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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
REA DE CONCENTRAO: EDUCAO, CULTURA E SOCIEDADE LINHA DE PESQUISA: EDUCAO E MOVIMENTOS SOCIAIS
Solange Pereira da Silva
INDIGENISMO ALTERNATIVO:
NO COMPASSO DA EDUCAO INTERCULTURAL
ENTRE OS KANAMARI DO MDIO JURU - AM
CUIAB
2007
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SOLANGE PEREIRA DA SILVA
INDIGENISMO ALTERNATIVO:
NO COMPASSO DA EDUCAO INTERCULTURAL
ENTRE OS KANAMARI DO MDIO JURU - AM
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao, na rea de concentrao: Educao Cultura e Sociedade, na linha de pesquisa Movimentos Sociais Poltica e Educao Popular.
Professor Doutor Darci Secchi.
Orientador
CUIAB
2007
S586i Silva, Solange Pereira da
Indigenismo alternativo: no compassso da educao intercultural entre os kanamari do mdio Juru- AM/Solange Pereira da Silva Cuiab: UFMT/IE,2007.
133p.:il.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao, na rea de concentrao: Educao Cultura e Sociedade, na linha de pesquisa Movimentos Sociais Poltica e Educao Popular.
Orientador: Prof. Dr. Darci Secchi Bibliografia: p.118-125 Inclui apndices. CDU -376.74(=87)
CRB4 - 1467 ndice para Catlogo Sistemtico 1. Indigenismo alternativo 2. Kanamari 3. Interculturalidade
Agradecimentos
Ao meu orientador, Professor Doutor Darci Secchi, pela competncia
profissional ao discutir a questo indgena no Brasil e pelo aporte humano.
Agradeo de maneira muito especial Professora Doutora Beleni Salete
Grando, pela disponibilidade em participar desta banca e pelas suas contribuies. Tambm
Professora Doutora Maria da Glria Gohn, pelas reconhecidas anlises sobre os movimentos
sociais e pelas importantes observaes feitas a estes escritos, por ocasio do exame de
qualificao. Professora Doutora Maria Lcia Muller por defender com tanta veemncia as
oportunidades de repensar as relaes tnico-raciais.
CAPES pela bolsa de estudos que possibilitou minha permanncia no
mestrado. E UFMT.
OPAN, Secretaria de Ao Social da Igreja Metodista, ao GTME, ao CIMI
e CESE, pelas oportunidades oferecidas.
Ao GPMSE e ao FORMAD. A tica e o zelo com o ser humano, caractersticas
destes grupos encorajam ao dilogo entre a prtica e a teoria.
A Arlindo, Kana, Rosa H. Dias da Silva, Joana, Gersem Baniwa, Itijo Kulina,
Djanem, Yakoware, Kadje, Kanamari, Ednelson Makuxi, Marcos, Tio, Maristela, Elton,
Adriana, Ktia, Terezinha, Dulcilene, Paula, Rosely Sanches, Vida, Fernanda, Prof. Passos e
Prof Artemis. Pelo entusiasmo militante e abertura ao dilogo.
A Denny Neves, Cludio, Jnior, Luzanete, Santo, Nazar, Suely, Joo Paulo,
Selma, Ivonete, Jonia, Gemaque, Amintas, Wemerson, Caetano, Tameny, Yodje, Kawahere,
Djoreom, Tsawe, Lygia, Mnica, Augusto Csar, Enedina e Terclia. Agradeo pela acolhida.
minha enorme famlia, na pessoa de meu pai, que garantiu as condies
materiais para que os oito filhos estudassem e minha me que sempre nos encorajou nas
tarefas escolares, temperando com afeto a nossa trajetria. E tambm famlia Moraes.
A Silas Moraes, que tm vivido comigo a alegria dos Kanamari e as
descobertas nas relaes que vamos tecendo. Foram de suma importncia suas providncias
na sistematizao dos dados de campo, na reviso das verses iniciais do texto, assim como
nas tarefas cotidianas do nosso lar. Sua presena qualificou estas experincias.
E muito especialmente, ao povo Kanamari que mostra diariamente os
benefcios de se cultivar a alegria. Mostra tambm a sua profunda sabedoria contida na
laboriosa construo de pontes que articulem os mundos. Nisto acreditam e isto
cotidianamente exercitam sempre de maneira muito animada, pois nisto pem sua alma.
RESUMO
O texto aqui apresentado trata do Programa de Educao para o Povo
Kanamari, implementado por agentes do chamado indigenismo alternativo, considerando a
realidade concreta vivida por aquela sociedade habitante do Rio Juru, no Amazonas.
Objetivamos realizar uma descrio densa e uma reflexo circunstanciada sobre teorias e
prticas educacionais em contextos de alteridade. uma tentativa de amplificar a voz de
grupos sociais amaznicos pouco considerados nos espaos acadmicos e polticos brasileiros.
Os dados baseiam-se na abordagem etnogrfica, tentando desvelar interaes simblicas
significantes para os Kanamari na relao com indigenistas e com a sociedade nacional.
Seremos parte modificada e modificadora do contexto observado. Apresentaremos aspectos
referentes aos grupos Djapa, unidades distintivas da sociedade Kanamari. Buscaremos
elucidar os desdobramentos prticos e simblicos de sua organizao e das suas relaes
internas e externas. Pretendemos mostrar como os aspectos caractersticos da organizao
social dos Djapa e o conjunto de conhecimentos e valores determinaram os processos
educativos ali realizados. A estratgia investigativa constituiu-se de entrevistas, conversas
informais e observao dirigida durante os eventos que compunham o Programa de Educao
para o Povo Kanamari. Alm de consultas aos dirios de campo e relatrios de equipes que
atuaram na regio recentemente e em pocas passadas. Os resultados obtidos apontam que o
dilogo propiciado pelas atividades do Programa fortaleceu aos indgenas e suas instituies
tradicionais. Sugerem tambm que ganharemos todos, indgenas e sociedade nacional pela
superao das limitaes, pela rica vivncia intercultural, favorecendo uma convivncia
pacfica e respeitosa.
Palavras-chave: Indigenismo alternativo. Povo Kanamari. Interculturalidade.
ABSTRACT
The text presented here deals with the Program of Education for the Kanamari
People, implemented by agents of the so called alternative indigenism, considered the
concrete reality lived by that society which inhabits the Juru river, in Amazonas. We
objectify to carry out a dense description and a circunstancial reflexion about education
theories and practicing. It is an attempt to amplify the voice of the amazonian social groups
little considered in the brazilian academic and political spaces. The data is based on the
ethnographic boarding, trying to unveil significant symbolic interactions for the Kanamaris in
their relation with indigenists and the national society. Part of us will be modified and the
other part will be modifier in the observed context. We will present aspects referring to the
Djapa groups who are a distinctive unit of the Kanamari society. We will search to elucidate
the practical and symbolic unfoldings of its organizations and its internal and external
relations. We claim to show how the characteristic aspects of the Djapa social organization
and their whole knowledge and values may determine the educative processes wich exist
there. The strategy of investigation was based on interviews, informal conversations and
direct observations during the events that composed the Program of Education for the
Kanamari People, beyond the consultation of field diaries and reports of the team that acted in
the area recently or in the past time. The obtained results pointed out that the dialogue brought
up by the program activities fortified the indigenous and their traditional institutions. It also
suggests that we all will win, indigenous and national society, by the over going of
restrictions, by the rich intercultural experience, favoring a pacific and respectful
acquaintance.
Key words: Alternative Indigenism , Kanamari People, Interculturality.
Lista das ilustraes
Ilustrao 1 Mapa da localizao da famlia lingstica Katukina ......................................... 19
Ilustrao 2 Mapa das Aldeias Kanamari no Mdio Juru .................................................... 20
Ilustrao 3 Mapa do Igarap Trs Bocas ............................................................................. 57
Ilustrao 4 Mapa do Igarap Matrinch .............................................................................. 87
Ilustrao 5 Mapa do Igarap Mamori ................................................................................ 115
Lista das Fotografias
Fotografia 1: Chegada do Kerewenom. Igarap Matrinch. 1998. ......................................... 13
Fotografia 2: Coleta de cip na vrzea. Igarap Degredo. 1992 ............................................ 24
Fotografia 3 Preparando a massa da mandioca. Igarap Maloca. 1997. ................................. 44
Fotografia 4: Ritual dirio do Koya. Igarap Trs Bocas. 1995. ............................................ 48
Fotografia 5 Chegada do Kerewenom. Igarap Matrinch. 1998. .......................................... 68
Fotografia 6: Encontro de Lideranas Kanamari e Kulina. Eirunep. .................................... 84
Fotografia 7: III Curso de Formao para Educadores Kanamari. Igarap Matrinch. ......... 109
Fotografia 8: Lideranas Kanamari no I Seminrio de Educao Indgena. Eirunep. 1998. 113
Lista de siglas e abreviaturas
ANA Associao Nacional de Apoio ao ndio. CCPY- Comisso Pr Parque Yanomami CEDI - Centro Ecumnico de Documentao e Informao CEEEI/AM Conselho Estadual de Educao Escolar Indgena do Amazonas CFEK Curso de Formao para Educadores Kanamari. CIMI - Conselho Indigenista Missionrio CIR Conselho Indgena de Roraima CNBB Conferncia Nacional dos Bispos CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico COIAB Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira. COMIN Conselho de Misso entre ndios COPIAR Comisso dos Professores Indgenas do Amazonas, Acre e Roraima. CPI Comisso Pr-ndio. CPT Comisso Pastoral da Terra CTI - Centro de Trabalho Indigenista DSEIs Distritos Sanitrios Especiais Indgenas. FDDI Federao de Defesa dos Direitos Indgenas FNS Fundao Nacional de Sade FOIRN Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro FORMAD Frum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento FUNAI - Fundao Nacional do ndio GPMSE Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educao GTME - Grupo de Trabalho Missionrio Evanglico IBAMA Instituto Brasileiro de INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ISA Instituto Socioambiental LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educao MEC - Ministrio da Educao e Desporto MEVA Misso Evanglica MIA - Misso Anchieta MMA Ministrio do Meio Ambiente MMK Misso Metodista junto aos Kanamari MNTB - Misso Novas Tribos do Brasil MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetizao MST Movimento dos Trabalhadores sem Terra. NEI - Ncleo de Educao Indgena ONG Organizao no Governamental. ONU Organizao das Naes Unidas. OPAN - Operao Amaznia Nativa PDPI Projeto Demonstrativo dos Povos Indgenas PKN Projeto Kaiow Nhandeva PPTAL Projeto de Proteo s reas Indgenas da Amaznia Legal. PRODEAGRO: Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Estado de Mato Grosso PUC Pontifcia Universidade Catlica RCNEIs Referencial Curricular Nacional para Escolas Indgenas SEMEC - Secretaria Municipal de Educao. SIL Sociedade Internacional de Lingstica SPI - Servio de Proteo aos ndios
SPILTN Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais SUDAM - Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia SUDECO - Superintendncia do Desenvolvimento do Centro-Oeste UCDB - Universidade Catlica Dom Bosco UDR - Unio Democrtica Ruralista. UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UNB Universidade de Braslia UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao a Cincia e a Cultura UNI Unio das Naes Indgenas. UNICAMP Universidade de Campinas USP Universidade de So Paulo
SUMRIO
1 INTRODUO ............................................................................................................... 11
2 O RIO JURU - TERRITRIO DJAPA ................................................................... 21
2.1 DO QUE TRATA O TEXTO ............................................................................................... 21 2.2 CONTEXTO GERAL DO ESTUDO ...................................................................................... 22 2.3 A VRZEA AMAZNICA, CENRIO DE ENCONTROS E DESENCANTOS. .............................. 24 2.4 CONTEXTO ESPECFICO DO ESTUDO ............................................................................... 30
2.4.1 Djohko Universo Mtico ..................................................................................... 36 2.4.2 Liderana poltica ................................................................................................. 40 2.4.3 Produo, usufruto e reciprocidade. ..................................................................... 41 2.4.4 Festas e Brincadeiras ........................................................................................... 48 2.4.5 Cultura Material ................................................................................................... 54
3 O CAMPO DE ATUAO INDIGENISTA NO BRASIL ........................................ 58
3.1 MLTIPLOS INDIGENISMOS ........................................................................................... 58 3.2 A TUTELA INTEGRACIONISTA E A TUTELA NORMATIVA .................................................. 60 3.3 COM O PERDO DA M PALAVRA .................................................................................. 66 3.4 INDIGENISMO ALTERNATIVO ......................................................................................... 68 3.5 A PALAVRA INDGENA .................................................................................................. 72 3.6 PBLICO, PORM, NO ESTATAL. .................................................................................. 79 3.7 DE DEMANDATRIOS A EXECUTORES ............................................................................ 82 3.8 TTICAS REFORMULADAS, ANTIGAS NECESSIDADES. ..................................................... 84
4. O INDIGENISMO COMO AO POLTICA E PEDAGGICA ............................. 88
4.1 A REINVENO KANAMARI .......................................................................................... 88 4.2 O LOCAL E O UNIVERSAL .............................................................................................. 92 4.3 EDUCAO PARA O DILOGO INTERCULTURAL .............................................................. 95 4.4 MIRANDO O MUNDO A PARTIR DA ALDEIA ................................................................... 103 4.5 ESCOLARIZAO KANAMARI...................................................................................... 106
5 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 116
REFERNCIAS ............................................................................................................... 118
APNDICES .................................................................................................................... 126
APNDICE A MATERIAL ELABORADO PARA OS TEMAS SADE E
EDUCAO .................................................................................................................... 126
APNDICE B ENCONTROS DE FORMAO DE LIDERANAS ....................... 127
APNDICE C - PLANILHA DE ATIVIDADES DE 1995............................................. 128
APNDICE D - PLANILHA DE ATIVIDADES DE 1996............................................. 129
APNDICE E - PLANILHA DE ATIVIDADES DE 1997 ............................................. 130
APNDICE F - PLANILHA DE ATIVIDADES DE 1998. ............................................ 131
APNDICE G - QUADRO DE ATIVIDADES EM ESCOLARIZAO MMK E OPAN
- (1993 A 1998) ................................................................................................................. 132
11
1 INTRODUO
Sou de um tempo em que as pessoas ouviam mais o rdio. Ouviam-se as vozes
matutas dos mestres violeiros e de tantos outros poetas do serto e da zona da mata, lugar
igualmente castigado pelo mando dos senhores de engenho.
Dom Helder Cmara nos incitava a agir em favor de um mundo novo. As
mensagens dirias eram reforadas pelo padre Jaime, na Braslia Teimosa, um bairro e uma
gente que, criativamente, teimam em existir, em Recife, capital de Pernambuco.
Pelo rdio tambm chegavam as vibrantes msicas de Luiz Gonzaga, Jackson
do Pandeiro, Joo do Vale, alm das complexas e refinadas melodias do frevo. Dancei
profissionalmente vrios ritmos da regio corporalizando as imagens sonoras reproduzidas
pela saudosa rdio PRA8.
Praieira, nordestina, aprendi que Serto significava um lugar onde viviam
pessoas incrivelmente fortes, que tinham costumes e saberes admirveis.
Decidi ser assistente social e aprendi que o que se passava nos sertes tambm
ocorria, por esse mundo de meu deus. Conclu que j no se tratava de uma profisso, mas
de um projeto de vida, de uma escolha de um lado.
Ento, um dia conheci Abel Kana1 que trabalhara com o povo indgena
Kulina, no Acre. As descries pormenorizadas sobre o trabalho indigenista l desenvolvido,
faziam parte de sua estratgia de arregimentao de novos aliados causa indgena.
Adiantei meu trabalho de concluso do curso de Servio Social e ingressei no
Curso de Formao Indigenista da OPAN, cuja proposta poltico-pedaggica prev temas
inspirados na vida dos ndios brasileiros: conceitos chaves da Antropologia, Poltica
Indigenista, Lingstica, Legislao, Sade, Economia/Sustentabilidade, Educao, entre
outros (ZORTHA, 2006, p 6).
Tambm aprendi muito vivendo a diversidade scio-cultural com os outros
participantes deste Curso. ramos dez pessoas vindas do Sul, Sudeste, Nordeste, convivendo
durante quase oito meses, nas regies Norte e Centro-Oeste. O Curso transcorreu entre maio e
dezembro e foi organizado em duas etapas tericas intermediada por uma prtica.
1 Kana historiador e trabalhou no Acre e Sul do Amazonas por mais de dez anos, projetos do CIMI e da OPAN. Atualmente consultor da Coordenadoria Ecumnica de Servios (CESE).
12
As assessorias das trs etapas foram fundamentais. Cludio Conte, Egydio
Schwade, ngela Kurovski, Rosa Monteiro, Mrcio Silva, Darci Secchi e Arlindo Leite,
marcaram positivamente na ocasio e nos anos posteriores. Muitos ensinamentos vieram das
equipes de rea: Ednelson Makuxi, Cleacir S, Paulo Roberto, Danilo, Marcos Weslley.
Fiz estgio prtico no Juru, com os Kulina, porm assumi pela OPAN outros
trabalhos nos rios Purus e Madeira. Apenas no incio de 1995 voltei ao Rio Juru, l fiquei at
incio de 1999. Fui para trabalhar com o povo Kanamari, a partir de uma parceria com uma
equipe da Secretaria de Ao Social da Igreja Metodista. Marcos Weslley e Silas Moraes
tinham sido meus colegas de estgio e desejavam inaugurar um trabalho alternativo2 s aes
que a sua instituio vinha desenvolvendo em outras partes do pas.
A distncia geogrfica e as limitaes da equipe da coordenao, determinaram
nossa auto-formao. Os prprios indgenas foram nossos maiores mestres. A receptividade
dos povos amaznicos nos d outra dimenso das possibilidades das relaes pessoais. O
grande aprendizado aqui foi que se pode viver e aprender com alegria.
Silas tornou-se mais que um companheiro de trabalho e comigo passou a
compartilhar a vida. Samos do Amazonas, decididos a escrever sobre a vida entre os
Kanamari e Silas ajudou na sistematizao de muitas informaes rememorando e
pesquisando nos relatrios.
Abel Kana e Arlindo Leite deram apoio intelectual e humano, e a CESE, o
GTME e a Secretaria de Ao Social da Igreja Metodista, ofereceram condies materiais
neste tempo de transio e sistematizao dos dados de rea. Ao final de uma primeira
redao percebemos que havia muitas lacunas tericas e metodolgicas. Decidimos que este
trabalho seria lapidado num momento oportuno.
Fomos viver no litoral do Cear. L tivemos oportunidade de conhecer o povo
Trememb, que com alegria reelebora formas ancestrais de relao baseadas na reciprocidade.
Os povos ressurgidos so como mandacaru desabrochando depois de uma longa estiagem.
Foi bom voltar Regio Amaznica com um projeto de implantao de sistema
de rdio-fonia e formao de comunidades para o uso do equipamento, em Rondnia, Par e
Amazonas. Os seringueiros, castanheiros, palmiteiros, quilombolas, pescadores artesanais,
agricultores familiares e indgenas, ensinaram que atualizam constantemente suas culturas.
Chegando em Cuiab, em 2003, houve a oportunidade de conhecer outras
realidades pelo Frum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD)
participando de vrios eventos dos movimentos sociais. O Grupo de Pesquisa Movimentos 2 Baseavam-se nas Diretrizes Pastorais para a Ao Missionria Indigenista.
13
Sociais e Educao (GPMSE), antes mesmo de ingressar no programa de mestrado foi uma
feliz descoberta. Compromisso, competncia e gentileza, marcas destes Grupos.
J no incio do mestrado, surgiu o mpeto de mudar de tema ao saber, pela
mdia, que prefeituras do interior do estado de Mato Grosso estavam interceptando nibus que
vinham do Nordeste do pas com trabalhadores que pretendiam se instalar no Norte do estado.
Segundo as notcias da imprensa televisiva a polcia agia tambm destruindo hospedarias de
maranhenses, como genericamente chamavam estes migrantes nordestinos.
Pensei: Winston Parva aqui! Pessoas que tambm migraram estigmatizam e
repudiam os que pretendem se alojar. A Professora Doutora Lcia Mller aprofundou a
reflexo desta situao especfica luz da leitura de Norbert Elias, Os Estabelecidos e os
Outsiders.
Porm, manter o foco no processo vivido junto aos Kanamari, significava
retribuir os apoios obtidos ao longo dos anos l vividos. Queria de alguma forma voltar a
conviver com eles. Retomar as lies cotidianas, visualizar suas cores e suas formas, ouvir os
seus sons. Sentir a sua contagiante alegria.
A anlise dos documentos reavivou na memria a realidade, complexa,
ambgua, contraditria at, mostrando vrias nuances da ao indigenista. Explicitou o
improviso, o amadorismo da ao, mas tambm explicitou o compromisso que determinava
que cada ato, cada abordagem fosse permeado de inteno, da esperana na reconstruo da
histria, da relao entre ndio e branco, entre a aldeia e cidade, entre o mar e o serto.
Fotografia 1: Chegada do Kerewenom. Igarap Matrinch. 1998.
Fonte: Luciana Galante.
14
A verdadeira solidariedade interpessoal e tambm intercultural; na reciprocidade; enriquecendo-se mutuamente as diferentes culturas. Somente a comunho das alteridades pode construir a outra mundialidade que sonhamos. (CASALDLIGA, 2006)3
Para apresentar a temtica especfica a ser discutida nesse estudo, iniciamos
com este depoimento esperanoso de D. Pedro Casaldliga que um convite para sermos
mais propositivos diante das questes da interculturalidade.
Os conflitos motivados por razes tnicas, econmicas ou religiosas compem
o cenrio mundial desde os seus primrdios. Desde a metade do sculo XX, porm, os de
natureza tnico-cultural ganharam grande visibilidade e destaque miditico uma vez que se
expressaram por vrias formas de barbrie o aniquilamento de povos e culturas em todo o
mundo. Tais fatos aparentemente corriqueiros exigem atitudes pessoais e institucionais para a
prtica de aes localizadas que promovam um ambiente de justia e paz.
No Brasil - um pas tido como racialmente democrtico verificamos
espantosos nmeros de violncias diretas ou indiretas contra os grupos tnicos minoritrios,
marcadamente, os negros e os indgenas.
Junto a estes grupos culturalmente diferenciados, possvel observar um
quotidiano de discriminao que se caracteriza por diversas formas de agresso pessoal ou
grupal e pela rotineira omisso da assistncia por parte do poder pblico.
O presente estudo pretende evidenciar, a partir de um contexto determinando,
como os povos indgenas tm conseguido sobreviver fisicamente, apesar das discriminaes
cotidianamente sofridas e como se foi constituindo um sujeito poltico coletivo indgena para
garantir sua existncia cultural nos contatos estabelecidos ao longo destes cinco sculos,
marcados regularmente por uma relao assimtrica que no atende aos seus interesses.
Procura-se desvelar a vocao Kanamari para a interao com outras
sociedades e culturas, bem como a sua intencionalidade, disposio e capacidade de dialogar
nos diferentes ambientes que essas relaes estabelecem.
No seu processo de pacificao do branco, os indgenas tm conquistado
aliados de vrios matizes. Neste trabalho trataremos de um importante apoiador das lutas
indgenas ao longo da histria do Brasil, a quem convencionou-se chamar de indigenismo
alternativo.
3 Entrevista concedida por ocasio do Jri Popular dos acusados da tortura e assassinato do Jesuta Vicente Caas, a quem ele chamava de Mrtir das Causas Amerndias.Disponvel em: < www.cimi.org.br>. Acesso em: 23 out. 2006.
http://www.cimi.org.br>.
15
Uma das mais fortes caractersticas do modo de ao do indigenismo
alternativo tem sido a insero direta nas aldeias, o fortalecimento das organizaes
tradicionais, a criao de espaos de reflexo e formao e o apoio ao protagonismo indgena.
A ao pedaggica, articulada, propositiva e intencional entre os povos
indgenas e esta vertente do indigenismo, teceu uma importante teia de parcerias locais,
regionais, nacionais e internacionais, entre indgenas e demais aliados, determinando avanos
significativos na legislao relativa aos direitos tnicos, o que se traduziu em ganhos
substanciais no texto final da Carta Magna.
Os direitos indgenas foram reconhecidos em diversos trechos da Constituio
Federal de 1988, especialmente no seu CAPTULO VIII, que trata especificamente Dos
ndios, Art. 231.
So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 1. So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies.
De fato, estes avanos foram determinantes para o reconhecimento dos direitos
indgenas, porm, na prtica, ainda falta muito para que tais direitos sejam plenamente
efetivados e o Brasil se afirmar como uma nao que zela pelos direitos diversidade. Um
dos exemplos mais lastimveis o descumprimento do estabelecido nas Disposies
Constitucionais Transitrias, referente demarcao das terras indgenas no prazo de cinco
anos a contar da promulgao da Constituio Federal (correspondeu a 1993).
Como conseqncia desta omisso observa-se o fortalecimento das foras anti-
indgenas financiadas ou identificadas com latifundirios e com outros espoliadores dos
territrios indgenas, muitas vezes compostas por frentes paramilitares e parlamentares
identificadas no cenrio poltico brasileiro. Chamamos aqui de paramilitares as frentes
constitudas dos soldados da borracha, especialmente arregimentados para garantir a
ocupao dos territrios indgenas onde existiam campos naturais de seringueiras.
No mbito de uma discusso mais geral sobre a realidade indgena brasileira,
pretendemos neste estudo dedicar ateno discusso dos pressupostos tericos e
metodolgicos do modo de ao indigenista desenvolvida pela organizao no-
governamental denominada Operao Amaznia Nativa (OPAN), uma das precursoras do
chamado indigenismo alternativo. Nossa inteno ser evidenciar como as aes
16
desenvolvidas por seus membros e pelas prprias comunidades indgenas se expressam em
uma prxis poltica e pedaggica. Ou nas palavras de Gohn:
So experincias educativas, questionadoras do status quo vigente, preocupadas no apenas com a aquisio de bens materiais mas tambm com a qualidade de vida que estamos construindo, com o projeto para o futuro que estamos gestando no presente (GOHN, 1992. p. 9).
importante ressaltar, porm, que esse sentido poltico da ao e a perspectiva
de interveno num determinado tempo e espao, no exclusivo dessa instituio e
tampouco dos trabalhos aqui discutidos. O indigenismo alternativo bem mais amplo do que
o caracterizado pelas aes da OPAN e ela prpria desenvolve (ou desenvolveu) diversos
projetos em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas e Rondnia.
O foco de anlise especfico nesse estudo ter como cenrio uma iniciativa de
educao popular desenvolvida junto ao povo Kanamari, no Mdio Rio Juru, na regio
Sudoeste do Estado do Amazonas. O perodo enfocado corresponde aos anos de 1995 a 1998.
A escolha desta iniciativa justifica-se pelo fato de termos construdo junto com
o povo Kanamari um programa que traduzisse suas intenes e seus anseios. Isto foi possvel
pela presena da OPAN desde o incio da dcada de 1980 e pelo nosso contato cotidiano
durante mais de quatro anos.
A nfase da ao no perodo aqui explicitado, deu-se no campo da
escolarizao, porm a premncia da realidade cotidiana levou as equipes a darem ateno,
tempo e recursos tambm para os campos da sade e da regularizao fundiria. Ao concluir a
anlise das atividades desenvolvidas naquele contexto percebemos que tnhamos ainda a
responsabilidade de expor no espao acadmico tais experincias de forma clara e sem
ufanismos, trazendo luz as contradies e impasses do processo, bem como as experincias
dos sujeitos nele envolvidos.
O texto aqui exposto est organizado da seguinte maneira: iniciamos com
algumas informaes relevantes sobre o povo Kanamari e sobre a regio do Mdio Juru.
Daremos destaque aos aspectos da organizao social Kanamari e aos contornos culturais e
polticos dos seus grupos familiares Djapa tidos como unidades distintivas desta sociedade.
Ainda que saibamos que haja
[...] a uma certa iluso ao se acreditar que seja possvel identificar facilmente uma cultura particular, fixar seus limites e analis-la como uma entidade irredutvel a uma outra. Resta ainda o fato que, no plano metodolgico, s vezes til e at necessrio se agir como se uma cultura particular existisse enquanto entidade separada com uma real autonomia, mesmo que, na realidade, esta autonomia seja apenas relativa em relao s outras culturas vizinhas. (CUCHE, 2002, p 89).
17
Buscaremos elucidar os desdobramentos prticos e simblicos da sua forma de
organizao e da dinamizao das suas relaes internas e externas. Por esta razo, trataremos
das relaes interculturais l estabelecidas a fim de justificar as escolhas feitas no mbito das
iniciativas vinculadas ao indigenismo alternativo.
No segundo captulo refletiremos sobre a ao das principais agncias que
compem o cenrio do indigenismo brasileiro. Destacaremos o papel das denominadas
agncias oficiais, como o Servio de Proteo ao ndio (SPI) e a Fundao Nacional do ndio
(FUNAI) e das agncias do indigenismo alternativo, como a Operao Amaznia Nativa
(OPAN), o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) e uma iniciativa especfica da Secretaria
de Ao Social da Igreja Metodista, a partir de uma de suas equipes de rea, a Misso
Metodista junto aos Kanamari (MMK). Daremos destaque ao modo de ao da OPAN.
Ao traar o perfil de alguns dos principais agentes que historicamente
desenvolveram atividades indigenistas procuraremos descrever o cenrio poltico, econmico
e social que propiciaram o surgimento de tais agncias e como modificaes no cenrio macro
interferiram nas esferas local, regional e nacional. Pretendemos destacar as diferenas
existentes entre as posturas institucionais, na medida do possvel explicitando as linhas
terico-metodolgicas e os tipos de ao que desenvolvem e como se utilizaram de iniciativas
educacionais para implementar os seus propsitos.
Observaremos que atualmente o Estado adotou discursos semelhantes aos
gerados nos histricos movimentos populares. Ou, como diria Secchi, (2004)4 o Estado tomou
a bandeira de luta dos movimentos sociais. Nos discursos indigenistas j no h diferenas,
na prtica cotidiana que se percebe a efetividade das intenes que hoje encontramos
traduzidas em leis.
Ainda nesse captulo refletiremos sobre a atuao indgena e sobre as
condies que levaram as suas organizaes a passar de demandatrios a executores de
projetos de assistncia direta junto a seus parentes. Veremos que as diversas formas de
organizao indgena existentes atualmente contradizem as previses do desaparecimento
destas culturas.
No terceiro captulo analisaremos algumas atividades implementadas junto ao
povo Kanamari pelas instituies do indigenismo alternativo no Mdio Juru. Temos a
expectativa que essa reflexo explicitar as multi-dimenses imbricadas em um trabalho
direto em rea indgena e pontuar algumas das implicaes desse modo de ao indigenista.
4 Palestra proferida no Seminrio Polticas Indigenistas e as Pastorais. GTME, Julho de 2004, Chapada dos Guimares-MT.
18
Procuraremos demonstrar que o diferencial de uma ao indigenista alternativa, enquanto
ao poltica e pedaggica tem como princpio contemplar o discurso indgena e suas
especificidades na perspectiva do dilogo intercultural, considerando que o contato com o
mundo externo representa o seu desejo, mas tambm o seu temor.
Os depoimentos indgenas apontam que no pretendem deixar de ser o que so,
mas que querem apreender os cdigos necessrios para permanecerem nesta relao; dispondo
do arsenal organizativo, informativo e energtico que os favoream no convvio intercultural
(SECCHI, 2002). A articulao criativa entre o novo e o antigo, entre o que foi e o que estar
por acontecer uma habilidade desejvel e reforada nos vrios eventos em que os indgenas
tm participado. Dessa forma veremos que as reunies, assemblias, seminrios, comisses,
conselhos, escritas, documentos, mapas, etc. tornam-se ferramentas, smbolos adquiridos
neste longo e penoso processo indgena de pacificao do homem branco.
Nos apndices detalharemos as atividades realizadas pelas instituies no
perodo acima referido e traremos alguns exemplos de material didtico elaborado pelas
equipes indigenistas locais para facilitao das discusses das temticas nas aldeias.
Os dados levantados demonstram que naquele contexto regional, somente uma
ao abrangente e articulada seria capaz de garantir as condies para trabalhos estveis e
duradouros. Uma iniciativa estruturada em quatro pilares fundamentais e complementares:
relao com outros grupos militantes, com centros acadmicos do Brasil inteiro, com os
poderes pblicos nas trs esferas e principalmente relao com o prprio povo Kanamari, na
construo de um programa que traduzisse um jeito de ser indgena e de fazer indigenismo.
Demonstram que os fruns de discusso entre lideranas indgenas regionais,
assessores indigenistas e rgos oficiais, so estratgias para angariar apoiadores e ampliar o
envolvimento das comunidades nos trabalhos em curso. Os convnios e parcerias com os
rgos oficiais superavam os objetivos preliminares de somar esforos e dividir os custos na
execuo das atividades. A inteno era que o Estado assumisse as suas atribuies.
O povo Kanamari tem uma imensa capacidade de dar o seu tom, muito
sabiamente, sem confronto, mansa e alegremente vo se apropriando das tticas, refazendo
objetivos, re-estabelecendo as suas prioridades nesta desejada e temida aproximao com a
sociedade envolvente.
esta experincia profissional e humana vivida, a partir de um dilogo
constante e profundo entre ndios e indigenistas, que pretendemos trazer tona neste estudo,
num colorido caleidoscpio de personagens, cenrios, emoes, s vezes, ambivalentes, que
queremos apresentar aqui atravs destas linhas.
19
Ilustrao 1 Mapa da localizao da famlia lingstica Katukina Fonte: Silas Moraes. 1998.
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Ilustrao 2 Mapa das Aldeias Kanamari no Mdio Juru
Fonte: Histrias de Kanamari. Projeto Kanamari/MEC/UNESCO, 1998, Braslia DF.
21
2 O RIO JURU - TERRITRIO DJAPA
2.1 Do que trata o texto
Neste captulo pretendemos discutir o contexto geogrfico, poltico, social e
cultural do Mdio Rio Juru e um modo de ao indigenista desenvolvida junto ao povo
indgena Kanamari, entre os anos de 1995 e 1998.5
Os dados aqui apresentados, relativos ao povo, no pretendem abordar a
totalidade e a complexidade das manifestaes culturais Kanamari. Felizmente h muito mais
do que ser aqui apresentado. Pretendem isto sim, oferecer alguns dos elementos observados e
registrados no perodo descrito e que de alguma forma foram articulados aos eventos
educativos realizados entre as instituies do indigenismo alternativo e o povo Kanamari.
Elementos estes que caracterizam a especificidade do povo em foco e que
justificou o perfil da interveno indigenista aqui descrita, considerando o contexto histrico
local e regional onde tal iniciativa se deu. Recorremos aos aportes tericos de trs estudiosos
deste povo, a saber: Reesink (1993), Labiak (1997) e Carvalho (1998).
Porm a maioria das informaes foi obtida diretamente dos prprios ndios,
nas suas prprias aldeias, pois no perodo acima referido foi possvel conviver com eles em
todas as aldeias do Juru, do Juta e do Xeru. Tambm houve visitas de pessoas vindas dos
rios Itacoa e de duas famlias Katukina do Rio Bi. Faltando apenas os Kanamari do Rio
Japur, localizado na margem oposta do Rio Solimes.
Baseados nos registros da equipe indigenista e nos relatos indgenas, tendo os
referidos suportes tericos, no primeiro captulo pontuaremos alguns dados sobre localizao,
estrutura organizacional, econmica e social, hbitos alimentares e alguns dos rituais.
Desde aqui, tentaremos mostrar o grande investimento dos Kanamari na
relao com a sociedade envolvente.
5 A OPAN est presente nesta regio desde 1979. Entre 1995 e 1998 esta ao indigenista foi realizada em parceira com a Misso Metodista junto aos Kanamari (MMK). Trata-se de uma iniciativa da Secretaria de Ao Social da Igreja Metodista.
22
2.2 Contexto geral do estudo
Vivem atualmente no Brasil cerca de 230 diferentes povos indgenas. Cada
uma dessas sociedades (algumas muito reduzidas em termos demogrficos) possui
caractersticas culturais e lingsticas distintas. De acordo com Rodrigues
Cada lngua indgena brasileira no s reflete, assim, aspectos importantes da viso de mundo desenvolvida pelo povo que a fala, mas constitui, alm disso, a nica porta de acesso ao conhecimento pleno dessa viso de mundo que s nela se expressa. (RODRIGUES, 1986, p 27 apud MAHER, 1996, p 32).
Possuem passados histricos diferenciados e diferentes estratgias de
enfrentamento dos reveses que se apresentam. Porm um dos aspectos que as unem o
inegocivel desejo de sobreviverem como povos, a defesa do direito supremo vida, a sua
manuteno fsica e cultural em seu territrio imemorial.
Assim entendidos, os povos indgenas constituem sociedades que vivem (e por
vezes compartilham) universos mticos, tradies, histria e projetos de futuro. Seus costumes
e organizaes sociais esto fortemente baseados na relao com os mitos e o seu universo
simblico est fortemente pautado na vivncia em comunidade e em pertencimentos
recprocos.
Nesse contexto a noo de identidade cultural traz um sentido muito especfico.
Como sugerido pela cincia da Antropologia, a formao identitria forjada no convvio
entre as culturas. Para diferentes autores, que muitas vezes se situam em linhas divergentes, o
convvio determinaria a frico intertnica (OLIVEIRA,1976), diferentes graus de aculturao
(RIBEIRO, 1978), situao de contato (OLIVEIRA FILHO,1988), situao colonial
(BRAND, 1998; BALANDIER, 1973). Dessas relaes interculturais resultariam diferentes
formas de mudanas scio-culturais, quando no, o extermnio fsico ou cultural de um dos
plos da relao.
Em sntese: as sociedades indgenas teriam estabelecido ao longo da sua
histria diferentes formas de contato entre si e com as frentes de expanso, com o entorno
regional, com a sociedade envolvente, com a sociedade nacional, etc. e nessas relaes vm
forjando a sua identidade cultural.
A questo indgena enquanto temtica que abrange uma diversidade de
aspectos oferece-nos uma pista importante para compreender a influncia do simblico nas
23
complexas relaes sociais atualmente existentes no Brasil, considerando sua formao
tnica.
Persiste na sociedade brasileira, e em especial das pessoas que residem
prximos aos povos indgenas, um falso dilema em relao ao que fazer com os ndios. Para
Secchi (2002), esse dilema funda-se no entendimento que somos ns (colonizadores) que
devemos conceder seus direitos e definir o seu futuro.
Hoje j no se discute se os ndios tm ou no tm alma, se devem ou no ser 'civilizados', mas trata-se de admiti-los como cidados com direitos especficos e diferenciados. Mas a secular matriz colonial no foi totalmente superada. As atuais leis e regulamentos foram produzidos apenas com a "audincia" dos ndios, ou "contaram com a participao" das comunidades. Ou dito de outra forma: a legislao admitiu a alteridade e tolerou a diferena, mas resguardou o direito discricionrio de conceder direitos. (SECCHI, 2002, p. 72).
Este conflito est permeado de sentimentos contraditrios, inquietantes.
Historicamente existem formas diversas de enxergar os ndios e suas organizaes. Para uns,
os indgenas seriam seres sem alma, portanto passveis da domesticao; para outros, seres
com alma, portanto passveis de salvao (seja atravs de programas assistencialistas, seja
atravs de programas de evangelizao); para outros ainda, seriam seres racionais, portanto
aptos a se tornarem cidados, com direitos e deveres atribudos por seus colonizadores.
Nenhuma das trs perspectivas garantiu aos indgenas o princpio da
autonomia, a colocada como as condies objetivas destes povos se relacionarem entre si e
com a sociedade nacional de acordo com suas prprias expresses, as quais devem garantir a
sua sobrevivncia fsica e cultural. Na sua tese de doutorado, Darci Secchi (2002, p. 85)
afirma que o conceito de autonomia deve ser entendido como um [...] permanente processo
de construo e reconstruo identitria, e o seu dimensionamento deve expressar o embate
entre as comunidades indgenas e destas com o entorno regional.
De acordo com o etnlogo Denys Cuche (2002, p. 13-14)
A identidade cultural de um grupo s pode ser compreendida ao se estudar suas relaes com os grupos vizinhos. O estudo atento do encontro das culturas revela que este encontro se realiza segundo modalidades muito variadas e leva a resultados extremamente contrastados segundo as situaes de contato.
E Terezinha Maher (1996, p. 29) refora a importncia da dimenso contextual
na anlise das relaes interculturais, pois para ela: [a identidade] s pode ser entendida se a
pensarmos em termos de um fenmeno scio-cultural e histrico por natureza, e por isso
mesmo, essencialmente poltico, ideolgico e em constante mutao.
A identificao dos grupos tnicos se faz por um complexo processo que inclui
a auto-identificao. Mas no suficiente a auto-identificao para que sejam respeitados os
24
direitos dos grupos em se dizerem especficos. H nesta relao um forte jogo de poder que
determina quem concede ou no ao outro o direito de dizer-se.
Os povos indgenas no Brasil tm sido chamados genericamente de ndios,
apesar da diversidade lingstica e social encontrada de Norte a Sul do nosso pas. Por parte
da sociedade envolvente, h uma tendncia ao tratamento romntico ou, no plo oposto,
diabolizao destes povos e de seus costumes. Pacheco de Oliveira (1995, p.78) identifica que
A imagem tpica, expressa por pintores, ilustradores, artistas plsticos,desenhos infantis e chargistas, sempre de um indivduo nu, que apenas l no grande livro da natureza, que se desloca livremente pela flores e que apenas carrega consigo (ou exibe em seu corpo) marcas de uma cultura extica e rudimentar, que remete origem da histria da humanidade.
Tanto a tendncia ao romantismo quanto diabolizao da imagem dos povos
indgenas so perigosas por que mitificam, afastam o indgena de sua humanidade, negando a
relao histrica com os no-indgenas e destes com sua prpria origem tnica.
Concordando com a importncia do contexto na construo da identidade,
apresentaremos a seguir um rpido panorama da cena do encontro entre o povo Kanamari e os
no-indgenas no Vale do Juru.
2.3 A Vrzea Amaznica, cenrio de encontros e desencantos.
Fotografia 2: Coleta de cip na vrzea. Igarap Degredo. 1992
Fonte: Marcos Weslley.
25
Em meados do sculo XVI a vrzea amaznica surpreendera os primeiros
viajantes com uma populao numerosa, internamente estratificada e assentada em povoados
extensos, produzindo excedentes que alimentavam um significativo comrcio inter-tribal de
produtos primrios e manufaturados.
Em um resumo intitulado O futuro da questo indgena a antroploga Manuela
Carneiro da Cunha, afirma que, no sculo XVI, [...] quanto densidade demogrfica da
vrzea amaznica, era comparvel a da pennsula ibrica com 14,6 habitantes por km [...]
contra 17 habitantes por km em Espanha e Portugal. (CARNEIRO DA CUNHA, 1994, p.
124)6.
Segundo Meggers (1987, p. 120), o viajante ingls, Sir Walter Raleigh relatou
sua incurso pela vrzea amaznica e observou como esta regio era saudvel, no sculo XVI:
[...] quanto salubridade, bons ares, prazer e riquezas, acho que no h comparao com
qualquer outra regio, quer a Leste, quer a Oeste.
Infelizmente esta plenitude entrou em colapso aps o primeiro sculo de
contato com os colonizadores, causando a desarticulao entre os povos indgenas da regio e
a desestruturao da complexa organizao social existente.
Mais especificamente na vrzea do Rio Juru, afluente do Rio Solimes,
tributrio do Rio Amazonas, ocorreu uma significativa baixa na populao indgena, j no
sculo XIX, quando teve incio o primeiro ciclo para explorao dos recursos florestais.
Na mesma publicao, Meggers (1987, p. 210), esclarece que o
[...] aumento da imigrao durante o sculo XVII ps fim a esta situao abenoada. Uma epidemia de varola se alastrou pelo Baixo Amazonas, em 1621, e outra devastou a parte superior do rio, em 1651. Como os indgenas no tinham imunidade, aldeias inteiras foram destrudas. Para agravar a situao, a entrada de escravos africanos introduziu a malria e a febre amarela.
Abel Kana afirma que no rio Juru,7 as relaes estabelecidas na regio se
deram com muita velocidade e ferocidade. Afirma ainda, que [...] foram dizimadas naes
indgenas e, com elas modelos de micro-sistemas sociais que apontavam para diferentes
formas do homem se relacionar com a natureza, no apenas bem, mas fartamente no seu
habitat natural.
Alguns produtos da floresta comearam a ser valorizados, como por exemplo:
o ltex da seringa, do caucho e da bauxita. A arregimentao dos soldados da borracha,
realizado pelo governo brasileiro, propiciou a importao de escravos e de pessoas do
6 O futuro da questo indgena. Disponvel em . Acesso em: 20 fev. 2007. 7Depoimento concedido em junho de 1999. Salvador, Bahia.
26
Nordeste brasileiro repovoou a regio, gerando problemas de toda sorte para os povos nativos
e para os novos habitantes que precisaram se acomodar s situaes da derivadas.
Nas narrativas dos ndios Kanamari, a histria destes primeiros contatos e seus
desdobramentos tem rostos, nomes e locais bem delimitados. At os jovens sabem que [...]
todo o Rio Juru era do Kanamari: da foz at Cruzeiro do Sul. Morava tudo na beira mesmo,
depois o branco foi ficando mais valente e Kanamari foi morar nas cabeceiras dos igaraps,
assegura Djoreom Alfredinho8. A rea aqui descrita compreende as imediaes do municpio
de Tef, no estado do Amazonas e de Cruzeiro do Sul no estado do Acre.
At a metade do sculo XIX a regio do Mdio Juru e o povo Kanamari
permaneceram isoladas. Foi aps essa data que as frentes extrativistas, sobretudo de drogas do
serto e de ltex, comearam a realizar incurses peridicas para explorao dos recursos da
mata. At ento no se constituram significativos ncleos populacionais no-indgenas, pois
os exploradores dispersavam-se na mata de acordo com a existncia dos recursos naturais.
No auge dos dois ciclos da borracha, entre meados do sculo XIX e meados do
sculo XX, o seringal So Felipe foi considerado o maior centro de processamento e
distribuio de ltex de toda a Calha Sul do Amazonas. Posteriormente So Felipe foi
rebatizado com o nome de Eirunep9.
Para se instalar na regio, os seringalistas, a partir do destacamento dos
soldados da borracha, especialmente treinados para este fim, promoviam as chamadas
correrias, as quais consistiam em incurses na mata para capturar povos nativos para o
trabalho escravo ou para simplesmente extermin-los. As ordens eram para limpar a regio,
desta forma apossavam-se de grandes extenses territoriais - os seringais.
Os Kanamari moradores da Aldeia Aliana, prximo ao municpio de
Itamarati, relataram que aquela aldeia era uma antiga morada do povo Kaxinawa e que muitos
foram mortos pela exploso de um artefato, de uma bomba jogada por um avio militar. At o
ano de 1996 era possvel encontrar no local um buraco de aproximadamente trinta metros de
dimetro e estilhaos de cermica espalhados por todos os lados.
Os ancies Kanamari relatam que as mulheres e crianas sobreviventes dos
ataques s aldeias eram levadas ao Juru e vendidas como animais. O depoimento de um
velho seringueiro do Juru ao indigenista Egydio Schwade10, em 1987, destaca a ferocidade
8 Ancio Kanamari do Igarap Trs Bocas. 9 A palavra de origem Kulina. uma referncia aos ovos de baratas existentes, poca do contato. 10 Egydio Schwade foi o primeiro a trilhar cerrados e floretas na identificao de povos indgenas.
27
desta relao: Cada maloca, em cada cubixana tinha uma s sada. A os homens atiravam
para dentro desta porta e os ndios eram obrigados a sair um a um pela sada.
Diversos relatos informam que o sistema de aviamento empregado nos
seringais para abastecer os trabalhadores seringueiros, consistia num tipo de relao comercial
no qual, os patres (seringalistas), por intermdio de seus gerentes, entregavam mercadorias
as seringueiros em troca da produo de borracha. O barraco o local onde se d esse tipo
de escambo - um mercado rural onde o ltex e outros produtos da fauna e da flora, alm de
servios domsticos eram trocados por ferramentas para o corte da seringa, alimentos
industrializados, munio pra armas e tecidos para roupas e redes.
Para as pessoas trazidas de fora da regio, com seus costumes e meio
ambientes to diferentes, a relao com o barraco era o meio que se tinha de manter o elo
com o universo social e lingstico conhecido, j que as famlias trazidas eram dispostas em
colocaes distantes umas das outras. Alm do que, o ritmo exigido para manter as metas de
produo impossibilitava as visitas entre os moradores.
O histrico das relaes de produo em todo Brasil propiciou as
caractersticas desta investida na vrzea Amaznica. Os ciclos de caf, do ouro, do algodo,
da cana de acar e outros produtos, experimentados principalmente nas regies Sudeste e
Nordeste do Brasil, marcaram profundamente as relaes entre proprietrios dos meios de
produo e os despossudos que, at os nossos dias, disponibilizam sua mo-de-obra.
Os seringalistas devido ao modo rigoroso de tratar seus subordinados eram
chamados de coronis de barranco. Sua lei era o nico poder institudo, a nica regra
existente na regio. Submetidos a uma contabilidade perversa as dvidas dos seringueiros
avolumavam-se ano a ano. Pois, os preos praticados nos barraces garantiam a eterna
dependncia do trabalhador.
Segundo Djoreom Alfredinho, no tinha jeito do seringueiro ter saldo, era
sempre devedor do patro. Ainda segundo ele, em vrios seringais, at recentemente, havia o
pelourinho onde eram castigados os trabalhadores que no conseguiam pagar as supostas
dvidas. Os argumentos para o no pagamento era em muitos casos o acometimento de
doenas, pois a malria e a febre amarela abateram muitos trabalhadores ao longo dos anos.
Porm, ainda assim os castigos eram aplicados pelos capatazes.
No ano de 1995 ainda eram encontradas pessoas marcadas a ferro, uma forma
de demonstrar a quem serviam. Tanto os ndios quanto os ribeirinhos recordam e nominam os
seringueiros que tentaram fugir e foram tocaiados, surrados e ou mortos. Da mesma forma,
28
indicam tambm os nomes dos seringalistas escravagistas e de seus capatazes, muitos deles
ainda vivos.
Com a quebra da indstria do ltex em nvel nacional, toda a regio enfrentou
seguidas crises econmicas, culminando com o fechamento de barraces e de fbricas. Os
barraces foram substitudos pelos regates. O regato um mercador de rios e igaraps que
veio para suprir a demanda deixada pelos barraces. Eles se movimentam em embarcaes
que abastecem os moradores da rea rural. Transportam e comercializam toda sorte de
mercadorias, para trocar pelos produtos das florestas.
A quebra do ciclo da borracha determinou o arrefecimento do sistema de
servido, mas assim como ocorria com os seringalistas, os atuais regates mantm uma forte
influncia sobre seus fregueses. So os verdadeiros barraces ambulantes. Da mesma forma
que ocorria com os antigos seringalistas, atualmente os ndios e ribeirinhos envolvem-se em
impagveis dvidas com estes comerciantes.
Indgenas e ribeirinhos se referem a esses comerciantes, assim aos seringalistas
e capatazes, como patres. Esta denominao e a sua postura frente a estes se estende aos
comerciantes da sede municipal assim como aos funcionrios pblicos das reas de
assistncia. Pois, de acordo com Gohn (1997, p. 225-226)
O passado colonial-imperial, a subseqente repblica dos coronis e depois os lderes populistas levaram ao desenvolvimento de uma cultura poltica na sociedade latino-americana onde se observa uma naturalizao das relaes sociais entre os cidados (ou no-cidados) e o Estado, ou seja, relao de dominao expressa em termos de clientelismo e paternalismo passou a ser a norma geral, vista como natural pela prpria populao.
Com as sucessivas falncias dos patres, os seringueiros ficaram cada vez
mais desprovidos de qualquer meio de suprir suas necessidades e foram se achegando para
Eirunep e outros municpios vizinhos ou at mesmo para Manaus. Grandes fluxos
migratrios determinaram o inchamento dos centros urbanos no Amazonas.
De modo geral, os municpios no tinham estrutura fsica para absorver o
contingente populacional que aflura para as sedes; tampouco havia o entendimento de que a
populao rural devesse ter qualquer tipo de assistncia por parte do Estado.
O abandono dos poderes pblicos aos muncipes, rurais ou urbanos, traduz-se
na inexistncia de infra-estrutura bsica, seja na assistncia mdica ou educacional. A falta de
29
uma poltica de incentivo produo e ao trabalhador rural, fragiliza as comunidades e
submete-as s mais variadas formas de explorao11.
Esta situao de abandono empurra os indgenas e demais ribeirinhos para
prticas econmicas que assegurem o atendimento imediato de suas necessidades. Tais
prticas na maioria das vezes desrespeitam as leis ambientais, tais como: explorao de
madeira, comrcio de quelnios e peixe em larga escala, comprometendo o meio ambiente e
conseqentemente sua subsistncia futura.
Sendo os territrios indgenas os que mais conservam as florestas nativas e os
recursos nela existentes, freqentemente h tentativas de invases de exploradores. Em
algumas situaes h a conivncia de alguns indgenas, em busca de supostas vantagens.
O Municpio de Eirunep o ncleo urbano mais prximo dos Kanamari do
Mdio Rio Juru. Com altitude de 124m, sua populao em 1998 era de aproximadamente 30
mil habitantes. Ocupa uma rea de 15.946 km. Sua localizao e caractersticas geogrficas
dificultam o deslocamento de seus habitantes at os centros urbanos maiores. A cidade de Rio
Branco, no estado do Acre a capital mais prxima do municpio, entretanto o acesso s pode
ser feito por via area. As empresas areas regionais de mdio porte no conseguem manter a
regularidade dos vos na regio, devido aos altos custos e freqentemente necessrio
recorrer aos pequenos avies particulares para transportar cargas e passageiros12.
Pela via fluvial possvel seguir at o municpio de Cruzeiro do Sul, pelo Rio
Juru ou pelo Rio Envira. O percurso demora em torno de dez dias. No h regularidade no
transporte fluvial de passageiros. Os que pretendem fazer este percurso arriscam-se em
pequenas embarcaes particulares ou de carga ou ainda nas balsas que transportam toda
espcie de mercadorias e equipamentos.
Manaus, capital do Estado do Amazonas, localiza-se h 400 quilmetros de
Eirunep por linha area. Esse percurso, descendo o rio pode ser realizado tambm por via
fluvial, o que demora entre doze a vinte dias, dependendo nvel das guas e as condies de
navegabilidade do rio.
11 No texto Os Estabelecidos e os Outsiders, Norbert Elias (2000), afirma que um dos modos de minimizar o impacto desta relao entre desiguais a posse de uma tradio cultural comum, prpria, partilhada. Sem tal proteo, indivduos estigmatizados tm resultados negativos intelectuais e afetivos. 12 Em 1992, a minha primeira viagem para Eirunep se deu num desses avies monomotores. Fui acomodada entre caixas de frango congelado, tomate e cebola...
30
2.4 Contexto especfico do estudo
Aqui faremos um apanhado de algumas caractersticas prprias do povo
Kanamari. A maioria das informaes foi obtida a partir de nossa observao e dos prprios
ndios. Nos mais variados relatos, os oradores resvalam da histria para o mito e vive-versa,
dando ao interlocutor uma pista de quo emaranhadas so as diversas dimenses da vida
Kanamari.
Nos muitos relatos dos mitos Kanamari ou quaisquer histrias, o ouvinte tem
dificuldade de identificar quem so os personagens humanos, os animais ou as entidades que
intermedeiam a relao entre estas partes. Os dilogos so narrados detalhadamente, como se
todos estivessem em p de igualdade, devido relao ancestral do homem/Kanamari com o
animal/bara. Geralmente os relatos so acompanhados de gestos e encenaes, usando de
todos os sons que possam aproximar a assistncia da realidade. A platia participa da
encenao com muita ateno, como se fizesse parte do cenrio narrado.
Traremos alguns dos personagens e dos ritos que permeiam suas atividades
econmicas, espirituais, assim como as brincadeiras. Esta descrio se faz na tentativa de
explicitar a fora de suas instituies tradicionais.
O Rio Juru, desde sua foz at o municpio de Cruzeiro do Sul, no estado do
Acre era territrio exclusivo dos Djapa13. - os grupos formadores do tradicional grupo
Tkna14. Todos os Djapas so reconhecidos como falantes da famlia lingstica Katukina
(LABIAK, 1997).
Enquanto grupo tnico diferenciado, os Djapa constituem uma organizao
poltica que aciona um pertencimento a uma origem e uma raiz comum para se relacionar
entre os grupos familiares Djapa, para se relacionar com os outros grupos tnicos e ainda com
os no-ndios.
Referem-se ao ser mitolgico Tamakore como agente da criao de todos os
seres humanos. Tamakore criou Kerak a partir de uma fruta, coquinho do mato e fez todas as
espcies de gente do mundo a partir dos frutos de palmeiras; Kerak o ajudou neste trabalho.
13 Muitos fonemas na lngua Kanamari no encontram correspondente na lngua portuguesa. Adotamos neste trabalho a ortografia proposta pela Equipe da OPAN, ao final dos anos 1980. 14 Pelo observado nestes anos, o termo Tkna tanto se refere a uma pessoa como ao coletivo Djapa, quanto aos indgenas em geral e aos seres humanos como um todo.
31
Os Djapa foram criados do coco jaci e Tamakore ia deixando as sementes num
paneiro ao longo do Juru, desde a foz. Ao percorrer o caminho de volta, Tamakore e Kerak
j iam encontrando as pessoas feitas. Muita gente mesmo. Nas palavras de Djanom Benedito:
[...] quando Tamakore criou ns, deixou cada Djapa num canto, espalhado [...] tudo igual,
mas diferente. Ns entende[emos] a palavra, mas diferente.
Antigamente, no perodo pr-contato, os Djapa moravam guardando certa
distncia entre si. Segundo Reesink (1993), estes grupos tinham o ideal de autarquia na
relao com os outros Djapas, no que se refere organizao, economia, poltica e laos
matrimoniais.
Mas o que um Djapa? 'Djapa ndio [...] nome de ndio [...] tem qualidade de Djapa [...] Entendi que se tratava de uma unidade suficientemente abrangente para
abarcar todos os que assim se autodenominam, e o fazem porque falam, grosso modo, a mesma lngua e compartilham um mesmo horizonte ou tradio cultural. (CARVALHO, 1998, p. 80).
Entre 1910 e 1926, o padre holands Constant Tastevin recolheu e registrou
informaes etnogrficas, bem como localizao de 24 grupos Djapa, habitantes dos Rios
Juru, Tarauac, Xeru, Javari e Jandiatuba e seus afluentes (Carvalho, 1998). Dentre estes
grupos que se mantiveram isolados esto os Tsomhwk Djapa e Warekaman Djapa - ambos
com pouco contato com no-ndios, vivem nas cabeceiras do Rio Juta e os Peda Djapa e Om
Djapa, que vivem no Rio Bi, afluente do Rio Juta, so conhecidos como Katukina.
A nominao destes grupos Djapa sugere que a convivncia entre si no ser
de todo pacfica, pois, afirmam que os componentes dos grupos tm caractersticas fsicas e
comportamentais associadas aos animais que lhes emprestaram os nomes, pois referem-se a
aves, mamferos e anfbios.
Muitos grupos Djapa, localizados no perodo do pr-contato desapareceram.
H na atualidade, cerca de vinte diferentes Djapas, vivendo entre os Rios Itucum, Xeru,
Juta, Itacoa (na Terra Indgena Vale do Javari) e o Juru, nos igaraps Trs Bocas, Santa
Rita, Mamori, Restaurao, Matrinch e So Vicente.
Alguns dos que restaram estabeleceram laos matrimonias que determinaram
uma nova configurao e foram denominados pelos no ndios como grupo Kanamari15. Os
Kanamari citam como remanescentes os Djapa: Bem, Were, Potsohwk, Wadjo Teknem e
Wadjo Paranem, Kadjekere.16
15 A partir deste momento nos referiremos aos Djapa do ps-contato como Kanamari. 16 Traduzem-se como mutum, porquinho queixada, jap, macacos preto, branco e macaco de cheiro.
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Os saldos da reorganizao dos grupos no perodo ps-contato, nem sempre
foram prazerosos, como deixa transparecer Hedje Nomia: [...] pudera, juntaram Djapa do
cu com o da gua e da mata. No d certo, melhor cada um morando no seu canto. No
entanto, morar cada um no seu canto, guardando certa distncia apenas qualifica a pretendida
relao de trocas intensas que sustentam as relaes cosmolgicas dos Kanamari.
Apesar de terem os Djapa se mesclado entre si, os Kanamari afirmam que o
ideal de autonomia permanece, assim como permanece a idia de interrelao dos grupos
Djapa de outrora. A definio de donos de igaraps, muitas vezes utilizadas pelos Kanamari,
parece ter relao com esta reorganizao social. Segundo Carvalho (1998, p. 95), ao dizerem
que um igarap de um determinado Djapa [...] sabe-se que a informao apenas retrica e
que no mximo possvel reivindicar a composio predominante de Djapa X.
Entre as aldeias e igaraps, muitas vezes uma teia de parentesco cria laos mais
ou menos fortes; em geral h grande circulao e visitas mtuas, mas cada Kanamari tendo
uma rea restrita de circulao determinada pela residncia de parentes prximos: irmo, me
e cunhado. Dificilmente vo andar por aldeias onde no tenham nenhum lao de parentesco.
Atualmente os ndios Kanamari do Mdio Rio Juru moram em casas no estilo
palafitas, habitaes sobre estacas com assoalho elevado a cerca de um metro em relao ao
solo, a fim de dar maior segurana em relao s guas e aos animais.
A lngua Kanamari difere lexicalmente e prosodicamente de acordo com a
regio onde se situam as aldeias, verificam-se diferenas na pronncia de algumas palavras.
De acordo com Maher (1996, p. 171).
Os estudos sociolingsticos tm, reiteradamente, alertado para o fato de que pequenas diferenas dialetais podem ser simblicas de fronteiras identificatrias importantes para um subgrupo: variedades de uma mesma lngua so afinal, diferenas que comunicam diferenas[...].
H tambm variaes na preparao de algumas iguarias tradicionais. Ser
fcil escutar de algum que sua aldeia tem roados maiores e mais variados, assim como a
koya de sua aldeia mais limpa e saborosa, ressaltando ainda que sua aldeia mais pacfica e
jamais jogar feitio, pois os pajs so apenas para curar as pessoas doentes.
Os ndios Kulina17, atualmente so os vizinhos mais prximos dos Kanamari.
Vieram do Rio Purus e chegaram ao Rio Juru para fugir das conhecidas correrias que eram
promovidas pelas frentes de explorao da seringa.
17 O povo Kulina auto-denomina-se Madija e assemelha-se ao povo Kanamari, no que se refere base nas bebidas rituais. Assemelham-se nas estruturas familiares extensas e so nominados com elementos da natureza.
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H muitos relatos dos Kanamari que asseguram que os Kaxinawa teriam vindo
do Rio Solimes pelas mesmas razes e foram subindo o Juru e logo guerreando com os
Djapa. Segundo Carvalho (1998, p. 82) Em quase todas as verses do mito de origem dos
Djapa, h referncia aos Kulina e aos Kaxinawa, como a demonstrar que a dialtica entre
identidade e alteridade, interioridade e exterioridade constitutiva da sua organizao social.
Em seguida os Ashaninka, conhecido como Kampa, que perambulavam pela
regio, se aliaram aos Djapa e os Kulina para abaterem os invasores Kaxinawa. Panaw
Lencio, nas rodadas de histria e mitos falava que os Kampa eram famosos por suas tcnicas
sofisticadas na arte da guerra. Fala ainda de vrios instrumentos usados nas batalhas, como o
escudo de couro de anta e de casco de tartaruga, flechas de taquara que atingiam a outra
margem do Juru, percorrendo, segundo o relato, mais de 100 metros de distncia.
Uma verso do mito18: da criao sugere que os Kanamari incorporaram os
no-ndios na relao dos seres humanos criados por Tamakore. Apesar de terem sido criados
do mesmo material - um coquinho -, os brancos teriam sido feitos de uma variedade diferente,
o que determinaria a sua cor de pele, estatura, etc. Contam tambm que os caris19 saberiam
muito mais coisas que os ndios porque Tamakore teria passado mais tempo entre eles e no
com os indgenas.
Vrias narrativas ouvidas cotidianamente deixam transparecer que h uma
avaliao mais positiva dos atributos destes em relao aos indgenas. Sobre esse assunto
Labiak fez o seguinte registro:
A desceram o rio, e do caroo do kotse [uma semente comprida e branca], Tamakore fez os caris. Tamakore e Kerak to l at hoje. Ficaram l com os americanos, que sabem mais ainda. O avio, o motor, a espingarda, tudo foi Tamakore que fez, que ensinou o cari fazer. Tamakore ficou mais tempo pra l ensinando, por isso que os caris sabem tudo (LABIAK, 1997, p. 23)
Alm dos fatos relatados no pargrafo anterior, Djawa Lourival, residente do
Igarap Trs Bocas e um profundo conhecedor de msicas e histrias Kanamari, contou que:
Naquele tempo [tempo do contato] tinha um chefe Kanamari que empatava a entrada dos brancos no Juru, no queria ser amigo, nem queria comida, nem presentes. Os Kanamari, de cada Djapa, traziam algodo de todo o Rio Juru para fazer troca por ferramenta e outras coisinhas. Depois que ele morreu a rapaziada resolveu experimentar ficar amigo, e a ningum mais segurou.
Este relato d-nos uma pista de que a aproximao deste povo com outros
tanto desejada quanto cercada de cuidados. A natureza Kanamari os impele a esta relao de
interdependncia constante. O que se observa que a identidade construda estabelecida a 18 Sobre os mitos Kanamari veja Imago Mundi Kanamari. REESINK, Edwin. UFRJ. 1993. 19 Termo regional que designa os no-ndios, ou os brancos.
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partir de vnculos que so firmados em determinados momentos histricos e que estas sero
reconstrudas diante de outros contextos, com outros sujeitos ou com os mesmos tambm
modificados por outras experincias.
A existncia do outro, seja outro Djapa, seja outra etnia, seja no-ndio, parece
demarcar a prpria essncia deste povo. De um modo geral, entre os Kanamari h uma
disposio para as relaes com os no-ndios, o que admite relaes comerciais, de namoro e
at casamentos. Para Maher, (1996, p. 157)
[...] na constituio da identidade do ndio, o branco no , necessariamente, um outro a quem o ndio quer sempre se opor. A depender das condies scio-histricas e do posicionamento ideolgico do indivduo, o ndio pode desejar estar em consonncia com o cari.
At hoje o comportamento de vrios indgenas sobre a relao com os
seringueiros de constantes movimentos de aproximao e afastamento20. No ano de 1998
havia cinco pessoas, sendo duas mulheres e trs homens Kanamari casados com no-
indgenas. Constituram famlia e continuaram na aldeia. Muitos verbalizam que no uma
situao ideal, mas h vantagens, pois que evita a evaso do parente e imaginam que facilita a
aceitao dos indgenas pelos brancos.
O povo Kanamari tem uma reconhecida diplomacia na resoluo das contendas
com a sociedade envolvente, mostra-se muito ciente de sua histria. Isto pode ser observado
na carta aqui apresentada a qual foi elaborada durante a Assemblia Kanamari realizada no
ano de 1997. Nesta ocasio os ancies presentes decidiram reagir a uma acusao de um
vereador de Eirunep de que alguns moradores teriam sido mortos pelos Kanamari na dcada
de 1970. Os idosos rememoraram os fatos passados e pediram que os mais novos (que se
encontravam em processo de escolarizao), escrevessem uma carta.
A carta se destinava Assemblia Legislativa do Amazonas e ao jornal que
publicou a denncia do vereador. Foi um intenso momento de reflexo elaborao coletiva
sobre o processo histrico de ocupao Kanamari na regio e da chegada dos no indgenas e
do carter da relao que se foi estabelecendo. A carta foi recebida pela Assemblia
Legislativa e publicada no referido jornal21 de circulao em todo o rio Juru. Dizia a carta:
Indgenas rebatem as acusaes feitas pelo vereador Paulo George.
O Povo Kanamari est mandando esta carta para os deputados. O vereador Paulo George escreveu uma mentira e agora vamos contar a verdade.
20 Os primeiros contatos devem ter sido impactantes para ndios e seringueiros, mas a receptividade dos primeiros e a necessidade de relao humana dos segundos podem ter possibilitado outras formas de relao. 21 O Jornal O Povo do Juru tinha, na poca descrita, circulao nos sete municpios que compe o Vale do Juru: Eirunep, Carauari, Itamarati, Envira, Guajar, Juru e Ipixuna.
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Existiu Kanamari, faz muitos anos. Onde era a cidade, antes era aldeia Kanamari. Os brancos invadiram e mataram os indgenas. Ns sofremos muito nas mos dos brancos. Os parentes que sobraram, fugiram para outros rios. Ns no nos acostumamos nos outros rios e voltamos. O vereador Paulo George no tem documento dessas terras. Ns temos documento: cemitrio, aguidar velho. por isso que ns lembramos, voltamos e estamos vivendo aqui. Ns viemos com nossos ps. Ningum foi buscar. Nem CIMI, nem OPAN, nem FUNAI, nem UNI. O vereador diz que Kanamari matou os brancos com gua envenenada. Isso no verdade. A verdade que foram as madeireiras que contaminaram os igaraps com a derrubada de Aacu, Samama, Gameleira e outros tipos de rvores venenosas22.
Esta carta mostra que a fora e a vitalidade do povo Kanamari tm garantido a
atualizao de suas estratgias para enfrentar os revezes de sua histria. Os dados de censo
levantados revelam um crescimento populacional de aproximadamente 64%, nos Kanamari do
Rio Juru entre os anos de 1984 e 199723. Ao final de 1998 havia 820 pessoas, excetuando os
moradores dos Rios Xeru e Juta.
Entre os anos de 1995 e 1998 os Kanamari do Mdio Rio Juru habitavam em
um nmero aproximado de 10 aldeias. A grande maioria das aldeias tem um nmero mdio de
at 50 pessoas e, de um modo geral, se constituem pela reunio de dois casais de idosos cujos
filhos, idealmente, se casam entre si24. Quando o nmero de habitantes excedido um
indicativo de que novos chefes de famlia surgiro ento a tendncia a disperso, criando-se
novos ncleos. Pode haver a, dois determinantes desta situao: um de cunho poltico e outro
de cunho econmico, para garantir a sustentabilidade do grupo.
A estratgia de domnio do territrio Kanamari est fundada na ocupao
sazonal de regies disponibilizadoras de alimentos (agricultura de subsistncia, caa, pesca e
coleta) e de outros recursos naturais necessrios para as atividades cotidianas. comum ter
muito bem definidos os espaos de coleta pesca e roado.
As residncias atuais em algumas aldeias chegam a comportar quatro famlias
nucleares, sendo um casal de idosos e as filhas casadas. Nestas situaes, a cozinha, ou
melhor, o fogo coletivo e a matriarca lidera os movimentos domsticos. Parecem aludir s
habitaes coletivas do pr-contato, onde todo o Djapa habitava uma nica maloca, chamada
hakneahnem ou djaneohak.
A organizao social Kanamari est intimamente relacionada aos mitos
fundadores, ao universo simblico e a outras instituies sociais que, baseados num sistema
22 Esta verso encontra-se publicada no livro Histrias de Kanamari, escritas no 2 Curso de Formao de Educadores. Projeto Kanamari/UNESCO/MEC. 1997. 23 Dado adquirido a partir de um estudo realizado com os participantes do II Curso de Formao para os Educadores Kanamari. 1997. Estes dados foram atualizados nas visitas posteriores junto aos Agentes Indgenas de Sade de cada aldeia no ano posterior 24 Para maiores informaes sobre sistema de parentesco Kanamari veja: Reesink, 1993 e Carvalho, 1998.
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de reciprocidade configuram o seu cotidiano. H uma forte conexo entre pessoa, grupo e
natureza, instncias indissociveis. As relaes a estabelecidas so de ordem poltica e
econmica mediada pelo seres mticos, vivenciados, materializados, nos rituais cotidianos.
importante localizar o leitor quanto aos aspectos fundamentais do universo
mtico Kanamari, devido dinmica de toda a vida deste grupo ser determinada pelas suas
concepes e relaes com o plano metafsico. Da mesma forma fundamental considerar a
dinmica da relao entre os Kanamari e a sociedade envolvente para compreender as
escolhas polticas e metodolgicas no processo constitutivo das iniciativas educacionais ali
ocorridas.
2.4.1 Djohko Universo Mtico
O paj - tkna-bau para a sociedade Kanamari o principal articulador das
suas variadas dimenses de existncia. Ao paj25 cabe o manuseio, a veiculao das energias
materializveis. Os Kanamari entendem que todos os acontecimentos de sua vida so
dinamizados pelo djohko - ou pedras, como eles prprios chamam na linguagem regional.
Estas energias so materializveis em pedras, confeccionadas da resina que
expelida por algumas rvores. medida que a resina vai coagulando, o paj vai-lhe dando a
forma e o tamanho desejados, impregnando-a da inteno, utilizando para tanto essncias,
plos de animais ou outra parte, cabelos, etc. Narua Joo Bolso nos alertou que o djohko
misturado perigoso.
Para voar, para ter vises, para curar, para matar, o paj introduz estas pedras
no seu corpo, abaixo das costelas, ou ao redor do umbigo. Quando envia as pedras a pessoas
que no foram preparadas para receb-las, estas passaro a ter efeitos diversos. So variadas
as formas de ao e de apresentao do djohko. Pode ser o espectro do paj em visita a outros
locais e outras dimenses/esferas da existncia; pode anunciar a determinao da fertilidade
ou seu contrrio; pode ser a energia da cura ou causadora de qualquer infortnio; pode ainda
determinar a destreza e a sorte de um caador, agricultor, pescador ou outros ou torn-lo
panema 26.
25 Em sua tese Carvalho (1998) aborda a preponderncia do Xamanismo na estrutura social Kanamari 26 Termo regional para designar a incapacidade de algum executar com xito sua funo.
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No exerccio de sua funo o paj transita entre o cu (kodohnake), a terra
(etsonem) e a aldeia, buscando aliados, identificando os inimigos. Os pajs neste transe
freqentemente se transfiguram em animais ou objetos. Segundo muitos relatos obtidos entre
1995 e 1998, os pajs mais fortes so aqueles que se transfiguram em onas e serpentes. Os
animais podem tambm ser apenas mensageiros dos pajs, assim sendo reconhecidos apenas
por outro paj forte pelo seu comportamento. Certa vez, Heyo Alfredo27 relatou que um paj,
j formado v bau he e identifica sua procedncia e constituio.
No caso de objetos, durante as caminhadas pelas trilhas os ndios Kanamari,
ficam atentos a gravetos ou outros sinais encontrados e sob suspeita de serem bau-he. O bau-
he pode ser deflagrador de ataques xamnicos, espritos espies ou mensageiros28.
O tabaco e o rap so essenciais para que o paj possa manter consigo as
energias de que necessita para o exerccio de sua funo. O paj fuma folhas de tabaco
soprando sua fumaa sobre o doente, exortando a energia patognica. O rap um preparo de
folha de tabaco torrada e moda misturada a casca de rvore de dap - espcie de cupuau
selvagem. O rap inalado ou simplesmente depositado entre o lbio inferior e a gengiva e
extensivo a homens e mulheres. O uso contnuo entorpece o usurio e agua seus sentidos.
O momento da cura precedido de especulaes a respeito dos possveis
ataques de agentes xamnicos, uma vez que para os Kanamari todos os males fsicos e
indisposies emocionais so conseqncias de uma intencionalidade externa. Quase sempre
as sesses de cura se do em ambiente pblico, terreiro da aldeia ou sala das casas e
dependendo da gravidade do caso, entre as conversas, afazeres cotidianos.
Localizando no corpo da pessoa a energia causadora do desconforto, o paj
pe-se a sugar o local a fim de extra-la, materializando esta energia malfica em pedras.
Depois de sug-las o paj as expele atravs de regurgito, vmito; logo coloca estas pedras em
seu prprio corpo, o que vem a lhe acrescentar poder. Se for um paj forte assegura-se de sua
procedncia, que ser publicamente revelada dependendo das implicaes polticas. Se o paj
identificar que o ataque procedeu de algum do grupo local, ainda mais sensvel a questo,
pois a eminente possibilidade de conflitos internos.
Num estado de conscincia intensificada o paj percebe a energia como um
fluxo vibratrio; segundo o paj Bastio, o djohko pulsa quando se encontra no corpo
27 Paj idoso da Aldeia Paraso. Relato obtido em junho de 1995. 28 Certa vez, no caminho do Rio Juta, um paj falou junto a uma semente (segundo ele, prpria para este fim) o local exato onde seu grupo estava. Orientou para que os ndios que se encontravam na aldeia preparassem a recepo. Em seguida lanou a semente no rumo da aldeia, reforando a mensagem e o grupo reiterava. O alvoroo foi geral, pois os demais davam tambm seus recados em meio s gargalhadas. Depois, na aldeia, os pajs afirmaram que providenciaram comida e Koya por que haviam sonhado com o grupo que estava na trilha.
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enfermo, sensao sentida apenas pelo paj. Ele relata que o paj em fase de formao,
quando no segue o resguardo previsto, sente choque que nem de um poraqu29.
O tempo de formao de um Kanamari para o seu trnsito no universo
xamnico varia de acordo com a idade de sua iniciao. Havia, entre 1995 e 1998, casos de
indivduos na tenra adolescncia que j realizavam curas simples e dois jovens (15 e 17 anos)
eram j respeitados pelos seus feitos complexos, tais como botar e tirar mah - pedra da
fertilidade ou realizar curas difceis.
Isto indica a insero destes pajs ainda quando crianas, pois a formao
requer uma sistemtica de procedimentos seqenciais, transformando em viso seus estmulos
sensoriais. Quando iniciado na fase adulta o indivduo sente ainda mais o peso das provas. A
esta altura da vida a maioria das pessoas j constituiu famlia e fica difcil fugir dos inmeros
compromissos demandados pelo matrimnio. comum a desistncia dos candidatos, pois
precisam dedicar-se a longas permanncias no etsonem - mata fechada, local de encontros
com os seres imateriais, isolado da convivncia em grupo.
Espera-se do candidato atitudes comedidas; participar em festas e eventos
coletivos de descontrao devem ser evitados. Diminui-se a ingesto de caiuma - Koya30 e
so vetados os contatos sexuais. Atividades pesadas: caa, agricultura, construo de casas,
so igualmente desaconselhados, sob pena de perda das pedras que vo sendo introduzidas
gradualmente na pessoa em formao. Isto se d de acordo com as condies de equilbrio
emocional ao lidarem com os fatos conflituosos do cotidiano, segundo muitos relatos os pajs
no podem ser muito valentes e a pessoa no pode ter raiva para ser Tkna bau.
H um esforo coletivo para que se formem pajs fortes, a fim de que se
mantenha a maior invulnerabilidade do grupo local. Sem um paj forte a aldeia fica a merc
dos ataques xamnicos reais e possveis. Dependendo do tamanho da aldeia e do nmero de
grupos familiares existentes, h um paj e alguns aprendizes31.
O rame, Ayawaska ou cip, como regionalmente conhecido, tambm
utilizado pelos Kanamari como porta de acesso a esta dimenso metafsica. Originrio dos
grupos tnicos mais ocidentalmente localizados, este ch foi inserido no acervo de rituais de
que se ocupam os Kanamari. O marenawa o mestre, o dono do rame. A ele cabe a coleta 29 Electrophoridae, uma espcie de enguia. 30 Caiuma Koya bebida feita do sumo da macaxeira (mandioca mansa), podendo ser fermentada ou no. Os Kanamari costumam consumi-la diariamente, dinamizando vrias atividades cotidianas; tambm tem uso em rituais mais elaborados. 31 Dos quase vinte e cinco (25) pajs em formao observados entre os anos de 1995 e 1998 os Kanamari, havia quatro (4) mulheres adolescentes; no conhecemos sequer uma mulher adulta na funo de paj. Dentre os outros vinte e um (21), apenas dois (2) eram adultos, ambos solteiros. A mulher-aprendiz tem que colocar mah: pedra da fertilidade para no engravidar durante a formao.
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dos componentes do ch, seu preparo e o cochicho na boca da panela do ch, solicitando que
o preparo seja forte e suficientemente bom para mirarem o que desejarem.
Enquanto o paj cura com passes, imposies de mo, sopros e suco, o
marenawa domina um grau de conhecimento sobre plantas curativas e mortais. Seu
conhecimento vai-lhe sendo revelado, aprofundado nas sees rituais do rame, nas incurses
de coleta. Sozinho ou com apenas uma companhia, o marenawa reverentemente localiza e
coleta o cip e as folhas para o preparo. Kaemo Paulo32 fala que anteriormente, para participar
do ritual do rame, faziam-se necessrias algumas restries alimentares: sal e carne no
deveriam ser ingeridos nos trs dias anteriores e nos trs dias posteriores s sesses rituais.
Segundo alguns nos relataram, comida industrializada e relaes sexuais tambm no so
recomendadas.
A ingesto de extrato de pimenta braba e