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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO (UFES) PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO (PPGE) NELMA GOMES MONTEIRO AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS COMO PROCESSO DE ENUNCIAÇÃO PARA O ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA EDUCAÇÃO INFANTIL VITÓRIA-ES 2010 NELMA GOMES MONTEIRO

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO (UFES)

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO (PPGE)

    NELMA GOMES MONTEIRO

    AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS COMO PROCESSO

    DE ENUNCIAÇÃO PARA O ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA

    EDUCAÇÃO INFANTIL

    VITÓRIA-ES 2010

    NELMA GOMES MONTEIRO

  • AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS COMO PROCESSO

    DE ENUNCIAÇÃO PARA O ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA

    EDUCAÇÃO INFANTIL

    Texto apresentado como requisito para a obtenção do título de Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na área de concentração História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais Orientadora: Profª Drª Maria Elizabeth Barros de Barros.

    VITÓRIA-ES

    2010

    NELMA GOMES MONTEIRO

  • AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS COMO PROCESSO DE

    ENUNCIAÇÃO PARA O ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA EDUCAÇÃO

    INFANTIL

    Texto apresentado como requisito para a obtenção do título de Doutora em

    Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na área de

    concentração de História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais.

    Aprovada em 8 de julho de 2010.

    BANCA EXAMINADORA:

    __________________________________________________

    Profª. Drª. Maria Elizabeth Barros de Barros

    Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

    Orientadora

    ___________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço

    Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

    ___________________________________________________

    Profª. Drª. Maria Regina Simões

    Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

    ___________________________________________________

    Prof. Dr. Ahyas Siss

    Universidade Federal Fluminense (UFF)

    ___________________________________________________

    Prof. Dr. Amauri Mendes Pereira

    Universidade Estadual do Rio de Janeiro

  • Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

    Monteiro, Nelma Gomes, 1945- M775a Afirmar as diferenças etnicorraciais como processo de

    enunciação para o enfrentamento ao racismo na educação infantil / Nelma Gomes Monteiro. – 2010.

    213 f. : il. Orientadora: Maria Elizabeth Barros de Barros. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito

    Santo, Centro de Educação. 1. Racismo. 2. Educação de crianças. 3. Currículos. 4.

    Cultura. 5. Igualdade. 6. Cotidiano escolar. I. Barros, Maria Elizabeth Barros de, 1951-. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

    CDU: 37

  • À minha mãe, mulher guerreira, exemplo de

    dedicação e doação. Tinha sabedoria ao lidar

    com a vida. A você, dona Isabelê, todo carinho.

  • AGRADECIMENTOS

    Durante a trajetória que fiz para a produção desta tese de

    doutorado, muitas foram as ―marcas‖ que afetaram as

    subjetividades de ―muitas Nelmas‖, isso porque foram

    marcas deixadas pelas pessoas que tiveram não só

    preocupações e ocupações comigo, mas também carinho

    e solidariedade a partir destas falas:

    ―Você é capaz de vencer mais esta‖ (em memória,

    minha mãe, Isabel Gomes Monteiro).

    ―Mãe, e aí, terminou? Tá tenso. Parece que esse

    trabalho é seu namorado‖ (meu filho Nelson

    Manoel).

    ―Mãe, você acha que vai terminar esse doutorado?‖

    (meu filho Carlos Nelson).

    O diálogo feito a partir do referencial teórico e do

    currículo vivido e comprometido dos/as

    orientadores/as e a palavra de incentivo: ―Vamos

    terminar logo com isso‖ (professores Maria

    Elizabeth (Bete) e Carlos Eduardo (Ferraço)).

    ―Você tem que terminar essa tese. Olha o seu

    compromisso político com a implementação das

    políticas de ação afirmativa‖ (Vozes uníssonas

    dos/as amigos/as da educação e da companheirada

    dos Movimentos Negros Capixabas).

    Às professoraspesquisadoras que aceitaram o

    desafio de problematizar seus saberesfazeres, os

    quais foram/são tecidos nas redes cotidianas da

    UMEI Normília dos Santos.

    Muito obrigada.

    Axé.

  • ―Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor

    de sua pele, por sua origem ou ainda por sua

    religião. Para odiar, as pessoas precisam

    aprender, e se podem aprender a odiar, podem

    ser ensinadas a amar."

    (Nelson Mandela)

    ―Pelo direito de sermos iguais quando a

    diferença nos inferioriza e pelo direito de

    sermos diferentes quando a igualdade nos

    descaracteriza.‖

    (Boaventura de Souza Santos)

  • EM POUCAS PALAVRAS MUITAS TRAJETÓRIAS

    Esta pesquisa de doutorado, ancorada em diferentes concepções históricas,

    filosóficas, sociológicas, psicológicas e antropológicas, busca construir um

    arcabouço teórico que contribua na elaboração desta produção textual. Foram

    abordagens consubstanciadas nos estudos críticos e pós-críticos que corroboraram

    o acúmulo de conhecimento e aprofundamento das problemáticas que

    engendravam o campo social e político de relações de poder quando se

    problematizou o racismo na educação. A pesquisa aconteceu no cotidiano da UMEI

    Normília dos Santos – unidade municipal da educação infantil – tendo como objeto

    de estudo o racismo e a afirmação das diferenças etnicorraciais como processo de

    enunciação de outras/novas práticas pedagógicas. Práticas essas não somente

    pautadas pelo currículo prescrito, mas também pelo currículo realizado, no qual foi

    possível perceber, por meio dos fatos, das falas e dos relatos das

    professoraspesquisadoras sujeitrospraticantes de seus saberesfazeres, os indícios

    de superação da cultura da naturalização, da homogeneização e da estigmação, por

    outras posturas pedagógicas mais críticas e propositivas. Para a análise e

    problematização das práticas pedagógicas racistas, utilizou-se a ferramenta da

    pesquisa com o cotidiano, por ser o cotidiano o lócus onde o processo vital

    aconteceu e de fato se realizou, possibilitando a desobstrução das relações inter-

    raciais que foram obstacularizadas pela cultura da discriminação, do preconceito e

    do estereótipo e podem ter impedido a vida de fluir.

    Palavras-chave: Racismo. Diferença. Diversidade. Currículo prescrito. Currículo

    vivido. Cotidiano.

  • WITH FEW WORDS, MANY TRAJECTORIES

    This doctorate research, that is underlain on different historic, philosophical,

    phsychological and sociological conceptions, intends to construct notional structure

    to contribute in text elaboration. The discussion was underlain in critical and after-

    critical works that contributed to accumulate knowledge and to deepen questions that

    engendered social and political power relationships when the racism in education

    was questioned. This research took place in routine of Normilia dos Santos School

    (UMEI) – a municipal unit of childlike education. The object of the research was the

    racism and the assertion of the ethnic racial differences as an exposition process of

    new other pedagogic practices, that aren‘t merely noticed in the explicit curriculum,

    but also in the accomplished curriculum. In observing facts, in hearing conversations

    and accounts and in reading records, it was possible to perceive that these subjects

    are leaving their belief in homogeneity and stigmatization of people as a natural

    procedure; instead of doing that, they are getting a more critical and propositional

    pedagogic vision follow by new attitudes. Intending to analyze and to question the

    pedagogic racist practices, it was observed the school routine, considered as site

    where the vital process really takes place, enabling the interracial relationships, that

    had been obstructed by the culture of discrimination, of prejudice and of stereotype;

    certainly this culture obstructed the life in streaming.

    Key-words: Racism. Difference. Diversity. Explicit curriculum. Accomplished curriculum. Routine.

  • SUMÁRIO

    1 VENCENDO A INÉRCIA, ESCREVENDO---------------------------------------------------12

    2 A TRAJETÓRIA DA MULHER NEGRA E OS PROCESSOS SOCIAS E

    POLITICOS DE “MUITAS NELMAS‖------------------------------------------------------- 20

    2.1 CABELO CRESPO: UMA TRAJETÓRIA DE MUITOS FIOS E DESAFIOS----- 33

    2.1.1 A arte de trançar cabelos crespos e lisos ---------------------------------------- 37

    2.1.2 O pente de ferro: um instrumento de tortura para conseguir o

    referencial capilar não negro-----------------------------------------------------------39

    2.3 O ESTIGMA DA COR VERMELHA----------------------------------------------------------42

    2.4 OS EQUÍVOCOS DA NATURALIZAÇÃO E DA FOLCLORIZAÇÃO----------------52

    3 A LUTA, A GARRA E A SAGA DOS MOVIMENTOS NEGROS----------------------61

    3.1 TRAJETÓRIA NEGRA CAPIXABA E OS MOVIMENTOS DE

    RESISTÊNCIA---------------------------------------------------------------------------------- 69

    3. 1.1 A cor etnicorracial capixaba-------------------------------------------------------------81

    3.2 A TRAJETÓRIA DO MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL-----------------------------83

    3.2.2 Um marco político do 20 de novembro: Marcha Zumbi dos Palmares

    contra o racismo, pela cidadania e pela vida-------------------------------------- 89

    4 O ENFRETAMENTO AO RACISMO NA EDUCAÇÃO EXIGE POSTURAS

    POLÍTICAS COMPROMETIDAS COM A VIDA-------------------------------------------97

    4.1 RACIOLOGIA: A TEORIA DA HIERARQUIZAÇÃO DO HUMANO---------------- 99

    4.2 RACISMO: UMA CONSTRUÇÃO POLÍTICO-CULTURAL--------------------------107

    4.2.1 O racismo “ à moda brasileira”: um fundamento para a mestiçagem---117

    4.2.2 Etnia: conjunto de fatores culturais que asseguram o

  • pertencimento a uma dada comunidade-------------------------------------------121

    4.2.3 Preconceito: uma forma de materialização do racismo----------------------122

    4.2.4 Discriminação racial: a prática de ação ou omissão com objetivos

    da violação de direitos-------------------------------------------------------------------125

    4.2.5 Estereótipo: uma estratégia que alimenta o preconceito--------------------128

    5 AS POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE ETNICORRACIAL UM

    INSTRUMENTO DE EQUALIZAÇÃO SOCIAL-------------------------------------------130

    5.1 COTAS: UM REMÉDIO VELHO PARA A CONQUISTA DA IGUALAÇÃO

    SUBSTANTIVA---------------------------------------------------------------------------------135

    6 AFIRMAR NAS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS PARA DEIXAR FLUIR A

    VIDA-------------------------------------------------------------------------------------------------145

    7 NO COTIDIANO ESCOLAR, AFIRMAR AS DIFERENÇAS ETNICORRACIAIS

    COMO OUTRAS POSSIBILIDAES DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO NA

    EDUCAÇÃO---------------------------------------------------------------------------------------160

    7.1 O LUGAR DA PESQUISA COM O COTIDIANO---------------------------------------160

    8 EM ABERTO PORQUE A VIDA PULSA... ---------------------------------------------- 189

    9 REFERÊNCIAS----------------------------------------------------------------------------------192

  • 12

    1 VENCENDO A INÉRCIA, ESCREVENDO

    São tão óbvios os avanços que estamos fazendo como Nação e tão claros os desafios que nos esperam, que mesmo vindo de diferentes origens, mesmo representando [grupos diferentes], mesmo interpretando de forma diferente as aspirações [...] só podemos reconhecer que para que cada um vença, todos têm de vencer. Somos um povo com um destino.

    (NELSON MANDELA)

    Esta retomada foi uma tentativa para vencer a

    resistência de não querer reiniciar a escrita de mais uma

    etapa da pesquisa do doutorado, porém, vencendo a

    inércia, comecei a caminhar, pois o caminho se faz

    caminhando e escrever se faz escrevendo. Para esta

    produção, considerei as duas sistematizações

    elaboradas para a primeira e a segunda qualificação,

    dialogando com os/as teóricos/as alinhados/as à

    pedagogia da diferença, à pedagogia crítica, pós-crítica

    e à pesquisa com o cotidiano. Eles/as, em suas

    produções, corroboraram outras/novas reflexões,

    indicaram outras possibilidades de construção de

    conhecimento científico que não foram pautadas

    somente nas concepções da macronarrativa, mas

    indicavam outras maneiras na arte de fazer da

    micronarrativa.

    O título ―Afirmar as diferenças etnicorraciais como

    processo de enunciação para o enfrentamento ao

    racismo na educação infantil‖ atribuído a esta tese de

    doutorado visou a aprofundar a noção de diferença, em

    contraposição à noção de diversidade.

  • 13

    Objetivando enfrentar essa questão polêmica, busquei

    fundamentação na entrevista que Homi Bhabha

    concedeu a Jonathan Ruherford (1990), com o título

    ―Terceiro Espaço‖. Ele enfatizava que o multiculturalismo

    liberal, fundamentado no relativismo filosófico, tornou

    consensual a concepção da diversidade cultural por

    conceber as culturas como diversas. A diversidade,

    então, hospedaria a diferença cultural, limitando as

    demais culturas às ―normatizações‖ e padronizações da

    cultura do grupo hegemônico. Esse pensamento liberal,

    ao conceber a diversidade na compreensão de culturas

    diversas, teria como finalidade política a pasteurização e

    homogeneização das culturas ―ditas‖ periféricas e, ainda,

    procuraria designá-las como ―culturas boas ou ruins‖ e,

    de outra forma, ―cultura superior/erudita‖ e

    ―inferior/popular‖, sustentando a posição bipolar da teoria

    moderna do conhecimento.

    Com essa compreensão, optei pelas análises de

    teóricos/as que, ao desmistificarem a lógica bipolar do

    conhecimento científico, têm defendido as concepções

    pautadas nas diferenças culturais por ampliarem e

    abarcarem outras dimensões do conhecimento e novas

    possibilidades de pesquisas que a visão bipolar limitava.

    As análises consubstanciadas nas micronarrativas

    corroboraram as fundamentações teóricas e as

    problematizações1 que foram feitas sobre o racismo na

    educação. Justifiquei essa escolha teórica, porque as

    concepções do relativismo filosófico apoiadas na visão

    da macronarrativa constituíram condições de ordem

    universalista que incentivaram as sociedades pluralistas

    e democráticas a adotar a diversidade cultural. Na

    1 Problematizações – no sentido de superar as lógicas das explicações, das respostas prontas e

    bipolares.

    A tentativa de pensar a diferença cultural como algo oposto à diversidade provém da compreensão de que através da própria tradição liberal –particularmente no relativismo filosófico e algumas formas de antropologia- a idéia de que as culturas são diversas, e de que em certo sentido a diversidade de culturas é uma coisa boa e positiva que deve ser incentivada, já é conhecida há muito tempo. É um lugar–comum das sociedades pluralistas e democráticas dizerem que elas podem incentivar e acomodar a diversidade cultural (RUHERFORD, 1990, p. 2).

  • 14

    dimensão da diversidade, a quem caberia a definição de

    ―cultura e de não cultura‖? De ―cultura popular e cultura

    marginal?‖

    Com esse entendimento, continuei o diálogo com as

    professoraspesquisadoras que, no cotidiano escolar,

    podiam estar tecendo redes cotidianas de

    problematizações que servissem de âncoras à

    desconstrução das práticas de preconceitos e

    discriminações nos espaçostempos2 da educação

    infantil.

    Os dados da Fundação Instituto de Pesquisas

    Econômicas (FIPE) solicitados pelo Ministério da

    Educação (MEC) e analisados por Glória Reis (2009), no

    Jornal Recomeço MG, apontaram a existência do

    racismo no cotidiano escolar. Indicaram práticas de

    discriminação e preconceitos com o segmento negro nas

    escolas. A legislação sobre a temática racial é robusta e

    consistente. Se fosse cumprida, poderia contribuir para a

    diminuição dessa grave e perversa situação social, no

    entanto, é preciso muita disposição e compromisso

    político para o enfretamento dessa dura realidade social.

    A Constituição Federal de 1988 assegurou que a

    educação é um direito do/a cidadão/ã. Como garantir

    esse preceito para termos mais negros/as nas

    universidades? As análises dos dados da Pesquisa

    Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2007)

    indicaram que, entre as pessoas com 25 anos ou mais

    que concluíram o ensino superior no Brasil, há cinco

    vezes mais brancos que pretos e pardos.

    2 Espaçostempos – para Ferraço (2005, p. 15) ―[...] é uma forma estética da escrita que aprendi

    com Nilda Alves na tentativa de, ao unir palavras, inventar outras tantas‖.

    Pesquisa/MEC mostra que Escola educa para discriminação

    [...] Além de alimentar o preconceito – uma visão negativa de negros – os entrevistados admitiram evitar contato com as vítimas. Os negros – bem como os demais segmentos discriminados - são excluídos em brincadeiras, no recreio ou até em trabalhos na sala de aula e, por isso, a socialização entre todos é prejudicada [...]. Uma face assustadora da pesquisa revela que 19% dos entrevistados responderam já terem visto algum aluno negro sendo humilhado ou agredido fisicamente simplesmente em função da cor da pele. Já 18,2% responderam o mesmo em relação aos estudantes pobres e 17,4%, aos homossexuais (REIS, 2009. (Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2009).

    http://portalamazoniateste.tempsite.ws/sites/amazonsateducacao/noticia%3e.http://portalamazoniateste.tempsite.ws/sites/amazonsateducacao/noticia%3e.http://portalamazoniateste.tempsite.ws/sites/amazonsateducacao/noticia%3e.http://portalamazoniateste.tempsite.ws/sites/amazonsateducacao/noticia%3e.

  • 15

    Há práticas racistas no interior da escola, afirmaram os

    analistas. Para a maioria dos/as entrevistados/as

    (83,8%), as práticas preconceituosas e de discriminação

    no espaço escolar eram praticadas entre os próprios

    alunos. Dos/as pesquisados/as, 99,3%, entre pais,

    alunos/as e funcionários/as das escolas, afirmaram ter

    sofrido algum tipo de preconceito. As escolas também

    indicaram que as práticas racistas concorreram para o

    baixo desempenho dos/as alunos/as. A pesquisa

    apontou que a família também contribuiu para a prática

    do racismo. Os resultados desta pesquisa foram

    significativos e conduziram-me às seguintes indagações:

    como as professoraspesquisadoras no seu cotidiano

    poderiam problematizar as práticas preconceituosas e

    discriminatórias? Elas reconheceram-nas como

    obstáculos aos processos de diferenciação das

    diferentes culturas nas redes cotidianas? Ou as

    naturalizaram dificultando o enfrentamento ao racismo

    no cotidiano da educação infantil? Elas perceberam que

    tais práticas poderiam acarretar prejuízos aos processos

    de ensinagemaprendizagem?

    Na estruturação desta tese de doutorado, procurei

    enredar essa produção textual com os fios da trajetória

    de vida da pesquisadora, mulher negra, com os fios das

    histórias de vida das professoras e crianças negras e

    não negras e de seus familiares que conviveram com as

    práticas racistas no espaço escolar. Esse conjunto de

    fios das histórias de vidas entrelaçou-se e enredou-se

    aos fios das diferentes concepções sobre raça, racismo,

    discriminação, preconceito, estereótipos, políticas de

    promoção da igualdade racial, concepções de diferença

    cultural e diversidade cultural e, ainda, entrelaçou-se aos

    fios e os desa(fios) das redes cotidianas que foram

  • 16

    tecidas na pesquisa com o cotidiano escolar. Foram

    fundamentações teóricas e práticas vividas que puderam

    corroborar a produção de conhecimento – ser âncora de

    sustentação ao meu objeto de pesquisa – afirmação das

    diferenças etnicorraciais como processo de enunciação3

    para o enfrentamento ao racismo no cotidiano escolar.

    Nesse cotidiano, percebi indícios4 de tensões, conflitos,

    constrangimentos, silêncios que foram reações próprias

    dos humanos.

    Esse recomeçar foi uma tentativa de revisitar a vasta

    produção teórica que deu suporte a esta pesquisa,

    objetivando a apropriação de novas análises para tecer

    problematizações sobre o que aconteceu/acontece no

    cotidiano escolar, pois considerando o seu caráter

    imprevisível quase sempre me escapava. Entendi o

    sentido de problematizar não como procurar respostas

    prontas e definições absolutas e dogmáticas, mas para

    provocar rupturas nas culturas das explicações, das

    generalizações e das conclusões binárias. Nesse

    sentido, foi preciso adotar uma postura crítica e coletiva

    no enfrentamento das práticas discriminatórias e

    preconceituosas que impediam o fluxo da vida entre os

    humanos de fluir.

    Na problematização dessas práticas, dialoguei com

    Ferraço (2006), não tendo a intenção de buscar

    culpados/as, nem comportamentos, atitudes, valores e

    axiomas morais e moralizantes que poderiam nos

    conduzir à culpabilização. Não busquei, também,

    receitas prontas e padronizadas. Quis, sim, levantar

    3 Conforme Bhabha,(1990, p. 6) [...]enunciação é um processo dialógico que tenta rastear

    deslocamentos e realinhamentos que são resultados de antagonismos e articulações culturais [...]. 4 Para Ginzburg – os indícios, as pistas e os sinais têm que ser considerados na elaboração da

    pesquisa, pois podem levar à criação de novos conceitos.

    Consideramos que qualquer tentativa de explicação de algo, fatalmente, irá reduzir este algo à lógica do raciocínio daquele que explicou. Por isso, buscamos no texto em questão estabelecer diálogos com discursos de autores, trazendo muito mais questões do que respostas, pois entendemos que com dúvidas e incertezas podemos melhor nos aproximar da complexidade da educação e, por efeito, da vida. Nossa intenção foi a de trazer fragmentos das falas desses sujeitos tomadas sempre como problematização e não como definições ou explicações (FERRAÇO, 2006, p.15).

  • 17

    outras questões, inventar possibilidades5 de diálogos,

    visando a potencializar as práticas do currículo

    realizado.6 Dialoguei com o currículo oficial, no intuito de

    abrir brechas e deslocamentos que poderiam burlar o

    que estava prescrito e normatizado.

    Foi com essa complexidade descrita acima que pretendi

    contribuir com a desconstrução desse modo de pensar

    as relações humanas no jogo das hierarquias interaciais

    e, assim, poder afirmar as diferenças etnicorraciais como

    dispositivo de possibilidades de outras maneiras de tecer

    as dimensões relacionais. Foi com esse intuito que fui

    me enredando nas tessituras de redes de

    conhecimentos e de saberesfazeres que foram

    necessárias à produção desta tese de doutoramento.

    Assim sendo, visando à escrituração deste texto, estive

    tecendo as redes de conhecimento a partir dos fios e

    dos desa(fios) a seguir:

    a) a trajetória de vida da mulher negra e os

    processos sociais e políticos de “muitas Nelmas” -

    descrever algumas narrativas da minha trajetória de vida

    e dos diferentes contextos sócio-históricos que

    produziram e marcaram as vivências e experiências de

    uma mulher negra;

    b) a raciologia, uma tentativa de hierarquização do

    humano – analisar os enfoques das teorias da

    biologização e da craniometria que deram sustentação

    aos diferentes tipos de racismo, bem como serviram

    para a construção de práticas que se materializaram

    5 Segundo Ferraço (2005) – considerar a ideia de possibilidades também como potencialidades do

    imprevisível, do não conhecido e controlado. 6 Currículo realizado – para Ferraço (2005) só faz sentido se consideramos as marcas que esses

    sujeitos deixam nessas prescrições, isto é, seus usos, ações, informações, alterações, realizações, negações, desconsiderações, argumentações, obliterações, manipulações.

  • 18

    por meio do preconceito, da discriminação e do

    estereótipo, objetivando a produção do aporte teórico

    que fundamentou os indícios de racismo nas relações

    interétnicas;

    c) as políticas de promoção para a igualdade racial:

    um instrumento de equalização social – analisar

    essas políticas no contexto das reivindicações e

    conquistas dos diferentes movimentos sociais negros.

    Problematizar os significados dessas políticas, no que

    diz respeito à ascensão social do povo negro, ou seja, a

    partir do que está preconizado nos princípios de

    reparação, reconhecimento e valorização. Refletir,

    também, sobre algumas políticas públicas

    implementadas pelos diferentes governos, por meio de

    ações afirmativas, com destaque para a política de

    reserva de vagas na educação (cotas), enfocando os

    diferentes aspectos sociais e raciais que estiveram

    acirrando essas questões polêmicas na sociedade

    contemporânea, evidenciando o racismo latente nas

    entranhas do tecido social;

    d) a pesquisa com o cotidiano da educação infantil

    da Unidade Municipal de Educação Infantil Normília

    dos Santos, a partir dos saberesfazeres das

    professoraspesquisadoras e das crianças, sujeitos

    praticantes da pesquisa, visando a evidenciar

    indícios de negociações, táticas e estratégias nas

    relações pluriétnicas – neste estudo, estive dialogado

    com os/as teóricos/as da pesquisa no/com o cotidiano,

    tendo em vista a análise e problematização dos

    saberesfazeres das professoraspesquisadoras “sujeitos

    praticantes‖ de suas redes cotidianas para levantar

    indícios de práticas racistas que poderiam produzir

  • 19

    tensões, conflitos, silêncios, constrangimento, medos,

    mas, quando problematizadas, poderiam provocar

    processos de invenção e de negociação nas relações

    interétnicas.

    Certeau (2002) nos colocou em frente aos diferentes

    modos de fazer e nos apontou as múltiplas

    possibilidades de invenção cotidiana, pois nem todas as

    pessoas se submeteram às ―normatizações‖

    disciplinadoras do poder hegemônico. Por isso, foi

    preciso acreditar que nem todos/as os/as

    trabalhadores/as da educação foram/são sujeitos

    passivos/as e disciplinados/as às padronizações e às

    prescrições que obstaculizaram as relações pluriétnicas

    entre os humanos.

    [...] se é verdade que toda a parte se estende e se precisa a rede de ‗vigilância‘, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também ‗minúsculos‘ e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim que ‗maneiras de fazer‘ formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou ‗dominados?‘ ), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU (2002, p. 41).

  • 20

    2 A TRAJETÓRIA DA MULHER NEGRA E OS

    PROCESSOS SOCIAS E POLITICOS DE

    “MUITAS NELMAS”

    A trajetória dos processos de produção de

    subjetividades que marcou a vida de ―muitas Nelmas‖

    corroborou em grande parte para a opção do objeto da

    pesquisa que estive construindo. Trajetórias de vida que

    produziram, como afirma Certeau (1994), movimentos

    nos espaçostempos do cotidiano, formados por

    diferentes processos de diferenciações, que foram

    resultantes das relações coletivas vivenciadas ou não na

    casa, escola, rua e em tantos outros lugares. Assim

    sendo, a trajetória foi produção desses agenciamentos

    sociais que traçaram perspectivas, diferentes visões de

    mundo, esperanças e desencantos.

    Dialogando, ainda, com Certeau (2002), busquei

    compreender os trajetos e os caminhos percorridos na

    arte de caminhar de ―muitas Nelmas‖, no sentido de

    ressignificar as diferentes histórias de vida que

    foram/são abarcadas por dificuldades socioeconômico-

    culturais. Pretendi identificar as lutas, as resistências e

    os deslocamentos realizados a partir das práticas

    cotidianas, sobretudo aquelas de dimensão etnicorracial.

    Essa trajetória de vida, marcada pela tríplice opressão

    da sociedade: social, racial e de gênero, não poderia ser

    diferente, pois sou brasileira, nascida num país marcado

    por valores moralizantes, como o machismo, o racismo,

    o homofobismo e o sexismo. Essa foi/é minha tríplice

    opressão, porque boa parte da minha vida fui pobre

    economicamente, sou negra e fizeram-me mulher. Para

  • 21

    Simone de Beauvoir, ―[...] não nascemos mulher,

    tornamo-nos mulher [...]‖. Por analogia, tornamo-nos

    pobre, mulher e negra referenciada a quadro de padrões

    hegemônicos.

    Nesse sentido, analisei alguns tipos de agenciamentos:

    a família, a escola e os movimentos sociais, com

    destaque para os movimentos negros que

    contribuíram/contribuem para a produção singular de

    ―muitas Nelmas‖. Analisei a minha história de vida, tendo

    como pano de fundo os ―mitos‖ fundantes de formação

    do pensamento brasileiro: o mito da democracia racial,

    do embranquecimento e da inferiorização do povo negro.

    Para o analista Ricardo Henriques,7 em seu artigo ―A

    pobreza no Brasil tem cor‖ (IPEA; UFF, 2000), essa

    situação social, majoritariamente, está vinculada à

    população negra. Assim sendo, como fazer apologia à

    democracia racial num país de profundas desigualdades

    social e racial? Para os defensores da democracia racial

    ela teria o papel de integração do tecido social, no

    entanto, essa finalidade não se concretizou, até hoje,

    pois o que temos é um processo de desintegração

    social, com enorme fosso econômico e político, quando

    analisamos os baixos níveis de emancipação e de

    participação direta da população brasileira nos rumos de

    uma sociedade globalizada.

    A análise desse pesquisador vem contribuir para o

    entendimento sobre a questão da negação do mito da

    democracia racial, porque o segmento negro, entre

    outros, tem sido historicamente discriminado. Esse

    7 Ricardo Henriques, analista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Universidade

    Federal Fluminense (UFF) responsável pelo texto nº 807 – ―Desigualdade Social no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90‖.

    A intensa desigualdade racial brasileira, associada a formas usualmente sutis de discriminação racial, impede o desenvolvimento das potencialidades e o progresso social da população negra. O entendimento dos contornos econômicos e sociais da desigualdade entre brasileiros brancos e brasileiros afro-descendentes apresenta-se como elemento central para se construir uma sociedade democrática, socialmente justa e economicamente eficiente. Essa investigação assume maior pertinência quando reconhecemos que os termos da naturalização do convívio com a desigualdade no Brasil são ainda mais categóricos no fictício mundo da ‗democracia racial‘ ditado há mais de 60 anos por Gilberto Freire, mas ainda verdadeiro para muitos brasileiros. HENRIQUES, 2000. (Disponível em: . Acesso em: 13 jun. (2005) .

  • 22

    pensamento discriminatório social e racial foi forjado nos

    espaços instituídos e instituintes, muitas vezes, advindos

    de práticas racializadas que atravessaram os processos

    de diferenciação de vida do que é ser mulher e, ao

    mesmo tempo, ser negra, na sociedade brasileira de

    características machistas e racistas.

    Assim sendo, tecendo os fios da história de vida de

    ―muitas Nelmas‖, ao dialogar com o pensamento

    certeuaniano, perguntei: qual a arte de fazer que venho

    processando no uso e consumo das produções

    racializadas ditas hegemônicas? Como fiz uso das

    táticas e estratégicas para subverter a ordem

    estabelecida que polarizasse as relações raciais entre as

    diferentes etnias? Para Certeau (1994), as maneiras de

    fazer com o cotidiano poderiam produzir práticas

    antidisciplinares, astuciosas, negociáveis não

    barulhentas; maneiras de fazer silenciosas que

    resistissem às ―normatizações‖ padronizadas e

    inflexíveis. Foram/são perguntas sem respostas, mais

    incertezas do que certezas que, todavia, potencializaram

    as minhas análises, quando estive escrevendo a minha

    de trajetória vida, mesmo sabendo que foram questões

    polêmicas e, muitas vezes, contraditórias e paradoxais.

    Para iniciar esta análise, sou filha caçula de uma família

    negra, mas que sempre buscou enfrentar as tensões da

    vida social provocadas pelo racismo, algumas vezes

    aceitando passivamente as discriminações e os

    estereótipos do modo de subjetivação das sociedades

    consideradas autoritárias, outras vezes contestando,

    transgredindo, subvertendo as normas disciplinadoras

    do poder instituído e, ainda, superando as

    consequências advindas do racismo que, no processo

    [...] A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de ‗consumo‘: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante (CERTEAU,1994, p. 39).

  • 23

    social e racial de dimensões liberais, relativistas e

    hierarquizadas, desconsideraram e invisibilizam as

    diferenças etnicorraciais presentes na sociedade.

    Esse modo de pensar/viver a vida tem produzido uma

    forma hierarquizada bipolar nas relações entre os

    humanos, ou seja, na dimensão de gênero (homem e

    mulher) e na etnicorracial (branco e negro),

    estabelecendo, assim, uma valoração de superioridade

    para os polos (homem e branco/a) e de inferioridade

    (mulher e negro/a). Para Brito (1998), essa teoria do

    racismo sustentada na visão dicotômica e dual estava

    calcada no ideário da segregação e eliminação racial,

    porque, segundo a teoria da raciologia, os segmentos de

    negro e de índio constituíram uma ameaça à civilização,

    pela razão de ser uma ―raça‖ degenerada. Essa posição

    de bipolaridade expressa na concepção de diversidade

    cultural poderia aprisionar os movimentos de

    diferenciação que as redes cotidianas deveriam produzir

    ao afirmar as diferenças etnicorraciais.

    Por isso, nesta tese, procurei ir além das limitações da

    formação acadêmica bastante marcada pelo caráter

    universalista e dicotômico, busquei enfrentar os

    equívocos de concepções e práticas que foram/são

    resultantes de uma formação política mais focada por

    uma visão economicista, por processos de aquisição de

    novos/outros conhecimentos de dimensão focalista.

    Esse processo possibilitou movimento de diferenciação

    que indicou na direção das diferenças culturais, porque

    contribuiria para alargar a compreensão racismo como

    determinante social e psíquico no tecido social.

    No agenciamento social, destaquei a importância da

    família e da escola ao lidar com as práticas racializadas

    O racismo é a teoria que sustenta a superioridade de certas raças em relação a outras, preconizando ou não a segregação racial ou até mesmo, a extinção de determinadas minorias. Este discurso legitimava a inferioridade de alguns povos que estavam mais próximos dos animais do que dos seres humanos baseados em argumentos morais, religiosos e científicos (BRITO,1998, p. 61).

  • 24

    que foram/são, muitas vezes, escamoteadas,

    geralmente, por meio do silêncio. Por que silencia a

    família e a escola? Qual o significado do silêncio para as

    relações de poder hierarquizadas? Dialoguei com

    Cavalheiro (2003) sobre o significado do silêncio como

    formas de reação às práticas de preconceito e

    discriminação no espaço escolar e encontrei quase

    sempre um sentimento de impotência e desconforto.

    Algumas famílias e escolas optaram pelo silêncio,

    evitando o enfretamento das práticas racistas que

    foram/são, quase sempre, causadoras de conflitos,

    tensões e sofrimentos, e que podem provocar

    adoecimento. Num dos encontros com as mães, durante

    a pesquisa, uma delas relatou que a filha, uma criança

    negra, sempre chegava a casa reclamando de

    xingamentos discriminatórios, sobretudo por causa do

    cabelo. Essa prática, quase sempre com a omissão da

    UMEI, causava na filha e mãe sentimento de tristeza e

    constrangimento. Para a mãe, a escola não aceitava o

    fenótipo capilar das crianças negras, dificultando uma

    relação dialogal positiva entre as crianças negras e as

    não negras.

    Em minha família, foram raros os momentos de fala

    sobre as práticas de racismo. Silenciava-se sobre elas

    por constrangimento e/ou autodefesa. Pensei que esses

    momentos de silêncio e de conflitos podiam funcionar

    como táticas e estratégicas no sentido de possibilitar

    outras formas de fazer usos e consumos de como

    enfrentar os constrangimentos, medos, imobilismos,

    raivas e tristezas. Assim, o silêncio que, muitas vezes, é

    considerado como passividade e submissão, poderia ser

    uma saída ou forma de resistência na arte de lidar com

    ‗Silencia‘ um sentimento de impotência ante o racismo da sociedade, que se mostra hostil e forte. ‗Silencia‘ a dificuldade que se tem em se falar de sentimentos que remetem ao sofrimento. ‗Silencia‘ o despreparo do grupo para o enfrentamento do problema, visto que essa geração também apreendeu o silêncio e foi a ele condicionada na sua socialização. O silencio das famílias brancas decorre também desses mesmos aspectos que influenciam as negras, mas marca sua posição confortável diante do problema que diretamente não as atinge. Ao silenciar, a escola grita inferioridade, desrespeito e desprezo (CAVALHEIRO, 2003, p.100). Aumentar a citação Citar outras

  • 25

    situações do cotidiano que causam dor, sofrimento e

    desprazer.

    Refletindo sobre esses momentos de desconforto, o

    artigo ―Afirmar diferenças etnicorraciais como dispositivo

    de saúde nas escolas? A CAP em ação‖,8 de Monteiro

    et al. (2008), possibilitou reflexões em duas direções:

    uma que nos engessaria ao conformismo e à

    naturalização das práticas racistas que

    aconteceram/acontecem nas redes cotidianas; e outra

    que poderia propiciar deslizamentos e negociações por

    meio de outros modos de fazer e lidar com os

    movimentos de diferenciação do cotidiano escolar, para

    afirmar a diferença cultural e etnicorracial e não a

    diversidade cultural.

    Na família, quando o assunto era questão racial, admitiu-

    se/admite-se, às vezes, uma fala de forma velada,

    superficial e ou de rejeição, quase sempre na posição

    defensiva, jamais de forma problematizadora e

    propositiva. Atualmente, na convivência familiar com

    meus dois filhos, as questões raciais são faladas sem

    causar constrangimentos, embora eles, algumas vezes,

    procurassem evitar esses assuntos. Esses movimentos,

    nos espaços familiares, quando pautados pelas práticas

    racializadas, puderam apontar outras possibilidades de

    lidar com as relações etnicorraciais sem obtacularizar o

    diálogo familiar. No diálogo, procurei exercitar outros

    modos de enfrentar as práticas de racismo que

    apareceram/aparecem na convivência com meus filhos.

    Afirmei não terem sido fáceis as abordagens das

    8 Artigo produzido pelos alunos/as mestrandos/as e doutoranda, pesquisadores/as do NEPESP/

    UFES, na Comunidade Ampliada de Pesquisa.

    As formas capitalísticas de lidar com as diferenças interétnicas, quando colocadas em análise, podem constituir-se em dispositivo de produção de saúde, na medida em que se trata de problematizar as formas de lidar com os movimentos de diferenciação que se atualizam por meio de tensões e conflitos étnico-raciais que marcam a organização do trabalho escolar. Assim sendo, entendemos que a afirmação das diferenças nos conduz à desconstrução de práticas preconceituosas e discriminatórias que produzem constrangimento, medo, tristeza, negação e silêncio, o que possibilita prováveis situações de adoecimento (MONTEIRO et al., 2008, p.152).

  • 26

    relações raciais, mas estava atenta para problematizar

    com eles essas questões tão polêmicas.

    Quando analisei o padrão estético do fenotípico negro,

    percebi que ele quase sempre estava associado ao

    quadro de referenciação do modelo hegemônico de uma

    dada etnia. O padrão socialmente ―correto‖, em sua

    grande maioria, previlegiava/privilegia o pensamento

    estético do segmento branco. Mamãe sempre dizia:

    ―Ser negro, sim, mas de alma branca‖. Não só de alma

    branca, mas todo o corpo referenciado aos padrões

    estéticos hegemônicos que não sejam os de outras

    etnias e culturas. Conforme Santos (1990), para o negro

    ser melhor, era preciso responder ao modelo

    hegemônico branco. E assumir o fenótipo branco, no

    caso do/a negro/a, é impossível.

    Assim sendo, para nós, mulheres negras, assumirmos

    as padronizações impostas pelo capital e os valores

    morais prescritos por uma dada sociedade hegemônica

    racista e machista, no que diz respeito à estética física,

    era preciso a aceitação do padrão de ―beleza‖ e de

    ―belo‖ definido por determinado grupo. O que se

    esperava de um corpo fenotípico negro? Como não

    aceitar um modelo capilar, ditado pela moda? Como

    vencer o fenótipo feminino do cabelo alisado e

    socialmente correto, comparado com o cabelo crespo

    considerado antissocial?

    A teoria da mestiçagem via mito do embranquecimento e

    mito da democracia racial, corrobora a produção de

    práticas sociais de negação do pertencimento racial, por

    parte da maioria da população negra na sociedade

    brasileira.

    [...] E, como naquela sociedade, o cidadão era branco, os serviços respeitáveis eram os ‗serviços- de -brancos‘, ser bem tratado era ser tratado como branco. Foi com a disposição básica de ser gente que o negro organizou-se para a ascensão, o que equivale dizer: foi com a principal determinação de assemelhar-se ao branco-ainda que tendo que deixar de ser negro- que o negro buscou, via ascensão social, tornar-se gente (SANTOS, 1990, p. 21).

  • 27

    Assim afirmava Silvério, em um capítulo do livro

    organizado por Silva (2003) ―Educação e ações

    afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça

    econômica‖ que, quando o assunto era reserva de vagas

    no ensino superior, você encontrava duas posições

    sobre o pertencimento racial. De um lado, os/as

    detratores/as das cotas raciais que se arvoravam em

    afirmar que não existiam negros no Brasil. Eles/as

    asseveravam em favor da mestiçagem. ―O mestiço é

    branco e não negro‖, dizia o senador Demóstenes, do

    Partido do DEM, na audiência pública realizada em

    2010, pelo Supremo Tribunal Federal - Brasília, com o

    tema ―Cotas na UNB‖. De outro lado, os/as

    defensores/as do sistema de cotas advogavam sobre o

    pertencimento racial negro com argumentações positivas

    do ser negro/a e, ainda, denunciavam a farsa da

    democracia racial como posição ideológica que tem

    contribuído para a invisibilidade desse segmento na

    sociedade brasileira. O pertencimento racial foi uma

    questão emblemática a ser enfrentada no cotidiano

    escolar, onde aconteciam práticas autoritárias, conflitos

    e negociações, mas também se construíam

    solidariedades, diálogos, negociações e partilhas que

    poderiam contribuir com a problematização das práticas

    racializadas

    Por que a resistência em aceitar o pertencimento racial

    negro? Pesquisando o termo ―negro‖ no Dicionário de

    Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986, p.1187),

    entre dezenas de definições, destaquei as que

    reforçavam as ideais negativas sobre o termo, o que

    poderia dificultar o processo de pertencimento racial

    positivo: ―[...] negro adj. 1. De cor preta. [...] 3. Diz-se do

    indivíduo de raça negra; preto. 4. Preto. Sujo encardido,

    A mestiçagem tem cumprido um, papel histórico importante na manutenção racializada da elite branca. Por um lado, ela nega o valor da própria branquitude na alocação de posições-chave na sociedade, por outro, ela inibe a manifestação dos setores que sofrem os efeitos da racialização das elites. A invisibilidade do negro é decorrente de uma representação social que o ‗apaga‘, porque nós, no Brasil, não temos negros, somos todos mestiços, ao mesmo tempo, as práticas discriminatórias e racistas cotidianas são banalizadas, porque no pós-Abolição nunca tivemos segregação racial legal (SILVÉRIO, 2003, p.70).

  • 28

    preto: a criança está com as mãos negras [...] 7. Muito

    triste: lúgubre, [...] Maldito, sinistro: Em negra hora

    chegou ali aquele bandido‖. Esses significados negativos

    da categoria ―negro‖ faziam parte do mundo linguístico

    dos diferentes agenciamentos familiar, escolar e eclesial,

    entre tantos outros que, por meio das falas discursivas,

    não contribuíam, de um lado, para as etnias não negras

    perceberem as diferentes possibilidades de

    estabelecerem desvios e deslocamentos nas formas

    endurecidas dos significados linguísticos e das vivências

    cotidianas. Do outro lado, podiam se constituir em

    obstáculos para que negros/as assumissem seu

    pertencimento racial.

    No entanto, essa linha de reflexão devia ser

    contraposta, na visão certeauniana, por outras maneiras

    de fazer, maneiras astuciosas e afirmativas e que

    subvertessem as formalidades prescritas, buscando

    desconstruir essas formas de discursos pasteurizados e

    de verdades absolutas, sem se deixar prender nas

    armadilhas do essencialismo e da guetização.

    Esse pensamento sobre o/a negro/a, referenciado na

    concepção do embranquecimento, construiu-se, ao

    longo da história dos humanos, em um modelo de

    casamento que podia estar fragilizando as relações

    interétnicas. Foi nesse jogo das relações sociais que

    muitas famílias adotaram/adotam posturas de incentivos

    à união conjugal de seus/as filhos/as somente com

    pessoas de pele branca, confirmando o dito popular:

    ―Casar com branco para ‗limpar a raça‘ e ‗limpar o

    útero‘‖. Expressões que lembravam a teoria da eugenia,

    defendida por vários médicos/as brasileiros/as, nos

    séculos XIX e XX. No relato da professora ―A‖,

  • 29

    participante da pesquisa, havia indícios, sinais desse

    ―jogo relacional‖, no que diz respeito à posição de seu

    pai sobre o casamento dos filhos: ―Não quero meus

    filhos casados com negros. Prefiro vê-los mortos‖. A que

    ponto poderia chegar o sentimento de rejeição, ódio e

    ojeriza com outra pessoa do seu próprio segmento

    racial.

    O racismo nos conduz à dimensão moral e, quase

    sempre, de cunho moralizante, de reprovação do outro

    devido à cor da pele e ao fenótipo. Se o mito do

    embranquecimento, ainda hoje, produz seus efeitos

    negativos no tecido social, em se tratando da mulher

    negra, como ficaram essas mulheres, se a maioria delas

    sofreu com a tríplice discriminação de ser mulher, negra

    e pobre? Como elas teriam enfrentado a solidão, à

    medida que muitas delas foram preteridas na formação

    dos arranjos conjugais oficiais?

    Nascimento, em 2007, publicou um artigo sobre ―O

    mercado matrimonial diáspora negra e Michelle Obama‖

    e apresentou as análises feitas pela cientista social

    Raquel de Souza e a pela socióloga Augusta Thereza de

    Alvarenga que, ao pesquisarem sobre as diferenças de

    gênero e de ―raça‖ nas questões reprodutivas de

    mulheres negras e brancas, tendo em vista a concepção

    de liberdade e a facilidade de estabelecer os arranjos

    conjugais, afirmaram que as mulheres negras brasileiras

    são preteridas do mercado matrimonial. Conforme o

    autor do artigo, a dificuldade estaria calcada na

    estereotipia produzida sobre a mulher negra. Essas e

    outras considerações sobre racismo nas relações

    interétnicas, no sentido da afetividade, podem chegar ao

    chão da sala de aula, obstacularizando o fluir da vida.

    ‗Como aponta Berquó as mulheres negras são supervalorizadas, como exóticas, para o tráfico sexual, como denunciam pensadoras do movimento negro‘. Na opinião destas pesquisadoras, a estereotipia a que as mulheres negras estão submetidas impede-as de usufruírem da liberdade, inclusive a sexual, e de exercitarem sua autonomia e dignidade referindo-se às mulheres negras (NASCIMENTO, 2007. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2009).

  • 30

    São muitas as produções depreciativas no mundo

    linguístico que corroboram um olhar sobre o ser negro.

    Ser negro é ser bom moço... Ser preto de alma branca.

    E alma tem cor? Essa foi uma concepção judaico-cristã

    da lógica essencialista e dualista que produziu uma

    cultura discriminatória e polarizada entre corpo e alma.

    A alma tem que ser branca, ser angelical, pura e

    imaculada – sem manchas, conforme os preceitos

    canônicos da Idade Média. O corpo negro, como

    justificativa, não tem alma – assim estava escrito nos

    documentos oficiais dos cleros católicos, do período

    escravista – portanto, o corpo pode ser escravizado,

    espancado, chicoteado, chibatado, açoitado e mutilado.

    Entre tantas outras músicas do repertório popular, fui

    buscar na letra da canção de Jorge Aragão, intitulada:

    ―Identidade‖, uma forma de narrativa sobre a questão

    racial que refletia a branquitude e o lugar social do ser

    negro no Brasil. Nessa sociedade onde o racismo é

    cordial, à moda brasileira, qual o lugar do negro?

    Embora essa cultura da inferioridade e da discriminação

    do negro ainda seja recorrente e forte em nosso País.

    Durante a pesquisa, analisei com as

    professoraspesquisadoras o lugar social dos/as

    negros/as e as contribuições dessas lideranças no

    cenário político, na luta pelo fim do regime escravista.

    Destaquei para o debate: Dandara, guerreira na luta que

    contribuiu para a organização do Quilombo dos

    Palmares; Luisa Mahin, mulher guerreira, líder da

    Revolta do Malês; Chica da Silva, rainha negra do

    Tijuco; rainha Nzinga, estadista e diplomata, em Angola;

    Princesa Anastácia, mulher altiva que lutou até a morte,

    para preservar sua singularidade; Cruz e Souza, poeta

    e promotor público; José do Patrocínio, jornalista e

    IiDENTIDADE Elevador é quase um templo Exemplo pra minar teu sono Sai desse compromisso Não vai no de serviço Se o social tem dono, não vai... Quem cede a vez não quer vitória Somos herança da memória Temos a cor da noite Filhos de todo açoite Fato real de nossa história Se o preto de alma branca pra você É o exemplo da dignidade Não nos ajuda, só nos faz sofrer Nem resgata nossa identidade (Disponível em: .Acesso em: 20 maio. 2009).

  • 31

    fundador do ―Jornal da Tarde‖; Aleijadinho, grande

    entalhador em pedra de sabão; André Rebouças,

    engenheiro que construiu o Porto do Rio de Janeiro;

    Castro Alves, escritor e poeta; Machado de Assis,

    escritor e romancista, escreveu o clássico “Dom

    Casmurro‖; e Milton Santos, geógrafo e escritor; José

    Cândido, o almirante negro, entre tantos/as outros/as.

    Durante esta pesquisa, ao refletir sobre essas lideranças

    negras, coloquei também em análise a situação do/a

    negro/a no cenário atual, no que diz respeito à

    mobilidade e à ascensão social, enfatizando sobre a

    importância da problematização do racismo e das

    práticas de discriminação e preconceito na sociedade e,

    ainda, sobre a luta pela implementação de políticas de

    ações afirmativas. Isso como possibilidades de

    superação da cultura racista e, consequentemente,

    propiciando a ascensão social do/a negro/a por meio do

    acesso a outros cargos e/ou função no mundo do

    trabalho.

    A Fundação Getúlio Vargas (FGV), em seu artigo

    ―Ascensão social de negros é mais rápida‖, explicava

    que isso se deveu ao aquecimento da economia, que

    tirou milhões de brasileiros da pobreza e tem beneficiado

    especialmente os/as negros/as.

    Essa pesquisa revelou que a classe média representava

    mais da metade da população e que a ascensão social

    dos/as negros/as ocorreu de forma mais rápida,

    possibilitando a sua mobilidade social. Esses foram os

    dados da pesquisa feita nas seis principais regiões

    metropolitanas do País que indicaram que a classe

    média passou de 43,64%, em 2002, para 51,57%, em

    abril de 2008. No mesmo período, o percentual de

    http://acertodecontas.blog.br/clipagem/ascensao-social-de-negros-e-mais-rapida/

  • 32

    negros/as dessa camada social subiu de 39,24% para

    50,87%, portanto um aumento de 11 pontos percentuais.

    Essa pesquisa ressaltava ainda o papel da educação

    para o avanço da mobilidade social desse segmento

    étnico.

    A análise da música ―Identidade‖ de Jorge Aragão me

    remeteu à teoria do racismo com seus desdobramentos

    de segregação racial e de hierarquização social ao

    indicar qual o elevador destinado para os/as negros/as:

    ―Não vai no de serviço/ Se o social tem dono, não vai...‖.

    Outra mensagem de resistência do povo negro e

    incentivo à luta de enfrentamento ao racismo foi

    expressa no fragmento do seguinte verso: ―Quem cede a

    vez não quer vitória/Somos herança da memória/Temos

    a cor da noite/Filhos de todo açoite/Fato real de nossa

    história‖. É preciso resistir e não ceder a vez para a

    rejeição e para dificuldade de aceitação de quaisquer

    pessoa.

    Contrapondo-se com a visão negativa do negro, os

    movimentos sociais negros, a partir da década de 70,

    lançaram campanhas publicitárias, objetivando a

    elevação do pertencimento racial por meio de diferentes

    chamadas mediáticas: ―Negro é lindo!‖, ―100% Negro‖,

    ―Não deixe sua cor passar em branco‖ e recentemente

    ―Onde você esconde o seu racismo?‖ Foram campanhas

    que visavam a fazer desvio nas produções sociais e

    culturais de um único padrão estético. É preciso elevar o

    pensamento, afeto e sentimento do povo negro de forma

    positiva, todavia com cuidado para não ser sectário/a e

    nem contribuir para a formação de guetos e movimentos

    separatistas.

  • 33

    2.1 CABELO CRESPO: UMA TRAJETÓRIA DE MUITOS

    FIOS E DESAFIOS

    Retomei a minha história de vida entre os fios de

    cabelos crespos e os desa(fios) de conviver com um

    modelito socialmente correto. E lá se foram,

    aproximadamente, cinco décadas marcadas por uma

    beleza capilar, cuja textura dos fios de cabelo não

    resistia aos tratamentos capilares e muito menos

    combinava com o fenótipo facial negro. Na infância, não

    gostava de pentear os cabelos, pois tinha que trançá-los

    todos os dias agachada às pernas de tia Francisca que

    sempre me chamava para trançá-los de forma

    depreciativa: ―Venha aqui pentear esse cabelo duro‖,

    ―Abaixar esse facho, amassar esse pico‖. Essas foram

    expressões ouvidas na infância, quando no trato com o

    cabelo crespo. Fazer tranças no cabelo era todo dia. Por

    parte da família, o que seria uma forma de higiene

    também não poderia ser uma dificuldade de aceitação

    do fenótipo capilar negro?

    Dialogando com Gomes (2008), trançar cabelo era uma

    técnica antiga, trazida pelos povos africanos, que tem

    ganhando cada vez mais adeptos entre os jovens.

    Trançar cabelos sempre foi uma arte. As imagens (Fotos

    1 e 2) evidenciam muitas possibilidades de lidar com os

    fios, sejam eles crespos e sejam lisos. Por que temos

    que nos enquadrar a uma única referência hegemônica?

    As diferenças capilares nos embelezam e nos

    enriquecem culturalmente.

    O uso de das tranças é uma técnica que acompanha a história do negro desde a África. Entretanto, os sentidos de tal técnica foram alterados no tempo e no espaço. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, algumas famílias negras ao arrumar as crianças, sobretudo das mulheres, fazem-no na tentativa de vencer com os estereótipos do negro descabelado e sujo. Outras o fazem de modo, simplesmente, como prática cultural de cuidar do corpo. Mas de modo geral, quando observarmos crianças negras trançadas notamos duas coisas: a variedade de tipo de trança e o uso de adereços coloridos (GOMES, 2008, p. 209).

  • 34

    Foto 1 - A arte de trançar cabelos crespos pode ser estética além da uma opção política Fonte:Disponível em: < www.belezapura.org.br>. Acesso em: 20 jul. 2008.

    Foto 2 - Black Power. Seu significado é: poder negro Fonte: Disponível em: www. belezapura.org.br.. Acesso em: 20 jul. 2008.

    As tranças nagôs, rastafáris, dreadlocks têm feito a

    cabeça de muita gente, não importando a idade. Foi uma

    moda antiga, sobretudo entre os/as negros/as afro-

    americanos/as. No Brasil ganhou destaque nos anos 70,

    e a moda voltou com força total, com formas mais

    desalinhadas e irreverentes. Foram opções aos

    tratamentos químicos utilizados em cabelos crespos. A

    trança nagô era uma arte africana de tranças junto ao

    couro cabeludo, que podiam ser feitas até a metade da

    cabeça ou nela inteira, enfeitadas com diversos arranjos

    em cabelo natural ou aplicação de outros fios, linhas,

    contas e outros adornos. Atualmente optei, por uma

    questão de estética e de fator analisador das questões

    raciais, pelo cabelo tipo dred. Tenho curtido o meu

    cabelo crespo de forma mais prazerosa depois que

    Para além do lidar com os cabelos uma afirmação das diferenças etnicorraciais.

    http://www.belezapura.org.br/http://www.belezapura.org.br/

  • 35

    passei a assumir o dred e outros estilos de penteado

    afro.

    Evitando generalizar, percebi que a minha opção pelo

    dred nem sempre foi bem-aceita pelas pessoas com as

    quais convivo. Esse tipo de estética capilar não tem

    aprovação nem na minha família. Mas, apesar da não

    aceitação, procurei fazer uso desse tipo de cabelo por

    uma posição política, ao analisar e problematizar as

    questões raciais capilares que surgiram no meu

    cotidiano. Na UMEI Normília realizávamos as oficinas de

    tranças com as mães para que elas trançassem as

    cabeças de suas filhas. Mesmo com resistências por

    parte de algumas mães, a atividade foi considerada

    positiva, porque possibilitou colocar em análises, com as

    mães e as professoraspesquisadoras, o ressignificado

    do cabelo crespo, que não é nem ―bom‖ e nem ―ruim‖, é

    um tipo capilar diferente.

    Assim sendo, durante as oficinas de tranças, foi possível

    colocar para as professoraspesquisadoras e as mães,

    de um lado, o desafio da aceitação de novos arranjos

    capilares que contribuíssem na desconstrução das

    práticas massificadoras de um único padrão estético; do

    outro, a superação do universo linguístico depreciativo

    de ―cabelo ruim‖, ―cabelo de bombril‖ e ―cabelo duro de

    pixaim‖. Esse foi o desafio colocado, subverterem a

    ―ordem estética‖ por outras maneiras mais astuciosas de

    valorização das diferenças estéticas que se

    apresentavam no cotidiano da escola. São muitos os

    projetos de valorização e reconhecimento de outras

    culturas que a escola poderia inventar no sentido de

    potencializar relações interétnicas positivas.

  • 36

    A preocupação maior esteve com a cilada advinda da

    cultura da naturalização e da folclorização. Por isso

    questionava os projetos que, às vezes, apresentavam-

    se, no caso dos personagens negros, como exóticos,

    grotescos, episódicos e estereotipados. Existiria outra

    forma de brincar com o arremesso de bolas, nas festas

    juninas, que não fosse à boca de ―uma negra‖

    chamada de ―maluca‖ (Foto 3). Nem mesmo na cara de

    um palhaço? A análise desta foto conduziu-me à

    reflexão sobre os estragos que o estereótipo poderia

    causar ao processo de subjetividade positiva de uma

    criança pequena, negra ou não negra.

    Essas práticas pedagógicas, esses ―arranjos‖, muitas

    vezes eram folclorizados e foram problematizados com

    as professoraspesquisadoras, objetivando identificar

    indícios de racismo.

    Foto3 - Caricatura de uma nega maluca Fonte: Disponível em: < http:// www. com.br/search? bocada negamaluca>.

    Acesso em: 20 jul. 2008.

    http://www..com.br/search

  • 37

    Para Santos (2006), a discriminação e o preconceito,

    quando ocorrem por causa do fenótipo capilar, podem

    provocar na pessoa negra sentimentos de negação de

    seu pertencimento racial e também violência no jogo de

    relações interétnicas. O cabelo, a cor da pele e a cor dos

    olhos são traços fenótipos em que geneticamente temos

    a presença da melanina. No caso do cabelo, ela é

    determinante para torná-los crespos ou lisos.

    2.1.1 A arte de trançar cabelos crespos e lisos

    As diferentes estéticas capilares Fonte: Disponível em: < www.beleza.pura.ogr.br.>. Acesso em: 20 jul. 2008.

    Foto 5 - A arte de trançar dred em cabelos lisos com adereços de lã e linha Fonte: Disponível em: < beleza.pura.ogr.br. >. Acesso em: 20 jul. 2008.

    [...] a percepção negativa desse atributo físico, nas relações entre alunos, evidencia a concepção de inferioridade do negro, característica para além da cor. A cor deixa de ser, num primeiro plano, a marca mais funcional. Ou seja, o negro é estigmatizado no jogo das experiências sem, no entanto, que. se refira diretamente à cor/raça. O cabelo passa a ser utilizado de forma simétrica à cor, como um signo para a ação de discriminação. Por isso, como veículo de preconceito, ele se torna mais funcional que propriamente a cor da pele, pois se referir ao cabelo parece estar constituído no imaginário do preconceituoso que não caracteriza uma forma aberta de racismo (SANTOS 2006, p. 104).

    http://www.beleza.pura.ogr.br./

  • 38

    Os arranjos capilares do tipo dreadlock (Fotos 4 e 5)

    foram bastante conhecidos na cultura rastafari. O

    dreadlock foi originário da África Oriental. Dread fora

    uma arte de lidar com os cabelos assumidos pelos/as

    seguidores/as da filosofia rastafári, cuja tradição

    religiosa pregava o não corte de cabelos, bem como não

    penteá-los. Dizia o dito capilar: ―cabelo é a moldura do

    rosto‖. Ele é singular para cada fenótipo de pessoa não

    importando sua textura, se crespo ou liso. No entanto,

    como aceitar um cabelo estigmatizado de ruim, bombril,

    pico, piaçava, pixaim e duro? Essas adjetivações foram

    reafirmadas no fragmento da música ―Chicletes com

    Banana―: ―[...] Meu cabelo duro é assim. [...] Meu cabelo

    duro é assim/Cabelo duro de pixaim [...]‖.

  • 39

    2.1. 2 O pente de ferro: um instrumento de tortura

    para produzir o referencial capilar não negro

    Foto 6 – Pente de ferro usado para alisar cabelos crespos após ser esquentado na brasa ou fogo Fonte: Disponível em:< www.belezapura.org >. Acesso em: 20 jun. 2008.

    Da infância à fase adulta alisava o cabelo com o pente

    de ferro quente tipo da (Foto 6), esquentando-o no

    fogão à lenha. Esse pente foi para mim um verdadeiro

    instrumento de tortura que utilizava para alisar o meu

    cabelo ―duro de pixaim‖. Foi uma ferramenta do mundo

    capilar mais antiga e barata usada no alisamento do

    cabelo crespo. O pente quente, quando esquentado ao

    fogo, virava brasa. Muitas vezes, em contato com a

    vaselina, banha ou óleo que se passava nos cabelos

    para o alisamento, acabava queimando os fios e o couro

    cabeludo. Era realmente um sofrimento em função da

    estética produzida pelo quadro de referência do cabelo

    liso.

    http://www.belezapura.org/

  • 40

    O discurso linguístico que sempre ouvia sobre o cabelo

    crespo era de estereotipia negativa: cabelo de picumã

    (lembrava sujeira), cabelo rebelde (simbolizava algo fora

    da norma, violento) e cabelo de pico (sem forma,

    armado e duro). Essas e outras expressões linguísticas

    depreciativas sobre quaisquer referências fenotípicas

    poderiam nos afetar provocando constrangimento,

    tristeza, silêncio e reação de violência. O desejo de ser

    belo foi buscado no quadro de referência identitário

    branco/a, tendo como bom o cabelo liso e como ruim o

    cabelo crespo. Nesse contexto, foi constrangedor e difícil

    lidar com o meu mundo capilar. Para Gomes (2008), a

    escola precisa dialogar com outros temas culturais de

    grande valia para os/as alunos/as, a exemplo do corpo,

    do cabelo e da sexualidade, expressões estéticas

    importantes para o processo de subjetivação positiva.

    Recentemente, perguntou-me uma professora: ―Como

    deveria se referir ao cabelo de pessoa negra?‖.

    Perguntava ela com a voz embargada, com medo de ser

    repreendida. Por que o diálogo não fluía quando

    tínhamos que tratar de alguns aspectos do corpo negro,

    a exemplo do cabelo crespo?

    Além do pente quente, outros produtos químicos e

    instrumentos, como chapinhas, escovas progressivas e

    inteligentes, invadem os salões dos simples aos

    sofisticados. A ―mulherada‖, pelo cabelo, acaba

    gastando ―tubos de dinheiro‖, mesmo sem poder. No

    entanto, no caso do cabelo crespo, e até do liso, nem

    sempre eles resistem aos tempos chuvosos.

    Convivia com muitos alisamentos feitos com pente de

    ferro, pastas de alisar, henés e chapinhas para o cabelo

    [...] várias depoentes, ao se reportarem ao corpo, relembraram momentos significativos da sua história de vida dando um destaque especial à trajetória escolar. Para essas pessoas, na suas idades jovens e adultas, na faixa dos 20 aos 60 anos, a experiência com o corpo negro e o cabelo crespo não se reduz ao espaço da família, das amizades, da militância ou dos relacionamentos afetivos. A trajetória escolar aparece em todos os depoimentos como um importante momento no processo de construção da identidade negra e, lamentavelmente, reforçando estereótipos e representações negativas sobre esse segmento étnico/racial e o seu padrão estético. O corpo surge, então, nesse contexto, como suporte da identidade negra e o cabelo crespo como um forte ícone identitário (GOMES, 2008, p. 35).

  • 41

    encolher na primeira pancada de chuva. Situação essa

    expressa na letra da música de Mc Frank – ―Cabelo

    Encolheu‖.

    A expressão ―lida‖, segundo Gomes (2008), podia

    significar trabalho forçado que nos remeteu ao sistema

    escravista. Nesse sentido, esses estigmas marcaram,

    fortemente, a maneira como eu lidava com o meu

    cabelo, não o aceitando. Lembro-me de que utilizava

    quaisquer produtos cosméticos que surgissem no

    comércio e que prometessem um alisamento quase

    perfeito, de efeito milagroso, para ter um cabelo

    socialmente aceito pelos padrões estabelecidos.

    Durante a entrevista a expressão ‗lidar com o cabelo‘ tornou-se emblemática. A‘ lida‘ pode ser vista de várias perspectivas. Apesar de essa expressão adquirir diferentes significados para distintas categorias sociais, no contexto das relações sociais capitalistas, ela é associada ao trabalho. É o trabalho visto como fardo e exploração. E não como realização pessoal. Para o negro, a idéia de labuta, sofrimento e fadiga fazem parte de uma história ancestral. Remete à exploração, e à escravidão (GOMES, 2008, p. 27).

    Mc Frank - Cabelo Encolheu Há vou mandar um papo reto, essa vai para os guerreiros, Que tem uma mulher que vai ao cabeleireiro, gastou trinta reais e sabe o que aconteceu? I choveu! Cabelo encolheu! (todinho) I choveu! Cabelo encolheu! Vou mandar um papo reto gatinha vê se me escuta! Se você fez escova vê se leva o guarda chuva! Ô não tô de caô, gata não tô de gracinha Se você fez implante, alisante ou chapinha: e no final de tudo sabe o que aconteceu? I choveu! Cabelo encolheu ! [...] (Disponível em:. Acesso em: 13 maio 2008).

  • 42

    Também em Gomes (2008), o fenótipo capilar, ao

    mesmo tempo em que é visto como padrão de beleza,

    paradoxalmente, para algumas mulheres, apresenta-se

    como inferioridade racial, tendo como referência a moda

    imposta por uma dada etnia. Entre tensões,

    constrangimentos e desconfortos na lida com o cabelo, a

    mulher negra pode vivenciar relações sociais autoritárias

    e de submissão.

    2.2 O ESTIGMA DA COR VERMELHA

    Outro aspecto da estética corporal vivenciado durante a

    minha infância diz respeito à cor vermelha. Mamãe não

    permitia que seus filhos/as usassem roupas dessa cor,

    porque, no pensamento social capitalista clerical, em

    nível simbólico, o vermelho estava associado ao diabo,

    ao capeta, às coisas ditas malignas, quase sempre

    relacionadas com religiões de matriz africana. A Foto 7

    retrata um orixá do candomblé, cuja cor preferida é a

    vermelha.

    Foto 7 - Xangó é considerado o Orixá Fonte: Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2007).

    O cabelo e a trajetória de vida As experiências da mulher em relação ao cabelo começam muito cedo. Mas engana-se quem pensar que tal processo inicia-se com o uso de produtos químicos ou alisamento do cabelo com pente quente ou ferro quente [...]. As tranças são as primeiras técnicas utilizadas [...]. Talvez essa seja um dos motivos pelos quais algumas mulheres prefiram adotar alisamentos e alongamentos na

    atualidade (GOMES 2008. p. 65).

  • 43

    Nessas religiões, Shangô,9 também chamado de Xangô,

    foi o orixá mais cultuado no candomblé, filho de

    Yemanjá, e tendo três divindades como mulheres: Oyá,

    Oxum e Obá. A cor predominante do orixá, tanto no

    candomblé como na umbanda, era a vermelha. A

    origem da umbanda remonta ao final do século XIX.

    Apesar de ser de tradição africana angolana, foi

    considerada por seus/as seguidores/as como uma

    religião afro-brasileira.

    Foram vários os significados dados à cor vermelha no

    mundo espiritual: fogo, poder e realeza. No entanto, a

    cor vermelha, no mundo eclesiástico, nos séculos

    passados, era associada ao mau, cujo objetivo fora

    combater as religiões de matriz africana, para que elas

    não viessem a atrapalhar o projeto político da Igreja

    Católica de aumentar o número de fiéis durante o

    processo civilizatório brasileiro. Por isso, a associação

    dessa cor ao diabo e ao mal, mas, paradoxalmente, o

    vermelho é a cor do amor e da paixão. Canta o

    cancioneiro Alceu Valença: ―Ó rosa vermelha do meu

    bem querer / Beija-flor sou tua rosa / hei de amar-te até

    morrer...‖. As histórias das religiões africanas e afro-

    brasileiras foram histórias de lutas e resistências do

    povo negro.

    9 Shangô, fragmento do texto retirado da Revista ―Orixás o Segredo da Vida‖, nº 1).

    Xangó é considerado o Orixá mais cultuado e respeitado no Brasil. Isso porque foi ele o primeiro deus iorubano, por assim dizer, que pisou em terras brasileiras. É, portanto, o principal tronco dos candomblés do Brasil. [...] pelo termo Oba, que significa rei. E é o Orixá que reina em Oyó, na Nigéria, antiga capital política daquele país. Xangô é a ideologia, a decisão, à vontade, a iniciativa. Xangô é a rigidez, a organização, o trabalho, a discussão pela melhora, o progresso cultural e social, a voz do povo, o levante, a vontade de vencer. Xangô também é representado pela pedreira. É a pedra – seja ela qual for – a rocha, o fogo interior da terra [...]. É o justiceiro da natureza, aquele que manda castigar e que também castiga. (Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2007).

  • 44

    Foram muitas as perseguições dos poderes instituídos,

    por meio de seus aparelhos ideológicos e repressivos:

    polícia, escola, igreja, família, entre muitos outros

    utilizados para exterminar uma cultura milenar, mas,

    como diz Certeau (2002), os/as seguidores/as da religião

    de matriz africana, com sabedoria, fazendo uso de

    bricolagem, utilizaram os próprios símbolos da Igreja

    Católica para permanecer cultuando os seus orixás. A

    Foto 8, representada pelo orixá Oxum, contribuiu para a

    nossa reflexão sobre bricolagem.

    Foto 8 – Oxum na umbanda. No ―sincretismo‖ é representada por várias Nossa Senhora Fonte: Disponível em: < ofodelegum com >. Acesso em: 10 set. 2007

    No mesmo artigo, encontrei o significado de candomblé.

    Foi a religião do patrimônio cultural dos/as africanos/as

    que chegou ao Brasil vinda da antiga cidade de Ifé,

    atual Nigéria. Os/as seguidores/as encontraram, em

    terras brasileiras, todo tipo de opressão e discriminação

    de um racismo irracional patrocinado pelos aparelhos

    estatais. O ritual do candomblé conservou, até hoje, a

    memória do universo linguístico de sua africanidade e

    Supõe que à maneira dos povos indígenas os usuários ‗façam uma bricolagem‘ com e na economia cultural dominante, usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras. Desta atividade de formigas é mister descobrir os procedimentos, as bases, os efeitos, as possibilidades (CERTEAU, 2002, p. 40),

  • 45

    cosmovisão , universo este desqualificado em nome de

    uma unidade linguística portuguesa. Problematizei sobre

    a importância dos idiomas africanos que também, a

    exemplo de outros, deveriam estar presentes na

    organização curricular, como forma de reconhecimento e

    valorização da cultura africana.

    A imposição de uma única fé, um único Deus – o Deus

    judaíco-cristão – de concepção eurocêntrica, impunha

    aos/às seguidores/as uma única forma de estética a ser

    seguida pelas famílias negras e não negras. Daí a

    negação da cor vermelha por parecer associada aos

    significados e aos valores não cristãos. Hoje, essas

    pregações e doutrinas cristãs foram/são analisadas e

    problemtizadas no meu cotidiano pessoal e profissional.

    Uso e abuso da cor vermelha, sem preconceitos ou

    discriminações. Busquei ressignificar as manifestações

    culturais da população negra, o que me possibilitou

    construir outras práticas de pertencimento à

    ancestralidade africana sem, contudo, desqualificar as

    demais manifestações culturais e religiosas das outras

    etnias.

    Essa forma de viver esteve/está presente nas relações

    interétnicas, materializando as práticas racistas que

    foram/são tentativas de desqualificação de alguns

    grupos de humano, com a intenção de

    despotencialização da vida, para impedi-la de expressar-

    se em toda a sua dimensão, sobretudo na cultural e

    religiosa e, assim, singularizar-se, ser a gente mesma,

    sem estar vinculada à imposição de um único quadro de

    referência cultural/religioso.

    As reflexões feitas sobre as questões de ordem

    fenotípica e religiosa colocaram para nós,

  • 46

    educadores/as, um grande desafio na desconstrução

    desses valores, costumes, crenças, todos maculados de

    falsa moral, ―falsa medida de homem e de mulher‖,

    porque ao poder hegemônico se conferiu toda

    imposição, de forma barulhenta e expansionista, para

    que seus produtos pudessem ser consumidos,

    atendendo aos seus próprios interesses. O grande

    desafio foi saber fazer uso dessa engenharia capitalista

    de forma tática e estratégica, de maneiras astuciosas,

    silenciosas e negociadas, para assim burlar os objetivos

    dos produtores, transformando-os nos interesses dos

    próprios consumidores/as. Como a escola e a família

    poderão desmitificar essas práticas? Como fazer as

    análises dos materiais didáticos, no sentido de subverter

    os conteúdos pejorativos e desqualificantes das culturas

    estéticas e religiosas que não são socialmente aceitas?

    É importante ressaltar o papel das Universidades

    Federais no que diz respeito ao cumprimento do que

    preconiza o art. 26 A da Lei de Diretrizes e Bases-LDB,

    nº 9.394/96, que tornou obrigatória em todos os

    currículos dos níveis de ensino, a introdução do estudo

    da África, da Cultura Africana e Afro-Brasileira. Certa

    ocasião, quando lecionava no curso formação para

    professores, ministrado pelo NEAB,10 com o tema ―O

    currículo e a temática etnicorracial‖, conteúdo

    assegurado na Lei nº 10.639/03 e nas Diretrizes

    Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

    Etnicorraciais, apresentei aos/as alunos/as algumas

    imagens dos orixás e fiz a seguinte pergunta: você

    levaria esses orixás, a exemplo da Foto 9, para suas

    aulas como conteúdo cultural/religioso? A

    ressignificação desses símbolos poderia contribuir para

    10

    NEAB––Núcleo dos Estudos Afro-brasileiros da UFES.

  • 47

    a desmistificação da matriz religiosa eurocêntrica

    judaíco-cristã? As reações foram, em sua grande

    maioria, não. Por medo, descrença, desinformação,

    negação e rejeição.

    Foto 9- Yemanjá é um orixá africano, cujo nome deriva do Ioruba. Ela é considerada a rainha do mar Fonte: Disponível em: . Acesso em: 24 dez. 2008.

    A minoria que respondeu sim complementou: ―Meu filho

    é pai de santo‖. ―Sim, porque pode contribuir na

    desconstrução desses valores negativos e na

    construção de outros que possam potencializar as

    diferentes religiões‖. Problematizando, perguntei: por

    que as imagens de Jesus e dos/as santos/as do mundo

    católico têm acesso livre nos espaços públicos? A

    Constituição Federal preconiza que o Estado é laico. Por

    que, então, a preferência somente pelas religiões de

    matriz judaico-cristã? Toda trajetória da história de vida

    de ―muitas Nelmas‖ foi permeada pelas culturas da

    naturalização e folclorização que, muitas vezes,

  • 48

    conduziram-me às práticas da banalização,

    desqualificação e estigmatização das outras culturas.

    Considerando a complexidade dos contextos analisados

    até aqui decidi buscar outros novos conhecimentos

    teóricos para enfrentar as demandas desse mundo

    globalizado. No ano de 2005, ingressei no Curso de

    Doutorado na Universidade Federal do Espírito Santo

    (UFES), tendo como objeto de pesquisa as questões

    vinculadas às diferenças etnicorraciais e à luta de

    enfretamento ao racismo estrutural e institucional na

    educação brasileira. Ao iniciar o curso de doutorado,

    matriculei-me na disciplina Estágio de Pesquisa I e II

    tendo como orientadora a professora Maria Elizabeth

    Barros de Barros.

    Nesses dois períodos de estágios, participei do Núcleo

    de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas

    (NEPESP), compondo um grupo multiiprofissional que

    tinha como objetivo a realização de uma pesquisa sobre

    ―Trabalho e Saúd