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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO (UFES)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO (PPGE)
NELMA GOMES MONTEIRO
AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS COMO PROCESSO
DE ENUNCIAÇÃO PARA O ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
VITÓRIA-ES 2010
NELMA GOMES MONTEIRO
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AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS COMO PROCESSO
DE ENUNCIAÇÃO PARA O ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Texto apresentado como requisito para a obtenção do título de Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na área de concentração História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais Orientadora: Profª Drª Maria Elizabeth Barros de Barros.
VITÓRIA-ES
2010
NELMA GOMES MONTEIRO
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AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS COMO PROCESSO DE
ENUNCIAÇÃO PARA O ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Texto apresentado como requisito para a obtenção do título de Doutora em
Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na área de
concentração de História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais.
Aprovada em 8 de julho de 2010.
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________
Profª. Drª. Maria Elizabeth Barros de Barros
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Orientadora
___________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
___________________________________________________
Profª. Drª. Maria Regina Simões
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
___________________________________________________
Prof. Dr. Ahyas Siss
Universidade Federal Fluminense (UFF)
___________________________________________________
Prof. Dr. Amauri Mendes Pereira
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Monteiro, Nelma Gomes, 1945- M775a Afirmar as diferenças etnicorraciais como processo de
enunciação para o enfrentamento ao racismo na educação infantil / Nelma Gomes Monteiro. – 2010.
213 f. : il. Orientadora: Maria Elizabeth Barros de Barros. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Educação. 1. Racismo. 2. Educação de crianças. 3. Currículos. 4.
Cultura. 5. Igualdade. 6. Cotidiano escolar. I. Barros, Maria Elizabeth Barros de, 1951-. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
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À minha mãe, mulher guerreira, exemplo de
dedicação e doação. Tinha sabedoria ao lidar
com a vida. A você, dona Isabelê, todo carinho.
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AGRADECIMENTOS
Durante a trajetória que fiz para a produção desta tese de
doutorado, muitas foram as ―marcas‖ que afetaram as
subjetividades de ―muitas Nelmas‖, isso porque foram
marcas deixadas pelas pessoas que tiveram não só
preocupações e ocupações comigo, mas também carinho
e solidariedade a partir destas falas:
―Você é capaz de vencer mais esta‖ (em memória,
minha mãe, Isabel Gomes Monteiro).
―Mãe, e aí, terminou? Tá tenso. Parece que esse
trabalho é seu namorado‖ (meu filho Nelson
Manoel).
―Mãe, você acha que vai terminar esse doutorado?‖
(meu filho Carlos Nelson).
O diálogo feito a partir do referencial teórico e do
currículo vivido e comprometido dos/as
orientadores/as e a palavra de incentivo: ―Vamos
terminar logo com isso‖ (professores Maria
Elizabeth (Bete) e Carlos Eduardo (Ferraço)).
―Você tem que terminar essa tese. Olha o seu
compromisso político com a implementação das
políticas de ação afirmativa‖ (Vozes uníssonas
dos/as amigos/as da educação e da companheirada
dos Movimentos Negros Capixabas).
Às professoraspesquisadoras que aceitaram o
desafio de problematizar seus saberesfazeres, os
quais foram/são tecidos nas redes cotidianas da
UMEI Normília dos Santos.
Muito obrigada.
Axé.
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―Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor
de sua pele, por sua origem ou ainda por sua
religião. Para odiar, as pessoas precisam
aprender, e se podem aprender a odiar, podem
ser ensinadas a amar."
(Nelson Mandela)
―Pelo direito de sermos iguais quando a
diferença nos inferioriza e pelo direito de
sermos diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza.‖
(Boaventura de Souza Santos)
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EM POUCAS PALAVRAS MUITAS TRAJETÓRIAS
Esta pesquisa de doutorado, ancorada em diferentes concepções históricas,
filosóficas, sociológicas, psicológicas e antropológicas, busca construir um
arcabouço teórico que contribua na elaboração desta produção textual. Foram
abordagens consubstanciadas nos estudos críticos e pós-críticos que corroboraram
o acúmulo de conhecimento e aprofundamento das problemáticas que
engendravam o campo social e político de relações de poder quando se
problematizou o racismo na educação. A pesquisa aconteceu no cotidiano da UMEI
Normília dos Santos – unidade municipal da educação infantil – tendo como objeto
de estudo o racismo e a afirmação das diferenças etnicorraciais como processo de
enunciação de outras/novas práticas pedagógicas. Práticas essas não somente
pautadas pelo currículo prescrito, mas também pelo currículo realizado, no qual foi
possível perceber, por meio dos fatos, das falas e dos relatos das
professoraspesquisadoras sujeitrospraticantes de seus saberesfazeres, os indícios
de superação da cultura da naturalização, da homogeneização e da estigmação, por
outras posturas pedagógicas mais críticas e propositivas. Para a análise e
problematização das práticas pedagógicas racistas, utilizou-se a ferramenta da
pesquisa com o cotidiano, por ser o cotidiano o lócus onde o processo vital
aconteceu e de fato se realizou, possibilitando a desobstrução das relações inter-
raciais que foram obstacularizadas pela cultura da discriminação, do preconceito e
do estereótipo e podem ter impedido a vida de fluir.
Palavras-chave: Racismo. Diferença. Diversidade. Currículo prescrito. Currículo
vivido. Cotidiano.
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WITH FEW WORDS, MANY TRAJECTORIES
This doctorate research, that is underlain on different historic, philosophical,
phsychological and sociological conceptions, intends to construct notional structure
to contribute in text elaboration. The discussion was underlain in critical and after-
critical works that contributed to accumulate knowledge and to deepen questions that
engendered social and political power relationships when the racism in education
was questioned. This research took place in routine of Normilia dos Santos School
(UMEI) – a municipal unit of childlike education. The object of the research was the
racism and the assertion of the ethnic racial differences as an exposition process of
new other pedagogic practices, that aren‘t merely noticed in the explicit curriculum,
but also in the accomplished curriculum. In observing facts, in hearing conversations
and accounts and in reading records, it was possible to perceive that these subjects
are leaving their belief in homogeneity and stigmatization of people as a natural
procedure; instead of doing that, they are getting a more critical and propositional
pedagogic vision follow by new attitudes. Intending to analyze and to question the
pedagogic racist practices, it was observed the school routine, considered as site
where the vital process really takes place, enabling the interracial relationships, that
had been obstructed by the culture of discrimination, of prejudice and of stereotype;
certainly this culture obstructed the life in streaming.
Key-words: Racism. Difference. Diversity. Explicit curriculum. Accomplished curriculum. Routine.
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SUMÁRIO
1 VENCENDO A INÉRCIA, ESCREVENDO---------------------------------------------------12
2 A TRAJETÓRIA DA MULHER NEGRA E OS PROCESSOS SOCIAS E
POLITICOS DE “MUITAS NELMAS‖------------------------------------------------------- 20
2.1 CABELO CRESPO: UMA TRAJETÓRIA DE MUITOS FIOS E DESAFIOS----- 33
2.1.1 A arte de trançar cabelos crespos e lisos ---------------------------------------- 37
2.1.2 O pente de ferro: um instrumento de tortura para conseguir o
referencial capilar não negro-----------------------------------------------------------39
2.3 O ESTIGMA DA COR VERMELHA----------------------------------------------------------42
2.4 OS EQUÍVOCOS DA NATURALIZAÇÃO E DA FOLCLORIZAÇÃO----------------52
3 A LUTA, A GARRA E A SAGA DOS MOVIMENTOS NEGROS----------------------61
3.1 TRAJETÓRIA NEGRA CAPIXABA E OS MOVIMENTOS DE
RESISTÊNCIA---------------------------------------------------------------------------------- 69
3. 1.1 A cor etnicorracial capixaba-------------------------------------------------------------81
3.2 A TRAJETÓRIA DO MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL-----------------------------83
3.2.2 Um marco político do 20 de novembro: Marcha Zumbi dos Palmares
contra o racismo, pela cidadania e pela vida-------------------------------------- 89
4 O ENFRETAMENTO AO RACISMO NA EDUCAÇÃO EXIGE POSTURAS
POLÍTICAS COMPROMETIDAS COM A VIDA-------------------------------------------97
4.1 RACIOLOGIA: A TEORIA DA HIERARQUIZAÇÃO DO HUMANO---------------- 99
4.2 RACISMO: UMA CONSTRUÇÃO POLÍTICO-CULTURAL--------------------------107
4.2.1 O racismo “ à moda brasileira”: um fundamento para a mestiçagem---117
4.2.2 Etnia: conjunto de fatores culturais que asseguram o
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pertencimento a uma dada comunidade-------------------------------------------121
4.2.3 Preconceito: uma forma de materialização do racismo----------------------122
4.2.4 Discriminação racial: a prática de ação ou omissão com objetivos
da violação de direitos-------------------------------------------------------------------125
4.2.5 Estereótipo: uma estratégia que alimenta o preconceito--------------------128
5 AS POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE ETNICORRACIAL UM
INSTRUMENTO DE EQUALIZAÇÃO SOCIAL-------------------------------------------130
5.1 COTAS: UM REMÉDIO VELHO PARA A CONQUISTA DA IGUALAÇÃO
SUBSTANTIVA---------------------------------------------------------------------------------135
6 AFIRMAR NAS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS PARA DEIXAR FLUIR A
VIDA-------------------------------------------------------------------------------------------------145
7 NO COTIDIANO ESCOLAR, AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS
COMO OUTRAS POSSIBILIDAES DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA
EDUCAÇÃO---------------------------------------------------------------------------------------160
7.1 O LUGAR DA PESQUISA COM O COTIDIANO---------------------------------------160
8 EM ABERTO PORQUE A VIDA PULSA... ---------------------------------------------- 189
9 REFERÊNCIAS----------------------------------------------------------------------------------192
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1 VENCENDO A INÉRCIA, ESCREVENDO
São tão óbvios os avanços que estamos fazendo como Nação e tão claros os desafios que nos esperam, que mesmo vindo de diferentes origens, mesmo representando [grupos diferentes], mesmo interpretando de forma diferente as aspirações [...] só podemos reconhecer que para que cada um vença, todos têm de vencer. Somos um povo com um destino.
(NELSON MANDELA)
Esta retomada foi uma tentativa para vencer a
resistência de não querer reiniciar a escrita de mais uma
etapa da pesquisa do doutorado, porém, vencendo a
inércia, comecei a caminhar, pois o caminho se faz
caminhando e escrever se faz escrevendo. Para esta
produção, considerei as duas sistematizações
elaboradas para a primeira e a segunda qualificação,
dialogando com os/as teóricos/as alinhados/as à
pedagogia da diferença, à pedagogia crítica, pós-crítica
e à pesquisa com o cotidiano. Eles/as, em suas
produções, corroboraram outras/novas reflexões,
indicaram outras possibilidades de construção de
conhecimento científico que não foram pautadas
somente nas concepções da macronarrativa, mas
indicavam outras maneiras na arte de fazer da
micronarrativa.
O título ―Afirmar as diferenças etnicorraciais como
processo de enunciação para o enfrentamento ao
racismo na educação infantil‖ atribuído a esta tese de
doutorado visou a aprofundar a noção de diferença, em
contraposição à noção de diversidade.
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Objetivando enfrentar essa questão polêmica, busquei
fundamentação na entrevista que Homi Bhabha
concedeu a Jonathan Ruherford (1990), com o título
―Terceiro Espaço‖. Ele enfatizava que o multiculturalismo
liberal, fundamentado no relativismo filosófico, tornou
consensual a concepção da diversidade cultural por
conceber as culturas como diversas. A diversidade,
então, hospedaria a diferença cultural, limitando as
demais culturas às ―normatizações‖ e padronizações da
cultura do grupo hegemônico. Esse pensamento liberal,
ao conceber a diversidade na compreensão de culturas
diversas, teria como finalidade política a pasteurização e
homogeneização das culturas ―ditas‖ periféricas e, ainda,
procuraria designá-las como ―culturas boas ou ruins‖ e,
de outra forma, ―cultura superior/erudita‖ e
―inferior/popular‖, sustentando a posição bipolar da teoria
moderna do conhecimento.
Com essa compreensão, optei pelas análises de
teóricos/as que, ao desmistificarem a lógica bipolar do
conhecimento científico, têm defendido as concepções
pautadas nas diferenças culturais por ampliarem e
abarcarem outras dimensões do conhecimento e novas
possibilidades de pesquisas que a visão bipolar limitava.
As análises consubstanciadas nas micronarrativas
corroboraram as fundamentações teóricas e as
problematizações1 que foram feitas sobre o racismo na
educação. Justifiquei essa escolha teórica, porque as
concepções do relativismo filosófico apoiadas na visão
da macronarrativa constituíram condições de ordem
universalista que incentivaram as sociedades pluralistas
e democráticas a adotar a diversidade cultural. Na
1 Problematizações – no sentido de superar as lógicas das explicações, das respostas prontas e
bipolares.
A tentativa de pensar a diferença cultural como algo oposto à diversidade provém da compreensão de que através da própria tradição liberal –particularmente no relativismo filosófico e algumas formas de antropologia- a idéia de que as culturas são diversas, e de que em certo sentido a diversidade de culturas é uma coisa boa e positiva que deve ser incentivada, já é conhecida há muito tempo. É um lugar–comum das sociedades pluralistas e democráticas dizerem que elas podem incentivar e acomodar a diversidade cultural (RUHERFORD, 1990, p. 2).
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dimensão da diversidade, a quem caberia a definição de
―cultura e de não cultura‖? De ―cultura popular e cultura
marginal?‖
Com esse entendimento, continuei o diálogo com as
professoraspesquisadoras que, no cotidiano escolar,
podiam estar tecendo redes cotidianas de
problematizações que servissem de âncoras à
desconstrução das práticas de preconceitos e
discriminações nos espaçostempos2 da educação
infantil.
Os dados da Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas (FIPE) solicitados pelo Ministério da
Educação (MEC) e analisados por Glória Reis (2009), no
Jornal Recomeço MG, apontaram a existência do
racismo no cotidiano escolar. Indicaram práticas de
discriminação e preconceitos com o segmento negro nas
escolas. A legislação sobre a temática racial é robusta e
consistente. Se fosse cumprida, poderia contribuir para a
diminuição dessa grave e perversa situação social, no
entanto, é preciso muita disposição e compromisso
político para o enfretamento dessa dura realidade social.
A Constituição Federal de 1988 assegurou que a
educação é um direito do/a cidadão/ã. Como garantir
esse preceito para termos mais negros/as nas
universidades? As análises dos dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2007)
indicaram que, entre as pessoas com 25 anos ou mais
que concluíram o ensino superior no Brasil, há cinco
vezes mais brancos que pretos e pardos.
2 Espaçostempos – para Ferraço (2005, p. 15) ―[...] é uma forma estética da escrita que aprendi
com Nilda Alves na tentativa de, ao unir palavras, inventar outras tantas‖.
Pesquisa/MEC mostra que Escola educa para discriminação
[...] Além de alimentar o preconceito – uma visão negativa de negros – os entrevistados admitiram evitar contato com as vítimas. Os negros – bem como os demais segmentos discriminados - são excluídos em brincadeiras, no recreio ou até em trabalhos na sala de aula e, por isso, a socialização entre todos é prejudicada [...]. Uma face assustadora da pesquisa revela que 19% dos entrevistados responderam já terem visto algum aluno negro sendo humilhado ou agredido fisicamente simplesmente em função da cor da pele. Já 18,2% responderam o mesmo em relação aos estudantes pobres e 17,4%, aos homossexuais (REIS, 2009. (Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2009).
http://portalamazoniateste.tempsite.ws/sites/amazonsateducacao/noticia%3e.http://portalamazoniateste.tempsite.ws/sites/amazonsateducacao/noticia%3e.http://portalamazoniateste.tempsite.ws/sites/amazonsateducacao/noticia%3e.http://portalamazoniateste.tempsite.ws/sites/amazonsateducacao/noticia%3e.
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Há práticas racistas no interior da escola, afirmaram os
analistas. Para a maioria dos/as entrevistados/as
(83,8%), as práticas preconceituosas e de discriminação
no espaço escolar eram praticadas entre os próprios
alunos. Dos/as pesquisados/as, 99,3%, entre pais,
alunos/as e funcionários/as das escolas, afirmaram ter
sofrido algum tipo de preconceito. As escolas também
indicaram que as práticas racistas concorreram para o
baixo desempenho dos/as alunos/as. A pesquisa
apontou que a família também contribuiu para a prática
do racismo. Os resultados desta pesquisa foram
significativos e conduziram-me às seguintes indagações:
como as professoraspesquisadoras no seu cotidiano
poderiam problematizar as práticas preconceituosas e
discriminatórias? Elas reconheceram-nas como
obstáculos aos processos de diferenciação das
diferentes culturas nas redes cotidianas? Ou as
naturalizaram dificultando o enfrentamento ao racismo
no cotidiano da educação infantil? Elas perceberam que
tais práticas poderiam acarretar prejuízos aos processos
de ensinagemaprendizagem?
Na estruturação desta tese de doutorado, procurei
enredar essa produção textual com os fios da trajetória
de vida da pesquisadora, mulher negra, com os fios das
histórias de vida das professoras e crianças negras e
não negras e de seus familiares que conviveram com as
práticas racistas no espaço escolar. Esse conjunto de
fios das histórias de vidas entrelaçou-se e enredou-se
aos fios das diferentes concepções sobre raça, racismo,
discriminação, preconceito, estereótipos, políticas de
promoção da igualdade racial, concepções de diferença
cultural e diversidade cultural e, ainda, entrelaçou-se aos
fios e os desa(fios) das redes cotidianas que foram
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tecidas na pesquisa com o cotidiano escolar. Foram
fundamentações teóricas e práticas vividas que puderam
corroborar a produção de conhecimento – ser âncora de
sustentação ao meu objeto de pesquisa – afirmação das
diferenças etnicorraciais como processo de enunciação3
para o enfrentamento ao racismo no cotidiano escolar.
Nesse cotidiano, percebi indícios4 de tensões, conflitos,
constrangimentos, silêncios que foram reações próprias
dos humanos.
Esse recomeçar foi uma tentativa de revisitar a vasta
produção teórica que deu suporte a esta pesquisa,
objetivando a apropriação de novas análises para tecer
problematizações sobre o que aconteceu/acontece no
cotidiano escolar, pois considerando o seu caráter
imprevisível quase sempre me escapava. Entendi o
sentido de problematizar não como procurar respostas
prontas e definições absolutas e dogmáticas, mas para
provocar rupturas nas culturas das explicações, das
generalizações e das conclusões binárias. Nesse
sentido, foi preciso adotar uma postura crítica e coletiva
no enfrentamento das práticas discriminatórias e
preconceituosas que impediam o fluxo da vida entre os
humanos de fluir.
Na problematização dessas práticas, dialoguei com
Ferraço (2006), não tendo a intenção de buscar
culpados/as, nem comportamentos, atitudes, valores e
axiomas morais e moralizantes que poderiam nos
conduzir à culpabilização. Não busquei, também,
receitas prontas e padronizadas. Quis, sim, levantar
3 Conforme Bhabha,(1990, p. 6) [...]enunciação é um processo dialógico que tenta rastear
deslocamentos e realinhamentos que são resultados de antagonismos e articulações culturais [...]. 4 Para Ginzburg – os indícios, as pistas e os sinais têm que ser considerados na elaboração da
pesquisa, pois podem levar à criação de novos conceitos.
Consideramos que qualquer tentativa de explicação de algo, fatalmente, irá reduzir este algo à lógica do raciocínio daquele que explicou. Por isso, buscamos no texto em questão estabelecer diálogos com discursos de autores, trazendo muito mais questões do que respostas, pois entendemos que com dúvidas e incertezas podemos melhor nos aproximar da complexidade da educação e, por efeito, da vida. Nossa intenção foi a de trazer fragmentos das falas desses sujeitos tomadas sempre como problematização e não como definições ou explicações (FERRAÇO, 2006, p.15).
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outras questões, inventar possibilidades5 de diálogos,
visando a potencializar as práticas do currículo
realizado.6 Dialoguei com o currículo oficial, no intuito de
abrir brechas e deslocamentos que poderiam burlar o
que estava prescrito e normatizado.
Foi com essa complexidade descrita acima que pretendi
contribuir com a desconstrução desse modo de pensar
as relações humanas no jogo das hierarquias interaciais
e, assim, poder afirmar as diferenças etnicorraciais como
dispositivo de possibilidades de outras maneiras de tecer
as dimensões relacionais. Foi com esse intuito que fui
me enredando nas tessituras de redes de
conhecimentos e de saberesfazeres que foram
necessárias à produção desta tese de doutoramento.
Assim sendo, visando à escrituração deste texto, estive
tecendo as redes de conhecimento a partir dos fios e
dos desa(fios) a seguir:
a) a trajetória de vida da mulher negra e os
processos sociais e políticos de “muitas Nelmas” -
descrever algumas narrativas da minha trajetória de vida
e dos diferentes contextos sócio-históricos que
produziram e marcaram as vivências e experiências de
uma mulher negra;
b) a raciologia, uma tentativa de hierarquização do
humano – analisar os enfoques das teorias da
biologização e da craniometria que deram sustentação
aos diferentes tipos de racismo, bem como serviram
para a construção de práticas que se materializaram
5 Segundo Ferraço (2005) – considerar a ideia de possibilidades também como potencialidades do
imprevisível, do não conhecido e controlado. 6 Currículo realizado – para Ferraço (2005) só faz sentido se consideramos as marcas que esses
sujeitos deixam nessas prescrições, isto é, seus usos, ações, informações, alterações, realizações, negações, desconsiderações, argumentações, obliterações, manipulações.
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por meio do preconceito, da discriminação e do
estereótipo, objetivando a produção do aporte teórico
que fundamentou os indícios de racismo nas relações
interétnicas;
c) as políticas de promoção para a igualdade racial:
um instrumento de equalização social – analisar
essas políticas no contexto das reivindicações e
conquistas dos diferentes movimentos sociais negros.
Problematizar os significados dessas políticas, no que
diz respeito à ascensão social do povo negro, ou seja, a
partir do que está preconizado nos princípios de
reparação, reconhecimento e valorização. Refletir,
também, sobre algumas políticas públicas
implementadas pelos diferentes governos, por meio de
ações afirmativas, com destaque para a política de
reserva de vagas na educação (cotas), enfocando os
diferentes aspectos sociais e raciais que estiveram
acirrando essas questões polêmicas na sociedade
contemporânea, evidenciando o racismo latente nas
entranhas do tecido social;
d) a pesquisa com o cotidiano da educação infantil
da Unidade Municipal de Educação Infantil Normília
dos Santos, a partir dos saberesfazeres das
professoraspesquisadoras e das crianças, sujeitos
praticantes da pesquisa, visando a evidenciar
indícios de negociações, táticas e estratégias nas
relações pluriétnicas – neste estudo, estive dialogado
com os/as teóricos/as da pesquisa no/com o cotidiano,
tendo em vista a análise e problematização dos
saberesfazeres das professoraspesquisadoras “sujeitos
praticantes‖ de suas redes cotidianas para levantar
indícios de práticas racistas que poderiam produzir
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tensões, conflitos, silêncios, constrangimento, medos,
mas, quando problematizadas, poderiam provocar
processos de invenção e de negociação nas relações
interétnicas.
Certeau (2002) nos colocou em frente aos diferentes
modos de fazer e nos apontou as múltiplas
possibilidades de invenção cotidiana, pois nem todas as
pessoas se submeteram às ―normatizações‖
disciplinadoras do poder hegemônico. Por isso, foi
preciso acreditar que nem todos/as os/as
trabalhadores/as da educação foram/são sujeitos
passivos/as e disciplinados/as às padronizações e às
prescrições que obstaculizaram as relações pluriétnicas
entre os humanos.
[...] se é verdade que toda a parte se estende e se precisa a rede de ‗vigilância‘, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também ‗minúsculos‘ e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim que ‗maneiras de fazer‘ formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou ‗dominados?‘ ), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU (2002, p. 41).
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2 A TRAJETÓRIA DA MULHER NEGRA E OS
PROCESSOS SOCIAS E POLITICOS DE
“MUITAS NELMAS”
A trajetória dos processos de produção de
subjetividades que marcou a vida de ―muitas Nelmas‖
corroborou em grande parte para a opção do objeto da
pesquisa que estive construindo. Trajetórias de vida que
produziram, como afirma Certeau (1994), movimentos
nos espaçostempos do cotidiano, formados por
diferentes processos de diferenciações, que foram
resultantes das relações coletivas vivenciadas ou não na
casa, escola, rua e em tantos outros lugares. Assim
sendo, a trajetória foi produção desses agenciamentos
sociais que traçaram perspectivas, diferentes visões de
mundo, esperanças e desencantos.
Dialogando, ainda, com Certeau (2002), busquei
compreender os trajetos e os caminhos percorridos na
arte de caminhar de ―muitas Nelmas‖, no sentido de
ressignificar as diferentes histórias de vida que
foram/são abarcadas por dificuldades socioeconômico-
culturais. Pretendi identificar as lutas, as resistências e
os deslocamentos realizados a partir das práticas
cotidianas, sobretudo aquelas de dimensão etnicorracial.
Essa trajetória de vida, marcada pela tríplice opressão
da sociedade: social, racial e de gênero, não poderia ser
diferente, pois sou brasileira, nascida num país marcado
por valores moralizantes, como o machismo, o racismo,
o homofobismo e o sexismo. Essa foi/é minha tríplice
opressão, porque boa parte da minha vida fui pobre
economicamente, sou negra e fizeram-me mulher. Para
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Simone de Beauvoir, ―[...] não nascemos mulher,
tornamo-nos mulher [...]‖. Por analogia, tornamo-nos
pobre, mulher e negra referenciada a quadro de padrões
hegemônicos.
Nesse sentido, analisei alguns tipos de agenciamentos:
a família, a escola e os movimentos sociais, com
destaque para os movimentos negros que
contribuíram/contribuem para a produção singular de
―muitas Nelmas‖. Analisei a minha história de vida, tendo
como pano de fundo os ―mitos‖ fundantes de formação
do pensamento brasileiro: o mito da democracia racial,
do embranquecimento e da inferiorização do povo negro.
Para o analista Ricardo Henriques,7 em seu artigo ―A
pobreza no Brasil tem cor‖ (IPEA; UFF, 2000), essa
situação social, majoritariamente, está vinculada à
população negra. Assim sendo, como fazer apologia à
democracia racial num país de profundas desigualdades
social e racial? Para os defensores da democracia racial
ela teria o papel de integração do tecido social, no
entanto, essa finalidade não se concretizou, até hoje,
pois o que temos é um processo de desintegração
social, com enorme fosso econômico e político, quando
analisamos os baixos níveis de emancipação e de
participação direta da população brasileira nos rumos de
uma sociedade globalizada.
A análise desse pesquisador vem contribuir para o
entendimento sobre a questão da negação do mito da
democracia racial, porque o segmento negro, entre
outros, tem sido historicamente discriminado. Esse
7 Ricardo Henriques, analista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Universidade
Federal Fluminense (UFF) responsável pelo texto nº 807 – ―Desigualdade Social no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90‖.
A intensa desigualdade racial brasileira, associada a formas usualmente sutis de discriminação racial, impede o desenvolvimento das potencialidades e o progresso social da população negra. O entendimento dos contornos econômicos e sociais da desigualdade entre brasileiros brancos e brasileiros afro-descendentes apresenta-se como elemento central para se construir uma sociedade democrática, socialmente justa e economicamente eficiente. Essa investigação assume maior pertinência quando reconhecemos que os termos da naturalização do convívio com a desigualdade no Brasil são ainda mais categóricos no fictício mundo da ‗democracia racial‘ ditado há mais de 60 anos por Gilberto Freire, mas ainda verdadeiro para muitos brasileiros. HENRIQUES, 2000. (Disponível em: . Acesso em: 13 jun. (2005) .
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pensamento discriminatório social e racial foi forjado nos
espaços instituídos e instituintes, muitas vezes, advindos
de práticas racializadas que atravessaram os processos
de diferenciação de vida do que é ser mulher e, ao
mesmo tempo, ser negra, na sociedade brasileira de
características machistas e racistas.
Assim sendo, tecendo os fios da história de vida de
―muitas Nelmas‖, ao dialogar com o pensamento
certeuaniano, perguntei: qual a arte de fazer que venho
processando no uso e consumo das produções
racializadas ditas hegemônicas? Como fiz uso das
táticas e estratégicas para subverter a ordem
estabelecida que polarizasse as relações raciais entre as
diferentes etnias? Para Certeau (1994), as maneiras de
fazer com o cotidiano poderiam produzir práticas
antidisciplinares, astuciosas, negociáveis não
barulhentas; maneiras de fazer silenciosas que
resistissem às ―normatizações‖ padronizadas e
inflexíveis. Foram/são perguntas sem respostas, mais
incertezas do que certezas que, todavia, potencializaram
as minhas análises, quando estive escrevendo a minha
de trajetória vida, mesmo sabendo que foram questões
polêmicas e, muitas vezes, contraditórias e paradoxais.
Para iniciar esta análise, sou filha caçula de uma família
negra, mas que sempre buscou enfrentar as tensões da
vida social provocadas pelo racismo, algumas vezes
aceitando passivamente as discriminações e os
estereótipos do modo de subjetivação das sociedades
consideradas autoritárias, outras vezes contestando,
transgredindo, subvertendo as normas disciplinadoras
do poder instituído e, ainda, superando as
consequências advindas do racismo que, no processo
[...] A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de ‗consumo‘: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante (CERTEAU,1994, p. 39).
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social e racial de dimensões liberais, relativistas e
hierarquizadas, desconsideraram e invisibilizam as
diferenças etnicorraciais presentes na sociedade.
Esse modo de pensar/viver a vida tem produzido uma
forma hierarquizada bipolar nas relações entre os
humanos, ou seja, na dimensão de gênero (homem e
mulher) e na etnicorracial (branco e negro),
estabelecendo, assim, uma valoração de superioridade
para os polos (homem e branco/a) e de inferioridade
(mulher e negro/a). Para Brito (1998), essa teoria do
racismo sustentada na visão dicotômica e dual estava
calcada no ideário da segregação e eliminação racial,
porque, segundo a teoria da raciologia, os segmentos de
negro e de índio constituíram uma ameaça à civilização,
pela razão de ser uma ―raça‖ degenerada. Essa posição
de bipolaridade expressa na concepção de diversidade
cultural poderia aprisionar os movimentos de
diferenciação que as redes cotidianas deveriam produzir
ao afirmar as diferenças etnicorraciais.
Por isso, nesta tese, procurei ir além das limitações da
formação acadêmica bastante marcada pelo caráter
universalista e dicotômico, busquei enfrentar os
equívocos de concepções e práticas que foram/são
resultantes de uma formação política mais focada por
uma visão economicista, por processos de aquisição de
novos/outros conhecimentos de dimensão focalista.
Esse processo possibilitou movimento de diferenciação
que indicou na direção das diferenças culturais, porque
contribuiria para alargar a compreensão racismo como
determinante social e psíquico no tecido social.
No agenciamento social, destaquei a importância da
família e da escola ao lidar com as práticas racializadas
O racismo é a teoria que sustenta a superioridade de certas raças em relação a outras, preconizando ou não a segregação racial ou até mesmo, a extinção de determinadas minorias. Este discurso legitimava a inferioridade de alguns povos que estavam mais próximos dos animais do que dos seres humanos baseados em argumentos morais, religiosos e científicos (BRITO,1998, p. 61).
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que foram/são, muitas vezes, escamoteadas,
geralmente, por meio do silêncio. Por que silencia a
família e a escola? Qual o significado do silêncio para as
relações de poder hierarquizadas? Dialoguei com
Cavalheiro (2003) sobre o significado do silêncio como
formas de reação às práticas de preconceito e
discriminação no espaço escolar e encontrei quase
sempre um sentimento de impotência e desconforto.
Algumas famílias e escolas optaram pelo silêncio,
evitando o enfretamento das práticas racistas que
foram/são, quase sempre, causadoras de conflitos,
tensões e sofrimentos, e que podem provocar
adoecimento. Num dos encontros com as mães, durante
a pesquisa, uma delas relatou que a filha, uma criança
negra, sempre chegava a casa reclamando de
xingamentos discriminatórios, sobretudo por causa do
cabelo. Essa prática, quase sempre com a omissão da
UMEI, causava na filha e mãe sentimento de tristeza e
constrangimento. Para a mãe, a escola não aceitava o
fenótipo capilar das crianças negras, dificultando uma
relação dialogal positiva entre as crianças negras e as
não negras.
Em minha família, foram raros os momentos de fala
sobre as práticas de racismo. Silenciava-se sobre elas
por constrangimento e/ou autodefesa. Pensei que esses
momentos de silêncio e de conflitos podiam funcionar
como táticas e estratégicas no sentido de possibilitar
outras formas de fazer usos e consumos de como
enfrentar os constrangimentos, medos, imobilismos,
raivas e tristezas. Assim, o silêncio que, muitas vezes, é
considerado como passividade e submissão, poderia ser
uma saída ou forma de resistência na arte de lidar com
‗Silencia‘ um sentimento de impotência ante o racismo da sociedade, que se mostra hostil e forte. ‗Silencia‘ a dificuldade que se tem em se falar de sentimentos que remetem ao sofrimento. ‗Silencia‘ o despreparo do grupo para o enfrentamento do problema, visto que essa geração também apreendeu o silêncio e foi a ele condicionada na sua socialização. O silencio das famílias brancas decorre também desses mesmos aspectos que influenciam as negras, mas marca sua posição confortável diante do problema que diretamente não as atinge. Ao silenciar, a escola grita inferioridade, desrespeito e desprezo (CAVALHEIRO, 2003, p.100). Aumentar a citação Citar outras
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situações do cotidiano que causam dor, sofrimento e
desprazer.
Refletindo sobre esses momentos de desconforto, o
artigo ―Afirmar diferenças etnicorraciais como dispositivo
de saúde nas escolas? A CAP em ação‖,8 de Monteiro
et al. (2008), possibilitou reflexões em duas direções:
uma que nos engessaria ao conformismo e à
naturalização das práticas racistas que
aconteceram/acontecem nas redes cotidianas; e outra
que poderia propiciar deslizamentos e negociações por
meio de outros modos de fazer e lidar com os
movimentos de diferenciação do cotidiano escolar, para
afirmar a diferença cultural e etnicorracial e não a
diversidade cultural.
Na família, quando o assunto era questão racial, admitiu-
se/admite-se, às vezes, uma fala de forma velada,
superficial e ou de rejeição, quase sempre na posição
defensiva, jamais de forma problematizadora e
propositiva. Atualmente, na convivência familiar com
meus dois filhos, as questões raciais são faladas sem
causar constrangimentos, embora eles, algumas vezes,
procurassem evitar esses assuntos. Esses movimentos,
nos espaços familiares, quando pautados pelas práticas
racializadas, puderam apontar outras possibilidades de
lidar com as relações etnicorraciais sem obtacularizar o
diálogo familiar. No diálogo, procurei exercitar outros
modos de enfrentar as práticas de racismo que
apareceram/aparecem na convivência com meus filhos.
Afirmei não terem sido fáceis as abordagens das
8 Artigo produzido pelos alunos/as mestrandos/as e doutoranda, pesquisadores/as do NEPESP/
UFES, na Comunidade Ampliada de Pesquisa.
As formas capitalísticas de lidar com as diferenças interétnicas, quando colocadas em análise, podem constituir-se em dispositivo de produção de saúde, na medida em que se trata de problematizar as formas de lidar com os movimentos de diferenciação que se atualizam por meio de tensões e conflitos étnico-raciais que marcam a organização do trabalho escolar. Assim sendo, entendemos que a afirmação das diferenças nos conduz à desconstrução de práticas preconceituosas e discriminatórias que produzem constrangimento, medo, tristeza, negação e silêncio, o que possibilita prováveis situações de adoecimento (MONTEIRO et al., 2008, p.152).
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relações raciais, mas estava atenta para problematizar
com eles essas questões tão polêmicas.
Quando analisei o padrão estético do fenotípico negro,
percebi que ele quase sempre estava associado ao
quadro de referenciação do modelo hegemônico de uma
dada etnia. O padrão socialmente ―correto‖, em sua
grande maioria, previlegiava/privilegia o pensamento
estético do segmento branco. Mamãe sempre dizia:
―Ser negro, sim, mas de alma branca‖. Não só de alma
branca, mas todo o corpo referenciado aos padrões
estéticos hegemônicos que não sejam os de outras
etnias e culturas. Conforme Santos (1990), para o negro
ser melhor, era preciso responder ao modelo
hegemônico branco. E assumir o fenótipo branco, no
caso do/a negro/a, é impossível.
Assim sendo, para nós, mulheres negras, assumirmos
as padronizações impostas pelo capital e os valores
morais prescritos por uma dada sociedade hegemônica
racista e machista, no que diz respeito à estética física,
era preciso a aceitação do padrão de ―beleza‖ e de
―belo‖ definido por determinado grupo. O que se
esperava de um corpo fenotípico negro? Como não
aceitar um modelo capilar, ditado pela moda? Como
vencer o fenótipo feminino do cabelo alisado e
socialmente correto, comparado com o cabelo crespo
considerado antissocial?
A teoria da mestiçagem via mito do embranquecimento e
mito da democracia racial, corrobora a produção de
práticas sociais de negação do pertencimento racial, por
parte da maioria da população negra na sociedade
brasileira.
[...] E, como naquela sociedade, o cidadão era branco, os serviços respeitáveis eram os ‗serviços- de -brancos‘, ser bem tratado era ser tratado como branco. Foi com a disposição básica de ser gente que o negro organizou-se para a ascensão, o que equivale dizer: foi com a principal determinação de assemelhar-se ao branco-ainda que tendo que deixar de ser negro- que o negro buscou, via ascensão social, tornar-se gente (SANTOS, 1990, p. 21).
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Assim afirmava Silvério, em um capítulo do livro
organizado por Silva (2003) ―Educação e ações
afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça
econômica‖ que, quando o assunto era reserva de vagas
no ensino superior, você encontrava duas posições
sobre o pertencimento racial. De um lado, os/as
detratores/as das cotas raciais que se arvoravam em
afirmar que não existiam negros no Brasil. Eles/as
asseveravam em favor da mestiçagem. ―O mestiço é
branco e não negro‖, dizia o senador Demóstenes, do
Partido do DEM, na audiência pública realizada em
2010, pelo Supremo Tribunal Federal - Brasília, com o
tema ―Cotas na UNB‖. De outro lado, os/as
defensores/as do sistema de cotas advogavam sobre o
pertencimento racial negro com argumentações positivas
do ser negro/a e, ainda, denunciavam a farsa da
democracia racial como posição ideológica que tem
contribuído para a invisibilidade desse segmento na
sociedade brasileira. O pertencimento racial foi uma
questão emblemática a ser enfrentada no cotidiano
escolar, onde aconteciam práticas autoritárias, conflitos
e negociações, mas também se construíam
solidariedades, diálogos, negociações e partilhas que
poderiam contribuir com a problematização das práticas
racializadas
Por que a resistência em aceitar o pertencimento racial
negro? Pesquisando o termo ―negro‖ no Dicionário de
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986, p.1187),
entre dezenas de definições, destaquei as que
reforçavam as ideais negativas sobre o termo, o que
poderia dificultar o processo de pertencimento racial
positivo: ―[...] negro adj. 1. De cor preta. [...] 3. Diz-se do
indivíduo de raça negra; preto. 4. Preto. Sujo encardido,
A mestiçagem tem cumprido um, papel histórico importante na manutenção racializada da elite branca. Por um lado, ela nega o valor da própria branquitude na alocação de posições-chave na sociedade, por outro, ela inibe a manifestação dos setores que sofrem os efeitos da racialização das elites. A invisibilidade do negro é decorrente de uma representação social que o ‗apaga‘, porque nós, no Brasil, não temos negros, somos todos mestiços, ao mesmo tempo, as práticas discriminatórias e racistas cotidianas são banalizadas, porque no pós-Abolição nunca tivemos segregação racial legal (SILVÉRIO, 2003, p.70).
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preto: a criança está com as mãos negras [...] 7. Muito
triste: lúgubre, [...] Maldito, sinistro: Em negra hora
chegou ali aquele bandido‖. Esses significados negativos
da categoria ―negro‖ faziam parte do mundo linguístico
dos diferentes agenciamentos familiar, escolar e eclesial,
entre tantos outros que, por meio das falas discursivas,
não contribuíam, de um lado, para as etnias não negras
perceberem as diferentes possibilidades de
estabelecerem desvios e deslocamentos nas formas
endurecidas dos significados linguísticos e das vivências
cotidianas. Do outro lado, podiam se constituir em
obstáculos para que negros/as assumissem seu
pertencimento racial.
No entanto, essa linha de reflexão devia ser
contraposta, na visão certeauniana, por outras maneiras
de fazer, maneiras astuciosas e afirmativas e que
subvertessem as formalidades prescritas, buscando
desconstruir essas formas de discursos pasteurizados e
de verdades absolutas, sem se deixar prender nas
armadilhas do essencialismo e da guetização.
Esse pensamento sobre o/a negro/a, referenciado na
concepção do embranquecimento, construiu-se, ao
longo da história dos humanos, em um modelo de
casamento que podia estar fragilizando as relações
interétnicas. Foi nesse jogo das relações sociais que
muitas famílias adotaram/adotam posturas de incentivos
à união conjugal de seus/as filhos/as somente com
pessoas de pele branca, confirmando o dito popular:
―Casar com branco para ‗limpar a raça‘ e ‗limpar o
útero‘‖. Expressões que lembravam a teoria da eugenia,
defendida por vários médicos/as brasileiros/as, nos
séculos XIX e XX. No relato da professora ―A‖,
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29
participante da pesquisa, havia indícios, sinais desse
―jogo relacional‖, no que diz respeito à posição de seu
pai sobre o casamento dos filhos: ―Não quero meus
filhos casados com negros. Prefiro vê-los mortos‖. A que
ponto poderia chegar o sentimento de rejeição, ódio e
ojeriza com outra pessoa do seu próprio segmento
racial.
O racismo nos conduz à dimensão moral e, quase
sempre, de cunho moralizante, de reprovação do outro
devido à cor da pele e ao fenótipo. Se o mito do
embranquecimento, ainda hoje, produz seus efeitos
negativos no tecido social, em se tratando da mulher
negra, como ficaram essas mulheres, se a maioria delas
sofreu com a tríplice discriminação de ser mulher, negra
e pobre? Como elas teriam enfrentado a solidão, à
medida que muitas delas foram preteridas na formação
dos arranjos conjugais oficiais?
Nascimento, em 2007, publicou um artigo sobre ―O
mercado matrimonial diáspora negra e Michelle Obama‖
e apresentou as análises feitas pela cientista social
Raquel de Souza e a pela socióloga Augusta Thereza de
Alvarenga que, ao pesquisarem sobre as diferenças de
gênero e de ―raça‖ nas questões reprodutivas de
mulheres negras e brancas, tendo em vista a concepção
de liberdade e a facilidade de estabelecer os arranjos
conjugais, afirmaram que as mulheres negras brasileiras
são preteridas do mercado matrimonial. Conforme o
autor do artigo, a dificuldade estaria calcada na
estereotipia produzida sobre a mulher negra. Essas e
outras considerações sobre racismo nas relações
interétnicas, no sentido da afetividade, podem chegar ao
chão da sala de aula, obstacularizando o fluir da vida.
‗Como aponta Berquó as mulheres negras são supervalorizadas, como exóticas, para o tráfico sexual, como denunciam pensadoras do movimento negro‘. Na opinião destas pesquisadoras, a estereotipia a que as mulheres negras estão submetidas impede-as de usufruírem da liberdade, inclusive a sexual, e de exercitarem sua autonomia e dignidade referindo-se às mulheres negras (NASCIMENTO, 2007. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2009).
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São muitas as produções depreciativas no mundo
linguístico que corroboram um olhar sobre o ser negro.
Ser negro é ser bom moço... Ser preto de alma branca.
E alma tem cor? Essa foi uma concepção judaico-cristã
da lógica essencialista e dualista que produziu uma
cultura discriminatória e polarizada entre corpo e alma.
A alma tem que ser branca, ser angelical, pura e
imaculada – sem manchas, conforme os preceitos
canônicos da Idade Média. O corpo negro, como
justificativa, não tem alma – assim estava escrito nos
documentos oficiais dos cleros católicos, do período
escravista – portanto, o corpo pode ser escravizado,
espancado, chicoteado, chibatado, açoitado e mutilado.
Entre tantas outras músicas do repertório popular, fui
buscar na letra da canção de Jorge Aragão, intitulada:
―Identidade‖, uma forma de narrativa sobre a questão
racial que refletia a branquitude e o lugar social do ser
negro no Brasil. Nessa sociedade onde o racismo é
cordial, à moda brasileira, qual o lugar do negro?
Embora essa cultura da inferioridade e da discriminação
do negro ainda seja recorrente e forte em nosso País.
Durante a pesquisa, analisei com as
professoraspesquisadoras o lugar social dos/as
negros/as e as contribuições dessas lideranças no
cenário político, na luta pelo fim do regime escravista.
Destaquei para o debate: Dandara, guerreira na luta que
contribuiu para a organização do Quilombo dos
Palmares; Luisa Mahin, mulher guerreira, líder da
Revolta do Malês; Chica da Silva, rainha negra do
Tijuco; rainha Nzinga, estadista e diplomata, em Angola;
Princesa Anastácia, mulher altiva que lutou até a morte,
para preservar sua singularidade; Cruz e Souza, poeta
e promotor público; José do Patrocínio, jornalista e
IiDENTIDADE Elevador é quase um templo Exemplo pra minar teu sono Sai desse compromisso Não vai no de serviço Se o social tem dono, não vai... Quem cede a vez não quer vitória Somos herança da memória Temos a cor da noite Filhos de todo açoite Fato real de nossa história Se o preto de alma branca pra você É o exemplo da dignidade Não nos ajuda, só nos faz sofrer Nem resgata nossa identidade (Disponível em: .Acesso em: 20 maio. 2009).
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fundador do ―Jornal da Tarde‖; Aleijadinho, grande
entalhador em pedra de sabão; André Rebouças,
engenheiro que construiu o Porto do Rio de Janeiro;
Castro Alves, escritor e poeta; Machado de Assis,
escritor e romancista, escreveu o clássico “Dom
Casmurro‖; e Milton Santos, geógrafo e escritor; José
Cândido, o almirante negro, entre tantos/as outros/as.
Durante esta pesquisa, ao refletir sobre essas lideranças
negras, coloquei também em análise a situação do/a
negro/a no cenário atual, no que diz respeito à
mobilidade e à ascensão social, enfatizando sobre a
importância da problematização do racismo e das
práticas de discriminação e preconceito na sociedade e,
ainda, sobre a luta pela implementação de políticas de
ações afirmativas. Isso como possibilidades de
superação da cultura racista e, consequentemente,
propiciando a ascensão social do/a negro/a por meio do
acesso a outros cargos e/ou função no mundo do
trabalho.
A Fundação Getúlio Vargas (FGV), em seu artigo
―Ascensão social de negros é mais rápida‖, explicava
que isso se deveu ao aquecimento da economia, que
tirou milhões de brasileiros da pobreza e tem beneficiado
especialmente os/as negros/as.
Essa pesquisa revelou que a classe média representava
mais da metade da população e que a ascensão social
dos/as negros/as ocorreu de forma mais rápida,
possibilitando a sua mobilidade social. Esses foram os
dados da pesquisa feita nas seis principais regiões
metropolitanas do País que indicaram que a classe
média passou de 43,64%, em 2002, para 51,57%, em
abril de 2008. No mesmo período, o percentual de
http://acertodecontas.blog.br/clipagem/ascensao-social-de-negros-e-mais-rapida/
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negros/as dessa camada social subiu de 39,24% para
50,87%, portanto um aumento de 11 pontos percentuais.
Essa pesquisa ressaltava ainda o papel da educação
para o avanço da mobilidade social desse segmento
étnico.
A análise da música ―Identidade‖ de Jorge Aragão me
remeteu à teoria do racismo com seus desdobramentos
de segregação racial e de hierarquização social ao
indicar qual o elevador destinado para os/as negros/as:
―Não vai no de serviço/ Se o social tem dono, não vai...‖.
Outra mensagem de resistência do povo negro e
incentivo à luta de enfrentamento ao racismo foi
expressa no fragmento do seguinte verso: ―Quem cede a
vez não quer vitória/Somos herança da memória/Temos
a cor da noite/Filhos de todo açoite/Fato real de nossa
história‖. É preciso resistir e não ceder a vez para a
rejeição e para dificuldade de aceitação de quaisquer
pessoa.
Contrapondo-se com a visão negativa do negro, os
movimentos sociais negros, a partir da década de 70,
lançaram campanhas publicitárias, objetivando a
elevação do pertencimento racial por meio de diferentes
chamadas mediáticas: ―Negro é lindo!‖, ―100% Negro‖,
―Não deixe sua cor passar em branco‖ e recentemente
―Onde você esconde o seu racismo?‖ Foram campanhas
que visavam a fazer desvio nas produções sociais e
culturais de um único padrão estético. É preciso elevar o
pensamento, afeto e sentimento do povo negro de forma
positiva, todavia com cuidado para não ser sectário/a e
nem contribuir para a formação de guetos e movimentos
separatistas.
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2.1 CABELO CRESPO: UMA TRAJETÓRIA DE MUITOS
FIOS E DESAFIOS
Retomei a minha história de vida entre os fios de
cabelos crespos e os desa(fios) de conviver com um
modelito socialmente correto. E lá se foram,
aproximadamente, cinco décadas marcadas por uma
beleza capilar, cuja textura dos fios de cabelo não
resistia aos tratamentos capilares e muito menos
combinava com o fenótipo facial negro. Na infância, não
gostava de pentear os cabelos, pois tinha que trançá-los
todos os dias agachada às pernas de tia Francisca que
sempre me chamava para trançá-los de forma
depreciativa: ―Venha aqui pentear esse cabelo duro‖,
―Abaixar esse facho, amassar esse pico‖. Essas foram
expressões ouvidas na infância, quando no trato com o
cabelo crespo. Fazer tranças no cabelo era todo dia. Por
parte da família, o que seria uma forma de higiene
também não poderia ser uma dificuldade de aceitação
do fenótipo capilar negro?
Dialogando com Gomes (2008), trançar cabelo era uma
técnica antiga, trazida pelos povos africanos, que tem
ganhando cada vez mais adeptos entre os jovens.
Trançar cabelos sempre foi uma arte. As imagens (Fotos
1 e 2) evidenciam muitas possibilidades de lidar com os
fios, sejam eles crespos e sejam lisos. Por que temos
que nos enquadrar a uma única referência hegemônica?
As diferenças capilares nos embelezam e nos
enriquecem culturalmente.
O uso de das tranças é uma técnica que acompanha a história do negro desde a África. Entretanto, os sentidos de tal técnica foram alterados no tempo e no espaço. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, algumas famílias negras ao arrumar as crianças, sobretudo das mulheres, fazem-no na tentativa de vencer com os estereótipos do negro descabelado e sujo. Outras o fazem de modo, simplesmente, como prática cultural de cuidar do corpo. Mas de modo geral, quando observarmos crianças negras trançadas notamos duas coisas: a variedade de tipo de trança e o uso de adereços coloridos (GOMES, 2008, p. 209).
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Foto 1 - A arte de trançar cabelos crespos pode ser estética além da uma opção política Fonte:Disponível em: < www.belezapura.org.br>. Acesso em: 20 jul. 2008.
Foto 2 - Black Power. Seu significado é: poder negro Fonte: Disponível em: www. belezapura.org.br.. Acesso em: 20 jul. 2008.
As tranças nagôs, rastafáris, dreadlocks têm feito a
cabeça de muita gente, não importando a idade. Foi uma
moda antiga, sobretudo entre os/as negros/as afro-
americanos/as. No Brasil ganhou destaque nos anos 70,
e a moda voltou com força total, com formas mais
desalinhadas e irreverentes. Foram opções aos
tratamentos químicos utilizados em cabelos crespos. A
trança nagô era uma arte africana de tranças junto ao
couro cabeludo, que podiam ser feitas até a metade da
cabeça ou nela inteira, enfeitadas com diversos arranjos
em cabelo natural ou aplicação de outros fios, linhas,
contas e outros adornos. Atualmente optei, por uma
questão de estética e de fator analisador das questões
raciais, pelo cabelo tipo dred. Tenho curtido o meu
cabelo crespo de forma mais prazerosa depois que
Para além do lidar com os cabelos uma afirmação das diferenças etnicorraciais.
http://www.belezapura.org.br/http://www.belezapura.org.br/
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35
passei a assumir o dred e outros estilos de penteado
afro.
Evitando generalizar, percebi que a minha opção pelo
dred nem sempre foi bem-aceita pelas pessoas com as
quais convivo. Esse tipo de estética capilar não tem
aprovação nem na minha família. Mas, apesar da não
aceitação, procurei fazer uso desse tipo de cabelo por
uma posição política, ao analisar e problematizar as
questões raciais capilares que surgiram no meu
cotidiano. Na UMEI Normília realizávamos as oficinas de
tranças com as mães para que elas trançassem as
cabeças de suas filhas. Mesmo com resistências por
parte de algumas mães, a atividade foi considerada
positiva, porque possibilitou colocar em análises, com as
mães e as professoraspesquisadoras, o ressignificado
do cabelo crespo, que não é nem ―bom‖ e nem ―ruim‖, é
um tipo capilar diferente.
Assim sendo, durante as oficinas de tranças, foi possível
colocar para as professoraspesquisadoras e as mães,
de um lado, o desafio da aceitação de novos arranjos
capilares que contribuíssem na desconstrução das
práticas massificadoras de um único padrão estético; do
outro, a superação do universo linguístico depreciativo
de ―cabelo ruim‖, ―cabelo de bombril‖ e ―cabelo duro de
pixaim‖. Esse foi o desafio colocado, subverterem a
―ordem estética‖ por outras maneiras mais astuciosas de
valorização das diferenças estéticas que se
apresentavam no cotidiano da escola. São muitos os
projetos de valorização e reconhecimento de outras
culturas que a escola poderia inventar no sentido de
potencializar relações interétnicas positivas.
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36
A preocupação maior esteve com a cilada advinda da
cultura da naturalização e da folclorização. Por isso
questionava os projetos que, às vezes, apresentavam-
se, no caso dos personagens negros, como exóticos,
grotescos, episódicos e estereotipados. Existiria outra
forma de brincar com o arremesso de bolas, nas festas
juninas, que não fosse à boca de ―uma negra‖
chamada de ―maluca‖ (Foto 3). Nem mesmo na cara de
um palhaço? A análise desta foto conduziu-me à
reflexão sobre os estragos que o estereótipo poderia
causar ao processo de subjetividade positiva de uma
criança pequena, negra ou não negra.
Essas práticas pedagógicas, esses ―arranjos‖, muitas
vezes eram folclorizados e foram problematizados com
as professoraspesquisadoras, objetivando identificar
indícios de racismo.
Foto3 - Caricatura de uma nega maluca Fonte: Disponível em: < http:// www. com.br/search? bocada negamaluca>.
Acesso em: 20 jul. 2008.
http://www..com.br/search
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37
Para Santos (2006), a discriminação e o preconceito,
quando ocorrem por causa do fenótipo capilar, podem
provocar na pessoa negra sentimentos de negação de
seu pertencimento racial e também violência no jogo de
relações interétnicas. O cabelo, a cor da pele e a cor dos
olhos são traços fenótipos em que geneticamente temos
a presença da melanina. No caso do cabelo, ela é
determinante para torná-los crespos ou lisos.
2.1.1 A arte de trançar cabelos crespos e lisos
As diferentes estéticas capilares Fonte: Disponível em: < www.beleza.pura.ogr.br.>. Acesso em: 20 jul. 2008.
Foto 5 - A arte de trançar dred em cabelos lisos com adereços de lã e linha Fonte: Disponível em: < beleza.pura.ogr.br. >. Acesso em: 20 jul. 2008.
[...] a percepção negativa desse atributo físico, nas relações entre alunos, evidencia a concepção de inferioridade do negro, característica para além da cor. A cor deixa de ser, num primeiro plano, a marca mais funcional. Ou seja, o negro é estigmatizado no jogo das experiências sem, no entanto, que. se refira diretamente à cor/raça. O cabelo passa a ser utilizado de forma simétrica à cor, como um signo para a ação de discriminação. Por isso, como veículo de preconceito, ele se torna mais funcional que propriamente a cor da pele, pois se referir ao cabelo parece estar constituído no imaginário do preconceituoso que não caracteriza uma forma aberta de racismo (SANTOS 2006, p. 104).
http://www.beleza.pura.ogr.br./
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Os arranjos capilares do tipo dreadlock (Fotos 4 e 5)
foram bastante conhecidos na cultura rastafari. O
dreadlock foi originário da África Oriental. Dread fora
uma arte de lidar com os cabelos assumidos pelos/as
seguidores/as da filosofia rastafári, cuja tradição
religiosa pregava o não corte de cabelos, bem como não
penteá-los. Dizia o dito capilar: ―cabelo é a moldura do
rosto‖. Ele é singular para cada fenótipo de pessoa não
importando sua textura, se crespo ou liso. No entanto,
como aceitar um cabelo estigmatizado de ruim, bombril,
pico, piaçava, pixaim e duro? Essas adjetivações foram
reafirmadas no fragmento da música ―Chicletes com
Banana―: ―[...] Meu cabelo duro é assim. [...] Meu cabelo
duro é assim/Cabelo duro de pixaim [...]‖.
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2.1. 2 O pente de ferro: um instrumento de tortura
para produzir o referencial capilar não negro
Foto 6 – Pente de ferro usado para alisar cabelos crespos após ser esquentado na brasa ou fogo Fonte: Disponível em:< www.belezapura.org >. Acesso em: 20 jun. 2008.
Da infância à fase adulta alisava o cabelo com o pente
de ferro quente tipo da (Foto 6), esquentando-o no
fogão à lenha. Esse pente foi para mim um verdadeiro
instrumento de tortura que utilizava para alisar o meu
cabelo ―duro de pixaim‖. Foi uma ferramenta do mundo
capilar mais antiga e barata usada no alisamento do
cabelo crespo. O pente quente, quando esquentado ao
fogo, virava brasa. Muitas vezes, em contato com a
vaselina, banha ou óleo que se passava nos cabelos
para o alisamento, acabava queimando os fios e o couro
cabeludo. Era realmente um sofrimento em função da
estética produzida pelo quadro de referência do cabelo
liso.
http://www.belezapura.org/
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O discurso linguístico que sempre ouvia sobre o cabelo
crespo era de estereotipia negativa: cabelo de picumã
(lembrava sujeira), cabelo rebelde (simbolizava algo fora
da norma, violento) e cabelo de pico (sem forma,
armado e duro). Essas e outras expressões linguísticas
depreciativas sobre quaisquer referências fenotípicas
poderiam nos afetar provocando constrangimento,
tristeza, silêncio e reação de violência. O desejo de ser
belo foi buscado no quadro de referência identitário
branco/a, tendo como bom o cabelo liso e como ruim o
cabelo crespo. Nesse contexto, foi constrangedor e difícil
lidar com o meu mundo capilar. Para Gomes (2008), a
escola precisa dialogar com outros temas culturais de
grande valia para os/as alunos/as, a exemplo do corpo,
do cabelo e da sexualidade, expressões estéticas
importantes para o processo de subjetivação positiva.
Recentemente, perguntou-me uma professora: ―Como
deveria se referir ao cabelo de pessoa negra?‖.
Perguntava ela com a voz embargada, com medo de ser
repreendida. Por que o diálogo não fluía quando
tínhamos que tratar de alguns aspectos do corpo negro,
a exemplo do cabelo crespo?
Além do pente quente, outros produtos químicos e
instrumentos, como chapinhas, escovas progressivas e
inteligentes, invadem os salões dos simples aos
sofisticados. A ―mulherada‖, pelo cabelo, acaba
gastando ―tubos de dinheiro‖, mesmo sem poder. No
entanto, no caso do cabelo crespo, e até do liso, nem
sempre eles resistem aos tempos chuvosos.
Convivia com muitos alisamentos feitos com pente de
ferro, pastas de alisar, henés e chapinhas para o cabelo
[...] várias depoentes, ao se reportarem ao corpo, relembraram momentos significativos da sua história de vida dando um destaque especial à trajetória escolar. Para essas pessoas, na suas idades jovens e adultas, na faixa dos 20 aos 60 anos, a experiência com o corpo negro e o cabelo crespo não se reduz ao espaço da família, das amizades, da militância ou dos relacionamentos afetivos. A trajetória escolar aparece em todos os depoimentos como um importante momento no processo de construção da identidade negra e, lamentavelmente, reforçando estereótipos e representações negativas sobre esse segmento étnico/racial e o seu padrão estético. O corpo surge, então, nesse contexto, como suporte da identidade negra e o cabelo crespo como um forte ícone identitário (GOMES, 2008, p. 35).
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encolher na primeira pancada de chuva. Situação essa
expressa na letra da música de Mc Frank – ―Cabelo
Encolheu‖.
A expressão ―lida‖, segundo Gomes (2008), podia
significar trabalho forçado que nos remeteu ao sistema
escravista. Nesse sentido, esses estigmas marcaram,
fortemente, a maneira como eu lidava com o meu
cabelo, não o aceitando. Lembro-me de que utilizava
quaisquer produtos cosméticos que surgissem no
comércio e que prometessem um alisamento quase
perfeito, de efeito milagroso, para ter um cabelo
socialmente aceito pelos padrões estabelecidos.
Durante a entrevista a expressão ‗lidar com o cabelo‘ tornou-se emblemática. A‘ lida‘ pode ser vista de várias perspectivas. Apesar de essa expressão adquirir diferentes significados para distintas categorias sociais, no contexto das relações sociais capitalistas, ela é associada ao trabalho. É o trabalho visto como fardo e exploração. E não como realização pessoal. Para o negro, a idéia de labuta, sofrimento e fadiga fazem parte de uma história ancestral. Remete à exploração, e à escravidão (GOMES, 2008, p. 27).
Mc Frank - Cabelo Encolheu Há vou mandar um papo reto, essa vai para os guerreiros, Que tem uma mulher que vai ao cabeleireiro, gastou trinta reais e sabe o que aconteceu? I choveu! Cabelo encolheu! (todinho) I choveu! Cabelo encolheu! Vou mandar um papo reto gatinha vê se me escuta! Se você fez escova vê se leva o guarda chuva! Ô não tô de caô, gata não tô de gracinha Se você fez implante, alisante ou chapinha: e no final de tudo sabe o que aconteceu? I choveu! Cabelo encolheu ! [...] (Disponível em:. Acesso em: 13 maio 2008).
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Também em Gomes (2008), o fenótipo capilar, ao
mesmo tempo em que é visto como padrão de beleza,
paradoxalmente, para algumas mulheres, apresenta-se
como inferioridade racial, tendo como referência a moda
imposta por uma dada etnia. Entre tensões,
constrangimentos e desconfortos na lida com o cabelo, a
mulher negra pode vivenciar relações sociais autoritárias
e de submissão.
2.2 O ESTIGMA DA COR VERMELHA
Outro aspecto da estética corporal vivenciado durante a
minha infância diz respeito à cor vermelha. Mamãe não
permitia que seus filhos/as usassem roupas dessa cor,
porque, no pensamento social capitalista clerical, em
nível simbólico, o vermelho estava associado ao diabo,
ao capeta, às coisas ditas malignas, quase sempre
relacionadas com religiões de matriz africana. A Foto 7
retrata um orixá do candomblé, cuja cor preferida é a
vermelha.
Foto 7 - Xangó é considerado o Orixá Fonte: Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2007).
O cabelo e a trajetória de vida As experiências da mulher em relação ao cabelo começam muito cedo. Mas engana-se quem pensar que tal processo inicia-se com o uso de produtos químicos ou alisamento do cabelo com pente quente ou ferro quente [...]. As tranças são as primeiras técnicas utilizadas [...]. Talvez essa seja um dos motivos pelos quais algumas mulheres prefiram adotar alisamentos e alongamentos na
atualidade (GOMES 2008. p. 65).
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Nessas religiões, Shangô,9 também chamado de Xangô,
foi o orixá mais cultuado no candomblé, filho de
Yemanjá, e tendo três divindades como mulheres: Oyá,
Oxum e Obá. A cor predominante do orixá, tanto no
candomblé como na umbanda, era a vermelha. A
origem da umbanda remonta ao final do século XIX.
Apesar de ser de tradição africana angolana, foi
considerada por seus/as seguidores/as como uma
religião afro-brasileira.
Foram vários os significados dados à cor vermelha no
mundo espiritual: fogo, poder e realeza. No entanto, a
cor vermelha, no mundo eclesiástico, nos séculos
passados, era associada ao mau, cujo objetivo fora
combater as religiões de matriz africana, para que elas
não viessem a atrapalhar o projeto político da Igreja
Católica de aumentar o número de fiéis durante o
processo civilizatório brasileiro. Por isso, a associação
dessa cor ao diabo e ao mal, mas, paradoxalmente, o
vermelho é a cor do amor e da paixão. Canta o
cancioneiro Alceu Valença: ―Ó rosa vermelha do meu
bem querer / Beija-flor sou tua rosa / hei de amar-te até
morrer...‖. As histórias das religiões africanas e afro-
brasileiras foram histórias de lutas e resistências do
povo negro.
9 Shangô, fragmento do texto retirado da Revista ―Orixás o Segredo da Vida‖, nº 1).
Xangó é considerado o Orixá mais cultuado e respeitado no Brasil. Isso porque foi ele o primeiro deus iorubano, por assim dizer, que pisou em terras brasileiras. É, portanto, o principal tronco dos candomblés do Brasil. [...] pelo termo Oba, que significa rei. E é o Orixá que reina em Oyó, na Nigéria, antiga capital política daquele país. Xangô é a ideologia, a decisão, à vontade, a iniciativa. Xangô é a rigidez, a organização, o trabalho, a discussão pela melhora, o progresso cultural e social, a voz do povo, o levante, a vontade de vencer. Xangô também é representado pela pedreira. É a pedra – seja ela qual for – a rocha, o fogo interior da terra [...]. É o justiceiro da natureza, aquele que manda castigar e que também castiga. (Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2007).
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Foram muitas as perseguições dos poderes instituídos,
por meio de seus aparelhos ideológicos e repressivos:
polícia, escola, igreja, família, entre muitos outros
utilizados para exterminar uma cultura milenar, mas,
como diz Certeau (2002), os/as seguidores/as da religião
de matriz africana, com sabedoria, fazendo uso de
bricolagem, utilizaram os próprios símbolos da Igreja
Católica para permanecer cultuando os seus orixás. A
Foto 8, representada pelo orixá Oxum, contribuiu para a
nossa reflexão sobre bricolagem.
Foto 8 – Oxum na umbanda. No ―sincretismo‖ é representada por várias Nossa Senhora Fonte: Disponível em: < ofodelegum com >. Acesso em: 10 set. 2007
No mesmo artigo, encontrei o significado de candomblé.
Foi a religião do patrimônio cultural dos/as africanos/as
que chegou ao Brasil vinda da antiga cidade de Ifé,
atual Nigéria. Os/as seguidores/as encontraram, em
terras brasileiras, todo tipo de opressão e discriminação
de um racismo irracional patrocinado pelos aparelhos
estatais. O ritual do candomblé conservou, até hoje, a
memória do universo linguístico de sua africanidade e
Supõe que à maneira dos povos indígenas os usuários ‗façam uma bricolagem‘ com e na economia cultural dominante, usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras. Desta atividade de formigas é mister descobrir os procedimentos, as bases, os efeitos, as possibilidades (CERTEAU, 2002, p. 40),
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cosmovisão , universo este desqualificado em nome de
uma unidade linguística portuguesa. Problematizei sobre
a importância dos idiomas africanos que também, a
exemplo de outros, deveriam estar presentes na
organização curricular, como forma de reconhecimento e
valorização da cultura africana.
A imposição de uma única fé, um único Deus – o Deus
judaíco-cristão – de concepção eurocêntrica, impunha
aos/às seguidores/as uma única forma de estética a ser
seguida pelas famílias negras e não negras. Daí a
negação da cor vermelha por parecer associada aos
significados e aos valores não cristãos. Hoje, essas
pregações e doutrinas cristãs foram/são analisadas e
problemtizadas no meu cotidiano pessoal e profissional.
Uso e abuso da cor vermelha, sem preconceitos ou
discriminações. Busquei ressignificar as manifestações
culturais da população negra, o que me possibilitou
construir outras práticas de pertencimento à
ancestralidade africana sem, contudo, desqualificar as
demais manifestações culturais e religiosas das outras
etnias.
Essa forma de viver esteve/está presente nas relações
interétnicas, materializando as práticas racistas que
foram/são tentativas de desqualificação de alguns
grupos de humano, com a intenção de
despotencialização da vida, para impedi-la de expressar-
se em toda a sua dimensão, sobretudo na cultural e
religiosa e, assim, singularizar-se, ser a gente mesma,
sem estar vinculada à imposição de um único quadro de
referência cultural/religioso.
As reflexões feitas sobre as questões de ordem
fenotípica e religiosa colocaram para nós,
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educadores/as, um grande desafio na desconstrução
desses valores, costumes, crenças, todos maculados de
falsa moral, ―falsa medida de homem e de mulher‖,
porque ao poder hegemônico se conferiu toda
imposição, de forma barulhenta e expansionista, para
que seus produtos pudessem ser consumidos,
atendendo aos seus próprios interesses. O grande
desafio foi saber fazer uso dessa engenharia capitalista
de forma tática e estratégica, de maneiras astuciosas,
silenciosas e negociadas, para assim burlar os objetivos
dos produtores, transformando-os nos interesses dos
próprios consumidores/as. Como a escola e a família
poderão desmitificar essas práticas? Como fazer as
análises dos materiais didáticos, no sentido de subverter
os conteúdos pejorativos e desqualificantes das culturas
estéticas e religiosas que não são socialmente aceitas?
É importante ressaltar o papel das Universidades
Federais no que diz respeito ao cumprimento do que
preconiza o art. 26 A da Lei de Diretrizes e Bases-LDB,
nº 9.394/96, que tornou obrigatória em todos os
currículos dos níveis de ensino, a introdução do estudo
da África, da Cultura Africana e Afro-Brasileira. Certa
ocasião, quando lecionava no curso formação para
professores, ministrado pelo NEAB,10 com o tema ―O
currículo e a temática etnicorracial‖, conteúdo
assegurado na Lei nº 10.639/03 e nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Etnicorraciais, apresentei aos/as alunos/as algumas
imagens dos orixás e fiz a seguinte pergunta: você
levaria esses orixás, a exemplo da Foto 9, para suas
aulas como conteúdo cultural/religioso? A
ressignificação desses símbolos poderia contribuir para
10
NEAB––Núcleo dos Estudos Afro-brasileiros da UFES.
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a desmistificação da matriz religiosa eurocêntrica
judaíco-cristã? As reações foram, em sua grande
maioria, não. Por medo, descrença, desinformação,
negação e rejeição.
Foto 9- Yemanjá é um orixá africano, cujo nome deriva do Ioruba. Ela é considerada a rainha do mar Fonte: Disponível em: . Acesso em: 24 dez. 2008.
A minoria que respondeu sim complementou: ―Meu filho
é pai de santo‖. ―Sim, porque pode contribuir na
desconstrução desses valores negativos e na
construção de outros que possam potencializar as
diferentes religiões‖. Problematizando, perguntei: por
que as imagens de Jesus e dos/as santos/as do mundo
católico têm acesso livre nos espaços públicos? A
Constituição Federal preconiza que o Estado é laico. Por
que, então, a preferência somente pelas religiões de
matriz judaico-cristã? Toda trajetória da história de vida
de ―muitas Nelmas‖ foi permeada pelas culturas da
naturalização e folclorização que, muitas vezes,
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conduziram-me às práticas da banalização,
desqualificação e estigmatização das outras culturas.
Considerando a complexidade dos contextos analisados
até aqui decidi buscar outros novos conhecimentos
teóricos para enfrentar as demandas desse mundo
globalizado. No ano de 2005, ingressei no Curso de
Doutorado na Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), tendo como objeto de pesquisa as questões
vinculadas às diferenças etnicorraciais e à luta de
enfretamento ao racismo estrutural e institucional na
educação brasileira. Ao iniciar o curso de doutorado,
matriculei-me na disciplina Estágio de Pesquisa I e II
tendo como orientadora a professora Maria Elizabeth
Barros de Barros.
Nesses dois períodos de estágios, participei do Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas
(NEPESP), compondo um grupo multiiprofissional que
tinha como objetivo a realização de uma pesquisa sobre
―Trabalho e Saúd