Josefina Plá versa sobre as possibilidades de

contato espanhol na formação da cultura local muitas vezes duvidando da forma

com que esse contato se deu. Nem sempre os processos de hibridação são

completamente impostos ou aceitos de maneira branda. No entanto, ao que parece,

a ensaísta vê a hibridação cultural ocorrida no Paraguai como natural, não podendo

ser diferente. Recuperando e modificando um trecho anterior da própria Josefina

Plá, talvez se não fosse a colonização, dada as condições locais, e o modo de vida

espanhol frente a essas condições, ou se fosse, de alguma forma, diferente, o

Paraguai, com sua cultura tal como a percebemos, não existiria. Na citação acima

Plá afirma “refrãos em guaraní” não “refrãos guaranís”, dando ideia de uma tentativa,

por parte do espanhol, de ser compreendido ou de impor sua cultura de forma

traduzida.

Ao fim do ensaio, Josefina Plá chega aos aspectos da influência espanhola na

cultura paraguaia do século XX, até a década de 1980, época de publicação do

ensaio. Para a ensaísta, a chamada Geração de 900 no Paraguai, que teve como

122 Trad. nossa: A mulher paraguaia, as do povo, sobretudo, não canta, nem na intilidade do lar. Só nos cantos religiosos deixou durante séculos ouvir sua voz. […] O homem era, pois, praticamente o único depositário da sabedoria popular [...]. 123 Trad. nossa: Tudo o que desse caráter conhecemos hoje, rotulando de “folclore”, é resíduo escasso do que deve ter sido o rico caudal tradicional. A ele pertencem os poucos “compostos” conhecidos – bilingues alguns – as canções religiosas, os “casos” de Perú Rimá, os ñeengá ou “ditos”, os “refrãos guaranis” dos quais Narciso R. Colmán chegou a reunir mil. Todos eles, ainda os guaranis - e por isso os citamos – levam marca espanhola; as vezes são meras traduções do adagio castelhano. São “refrãos em guarani” não “refrãos guaranis”. Não existe, contudo, um estudo suficientemente consciente e detido que o assunto requer para deixar de uma vez assentado até que ponto o hispânico está calcado no espirito popular.

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mestres os intelectuais espanhóis, foi essencial para a estruturação de toda a vida

intelectual paraguaia. Foram eles que pensaram as primeiras instituições intelectuais

e difundiram os pensamentos filosóficos europeus.

No entanto, Plá adverte que tal desenvolvimento de intelectualidade se deu

pela Geração de 90 no campo da História e da Sociologia. A literatura era

desenvolvida como hobby, não havendo, portanto, um axioma próprio da literatura

paraguaia, ainda nessa época. Contudo, cabe destaque, para Plá os poetas

Alejandro Guanes e Juan E. O’Leary,

En los componentes de esta generación (y sobre todo em Blas Garay) se manifiesta activo, no por contagio de sus maestros, sino por analítica convicción, brotada del íntimo juego de potencias, el sentido de la herencia hispánica, que adquiere en ellos altivo relieve, haciéndolos, no “menos” sino “más” paraguayos, por la incorporación consciente, en su obra, de los elementos españoles operantes en el desarrollo histórico-social del área.124 (PLÁ, 1993, p. 137)

A consciente percepção de que a cultura paraguaia tem como parte integrante

e fundadora a cultura espanhola é totalmente perpetuada em diversas obras do

porvir da Geração de 900, incluindo aqui a obra de Josefina Plá, assim como sua

própria vida enquanto intelectual. Josefina Plá é espanhola, mas absorveu a cultura

paraguaia e transformou-a também. O grande legado intelectual que deixou em

setenta anos de intenso trabalho no país é prova disso. A ensaísta afirma que a

Geração de 90 faz parte de uma etapa de estruturação do pensamento e da cultura

nacional paraguaia.

Como grande exemplo desse tipo de axioma cultural paraguaio, Josefina Plá

cita a obra de Rafael Barrett como uma das desenvolvidas no início do século XX

capaz de ligar a história dos colonizadores espanhóis com os aspectos mais férteis e

críticos dos valores que fundamentam a cultura local. A obra de Barrett se

desenvolve em torno do jornalismo e do ensaio cujas temáticas versam sobre a

própria cultura e sociedade locais. Outro nome citado por Plá é o de Viriato Díaz

Pérez, enquanto difusor dos valores e das heranças europeias, no que diz respeito à

Literatura e Artes Plásticas.

124 Trad. Nossa: Nos componentes desta geração (e sobretudo em Blas Garay) se manifesta o ativo, não por contágio de seus mestres, senão por analítica convicção, brotada do intimo jogo de potencias, e o sentido de herança hispânica, que adquire neles altivos releves, fazendo-os, não “menos” senão “mais” paraguaios, pela incorporação consciente de sua obra, dos elementos espanhóis operantes no desenvolvimento histórico-social da área.

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CAPÍTULO 4

A MODERNIDADE NA ARTE CRIADA PELA CULTURA POPULAR

Alfredo Bosi, em Reflexões sobre a arte, afirma que o público em geral, se

perguntado sobre o que é arte, responderá que arte é a Monalisa, de Leonardo da

Vinci, quando se recordarem de seu nome, ou falará o nome de algum artista,

normalmente pintor, renascentista, barroco, impressionista, expressionista, cubista,

surrealista, mesmo desconhecendo o que sejam tais obras, o que elas representam,

suas técnicas ou períodos em que foram criadas. Nos darão uma resposta

automática do que consideram como arte, que assim como a Literatura, escritas em

letras maiúsculas denotam demasiada importância, mas que assim como esta

também o que saberiam não passaria de nomes consagrados pela crítica, porém

com significado ignorado por tais populações. Para Alfredo Bosi, tomando essa

mesma situação, “arte lembra-lhe objetos consagrados pelo tempo, e que se

destinam a provocar sentimentos vários e, entre estes, um, difícil de precisar: o

sentimento do belo” (BOSI, 1991, p.7, grifo do autor).

Nesse sentido, percebemos, ainda à luz das reflexões de Bosi, que se perde a

objectualidade e o efeito psicológico da obra, ou seja, ela perde sua própria função

enquanto arte. Igualmente a arte passa a um objeto que recebe tal nome por que

alguém assim o determinou, e não por que o expectador o compreendeu dessa

forma. O homem de cada tempo pensa a arte, e o que é a arte, de maneira

completamente distinta. Pensa também de maneira única a valorização dessa

mesma arte, e não mencionamos aqui um valor financeiro e sim cultural.

Fazendo um apanhado histórico percebemos que, em se tratando de filosofia, a

arte foi determinada entre algo que girava em torno do esclarecimento, da

percepção, do projetar, do enaltecer, do compreender. Aristóteles, em sua célebre

Arte poética, define arte, ligando-a às artes da palavra, como mimética ou, grosso

modo, “imitação da realidade”, mas não cópia. Já Proust e Bergson celebram a arte

como uma excitação que está fora do “comum” e que é inseparável da realidade, a

contraposto de Kant que a considera como algo que causa um efeito de satisfação

abnegativa. Podemos apreender, portanto, que as definições do que seja arte

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variam de acordo com o tempo e com a percepção do ser humano que cada tempo

possui.

Todavia, percebemos a arte como uma atividade exclusivamente humana que

se liga às manifestações de cunho estético. Criada por meio das percepções de tudo

aquilo que rodeia a vida do artista, tudo o que o estimula conscientemente. Arte não

é um trabalho inconsciente. A incitação do artista é, também, a de dar o mesmo

estímulo ao seu espectador/leitor ao apreciar sua obra, cada qual com seu

significado único e intransferível.

Se ainda pensarmos em concordância com Alfredo Bosi, percebemos que a

arte está intimamente ligada às questões de construção/criação, ao processo criador

racional. Arte se relaciona com estética. Ao consideramos como um fazer

relacionado ao trabalho com a matéria vinda da natureza, assim, a arte é, de alguma

maneira, transformação da natureza pelo homem. Arte é criação humana feita a

partir de reaçés oriundas do contato que este homem tem com a totalidade do

mundo que o cerca, num esforço para dar expressão ao mundo material natural.

Arte, logo, tem relações que gozam do trabalho e da imaginação do homem.

A totalidade da vida animal, e uma boa parte da vida humana, é constituída por estas reacções instintivas a objectos sensíveis e pelas emoções que as acompanham. Contudo, o homem tem a faculdade peculiar de evocar na sua mente o eco deste tipo de experiências passadas, de as reviver “na imaginação”, como costumamos dizer. Ele possui, portanto, a possibilidade de uma vida dupla: uma é a vida real, a outra é a vida imaginativa. Entre estas duas vidas há uma grande diferença: é que na vida real os processos da selecção natural fizeram com que a reacção instintiva, como, por exemplo, a fuga diante do perigo, se tornasse a parte mais importante de todo o processo, e é nessa direcção que o homem inflecte todo o seu comportamento consciente. Contudo, na vida imaginativa não é necessária uma tal acção e, portanto, toda a consciência pode ser concentrada nos aspectos perceptivos e emocionais da experiência. Deste modo, obtemos, na vida imaginativa, um conjunto diferente de valores e um tipo diferente de percepção. (FRY, 2009, p. 60)

Ou seja, o homem produz com base naquilo que experimenta. E o faz por meio

da memória, mas pela condição lacunar do rito memorialístico. O homem preenche

os espaços vazios da memória com imaginação, com criação própria, e o faz

somente por meio de um rigoroso parâmetro estético, pois se existe uma criação,

como esta existiria sem bases sólidas? No âmbito da arte, de maneira geral, tal

criação é encontrada por meio de sua estética.

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4.1 - Entre a artes e as estéticas

Tício Escobar, o curador, ensaísta e crítico de arte, em El mito del arte y el mito

del Pueblo: cuestiones sobre arte popular (2014), publicado em 1986, apresenta as

chaves para que possamos entender o conceito de arte popular, que é a base de

seu trabalho no Museu do Barro em Assunção. Há milhares de anos, a humanidade

se vale de padrões, de alguma maneira estéticos, e de sua invenção imaginativa

para produzir, nos diversos gêneros, formas sensíveis de representação do próprio

homem. De acordo com Escobar (2014), no ocidente, esse conceito, ou o modelo a

ser seguido quando se quer produzir arte, está restrito ao que foi produzido na

Europa no curto período, em se tratando de história humana, que vai do século XVI

ao XX. Expandindo o pensamento de Escobar, poderíamos dizer também do século

XXI, “lo que se considera en realidade arte es el conjunto de prácticas que tengan

las notas básicas de ese arte”125 (ESCOBAR, 2014, p.40, grifos do autor). Porém,

pensar a arte de tal forma é, no mínimo, menosprezar toda e qualquer outra

concepção do que seja arte que não venha marcada por esta autoridade das

instancias de consagração da arte europeia de tal período, produzindo, assim,

objetos estéticos únicos, mas que são desligados das formas culturais dos locais e

épocas nos quais foram criados. Essa conversão da arte em aspectos normativos

ocidentais, estritamente europeus e estadunidenses desqualificam modelos

diferentes, como se mesmos modelos se tratassem de uma estética menor, de

menor valor ou com menos técnica, não apenas de uma técnica diferente.

Escobar (2014) afirma que como os diversos conceitos não são suficientes

para solucionar o paradoxo entre o que é ou não arte e justificar a validade de um

modelo único do artístico, há de se recorrer aos mitos para que tal seja acolhido e

aprovado. Os mitos se realizam enquanto uma interpretação do real, são como um

baú que guarda contra os estragos dos tempos, organizando a vida e a morte da

comunidade num determinado tempo, por meio de contingências simbólicas. É por

meio do mito e de seu “parar no tempo”, ou seja, da capacidade dele de criar um

aparato histórico-temporal marcado em um tempo que as culturas dominantes

“embutem” valores e imagens extra temporais, extra espaciais para fundamentar seu

125 Trad. nossa: o que se considera na realidade arte é o conjunto de práticas que tenham as notas básicas dessa arte.

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próprio modo de vida. Dessa forma, os mitos desligam-se da coletividade e passam

funcionar unicamente como divulgação de um pensamento uno, perdendo toda sua

função, convertendo-se em algo falso. Então, os mitos serão convertidos em

essências absolutas do cânone ocidental, afirmando que o que se encontra fora

deste não é chamado arte, “El resultado es el mito del arte, uno de los grandes

relatos de la modernidad126 (ESCOBAR, 2014, p.42).

Sob esses aspectos que colocam a arte exclusivamente europeia e

estadunidense como as grandes referências do que se possa chamar arte, a arte

popular, afirma Escobar (2014), aparece empobrecida e mutilada, menosprezada

por não se ater às referências canônicas ocidentais. Tal se dá, de outra maneira,

pela transferência de conceitos de um lugar a outro sem ater-se devidamente às

questões de construções culturais de um lugar e outro. Em certo nível, essa mesma

transferência e/ou (re) apropriação de conceitos ocorre não somente na esfera da

arte, mas também quando do trato acadêmico, com a utilização de conceitos

culturais que não dizem respeito a determinada cultura e que são indevidamente

utilizados para definir uma região ao qual não cabe e para o qual não foi pensado.

Tanto quando se trata de arte quando de crítica, há de se pensar nos mecanismos

próprios que constituem o lugar de origem do objeto que se faz e/ou fala.

Quando em seu A socialização da arte: teoria e prática na América Latina,

Néstor García Canclini (1981), logo no começo do texto faz a grande pergunta “O

que é arte?”, o crítico a propõe como uma pergunta etnocêntrica. A pergunta só

reconhece ao status de arte determinada parcela das obras que pertencem ao

“mundo do espírito”, conforme o próprio autor, e que transcendam as mudanças

histórico/sociais e diferenças culturais podendo ser apreciadas e “compreendidas”

pelos diversos sujeitos e épocas da história e que para apreciá-la, bastaria

contemplá-la. Portanto, quando se trata de arte, haveria uma essência invariável e

estética, todavia, quando fazemos isso, pensamos a obra de maneira desconectada

de suas condições de criação, de sua época, dando a indicação de todas a obras

são iguais e que o sentido que estas possuem absolutamente nunca irá mudar. No

entanto, García Canclini (1981) afirma que esse caráter universal da obra de arte

nunca existiu. Foram fatores que giram mais em torno do poder econômico europeu

e estadunidense que associaram a estética destas regiões a dita “estética universal”,

126 Trad. nossa: O resultado é o mito da arte, um dos grandes relatos da modernidade.

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que determinaria o que é e o que não é arte. Passando, a partir de então, a uma

concepção de arte cuja forma deveria ter relação direta com a estética então criada,

deixando totalmente em segundo plano, como mero adereço pitoresco as

características próprias de um lugar ou outro. García Canclini (1981) assegura que

somente assim a arte latino-americana seria reconhecida nos panteões das grandes

obras de arte, reduzida a uma mera imitação dos grandes mestres metropolitanos,

com suas referências primitivas quase apagadas.

Ainda de acordo com García Canclini (1981), diversos são os teóricos e críticos

da estética da arte que afirmam que uma obra só se torma artística quando em suas

relações a forma supera a função. O olhar sobre a construção de tal obra torna-se

mais importante do que a serventia prática desta. Contudo, há de se questionar se a

percepção estética, que supera a função prática, é intencionada por parte do

observador ou se esta é inerente ao objeto que quer se chamar artístico.

A hesitação entre as soluções subjetivistas e objetivistas, a dificuldade em estabelecer a origem determinante do fato estético acentuam-se, nas últimas décadas, na medida em que cresce o efêmero das modas artísticas e a consciência dos múltiplos fatores que podem intervir para que um mesmo objeto entre ou saia do campo da arte. Em determinada perspectiva, pareceria que a linha demarcatória entre os objetos instrumentais e os artísticos depende da intervenção do sujeito que percebe; mas, em outro sentido, é evidente que alguns objetos possuem maior ductilidade para suscitar experiências estéticas. (GARCÍA CANCLINI, 1981, p. 11)

Dessa forma, García Canclini nos coloca diante de uma situação em que tudo é

determinado pelas convenções que definem as regras do campo. Ou seja, é o

próprio sistema de produção que vai determinar se algo é ou não artístico. O mesmo

sistema transforma vasilhas e tigelas pré-colombianas, criadas para o uso doméstico

do dia a dia, em objetos de arte, na contemporaneidade. Muda-se a convenção do

que é de serventia prática, muda-se a noção do que é arte.

Todavia, algo interessante de se notar é a primeira proposição de Ernst Hans

Gombrich, um dos mais célebres estudiosos de arte do século XX, que escreve em

sua cultuada obra publicada em 1950, A história da arte, uma proposição que vai de

encontro ao que necessariamente afirmamos em relação à arte. Segundo Gombrich

(2015),

UMA COISA QUE realmente não existe é aquilo a que se dá o nome de Arte. Existem somente artistas. Outrora, eram homens que apanhavam terra colorida e modelavam toscamente as formas de um bisão na parede de

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uma caverna; hoje, alguns compram suas tintas e desenham cartazes para os tapumes; eles faziam e fazem muitas outras coisas. Não prejudica ninguém chamar a todas essas atividades arte, desde que conservemos em mente que tal palavra pode significar coisas muito diferentes, em tempos e lugares diferentes, e que Arte com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo de um bicho-papão e de um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer pode ser muito bom no seu gênero, só que não é "Arte". E podemos desconcertar qualquer pessoa que esteja contemplando com prazer um quadro, declarando que aquilo de que ela gosta não é Arte, mas algo muito diferente. (GOMBRICH, 2015, p.4)

Tal sentença aparece logo no primeiro parágrafo da introdução do texto A

história da arte, de Ernst Gombrich, no qual já podemos perceber uma concepção de

arte que foge daquela que é superior a todas as outras. Para Gombrich, a arte,

esnobe, cuja superioridade já se dá pela letra “A” maiúscula, não tem o porquê de

existir, pois todas obras artísticas, apesar de adotarem procedimentos estéticos por

vezes diferentes, tem seu valor estético, artístico e cultural, portanto sendo passiveis

de serem consideradas arte. Neste ponto, podemos voltar a uma questão já

discutida no capítulo anterior quando falamos da proposta do diverso feita por

Édouard Glissant. Novamente, portanto, pensamos não haver um grau de

superioridade entre uma arte e/ou outra e sim uma diferença, cada qual com seu

valor único.

4.2. Entre o artesanato e a arte popular

Nestor García Canclini, em As culturas populares no capitalismo, 1983, afirma

que nenhuma cultura popular pode ser compreendida como simples “expressão” de

um povo, assim como também não é algo de tradição que foi preservado de modo

estéril. Para Canclini (1983), as culturas populares estão ligadas às condições

materiais de vida. Todo objeto cultural popular surge devido a tudo o que

condicionou, de maneira mais ou menos intensa, a sociedade na qual ele aparece.

Se não existe uma definição concreta para a cultura popular, já que os dois

conceitos, segundo Canclini (1983), não “dão conta” de explicar o fenômeno,

tampouco podemos explicar de forma essencial os artesanatos ou as festas

populares, que advém destas culturas populares. Desse modo,

[...] não existe um elemento intrínseco — por exemplo, a sua produção manual — que seja suficiente, nem muito menos pode-se resolver esta questão através do acumulo de elementos. [...]. Tampouco é possível

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definirmos a arte ou a cultura populares apenas pela sua oposição à arte culta ou de massas. Só o podemos fazer a partir do sistema que engendra a todos eles, que lhes atribui lugares distintos, reformula-os e os combina, para que cumpram as funções económicas, políticas e psicossociais necessárias para a sua reprodução. Necessitamos, portanto, estudar o artesanato como um processo e não como um resultado como produtos inseridos em relações sociais e não como objetos voltados para si mesmos. (CANCLINI, 1983, p.52-53)

Nesse sentido, dos artesanatos estudados por Josefina Plá em “Las artesanias

en el Paraguay”, nos interessa, dentro do ensaio, as condições do sistema social

que permitiram o surgimento de tais peças. O ensaio de Plá se divide em duas

vertentes. A primeira voltada para os artesanatos de substrato local, ou seja, os

artesanatos de origem indígena, que foram, de alguma maneira modificados pelo

contato com o espanhol. Já a segunda vertente versará sobre os artesanatos

espanhóis que sofreram mudanças, pelo processo de hibridação, com o contato com

a cultura Guaraní. É interessante notar, também, que assim como nos outros

ensaios já analisados anteriormente, Josefina Plá destaca o fazer feminino. Todos

os artesanatos sobre os quais fala em seu texto são de produção da mulher

paraguaia, não do homem.

Segundo Stelamaris Coser (2005), a produção de qualquer material crítico, ou

artístico, como por exemplo, os artesanatos, e aqui também se inclui o literário e,

claro, o ensaístico, como os textos de Josefina Plá, na América Latina, é resultado

de processos de entrecruzamentos ocorridos durante a colonização e, a posteriori,

na emancipação dos discursos próprios latino-americanos. Objetos de artesanato

produzidos no Paraguai, surgiram, Plá afirma, como os temos hoje, a partir da fusão

dos elementos indígenas e espanhóis, todos carregando, de alguma maneira, seus

próprios repertórios. Do indígena que teve seu território invadido estrangeiro dotado

de tecnologias que ele não conhecia e às quais teve que se adaptar, ao próprio

estrangeiro desterritorializado, que perdeu todo o seu referencial imediato e

estruturado de modo de vida e passou a ter que adaptar, e a conviver, de modo

pacífico ou não, com uma cultura à qual não pertencia.

Dessa fusão de ambos elementos, Josefina Plá afirma haver surgido uma

experiência histórica única na América Latina como um todo, mas que nem por isso,

pensamos, reflete o próprio continente. Como resultado, temos artes plásticas

distintas em suas concepções de ritmo e organização espacial, as quais necessitam

de composições diferentes, formas complexas e cores atrativas.

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En el área llamada guaraní por haber sido histórico asiento del Pueblo así llamado […] las artesanías aborígenes distaron de alcanzar el volumen, diversidad y riqueza en material y formas que en otras áreas americanas. El guaraní no había rebasado tecnológicamente la fase neolítica, aunque, sus tejidos, su arte plumario, su cerámica, demuestran una tendencia a superar ese estadio asimilando influencias de otras culturas.127 (PLÁ, 1991, p. 7)

A partir dessas informações, podemos encontrar poucos casos nos quais a arte

guaraní se sobressai. Na maioria das vezes, os artesanatos espanhóis suplantaram

os guaranís por não encontrarem suporte técnico e/ou material para se apoiar.

Todavia, o fator transcultural observado na região permitiu que as formas artesanais

espanholas se transfigurassem em criações distintas. Se não existia um aporte físico

guaraní, de objetos, que pudessem ser “aproveitados” nos artesanatos espanhóis,

havia ali pessoas guaranís, todo um povo que não poderia ser ignorado de forma

total, toda uma forma de ver o mundo que se distinguia, em muito, da espanhola.

De acordo com Josefina Plá, o Paraguai foi, talvez, o único lugar em toda

América espanhola no qual o artesanato foi superior, em termos de importância para

a sociedade local e sua formação, que as artes plásticas altas, de maneira geral,

como a pintura e a escultura. Se há uma falta de refinamento nos artesanatos para

que estes cheguem a ser de alguma forma considerados artísticos, no Paraguai isso

é compensado pela peculiar incursão que o artesanato espanhol teve na cultura

guaraní.

Contudo, no que diz respeito aos tipos de peças que se perpetuaram, Josefina

Plá enfatiza um dos pontos chave de seu projeto intelectual: a preocupação com a

mulher paraguaia. Todas as peças que resistiram ao tempo, por conta, também, de

um fator histórico, a saber, a Grande Guerra contra a Tríplice Aliança, foram criadas

pelo trabalho feminino. “Conservaron en mayor medida su vitalidad y su contenido

tradicional aquellas artesanías que eran ejercicio femenino: cerámica, bordado,

tejido, encaje.”128 (PLÁ, 1991, p. 8). Deixando sempre clara, mesmo em se tratando

de outros temas, a preocupação de Plá com o universo da mulher paraguaia, tão

bem representado em outros gêneros que também desenvolveu.

127 Trad. nossa: Na área chamada guarani, por haver sido histórico assento do Povo chamado assim [...] os artesanatos aborígenes demoraram alcançar o volume, a diversidade e a riqueza material e formal, que em outras áreas americanas. O guarani não havia ultrapassado tecnologicamente a fase neolítica, ainda que, seus tecidos, sua arte plumária, sua cerâmica, demonstram uma tendência a superar este estado, assimilando influências de outras culturas. 128 Trad. nossa: Conservarão em grande medida sua vitalidade e seu conteúdo tradicional aqueles artesanatos que eram exercício feminino: cerâmica, bordado, tecido, renda.

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Apesar de pouco desenvolvida, como já mencionamos, os artesanatos de

substrato local, ou seja, os de substrato indígena guaraní, tem lugar garantido no

texto de Plá. Dessa forma, ela divide o texto em duas partes, a primeira com

artesanatos locais: arte plumária, cerâmica, cestarias e tecidos. E a segunda parte,

tratando de artesanatos cujas origens são hispânicas: os bordados, o ñandutí junto a

outras rendas, os ferros forjados, a ourivesaria, a joalheria, a talha em madeira e

outros materiais, assim como os trabalhos em couro.

4.2.1. Dos guaranís

Talvez um dos fazeres manuais artísticos mais (re)conhecido, enquanto

pertencimento, e que mais chama a atenção de qualquer comunidade indígena, seja

a arte plumária. De maneira geral, sempre se relacionam artes plumárias às

comunidades indígenas, imaginário criado pela cultura popular moderna que dá

grande ênfase aos vistosos cocares.

Quando tratamos da arte plumária guaraní, percebemos que ela se encontra

hoje, assim como se encontrava já no século XX, totalmente extinta de um quadro

ativo de peças artesanais produzidas em seu tempo. O artesanato em plumas foi

largamente admirado pelos europeus e seu feitio, na América, se favoreceu devido à

grande quantidade de pássaros de ricas plumagens da região. Josefina Plá, quando

trata das peças desenvolvidas no atual Paraguay, afirma que

[...] debido quizá a la rapidez con que acá actuó el proceso de incorporación del indígena a la nueva cultura, esa técnica en la colonia desapareció también rápidamente del cuadro activo, y sólo en forma muy ocasional se lo menciona en las crónicas.129 (PLÁ, 1991, p. 11)

É interessante notar, a partir deste trecho de Plá que, retomando o ensaio

anteriormente analisado, a relação amistosa entre espanhóis e guaranis, dadas as

circunstâncias e aspectos de manutenção social, fez com que parte da arte guaraní

fosse deixada ao esquecimento em detrimento da valorização do que era mais

próximo à uma arte europeia espanhola.

129 Trad. nossa: […] devido talvez à rapidez com que aqui se deu o processo de incorporação do indígena à nova cultura, essa técnica na colônia desapareceu também rapidamente do quadro ativo, e só de maneira muito ocasional é mencionada nas crônicas.

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É interessante notar a forma com que Josefina Plá afirma o nome dos objetos,

“artesanías”, que, para Ticio Escobar (2014), não condiz com tudo o que os objetos

de produção popular representam. No entanto, ao escrever sobre as peças, Plá não

se refere a elas como simples objetos de uso cotidiano, sem importância cultural,

pelo contrário, a ensaísta busca as relações socioculturais que permitiram ou não

que tal objeto artístico popular mativesse ou se modificasse.

En el Paraguay, como en otros países de América Latina, gran parte de la producción estética de los sectores populares se canaliza exclusivamente a través de los rituales y las artesanías; la cuestión se complica porque solo estas se exteriorizan en objetos, únicos suportes tangibles de su creatividad. Pero llamar “artesanías” a esas expresiones sería referirse solo al aspecto manual de su producción y anclar en la pura materialidad del soporte, desconociendo los aspectos creativos y simbólicos y cayendo en la trampa de una actitud discriminatoria que segrega las manifestaciones populares erradicándolas del reino de las formas privilegiadas.130 (ESCOBAR, 2014, p. 52-53)

Com efeito, percebemos que, mesmo dando a nomenclatura de “artesanías”,

Plá lida com os objetos artísticos populares como arte popular. Não há uma

diminuição no valor estético e/ou cultural das formas no texto da ensaísta, e sim uma

valorização da peça como parte de um processo cultural distinto e único. As artes

plumárias o valor era ainda menor. Toda peça artística em arte plumária, na cultura

guaraní, voltava-se para um ritual religioso, que com a imposição da cultura europeia

espanhola, mesmo que de forma branda, e a consequentemente de sua religião

católica, perde a função.

Según un viajero en la iglesia de los franciscanos en Buenos Aires existía a fines del siglo XVII un cuadro representando la ULTIMA CENA, realizado por un indio de las Reducciones del Uruguay […] de tal manera que representaba perfectamente un relieve coloreado; “solo se descubría la ficción cuando se lo tocaba.”. Esta obra había sido obsequiada a los franciscanos por los jesuitas poco tiempo antes de la expulsión. ¿Podemos suponer que los jesuitas hayan favorecido esta artesanía en sus establecimientos? No hay noticia de que existiesen talleres dedicados a ella; pero la fecha en que fue realizado este trabajo, o sea alrededor de 1750, o después; la magnitud y dificultades del mismo (que requieren destreza y experiencia no pasibles de improvisación) introducen a pensar que esa artesanía fuese practicada con cierta asiduidad por los indígenas, ya que de

130 Trad. nossa: No Paraguai, como em outros países da América Latina, grande parte da produção estética dos setores populares se canaliza exclusivamente através dos rituais e dos artesanatos; a questão se complica um porque só estas se exteriorizam em objetos, únicos suportes tangíveis de sua criatividade. Mas chamar ”artesanatos” a essas expressões seria reduzi-las só ao aspecto manual de sua produção e ancorar na pura materialidade do suporte, desconhecendo os aspectos criativos e simbólicos e caindo na armadilha de uma atitude discriminatória que segrega as manifestações populares erradicando-as do reino das formas privilegiadas.

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haber sido suprimida totalmente por los Padres, al implantar el régimen de Doctrinas, como trabajo inútil o no provechoso, no es de supones pudiese llegar un indígena a grado tal de perfección técnica o por lo menos conservarla, en su trabajo.131 (PLÁ, 1991, p. 11-12)

Josefina Plá supõe, na citação acima, como a própria ensaísta vai dizer no

decorrer do texto, uma tentativa, por parte dos jesuítas, de “adaptação”, da arte

plumária à cultura espanhola europeia, o que não funciona muito bem,

principalmente para quem produz tal peça, o indígena. Não podemos nos esquecer

jamais que as artes populares, especialmente dos povos autóctones, possuem

grande relação com a manutenção da vida diária, não funcionando apenas como

objeto de apreciação estética, havia a necessidade de uma função prática.

Ao finalizar a parte do ensaio na qual fala sobre as artes plumárias, Plá afirma

que esta foi a única das artes autóctones que não encontrou função alguma no novo

modelo cultural. De acordo com Livia Reis, no ensaio “Transculturação e

transculturação narrativa” (2005, p.470), ao recorrer ao termo empregado por

Fernando Ortiz e aos conceitos de Angel Rama, os processos de transculturação

passam por um ir e vir de “aculturação, desculturação parcial e de neoculturação”. É

examamente o processo que não ocorre com a arte plumária guaraní.

O que podemos perceber enquanto um círculo “aculturar, desculturar e

neoculturar”, não se fecha, pois, tais processos, quando se trata das artes

populares, requerem uma transposição por demasiado difícil de ser feita. As artes

plumárias guaranís sempre estiveram ligadas, em sua grande maioria, a rituais

religiosos, nos processos de primeiro contato. Depois, com a imposição da religião

cristã aos guaranís, o catolicismo chega consolidado, principalmente no que diz

respeito aos ritos empregados. Não houve a criação de uma nova religião, derivada

da hibridação de catolicismo com religiões autóctones, como no Brasil se cria, por

exemplo, a umbanda, cujas raízes se encontram tanto no catolicismo europeu,

131 Trad. nossa: Segundo um viajante na igreja dos franciscanos de Buenos Aires existia nos fins do século XVII um quadro representando a ÚLTIMA CEIA, realizado por um índio das Reduções do Uruguai [...] de tal maneira que representava perfeitamente um relevo colorido; “Só se descobria a ficção quando se tocava.”. Esta obra havia sido obsequiada aos franciscanos pelos jesuítas pouco tempo antes da expulsão. Podemos supor que os jesuítas haviam favorecido este artesanato em seus estabelecimentos? Não há notícias de que existissem ateliers dedicados a ele; mas a data em que foi realizado este trabalho, ou seja, por volta de 1750, ou depois; a magnitude e dificuldades do mesmo (que requerem destreza e experiencia não passiveis de improvisação) induzem a pensar que esse artesanato fosse praticado com certa assiduidade pelos indígenas, que depois foi suprimida totalmente pelos Padres, ao implantar o regime de Doutrinas, como trabalho inútil ou não proveitoso, não é de se supor que pudesse chegar um indígena a um grau tão grande de perfeição técnica ou pelo menos conserva-la, em seu trabalho.

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quanto nas religiões vindas de África. Dessa forma, não há uma mescla das religiões

para que a arte plumária seja “aproveitada”. Com a total perda de suas funções

ritualísticas, a arte plumária perde seu uso, pois o guaraní não a concebe somente

como adorno, enquanto objeto estético.

A sequência das artes de substrato autóctone, Josefina Plá volta sua atenção à

cerâmica. Plá afirma que os objetos artísticos em cerâmica dos povos guaranis

foram, apesar de uma mestria técnica, bastante rudimentares no que diz respeito à

“decoração”, digamos assim, artística das peças. Os ornamentos das cerâmicas

eram elementares, pois tais peças não tinham, como já dito, pretensão decorativa,

eram peças de uso cotidiano. Também se faz interessante a utilização do caulim,

minério de cor esbranquiçada mais abundante no planeta, como elemento de

incisões nas peças em cerâmica, que ainda no século XX, de acordo com a

ensaísta, era utilizado pelos artesãos para fazer também incisões em cerâmicas e

outros materiais.

[...] En el modelado mostraron los guaraníes especial habilidad, fabricando no sólo cántaros, escudillas y platos, sino también urnas de gran tamaño para enterramientos, en las que son de admirar la elegancia y el equilibrio de la línea, así como la experiencia artesanal puesta en evidencia al “levantar” sin molde o rueda formas de esas dimensiones; todo lo cual se

supone dominio técnico de los materiales. […]132 (PLÁ, 1991, p. 12)

Na citação acima, Josefina Plá atenta para o domínio técnico que os guaranís

já possuíam em relação à manipulação da argila para fazer peças em cerâmica. Não

houve, em princípio, uma interferência com relação a tal manipulação da matéria

vinda da Europa. Todavia, os espanhóis trouxeram consigo uma grande bagagem

por conta de um maior desenvolvimento tecnológico e, de alguma forma, depois

influenciaram nas peças de cerâmicas locais.

Também com relação às cerâmicas, Josefina Plá afirma que, em relação ao

substrato indígena, a produção das peças, assim como de suas ornamentações,

ficava a cargo das mulheres.

A cerâmica está presente, também, no desenvolvimento da obra intelectual de

Josefina Plá, para além dos ensaios nos quais remete a produção das peças, a

132 Trad. nossa: […] No modelo os guaranis mostraram especial habilidade, fabricando não só cântaros, malgas e pratos, mas também urnas de grande tamanho para sepultamentos, nas que são de admirar a elegância e o equilíbrio das linhas, assim como a experiencia artesanal posta em evidencia al “levantar”, sem molde ou rodas, formas dessas dimensões. Por tudo se supõe um domínio técnico dos materiais. [...]

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própria artista desenvolveu, durante toda sua vida no Paraguai, peças de cerâmica.

Realizou ainda diversas curadorias de exposições artísticas de cerâmicas, tanto

suas como de outros artistas, por exemplo, a do próprio marido, Julián de la

Herrería, um dos grandes ceramistas do começo do século XX no Paraguai, ao qual

também dedicou uma biografia, na qual trata exclusivamente da vida do artista e

suas relações com as artes em cerâmica.

Para Ticio Escobar,

[...] se define el arte popular como el conjunto de formas estéticas producidas por sectores subalternos para apuntalar diversas funciones sociales, vivificar procesos históricos plurales (socioeconómicos, religiosos, políticos), afirmar y expresar las identidades sociales y renovar el sentido colectivo. Así, resulta válido hablar de arte popular en cuanto es posible reconocer dimensiones estéticas y contenidos expresivos en ciertas manifestaciones de la cultura popular.133 (ESCOBAR, 2014, p. 126, grifo do autor)

Desse modo, ao analisarmos as questões sobre arte popular propostas por

Josefina Plá em seus ensaios, buscamos nos acercar das questões que permitiram

que tais artes surgissem e se desenvolvesse, questões acerca da formação cultural

da região de desenvolvimento, tanto da arte popular em si, quanto da própria

ensaísta do objeto aqui analisado.

[...] Lejos de ocurrir desgajados de su realidad social, estos contenidos y aquellas dimensiones forman parte activa de su dinamismo y aun de su constitución. Y en cuanto significan, al menos en parte, una manera alternativa de la comunidad de verse a sí misma y comprender el mundo, las diversas manifestaciones del arte popular implican además un factor de autofirmación y una posibilidad política de réplica.134 ESCOBAR, 2014, p. 126)

Assim, as cerâmicas produzidas na cultura guaraní autoafirmam toda uma

“resistência” da própria cultura. Um “local” no qual a cultura guaraní pode sobreviver.

133 Trad. nossa: […] se define a arte popular como o conjunto de formas estéticas produzidas por setores subalternos para a pontar diversas funções sociais, vivificar processos históricos plurais (socioeconômicos, religiosos, políticos), afirmar e expressar as identidades sociais e renovar o sentido coletivo. Assim, é valido falar de arte popular quando é possível reconhecer dimensões estéticas e conteúdos expressivos em certas manifestações da cultura popular.

134 Trad. nossa: […] Longe de ocorrer desgarrados de sua realidade social, estes conteúdos e aquelas dimensões formam parte ativa de seu dinamismo e ainda de sua constituição. E enquanto significam, ao menos em parte, uma maneira alternativa da comunidade ver-se a si mesma e compreender o mundo, as diversas manifestações da arte popular ademais um fator de autoafirmação e uma possibilidade política de réplica.

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E em se tratando dos ensaios de Plá e de seu projeto intelectual relativo à mulher

paraguaia, coloca em cena toda a cultura paraguaia da contemporaneidade em

diálogo com as condições com que a vida da mulher se desenvolveu na região.

O desenvolvimento da arte cerâmica na região se deu pela habilidade indígena,

especialmente da mulher, responsável pela confecção das peças, com a argila.

Saber manejar a matéria prima foi fundamental para o desenvolvimento da estética.

A ensaísta assegura que a habilidade da mulher indígena com a cerâmica permitiu,

posteriormente, que ela adaptasse as peças, sem grandes esforços, à fabricação de

vasilhas que se aproximassem do que os espanhóis haviam trazido da Europa. Para

Plá, isso foi uma demonstração da inteligência indígena frente ao estrangeiro. “Este

hecho, como otros que se irán viendo, demuestran la inteligencia del índio de esta

región, que se acomodó a la nueva cultura sin violencia física ni espiritual.”135 (PLÁ,

1991, p. 13).

A hibridação cultural, ou seja, o que García Canclini propõe em seu Culturas

híbridas, não se deu, como já pudemos perceber pelos textos de Plá e pelas

análises anteriores, de forma abrupta, mas sim lentamente, no ritmo da colônia. Com

relação às cerâmicas, Josefina Plá afirma que, apesar da implantação de novos

formatos das peças, a matéria prima e a técnica usada na confecção das peças,

mesmo depois da consolidação da colonização, permaneceram a mesma de antes

da chegada dos espanhóis à região. Ainda no século XX, as formas não haviam

mudando muito, segundo Plá.

Básicamente los tipos de cerámica cultivados por esta artesanía siguen siendo los mismos. Cerámica desnuda, rematada en los bordes por un dentado o trenzado acordonado obtenido mediante la presión del pulgar (platos para mbeyú o torta de almidón de mandioca. Esta dentado o acordonado parecería sugerir reminiscencias barrocas; pero vasijas anteriores a la conquista ofrecen el mismo detalle). Piezas englobadas en rojo, que son las más, en el renglón utilitario (cántaros principalmente) por ser las mejor cocidas. Piezas fumigadas en negro, que obtienen su color mediante el añadido de bosta vacuna a los materiales de quema. (el procedimiento para obtener este negro no fue quizá siempre el mismo, como lo demuestra el hecho de la persistencia en el color de las vasijas antiguas, en tanto que las fabricadas en fechas más recientes pierden su color con facilidad.)136 (PLÁ, 1991, p. 14)

135 Trad. nossa: Este fato, como outros que iremos ver, demonstra a inteligência do índio desta região, que se acomodou à nova cultura sem violência física nem espiritual. 136 Trad. nossa: Basicamente os tipos de cerâmica cultivados por este artesanato seguem sendo os mesmos. Cerâmica nua, rematada nas bordas por um dentado ou trançado acordoado obtido

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É interessante notar como um aspecto da cultura guaraní permanece

fortemente representado pelas cerâmicas, em meio à nova sociedade que se forma.

Todavia, no decorrer do ensaio Plá faz uma afirmação com a qual questiona a

maneira como tal cultura é manipulada na colônia. De acordo com a ensaísta, as

famílias espanholas que possuíam algum tipo de riqueza, pois a colônia era, em sua

grande maioria, pobre, possuíam, em prata, os mesmos objetos produzidos em

cerâmica pelos guaranis. As peças em cerâmica eram destinadas aos mais pobres

da colônia, o que se manteve, segundo Plá, durante muito tempo. Ou seja, impõe-se

uma concepção, baseada em condições socioeconômicas, de quem pode possuir tal

objeto, o que leva à dúvida, no imaginário popular, quanto à qualidade de tal peça.

A cultura popular, de acordo com John Storey (2015), possui várias definições

e estas se fazem sempre em contraste com alguma outra cultura. No entanto, a

cultura popular depende, desde seu princípio de um processo de urbanização, e

está unida a um processo de representação simbólica ligado à própria construção de

um lugar. Torna-se popular, também, aquilo que se origina do povo, não imposto.

Assim, na quarta definição de cultura popular de John Storey (2015) lemos que:

[...] cultura popular é a cultura que se origina do “povo”. Discorda de qualquer abordagem que sugira ser algo imposto sobre “o povo” a partir de cima. Segundo essa definição, o terno deveria ser usado apenas para indicar uma cultura “autêntica” do “povo”. Cultura popular como cultura folclórica é isto: uma cultura do povo para o povo. (STOREY, 2015, p. 29)

Assim, apesar de termos a noção clara da imposição do modo de vida

espanhol, podemos pensar que a cultura guaraní sobreviveu e se adaptou à nova

sociedade se construindo a partir e para a grande massa da população local. De

algum modo, a cultura guaraní é “uma cultura do povo para o povo”. As peças de

cerâmica de origem guaraní serviram para o próprio povo guaraní, ajustado à nova

realidade da urbanização colonial.

No século XX, as peças de cerâmica permanecem sendo produzidas da

mesma maneira que na época colonial, embora, de acordo com Plá, haja uma clara

mediante a pressão do polegar (pratos de mbeyú ou torta de amido de mandioca. Este dentado ou acordoado pareceria sugerir reminiscências barrocas; mas vasilhas anteriores à conquista possuem o mesmo detalhe). Peças englobadas em vermelho, que são as mais, na linha utilitária (cântaros principalmente) por ser as melhores cozidas. Peças esfumaçadas em negro, que obtêm sua cor mediante a adição de bosta de animais aos materiais de queima. (o procedimento de obter este negro não foi talvez sempre o mesmo, como o demonstra o feito da persistência da cor nas vasilhas antigas, enquanto que as fabricadas mais recentemente perdem sua cor com facilidade.)

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intenção de modificação para atender a demanda turística. A beleza e a ingenuidade

da cultura guaraní atrai em grande escala o interesse turístico, o que torna a

produção largamente rentável. Há uma descaracterização da arte cerâmica quando

são produzidas para atender à incitação turística, as peças perdem seu “poder”

utilitário para servirem apenas de objetos de adorno.

Boa parte das decorações dessas vasilhas se tornou muito simples, afirma a

ensaísta, o que ocorre devido a perda de grande parte do imaginário religioso

mágico guaraní, em detrimento de uma mescla da com o imaginário religioso

católico barroco trazido da Europa.

[...] no son raros los motivos terrígenas en relieve (lagartos, ranas, tortugas, serpientes) en que se hacen presentes, salvado el hiato del tiempo, antiquísimas asociaciones mágicas (divinidades o signos de la lluvia, del agua, o simplemente asociados con este líquido o con el meteoro) Las formas indígenas prehispánicas puras perviven en los “cazos” o pequeñas vasijas con mango (jhiacuá) reproducción de las vasijas realizadas con ciertos poronguitos de cuello, a cuya parte globular se sacaba una tapa o casco en sentido longitudinal; de manera que la prolongación o cuello servía de agarradera. Hoy apenas se las ve. Con ellas se extraía en agua de los cántaros. También tienden a desaparecer formas aculturadas como las de los jaros, usados con el mismo fin, y cuya superficie a menudo se decoraba con un surco espiraloide, a todas luces de origen barroco, copiado de los jarros de plata época.137 (PLÁ, 1991, p. 17)

Ao longo de todo o ensaio, na parte que dedica à cerâmica, Josefina Plá deixa

clara a extrema importância que o substrato indígena guaraní tem na formação

cultural paraguaia. Não há, para a autora, grandes modificações ou acréscimos. No

entanto, Plá ressalta que algumas funções sofreram mudanças com o transcorrer do

tempo e o volume de peças também aumentou exponencialmente.

[...] pero aún estas formas permanecieron prácticamente estáticas durante la colonia. Las formas cerámicas entroncadas con el folklore espiritual y social - figuritas de Nacimientos – son quizá la única adquisición inédita, y

137 Trad. nossa: […] não são raros os motivos terrígenas em relevo (lagartos, rãs, tartarugas, serpentes) em que se fazem presentes, salvo o hiato do tempo, antiquíssimas associações mágicas (divindades ou signos da chuva, da água, ou simplesmente associados com este líquido ou com o meteoro) As formas indígenas pré-hispânicas puras sobrevivem nas “conchas” ou pequenas vasilhas com cabo (jhiacuá) reproduções de vasilhas realizadas com certos poronguinhos de pescoço, cuja parte globular se tirava uma tampa de asa. Hoje apenas podemos vê-las. Com elas se extraía a água dos cântaros. Também tendem a desaparecer formas aculturadas como as dos jarros, usados com o mesmo fim, e cuja superfície constantemente se decorava com um sulco espiralóide, todas as luzes de origem barroca, copiada dos jarros de prata da época.

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su aculturación se realizó dentro de un marco primitivo, gracioso y tierno.138 (PLÁ, 1991, p. 18)

Com efeito, a inserção, principalmente no século XX, da cerâmica popular

enquanto peça decorativa, ou seja, descaracterizando-a enquanto objeto funcional

na vida cotidiana obedece a estímulos puramente comerciais, atendendo a demanda

turística, como já dito. Dessa forma, apesar da permanencia do objeto em si, com a

produção de um número de peças cada vez maior, o que Josefina Plá observa é a

perda do valor simbólico do artesanato, de profunda raiz histórica, que deriva até a

hibridez turística, na qual mescla representações simbólicas originais com algo que

atenda a demanda e o “gosto” de quem compra.

Outro tipo de peça indígena explorado por Josefina Plá em seu ensaio são as

cestas e outros objetos tecidos. Todos trabalhos tipicamente autóctones que

sofreram alguma mudança em função da presença hispânica, com relação não ao

modo de fazer, mas o valor ou uso dos objetos.

Dos principais objetos tecidos pelos autóctones guaranís, Josefina Plá dá maior

destaque para as redes, hamacas em espanhol. Largamente produzidas em todo o

continente americano, as redes se fizeram úteis durante a colônia. São dos objetos

mais adotados pelos espanhóis durante a colonização, pois, em uma colônia pobre

que carecia de mobiliário, as redes proporcionavam grande conforto. Elas

permaneceram como parte dos hábitos da comunidade local, integradas à nova

cultura. “La habilidad del indígena en el tejido de hamacas pasó integrar al artesano

colonial y sigue hoy, aunque las variaciones en el material y aspecto son

sensibles.”139 (PLÁ, 1991, p. 21). As redes sobreviveram até à modernidade pela

funcionalidade e capacidade de adaptar-se aos novos contextos, diferente de outros

objetos de artesanato que desapareceram por não encontrar utilidade, as redes se

tornam essenciais para a manutenção do conforto na colônia.

De acordo com Ticio Escobar (2014), as artes populares são dinâmicas, elas

se modificam conforme a sociedade a qual pertence se modifica. As artes populares

carregam em si certo estigma de “ser nacional”, todavia, isso não significa que elas

138 Trad. nossa: […] mas ainda que estas formas permaneceram praticamente estáticas durante a colônia. As formas cerâmicas entroncadas com o folclore espiritual e social – figurinhas de Nascimentos - são talvez a única aquisição inédita, e sua aculturação se realizou dentro de um marco primitivo, gracioso e terno. 139 Trad. nossa: A habilidade do indígena no tecido de redes passou a integrar ao artesão colonial e segue hoje, ainda que as variações no material e aspecto sejam sensíveis.

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não sofrem influências do que é estrangeiro, e mesmo tal influência também não

significa que ela deixa de ser nacional. Como ocorreu com as redes, que, de acordo

com Josefina Plá, sofreram influência na opção pelos materiais usadas em sua

confecção, bem como cores e desenhos utilizados, tudo devido ao contato com o

espanhol, mas que em nada deixou de ser genuinamente local, paraguaio, e até

certo ponto, guarani.

Todos os artesanatos de origem guarani ou hispânica se desenvolveram na

colônia paraguaia enquanto uma incorporação de funções e plásticas da nova

sociedade. Essa sociedade que, para Plá, trazia o melhor da tradição nostálgica

hispânica juntamente com a sensibilidade do indígena local, assim como do mestiço.

4.2.2 Dos hispânicos

Com relação à influência hispânica nas artes populares paraguaias, Josefina

Plá dá destaque a alguns tipos de trabalhos: o bordado, as rendas, os ferros

forjados, a ourivesaria – tanto o ferro quanto o ouro foram desenvolvidos em menor

grau no país –, a escultura e os trabalhos em couro. Todas essas artes populares de

origem espanhola que foram grandemente desenvolvidas na nova colônia, e que se

modificaram nela.

Para Josefina Plá, os bordados começam a ser desenvolvidos na colônia

paraguaia por volta do século XIX, mas não somente em decotes e mangas de

camisas, como também em outras peças de adorno das casas. No Paraguai, o

bordado largamente usado na vestimenta masculina. Plá afirma que as camisas

masculinas bordadas se converteram em um símbolo do país, com grande difusão

turística.

Quando espanhóis, os bordados eram confeccionados em vermelho e preto,

cores que, de alguma forma, remetem à típica indumentária flamenca e andaluza.

No entanto, com o passar do tempo e o contato com novos povos, foram aderidas

ao bordado novas cores e motivos. É interessante a maneira como Josefina Plá se

apega à tradição ao se referir ao modo de confecção da renda no país:

[...] en los últimos tiempos, no precisamente por un agotamiento de la fantasía sino deseando ensanchar sus posibilidades en el campo turístico, las obreras han recurrido a las revistas femeninas extranjeras, adquiriendo

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allí motivos híbridos sin relación alguna con el repertorio de motivos tradicionales.140 (PLÁ, 1991, p. 31)

O clássico bordado paraguaio, quando este já se torna parte da cultura local, o

ahopoí, “se realiza en blanco sobre blanco”141 (PLÁ, 1991, p. 31), denota peça de

grande delicadeza e elegância à peça. Todavia, talvez para atender também a uma

demanda turística, foram introduzidas diversas cores. Todo o bordado Paraguai

carrega em si uma grande riqueza cultural que, na modernidade do século XX, de

alguma maneira, se perde um pouco. As referências começam a se tornar distintas

para atender a demanda turística, e a cultura passa a ser referenciada e construída

para atender ao mercado.

Actualmente es difícil hallar blusas de auténtico ahopoí, es decir, bordadas sobre tejido hecho a mano con hilo también torcido a mano; ahora se borda sobre telas todavía tejidas a mano, pero con hilos de fábrica (hilos de coser) pero más frecuentemente ya sobre una tela industrial de abierta trama, producto asimismo de fábricas locales. El bordado así obtenido carece no sólo del atractivo del anterior, sino también de sus cualidades. El ahopoí autentico es prácticamente eterno, y el efecto del bordado realizado en hilos lustrosos sobre el tejido opaco y rústico daba un encanto especial al bordado. Los tejidos actualmente empleados como sostén no poseen esa duración ni ese atractivo. Una revitalización estética de esta artesanía exigiría el regreso al verdadero tejido de hilo torcido a mano; éste a su vez exigiría una mejor remuneración del trabajo. Ello lógicamente encarecería el producto; pero siempre habría, es seguro, mercado para un producto auténtico y de calidad asegurada.142 (PLÁ, 1991, p. 32)

A citação acima reafirma, como em diversos outros textos de Josefina Plá, sua

ligação com a tradição, seja na estética de seus textos, quando reforça ou nega o

cânone ou nas referências a artistas, com as quais sempre reforça as raízes

tradicionais de estruturação artística. Se nas citações da “Autosemblanza”,a

140 Trad. nossa: […] nos últimos tempos, não precisamente por um esgotamento da fantasia senão desejando alargar suas possibilidades no campo turístico, as artesãs recorreram às revistas femininas estrangeiras, adquirindo ali motivos híbridos sem relação alguma com o repertório de motivos tradicionais. 141 Trad. nossa: se realiza em branco sobre branco. 142 Trad. nossa: Atualmente é difícil achar blusas de autêntico ahopoí, quer dizer, bordadas sobre o tecido feito a mão com fios também torcidos a mão; agora se borda sobre telas ainda tecidas a mão, mas com fios de fábrica (fios de costura) mas mais frequentemente já sobre uma ela industrial de trama aberta, produto assim mesmo de fábricas locais. O bordado assim obtido carece não só do atrativo do anterior, senão também de suas qualidades. O ahopoí autêntico é praticamente eterno, e o efeito do bordado realizado com fios lustrosos sobre o tecido opaco e rústico dava um encanto especial ao bordado. Os tecidos atualmente empregados como sustentação não possuem essa duração nem esse atrativo. Uma revitalização estética deste artesanato exigiria o regresso ao verdadeiro tecido de fio torcido a mão; este por sua vez exigiria uma melhor remuneração do trabalho. Isso logicamente encareceria o produto; mas sempre haveria, é certo, mercado para um produto autêntico e de qualidade assegurada.

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ensaísta afirma que havia lido os textos do cânone central da literatura mundial, em

Las artesanías en el Paraguay ela afirma, especificamente no trecho acima, a

importância da tradição na valorização e perpetuação da arte. Ao longo das

análises, fica cada vez mais clara a proposta de modernidade de Josefina Plá, em

sua obra, que se vale da tradição em diálogo com a cultura popular.

Outro trabalho manual explorado por Plá em seu ensaio é o ñandutí, renda de

origem espanhola, mais especificamente canária e que, alimentado pela cultura

guaraní, floresceu como a maior representação artística da identidade nacional

paraguaia até à contemporaneidade.

Para Zilá Bernd, em Literatura e identidade nacional (2003), a identidade, tanto

individual quanto coletiva, como transformação. Toda identidade está se formando

todos os dias. Não há, para a autora, uma identidade única e permanente. Tudo

passa por um processo de transformação que envolve toda a dimensão temporal

assim como a espacialidade. As construções de identidades se transformam com a

aquisição de novos conhecimentos e o contato com o outro. Bernd, em uma leitura

de Deleuze e Guattari, afirma que a

[...] busca de identidade não deve coincidir com a "conquista de um caráter nacional" pelo simples motivo de que não existe "um" caráter nacional, nem uma "essência" [...] a questão da identidade nacional será encarada como um dos pólos de um processo dialético; portanto, como "meio" indispensável para entrar em relação com o outro, e não como um "fim" em si mesmo. A busca de identidade deve ser vista como processo, em permanente movimento de deslocamento, como travessia, como uma formação descontínua que se constrói através de sucessivos processos de reterritorialização e desterritorialização, entendendo-se a noção de "território" (Deleuze e Guattari, 1977) como o conjunto de representações que um indivíduo ou um grupo tem de si próprio. (BERND, 2003, p.12)

Dessa forma, percebemos que o caráter nacional assumido pelo ñandutí possui

deve ser vista sempre de forma dialética. A identidade guaraní presente na renda

aceita, de forma consciente, a identidade espanhola, para juntas fazerem parte de

algo maior que se firma por um longo processo de hibridação, que é a cultura

paraguaia e sua identidade própria. Todo o processo de formação e de hibridação

da renda, explorado, neste texto Las artesanías en el Paraguay, Josefina Plá

desenvolve com mais profundidade em um ensaio específico somente dedicado à

renda. O texto, intitulado “Ñanduti: encrucijada de dos mundos”, será analisado à

frente, e, desse modo, não nos ateremos, por hora, às especificidades da renda e às

suas relações com a cultura espanhola e guarani.

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Josefina Plá afirma que, assim como o ñandutí, artesanato que passou por um

processo radical de transculturação, os ferros forjados também sofreram o mesmo

processo. Todavia, é interessante notar que, desde a matéria prima até os primeiros

artesãos, tudo vinha da Espanha. Havia uma grande falta de minerais, de maneira

geral, em quantidade suficiente que pudessem ser explorados na região. Todo ferro

existente na colônia era usado para atividades e utensílios essenciais, não havendo

recursos, por exemplo, para que tais materiais fossem usados como adorno. “Quizá

a esto se deba el hecho, señalado como curiosidad, de que las casas coloniales

careciesen todas de aldabón.”143 (PLÁ, 1991, p. 38).

A ensaísta afirma que outros minerais como o ouro, largamente explorado no

Brasil, por exemplo, não teve qualquer desenvolvimento exploratório no Paraguai.

Todo ornamento e peças em ouro ou prata existentes na colônia vieram por meio de

trocas com estrangeiros. Dessa forma, “La plata y el oro que faltaban en el país, se

lo importó. Del Peru, principalmente. Sobre todo plata.”144 (PLÁ, 1991, p. 39), que

serviram de ornamento para outras peças, complementando-as, principalmente junto

a cerâmicas de origem indígena. Apesar da escassez de matéria prima, ou seja,

metais preciosos que não eram encontrados no país, o trabalho com tais minerais se

desenvolveu consideravelmente no Paraguai.

Voltando à crítica cultural, já desenvolvida em outros momentos do texto,

podemos perceber que os conceitos de hibridismo visam, principalmente, de acordo

com Stelamaris Cose (2005, p.170), “[...] descrever novas culturas criadas em

regiões de intensa mistura e/ou espaços de fronteiras.”. No ensaio de Josefina Plá

como um todo, dividido pela autora em duas partes, a primeira voltando-se para

artesanatos de origem indígena e a segunda para artesanatos de origem hispânica,

ambos são hibridizados pelo próprio contato cultural, podemos pensar em uma

sociedade, na qual estas peças se desenvolveram, modernas desde o princípio, mas

não uma modernidade das luzes metropolitanas, e sim de grande influência

autóctone. A cultura popular construiu as peças sobre as quais Josefina Plá

desenvolve seu ensaio, mas que não é visto nem reconhecido enquanto partícipe.

143 Trad. nossa: Talvez a isto se deva o fato, marcado como curiosidade, de que as casas coloniais carecessem todas de batedor. 144 Trad. nossa: A prata e o outro que faltavam no país, foi importada. Do Peru, principalmente. Sobretudo prata.

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O popular é nessa história o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido e conservado; os artesãos que não chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de bens simbólicos “legítimos”; os espectadores dos meios massivos que ficam de fora das universidades e dos museus, “incapazes” de ler e olhar a alta cultura porque desconhecem a história dos saberes e estilos. (GARCÍA-CANCLINI, 2013, p.205)

No ensaio de Josefina Plá, é clara a participação e a importância dada pela

autora ao popular. Plá associa o popular à própria construção e à manutenção da

vida social, não ao pré-moderno, mas à criação da nova sociedade. Não há em seu

ensaio uma oposição maniqueísta entre culto e popular, moderno e tradicional, tudo

está a serviço da diversidade. Josefina Plá refuta, como afirma García Canclini

(2013), as clássicas oposições que definiram, ao longo da história, quais culturas, ou

objetos culturais, são populares ou não. Por meio de um rico ensaio histórico, a

ensaísta coloca o popular, a partir de suas sólidas bases híbridas, enquanto

protagonista da própria sociedade. Assim, podemos perceber, reafirmando García

Canclini (2013), o popular enquanto algo construído, pelo processo de hibridação,

não preexistente.

É interessante notar que nos últimos tipos de peças artísticas que Josefina Plá

abordou em seu texto, podem ser apreciados na contemporaneidade como

pertencentes a uma cultura popular é construído no Paraguai pelos processos de

hibridação, que são os mesmos processos que constituem o povo paraguaio como

síntese de culturas autóctones e europeias. A afirmativa da autora de que as

comunidades indígenas da região não possuíam qualquer prática artística que

pudesse ser considerada escultura ou talha, mas que estas se desenvolveram

largamente entre os indígenas locais durante a colônia, demonstra a forma com que

a hibridação acontece na região, por conta de fatores históricos que remete ao

contato cultural.

[…] hemos observado que los indígenas del área no practicaban la talla: sus conocimientos en el trato con la madera no iban más allá del pulido de un arco o el corte de una flecha. Sin embargo la aproximación de culturas dio en algunos casos resultados interesantes del lado autóctono.

Los payaguás por un lado, los mbyás por otro, asimilaron en cierta medida, sin abandonar el estado salvaje, las posibilidades de esa artesanía. Si no

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las desarrollaron más ampliamente, ello se debió sin duda a la falta de área funcional.145 (PLÁ, 1991, p. 45)

Percebemos que a mescla cultural ocorre desde o início da colonização. A

sociedade hispânica também era híbrida quando chegou à América, e aqui

encontrou diversas sociedades também híbridas. Ao afirmar a aceitação e

posteriormente a busca autóctone pela cultura do europeu estrangeiro, Josefina Plá

reafirma o conceito explorado por Stelamaris Coser (2005) das sociedades que já

nasceram híbridas e que se aceitam enquanto hibrídas. “Híbridos não são os outros:

híbridos somos todos nós, são todas as culturas e todas as histórias (COSER, 2005,

p. 186).

Em relação aos payaguás, Josefina Plá afirma que existe uma autêntica

aculturação.

Los payaguás representantes de una oleada pobladora previa a la guaraní, se habían hecho dueños del río, y su compenetración con el hábitat los hizo, durante trescientos años, prácticamente invencibles. Fueron derrotados al fin por el hambre, la peste, la práctica del aborto: no por el hombre. Tampoco se hicieron cristianos. En ello malgastaron sus esfuerzos los predicadores locales. Fueron inútiles los regalos, los halagos, las prédicas. En vano les obsequiaron durante dos siglos estampas en las cuales aparecía unas veces la Virgen haciendo milagros y otras veces Satanás jugando malas pasadas al hombre.

Sin embargo, en algo se manifestó en ellos al cabo de los años esa frecuentación de la iconografía religiosa. Los payaguás tomaron las figuras del Paraíso Terrenal como repertorio de motivos para sus tallas. Trasladaron a sus pipas rituales las figuras humanas y de animales del Paraíso.146 (PLÁ, 1991, p. 46)

145 Trad. nossa: […] observamos que os indígenas da área não praticavam escultura: seus conhecimentos no trato com a madeira não iam além do polido de um arco ou o corte de uma flecha. No entanto a aproximação das culturas deu em alguns casos resultados interessantes do lado autóctone. Os payaguás por um lado, os mbyás por outro, assimilaram em certa medida, sem abandonar o estado selvagem, as possibilidades desse artesanato. Se não as desenvolveram mais amplamente, isso se deve, sem dúvida, a falta de área funcional. 146 Trad. nossa: Os payaguás representantes de uma leva prévia à guaraní, haviam se tornado donos do rio, e sua compenetração com o habitat os fez, durante trezentos anos, praticamente invencíveis. Foram derrotados, ao fim, pela fome, a peste, a pratica do aborto: não pelo homem. Tampouco se tornaram cristãos. Neles malgastaram seus esforços os predicadores locais. Foram inúteis os presentes, as bajulações, as prédicas. Em vão lhes obsequiaram, durante dois séculos estampas nas quais aparecia umas vezes uma Virgem fazendo milagres e outras vezes Satanás jogando más coisas ao homem. No entanto, algo se manifestou neles ao longo dos anos essa frequentação da iconografia religiosa. Os payaguás tomaram as figuras do Paraíso Terrenal com repertório de motivos para suas esculturas. Transformaram seus cachimbos ritualísticos em figuras humanas e de animais do Paraíso.

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Há uma relação interessante entre os indígenas e os espanhóis, pois mesmo

não aceitando a colonização, os payaguás sofreram influência hispânica católica. As

imagens sacralizadas por séculos pelos cristãos ganham novos ares e têm suas

histórias modificadas. Entre tais imagens, Plá dá atenção à história de Adão e Eva,

talhada em madeira pelos payaguás, na qual os indígenas transformam o texto

bíblico e aparece Adão vencendo a serpente. Os animais representados juntamente

a eles também são locais, não elefantes ou camelos. Podemos perceber que a todo

momento Josefina Plá reforça a presença do autóctone e as mudanças e/ou

adaptações feitas pelos indígenas.

Cabe, portanto, reafirmar, em consonância com as considerações de García

Canclini, a hibridação cultural que ocorreu em diversos níveis na América Latina. O

processo manifestado no caso acima, consiste na renovação, existindo uma

necessidade de reformular os signos trazidos pelo estrangeiro epor mais que estes

estejam distantes e mantenham pouco contato, são uma constante de divisão de

espaço.

No decorrer do texto, Josefina Plá explora questões de cunho histórico acerca

dos mestres escultores espanhóis, artesãos, que chegaram ao Paraguai, e da

destreza indígena e do mestiço, primeiramente enquanto copistas das peças

trazidas pelos hispânicos, e que depois, aos poucos, foram combinando os modelos

com a realidade local. O ensaio é finalizado com um pequeno trecho a respeito dos

artesanatos envolvendo o couro, nesta parte, novamente, a ensaísta afirma que o

substrato local, ou seja, a cultura autóctone apoiou e ajudou a desenvolver as peças

no país, devido a uma questão geográfica e de manutenção da vida local.

4.3 Ñanduti e as rendas de dois mundos

As reflexões acerca da modernidade se dão por muitas vezes de maneira

espontânea. Pensamos sobre o “futuro”, fazemos projetos, temos ideias de

liberdades ou transgressões mesmo que não utilizemos destas palavras para assim

denominar nossos pensamentos. Josefina Plá, de alguma maneira, faz isso em suas

obras. A artista pensa o Paraguai através de seus textos, num Paraguai que vê

pertencente a uma modernidade, e, portanto, em sua concepção, diverso.

Vinda de uma Espanha em que o modernismo e as vanguardas estavam em

efervescência, Josefina Plá desembarca em 1927 em um país totalmente distinto do

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seu. Um local que a própria artista subscreve nos dizendo que “existía, pero yo

debía descubrirlo”, o que o fez por meio de sua vasta obra. Assim, percebemos que

a obra de Plá visita um mundo que não era o seu, mas que, entretanto, foi

internalizado e transformado por ela, quando se trata dos ensaios, em textualidade,

quando não em poesia, narrativas, dramaturgias ou ainda em artes plásticas. Logo,

lembramo-nos da assertiva bakhtiana sobre a linguagem:

Cada texto pressupõe um sistema universalmente aceito (isto é, convencional no âmbito de um dado grupo) de um signo, uma linguagem (ainda que seja linguagem da arte). [...] Portanto, por trás de cada texto está o sistema da linguagem. A esse sistema correspondem no texto tudo o que é repetido e reproduzido e tudo que pode ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de tal texto (o dado). Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido (a sua intenção em prol da qual ele foi criado). É aquilo que nele tem relação com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a história. (BAKHTIN, 2011, p. 309-310)

Dessa forma, tomando as ideias de Ana Pizarro em América Latina: palavra,

literatura e cultura, volume 2, percebemos que o olhar lançado por Josefina Plá a

algo estrangeiro foi internalizado primeiramente pelo local e que veio a tonar-se

totalmente particular do Paraguai. O ñanduti é o olhar do outro, no entanto, deste

outro, Josefina, espanhola de nascimento que está buscando de alguma forma,

assim com o próprio ñanduti conseguiu, o seu lugar. Em uma trama cultural distinta

no qual o entrecruzamento provoca a criação de uma cultura completamente diversa

das duas anteriores.

O moderno Latino-americano, portanto, ligado ao ser “culto” não se liga tão

somente à modernização comunicacional, mecânica, ao moderno tecnológico, e sim

à incorporação dessas facetas às matrizes tradicionais sociais locais, aquilo que é

“da terra”. Ainda de acordo com García Canclini, na América Latina, quando se fala

em modernidade, há de se compreender que o processo pelo qual ela passou é

completamente distinto do conhecido Europeu: “tivemos um modernismo exuberante

com uma modernização deficiente.” (GARCÍA CANCLINI, 2013, p.67).

García Canclini (2013) assegura que nossa colonização se deu por meio das

nações mais atrasadas de toda Europa, a saber, Portugal e Espanha na grande

maioria do território. Ainda sofremos as consequências da Contra-Reforma e de

diversas outras ações antimodernas durante pelo menos três séculos até que

começássemos a nos tornar independentes e a nos autopromover e atualizar com o

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que o resto do mundo pensava. Todavia, afirma García Canclini, a modernização da

América Latina nunca foi uma constante duradoura. Houve, nas palavras do crítico,

“ondas de modernização” (GARCÍA CANCLINI, 2013, p.67). A metáfora das ondas é

interessante e visual, pois o processo para alcançar o moderno na América Latina,

assim como as ondas, sempre nasceu e morreu rapidamente para renascer e tornar

a morrer de novo.

Voltando-nos agora mais especificamente ao texto de Josefina Plá sobre o

ñanduti, no qual buscamos questões acerca dessa modernidade diversa. A artista

começa seu ensaio afirmando que não há muitas informações se houve de fato uma

imigração canária no Paraguai. Não há registros, segundo a ensaísta, de grupos

provindos da mesma ilha atlântica que Josefina, nem no que chama “años heroicos”,

ao se referir ao período de colonização da região paraguaia. O que houve foram

poucos expedicionários vindos da ilha, mas a ensaísta duvida que entre estes

houvesse alguma mulher, estas sempre responsáveis por dar continuidade aos

costumes da casa e à manutenção da cultura de um local. Josefina Plá não observa

haver qualquer relação em nenhum dos costumes coloniais paraguaios e sua cultura

de origem. Menciona que o “maní tostado”, amendoim tostado em português, lembra

uma antiga receita, ainda pré-hispânica, originária das Ilhas Canária, conhecida

como “gofio”, que consiste em uma mescla de grãos tostados e moídos com uma

pedra, muito consumida na região pelo seu alto valor calórico. Todavia, com afirma,

poderia ser apenas uma coincidência entre as regiões. “Y, sin embargo, por otra

parte la huella canaria aparece profunda, indeleble, en alto tan sutil, como lo es el

patrón de un encaje que por sus características podría calificarse de “nacional”.”147

(PLÁ, 1991, p.59).

Josefina Plá, em um capítulo intitulado “El ñanduti y otros encajes”, presente no

livro Artesania paraguaya, começa seu texto com o registro da seguinte lenda:

En víspera de casarse, el hijo de un cacique salió de la toldería para conseguir las pieles de tigre que según costumbre de la tribu debía ofrecer a la familia de la novia, como prueba de su hombría y capacidad como cazador y sostén de futura familia. No regresó. Cuando, pasado mucho tiempo ya, rastreadores de la tribu hallaron por fin sus huesos, vieron sorprendidos que éstos se hallaban envueltos en un extraño sudario: una araña tejedora había extendido sobre ellos su tela. La novia, que nunca había dejado de esperar al prometido, quedó impresionada. Quiso imitar la

147 Trad. nossa: E, contudo, por outra parte da marca canária aparece profunda, indelével, no alto tão sutil, como o é o padrão de uma renda que por suas características poderia qualificar-se de “nacional”.

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tela de la araña, para cubrir la sepultura del amado. Durante varias lunas trabajó. Por fin lo consiguió. Fue el primer ñandutí.148 (PLÁ, 1998, p. 57)

A imagem, que segundo Alfredo Bosi, é anterior a qualquer palavra, fica

completamente retida na memória desde a primeira leitura da lenda com a qual

Josefina Plá inicia seu texto sobre o Ñandutí. Um cadáver coberto por teia de

aranha. Primeiramente, Josefina Plá apresenta a manutenção de algo da cultura de

uma tribo local, ou seja, o rito anterior ao casamento, mas o ritual é quebrado pelo

não regresso do filho do cacique. Somos, então, surpreendidos pela imagem que se

fixa, os ossos do filho do cacique envolvidos em seu “sudário” feito de teia de

aranha. O horror da cena principal da lenda chama a atenção para forma como a

cultura popular vê a renda. O contraste existente entre a cena horripilante e a

delicadeza da renda criada associada a cena. Percebemos que desde o início da

lenda há uma forte relação com a mulher. O filho do cacique vai à caça para poder

se casar, uma aranha o cobre com sua teia e uma mulher tenta imitá-la e cria algo

tão delicado quanto, a partir de uma cena horrível. Josefina atenta a violência e à

injustiça do Paraguai e ao refinamento cultural do povo.

Por meio da lenda Josefina Plá reafirma o que vai colocar no texto aqui

analisado, “Ñanduti: encrucijada de dos mundos”. O ñandutí, apesar de não ser

originário do Paraguai, se integra no país de tal maneira que chega a fazer parte das

lendas locais. O ñandutí se relaciona entranhavelmente com a mulher paraguaia.

Dessa forma, podemos pensar já em uma criação, tanto da peça de artesanato

quanto da lenda enquanto produtos oriundos de uma hibridação. De acordo com

García Canclini (2002), as mesclas interculturais, as trocas de cultura, são tão

antigas quanto as próprias culturas e aumentam na medida que a sociedade se

torna mais complexa. A ensaísta afirma ser essa apenas uma, e a mais famosa, das

várias lendas acerca da origem do ñandutí. Ainda afirma a existência de poetas e

críticos locais que concordam e reafirmam as lendas por meio de seus escritos, tanto

148 Trad. nossa: A véspera de se casar, o filho de um cacique saiu do acampamento para conseguir as peles de tigre que segundo o costume da tribo devia oferecer à família da noiva, como prova de sua hombridade e capacidade como caçados e sustento da futura família. Não voltou. Quando, passado muito tempo já, rastreadores da tribo acharam por fim seus ossos, viram surpreendidos que estes se achavam envoltos em um estranho sudário: uma aranha tecedora havia estendido sobre ele sua teia. A noiva, que nunca havia deixado de esperar pelo prometido, ficou impressionada. Quis imitar a teia da aranha, para cobrir a sepultura de seu amado. Durante várias luas trabalhou. Por fim conseguiu. Foi o primeiro ñanduti.

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ensaísticos como poéticos. Mas o que interessa é a maneira como a renda se

entretece na cultura local.

Todavia, segundo a ensaísta, nenhum dos cronistas no começo da colonização

do país menciona nada da origem ou do desenvolvimento do ñandutí no Paraguai.

Somente no fim do XVII, de acordo com Plá, é que Ruiz Díaz de Guzmán fala da

destreza das mulheres paraguaias nos trabalhos que envolvem linha e agulha, mas

não menciona quais trabalhos são esses. Dois anos mais tarde, afirma Josefina Plá,

as Anuas Jesuíticas informam que o trabalho se tratava de “paños de manos”, ou

seja, toalhas bordadas “una labor doméstica que se hizo tradicional y se prolongó

floreciente hasta pasado el medio siglo XIX.”149 (PLÁ, 1991, p.60). De tudo o que o

conquistador renunciou para colonizar o Paraguai, ele não pode renunciar ao lavabo.

Havia a necessidade de lavar as mãos, e para secá-las necessitava de toalhas

bordadas rusticamente por mãos indígenas.

El ñanduti pues, no es invención local; pero merece serlo. En esta tierra y en manos de criollas y mestizas, retocó sus rasgos; la obrera organizó sus puntos tradicionales en un orden peculiar, los agrupó con originalidad rítmica, lo enriqueció de puntos nuevos, cuyos nombres le forman aureola de terral poesía: huella de buey, pajarito, mariposa, espiga, flor de maíz, flor de guayabo. Hizo de él, en suma, algo representativo y entrañable. Es un encaje de abierta trama cuya base la forman las características ruedas tinerfeñas, de entretejidos radios – “soles” - que figuran también en encajes típicos de otras regiones españolas o hispanoamericanas: Perú, Bolivia. Son estas ruedas muy semejantes en su forma y proceso elemental a las que teja la “epeira diademata” huésped común de los bosques y jardines de cuatro continentes, las que dieron nombre al encaje, pues ñanduti significa

tela de araña.150 (PLÁ, 1998, p. 59-60, grifo da autora)

Algo que se pode notar tanto nas lendas quanto nos ensaios, crônicas e

escritos sobre o ñandutí que é algo exclusivo do universo feminino. Além disso, é de

se observar que todos os trabalhos se dão em povos que foram parte da Missões

Jesuíticas, menos o ñandutí. De acordo com Ticio Escobar (2014), considerar como

149 Trad. nossa: um trabalho doméstico que se fez tradicional e se pronlongou florescendo até a segunda metade do século XIX. 150 Trad. nossa: O ñanduti pois, não é invenção; mas merece ser. Nesta terra e nas mãos de crioulas e mestiças, retocou seus traços; a artesã organizou seus pontos tradicionais em uma ordem peculiar, os agrupou originalidade rítmica, o enriqueceu de pontos novos, cujos nomes lhe formam uma aureola de terral poesia: huella de buey, pajarito, mariposa, espiga, flor de maíz, flor de guayabo. Fez dele, em sua algo representativo e entranhado. É uma renda de aberta trama cujas bases formam as características das rodas de Tenerife, de entretecidos rádios – “sóis” – que figuram também em rendas típicos de outras regiões espanholas ou hispano-americanas: Peru, Bolívia. São estas rodas muito semelhantes em sua forma e processo elementar às que tece a “epeira diademata” hóspede comum dos bosques e jardins de quatro continentes, as que deram o nome al renda, pois ñanduti significa “teia de aranha”.

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arte as produções indígenas não era hábito nas Missões. Plá nos explica que isso se

dá por serem estes trabalhos mais modernos e chegarem ao Paraguai

posteriormente. A todo momento a artista afirma o ñandutí, como na citação acima,

enquanto algo que chega do estrangeiro ao Paraguai. A época precisa em que a

renda canária entrou e firmou raízes na colônia é impossível delimitar.

Devido à pobreza da colônia, as rendas e ornamentos eram algo que ficava em

segundo plano na vida cotidiana da população. Todavia, dentro das chamadas

“Reducciones Jesuiticas” as condições eram um pouco melhores e podiam se

permitir este luxo. Mas Josefina alerta que isso se dava somente nas reducciones,

não nas igrejas comuns. Contudo, a própria ensaísta afirma não haver provas

concretas do surgimento desses “encajes” dentro das missões. O ñandutí foi trazido

ao Paraguai em uma época mais moderna, mas conseguiu se introduzir

profundamente na cultura local. A cultura da América Latina, segundo Bareiro

Saguier (1972), por toda sua história é uma cultura que resulta da mescla das

culturas europeias de ascendência latina com o tronco múltiple das culturas

ameríndias, além de uma parcela africana introduzida posteriormente. Podemos

tomar a renda do ñandutí como genuinamente latino-americana. Adentra o Paraguai

com certo atraso em relação à colonização local, mas se funde à sua cultura e seu

povo, tornando-se um símbolo do país e ligado intimamente à mulher paraguaia.

Pela falta de dados concretos da chegada da renda ao país, Josefina Plá

afirma que existe a suposição de que a renda chegou ao Paraguai pelo sul do Brasil,

mas também não explica de que maneira. É significativo que na região do Brasil

onde a renda é produzida seja conhecida como “encaje del Paraguay”151, assim a

ensaísta expressa não haver dúvidas com relação à transculturação que ocorre com

o ñandutí brasileiro. Livia Reis, em seu ensaio “Transculturação e transculturação

narrativa”, presente no livro Conceitos de literatura e Cultura, organizado pela

professora Eurídice Figueiredo, esclarece que o conceito de transculturação,

cunhado por Fernando Ortiz, “não consiste em adquirir uma cultura, o que ele [Ortiz]

entente como aculturação; transculturação implica em processos de aculturação, de

desculturação parcial e de neoculturação” (REIS, 2005, p. 470). O chamado “encaje

del Paraguay”, ou renda paraguaia, não se configura mais, dessa forma, como

151Trad. nossa: renda do Paraguai.

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ñandutí, mas outro tipo de renda que teve o ñandutí como base, que se transportou

para si aspectos da cultura local de Santa Catarina.

Segundo Plá, a única “luz” relativa ao surgimento do ñandutí no Paraguai vem

de algumas crônicas do Padre Sánchez Labrador.

Al Padre Sánchez Labrador le tocó actuar en Belén (región llamada de Tarumá) sobre el río Ypané, catequizando a los mbyá-guaicurúes. Durante su tarea evangélica viajó río abajo hasta Asunción, y pudo asistir en esta capital “a la enseña de las señoras españolas que enseñaban a las indias de su Reducción – con fine prácticos enderezados a la suntuaria religiosa de la misma – a tejer encajes con soles y cribos (calados)”152 (PLÁ, 1991, p. 63-64, grifo da autora)

Interessante e completamente compreensível em se tratando das Missões

Jesuíticas, é que cabia às índias se deslocarem da Missão até Assunção a fim de

aprender a renda. As professoras ficavam na cidade. Logo, podemos perceber um

trânsito entre culturas na própria criação do ñandutí. Índias com uma cultura própria

e que moravam nas Missões iam até à cidade aprender a fazer uma renda típica

espanhola com mulheres hispânicas. A renda espanhola entra em contato com o

universo local e, de alguma maneira, se metamorfoseia adquirindo tom, cor e nome

locais. De Encaje de Tenerife ou Roseta de Tenerife ou ainda Encaje de Soles,

passa a se chamar Ñandutí.

A falta de documentação explicita que prove a vinda da renda canária para o

Paraguai não é algo decisivo para se pensar que o ñandutí seja oriundo de outro

local. A própria autora ratifica “son tantas las cosas que esos documentos callan,

unas veces intencionalmente y otras porque no alcanzaron los que los escribieron a

pensar que tal o cual dato podía resultar necesario y precioso a los que después

vendrían.”153 (PLÁ, 1991, p.64). Dessa forma, podemos pensar que seria comum e

lógico que uma mulher canária desenvolvesse trabalhos manuais que havia

aprendido em sua terra natal. Josefina Plá destaca que nenhum outro trabalho

vinculado ao universo feminino, nem mesmo a cerâmica, ocupou o lugar que o

Ñanduti ocupa no imaginário popular paraguaio.

152 Trad. nossa O Padre Sánhez Labrador tinha que atuar em Belen (região chamada de Tarumá) sobre o rio Ypané, catequizando os mbyá-guaicurúes. Durante sua tarefa evangélica viajou rio abaixo até Assunção, e pode assistir nesta capital “à cena das senhoras espanholas que ensinavam as índias de sua Redução – com fins práticos endereçados ao suntuário religioso da mesma - a tecer rendas de sóis e crivos (calados).” 153 Trad. nossa: são tantas as coisas que esses documentos calam, umas vezes intencionalmente e outras porque não alcançaram os que escreveram a pensar que tal o qual dado podia resultar necessário e precioso aos que depois viriam.

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“Seguir realizando en un país extraño una artesanía consustanciada con un

modo regional, es una manera de continuar sentimental, nostálgica y

subconscientemente unido a lo que se ha dejado.”154 (PLÁ, 1991, p.64). É

interessante quando Josefina Plá usa a expressão “consustanciada con un modo

regional”, ou seja, consubstanciada, consolidada, unida, a ensaísta provoca o

pensamento da América Latina enquanto um lugar múltiplo, mas que não por isso

deixa de ser genuíno. O ñandutí dependia das condições locais para se arraigar na

região. As mulheres canárias, e Josefina Plá assegura que não necessitariam muitas

para que isso ocorresse, se encarregaram de desenvolver a renda na região

paraguaia. Voltamos a pensar o ñandutí, portanto, como um produto oriundo de uma

hibridação cultural que, de acordo com García Canclini (2002), é resultado de um

conjunto de processos e práticas socioculturais que existiam de determinada

maneira enquanto se encontravam separadas, mas que se associaram para criar

algo único, diferente de tudo o que existia anteriormente.

É interessante notar como o ñanduti floresceu nas Missões e também junto

com elas desapareceu. Se pensarmos que, como já dito, quem tinha condições

econômicas para manter um luxo como a renda eram os jesuítas, quando estes são

expulsos do país, não há mais quem pague por este luxo nas igrejas. Porém, após a

saída de cena dos jesuítas do território paraguaio, e por outros fatores, a colônia

entra em franco crescimento econômico. Dessa forma, a renda antes restrita aos

ambientes eclesiásticos das Missões, agora torna-se de uso também doméstico.

Entretanto, Josefina Plá afirma que o mais interessante quando se trata do

ñandutí é a forma como ele penetra no universo feminino local. O ñandutí não é a

renda mais fácil que se desenvolveu na época, pelo contrário, é uma das mais

difíceis. Para a ensaísta, o ñanduti se sobressaiu perante às outras rendas por sua

própria beleza, “es tan bello, que nadie resiste a la tentación de poseerlo y lucirlo en

alguna ocasión”.155 (PLÁ, 1991, p. 65). Plá ainda afirma que a relação íntima da

alma da mulher local com o ñandutí se revela em diferentes meios, o próprio nome

do bordado: ñandutí.

A metamorfose do nome, de Renda de Sóis para Ñanduti, deu força à crença

de que a renda era de fato uma criação local. Foram criadas lendas sobre a origem

154 Trad. nossa: Seguir realizando em um país estranho um artesanato consubstanciado com um modo regional, é uma maneira de continuar sentimental, nostálgica e subconscientemente unida ao que deixou para trás. 155 Trad. nossa: é tão belo, que ninguém resiste à tentação de possui-lo e exibi-lo em alguma ocasião.

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da renda. Lendas envolvendo personagens pré-hispânicos, caciques das tribos,

animais, insetos como a aranha, que se conecta com quase todas as lendas criadas.

Nenhuma das histórias populares acerca da criação da renda menciona sua origem

hispânica. Porém, como já afirmamos, é difícil, senão impossível, precisar onde e

quando nasceram tais lendas.

Outro fator interessante que Josefina Plá ressalta acerca do ñandutí no

Paraguai é o que a ensaísta chama de vitalidade do artesanato “que atraviesa

prácticamente sin menoscabo algun el incendio, digámoslo así, en el cual

desaparecieron tantos rastros del pasado cultural indohispánico: la llamada Guerra

Grande”156 (PLÁ, 1991, p. 66). Podemos pensar nesse fator ligando-o a outro que a

Josefina menciona anteriormente, o ñandutí era uma atividade desenvolvida por

mulheres. Durante a Guerra, quase todos os homens do país foram mortos, por

conta disso os artesanatos femininos sofreram menos que os trabalhos masculinos.

Esse contexto histórico que ampliou o cultivo do ñandutí. A partir daí, e sobretudo

depois dos anos de 1950, o ñandutí passa a ser comercializado turisticamente. No

entanto, ainda que assim surjam mais rendeiras, afirma Josefina Plá, não há uma

explicação para o entrelaçamento que esta renda faz no espírito da mulher

paraguaia. Tamanha é a força do ñandutí na cultura local que ele suplanta outras

rendas de mais fácil produção e que encantam, da mesma forma, os turistas

estrangeiros.

A região mais tradicional do ñandutí é a de Itauguá, um pouco afastada da

capital, mas também não há muitos registros sobre como chegou a renda na região.

A renda, provavelmente, se desenvolveu na região por ser uma das áreas do

Paraguai que mais se encontram mulheres de ascendência hispânica. As famílias da

região são donas de fazendas e comércios variados. No entanto, durante a Grande

Guerra, as famílias foram quase que totalmente dizimadas. “Pasada la guerra [...]

sólo una de todas las tejedoras de ñanduti itaugüeñas sobrevivió para regresar a su

pueblo”157 (PLÁ, 1991, p. 68). Contudo, segundo Plá, bastou o esforço desta única

mulher para que a renda sobrevivesse e despertasse o interesse de toda a

população feminina. Interesse esse justificado pelo estímulo econômico da venda da

156 Trad. nossa: que atravessa praticamente sem desprezo algum o incêndio, digamos assim, no qual desapareceram tantos rastros do passado cultural indo-hispânico: a chamada Guerra Grande. 157 Trad. nossa: Passada a guerra […] só uma de todas as rendeiras de ñandutí itaugunhas sobreviveu para voltar ao povoado

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renda às famílias de imigrantes que chegam ao país após a guerra. Com efeito, o

ñandutí deixa de ser apenas um ornamento voltado para as igrejas e adorno de

casas e passa a fazer parte de peças de vestuários e leques, entre outras utilidades.

Las interrogantes expuestas y otras relacionadas con esta artesanía seguirán sin embargo siéndolo y quizá para siempre, ya que hay poca esperanza de que aparezcan más datos sobre el particular.

Sólo podemos, en suma, afirmar, como hecho categórico y caracterizante, el arraigo profundo, entrañable, de esta artesanía barroca y sutil en la mujer paraguaya. Una artesanía que por esas mismas características pareciera poco a fin a sus coordenadas espirituales. Su arraigo es algo paradójicamente idiosincrásico. Más de una vez al referirme a este encaje he señalado como el rasgo más interesante de su misma existencia y práctica ese hecho, digno de que en él se detengan psicólogos y antropólogos. La perfecta compenetración de estas formas artesanales con el espíritu de la mujer paraguaya, o viceversa, si se quiere.158 (PLÁ, 1991, p. 68)

Para Josefina Plá, existe uma forte ligação de reconhecimento entre a renda do

ñandutí e a mulher paraguaia. Tanto a mulher paraguaia quantto a renda

sobreviveram ao trauma da Grande Guerra. Assim como ajudaram o país a se

reerguer economicamente. São vários os fatores que dão ao ñandutí a predileção

popular. Josefina coloca o ñandutí como um trabalho que, na atualidade, é

desnaturalizado pela incorporação de novos desenhos que atendem tão somente ao

gosto turístico, mas que resistem com uma estirpe tradicional. Dessa forma, para a

ensaísta, o ñandutí reflete o temperamento e a sensibilidade, assim como

complexos sociológicos, que são próprios da mulher paraguaia. De acordo com

Suely Mendonça (2011), Josefina Plá, em toda sua obra, tem especial preocupação

com o universo feminino do Paraguai. De acordo com Mendonça (2011, p.178), a

mulher paraguaia é a chave “que abre portas para um universo realista, alegórico e

norteado pelas tradições locais”.

158 Trad. nossa: As interrogações expostas e outras relacionadas com este artesanato seguiram,

porém, sendo e quiçá para sempre, já que há pouca esperança de que apareçam mais dados sobre o particular. Só podemos, em suma, afirmar, como efeito categórico e caracterizante, o afinco profundo, entranhável, deste artesanato barroco e sutil na mulher paraguaia. Um artesanato que por essas mesmas características parecia pouco a fim a suas coordenadas espirituais. Seu afinco é algo paradoxalmente idiossincrático. Mais de uma vez al referir-me a este feito, digno de que nele se detenham psicólogos e antropólogos. A perfeita compenetração destas formas artesanais com o

espirito da mulher paraguaia, ou vice-versa, se se quiser.

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El ñandutí -es algo fuera de discusión-es el encaje de Tenerife; sus esquemas básicos, su logotipo, son inconfundibles. Pero es al propio tiempo algo sustancialmente representativo de lo femenino paraguayo. La araña que teje su tela en perfecta soledad para amparar, proteger y alimentar su prole, halla en él su paradigma, y la propia mujer paraguaya, "padre y madre de sus hijos", al decir de un poeta argentino, duplica la imagen. Pocas mujeres hispanoamericanas podrán ofrecer más copioso caudal de homenajes verbales –poesía y prosa- a ella dedicado por el varón de su país. Pero tampoco quizá otra más sola que ella en los trances cruciales de la vida.159 (PLÁ, 1991, p.68-69)

Expondo sua faceta engajada com a causa feminista, Josefina Plá relaciona o

ñanduti com o universo feminino da mulher paraguaia. Ressalta que o homem nunca

foi, em momento algum, um “companheiro” da mulher. Durante toda sua história,

tanto cristã quanto tribal, a mulher esteve quase sempre sozinha. Com o

desenvolvimento das civilizações e o contato com outras culturas, o sistema que

determina os papeis de cada gênero também foi ganhando forma. A mulher

paraguaia, para Josefina Plá, deu muito mais de si ao país durante a guerra que o

homem, pois, enquanto eles estavam em campo de batalha, foram elas que

assumiram todas as funções necessárias à sustentação da nação. No pós-guerra, o

país se reergueu pelas mãos femininas.

El ñandutí es la geografía-laberinto de la perfecta soledad. El sol o rueda básica repite en el encaje, como en la vida, la ronda cotidiana, iluminando días iguales, que la mujer trata de diversificar, entretejiendo y engalanando sus radios, y dando origen -con el único recurso de la urdimbre- a infinitas figuras inevitablemente estilizadas, a veces en grado u n tanto fantástico, pero que en el subconsciente de la tejedora diseñan su perfecta identidad.160 (PLÁ, 1991, p.69)

Dessa forma, os motivos que levam à produção do ñanduti giram em torno de

um mundo de vivências femininas imaginárias e psicológicas. Sobressai, aí, uma

ligação intensa entre a mulher e o ñanduti. A mulher paraguaia cria seu próprio

159 Trad. nossa: O ñanduti – é algo fora de discussão – é a renda de Tenerife; seus esquemas básicos, seu logotipo, são inconfundíveis. Mas é ao mesmo tempo algo substancialmente representativo do feminino paraguaio. A aranha que tece sua teia na perfeita solidão para amparar, proteger e alimentar sua prole, acha nele seu paradigma, e a própria mulher paraguaia, “ pai e mãe de seus filhos”, no dizer de um poeta argentino, duplica a imagem. Poucas mulheres hispano-americanas poderão oferecer mais copioso caudal de homenagens verbais – poesia e prosa – a ela dedicado pelo varão de seu país. Mas tampouco quiçá outra mais que ela nos transes cruciais da vida. 160 Trad. nossa: O ñanduti é a geografia-labirinto da perfeita solidão. O sol ou roda básica repete no encaixe, como na vida, a ronda cotidiana, iluminando dias iguais, que a mulher trata de diversificar, entretecendo e adornando seus raios de ação, e dando origem – com o único recurso do tecer – a infinitas figuras inevitavelmente estilizadas, as vezes em grau um tanto fantástico, mas que no subconsciente da rendeira desenham sua perfeita identidade.

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mundo a partir das infinitas possibilidades de criação permitidas pelo ñanduti. A

renda que se confunde com a própria vida. Fio a fio, dando origem, por meio de uma

trama cada vez diferente, a um tecido específico de cada mulher. Cada qual com

sua experiência própria.

Josefina Plá, na parte em que o texto se encaminha para sua parte final, propor

uma divisão entre os “mundos” criados no ñanduti, o qual poderíamos chamar de

“motivos” de criação, de acordo com sua natureza: Mundo vegetal e Mundo animal.

Mundo doméstico e Mundo de lendas. Mas a própria ensaísta alerta para a

existência de muitos outros motivos de criação da renda, embora não mencione por

não encontrar evidências mais concretas, pelo que pode ser percebido em sua

escrita. Plá também marca alguns dos elementos do mundo exterior, que não

pertencem propriamente ao que a ensaísta chama de espírito da mulher paraguaia,

mas que se relacionam com este. Tocos ou raízes grandes e cupinzeiro.

Na renda também há a presença de um mundo externo limitado e desolado,

com tocón e raízes de uma árvore grande que se eleva acima da terra. A partir de

uma agressão, seja ela a do corte da árvore ou a falta de terra em suas raízes, que

o priva de sua liberdade inicial de florescer em nome do cultivo e colheita de novas

sementes. Os cupinzeiros que marcam a terra que não pode ser cultivada, pois o

arado não passa, o impedem grandes torrões de terra, duros como granito. Para

Josefina Plá, são o símbolo da desesperança. Todavia, no mesmo cenário externo,

Josefina aponta algo salvador, a palmeira. Essa, semelhante à mulher pode servir

para diferentes fins. É assim com a mulher paraguaia, multiple, dela tudo se

aproveita.

Josefina elenca alguns objetos do mundo doméstico que também vão

representar algo do universo feminino da mulher paraguaia. Destacando-os como

reflexos da servidão imposta, de alguma maneira, à mulher em todas sociedades

ocidentais. Do mundo animal, reafirma a humildade e também a servidão dos

animais para com seus amos. Também reflete no universo feminino o mundo vegetal

pela forma dos jardins. Por último, o mundo das lendas, que a interessa por sua

escassez. No texto parece ser o que menos se relaciona com a mulher paraguaia,

talvez pela própria condição de silenciada e submissa que a mulher adquire.

Tal vez estas interpretaciones de la raíz subconsciente o simplemente selectiva de los motivos suenen para muchos como fantasías románticas o simplemente traídas de los pelos. Pero no lo serán para quién conozca a

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esta mujer paraguaya y se haya aproximado a su mundo de soledad pronto encontrada y jamás perdida; a su tiempo repetido, hasta calcar un día sobre otro; a su vida girando en torno a una serie siempre igual de trabajos como la sombra girando en torno a su rancho, y que de lo diverso y de la alegría sólo alcanza a captar casi siempre la vaga estela: la "cola" fugitiva del animal furtivo o caprichoso, la pisada que se aleja.161 (PLÁ, 1991, p. 71)

Josefina Plá, ao longo de todo o texto, reforça o motivo do título de seu ensaio,

“Ñanduti: encrucijada de dos mundos”, reafirmando ao longo de todo o texto a forte

relação que existe entre a renda e o espírito da mulher paraguaia. Ambos

adaptáveis ao ambiente para o qual são transplantadas. Reflexos de um país, de

sua cultura, impregnados por sua cultura. Um mundo de solidão e repetição.

Na conclusão do ensaio, Josefina Plá reafirma a qualidade híbrida da renda.

El ñandutí, repitámoslo, es el encaje de Tenerife, que trasladado a estas latitudes, halla eco y resonancia sutil en el espíritu de la mujer del pueblo. Esta la adopta como un lenguaje por mucho tiempo esperado, en el cual expresar añoranzas, sueños, soledad. "Es el encaje de Canarias, que aquí sufre o experimenta las inevitables modificaciones técnicas y ecológicas", dicen los antropólogos. Pero los antropólogos no explican por qué la mujer paraguaya acoge ese encaje como un mensaje inagotable y en él deposita su ansia de transfiguración, de sublimación, que es la poesía. Son muchos los signos de la españolidad en esta tierra que se enorgullece de su carácter mestizo. Pero si hubiese que elegir uno que sea logotipo de esa espiritual dualidad florenciendo integrada, yo elegiría una mantilla de ñandutí.162 (PLÁ, 1991, p. 73)

Durante todo o ensaio, percebemos que Josefina Plá explora de diversas

maneiras a dualidade presente no ñandutí. A modernidade baudelereiana se baseia

na própria dualidade do homem para se realizar. É impossível pensar na América

Latina enquanto única, ela mais do que outra coisa é uma sucessão de dualidades,

é, retomando o conceito de García Caclini, híbrida. Um lugar que se construiu por

161 Trad. nossa: Talvez estas interpretações da raiz subconsciente ou simplesmente seletiva dos motivos soe para muitos como fantasias românticas ou simplesmente trazidas da cabeça. Mas não o serão para quem conheça esta mulher paraguaia e tenha se aproximado de seu mundo de solidão logo encontrada e jamais perdida; seu tempo repetido, até calcar um dia sobre o outro; sua vida girando em torno a uma série sempre igual de trabalhos como a sombra girando em torno de seu rancho, e que do diverso e da alegria só consegue captar quase sempre a vaga estrela: o “rabo” fugitivo do animal furtivo ou caprichoso da pisada que se afasta. 162 Trad. nossa: O ñanduti, repetimos, é a renda de Tenerife, que trasladado a estas latitudes, acha eco e ressonância sutil no espírito da mulher do povo. Esta a adota como uma linguagem por muito tempo esperada na qual expressa suas nostalgias, sonhos e solidão. “É a renda das Canárias, que aqui sobre ou experimenta as inevitáveis modificações técnicas e ecológicas”, dizem os antropólogos. Mas os antropólogos não explicam porque a mulher paraguaia acolhe essa renda como uma mensagem inesgotável e nela deposita suas ânsias de transfiguração, de sublimação, que é a poesia. São muitos os signos da espanholidade nesta terra que se orgulha de seu caráter mestiço. Mas se tivesse que eleger um que seja logotipo dessa espiritual dualidade florescendo integrada, eu elegeria uma manta de ñandutí

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um processo hibridação de várias culturas. Tanto a cultura dos povos autóctones

quanto a do colonizador europeu e a do escravo africano. O ñandutí se construiu no

Paraguai como um híbrido também. De origem espanhola, foi no Paraguai, e por

meio deste local, que se desenvolveu, absorveu sua cultura, entrelaçou-se com suas

mulheres, faz parte de seu espírito, tornando-se símbolo do país. O híbrido ñanduti é

um dos fios que constroem a trama que resulta no tecido denso e heterogêneo que é

a América Latina.

Se buscarmos também na ficção escrita por Josefina Plá, encontraremos

também as referências que vinculam a mulher paraguaia ao ñandutí. No conto “La

pierna de Severina", escrito em 1954 e publicado no livro homônimo, a personagem

principal, Severina, é, segundo o narrador do conto, “para todo menos para el

ñandutí, un poco lerda” (PLÁ, 2014, p.187). Há em toda a narrativa uma

preocupação com a denúncia das condições da mulher paraguaia.

O conto “La pierna de Severina” narra a trajetória de Severina, mulher humilde,

que vive em uma pequena comunidade no interior do Paraguai e que há quinze anos

cuida de uma tia doente, evitando sair de casa por vergonha de uma deficiência

física. Nas poucas vezes em que sai para ir à missa, faz tudo o que está ao seu

alcance para que ninguém a veja. Seu desejo maior, desde antes do acidente no

qual perdeu a perna, é ser “hija de Maria” da paróquia da comunidade, o que já não

é possível pois uma “hija de Maria” tem que acompanhar as procissões e fazer

pequenos trabalhos na igreja, ações que envolvem longas caminhadas e horas de

pé. É nesse contexto que se desenvolve a história de Severina e nele o feminino

será provado de maneira violenta e trágica. O ñandutí aparece, ao final da narrativa,

como uma possibilidade redenção para a personagem. Tudo o que Severina queria

não acontece, ela, então, dedica-se à renda, única coisa que realmente faz bem:

“[...] en la siguiente fiesta de la Virgen apareció cambiado el mantel del altar mayor.

Un mantel con labores de Ñandutí como no se había visto hasta entonces. Era el

obsequio de Severina a Nuestra Señora. (PLÁ, 2014, p.196).

Tanto no conto quanto na lenda, a renda do ñandutí aparece com potencial

redentor perante alguma interdição sofrida pelas personagens. Severina, ao

perceber que não conseguirá ser “hija de Maria”, se volta à renda como redenção à

ação que não pode praticar; A noiva da lenda tende a remediar sua própria ausência

na morte de seu noivo e tece uma renda de ñandutí para cobrir sua sepultura. Nos

dois casos há uma forte relação do ñandutí com a mulher paraguaia, relação que

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Josefina Plá reafirma em seu ensaio. Percebemos, dessa forma, que a hibridez do

ñandutí perpassa pelos gêneros criados por Josefina Plá.

4.4 Sobre a arte que é paraguaia

Em um ensaio intitulado “Arte contemporáneo”, publicado em 1952, por

Josefina Plá, e que é considerado o Manifesto da Arte Moderna Paraguaia, ela

afirma que “Arte contemporâneo no es precisamente todo cuanto se hace hoy. Pero

sí aquello que sólo puede “ser hecho hoy”, reflejo del hombre contemporáneo.”

(PLÁ, 1997, p. 87). A esta afirmativa de Plá sobre a arte contemporânea163, fazemos

relação com todo o processo histórico pelo qual pensamos questões voltadas para

cultura, artes plásticas e artesanatos no Paraguai durante toda nossa pesquisa, até

o momento. Não haveria condições de se pensar o ensaio “Grupo Arte Nuevo”, que

afirma toda uma renovação no fazer artístico do Paraguai, sem antes conhecer o

processo de formação cultural paraguaio.

Assim, ao chegarmos ao último ensaio a ser analisado nesta pesquisa

atentaremos ao processo de formação cultural já pensado para que possamos nos

fixar no ensaio “Grupo arte nuevo”, que modifica a forma de pensar a arte no país. A

própria Josefina Plá foi uma das fundadoras do grupo.

Partindo de um processo histórico de formação do Grupo Arte Nuevo, a

ensaísta afirma que os artistas do começo do século XX no Paraguai careciam, por

conta de ainda sofrerem as consequências desastrosas da Grande Guerra, de

condições restritivas que impediam a criação de uma arte de vanguarda, como

acontecia em outros países latino-americanos, como Brasil e Argentina, por

exemplo.

Historicamente, como pudemos ver nos capítulos anteriores, é difícil falar em

uma arte e um artista genuinamente paraguaios. Todas as artes estão ainda em

processo de formação, de constituição, já que a própria sociedade local passa pelo

meesmo processo. Assim, o surgimento dos primeiros artistas paraguaios depende

de todo o processo histórico de que foi resultado, assim como García Canclini afirma

sobre toda América Latina, “de mudanças econômicas, sociais e culturais” (GARCÍA

CANCLINI, 1981, p. 97). O Paraguai só conhecerá artistas genuinamente locais no

século XX.

163 Contemporânea à Josefina Plá, à época da escrita do ensaio.

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No início do século XX, afirma Plá, poucos foram os artistas que tiveram

condições, tanto físicas quando ideológicas, de criar uma arte que rompesse com os

padrões do século anterior. Grande parte dos artistas locais que saíram do país para

estudar arte, quando voltaram sucumbiram às condições locais, e não se moveram

em busca de uma renovação dos horizontes artísticos locais. Dos artistas que não

sucumbiram às poucas possibilidades locais, Josefina Plá dá destaque a Delgado

Rodas e Andrés Campos Cervera, que, com recursos próprios, mantêm um diálogo

grande com as renovações estéticas vanguardistas provenientes da Europa.

[...] las circunstancias culturales creadas por cuarenta años de retraso en el indispensable intercambio, limitando la visión artística y los preconceptos estéticos lógicos de un ambiente local, si era intensa la voluntad de cultura, ésta no había tenido oportunidad de desarrollar sus posibilidades receptivas y críticas; el enclaustramiento, en suma, cortando toda posibilidad de acercamiento a las corrientes plásticas vivas, operó sobre los artistas; gravitó sobre ellos, impidiendo que su acción alcanzase las dimensiones de que era pasible.164 (PLÁ, 1997, p. 21)

Não havia, segundo Plá, intercâmbio de informações ou contato entre os

artistas paraguaios e artistas estrangeiros, que através de diferentes formas de ler o

mundo ao redor, poderiam influenciar ou mudar, em alguma medida, a arte local.

Não havia exposições fora do país, nada que pudesse dar ao mundo uma noção do

universo expressivo da arte paraguaia. Artistas como Andrés Campos Cervera só

serão reconhecidos, de acordo com Plá, muitos anos depois, quando há um

aumento do interesse pela cerâmica.

Para Néstor García Canclini, em A socialização da arte: teoria e prática na

América Latina (1981), a falta de interesse pela arte na América Latina se configura

como um problema maior que os próprios artistas, é um problema artístico. Tudo

passa por um processo de construção cultural no qual o expectador de arte, por

diversos fatores sociais e culturais, não tem condições de apreciar e compreender a

arte. Não se trata, para o crítico, de um problema sobre a situação do artista e sim

de um processo de formação da cultura moderna na América Latina.

164 […] as circunstancias culturais criadas por quarenta anos de atraso no indispensável intercambio, limitando a visão do artista e os preconceitos estéticos lógicos de um ambiente local, se era intensa a vontade de cultura, esta não havia tido oportunidade de desenvolver suas possibilidades receptivas e críticas; o enclausuramento, em suma, contando toda possibilidade de aproximação às correntes plásticas vivas, operou sobre os artistas; gravitou sobre eles, impedindo que sua ação alcançasse as dimensões de que era passível.

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Há, segundo Josefina Plá, uma grande estagnação de todos os parâmetros

culturais pré-estabelecidos no Paraguai do início do século XX. Nenhum dos artistas

que chegam ou que saem do país e regressam, nada trazem de novo a ele.

[...] se trata de artistas desplazados de su medio por uno u otro motivo […] y cuyo bagaje no rebasa conceptiva ni plásticamente el nivel local, y que en los más de los casos es inclusive inferior.

La crítica no existía, pies no podía darse ese nombre al comentario bienintencionado o la nota hospitalaria. Esta crítica no podía favorecer o ayudar, salvo excepción, sino la promoción de los mediocres. (PLÁ, 1997, p. 23)

É interessante notar como Plá deixa clara a falta de instituições que estejam

abertas às novas tendência mundiais e que formem os artistas locais criticamente.

Na sociedade paraguaia da época como um todo, faltam revistas, jornais e todo um

aparato que critique, de alguma maneira, o que estava sendo desenvolvido

esteticamente. Os conceitos de estéticas locais, em relação ao restante do mundo,

estavam defasados, e já não representavam mais a própria sociedade paraguaia,

que em contrapartida não tinha meios de criticar tais modelos. Dessa forma, para a

ensaista, as tendências vanguardistas como o surrealismo e o expressionismo são

ridicularizadas, sem sentido para a sociedade local.

[...] la pintura paraguaya local – la redundancia no necesita mayor aclaración; ya se ha mencionado el hecho de que los destacados artistas nacionales de ese tempo hayan trabajado em el exterior – permanecía en general anclada en sus manifestaciones generalizadas y aceptadas por el público en un posimpresionismo de cuño más bien académico, sin que hubiesen existido, a los efectos prácticos, para este medio de las corrientes artísticas posteriores a 1900 y que son ya el anticipo de las grandes corrientes, efímeras o no, paralelas al desquicio espiritual del mundo, en la segunda mitad del siglo o un poco antes. No se creaba una tradición en el sentido de sedimento útil y progresión evolutiva. (PLÁ, 1997, p. 24)

A arte paraguaia permanece distante das correntes vanguardistas renovadoras

que tomavam conta da Europa e de parte da América Latina. De acordo com Annick

Sanjurjo Casciero, na conferência “El Paraguay en sus artes plásticas”, em março de

1994, o Paraguai compartilha com a América Latina grande parte de sua formação

histórica, no entanto, talvez pela falta de riquezas minerais da região, o país sempre

sofreu certo isolamento no subcontinente. Casciero (1994) afirma que todas as

correntes ideológicas chegavam à América Latina com relativo atraso, e ao Paraguai

com atraso ainda maior, e, muitas vezes, já transformadas em outra coisa em

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Buenos Aires, que não compartilhou nunca sua visão com o espírito paraguaio.

Assim, podemos compreender a total estagnação que Josefina Plá afirma, em seu

ensaio, sofrer a arte paraguaia do século XX.

Para Ticio Escobar, em “Siete décadas en las artes plásticas en el Paraguay”

(1997), na primeira metade do século XX, todo o desenvolvimento artístico

paraguaio se construiu, assim como o próprio país em sua história, isoladamente.

Até o surgimento do Grupo Arte Nuevo não houve qualquer movimento, ou coisa

que o valha, que tivesse força suficiente para tirar o país da estagnação artística que

vivia.

Nesse ensaio, Josefina Plá deixa claro, assim como nos ensaios anteriormente

analisados, sua preocupação em pensar, dentro de um projeto intelectual, a figura

da mulher paraguaia. A ensaísta afirma que, de alguma maneira, as artistas

mulheres, mesmo padecendo do mesmo isolamento que os homens locais, tinham

uma imaginação maior e um senso crítico maior sobre o local, mas falta certa

organização e renovação estética para que se consolide a arte na época. Plá, em

diálogo com Ticio Escobar e Olga Blinder, afirma que é somente na década de 1950

que o artista brasileiro João Rossi leva ao Paraguai elementos teóricos, estéticos e

ideológicos que conseguem sustentar uma ruptura de novas concepções artísticas

no país: “[...] el brasileño João Rossi, quién a través de su vocación pedagógica va

creando conciencia del valor del arte moderno, cuando el ambiente artístico

asunceno abre los ojos a un, para nosotros, nuevo arte” (BLINDER, 1997, p. 75).

Dois acontecimentos marcaram, de acordo com Plá em seu ensaio, a

instauração do que seria uma arte moderna no Paraguai. Primeiramente, a ensaísta

destaca a publicação de um texto que pode ser considerado o Manifesto de Arte

Moderna do Paraguai, de autoria de João Rossi e outro da própria ensaísta. Os

textos foram publicados no catálogo da primeira exposição realizada pela artista

paraguaia Olga Blinder. Como segundo marco, Plá destaca a crítica negativa feita

por críticos brasileiros a uma exposição paraguaia na II Bienal de São Paulo, em

1953.

La discusión del jurado puso paladinamente de relieve el nivel y el criterio que en materia selectiva regían; de ellos pueden deducirse las pautas críticas, y con estas, el ambiente generalmente en materia de artes plásticas. Unos criterios se inclinaban a enviar a los veteranos por derecho de edad; otros sugerían enviar paisajes y figuras campesinas, porque eso era lo representativo paraguayo… Y al cabo, prevaleció el criterio tradicional, al menos cuantativamente. Fueron allá y la crítica brasileña se

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despachó con un juicio que el jurado había ya formulado “in mente”, juicio del que solo se salvó una escultura de madera de Parodi; el primer ensayo del artista en este género. (PLÁ, 1997, p. 29-30)

Podemos perceber, na citação acima, a forma com que Josefina Plá concebe o

fazer artístico no Paraguai, concepção que fomentará, também, seus textos literários

ficcionais, pois de acordo com a própria ensaísta, sobre suas narrativas: “cambiando

nombres, paisajes y tal cual circunstancia, pueden darse, se dan, em cualquier otra

parte del mundo (PLÁ, 2014, p.185). A arte paraguaia não deveria representar, para

a ensaísta, o pictórico, e sim o cerne do homem paraguaio, o mesmo homem que

pode existir em qualquer parte do mundo. Uma arte, por raiz, humana.

O último acontecimento que a ensaísta elenca como marco de entrada

definitiva das artes paraguaias no modernismo foi a criação do Grupo Arte Nuevo,

formado por Josefina Plá, Olga Blinder, Lilí del Mónico e Laterza Parodi. Plá reforça,

no decorrer do ensaio, que o movimento foi feito predominantemente por mulheres.

El grupo se inició organizando conferencias, exposiciones conjuntas; publicaciones en la Prensa. Nuestro lema, no explicito, pero evidente, era que el movimiento se demuestra andando. Fueron meses y años de actividad asombrosa.

Meses y años en los cuales el entusiasmo y el fervor, nacidos de la convicción de que a la par que se estaba haciendo algo que la cultura nacional necesitaba desesperadamente, se hacía también algo por la salvación individual de los artistas; afrontó y enfrentó situaciones, alguna vez riesgosas; otras veces quizá algo peor; porque el desdén, y sobre todo el ridículo pueden a veces operar psicilogicamente peor – desintegrar la voluntad, desorientar, enfriar entusiasmos – que la abierta hostilidad que a lo mejor suscita o estimula el individuo el potencial defensivo. (PLÁ. 1997, p.31)

Para Casciero, todo o grupo se formou por e sob a influência maciça de

Josefina Plá. Segundo Casciero, o Paraguai necessitava de uma arte de temática

própria, mas com sentido universal. A arte paraguaia não devia ser temática apenas

na representação de uma cultura rural, mas seria a arte que expressasse as

experiências vividas pelo povo paraguaio. Tudo aquilo que formou a região, todas

suas vitórias e derrotas, todas as marcas humanas passadas pela região fariam

parte da arte paraguaia. Ou seja, como a própria Josefina Plá afirma em seu

manifesto, a arte paraguaia representa o povo paraguaio em sua

contemporaneidade, e a contemporaneidade.

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No entanto, de acordo com Plá, todos os esforços realizados pelo grupo

encontraram, pelas mãos do governo paraguaio, patrocinadores da cultura,

impedimentos para que se realizassem exposições. Não havia sala apropriadas para

exposições de arte em Assunção, o pedido dos salões governamentais existentes

era negado constantemente.

¿Se arredraron por ello los componentes del grupo? Nada de eso. Al contrario. Todos sintieron que les subía la fiebre del entusiasmo y se les endurecía esa estupenda testarudez propia de los pioneros de todos los tiempos. La idea salvadora fue de Lilí del Mónico.

- Expondremos en las vitrinas de la calle Palma!

Confieso que a mí al principio la cosa no me agradó mucho, aunque todos los demás se mostraban de acuerdo. […] Pero nos hallábamos ante el

inflexible dilema: vitrina o muerte civil. (PLÁ, 1997, p. 32)

Josefina Plá, na citação acima, mostra-se preocupada com a forma de

exposição da arte paraguaia, pois, para a ensaísta, expor em vitrines de lojas,

poderia, de alguma forma, baratear a obra, não no sentido de preço, mas de valor.

No entanto, a grande receptividade dos comerciantes, afirma Plá, foi extremamente

positiva, e em pouco tempo as vitrines de seis quadras da rua Palma estavam

completamente transformadas em uma grande galeria de arte.

Quando o grupo de artistas admite, e Plá resgata isso em seu ensaio, que foi a

maior e melhor vernissage que se podia fazer a baixíssimos custos, sem convites ou

coquetéis. Desde o público mais comum, que pouco ou nada entendia de artes

plásticas, até os intelectuais do país, eram “obrigados” a ver as obras expostas,

mesmo que essa não fosse sua primeira intenção ao sair às ruas.

Un paisaje cubista o una conposición fauve, para esta público virgen de modernidadaes plásticas – aún las ya tan poco modernas como las mencionadas y precedidas de tan mala publicidad como la que acá se hacía al arte moderno - no representaban, en su teórico conocimiento, sino divertidos experimentos u ocurrencias extravagantes; ahora sus artistas les ofrecían la oportunidad de ver de cerca algo que sólo conocián por los aludidos “generosos” comentarios sobre artes transcriptos en la prensa que, de cuando en cuando elegía, con rara unanimidad, siempre lo peyorativo, la nota sensacionalista o ridicularizante, acerca de las “chifladuras” del susodicho arte moderno. (PLÁ, 1997, p. 33)

A arte ao alcance de todos. No entanto, houve muitas críticas. A exposição

ficou conhecida como Primeira Semana de Arte Moderna Paraguaia, aludindo,

romanticamente, a Semana de Arte Moderna brasileira, afirma Plá. Todavia, a

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Semana paraguaia foi muito mais modesta que a brasileira, por razões óbvias que

remetem ao contexto de atraso que o país viveu durante toda a primeira metade do

século XX. Contudo, não há dúvidas, afirma Ticio Escobar (1997), de que o

movimento renovou completamente, ainda que a passos lentos, o cenário das artes

plásticas no Paraguai.

Em outro ensaio intitulado “El movimento renovador em nuestra pintura”,

publicado no jornal La Tribuna, em 1954, Josefina Plá afirma que anteriormente à

plástica, a arte literária já havia, também lentamente, começado a entrar na

modernidade. Escritores como Hérib Campos Cervera, por exemplo, e aqui

incluímos a própria Josefina Plá, em seus poemas e ficções, já se utilizavam das

concepções modernas de arte em seus processos de criação. E a partir da

inauguração da Semana de Arte Moderna Paraguaia, as artes, em geral, no país, já

não foram mais as mesmas.

A arte, afirma Alfredo Bosi (1991), em Reflexões sobre a arte, de alguma

maneira sempre é vista enquando atividade do ser humano que o faz relacionar-se

com o mundo. Se a arte é, também, a transformação do natural pelo homem dentro

de uma determinada cultura, então, podemos, em um diálogo com o que acontece

com o Paraguai, após a Semana de Arte Moderna Paraguaia, compreender que a

própria forma da sociedade paraguaia ver a si própria havia mudado. Assim como as

relações que tal sociedade mantém com a natureza e a cultura. Relembrando

Cézane, Bosi (1991, p.41), afirma que

O mundo se encontra dentro e fora do artista [...] “Um sentido agudo dos matizes me atormenta. Sinto-me colorido de todos os matizes do infinito. Nesse tormento, eu e meu quadro somos um só. Somos um caos irisado. Vou ao encontro do meu motivo, perco-me nele”.

Podemos pensar na arte e nos artistas paraguaios como inquietos, após a

Semana de Arte Moderna do Paraguai. Não havia como seguir estagnados depois

do grande choque da Semana. Ainda para Bosi (1991), as expressões artíticas são

criadas a partir de uma relação entre o signo presente na obra e a energia a qual ele

se conecta. A expressão artística é a materialização da paixão do artista. A

expressão da arte paraguaia ganha forma quando seus artistas, a partir da Semana

de Arte Moderna Paraguaia começam a relacionar o uso de determinados signos,

em suas obras, que correspondem à paixão em renovar a arte do país.

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Para Josefina Plá, no manifesto da Semana de Arte Moderna Paraguaia,

Al artista de ayer le interesaba la estática, equilibrio de las formas, balance entre línea y masa. Al artista de hoy le interesa la dinámica, tensión entre masa y espíritu. No le preocupa tanto “manifestar” cuanto “sugerir”. No dice, como ayer, dónde el hombre “está” sono “a donde va”. El arte de ayer era limitado, como lo estático. El de hoy es ilímite, como lo dinámico, ya hallé su terreno en el pensamiento, en la forma viva, en la Naturaleza. Porque la Naturaleza cesas, para el artista contemporáneo, de ser forma, para convertise en acción. (PLÁ, 1997, p. 87)

O texto do Manifesto, escrito por Plá, é de 1954, mas se faz interessante

quando busca na tradição o contraponto para a diferença do pensamento ao artista

contemporâneo à época. Retomando Octavio Paz, podemos perceber que a

modernidade é um complexo de oposições: “A arte moderna é moderna porque é

crítica” (PAZ, 2013, p. 154). Crítica de si mesma, e crítica do passado. A partir da

Semana, o Paraguai começa a rever, afirma Plá, lentamente, suas próprias

concepções artísticas.

De toda essa renovação nas artes locais, participaram os artistas: Lilí del

Mónico, Olga Blinder, José L. Parodi, Josefina Plá, Mariano Grotovsky, Edith

Jiménez, Joel Filártiga e Ruth Fisher. A partir da Semana, a arte paraguaia passa a

ser reconhecida em grandes salões e apreciada primeiramente em Buenos Aires, e

posteriormente em São Paulo. De acordo com a ensaísta, a IV Bienal de São Paulo,

em 1957, foi a primeira grande distinção, em nível internacional, que a arte moderna

paraguaia recebe.

Houve, na arte do grupo, um reconhecimento do ser paraguaio. E só a partir de

tal reconhecimento por parte do próprio artista local é que foi possível tratar e criar

uma arte que fosse verdadeiramente moderna. Não há como criar uma arte

moderna, arte aqui vista enquanto todo projeto artístico, que inclui a literatura,

pintura, escultura, sem que se pense e leve em consideração o passado.

Retomando as questões discutidas nos capítulos anteriores, percebemos que a arte

moderna paraguaia levou em conta, ao ser criada, toda a forma com que o próprio

país, histórica, cultural e socialmente se construiu, todas as culturas que fazem parte

do que é ser paraguaio. E que apoiada em considerações e conceitos estéticos vem

pensar o próprio povo local paraguaio.

Para Josefina Plá, se é possível falar em uma tradição no moderno, esse

começo, quando se trata de arte paraguaia, essa tradição, que é ao mesmo tempo

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modernidade, está no Grupo Arte Nuevo, que não rechaçou o que o Paraguai tinha

de mais genuíno, mas que abraçou tal tradição em sua parcela de composição

humana, que pode ser lida e relida a qualquer tempo por sua parcela de

humanidade, presenta na modernidade paraguaia.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de trama, dos fios que se entrelaçam na criação do tecido, é uma

das formas com a qual podemos ler a literatura latino-americana. A trama encontra

na obra de Josefina Plá um de seus grandes expoentes. A partir das observações e

análises dos ensaios de Plá e ao longo de todos os estudos feitos sobre a obra

ficcional e poética da artista fora desta pesquisa, percebemos que Josefina Plá

desenvolve, ao longo de quase todo o século XX, um projeto de criação artística,

que se realiza em diferentes formas de representação e gêneros e, acima de tudo,

privilegia, de forma consciente, a cultura popular e a mulher paraguaia. Muito

embora nesta pesquisa não tenhamos focado nos aspectos relativos à

representação da mulher paraguaia nos ensaios, é evidente sua presença em todo

aspecto cultural mencionado pela ensaísta, seja nas práticas culturais ou nos

objetos.

Em sua trajetória intelectual Josefina Plá fez florescer um Paraguai diferente do

que se conhecia até então. Seus contatos com as diferentes formas de pensar o

homem em seu lugar fizeram com que Plá buscasse, por meio das artes plásticas e

da palavra, o que de mais interessante faz parte da cultura do país que adotou. Os

ideais de García Lorca e da Generación del 27 de buscar na cultura popular

espanhola o que essa sociedade teria de mais essencial, vemos como fundamentos

para o desenvolvimento do projeto intelectual de Plá. Afirmamos sua obra como

projeto intelectual, projeto que busca, nas bases da cultura paraguaia, firmar o valor

da arte e da literatura locais.

Como afirma Antonio Candido, em Literatura e Sociedade, a sociedade é

anterior à obra de arte. Josefina Plá, espanhola de nascimento, não conseguiria

desenvolver obras de tamanha qualidade estética e artística não fosse seu interesse

em buscar que sociedade é essa, a paraguaia.

Pensando no processo de formação intelectual de Plá, percebemos forte

tendência da artista em desenvolver obras que dialogam com questões próprias da

modernidade. Se a modernidade baudelairiana é aquela que trata do homem em sua

ambiguidade, nada mais interessante para refletir a obra de Josefina Plá. A começar

por sua própria formação moderna, que foi composta por ideais metropolitanos,

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oriundos dos pensamentos de García Lorca, mas que teve no mundo guaraní um

forte sedimento para se realizar em artes e palavras enquanto moderna, como

pertencente a uma modernidade.

Se podemos falar em modernidade na América Latina, neste caso especial no

Paraguai, devemos ter em loco todo o processo pelo qual a região passou, dos mais

ínfimos contatos e rechaços às ações políticas e legislativas que nortearam os

rumos da região. Ao longo dos textos analisados, expusemos a forma com que as

artes populares se desenvolveram no Paraguai, deixando clara a participação tanto

do elemento europeu quanto do indígena. Isso é a modernidade distinta produzida

no Paraguai. A tradicional cultura europeia espanhola, com todos seus traços ainda

de medievalismo entra em contato com a também tradicional cultura guaraní, que

para o espanhol era nova. Há uma troca de experiências tradicionais que funciona

tanto para um lado quanto para o outro, ambos tradicionais, como nova possibilidade

de compreensão do mundo que os rodeia. Uma modernidade que, como lembra

Octavio Paz, é por si só tradicional e que, na América Latina, se cria por duas

tradições distintas e novas.

A modernidade que reivindicamos a partir da obra de Josefina Plá não é a

modernidade tardia ou periférica, e sim uma modernidade que se desloca da

acepção europeia. Como lembramos no decorrer do texto, a partir das afirmações de

García Canclini, tivemos um modernismo sem modernização. No entanto, podemos,

de alguma maneira, pensar que talvez já fôssemos modernos. A América nasce

moderna. Uma modernidade híbrida.

No decorrer dos capítulos, principalmente no terceiro e quarto, afirmamos a

presença indígena na composição cultural e, por consequência, literária do Paraguai

e na obra de Josefina Plá. A cultura guaraní se fez e se faz enquanto peça

fundamental da formação cultural e social do país. Assim como, embora talvez

menos valorizada, a cultura dos povos autóctones é peça fundamental para a

criação de uma América Latina.

Para demonstrar a ocorrência das hibridações culturais ocorridas na América

Latina e a forma distinta como ela ocorre no Paraguai, elegemos os ensaios de Plá.

A escolha dos ensaios se fez extremamente pertinente, poispercebemos o ensaio

como fundador das reflexões acerca deste espaço do globo. Conforme alguns

pesquisadores, a própria América Latina é um ensaio, algo que necessita ser

experimentado e reinventado constatemente.

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Dessa forma, partindo da experiência, nos acercarmos, a partir dos ensaios,

daquilo que seria constitutivo da própria sociedade paraguia, e que, por conta disto,

está desenvolvido, de alguma maneira, em suas artes e literaturas, a cultura

autóctone guaraní. Percebemos, por meio das análises, que toda a sociedade

paraguaia é constituída por algo pertencente à sociedade que alí vivia antes da

colonização. A hibridação cultural ocorrida no país é profunda, e se faz presente em

toda parcela de vida da população local. Nos costumes, na forma de portar-se, na

culinária, nas artes, na literatura, na língua, na religião. Em todo tecido sóciocultural

paraguaio, há um fio, relembrando a metáfora inicial da trama, que pertence à

cultura guaraní, e que se transformou em algo diferente. Em que outro local da

América Latina há uma santa católica com nome indígena que não em Caacupé?

Em nossas críticas, privilegiamos uma estruturação que partisse dos ensaios,

que julgamos ter um caráter mais histórico, para podermos averiguar a constituição

da cultura paraguaia por meio de contatos e hibridações. Assim, analisamos os

ensaios “El Barroco hispano-guaraní”, “Hermano negro” e “Españoles en la cultura

paraguaya”, todos eles versando sobre a forma com que a cultura paraguaia foi

sendo moldada ao longo da história. Explicando os possíveis motivos que levaram a

cultura local a produzir objetos artísticos e literários tão singulares. Percebemos,

também, que os ensaios, no caso específico de Josefina Plá, têm forte relação com

seu projeto estético de valorização da mulher paraguaia. De certa maneira, todos os

ensaios, mesmo que voltados a um caráter histórico da formação cultural local,

privilegia a mulher e o feminino, ou da falta de mulher hispânica, ou do

deslocamento cultural da mulher guaraní.

Em “El Barroco hispano-guaraní”, Josefina Plá explora a forma com que os

guaranis tiveram contato com a cultura barroca europeia, por meio da Companhia de

Jesus. Tal contato leva a transmissão do ensinamento, por parte dos padres

jesuítas, das formas de arte barrocas, primeiramente enquanto copistas, mas que,

com o tempo, foram introduzindo parcelas de sua cultura autóctone. É interessante

como Plá afirma que a cultura guaraní foi se mesclando muito lentamente à barroca,

mas que é a partir dessa hibridação que o Barroco se renova na região, atingindo

graus próprios.

Ao tratarmos de “Hermano negro: la esclavitud en el Paraguay”, tocamos em

uma temática pouquíssimo estudada no Brasil, a escravisão negra no Paraguai.

Josefina buscou informações histórias para desenvolver um interessante ensaio

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sobre o período de escravidão negra no país. Notamos a forma como a ensaísta

afirma ser distinta a escravidão negra paraguaia daquela levada a cabo no restante

da América Latina. Podemos perceber que a forma com que a escravidão negra é

concebida no país, com leis que “protegiam” os escravos, pode ter relação com a

própria construção cultural da região, na qual o trato com o outro é mais “amistoso”,

digamos assim.

Quando pensamos no terceiro ensaio analisado, refletimos acerca,

especificamente, do contato espanhol com a cultura guraní. Percebemos que a

forma como se deu a criação cultural na região tem grande relação com os motivos

colonizadores. A não possibilidade de exploração mineral frustrou os colonizadores

que se estabeleceram na região e, dessa forma, a interação e hibridação das

culturas passou a ser necessária para a manutenção da própria vida.

Os ensaios de Plá, acima mencionados, buscam, em pleno século XX,

repensar uma identidade paraguaia. Acima de tudo está a hibridação cultural e as

raízes guaranís, que fazem parte do tecido cultural da região. A presença da cultura

guaraní nos três ensaios é uma constante também na literatura e nas artes plásticas

da autora, não trabalhadas nesta pesquisa. Aqui, reforçamos, como já dito, o caráter

formador dos próprios ensaios.

Posteriormente aos ensaios nos quais abordamos a formação histórico-cultural

paraguaia, passamos às análises de ensaios que abordassem as artes populares da

região. Entre artes populares e/ou artesanatos, notamos, também, que Plá privilegia

seu projeto intelectual sobre a mulher paraguaia. Em todos os ensaios são

apresentadas peças de fabricação exclusiva de mulheres, assim como são elas que

estão à frente de toda renovação artística, da qual os próprios ensaios de Plá são

resultado. Analisamos, assim, os ensaios “Las Artesanías en el Paraguay”, “Ñanduti:

encrucijada de dos mundos” e “Arte Actual en el Paraguay – Grupo Arte Nuevo”.

Em “Las Artesanías en el Paraguay”, Plá analisa, de maneira geral, as artes

populares que, até o século XX, haviam sobrevivido no país. É interessante que

todas as formas expostas por Plá são exclusivamente, como já dissemos, no âmbito

cultural do paraguaio, de fabricação feminina. Plá analisa a hibridação de dois

modos, primeiramente aquela ocorridas às poucas artes populares indígenas

guaranis que sobreviveram, e posteriormente analisa as artes populares hispânicas.

Por processos semelhantes, artes surgidas em lugares tão distintos, se modificaram

e se “adequaram” à cor local.

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De todas as artes populares comentadas por Josefina Plá em seu ensaio acima

citado, o ñanduti é a mais representativa do país. A origem da renda é, assim como

a da própria ensaísta, espanhola, mas também, como Plá, se transformou em terras

paraguaias. O ñandutí é, podemos dizer, o exemplo perfeito de parte popular

hídrida. De origem espanhola, mesclou-se de tal modo à cultura paraguaia que

surgiram até mesmo lendas indígenas sobre sua criação. De acordo com alguns

pesquisadores como Ángeles Mateo del Pino, a própria Plá confeccionava a renda,

assim como grande parte das personagens femininas de seus contos. Novamente,

percebemos o grande projeto de representatividade feminina de suas criações

intelectuais.

No último ensaio analisado, Plá foca no desenvolvimento do Grupo arte nuevo,

que do qual a ensaísta foi uma das fundadoras e que foi responsável por uma

renovação estética no país. Autora do “Manifesto de Arte Moderna Paraguaia”, de

1952, Plá ajudou a criar a renovação do pensamento artístico paraguaio. Renovação

essa que não se fixou apenas nas artes plásticas, mas que abarcou todas as formas

artísticas.

Desde o inicio da pesquisa, pensamos na obra de Josefina Plá como única, e a

encaramos como complexa, em todas suas medidas. O percurso pelo qual

passamos desde a escolha dos ensaios até a trama crítico-teórica utilizada, tiveram

como norte as relações que se estabeleceram para que tal obra pudesse ser criada.

Estruturamos a nossa pesquisa da maneira que julgamos ser a mais clara.

Logo na Introdução, fizemos uma breve revisão da crítica, principalmente brasileira,

da obra de Josefina Plá, e percebemos que nosso projeto, se ligaria a esta fortuna

crítica de maneira especial, já que os ensaios de Plá não haviam sido estudados.

Partindo deste ponto, buscamos nos aproximar da formação de Josefina Plá como

intelectual capaz de compreender e apreender toda uma bagagem cultural diferente

da qual sua própria. Nos centramos, nesta parte, na forma com que a artista teve

contato com a cultura paraguaia, assim como na maneira com a qual ela percebeu o

que a cercava, neste lugar que não era o seu, mas que, por eleição própria, passou

a ser. A modernidade que se instala na obra de Josefina Plá a partir do momento

que a artista busca uma aproximação com a cultura autóctone guaraní.

Quando pensamos a vida de Josefina Plá, enquanto intelectual, não

poderíamos deixar de notar as “influências” e os contatos que Plá teve e manteve,

que proporcionaram novas visões às suas obras, novas formas de encarar a criação

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artísticas. Decorrendo destas formas de pensar o objeto artístico, e a própria

sociedade e cultura, refletimos, no segundo capítulo, este bastante teórico, sobre as

formas da modernidade.

O pensamento da modernidade, quando tratamos das obras artísticas e

literárias desenvolvidas no Paraguai, deve, assim como demonstramos por meio dos

ensaios de Josefina Plá, passar pelo viés da cultura guaraní. Em toda a obra de Plá,

seja ficcional, poética, dramatúrgica, plástica ou ensaística, percebemos, talvez por

conta de toda a formação que a artista teve, que há um claro resgate da cultura

popular local do Paraguai.

Todavia, em nossas análises, achamos por bem, não nos determos

especificamente nas qualidades do ensaio enquanto forma, assim como, apesar de

mencionar, optamos, também, por não trabalhar com os objetos artísticos criados

por Plá, fora das letras. Asseguramos, no entanto, que há grande qualidade artística

nas cerâmicas, guavuras e esculturas feitas por Josefina Plá ao longo de mais de

sessenta anos de intensa atividade artística, literária e plástica. Toda uma vida

dedicada ao Paraguai. Também, optamos por não fazer aproximações, entre a arte

popular paraguaia e a arte popular brasileira, quando, por exemplo, mencionamos

sobre a “renda paraguaia”, o ñandutí, produzido em Santa Catarina. A importante

produção literária e cultural, produzida neste meio, desperta, ainda, o interesse para

p desenvolvimento de projetos futuros, uma pesquisa mais sistemática sobre o modo

de resgatar, na modernidade, a cultura popular no Brasil e no Paraguai. Acreditamos

que a modernidade, no fértil terreno latino-americano, encontra na cultura popular

um modo de se reinventar, ou ainda de se realizar de maneira plena.

Optamos, e foi a própria obra de Josefina Plá quem nos levou a tais opções,

por colocar Josefina Plá enquanto uma figura artística de um país periférico, até

mesmo na América Latina, mas que dialoga com temas da atualidade: a questão

indígena, que vem sendo largamente discutida em diversos âmbitos, e nas diversas

áreas do conhecimento humano; o reconhecimento do aporte africano em diversas

culturas; a criação de uma orientação diferenciada de modernidade na América.

A trama da modernidade que é desenvolvida no país, carrega em si, dois

grandes fios condutores, um guarani, outro espanhol, que, ao se encontrarem,

formaram algo novo, desde o início. Dos tecidos desfeitos das culturas originárias,

surge a cultura paraguaia. Enfim, pensamos em uma modernidade distinta, em uma

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modernidade que não tem uma base clássica, uma modernidade que é repleta de

excessos e que por isso mesmo é única.

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