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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Arquitetura e Urbanismo Rebekah Brito Montenegro Campos Belo Horizonte 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Arquitetura e Urbanismo

Rebekah Brito Montenegro Campos

Belo Horizonte 2013

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Rebekah Brito Montenegro Campos

Monografia apresentada ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo. Orientadora: Profa. Dra. Silke Kapp

Belo Horizonte 2013

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Rebekah Brito Montenegro Campos

O OUTRO LOTEADOR POPULAR: os loteamentos populares associativos sob a participação e a liderança do Padre Piggi

Bernareggi

Monografia apresentada ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

-----------------------------------------------------------------------------------------

Profa. Dra. Silke Kapp (Orientadora) ─ UFMG

-------------------------------------------------------------------------------------------

Profa. Dra. Heloísa Soares de Moura Costa ─ UFMG

------------------------------------------------------------------------------------------- Tiago Castelo Branco Lourenço ─ mestrando UFMG

Belo Horizonte, 4 de dezembro de 2013

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A meus pais, Mario e Patricia,

as minhas irmãs, Rachel e Hannah, e ao meu amado André.

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AGRADECIMENTOS

Graças te rendemos, ó Deus; graças te rendemos, e invocamos o teu nome, e declaramos as tuas

maravilhas. (Salmo 75:1)

Meus sinceros agradecimentos:

Ao Senhor Jesus, a verdadeira Sabedoria, por meio de quem todas as coisas subsistem. Dou graças

a Ele por cada pessoa com quem tive a honra de conviver nesses cinco anos;

A Silke pelo conhecimento compartilhado, pelas discussões proporcionadas nesses últimos anos do

grupo MOM e, também, pelo entusiasmo transmitido nas investigações que resultaram esta

monografia;

Aos meus pais, Mario e Patrícia, por criarem todas as condições para que eu chegasse até aqui.

Obrigada por todo consolo, ensino, correção, amor e pela presença de vocês;

As minhas irmãs e eternas amigas, Rachel e Hannah, por me compreenderem e me divertirem por

todos esses anos;

Ao André pelo amor sincero, pela cumplicidade e pelo companheirismo;

A irmã e amiga Marina Coutinho, por todo apoio dispensado, principalmente na fase final desse

trabalho;

Às (aos) queridas (os) Yaçana, Fernanda, Bárbara Groppo, Barbara Olyntho, Lívia, Tiago, Lucas,

Maria Clara, Mariane Lin: foi um grande prazer conhecê-los e compartilhar com vocês todos os

dramas e conquistas nesses cinco anos;

Aos entrevistados sem os quais esta monografia não existiria: Pe. Piggi Bernareggi, José Laender,

Gladis Oliveira, Cornélia de Souza, Cláudio Beleza, Maria da Silva, Antônio Castro, Antônio Ruas,

Jair e Mari, Raimundo, Fernando Raimundo. Muito obrigada pela paciência!

À professora Ana Paula Baltazar por tornar o primeiro período em um “divisor de águas”. Agradeço

também por compartilhar suas discussões e criticas sobre a Arquitetura;

Ao grupo de pesquisa MOM, por compartilhar comigo de suas ricas discussões. Por ampliar as

possibilidades de atuação do arquiteto e, principalmente, dos usuários na produção mais autônoma

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do espaço;

Ao Rodrigo pela amizade e solicitude por esses dois anos e meio de MOM;

Ao Pedro pelas conversas e companhia nas descobertas feitas neste trabalho;

A Ligia pelas ricas conversas proporcionadas;

À professora Heloísa Costa pelo ensino ministrado nas aulas de Planejamento Regional que muito

me instigou a ter uma visão mais critica quanto ao processo de desenvolvimento da Região

Metropolitana de Belo Horizonte. Sua contribuição foi indispensável para esta monografia;

Ao Thiago Lourenço pela rica troca de saber teórico pratico durante esse ano;

Por fim, aos queridos familiares, irmãos em Cristo, professores, colegas, funcionários: muito

obrigada!

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O que oprime ao pobre insulta ao seu Criador; mas honra-o aquele que se compadece do necessitado.

(Prov.14, 31)

O que para aumentar o seu lucro oprime o pobre, e dá ao rico, certamente chegará à penúria.

(Prov. 22, 16)

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RESUMO

A produção de loteamentos residenciais periféricos destinados à população de menor renda

constituiu uma forma comum de expansão urbana em Belo Horizonte e em municípios vizinhos. A

maior parte deles foi promovida pelo pequeno capital imobil iário (loteador privado), com lucros

exorbitantes, extraídos da combinação de preços unitários altos e ausência quase total de

infraestrutura urbana. A literatura especializada inclui descrições detalhadas desse processo, tanto

na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) quanto em outras metrópoles brasileiras. No

entanto, há outro tipo de produção de loteamentos populares, bem menos conhecido e estudado,

mas igualmente relevante na formação da RMBH: os loteamentos realizados por associações de

sem-casa, cuja atuação não visa ao lucro, mas ao provimento de terra urbana e de moradia. O

trabalho aqui apresentado tem por objetivo reconstruir, historicamente, o processo de produção

desses loteamentos associativos. Mais especificamente, investigam-se quatro deles, liderados ou

iniciados pelo padre Pier Luigi Bernareggi, o chamado padre Piggi, nas décadas de 1980 e 1990. Por

meio de levantamento físico, documental e cartográfico, e de entrevistas não estruturadas e semi -

estruturadas, procura-se compreender os procedimentos internos das associações, suas relações

com agentes externos (tais como prefeituras, proprietários de terras, igrejas, arquitetos e outros) e as

características sócio-espaciais dos bairros resultantes. A história desses loteamentos associativos,

com todas as suas limitações e percalços, mostra indícios de uma urbanização de caráter

autogestionário – algo que nenhum programa habitacional ou urbano (municipal ou federal)

conseguiu fazer até agora. Nesse sentido, conhecer seus processos pode ajudar a informar futuras

ações de produção da cidade mais democrática.

Palavras-chave: Autogestão. Autoprodução. Habitação de Interesse Social. Loteamentos Populares.

Loteamentos Associativos.Participação.

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ABSTRACT

The production of peripheral residential land developments for the low income population was a

common form of urban expansion in Belo Horizonte and surrounding counties in the past decades.

Small real estate capital (private housing developer) has fostered most of these productions resulting

in excessive capital gains from the combination of high unit prices and the almost total absence of

urban infrastructure. Specialized literature includes detailed descriptions of this process both in the

Greater Belo Horizonte Metropolitan Area and in other Brazilian metropolises. However, there is

another kind of production of popular residential land developments, though less known and studied,

but equally important in shaping the Greater Belo Horizonte: the associations of homeless citizens

which are non-profit organizations that seek to provide them with urban land and housing. The work

presented here aims to reconstruct historically the production process of some of these associative

land developments. More specifically, it aims to investigate four of them which were led or initiated by

Fr. Pier Luigi Bernareggi (known as Fr. Piggi) in the 1980´s and 1990´s. In order to understand the

internal procedures of those associations, as well as their relations with the external agents (such as

municipal governments, landowners, churches, architects and others) and the socio-spatial

characteristics of the resulting developments, physical, documentary and cartographic survey were

conducted, as well as unstructured and semi-structured interviews. The history of those associative

settlements, with all their limitations and drawbacks, shows evidence of a self-managed urbanization

of character – something that no housing or urban program (local or federal) managed to accomplish

so far. In this sense, the understanding of their processes may help to assist future actions towards a

more democratic production of the city.

Keywords: Self-management. Self-production. Social interest housing. Popular residential land

developments. Associative residential land developments. Participation.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 ─ Sistematização esquemática das associações em que o Pe. Piggi atuou ........... 25

FIGURA 2 ─ Esquema da trajetória de Piggi pelos movimentos (quando liderança) ................ 34

FIGURA 3 ─ Localização dos loteamentos associativos do Pe. Piggi feitos de 1980 a 1990 .... 38

FIGURA 4 ─ Localização do Bairro (Conjunto) Jardim Felicidade.............................................. 55

FIGURA 5 ─ Demarcação aproximada das seções do Bairro Felicidade ................................... 56

FIGURA 6 ─ Evolução da ocupação do Jardim Felicidade ......................................................... 57

FIGURA 7 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Jardim Felicidade) .................... 58

FIGURA 8 ─ Ocupação às margens do córrego em destaque .................................................... 59

FIGURA 9 ─ Fotos do início da ocupação do Felicidade ............................................................ 60

FIGURA 10 ─ Situação atual do Bairro Jardim Felicidade ─ Expansão vertical e horizontal ... 61

FIGURA 11 ─ Localização do Bairro Novo Aarão Reis ................................................................ 82

FIGURA 12 ─ Provável localização da primeira ocupação do Bairro Novo Aarão Reis ............ 83

FIGURA 13 ─ Provável localização do barraco de lona onde Maria e sua família moraram ..... 83

FIGURA 14 ─ Casas populares no Conjunto Habitacional Novo Aarão Reis, 1993 ................... 84

FIGURA 15 ─ Situação atual do local registrado da figura anterior (Novo Aarão Reis) ............ 85

FIGURA 16 ─ Situação atual do Bairro Novo Aarão Reis ............................................................ 86

FIGURA 17 ─ Evolução da invasão da área verde e ribeirinha (Novo Aarão Reis) .................... 87

FIGURA 18 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Novo Aarão Reis) .................... 88

FIGURA 19 ─ Localização do Bairro Metropolitano, Ribeirão das Neves .................................. 98

FIGURA 20 ─ Projeto final para o Metropolitano – lotes de 400 m2 (proposta aprovada) ......... 99

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FIGURA 21 ─ Projeto Inicial do Bairro Metropolitano, de 1996 (esquerda) e projeto final para

aprovação, de 1998 (direita) ........................................................................................................ 100

FIGURA 22 ─ Projeto final para o Metropolitano ....................................................................... 101

FIGURA 23 ─ Comparação do projeto e a situação real da ocupação (Bairro Metropolitano) 102

FIGURA 24 ─ Fotos do início da ocupação do Bairro Metropolitano ....................................... 103

FIGURA 25 ─ Fotos antigas referentes à implementação de infraestrutura, contratos e outros

(Bairro Metropolitano) ................................................................................................................. 104

FIGURA 26 ─ Vista panorâmica do Bairro Metropolitano ......................................................... 105

FIGURA 27 ─ Situação atual das casas ─ Parte da AMABEL ................................................... 105

FIGURA 28 ─ Situação atual do Metropolitano .......................................................................... 106

FIGURA 29 ─ Vista geral do Metropolitano ................................................................................ 107

FIGURA 30 ─ Localização do loteamento Roma ........................................................................ 124

FIGURA 31 ─ Localização San Marino e Roma – vista aérea .................................................... 125

FIGURA 32 ─ Localização do San Marino e Roma – vista panorâmica .................................... 126

FIGURA 33 ─ Projeto Geométrico do Bairro Roma (2001) ........................................................ 127

FIGURA 34 ─ Projeto Inicial do parcelamento do Roma ........................................................... 127

FIGURA 35 ─ Zoneamento referente à Lei complementar 037/2006 (Bairro Roma) ................. 128

FIGURA 36 ─ Evolução da ocupação do Bairro Roma (2003 a 2011) ....................................... 129

FIGURA 37 ─ Evolução da ocupação do Bairro Roma (2011 a 2013) ....................................... 130

FIGURA 38 ─ Comparação do projeto e da situação real da ocupação do Bairro Roma ........ 131

FIGURA 39 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Bairro Roma) ......................... 132

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FIGURA 40 ─ Condições precárias das casas no Bairro Roma, 2013 ...................................... 133

FIGURA 41 ─ Caracterização do espaço urbano do Roma ....................................................... 134

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1: Informações básicas dos quatro loteamentos avaliados ................................................ 21

TABELA 2: Relação entre associação e loteamentos feitos pelo Pe. Piggi (vínculo direto) .............. 36

TABELA 3: Andamento da coleta de dados específicos de cada loteamento. ................................. 42

TABELA 4: Dados gerais dos loteamentos. ..................................................................................... 53

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LISTA DE SIGLAS

ABAFE Associação Comunitária do Bairro Felicidade

ADE Área de Diretrizes Especiais

AEIS Área de Especial Interesse Social

AMABEL Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte

APCBH Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

ASCOM Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Belo Horizonte

ASMOBAM Associação dos Moradores do Bairro Metropolitano

AVSI Associação Voluntária Social Italiana (ONG italiana)

BH Belo Horizonte

BNH Banco Nacional da Habitação

CDI Companhia dos Distritos Industriais

CEABRA-MC Coletivo de Empresários e Empreendedores Negros Afro-Brasileiros do Município de Contagem

CEGIPAR Centro de Informações Georreferenciadas, Pastorais e da Religião

CEMCASA Central Metropolitana dos Sem-Casa

Cemig Companhia de Energia Elétrica de Minas Gerais

CF Campanha da Fraternidade

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

Cohab Minas Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais

COPASA MG Companhia de Saneamento de Minas Gerais

DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes

FAMOBH Federação das Associações de Moradores de Bairros, Vilas e Favelas de Belo Horizonte

FAVIFACO Federação das Associações Comunitárias das Vilas, Favelas e Conjuntos Populares de Belo Horizonte e Região Metropolitana

FINEP Agência Brasileira da Inovação

FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano

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LUOS Lei de Uso e Ocupação do Solo

MOM Grupo de Pesquisa Morar de Outras Maneiras

NPGAU Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

ONG Organização não governamental

OP Orçamento Participativo

OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

PAC Plano de Aceleração do Crescimento

PBH Prefeitura de Belo Horizonte

PMCMV Programa Minha Casa Minha Vida

PRJ Departamento de Projetos

PRODABEL Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte

PUC Minas Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

RMBH Região Metropolitana de BH

SEAC Secretaria Especial de Ação Comunitária

SMAPL Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte

UMEI Unidade Municipal de Ensino Infantil

URBEL Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte

UTP União dos Trabalhadores de Periferia

ZEIS Zona Especial de Interesse Social

ZEU Zona de Expansão Urbana

ZUM Zona de Uso Misto

ZUPP Zona Urbana de Preservação Permanente

ZUR Zona de Uso Preferencial Residencial

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ÍNDICE

1 QUEM É “O OUTRO LOTEADOR POPULAR”? ........................................................................... 19

2 A TRAJETÓRIA DO PADRE PIGGI NA LUTA PELA MORADIA: BREVE PANORAMA ................ 24

3 LOTEAMENTOS ASSOCIATIVOS DO PADRE PIGGI ................................................................. 36

4 JARDIM FELICIDADE .................................................................................................................. 54

Processo de aquisição da gleba ....................................................................................................... 62

Definição dos papéis ......................................................................................................................... 64

Ocupação ......................................................................................................................................... 65

Construção das casas ...................................................................................................................... 67

Infraestrutura .................................................................................................................................... 69

Mobilização temporária ..................................................................................................................... 71

Ocupação da área de preservação e à margem do córrego .............................................................. 72

Corrupção interna ............................................................................................................................. 74

Processo de regularização e Isenção de imposto ............................................................................. 75

Considerações .................................................................................................................................. 77

5 NOVO AARÃO REIS .................................................................................................................... 81

O processo de ocupação na perspectiva de uma moradora .............................................................. 91

Ocupação à margem do córrego ....................................................................................................... 93

Segurança ........................................................................................................................................ 93

Planos para o futuro ......................................................................................................................... 94

Corrupção interna ............................................................................................................................. 94

Processo de regularização ................................................................................................................ 94

Considerações .................................................................................................................................. 95

6 METROPOLITANO ...................................................................................................................... 97

Definição dos papéis ....................................................................................................................... 108

Recursos ........................................................................................................................................ 109

Processo de aquisição da gleba ..................................................................................................... 109

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Projeto de parcelamento ................................................................................................................. 110

Ocupação e construção das casas ................................................................................................. 111

Levantamento topográfico ............................................................................................................... 113

Ocupação da área de preservação e à margem do córrego ............................................................ 113

Infraestrutura .................................................................................................................................. 114

Reuniões com os moradores .......................................................................................................... 114

Cooperativas .................................................................................................................................. 115

Corrupção interna e externa ........................................................................................................... 115

Regularização ................................................................................................................................. 118

Considerações ................................................................................................................................ 120

7 ROMA ........................................................................................................................................ 123

Regulação do solo .......................................................................................................................... 136

Aquisição da gleba ......................................................................................................................... 137

Ocupação ....................................................................................................................................... 137

Definição dos papéis ....................................................................................................................... 142

Demarcação dos lotes .................................................................................................................... 143

Processo de aquisição do lote ........................................................................................................ 144

Ocupação da área de preservação e institucionais ......................................................................... 146

Construção das casas .................................................................................................................... 147

Infraestrutura .................................................................................................................................. 147

Abertura das vias ............................................................................................................................ 149

Serviços urbanos ............................................................................................................................ 149

Nova associação ............................................................................................................................ 150

Corrupção interna ........................................................................................................................... 151

Regularização ................................................................................................................................. 152

Planos futuros ................................................................................................................................. 153

Processo de regularização .............................................................................................................. 154

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS E APONTAMENTOS ...................................................................... 157

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 162

ENTREVISTAS REALIZADAS ........................................................................................................ 165

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APÊNDICES ................................................................................................................................... 167

Apêndice 1 Linha do Tempo com Indicação do Recorte Temporal do Trabalho ........................ 168

Apêndice 2 Metodologia Desenvolvida para Entrevistas ........................................................... 169

ANEXOS ......................................................................................................................................... 172

Anexo 1 Relação das vilas e conjuntos regularizados (1986 - 2012) .............................................. 172

Anexo 2 Regularização das Vilas e Conjuntos ............................................................................... 174

Anexo 3 Loteadores associativos: uma contextualização ............................................................... 175

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19

1 QUEM É “O OUTRO LOTEADOR POPULAR”?

A questão da habitação popular no Brasil é marcada pela ineficácia dos programas desenvolvidos

pelo Poder Público em suas várias instâncias: federal, estadual e municipal. É possível observar pelo

menos duas tendências em alguns desses programas. A primeira é a tendência de se desvirtuar de

sua proposta inicial, como o Banco Nacional da Habitação (BNH) 1, favorecendo a acumulação de

capital por agentes privados. A segunda é a de se voltar para a produção de novos assentamentos e

a urbanização e a regularização de vilas e favelas.

Apesar dos esforços, nenhuma dessas políticas contemplou aqueles que de fato careciam – a

população de poder aquisitivo de 0 a 3 salários mínimos. Atribuí-se esse fato à incapacidade de esse

grupo arcar com qualquer tipo de financiamento – uma das condições, na maioria dos casos, para

ser contemplado pelos programas de habitação – ficando, a cargo do governo, o subsídio para tanto.

Se o acesso à moradia, e, portanto, à cidade, relaciona-se ao poder aquisitivo da pessoa, conclui-se

que fica cada vez mais distante a possibilidade para a população de baixa renda adquirir uma

moradia na cidade.

Dessa maneira, passam a serem duas as possibilidades para solucionar o problema: a ação

independente da população, individual ou coletivamente, por meio de ocupação de favelas, de

invasão de terrenos desocupados, de moradia de favor ou de aluguel e, em último caso, de moradia

de rua; ou a ação de agentes externos por meio de produção de loteamentos em várias porções da

cidade e suas imediações – motivadas pela obtenção de lucro (agente privado) ou, contrapondo-se

ao primeiro, associativamente, a favor dos pobres (“o outro” agente).

A produção desses loteamentos periféricos destinados à população de baixa renda constituiu em

uma forma comum de expansão urbana em Belo Horizonte e em municípios vizinhos,

particularmente, no período que antecede a implementação da “Lei dos loteamentos” (Lei Federal

6766/1979), das leis de uso e ocupação de solo e do Plano Diretor (Lei Federal 10.257/2001). A

maior parte desses loteamentos foi promovida pelo pequeno capital imobiliário (na figura do loteador

1 Santos (2006) faz uma revisão das diversas políticas habitacionais voltadas à população de baixa renda no Brasil, a fim de compreender as formas de atuação dessas políticas na atualidade. Sua investigação foi norteada pela hipótese de que “essas políticas contribuíram mais para aprofundar situações de desigualdades urbanas do que para minimizá -las”. (SANTOS, 2006, p.134) Nesse sentido, ela observa a atuação da política do BNH (1964-1986) como um “divisor de águas” que, ao se desvirtuar de sua proposta inicial (contemplar a população de baixa renda), passa a voltar -se para as classes média e alta. Dessa maneira, favorece o crescimento econômico do país, alimentando o “sistema de acumulação e da concentração de renda” por agentes privados (SANTOS, 2006, p.18).

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privado)2, com lucros exorbitantes extraídos da combinação de preços unitários altos e ausência

quase total de infraestrutura urbana. A literatura especializada inclui descrições detalhadas desse

processo tanto em Belo Horizonte quanto em diversas outras capitais brasileiras (CHINELLI, 1981;

COSTA, 1994; SOUSA, 2002; CAMPOS, 2009).

No entanto, é possível observar, em vários locais de Belo Horizonte, a atuação de outro tipo de

loteador popular, denominado neste trabalho de loteador associativo3. Ele atua sem a intenção de

obter lucro, para atender, á princípio, de forma bem intencionada, à população pobre da cidade.

Suas atuações são menos conhecidas, mas também fazem parte da história do processo de

produção da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), como discutimos mais

detalhadamente no artigo "Loteadores associativos: uma contextualização" (ver Anexo 3). É possível,

por exemplo, identificar loteamentos populares produzidos por associações de futuros moradores

com apoio, sobretudo, de agentes ligados à Igreja Católica. A existência desses loteamentos indica

que pode ter havido, na RMBH, empreendimentos de urbanização de características

autogestionárias, coisa que nenhum programa habitacional ou urbano (municipal ou federal)

conseguiu fazer até agora. Como há pouco material sobre esses loteamentos, busca-se, no presente

trabalho, investigar sua história: em que contexto político e econômico ocorreu e até que ponto foi

concebido e gerido com alguma autonomia dos moradores.

O objetivo geral desta pesquisa é reconstruir, historicamente, o processo de produção de

loteamentos associativos para a população de baixa renda entre os períodos de 1980 e 1990, na

RMBH, sob a liderança do padre Piggi, um dos principais agentes desse grupo, incluindo seus

procedimentos internos e suas relações com agentes externos (prefeituras, proprietários de terras,

igreja, dentre outros) (ver linha do tempo em Apêndice 1). Mais especificamente, pretendeu-se

descobrir como se deu o desenvolvimento urbano, a situação econômica, social e política das

associações e dos moradores em quatro dos nove loteamentos que tiveram liderança e/ou

participação do Pe. Piggi a fim de compreender melhor as peculiaridades e semelhanças existentes

2 Costa (1994), assim como outros autores, atribui, até o momento, à figura do loteador popular apenas o agente privado, aquele que atua para obtenção de lucro à custa da expropriação da população de baixa renda. No entanto, na pesquisa em andamento – explicada mais adiante no Item 3 – foi possível identificar outro tipo de agente que também atuou como loteador popular, sobretudo no período entre 1980 e 1990. 3 Surge assim o nome o “outro loteador popular” – outro loteador que não o loteador privado. Em o “outro loteador popular” mencionado no presente trabalho, Pe. Piggi atuou por meio de associação ou em conjunto com outras associações. Assim, usar-se-á a expressão “loteador associativo”, ao longo desse traba lho, para se referir a ele e, portanto, “loteamentos associativos” aos loteamentos populares feitos por ele.

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entre eles. Dois deles estão localizados em Belo Horizonte: o pioneiro, Jardim Felicidade (1986), e o

Novo Aarão Reis (1991). Os outros dois encontram-se em Ribeirão das Neves: o Metropolitano

(1996) e o Roma (1998) (Ver Tabela 1).

As características variavam, certamente, de um loteamento para outro, conforme os diversos

aspectos que definiram o contexto em que se inseriram: seja pelo modo de obtenção das glebas

(doadas, compradas ou invadidas), ou dos recursos para o empreendimento (federal, estadual,

municipal, de organizações não governamentais ou dos futuros moradores), ou a seleção dos

técnicos contratados (proximidade com alguns dos envolvidos no processo, seja por meio de

associações de moradores ou do Poder Público), ou do tempo em que ficou na clandestinidade

(desde a aquisição da gleba até o cadastramento dos lotes).

Constatou-se, por exemplo, que, em alguns casos, houve o consentimento inicial do Poder Público

(seja por meio de recursos federais e/ou estaduais cedidos) e recursos de organizações não

governamentais (nacionais e/ou internacionais), como foi o caso do Jardim Felicidade, durante a

gestão municipal de Sérgio Ferrara. Em outros, ao contrário deste, houve o apoio governamental

pós-invasões de terrenos públicos, como no caso do Bairro Novo Aarão Reis, com atuação do

governo estadual por meio da Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais (Cohab Minas).

Ainda, em outros casos, não houve qualquer apoio governamental, como no Bairro Metropolitano, em

que a associação se uniu a outras para realizar o loteamento, ou passou a atuar por conta própria,

como no caso do Roma.

Tabela 1 ─ Informações básicas dos quatro loteamentos avaliados

Data de

Concepção Data de

Aprovação

Associação Envolvida

AMABEL CEMCASA FAVIFACO FAMOBH

Jardim Felicidade 1986/87 2005/06

Novo Aarão Reis 1992/94 -

Metropolitano 1996/97 1998

Roma 1998/99 -

AMABEL: Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte; CEMCASA: Central Metropolitana dos Sem-Casa; FAVIFACO: Federação das Associações Comunitárias das Vilas, Favelas e Conjuntos Populares de Belo Horizonte e Região Metropolitana e FAMOBH: Federação das Associações de Moradores de Bairros, Vilas e Favelas de Belo Horizonte

Fonte: Elaborada pela autora

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Considerou-se a seleção desses quatro loteamentos por representarem quatro momentos marcantes

do movimento do padre entre as décadas de 1980 e 1990 – o início, o apogeu e a queda. O marco

zero (referencial) é o Jardim Felicidade; sua continuidade é o Novo Aarão Reis; o ápice do

movimento é o Metropolitano; a “queda” é representada pelo Roma.

A metodologia utilizada foi desenvolvida pelo Morar de Outras Maneiras (MOM), grupo de pesquisa

do CNPq, criado em 2004, sediado pelo Departamento de Projetos (PRJ) e pelo Programa de Pós-

graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura da UFMG, durante as

investigações realizadas no contexto da Rede FINEP de Tecnologias Sociais para a Moradia (Rede

Morar TS). Essa metodologia é composta de revisão e levantamento bibliográficos; pesquisa

documental e de imagens – incluindo seleção, análise, sistematização, registro e avaliação;

levantamento de campo – incluindo observação direta, levantamento fotográfico e em vídeo e

entrevistas semiestruturadas e não estruturadas, com elaboração de roteiro, execução, registro e

avaliação (ver Apêndice 2).

Encontrar informações sobre esses loteamentos foi um processo um tanto quanto instigante: os

desafios enfrentados, por um lado, limitaram a abrangência do trabalho, mas, por outro, contribuíram

para o surgimento de alguns questionamentos, sobretudo relacionados ao acesso à informação.

Enquanto existe um acervo relativamente amplo de literatura relacionada às atuações dos loteadores

populares privados, poucas são as informações disponíveis sobre os loteamentos associativos. Seus

processos de produção não foram documentados sistematicamente nem pelas próprias associações,

nem pelo Poder Público.

Dos poucos documentos produzidos pelas associações ou por sua encomenda, a maior parte se

perdeu no caos cotidiano de seus pequenos escritórios-sede. Para elas, a documentação nunca foi

prioridade: “a gente não tinha essa preocupação de registrar. [...] Na verdade a gente tinha

ansiedade de ocupar e conquistar, mas não do registro em si” (OLIVEIRA, 2013, entrevista). Além

disso, havia poucos recursos tecnológicos (ou financeiros) para um registro sistemático: “Então era

muita adrenalina e tal, você não tinha tempo para essas coisas [registrar o processo], sabe? E ainda,

até mesmo a condição tecnológica não era igual à de hoje. Hoje você com o celular você [...] você

rapidinho está registrando, documentando, guardando. “Mas naquela época não, não tinha.”

(OLIVEIRA, 2013, entrevista).

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Por outro lado, também não havia interesse do Poder Público em documentar o processo de atuação

dos loteadores associativos: “Porque dessa época [décadas de 1980 e 1990], desses locais [os

outros loteamentos mencionados] você não vai conseguir [materiais] não. Porque, igual esse pessoal

que está fazendo essas ocupações hoje. Hoje tem muitas documentações, porque tem interesse do

Ministério Público. [...] Naquela época não. Não tinha”. (OLIVEIRA, 2013, entrevista).

Soma-se a essa escassez de registros a dificuldade de acesso às informações nos órgãos públicos,

que enfrentamos durante toda a pesquisa. Foi necessário recorrer aos mais diversos meios para

obter mapas, plantas cadastrais, fotos, dados quantitativos, e outros documentos; o que leva a

imaginar que haja nesses órgãos, certa má vontade em relação aos pesquisadores, seja pela falta de

organização dos arquivos, seja porque representam alguma espécie de “ameaça”.

Sendo assim, as entrevistas com líderes das associações e com moradores dos loteamentos se

tornaram fontes imprescindíveis. Embora muitas vezes fornecessem informações pouco precisas no

que diz respeito a datas e relações institucionais, resultaram num rico levantamento de dados.

Juntamente com as visitas in loco, também possibilitaram à pesquisadora compartilhar um pouco das

experiências vividas por esses atores.

Apesar dos empecilhos e das limitações supracitados, foi possível coletar informações suficientes

sobre quatro dos loteamentos, que permitem um vislumbre das estratégias embutidas na atuação do

Pe. Piggi que não são de meras repetições mecânicas. Procurou-se identificar os principais aspectos

que possibilitaram o desenvolvimento de cada um desses quatro loteamentos, evidenciando as

características em que se assemelham ou se diferenciam (contexto político, união entre associações,

incentivos, etc.).

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2 A TRAJETÓRIA DO PADRE PIGGI NA LUTA PELA MORADIA: BREVE

PANORAMA

Objetiva-se contextualizar as atuações do loteador popular, definir quais os precedentes que

culminaram nesse tipo de atuação (político, econômico, legal, sócia) e, mais especificamente,

apontar alguns dos principais aspectos que viabilizaram ou dificultaram a sua atuação, e quais foram

as principais características dessa atuação. Por fim introduzir-se-á a figura do loteador popular

associativo.

O “outro loteador popular” considerado neste trabalho refere-se ao padre Pier Luigi Bernareggi – Pe.

Piggi. Para compreender suas atuações, busca-se, aqui, retomar sua história – de onde veio, quais

influências recebeu, quais foram suas motivações e quais atores participaram junto a ele em suas

lutas.

Pe. Piggi, nascido em 1939 e criado em Milão (Itália), engajou-se, desde a juventude, na década de

1950, no movimento estudantil católico e, a partir de então, começou a voltar -se para as ações

sociais da Igreja Católica. A vinda do Pe. Piggi ao Brasil em 1964 foi motivada por seus superiores –

sobretudo por Dom Luigi Giussani4 – para ingressar em um seminário, onde obteria o doutorado em

filosofia. É provável que sua vinda tenha alguma relação com a disseminação da Teologia da

Libertação nesse mesmo período (1950 e 1960) 5. Em 1967, o padre estabeleceu-se na paróquia

Primeiro de Maio, onde se encontra até hoje.

Seu engajamento pelos pobres pode ser dividido em duas fases. A primeira é voltada para a causa

dos favelados, quando atuou por meio da Pastoral de Favelas, entidade ligada à Arquidiocese de

Belo Horizonte, criada na década de 1970 com o apoio, também, da União dos Trabalhadores de

4 Dom Luigi Giussani foi o fundador do movimento Comunhão e Libertação, cujo nome inicial era Juventude Estudantil (Gioventù Studentesca – GS) (1954). (CLOLINE, 2013) Disponível em <http://br.clonline.org/default.asp?id=518>. Acesso em: 20 de maio de 2013. Ele foi também o responsável por enviar os padres Piggi e Virgilio Resi para o Brasil (ao Bairro Primeiro de Maio em Belo Horizonte) com o apoio da Fundação AVSI – ONG italiana que atua segundo a doutrina social católica.

5 Menezes Neto (2010) relata a criação da Teologia da Libertação entre as décadas de 1950 e 1960 . Tratou-se da conjugação dos princípios socialistas de Marx com a doutrina social da igreja. O autor ainda aponta a influência dessa teologia nos movimentos sociais no Brasil e na América Latina que surgiram, sobretudo, na década de 1980. É nesse contexto que é mencionada a vinda de padres europeus ao Brasil os quais passam a estender suas atuações (trabalhos sociais) em países latino-americanos. Essa pode ser uma das justificativas para a vinda do Pe. Piggi ao Brasil.

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Periferia (UTP). Já a segunda fase volta-se para a situação dos sem-casa, que é o enfoque deste

trabalho. (Figura 1).

Figura 1 ─ Sistematização esquemática das associações em que o Pe. Piggi atuou

CF: Campanha da Fraternidade

Fonte: Autora, 2013

Primeira fase: as favelas

A primeira fase de atuação do Pe. Piggi foi marcada pela formação de favelas, como a Vila São

Miguel (na década de 1980) e a Comunidade Boa União (1978-1985). Foi durante essa fase que Pe.

Piggi conheceu algumas pessoas envolvidas nos movimentos populares que, em conjunto,

contribuíram para o desenvolvimento da Lei do Profavela6 (Lei Municipal nº 3.532, de 6 de janeiro de

1983), a primeira lei no país a possibilitar a regularização fundiária nas favelas mediante a definição

de um zoneamento próprio (o chamado Setor Especial 4 ou SE-4). A freira italiana Rosetta Brambilla

e o arquiteto José Carlos Laender de Castro fizeram parte desse grupo e atuaram ao lado do Pe.

Piggi.

Rosetta Brambilla foi enviada ao Brasil pela Fundação AVSI (Associação Voluntária Social Italiana,

uma ONG italiana ligada à doutrina social da Igreja Católica) na mesma época que Pe. Piggi.

Atuaram juntos na Pastoral de Favelas de Belo Horizonte. Rosetta foi responsável pela fundação de

6 Mais informações sobre o contexto e processo de desenvolvimento dessa lei em Santos (2006).

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três creches e do Centro Educacional Alvorada7. Sabendo do envolvimento do Pe. Piggi na Vila Boa

União (no início da década de 1980), e no loteamento Jardim Felicidade (1986/87), a existência das

creches feitas por Rosetta em ambos os lugares indica uma provável coparticipação junto ao Pe.

Piggi.

José Carlos Laender de Castro, nascido em Teófilo Otoni, MG, em 1938, esteve engajado com as

obras sociais promovidas pela Igreja Católica desde a sua juventude, principalmente, quando fazia

parte da Juventude Universitária Católica (JUC) em Belo Horizonte. Seu engajamento com essas

questões foi um dos condicionantes para seu envolvimento com a causa da população de baixa

renda – sobretudo em relação à moradia. Ele associa o início de sua interação com Pe. Piggi ao

período em que foi presidente da Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte

(URBEL) em 1991 (LAENDER DE CASTRO, 2013, entrevista). Nessa época, eles puderam atuar em

conjunto quando fizeram parte da Pastoral de Favelas de Belo Horizonte. Laender de Castro foi o

arquiteto responsável pelo desenvolvimento dos projetos de algum dos loteamentos associativos

organizado pelo padre, como o do Bairro Metropolitano (1996).

7 A primeira foi a Creche Etelvina Caetano de Jesus criada em 1987 na antiga Vila Boa União (atual Bairro Primeiro de Maio). Ela é conveniada à AVSI desde 1992. A segunda foi a Creche Comunitária Jardim Felicidade criada em 1991 no bairro de mesmo nome e conveniada à AVSI desde 1993. Nesse caso, a obra foi realizada com recursos da AVSI, da URBEL e da Secretaria do Estado, do Trabalho e Ação Social. A terceira foi a Creche Dora Ribeiro criada em 1998 no Bairro Providência. Por sua vez, o Centro Educacional Alvorada foi criado em 1999 no Bairro Felicidade. (COEREZZA, 2001, p. 50-54).

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Segunda fase: os loteamentos

A transição da fase em que Pe. Piggi atuava em favelas para a fase em que atuava em loteamentos

não é muito clara. Sabe-se, porém, que essa etapa ocorreu durante a construção do Bairro Mariano

de Abreu, em 1985. Tanto Pe. Piggi quanto Laender de Castro consideram esse bairro como um

loteamento. Enquanto o padre associa a construção do bairro a uma das atuações da Associação

dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte (AMABEL), criada em 1986, Laender de Castro

responsabiliza a Pastoral de Favelas pela formação do mesmo local. É a partir da construção desse

bairro que o padre inicia seu trabalho com loteamentos.

A Pastoral de Favelas foi extinta entre 1986 e 1987, data próxima à criação da AMABEL (1986). Não

se sabe, no entanto, se o padre atuou pela Pastoral de Favelas até o momento da sua extinção ou

se ele deixou essa entidade previamente, para, só depois, criar a AMABEL8. Seja qual for a situação,

a experiência adquirida pelo padre durante suas atuações com favelados permitiu que ele

começasse a se envolver com a situação dos sem-casa.

A cartilha elaborada pela Fundação AVSI, Projeto História Viva: Conjunto Jardim Felicidade,

FUNDAÇÃO AVSI (2007), data o engajamento do Pe. Piggi com os sem-casa em 1985, quando, em

sua paróquia, de Todos os Santos, próxima ao Primeiro de Maio, começou a instigar aqueles que

moravam de aluguel nas favelas (muitos dos quais sofriam ameaças de remoção) a se mobilizarem

para conquistar a casa própria.

Nasce assim o primeiro grupo de sem-casa da cidade, grupo que teve início com duas ou três

famílias. A primeira ação do grupo foi identificar no bairro todos os que se encontravam em situação

semelhante e convidá-los para reuniões semanais no salão da igreja. Dentro de poucos meses,

ainda em abril de 1985, foram contatadas 800 famílias de sem-casa que moravam na região do

Primeiro de Maio. Dando prosseguimento às reuniões semanais, o movimento cresceu e mais tarde

chegou a envolver pessoas de outros lugares da cidade. Foram criados núcleos em mais de seis

bairros: Aarão Reis, Suzana, Tupi/Floramar, São Bernardo, Guarani e Bairro da Lagoa. O movimento

8 Piggi atribui a extinção da Pastoral de Favelas à pressão das especulações imobiliárias catalisadas por grandes firmas.

Mais adiante, ele menciona o envolvimento de um desses especuladores, Dom Arnaldo Ribeiro. O padre acredita que ele pertencia a uma grande família de especuladores que o pressionou a extinguir a Pastoral de Favelas. Mas essa é apenas uma das hipóteses (BERNAREGGI, nov/2011, entrevista).

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chegou a agregar mais de 3500 famílias e, quando se fez necessário formalizá-lo como entidade

jurídica, foi constituído como Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte –

AMABEL. (FUNDAÇÃO AVSI, 2007, p.8-9)

A Fundação AVSI (2007) ainda comenta que, concomitantemente a esse, outros movimentos e

organizações de cunho popular também surgem em todo o país: “eles surgem pela interação de

diversos fatores: condições objetivas de abandono dos setores mais pobres; crescimento da

consciência popular; abertura política concomitante ao enfraquecimento da ditadura”. (FUNDAÇÃO

AVSI, 2007, p.9)

Desde sua criação em 1986, a AMABEL mostrou interesse em estabelecer parceria com o Poder

Público. A primeira delas foi com o prefeito Sérgio Ferrara (1983-1986) e, em seguida, com o apoio

federal, por meio de “Manoel Costa [deputado federal que] fez a ligação do grupo dos sem -casa com

a Fundação Juscelino Kubitschek, entidade que agregava diversos políticos proeminentes como

Aníbal Teixeira (Ministro do Planejamento) e Eduardo Antunes (Secretário de Ação Comunitária de

Belo Horizonte)” 9. (AVSI, 2007, p.10) A partir de então, deu-se origem ao desenvolvimento do Bairro

Felicidade. Essa estratégia de aproximar o movimento dos sem-casa do Poder Público foi sempre

buscada, no entanto, as gestões seguintes não mantiveram as mesmas propostas de Ferrara – ainda

que tenha contemplado a alguma parcela da população de baixa-renda, foram muito criticadas por

seu caráter clientelista e paternalista (ver Anexo 3).

Desse ponto em diante, Pe. Piggi começou a dedicar-se ao movimento dos sem-casa marcando o

início da segunda grande fase de sua atuação que pode ser subdividida em três momentos conforme

a vinculação direta que teve com as associações. O primeiro, na década de 1980, por meio da

AMABEL; o segundo, na década de 1990, pela Central Metropolitana dos Sem-Casa (CEMCASA) e o

terceiro, a partir de 2011 até os dias de hoje, pela Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa.

O primeiro momento inicia-se com o envolvimento de Pe. Piggi com os sem-casa, ocorrendo quase

que espontaneamente com a criação da AMABEL. No estatuto dessa associação consta que foi

9 Pe. Piggi responsabiliza Eduardo Antunes pela reaplicação da estratégia utilizada no Felicidade para o desenvolvimento de outros loteamentos – como Paulo VI, Capitão Eduardo, Beija-Flor, Filadélfia, Mariano de Abreu, Castanheiras III, Novo Aarão Reis, como visto a seguir: “Quem sabe toda a história direitinho é o Eduardo Antunes, porque quem encabeçou tecnicamente isso tudo […] que a Prefeitura estava apoiando tudo, passava tudo pela mão do Eduardo Antunes. Essa é a pessoa que mais entende da… eu só lancei a ideia, aí, fiz questão de acompanhar direitinho esse aqui [Felicidade] por um ou dois anos, um ano e pouco e depois eu fui para Itália e eles fizeram isso tudo aí. […] Em 1990 voltei da Itália e, naturalmente, tive que voltar à problemática” (BERNAREGGI, out/2013, entrevista).

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“fundada em 1986, como uma entidade civil, sem fins lucrativos, tendo como uma das suas

finalidades unir e organizar a população de baixa renda que sejam moradores de aluguel ou de favor,

objetivando a obtenção de terreno, casa própria, ou mesmo conseguir melhorias de infraestrutura,

serviços de transporte, educação, saúde, etc.” (SOUSA, 2002, p.124).

Assim como na Pastoral de Favelas, Piggi obteve um apoio fundamental da Igreja Católica para a

criação da AMABEL, principalmente, com a Campanha da Fraternidade (CF), promovida pela

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de 1980, cujo tema foi Para onde vais?,

relacionado às migrações que vinham acontecendo10. O objetivo geral dessa campanha foi:

A intensificação da mobilidade humana em geral e mais particularmente das migrações internas, a existência de imigrantes e mesmo a emigração de brasileiros propõem à Igreja, como primeira atitude, uma mudança de mentalidade em vários níveis: a) consciência mais viva de sua peregrinação na Fé para a Jerusalém Celeste (Hebreus 13:4) com as suas consequências de desapego e de disponibilidade; b) consciência mais viva de sua “catolicidade”, isto é, da universalidade radical que o Evangelho lhe confere: já não há estrangeiro ou hóspede, nem discriminação de espécie alguma, sob a pena de mortificar a própria noção de Igreja e esvaziar o conceito cristão de fraternidade; c) um despertar de sua dimensão missionária que é a essência da “missão” que o Senhor lhe confiou (Mateus 28:19-20); d) uma adaptação das estruturas eclesiais e de sua ação pastoral e social, a fim de que seu serviço seja testemunho e profecia da verdadeira libertação e promoção do homem. (CNBB, 1980).

Inspirado por essas iniciativas e porque “ninguém tinha feito nada disso [...] começamos quase por

uma necessidade”. Piggi ainda aponta que muitas outras iniciativas como essa se deram a partir da

ligação existente entre os movimentos e as paróquias: “ todos eles surgiram paralelamente a

campanhas da fraternidade que se faziam no Brasil todo”. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista).

Conforme mencionado, ele se instalou na Paróquia de Todos os Santos, no bairro Primeiro de Maio,

situada no bairro de mesmo nome. Ali existia uma vila, a Vila Primeiro de Maio, que foi removida pe la

prefeitura para implantar a Avenida Cristiano Machado. A maioria dos que moravam ali aceitou ser

10 A Campanha da Fraternidade (CF) surgiu a partir do incentivo do Concílio do Vaticano II e foi promovida no Brasil pela

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A CF acontece anualmente desde 1964 durante a Quare sma e cada ano introduz uma nova temática. “Inicialmente, a igreja buscou rever sua parte interna, tanto que as primeiras campanhas tinham por objetivo principal reaproximar os leigos das atividades comunitárias e pastorais, além de reforçar a vivência na paróquia e na comunidade. Dessa forma, os primeiros temas da Campanha da Fraternidade contemplaram mais a vida interna da Igreja. A partir dos anos de 1970, essa postura muda e a Igreja passa a Igreja preocupa-se com a realidade social da população, denunciando o pecado social e promovendo a justiça.” (SANTOS, 2013)

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indenizada e realocada pela prefeitura no Bairro Ribeiro de Abreu restando apenas alguns

moradores, cerca de 15 famílias, que resistiram. Tudo indica que o início do envolvimento do Pe.

Piggi com a causa dos sem-casa deu-se a partir desse episódio:

Me dirigi mais para o movimento dos sem-casa, vivendo na periferia, na Paróquia de Todos os Santos, no Bairro Primeiro de Maio.[sic] Eu era tempestuado constantemente pela pressão dessas famílias que ficavam nas ruas, despejadas, que não aguentavam pagar aluguel – até hoje. Até hoje é uma tragédia, uma tragédia subliminar, porque é uma tragédia totalmente desconhecida. Ninguém sabe que existem os sem-casa por que estão morando nos fundos, nas casas dos pais [..] é contra a natureza humana. Então a gente formou a primeira associação dos sem-casa, a AMABEL (Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte). (BERNAREGGI, maio/2011, entrevista).

Pe. Piggi conta que depois desse episódio conseguiu reassentar esses moradores no próprio Bairro

Primeiro de Maio. Ainda que não tenha sido um loteamento propriamente dito, é provável que esse

processo de reassentamento tenha sido o catalisador para iniciar seus loteamentos associativos pela

AMABEL.

A minha paróquia aqui tinha um lote lá embaixo, dos vicentinos, das famílias que ficavam na rua, despejados e tal. Então mandavam lá para aquele lote. Só que o lote cabia 10, 15 famílias no máximo, não cabia mais nada. Quando chegou a décima sexta família o quê que eu ia fazer? Eu falava: Oh gente, eu não tenho mais nada, o quê que eu vou fazer? Então junta os seus colegas, os seus amigos, que na sua situação lá do seu cortiço, dos sobrados, gente que mora de aluguel, gente que mora num lote só, pobres, miseráveis, o povo dava, discutiu aqui nesse salão aqui é... a ideia foi: Vamos criar uma associação de luta pela moradia de baixa renda [AMABEL], vamos batalhar. Que nós não temos terra aqui. Só se pode construir se tiver terreno. Então vamos trabalhar. Então nós colocamos um encontro grande com o prefeito [Sérgio Ferrara] - nós chamamos o prefeito - o presidente da Câmara dos Vereadores e tal e tal e o Ferrara foi muito simpático à ideia, pegou o secretário de ação comunitária dele e jogou em cima dessa problemática. De fato foi um choque. Em três anos construímos 20 mil moradias, em Belo Horizonte, de baixa renda, de 0-3 salários mínimos. Coisa que nunca aconteceu nessa cidade. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista).

Pela própria definição dada pelo Pe. Piggi, a AMABEL “era uma estrutura dos sem-casa, cada bairro

com seus coordenadores. Os coordenadores se reuniam toda a semana”. (BERNAREGGI,

maio/2013, entrevista). Por meio dela, foi feito o primeiro dos loteamentos de Pe. Piggi, o Bairro

Jardim Felicidade (1986/1987). O então prefeito de Belo Horizonte, Sérgio Ferrara (1986-1989), sob

a pressão da AMABEL, desapropriou parte da Fazenda Tamboril para dar lugar ao loteamento. Ficou

a cargo de a AMABEL correr atrás dos recursos nacional (federais e municipais) e internacional

(enviados pela Fundação AVSI). Assim, foi possível não somente doar os lotes aos moradores, mas

também comprar os materiais para a construção das casas no regime de autoconstrução.

No entanto, durante o processo, alguns dos coordenadores da associação se desvirtuaram da

proposta inicial do movimento passando, por exemplo, a beneficiar pessoas não contempladas pela

seleção estabelecida pelo Pe. Piggi. Então, um impasse foi gerado: se por um lado esses

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coordenadores deram oportunidade para aqueles que também precisavam sair do aluguel, por outro

se enriqueciam à custa da situação dessas pessoas, uma vez que cobravam delas um valor para se

tornarem proprietários de um dos lotes – que, na proposta do Pe. Piggi, os lotes deveriam ser

doados e não vendidos. É provável que a corrupção interna à associação somada ao forte

temperamento do religioso tenham levado Pe. Piggi a desligar-se da AMABEL para, na década de

1990, criar a CEMCASA. Soma-se a essa hipótese a viagem do Pe. Piggi para a Itália entre 1988 e

1990 (SOUSA, 2002, p. 136).

As informações obtidas até o momento indicam que os loteamentos produzidos pelo Pe. Piggi na

década de 1980, quando vinculado à AMABEL, foram além do já mencionado Bairro Jardim

Felicidade: Novo Aarão Reis, Paulo VI, Castanheira-3, Capitão Eduardo, Beija-Flor e Jardim

Filadélfia.

O segundo momento se diferencia do primeiro, dentre outras questões, pelo fato de o padre deixar

de receber qualquer apoio de natureza política ou da administração pública (seja de instâncias

municipais, estaduais ou federais) e até mesmo da própria Igreja Católica11.

A CEMCASA “foi fundada em 10 de outubro de 1993, como uma entidade civil, sem fins lucrativos,

sendo apartidária e filantrópica, com personalidade jurídica privada, tendo como área de abrangência

toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte”. (SOUSA, 2002, p.126) Seu surgimento esteve

associado ao tema Onde Moras?, lançado pela Campanha da Fraternidade, em 1993, e organizado

da seguinte maneira:

A Central Metropolitana dos Sem-Casa, reúne grupos organizados dos “sem-casa” de toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte. São grupos de 200 famílias e outros com 100; que se registram lá, e a Central toma conta daquele grupo. Os funcionários da Central são dois advogados, que o próprio associado paga por mês, um contador, um digitador. Agora nós, coordenadores de grupo, somos todos voluntários. Nós temos um estatuto, registrado em cartório, que é proibido ter pagamento de salário. (SOUSA, 2002, p.127) 11F.

11 Isso é explicado por Sousa (2002) “[Pe. Piggi] comenta, com alguma amargura, o distanciamento do Poder Público do atendimento às reivindicações dos movimentos, lembrando os inconvenientes da cooptação e a surdez para os que “preferem correr sozinhos”. “Hoje, se você não é da turminha, da corriola, não faz parte dos ativistas deles, nem chance tem de conversar com os homens”, diz ele referindo-se á Administração Municipal que, à época, tinha à frente o Partido dos Trabalhadores. O entrevistado registra, ainda, a forma através da qual o movimento se articula com as esferas do Poder Público: no nível federal, através do Programa Comunidade Solidária, no estadual junto à Secretaria de Habitação e, no municipal, buscando interlocução com a Secretaria do Planejamento. “Nos três níveis nós provocamos reuniões, e até manifestações no Congresso (...) mas não é nossa meta pegar nossos associados e mandar invadir. Nós somos milhares, nosso problema é uma política habitacional, por isso nossa missão é muito lenta, muito improdutiva”. (SOUSA, 2002, p. 127) As informações foram extraídas por Sousa (2002) na entrevista que realizou com o Pe. Piggi em 30 de agosto de 2001.

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A principal estratégia da associação, até hoje defendida pelo Pe. Piggi, era o acesso à moradia por

meio da compra de terra (não por invasão ou por ocupação), em grandes glebas, para atender a

muitas famílias em um mesmo empreendimento. Inicialmente, a associação esteve ligada à

Arquidiocese de Belo Horizonte, desvinculando-se dessa três anos depois12. Sousa (2002) ainda

menciona dois condicionantes que levaram a CEMCASA a atuar por si mesma: dificuldades em criar

alianças com o Poder Público (municipal e estadual) – gestão do petista Patrus Ananias – e a

postura irredutível das pastorais da Igreja Católica em aceitar a produção de “grandes conjuntos”.

Uma vez que não tinha apoio político do Estado ou da Igreja, a CEMCASA comprou, em parceria

com outras duas associações, a Fazenda Castro (1996) em Ribeirão das Neves para o

desenvolvimento do Bairro Metropolitano (item 2.6). Em seguida, Pe. Piggi também teve uma

participação junto à CEMCASA na fase inicial do Bairro Roma (item 2.7), em Ribeirão das Neves.

Com a saída do Pe. Piggi dessa associação, por volta de 2001, outras lideranças assumiram seu

lugar.

Se, no segundo momento, a associação do Pe. Piggi (CEMCASA) se desliga da Igreja Católica, o

terceiro é marcado pelo retorno do movimento do Pe. Piggi aos cuidados dessa mesma instituição

religiosa. Frustrado com as duas tentativas, a alternativa encontrada pelo Pe. Piggi foi a de ligar-se à

Igreja Católica, com a criação da Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa, talvez na esperança de não

mais ser importunado pela corrupção que grassava nas duas associações. Pe. Piggi alega, também,

que ele e outros parceiros do movimento já estavam cansados “de a gente mexer a nosso risco e

perigo” e por isso “nós criamos a pastoral dentro da própria Arquidiocese” (BERNAREGGI, nov/2012,

entrevista).

Gladis F. Oliveira, atual presidente da AMABEL, explica essa nova estratégia do padre, mas acredita

que logo ele perderá o controle da situação, assim como aconteceu nas demais associações por ele

organizadas: “Sabe o que foi que ele fez? Ele criou vários grupos. E no final, aí que dá os problemas,

né? Que aí acaba saindo do controle dele. Ele perde o controle totalmente. [...] Ele confia muito fácil

nas pessoas. [...] sempre foi assim. [...] Porque a intenção dele é uma. [...] O alvo dele é o seguinte:

pegar, negociar e atender famílias. Só que aí os grupetes veem uma oportunidade de ganhar

dinheiro ali e aí vai. E fica aquele inferno!” (OLIVEIRA, 2013, entrevista).

12 Entrevista com Padre Piggi realizada por Sousa (2002) em 30 de agosto de 2001.

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É provável que ela esteja certa e que, além dos problemas mencionados, outros de diferente

natureza possam vir a ocorrer. Pela explicação do Pe. Piggi, a Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa

pertence à Arquidiocese de Belo Horizonte e está vinculada a ela desde 2011 – sendo constituída,

basicamente, por vários núcleos espalhados pela cidade. Essa arquidiocese possui uma ONG,

Providência Nossa Senhora da Conceição, com mais de 60 anos de existência. No final do ano de

2012, foi pleiteado por Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo metropolitano de Belo Horizonte,

(com a ajuda da PUC Minas) a transformação de ONG para Organização da Sociedade Civil de

Interesse Público (OSCIP). Piggi aponta vantagens nessa transformação porque facilitará a captação

de recursos do governo federal, sem a necessidade de prestação de contas à Caixa Econômica

Federal.

Embora Pe. Piggi tenha vários projetos em andamento, inclusive aqueles com o auxílio do corpo

acadêmico da PUC Minas, ainda encontra resistência.

Então nós fizemos um projetinho, todo técnico, todo com os valores e tudo, e demos pro Dom Mol [Dom Joaquim Giovanni Mol Guimarães] pra ele apresentar lá na PUC... Porque nós precisamos agora de trabalhar como arquidiocese, e não é possível imaginar umas coisas dessas sem que a PUC estivesse engajada e responsabilizada e tal e tal. Sobretudo a parte de engenharia, de urbanismo, e também a parte de administração, informática, por exemplo, informatizando todo o cadastro, todo o... É muita coisa [em] que podia existir, assim, uma parceria dentro dos trabalhos de presença na comunidade que a PUC faz. [...] E ele pegou o nosso fascículo e pôs na mão de técnicos lá de dentro, que não sei quem são, não faço questão nenhuma de saber quem são. A resposta depois de uns seis meses – porque lá é tudo assim, né? Ficou seis meses lá. É um projeto ambicioso, porque o nosso projeto visa o déficit... Nós somos a Arquidiocese de Belo Horizonte e toda a Região Metropolitana, quase toda. Então, um projeto que diz respeito ao déficit habitacional total a ser resolvido em 10, 12, 20 anos, mas que seja um projeto e haja uma estrutura certa, definida para levá-lo adiante até o fim, em parceria com o Poder Público, as verbas lá da Dilma e tudo mais. É um projeto ambicioso que certamente vai fracassar e vai jogar o nome da arquidiocese lá embaixo. Assinado pelos técnicos mais abalizados da PUC. É isso que nós recebemos, digamos, por enquanto, de assessoria da PUC. Agora, diante do que está acontecendo, igual hoje, eles tinham razão, né? A gente ó, não pode falar nada. Eu pedi a audiência ao Dom Mol mais ao Dom Walmor – tem que ser os dois juntos. Tem três meses que estou esperando a chamada, e não chama. Essa é a minha situação. (BERNAREGGI, ago/2013, entrevista).

De modo geral, os movimentos do Pe. Piggi iniciam-se com a intenção genuína de aliviar o déficit

habitacional, mas, facilmente, perde a força por falta de organização e fiscalização interna dos seus

movimentos. Ele tem utilizado das mesmas estratégias quando fundou a CEMCASA, mas com um

adicional: a busca por terras na própria capital Belo Horizonte (como fazia com AMABEL). Para

tanto, ele tem procurado auxílio, inclusive, no meio acadêmico, para legitimar seu pedido ao poder

municipal para obter concessão de mais áreas para habitação de interesse social, como será

mostrado adiante.

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A figura a seguir tem como objetivo sintetizar, com base nas informações obtidas, a trajetór ia de

Piggi nos movimentos dos sem-casa. No primeiro período, Pe. Piggi atuava por meio da AMABEL,

período este marcado pelo apoio aos movimentos feitos com a “ajuda do povo” (futuros moradores),

organizações não governamentais (como a AVSI), outros movimentos populares dos sem-casa

(associações), do governo federal e municipal (gestão de Sérgio Ferrara). No segundo período atuou

por meio da CEMCASA, que, inicialmente, contava com o apoio da Igreja Católica, mas, ao final,

acabou lutando por conta própria. E, por fim, o terceiro período, quando atuou por meio da Pastoral

Metropolitana dos Sem-Casa, ligada à Igreja Católica. (Figura 2)

Figura 2 ─ Esquema da trajetória de Piggi pelos movimentos (quando liderança)

Fonte: Autora, 2013.

Uma vez que o foco do estudo em andamento é a reconstrução do processo de formação dos

loteamentos populares entre as décadas de 1980 e 1990 (

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Tabela 2) sob a liderança do Pe. Piggi, não serão tratadas, aqui, aquelas atuações que ocorreram

antes e depois desse movimento – seja a luta do Pe. Piggi pelos favelados, sejam as lutas em

andamento por meio da Pastoral de Favelas e Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa,

respectivamente.

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Tabela 2 ─ Relação entre associação e loteamentos feitos pelo Pe. Piggi (vínculo direto)

Data de Concepção Associação Envolvida

AMABEL CEMCASA

Jardim Felicidade 1986/1988

Capitão Eduardo

Paulo VI 1987

Beija-Flor

Filadélfia

Castanheira-3

Novo Aarão Reis 1992/1994

Metropolitano 1996/1997

Roma 1998/1999

Fonte: Pesquisadora, 2013

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Loteamentos associativos do padre Piggi

Como já mencionado, entre 1980 e 1990 foram nove os loteamentos associativos feitos sob a

liderança do Pe. Piggi ou com sua participação. Dois localizados no município de Ribeirão das Neves

(Bairro Metropolitano e Bairro Roma) e os outros sete em Belo Horizonte, distribuídos nas regionais

Norte (bairros Jardim Felicidade e Novo Aarão Reis); Nordeste (bairros Capitão Eduardo, Paulo VI e

Beija-Flor); Noroeste (Bairro Jardim Filadélfia) e Barreiro (Bairro Castanheiras-3). A Figura 3 indica a

posição dos loteamentos no mapa da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Vale aqui fazer a primeira ressalva sobre a quantidade desses loteamentos. Em uma conversa com

Gladis, atual presidente da AMABEL e em outra conversa com o próprio Pe. Piggi, foi constatado que

Pe. Piggi teve participações diretas e indiretas nesses empreendimentos. O Pe. Piggi liderou apenas

os loteamentos Felicidade e Metropolitano. Nos demais casos o padre atuou em conjunto com outras

associações.

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Figura 3 ─ Localização dos loteamentos associativos do Pe. Piggi feitos de 1980 a 1990

Fonte: Base Prodabel (2008), alterações próprias, 2013

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Como já dito, o primeiro loteamento popular associativo organizado pelo Pe. Piggi em Belo Horizonte

foi o Bairro Jardim Felicidade. Ele diz ter feito "tudo mais na base da intuição". Por diversas vezes

deu a entender que era uma vantagem o fato de ainda não existir a Lei de Uso e Ocupação do Solo

de 1996, à qual ele se refere diversas vezes como a lei que coibiu os loteamentos. Nessa época

(década de 1980), já era inviável comprar e lotear uma fazenda no município de Belo Horizonte. A

saída foi pressionar a prefeitura a desapropriar as glebas. Sob a gestão estadual do “abominável"

Newton Cardoso, Piggi lembra que a única instância a acudi-lo nesse processo foi a Companhia

Energética de Minas Gerais (CEMIG), "porque num curto espaço de tempo há muitos consumidores,

então era lucrativo". A Cemig só fazia a ligação elétrica nos lotes e a iluminação pública quando as

construções das casas estavam terminadas.

Pe. Piggi conta que "quando teve a experiência do Bairro Felicidade, que o povo viu que deu certo,

aí quando a própria prefeitura se animou, encantou a iniciativa. Então se tornou bem mais fácil.

Quando você tem o Poder Público patrocinando, a coisa vai de acordo". Com isso, a prefeitura abriu

novas frentes de ação, por meio da AMABEL para, consequentemente, repetir essa experiências em

diversos pontos de Belo Horizonte. O apoio dado por Ferrara teve grande importância no processo,

como mostra a fala do padre:

Depois, com a ajuda da prefeitura da época que era o Ferrara, nós conseguimos que multiplicasse essas experiências em vários cantos da cidade. De modo que, dentro de três anos, foram construídas 20 mil moradias. O Bairro Felicidade, o Bairro Capitão Eduardo, o Bairro Beija-Flor, o Bairro Novo Aarão Reis. Depois lá no Bairro Jatobá, o bairro (esqueci o nome), é uma seção do Bairro Jatobá [Castanheiras-3]. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Além desses loteamentos, foram mencionados outros, como o Paulo VI, Filadélfia, Fazenda das

Abóboras (Roma), Fazenda Castro (Metropolitano). Já outros, como Boa União (1985/88) e São

Miguel, são tidos por Pe. Piggi como “invasões”, porque deram origem a favelas.

Esses acontecimentos deram-se ao longo da década de 1980. Do ponto de vista de política

habitacional, essa década foi marcada pela difusão nacional do Programa Nacional de Mutirões

Habitacionais da Secretaria Especial de Ação Comunitária (SEAC). Belo Horizonte e outros

municípios da Região Metropolitana foram contemplados por esse programa, por meio de suas

prefeituras ou por meio do governo estadual:

Na maioria dos estados, o escritório local da SEAC realizava, diretamente, convênios com as Prefeituras. Em alguns estados, como em Minas Gerais, as atividades da SEAC envolveram também um órgão estadual que coordenava e promovia o programa, normalmente com um nome de identificação estadual. No caso da Administração Newton Cardoso o nome fantasiado [sic] SEAC foi “Pró-Habitação”. (SOUSA, 2002, p.33).

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As 20 mil moradias mencionadas na fala de Piggi nada mais foram do que um resultado desse

programa. Sousa (2002) também aponta que um dos diferenciais da AMABEL em relação às demais

entidades da época era a habilidade de diálogo do padre, que facilitava a captação de recursos para

o movimento. No entanto, as gestões seguintes, estaduais e municipais, dificultaram a continuidade

do movimento. Pe. Piggi faz questão de mencionar “os petistas” entre seus opositores: “tiveram

sempre uma visão extremamente elitista e restritiva de política habitacional, pois priorizavam

conjuntos no máximo de 300 casas, situados dentro da malha urbana e nos lugares onde houvesse

serviços públicos disponíveis.” (SOUSA, 2002, p.32) Em oposição a essa prática, Pe. Piggi continuou

sua jornada em busca das condições necessárias para o processo de autoconstrução individual,

tendo como premissa a compra e, em seguida, a urbanização da gleba.

Voltando à década de 1980, Pe. Piggi compara a agilidade do processo do Jardim Felicidade com o

do Mariano de Abreu, feito um pouco antes:

Ah! Mariano de Abreu. O Bairro Mariano de Abreu. Uma pedreira em que foram feitas 1000 moradias em um dia. […] Com blocos pré-moldados. Em um dia. Isso foi um show que eles deram lá. A prefeitura tinha, naquela época, tinha uma ligação com um secretário de Ação Comunitária lá que se chamava Eduardo Antunes que era uma maravilha. Vem de um centro espírita que tem como filosofia fazer o bem. E fazia o bem que era uma maravilha. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

A tabela a seguir é uma sistematização dos dados encontrados até agora sobre os nove loteamentos

executados sob a liderança do Pe. Piggi ou com sua participação, indicando o ano de início, a data

de aprovação, o número de lotes e as associações envolvidas (ver Tabela 3).

Apesar das muitas conquistas do movimento do Pe. Piggi, nem todas as suas tentativas de

loteamentos foram bem sucedidas. Um exemplo é o caso da Fazenda Dom Orione. Por volta de

199513, o movimento havia desistido de procurar terrenos em Belo Horizonte, em razão ao elevado

preço da terra e das restrições legais, e passou a buscar glebas em outros municípios da RMBH;

13 Há uma inconsistência quanto a data em que aconteceu essa experiência, dificultando, assim, situá -la precisamente no repertório dos loteamentos que o padre participou. Ora o padre fala 1995 (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista) ora fala 1998. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista). Ou seja, ele poderia localizar-se entre o desenvolvimento do Metropolitano (1996) e do Roma (1998/99). Da maneira que ele vinha narrando o acontecimento, dava a entender que o desenvolvimento do loteamento era sequencial, ou seja, terminava um e começava outro logo em seguida. No entanto, na entrevista mais recente com o Pe. Piggi (BERNAREGGI, out/2013, entrevista), ele revela que as iniciativas poderiam acontecer também simultaneamente. Nessa ocasião, ele data a compra da Fazenda Dom Orione em 1997 e diz ter sido concomitante ao Bairro Roma (outrora datado de 1998/99):

Eu só participei [do processo de desenvolvimento Roma] no sentido que fui lá visitar o terreno, todo mundo gostou, e tal e tal e tal, e começaram a comprar lá do dono, e tal e tal e tal, e depois não ia lá mexer porque já estava pressionado lá com a questão da Fazenda Dom Orione – porque foi uma tragédia. Portanto, em 1997 que compramos a fazenda Dom Orione. (BERNAREGGI, out/2013,entrevista)

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“como não se podia fazer mais nada dentro de Belo Horizonte, nós procuramos em volta ”. As

conquistas em Belo Horizonte tornaram o movimento confiante para prosseguir na luta e atraíram

muitas famílias: “eu sei que em três anos foram feitas 20 mil moradias em Belo Horizonte dentro

desse sistema de autoconstrução. Então, diante disso, juntou muito mais gente ainda.”

(BERNAREGGI, nov/2012, entrevista). Segundo as estimativas do padre, nessa época, havia quase

seis mil famílias “prontas” para ocuparem um lote. Como de costume, procurou-se um local onde

essas famílias pudessem construir e viu-se uma possibilidade na Fazenda Dom Orione, uma gleba

no município de Betim, localizada entre as áreas industriais da Petrobrás e da Fiat. Mal sabia ele que

seria o caminho para um fracasso.

Vale ressaltar que é possível que essas experiências concomitantes tenham muito contribuído para o

descontrole do padre para com a associação, pois ora se ausentava de um lugar para resolver

questões de outro, confiando na retidão das lideranças.

Pe. Piggi se lembra de como era essa fazenda “os orionitas eram donos de uma fazenda, uma

grande fazenda... Eram mais de dois milhões e quatrocentos mil metros quadrados, uma fazenda

linda, maravilhosa, plana. Um rio corria dentro da fazenda com uma lagoa. ” No entanto, os orionitas

tiveram de abrir mão da propriedade, do terreno à prefeitura local em troca da quitação da dívida que

tinham com o município. A partir de então, Pe. Piggi conta que a Companhia dos Distritos Industriais

(CDI) passou a ser a nova proprietária das terras, sem ter, aparentemente, nenhum plano em vista

para essas: “Aí o estado, CDI, dona da coisa, não pretendia fazer nada lá. Então pôs à venda , fez

um concurso público para quem quisesse comprar aquela fazenda.” (BERNAREGGI, mai/2013,

entrevista).

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Tabela 3 ─ Andamento da coleta de dados específicos de cada loteamento

Data de Concepção Data de Aprovação do Parcelamento

Associação Envolvida

AMABEL CEMCASA FAVIFACO14 FAMOBH15

Jardim Felicidade Entre 1986 e 1987 Entre 2005 e 2006

Capitão Eduardo Década de 80 24/08/2012

Paulo VI 1987

Beija-Flor Década de 1980

Filadélfia Década de 1980

Castanheira-III Década de 1980 24/08/2009

Novo Aarão Reis Entre 1992 e 1994 -

Metropolitano Entre 1996 e 1997 1998

Roma Entre 1998 e 1999 -

Fonte: Autora, 2013

14 FAVIFACO: Federação das Associações Comunitárias das Vilas, Favelas e Conjuntos Populares de Belo Horizonte e Região Metropolitana

15 FAMOBH: Federação das Associações de Moradores de Bairros, Vilas e Favelas de Belo Horizonte

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Na função de líder da CEMCASA, o padre pediu apoio ao arquiteto José Carlos Laender de Castro,

ao engenheiro Eduardo Antunes e ao então deputado federal Vittorio Medioli para iniciar as

negociações com os proprietários da gleba. Chegaram à proposta de que a CEMCASA pagaria a

fazenda toda em um ano – com a ajuda do Eduardo Antunes – como Piggi explica:

E nós entramos na concorrência e ganhamos! Ganhamos! Propusemos em um ano pagar a fazenda toda. Muito bem. Então começamos, demos R$ 350 mil de entrada (inclusive o Eduardo Antunes, o secretário, que é dono de mineração, proprietário de terreno em tudo quanto é canto de Minas Gerais para minerar), colocou-se os terrenos como fiança, todos, para nós podermos pagar R$ 350 mil. Pediram mais de três milhões de fiança. E nós conseguimos porque o Eduardo Antunes teve a coragem de colocar isso como garantia do pagamento dos R$ 350 mil. E nós pagamos tirando do bolso dos pobres, R$ 30 por mês; só que eram seis mil famílias, é um "dinheirão". Pagamos a entrada, e todo mês tinha aquela prestação, que me parece que era de R$ 180 mil. Todo mês, religiosamente, nós estávamos pagando. Isso continuou por 3 a 4 meses. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

A CEMCASA chegou a fazer o projeto do loteamento, realizado por Laender de Castro, e a

encaminhá-lo à prefeitura, mesmo sabendo que a prefeitura planejava outros usos para a terra: “E

enrola, enrola, enrola, igual Neves. Porque estava em andamento a Lei de Uso do Solo, e, portanto,

nós estávamos fazendo a coisa contrária aos projetos da prefeitura.” O padre não perdeu tempo:

antes mesmo da aprovação do projeto do parcelamento, deu início ao pagamento do terreno: a

entrada de 350 mil reais e o restante seria pago no decorrer dos meses “180 mil por mês, todo mês,

religiosamente” – cada morador pagaria uma prestação de trinta reais por mês. E assim foi feito. Por

volta do quinto mês, a CDI autorizou o início da ocupação da gleba, começando com a marcação,

com auxílio dos topógrafos, e em seguida, a abertura das vias. Pe. Piggi afirma que a CDI “gostou do

projeto, eles gostaram muito. Tinha um tal de Napoleão não sei de que lá, o presidente da CDI. Um

cara legal, entusiasmado”. As famílias associadas começaram a limpar o terreno para a entrada dos

tratores:

Todo sábado e domingo, ia lá seis mil famílias, seis mil moradores, com faca, facão, machado pra poder abrir os caminhos desses tratores. Era uma farra. Chegava lá 40, 50 ônibus cheios de gente. Aquilo ali parecia um formigueiro. Se bem que nós tentamos localizar, por etapa, e não fazer tudo de uma vez porque seis mil famílias de uma vez seria impossível. Era uma etapa de umas 500... 400... 500 famílias, e tudo bem. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista). Nós entrávamos lá toda sexta, sábado e domingo; era aquela festa: entrava lá dentro, desmatava, pra abrir o caminho para os topógrafos marcarem. O José Carlos Laender fez pra nós um belíssimo projeto pra abrigar seis mil famílias. Começamos com três mil, mas quem estava pagando eram os seis mil. E nós, com os topógrafos, marcando as ruas, conforme o projeto, os lotes, direitinho e tal. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Mas, para a surpresa do padre, logo a Prefeitura de Betim encontrou uma justificativa “qualquer” para

coibir o processo “fez uma ação no crime ambientalista porque nós jogamos no chão um pé de

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pequi, um pé de pequi!”. Apesar dos esforços para esclarecer o ocorrido com a prefeita Maria do

Carmo Lara, Pe. Piggi suspeita que ela mesma fosse responsável por essa situação:

A Maria do Carmo Lara mandou invadir a sua fazenda dos sem-casa pelos sem-terra. Seis famílias armadas até os dentes botaram as suas barracas dentro da fazenda, e mandaram o recado “Quem entra aqui nós vamos matar!” […] Uma turma, amiga da Maria do Carmo Lara, que queria aquela terra pra fazer horta! Horta pra... como está lá? Lá hoje nessa fazenda tem seis família, dois milhões e quatrocentos... e seiscentos mil metros quadrados. E tem seis famílias colhendo vagem ou colhendo rabanete. Seis famílias! Lá era pra ficar seis mil famílias! (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).

O padre lembra que em uma segunda-feira recebeu um telefonema informando-o sobre a invasão da

terra e dando-lhe o prazo para que até sexta-feira tirasse seus associados de lá. Eis o impasse: “Se

nós não conseguíssemos até sexta-feira a devolução do dinheiro, na sexta, sábado, domingo, aquilo

ali ia ser um campo de batalha, de morte”. Diante disso, Pe. Piggi não viu outra saída a não ser

solicitar a devolução da quantia já paga ao CDI, que, prontamente, atendeu ao seu pedido:

[...] porque senão sábado e domingo enchia de gente com faca, facão, machado. Ia dar morte, ia dar morte. Não sei como, Deus nos ajudou e na sexta-feira nós conseguimos o dinheiro todo de volta. Nunca vi o Estado de Minas devolver dinheiro pra ninguém, se não fosse que... a não ser judicialmente! Mas o presidente da CDI, quando viu a situação, que ali ia dar morte mesmo, mais do que depressa, nós pegamos nosso dinheiro. E eu fiquei um ano inteiro aqui na porta, na igreja, toda quinta-feira de manhã, de madrugada até de noitão, devolvendo dinheiro pra essa gente toda e ouvindo... Só Deus sabe o que é que eu ouvi, o que é que eu tive que acatar aqui, nessa porta dessa igreja. Tivemos que chamar escolta policial na porta. Fazia fila pra receber de novo o dinheiro que tinham investido lá. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).

Diante do fracasso, quem iria se arriscar a seguir as lutas com Pe. Piggi? Muitas famílias se

desligaram da CEMCASA depois desse episódio. Não que o movimento tenha acabado, mas o padre

percebeu que era necessário reformular suas estratégias de atuação e reconquistar a confiança do

povo. Uma das novas estratégias foi à união com a AMABEL e a FAVIFACO, da qual nasceu, logo

no ano seguinte, o empreendimento do Bairro Metropolitano, isto é, em 1996.

Era só a Central Metropolitana dos Sem-Casa [para ocupar a Fazenda Dom Orione]. Por isso que o Bairro Metropolitano, antigamente, nós tivemos que entrar com três entidades, porque o choque que deu aquilo lá foi tão grande na Central Metropolitana dos Sem-Casa (CEMCASA), que quando surgiu essa fazenda aqui nós tivemos que chamar outra entidade pra tentar um número, porque ninguém acreditava mais na gente. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Nessa época, durante a gestão do prefeito Patrus Ananias em Belo Horizonte, foi implementada uma

nova regulação do solo que restringia ainda mais atuações como as de Piggi – a Lei de Uso e

Ocupação do Solo de 1996. Esse instrumento impeliu os novos loteamentos da associação para

municípios vizinhos, onde as brechas legais eram maiores:

Nós tentamos, dentro de Belo Horizonte, mas na época, 1996, em Belo Horizonte, estava em andamento o processo do Patrus, da lei do uso do solo. Ele nos deu a advertência de não ousar comprar nada dentro de Belo Horizonte que seríamos

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expulsos com ordem judicial. Então, diante disso, abandonamos a ideia de construir dentro de Belo Horizonte, e fomos caçar aí afora. Teve alguém que ficou sabendo e nos propôs esta fazenda em Ribeirão das Neves. [...] Mas, infelizmente, esse processo de lei de uso do solo em Belo Horizonte repercutiu lá em Neves. Só que eles não tinham estrutura para criar lei do uso do solo, mas polícia para te obrigar a embargar os pobres lá eles tinham, naquela época. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

A líder atual da AMABEL menciona pelo menos outros dez loteamentos associativos em Belo

Horizonte, além daqueles nove que tiveram a participação do Pe. Piggi. Ela também afirma que a

união entre associações foi uma estratégia para fortalecer o movimento, diante das oposições

crescentes do Poder Público.

A exemplo disso, Pe. Piggi fala um pouco sobre a composição das associações que fizeram o Bairro

Metropolitano. Afinal, de onde vinham esses futuros moradores? Ele explica que vinham de lugares

distantes e que muitas vezes desanimavam em continuar no processo, já que o deslocamento até o

local era muito difícil:

A AMABEL era uma estrutura com muitos grupos. A FAVIFACO era um grupos da região sudeste. E a CEMCASA eram uns dois ou três grupos lá da Cidade Industrial que vieram morar aqui. Pra isso é um deslocamento muito grande; tanto assim que por certo tempo muito lote lá ficou abandonado no Bairro Metropolitano, por causa da distância. Pra quem já tinha uma vida organizada lá no Barreiro vir morar aqui no Ribeirão das Neves... Então, tiveram vários casos que abandonaram lá, e gente conhecida, os amigos, invadiram naturalmente. E registraram no nome próprio. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).

Esse fato reforça pelo menos duas questões. A primeira, da atuação conjunta de associações como

estratégia de fortalecer o movimento. A segunda, a falta de iniciativa, cada vez mais evidente, do

Poder Público em assumir sua função de atender ao déficit habitacional.

Apesar da experiência bem sucedida, há controvérsias.

Hoje os adversários dessa, dessa ideia de criar grandes conjuntos populares de baixa renda - dizem que nós criamos lá um grande favelão. Mas eu falo: Então vai lá. Pergunta eles o quê que eles acham. Se tivesse tido mais ajuda do governo municipal, do governo estadual. [...] Por exemplo, a água lá foi uma tragédia. A nossa sorte foi que lá existia o Córrego do Tamboril, desaguava do Isidoro num manancial ali perto e o cara buscava a água no córrego, no córrego. Claro. Muitos lugares externos e tal, depois que a COPASA resolveu. Agora todo mundo tem a água. Asfaltar, por exemplo, calçar as ruas e tal, meio fio, nós não tínhamos capacidade, nós mesmos, de fazer esse negócio todo. Isso era coisa do Poder Público. A batalha dos moradores, anos e anos, agora as ruas asfaltadas - tem lugar lá que não é asfaltado. Meio fio essas coisas, drenagem pluvial, senão não podia fazer. Mas o governo estadual, porteira fechada lá, o Newton Cardoso. De todo jeito, entre trancos e barrancos, está lá, nesses lugares todos, a demonstração de que é possível criar conjuntos habitacionais grandes pra caber a luta contra o déficit habitacional, porque tudo o que a prefeitura está tentando fazer há anos e anos, mal, mal chega a reduzir, nem a expectativa, reduzir o aumento vegetativo dos sem-casa. Ela não ataca o problema. Atacar o problema dos sem-casa significa grandes conjuntos habitacionais, equipados como todas as estruturas necessárias. Hoje em dia , conta muito também com o problema ecológico, respeitar os córregos, as nascentes, mata ciliar, córrego, como se chama?… Parque linear que se chama que é um sucesso.

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O parque linear, diferente do parque dos Mangabeiras, uma vez por ano faz um piquenique. Aqui no nosso parque ecológico do Primeiro de Maio, todo dia tem gen te lá fazendo cooper, as mães passeando com as crianças nos carrinhos - o verde faz parte da vida da população. E é uma batalha muito grande dos ecologistas, por quê? Pra eles, verde tem que ser parques, grandes parques com o objetivo: primeiro de separar os pobres dos ricos, igual o parque das Mangabeiras - separa a favela do governante. E o segundo, reserva de terrenos para quando as imobiliárias quiserem pagar R$50.000,00 para cada vereador, mudar a lei de Uso do Solo lá dentro, igual fizeram no Isidoro e fazer toda a especulação imobiliária que bem entender. Esse é o falso ecologista. Ecologista comandado pela especulação. Tem até aquele ecologista que trabalha, organiza o planejamento do território e tudo para que se possa, na vida normal do povo, ter os seus parques - que são parques lineares, porque seguem os córregos, as nascentes e... mas é uma batalha grande até hoje. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Por fim, o Roma, o último dos nove loteamentos, foi um completo fracasso. Pode-se referir a ele

como o marco do declínio do movimento do CEMCASA. Depois de muitas tensões que Piggi passou

no Metropolitano (incluindo sérias questões de saúde), ele participou somente na fase inicial do

Roma, deixando a CEMCASA logo depois de captar a gleba. O fracasso do movimento ali pode ser

explicado não somente pela saída do padre, mas pela somatória de diversos fatores, como será visto

adiante.

Estratégias para fazer os loteamentos antigamente x hoje

Piggi relembra, ainda, que encontrava as terras para ocupação quando os fazendeiros anunciavam a

venda. No entanto, como já mencionado, essa prática não é mais comum depois da Lei de Uso e

Ocupação do Solo (LUOS) de 1996. Segundo ele, a LUOS impedia que alguns projetos fossem

financiados pelo governo federal, pois era contrária à utilização dos terrenos como loteamentos para

população de baixa renda:

Você não pode comprar terra de nenhum fazendeiro, porque você tem que ficar com a terra sem poder usar. Tem que ter a Lei de Uso do Solo para comprar a terra, porque senão você fica com esse terreno sem poder fazer nada [...]. Essa é a Lei de Uso do Solo atualmente, né? [...] Então vale a pena fazer uma luta mais demorada, mais comprida, mais sofrida, mas com uma solução legal, justa para o direito à cidade que todo mundo tem, e que infelizmente não acontece. Mas hoje lá em Brasília existem esses projetos, [...]. Só que, enquanto a Lei de Uso do Solo ainda for contrária, você não pode nem receber verba de Brasília. A primeira coisa que eles veem lá é a documentação da prefeitura […]. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Por diversas vezes Pe. Piggi atribui a Lei de Uso e Ocupação do Solo de 1996 como um dos maiores

entraves para o seu movimento. É provável que essa tenha sido a divisora de águas desse

movimento. Se antes desenvolvia os loteamentos dentro de Belo Horizonte, depois precisou recorrer

às terras nos demais municípios da RMBH. Ele relata que, na LUOS de 1996, não existe terreno

destinado à habitação de baixa renda em Belo Horizonte, o que dificulta a implementação de

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loteamentos. Se, por um lado, quando atuava pelo CEMCASA, recorria a terrenos afastados da

capital, por outro, é observado uma mudança de estratégia quando passa a atuar pela Pastoral

Metropolitana dos Sem-Casa: esforços são despendidos para buscar terras em Belo Horizonte e,

assim, começa a lutar pela mudança na LUOS:

Até então não existia isso. Então era mais fácil que a gente comprava o terreno, loteava lá, né? Registrava os lotes de todo mundo no cartório e cada um ia lá e fazia sua traçagem da propriedade, eram todos proprietários. Hoje não. Hoje, com a Lei de Uso do Solo, não admite que faça habitação de baixa renda em lugar nenhum. [...] Qualquer tentativa de registrar em cartório, qualquer loteamento de pobres se torna impossível, porque não tem o aval da prefeitura. [...] A tragédia está durando ainda porque, legalmente, em toda a área da Região Metropolitana de Belo Horizonte, não tem, legalmente, nenhum centímetro quadrado de terra destinado à habitação de baixa renda. Não existe. Então qualquer habitação de baixa renda que a gente faça em qualquer lugar, ou o próprio fazendeiro, ou tem aqui uma fazenda para fazer é sujeito à prisão preventiva, além do processo por violar a Lei do Uso e Ocupação do Solo. Então qual é, hoje, a batalha nossa que os sem-casa, pelo menos a Arquidiocese de Belo Horizonte? Trabalhar para mudança das leis de Uso e Ocupação do Solo em Belo Horizonte, nas cidades da Região Metropolitana. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Para que a mudança da lei aconteça, o padre começa a procurar meios de legitimar sua proposta e

optando, primeiramente, pelo respaldo técnico/acadêmico do Centro de Informações

Georeferenciadas, Pastorais e da Religião (CEGIPAR) da PUC Minas, como visto na fala do padre a

seguir:

Nós fizemos um estudo dos terrenos livres em Belo Horizonte, no município. A prefeitura sempre diz que não tem terreno. Terrenos livres no município de Belo Horizonte chegam a quase 40 mil hectares: são 400 milhões de metros quadrados. Em cada um desses milhões de metros quadrados, segundo os nossos projetos, com ecologia, com tudo, cabem dois [sic] mil famílias, 80 mil vagas que são ignoradas, a prefeitura não quer falar. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Pelo jeito de dizer do padre dá a entender que nessa ocasião consegue o mapeamento das áreas

não ocupadas de Belo Horizonte passíveis de implementação de moradia para população de baixa -

renda. Dá a entender que esse mapeamento foi feito cuidadosamente pelo técnico que lhe prestou o

serviço, numa tentativa, talvez, de legitimar sua causa. No entanto, numa conversa com uma

geógrafa desse centro, a Izabella Faria Carvalho, essa “legitimidade” não aconteceu de fato. Na

realidade, Izabella conta que o tal do mapeamento foi muito mais simples do que o padre diz. Ela f ez

o mapeamento há um ano, pegando visualmente no Google Maps as áreas não ocupadas de BH. A

geógrafa afirma que não fez um estudo aprofundado dessas áreas (como, cruzar as imagens com a

LUOS), foi um procedimento bem simples que qualquer pessoa poderia fazê-lo. Apesar da

simplicidade dos estudos feitos, o padre parece bem informado quanto a esse procedimento que

vem buscado (mudança da lei) esforços do padre. Ele já procurou saber das experiências que São

Paulo tem passado para aplicar essa ideia e está bem esperançoso de que também dê certo aqui em

Belo Horizonte:

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Sendo em São Paulo já tem a lei municipal que abre a zona ZEPAM (Zona Especial de Proteção Ambiental) para a habitação de baixa renda de 0 a 4 salários 15F

16. A lei que nós estamos querendo, está tramitando agora na câmara, e o nosso maior adversário é o Lacerda, porque ele é assim (próximo) com todas as empreiteiras. Vamos ver o futuro, né? (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Produção privada x produção autonomia

Outra crítica feita pelo padre é a forma de produção habitacional segundo padrões de interesse

privado, comumente feita com unidades multifamiliares verticalizadas, com apartamentos de área

mínima e de baixa qualidade, para extração de lucro. Ele ainda lamenta incoerência do governo

federal em resolver a questão:

Quer dizer, a mentalidade capitalista, da exploração imobiliária da habitação, deixa de ser uma função social e se torna uma fonte de lucro para as empreiteiras, para o construtor, e para o empresário do setor de habitação. É uma coisa impressionante . Lá na Itália não tem isso não. O que eles fazem para o pobre lá é o [Programa] "Minha Casa Minha Vida": prédios verticalizados, mínimos, com o mínimo possível de tamanho, para dar o máximo possível de lucro para as empreiteiras. O que está acontecendo aqui agora é isso. Agora, lá em Brasília a mentalidade é diversa. Brasília destina todo ano uma certa porcentagem do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) para habitação de baixa renda de 0 a 3 salários. Mas quem diz que chega projeto lá? Não chega projeto lá, nem das prefeituras, nem das empreiteiras, nem de ninguém. É assim, no fim da gestão eles têm que retirar de novo a verba toda porque essa parte não foi usada. Nós temos sorte que mora aqui o Aníbal Teixeira, que na época era o ministro do planejamento do Sarney, que está por dentro de tudo, e que nos informa tudo. Só que enquanto nós não mudarmos a lei de uso do solo não podemos nem tentar ir lá a Brasília. A primeira coisa que eles pedem é: cadê a lei de uso do solo? É desse jeito. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

O Pe Piggi dá continuidade ao que já vinha pensando desde o início de sua luta pela moradia para

população de baixa renda. Ele ainda acredita que o melhor jeito para prover a moradia para a

população de baixa renda é por meio da autogestão e autonomia:

Porque bom senso manda. Sem isso a baixa renda nunca vai ter casa própria. Antes da bendita lei do uso do solo, em Belo Horizonte, eram poucas as pessoas que viviam de aluguel. Ou gente completamente desvairada, ou gente que escolheu viver de aluguel porque pra ele era mais interessante. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Ao menos no desenvolvimento dos loteamentos estudos nesse trabalho, a autonomia é expressa

pela autoconstrução das moradias, por meio da qual os próprios moradores constroem suas casas.

16 É provável que Pe. Piggi esteja se referindo ao Decreto nº 44.667, de 26 de abril de 2004 “que dispõe sobre normas específicas para produção de Empreendimento de Habitação de Interesse social – EHIS, Habitação de Interesse Social – HIS e Habitação do Mercado Popular – HMP” (SÃO PAULO, Decreto 44.667/2004). Detalhes específicos sobre a liberação de áreas inclusas nas Zonas Especiais de Preservação Ambientam (ZEPAM) para esse três tipos de produção habitacional encontram-se nos artigos 28 e 92 (atualizados pelo Decreto nº 54.074, de 5 de julho de 2013).

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Para MARICATO (1979) a autoconstrução refere-se “ao processo da construção da casa (própria ou

não) seja apenas por seus moradores, seja pelos moradores auxiliados por parentes, amigos e

vizinhos, seja ainda pelos moradores auxiliados por algum profissional (pedreiro, encanador,

eletricista) remunerado”. (MARICATO, 1979, p. 73-74) Essa prática como alternativa de acesso à

moradia, por meio de mutirão, já foi veemente criticada por alguns estudiosos, como Maricato (1979),

Singer (1978), Oliveira (2006), Ferro (2006).

Oliveira (2006), por exemplo, deixa claro a dialética da autoconstrução por meio de mutirão,

sobretudo quando legitimada pelo Poder Público. Por um lado a autoconstrução é uma virtude da

população operária e de baixa renda em suprir sua moradia; por outro, quando o Poder Público se

apoia nessa força de trabalho gratuita para a produção da moradia dessa população, torna essa

suposta virtude em vício.

Quanto à gestão, três foram os tipos identificados por ABIKO (ABIKO; COELHO, 2004 apud

CARDOSO; ABIKO, 1994):

- Gestão institucional ou administração direta: [...] o agente público (prefeitura ou governo estadual, diretamente ou por intermédio de suas empresas paraestatais) gera o empreendimento, isto é, elabora os projetos, fornece a equipe técnica que gerencia a obra e administra todos os recursos financeiros e não financeiros aportados; - Cogestão: [...] empreendimentos nos quais o Poder Público repassa recursos às comunidades, representadas e organizadas em associações comunitárias, as quais contratam escritórios técnicos autônomos para assessorá-las na administração desses recursos. Tais escritórios, também conhecidos como Assessorias Técnicas, elaboram os projetos e exercem a direção técnica das obras, responsabilizando-se tecnicamente por sua execução; - Autogestão: [...] a modalidade na qual a comunidade, por meio das associações de moradores, é a responsável pela administração geral do empreendimento, bem como pela gerência de todos os recursos. (ABIKO; COELHO, 2004, p.13-14).

O padre, assim como outros envolvidos no processo (Laender de Castro, por exemplo) anseiam pela

implementação da autogestão em seus empreendimentos, no entanto não é tão simples encaixar o

tipo de gestão que de fato empregaram, em apenas um desses três tipos de gestão. Na prática não

parece ter realizado no sentido completo da autogestão. No Felicidade, como será tratado adiante, a

associação parece ter administrado o empreendimento e gerenciado os recursos repassados pelo

Poder Público e outras instituições, no entanto, as demandas não partiram todas da associação. As

casas embrião padronizadas e comumente difundidas pelo poder municipal, parecem ter sido

impostas aos futuros moradores, ou seja, eles mesmos não puderam escolher como iniciar sua

própria moradia, o que levou alguns a desistirem de permanecer até o fim do processo. Em suma,

era uma autogestão somada a algum grau de intervenção institucional.

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Outro ponto observado na experiência do Bairro Metropolitano foi o grau de representatividade que

os moradores (a comunidade) têm pelas lideranças da associação. Como será mostrado no estudo

de caso adiante, é dito que era comum às lideranças fazerem reuniões com os associados,

chegando a comparecer até quatro mil pessoas, para discutir algumas decisões a serem tomadas.

Enquanto as lideranças se mostram convictas de que houve participação no processo de decisão,

fica difícil de acreditar que algum morador se arriscaria a dizer alguma coisa em meio à multidão.

De todo modo, como será visto nos estudos de caso, ainda que não tenham chegado a

implementação de um processo estritamente autogestionário, é possível dizer que as iniciativas

(umas mais que as outras) tenderam a autogestão.

Regulação do Solo

Dos que se encontram em Belo Horizonte, em todos, exceto o Beija-Flor, os loteamentos são

classificados pela Lei 9.959 de 20 de Julho de 2010 como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS-

3), conforme dispõe o Art.24 (ver Tabela 3):

Art. 12 - São ZEISs as regiões nas quais há interesse público em ordenar a ocupação, por meio de urbanização e regularização fundiária, ou em implantar ou complementar programas habitacionais de interesse social, e que se sujeitam a critérios especiais de parcelamento, ocupação e uso do solo, subdividindo-se nas seguintes categorias: I - ZEISs-1, regiões ocupadas desordenadamente por população de baixa renda, nas quais existe interesse público em promover programas habitacionais de urbanização e regularização fundiária, urbanística e jurídica, visando à promoção da melhoria da qualidade de vida de seus habitantes e a sua integração à malha urbana; II - ZEISs-2, regiões não edificadas, subutilizadas ou não utilizadas, nas quais há interesse público em promover programas habitacionais de produção de moradias, ou terrenos urbanizados de interesse social; III - ZEISs-3, regiões edificadas em que o Executivo tenha implantado conjuntos habitacionais de interesse social. Parágrafo único - As ZEISs ficam sujeitas a critérios especiais de parcelamento, ocupação e uso do solo, visando à promoção da melhoria da qualidade de vida de seus habitantes e à sua integração à malha urbana. (NR) (grifo nosso).

Conforme a citação acima, esses loteamentos são tidos como conjuntos habitacionais de interesse

social. E mais ainda, toda a atribuição do feito é dada ao Executivo, omitindo o empenho das

associações dos sem-casa, por exemplo. Foram, pelo menos, duas as leis que confirmaram a

disposição do Executivo a doar lotes. O primeiro bairro a ser beneficiado foi o Felicidade com a

promulgação da Lei Nº 6846 de 13 de março de 199517. Esse benefício foi estendido para outros

17 A Lei Nº 6846, de 13 de março de 1995 “AUTORIZA O EXECUTIVO A DOAR LOTES DO BAIRRO FELICIDADE” A SABER:

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bairros, inclusive para alguns dos loteamentos do Pe. Piggi, como o Capitão Eduardo, Paulo VI e

Filadélfia, com a Lei Nº 7611 de 14 de Novembro de 1998 que veio em seguida18.

Já a legislação que vigora em Ribeirão das Neves não é tão “avançada” quanto à de Belo Horizonte,

sobretudo em se tratando de assentamentos informais. Sua lógica de zoneamento remete àquela

emprega pela Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo Horizonte de 1985, tendo como parâmetro os

usos. Assim, o Bairro Metropolitano, por exemplo, é constituído por três zonas: Zona de Uso

Preferencial Residencial (ZUR 2)19, Zona Urbana de Preservação Permanente (ZPP)20 e Zona de

Uso Misto (ZUM)21. Segundo o plano aprovado na prefeitura seus lotes seriam de 400 m², mas, na

“ART.1º- Fica o Executivo autorizado a doar lotes no local denominado Bairro Felicidade, jurisdição da Administraçã o Regional Norte, de propriedade do Município, para regularização de Programa de Habitação Popular.

ART.2º- Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em contrário.” (Belo Horizonte, Lei 6846/1995, art. 1º e 2º).

18 Lei Nº 6846 de 13 de março de 1995: AUTORIZA O EXECUTIVO A DOAR LOTES DO BAIRRO FELICIDADE, a saber:

- ART.1º- Ficam estendidos os benefícios da Lei Nº6846, de 13 de marco de 1995, aos conjuntos Capitão Eduardo, Paulo VI, Filadélfia, Jatobá I e II, Santa Rita, Castanheira I e II, Bonsucesso, Taquaril e à Vila Pinho.

- ART.2º- Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em contrário.”(Belo Horizonte, Lei 7611/1998, art. 1º e 2º).

19 "II- Zona de Uso Preferencialmente Residencial 2 – ZUR 2: Áreas com predominância de lotes de 360 m2, característica da maior parte dos parcelamentos da malha urbana de Ribeirão das Neves, a serem ocupadas com baixa e média densidade. Na ZUR 2, serão permitidas edificações para o uso residencial unifamiliar e multifamiliar, em lotes ≥ a 360 m2 e ≤ 1000 m2, bem como uso misto residencial, o uso comercial e de prestação de serviços de pequeno porte, o uso institucional relacionado à saúde, educação, recreação e lazer, atividades religiosas, associativas e comu nitárias.” (Ribeirão das Neves, Lei 037/2006, Art.7o)

20 “A Zona Urbana de Preservação Permanente – ZUPP compreende áreas não parceladas e/ou não ocupadas dentro do Perímetro Urbano, consideradas de preservação permanente pelo Código Florestal – Lei Federal 4771 de 15/09/65, alterações e regulamento, pela Lei Florestal de Minas Gerais – Lei 14.309 de 19/06/2002 e regulamento, e demais leis ambientais em vigor, as áreas reservadas para a implantação de praças e parques urbanos públicos, bem como as praças e os parques urbanos públicos já implantados, áreas que pelas condições geológicas do solo, recursos hídricos e paisagísticos não poderão ser parceladas, as faixas de servidão das linhas de transmissão de energia elétrica (LT) que atravessam a área urbana, de acordo com as normas da CEMIG, as faixas de servidão das adutoras de abastecimento de água, de acordo com as normas da COPASA, as áreas com declividade acima de 30% e as faixas de domínio de rodovias e ferrovias.” (Ribeirão das Neves, Lei 037/2006, Art.14)

21 “ART. 9º - A Zona de Uso Misto – ZUM compreende áreas destinadas à média densidade de ocupação, correspondendo aos principais corredores viários da cidade, existentes e previstos, constituídos pelas vias coletoras, vias arteriais e vias de ligação regional, com exceção da BR 040 e do futuro anel rodoviário metropolitano, conforme mapa de classificação viária integrante desta Lei. A ZUM é destinada preferencialmente a atividades comerciais e de serviços com raio de abrangência de atendimento para o bairro e conjunto de bairros, nas vias coletoras, e com raio de abrangência de atendimento para a cidade como um todo e cidades vizinhas, nas vias arteriais e vias de ligação regional. Na ZUM serão permitidos o uso residencial multifamiliar com no máximo 3 (três) pavimentos, o uso institucional em geral, serviços públicos, e incentivados o uso misto residencial e uso misto comercial e de serviços em edificações com, no máximo, 4 (quatro) pavimentos em lotes ≥ 600 m2 e no máximo 2 (dois) pavimentos em lotes ≥ 300 m2 e 600 m2.” (Ribeirão das Neves, Lei 037/2006, Art.9)

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realidade, são de 200 m². O processo de regularização, que foi retomado neste ano de 2013, será

feito por uma empresa contratada pela prefeitura municipal com recursos do Fundo Nacional de

Habitação de Interesse Social (FNHIS), como será visto adiante. Já a situação de ilegalidade do

Roma fica evidente quando se considera que pertence à Zona de Expansão Urbana 6 (ZEU 6) 22, cujo

lote mínimo é de 5.000 m².

Os nove loteamentos em que Pe. Piggi teve participação totalizam, pelas informações que foi

possível obter até agora, aproximadamente, 12 mil lotes, no entanto, nem todos estão regularizados.

22 “Zona de Expansão Urbana 6 – ZEU 6: área destinada exclusivamente a atividades econômicas de grande porte para indústrias, depósitos, comércio atacadista, serviços como oficinas, transportadoras e similares, cujo parcelamento deverá permitir módulos com, no mínimo, 5.000 m2, sendo proibido o desmembramento dos lotes localizados nesta zona.” (Ribeirão das Neves, Lei 037/2006, Art.17)

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Tabela 4 ─ Dados gerais dos loteamentos.

PGE: Plano Global Específico

Fonte: PBH, 2013. Elaboração própria

Zoneamento

Total de lotes

Lotes aprovados

Registro Regularização Obras em andamento Responsável pela

regularização

Novo Aarão Reis ZEIS-3 Sem

informação - Não

Não. Tem previsão de AEIS. Provável aprovação por meio da PGE e programas de urbanização.

4 (Orçamento Participativo): escola estadual, tratamento vale, urbanização de vias.

Particular (talvez seja URBEL)

Jardim Felicidade ZEIS-3 3043 3023 Sim Parcial 10 (Vila Viva e Orçamento Participativo - OP)

Particular (URBEL)

Castanheiras-III

ZEIS-3 e tem uma parte com AEIS-1 (edificações na via

Chico Mendes)

956 956 Não Total 3 (OP): urbanização e escola PBH por meio do programa Cidade Legal

Jardim Filadélfia ZEIS-3 563 561 Não Parcial OP: escola, academia, drenagem, centro de saúde, drenagem.

Talvez tenha sido pela PBH por meio do BH Legal

Paulo VI ZEIS-3 e também tem AEIS 2 (Conj.

Habitacional) 1220 - Não Não Obras de projetos viários

Metade pela PBH por meio do BH Legal

Capitão Eduardo ZEIS-3 1920 300 Não Parcial 3 UMEI: duas a licitar e uma em andamento.

PBH por meio do BH Legal

Beija-Flor Sem informação 805 - Não Não – em andamento 4 OP: urbanização, regularização viária, galeria, passagem pedestre, contenção.

Sem informação.

Metropolitano ZUPP, ZUR 2, ZUM 3580 - Sim Não. Iniciará em outubro de 2013.

Serão utilizados recursos do PAC direcionados para o FNHIS.

PRN por meio de empresa terceirizada – a NMC com recursos do FNHIS.

Roma ZEU 6 295 - Sim Não. Sem previsão de aprovação.

– –

SUBTOTAL DE LOTES FEITOS

12.378 (Não contempla Bairro Novo Aarão Reis)

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3 JARDIM FELICIDADE

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Figura 4 ─ Localização do Bairro (Conjunto) Jardim Felicidade

Fonte: IBGE, 2007; PRODABEL, 2008; SMAPL, 2011, com modificações próprias, 2013

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Figura 5 ─ Demarcação aproximada das seções do Bairro Felicidade

Informações de limites fornecidas pelo morador Antônio Soares Ruas.

Fonte: Google Maps (modificado), 2013

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Figura 6 ─ Evolução da ocupação do Jardim Felicidade

Desde 2003, o bairro já estava consolidado.

Fonte: Google Earth, 2003 a 2013

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Figura 7 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Jardim Felicidade)

Fonte: Google Earth, 2013, alterações próprias, em 2013

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Figura 8 ─ Ocupação às margens do córrego em destaque

Fonte: Pesquisadora, 2013

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Figura 9 ─ Fotos do início da ocupação do Felicidade

Fonte: AVSI, s/d

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Figura 10 ─ Situação atual do Bairro Jardim Felicidade ─ Expansão vertical e horizontal

Fonte: Autora, 2013

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“Nós criamos, dentro do panorama de Belo Horizonte, a primeira experiência de autoconstrução,

conjunto grande, e foi feito no Bairro Felicidade”. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista). É assim

que o Pe. Piggi se refere ao pioneiro dos loteamentos que fez: o Bairro (ou Conjunto) Jardim

Felicidade, datado de 1986, quando lideranças de associações dos sem-casa pressionaram a PBH a

lhes conceder um local para as famílias obterem a casa própria. O bairro está localizado na Regional

Norte de Belo Horizonte, próximo à Área de Diretrizes Especiais (ADE) Isidoro e é cortado pelo

Córrego Fazenda Velha (popularmente conhecido como Tamboril), afluente do Ribeirão do Isidoro

que, por sua vez, deságua no Ribeirão do Onça. (Figura 4).

O Felicidade surgiu na gestão do prefeito Sérgio Ferrara (1986-1989) que, no âmbito do programa de

doação de terras que havia implantado – Programa Nacional de Mutirões Habitacionais da Secretaria

Especial de Ação Comunitária (SEAC) –, autorizou a desapropriação de parte da Fazenda Tamboril

em 1986. Em seguida, a Secretaria Municipal de Ação Comunitária (SMAC) encarregou a AMABEL,

então liderada pelo Pe. Piggi, de organizar a ocupação.

Os recursos financeiros vieram do governo federal – o ministro do planejamento, Aníbal Teixeira,

direcionou parte dos recursos da SEAC para a PBH –, do governo municipal e da ONG italiana

AVSI23. Tais recursos foram usados para a compra do terreno e dos materiais para os moradores

autoconstruírem uma casa embrião de dois cômodos, que depois deveriam expandir com seus

próprios recursos.

Processo de aquisição da gleba

Diferentemente dos outros loteamentos feitos com a participação do Pe. Piggi, o Jardim Felicidade

teve um importante apoio do Poder Público, tanto municipal quanto federal, como já dito. A Fazenda

Tamboril pertencia aos doze herdeiros da família Clemente e, assim, havia sido dividida em doze

glebas de 300 mil metros quadrados cada. A PBH comprou três dessas glebas, totalizando 900 mil

metros quadrados, para implantar o Jardim Felicidade: “[de] dois herdeiros nós compramos, na

negociação assim tranquila. O outro entrou na justiça e está brigando até hoje pra receber o que ele

queria. Mas [o preço] era um real o metro quadrado”. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

23 Na conversa com Laender de Castro em 04 de maio de 2013, o arquiteto menciona que os recursos da AVSI vinha de 0,6% do orçamento italiano – destinado para ajudar os países emergentes.

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O processo de aquisição das glebas iniciou-se em 1986. Pe. Piggi usa o termo “nós” para se referir a

esse processo, mas não deixa claro se o pronome “nós” refere-se à equipe da AMABEL ou à união

de AMABEL e PBH. Fato é que, em todos os depoimentos (de Pe. Piggi, de Gladis F. Oliveira e do

morador Antônio Soares Ruas), transparece a proximidade entre o Poder Público e aquela

associação, e, em particular, a atuação do prefeito Sérgio Ferrara, lembrada positivamente. A

prefeitura encarregou-se do processo de negociação e de desapropriação das três glebas, enquanto

que a AMABEL direcionava suas ações para a ocupação propriamente dita:

Então nós compramos a primeira gleba, pagamos, e entramos com as máquinas. Enquanto isso, já a prefeitura estava em negociação com a segunda gleba, porque tinha o Ferrara lá, o prefeito, amigo da gente. Terminando a autoconstrução – que os cara [sic] entrava lá dentro e já tava começando, no dia seguinte – já entravam os caminhões na segunda área pra passar os caminhões e os tratores e tal e tal... E, imediatamente, os caminhões começaram a levar os materiais, sábado e domingo construía, e era mais 350. E a última, 350. Quer dizer, nós fazíamos a..., praticamente, o Bairro Felicidade se criou em menos de dois anos, encheu de gente. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Piggi refere-se à doação de terra para o Jardim Felicidade como a primeira feita por Sérgio Ferrara.

Pelo sucesso que obteve com a ação, é possível que o prefeito tenha passado a ver com bons olhos

a colaboração com a associação de sem-casa, como indica o relato do padre:

Depois com a ajuda da prefeitura da época que era o Ferrara, nós conseguimos que multiplicasse essas experiências [do Bairro Felicidade] em vários campos da cidade. De modo que, dentro de três anos, foram construídas 20 mil moradias. O Bairro Felicidade, o Bairro Capitão Eduardo, o Bairro Beija-Flor, o Bairro Novo Aarão Reis. Depois lá no Bairro Jatobá [Castanheira-3]. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Sobre a captação dos recursos federais, Pe. Piggi explica:

A verba vinha de Brasília da [Secretaria de] Ação Comunitária, de Brasília, que , na época, o secretário era Aníbal Teixeira. Depois se tornou ministro de planejamento de Sarney. Na época do governo Sarney. Então, vinha o cheque para nós que vinha buscar aqui da Secretaria do Governo Federal, no edifício Acaiaca aí, então tinha um escritório montado só para receber os comprovantes das despesas feitas. Recebíamos os cheques feitos para os próximos 60 dias. Em 160 [dias], recebíamos todas as despesas e recebíamos as verbas para as próximas 300 casas. Então em 45 dias nós fazemos 300 casas. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

O padre ainda menciona que os recursos empregados pela prefeitura deveriam ser devolvidos a ela,

mas não sabe explicar, precisamente, como seria. Ele menciona, em um das entrevistas, que seria

por meio da cobrança do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) que veio a acontecer um tempo

depois da formação do bairro como visto em sua fala a seguir:

A prefeitura ficou de cobrar o que ela gastou com o imposto do IPTU. Acho que o Bairro Felicidade acabou de pagar o deles não tem muito tempo, não. [...] Ela ficou no prejuízo. Ela investiu só aquela grana para comprar a Fazenda, porque a prefeitura tem a grande vantagem que ela pode entrar na justiça, o juiz determina o quanto que é, coloca no banco 80% do valor estipulado. Se o cara achar ruim, entra na justiça contra a prefeitura. Mas enquanto isso o juiz dá a emissão de posse, você pode começar a trabalhar por dia. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

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De todo modo, a cobrança nunca existiu: “a meta de que cada qual pagasse pelo lote recebido nunca

se concretizou.” (AVSI, 2007, p.14) O morador entrevistado sequer menciona essa possibilidade,

dando a entender que essa cobrança futura, que seria feita aos moradores, não aconteceu. (RUAS,

jun/2013, entrevista).

Definição dos papéis

A AMABEL faria a mediação entre moradores e agentes externos (Poder Público, organizações não

governamentais, etc.), indicaria a gleba escolhida à prefeitura e organizaria todo o processo de

ocupação do loteamento. Na cartilha organizada pela AVSI (AVSI, 2007) sobre a história do bairro,

constam os diversos papeis propostos para os agentes ligados ao Poder Público:

A proposta inicial era a de que o governo federal repassasse a verba para a compra de materiais de construção; o governo estadual fornecesse a infraestrutura básica (água, luz, esgoto, calçamento, educação, saúde, etc.); e o governo municipal realizasse e aprovasse os projetos urbanísticos, além de desapropriar o terreno que seria pago posteriormente pelos próprios moradores em prestações que corresponderiam a 10% do salário mínimo. (AVSI, 2007, p.11).

Aos moradores, coube a execução das casas com os materiais doados no regime de

autoconstrução. Eles deveriam seguir as normas estipuladas pelas lideranças quanto aos prazos de

construção. Ao final da gestão da AMABEL, ficaria a cargo das associações de moradores a

administração dos recursos, a fiscalização das áreas verdes e a regularização dos lotes e das casas.

As várias instâncias do Poder Público não cumpriram, completamente, com suas propostas iniciais,

como exemplo, a demora em preparar projetos urbanísticos foi tamanha que a própria AMABEL teve

de assumir a contratação de técnicos ligados à AVSI para realizarem o levantamento topográfico e

as intervenções. Por parte dos moradores também houve falha: até 2007, ou seja, quase 20 anos

depois de feito o bairro, muitos ainda não havia pago pelo lote, tampouco recebido a titulação da

casa.

O governo estadual demorou na instalação das redes de água e esgoto, para realizar o calçamento das ruas e investir na construção de escolas e postos de saúde. O governo federal, por outro lado, forneceu a verba para a compra dos materiais, embora parte das casas tenha sido construída com recursos dos próprios moradores, já que alguns possuíam condições para tanto (AVSI, 2007, p.14).

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Ocupação

Depois de adquirido o terreno, coube à AMABEL selecionar os sem-casa que seriam beneficiados.

“Os critérios adotados na seleção foram: ter renda até três salários mínimos; possuir maior número

de filhos; residir em moradia com menor quantidade de cômodos; morar de aluguel e participar, com

assiduidade, das reuniões dos núcleos.” (URBEL, 2001). Em três anos, quase três mil famílias

ocuparam a gleba. O processo foi dividido em quatro etapas sucessivas, cuja ocupação corresponde,

cronologicamente, às seções I a IV. (Figura 5). (RUAS, maio/2013, entrevista).

Essa estratégia está relacionada à desapropriação paulatina do terreno: as glebas eram liberadas

para a ocupação na medida em que era feito o pagamento aos proprietários (à família Clemente). A

cada etapa, eram sorteadas, aproximadamente, 300 famílias. Pe. Piggi, por meio da AMABEL,

liderou a ocupação das seções I e II e participou, em 1989, do início da ocupação da seção III.

A gestão do Pe. Piggi no Jardim Felicidade (1986-1989) coincide com a gestão do ministro Aníbal

Teixeira no governo do presidente Sarney (1985-1990). Aníbal Teixeira foi responsável pela

transferência de recursos do governo federal para a AMABEL. O apoio da AVSI consistiu na doação

de recursos à AMABEL para que contratasse serviços topográficos. A PBH emprestava o maquinário

para terraplenagem e a demarcação dos lotes e, por fim, fornecia, de segunda a sexta-feira, os

materiais para a construção das casas, que eram distribuídos aos moradores pela AMABEL. A

AMABEL, nessa época, era composta por uma diretoria de 12 líderes de núcleos de sem-casa,

provenientes de várias comunidades24. Esses 12 diretores deveriam cooperar para manter a

organização do processo, mas, com o passar do tempo, alguns foram se desvirtuando, em busca de

benefício próprio, da missão inicial.

Pe. Piggi e a AMABEL, antes de saírem do bairro, incentivaram a formação das associações

comunitárias locais de cada uma das três seções, chamadas de Conselho da Terra. Nessa época, a

seção III estava em andamento e a seção IV ainda não havia sido iniciada. Ficou a cargo de essa

associação dar andamento ao desenvolvimento do bairro, dessa vez com recursos do programa Pró-

Habitação (criado na década de 1980), que acabaram sendo direcionados para o término da

construção das casas da seção III. No entanto, essa gestão foi marcada pela fragilização de controle

24 Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=urbel&tax=8173&lang=pt_BR&pg=5580&taxp=0&idConteudo=39183&chPlc=39183# >. Acesso em: 09 de junho de 2013.

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tanto de material e de recursos, quanto da ocupação de áreas de preservação e institucional. Mais

detalhe sobre o processo pode ser visto no trecho do Plano Global Específico (PGE) do Felicidade

(URBEL, 2001):

Oito meses depois, foi fundada a Sociedade Comunitária dos Moradores do Jardim Felicidade (Scomfe), para representar as 210 famílias existentes e lutar pela melhoria da infraestrutura da comunidade. No início de 1988, com mais recursos liberados pela SEAC, foram concluídas as casas da segunda gleba, ao mesmo tempo em que a AMABEL encerrou suas atividades no Conjunto Jardim Felicidade. Nesta época, o Padre Piggi criou os Conselhos da Terra na 1ª, 2ª e 3ª gleba, para que estes administrassem os recursos da SEAC, regularizassem a área em seu nome e pudessem cobrar a taxa de 10% do salário mínimo de cada família durante cinco anos. Após este prazo, as escrituras seriam repassadas aos moradores quites. Entretanto, a terra não foi transferida aos Conselhos nem a comunidade pagou a taxa. Em agosto de 1989, foi obtida verba do programa Pró-Habitação para término da construção das casas da terceira gleba. No entanto, o controle do material pela Associação Comunitária não foi tão rígido como antes. Os Conselhos da Terra não conseguiram evitar invasões em áreas verdes e institucionais e houve até episódio do presidente de um dos Conselhos que vendeu lotes em áreas verdes e de risco geológico e, por isto, foi obrigado a fug ir do conjunto. Neste mesmo ano, Padre Piggi se ausentou, ficando o movimento acéfalo e as lideranças divididas. (URBEL, 2001).

Quanto às associações formadas, Antônio Ruas relata que havia disputas entre as associações de

cada seção para serem beneficiadas pelas obras da PBH e, com o tempo, os moradores perceberam

que não havia mais necessidade de ter vários conselhos e, hoje, no bairro, o Conselho dos Direitos

Humanos é o que o representa, como visto a seguir:

Nós tivemos muitos problemas com as associações. Até que a gente conseguiu acabar com esse numero de associação. A gente fez vários encontros e falamos assim, Oh! Não justifica a gente ter várias associações brigando pela mesma coisa. Porque quando eu encontro com um pedido na PBH para um beneficiar no bairro, e a outra associação entra também, aí entra um interesse político. Eles vão atender quem? Então para não magoar, ficar mau um com o outro, então não atendia ninguém. Então a gente conseguiu fazer esse raciocínio e fazer o pessoal entender isso, e acabar com esses números de associação que era para divisão de terreno. Como não tinha mais terreno, então não justificaria essas outras associações. Foi muito difícil. Aí a gente conseguiu. Aí ficou hoje é o conselho de direitos humanos que é um conselho, não é associação, mas faz papel de associação […] para todas as seções. Para todas as seções. E pra a ABAFE que é a associação do bairro, que deveria ser a associação do bairro ela não faz papel de associação. Faz o papel de uma ONG, entendeu? Então inverteu os papeis. O Conselho que era um conselho, exatamente, o Conselho de Direitos Humanos que era para fazer mediação de conflito aqui dentro, né? Ela acabou virando uma associação. Então, hoje, ele está com autonomia como associação do bairro. (RUAS, jun/2013, entrevista).

Por outro lado, o morador Antônio Ruas, ao fazer a ponderação do processo, posiciona-se mais

criticamente. A seu ver, o movimento tem sido “ótimo” por ter trazido as pessoas para o bairro, mas

pecou por não os ter agraciado com um local preparado para recebê-los, isto é, com infraestrutura,

equipamentos coletivos e serviços urbanos. "A primeira coisa que eles [AMABEL] pensaram foi [sic] a

moradia. Só isso.” (RUAS, jun/2013, entrevista). É como se os moradores tivessem sido pegos de

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surpresa. São a essas condições que as numerosas futuras famílias são submetidas, culminando em

problemas sociais. (Figura 9).

O movimento foi ótimo? Foi. Mas ele desapropriou essa fazenda e trouxe essas pessoas para cá. Dessa forma que eu te falei. Era quem ganhava casa era quem tinha mais filho, né? Então você imagina que, 3600 moradores, né? 3600 e alguma coisa. […] Para cada família dessa que tivesse – vamos reduzir para quem tivesse, três, quatro… quatro filhos. Como cresceu essa população aqui, porque há 25 anos, 26, 28 anos, quem tinha filho, dois anos, hoje está com 30. E aqueles que tinham filho com oito anos, dez anos esses, assim, a família cresceu muito rápido, entendeu? E aí veio sem nenhuma infraestrutura: não tinha luz, não tinha água, não tinha rede de esgoto, não tinha escola, não tinha centro de saúde e essa população foi crescendo, inchando, e foi pra onde? E aí foi entrando no mundo das drogas, aquela coisa toda e foi inchando, foi inchando. Outro dia a gente estava até fazendo avaliação por causa de um processo aqui e lembrando, assim, das pessoas que morreram aqui, né? Aí estava um grupo de cinco pessoas aqui, aí um cara contando, contando, e de repente ele chegou num número de 260 pessoas que já tinha morrido assassinado, entendeu? Aí o outro falou assim: mas não teve nenhum pai de família nessa história, entendeu? Foi só jovem, só filho de pessoas conhecidas, entendeu? Exatamente, por causa disso. A minha bronca com o Pe. Piggi foi exatamente esta. De trazer um enxame de abelhas e colocar, e ela produzir aqui dentro, foi inchando, inchando, sem apoio, sem nada. (RUAS, jun/2013, entrevista).

Construção das casas

Cada família recebeu um lote de 180m², um pouco maior que os 125m² estipulados pela Lei Federal

6.766/7925. De 1987 a 1989, a produção das casas se deu, predominantemente, por autoconstrução.

Quando impossibilitados, os futuros moradores poderiam terceirizar a construção de suas casas: “No

caso das famílias com dificuldades de construírem por si mesmas, cerca de 70, geralmente,

constituídas por mulheres sozinhas ou pessoas doentes, foi contratada uma empreiteira pela SEAC

para edificar as casas.” (URBEL, 2001).

De todo modo, as casas foram feitas segundo um projeto padrão de 20m² (casa embrião), que havia

sido elaborado por uma empresa de arquitetura contratada pela PBH. Foram raros os casos de

construções fora desse padrão. Assim, o processo aconteceu em uma "velocidade incrível”: Com o

trabalho de seis fins de semana, os moradores concluíam suas casas (Figura 9).

A primeira etapa: cavava os alicerces; segunda etapa: preenchia os alicerces; terceira etapa: levantava as paredes até a metade; a quarta etapa: esquadriar [instalação das

25 Informação obtida na planta de parcelamento do solo do Bairro Felicidade, aprovada segundo o Cadastro de Plantas (CP). (Disponível em: < http://portal5.pbh.gov.br/plantacp/inicio.do>. Acesso em: 16 de maio 2013.)

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esquadrias]; a quinta etapa: o telhado; a sexta etapa, é claro: entrar dentro de casa, com o chão puro e as paredes sem nada. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Esse ritmo permitiu produzir cerca de 300 casas a cada ciclo de 45 dias. As famílias eram obrigadas

a acompanhar o processo, se quisessem permanecer no loteamento.

Quem não fizesse a tarefa daquele dia, era substituído, imediatamente, pela família que estava esperando. E ele só entrava na próxima remessa das próximas 300 casas. Nós tivemos casos de gente que foi trocada quando era para por telhado. Não apareceram no dia do telhado, saíram fora, entrou a pessoa da casa. Era só pôr o telhado. [...] Quem não desse conta da tarefa daquele sábado e domingo, tinha que sair fora . (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Pode parecer uma medida um tanto quanto rígida, mas como fazer para manter a ordem de um

processo que envolvia 300 famílias (quase 1.500 pessoas)? Para garantir seu “bom” andamento, os

20 grupos que já se reuniam nos encontros dos sem-casa foram escolhidos pela AMABEL para

fiscalizarem o desenvolvimento das obras. Cada grupo ficava responsável por certa quantidade de

ruas e cada rua era fiscalizada por uma dupla:

Cada rua tinha dois fiscais. […] E dessa forma nós demos aquele show, aquele exemplo para depois se repetir nesses bairros todos. Quer dizer, sem empreiteira, sem financeira, sem as despesas de chamada, assim, de gestão. Que já é 40%, né? A gestão pública era, exclusivamente, com esses materiais. [...] Os fiscais eram eleitos pelos colegas. Nós tínhamos uns 20 grupos, naquela época, espalhados nessa região toda aqui. E cada grupo era dono de cada uma, duas, três ruas [...] e dentro dos grupos , todos já se conheciam há bastante tempo, porque nós reuníamos toda semana no grupo dos sem-casa. A motivação era grande porque o terreno apareceu, então foram vários que ditaram o terreno, o terreno, uma maravilha, quer dizer, as pessoas se sentiram muito motivadas. Naquela época, não tinha toda essa burocracia. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Nessa etapa, todo o material necessário foi doado para os moradores. A associação pleiteou

recursos públicos para adquiri-lo, comprava os materiais e os repassava:

O dinheiro do material vinha de Brasília. De segunda a sexta enchia de material nas ruas, os caminhões. Trabalhava só sábado e domingo, no regime de autoconstrução, cada um construindo a sua própria casa com seus amigos, parentes, conhecidos. Em dois dias sumia o material todo, você não via mais nenhuma pedrinha no chão. Rendimento cem por cento. Coisa que construtora nenhuma nunca fez. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Os materiais “mais valiosos” – como cimento, louça sanitária e esquadrias – eram armazenados nos

chamados “galpões azuis”, cada qual nas três primeiras seções. A associação comprava os

materiais sempre à vista:

Então nós planejamos mais ou menos na "valentona" as compras dessas coisas todas e pagávamos antecipado. Nós não vamos pagar a prestação, nós não vamos, à entrega. Nós pagamos antecipado. Conclusão: a velocidade de entrega era impressionante! [.. .] de segunda a sexta os caminhões colocavam os materiais todos e quando tinha materiais mais caros como essas janelas e tal colocava no galpão aonde [sic] esses caras iam lá buscar. Quando era material grosso: areia, cimento - cimento era no galpão, pedras, os tijolos. [...] Era tudo planejado de tantos a tantos metros lá, o

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negócio, os caras buscavam o número de tijolos necessários para construir a casa deles e não desperdiçava um tijolo. Para vocês terem ideia, a média da construção civil ainda hoje é assim: 30% de desperdício. Lá era 0,00% de desperdício. Quando chegava domingo à tarde, lá à noitinha, aquilo estava limpinho, não tinha material nenhum, porque em dois dias eles faziam a tarefa. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Apesar da aparente organização do processo, não foi possível evitar alguns deslizes. Antônio Soares

Ruas, antigo morador do bairro, menciona as falcatruas que ocorriam nesse processo: grande parte

dos materiais foi desviada, inclusive por coordenadores da AMABEL (RUAS, 2013, entrevista). Ele

lembra uma situação marcante: no momento quando os moradores foram pegar as tampas das

caixas d'água no galpão, já não restava mais nenhuma “para contar a história”.

Concluída a casa embrião, partia-se para a segunda etapa da construção: a expansão das casas.

Como as famílias eram numerosas, expandir a casa, certamente, seria o próximo passo. Espaço

havia de sobra – recebiam lotes de 180m² para fazer o que bem entendessem. Vale aqui fazer uma

ressalva: como as famílias mais numerosas tinham prioridade na seleção dos beneficiados, pode-se

imaginar que esperassem ser contemplados com a construção de uma casa que fizesse jus à

situação deles. Em suma, devem ter pensado que receberiam o material suficiente para uma casa

que acomodasse a todos. Permanece, então, a dúvida de como a estratégia idealizada pela

associação – com sua casa embrião de apenas 20m² – foi comunicada aos moradores e se eles

estavam cientes do tamanho da casa que receberiam antes de se desligarem do antigo local onde

moravam. Será que foram pegos de surpresa? É bem provável que tenha havido uma falha de

comunicação (intencional ou não) entre os moradores e a associação e que dela tenham resultado

desentendimentos e até mesmo desistências.

Depois de quase 27 anos de formação do bairro, a maioria das casas foi expandida horizontal e

verticalmente, muitas chegando a ter até três andares (Figura 10). Os afastamentos laterais e de

fundos, estabelecidos no início da ocupação, são, praticamente, inexistentes.

Infraestrutura

Tanto a água quanto a energia elétrica foram conquistadas com muita luta. No entanto, o processo

no Jardim Felicidade, aparentemente, foi mais simples do que nos demais loteamentos. Pe. Piggi

atribui essa diferença ao apoio que tiveram do governo, principalmente, o federal.

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Em se tratando da infraestrutura urbana, o padre lembra o contraste entre a presteza da Cemig,

responsável pela rede de energia elétrica, e a morosidade da COPASA, responsável pelas redes de

água e esgoto:

A Cemig sempre foi facílima. Porque é interesse imediato dela. Fazia aqueles padrões simplificados que iam já prontos, ela mesma colocava o padrão. [...]. Agora, a água. A água com a COPASA, nossa senhora, que sofrimento! A única que acudia era a Cemig, porque, por incrível que pareça, esses lotes menores [...] é vantagem para ela, porque num curto espaço de tempo há muitos consumidores, então, lucrativo para a Cemig. Então, a única coisa que nós conseguíamos era a luz, porém primeiro tinha que ter a casinha pronta e eles punham lá um padrão de luz chamado ‘centrificado’ que a Cemig mesmo punha e ligava. Então, em três dias, eles ligavam trezentas casas. Com poste, com tudo ligado e tal. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

As redes de água e esgoto foram implantadas lenta e parcialmente. Até os anos 2000, ainda havia

ruas sem acesso a eles. Nos primeiros anos, a COPASA apenas disponibilizou três chafarizes no

bairro, um em cada seção, que geravam imensas filas para pegar água. Com o tempo, os moradores

se mobilizaram para conduzir a água até as casas, de modo mais ou menos improvisado. Só então a

COPASA observou que havia um consumo considerável no bairro e, gradualmente, foi instalando a

rede ‘oficial’ de distribuição de água. Já a rede de esgoto chegou apenas muito recentemente com o

Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que também possibilitou a pavimentação das

principais vias do bairro. (Figura 9).

Os detalhes do processo da chegada da infraestrutura no bairro podem ser visto a seguir no relato

de Antônio Ruas. Primeiro, foi a água, depois, a energia e, por fim, a rede de esgoto junto com o

calçamento das vias, como pode ser visto a seguir:

1) Água

A primeira que veio foi a água através de chafarizes. Então eles trouxeram, pegara de algum lugar e trouxeram uma “encanação” e fizeram o chafariz. Aqui na Rua 59, né? […] Aí as pessoas viravam a noite na rua, porque para abastecer essa população toda, pegando a água dos chafarizes. E como o abastecimento era muito fraquinho, a água vinha mais a noite. Então era comum das famílias, à noite inteira, estar carregando as água para abastecer. Um dia estava lá, no outro dia estava de novo. Era dessa forma. […] Então, aí, depois, as pessoas foram percebendo. "Olha! Se a água vem até o chafariz, então, eu posso levar minha água até a minha casa!” Aí foram lá e cortaram a mangueira do chafariz e compraram o mangueirão e espichou, né? Durante o tempo que a pessoa não estava pegando a água no chafariz, a água estava indo até a minha caixa d'água, eu queria levar até a minha caixa de água. […] Fazia um grupo de pessoas, eu fiz isso, fazia um grupo de pessoas, compravam lá 200 m de mangueira, entendeu? E aquelas mangueiras a gente ia dividindo, porque o tempo que o chafariz estava fechado, a água podia estar descendo. Quando o pessoal pegava água no chafariz, o pessoal cortava, entendeu? Então foi dessa forma, a água. (RUAS, jun/2013, entrevista).

2) Luz

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Antônio Ruas recorda que a implementação foi motivo de rixa entre vereadores, pois queriam se

gabar com os feitos, tendo em vista, provavelmente, o apoio dos moradores:

A luz veio também através de movimento. Aí já tinham morador que já não tinha luz, e já existiam os moradores que já tinha luz. Então, já foi um processo mesmo de luta e veio naquele tempo que não tinha Orçamento Participativo. Tinha a melhoria através de um vereador, através de um projeto de lei, um decreto uma coisa assim, né? Então tiveram vários vereadores que teve essa contribuição, entendeu? De lutar por um pedac inho… teve briga de vereadores, entendeu? Maria Elvira foi uma delas, entendeu? Que trouxe um parque de luz, aí veio lá a Júnia Marisa e falou que ela que tinha trazido o processo e tal e foi no dia da inauguração dessa luz, houve briga de vereadores. [risos]. Mas cada um teve essa contribuição, né? […] O Tomás da Mata Machado, do Projeto Manuelzão, não sei se você conhece, da Faculdade de Medicina, ele foi secretário de infraestrutura por um tempo no governo do Patrus Ananias, né? Então a gente conseguiu com ele a liberação ali, da parte dali, que não tinha luz, né? […] Então cada um teve a sua contribuição. Mas foi através de luta e de movimento, de reivindicar e tal, entendeu? […] quando começou esse processo, a COPASA, […] viu que o consumo estava sendo grande, viu que não tinha retorno isso aí. “Aí , por ela mesma, por ela foi fazendo instalação de água.” (RUAS, jun/2013, entrevista).

3) Rede de esgoto e calçamento

Esgoto já veio através do Orçamento Participativo, né? Que quando eu fazia reivindicação em tal rua assim, aí já vinha, era incluído o orçamento de rua e já vinha [sic] as redes de esgoto. Então foi dessa forma. Aí, foi fazendo as ruas principais […] e, de repente, as ruas do lado foram ficando, então o próprio órgão público foi vendo que tinha que fazer. Então aprovava uma quantidade de metro cúbico de rede de esgoto, né? E dava para fazer algumas ruas, então foi dessa forma. Aí, até o ano de, acho que, até 2000, tinha rua sem asfalto, sem esgoto, então que foi chegando depois. Mas foi tudo através de movimento e luta e tudo. (RUAS, jun/2013, entrevista).

Mobilização temporária

A julgar pelo relato de um morador, esse foi um processo moroso e de muita luta, que aglutinou a

comunidade local por algum tempo. Antônio Ruas relembra que, antigamente, no auge da

mobilização, conseguiram levar à Regional Norte, às reuniões do Orçamento Participativo (OP),

quase 1000 moradores do bairro. A força que o movimento tinha era tal, que os demais bairros da

regional se sentiam intimidados, pois já sabiam que “perderiam”. Segundo ele, de todos os

Orçamentos Participativos, só perderam um. Hoje isso acabou – o número de moradores envolvidos

no último OP caiu para 50.

Mas, uma vez alcançadas as ‘conquistas’, tal mobilização se enfraqueceu. A maioria dos moradores

passou a não se interessar mais pelas causas coletivas. Inclusive, o mesmo entrevistado atribui o

comodismo atual dos jovens e até mesmo a condição atual de violência à falta de envolvimento

nessas lutas.

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Aí, quando eu tive esgoto na minha rua, tive luz, tive asfalto, não vai brigar mais, né? Então foi acomodando, né? Então foi isso que foi acabando os movimentos. Hoje, essa juventude que vem hoje não acompanham isso, né? Quer só ficar na pracinha, fumando, cheirando. […] Não participa [das lutas] porque tem muitas coisas para conseguir. (RUAS, jun/2013, entrevista). […] As pessoas vai se acomodando, essa que é minha preocupação, as pessoas vai [sic] conseguindo as coisas e já esquece que os outros precisa, entendeu? Já atendeu a ele e aquele. No início, não tinha isso. As pessoas se preocupavam com o: Ah, não! Eu já consegui, mas vou consegui para outro lá. Porque estou conseguindo para o meu bairro. É uma melhora para o meu bairro, não importa – essa é a concepção – não importa onde que vai ser feita essa melhoria, mas que vai ser feita no meu bairro, né? A gente conseguiu dessa forma, né? Agora hoje as pessoas já não olham mais isso, né? Essa questão da violência, por exemplo, né? Eu acho que se eu bater em cada casa dessa, não tem uma família que teve um filho envolvido ou filho de um vizinho envolvido, entendeu? Ele vai contar uma historia dessa. E hoje as pessoas preocupam mais com isso. (RUAS, jun/2013, entrevista).

O morador ainda comenta sobre as lutas com as quais, atualmente, só poucos moradores tem se

envolvido. Como parte dessa minoria, Antônio tem lutado pela revitalização do Córrego Tamboril,

bem como pela desapropriação dos que moram à margem do mesmo. Há oito meses tem lutado, sem

sucesso, para transformar áreas degradadas em áreas públicas, para o uso comum e pela segurança

do bairro. Além disso, alguns desses moradores tem se envolvido, por meio do MOVE (Movimento

dos Impactados da Granja Werneck), contra a onda especulativa que está para acontecer na região

vizinha, a Granja Werneck:

Hoje tem o córrego, entendeu? Não é só o córrego, tem outras coisas, que eu poderia estar melhorando, entendeu? Uma indústria, alguma coisa, que não pode ser implantado aqui, porque é residencial, mas eu posso estar colocando do lado. […] Esse processo de desapropriação da Granja Werneck, né, que está vindo aí. Vai construir aí um conjunto habitacional de grande porte, de luxo, lá dentro. Mas o que vai me trazer de retorno, de trabalho dentro disso? Será que eu posso colocar alguma coisa assim? Posso reivindicar? E aí você não vê luta dessa juventude. Eu participo desse movimento [MOVE], eu e a Lu estamos numa guerrinha [ferrenha] com eles, né? E tem outros movimentos de outras pessoas, mas, praticamente, você não vê jovens nesse movimento. E eu me preocupo com isso. Quem preocupa com isso sou eu, que tenho uma filha, a Lu que cresceu e está começando a crescer nisso e amanhã vai ter filho […] mas você não vê jovem participando disso, vai enfraquecendo. (RUAS, jun/2013, entrevista).

Ocupação da área de preservação e à margem do córrego

A prefeitura não concedeu título de propriedade àqueles que se encontravam nas áreas destinadas à

preservação. Com exceção da seção IV, as demais seções foram cedendo, gradualmente, a área de

preservação para quem pedia. A área do córrego era para ser preservada e, atualmente, os

moradores estão brigando para remover e reassentar aquelas famílias que vivem no leito do córrego

(Figura 8). "Hoje são 3600 famílias que invadiram as áreas verdes, que invadiram as áreas

institucionais e um tanto de coisas – depois que o conjunto foi feito”, comenta Pe. Piggi.

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(BERNAREGGI, maio/2013, entrevista). Antônio Ruas também denuncia esse problema e identifica

pelo menos duas tendências: a ocupação feita com o consentimento dos próprios moradores e a

ocupação espontânea.

A margem do córrego, ela foi invadida, entende? […] Essa área ocupadas foi entre 1987/1990, alguma coisa assim. Que aí foi dividida por associação. A associação da primeira seção… aí cada associação teve uma associação de bairro, primeira seção, segunda seção, terceira seção. […] Só a quarta seção que não teve. A quarta seção já foi os direitos humanos, entendeu? Então a primeira, a segunda e a terceira seção teve associação, entendeu? E essas pessoas da associação e que foi, dentro de seus espaços da associação é que foi cedendo para alguém: ou colocando um parente, ou colocando um amigo e em troca recebendo alguma coisa. E foi assim que foi ocupado todo o restante das áreas verdes, entendeu? As margens do córrego já não foi dessa forma. [sic] As margens do córrego foram ocupadas. O pessoal já via um pedacinho e aí foi ocupado dessa forma. (RUAS, jun/2013, entrevista).

Inclusive, o morador chega a responsabilizar, também, até o padre por essas ocupações. Na visão

de Antônio Ruas, o padre deveria monitorar todo o processo de ocupação do bairro e conscientizar

os moradores de como fazê-lo, como visto a seguir:

Então, assim, era muito do Piggi, acho muito legal […]. A única coisa que fiquei receoso com o Piggi foi, exatamente, isso, né? Porque hoje seria uma área de preservação, mas como hoje já não está preservando também a outra parte, também não seria, né? Volta , penso e repenso dessa forma também, né? […] Hoje a coisa mais essencial é a água e que está muito escassa. E essa região aqui é muito rica em água, muito rica em água. Então, pra tudo quanto é cantinho, grotinha, tinha um corregozinho. Os primeiros moradores aqui, eles construíram as suas casas tomando água desse córrego que era limpinho e tudo. Eu vim pra cá com as pessoas, aqui tinha um espaço que não existe mais, que chamava biquinha, né? Que era onde que tinha água e caia lá, né? O pessoal pegava lá, regava, carregava água na cabeça pra fazer comida, pra lavar roupa. Final de semana um monte de mulher ia pra lá lavar roupa, que tinha esse espaço né? Então isso era rico aqui. E hoje não tem mais isso. Hoje tem esgoto a céu aberto, né? A gente está brigando aí pra poder esperar, que ainda é possível, né? (RUAS, jun/2013, entrevista). […] Então, ele [Pe. Piggi] poderia ter pensado nisso. Olha, vamos ter moradia, mas também com qualidade de vida. Vamos preservar a natureza. Como posso preservar a natureza? Vamos respeitar as margens do córrego, entendeu? Vamos respeitar as nascentes. Isso deveria ser uma condicionante dentro do critério de desapropriação. Então não teve isso, foi só desapropriou de todas as maneiras, foi tirando tudo que é mato, tirando tudo o que é nascente, né? O esgoto foi arredando em tudo e qualquer lugar. Então esta que é a minha bronca, né? Então ele poderia ter pensado um pouquinho nisso, né? (RUAS, jun/2013, entrevista).

Atualmente, esse morador, juntamente com outros moradores, luta pela revitalização do córrego e pela

desapropriação dos que moram às margens desse.

A gente está brigando. A prefeitura está aqui com uma empresa fazendo o projeto do córrego, né? Nós queremos, não conseguimos ainda sentar com a prefeitura para negociar isso. Nós queremos que as famílias sejam desapropriadas, né? Entendeu? Retire a terra que foi colocada lá e tire o espelho de água, porque é possível ainda recuperar as nascentes. Ainda é possível fazer isso, né? Então, mas está dentro desse processo, né? Mas, hoje, nós estamos brigando para isso. Há um tempo, não precisava [sic] de brigar por isso, porque já tinha o seu leito natural, entendeu? (RUAS, jun/2013, entrevista).

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Corrupção interna

Além do desvio de recursos e de materiais pelos coordenadores, o morador Antônio Ruas menciona

outra forma de corrupção interna na AMABEL: a venda clandestina de lotes. O próprio Antônio foi

beneficiado por esse esquema. No seu caso, parece que a pessoa que havia recebido o lote

inicialmente deixou de comparecer aos finais de semana para o trabalho de construção. Um dos

coordenadores viu que a casa não iria para frente e resolveu vender o lote, então, vago. Antônio diz

não saber quem era o antigo proprietário e quem recebeu o dinheiro. Segundo informou em

entrevista, um conhecido seu o colocou em contato com o tal coordenador, que foi , na época, até a

casa onde Antônio morava de aluguel no Bairro Renascença. Ali chegou com uma “carteira” (uma

espécie de registro do lote) em nome de Antônio. Tudo estava devidamente esquematizado e ali

mesmo efetuou o pagamento do lote. Antônio vê nessa corrupção um dos motivos que levaram Piggi

a se afastar do movimento. De fato, o padre se refere a tais episódios com pesar:

Teve lá uma parte muito triste da associação comunitária corrupta vender as áreas verdes, vender as áreas institucionais, lote... por conta própria . Os coordenadores da associação comunitária vendiam terreno, pegavam o dinheiro. Coisa terrível isso. De um jeito ou do outro, o pessoal tá lá, né? (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista). O Felicidade, infelizmente, foi a primeira tentativa nossa... Infelizmente, em 1988 eu tive de viajar para a Itália, fiquei lá até 1990, e deixei aqui em andamento. E eles terminaram o bairro e o coordenador da associação começou a receber para enfiar os favelados em tudo quanto é área […], área proibida. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista).

Os futuros moradores do Jardim Felicidade, conforme já mencionado, faziam parte de diferentes

grupos de sem-casa ligados à AMABEL. Como esses grupos eram muito numerosos, foi preciso

estabelecer critérios de seleção: as famílias deveriam ter renda mensal de até três salários mínimos

e pelo menos quatro filhos, deveriam morar em poucos cômodos, de aluguel e deveriam participar

com assiduidade das reuniões dos núcleos.26 Com o esquema de venda de lotes pelos

coordenadores, esses critérios foram violados paulatinamente (o próprio Antônio, na época em que

adquiriu seu lote, era solteiro). Hoje, é impossível saber quantas famílias do Jardim Felicidade

pertenciam à seleção original da AMABEL e quantas chegaram ali por outros meios, não se

enquadrando naqueles critérios.

26 Plano Global Específico (PGE) da URBEL ­ julho/2001

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Dando sequência a essa denúncia, Antônio Ruas revela o envolvimento nesses ciclos de

enriquecimento sucessivos de agentes ligados a instituições públicas. O entrevistado julga ter sido

essa a maior decepção do padre:

Quando eu coloquei aqui do Pe. Piggi ter uma decepção com a associação, mas atrás dessas pessoas existia [sic] muitas pessoas que muito material aqui foi desviado. Caminhão, caminhão de tijolos, entendeu que vinham foi desviado. Porque, acima dessas pessoas de associação, existia o Pe. Piggi. Acima do Pe. Piggi existia outras pessoas que era o presidente da Urbel que construía vilas e favelas de Belo Horizonte – que são gerenciadas por eles né? Então existia pessoas desse nível, a nível de prefeitura, entendeu? […] Teve gente da alta que ficou rico aqui dentro. Ficou rico. […] A decepção com o padre Piggi com alguns moradores, ela foi grande. Mas maior com essas pessoas que estavam por trás. Porque isso aqui não chegava para os moradores daqui, eles ia [sic] lá e... Eles vinham de uma organização. Esta organização italiana [AVSI] era séria que doou esse material todo, existiu o Aníbal Teixeira que foi o mentor de buscar esse recurso, entendeu? Ele também tinha ele. Mas nesse meio de caminho, aí, existia muitas falcatruas, entendeu? (RUAS, jun/2013, entrevista).

Outro tipo de desvirtuamento, talvez não associado à lógica dos que foram mencionados como

enriquecimento próprio, é relatado por Antônio. Segundo ele, aconteceu quase como um jogo de

poder entre as lideranças da associação. Em sua opinião, a suposta área destinada, inicialmente,

para ser um centro de saúde, passou a sediar a Creche Comunitária Jardim Felicidade/Centro

Alvorada, à custa também de desapropriações:

Da mesma forma que eu elogio o movimento do Pe. Piggi e de Rosa [Brambilla] e de tudo, eu tenho umas críticas. [...] Onde foi construída a creche [Creche Comunitária Jardim Felicidade/Centro Alvorada], foi desapropriada 16 famílias. Era para ser um centro de saúde ali, entendeu? Esse centro de saúde teve o projeto, ele foi orçado, o recurso veio e foi construído aquilo lá. Então, querendo ou não, a mesma instituição que fez tudo isso, ela se beneficiou de alguma coisa, entendeu. (RUAS, jun/2013, entrevista).

Processo de regularização e Isenção de imposto

Antônio relembra que, à época da implantação do Jardim Felicidade, o prefeito Sérgio Ferrara

estabeleceu a isenção de IPTU às famílias de moradores por um período de dez anos, até se

estabilizarem na nova condição de vida.27

Dentro da implantação do conjunto, aí veio desde o Sérgio Ferrara, todos os prefeitos tinham acordo com isso, que o Felicidade teria dez anos de isenção de imposto, né? Porque naquele tempo as famílias não tinham condições nenhuma de pagar imposto e

27 Antônio comenta que esse acordo do Ferrara foi conservado, passado de gestão em gestão. Atualmente, o processo estabelecido para a regulação para Zeis-3, que constitui de cinco etapas (Anexo 2) confirma a manutenção do suposto acordo do Ferrara: “Na quinta e última etapa, o morador beneficiado faz o registro da escritura em cartório, de forma gratuita. O único ônus é o recolhimento de uma taxa à prefeitura no valor de R$ 30,00. A cobrança de IPTU só vai acontecer 10 anos depois da finalização do processo de regularização fundiária.” (PBH, 2013)

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tal. Então ficou isso, ficou documentando isso, que haveria dez anos de isenção, até as famílias se constituir, se estabilizar e tal e começarem a cobrar imposto. [Isso seria entre 1985/1988]. Dentro daquele período, entregava o conjunto, dava o título de propriedade, eu seria dono do lote, né? (RUAS, jun/2013, entrevista).

No entanto, o registro dos terrenos não foi efetivado até 2005, por problemas com os antigos

proprietários:

Como isso não aconteceu, essa entrega de documento só foi arrastando, entendeu? Aí, me parece que teve o processo na justiça também, porque parece que […] teve uma parte que não foi paga, né? Foi desapropriado, foi negociado, mas não recebeu; ou alguém que recebeu, mas veio a falecer, e depois veio o segundo herdeiro, terceiro herdeiro e entrou com processo que não foi recebido e tal . Então foi isso, né? Então isso tudo contribuiu para não sair a documentação de propriedade. (RUAS, jun/2013, entrevista).

Como mencionado, os lotes do Bairro Felicidade foram doados pelo Executivo por meio da Lei Nº

6846 de 13 de março de 1995, legitimando, assim, a doação dos mesmos para os moradores. As

plantas cadastrais do bairro indicam que a maioria dos lotes – cerca de 2.141 – tiveram a aprovação

retificada durante a gestão do prefeito Fernando Damata Pimentel (2002-2009), pelos processos

Nº12.193, de 20 de Outubro de 2005 e Nº12.497, de 20 de Outubro de 2006.

As escrituras começaram a ser emitidas a partir de 2010, inclusive a do próprio Antônio. Sendo

assim, os dez anos passaram a ser contados a partir daí, ou seja, a isenção acabará em 2020. Mas,

para que essa aconteça, é preciso que o acordo se mantenha pelas futuras gestões:

Então, só no ano de 2010 que foi entregue o título de propriedade […] então , como tinha aquela cláusula lá que eram 10 anos de isenção, então, os dez anos foi a partir da entrega do título de propriedade pra gente. Pode ser que… isso foi, já foi, no governo do Márcio Lacerda, entendeu? Pode ser que, no governo, no próximo governo, pode chegar e achar que não. E manda um projeto de lei para a câmara e pode acabar com isso, entendeu? […] Não tem uma lei específica para isso, é um acordo, né? Então , querendo ou não, a gente tem oito anos de isenção. (RUAS, jun/2013, entrevista).

Diante disso, ainda resta outra preocupação para Antônio Ruas. Ele teme que o empreendimento da

Região do Isidoro e, consequentemente, a valorização imobiliária façam com que as taxas de IPTU,

no Jardim Felicidade, sejam elevadas. Fato que já começou a repercutir no bairro. Uma "casa aqui

que custava 50 mil, hoje, está valendo 120 mil, quer dizer, foi um pulo." (RUAS, jun/2013, entrevista).

Com essa nova situação, esse e outros temores têm levado alguns dos moradores mais ativos do

bairro a se mobilizarem para impedir, de alguma maneira, que esse empreendimento e uma nova

onda especulativa venham a prejudicar ambientalmente28 os bairros adjacentes ao Isidoro.

28 A proposta do grande empreendimento imobiliário pelo consórcio Santa Margarida na Granja Werneck. “A prefeitura

da Capital pretende transformar o local, conhecido como Isidoro ou Granja Werneck (Região do Isidoro), na 10ª regional

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Como mencionado, a incompatibilidade de informações dificulta, em alguns momentos, a conclusão

de alguns fatos. A relação de vilas e conjuntos regularizados no período de 1986 e 2012 (PBH, 2013)

informa que são 4762 domicílios cadastrados e 2255 escrituras emitidas – ou seja, restariam ainda

2507 escrituras a serem emitidas, um pouco mais de 52% do total de domicílios existentes . (Anexo

1). No entanto, em setembro de 2013, o número de lotes não condiz com os 3043 lotes estimados

pela prefeitura (vide Tabela 3) em setembro desse ano (2013). Se essa última contagem estiver

correta, apenas 20 desses 3043 lotes não foram regularizados. De todo modo, esse tem sido um

processo demorado e, finalmente, concluído por meio de muita luta por parte dos moradores.

Considerações

Apesar de bem sucedida em vários aspectos, a experiência apresentou falhas em alguns pontos –

como exemplo, a demora foi tamanha para preparar projetos urbanísticos que a própria AMABEL

teve de assumir a contratação de técnicos ligados à AVSI para realizarem o levantamento

topográfico e as intervenções. Ainda que não tenham cumprido, plenamente, suas propostas iniciais,

foi uma iniciativa surpreendente para prover a população de baixa renda de moradias. De fato, é

necessário que haja o envolvimento dessas instâncias para legitimar esse movimento. Por exemplo,

outros bairros foram feitos e beneficiados com a conquista adquirida no Bairro Felicidade. Para que

essa iniciativa evolua, é necessário que as gestões governamentais seguintes deem continuidade a

esse processo.

de BH, abrindo as portas para a construção de 72 mil apartamentos, shopping, hipermercado, escolas, postos de saúde, entre outros empreendimentos. O projeto é do prefeito Marcio Lacerda (PSB) [...] foi aprovado pela Câmara Municipal de BH.” (Disponível em: < http://www.bhaz.com.br>. Acesso em: 16 nov. de 2013). Já, no Estudo Básico da Região do Isidoro feito pela Prefeitura (2012), a descrição é mais vaga: De acordo com o Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento Granja Werneck, por meio deste instrumento de regulação urbana, pretende-se promover ampliação e a ocupação ordenada da região Norte baseada em diretrizes de sustentabilidade ambiental. Desta forma, serão construídas cerca de 17,5 mil unidades habitacionais pelas construtoras Rossi Residencial e Direcional Engenharia, que juntas formam a empresa Santa Margarida Empreendimentos Imobiliários a qual é a responsável pela constr ução da Granja Werneck durante um período de aproximadamente 12 anos. Em contrapartida, deste negócio imobiliário, os empreendedores entregarão à Prefeitura equipamentos públicos urbanos tais como: unidades municipais de educação infantil, escolas de ensino fundamental e médio, escola profissionalizante, centros de saúde, terminal de integração de transporte coletivo e parques municipais. (PBH, 2012) Esse empreendimento poderia afetar as ocupações ali já existentes como a comunidade quilombola de Mangueiras. Atualmente, a região já conta com, pelo menos, outras três ocupações: Rosa Leão, Esperança e Vitória, deixando os acionistas descontentes. A reportagem do Estado de Minas de 29/08/2013 reforça essa questão: “A Granja Werneck tem 400 hectares e a metade já está ocupada por barracas de lonas, segundo Fernando [Werneck, um dos herdeiros da área]. "Os invasores já estão construindo casas de alvenaria e desmatando uma área verde que minha família preservou por 90 anos”. Essa ocupação compromete o projeto que vai ocupar 356 hectares de toda a granja", disse o engenheiro. "Estão acabando com a parte ambiental, que é a cereja do bolo do empreendimento", lamentou.” (Disponível em:<www.em.com.br>. Acesso em: 16 nov. de 2013).

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Também, é questionável o envolvimento dos moradores no processo de decisão em que foram

submetidos. As informações obtidas tendem a dar um foco maior às lideranças da associação. A

impressão é que elas sempre estiveram mais à frente das decisões e negociações com os demais

agentes, decidindo, aparentemente, por conta própria, haja vista as raras menções quanto à

participação efetiva dos moradores associados.

As entrevistas também não deixam claro se houve negociação quanto ao tipo de casa que seria

implementada. Aparentemente, foi uma decisão feita pelo Poder Público, utilizando de uma casa

embrião padronizada como solução para o problema. Como já foi dito, as famílias mais numerosas

que se mostraram dispostas a enfrentar o processo, ficariam, um tempo, espremidas nessa casa, até

ter condição para expandi-la. No entanto, não há duvida quanto às facilidades trazidas pelo Estado

referentes à provisão de moradia por meio de doação de materiais e de um lote (que os moradores

poderiam preencher como quisessem). É provável que, se os moradores, desde o início, fizessem do

seu jeito, de acordo com suas necessidades, teria sido melhor, ainda mais pelo fato do bairro

apresentar uma grande variação de declividades.

Mesmo não sendo a melhor opção, no caso de padronizar o projeto, seria mais adequado produzir

alternativas levando em consideração o relevo. Na melhor das hipóteses, que fosse dado aos

moradores liberdade em fazer a construção em etapas como bem entendessem – cada um criaria

sua casa embrião, conforme suas necessidades. De todo modo, é imprescindível que haja um

esforço por parte dos envolvidos (Estado, liderança da associação e associados) para ampliar um

espaço de discussão e decisão conjunta.

A autoconstrução, nesse caso, assim como nos demais loteamentos analisados a seguir, foi a

modalidade, aparentemente, escolhida pelo Estado e, provavelmente, pelas lideranças. Ainda que

seja uma prática comum para vários dos envolvidos, seria interessante também abrir essa decisão

aos moradores. Além dos fisicamente incapacitados a fazê-lo, é possível que alguns prefiram

terceirizar a construção. Deve haver abertura para a escolha, ainda que a decisão seja a autonomia

no construir (como conjuntos habitacionais). De todo modo, já foi um avanço o fato de a prefeitura

prontificar e direcionar recursos para terceirização da construção para os impossibilitados de se

submeterem à construção de suas casas.

A rigidez quanto ao prazo de construção das casas também é questionável. Correr o risco de perder

a casa por não poder comparecer no dia determinado parece ser um tanto radical. Por outro lado,

como manter organizado um processo que envolve 300 pessoas de cada vez?

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A mobilização também não passa de uma idealização projetada sobre a população de baixa renda. É

comum alguns pensarem que, uma vez na condição de pobreza, o indivíduo, naturalmente, terá uma

mentalidade voltada para o coletivo, para a ajuda mútua. A maioria dos moradores se acomodou

com a própria situação quando resolvida; alguns persistiram na luta pelo interesse coletivo,

conquistando a implantação de creches comunitárias e posto de saúde, e continuam reivindicando a

titulação das casas e a revitalização do Córrego Fazenda Velha, o “Tamboril”. (AVSI, 2007, p.15). A

partir desse exemplo e dos que virão a seguir, é notório que o aglutinador dos movimentos se dissipa

na medida em que as reivindicações comuns são, aos poucos, conquistadas. A mobilização tende a

reduzir-se, na melhor das hipóteses, a uma minoria.

É possível que o envolvimento do Pe. Piggi, nesse processo, tenha sido determinante. Seu espírito

firme pode ter sido muito conveniente para pressionar o Poder Público e até mesmo manter a

organização do processo. Ainda assim, pode ser visto que ele não conseguiu ter o controle de tudo

como comprovado nos deslizes de algumas das lideranças da AMABEL. No Felicidade, assim como

nos demais casos aqui estudados, o padre parece atuar como catalisador no desenvolvimento do

bairro. Ele é quem inicia o processo e, antes de completá-lo, afasta-se, passando seu encargo aos

moradores – atitude reprovada por Antônio Ruas. A criação da associação dos moradores comprova

essa hipótese e, de certa maneira, um cuidado de conceder aos moradores a autonomia para gerir o

bairro. Talvez seja essa a principal atuação do Pe. Piggi.

É marcante também a confusão que o morador entrevistado, Antônio Ruas, faz ao relatar a função

de cada agente envolvido no processo. O padre, além de providenciar o terreno e conduzir os sem-

casa para lá, deveria ter provido, previamente, todas as condições mínimas de urbanização e

serviços públicos. Ora, tal responsabilidade por essas questões repousa sobre o Poder Público que

só serviu de facilitador para captação de recursos e desapropriação do terreno. Com a omissão

desse agente, a culpa recai sobre a AMABEL. Ela até pode só ter pensado nas casas, mas não seria

função do Poder Público prover moradia digna para todos? A AMABEL atua à custa da omissão do

Poder Público. Será que esse argumento do morador não é o mesmo pregado pela prefeitura, em

outras palavras, é possível que moradores, até os mais engajados nas lutas, reproduzam o discurso

do público. Não questiono, aqui, a articulação e a capacidade crítica do morador, mas é um tanto

curioso observar que, possivelmente, sem mesmo saber, ele se apropria de certos discursos sem

nem mesmo questioná-los.

Diante dessas questões, tendo a pensar que esse processo foi mais por cogestão do que por

autogestão propriamente dita. Ainda que tenha havido um interesse por parte das AMABEL de

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incentivar a criação de associações dos moradores antes de sair de lá, parece que não houve

acompanhamento necessário. Os futuros moradores parecem não ter se envolvido, de fato, nas

decisões e sim as lideranças, conformando-se assim, em um movimento com articulação mediana,

pseudo autogestionário.

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4 NOVO AARÃO REIS

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Figura 11 ─ Localização do Bairro Novo Aarão Reis

Fonte: IBGE, 2007; PRODABEL, 2008; SMAPL, 2011 com modificações próprias, 2013

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Figura 12 ─ Provável localização da primeira ocupação do Bairro Novo Aarão Reis

Fonte: Autora, 2013

Figura 13 ─ Provável localização do barraco de lona onde Maria e sua família moraram

Fonte: Maria Pinheiro da Silva, moradora do bairro, cedida em 2013

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Figura 14 ─ Casas populares no Conjunto Habitacional Novo Aarão Reis, 1993

Fonte: Acervo APCBH. Fundo ASCOM (GR1014/Env.2153)

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Figura 15 ─ Situação atual do local registrado da figura anterior (Novo Aarão Reis)

Fonte: Autora, 2013.

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Figura 16 ─ Situação atual do Bairro Novo Aarão Reis

Fonte: Autora, 2013

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Figura 17 ─ Evolução da invasão da área verde e ribeirinha (Novo Aarão Reis)

Fonte: Google Earth, 2009

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Figura 18 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Novo Aarão Reis)

Fonte: Google Earth, 2013, alterações próprias em 2013

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O Novo Aarão Reis localiza-se na Regional Norte, à margem da Rodovia MG-020 (que leva à Santa

Luzia) e é cortado pelo Ribeirão do Onça, que o separa do Bairro Belmonte. Não há consenso

quanto ao processo de sua formação, que teria iniciado em 1992 (data incerta) . (

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Figura 11). A antiga moradora, Maria, com a qual se deu nosso primeiro contato com esse

loteamento, acredita que tenha se tratado de mais uma doação do prefeito Sérgio Ferrara (o que é

improvável, porque seu mandato terminou em 1989, mas indica que se criou um mito em torno da

doação de terras por esse prefeito). Durval, também um morador antigo, recorda que a ocupação foi

durante a gestão do Patrus Ananias e que a “Noema da Cohab” e um “coronel Leônidas” sorteavam

os lotes. Além da Cohab Minas, menciona a participação da Federação das Associações de

Moradores de Belo Horizonte (FAMOBH). Já Pe. Piggi atribui a formação do loteamento a uma

cooperação entre a AMABEL e aquela federação, particularmente, à figura de seu presidente,

conhecido como Toninho da FAMOBH.

Apenas Gladis, atual presidente da AMABEL, parece se recordar melhor dos detalhes do processo:

segundo ela, tudo foi feito pela AMABEL em conjunto com a FAMOBH e a União dos Trabalhadores

de Periferia (UTP). Ela relata que a gleba era de propriedade do estado de Minas Gerais e que as

associações organizaram a ocupação com a estratégia de depois forçar a regularização. (OLIVEIRA,

ago/2013, entrevista). Assim, os futuros moradores ficaram encarregados de entrar na área, capiná-

la e montar suas barracas de lona. Inicialmente, não havia nenhum plano urbano do parcelamento,

de modo que a ocupação em barracas limitou-se a uma parte da gleba (um morador se recorda que

seria a área entre as ruas 42, 40, 45 e 47; algumas delas não constam no mapa). (Figura 12). Essa

configuração persistiu até 1993.

Não há informações de quantas famílias participaram da ocupação inicial, mas foi o suficiente para

que o Estado se visse pressionado a tomar providências, já que o terreno era sua propriedade. Foi o

Estado que acionou a Cohab Minas para que direcionasse a conformação do novo bairro. A Cohab

Minas, então, fez um projeto de parcelamento e se encarregou da distribuição dos lotes, assim como

da construção de algumas casas. (OLIVEIRA,ago/2013, entrevista). A PBH, por sua vez, recebeu a

incumbência de implantar a infraestrutura; o que, pelo depoimento de moradores, foi feito,

prontamente, um ano depois de sorteados os lotes. Apenas na fase inicial , tiveram o suprimento de

água por um chafariz, com os costumeiros conflitos na “fila da água”. Em 1994 , toda a infraestrutura

estava concluída e, em 1995, o Decreto 8305 do prefeito Patrus Ananias aprovou o loteamento do

Novo Aarão Reis e parte do Bairro Tupi.

A memória relativamente confusa desse processo pode ser explicada pelo fato de no Novo Aarão

Reis não ter havido nenhuma divisão em subáreas de responsabilidade das di ferentes associações,

como mais tarde iria ocorrer no Bairro Metropolitano (que, nesse sentido parece ter sido uma

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exceção). Assim, cada entrevistado parece lembrar-se das pessoas e entidades com que teve mais

contato ou dos eventos que foram mais marcantes na sua própria trajetória.

O processo de ocupação na perspectiva de uma moradora

A moradora Maria Pinheiro da Silva relata a sua trajetória no Novo Aarão Reis. Morava de aluguel na

casa da mãe, no Bairro Nova Gameleira, quando sua cunhada, um dia, mencionou sobre a ocupação

e, prontamente, decidiu que seria uma boa oportunidade para construir "seu próprio canto". Como

Maria estava grávida, o marido iria à frente e faria todo o serviço braçal, e, assim que a barraca

estivesse pronta, ela se mudaria para lá. (Figura 13). Ela se lembra de que foi um processo bem

sofrido. Tudo “era só poeira” e “não tinha nada” por lá. Os ocupantes da primeira hora improvisavam

abrigos com lona preta, geralmente, de um único cômodo, sem acesso à rede de água ou de esgoto.

Maria conta que cada um capinou o lugar onde iria instalar sua barraca; “cada um que foi chegando

foi fazendo o seu canto”. Essa descrição indica uma forma de ocupação mais individualista. A

organização coletiva (na forma de mutirão, por exemplo) não aparece como uma prática “natural” ou

espontânea entre a população mais pobre.

As famílias reunidas na ocupação provinham de regiões e origens muito diferentes, sem laços de

amizade ou solidariedade anterior a essa data. Se houve mutirão espontâneo ou ajuda mútua foi

entre grupos de pessoas que vinham de um mesmo lugar.

Na foto disponibilizada pela moradora, é possível perceber duas partes contrastantes da ocupação:

uma de barracas de lona e, logo ao lado, um grande conjunto de casas homogêneas em blocos de

concreto. (Figura 14 e Figura 15). A origem desse contraste não pôde ser inteiramente esclarecida,

mas parece tratar-se de uma parte do loteamento em que os moradores recebiam seus terrenos com

uma típica unidade embrião construída pela Cohab Minas. Depois, muito “beneficiários” demoliram

essas casas para construírem a seu gosto.

Os relatos de Maria também indicam que o processo de distribuição dos lotes foi aleatório. Ela se

lembra de que muitos permaneceram no local da primeira ocupação, recebendo seus lotes por ali

mesmo. Outros, como ela, foram contemplados com lotes um pouco distante. Gladis F. Oliveira

confirma isso dizendo que a distribuição dos lotes foi feita conforme os locais que os moradores já

estavam ocupando e, em alguns casos, houve sorteio, mas não foi algo muito burocrático porque a

maioria já estava “no seu espaço bem próximo ali”. Apesar do deslocamento, o sorteio permit iu que

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Maria continuasse a ter os mesmo vizinhos (e então amigos) da época da ocupação inicial. O sorteio

foi feito pela Cohab Minas, ela se lembra de que, em seu caso, foi organizado por alguém de nome

Suely.

Para a construção das casas, diferentemente do ocorrido no Bairro Jardim Felicidade, não houve

qualquer organização ou estratégia por parte da associação ficando a cargo dos moradores a

compra dos materiais e a execução. Na época em que construiu sua casa, Maria trabalhava na

Empresa de Ônibus Gontijo. Depois que levantaram as paredes, ela e o marido resolveram pedir

demissão de seus respectivos trabalhos para finalizar a casa. Seus sete filhos eram pequenos e

todos dormiam no mesmo cômodo: “Era uma coisa horrorosa!” A casa, então, foi levantada de uma

só vez, e não por etapas: “Se a gente não levantar tudo de uma vez a gente não vai conseguir fazer”.

Todo final de semana o irmão de Maria ajudava na obra. Ela estima que gastaram em torno de seis

meses até saírem da barraca (que ficava onde hoje é o seu quintal) e entrarem na casa, ainda em

fase de construção. Assim que tiraram o escoramento, taparam as aberturas com tábua. Depois de

um tempo, contrataram um pedreiro para forrar o teto e instalar cerâmica no piso da casa toda.

Nessa época, os recursos vinham do novo trabalho do marido. Mais tarde, expandiram a casa,

acrescentando a área de serviço e a cozinha do jeito que está hoje. Um de seus filhos, que é

pedreiro, ajudou a fazer a cozinha e o banheiro. Hoje Maria diz gostar muito da casa onde mora, uma

vez que pôde construí-la exatamente como quis – com três quartos, sala, banheiro, cozinha e quintal.

A moradora também considera que o bairro passou por muitas melhorias desde então. Menciona,

positivamente, a presença de mercearia, supermercado, posto de saúde, farmácia – todos

localizados na Avenida Um, avenida principal do bairro, além da existência de sistema de transporte.

Há uma linha de ônibus que sai da Estação Vilarinho e serve todo o bairro. A moradora não

apresentou qualquer queixa sobre as condições da escola do bairro, a UMEI Herbert José de Souza,

que oferece creche, pré-escola, ensino fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Segundo Maria, os aspectos institucionais, jurídicos e políticos do processo de implantação do Bairro

Novo Aarão Reis parecem ter bem pouca importância; o que indica que o envolvimento dos

moradores comuns (Maria não é, nem nunca foi, uma liderança local) com a organização em si foi

pequeno. Assim, não se trata de um processo autogestionário no sentido estrito do termo.

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Ocupação à margem do córrego

A casa de Maria localiza-se próximo ao Ribeirão do Onça (que atravessa o bairro), exatamente na

última fileira de lotes antes do córrego, a uma distância suficiente para não ser afetada pelas

enchentes. No entanto, as margens desse ribeirão foram invadidas por ocupação precária, sobretudo

por casebres de madeira e lona. Apesar do risco, alguns insistiram e começaram a construir suas

“casinhas” ali, área afetada pelas chuvas de maio de 2013. Hoje, o córrego está repleto de lixo e,

apesar de muitos moradores já terem acionado a prefeitura, essa ainda não fez nada a respeito.

Correm boatos sobre a intenção da prefeitura de remover as pessoas dali e o que não afetaria

apenas a elas, mas também aos moradores legalmente instalados. Maria acredita que, as pessoas,

por gostarem do local onde moram, não aceitarão serem alocados em “prediozinhos” feitos pelo

Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Se for preciso, eles se mobilizarão para impedir que

isso aconteça. Isso revela que, apesar de não ter uma relação de proximidade com os vizinhos, a

estratégia é de se mobilizar, e não se render ou se submeter às ameaças do Poder Público. Na

sequência de imagens aéreas a seguir (Figura 16, Figura 17 e Figura 18), é possível constatar uma

invasão gradual da área verde da parte sul do bairro. Mais adiante na conversa, a moradora

menciona que a entrada do bairro também foi uma invasão recente.

Segurança

Maria diz gostar muito do bairro, mas lamenta apenas uma questão crescente que muito a incomoda:

a “bandidagem”. Quando perguntada sobre quando essa questão começou a aparecer no bairro, ela

logo associou com a remoção da favela do Bairro Primeiro de Maio em decorrência da abertura da

Avenida Cristiano Machado. Segundo ela, grande parte daqueles moradores foi para o Ribeiro de

Abreu e os bandidos subiram todos para o Novo Aarão Reis.

Os traficantes “mandam” no bairro e a moradora diz que todos tentam ao máximo “andar na linha”

com eles – os problemas devem ser resolvidos entre eles e “chamar a polícia seria algo fora de

cogitação”. A moradora sente-se ameaçada. À noite, cada um fica no “seu canto”. Embora não tenha

problema para sair, evita. Só saí, quando necessário, até às 20h. Até mesmo durante o dia, quando

visitei o bairro com ela, Maria mostrou-se muito apreensiva – ela também teme aqueles que moram

nas ocupações ribeirinhas. Se comparado com as outras partes do bairro, ela considera a região

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onde mora como sendo uma área mais calma. Ela conhece os moradores dali, mas não interage

muito com eles.

Planos para o futuro

Se tivesse condições financeiras, ela sairia dali prontamente. Compraria ou no Bairro Guarani ou no

Bairro Tupi “um lugar maravilhoso de morar”. Fez menção, ainda, ao Ribeiro de Abreu por ser um

local bom, cheio de plantação e de árvore: “lá é bom, bom assim, que é lote...”. (SILVA, jul / 2013,

entrevista).

Corrupção interna

No termo de compromisso disponibilizado pela moradora, foi possível identificar um descumprimento

in loco. Maria se recorda que algumas pessoas se mudaram do bairro e, portanto, disponibilizaram

os lotes para outras pessoas os ocuparem. A filha de Maria foi uma das beneficiadas. Hoje, sua filha

mora na mesma rua que ela.

Processo de regularização

Gladis F. Oliveira menciona que ficou a cargo da Cohab Minas regularizar o Novo Aarão Reis, já os

demais loteamentos mencionados, ficou a cargo da prefeitura. No entanto, no mapa dos loteamentos

aprovados, o bairro não se encontra em situação de aprovação – ele não foi contemplado pela Lei

7611/98 supracitada.

Em conversa com funcionários da prefeitura no setor de Gestão de Projetos, foi informado que a

revisão da Lei 9959/2010 em que será indicado, para loteamentos informais, como é o caso do

estudado, classificações que variam entre AEIS e ZEIS estão em andamento. Como essa revisão

ainda se encontra em fase de estudo, só se pode dizer que a área em questão está prevista para

receber obras de programas de urbanização.

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Considerações

É preciso levar em consideração que apenas com os relatos das entrevistadas não foi possível

compreender todo o processo de desenvolvimento do bairro. Seria necessário realizar entrevistas

com outros moradores antigos e agentes envolvidos no processo. A priori, teremos apenas

conclusões preliminares ou apontamentos a partir das informações coletadas.

Os depoimentos dados permitiram vislumbrar como se dá o processo de transição do jeito de morar

de um sem-casa: do aluguel à casa própria. É uma situação permeada por várias dificuldades e

lutas. É um processo demorado – no caso da Maria foi um longo período de dois anos. No entanto,

quando se trata do processo de formação do bairro como um todo, foi deixada uma grande lacuna

pelos entrevistados. Quais foram os agentes envolvidos (moradores, associações, técnicos, Poder

Público, organizações não governamentais, etc.)? Qual foi a função de cada um? Por ora, não se

pode concluir se houve ou não uma definição dos papéis de cada envolvido. Por exemplo, a foto das

casas padronizadas em bloco de concreto sugere a existência de algum programa habitacional em

plena década de 1990, aos moldes do Pró-Habitação. Em conversa com o arquiteto Cláudio Beleza

da Cohab Minas29, ele não se recorda do envolvimento da mesma no processo. Se ele estiver certo,

qual foi o agente responsável pelo projeto de parcelamento? Esse projeto já existia antes da

ocupação? Quanto às associações envolvidas, além da ocupação do terreno, qual foi sua função no

processo?

É notável a alienação da moradora entrevistada quanto à suposta existência desses papeis. Fica

evidente seu não envolvimento nas organizações internas do bairro ou até mesmo nas relações com

os demais moradores. Suas relações limitam-se, basicamente, a alguns vizinhos imediatos. De inicio,

parece não se tratar de um grupo de moradores articulado. Seria necessário conversar com outros

moradores para confirmar essa hipótese. Essa falta de envolvimento pode indicar que não houve

nenhuma iniciativa durante o processo, por parte dos envolvidos, que apontasse para a autogestão.

Maria, por exemplo, sequer se lembra da associação que atuou ali. Ou o movimento foi desarticulado

ou a moradora optou por não se envolver. De todo modo, isso revela também a falta de comunicação

entre os futuros moradores e as lideranças das associações.

29 Cláudio Beleza entrevistado em 24 de setembro de 2013 por Rebekah Campos.

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Outra questão observada é como o jeito de pensa e de agir da população de baixa renda são

idealizados. Um exemplo seria a ajuda mútua como o estigma do acesso à moradia, em outras

palavras, se a pessoa é pobre sempre pensará no bem comum. O relato de Maria surge como

contraponto a essa suposição. Para ela, o processo de ocupação do bairro não dá qualquer indício

de um trabalho voltado para o coletivo. Cada um ficou encarregado de roçar seu próprio lugar e

construir sua própria casa. Esse processo inicial de ocupação revela que o processo de mutirão

espontâneo ou ajuda mútua não parecem ser tão natural para pessoas de baixa renda, quanto se

imagina. O mutirão pode até aglutinar, em algum grau, as pessoas, até que “o bem comum” ou

“individual” seja conquistado, esmorecendo, a seguir, a mobilização – como foi no caso do Bairro

Felicidade. Outra idealização é o jeito de morar. É comum que se crie um padrão de morar como

característico dessa classe social a partir da visão de alguém fora desse grupo, cheio de concepções

equivocadas. Por exemplo, as famosas casas embrião ou a casa mínima são impostas como solução

padronizada de se morar, com mobiliários padronizados (apresentando dimensões incompatíveis

com o que é ofertado no mercado) para indivíduos padronizados. Alguns tentam se encaixar nesses

moldes, mas outros não. Ao demolirem as casas recebidas, os moradores beneficiados anunciam a

incompatibilidade desse jeito de morar que lhes é imposto. É preciso que técnicos, políticos e até

mesmo associações repensem nessa estratégia estigmatizada e “viciada” associada a essa parcela

da população, principalmente, em se tratando da provisão habitacional para elas.

Se o depoimento da moradora estiver certo, comparado aos demais loteamentos estudados nesta

pesquisa, a implementação de infraestrutura no Novo Aarão Reis foi o mais bem sucedido. Maria

estima que, em um período aproximado de dois anos, todos já estavam servidos. No entanto, ela não

entra em detalhe ao falar sobre esse processo, dando a entender que a implementação de

infraestrutura no bairro tenha sido eficiente e tranquila. Esse relato pode supervalorizar a eficiência

da PBH em sanar o problema. Se não for esse o caso, é provável que tenha sido fruto da

mobilização dos próprios moradores do bairro (como no Felicidade e no Metropolitano) – da qual,

aparentemente, Maria sequer menciona (ou não soube ou não quis se envolver). Imagino que para

quem está à frente dessas mobilizações o “tempo de espera” para a realização da demanda deve ser

bem mais longo do que para aquele que recebe sem nenhum esforço.

A moradora indica que a porção superior do bairro que visitamos é conhecida pelo tráfico de drogas

e criminalidade. Essa talvez seja a maior ameaça para os moradores e a justificativa para pensarem

em sair de lá. Além dessa, que outras questões levariam os moradores dessa área a mudarem-se

dali? Para quais lugares essas pessoas se mudariam?

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5 METROPOLITANO

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Figura 19 ─ Localização do Bairro Metropolitano, Ribeirão das Neves

Fonte: IBGE, 2007; PRODABEL, 2008; SMAPL, 2011 com alterações próprias, 2013

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Figura 20 ─ Projeto final para o Metropolitano – lotes de 400 m2 (proposta aprovada)

Indicação aproximada das áreas de domínio de cada associação.

Fonte: Arquivo da AMABEL, 1998, alterações próprias, 2013

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Figura 21 ─ Projeto Inicial do Bairro Metropolitano, de 1996 (esquerda) e projeto final para aprovação, de 1998 (direita)

Fonte: Arquivo da AMABEL, 1996/98

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Figura 22 ─ Projeto final para o Metropolitano

Lotes de 400 m2 (proposta aprovada)

Fonte: Arquivo da AMABEL, 1998; alterações próprias

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Figura 23 ─ Comparação do projeto e a situação real da ocupação (Bairro Metropolitano)

.

Pode ser observado que o projeto é, de modo geral, compatível com as condições naturais do terreno. Da esquerda para direita: vista da ocupação atual do Metropolitano, com indicação esquemática do caminho das águas. Projeto de parcelamento com indicação das áreas de preservação permanente, área verde, açude e área remanescente. Projeto de parcelamento com indicação das áreas institucionais

Fonte: AMABEL,1998; Google Earth, 2013, alterações próprias em 2013

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Figura 24 ─ Fotos do início da ocupação do Bairro Metropolitano

Fonte: AMABEL, s/d

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Figura 25 ─ Fotos antigas referentes à implementação de infraestrutura, contratos e outros (Bairro Metropolitano)

Fonte: CEMCASA, s/d

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Figura 26 ─ Vista panorâmica do Bairro Metropolitano

Fonte: Autora, 2013

Figura 27 ─ Situação atual das casas ─ Parte da AMABEL

Fonte: Autora, 2013

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Figura 28 ─ Situação atual do Metropolitano

Fonte: Autora, 2013 e LOURENÇO, 2013

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Figura 29 ─ Vista geral do Metropolitano

Fonte: LOURENÇO, 2013

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O Bairro Metropolitano localiza-se à margem da BR 040, no município de Ribeirão das Neves

(próximo aos bairros Veneza, Florença e San Genaro), na divisa com o município de Esmeraldas. O

arquiteto Laender de Castro menciona, com certo orgulho, a criação desse bairro como sendo uma

“cidade pioneira”, autogerida e autofinanciada. Tratava-se da Fazenda Castro, uma gleba de

1.000.400 m² que pertencia a um amigo da família do arquiteto responsável pelo projeto de

parcelamento do bairro, Sandoval de Castro. (Figura 19). A compra do lote foi efetivada em 1996 e

só foi possível por dois fatores: a proximidade de Laender de Castro com o antigo proprietário e a

união de três associações de sem-casa: a AMABEL, a FAVIFACO e a CEMCASA. A ideia inicial era

a de se criar um bairro para, aproximadamente, 4000 famílias – segundo a planta da proposta inicial,

o número exato seria 3580. A distribuição dos lotes deu-se da seguinte maneira: a AMABEL, liderada

por Ângelo Silva e Gladis, recebeu 640 lotes (que acabaram sendo os primeiros lotes a serem

regularizados); a FAVIFACO, liderada por Hermes Lima, recebeu 740 lotes; e a CEMCASA, liderada

por Piggi e Maria Salomé, recebeu 2.200 lotes. A Figura 20 mostra a distribuição das casas segundo

as terras pertencentes a cada associação.

Definição dos papéis

A iniciativa para a execução desse loteamento partiu da associação CEMCASA, então, sob a

liderança de Pe. Piggi. O padre equipou-se da assessoria do arquiteto José Carlos Laender de

Castro para auxiliá-lo na escolha do terreno e no desenvolvimento do projeto do loteamento. Vale

lembrar que dessa vez, ao contrário do Bairro Felicidade, Pe. Piggi não teve qualquer apoio político,

governamental ou religioso. Assim, para fortalecer o movimento, a estratégia foi unir -se a outros dois

movimentos dos sem-casa: a AMABEL e a FAVIFACO. Cada associação envolvida recebeu uma

quantidade determinada de lotes e deveria organizar todo o processo de ocupação daqueles que lhe

eram devidos. Os moradores, então, foram responsáveis por cavar os locais por onde passariam os

dutos de água e esgoto (no sistema de mutirão) e pela construção de suas moradias

(autoconstrução).

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Recursos

...no Bairro Metropolitano, já não tivemos verba de ninguém. Era tudo comprado. Nós compramos a fazenda, pagamos as construtoras pra abrir as ruas, fazer drenagem, fazer tudo, e depois, cada um chegava com o seu material e construía lá. Ficava debaixo de uma lona preta e construía. Teve uma época que a prefeitura mandava os fiscais virem e embargar aquilo tudo lá. Só que ainda não tinha Lei de Uso do Solo pra proibir. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Laender de Castro completa que “lá [Bairro Metropolitano] fizeram tudo, sem nenhum apoio estatal

dos órgãos públicos”30. Em suma, foi autofinanciado. Nesse contexto, Piggi liderou os futuros

moradores para implementação do Bairro Metropolitano, no processo de autoajuda e

autoconstrução, o que acontecia nos finais de semana com ajuda de parentes e amigos. Pe. Piggi

lembra o que sofreu:

lá no Bairro Metropolitano porque, logo que o pessoal começou a construir – porque lá todo mundo construiu com meios próprios, o governo federal não tinha mais esses programas do Sarney, depois de 10 anos, né? Então todo mundo construía com recursos próprios, de amigos, de patrões, de firma onde trabalhava. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Processo de aquisição da gleba

Como já introduzido no item 2.2 - Apresentação Geral dos Loteamentos, em meio às restrições

acentuadas referentes à regulação do uso do solo em Belo Horizonte, o movimento do Pe. Piggi – e

provavelmente, muitos outros desse tipo – foram impelidos para diversos municípios além de Belo

Horizonte, já que nesses locais ainda não havia estabelecido leis tão rigorosas de uso e ocupação do

solo. Mas essa brecha durou por pouco tempo. Piggi lembra que “esse processo de lei de uso do

solo em Belo Horizonte repercutiu lá em Neves. Só que eles não tinham estrutura para criar lei do

uso do solo. Mas, polícia para te obrigar a embargar os pobres, isso eles tinham naquela época.”

(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Em 2001, foi aprovado o Estatuto da Cidade e a consequente obrigatoriedade de Planos Diretores

para municípios “com mais de vinte mil habitantes”31. Os futuros moradores chegaram à Fazenda

Castro depois de muito “perambular”. O preço foi em torno de R$0,60/m².

30 Documento escrito por José Carlos Laender de Castro, Movimentos Populares dos sem-casa, pag.1.

31 Consta no Estatuto da Cidade, no Capítulo III, § 5º “Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades: I – com mais de vinte mil habitantes; [...]”, (BRASIL,, Lei No 10.257, DE 10 DE JULHO DE 2001.)

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Os envolvidos no processo tinham costume de visitar o terreno, inclusive o próprio arquiteto. Laender

de Castro lembra que Pe. Piggi tinha a preocupação de envolver os futuros moradores na decisão da

escolha da gleba “o Padre Piggi tinha uma consciência coletiva muito interessante, ele levava o

pessoal lá pra ver se o terreno servia. O pessoal falava assim: “Aqui passa ônibus?” “Passa”.“Então

pronto, tá aprovado.” (LAENDER, maio/2013, entrevista).

Em entrevista, Gladis menciona que não poderia desmembrar a fazenda e vendê-la em porções

separadas. Logo, a única possibilidade para comprá-la seria em sua totalidade. A união das três

associações também foi justificada para tanto.

Gladis conta que o pagamento do lote foi dividido em doze parcelas. Nos primeiros dois meses, era

cobrada dos moradores uma taxa de R$20,00 por mês, e depois houve um acréscimo de R$13,00

para obras de urbanização. No período de um ano, os moradores quitaram a compra. O valor era

repassado para Sandoval de Castro, antigo dono da Fazenda Castro, que só transferiu a escritura às

entidades depois de terem pago metade da gleba. Logo, o preço final do lote, em 1996, ficou em

aproximadamente R$240,00.

Projeto de parcelamento

No projeto inicial de Laender de Castro cada lote tinha 200m², medida aquém àquela requerida pela

prefeitura. Para fins de aprovação, os lotes foram unidos de dois em dois apenas no desenho,

resultando lotes de 400 m2. (Figura 21 e Figura 22). Houve, então, uma incompatibilidade intencional

entre a situação real do loteamento em relação àquela apresenta na planta de aprovação enviada à

prefeitura. Uma vez ocupado, não teria como retroceder.

Comparando, atentamente, as duas plantas e comparando-as com a situação atual da ocupação, é

possível perceber a mesclagem daquelas duas plantas. Da primeira, ficou o tamanho dos lotes de

200 m2, da segunda, exceto o tamanho dos lotes, tudo o mais foi implementado.

O segundo projeto, datado de 1998, foi o aprovado pela prefeitura. Nele constavam áreas previstas

para preservação permanente, área verde, açude e área remanescente. (Figura 29).

Comparando ainda o caminho das águas e o que foi previsto no projeto, os pontos críticos podem

ser vistos na Figura 23 (números indicados 1 e 2). De modo geral, o projeto é coerente com o terreno

natural.

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Ocupação e construção das casas

Paralelamente, a execução prevista no projeto do loteamento já vinha acontecendo, antes mesmo de

ter sido aprovado na prefeitura. Esse fato exemplifica um dos tipos de loteamento categorizados. O

desenvolvimento do loteamento ocorreu em quatro etapas – a ocupação aconteceu,

simultaneamente, a todas essas. Na primeira, pagou-se pela terra (1996/97); na segunda, pagou-se

pelo projeto de parcelamento; na terceira, ocorreu a abertura de vias, o cascalhamento e, a quarta, a

instalação de infraestrutura, a execução do projeto de rede de esgoto (2008), de água (1998) e de

luz (2008). Assim como no Novo Aarão Reis e em muitas outras ocupações, o processo de

construção da casa foi posterior aos barracos de lona, como descrito a seguir por Laender de Castro:

Que que aconteceu? Era uma cumbuca, o pessoal tirava um lote, o lote tal, com a área tal. Aí, ele era permitido a ele levar, como lona era caro, era plástico preto, era o mais barato. Você comprava um plástico preto, punha uma forquilha e fazia o primeiro, a primeira casa dele provisória. Aí vem um grande, um grande mote, ele tinha trezentos reais por mês que ele pagava de aluguel passou a ser a poupança dele. Ele morando aqui durante seis meses, nessa casa provisória de lona preta, não, de plástico, né? Plástico preto mesmo no calorão danado, ele não conseguia nem entrar direito dentro da casa durante o dia. Mas era ali que ele morava pra sair do aluguel. Com esses trezentos por mês ele ia, comprava um tijolo, comprava o cimento e já fazia o embrião, o embrião era de vinte metros, o embrião era cozinha, banheiro, sala/quarto. (LAENDER, mai/2013, entrevista).

O embrião mencionado na fala do arquiteto referia-se ao projeto padrão da casa embrião que era

ofereciada aos moradores. Aparentemente, não havia imposição por parte dele, ele o fazia quando

solicitado. A impressão gerada foi que, na verdade, era uma minoria que se submetia a um desenho

pré-estabelecido da casa. Muitas casas já se expandiram horizontal e verticalmente, algumas

chegam a três andares. (Figura 28 e Figura 29) Em se tratando da lógica de autoconstrução

comumente feita nesses processos, as decisões da execução da casa cabem ao seu proprietário,

conferindo-lhe alguma autonomia dentro desse processo.

Sousa (2002) conta que, em 1997, houve um embargo judicial por parte da prefeitura, alegando que

o loteamento estava infringindo a legislação vigente32. Esse episódio durou cerca de um ano,

forçando moradores a parar com as obras. Alguns desistiram, outros que não tinham outra opção de

32 Vide SOUSA, 2002, p. 138 e 139.

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moradia ignoraram a ameaça e deram continuidade à construção. Laender de Castro conta, em uma

entrevista feita por SOUSA (2002), que o processo de aprovação é muito custoso, uma vez que a

Prefeitura de Neves posiciona-se, contrariamente, ao desenvolvimento do Metropolitano,

confabulando justificativas para o indeferimento do pedido de aprovação da primeira proposta de

parcelamento apresentada. O arquiteto, então, atina que o motivo para oposições provinha das

pressões feitas pelos agentes imobiliários à prefeitura, por terem sido prejudicados com o

desenvolvimento do Metropolitano, conforme a fala a seguir:

Nessa alternativa, eu compro a fazenda e vendo os lotes, as pessoas param de pagar o aluguel, aí terão condições de comprar material para fazer um cômodo e vai o segundo, o terceiro, e o quarto. Acaba fazendo a sua casa. E o povo, na sua inteligência do dia a dia, sabe fazer a casa, ele não sabe é fazer o lote. Porque o lote tem uma série de processos técnicos que ele não dispõe, então eu me dispus a fazer o lote. Eles não aprovaram o lote de 200 metros. Poderíamos acomodar mais gente e sobrava um terreno para fazer uma hortinha, que é fundamental para o pessoal de baixa renda. O prefeito, junto com a Câmara, baixou um decreto que definia como tamanho do lote 250 metros quadrados. Tivemos que refazer o loteamento, diminuímos a largura da rua para poder aumentar o lote. A prefeitura, em vez de ajudar estava querendo era criar uma dificuldade maior. Eu não entendi o porquê dessa perseguição. Quando fui à Câmara conversar com os vereadores fui agredido de todas as maneiras. Não entendia essa agressão total, mas depois, pensando, eu descobri que não só o prefeito e os vereadores estavam juntos, mas também as imobiliárias, ou alguém financiado por elas. Nós tínhamos destruído o mercado imobiliário de Ribeirão das Neves. Um lote custava R$400,00, ou R$240,00, dentro da Fazenda Castro, e o lote do lado custava R$4000,00, R$5 000,00, R$6 000,00. Eu criei um completo desordenamento no mercado imobiliário, daí eu ser taxado de inimigo. Pois vou deixar de comprar um lote de R$ 4000,00 a R$6000,00, para comprar um de R$240,00 na Fazenda Castro? (Entrevista de Sousa com Laender de Castro, s/d., SOUSA, 2002, p. 140 e 141).

Em 1997, foi dado o encaminhamento da aprovação do loteamento, ficando a cargo de cada

associação o registro dos imóveis de cada associado. “E apenas em 19/06/1998 o loteamento do

Bairro Fazenda Castro foi, efetivamente, aprovado, tendo em vista a anuência prévia da SEPLAN

emitida, individualmente, para cada entidade em 20/04/1998.” (SOUSA, 2002, p.140).

Algumas lideranças das associações envolviam-se tanto com o processo que deixavam a família em

segundo plano. Gladis lembra que ficava na Fazenda Castro três, quatro dias e até uma semana

inteira para ajudar na ocupação – como se fazia no Novo Aarão Reis.

Cada associação era responsável pelo sorteio dos lotes para seus respectivos associados. Laender

de Castro, em entrevista, disse que já previa alguns percalços que poderiam acontecer: “e se

dependesse da diretoria ele ia por os primos, punha mesmo! Infelizmente, a maldade, o utilitarismo

ou a vivacidade desse povo é muito complicado. A diretoria colocaria os primos, os filhos, os irmãos,

os vizinhos, tudo nos lotes melhores. Mas não tenha dúvida que era isso!“.

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Gladis, quando descreve o processo, logo aponta certo sucesso da porção da CEMCASA em relação

às demais associações. Segundo ela, a CEMCASA tinha a “grande vantagem” por ter, na época, o

apoio da igreja, por isso, era a associação mais desenvolvida comercialmente. Laender de Castro

também tem a mesma impressão que Gladis: “isso é tudo graças ao Padre Piggi. Ele levava mil,

duas mil pessoas lá pra Ribeirão das Neves pra fazer isso". Já as outras associações, FAVIFACO e

AMABEL, por não terem esse respaldo, eram organizações mais simples, menos desenvolvidas.

Mesmo assim, as áreas destinadas às três associações já têm seus projetos garantidos, como o

calçamento que abrangerá todo o bairro.

Gladis menciona que, atualmente, houve uma mudança drástica no valor do lote. Se na década de

1990 um lote poderia ser adquirido por R$240,00, hoje, há quem o venda por R$150.000,00. Talvez

o bairro esteja “valorizando” não só pelas especulações feitas por alguns, inclusive dentro das

associações (como será tratado adiante), mas, provavelmente, pelo processo de regularização que

está prestes a acontecer. “Em termos de comércio é só comércio bom” relata Gladis. Logo em

seguida comenta ter sido surpreendida por uma casa muito boa, a do Antônio Castro, corretor de

imóveis com quem conversamos na primeira visita ao Bairro Metropolitano.

Levantamento topográfico

Contratavam-se e remuneravam-se técnicos para executarem a análise topográfica - inclusive Carlos

Alberto, um conhecido de Laender de Castro. Laender relembra que o procedimento foi bem simples:

tomava-se nota das curvas de nível para fazer o projeto geométrico em seguida, não havendo um

estudo exaustivo das condições geomorfológicas do terreno. Então, o projeto de parcelamento foi

feito em conformidade com as condições naturais, ao contrário do Roma, por exemplo. Esse cuidado

que Laender de Castro teve foi observado por Gladis “A ideia de fazer o loteamento paralelo ao

terreno foi ideia do Laender de Castro”.

Ocupação da área de preservação e à margem do córrego

Na visita guiada por Gladis, ela menciona a tendência de invasão gradual das áreas verdes. Todas

as três áreas existentes no bairro começaram a ser suprimidas para dar lugar às novas moradias.

O açude de onde os moradores retiravam água para a construção, hoje encontra-se poluído:

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É dele que é retirada a água para as obras em construção. Às margens dessa lagoa vê -se [sic], ao longo do dia, inúmeras carroças sendo carregadas com tambores para conduzir água para os moradores da parte mais elevada. Algumas pessoas furaram cisternas nessa mesma área, mantendo-as a cadeado. A economia da água ensejou os conflitos mais evidentes entre moradores. (SOUSA, 202, p. 164 e 165).

Ainda sobre o açude, Gladis comenta que “há quem crie peixe”.

Infraestrutura

Toda a obra de infraestrutura foi realizada em um período curto de um ano e meio. Primeiramente,

fez-se a distribuição de água e, em seguida, a rede de esgoto.

Mas nós fizemos muito trabalho lá. Nós mesmos, com as nossas forças abrimos as ruas, fizemos toda a drenagem pluvial, e toda a parte de contenção de encostas. Chegamos a fazer poços artesianos: um, dois, três, quatro... Cinco poços artesianos aqui. Aqui fizemos uma grande caixa d'água no alto da montanha pra poder distribuir... Mas, depois, graças a Deus, a COPASA chegou. E agora todo mundo tem água encanada, mas é da COPASA. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

“Tudo foi feito com projeto”, diz Laender de Castro. Como o loteamento não havia sido, previamente,

aprovado, foi necessário recorrer a meios alternativos para implementar a abertura das vias.

Primeiramente, Laender de Castro acionou seu amigo para o empréstimo do maquinário para abrir

as ruas. Esse processo ocorria no período em que não havia possibilidade de fiscalização – das 18

horas da noite às 8 horas da manhã. Em seguida, Pe. Piggi organizou um mutirão de quase mil

pessoas para roçar o pasto e cavar a terra para dispor os dutos de água e de esgoto e, em seguida,

o cascalhamento das vias. (Figura 24 e Figura 25). A Figura 26 mostra a infraestrutura do bairro

atualmente que aparenta estar, de modo geral, bem encaminhada, no entanto, algumas porções

ainda não foram contempladas com esses serviços, como se vê na Figura 28.

Reuniões com os moradores

Laender de Castro lembra que se fazia “uma reunião com quatro mil pessoas. Na época não sabia

quem era candidato, aí o máximo que conseguia no comício dele era mil pessoas, nós todo dia

reuníamos quatro mil.” O arquiteto refere-se a esse processo como participativo, mas será que era

mesmo? Como envolver quatro mil pessoas num processo de decisão? Laender de Castro,

contratado pela associação, fazia o projeto urbano, o traçado viário e tentava explicar a importância

de se preservar as áreas verdes. Será que os moradores, realmente, entendiam?

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Cooperativas

Apesar da insistência de Laender de Castro em dizer que foi um projeto participativo, o passar do

tempo revelou o contrário. Uma das evidências foram as tais cooperativas propostas (impostas) por

ele – de trabalho, industrial. A ideia em si era interessante, no entanto, os moradores não compraram

essa ideia, talvez por estarem envolvidos com questões pessoais, voltadas para a construção de sua

própria casa, como visto na fala do arquiteto a seguir:

A ânsia deles era fazer a casa, esqueceram a cooperativa de consumo, a horta comunitária, etc.. O centro social e a cooperativa, uma fitoterápica, pra fazer chás, né? […]Tudo isso foi pensado e planejado, mas eles não pensaram nisso, e o filho único deles era a casa. Mal, mal nós conseguimos segurar até que viesse a rua própria pra eles poderem entrar. (LAENDER, mai/2013, entrevista).

Sobre o assunto, Gladis menciona que a ideia “não vingou não”. Ela entende que foi algo trazido por

Laender. No entanto, sua difusão foi um pouco barrada por alguns integrantes das associações, os

líderes “espírito de porco que liderava coisas na cabeça do pessoal, aí não fazia nada e acabava

atrapalhando”. Por fim, Laender comenta que os moradores "assenhorearam-se" da terra e

esqueceram tudo. Não quiseram saber mais dele nem do Piggi.

Corrupção interna e externa

A corrupção de agentes internos ao processo foi recorrente em todas as três associações. Isso não

só ocorria dentro da associação, como também fora – por parte dos moradores. No primeiro caso,

houve quem usufruísse da posição privilegiada dentro da associação (como a filha do ex-presidente)

e tirasse proveito da situação para benefício próprio. Alguns dos líderes entrevistados relacionam o

início dessa tendência com a saída do Pe. Piggi da CEMCASA. Segundo Cornélia de Souza, ex-

presidente do CEMCASA, “a especulação virou desde quando o Pe. Piggi saiu, por volta de 2000.

Ele já saiu por causa disso, né? Por causa da tal das falcatruas”. Laender de Castro também

confirma a hipótese de Cornélia: “a tesoureira do Padre Piggi passou ele pra trás”. Em outra

conversa, Cornélia menciona que a decepção do padre foi tamanha que ele acabou tendo dois

derrames. Nessa ocasião, a mãe do Pe. Piggi o orientou a se afastar do movimento por um tempo. É

de se esperar que o padre não revele tantos detalhes sobre o assunto quando perguntado.

Pelos depoimentos obtidos, é possível observar pelo menos três tendências de corrupção. As duas

primeiras davam-se dentro da associação, principalmente, por alguém que gozava de uma posição

privilegiada. O “mau elemento” poderia surgir ali dentro, assumindo cargo de presidência ou

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tesouraria (como a herdeira da FAVIFACO), por exemplo, e se uniria a outras pessoas,

internamente, à associação e/ou até mesmo com indivíduos externos, como moradores, integrantes

de outras associações e pessoas vinculadas a outras esferas de poder (municipal, por exemplo).

Já a terceira tendência partia do futuro morador que, no primeiro contato com a associação, se

passava de maltrapilho para ganhar um lote. Logo quando o ocupava, revelava uma posição

completamente oposta. A esse caso, Laender de Castro exemplifica:

Tinha até futuros moradores que se passavam de maltrapilhos para tirar vantagem. Ou seja, havia falhas de ambos os lados. Olha, nesse meio tempo a gente foi muito enganado, entendeu? Chegava um cara todo maltrapilho, de ônibus [risos], eu mesmo presenciei isso várias vezes, pra comprar o terreno, pra comprar o lote dele. E contava família pobre, paupérrima, salário paupérrimo, tudo declarado sem comprovante , né? No dia que ele tinha o lote, que já era dele, chegava lá com o carro do último tipo, né? E aí construía uma mansão no meio do conjunto. [...] Normalmente eles compravam não era um lote não, comprava era cinco porque tinha que ter um pro irmão, um pra mãe, outro dá pro primo... Na realidade era especulação imobiliária. (LAENDER DE CASTRO, mai/2013, entrevista).

Sobre as primeiras duas tendências, Gladis se lembra de um episódio em que uma das lideranças

fez “mil e uma coisas erradas [...] Vendeu lotes para duas, três pessoas e está lá até hoje vivendo de

especulação imobiliária”. Ela pondera o fato e reconhece a perpetuação desse tipo de prática dentro

de outras associações envolvidas na Fazenda Castro. Havia, inclusive, agentes externos que se

beneficiavam com as falcatruas, como a esposa de um vereador do município e até mesmo

funcionários da Prefeitura de Neves.

Havia na associação CEMCASA, por exemplo, uma figura bem polêmica, Luzia (tesoureira da

associação), que se juntava a outras pessoas e até mesmo a outras associações para se enriquecer

à custa da situação. As consequências disso foram as mais diversas. Cornélia, que assumiu a

presidência da CEMCASA logo depois de Pe. Piggi ter deixado o cargo, foi alvo de inúmeras

ameaças por parte dos moradores do Metropolitano devido às atuações de Luzia. Há uns três anos,

Cornélia teve que sair às pressas de lá. Embora Cornélia não estivesse envolvida nesses

procedimentos ilícitos, tentou permanecer ali sendo, por fim, forçada a se desligar da associação. No

entanto continua lutando pela causa dos sem-casa de outras maneiras

Analisando a situação mais a fundo, Cornélia acredita que era conveniente para Luzia tê-la como

presidente da associação, pois, no final, toda a responsabilidade das coisas feitas por Luíza cairia

sobre ela. Mesmo não oficialmente, ela permaneceu como tesoureira da CEMCASA por muitos anos.

A isso, Cornélia comenta:

Ela [Luzia] vendia um lote e quando dava um pepino, ela falava ‘a presidente! a presidente, você sabe como ela é! a presidente!’. Aí quando eles iam lá na Central

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(Central Metropolitana dos Sem-Casa, CEMCASA), né? Quantas vezes me taxaram de ladrona. E eu falava “Luzia, não faz isso não!” né? “Isso é terrível para fazer com o associado. Porque ela criou uma bola de neve, né? Pegava um lote aqui...

Cornélia via-se impotente para impedir a situação. Luzia parecia intimidá-la a tal ponto de Cornélia

não conseguir denunciá-la:

Eu via ela fazer tudo. E eu só não reagia porque não tinha condição financeira para, porque o dinheiro ficava na mão dela. Porque o dinheiro... o poder é o dinheiro. Sem dinheiro você não faz nada. Aí eu não tinha como pagar advogado para..., né? Estava tudo no nome dela. Eu não sabia nem como era a conta do banco que ela trocou de banco várias vezes só para eu não descobrir. Porque ela ia fazendo as coisas, mas eu descobria. Cem por cento eu descobria. Entendeu? Mas não adiantava. Eu ia fazer uma ação contra ela? O filho dela é advogado – o filho dela e ela. Os associados não ajudavam. [...] e eu corria um grande risco ali dentro. Um risco enorme! (SOUZA, ago/2013, entrevista).

Uma das estratégias que Luzia utilizava era de enganar o mesmo morador e fazê-lo pagar mais de

uma vez pelo lote:

Então ela pegava, a gente ia fazer um trabalho lá para os associados, ela pegava lá o boleto. [e Cornélia dizia:] “Luzia, não faz isso não, não faz isso não, pelo amor de Deus!” Porque ela [a pessoa] tinha que pagar pelo boleto de novo. Eu não achava justo. [...] Aí ela falava comigo “Que justo o quê? Quer ser justiceira, não dá para você consertar o mundo”. Aí eu [Cornélia] falava “Não vou consertar, mas não que ro atrapalhar também não! (SOUZA, ago/2013, entrevista).

Por outro lado, Laender de Castro tenta justificar essa tendência de beneficiamentos individuais

dentro das associações na seguinte explanação:

O conselho era liderado, mas tá falando do tesoureiro, aí vem o grande problema do tesoureiro, o tesoureiro, normalmente, era uma pessoa honesta, séria, este dava pra ser o tesoureiro. Ele tava acostumado a ganhar um salário mínimo ou dois salários mínimos no máximo. De repente ele tava recebendo milhões por mês, não sabia o que fazer com esse dinheiro. […] Aí, comprava carro pra associação, mas no fundo era pra ele, largava a mulher[…]. (LAENDER DE CASTRO, mai/2013, entrevista).

Embora a atuação de Luzia se estendesse às demais associações, mesmo assim não era

denunciada. Cornélia conta que:

Depois que ela [Luzia] morreu, aí o povo quando começou a me procurar, aí eu falava não, eu sei que sou responsável porque eu era presidente, eu era presidente era três meses quando ela morreu que eu tinha abandonado meu cargo, depois de quatorze anos. Tinha três meses! E foi a minha valência!

Já Gladis, presidente da AMABEL, posicionou-se da seguinte forma: “Aí eu falava assim: Você

comprou o lote na mão de quem? [aí a pessoa respondia] Na mão da Luzia. Então você vai lá na

delegacia e faz a denuncia contra a Luzia. Era a orientação que eu dava para o pessoal.”

Até hoje, esse ainda é um problema recorrente por lá. O entrevistado Antônio Castro, corretor e

morador do bairro, fazia uma espécie de parceria com Luzia - junção entre um morador mal

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intencionado com a tesoureira de associação. Depois da morte de Luzia, Antônio assumiu o

negócio. Cornélia, Vanda e Denise da CEMCASA foram as primeiras corretoras no local. Um tio de

Antônio também atuava como corretor. Foi assim que Antônio conseguiu se infiltrar no bairro. Gladis

acredita que o fato de ele residir ali contribua para dar continuidade ao ciclo de enriquecimento.

Desde quando Luzia era viva, Antônio Castro33 e Luzia eram responsáveis pela venda dos lotes.

Depois de fechada a transação, levavam os documentos para Cornélia assinar, mas ela não o fazia.

Nessa época, Antônio estava na AMABEL, mas logo o mandaram embora. Parecia estar ali infiltrado,

só para “pegar os lotes para ir vendendo.” Depois que foi expulso da AMABEL, foi para a CEMCASA

e juntou-se a Luzia. Desde 2007, é presidente da Associação do Bairro Metropolitano (ASMOBAM) –

associação fundada em 1998/99 por Salomé e Cornélia, antigas associadas da CEMCASA. Ao que

tudo indica, continua se enriquecendo à custa dos moradores.

Regularização

Quando a prefeitura viu aquilo lá - porque o cara se mudava do aluguel para uma barraca de lona, aí não pagava mais aluguel. Assim podia comprar o material, chamava um trabalhador pra trabalhar pra ele... Quando a prefeitura viu isso mandou espalhar um folheto pra todo mundo: proibido construir, multa de mil reais por dia. Mas deu uma mancada, porque para nós foi uma piada. Então todo mundo continuou a construir, e eles não puderam fazer nada porque eram três mil famílias construindo. Multa? Como é que você vai cobrar mil reais por dia dessa gente? Aí, ficou por isso mesmo. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Mais à frente, o prefeito municipal Ailton de Oliveira, apoiou o andamento do processo, assinando um

termo de concordância provisório, que permitiu o registro do terreno no cartório:

Com esse termo de concordância do prefeito nós pudemos registrar o terreninho em cartório. E começou as pessoas que quisessem ir lá, e recebia a escritura, recebia o registro. A Central Metropolitana (dos Sem-Casa) dava a minuta, assinada pela presidente, [e a pessoa] chegava lá no cartório de Neves e registrava; porque não tinha ainda a lei de uso do solo estabelecida. Demorou até 2009-2010 a aprovação da lei de uso do solo de Neves. [...] Tá vendo? Ailton de Oliveira, prefeito municipal. Essa aqui é a documentação que ele deixou pra nós podermos registrar em cartório o loteamento. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Numa conversa com um dos funcionários da Superintendência de Aprovação da Prefeitura de

Ribeirão das Neves, fica evidente a surpresa tamanha que esse arranjo repercutiu ali dentro. Ele

33 Em entrevista Antônio Castro conta sua trajetória como corretor de imóveis e loteador popular privado. Ele tem se aproveitado da carência de moradia de alguns e vendido lotes numa suposta área antigamente pertencente à família de Antônio Castro. Esse fato revela que a exploração acontece até mesmo entre os próprios pobres. (Ver José Carlos Laender de Castro, Gladis F. Oliveira, Antônio Castro entrevistados em 30 de maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah Campos e Tiago Lourenço).

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relata que recebeu moradores do Metropolitano que buscavam regularizar a situação deles no bairro.

Um tinha o lote 5A e outro 5B. No entanto, essa informação é incompatível com aquela

disponibilizada à prefeitura, ou seja, só existe lote um cinco. Além dessa questão, a infraestrutura

não foi compatível com os parâmetros estipulados pela prefeitura. Um exemplo é que algumas vias

eram para ter 11 metros de largura, mas in loco é 8 metros. Outro exemplo dessa irregularidade foi a

incompatibilidade entre o projeto de infraestrutura com a situação real: aos olhos da prefeitura era

para 1800 famílias, mas na realidade a demanda era para o dobro de pessoas.

Para efeitos de organização, Gladis já deu andamento no processo de recadastramento das famílias,

iniciado em 2006. A convocatória foi feita por meio de jornais populares voltados ao público de baixa

renda, estratégia essa também adotada pela FAVIFACO.

Toninho da Superintendência de Regulação do Solo de Ribeirão das Neves menciona que o

loteamento já fora aprovado em 1998, mas as escrituras dos lotes não haviam sido emitidos. A

prefeitura captou recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) por meio do

Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) a fim de regularizar a situação. O serviço de

regularização e urbanização será terceirizado. Ficará a cargo da empresa NMC Projetos e

Consultoria Ltda. a execução do levantamento nas três instâncias: arquitetônica, jurídica e

topográfica. O serviço se iniciará a partir do fim do mês de outubro desse ano (2013).

Aqui, tudo isso aqui são 4 mil lotes. E hoje quem vai lá fica admirado, porque a nova administração, além de fazer a lei de uso do solo - contemplando isso como habitação de baixa renda, no conjunto, reconhecendo isso na lei de uso do solo com parte integrante; agora está fazendo a pavimentação, toda com paviés [sic], aqueles blocos quadrados de concreto que são permeáveis à água, ecologicamente corretos. Estão fazendo todos os meios fios e tal. Quem vai lá hoje... E aqui está em obras, porque está fazendo... Aqui não é lote não. Aqui são terrenos onde os "caras" plantam. Só que agora fizeram a barragem aqui, isso aqui virou uma grande lagoa. Com os patos, os peixes. Aqui já tem outra lagoa. E aqui é um brejo que é preservado como brejo, que é onde a fazenda respira praticamente. O brejo tem um valor ecológico muito grande.

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Agora, nós estamos animados com essa parte aí, só que não é mais construir, comprar terra, construir; mas é modificar a lei do uso do solo. Essas são coisas que nem no primeiro mundo existe. No sul de Milão, na Itália, habitação popular de baixa renda é coisa raríssima. Um tanto de conjunto, só de gente de aluguel. Não digo pobres, mas existe um tanto de aluguel, que é uma coisa impressionante. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).

Considerações

Dos loteamentos analisados, o Metropolitano é o mais bem sucedido em termos de autogestão e

autonomia. Apesar dos diversos percalços enfrentados, em dois anos, 4000 famílias de sem-casa

foram beneficiadas com essa iniciativa. Os diversos atributos do Metropolitano diferem tanto do

loteamento do Bairro Felicidade quanto do Novo Aarão Reis. Esses últimos tenderam a uma

autogestão consentida pelo Poder Público. No entanto, o Metropolitano se assemelha ao Roma,

sobretudo, pelo fato de ambos não receberem qualquer apoio do Poder Público, por serem feitos em

épocas próximas e no mesmo município. Diferenciam-se, porém, na organização interna da

associação envolvida e no grau de resistência legal sofrida para sua execução (como será visto no

capítulo a seguir).

Os entrevistados conseguem apresentar, detalhadamente, as dificuldades enfrentadas durante o

processo. Não se pode negar que os vários contatos feitos por Laender de Castro e por Pe. Piggi, ao

longo de suas vidas, foram essenciais para o desenrolar do processo, a começar pela aquisição da

gleba. É possível que ainda existam pessoas como o Sandoval de Castro ou o topógrafo contratado

que se prontifiquem a colaborar com esse tipo de iniciativa.

Ainda assim, desconfio que a autogestão, nesse caso, não tenha sido plena – quando os moradores

se envolvem conscientemente e criticamente de todo o processo de decisão. A impressão passada

pelos entrevistados é que as decisões não são representativas. Essas parecem partir das próprias

ideias das lideranças, sem que haja uma contribuição dos próprios moradores.

No que se refere à comunicação e ao processo de decisão conjunta (morador e lideranças da

associação) parece ser bem vaga. As lideranças dão a entender que os moradores, de fato,

participaram de todo o processo de decisão nas costumeiras reuniões em que se reuniam pelo

menos 4.000 moradores. Como discutir alguma coisa em uma reunião desse porte? Quem ousaria

contrariar as lideranças no meio de tantas pessoas? É possível que as decisões se resumissem em

meras votações.

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Outro ponto é a relação arquiteto-morador. Laender de Castro insiste, em diversas ocasiões, que

“falava a língua do povo”. Tanto é que, depois de “fazê-los entender” a importância de preservar as

áreas verdes do bairro, logo foram invadidas. Outro exemplo foi a insistência do arquiteto em

implementar as cooperativas que seriam válidas se não passasse de uma projeção de seu ideal

referente à população pobre – ou seja, as ideias alternativas idealizadas e trazidas pelos técnicos

devem ser bem sucedidas quando aplicadas à população de baixa renda. Esses dois exemplos

revelam o jeito característico dos arquitetos se apegarem à autoria do projeto: essa ideia

escrupulosa de que o arquiteto é quem sabe o que é melhor e, por isso, o projeto é uma obra prima,

intocável, da qual os clientes/moradores devem se manter a distância e se submeter às imposições

daquele profissional.

Uma vez que o Metropolitano não recebeu apoio do Poder Público, todo o processo de infraestrutura

tornou-se mais difícil, talvez um pouco mais do que o ocorrido no Felicidade. Dentre os quatro

loteamentos, esse é o primeiro em que é o morador é explorado ao extremo. Seja nas obras de

infraestrutura do bairro (abertura de vias, cascalhamento, abertura de valas para encanamento, etc.);

seja na construção das casas (autoconstrução) ou seja no financiamento dos custos (por meio do

autofinanciamento).

A conversa com Antônio Castro, morador do bairro foi um tanto curiosa. Ele, por meio de seu

discurso, gaba-se de sua “boa pessoa”para justificar o enriquecimento que vem maquinando à custa

de pessoas pobres como ele. Isso reforça que a ideia do bem coletivo, da ajuda mútua não são tão

naturais a essa população. Sempre haverá alguém que se aproveitará da situação de miséria para

se beneficiar.

Observa-se, também, que o loteamento foi feito em meio a certo grau de clandestinidade.

Simultaneamente, enquanto o loteamento era traçado e ocupado, a associação buscava que o

projeto fosse aprovado. Outra estratégia “ilegal” foi a informação enganosa fornecida ao Poder

Público, ao apresentar a planta do bairro para aprovação, que era incompatível com a realidade.

O bairro também foi um exemplo da estratégia que surgiu depois da LUOS de Belo Horizonte de

1996 utilizada, até hoje, pelo padre: agir em massa e em lugares distantes. É difícil concluir qual a

melhor estratégia, mas, sem dúvida, um movimento massivo pode melhor pressionar o Poder Público

haja vista as conquistas alcançadas pelo movimento como: o abastecimento de rede de esgoto e

água; a disponibilização de professores para a escola do bairro e o processo de regularização do

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loteamento nesse ano (2013). Isso mostra o sucesso do empreendimento, apesar de todos os seus

percalços.

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6 ROMA

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Figura 30 ─ Localização do loteamento Roma

Situado próximo à BR-040 e vizinho aos municípios de Contagem e Belo Horizonte.

Fonte: Prodabel, 2008 (Esquerda); Google Earth, 2013 (Direita), com alterações próprias, 2013

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Figura 31 ─ Localização San Marino e Roma – vista aérea

Fonte: MOM, 2012

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Figura 32 ─ Localização do San Marino e Roma – vista panorâmica

Fonte: MOM, 2012

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Figura 33 ─ Projeto Geométrico do Bairro Roma (2001)

Figura 34 ─ Projeto Inicial do parcelamento do Roma

Fonte: CEMCASA, 2001 Concedido por Fernando Raimundo. Segundo ele, as lideranças da associação alteraram, recentemente, o projeto, mas ninguém além deles tem acesso a esse.

Fonte: CEMCASA, 2001

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Figura 35 ─ Zoneamento referente à Lei complementar 037/2006 (Bairro Roma)

Atualizado em 2012.

Fonte: Prodabel, 2008 (Esquerda); Google Earth, 2013 (Direita), com alterações próprias, 2013

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Figura 36 ─ Evolução da ocupação do Bairro Roma (2003 a 2011)

Pode ser observado que a ocupação aconteceu entre 2009 e 2011. Cornélia assegura que tenha sido em 2010. De qualquer maneira, houve um longo período de quase doze anos entre a compra do terreno (1998/99) e sua ocupação (2010).

Fonte: Google Earth, 2003 a 2013

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Figura 37 ─ Evolução da ocupação do Bairro Roma (2011 a 2013)

Depois de quase três anos de ocupação, observa-se que a área remanescente permaneceu, praticamente, intacta. O mesmo não pode ser dito quanto às demais porções verdes do loteamento que só tendem a desaparecer.

Fonte: Google Earth, 2011 e 2013

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Figura 38 ─ Comparação do projeto e da situação real da ocupação do Bairro Roma

Fonte: CEMCASA, s/d; Google Earth, 2013, alterações próprias em 2013

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Figura 39 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Bairro Roma)

Fonte: CEMCASA, s/d; Google Earth, 2013, alterações próprias em 2013

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Figura 40 ─ Condições precárias das casas no Bairro Roma, 2013

Fonte: MOM, 2012

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Figura 41 ─ Caracterização do espaço urbano do Roma

Fonte: MOM, 2012

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O Bairro Roma é um loteamento periférico irregular, situado na Fazenda das Abóboras do Tomé (ou

apenas, Fazenda das Abóboras) em Ribeirão das Neves, próximo à BR-040 (Figura 30). O

loteamento não é legalmente reconhecido como um bairro, apesar de os moradores referirem a ele

assim. Talvez seja por essa razão que Pe. Piggi prefere referenciá-lo como Fazenda das Abóboras.

Neste trabalho, o loteamento será chamado de Bairro Roma, para alinhamento com a tratativa dada

pelos moradores.

Fazendo uma análise mais profunda, foi constatado que, na realidade, a Fazenda das Abóboras do

Tomé não é sinônimo do Bairro Roma. Segundo o relato dos moradores, ela foi fracionada em duas

porções. A primeira porção, comprada, resultou no Bairro San Marino, e o Roma, feito em seguida,

na porção remanescente. O San Marino, ao contrario do Roma, foi feito por loteador popular privado

(Figura 31 e Figura 32).

O Roma é o mais recente dos nove loteamentos. Ele surgiu logo depois do Bairro Metropolitano no

final da década de 1990 (entre 1997 e 1999). Apesar de ter atendido muitas famílias, ainda havia

uma quantidade significativa de famílias à espera de uma nova ação do CEMCASA. O Roma, então,

foi concebido por parte dos membros da associação CEMCASA, ainda com a rápida participação do

Pe. Piggi, com o intuito de contemplar 600 famílias:

Primeiro nós compramos a fazenda Castro, onde hoje é o Bairro Metropolitano, que são quatro mil lotes. E essa deu um pouco de problema e tal, mas essa não foi tão grave assim não. Nós tínhamos mais 600 famílias sem nada, então compramos essa outra fazenda aí, que cabia 600 famílias. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).

Aproximadamente, no mesmo ano em que a CEMCASA iniciou a ocupação do Roma, já havia um

loteador popular privado iniciado, realizado por CONTRIA (Construções e Consultoria Ltda.), um

empreendimento na outra porção da Fazenda das Abóboras que acabou com um desfecho diferente

ao San Marino. Com a propriedade em mãos, fez-se o loteamento vizinho ao Roma, o San Marino,

aprovado em setembro de 1999 com um número de 1910 lotes (de aproximadamente 250 m² cada).

O Roma, como sabemos, não teve a mesma “sorte” que o San Marino, pois, até hoje não foi

aprovado. Pe. Piggi lembra, precisamente, que o Roma “foi a última fatia” dessa fazenda:

Essa [parte da] Fazenda das Abóboras, a turma foi embargada pela Prefeitura de Neves, foi proibido e obrigado a vender a metade para fazer um grande empreendimento industrial [a PERFA] que está sendo feito lá. O resto que é mais na mata, eles continuam querendo construir, deram, embargaram, fizeram um processo por violação da lei do solo para preservação ambiental e os coordenadores lá ficaram com prisão preventiva.[...]. Apesar que o pessoal continua a fazer suas casinhas lá. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).

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Ao contrário dos outros três loteamentos analisados anteriormente, este não tem qualquer previsão de

ser aprovado. O loteamento permanece em situação irregular e precária (sem qualquer tipo de

infraestrutura básica) mesmo depois de quase quinze anos de existência. É provável que assim

persista por mais tempo. Antes mesmo de ser concebido, já havia um projeto que previa a passagem

de um rodoanel34, exatamente, na área compreendida pelo Roma. O fato não era surpresa para

ninguém, com exceção dos moradores, como será tratado posteriormente. A proprietária legal do Bairro

Roma continua sendo a Central Metropolitana dos Sem-Casa (CEMCASA). Como será tratado adiante,

funcionários de Prefeitura de Neves apontam que a primeira e única prancha entregue a eles em todos

esses anos refere-se ao levantamento topográfico de 2001 (Figura 33). Depois disso, segundo eles,

nunca mais ninguém apareceu. O projeto inicial do loteamento ocupava uma área de 77 mil metros

quadrados, distribuídos em 12 quadras, 295 lotes, 2 praças, área verde e institucional (Figura 34).

Regulação do solo

Até o início de 2000, não havia ainda em Ribeirão das Neves nenhum tipo de rigidez legal quanto ao

parcelamento do solo. Talvez o mais forte dos instrumentos apareceu a partir das exigências

estabelecidas pelo Estatuto da Cidade quando, então, os municípios com até 20.000 habitantes

foram pressionados a fazer o Plano Diretor. O de Ribeirão das Neves surgiu apenas em 2006. Esse

Plano Diretor, por meio da Lei Complementar de Nº 37/2006, dispõe sobre normas de uso e

ocupação do solo para o município e classifica a área compreendida pelo Roma como ZEU 6 (Zona

de Expansão Urbana), sendo essa referida na Seção III do Art. 17 f). (Figura 35):

Área destinada exclusivamente a atividades econômicas de grande porte para indústrias, depósitos, comércio atacadista, serviços como oficinas, transportadoras e similares, cujo parcelamento deverá permitir módulos com, no mínimo, 5.000m², sendo proibido o desmembramento dos lotes localizados nesta zona. (Prefeitura de Ribeirão das Neves, 2006).

Pe. Piggi acredita que esse tipo de zoneamento específico foi implementado no Roma

propositalmente. Ele disse que desde quando apresentou à prefeitura do município a intenção de

ocupar aquele terreno, a Prefeitura de Neves embargou o processo para logo, em 2006, transformá-

34 Funcionários da Superintendência de Regulação Urbana datam o projeto do rodoanel, de autoria do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), de 1983/84. Desde então, poucas alterações foram feitas, a última há , aproximadamente, cinco anos. Não há qualquer previsão de quando será implementado.

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la em área industrial. Dessa maneira, o Roma foi obrigado a ceder uma parte do loteamento para a

PERFA – que até hoje não tem nada construído. Coincidentemente ou não, essa porção é,

exatamente, uma das que não será afetada pelas obras do rodoanel, caso venha a ser

implementado.

Aquisição da gleba

Ainda há controvérsias quanto ao procedimento para aquisição da gleba. Um dos entrevistados,

Fernando Raimundo, ouviu dizer que foi doada pela igreja, “por um padre”. Enquanto Cornélia diz

que foi comprada. De qualquer maneira, Cornélia garante que, até hoje, a propriedade da gleba está

no nome da associação CEMCASA.

Ocupação

Imprecisões sobre o processo de formação do loteamento acontecem desde o princípio dos relatos

emitidos por cada um dos entrevistados. Quando perguntados sobre a data que associam à

formação do bairro, todos – Gladis F. Oliveira, Cornélia e Pe. Piggi – referem-se a data final da

ocupação inicial do Bairro Metropolitano, por volta de 1998/99. O padre parece confuso quanto

essas datas, com foi comentado no item 3.

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Loteamentos associativos do padre Piggi.

No entanto, essas informações são confrontadas com as imagens aéreas disponibilizadas pelo

Google Earth 34F

35. As investigações partiram da análise da ocupação indicada por essas imagens:

2003, 2006, 2007, 2008, 2009, 2011 e 2013 (Figura 36 e

Figura 37). Curiosamente, até o ano 2009 não existia nenhum sinal de ocupação do Roma, enquanto

o San Marino já estava mais desenvolvido – imagens de 2003 já mostram esse fato. No entanto, do

ano 2009 ao 2011 acontece uma mudança do local. Pode-se dizer que, no período de dois anos, o

Roma não só tinha seu parcelamento implementado parcialmente, tomando-se com área referência

aquela prevista pelo Projeto Geométrico mencionado anteriormente, como estava com uma

ocupação bem desenvolvida. A antiga porção “pertencente” ao Roma fora cedida e, nesse ínterim de

ocupação do bairro, a área da PERFA já havia sido completamente desmatada. Apenas essas

ocupações simultâneas sugerem várias suposições. Seria um tanto ingênuo se não se pensasse em

uma possível relação entre as obras do loteamento e dá área industrial. Será que, nesse intervalo de

quase doze anos (entre a compra do terreno e da ocupação), houve algum acordo entre as

lideranças desses dois empreendimentos? Depois da descoberta, a procedência das informações

obtidas foi averiguada com Cornélia. Surpreendentemente, ela confirma essa ocupação tardia do

loteamento e, ainda, diz que é datada de 2010.

Nas vistas aéreas de 2011 e 2013, é possível ver que a ocupação mudou consideravelmente no

pequeno intervalo de dois anos. Na porção mais baixa do loteamento, a área verde foi suprimida pela

implementação gradual do restante das quadras e das moradias.

De todo modo, todo o processo de formação do Roma – aquisição e ocupação – foi estimulada pela

Central Metropolitana dos Sem-Casa (CEMCASA), com uma participação ínfima do Pe. Piggi, já que

se encontrava envolvido com os problemas da Fazenda Dom Orione (ver item 3.2). Ainda que o

padre não reconheça, alguns dos entrevistados associam o recuo de Piggi com o frequente problema

de corrupção interna, somado à sua debilidade de saúde. As principais lideranças da associação

foram Valéria, Luzia e Manuel, lideranças que passaram a assumir, até mesmo a atuar de má fé,

35 Pelo menos para a área onde se localiza o bairro em questão, o acervo é constituído de imagens desde 2002, no entanto, os registros não são feitos anualmente.

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como será falado adiante. A proposta do loteamento fora projetada por um escritório indicado por

Laender de Castro.

Na intenção de obter informações sobre esse projeto, os próprios funcionários da prefeitura alegam

nunca terem recebido tal projeto. A única prancha apresentada à Prefeitura de Neves em 2001

correspondia a um levantamento topográfico – o projeto geométrico -, que ficou arquivado ali por

quase dez anos até o advento do Plano Diretor (2006) que impossibilitou a implementação do

mesmo. Aparentemente, o padre e outros membros da associação foram pegos de surpresa, pois

ninguém entendia o que estava acontecendo. Mais detalhes sobre a situação pode ser constatado na

fala de Pe. Piggi a seguir:

Então o prefeito de Neves segurou o nosso pedido de aprovação do loteamento por dez anos. Mudava prefeito, e um passava o recado pro outro, pra não... pra esperar a Lei do Uso do Solo ser definida em Neves. Definiu a Lei do Uso do Solo, imediatamente , entrou com mandado de segurança em cima dos pobre [sic] coitados que estavam fazendo as casinhas deles lá. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).

Em uma conversa com Cornélia, ex-presidente da CEMCASA, ela comenta que os líderes não

estavam nenhum pouco desavisados quanto à possível reprovação do loteamento pela prefeitura.

Cabe, aqui, fazer uma distinção importante entre os grupos envolvidos. Como já foi dito no item

anterior (sobre o Metropolitano), havia desentendimentos, internamente, à associação CEMCASA. O

principal motivo foi o fato de alguns se aproveitarem de suas posições para lucrarem,

desenfreadamente, à custa dos moradores. A CEMCASA não escapou desse tipo de aproveitadores.

Logo, por desavenças ideológicos e morais, o grupo acabaria se subdividindo, ainda que não

oficialmente, entre os que tinham a real intenção de ajudar os moradores e aqueles que se

aproveitavam deles. Assim, Cornélia se lembra de que o Roma foi um divisor de águas. Cornélia, por

assim dizer, fazia parte do primeiro subgrupo, já Valéria e Manuel faziam parte do segundo. Luzia

oscilou entre os dois grupos, mas suas ações evidenciavam sua afinidade com o estilo do segundo

subgrupo. Essa posição dobre sugere que nada mais era que uma estratégia para continuar atuando

e se enriquecendo em ambos os loteamentos. O outro grupo passou, então, a ser formado por

Valéria, antiga presidente da CEMCASA, e Manuel que também fazia parte dessa associação. A

partir do momento em que Cornélia se recusou a apoiar o desbravamento do Roma, essa facção

passou a ser, então, declarada.

Ela recorda, ainda, que o projeto do Roma seria “um espelho que refletisse a Fazenda Castro” e fora

comprado um pouco antes do Pe. Piggi sair da CEMCASA. “A Valéria mais o Manuel invadiram,

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ocupou, né? Porque o terreno era deles – e a Valéria desembestou a vender lote.” Gladis F. Oliveira,

presidente da AMABEL, desconfia que filhos da Luzia tenham lotes, não só no Metropolitano mas

também no Roma.

Na realidade, Cornélia, inicialmente, desconhecia o motivo pelo qual a prefeitura não aprovava o

loteamento. Ninguém na associação tinha uma resposta (ou talvez não quisessem se manifestar a

respeito). Diante disso, ela não viu outro meio a não ser ela própria tomar a iniciativa e desvendar,

em 2001, esse grande mistério. Nesse mesmo ano ela entrou em contato com Secretaria do Meio

Ambiente de Ribeirão das Neves e com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes

(DNIT) e notificou a todos os envolvidos no Roma que já era previsto a execução de um rodoanel

que atravessaria o bairro. Hoje se sabe que a previsão não passou de um projeto. Com isso, só será

permitida a ocupação à 15 metros de distância de cada lado do rodoanel. Cornélia relata que passou

essa informação a Valéria que, por sua vez, seguiu a orientação e selecionou seus lotes respeitando

essa distância.

Não só a associação foi notificada, mas também a própria PERFA, como visto no depoimento de

Cornélia:

Quando foi comprar a parte da frente, quem comprou [do Roma, próximo à BR 040] já sabia que ia passar o rodoanel já. Porque, inclusive, ele comprou afastado da... porque o rodoanel, ele passa no meio, aí depois ele faz aquele bico. Você olha no croqui,[...] sai do lado do Liberdade[...]. Vai ser um rodoanel ali, na 040, né? Ali vai ter um rodoanel. Então ele pega no final e faz um bico, atrás da fazenda. Só que 100 metros de cada lado não pode construir. Então o quê que o governo federal fez? ‘Vocês não construam agora em lugar nenhum.’ É tanto que a Valeria pegou um canto da fazenda. Ela não pegou o meio, ela pegou um canto. Porque eu dei essa informação para ela. Ela brigou, brigou, brigou e falou que era mentira e tal, mas quando ela foi ocupar, eles pegaram um canto. Agora não sei – que seria a sobra. Porque na beirada do rodoanel, depois que, futuramente, daqui a uns vinte anos, vai ter que tirar, indenizar, né? (SOUZA, ago/2013, entrevista).

Apesar das evidências em mãos, Cornélia não conseguiu impedir que o grupo de Valéria desse

continuidade ao plano que tinham em mente. Chegaram até a acusá-la de falsificar provas. Muito

além disso, Valéria sequer notificou os futuros moradores sobre a descoberta, afinal de contas, era

sua grande chance de se enriquecer à custa deles. O discurso de Cornélia dá margem a mais uma

hipótese. A gleba tornou-se propriedade do CEMCASA em 2001, mesmo ano em que Cornélia diz

desconhecer as peculiaridades do embargo. Segundo ela, foi pega de surpresa. Ora, se a

associação já estava com um grupo mal intencionado (o de Valéria) é bem provável que esse tenha

adquirido a propriedade às escondidas (ao menos de Cornélia) ou é possível, até mesmo, que Pe.

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Piggi tenha sido persuadido por esse mesmo grupo a apoiar a nova frente de ação. Quanto ao Pe.

Piggi, não seria de se estranhar que ele fosse induzido com facilidade. Uma das lideranças comenta

que o problema do padre é acreditar demais nas pessoas e, obviamente, há quem se aproveite

disso.

Quanto ao andamento da questão, Cornélia acredita que o processo será longo. Conforme as

informações por ela coletadas, não há previsão de indenização para os moradores, mas sim para a

própria associação. Ela explica a seguir:

Vai ser um rolo! Sabe por quê? Porque para indenizar, a diretoria da central tem que estar organizada. E para organizar, tem que buscar os núcleos dos coordenadores. Foi essa a informação que eu tive. O conselho que eu tive. Tem que juntar os coordenadores [...] O governo federal vai indenizar a Central (CEMCASA), a Central, a diretoria. Então ali [Roma] é uma confusão. Eu não tenho boa lembrança dali não e aquilo ali não vai resolver tão cedo. Quando o rodoanel construir... (SOUZA, ago/2013, entrevista).

O mandado de segurança impetrado contra os moradores ocorreu na gestão da associação (a

mesma desde 1999) da CEMCASA, sendo Valéria e Antônio, respectivamente, presidente e

coordenador, que receberam o mandado de prisão. Fato esse que os levou a receber intervenção

jurídica da PUC para apaziguar a situação.

Nós tiramos, pedi a PUC para nos ajudar - a Assistência Jurídica da PUC - para ir lá obrigar o juiz para retirar essa prisão preventiva e deixar o processo correr de for ma mais, vamos dizer assim, jurídica. No entanto, eles tinham entrado com o pedido de aprovação do projeto, 10 anos antes que a lei de uso do solo fosse aprovada em Minas. Então eles engavetaram por 10 anos, depois de 10 anos vieram com esta novidade que era contrária à Lei de Uso [e Ocupação] do Solo. Isso foi há 2 anos atrás. [...] eles continuam fazendo suas casinhas lá, com muita dificuldade, porém o processo contra eles na Prefeitura de Neves. Estão com o processo contra os diretores. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).

Apesar de tudo, Cornélia já deu andamento nas documentações sem apoio dos demais envolvidos e

acredita que a associação já tenha chegado ao seu fim:

A Central já acabou, né? Quem fala que ela existe, é mentira. Acabou! Porque a Prefeitura de Ribeirão das Neves mandou um telefone para mim, para eu apresentar toda a documentação [naquela época]. Aí fiquei desorientada, pedi para alguns companheiros para me ajudar. Aí eles falaram “você vai. Abre o jogo!”. Aí eu fui. Tive que ir sozinha. Ninguém quis ir comigo. (SOUZA, ago/2013, entrevista).

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Definição dos papéis

Duas associações externas atuaram ali: a dos CEMCASA, na fase inicial e, em seguida, a CEABRA

– ao que tudo indica substituiu a primeira. Inicialmente, a primeira associação, quando Pe. Piggi

estava envolvido, aparentava ter a intenção de dar continuidade à lógica seguida no Bairro

Metropolitano – oferecer um local para que os sem-casa pudessem se instalar. Essas associações

seriam responsáveis pela venda/doação, sorteio dos lotes, controle e manutenção do loteamento.

Ainda não é muito clara a relação existente entre as associações CEMCASA e CEABRA.

Depoimentos diversos revelam que ambas compartilham de uma mesma tendência: a de se

desvirtuarem da proposta inicial de contribuir para a melhoria do bairro. Segundo entrevista

concedida por Raimundo em outubro de 2012, a CEABRA, associação vigente no Roma desde maio

ou junho de 2012 tem se revelado como beneficiadora de interesses particulares, internos a ela, ao

invés daqueles relacionados ao loteamento e aos moradores, como um todo.

Pe. Piggi comenta que há muito tempo não interage com as lideranças atuais da associação:

Então, deve ter mais de uns 12 ou 13 anos que eu não vejo mais essa gente. Já houve várias mudanças de diretoria, inclusive a atual diretoria tá na mão do filho de uma que morreu, talvez por causa do stress [risos] de mexer com isso. Morreu, a Luzia morreu. E o filho dela ficou no lugar dela pra coordenar toda a papelada. Só que tá mexendo com uma bomba relógio. Qualquer hora pode até ser preso, se voltar a linha dura lá na justiça. Por enquanto, não tem solução, essa coisa, não. Eles tão fazendo lá de favelado, né? Antigamente, eles são considerados gente invadida, no próprio terreno. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).

As investigações evidenciam que aos moradores não coube um papel muito bem definido. Raimundo

(morador do Roma), por exemplo, nem sabia direito o nome da associação, o que mostra a falta de

articulação entre essa e os moradores. Aparentemente, pelas entrevistas feitas com os moradores, o

loteamento foi todo traçado por empresas terceirizadas pela associação, não havendo qualquer

espaço para discussões. No entanto, como será tratado mais adiante, com a saída do padre e as

sucessivas mudanças de gestões, as ações dessas não passaram de ambições para se beneficiarem

à custa dos moradores. A função dos moradores seria acatar as ordens da associação (das quais

pareciam não ter consciência) e pagar pelo lote ou por melhorias urbanas que se quer efetivaram.

Ficaram a cargo dos moradores a capina de seus lotes e autoconstrução de suas casas, sem

qualquer auxílio técnico ou doação de materiais.

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Ao Poder Público restou manter sua postura contrária ao loteamento, resistindo por força legal o

desenvolvimento do mesmo. Em uma conversa rápida com um dos funcionários da Superintendência

de Regulação Urbana do município, foi mencionado que as lideranças do CEABRA não conseguem

estabelecer nenhum tipo de diálogo com eles. Aparentemente, é possível que elas não saibam como

lidar com o assunto.

Demarcação dos lotes

As dimensões dos lotes foram padronizadas, 10 m de frente e 25 m de fundo, totalizando 250 m2 de

área. Fernando Raimundo (proprietário de casa no Roma) lembra que o procedimento não era muito

preciso. Fernando junto com Joãozinho (um senhor que morava no local anterior à implantação do

Roma) adentravam as áreas a serem demarcadas.

Na hora de medir os lotes, era 10 por 25 [metros], mas o fundo não media. [...] Aí media, que eu levava reto, dava 25 e depois registrava, media 10 aí vinha reto. E eu vinha de ré, pela mata [...] certinho falando aqui 10 metros, certinho não. Saía um pouquinho cá, meio lá, no fundo, meio estreito, e batia estaca. (Fernando Raimundo, out/2013, entrevista).

Ele media o fundo. Ficava a cargo dos futuros moradores corrigirem a largura do fundo, o que

acarretavam muitos problemas entre os vizinhos, pois um recebia um lote com a largura de fundo de

12 metros, e o vizinho, 8 metros.

Assim que terminava a demarcação dos lotes, a ocupação acontecia gradualmente. Fernando

Raimundo conta que, terminada a demarcação dos lotes de uma quadra, logo, em seguida, o sorteio

desses lotes acontecia: "Vinha 20 pessoas, depois vinha dez pessoas. Então sempre tava vindo

pessoas procurando. Mas, assim, de forma até gradativa. Não era um tumulto de uma vez."

(Raimundo, out/2013, entrevista).

Raimundo conta que, com o passar do tempo, a associação (CEABRA) propôs dividir os lotes ao

meio, com a justificativa de adequá-los à demanda futura. No entanto, vendo a forma de atuar da

associação, é bem provável que a principal razão do desmembramento dos lotes seria arrecadar

mais verba à custa dos futuros moradores.

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O mesmo morador ainda justifica a intensificação da ocupação depois que Luzia, ex-presidente da

CEMCASA, vendeu o terreno para a PERFA por quase 700 mil reais. Essa atuação de Luzia revela

como a CEMCASA afastou-se de sua proposta inicial: doar terras.

Processo de aquisição do lote

Como já foi dito, a CEMCASA, ainda proprietária do Roma, foi a primeira associação a atuar no

loteamento. Raimundo lembra que, inicialmente, a fazenda deveria ser repassada aos moradores

sem extração de lucro. Nessa época, os lotes foram doados, no primeiro momento, mas em seguida,

ao que tudo indica, na gestão da CEABRA, alguns moradores acabaram pagando valores diferentes

pelo lote e sem saberem ao certo a finalidade, uns pagaram 11 mil outros 7 mil reais, pagos em

prestações. Segundo Raimundo, (Raimundo, out/2012, entrevista), ao contrário do que os moradores

pensavam, essas quantias eram destinadas às obras de infraestrutura e não para lhes conferir a

propriedade do terreno. Por outro lado, Fernando Raimundo relata “[os moradores] não pagavam

nada. Só tinha um plano onde já tivesse organizado, com o barraco pronto, já pagava uma taxa

mensal. [...] pouquíssimo dinheiro, quantia pouca mesmo. Até dar 7mil a 8 mil reais. Assim

falavam.”(Fernando Raimundo, out/2014, entrevista). Aparentemente, o dinheiro deveria ir para a

associação para ser utilizado na compra de outra fazenda, que seria doada novamente. Não se sabe

se isso deu certo, mas parece que ainda está em andamento.

Depoimentos dos moradores evidenciam aleatoriedade no processo de aquisição dos lotes. Uns

adquiriram por preços exorbitantes, outros invadiram simplesmente, outros ganharam e outros

trocaram por trabalho braçal. Moradores como Jair e Mari, mais atentos, aos poucos, desvendam

essas intenções, mas, obviamente, nem todos pensam assim (como é o caso de Fernando e da mãe

de Jair).

O casal de moradores entrevistado, Jair e Mari, relatam como descobriram a farsa. Jair chegou ao

Roma depois de sua mãe. Ela havia recebido 40 mil reais por indenização ao ser removida do local

onde morava anteriormente, uma área de preservação no Bairro Taquaril. Sua mãe comprou uma

casa de um dos membros da atual associação do Bairro Roma, Joaquim, sem que a esposa dele

soubesse. Quando sua esposa tomou conhecimento da venda, posicionou-se contrariamente,

forçando o marido a desfazer o acordo. Para não perder a oportunidade de se beneficiar com a

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situação, ele então lhe propôs, em vez da devolução do dinheiro, a troca por dois lotes no Bairro

Roma. Aparentemente, não foi muito difícil convencê-la da proposta. Joaquim disse que o lugar era

regularizado e garantiu que a infraestrutura (esgoto, água, luz e asfalto) já estava a caminho.

Somado a isso, Jair conta que o discurso de Joaquim foi ainda mais certeiro “olha, a senhora vai ter

um lotão aqui, a senhora vai poder criar galinha, fazer uma hortinha, e tal. Aí eu acho que o olho dela

brilhou na hora, né?” Recém-chegada ao bairro, não demorou muito para perceber que tinha se

envolvido em uma cilada. Nesse ínterim, descobriu que alguns moradores ganharam os lotes. Logo,

não é difícil imaginar que o próprio Joaquim, na verdade, tenha vendido lotes pelos quais não pagou.

Jair conta que sua mãe, quando caiu em si, entrou com processo judic ial contra Joaquim, mas, por

ora, esse assunto não teve um desfecho.

Ao contrário de sua mãe, Jair chegou ao Roma um pouco mais ciente da situação. Antigamente,

morava no Jatobá VI (no Barreiro), onde pagava 400 reais de aluguel. Como não conseguia emprego

na área de construção civil, resolveu mudar-se para Mariana onde seus sogros moram. Logo em

seguida, em uma visita à mãe, Jair começou a ver o Roma como um lugar propício para se mudar

com sua família, como pode ser visto em seu relato a seguir:

Eu tenho que conseguir um lote aqui, porque acho que eu também mereço, né? Estou vendo o pessoal todo com lotezinho e tudo. Aí eu comprei um lote em cima, ali. Não deu certo, porque o cara me vendeu um lote que já era de uma outra pessoa. Nesse meio tempo eu fui descobrir que aquele lote ali onde eu estou, não tinha Domo. O cara veio, cercou e sumiu, foi embora. E como ele era um lote que estava mais dentro de um buraco e tinha árvores no meio da rua, ninguém estava interessado nele. Fui lá e cerquei, falei: é aqui mesmo que eu vou ficar! E estou aí até hoje. (Jair e Mari, 2012, entrevista).

Na primeira tentativa, uma pessoa lhe vendeu um lote. Só depois veio a saber que o terreno já

possuía dono. Chegou a pagar mil reais de entrada, mas, quando soube que pertencia a outra

pessoa, conseguiu, com dificuldade, receber o dinheiro de volta. O lote atual, abandonado, onde se

instalou há pouco mais de um ano, foi conseguido por meio de invasão, não precisando pagar nada

por ele. Fernando Raimundo estima que dos 291 lotes, aproximadamente, vinte e cinco foram

invadidos.

Cornélia e Fernando Raimundo defendem a versão de que os lotes foram doados. Fernando

Raimundo é tão convicto quanto à doação dos lotes feita por Valéria, que chega a elogiá-la dizendo

que ela é “ótima e [que] mandou doar tudo” [...] “foi tudo doado! A associação não vendeu, só que

exigiu do povo um pouquinho quase mil, mil e quinhentos, (porque não podia dar) para poder colocar

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poço artesiano, abrir rua que era mata”. (FERNANDO,out2013, entrevista). Em suma, o lote,

propriamente dito, pode até não ter custado nada aos moradores que o receberam, mas, com o

tempo, foram cobrados valore questionáveis para a suposta implementação de infraestrutura.

Já o próprio Fernando recebeu o lote em troca de serviço braçal na execução do próprio loteamento.

Ele, anteriormente, morava perto do Roma, em um sítio depois do Bairro San Remo. A princípio,

quando soube do início da formação do Roma, não teve interesse, porque achava que não

necessitava. Depois, quando o loteamento já se encontrava na metade do período de

desenvolvimento, viu que todo mundo estava ganhando um lote e resolveu conseguir um para ele

também. Em troca, Fernando trabalhou por quase um ano e meio no desenvolvimento do

loteamento: pagou e ajudou a fazer a caixa d’água, pagou pela água do poço artesiano ,

mensalmente, ajudou a abrir rua, a medir os lotes (da quadra 1, 2 e 3 toda; a 4, ajudou a medir a

parte da frente) e a roçar.

Ocupação da área de preservação e institucionais

A única área prevista no projeto de parcelamento, além das quadras, dos lotes e das vias, é a área

remanescente. Dessa forma, o desenho não contava com áreas de equipamentos urbanos, de

preservação permanente ou de área verde, faixa non aedificandi, etc. Moradores identificam que o

processo de invasão foi gradual: na área remanescente (denominada por eles como área verde) pela

incorporação feita pelos fundos de lote e na borda superior da ocupação, adjacente ao limite pré-

estabelecido para o bairro (Figura 38). Eles até mesmo acusam as lideranças de negligenciarem

essas ocupações. Mas as queixas não passam disso, pois nada tem sido feito para mudar a

situação, tanto por parte dos moradores, quanto por parte das lideranças.

Em uma análise física, superficial, do loteamento por meio do dispositivo Google Earth (ver esquema

do caminho das águas na Figura 39) é possível observar que as ocupações recentes, na porção

inferior do bairro, estabeleceram-se em áreas potenciais de inundação. Esse fato e até mesmo o

traçado de algumas vias (que será visto adiante) indicam que há uma incompatibilidade entre o

projeto e a situação real.

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Construção das casas

É por meio do regime de autoconstrução que os moradores fazem suas casas. Os próprios

moradores arcaram com todos os custos referentes a essas. A maioria das casas encontra-se em

situação deplorável. Compostas por tapumes ou, quando em alvenaria, raramente, são rebocadas

e/ou pintadas. Além disso, as casas possuem poucos cômodos.

Já que não houve qualquer iniciativa de doação de materiais, ficou a cargo dos próprios moradores a

sua compra para a construção das casas. Na maioria dos casos eles recorrem aos depósitos do

Bairro San Marino onde os produtos apresentam preços mais elevados que aqueles oferecidos por

depósitos em Belo Horizonte. Em compensação, não é cobrada taxa de entrega. Em nível de

comparação, alguns moradores comentaram o preço de uma barra de ferro (5/16'') que custa 21

reais, enquanto que em um depósito na Av. Pedro II, em Belo Horizonte, orçou-se por 14 reais. Jair

ficou sabendo dessa diferença depois que começou a construir. Disse que não tem muita noção de

preço, pois nos trabalhos que faz quem compra o material é seu "patrão". Há três meses, abriu um

depósito na Avenida A, que está cobrindo os orçamentos da região e "agora não se vê caminhão de

outro depósito".

A Figura 40 mostra, pelo menos, dois estágios que as moradias apresentavam na visita feita em

2012: uma feita, improvisadamente, com tapumes e sobras de materiais diversos; a outra, mais

predominantemente, feita com tijolos e blocos de concreto, finalizadas com laje exposta. Essa

variedade confirma o caráter gradual da ocupação.

Infraestrutura

Depois das repetidas promessas de melhorias para o loteamento, nada ainda foi feito pelas

lideranças da associação. Os moradores, a seu jeito, tentam amenizar a situação com improvisos

diversos. O loteamento não possui: iluminação pública, assim, os moradores precisam fazer uso de

lanternas ou até mesmo de lâmpadas instaladas no limite de cada lote (voltadas para a rua); rede de

energia nas casas, apenas clandestina; rede de esgoto que é despejado na rua e coleta de lixo que é

incinerado pelos moradores (Figura 41).

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Como se não bastasse a associação explorar os moradores, técnicos e até mesmo os próprios

moradores se aproveitam da fragilidade, precariedade e falta de informação entre os que ali residem.

Ainda que fruto de ligações clandestinas, cobram-se caro pela água e pela luz. Um provável técnico

da Cemig (como os próprios moradores o identifica) é responsável pelas ligações elétricas das

casas. Ele instalou um transformador numa rede de alta tensão que passa pelo loteamento –

começou cobrando R$250,00, depois passou para R$500,00, valor pago por Jair e Mari. Mais

recentemente já se ouviu o valor de até R$1200,00. Não há nenhuma lógica aparente na atribuição

do valor estipulado pelo técnico para o serviço. Jair e Mari, depois de conversar com outros

moradores, descobriram que há uma variação, de fato, do preço cobrado. Eles observam que o

preço cobrado é estipulado levando em consideração a localização do imóvel e o poder de compra

de cada morador. Assim, na "parte de baixo" do loteamento o valor é mais caro, talvez devido à

distância em relação ao transformador. Hoje esse técnico quer cobrar uma taxa de manutenção, no

valor de R$20,00, fora do combinado anterior. Embora tenham pagado um preço alto, Jair diz que a

luz costuma cair nos horários de pico.

Já, no loteamento, a questão do abastecimento de água evidencia, além do mencionado (técnico),

outro tipo de explorador: os próprios moradores. A obtenção de água é feita, basicamente, de duas

maneiras: poço artesiano e cisterna (distribuídas por moradores do bairro) e um “clandestino”,

instalado por um ‘provável’ técnico da COPASA.

A maioria das pessoas é suprida pelo sistema do poço artesiano. Um dos moradores do bairro,

Juvenal, é remunerado pela associação para controlar a distribuição da água para cada lado do

loteamento. Alguns dos entrevistados disseram que Juvenal, além de ligar a bomba pela manhã e a

desligar à noite, ainda controla os registros que direcionam a água para diferentes locais do

loteamento. É comum ele cobre um valor quando requisitam seu serviço para conduzir a água para

um determinado lado da vizinhança.

Já aqueles poucos não contemplados pela água de poço artesiano (provavelmente, devido ao

desnível do terreno somado ao mau desempenho da bomba) estão tendo uma saída não muito

diferente: há uma pessoa que cavou um poço artesiano com 12 metros de profundidade e utiliza uma

bomba doméstica para puxar a água (pseudo cisterna). Esse indivíduo cobra R$15,00 por tambor ou

R$150,00 por mês. Essa talvez seja a água mais cara da cidade. Por não terem opção, as pessoas

acabam aceitam o valor, como relata Mari: “o pessoal precisa, né? Fazer o quê…”

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A terceira e mais recente das opções foi feita por um morador (provável técnico da COPASA). Ele fez

um "gato" na rede da COPASA e já está fornecendo água para alguns moradores. Mas, no trecho

onde fez instalações, não há pressão suficiente para mandar água para todas as cotas do

loteamento. Mesmo assim, cobra R$400,00 para fazer a ligação.

Abertura das vias

As próprias ruas do bairro são um problema à parte. A lógica de arruamento é incompatível com o

terreno natural. Além disso, vários cortes no terreno foram feitos displicentemente, sem qualquer

preocupação com os futuros riscos aos quais os moradores seriam submetidos.

A construção das vias resume-se apenas à retirada da vegetação na área delimitada para o

logradouro, sem passar por qualquer tratamento posterior. Não apresenta qualquer intervenção, não

há capeamento. Quando o tempo está seco, a poeira incomoda muito os moradores. Mari diz que,

quando chove, as ruas ficam melhores. Ela tem esperança que, com a saída da associação atual, o

bairro, em algum tempo, fique bom.

Serviços urbanos

Quanto aos serviços urbanos, o bairro é bastante precário, não possuindo escola ou posto de saúde.

Os moradores mencionam a previsão de uma área institucional que, teoricamente, seria destinada a

usos não residenciais de apoio ao bairro (como equipamentos públicos), no entanto, essa informação

não consta do projeto de parcelamento mencionado anteriormente. No entanto, como já foi dito,

aconteceram ocupações no local sem que houvesse posicionamento por parte da associação.

A escola em que o filho de Jair e Mari estuda não é tão distante, mas, para levá-lo à escola, é

preciso subir um morro e caminhar por meio de um matagal. O período em que está só tem aulas à

tarde, o que piora a situação, já que têm que caminhar sob o sol forte. O posto de saúde mais

próximo fica na parte central de Neves (na Sede), de difícil acesso para quem não possui meio

próprio de locomoção.

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Jair comenta que, no loteamento, as pessoas não jogam lixo na rua, mas, também, não há coleta.

Normalmente, os moradores fazem um pequeno buraco no terreiro, juntam o lixo ali, e depois

queimam. Contrapondo ao comentário do morador, in loco foi constatado o despejo de resíduos em

algumas porções do bairro. É provável, que o morador tenha restringido sua análise à porção

imediata a sua casa ou a situação verificada seria o jeito desorganizado de ajuntarem o lixo antes de

o queimarem.

O transporte coletivo é outra dificuldade com a qual os moradores têm que lidar. Diversos moradores

comentaram que a única alternativa é pegar o ônibus na BR, porque nem mesmo o Bairro San

Marino possui linha própria. “Eu tenho que andar quatro quilômetros, até no asfalto, para pegar o

ônibus que, geralmente, passa lotado”.

Nova associação

Alguns dos moradores entrevistados veem a necessidade de mudar a forma de atuação das

lideranças atuais da associação. Mari, por exemplo, vê a necessidade de ter alguma liderança que

enfrente as lutas lado a lado com os moradores. Ela critica o distanciamento da associação atual

com os moradores:

Não, senhor Joaquim, nós estamos cansado desse povo engravatado que vem trabalhar fim de semana na associação. Põem um sapato ali e volta todo limpo. Isso não está certo". A gente quer gente que bota o pé na terra e que trabalha junto com a gente, pega bicho de pé e tal e é isso mesmo, né?! (Mari, na conversa com Raimundo, out/2012, entrevista).

Tanto Jair quanto Mari demonstram vontade de participar da associação, mas apenas com o intuito

de realizar melhorias para os moradores, diferentemente da intenção da associação atual. Durante a

conversa, Jair apontou as deficiências da associação e quis mostrar que propunha uma solução e

não queria apenas apresentar aos pesquisadores os problemas a serem resolvidos. Eles pensam em

criar uma nova associação, independente da existente, que realize essas mudanças necessárias no

assentamento.

O quê que seria mais viável? Eu acho que os moradores aqui poderiam fazer uma reunião entre os moradores mesmo. A gente faz um encartezinho, vai na casa de um por um: “gente, tem reunião tal dia, mas é só os moradores, só as pessoas que tenham lote aqui”. E, a partir daí, a gente fazer uma eleição e eleger membros de moradores aqui do bairro, pessoas que tem disponibilidade , de tempo de correr atrás de uma prefeitura [...], que tão realmente focadas em trazer melhoria para o bairro. (Jair e Mari, 2012, entrevista).

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Corrupção interna

Nas reuniões promovidas pela CEABRA 35F

36, associação vigente, evidencia-se, claramente, dois tipos

de discursos contrastantes: o da associação, titubeantes, impugnando aos dos moradores, que é

mais despachado e aberto. Diante dos relatos, torna-se cada vez mais difícil evitar um julgamento

imparcial da situação.

Mari e Jair, moradores do Roma, começaram a desconfiar das reais intenções dos líderes da

associação que forjam suas reais intenções por meio de premissas reais, para beneficiamento

próprio. A primeira evidência disso deu-se enquanto frequentavam as reuniões aos domingos.

Sempre ouviam discursos repetitivos, com promessas de melhorias para o loteamento. No entanto, a

suposição dos moradores veio à tona quando Jair foi depositar o dinheiro do cadastro e a conta

bancária estava no nome do próprio Márcio. Como se não bastasse, nessa mesma época, um amigo

de Jair tentou comprar, com o Márcio, um lote de 12 mil reais da associação. Ele entrou em contato

com o Márcio, que em um primeiro momento disse que só possuía lotes no valor de 30 e 35 mil reais.

O amigo tentou, sem sucesso, negociar a inclusão de um carro na forma de pagamento, reforçando

ainda que só poderia comprar um lote no valor de até 12 mil reais. A primeira reação de Márcio foi de

negar a existência do lote desse valor, mas logo em seguida, retornou a ligação para o amigo de Jair

dizendo que havia encontrado um lote, com pior localização, no valor de 12 mil reais. O amigo de

Jair não comprou o lote, mas a negociação serviu para Jair desconfiar ainda mais das artimanhas de

Márcio.

Somado a esse episódio, esses mesmos moradores atinaram para outra estratégia dos membros da

associação. De tempos em tempos essa atualiza os cadastros dos moradores, basicamente, por dois

motivos. O primeiro tem a finalidade de identificar aqueles lotes sem dono ou devolutos – pessoas

que se mudaram, ou morreram, ou que especulam ou, ainda, que possuem mais de uma propriedade

e vão ao Roma esporadicamente. Uma vez identificados – muitas vezes sem sequer contatar o

antigo Domo – esses lotes são reavidos pela associação que logo os venderão novamente. Esse é

um ciclo sem fim. As vendas desses, por sua vez, são feitas sob o falso pretexto de promover

36 Sob a liderança de Márcio, Manuel, Zizele (esposa de Márcio) e Joaquim.

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melhorias para o loteamento e até mesmo para a suposta construção da sede da associação. As

“melhorias”, na realidade, acontecem somente para os membros da associação.

Como se não bastasse essa estratégia de enriquecimento particular, dentro do ciclo de

enriquecimento sucessivo, há outro meio de arrecadação de dinheiro: o cadastro de novos

moradores. Para tanto, é cobrado uma taxa de 100 reais, isto é, a antiga prática de doação de

terrenos feita antigamente (provavelmente na gestão dos CEMCASA quando Pe. Piggi ainda atuava)

foi substituída por essa prática. Moradores comprovam essa hipótese de beneficiamento particular à

associação com a aquisição de carros novos por alguns de seus membros.

O desinteresse da associação ainda é expresso pela deplorável condição em que o loteamento se

encontra, incluindo ainda a negligência apresentada perante a invasão de áreas verdes,

institucionais e viárias.

Apesar da desconfiança apontada pelos moradores, fica clara a dificuldade deles em desenvolver

estratégias eficazes para reverter o quadro. Não há um confrontamento ou questionamento direto

aos suspeitos. O posicionamento dos moradores resume-se em recuar-se – como faltas às reuniões

da associação. A hostilidade manifestada pelas lideranças só reforçam essa atitude. Além de não

questionarem as próprias lideranças, o acesso à informação quanto aos seus direitos (procuradoria,

prefeitura) parece ser uma realidade ainda bem distante. Um dos moradores, Jair, demonstra um

tímido interesse em reunir, apenas, os moradores, em uma espécie de associação. Eles já

conseguem identificar aqueles que compartilham da mesma opinião como as suas. Depois das

queixas pontuais e/ou pessoais apresentadas, de recorrer às diversas instâncias (prefeitura, Cemig,

COPASA e outros) seria o próximo passo. No entanto, ainda falta disposição para “tomar o boi pelo

chifre”.

Regularização

Como já foi dito anteriormente, não há qualquer previsão de regularização, sob a justificativa da

existência de um projeto do rodoanel – que “cortaria” o Roma ao meio. Em uma rápida conversa com

a equipe da Superintendência de Regulação Urbana de Ribeirão das Neves, foi mencionado que o

projeto é datado de 1983, aproximadamente, ou seja, já se passaram trinta anos e não há qualquer

manifestação visível da procedência prevista. Mas em 2001, conforme mencionado inicialmente,

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Cornélia já sabia da proposta desse projeto e tentou avisar os colegas (Valéria e Manuel). No

entanto, ao que tudo indica, os moradores ficam à parte dessas informações, pois , intencionalmente,

a associação não divulga o fato. Logo, quanto aos motivos pelos quais não há sinais de melhorias no

loteamento, os moradores permanecem alheios.

Joaquim, inclusive, conta que a prefeitura já embargou o loteamento, chegando até mesmo a instalar

uma placa no Roma denunciando o empreendimento – que logo foi destruída por um caminhão. Ele

se lembra de que, na época, Luzia estava envolvida na associação, no entanto, ele não sabe dizer

qual foi o desfecho desse episodio.

Os moradores sofrem com isso, pois sem registro do endereço não se pode ter acesso a quase

nenhum serviço ou até mesmo conseguir trabalho. Há casos em que os moradores “emprestam”

endereço de parentes para conseguir atendimento em postos de saúde ou para se candidatarem a

uma vaga de emprego. É bem possível que essa lentidão do processo de regularização do

loteamento relacione-se à estratégia das lideranças para continuarem seus ciclos infinitos de lucros,

“porque com o endereço o pessoal poderia se organizar para ir atrás de energia”.

Por outro lado, funcionários da Prefeitura de Ribeirão das Neves apontam a impossibilidade de

regularização do Roma. Segundo eles, a associação apresentou apenas a desenho do levantamento

e nunca mais retornou para encaminhar as alterações.

Planos futuros

Um dos entrevistados, Jair, revelou ter uma visão bem otimista para seu futuro profissional. Ele

entende que muitas possibilidades de trabalho poderão surgir nas imediações do Roma, dessa

maneira, ele não precisará se submeter mais a grandes deslocamentos como fazia antigamente:

Ah, é, assim, eu vejo que a gente tem essa grande possibilidade; pelo menos para mim que trabalha na área de construção civil, vai ser muito bom. Porque hoje construção civil é o que há, tem muita gente aqui empreendedor, vai lá e compra um lote no valor “X” e constrói apartamentos lá, quatro apartamentos e um apartamento paga o lote. Eu tenho certeza que essa parte de baixo aqui vai vir esse pessoal, não sei se vocês conhecem, do Bairro Castelo aqui próximo, né? Lá tem muito desses pessoal que compra o lote para fazer prediozinhos. E para mim, vai ser bom, porque eu vou estar pertinho de casa. Eu, para eu trabalhar para o lado de Belo Horizonte, igual eu estava fazendo serviço lá no Belvedere, fica muito fora de mão. Estava saindo daqui cinco horas da manhã e chegando às vezes oito e meia, nove horas da noite. E se começar as construções, na parte de baixo, ali, para mim vai ser excelente. (Jair e Mari, 2012, entrevista).

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Processo de regularização

Como já foi comentado, o parcelamento do Roma sequer fora cadastrado e/ou aprovado junto à

prefeitura do município, quiçá a titulação dos lotes. Funcionários da Superintendência de Regulação

Urbana de Ribeirão das Neves afirmaram que o único documento entregue a eles pela associação foi

um levantamento topográfico do terreno feito por uma empresa terceirizada. Cornélia, antiga líder de

uma das associações (CEMCASA) confirma a informação desses funcionários: o Roma não tem

qualquer previsão de aprovação. Antes mesmo de Valéria e Manuel iniciarem o desenvolvimento do

Roma, Cornélia os havia notificado sobre as condições futuras a que a gleba estaria submetida.

Informações cedidas pela prefeitura previam desde aquela época (por volta de 1998) a construção de

um rodoanel que passaria no meio da gleba que hoje é o Roma. Dessa maneira, a entrevistada

recorda que é decretado um afastamento mínimo de 100 metros para cada lado do rodoanel – uma

distancia grande se comparada àquela mencionada na própria Lei Complementar no 082/2009 que

dispões sobre o Parcelamento do Solo no município de Ribeirão das Neves:

Art. 11 – Os loteamentos em Ribeirão das Neves deverão atender, ainda, aos seguintes requisitos urbanísticos: Ao longo das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias e das faixas de servidão de dutos e linhas de transmissão de energia elétrica, a Prefeitura exigirá a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 m (quinze metros) de largura mínima de cada lado, podendo integrar o sistema viário. (RIBEIRÃO DAS NEVES, Lei Complementar no 082/2009, grifo nosso).

Ainda não foram iniciadas as obras do empreendimento, mas quando assim o for, será necessário

um processo de remoção dos que residem no Roma. Cornélia já tinha conhecimento dessa situação

e, apesar dos esforços despendidos, foi ignorada.

Considerações

O Roma, como já foi dito, é o mais recente e o pior dos quatro loteamentos analisados. Não houve

qualquer previsão de autogestão por parte da associação e dos associados, seguindo, praticamente,

a lógica de um loteador popular privado mas, muito mal articulado. Consiste em um loteamento cuja

precariedade é extrema, sem infraestrutura e casas improvisadas construídas com, até mesmo,

sobras de materiais de construção. Em nível de comparação: o Metropolitano, sob as mesmas

ausências do Poder Público, conseguiu, em três anos, assentar a população e providenciar

infraestrutura para o bairro.

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As conversas com os moradores e com as lideranças revelam o esperado: não há qualquer

preocupação de esclarecer os procedimentos acordados pelas lideranças da associação. A retenção

proposital da informação é tida também como um dos grandes elementos estratégicos para

manipulação e dominação dos moradores – mesmo que Cornélia acredite que a associação não

soubesse sobre os planos para a área, por exemplo, o rodoanel.

Outra forma de dominação é evidenciada na aleatoriedade das regras quanto a se ter acesso a um

lote. Ora um morador o recebe por doação, outro é submetido a intensos trabalhos braçais, outro

paga preços exorbitantes. A retenção do projeto do loteamento dentro da cúpula da liderança só

contribui para as explorações as quais a população tem sofrido sejam justificadas.

Ao deparar com o caso do Roma, a tendência é de, talvez, optar-se pela situação antiga em que se

encontravam os moradores. O fato de terem recebido o lote (seja por doação ou ocupação), isto é,

não despendeu de qualquer recurso pessoal no processo de aquisição do lote, talvez seja a única

vantagem de alguém se mudar para lá. Talvez a urgência para sair do aluguel ou livrar-se de viver de

favor seja tal que compense, mas não por muito tempo. Chegaram ali na informalidade e assim

permanecerão. Não há qualquer possibilidade de aprovação do loteamento, quiçá a titulação dos

lotes e das casas. Hoje moram ali sem qualquer infraestrutura básica, serviços públicos,

institucionais e/ou comerciais, sujeitando-se, talvez, a condições muito mais precárias dos locais em

que viviam anteriormente. Além disso, como os demais loteamentos analisados, provavelmente pela

incompreensão de sua importância, os moradores não se preocupam com a preservação dessas

áreas,

A falta de mobilização dos moradores é marcante. Apesar de alguns terem consciência dos jogos de

poderes que as lideranças exercem, parecem não saber, ao certo, as medidas a serem tomadas

para lutarem contra essas forças opressoras. Falta algo para que de fato se unam e tomem iniciativa

a esse respeito. Por exemplo, alguns moradores, inclusive alguns dos entrevistados, veem a

importância de lutar para a implementação da infraestrutura, já que a associação nada tem feito em

relação a isso. Essa, enquanto se enriquece à custa dos desavisados, utiliza de discursos falazes,

com promessas de futuras melhorias que parecem cada vez mais distante de se concretizarem,.

Apesar disso, alguns moradores acreditam que morar no Roma ainda seja a melhor opção. A saída

do aluguel está vinculada à melhoria de vida, ainda que não envolva melhor qualidade de vida.

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Os preconceitos gerados pelo empreendimento repercutem nos loteamentos vizinhos como o San

Marino. Qual seria a diferença entre esse e o Roma (excluindo o fato desse ser feito por loteador

popular privado)? É curiosa também que é nesse loteamento vizinho onde alguns dos moradores

entrevistados conheceram algumas das lideranças. Assim, mais uma vez, evidencia-se a exploração

do pobre pelo pobre.

São vários os motivos que podem ter colaborado para a desarticulação desse movimento : a má fé

das lideranças,; o fato de a CEMCASA atuar por conta própria, sem apoio de outras associações e

,até mesmo, o pequeno contingente de moradores envolvidos, por volta de 600 pessoas

(contrastando com as 20.000 do Metropolitano).

Não há qualquer manifestação de intenção para autogestão. A lógica de atuação aproxima-se

daquela feita pelo loteador popular privado, talvez numa modalidade ainda mais desorganizada e

precária. As decisões são feitas informal e ocultamente. Em um contexto em que lucrar é o maior

objetivo, não há qualquer possibilidade de autogestão.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS E APONTAMENTOS

Diante do processo de formação dos loteamentos associativos estudados, chama a atenção à

eficácia das atuações desvinculadas, em sua maioria, da iniciativa do Poder Público (salvo raras

exceções). Se por um lado os programas habitacionais já introduzidos pelo Poder Público ao longo

dos anos deixaram uma lacuna – a provisão de moradias para população de baixa renda de zero a

três salários mínimos, por outro se constata que essa lacuna tem sido preenchida, ao longo dos

anos, pelas várias atuações de entidades por meio de muita luta. Sendo assim, até que ponto o

Poder Público já se acomodou com essa situação? Pode ser conveniente para ele deixar que outros

“sujem” as mãos para resolver a situação.

Minha aproximação dos moradores contribuiu muito para a compreensão do lugar em que vivem na

medida em que os estudos acadêmicos e técnicos em fontes oficiais foram sempre complementados

e contrapostos sob o ponto de vista daqueles que habitam nos loteamentos e dos que estiveram à

frente de sua ocupação. Ambos são os que melhor conhecem esse processo.

Nos quatro estudos de caso apresentados, o padre Piggi mostrou diferentes graus de participação.

Sua função de “catalisador” do processo também se manifesta com durações diferentes de um caso

para o outro. No Felicidade e no Metropolitano, ele atua como liderança e permanece ali por um

período de tempo, ajudando nos processos de assentamento. Em sua “matemática”, ele calcula o

nível de maturidade dos moradores, ajuda na formação da associação e logo parte para outro

trabalho, outro loteamento. Ele sai de cena, e abre espaço para que os moradores possam gerir o

bairro recém-criado. Este modus operandi de Piggi pode ser motivado pela intenção de que os

moradores adquiram, o mais rapidamente possível, uma independência em relação a quaisquer

agentes externos, mas também pode ser resultado de sua própria frustração, ao se ver impotente

para manter o processo íntegro e controlado.

Essa falta de controle do movimento pode ser justificada, também, pelo fato de o Pe. Piggi atuar

simultaneamente em muitas frentes, tendo que dividir responsabilidades às lideranças, sem

conseguir apoiá-las ou supervisioná-las. O mesmo, no entanto, não ocorreu no Novo Aarão Reis,

onde ele disse ter apenas orientado, sem se envolver diretamente na luta.

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Nas visitas in loco observou-se, com exceção do bairro Roma, que os loteamentos encontram-se

praticamente consolidados. As casas se expandiram com o tempo, a infraestrutura estendeu-se

pelos conjuntos contemplando moradores com energia elétrica, abastecimento de água e rede de

esgoto. Já houve programas com distribuição de lotes, gleba, material de construção, auxilio técnico

(Felicidade), em forma de autogestão. No entanto, a autogestão não pressupõe autoconstrução ou

mutirão, uma vez que possível que haja, por exemplo, a terceirização da construção ou mesmo a

contratação de técnicos. Isso mostra ser possível reproduzi-los, com as devidas correções ou

ajustes, caso haja uma postura mais favorável do Poder Público em manter diálogo com as

associações. Apesar das importantes conquistas, ainda há muito por fazer. Por exemplo, ainda há

situações de ilegalidade em diversos níveis dado ao advento de novos instrumentos de regularização

do solo. Será que faz sentido postergar ainda mais esse processo? É preciso que haja maior

abertura por parte do Poder Público para novas possibilidades.

Ao longo dessa pesquisa constatou-se, também, o cuidado da associação em escolher locais de fácil

acesso por transporte público, como também preocupação do próprio projetista em conformar, dentro

das limitações existentes, adequadamente os parcelamentos ao terreno disponível. Por exemplo, no

Novo Aarão Reis, no Metropolitano e no Felicidade preocupou-se com o acesso fácil, e a

proximidade aos córregos. Isso seria proposital ou devido ao fato de serem áreas preteridas pelo

capital privado?

É interessante reparar que, ainda que o padre preze pela produção consentida pelo Poder Público e

manter a integridade do procedimento, dificilmente conseguiu manter os loteamentos conformes à

legislação vigente. Os quatro loteamentos apresentam diferentes graus de clandestinidade (por

exemplo, iniciava a ocupação antes da aprovação do loteamento). Isso vem a mostrar que a

clandestinidade não se restringe apenas ao loteador popular privado37.

A própria existência desses loteamentos associativos revela, também, ser possível prover moradia

para a população de baixa renda utilizando estratégias de característica autogestionária, onde

futuros moradores, em alguma medida, participem das decisões durante o processo.

37 Ver CHINELLI (1980).

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A sistematização do processo de formação de loteamentos populares nas décadas de 1980 e 1990

pode ser um ponto de partida para se alcançar soluções mais coerentes com a demanda real da

população de zero a três salários mínimos. Se esses movimentos sociais pró-moradia têm sido

responsáveis pelo provimento de moradias aos excluídos, faz-se necessário analisar com mais

cuidado essas atuações. Se esse é o melhor caminho, quais seriam os atributos de cada experiência

de loteamento que poderiam ser reaplicados? O que fazer para potencializá-los? Caso o Poder

Público se proponha a cooperar nesse processo, poderia ser essa uma estratégia passível de

substituição da lógica dos programas habitacionais públicos atuais, como o Minha Casa Minha Vida?

Conforme Oliveira (2006) há uma questão perversa da autoconstrução: a dialética subjacente à

solução alternativa pelos próprios moradores e a maneira de o Estado durante algum tempo

transformou essa precariedade em uma suposta virtude38. Como pode ser visto na literatura, a

autoconstrução foi tida como solucionadora, e a principal premissa para dar acesso à moradia à

população de baixa renda. No entanto, deve ser opcional, e se a opção for a da autoconstrução, é

fundamental que se disponibilizem recursos adequados, para que não se perpetue o processo

vigente da exploração dos futuros moradores. Portanto, o futuro morador deve ter a liberdade de

adotar alguma forma de autoconstrução ou mesmo terceirizar a construção da sua moradia.

Talvez caiba à academia pensar em novas maneiras de se criar espaços abertos que facilitem o

encontro e as reuniões com os futuros moradores para discussões. É fundamental que eles

compreendam suas próprias condições, limitações, e percebam a necessidade de apoio e auxilio

técnico. A academia também deve contribuir para facilitar a comunicação entre moradores e entre

moradores e técnicos e agentes públicos, pois da sinergia entre as ideias e resultados de

investigação acadêmica e a ampla experiência e lutas que poderão surgir abordagens inovadoras.

Espera-se que os contatos feitos durante a presente pesquisa catalisem uma atuação conjunta da

academia com essas associações. É necessário, também, que haja na associação, mediadores entre

os associados e agentes externos (órgãos públicos, técnicos, escolas). Em tudo isso é preciso

pensar em maneiras mais eficientes para que os associados sejam envolvidos mais efetivamente,

dentro da própria associação, nos processos decisórios.

38 Hoje, a autoconstrução não é mais promovida pelo Estado como foi na década de 1980. A conversa do Chico de Oliveira é anacrônica nesse sentido. Se refere muito mais a uma discussão daquela época.

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Esta pesquisa mostrou ainda que a luta continua e que, pelo menos para Piggi, é patente a

necessidade de respaldo técnico e acadêmico. A complexidade dos processos envolvidos na criação

desses loteamentos, por diversas vezes foi além da capacidade de gerenciamento e administração

de Piggi, fazendo com que ele perdesse o controle da situação, e se retirasse da associação.

Atualmente, com a criação da Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa, o padre afirma estar sendo

mais cauteloso. Por exemplo, ao perceber que um dos núcleos do movimento começa a atuar sem

conformidade com a proposta inicial, ele solicita que esse grupo se desvincule do movimento para

não denegrir a imagem da Pastoral e, consequentemente, não enfraquecer o movimento. Essa

posição de Piggi, no entanto, não é corroborada por Gladis, que não vê mudança na forma em que

ele lida com novas situações, pois deposita confiança demasiada nas l ideranças, confiança essa que

nem sempre se justifica. Como o movimento da Pastoral iniciou suas atividades apenas em 2011,

não há informação suficiente para se afirmar nada de forma conclusiva. Seria, portanto, importante

acompanhar-se o andamento de suas ações ao longo do tempo para posteriormente avaliar se essa

estratégia trouxe impactos positivos e se houve de fato mudanças desde a atuação de Piggi na

AMABEL.

Ressalta-se que o fato de se lutar pela alteração das leis já significa um grande avanço para se

legitimar o movimento. É preciso pressionar o Poder Público e questionar o ciclo infinito de

favorecimentos sucessivos aos interesses privados. É possível ver limitações quanto ao acesso à

informação e sobre o que é ou não factível, bem como sobre as leis e os procedimentos melhores a

serem adotados. Piggi faz tudo de maneira empírica. A iniciativa de aproximação de instituições

públicas de ensino pode vir ser um grande divisor de águas para o movimento.

Espera-se que este trabalho de pesquisa sirva de um convite à reflexão do meio acadêmico e teórico

para uma nova modalidade de ensino, onde a experiência prática dos movimentos pela moradia

possa ser combinada e potencializada pelo conhecimento teórico próprio da academia.

É surpreendente a constatação de que pelo menos sete dos loteamentos do Piggi e pelo menos mais

10 da AMABEL, feitos nas décadas de 1980 e 1990 tenham resultado em bairros de Belo Horizonte,

o que corresponde a cerca de aproximadamente 4% dos 425 bairros da capital39. Surge a questão:

39Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/>. Acesso em: 15 nov 2013.

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quantos bairros foram, de fato, feitos dessa maneira? Tendo em vista a tendência da produção

capitalista do espaço urbano movida pelos interesses privados, o qual visa atender uma parcela

minoritária da cidade, especula-se que um grande percentual dos loteamentos da RMBH tenha sido

resultado das lutas de movimentos como os descritos aqui. Quantos foram os “Pe. Piggis” e “Laender

de Castros”, quantas “Gladis”, “Cornélias” que lutaram e continuam lutando pelo direito à moradia,

direito humano mínimo?

Finalmente, espera-se que este trabalho possa, de alguma forma, representar uma contribuição para

o entendimento da atuação do outro loteador popular e de sua contribuição para a formação da

metrópole belo-horizontina, o que certamente possibilitou o acesso à moradia a milhares de

cidadãos; e encorajar outras pessoas para serem transmissores da história vivida que nunca terá

tempo de ser escrita pelos envolvidos.

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ENTREVISTAS REALIZADAS

Como mencionado, as bases cartográficas e os escassos registros documentais sobre os processos

analisados não seriam suficientes para reconstruir a história proposta. Nesse sentido, as entrevistas

contribuíram, grandemente, para preencher essa lacuna deixada por esses documentos. Essa fonte

primária além de crucial deu o tom à fala daquelas pessoas que tiveram participação direta no

processo.

Legenda:

I: Entrevista individual

C: Entrevista coletiva

LIDERANÇAS (ANTIGAS E ATUAIS)

Pe. Pier Luigi Bernareggi, Pe. Piggi

I Pe. Piggi Bernareggi entrevistado em 03 de novembro de 2011 por frei Gilvander Luís Moreira no programa TV Comunitária de BH. (Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=aMZup-h1Bag >. Acesso em: 26 de abril, 2013).

I Pe. Piggi Bernareggi entrevistado em 13 de novembro de 2012 por Silke e Pedro Arthur Magalhães.

I Pe. Piggi Bernareggi entrevistado em 02 de maio de 2013 por Rebekah Campos e Pedro Arthur.

Cornélia de Souza (ex-presidente da CEMCASA)

C Gladis F. Oliveira e Cornélia de Souza entrevistadas em 08 de agosto de 2013 por Rebekah Campos. I Cornélia de Souza entrevistada em 03 de outubro de 2013 por Rebekah Campos e Pedro Arthur Magalhães.

Gladis F. Oliveira (atual presidente da AMABEL)

C José Carlos Laender de Castro, Gladis F. Oliveira, Antônio Castro entrevistados em 30 de maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah Campos e Tiago Lourenço. C Gladis F. Oliveira e Cornélia de Souza entrevistadas em 08 de agosto de 2013 por Rebekah Campos.

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ASSESSORIA TÉCNICA

José Carlos Laender de Castro (arquiteto e urbanista responsável pelo projeto do Bairro

Metropolitano)

I José Carlos Laender de Castro entrevistado em 04 de maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah Campos e Tiago Lourenço. C José Carlos Laender de Castro, Gladis F. Oliveira, Antônio Castro entrevistados em 30 de maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah Campos e Tiago Lourenço.

Cláudio Beleza (arquiteto da Cohab Minas há 37 anos)

I Cláudio Beleza entrevistado em 24 de setembro de 2013 por Rebekah Campos

MORADORES DOS LOTEAMENTOS

Maria Pinheiro da Silva (Novo Aarão Reis)

I Maria Pinheiro da Silva entrevistada em 17 de julho de 2013 por Rebekah Campos.

Antônio Castro (Metropolitano)

C José Carlos Laender de Castro, Gladis F. Oliveira, Antônio Castro entrevistados em 30 de maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah Campos e Tiago Lourenço.

Antônio Soares Ruas (Felicidade)

I Antônio Soares Ruas entrevistado em 01 de junho de 2013 por Rebekah Campos.

Jair e Mari (Roma)

I Jair e Mari entrevistados em 21 de outubro de 2012 por Silke Kapp e Pedro Arthur Magalhães.

Raimundo (Roma)

I Raimundo entrevistado em 27 de outubro de 2010 por Pedro Arthur Magalhães e Débora Andrade.

Fernando Raimundo (Roma)

I Fernando Raimundo entrevistado em 04 de outubro de 2013 por Rebekah Campos.

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APÊNDICES

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APÊNDICE 1 ─ LINHA DO TEMPO COM INDICAÇÃO DO RECORTE TEMPORAL DO TRABALHO

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APÊNDICE 2 METODOLOGIA DESENVOLVIDA PARA ENTREVISTAS

Os métodos de coleta de dados incluem: visitas de campo para observação direta; pesquisa

documental e de imagens (bibliografia, arquivos, série histórica de imagens aéreas); e entrevistas

com agentes envolvidos na produção de loteamentos (líderes de associações, moradores, técnicos

que prestaram assessorias, técnicos das administrações municipais, moradores, o próprio Pe. Piggi e

outros agentes da Igreja Católica).

O método para o desenvolvimento desse trabalho é o desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa MOM e

aplicado, sistematicamente, durante a pesquisa de “Desenvolvimento de tecnologias sociais para a

moradia” da Rede Finep de Moradia e Tecnologia Social 38F

40. Em suma, parte-se do pressuposto de que,

antes de qualquer atuação (se é que deve haver) em um lugar, deve-se compreender o seu processo

de formação por meio de várias perspectivas. Para tanto, divide-se o procedimento em, basicamente,

duas grandes etapas: a Coleta de Informações e a Sistematização de Informações.

A Coleta de Informações é dividida em cinco etapas que podem ocorrer simultaneamente:

Levantamento de dados, Conversas Estruturadas, Visita in loco, Relato Imediato e Transcrição das

entrevistas. O Levantamento de dados, como o próprio nome diz, é o processo em que são

garimpados textos, mapas, vídeos e imagens sobre o assunto em questão. Geralmente, acontece

antes das outras duas etapas, como uma maneira de compreender, por alto, o contexto do local e os

prováveis atores envolvidos no processo. No entanto, é comum descobrir outras informações durante

as Conversas Estruturadas.

As Conversas Estruturadas 41 não são entrevistas com perguntas e respostas, que, geralmente,

seguem à risca o roteiro. Analisando esse procedimento tão comumente empregado, foi possível

chegar à conclusão de que não seria a melhor estratégia para se obter informações sobre a história

de um lugar, pois, como se tem observado, no decorrer da conversa, o entrevis tado contribui com

informações que não seguem à lógica pré-estabelecida pelo entrevistador nem tampouco imaginadas

por ele. Nesse caso, optou-se por subdividi-las em duas partes: o Desenvolvimento do Roteiro de

40 Mais informações podem ser obtidas no site: http://www.mom.arq.ufmg.br/

41 Os roteiros desenvolvidos para as entrevistas contidas nesse trabalho encontram-se em Anexo, bem como a metodologia completa.

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Perguntas e a Conversa propriamente dita. O Roteiro de Perguntas trata-se de um repertório de

perguntas desenvolvido a partir das informações obtidas no Levantamento de dados. Esse é

estruturado, obviamente, seguindo a lógica de quem o elabora. A intenção é que o entrevistado

memorize o que ali está escrito para conduzir a conversa, pois dessa maneira é possível criar uma

situação menos formal do que aquela que, geralmente, ocorre quando torna visível a lista de

perguntas ao entrevistado. É bom, também, não ficar muito preso à ordem das perguntas na

Conversa, pois ainda que tenham sido ordenadas pela lógica do pesquisador, pode ser que não

ocorra da mesma forma para com o entrevistado. Pode ser que esse se lembre de assuntos

inesperados na lógica de raciocínio que lhe for própria. No entanto, é importante que o entrevistador

fique atento para não fugir do assunto que precisa ser extraído.

A Visita in loco geralmente ocorre no mesmo dia em que acontece a Conversa Estruturada. Se assim

o for, o entrevistado poderá contar histórias sobre o local à medida que caminha com o pesquisador,

podendo acontecer antes ou depois da Conversa Estruturada.

Uma vez concluídas a Visita in loco e a Conversa Estruturada, elabora-se o Relato Imediato. Trata-

se de um texto que apresenta as impressões geradas no formato digital, podendo conter imagens

(desenhos, fotos, mapas, vídeos) e áudios como referências.

A etapa seguinte, a Transcrição das entrevistas, envolve duas fases: a Transcrição Propriamente dita

e a Revisão. A Transcrição geralmente é feita por uma pessoa apenas, podendo ser mais, caso o

áudio seja muito extenso (ou se o prazo para o trabalho for curto). Na Revisão, o revisor é

encarregado de ouvir o áudio e fazer as correções que achar pertinente (acrescentar, excluir e/ou

reorganizar palavras), além de se dedicar a resolver as dúvidas e os trechos não compreendidos

pelo transcritor. O ideal é que o revisor seja um dos entrevistadores, pois ele pode recorrer à

memória para completar a transcrição. É recomendado, ainda, que somente uma pessoa seja

responsável pela revisão, para dar uniformidade ao texto.

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Concluída a subetapa de Transcrição, passa-se para a segunda grande etapa da metodologia: a

Sistematização da informação coletada in loco, que é a organização do material que agora se tem

em mãos. Essa subdivide-se em duas etapas: o Resumo da Conversa e os Apontamentos. O

Resumo da Conversa é a disposição organizada nos tópicos contemplados na Conversa Estruturada.

Finalmente, em seguida, faz-se uma análise crítica sobre as questões abordadas ou não nas

entrevistas que são inseridas na etapa Apontamentos. Esses apontamentos são bem úteis para

nortear as próximas entrevistas.

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ANEXOS

ANEXO 1 RELAÇÃO DAS VILAS E CONJUNTOS REGULARIZADOS (1986 - 2012)

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Fonte: PBH, 2013

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ANEXO 2 REGULARIZAÇÃO DAS VILAS E CONJUNTOS

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ANEXO 3 LOTEADORES ASSOCIATIVOS: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO

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LOTEADORES ASSOCIATIVOS: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO

Silke Kapp, Rebekah Campos, Pedro Arthur Novaes Magalhães, Tiago Castelo Branco Lourenço

O loteador e seu negócio

O loteador se tornou uma espécie de personagem da literatura especializada sobre a urbanização

das cidades brasileira e suas mazelas. Formalmente, ele equivale ao incorporador: pessoa física ou

jurídica, com ou sem fins lucrativos, individual ou coletivo, atuante em qualquer faixa de renda. Mas

no senso comum – popular e acadêmico – o loteador figura como pequeno capitalista fundiário que

produz lotes na periferia para vendê-los a trabalhadores pobres com lucros exorbitantes, sendo

assim responsável direto pela expansão da cidade precária. Tanto é, que o termo loteador raramente

comparece quando se trata de imóveis caros – o agente aí se chama ‘empreendedor’.

Nos anos 1970 e 1980, a produção de loteamentos periurbanos populares por loteadores privados

foi objeto de pesquisas nas regiões metropolitanas de São Paulo (Bonduki e Rolnik, 1982), Rio de

Janeiro (Chinelli, 1980) e Belo Horizonte (Costa, 1983). Essas pesquisas mostram como funcionava

o negócio imobiliário dos loteamentos até aquele período e a visão que dele tinham os moradores e

os próprios loteadores. Tomem-se por exemplo, os loteadores do Rio de Janeiro entrevistados por

Filippina Chinelli. Haviam iniciado suas atividades na década de 1950, quando existiam poucas

restrições e exigências legais. Compravam glebas baratas, abriam ruas e demarcavam lotes,

dispensando a infraestrutura urbana. O pagamento pelas famílias se fazia em inúmeras prestações,

sem entrada, fiadores, garantias e formalidades, mas a um preço alto em vista dos poucos

dispêndios de produção. Um dos entrevistados explicita essa lógica sem constrangimento: “Eu,

como comerciante que sou, tenho uma função específica, que é comprar barato e vender

caro” (Chinelli, 1980, p.56). Em outras palavras, a (baixa) solvabilidade da demanda e a (alta) taxa

de lucro esperada determinam o (baixíssimo) custo de produção e a (má) qualidade do produto. Mas

os loteadores viam a si mesmos como promotores de justiça social, em contraposição a um Estado

incompetente para suprir a demanda habitacional. E os moradores dos loteamentos tendiam a

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pensar de modo semelhante: consideravam mais fácil a negociação direta com o loteador do que o

trato com instituições abstratas como bancos e orgãos públicos. Chinelli também indica que o

incremento das exigências legais ao longo da década de 1970 vinha impelindo os loteadores a

operar irregular ou clandestinamente, quando não abandonavam o ramo.1 Como resume um deles,

“não adianta [a lei] exigir obras de infra-estrutura que o povo não pode pagar” (Chinelli, 1980, p.54).

Conivência e corrupção das instâncias de aprovação e fiscalização fazem parte desse contexto de

loteamento da periferia.

Embora as pesquisas citadas tenham tido o cuidado de evidenciar as contradições de tal processo e

não demonizar a figura do loteador per se, elas forneceram elementos para que esse agente e seu

negócio se tornassem, como já dito, uma espécie de senso comum da literatura especializada.

Muitos trabalhos tomam ainda por pressuposto suas operações especulativas, ‘inescrupulosas’ ou

‘selvagens’ (por exemplo: Pasternak, 2010; Lima, 2009; Coelho, 2005; Costa e Gonsalves, 2005).

Essa perspectiva não é falsa – porque de fato existem inúmeros loteamentos populares produzidos

por loteadores privados – mas é incompleta. Na expansão periférica do espaço de moradia dos

pobres houve outros agentes loteadores que comparecem com menos frequência na discussão

acadêmica. Um deles é o Estado, outro são movimentos sociais e associações populares.2

Iniciamos a pesquisa a esse respeito quase por acaso. Num pequeno protesto contra a polarização

das discussões sobre a habitação entre o Programa Minha Casa Minha Vida e as intervenções em

favelas, decidimos retomar a investigação empírica da periferia loteada, que ainda é a forma mais

comum de moradia popular. E esperávamos encontrar na Região Metropolitana de Belo Horizonte

(RMBH) loteamentos feitos pelos clássicos loteadores privados. Mas no trabalho de campo

constatamos que vários dos loteamentos iniciados nas décadas de 1980 e 1990 haviam sido

produzidos por associações. Percebemos também que esses loteadores associativos – como

2

1 De fato, pesquisas posteriores confirmam a progressiva ilegalidade e clandestinidade, que à época da pesquisa de Chinelli estava começando a se delinear (ver Ribeiro e Lago, 1992; Costa, 1994).

2 Evidentemente, além dos loteamentos, a expansão periférica se produziu também por ocupações ‘espontâneas’, isto é, favelas, que não são objeto deste estudo. Lago (2003) argumenta que a distinção entre favelas e loteamentos se tornou nebulosa, porque já não se aplicam as contraposições que antes os diferenciavam, tais como legal versus ilegal ou traçado ordenado versus traçado desordenado. Para o presente texto, mantivemos a tipologia adotada em outras ocasiões: no tipo parcelamento (ao qual pertencem os loteamentos), as decisões sobre configuração urbana e delimitação de parcelas é tomada num momento determinado e por um único agente (que pode ser coletivo); no tipo aglomerado (ao qual pertencem as favelas) essas mesmas decisões são tomadas ao longo do tempo e por muitos agentes (Kapp, 2012).

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sugerimos denominá-los – tiveram pelo menos duas peculiaridades: a busca do valor de uso da

moradia e da cidade, em vez de lucro ou renda fundiária; e experiências de gestão independentes

do capital privado e do Estado.

A tentativa de reconstituir a história desses loteadores associativos ainda está em curso, mas os

documentos, depoimentos e observações reunidos até agora nos permitem apresentar o tema e

contextualizá-lo para uma discussão mais ampla.3 Com esse objetivo, o presente texto procura

delinear o cenário econômico e político em que os loteadores associativos surgiram e os

procedimentos que usaram, além de tentar apontar por que sua história foi quase ignorada, embora

contenha elementos que interessam à discussão de políticas urbanas e habitacionais com o objetivo

da autonomia coletiva.

O cenário dos loteadores associativos

A produção de loteamentos populares na RMBH da 1970 é descrita por Heloísa Costa (1994, p.62)

como “fruto de uma ação claramente orquestrada por parte de uma fração específica do capital

imobiliário”, que alcança “dimensões alarmantes”: na RMBH há 80 mil lotes sem infraestrutura ou

quaisquer facilidades urbanas produzidos por loteadores privados entre 1975 e 1979. A autora

também constata que o ramo se retrai na década de 1980, em razão da inflação, do preço da terra,

da queda generalizada do poder aquisitivo e das legislações mais rígidas (Costa, 1994, p.67). Sua

conclusão é de que a acelerada expansão urbana periférica da década de 1970 é sucedida por uma

fase de ocupação e adensamento das áreas já loteadas.

Sem excluir tal processo de adensamento, compreendemos que os loteadores associativos

começam a se organizar justamente nesse período de retração econômica. Se para os agentes do

capital imobiliário o ramo dos loteamentos se torna inviável porque pouco lucrativo, o mesmo não

vale para as associações. Com uma equação sem lucro, chegam a realizar empreendimentos em

que a pequena capacidade de poupança dos associados cobre os custos de aquisição de um gleba,

3

3 A pesquisa que resultou nos dados aqui apresentados está sendo desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras) da Escola de Arquitetura da UFMG, ao qual pertencem os autores. Cabe destacar o Trabalho de Conclusão de Curso de Rebekah Campos (2013), que aprofunda, no âmbito dessa temática, a história dos loteamentos associativos liderados ou apoiados diretamente pelo Padre Pier Luigi Bernareggi, o Padre Piggi.

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contratação de projetos e serviços de topografia e abertura de ruas. E mesmo assumindo tais

custos, os associados pagam contribuições mensais muito inferiores às prestações cobradas por

loteadores privados, considerando-se localização e infraestrutura equivalentes.4 Portanto, as

décadas que os economistas costumam chamar de ‘perdidas’ ofereceram brechas para uma

produção não capitalista do espaço urbano que chegou a incluir projetos cooperativistas, tentativas

de geração de renda, preservação ambiental e outros ideais para além da simples reprodução da

força de trabalho assalariada.

O surgimento dos loteadores associativos é condicionado pelas próprias políticas habitacionais da

década de 1980. Essas são, como se sabe, poucas, eventuais e até oportunistas. O Banco Nacional

da Habitação (BNH), que na década de 1960 ainda destinava parte substancial dos recursos ao

atendimento de famílias com renda mensal inferior a três salários mínimos, depois disso passa a

favorecer mutuários de renda mais alta, mesmo para as unidades produzidas pelas Cohabs, isto é,

pelas companhias habitacionais criadas para suprir o então chamado “mercado popular”, exercendo

nele o papel que as cooperativas e os incorporadores cumpriam no “mercado econômico” e no

“mercado médio”, respectivamente (Azevedo, 1988). Como medida compensatória para atender a

pelo menos algumas das famílias mais pobres e não abandonar por completo seus objetivos sociais,

o BNH lança a partir de 1975 os chamados programas alternativos, baseados no apoio à

autoconstrução e à ajuda mútua mediante financiamento ou doação de material de construção e de

lotes urbanizados.5 Nenhum desses programas chega a ter relevância quantitativa6, mas eles

cumprem importantes funções ideológicas. Por um lado, se alinham com diretrizes então

preconizadas pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano do Desenvolvimento, funcionando

como paliativos para abrandar o potencial de revolta que a precariedade habitacional implica. Por

4

4 Os valores que nos foram informados por lideranças de associações e outros envolvidos são cerca de cinco vezes menores: enquanto loteadores privados cobravam prestações em torno de um salário mínimo, os associados pagavam 20% desse valor. Não temos fontes documentais para verificar essa informação, mas mesmo que haja distorções e exageros, é plausível que a discrepância tenha sido expressiva. Ela ficou marcada na memória dos informantes porque foi motivo de indignação na época.

5 Os programas alternativos do BNH foram: Programa de Erradicação da Sub-habitação (Promorar), Programa de Autoconstrução (João-de-Barro), Financiamento para Construção, Ampliação e Melhoria da Habitação (Ficam) e Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (Profilurb).

6 Os programas alternativos foram responsáveis por 5,9% das unidades financiadas pelo BNH (Azevedo, 1988, p. 117).

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outro lado, são relativamente bem vistos por grupos engajados, incluindo os próprios movimentos

sociais. Alguns vislumbram na auto-ajuda assistida uma possibilidade de emancipação popular.

À ambivalência desses programas – entre expediente conservador e semente emancipatória –

corresponde a polêmica acerca de qualquer autoconstrução em sociedades capitalistas, que foi mais

acirrada nos anos 1970, mas nunca desapareceu por completo. O arquiteto britânico John F. Turner

introduz o tema da auto-ajuda no debate e na agenda dos organismos internacionais a partir de seu

trabalho nas barriadas peruanas nos anos 1960. Ele mostra, de modo bastante pragmático, que as

necessidades cotidianas costumam ser melhor atendidas por moradias e espaços urbanos que a

população mais pobre cria para si mesma do que por conjuntos habitacionais e outros expedientes

do Estado (Turner, 1976). Mas Turner não submete essas constatações empíricas a nenhuma

análise econômico-política mais ampla. Seus argumentos acabam legitimando desde reduções dos

investimentos públicos em habitação até apologias da pequena propriedade privada.

Análises mais sistemáticas acerca da autoconstrução são apresentadas por teóricos brasileiros. O

principal argumento contrário parte da composição dos salários numa economia capitalista: em tese,

eles deveriam cobrir a totalidade dos custos de reprodução da força de trabalho, incluindo a

moradia. Mas a autoconstrução reduz os custos de reprodução justamente por subtrair deles a

parcela correspondente à moradia. Os trabalhadores que constroem suas casas nas horas ‘vagas’

beneficiam o capital, que passa a poder empregá-los por salários mais baixos, e ainda beneficiam o

Estado, que pode ignorar o problema habitacional (Oliveira, 1972 e 2006; Singer, 1974; Maricato,

1982). O contra-argumento a esse raciocínio parte da constatação de que o capitalismo no Brasil

nunca operou com salários que correspondessem ao custo real de reprodução dos trabalhadores e

sempre manteve um enorme ‘exército de reserva’ de desempregados, de modo que a

autoconstrução se tornou uma necessidade, não uma opção (Ferro, 2006; Azevedo e Andrade,

[1982] 2011). Além disso, apoiá-la técnica e economicamente pode representar um avanço porque o

trabalho nela realizado tende a ser menos alienado do que o trabalho diretamente subordinado ao

capital: o autoconstrutor é mentor do processo e proprietário do produto de seu trabalho. Finalmente,

há a perspectiva de que a autoconstrução organizada na forma de mutirão autogestionário gere uma

coesão entre os participantes e aumente seu poder político coletivo (Bonduki, 1987; Lopes, 2006).

5

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Essas são, grosso modo, as posições acerca da autoconstrução que se configuram em meados da

década de 1980.

No mesmo período, o fim do regime militar e a incorporação do BNH à Caixa Econômica Federal

criam “um vácuo com relação às políticas habitacionais” (Cardoso, 2003). A responsabilidade pela

habitação e pelo desenvolvimento urbano é empurrada entre ministérios e secretarias federais por

mais de uma década, com enormes incongruências e dificuldades operacionais, o que tem dois

efeitos importantes para a nossa questão: a transferência de parte da responsabilidade pela

habitação popular a estados e municípios; e a criação de novos programas alternativos, também

pautados nos princípios de autoconstrução e ajuda mútua, mas livres do aparato institucional do

BNH e fomentados por recursos que não provêm do Sistema Financeiro da Habitação. O mais

relevante desses novos programas alternativos é o Programa Nacional de Mutirões Habitacionais da

Secretaria Especial de Ações Comunitárias (SEAC; Azevedo, 1996). Ele se caracteriza por conveniar

sempre três entidades: a própria SEAC; uma prefeitura ou um orgão da administração estadual; e as

chamadas “sociedades comunitárias”, isto é, associações populares (Souza, 2002). Essa inclusão

formal dos beneficiários no convênio e no processo de decisão reflete o fortalecimento dos

movimentos sociais a partir da abertura política e, nesse sentido, pode ser considerado positivo. Mas

não se deve esquecer que tal inclusão também é uma saída para os entraves administrativos dos

governos, particularmente do governo federal. Os empreendimentos são realizados conforme a

capacidade de organização e articulação política das associações, não segundo um plano nacional,

uma lógica urbana e uma escala racional de urgências.

O cenário de meados da década de 1980 apresenta, portanto: um déficit habitacional cada vez

maior; uma conjuntura econômica desfavorável aos loteadores privados e à produção habitacional

pelo capital da construção; uma desarticulação dos orgãos públicos antes responsáveis por

programas habitacionais e urbanos; organismos internacionais que apoiam a auto-ajuda; e um clima

de mobilização, renovação política e confiança na capacidade organizacional da própria população,

que também legitima aplicações incongruentes dos recursos públicos.

A Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte (Amabel), que aqui tomamos

como exemplo de loteador associativo, é fundada nesse contexto. Segundo relatos do padre Pier

6

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Luigi Bernareggi, responsável pela paróquia do bairro Primeiro de Maio e pivô do movimento, a ideia

nasce da necessidade de reassentar famílias removidas em razão de obras viárias.7

A minha paróquia aqui tinha um lote lá embaixo, dos vicentinos, das famílias que ficavam na rua, despejados e tal. Então mandavam lá pra aquele lote. Só que o lote cabia dez, quinze famílias no máximo, não cabia mais nada. Quando chegou a décima sexta família, o que é que eu ia fazer? Eu falava: Ó gente, eu não tenho mais nada, o que que eu vou fazer? Então junta os seus colegas, os seus amigos na sua situação, lá do seu cortiço, dos sobrados, gente que mora de aluguel, gente que mora num lote só, pobres, miseráveis. O povo discutiu aqui nesse salão aqui... A ideia foi: vamos criar uma associação de luta pela moradia de baixa renda, vamos batalhar, que nós não temos terra aqui. Só se pode construir se tiver terreno. Então vamos trabalhar. Então nós colocamos um encontro grande com o prefeito. Nós chamamos o prefeito, o presidente da câmara dos vereadores e tal e tal. E o [prefeito Sérgio] Ferrara foi muito simpático à ideia, pegou o secretário de ação comunitária dele e jogou em cima dessa problemática. De fato foi um choque. Em três anos [1986 a 1988] construímos 20 mil moradias em Belo Horizonte, de baixa renda, de zero a três salários mínimos – coisa que nunca aconteceu nessa cidade. (Bernareggi, 2013, entrevista).

Outras fontes narram o episódio de modo semelhante: a ação iniciada na paróquia do Padre Piggi

consegue reunir 800 famílias em poucos meses, e depois se expande a outros bairros, chegando a

mais de três mil famílias em sete núcleos, que formalizam a associação em 1986 (Fundação AVSI,

2007; Urbel, 2001). No entanto, o que Padre Piggi relata como uma negociação direta e quase

pessoal da Amabel com o prefeito Sérgio Ferrara tem um pano de fundo político mais amplo.

Ferrara, filiado ao PMDB, é o primeiro prefeito eleito de Belo Horizonte depois de 1964. Ele havia

prometido moradias na campanha eleitoral, distribuindo até certificados de inscrição à casa própria.

Logo que é empossado, cria o Programa Municipal de Habitação Popular, que inclui a distribuição de

lotes urbanizados e de materiais de (auto)construção. A execução do programa fica sob

responsabilidade da Secretaria Municipal de Ação Comunitária (SMAC), o equivalente local da

SEAC. “Dá-se início, então, a uma experiência possivelmente exemplar em termos de

desorganização e vulnerabilidade às oscilações do jogo político” (Guimarães, 1990, p.5). Em 1986,

7

7 Parece ter havido pelo menos dois antecedente: a ocupação no bairro Mariano de Abreu, organizada pela União dos Trabalhadores de Periferia e pela Pastoral de Favelas (então coordenada pelo Padre Piggi) em 1985; e o movimento pelo loteamento da região do Taquaril, iniciado em 1984. Mas em nenhum dos dois casos existe uma gestão do próprio processo de loteamento pelas respectivas associações.

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diversos grupos já vinham pressionando para que o Programa começasse a funcionar de fato. É

então que se estabelece um acordo entre a Prefeitura e as associações.

Os termos desse acordo são nebulosos, porque cada agente os relembra a seu modo. Segundo a

presidente da Amabel, a associação deveria indicar as áreas a serem desapropriadas, definir o

parcelamento e organizar a autoconstrução das casas, ficando a cargo da Prefeitura a

desapropriação e a regularização documental. Mas, formalmente, o Programa previa que o registro

final dos lotes fosse feito pelas famílias e que essas pagassem à associação contribuições no valor

mensal de um décimo do salário mínimo durante cinco anos. Com o dinheiro arrecadado, a

associação deveria construir equipamentos públicos (Guimarães, 1990, p.6).

O primeiro empreendimento da Amabel foi o Jardim Felicidade. As lideranças relatam que a própria

associação teria levantado recursos da SEAC e da Fundação AVSI (Associação Voluntária Social

Italiana, uma organização não-governamental), contratado topógrafos e projetistas, organizado a

autoconstrução das casas-embrião e ocupado metade da área (cerca de mil lotes), para então, em

1988, transferir a responsabilidade pela ocupação do restante da área para a recém fundada

Sociedade Comunitária dos Moradores do Jardim Felicidade. Um dos motivos para essa ‘retirada’ da

Amabel parece estar em desentendimentos e corrupção interna da associação, mas a data também

coincide com a interrupção do Programa Municipal de Habitação Popular, por um embate do

governo municipal com o recém eleito governo estadual de Newton Cardoso. O Programa, que deu

origem a outros oito loteamentos além do Jardim Felicidade, passa a ser alvo de ferrenhas críticas,

seja em razão da precariedade urbana dos espaços resultantes, seja pelo clientelismo a que teria

dado margem. Mas também cabe notar que a política de Ferrara continua sendo lembrada

positivamente por algumas lideranças das associações daquela época. Os agentes que

entrevistamos estão convencidos de que “o governo” deveria disponibilizar lotes, material e

assessoria técnica, como fez esse prefeito, em vez de condicionar os benefícios à integração das

famílias em processos de gestão e produtos arquitetônicos predefinidos.

Em 1989, com a substituição da administração do PMDB de Ferrara pelo PSDB de Pimenta da Veiga

e Eduardo Azeredo, as associações de sem casa perdem o apoio da Prefeitura de Belo Horizonte e

começam a agir de maneira bem menos organizada do que na fase anterior. A ‘conquista’ da terra se

torna tarefa mais importante do que a organização do processo de ocupação. Um exemplo dessa

8

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fase é o loteamento Novo Aarão Reis, iniciado em 1992. Numa ação conjunta, a Amabel, a

Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte (Famobh) e a União dos Trabalhadores

de Periferia (UTP), organizam a ocupação em terras públicas estaduais para tentar forçar a

regularização. Sem plano urbano, abertura de vias ou recursos externos, os moradores

simplesmente entram na área, capinam e montam suas barracas de lona. O governo do estado se

vê forçado a tomar providências e aciona a Cohab, que então passa a coordenar os projetos

urbanos, a distribuição dos lotes e a construção de parte das casas. E, dada essa constelação, a

Prefeitura acaba assumindo a execução das obras de infraestrutura (Oliveira, 2013b, entrevista).

Mas importa acentuar que os prefeitos Pimenta da Veiga e Eduardo Azeredo rechaçam a

‘distribuição de lotes’ praticada pela prefeitura anterior e se recusam a implantar qualquer política

habitacional para substituí-la, com o argumento de que isso atrairia mais migrantes pobres

(Guimarães, 1990; Bedê, 2005).

Contudo, se essa postura representou uma mudança para as associações, o que transforma mais

profundamente sua situação é a eleição da Frente BH Popular, encabeçada pelo prefeito Patrus

Ananias, em 1993.8 O vácuo institucional das políticas habitacionais e de desenvolvimento urbano

em Belo Horizonte é preenchido por uma administração mais democrática e progressista que todas

as anteriores. O Fundo Municipal de Habitação Popular, existente desde 1955, recebe nova

regulamentação em 1993, determinando a criação do Conselho Municipal de Habitação e

designando a Urbel como executora de políticas propostas e aprovadas pelo Conselho. Esse último,

com participação de movimentos populares e de outros segmentos da sociedade civil, é

regulamentado em 1994 e, no mesmo ano, aprova a Política Municipal de Habitação. Mônica Bedê,

que faz uma análise detalhada desse processo, descreve a formulação da nova política nos

seguintes termos:

A Política Municipal de Habitação é concebida num contexto muito marcado pela mobilização social em torno de uma sucessão de eventos políticos como o processo constituinte, o projeto de lei de iniciativa popular criando um sistema nacional de habitação, o impeachment do Presidente Collor de Melo e, localmente, pela elaboração da Lei Orgânica Municipal, que faz da Câmara Municipal de Belo

9

8 Patrus Ananias é filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), mas a Frente BH Popular compõe-se, além do PT, dos partidos Socialista Brasileiro (PSB), Comunista do Brasil (PC do B), Comunista Brasileiro (PCB) e Verde (PV).

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Horizonte, então composta por uma expressiva bancada de partidos de esquerda, o espaço central do debate sobre a questão urbana no início da década de 90. Fruto desse contexto, a Política Municipal de Habitação nasce na segunda geração de administrações municipais progressistas que se sucedem após a Constituição Federal de 1988 e sua concepção se referencia, principalmente, no ideário do movimento da reforma urbana e no “modo petista de governar”, bíblia dos militantes do Partido dos Trabalhadores que se lançam na aventura da administração pública naquele período. (Bedê, 2005, p.78)

Não é objetivo deste texto a discussão da gestão da Frente BH Popular entre 1993 e 1996 ou de

suas consequências nos anos seguintes. Importa que a estruturação da nova política habitacional,

ao mesmo tempo que inclui institucionalmente uma parte significativa dos movimentos populares de

luta pela moradia, inviabiliza a atuação de outra parte desses movimentos, seja por sua aliança com

a prefeitura do PMDB, por sua relação com a igreja católica ou por sua insistência no modelo de

lotes e casas individuais em empreendimentos de milhares de unidades.9 As lideranças desses

movimentos consideram inútil procurar terrenos em Belo Horizonte, em razão do preço, das

restrições legais e, principalmente, da falta de apoio político: “Ele [o prefeito Patrus Ananias] nos deu

a advertência de não ousar comprar nada dentro de Belo Horizonte, porque seríamos expulsos com

ordem judicial. Então, diante disso, abandonamos a ideia de construir dentro de Belo Horizonte e

fomos caçar aí afora.” (Bernareggi, 2013, entrevista). Começa aí a fase mais importante da história

dos loteadores associativos, que migram para municípios vizinhos e passam a operar de forma

independente, sem apoio ou co-gestão de orgãos públicos municipais, estaduais ou federais.

A prática dos loteadores associativos

O bairro Metropolitano no município de Ribeirão da Neves é, salvo engano, o maior empreendimento

de loteadores associativos na RMBH.10 Nele se cristalizam práticas sem a participação de governos

10

9 A produção habitacional preconizada na nova constelação política, incluindo parte dos movimentos sociais e a assessoria técnica da Usina (de São Paulo), era mais próxima do exemplo uruguaio, seguindo os princípios do cooperativismo para mutirões autogestionários de edifícios multifamiliares ou unifamiliares construídos coletivamente. O limite que perdurou por muito tempo na política habitacional de Belo Horizonte era de cerca 300 unidades por empreendimento, na perspectiva de que assim se poderia inserir os novos conjuntos na malha urbana existente.

10 Esse empreendimento foi objeto de uma pesquisa detalhada, de autoria de Elieth Amélia de Sousa (2002), o que é uma exceção ao ‘esquecimento’ dos loteadores associativos na academia. Note-se, no entanto, que tal pesquisa não foi realizado a partir das áreas de Arquitetura, Urbanismo ou Planejamento Urbano, mas a partir das Ciências Sociais.

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e outras instituições. A iniciativa parte de uma nova associação, a Central Metropolitana dos Sem

Casa (CemCasa), fundada em 1993 pelo Padre Piggi – que então já havia se desligado da Amabel –

e por lideranças leigas de pastorais arquidiocesanas. A estratégia intencionada pela CemCasa é

comprar glebas rurais e loteá-las, em vez de esperar ou forçar doações do Estado. Ao mesmo

tempo, o relativo sucesso dos loteamentos de fases anteriores atrai milhares de famílias que

esperam obter a casa própria mais rapidamente por essa via do que pela recém-criada política

habitacional de Belo Horizonte.

Em 1995 surge a primeira possibilidade de um grande empreendimento desse tipo: a aquisição da

Fazenda Dom Orione no município de Betim. A CemCasa consegue uma negociação com a

Companhia de Distritos Industriais de Minas Gerais (CDI-MG), proprietária do terreno, e seis mil

famílias iniciam o pagamento das prestações, no valor correspondente a 30% do salário mínimo.

Com apoio do arquiteto José Carlos Laender e do engenheiro Eduardo Antunes, a CemCasa produz

os projetos técnicos e chega a encaminhá-los à prefeitura de Betim, embora saiba que as chances

de aprovação são quase nulas. Depois de cinco meses e metade do valor quitado, a CDI autoriza o

início da ocupação. As famílias começam a limpar o terreno para a entrada dos tratores e a

demarcação pelos topógrafos: “Todo sábado e domingo ia lá […] 40, 50 ônibus cheios de gente.

Aquilo ali parecia um formigueiro” (Bernareggi, 2012, entrevista). No entanto, a prefeitura interdita o

empreendimento com a alegação de crime ambiental.11 Em poucos dias, as lideranças da CemCasa

se vêem obrigadas retirar seus equipamentos e a solicitar a devolução da quantia já paga à CDI

para ressarcir os associados; “fiquei um ano inteiro aqui na porta, na igreja, toda quinta-feira de

manhã, de madrugada até de noitão, devolvendo dinheiro pra essa gente toda e ouvindo... Só Deus

sabe o que eu ouvi, o que eu tive que acatar aqui” (Bernareggi, 2012, entrevista).

Muitas famílias se desligam da CemCasa depois desse episódio. Para recuperar sua confiança,

fortalecer o movimento diante da oposição crescente do poder público e reunir um número suficiente

de famílias para um novo grande empreendimento, a CemCasa se associa à Amabel e à Federação

11

11 O padre diz que a prefeita “mandou invadir a sua fazenda dos sem-casa pelos sem-terra. Seis famílias armadas até os dentes botaram as suas barracas dentro da fazenda, e mandaram o recado ‘Quem entra aqui nós vamos matar!’ […] Lá hoje nessa fazenda, tem seis família, dois milhões e quatrocentos... e seiscentos mil metros quadrados. E tem seis famílias colhendo vagem ou colhendo rabanete. Seis famílias! Lá era pra ficar seis mil famílias!” (Bernareggi, 2012, entrevista). De fato, a fazenda Dom Orione de tornou um assentamento de Reforma Agrária em 1997, abrigando 39 famílias filiadas à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg; Mazzetto Silva, 2008).

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das Associações de Vilas, Favelas e Conjuntos (Favifaco), que também havia participado do

programa de Ferrara alguns anos antes. Além de resultar nessa congregação de associações,

podemos supor que o fracasso do loteamento na Fazenda Dom Orione teve um efeito de abertura

entre as lideranças: elas passam a procurar formas de compartilhar com as famílias a

responsabilidade pelas decisões – bem ou mal sucedidas.

Em 1996 as três associações em conjunto conseguem negociar a Fazenda Castro no município de

Ribeirão das Neves, depois que o local é inspecionado e aprovado pelos associados. Inicia-se o

pagamento de prestações no valor de 20% do salário mínimo para cada família durante um ano,

mais tarde acrescido de uma taxa de 10% do salário mínimo destinada aos serviços técnicos. O

projeto urbano fica novamente a cargo do arquiteto José Carlos Laender, contratado pelos

participantes (“muitas vezes saí de lá com bolos de notas de cinco”; Laender, 2013, entrevista). No

processo de elaboração desse projeto, as famílias são melhor informadas acerca de possibilidades e

condicionantes técnicos do que parece ter ocorrido em empreendimentos anteriores; as lendárias

reuniões de quatro mil pessoas indicam um processo participativo, ainda que não coletivo.12 O plano

resultante, com 3580 lotes de 200 metros quadrados em 10 hectares, configura um padrão de

urbanização relativamente generoso, respeitando o relevo e os caminhos d’água, e incluindo áreas

verdes e áreas para equipamentos públicos.

No ano seguinte os associados realizam parte das obras de infraestrutura do bairro Metropolitano

em regime de mutirão. Limpam o terreno, abrem ruas, fazem contenções de encostas, cavam poços

artesianos, constroem uma caixa d’água comunitária. Também contratam alguns serviços, como a

retroescavadeira. Essa só pode trabalhar durante à noite porque a prefeitura de Ribeirão das Neves

está a par dos planos e fiscaliza o local com frequência. Quando, em 1997, as famílias começam a

construção das casas e muitas se instalam ali em barracas de lona para economizar o aluguel, a

prefeitura faz uma última tentativa de impedir a ocupação:

Quando a Prefeitura viu isso mandou espalhar um folheto pra todo mundo: proibido construir, multa de mil reais por dia. […] para nós foi uma piada. Então todo mundo

12

12 Entendemos como participativos os processos de projeto em que o comando fica a cargo de uma instância (no caso, o arquiteto) e as demais instâncias “participam” desse processo com informações ou mesmo interferências nas decisões. Em contrapartida, um processo coletivo implica que todos os participantes estão em igualdade de condições para definir a estrutura do processo, independentemente do fato de não disporem dos mesmos conhecimentos técnicos.

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continuou a construir, e eles não puderam fazer nada porque eram três mil famílias construindo. Multa? Como é que você vai cobrar mil reais por dia dessa gente? Aí, ficou por isso mesmo”. (Bernareggi, 2013, entrevista)

Nessa fase de ocupação, o loteamento é dividido em três setores, cada um sob responsabilidade de

uma das três associações. Mas essas se encarregam principalmente da distribuição de lotes,

enquanto a construção das casas se faz individualmente, com cada família concebendo o seu

próprio espaço sem um padrão geral e – pelas informações que obtivemos até agora – sem ajuda

dos vizinhos, compartilhamento de compras de material e coisas semelhantes.13 As famílias

entendem sua coesão como temporária e instrumental, sem a idealização do mutirão que foi

alimentada no Brasil sobretudo a partir do modelo uruguaio. Nesse sentido, confirmam a crítica de

Francisco de Oliveira:

É preciso que exista um ente místico chamado povo para o mutirão funcionar, e esse povo é a comunidade. Cria-se aquela comunidade ilusória, que não resiste um dia depois de concluídas as casas, para obrigar cada um a doar o próprio trabalho: isso não é formação de cidadania. Sinto muito, está no pólo oposto. [...]. O método da ilusão necessária para forjar uma identidade que não é real, que não subsiste senão pelo lado das carências. Quando essa ilusão desaparece, assim que a casa foi enfim conseguida, desaparece a coesão, desaparece a identidade com aquele projeto. São formas, portanto, que estão na linha limítrofe, às vezes aparecendo como exercício de cidadania, às vezes como forma de violência. Refiro-me aqui não aos processos desses mutirões virtuosos, não faria essa ofensa a quem faz esse enorme esforço, mas à generalização dessas soluções, que é uma espécie de estado de exceção, caracterizado por aquilo que Giorgio Agamben chama de “a vida nua”: você inclui pela exclusão. (Oliveira, 2006, p.73)

No bairro Metropolitano, o arquiteto e parte das lideranças previam espaços para cooperativas de

consumo, um centro social, hortas comunitárias e outras possibilidades de sustentação econômica.

No entanto, isso “não vingou não” (Oliveira, entrevista, 2013). As obras coletivas que conseguiram

realizar são de uma igreja e uma escola. À diferenças dos “movimentos sociais clássico” que lutam

por bens imateriais e não negociáveis (igualdade racial, paz, meio ambiente etc.; Sousa, 2002, p.

15), os loteadores associativos não almejam uma transformação social, mas sua integração na

13

13 Laender chega a elaborar um projeto de casa embrião, mas não há nenhuma exigência nesse sentido como havia no caso do Jardim Felicidade.

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sociedade existente. Assim, mesmo os que hoje consideram o bairro Metropolitano uma “cidade

pioneira, autogerida e autofinanciada” (Laender, 2013, entrevista), admitem que a prioridade

absoluta das famílias sempre foi a casa própria. De certa maneira, eles reproduziram o que os

loteadores privados vinham praticando nas décadas anteriores, apenas com a consciência de que

poderiam, coletivamente, escapar de uma parte da costumeira exploração econômica. A coesão

entre os associados constituiu um meio para esse fim, não um fim em si mesma.

Nos anos seguintes à ocupação, as associações procuram obter a aprovação do loteamento junto à

prefeitura de Ribeirão das Neves, que de fato a concede em 1998, mas sem regularizar as

escrituras. A água chega ao bairro também em 1998, as obras de saneamento, apenas em 2008. Há

indícios de que a provisão desses serviços para os loteamentos associativos foi muito mais

demorada do que para aqueles produzidos por loteadores privados no mesmo município, ou seja,

que houve maior conivência do poder público com esses últimos.

Hoje existe um projeto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para melhorar a

infraestrutura, calçar ruas, definir parques nas áreas não ocupadas e regularizar juridicamente as

propriedades. Mas a regularização enfrenta dois problemas maiores. Um deles é que cada lote

cadastral corresponde a dois lotes reais (400m2 e 200m2, respectivamente), e os moradores não

querem escrituras conjuntas com um vizinho. Além disso, houve complicações que hoje dificultam a

regularização, como ocupação de áreas não edificáveis e “falcatruas” das lideranças (venda dupla

de lotes, favorecimento nos sorteios e malversação do dinheiro pago pelas famílias; Souza, 2013,

entrevista). Várias lideranças abandonaram o processo, seja porque estavam envolvidas nos

abusos, seja porque queriam combatê-los.

Não se pode dizer o processo do bairro Metropolitano tenha sido exemplar. À primeira vista, nem

mesmo a sua configuração física difere da de loteamentos privados, com cada família construindo

no seu pequeno lote e à sua maneira. O bairro não propicia imagens de uma coletividade coesa

(como em alguns empreendimentos cooperativos), nem imagens de ordem padronizada (como nos

conjuntos habitacionais de gestão pública). Porém, apesar de todos esses problemas, o espaço

urbano desse loteamento popular associativo é de melhor qualidade do que o de loteamentos

populares privados, pelo simples fato de não ter sido condicionado pela utilização máxima da área

disponível. As áreas preservadas da ocupação ao longo do tempo, bem como o arruamento e os

14

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espaços destinados a equipamentos públicos, permitiriam transformá-lo num ambiente urbano

satisfatório com investimentos relativamente baixos. Note-se que essa possibilidade não tem

nenhuma relação com o aparato legal. O bairro Metropolitano foi feito sem aprovação da prefeitura,

assim como a maioria dos loteamentos populares privados. O que gera sua relativa qualidade

urbana é sua lógica de produção e a diferença dessa lógica em relação à dos loteadores privados. A

prioridade do valor de uso se expressa no resultado urbano. Nesse sentido, bem como no que diz

respeito ao desenvolvimento socioeconômico dos moradores, interessaria a sua comparação, hoje,

com loteamentos privados e empreendimentos da Prefeitura de Belo Horizonte implantados no

mesmo período.

O esquecimento dos loteadores associativos

Loteadores e loteamentos associativos surgem num momento em que o Estado e os organismos

internacionais preconizam os ‘programas alternativos’ e são favoráveis a que a associações

assumam a responsabilidade pelos resultados e, assim, os legitimem. Mais tarde, com a abertura

política, a Constituição Brasileira de 1988 e a eleição da Frente BH popular, Belo Horizonte institui,

pela primeira vez, uma política habitacional com alguma consistência e sistematicidade, que teve

continuidade nos anos seguintes com as prefeituras de Célio de Castro e Fernando Pimentel. A

administração municipal deixa de ter interesse por esses loteadores, cuja ação contradiz o ideal de

um Estado provedor de habitação e regente do desenvolvimento urbano, no qual movimentos

populares assumem o papel da chamada ‘sociedade civil organizada’. Os loteadores associativos

aparecem nesse novo contexto como urbanizadores irresponsáveis, predatórios, que se recusam a

abrir mão da casa e do lote individuais, criam periferias à maneira dos loteadores privados, dão

margem à corrupção interna e assim por diante.

A imensa maioria das pesquisas sobre a RMBH, seu processo de expansão periférica e sua carência

habitacional foi realizada em universidades de Belo Horizonte e ao longo dos últimos vinte anos, isto

é, sob o pano de fundo da gestão municipal da Frente BH Popular e das gestões seguintes, nas

quais diversos pesquisadores se engajaram diretamente. Assim, o pouco interesse por iniciativas de

produção habitacional anteriores ou concomitantes mas independentes também se reproduziu nos

15

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temas de pesquisa e discussão. Tanto a ‘distribuição de lotes’ pelo prefeito Sérgio Ferrara, quanto os

loteamentos associativos da década seguinte tenderam a ser rechaçados a priori, em vez de

submetidos a análises realmente críticas.

Mas a institucionalização dos movimentos populares também significou sua conformação ao

Estado14, assim como a provisão habitacional por programas públicos significou a inclusão do capital

de construção e da respectiva lógica monetária. Em contrapartida, o ideal da autogestão, que fazia

parte da política habitacional de Belo Horizonte na sua melhor fase, foi inteiramente abandonado na

década seguinte, porque sempre se enquadrou mal no aparato burocrático, nos procedimentos de

controle e nos expedientes administrativos. Outros dispositivos potencialmente democráticos, como

o Orçamento Participativo em geral e o Orçamento Participativo da Habitação em particular, não

geraram os resultados prometidos. A produção de novas unidades habitacionais foi baixa em vista

da demanda e os seus tipos arquitetônicos nunca foram escolha dos beneficiários. E, por fim, o

desenvolvimento mais recente das políticas habitacionais tem criado periferias que em precariedade

urbana não ficam nada a dever aos loteamentos populares.

Por essas razões e também pelo fato de elas terem motivado novas ocupações organizadas à

revelia das prefeituras da RMBH (Dandara, Camilo Torres, Eliana Silva, Emanuel Guarani Kaiowá,

Rosa Leão etc.) entendemos que a experiência dos loteadores associativos merece pesquisas e

discussões aprofundadas. Talvez elas possam contribuir para uma compreensão melhor e menos

idealizada de processos que favoreçam a autonomia da população e, assim, superem sua

participação em programas e decisões que não determinam por si mesma. Como já argumentamos

em outras ocasiões, a relativa independência dos produtores informais é a sua vantagem, não o seu

problema. Problema é a falta de acesso à terra e a recursos financeiros, técnicos e jurídicos.

16

14 Esse processo de conformação e submissão dos movimentos ao Estado, com sua consequente desmobilização, foi analisado no contexto específico do Conselho Municipal de Habitação de Belo Horizonte por Clara Bois (2013).

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Agradecimentos

Agradecemos aos entrevistados pela disponibilidade e paciência, bem como aos colegas do Grupo

de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras) pelas discussões e sugestões. As pesquisas que

geraram esta publicação foram realizadas com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos

(FINEP), da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) e do Conselho Nacional

de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Entrevistas

BERNAREGGI, Pier Luigi. Padre, fundador das associações Amabel e CemCasa. Entrevistado por Silke Kapp e Pedro Arthur Magalhães em 13.11.2012; entrevistado por Rebekah Campos e Pedro Arthur Magalhães em 02.05.2013.

LAENDER, José Carlos. Arquiteto, ex-presidente da Urbel. Entrevistados por Silke Kapp, Tiago Castelo Branco e Rebekah Campos em 04.05.2013.

OLIVEIRA, Gladis F. Líder comunitária e atual presidente da Amabel. Entrevistada por Rebekah Campos em 08.08.2013.

SOUZA, Cornélia. Líder comunitária e ex-presidente da CemCasa. Entrevistada por Rebekah Campos e Pedro Arthur Magalhães em 03.10.2013.

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