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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ADRIANA CONCEIÇÃO DE JESUS SANTANA
A PRODUÇÃO DE SABERES EM DIÁLOGO COM PRÁTICAS DE LETRAMENTOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Salvador 2017
ADRIANA CONCEIÇÃO DE JESUS SANTANA
A PRODUÇÃO DE SABERES EM DIÁLOGO COM PRÁTICAS DE LETRAMENTOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Linguagem, Subjetivações e Práxis Pedagógica Orientadora: Profa. Dra. Dinéa Maria Sobral Muniz.
Salvador 2017
SIBI/UFBA/Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira
Santana, Adriana Conceição de Jesus. A produção de saberes em diálogo com práticas de
letramento na educação de jovens e adultos / Adriana Conceição de Jesus Santana. – 2017.
185 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Dinéa Maria Sobral Muniz. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Educação, Salvador, 2017. 1. Educação de jovens e adultos. 2. Linguagem. 3.
Letramento. 4. Linguagem e educação. 5. Saberes do Docente. I. Muniz, Dinéa Maria Sobral. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título.
CDD 374 – 23. ed.
ADRIANA CONCEIÇÃO DE JESUS SANTANA
A PRODUÇÃO DE SABERES EM DIÁLOGO COM PRÁTICAS DE LETRAMENTOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação.
Aprovada em 11 de maio de 2017 BANCA EXAMINADORA
Dinéa Maria Sobral Muniz – Orientadora ___________________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Lícia Maria Freire Beltrão_______________________________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia Professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Obdália Santana Ferraz Silva ____________________________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Professora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB)
A Deus que me fez compreender “que tudo é possível ao que
crê. (Marcos 9:23)
A minha mãe que me inspirou nas tardes de chuva a ler um
bom livro. Com ela, aprendi a trilhar caminhos de leituras que
fazem sorrir, chorar e aprender a aprender.
AGRADECIMENTOS
A Deus, meu Pai, meu grande encorajador, que se fez presente nas longas orações que formavam um elo de comunhão entre o céu e a terra e por onde Ele permitia-me compartilhar de sua doce e terna presença. A Ele a honra, a glória e o louvor por restaurar a minha esperança durante o longo percurso trilhado. Ao meu esposo, Antônio Cesar Pereira de Santana, pelo cuidado, carinho e compreensão dispensados ao longo destes anos de companheirismo e amizade que fizeram de nossa convivência um lugar comum de mútua admiração. Ao meu filho, Cesar Adriano de Jesus Santana, pelo amor e amizade; por ter me impulsionado a resgatar um sonho antigo e continuar a jornada de luta por uma educação inclusiva e democrática; por me fazer acreditar que a concretização de um sonho não depende da idade, mas do querer. A minha mãe, Ana Maria Santos, pelas palavras de encorajamento e perseverança que me deram confiança e me fizeram vencer os medos; por me encorajar a prosseguir, sem desistir; por ousar e me ensinar a ousar; pelo carinho e colo de amiga-mãe; por ser exemplo de “mulher virtuosa cujo valor muito excede ao de rubis”. (Provérbio 31:10) A minha irmã, Barbara Cristina de Jesus, por acreditar em minha capacidade de
alçar voos na corrente da perseverança. Por sua amizade; pelas palavras de
encorajamento que me incentivaram a fazer a inscrição nesse Mestrado.
A minha orientadora, professora Dinéa Maria Sobral Muniz, por fazer parte de minha
história profissional, por compartilhar ensinamentos, didática e metodologia durante
o tirocínio docente – um período de aprendizagem significativa; pelas críticas
construtivas; por seu jeito único de falar; pelo sorriso acolhedor; olhar encorajador.
Minha gratidão expressa o meu afeto e toda a minha admiração.
À professora Mary Andrade Arapiraca, por acreditar que sim eu poderia, por admirar
minhas qualidades de professora; por valorizar minhas experiências; pelo sorriso
sempre disponível; pelo olhar humano que nos humaniza; por colocar o sorriso
nesse projeto e me provocar o riso em momentos de angústia; por ter ajudado a
qualificar este projeto que culminou em ações socioeducativas para a EJA.
À professora Obdália Santana Silva Ferraz, pela competência dos seus escritos que
sempre me faziam convites para experimentar novas maneiras de ensinar e
compartilhar a magia da leitura no chão da sala de aula. As palavras tecidas em
seus artigos, sobre leitura, liam-me pelo avesso, entrelaçavam-me o inconsciente e
me tornavam consciente das concepções acerca de alfabetizar letrando. Por
continuar me surpreendendo com os escritos que leram as minhas intenções
subjetivas; por todas as contribuições que me fizeram refletir, reler, reescrever o
projeto; pela sensibilidade em analisar o discurso por trás de uma retórica tímida;
pelas leituras indicadas; por existir e me inspirar.
À professora Lícia Maria Freire Beltrão que surgiu do horizonte para compor essa
prosa com nuances de sua poesia. Sou grata ao seu olhar atento e sensível, pela
beleza de seus textos. Aqui e acolá, é sempre tempo de fazer e acontecer poesia na
voz delicada de Lícia – mulher sábia e terna.
À professora Maria Bonilla, pela acolhida, pelo incentivo, por caminhar junto,
orientando no caminho, ensinando e avaliando no processo. Construí, com ela,
múltiplos saberes em práticas de multiletramentos.
Às professoras, sujeitos desta pesquisa, que compartilharam suas histórias de
leitoras, suas experiências de professoras; por confiar suas angústias, incertezas,
frustrações, dificuldades, receios, medos. Juntas, construímos novos saberes
consolidados em encontros de (in) formação.
Às amigas Eliana Teles e Jucineide Melo, companheiras de longa estrada, colegas
de curso e profissão, juntas trilhamos sonhos e realizamos projetos de inclusão
social frutos de planejamentos idealizados.
Aos amigos Carla Carvalho, Vanilza Jordão, Osvaldo Barreto, Sule Sampaio, Jurene
Veloso, Lu Motta, Jamilly Starling, Noemi, Regina Gramacho, cuja amizade foi se
consolidando, ao longo do percurso, nos momentos de cumplicidade; pelo sorriso
encorajador; pelo abraço acolhedor; pelos diálogos; pela torcida; pelas sugestões e
reflexões. Nos momentos de angústia, ganhei amigos.
Aos amigos Hamilton Ferreira, Cristina Andrade, Cristiane Damasceno, Déa Ferreira,
Daniela Britto, Elenísia Santana, Gildete Rocha, Keila Valejo, Nilda Santana, Sr.
José Messias Silva, Celeste Silva, Rebeca Rocha, Selma Andrade, Veralúcia Fontes
Cunha, Vanessa Oliveira, Iraildes Sapucaia pelas constantes intercessões.
Aos funcionários Ricardo Vianna, Cleiton Silva, Eliene Bastos, Eline Teles e Maria
Auxiliadora pela competência, atenção, disponibilidade, orientação e prontidão.
À equipe pedagógica do LabDimus composta por Cristina Melo, Alan Fernandes,
Marina Santos, Eduardo Moleiro, Iray Galvão, por fazer inclusão no Pelô.
Ao Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem – GELING, que me
acolheu, grupo que atrai pela poesia e prosa, pela melodia de sorrisos e vozes que
ecoam o lema: “ainda é tempo de leitura”. Espaço de (trans) formação e
consolidação de saberes.
[...]
Eis que surge das ladeiras um povo lindo e
inteligente galopando contra o passado. A favor de
um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e
cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs
e tamborins acompanhados de violinos, só depois
da aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a
liberdade de opção. Contra a arte fabricada para
destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade
que nasce da múltipla escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que
escraviza.
A favor [...]
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças
sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
[...] (VAZ, 2008, p. 246)
SANTANA, Adriana Conceição de Jesus. A produção de saberes em diálogo com práticas de letramento na EJA, 185fl. 2017. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
RESUMO
A presente pesquisa se insere no campo das discussões teóricas sobre leitura, alfabetização e letramento, propondo uma reflexão crítica sobre a práxis pedagógica dos professores de Língua Portuguesa que atuam na Educação de Jovens e Adultos numa escola pública estadual situada no Pelourinho. Tomou como objetivos interpretar as concepções de linguagem que fundamentam as práticas de letramento, visando à formação leitora para a emancipação cidadã; analisar com as professoras que atuam nos Eixos IV e VI dessa modalidade de ensino as novas práticas sociais de leitura, considerando o contexto multicultural histórico e social em que estão inseridos os educandos e educandas da EJA; analisar como se dá a produção de saberes em práticas de letramento na interação professor-aluno. Teve como suportes teóricos a concepção de linguagem como processo interacionista e a ação dialógica (BAKHTIN, 1992); (GERALDI, 1996); a leitura da palavra-mundo com foco na interação autor-texto-leitor, dialogando com (KOCH, 2006); (FREIRE,1987,1993,1997) e na perspectiva do (s) letramento (s) (SOARES, 1998), (KLEIMAN, 2002, 2008b), abordando o modelo ideológico de (STREET, 2014). Esta pesquisa de cunho colaborativo e inspiração etnográfica teve como procedimentos metodológicos a observação e entrevista(s) semiestruturada(s) que geraram os dados para a interpretação do corpus de análise. Realizaram-se entrevistas coletivas em encontros de formação. Os recortes iniciais desta pesquisa evidenciam professores que fundamentam suas práticas de letramento, tomando a língua como objeto de análise sem levar em conta a sua função social, a formação leitora e as demandas da EJA. Mostrou também a relevância da pesquisa colaborativa, que contribuiu para a ação-reflexão-ação dos professores, consolidando mudanças significativas em suas maneiras de agir e pensar novas práticas sociais de leitura, entendendo linguagem como resultado de práticas discursivas de uso da língua em situações cotidianas, e que é nesse contato diário com a língua que o indivíduo se apropria dela e se constitui sujeito de linguagem, interagindo com o mundo que o cerca.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos. Linguagem. Letramento.
Linguagem e Educação. Saberes do docente.
ABSTRACT
This research is inserted in the theoretical discussions about reading, alphabetization and literacy, proposing a critical reflection on the pedagogical praxis of Portuguese Language Teachers who work in Youth and Adult Education Program (EJA) in a State public School, located in Pelourinho. It was established as objectives: to interpret the conceptions of language that base the literacy practices, focusing on the reading formation for the citizen emancipation; To analyze, with the teachers who work with Classes IV and VI of this modality of teaching, the new reading social practices considering the multicultural historical and social context in which they are inserted – the learners of the EJA Program; To analyze how the knowledge production in literacy practices occurs in the teacher-student interaction. Having as theoretical support the language conception as an interactionist process and dialogical action (BAKHTIN, 1992); (GERALDI, 1996), it was taken the reading of the word- world focusing on the author-text-reader interaction, dialoguing with (KOCH, 2006); (Freire, 1987, 1993, 1997) and from the perspective of the literacy (ies) (SOARES, 1998), (KLEIMAN, 2002, 2008b) approaching the ideological model of (STREET, 2014). This qualitative research has a collaborative stamp and an ethnographic inspiration. It had as methodological procedures the observation and semi - structured interview (s) that generated the data for the analysis corpus interpretation. Group interviews were held at formation meetings. The initial research cutouts evidence teachers who base their literacy practices taking the language as the object of analysis, without taking into account their social function, the reading formation and the EJA Program demands. It also showed the relevance of collaborative research, which contributed to the teachers’ action-reflection-action, consolidating significant changes in their acting ways, thinking new social reading practices, understanding language as a result of discursive practices of language use in everyday situations, and that, it is in this daily contact with the language, that the individual appropriates language and constitutes a subject of language interacting with the world around him. Keywords: Youthand Adult Education. Language. Literacy. Language and
education.Teacher’s Knowledge.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ASCOMSEULT Assessoria de Comunicação da Secretaria de Cultura da Bahia.
CONFITEA Conferência Internacional de Educação de Jovens e Adultos
EJA Educação de Jovens e Adultos
FUNDEF Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
LABDIMUS Laboratório de Informática da Diretoria de Museus
LDB Leis de Diretrizes e Bases
LP Língua Portuguesa
MEC Ministério da Educação e Cultura
PCN Parâmetro Curricular Nacional
PEC 55 Proposta de Emenda à Constituição nº 55
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PROJOVEM Programa Nacional de Inclusão de Jovens, Educação,
Qualificação e Participação Cidadã
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadro1 - Escala de proficiência do Indicador de Alfabetismo Funcional – 2015.....43
Gráfico 1 - Distribuição da população pesquisada por grupos de alfabetismo e faixa etária ..............................................................................................................44
Quadro 2 - Objetivos e Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (Unesco) ....................................................................................................................................45
Quadro 3 - Taxa de Analfabetismo (%) em 2004 e 2014, por região, entre a população de 15 anos ou mais tarde. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/Penad 2014) ..................................................................................47
Quadro 4 - Quadro resumo da caracterização das professoras - Fonte: entrevista concedida pelas participantes da pesquisa................................................................95 Quadro 5 - Quadro resumo bibliográfico..................................................................103 Imagem 1 - Foto: Assessoria de Comunicação da Secretaria de Cultura da Bahia. AscomSecult-BA.......................................................................................................143
Quadro 6 - Quadro resumo do Planejamento das oficinas de História em Quadrões..................................................................................................................144
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................14
2 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO E ACADÊMICO DA EJA..................................29
2.1 ENCONTRO NACIONAIS E INTERNACIONAIS DA EJA....................................30
2.2 CENÁRIO HISTÓRICO DA EJA NO BRASIL.......................................................32
2.3 ANPED-2015 - POLÍTICA, PESQUISA E PRÁTICA NO GT18............................35
2.4 A EJA NO CENÁRIO BAIANO..............................................................................37
2.4.2 Projeto Ressignificando a aprendizagem-2015 ...........................................38
2.5 A FORMAÇÃO POLÍTICA DO PROFESSOR DA EJA........................................40
2.6 DEMANDAS E DESAFIOS DA EJA NO SÉCULO XXI........................................42
3 LETRAMENTO(S) NA EJA: SABERES E CONTRADIÇÕES..............................50
3.1 LEITURA E INTERAÇÃO ENTRETEXTO-AUTOR-LEITOR................................51
3.2 UM DIÁLOGO COM A HISTÓRIA DO LETRAMENTO........................................57
3.3 LETRAMENTOS NO CONTEXTO DA EJA.........................................................62
3.4 LETRAMENTO SOCIAL EM DIÁLOGO COM OS GÊNEROS DISCURSIVOS...68
3.5 O SABER DOCENTE E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTOS NA EJA................74
3.6 MULTILETRAMENTOS NO CONTEXTO DA EJA...............................................80
4 PERCURSO METODOLÓGICO...........................................................................84
4.1 A ARQUITETURA DA PESQUISA QUALITATIVA...............................................85
4.2 O PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO...................................................................90
4.2.1 O campo da pesquisa.....................................................................................92
4.2.2 Participantes da pesquisa..............................................................................94
4.3 É TEMPO DE OBSERVAR E ESCUTAR.............................................................97
4.3.1 Instrumentos de coleta de dados..................................................................98
4.4 A FORMAÇÃO – TEMPO DE REFLETIR E TEORIZAR A PRÁTICA................101
5 O SABER DOCENTE EM DIÁLOGO COM PRÁTICAS DE LETRAMENTO.......108
5.1 POR QUE ALFABETIZAR LETRANDO NA EJA?.............................................110
5.2 FORMAÇÃO DO PROFESSOR NO CONTEXTO DO PELOURINHO..............114
5.3 A TEORIZAÇÃO DO ENSINO E A REFLEXÃO DA PRÁTICA..........................117
5.4 CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO.................................123
5.5 GÊNEROS DISCURSIVOS EM PRÁTICAS DE LETRAMENTO...................... 127
6 A LEITURA DA PALAVRA-MUNDO ENTRE OS SONS DO PELÔ....................139
6.1 PELOURINHO - A PALAVRA-MUNDO EM QUADRINHOS..............................142
6.2 NOTÍCIAS - EM FOCO O LETRAMENTO SOCIAL...........................................148
6.3 LEITURA E INTERAÇÃO - A NOTÍCIA NOSSA DE CADA DIA........................156
ENTRELACES FINAIS ...........................................................................................165
REFERÊNCIAS........................................................................................................174
APÊNDICE A – Entrevistas individual semiestruturada ..........................................181
APÊNDICE B – Cronograma dos encontros...........................................................182
ANEXO A – Textos trabalhados nos Encontros de Formação.................................183
ANEXO B – Textos utilizados em classe pelas professoras...................................184
ANEXO C – Revista produzida pelos alunos em parceria com a LabDimus...........185
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1 INTRODUÇÃO
A linguagem é como um rio que flui, seguindo o seu curso sobre o leito da
materialidade física do texto oral, escrito e imagético. Esse movimento se dá por
meio da leitura – um caminho que nos leva a toda parte. É evidente que o ponto
estabelece um limite para a materialidade física do texto em obediência às
estruturas sintáticas, mas é na dialogicidade que se propõe ao leitor o centro do
infinito, conduzindo-o a infinitas possibilidades de sentido.
Assim, compreendo leitura como um processo de interação entre autor-texto-
leitor em que o sujeito produz sentido sobre o texto oral/escrito e dialoga com o
autor, ancorado no letramento social que reúne valores e heranças de sua
identidade cultural, traduzindo, por meio da língua, a visão de mundo que ele
constrói a partir de suas experiências discursivas. Nesse sentido, o leitor da
“palavra-mundo” (FREIRE,1996) pratica a língua em suas relações enunciativas e no
contexto diário com o(s) outro(s) vai se apropriando da linguagem. Dessa maneira,
entendo linguagem como resultado de práticas discursivas de uso da língua em
situações cotidianas e, é nesse contato diário com a língua, que o indivíduo se
apropria da linguagem e se constitui sujeito de linguagem, interagindo com o mundo
que o cerca. É, portanto, no contato com o outro, que nos tornamos outros sujeitos
constituídos de e pela linguagem (BAKHTIN, 1992; GERALDI, 1996), desenvolvendo
o letramento.
Todo ser humano tem necessidade de se comunicar, de falar de si, de interagir
com mundo, expressar-se, ler (se lê por meio do olhar do outro) e de estar imerso
em situações discursivas. De acordo com Bagno (2002), não existimos fora da
linguagem, não conseguimos sequer imaginar o que é não ter linguagem – nosso
acesso à realidade é mediado por ela de forma tão absoluta que podemos dizer que
para nós a realidade não existe, o que existe é a tradução que dela nos faz a
linguagem, implantada em nós de forma tão intrínseca e essencial quanto nossas
células e nosso código genético. Ser humano é ser linguagem.
Do mesmo modo que em solo árido não há florescer, o peixe é incapaz de viver
fora de seu habitat natural, assim também é o ser humano, incapaz de existir fora da
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linguagem. E por não existirmos fora da linguagem, temos necessidade dessa
imersão no mundo letrado, na dimensão textual, onde a linguagem adquire
existência. Nessa lógica, os discursos, as falas, ações e atitudes do sujeito refletem
o lugar da sociabilidade do qual fazem parte e, desse modo, para dar conta das
novas demandas sociais, no século XXI, o sujeito precisa estar inserido em práticas
sociais de leitura, compreendendo o seu lugar no mundo.
Entretanto, há milhares de jovens excluídos da educação básica, é desmedido
o número de adultos e idosos analfabetos e/ou que não concluíram seus estudos.
Esses dados aumentam o índice de pobreza, visto que a sociedade “letrada”
considera incapaz o falante que não legitima em sua oralidade, escrita e leitura, o
domínio da língua portuguesa. O saber falar, ler e escrever sobrepõe o saber fazer e
o saber ser. Portanto, a descolarização é responsável por grande parte das mazelas
da sociedade. Mudar esse quadro, no entanto, é uma tarefa hercúlea para a
educação, pois a escola contemporânea não consegue gerenciar os novos
fenômenos que a ela chegam repletos de complexidades dos quais exigem aparatos
específicos e políticas públicas educacionais capazes de dar cabo aos novos
contornos que a educação vem sofrendo.
Esse processo de exclusão social conduz os jovens, adultos e idosos ao
caminho da EJA e figura como reflexo dos inúmeros processos e políticas
infrutíferas que legitimam posições sociais específicas para o aluno da escola
pública brasileira. A coexistência de práticas e políticas educacionais em que se
confirmam o entrecruzamento de relações sutis dos poderes se dá eminentemente
pelas vias da educação. Paulo Freire (1996) nos chama a uma ética inseparável da
prática capaz de mobilizar os estratos da sociedade para uma inversão de práticas
discriminatórias, excludentes, legitimadas nos processos relacionais da educação.
A escola deveria garantir um ensino de leitura capaz de inserir os jovens,
adultos e idosos em práticas legítimas que lhes permitissem interagir, culturalmente,
em variados âmbitos sociais de letramento. A leitura é um instrumento operativo e
eficiente para o desenvolvimento da linguagem, mas o que parece ocorrer, na
instituição, são propostas pedagógicas desvinculadas desse objetivo. O ensino de
Língua Portuguesa centrado no estudo da língua em si mesma sobrepõe-se à visão
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interacionista, emudece a língua e constrói um abismo entre o “letramento na
comunidade e o letramento escolar” (STREET, 2014), ampliando o número dos
excluídos. Ao planejar suas ações pedagógicas, os professores de Língua
Portuguesa deveriam priorizar a formação de homens e mulheres que interajam,
dialoguem e participem dos espaços discursivos a que têm acesso com autonomia e
senso crítico para emitir opinião, argumentar, lutar por direitos sociais etc..
A opção por pesquisar sobre a EJA, no contexto do ensino de Língua
Portuguesa, advém dessas inquietações porque há doze anos trabalho com a
formação de professores da EJA. Durante minha trajetória acadêmica, sempre tive
um olhar atento para as práticas de letramento que envolvem essa modalidade de
curso.
Minha implicação com o campo da pesquisa está vinculada também às
experiências vivenciadas nos três anos de gestão e nos dois anos de docência que
atuei nesta instituição escolar situada no Centro Histórico de Salvador. Durante o
período que estive na escola, ora como gestora, ora no exercício da docência,
presenciei episódios de violência, indisciplina e intensa evasão escolar. Os alunos
da EJA iniciavam o ano letivo com o sonho de continuar seu percurso formativo, mas
desistiam diante das dificuldades enfrentadas. Esta problemática reflete a realidade
da maioria das escolas públicas da Bahia.
A ocorrência de reprovação e evasão é maior no Eixo IV – 2º segmento – que
corresponde aos 6º e 7º anos do Ensino Fundamental II; Eixo VI – 3º segmento –
que corresponde a 1ª e 2ª séries do Ensino Médio; por esse motivo, considerei
importante investigar esses dois eixos. Tal problema inquietou-me a refletir sobre o
papel que a nossa escola desempenha no Centro Histórico de Salvador e que
procedimentos adotar para transformar o ambiente escolar em lugar privilegiado de
interação, construção de conhecimento e desenvolvimento da linguagem.
Em 2014, tive a oportunidade de participar do Projeto Ressignificando a
Aprendizagem do Governo do Estado em parceria com a Secretaria do Estado da
Bahia e o Ministério de Educação e Cultura, visando à qualificação dos alunos da
EJA, e a construção de competências nas áreas de Ciência, Linguagens e Humanas
para a inserção no Ensino Médio.
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A escola formou uma turma cujos alunos estavam envolvidos em episódios de
indisciplina, violência, repetência e evasão escolar. Nenhum professor demonstrou
interesse em aderir ao projeto, o que me desafiou a solicitar exoneração do cargo de
vice-diretora para assumir a regência dessa classe especial. Não resisti em colocar
“sal da terra” na vida desses estudantes e contribuir para a sua formação cidadã e
educação ao longo da vida. Os resultados positivos alcançados na interação com os
educandos e educandas da EJA garantiram a aprendizagem da leitura e da escrita,
assegurando a permanência desses alunos na escola, bem como a sua formação,
pois os alunos prosseguiram com os estudos no Ensino Médio.
O segmento acima apresenta indícios de que a Educação de Jovens e Adultos
tem de partir das formas concretas de viver seus direitos e da maneira peculiar de
viver seu direito à educação, ao conhecimento, à cultura, à memória, à identidade, à
formação e ao desenvolvimento pleno. (ARROYO, 2011)
Implicada com a EJA e com o contexto desta escola, desenvolvi esta pesquisa,
tomando como objeto as práticas de letramento de três professoras de Língua
Portuguesa que atuam na EJA. Procurei aproximar Universidade e escola;
professoras e ciência. Compartilhei projetos, leituras, saberes, experiências,
compreendendo que a formação do professor também se dá no chão da escola, na
troca de experiências, na prática reflexiva e na reflexão da prática. Assim concordo
que devemos encontrar na “implicação histórico-existencial a noção de práxis e
projeto, entretecendo aí implicações psicoafetivas e, se for o caso, implicações
estruturo profissionais, densamente presentes na práxis docente”. (BARBIER , 2001,
p. 57)
Todo professor consciente de seu papel na sociedade tenta novas maneiras de
fazer para ensinar, e por querer ensinar, se coloca na condição de aprendiz e
experimenta novas formas de fazer, novas técnicas e metodologias. Esse professor
aprendiz é um descobridor de novos mares, é um marinheiro que busca um porto
para se ancorar. Uns se ancoram em teorias, outros em experiências, mas todos
desejam acertar. Há um versículo bíblico (Provérbios 22:6) que diz: ensina a criança
no caminho que se deve andar. Aproveito esse verso para despertar o Estado e as
Universidades a ensinar, aos professores, no caminho, no processo, viabilizando a
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formação continuada. Não há como fazer educação, sentindo-se solitário no chão da
sala de aula.
Seguindo essa linha de pensamento, optei pela pesquisa colaborativa e tomei
como objeto de pesquisa as práticas de letramento de três professoras de Língua
Portuguesa da Educação de Jovens e Adultos que lecionam em classes de EJA
numa Escola Pública Estadual situada no Centro Histórico de Salvador. Pretendi
interpretar as concepções de linguagem que fundamentam suas práticas de
letramento, visando à formação leitora para a emancipação cidadã. Para delinear
uma investigação coerente, tracei alguns objetivos específicos: (1) analisar com as
professoras que atuam nos Eixos IV e VI dessa modalidade de ensino as novas
práticas sociais de leitura, considerando o contexto multicultural histórico e social em
que estão inseridos os educandos e educandas da EJA; (2) analisar como se dá a
produção de saberes em práticas de letramento na interação professor-aluno; (3)
analisar as representações sobre leitura de três professoras da EJA, tomando como
universo os estudantes dos eixos IV e VI.
Para delinear a concepção dialógica deste estudo que versa sobre a produção
de saberes em práticas de letramento na EJA, fundamentei a pesquisa, procurando
manter um diálogo coerente com diferentes autores na perspectiva de língua/
linguagem e tomei como base a dialogia de Bakhtin (1992); Geraldi (1996).
Alicerçada por teorias de múltiplas abordagens de leitura, versei com Koch (1996);
Freire (1997); Kleiman (2002, 2008b, 2010); Chartier (1999). Na perspectiva do
letramento, tomei para diálogo Street (2014); Soares (1998); Bortoni-Ricardo,
Machado, Castanheira (2010) e a Proposta Curricular para a Educação de Jovens e
Adultos: segundo e terceiro segmentos (BRASIL, 2002).
A partir das reflexões que essa linha teórica propõe, compreendo a importância
de a escola viabilizar projetos de ensino de Língua Portuguesa, visando
contextualizar as experiências e os saberes dos educandos e educandas da EJA,
em práticas de letramento, considerando a função social da língua a fim de garantir
sua aprendizagem ao longo da vida para que o estudante jovem ou adulto se
reconheça agente desse mundo, atuando sobre ele.
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Os estudantes da EJA regressam à escola com marcas linguísticas, resultado
de seu contato diário de falante, leitor, escritor com o mundo que os cerca. São
homens e mulheres com experiências, histórias, identidade e memórias que a
maioria das escolas desconsidera, e por não considerar, cria um abismo que
distancia letramento social e letramento escolar (STREET, 2014), centrando cada
vez mais o estudo da língua em si mesma. Em vista disso, a tríade leitura, texto,
linguagem sempre me causou inquietação, tendo em vista os descaminhos que a
escola, no ensino de Língua Portuguesa, tem proposto ao público da EJA.
Que saberes os professores têm produzido, ao longo de suas experiências
pessoais, e que heranças culturais trazem para a pedagogia da sala de aula a fim de
garantir a construção de conhecimento? Que concepção de linguagem fundamenta
suas práticas? Que leituras fazem de si, dos alunos da EJA e do contexto em que
estão inseridos? É importante refletir sobre estas questões para analisar a
concepção de linguagem que fundamenta as práticas de letramento das professoras
da EJA. O que as professoras priorizam ensinar e quais objetivos de ensino de
Língua Portuguesa estão vinculados às ações pedagógicas que envolvem a EJA?
Nesse sentido, a formação de professores de Língua Portuguesa para trabalhar
na Educação de Jovens e Adultos emerge como um aspecto relevante diante das
exigências da sociedade contemporânea cada vez mais centrada no uso social da
leitura e da escrita.
Os estudantes da EJA regressam à escola, porque querem avançar na
aprendizagem da leitura e da escrita. Muitos desistem de seu percurso formativo,
porque não conseguem o seu objetivo. São homens e mulheres, sujeitos
constituídos de linguagem com experiências, histórias, identidade, memórias,
sonhos e projetos que a maioria das escolas desconsidera. Parece não haver uma
preocupação por parte dessa instituição em construir projetos que visem ampliar a
competência leitora desse público para o desenvolvimento de sua linguagem. A
escola poderia viabilizar situações discursivas que oportunizassem melhor interação
entre os sujeitos, o sujeito e o texto, considerando suas convicções, seus sonhos,
seus projetos de vida.
20
O ensino técnico da gramática, como já foi dito, muito observado hoje nas
classes da EJA, tem comprometido a prática da linguagem nas salas de aula,
excluindo a arte, a poesia, a inspiração literária, os gêneros discursivos, tornando –
artificial – o ensino da língua. “Nestes termos, a língua deixa de ser um processo,
uma prática social de comunicação para se transformar em produto acabado”
(SILVA,1998, p.70). Segundo Antunes (2003), observa-se, por décadas, a mesma
programação de ensino da língua: o sentido de leitura reduzido à análise de textos
que visam ao reconhecimento das categorias gramaticais em palavras soltas,
isoladas, que fora de um contexto, emudecem, diluem-se, quebram-se, assim como
“a água se quebra em pedaços, em poços de água, em água paralítica” (MELO
NETO, 1975).
A formação de leitores “demanda um ensino de Língua Portuguesa que
extrapole as atividades formatadas em planejamentos engessados” (MUNIZ; SILVA,
2009). Para caracterizar os rumos que o ensino da língua tem percorrido, tomo a
seguinte metáfora: a língua é o imenso oceano onde deságua o rio e o ensino de
gramática tem sido como um navio que se distanciou de sua rota (leitura, oralidade,
escrita), ficando à deriva.
A Educação de Jovens e Adultos é um campo desafiador que postula tomada
de decisões urgentes, sobretudo pelos índices alarmantes que o Brasil vem
ocupando no cenário mundial nas últimas décadas. Há muitas vozes que defendem
a qualificação da EJA no Brasil, a exemplo de Freire (1997), que concebe a
alfabetização de Jovens e Adultos como prática libertadora e Haddad (2009) que
atribui o alto índice de analfabetismo e a baixa qualidade na leitura entre jovens e
adultos à imensa desigualdade, tais como renda, raça, gênero, idade e região.
Esses resultados são contabilizados em maior número nas regiões com menor
índice de desenvolvimento humano - IDH (IBGE, 2015).
Tais pesquisas alertam-nos sobre a ineficiência do Estado frente aos
investimentos em educação, implementação de políticas de inclusão, formação de
professores para atuar nessa modalidade. Com base nesses resultados, observo
que o quantitativo se sobrepõe ao qualitativo, ou seja, o Estado preocupa-se em
revelar estatisticamente o baixo índice de leitura entre os brasileiros com 15 e 64
21
anos de idade, mas pouco tem feito, no âmbito da educação, para garantir a
alfabetização ou potencializar o nível de leitura e escrita dos jovens e adultos. Por
outro lado, também não garante nem o acesso desses jovens e nem a sua
permanência na escola.
À medida que o analfabetismo foi sendo superado na sociedade, passou-se a
considerar leitura e escrita a partir do contexto das práticas sociais e culturais
(históricas, políticas e econômicas). Surge, com isso, a necessidade de se apropriar
das práticas de leitura e escrita para responder adequadamente às demandas
sociais de sua utilização. Foi então que vieram à tona discussões sobre o letramento
com o propósito de tornar as aulas de Língua Portuguesa mais significativas para o
aluno, e a necessidade de construir pontes referenciais que aproximassem escola –
vida – língua – prática social. (SOARES, 2000).
Daí a importância de a universidade pensar numa abordagem também
direcionada às práticas de letramento para a modalidade da EJA, criando um
espaço/tempo, nas licenciaturas ofertadas, para discutir com os professores de
linguagem estratégias de ensino que considerem as particularidades dessa
modalidade de curso. Há carência de maiores investimentos das instituições de
ensino superior nessa área, tanto em pesquisas quanto em programas de extensão.
Paulo Freire é o maior expoente na luta pela EJA, e não há uma interlocução maior
com outros pensadores latino-americanos, visto que a produção acadêmica teórico-
filosófica sobre a EJA ainda é muito reduzida, o que evidencia um campo de
conhecimento ainda recente (JARDILINO, 2014).
Há décadas, o analfabetismo é reconhecido como uma violação do direito
humano à educação, e nenhuma política pública implementada, ao longo da história,
alcançou o desejado: reduzir o baixo índice de leitura, nivelando-o a padrões
internacionais compatíveis com o nível de desenvolvimento do país. Dados recentes
mostram que temos 13,1 milhões de pessoas acima de 15 anos de idade que não
sabem ler nem escrever, o equivalente a 8,3% para esta faixa etária. (IBGE, 2015).
A escola é uma potente agenciadora de formação de leitores para a
emancipação cidadã, mas tem se configurado como espaço de exclusão, pois há
mais estudantes fora do que dentro dela. O modelo autônomo de letramento vem
22
dominando o currículo e a pedagogia (STREET, 2014). O estudo da língua que
concebe o ensino da gramática normativa como meio eficaz para ensinar o aluno a
escrever e falar corretamente tenta homogeneizar a língua numa sociedade em que
os falantes se tornam, cada vez mais, heterogêneos. Essa postura, há séculos, tem
dividido o país em “letrados”, “não letrados” e “menos letrados”, promovendo, com
isso, a evasão escolar, o abismo entre os povos e o acesso aos bens ditos
“culturais” e “materiais”, e isso se intensifica ainda mais na EJA.
De alguma forma vê-se nas sociedades liberais a reprodução de uma nova espécie de segregação: um apartheid social e cultural veiculado por intermédio dos usos e das apropriações em torno da leitura e da escrita. A escola é nesse faroeste (nesse jogo de forças e de relações de poder) a vilã da história, quando, de fato, as responsabilidades e as falências sociais e culturais dizem respeito aos efeitos e às consequências do sistema econômico liberalista em sua expressão capitalista. (TAYASSU, p. 22-23, 2011)
Para Street (2014), ao não reconhecer as formas heterogêneas de linguagem,
a escola desconsidera o letramento que o aluno desenvolve em sua comunidade. A
tentativa de padronizar a língua intensifica o apartheid social e cultural. Os sujeitos
da EJA, quando regressam à escola, não se sentem acolhidos, porque a escola nem
sempre valoriza a variante linguística desses sujeitos (STREET, 2014). Sentem-se
excluídos, na escola, na sociedade, porque as convenções comunicativas
associadas às práticas de letramento também parecem desconsiderar as variantes
linguísticas desses sujeitos. Sem representatividade linguística, na escola, esse
aluno sente-se um “peixe fora da água”, motivo que o leva a desistir do percurso
formativo, transformando-o em mais um número na estatística de não leitores. Como
aprender a ler de cor – coração – numa língua que desprestigia a língua (variante)
herdada, articulada no âmbito familiar, na igreja, na comunidade que o constituiu
sujeito de e pela linguagem?
Daí a relevância de a escola assumir a distinção entre o letramento na escola e
na comunidade sem um sobrepujar o outro. Trabalhar textos que incorporem
diversos tipos de linguagem – a linguagem utilizada pelos educandos e educandas
da EJA em sua comunidade – e a linguagem a que eles ainda não tiveram acesso.
23
Essa ponte referencial que aproxima gostos, estilos, formas, é construída por meio
da interação leitor-texto-autor. À medida que o leitor interage com a leitura do texto e
a ele produz sentido, dialoga com o autor. Nesse sentido, o autor cria, e o leitor
recria; e quando o sujeito leitor se reconhece entre os fios tecidos por palavras, lê o
mundo, descobre quem realmente é, o que está a sua volta e deslumbra onde está.
Essa é a ação criadora da leitura que Silva chama a atenção. Quando autor e leitor
dialogam, progressivamente, vai-se desenvolvendo a linguagem.
Entender a linguagem na perspectiva, da relação dialógica entre sujeitos, proposta por Bakhtin (2003), é conceber o ato de ler como ação criadora, em que o sujeito, ao (des)ler, ao (des)dizer e ao (re)escrever transforma o – dizer-antigo no – dizer-agora, partindo do princípio de que, sendo o texto um tecido que propicia um diálogo de discordância, de divergência, possibilita o conflito das interpretações, o que o transforma em (entre)lugar em que a palavra do – eu – se encontra na – intima relação como a palavra do – outro – cada uma conservando sua autonomia –, confirmando o caráter dialógico da linguagem. (SILVA, p. 45, 2012)
Esse é o sentido de ensinar leitura na EJA: atiçar no chão da sala de aula
textos que dialoguem com esse público e que façam sentido para ele. Lembro-me de
uma tarde em que uma professora levou para a sala de aula chocolates para
degustar enquanto lia com seus alunos, deitados na esteira, o livro Infância Roubada
de Júlio Emílio Braz. Ao final do tempo da aula, ela perguntou aos alunos: a leitura
de hoje teve sabor de quê? E eles sorrindo, gritaram: “Teve sabor de chocolate,
professora”. Uma aluna exclamou: “Professora, bem que podia ter sido sabor de
laranja”. O aluno fazia referência ao laranjal – espaço de trabalho – onde as
crianças colhiam laranjas – personagens que tiveram sua infância roubada e o
direito de aprender a ler e escrever. Num outro dia de aula, ela levou uma jarra de
suco de laranja e continuou a leitura do livro, degustando o suco com seus alunos.
Ao final da aula, novamente perguntou à turma: a leitura teve sabor de quê? Os
alunos responderam: “Sabor de laranja, professora” – respondeu uma aluna,
sorrindo. Surgiram outras respostas como “sabor de trabalho árduo” “sabor de
injustiça”, “de desrespeito”, “de trabalho escravo”, “de violação de direitos” etc.
Alunos e autor dialogaram, uniram a voz contra a injustiça.
24
Essa prática de letramento deu à leitura um sabor que produz sentido, sabor de
letramento social – que difunde o saber produzido pelo aluno – forma, informa,
desperta, humaniza, desenvolve o senso questionador, constitui sujeitos de
linguagens na interação com o outro – autor. A temática do livro envolveu
experiências de vida dos alunos, despertando, assim, o desejo pela leitura, pois
muitos deixaram os estudos ainda quando adolescentes para trabalhar e ajudar a
família. Considerei essa atividade de leitura como “um grande centro de força” para
a formação de leitores críticos. Nesse sentido, a professora viabilizou a interação
entre leitor-texto-autor, compreendendo linguagem como acontecimento, como
prática social e histórica que possibilita o diálogo entre o sujeito e o mundo.
A linguagem, pensada nesse contexto, é mediadora entre sujeito e história, indo, desse modo, além do texto, para buscar os sentidos pré-construídos, ecos da memória do dizer. É atividade constitutiva, que tem no processo de interação seu locus produtivo, no qual o reconhecimento do ― eu passa pelo reconhecimento do ―outro, ambos mediados socialmente. (SILVA, p. 43, 2012)
Nessa mesma linha de pensamento, desenvolvi em 2014 um projeto de
letramento literário como ponte referencial para o letramento social, incluindo o
contexto social e histórico do Pelourinho – local onde os alunos e escola estavam
inseridos. Iniciei o trabalho com o gênero notícia – considerando o gosto pessoal dos
alunos. Li com eles na página 03 do livro de literatura uma notícia sobre os capitães
da areia. O acesso às notícias publicadas foi o gatilho motivador para a leitura do
romance de Jorge Amado, “Capitães da Areia”. A forma como o escritor – com seu
olhar humano – descreve as personagens, tocou a alma daqueles meninos e
meninas. Os alunos se sentiram acolhidos pelo olhar do amado Jorge. O resultado
deste trabalho inventivo de leitura propiciou efeito positivo na postura dos alunos,
diminuindo, consideravelmente, o índice de evasão, ampliou a competência
linguística e potencializou suas habilidades de leitura. Os alunos fizeram leitura de
si, do mundo, do outro, contextualizaram fatos sociais do passado, interpretando o
presente. Nesse sentido, pensar em leitura literária em classes de EJA é entender
que:
25
a literatura nos letra e nos liberta, apresentando-nos diferentes modos de vida social, socializando-nos e politizando-nos de várias maneiras, porque nos textos literários pulsam forças que mostram a grandeza e a fragilidade do ser humano; a história e a singularidade, entre outros contrastes, indicando-nos que podemos ser diferentes, que nossos espaços e relações podem ser outros. (GOULART, p. 64-67, 2007)
Trabalhar literatura, como produto da ação humana, construída nas interações
sociais, nos diálogos vivos em que professora e alunos interagem entre si, e com o
autor – Jorge Amado – implica “uma forma de ação sobre o mundo marcada por um
jogo dialógico de intenções e representações” (SILVA, 2012). Nesse sentido, a
linguagem é entendida como enunciação e interação pela natureza dialógica,
heterogênea, interdiscursiva e da intertextualidade que a constituem (BAKHTIN,
1992)
Desta forma, não podemos aprendê-la como transmissão de mensagens
resultantes de atitudes passivas entre o receptor – aluno – e o professor – emissor.
Entender linguagem nesse contexto dialógico, é permitir que os alunos teçam
considerações acerca do texto e usufruam da liberdade de produzir sentidos, de
falar o que entenderam, de se expressar sem medo de revelar sua visão de mundo e
a leitura que se faz dele. Para mim, este tem sido um dos maiores desafios da EJA
– atrair o olhar e os corpos desses alunos para dentro dos muros da escola para
interagir e produzir novos saberes – assumindo a distinção entre letramento na
comunidade e na escola, transformando as experiências históricas e transculturais
de lá (letramento social) em ações de cá (letramento escolar), “reconfigurando o
letramento como prática social crítica, levando em conta as perspectivas
transculturais na prática da sala de aula para auxiliar os alunos a situar suas práticas
de letramento”. (STREET, 2014, p. 149).
Há também os trabalhos com gêneros discursivos que apresentam resultados
positivos no âmbito da modalidade da EJA. São textos que os jovens e adultos
vivenciam em suas práticas de letramento a exemplo dos jornais, anúncios,
reportagens, tiras em quadrinho, charges etc. que caracterizam o discurso
26
jornalístico. Alguns desses gêneros discursivos já estão inseridos nos livros didáticos
da EJA. É importante orientar o trabalho com os gêneros discursivos, nas classes de
EJA, considerando seu papel social, pois a língua se realiza por meio desses
enunciados. (BAKHTIN, 1992); e também “são mais relevantes em termos de
práticas sociais correntes na sociedade” e porque “alguns gêneros propiciam
exercícios mais relevantes no sentido do desenvolvimento de habilidades de
linguagem”. (BONINI, 2011, p. 66). Artigos publicados por (LEITE, 2013) e (MOLL,
2011) também revelam que é factível trabalhar com os gêneros discursivos na EJA.
As reflexões que fizemos neste capítulo, foram impulsionadas por três pontos
vinculados ao ensino da língua portuguesa nas classes de EJA da escola campo
que merecem atenção: (1) os alunos estão entre as pessoas com 15 e 64 anos que
são analfabetos funcionais; (2) o alto índice de reprovação na disciplina de Língua
Portuguesa e da evasão escolar nas classes iniciais que correspondem aos Eixos IV
e VI (3) e o fato de os alunos não avançarem na aprendizagem da leitura e da
escrita, o que compromete o desenvolvimento de sua linguagem. Diante desse
problema, questionei sob qual concepção de linguagem as professoras de Língua
Portuguesa têm construído suas práticas de letramento nas classes de EJA,
tomando como universo os Eixos IV e VI numa escola pública Estadual situada no
Centro Histórico de Salvador.
Utilizei como instrumentos de pesquisa a observação para levantar dados
sobre o objeto de pesquisa e a entrevista com o intuito de captação imediata e
corrente da informação desejada. Como procedimento de pesquisa colaborativa,
organizei encontros de formação. Os encontros para a entrevista aconteceram no
espaço escolar, no Museu Tempostal, no Museu Casa de Jorge Amado, tendo como
proposta criar um espaço para reflexão-ação das professoras sobre as concepções
que norteiam suas práticas.
Dessa forma, esta pesquisa colaborativa de inspiração etnográfica tencionou
aprofundar questões referentes ao ensino de Língua Portuguesa com foco no ensino
de leitura, utilizando como método qualitativo, a Etnopesquisa
27
tem o contexto como sua fonte direta de dados e supõe o contato
direto de pesquisador com seu principal instrumento; com o ambiente
e a situação que está sendo investigada; os dados da pesquisa são
descritivos e os status de dados são valorizados. (MACEDO, 2004
p. 144-145):
Tais especificidades do método etnográfico nos remetem, de alguma forma, à
noção de pesquisa qualitativa, podendo assumir esta noção conotações diferentes,
dependendo da orientação teórica de quem a utiliza (MACEDO, 2004).
Esta pesquisa se constitui de seis capítulos. No capítulo que introduz o
presente estudo, apresento um painel geral sobre os direcionamentos dados a esta
pesquisa, justificando a relevância do tema e convido você, caro leitor, a refletir
comigo sobre questões relevantes que norteiam o ensino de LP ofertado às classes
de EJA que envolve a concepção de linguagem que norteia as práticas de
letramento com foco no ensino da leitura como um ato político.
No segundo capítulo, apresento um panorama do cenário acadêmico que
configura a Educação de Jovens e Adultos, tanto na esfera mundial quanto no
cenário nacional; proponho uma reflexão acerca das políticas públicas pensadas
para atender esse público e dos programas de Educação Básica da EJA no cenário
baiano; analiso a legislação que ampara essa modalidade de ensino e apresento o
estado da arte acerca do estudo aqui proposto.
O terceiro capítulo propõe a leitura de um breve panorama acerca da
concepção de leitura, alfabetização e letramento no qual desenvolvo um estudo
sobre a formação dos professores no ensino de Língua Portuguesa e traço um breve
panorama sobre a formação docente para atuar na EJA as práticas de letramento
com o intuito de argumentar a relevância desta pesquisa no campo da Educação.
O quarto capítulo corresponde à apresentação dos procedimentos
metodológicos adotados para desenvolver esta investigação, objetivando enfrentar o
problema apresentado e desenvolver um estudo fundamentado no objeto de estudo,
na questão da pesquisa, nos objetivos geral e específico, na implicação com a
pesquisa e na escolha do campo e das participantes.
28
O capítulo quinto foi subdividido em dois tópicos. O tópico 5.1 traz a
organização e a descrição dos resultados das entrevistas individuais realizadas com
as professoras dos Eixos IV e VI que versaram sobre os saberes docentes acerca
da concepção de linguagem, leitura e letramento organizados em quadros que
categorizaram os procedimentos mobilizados pelos sujeitos da pesquisa. O tópico
5.2 apresenta a análise dos resultados obtidos a partir do diálogo com as
professoras sobre as concepções de linguagem que fundamentam suas práticas de
letramento.
No sexto capítulo, apresento propostas de ensino construídas pelas
professoras sob a perspectiva do letramento social que envolveu o contexto
multicultural em que os alunos do Pelourinho estão inseridos. São jovens que vivem
nas vilas, ruelas e morros do Centro Histórico de Salvador, majoritariamente negros,
circulam no espaço escolar um incansável número de vezes com entradas, saídas e
retornos após o período estabelecido para a vida escolar.
É importante salientar que as professoras partícipes desta pesquisa dividem a
atenção desses jovens com a arquitetura urbana e humana do Pelourinho, com os
tambores do Olodum, com as obras de artes dos museus, com a literatura de Jorge
Amado, com a Terça-feira da Bênção, com as cores dos casarões, com a
diversidade linguística e a energia que emana dos Pedros Arcanjos e das Terezas
Batistas, que no ar de sua graça, protagonizam histórias reais pelas vielas do
Pelourinho e estão inseridos num mundo culturalmente letrado.
Diante do exposto, junto a minha voz ao ecoar de outras na esperança de que
o grito em favor dos oprimidos inquiete outras vozes até fazer-se ouvir. Entendo que
aquele que aprende a ler e escrever deixa uma cópia do alfabeto diante de si para
servir-lhe de modelo, assim como o músico lê uma partitura para fazer ecoar notas
que tocam a alma. A luta em favor da EJA não é uma luta solitária, pois “um galo
sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos” (MELO
NETO,1975, P. 19-20). Letrar é, portanto, tarefa de todos. Que possamos fazer soar
os tambores da igualdade social e igualmente fazer ecoar o som dos “sorrisos” que
levarão para o “currículo” (ARAPIRACA, 2012) sabores, saberes e as traquinagens
que a linguagem permite na interação humana e solidária com o (s) outro (s).
29
2 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO E ACADÊMICO DA EJA
O presente capítulo contextualiza o cenário histórico e acadêmico da Educação
de Jovens e Adultos no Brasil. Considerei necessária essa retomada histórica para
melhor compreendermos a matriz que influenciou as práticas de letramento
presentes no âmbito escolar da EJA. Neste capítulo, apresento o espaço que as
discussões sobre a EJA ocupam no cenário educacional brasileiro, tendo em vista o
seu contexto sócio-histórico nas esferas mundial, nacional e estadual; a legislação
vigente; os programas de inclusão dos jovens, adultos e idosos; as pesquisas que
vêm sendo realizadas e que contribuem na oferta e na qualificação dessa
modalidade de ensino.
A Educação de Jovens e Adultos (EJA), no cenário educacional brasileiro, vem
sendo ofertada como modalidade de ensino pelos sistemas públicos municipais e
estaduais e por instituições da iniciativa privada, ONGs, igrejas e empresas. Essa
oferta de ensino contribui para a formação acadêmica desses alunos em um
conjunto de processos e práticas educacionais formais e informais, cobrindo uma
lacuna deixada pelo sistema de ensino regular.
A evasão escolar é um problema que afeta escolas de todo o país. Estudos
sobre a permanência de jovens em programas socioeducacionais (CAMPOS, 2003;
PROJOVEM, 2007b; PROJOVEM, 2008 apud SILVEIRA, 2014) mostraram que os
alunos da EJA se matriculam e abandonam, muitas vezes, logo no início do curso,
resultando em uma alta taxa de evasão que alarga o percentual entre alunos que
ingressam e os que concluem um programa educacional. A despeito disso, Silveira
(2014, p. 18) aponta os principais motivos da evasão escolar, destacando a
necessidade de se trabalhar; o convívio com a violência; problemas familiares;
dificuldade de acesso à escola; não adequação do ensino às exigências do mercado
de trabalho; horários incompatíveis; falta de material, entre outros.
Há um grande número de alunos entre 15 e17 anos que se encontra excluído
do processo de escolarização. O Estado e o Município adotam medidas para
enturmação e se omitem diante desse quadro de exclusão. É dever do Estado reunir
30
esforços em prol da qualificação da educação ofertada à Educação de Jovens e
Adultos no sentido de propiciar o acesso às classes de EJA e garantir a
permanência dos estudantes e a sua formação continuada para o desenvolvimento
de suas capacidades a fim de atender suas próprias necessidades e as da
sociedade.
O contexto da EJA, nos dias atuais, suscita reflexões para além de sua simples
oferta, haja vista o número de vagas ofertadas, a demanda da procura e a
permanência dos alunos nessa modalidade. É importante pensarmos no contexto
acadêmico em que essa questão se insere e nas ações que sustentam as práticas
de letramento de professores de Língua portuguesa nas classes de EJA – objeto de
estudo desta pesquisa – pensadas para qualificar o ensino da língua portuguesa
ofertada aos jovens, adultos e idosos regressos.
2.1 ENCONTROS NACIONAIS E INTERNACIONAIS DA EJA
A Educação de Jovens e Adultos, no Brasil, está apoiada nos Fóruns de EJA,
movimentos que militam em prol da educação de pessoas jovens, adultos e idosos.
Esses Fóruns nasceram da necessidade de preparação para a 5ª Conferência
Internacional de Educação de Jovens e Adultos (Confintea), movimento que surgiu
há 65 anos.
A 1ª Confintea realizou-se em Elsimore, Dinamarca, em 1949. Reuniu 106
representantes de 27 países e 21 organizações internacionais em um cenário de
pós-guerra. O trabalho das comissões indicou que os métodos, técnicas,
especificidades e funcionalidades da Educação de Jovens e Adultos deveriam ser
pensados, levando-se em consideração a comunidade escolar; a preocupação com
a oferta; as condições de vida das populações com vistas à produção de uma cultura
de tolerância e paz.
Em 1960, aconteceu a segunda conferência em Montreal, Canadá, em um
cenário de crescimento econômico. Esse encontro reforçou o importante papel da
EJA, entendido como tarefa mundial em que os países desenvolvidos deveriam
auxiliar aqueles em desenvolvimento.
31
Na 3ª Confintea, realizada na cidade de Tóquio, Japão, em 1972 cujo tema
central foi A Educação de Adultos no contexto da educação ao longo da vida, as
temáticas da alfabetização, educação permanente, mídia e cultura foram
amplamente discutidas. Reconheceu-se a Educação de Adultos como “fator
essencial para que dinamize um processo democrático, que contribua de maneira
efetiva para o desenvolvimento econômico, social e cultural das nações”.
(JARDILINO, 2014, p. 85)
“Aprender é a chave do mundo” foi o tema eixo que impulsionou as discussões
na 4ª Confitea realizada em 1985, em Paris, França, com forte influência das ideias
de Paulo Freire, reafirmando o direito à educação escolar de todo o indivíduo ao
longo da vida, definindo o direito de aprender a ler, escrever, questionar, analisar,
imaginar e criar, ler e escrever a sua própria história, entre outros temas. Discutiu-se
também sobre a construção de documentos normativos sobre o direito do adulto a
aprender e o impacto das novas tecnologias da informação no ensino e na
aprendizagem da pessoa adulta.
Após 48 anos, o Brasil participou da 5ª Confintea que ocorreu em Hamburgo,
Alemanha em 1997. Esta conferência é apontada, na história da EJA, como um
marco na compreensão do que seja a educação da pessoa adulta e propiciou uma
intensa preparação de documentos e relatórios sobre como essa modalidade vem
sendo considerada, ofertada e avaliada pelos poderes públicos. No Brasil, a
preparação para esta convenção deu origem aos Fóruns de EJA, hoje já
consolidados em todo o país. Os encontros discutiram “a aprendizagem de adultos
como ferramenta de direito, prazer e responsabilidade”. Jardilino (2014) declarou
que esses encontros reformularam o que se entende por educação de pessoas
adultas com a definição dada pelo art. 3º da Declaração de Hamburgo sobre a
Educação de Adultos
Por educação de adultos, entende-se o conjunto de processos de aprendizagem, formais ou não formais, graças aos quais as pessoas, cujo entorno social considera adultas desenvolvem suas capacidades, enriquecem seus conhecimentos e melhoram suas competências técnicas ou profissionais ou as reorientam a fim de atender suas próprias necessidades e as da sociedade. A educação de adultos compreende a educação formal e permanente, a
32
educação não formal e toda a gama de oportunidades de educação informal e ocasional existentes em uma sociedade educativa e multicultural na qual se reconhecem os enfoques teóricos baseados na prática. (Conferência Internacional De Educação de Jovens e Adultos,1997 apud UNESCO, 1999)
O Brasil sediou a 6ª Confintea que aconteceu em Belém, Pará, em dezembro
de 2009. Foi o primeiro país do Hemisfério Sul a ser palco desse congresso.
Discutiu-se o tema “Vivendo e aprendendo para o futuro viável: o poder da
aprendizagem e da educação de adultos”. Esse encontro ratificou a sua importância
como elemento fundamental do direito à educação, que precisa ser ampliado para
todos os jovens e adultos; fez um balanço dos avanços e conquistas ocorridos em
relação à educação de adultos; enfatizou, nos documentos construídos, a prioridade
que deve ser dada à alfabetização no contexto da educação continuada e da
formação profissional de todos aqueles que buscam a continuidade dos seus
estudos.
A partir desta explanação, destaco a importância destes encontros no sentido
de fortalecer os compromissos reafirmados e estabelecidos entre os países. É
preciso validar todo o processo que constitui ações de mudanças necessárias,
configurando a Educação de Jovens e Adultos como direito de todos, considerar o
contexto histórico, sociocultural de cada nação, estabelecer políticas de estado que
ampliem a sua oferta, garantir o acesso e permanência dos sujeitos da EJA,
qualificar e adequar o ensino conforme as especificidades dessa modalidade e
firmar compromisso com a sua educação ao longo da vida.
2.2 CENÁRIO HISTÓRICO DA EJA NO BRASIL
Os primeiros relatos sobre a EJA, no Brasil, reportam ao período colonial a
partir do sistema educacional desenvolvido pelos jesuítas a fim de doutrinar os
jovens e adultos nativos aos costumes da Coroa Portuguesa. Esse sistema durou
mais de dois séculos. A autonomia adquirida pelos jesuítas na criação do sistema
educacional não agradou à Coroa que resolveu interromper o processo educacional,
33
expulsando os jesuítas das colônias e findando a educação popular nessa época
(PILLETTI, 1988, p. 190).
O panorama da educação no Brasil sofreu alteração com a chegada da família
Real. O sistema educacional brasileiro deveria reorganizar-se para atender à
demanda da aristocracia portuguesa, tendo como necessidade a qualificação do
povo brasileiro e a potencialização de sua capacidade de letramento. Após a Revolta
dos Malês, fato ocorrido na cidade de Salvador, capital da Bahia, Brasil entre 24 e
25 de janeiro de 1835, os negros foram proibidos de aprender a ler e escrever. A
corte evidenciou que negros letrados configuravam um risco para os interesses do
império.
A partir da década de 1930, o sistema público de ensino consolidou-se, e o
advento da indústria e a concentração dos camponeses em espaços urbanos
contribuíram para ampliar o sistema de escolarização entre jovens e adultos. Nesse
período, a qualificação da mão de obra, a leitura e a escrita passaram a ser
exigências.
Após a década de 1940, a discussão sobre EJA ganhou fôlego no cenário
brasileiro (Brasil, 2001), as campanhas e movimentos sociais se fortaleceram e
empreenderam a luta pela alfabetização de jovens e adultos. A Era Vargas, após
1945, redemocratizou a Política de Estado, tendo influenciado diretamente a
educação e a alfabetização de jovens e adultos. Em 1946, a Educação foi
reconhecida como um direito de todos pela Constituição Federal, consolidando a
EJA em todo o Brasil. Criaram-se várias escolas de supletivo com o objetivo de
alfabetizar os jovens em três meses, contando com mão de obra voluntária já que os
professores não eram remunerados.
Em busca de uma política de conscientização de EJA a partir de 1960, os
movimentos sociais inspirados no pensamento pedagógico de Paulo Freire
empreenderam a luta pela democratização, tendo como bandeira: alfabetização para
todos. Em outubro de 1963, criou-se uma Comissão Nacional de Alfabetização para
construir o Plano Nacional de Alfabetização, que tinha na sua base o Método Paulo
Freire. Em janeiro de 1964, o MEC reuniu os principais movimentos de alfabetização
de adultos. A meta era alfabetizar cinco milhões de brasileiros e elevar o nível
34
cultural das classes populares. O plano criado em janeiro foi extinto em abril do
mesmo ano. Com o golpe de 1964 e a suspensão da democracia, o Brasil
enfrentava, nesse período, uma grave crise econômica, o corte nos investimentos foi
inevitável, e isso afetou diretamente os programas sociais, sobretudo os que
compunham a pasta da educação. Atualmente, esse cenário se repete, afetando
diretamente a educação de Jovens e adultos que teve cortes no orçamento e
diminuição no número de oferta de matrícula. Nesse cenário, marcado por
diferenças sociais significativas, surgem mobilizações em diversos setores da
sociedade, sobretudo na educação.
O Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL foi implantado em 1967,
iniciou suas atividades em 1970 e foi regulamentado em 1971 com a Lei nº 5.692,
tendo como objetivo a profissionalização, atualização e aperfeiçoamento da
comunidade de maneira geral (ROCCO, 1979, p. 77). O Mova-SP influenciou outros
Estados a desenvolver programas de alfabetização para jovens e adultos, ampliando
o movimento em todo o território nacional, tendo alfabetizado, ao longo desses anos,
cerca de 246.571 pessoas (GADOTTI, 2000).
A Ação Educativa que foi fundada em 1994, tendo como presidente Sergio
Haddad, é atualmente uma das organizações não governamentais mais presentes
no cenário brasileiro – tem como objetivo desenvolver ações que garantam os
direitos educacionais e culturais do jovem brasileiro. O Conselho Nacional de
Educação nº 11/2000 foi responsável, entre outros subsídios, por integrar a nova
concepção de EJA às diretrizes e normas da educação básica. (HADDAD, 2007
apud JARDILINO, 2014, p. 70-71)
Em 1996, criou-se o programa Alfabetização Solidária – AlfaSol, uma ação de
política educacional vinculada ao governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002),
tendo como objetivo reduzir os índices de analfabetismo e aumentar o acesso de
jovens e adultos à Educação Básica. Foi a primeira organização brasileira não
governamental a estabelecer relações formais com a Unesco, em 2005, por sua
atuação em nações como Cabo Verde, Timor Leste, Moçambique, São Tomé e
Príncipe e Guatemala.
35
Atualmente, grandes teóricos que atuam na EJA defendem a Educação
Continuada através da aprendizagem ao longo da vida – ALV. Nessa perspectiva,
Haddad (2009) lembra que a educação continuada deve ser construída por meio do
diálogo entre educador e educando e deve ser crítica com relação aos conteúdos
voltados para o desenvolvimento humano no seu sentido mais amplo.
2.3 ANPED-2015 – POLÍTICA, PESQUISA E PRÁTICA NO GT18
A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped),
fundada em 1976, reúne programas de pós-graduação stricto sensu em Educação.
Sem fins lucrativos, esta associação busca promover o desenvolvimento do ensino
de pós-graduação e da pesquisa, “a participação da comunidade acadêmica e
científica na formulação e desenvolvimento da política educacional do País”
(ANPED, s/d).
A trajetória acadêmica e científica dessa associação foi consolidada ao longo
dos anos e sua organização em Grupos de trabalho (GTs) e em Grupos de Estudos
(GEs) auxilia na promoção do debate entre pesquisadores, tanto em suas áreas
específicas quanto na inter-relação das áreas que discutem temáticas comuns. Ao
todo são 23 GTs que se encontram em reuniões Anuais ou Regionais. E nesse
contexto, está inserido o GT18 da Anped, locus privilegiado de importantes
discussões sobre a EJA.
A criação dos fóruns de EJA se deu em virtude do processo preparatório para a
V CONFITEA. As consequências advindas dessa ação foram vários conflitos e
demandas como resultado do processo de desrespeito ao direito à EJA e como
resultado da aprovação do FUNDEF e da LDB. Segundo Haddad, 2009, esses
encontros também colaboraram para superar a visão da educação de adultos como
resumida à superação do analfabetismo, passando a ser compreendida a partir da
perspectiva dos direitos humanos como uma forma ampla de ensinar e aprender em
que o aspecto escolar é apenas uma parte desse direito, devendo vir acompanhado
de outros direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais.
36
A partir dessas conquistas, os fóruns ganharam autonomia, configurando-se
como espaços de troca de informações, diálogos e controle de políticas públicas em
EJA. Desde então, os fóruns de EJA vêm se fortalecendo ao longo desses anos e
atuam na luta para criação, consolidação de políticas públicas em EJA que
passaram a ser controladas por eles, os quais se reúnem anualmente nos Encontros
Nacionais de Educação de Jovens e Adultos (ENAJAS) em cumprimento às
indicações de Hamburgo. Após uma longa discussão nos GTs de Educação Popular
e de Movimentos Sociais, alguns pesquisadores da área de EJA propuseram a
criação de um locus próprio para a discussão. Entre os nomes que constituem o
quadro de coordenação do GT18, encontra-se o da Professora Tânia Maria M.
Moura (UFAL).
A Anped, no ano de 2015, foi realizada em Santa Catarina. O GT18,
coordenado pela professora Rosa Aparecida Pinheiro, contou com a participação de
pesquisadores de grande renome nesta área de estudo, entre eles, Sérgio Haddad.
A Educação de Jovens e Adultos foi amplamente discutida. Procurou-se abordar o
panorama de três modalidades de pesquisa em políticas e práticas da EJA. A
primeira modalidade situou o “estado da arte”, apresentando pesquisas bibliográficas
que reafirmaram o patamar de conhecimento alcançado no campo da educação que
envolve pessoas jovens e adultas; a segunda modalidade fez uma análise das
políticas educacionais, cujas metodologias e abordagens teóricas se desenvolveram
originalmente na ciência política; e, por fim, a terceira modalidade discutiu temas que
abordaram a sistematização de práticas pedagógicas EJA.
A importância da criação do GT18 evidencia-se de diferentes formas.
Pesquisas realizadas nessa área fortalecem a luta pela democratização da
educação e dão maior visibilidade às discussões e ações em prol de uma EJA com
qualidade acadêmica e social. Além disso, trabalhos como os de Haddad (2009),
Jardilino (2014), Paiva (2004), Silveira (2011), André (2002), Freitas; Jardilino e
Nunes (2013) chamados de “estados da arte” de grande relevância acadêmica e
científica são divulgados e as ideias amplamente discutidas no cenário nacional.
Esses trabalhos mostram a relevância de criação de políticas públicas e a
necessidade de ampliação de pesquisas no contexto da EJA.
37
É preciso que o GT18 se mobilize no sentido de empreender esforços na luta
pela garantia dos direitos conquistados. O quadro político atual ameaça diretamente
a EJA e aumenta a responsabilidade dos fóruns em lutar pela garantia dos direitos
conquistados. Assim, é preciso fortalecer a presença da sociedade na reivindicação
desses direitos. Portanto, ampliar a participação dos professores nesses espaços de
luta é imprescindível. É tempo de fortalecer o enfrentamento em prol de garantir o
direito à EJA. Não há mais tempo a perder.
Hoje, com inúmeras discussões travadas sobre o tema, além de um amparo
legal estabelecido, a EJA não pode mais se limitar à reprodução do que se faz no
ensino regular. É preciso ampliar a participação dos professores nos fóruns de EJA
para que eles tenham uma atuação política engajada na luta pela democratização da
educação para jovens, adultos e idosos.
2.4 A EJA NO CENÁRIO BAIANO
No Estado da Bahia, a EJA vem sendo ofertada no sistema público estadual de
ensino desde a década de noventa, especialmente focada no momento de
passagem do Programa de Suplência de Educação Básica, implantado e executado
no período de 1993 a 1997 para o Programa de Aceleração I e II, implantado de
1998 a 2005, mantendo-se de acordo com o preceito da Constituição Federal de
1988 e da Lei de Diretrizes e Bases de 1996.
Apesar do esforço demandado nos últimos anos para cumprir o que está
previsto como direito constitucional — ensino fundamental para todos,
independentemente da idade — há muito por fazer, porque há em todo o território do
Estado da Bahia milhares de jovens entre 15 e 17 anos e adultos, excluídos do
direito à educação, gerando pobreza e miséria e determinando, em larga escala,
ausência de cidadania.
Para a garantia do direito desses jovens e adultos à Educação Básica, o
currículo deverá ser pautado em uma pedagogia crítica, que considera a educação
como dever político, como espaço e tempo propícios à emancipação dos educandos
e à formação da consciência crítico-reflexiva e autônoma. Nesse sentido, os
38
compromissos do Estado visam assumir um novo fazer coletivo, o qual se instituirá a
partir do diálogo com os próprios jovens e adultos e com os educadores e
educadoras da EJA. Objetiva-se, assim, contribuir com a democratização e
efetividade do processo educacional construído pela Educação de Jovens e Adultos
do Estado da Bahia.
Entre os compromissos firmados com a EJA no campo de Direitos Coletivos e
de Responsabilidade Pública, destaca-se a garantia de oferta de educação pública
de direitos para jovens e adultos com características e modalidades adequadas às
suas experiências de vida e de trabalho, garantindo condições de acesso e
permanência na EJA como direito humano pleno que se efetiva ao longo da vida e a
criação de programas de aceleração. Visando consolidar o compromisso com a EJA,
o Governo do Estado, em parceria com o MEC, criou em 2014 um programa de
aceleração que será aqui apresentado.
2.4.1 Projeto Ressignificando a Aprendizagem 2014/2015
Em 2014, participei do Projeto Ressignificando a Aprendizagem no Ensino
Fundamental, Anos Finais, um programa do Governo do Estado da Bahia destinado
à aceleração de estudos para jovens entre 15 e 17 anos de idade, que cursavam 6a
série (7° ano) e 7a série (8° ano) do Ensino Fundamental II, uma ação do Governo
do Estado da Bahia por meio da Secretaria de Educação do Estado em parceria com
o Ministério de Educação e Cultura – MEC. O programa foi regulamentado através
da PORTARIA N° 4749/2015, com efeito retroativo ao ano letivo de 2014,
considerando a Lei n° 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases para a educação nacional – art. 24, inciso V, alínea b, quando se
refere, explicitamente, à aceleração de estudos.
O Projeto “Ressignificando a Aprendizagem” se configura como uma proposta
pedagógica que possibilita aos estudantes, com distorção idade/série/ano, avançar
no seu percurso escolar por meio da aceleração de estudos, tendo como
metodologia o uso da telessala e da unidocência. O Projeto objetiva enfrentar o
desafio da defasagem idade-série no Ensino Fundamental, um dos grandes
39
problemas da educação no país, tendo como principal meta corrigir a defasagem
idade-série dos alunos entre 15 e 18 anos que cursavam do 7º ao 9º ano.
Com um currículo único, de abrangência nacional, o Telecurso incorporou
características regionais e locais à dinâmica das aulas, contextualizando o cenário
baiano, possibilitando aos estudantes descobrirem novas situações de
aprendizagem a partir de sua experiência de vida. Um conjunto de ações
estruturantes – como formação continuada de professores para atuar na EJA,
acompanhamento pedagógico e avaliação.
São pressupostos teórico-metodológicos do projeto: (1) a concepção de
Educação como prática da liberdade/autonomia/cidadania, que é progressista,
contribuindo para a transformação social com desenvolvimento sustentável e justiça;
libertária, estimulando as pessoas a desenvolverem autonomia e o poder de resolver
problemas e multicultural, favorecendo o diálogo entre diferentes culturas; (2) uma
teoria de aprendizagem e de conhecimento, que leva em conta o construtivismo, o
pensamento complexo, as bases biológicas da compreensão humana e as múltiplas
inteligências; (3) a concepção de aprendizagem docente na qual o professor é
formado para, repensando sua prática, assumir o papel de mediador pedagógico,
responsabilizando-se pela construção de uma comunidade de aprendizagem de
base dialógica; (4) a concepção de Avaliação coerente com a teoria de
aprendizagem e de conhecimento.
O Telecurso é uma tecnologia educacional reconhecida pelo Ministério da
Educação (MEC) e adotada como política pública em estados e
municípios. É utilizado para a aceleração da aprendizagem nos ensinos
Fundamental e Médio e na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A base que fundamentou esse programa, na Bahia, se assenta,
primordialmente, na leitura e na escrita, e de como são formados leitores nesse
tempo para variados suportes de texto, capazes de ler com criticidade e selecionar o
que devem ler em função dos usos e das demandas que têm diante de si.
Muitos projetos de leitura foram idealizados e realizados dentro da
perspectiva desse programa, concebendo que os sujeitos quando se apropriam do
que leem, são impregnados de sentidos próprios por se descobrirem produtores de
40
sentidos que a experiência de autores, de sujeitos em experiência com o mundo e
com os textos são capazes de atribuir.
Um desses projetos de leitura foi apresentado às professoras participantes
deste estudo. Como procedimento de pesquisa, analisei com o grupo novas práticas
sociais de leitura, tomando como referência situações de aprendizagem a partir da
experiência de vida dos educandos e educandas da EJA. Com base nesse projeto,
as docentes construíram propostas de aulas que consideraram o contexto social e
multicultural em que os alunos da EJA do CEAF estão inseridos. Tais propostas
serão apresentadas no capítulo V.
2.5 A FORMAÇÃO POLÍTICA DO PROFESSOR DA EJA
Ao engajar-se na luta para garantir o direito à alfabetização, é essencial que o
professor de Língua Portuguesa esteja informado sobre as discussões geradas no
entorno da EJA, sobretudo porque os resultados das pesquisas, já vistos antes,
apontam um alto índice de pessoas analfabetas no Brasil em idade entre 15 e 64
anos (HADDAD, 2009). Em função disso, consideramos importante o envolvimento e
a formação política do professor de LP nas questões que envolvem a EJA. Mas é
necessário empenho para adotar um projeto político pedagógico diferenciado e
específico, capaz de atender à enorme diversidade do público que tem direito a
aprender a ler e a escrever. Pontuamos aqui a relevância desse aspecto, uma vez
que as classes de EJA são compostas por alunos de faixas etárias variadas desde
os 15 até os 64 anos de idade, oriundos de universos culturais e visões de mundo,
de tempo de escolarização e de concepções de escolas, de vivências e práticas de
letramentos diversos. (JARDILINO, 2014)
A dimensão política do professor da EJA converge numa política engajada
com a justiça social e a luta por direitos violados que estigmatizou grande parte da
população brasileira excluída do processo de escolarização em tempo hábil. Pensar
a educação enquanto instrumento articulador de conhecimento para a construção e
constituição de novas identidades que abarquem as múltiplas facetas do
conhecimento tem sido um desafio ímpar para um país de contradições histórico-
sociais insondáveis.
41
As leis que consolidam o direito à EJA, além de representar uma dialética
entre dívida social, transformam em obrigatoriedade e gratuidade a Educação para
todos aqueles que não tiveram acesso a ela na idade própria e garantem também “o
atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de
programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e
assistência à saúde” (BRASIL, 1988). Este pensamento se faz necessário para que
possa se compreender o escopo da educação que propõe alcançar as
multiplicidades inerentes ao universo dos sujeitos que sofreram processos
institucionalizados de exclusões.
A luta pela democratização de uma escola pública e inclusiva desafia a práxis
pedagógica na EJA e convoca os educadores que atuam nessa modalidade a uma
tomada de consciência de sua atuação política e de seu papel na inclusão social e
formação cidadã dos educandos da EJA.
Um professor engajado com a promoção de Políticas Públicas para a EJA
reconhece que ensinar a ler, antes, é um ato político e um direito humano (FREIRE,
1997) previsto por lei e que, portanto, compreender a necessidade de criar políticas
públicas para a formação de professoras para atuarem na EJA, aderindo à luta pela
promoção da alfabetização e letramento para todos, é uma peça chave que ajudará
a compor o quebra-cabeça que forma a EJA e está vinculado a um desejo de
compreender as suas facetas para melhor atender as demandas líquidas desta
modalidade de ensino.
Isso requer reflexão sobre sua prática, planejamento adequado para essa
modalidade, metodologias fundamentadas na LDB para a EJA, melhor qualificação
do trabalho em sala de aula, adoção de projetos de leitura para desenvolver a
linguagem. Assim, os professores constroem um conhecimento pessoal, constituído
de vários saberes, advindos de “princípios diversos que podem ser tanto de
experiências e vivências pessoais e sociais, como também do trabalho, os quais irão
influenciar sua prática e constituir seus habitus” (TARDIF, 2014, p. 19).
Os professores compartilham, em sala de aula, concepções e saberes
produzidos na academia, de sua memória afetiva, das experiências que tiveram com
seus antigos professores e de suas experiências como aluno/alunas do ensino
42
regular. Esse distanciamento pode ser visto como um choque da dura realidade,
porque ao entrar na sala de aula da EJA, por exemplo, os professores percebem a
limitação de seus saberes pedagógicos ao constatar que é preciso redimensionar
valores, olhares, concepções, e adaptar à realidade dos alunos da EJA, a didática,
os métodos, o currículo etc. Por isso, o professor da EJA precisa de formação
continuada específica, tanto na área quanto na modalidade em que atua.
Outro ponto considerável é que o professor da EJA trabalha com um sujeito
que, apesar de ser objeto social, encontra-se excluído da sociedade. O desafio
desse profissional é transformar os alunos, educá-los e instruí-los para serem
incluídos socialmente. Isso envolve outros saberes, outros conhecimentos e
reconhecimentos, e a construção de vínculos afetivos, de sentimentos recíprocos, de
valorização do ser integral e de relações complexas entre professor e aluno. É
preciso inscrever no próprio cerne do saber dos professores a relação com o outro e,
principalmente, com esse outro coletivo representado por uma turma de alunos.
(TARDIF, 2014)
Essa preocupação se acentua entre os profissionais atuantes nas classes de
EJA que buscam meios eficientes de ofertar um ensino de Língua Portuguesa capaz
de emancipar o sujeito e incluí-lo socialmente. Por essa razão, o sonho e a utopia
fazem parte do cotidiano desses docentes que não tiveram formação específica para
atuarem nessa categoria de ensino, mas não perderam a capacidade de sonhar em
realizar um trabalho que garanta aos jovens e adultos o direito à leitura autônoma.
É dever da escola garantir a formação leitora desses alunos e estabelecer
pontes referenciais com a sociedade com o propósito de incluí-los socialmente. Daí
a importância de pensar a formação do professor e analisar as condições de
produção do seu saber social, profissional e identitário.
2.6 DEMANDAS E DESAFIOS DA EJA NO SÉCULO XXI
O Estado pode mobilizar investimentos em programas mais eficazes para a
alfabetização de jovens e adultos, mas falta, efetivamente, interesse político. Há
muito por fazer no âmbito da EJA. É preciso reunir esforços para garantir ao jovem e
ao adulto o direito de ler e se (in) formar e/ou concluir o seu processo formativo.
43
Não há como mudar essa realidade sem programas específicos para essa faixa
etária.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na
Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (Pnad) realizada em 2014, a taxa
de analfabetismo de pessoas entre 14 e 64 anos de idade corresponde a 8,5% da
população brasileira. Embora esse número tenha diminuído ao longo de 10 anos,
evidencia-se que o jovem brasileiro ou não lê, ou lê pouco, configurando o Brasil
como um país de não leitores, ideia que contraria o pensamento de Monteiro Lobato
– um país se faz de homens e livros.
As estatísticas apontam a crise no cenário educacional brasileiro quando
denunciam, através de seus resultados, que brasileiros com mais de 15 anos não
sabem ler e escrever; ainda assim, não há interesse por parte da instância federal
do governo avaliar o nível de aprendizagem do público da EJA; não busca criar
espaço de diálogo e reflexão nem estratégias de ensino para elevar a qualidade do
ensino da leitura e a formação profissional.
O quadro a seguir descreve os níveis de leitura, na área de Língua Portuguesa,
definidos pelo Instituto Paulo Montenegro e a Ação Educativa.
ANALFABETOS
FUNCIONAIS
DEFINIÇÃO
Analfabetismo Corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas
simples que envolvem a leitura de palavras e frases
Alfabetismo Rudimentar Corresponde à capacidade de localizar uma informação explicita em
textos curtos e familiares (como um anúncio, uma pequena carta).
Alfabetismo Básico
As pessoas classificadas nesse nível podem ser consideradas
funcionalmente alfabetizadas, pois já leem e compreendem textos de
média extensão, localizam informações mesmo que seja necessário
realizar pequenas inferências.
Alfabetizados
funcionalmente
Alfabetismo pleno
Compreendem e interpretam elementos usuais da sociedade letrada:
leem textos mais longos, relacionando suas partes, comparam e
interpretam informações, distinguem fato de opinião, realizam
inferências e sínteses.
Quadro1 – Escala de proficiência – Inaf
44
Com base na escala de proficiência, o Indicador de Alfabetismo Funcional
(Inaf) de 2015 informa que 27% das pessoas foram classificadas como analfabetas,
porque não realizam tarefas simples que envolvam leitura de palavras e frases. A
quantidade de pessoas com idade entre 15 e 64 anos nessa condição se mantém
estável na comparação com os resultados obtidos em 2011 na última edição do Inaf
Brasil. (RIBEIRO et al, 2015, p. 33).
Gráfico 1 – Distribuição da população pesquisada por grupos de alfabetismo e faixa etária
A partir dos dados do Gráfico 1, verifica-se sobre o nível de leitura: maior
predominância da população com idade acima de 50 anos entre os níveis inferiores
da escala: Analfabeto (52%) e Rudimentar (38%) e reduzido percentual de pessoas
dessa faixa etária entre os grupos nos intervalos mais altos da escala de
proficiência, grupo Intermediário (13%) e Proficiente (7%). Menor proporção dos
segmentos mais jovens (entre 15 e 24 anos) nos níveis mais baixos, Analfabeto
(8%) e Rudimentar (17%), fazendo com que 25% desse grupo situem-se na
condição de analfabetismo funcional. Esses resultados refletem a ausência de
programas efetivos de letramento na escola pública brasileira e a baixa qualidade da
educação ofertada à EJA.
É preciso reunir esforços, em termos de políticas educacionais, no ensino e
aprendizagem da leitura a adolescentes e a pessoas adultas na educação básica,
garantindo-lhes boas condições de desenvolvimento cultural, acesso e permanência
em escola de boa qualidade e viabilizar uma aprendizagem eficaz para a sua
45
formação cidadã, sua emancipação e sua ação sobre o mundo. Há muito que se
discutir e pôr em prática.
Novas metas para educação foram aprovadas na 47ª Sessão da Comissão
Estatística das Nações Unidas que reuniu 72 países. Das 230 metas, destacam-se
apenas 03 indicadores que preveem mudanças para a educação de jovens e
adultos. Das 230 metas, destacamos, na tabela 4, os indicadores que preveem
mudanças para a educação de jovens e adultos até 2030:
OBJETIVOS INDICADORES
4.3 Até 2030, garantir acesso igualitário
para todas as mulheres e homens ao
ensino técnico, vocacional e terciário
acessível e de qualidade, incluindo
universidade.
4.3.1 Taxa de participação de jovens e
adultos na educação formal e não formal e
treinamento nos últimos 12 meses.
4.4 Até 2030, aumentar substancialmente
o número de jovens e adultos que
tenham habilidades relevantes, incluindo
habilidades técnicas e vocacionais para o
emprego, trabalho decente e
empreendedorismo.
4.4.1 Porcentagem de jovens/adultos com
habilidades em tecnologia da informação e
comunicação (TIC) por tipo de habilidade.
4.6 Até 2030, garantir que todos os
jovens e uma porção substancial de
adultos, ambos homens e mulheres,
estejam alfabetizados e alcancem noções
de letramento [...].
4.6.1 Porcentagem da população em um
dado grupo etário que alcançou no mínimo
um nível fixado de proficiência em habilidades
funcionais de (a) alfabetização [...].
4.7 Até 2030, garantir que todos os
estudantes adquiram conhecimentos e
habilidades necessárias para a promoção
do desenvolvimento sustentável,
incluindo, entre outros, educação para o
desenvolvimento sustentável e estilo de
vida sustentável, direitos humanos,
equidade de gênero, promoção de uma
cultura de paz e não-violência, cidadania
global.
4.7.1Porcentagem de estudantes de 15 anos
de idade matriculados no ensino secundário
que demonstram um nível mínimo fixado de
conhecimentos sobre a seleção de tópicos
em meio ambiente e geociências. A exata
gama /opções de tópicos irá depender de
questionários ou avaliações nos quais os
indicadores serão selecionados.
Quadro 2 - Objetivos e Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (Unesco)
46
Os 230 indicadores referentes aos objetivos de Desenvolvimento Sustentável
não preveem, em nenhum parágrafo, recursos para a meta de educação de adultos,
não garantem a mobilização de recursos internacionais para financiar políticas
públicas para a EJA, nem a inclusão e a promoção de oportunidades de
aprendizagem ao longo de sua vida, conferindo menor importância a esse público
que historicamente tem sido deixado em segundo plano.
A meta 4.6, em relação à alfabetização de adultos, permaneceu sem incentivo
para erradicar o analfabetismo entre a população adulta. A meta 4.4 busca aumentar
a porcentagem de jovens e adultos com habilidades técnicas e vocacionais para o
mundo do trabalho. Ambas abrangem a formação e qualificação dos jovens e
adultos, porém não consideram buscar meios para a erradicação do analfabetismo
entre esse grupo, o que afeta as possibilidades de expansão e aprimoramento do
alcance dessas próprias metas, tendo em vista a alfabetização como requisito
básico para a plena formação. Diante desse quadro, impera a dúvida: de que
maneira esses indicadores serão alcançados diante da atual reforma econômica que
limita os investimentos em educação e sem políticas públicas para a formação de
professores para atuar nessa modalidade?
Será que até 2030 conseguiremos democratizar a educação e amenizar o
problema da exclusão que afeta, principalmente, os jovens, adultos e idosos que
vivem na Região Nordeste? Que parte desse latifúndio caberá aos Severinos e
Marias? Eles brindarão a morte em vida, soletrarão o seu nome na identidade, no
contrato de trabalho, ou ficarão à deriva nas margens sociais, configurando um
contingente que se espalhou de forma desigual nas diferentes regiões do país?
As medidas implementadas pelo Governo Temer, em 2016, que preveem
redução de investimentos na Educação, afetaram diretamente a Educação de
Jovens e Adultos com a suspensão do programa Brasil Alfabetizado, a exclusão do
setor de operacionalização de políticas inclusivas do MEC e o corte da verba para a
aquisição do livro didático. Esses cortes afetam mais de 3,4 milhões de jovens e
adultos matriculados em classes de EJA que terão, mais uma vez, o seu percurso
formativo interrompido. A EJA depende de programas e criação de políticas públicas
para garantir a alfabetização desse público. Hoje há 8,3% de analfabetos no Brasil
47
com mais de 15 anos de idade, a meta desse programa era reduzir essa estatística
até 2015 para 6,3%, mas a Unesco já declarou que essa meta não foi atingida
(IBGE, 2016).
A suspensão do programa nacional Brasil Alfabetizado para jovens e adultos
que dava acesso aos sistemas de ensino ficou comprometido e a meta para
erradicar o analfabetismo longe de ser atingida. Os indicadores de analfabetismo
entre jovens e adultos ainda são elevados, sobretudo na região Nordeste onde se
concentra 54% dos analfabetos do país como mostra o quadro a seguir:
Região Percentual de Analfabetos
Nordeste 16,6
Norte 9,0
Centro-Oeste 6,5
Sudeste 4,6
Sul 4,4
Brasil 31,6
Quadro 3 – Taxa de Analfabetismo (%) em 2004 e 2014, por região, entre a população de 15 anos
ou mais tarde. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/Penad 2014)
Esses dados comprovam que o número de analfabetos com mais de 15 anos é
mais elevado nas regiões com maior índice de pobreza. Isso evidencia que quanto
mais baixo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mais alta a proporção de
analfabetos.
É dever do Estado garantir a educação dos jovens e adultos e isso é
assegurado por lei constitucional. A Constituição Federal do Brasil/1988 incorporou
como princípio que:
[...] toda e qualquer educação visa o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (CF. Art. 205). Retomado pelo Artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9.394/96, este princípio abriga o conjunto das pessoas e dos educandos como um universo de referência sem limitações. Assim, a Educação de Jovens e Adultos e Idosos, modalidade estratégica do esforço da Nação em prol de uma igualdade de acesso à educação como bem social, participa deste princípio e sob esta luz deve ser considerada. (BRASIL, 1988)
48
A Educação de Jovens e Adultos está baseada no que determina a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDB 9.394.96, no Parecer CNE/CEB
Nº11/2000, na Resolução CNE/CEB Nº01/2000, no Plano Nacional de Educação
(Lei 10.172/01), no Plano de Desenvolvimento da Educação, nos Compromissos e
acordos internacionais. Portanto, a exclusão de programas voltados para esse
público é um ato inconstitucional.
Arroyo (2005) descaracteriza EJA de uma concepção meramente
compensatória. Para ele, a EJA precisa ser reconfigurada como uma política coletiva
de direitos sociais e coletivos. Propõe uma educação linguística para além das
relações entre trabalho, prática social e reprodução social, que potencialize “a
relação entre produção e apropriação das objetivações genéricas do ser social para
si: ciências, arte, filosofia, moral e política” (BRITTO, 2012, p.82).
Enfim, o desenvolvimento de uma nação depende da emancipação de seu
povo, e isso demanda investimentos que garantam o direito à alfabetização,
qualificação profissional, investimento em educação e a busca pela melhoria das
condições de vida de todas as pessoas.
Apresentei, neste capítulo, um breve panorama histórico sobre a EJA, tendo
em vista o seu contexto político, social e acadêmico, analisando as expectativas da
sociedade em relação ao sujeito adulto alfabetizado e letrado. Suscitei uma breve
discussão acerca dos desafios, demandas e necessidades da EJA para o século XXI
e analisei o quadro atual e o descaso com que a política atual vem tratando a EJA
no Brasil.
A Educação de Jovem e Adulto é um campo desafiador que postula tomada de
decisões urgentes, sobretudo, pelos índices alarmantes que o Brasil vem ocupando
no cenário mundial nas últimas décadas. Há milhares de jovens excluídos da
educação básica, é desmedido o número de adultos e idosos analfabetos e/ou que
não concluíram seus estudos. Esses dados aumentam o índice de pobreza, visto
que a sociedade “letrada” considera incapaz o falante que não legitima em sua
oralidade, escrita e leitura o domínio da língua portuguesa. O saber falar, ler e
escrever sobrepõe o saber fazer e o saber ser. Portanto, a descolarização é
responsável por grande parte das mazelas da sociedade.
49
Tais reflexões ressaltam a urgência de inserirmos, nesse debate, a
manutenção dos programas para a erradicação do analfabetismo em nosso país, as
políticas públicas de inclusão do professor de Língua Portuguesa que atua nas
classes de EJA, e a necessidade de implementar, nas escolas públicas, práticas de
letramento que desenvolvam as competências linguísticas que os alunos da EJA já
possuem. Vivemos um momento de mudança de paradigma no ensino da língua
com questões que envolvem letramento e alfabetização. A sociedade letrada exige
competência para atuar em práticas sociais de leitura, assim, além de alfabetizar é
preciso escolarizar tais práticas.
Para isso, é necessário organizar um currículo que atenda às necessidades
específicas e urgentes do público da EJA, visando a sua formação leitora para uma
atuação competente, na sociedade letrada, reconhecendo seu lugar no mundo. Daí
a necessidade de teorizarmos as práticas de letramento para fundamentar as
discussões sobre a EJA. Essas teorias constituem o corpus do capítulo III.
50
3 LETRAMENTO(S) NA EJA: SABERES E CONTRADIÇÕES
Na era romântica, a leitura ao ar livre estabelece uma estreita correspondência entre a harmonia da Natureza e a força da Palavra divina, a mediação religiosa e a presença do universo.
(CHARTIER, 1999)
.
A tessitura deste capítulo externa reflexões advindas de leituras, pesquisas e
indagações acerca das concepções de linguagem, leitura e as práticas de
letramento que permeiam o ensino de Língua Portuguesa nas classes de EJA,
tomando os Eixos IV e VI. Propomos um diálogo para compreender as discussões
atuais que giram em torno das concepções de língua e linguagem, leitura e
letramento. Desse modo, as teorias que propomos discutir fazem-se necessárias
para analisar o objeto de estudo: a prática de ensino da Língua Portuguesa com foco
no ensino da leitura, nas classes de EJA, de uma escola pública estadual situada no
Centro Histórico de Salvador.
Ao traçarmos as teorias que fundamentam esta pesquisa, envolvemos várias
linhas de estudos consideradas importantes para a discussão a que se propõem
esses escritos. Procurei dialogar com diferentes autores, trazendo outras vozes para
fundamentar reflexões, responder às indagações e aquietar as angústias advindas
do processo de ensino e aprendizagem da leitura nas classes de EJA. Acolhi, para
este estudo, na linha da leitura, as ideias de Koch (1996), que considera a leitura
como uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos que se
realiza, evidentemente, com base nos elementos linguísticos do texto presentes na
superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um
vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. Ou seja, o leitor
interage com o autor mediado pelo texto. Com isso, compreendemos que o texto é
lugar de constituição e de interação dos sujeitos. Com Kleiman (2002), adentramos a
Teoria Cognitiva. A autora discorre sobre os procedimentos mentais envolvidos na
produção de sentidos e considera as abordagens de leitura numa perspectiva
51
interacionista de base discursiva, ressaltando a natureza dialógica e social da
linguagem.
Sobre os novos estudos na área do Letramento, que vêm sendo utilizados no
meio acadêmico para se entender o abismo que se formou entre as práticas
linguagem e os diferentes usos sociais da leitura, incluindo a alfabetização, tomei
para reflexão as ideias de Kleiman (2002), considerando os processos sócio-
histórico e cultural envolvidos nas construções de sentido e o conceito de letramento
social defendido por Street (2014), bem como as concepções de letramento que
Soares (1998) e Rojo (2009) legitimam em seus escritos.
A ideia do pressuposto teórico emergiu da necessidade de analisarmos o
ensino de Língua Portuguesa, nas classes de EJA, compreendendo que o
aprendizado da leitura não tem garantido a plena inserção social das pessoas que
concluem os cinco primeiros anos do Ensino Fundamental e, em idade defasada,
dispõem-se a continuar os estudos, visando à aprendizagem da leitura e da escrita.
Essas pessoas encontram dificuldade e não conseguem emergir no processo de
leitura quando os conteúdos e as exigências da linguagem se tornam mais
complexas e densas. Diante desse impasse que dificulta a potencialização do ensino
da leitura, o que propõem os professores para sanar essas dificuldades e garantir o
direito à plena alfabetização, considerando seu nível de letramento e os eventos
sociais a que estas pessoas estão envolvidas?
3.1 LEITURA E INTERAÇÃO ENTRE TEXTO-AUTOR-LEITOR
O encontro do sol com o mar num final de tarde nos proporciona um espetáculo
de esplendor ao contemplarmos o crepúsculo. É um quadro pintado pelas mãos
divinas do Criador. A plenitude desse encontro é perceptível na melodia silenciosa
que embala as nuvens douradas, contrastando com o azul esverdeado do céu. A
beleza desse momento harmoniza natureza humana e natureza divina num enlace
que envolve prazer, deleite e gozo. Assim também descrevo o encontro entre um
leitor e seu objeto de desejo – o livro – que fala de si com o outro. O silêncio é
cúmplice dos amantes que se tocam mutuamente; e entre o toque físico – humano –
52
e o toque anímico – espiritual – há um encontro de almas que se entrelaçam – a do
autor que se expõe e a do leitor que brinda esse momento, degustando o melhor do
outro.
Entendo com isso que o desejo de ler um livro, constitui o ato de ler como um
processo que envolve leitor-autor-texto, interagindo, produzindo sentidos. Como bem
define Chartier (1999), toda história de leitura supõe, em seu princípio, esta
liberdade do leitor que se desloca, interage com o livro, provocando uma fusão de
sentimentos, emoções, ideias e produção de sentido. “O leitor é um caçador que
percorre terras alheias e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor” (p. 77). Mas
essa liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas
das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as
práticas e os objetivos da leitura.
Tal interação demanda um processo cognitivo que ative os conhecimentos
prévios do aluno, sua experiência, história, memória e emoção. Portanto, o ato de
ler, nessa concepção, não está centrado apenas nas ideias do autor. Diferentemente
de um processo insociável, silencioso, isolado, a leitura implica um processo
dialógico mediado pela palavra, envolvendo leitor-autor, “confundindo-se com uma
tomada de posição sobre o que é dito e compreendido” (BAKHTIN, 1992, p. 265). A
leitura como um processo de construção de sentido é, pois, um ato de raciocínio,
porque o leitor ativa vários saberes a fim de elaborar a interpretação das
informações dispostas no texto e dos seus conhecimentos. Portanto, a leitura, do
ponto de vista interacionista, configura-se como um processo que se constitui a
partir do momento em que o leitor interage com o texto, produzindo sentidos.
Tal concepção de leitura, que permeia os estudos atuais, é resultado de
discussões que refletem ideias interacionistas. Para isto, o leitor impulsionado por
propósitos pré-definidos, ativa saberes construídos ao longo de sua vivência e
munido de estratégias para compreender o texto, interage com o objeto – texto –
produzindo sentidos. À medida que a leitura vai se tornando mais densa, o leitor
proficiente supervisiona constantemente sua própria compreensão. Essa concepção
de leitura abrange o arcabouço teórico delineado para a nossa pesquisa a partir das
53
concepções de Koch (2006), Freire (1997), Chartier (1999, 2015), Geraldi (1996),
Muniz e Silva (2009).
Koch (2006) considera a leitura como uma atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos
elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de
organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior
do evento comunicativo, ou seja, o leitor interage com o autor mediado pelo texto.
Com isso, compreendemos que o texto é lugar de constituição e de interação dos
sujeitos. Para interagir e/ou produzir sentidos, o leitor dialoga com o texto e vai
encontrando em sua memória afetiva elementos simbólicos que ativem a sua
compreensão e a partir desse mecanismo o leitor, interpreta, infere, contextualiza. É
na interação com o autor-texto que o sujeito leitor vai construindo sentidos para o
texto, considerando as “sinalizações” textuais dadas pelo autor e os conhecimentos
do leitor que, em todo o processo de leitura, deve assumir uma atitude “responsiva
ativa”, ou seja, “espera-se que o leitor concorde ou não com as ideias do autor,
complete-as, adapte-as etc. uma vez que toda compreensão é prenhe de respostas
e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz” (BAKHTIN, 1992, p. 290).
Nos argumentos anteriores, explicitamos a concepção de leitura como uma
atividade de produção de sentidos. Essa concepção sustenta as discussões sobre
leitura nos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, p. 69-70):
A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas.
Nesse sentido, o papel do leitor, enquanto construtor de sentido, é reforçado
durante o ato de ler. Nesse momento, a interlocução é feita a partir de recursos
estratégicos para compreender o texto, tais como “seleção, antecipação, inferência e
54
verificação” (KOCH, 2006, p. 13). Destacamos ainda que o processo de interação
entre autor e texto demanda motivação, propósito, ou seja, com que finalidade o
sujeito se predispõe a ler: para manter-se informado, por puro prazer, para
profissionalizar-se, realizar pesquisas etc. E nessa interação entre texto-autor-leitor,
o leitor vai se constituindo sujeito de e pela linguagem, isto é, a leitura potencializa o
desenvolvimento da linguagem.
Os objetivos do leitor diante de um texto determinarão o modo de leitura, o
tempo dedicado, a atenção dispensada, o maior envolvimento ou não, considerando
a materialidade linguística do texto, elemento sobre o qual se constitui a interação.
Considero esse último aspecto de extrema importância, sobretudo, porque a escola
tem privilegiado os textos canônicos sem dar conta do letramento social, das
variantes dialetais e do nível de compreensão dos alunos. Os textos usados em
sala de aula não validam a história de leitor dos alunos da EJA, tampouco o nível de
compreensão leitora desses alunos. Como eles vão interagir com o texto sem, no
mínimo, conhecer o léxico, a semântica? Certamente, isso dificultará o processo de
produção de sentido não havendo dialogicidade, interação entre autor-leitor.
Nesse sentido, concordamos com Koch (2006, p. 19), quando justifica a
posição de se falar de um sentido para o texto e não do sentido, visto que, na
atividade de leitura, o sujeito ativa: lugar social, vivências, relações com o outro,
valores da comunidade e conhecimentos textuais. Portanto, considerar o leitor e
seus conhecimentos, e que esses conhecimentos são diferentes de um leitor para
outro, implica aceitar uma pluralidade de leituras e de sentidos em relação a um
mesmo texto.
Daí a importância de se realizar um trabalho inventivo com os gêneros
discursivos, que são inesgotáveis, e que fazem parte do contexto diário dos alunos
da EJA, tendo em vista o mundo letrado que nos cerca. Diariamente, nos deparamos
com textos orais (os diálogos do cotidiano) e escritos (os textos publicitários), por
exemplo, que exploram as dimensões da linguagem verbal e não verbal:
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque, em cada campo dessa atividade, é integral o
55
repertório de gêneros do discurso que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. (BAKHTIN, 1992, p. 262)
Para Geraldi (1996, p. 71), aprender a ler é ampliar as possibilidades de
interlocução com pessoas que jamais encontraremos frente a frente e, por
interagirmos com elas, sermos capazes de compreender, criticar e avaliar seus
modos de compreender o mundo, as coisas, as gentes e suas relações.
Consideramos um avanço importante pensar leitura nesse contexto.
Portanto, pensar leitura na EJA, como um potencializador dos letramentos
sociais, é garantir que o jovem, adulto e idoso tenha acesso à leitura, e isso
pressupõe adentrar num campo de luta engajado com o compromisso de realizar
projetos pedagógicos que visem ao ensino da leitura como instrumento de
emancipação cidadã e de construção democrática, porque ler é um direito de todos,
e essas ideias devem ser incorporadas ao ensino de Língua Portuguesa.
Há um senso comum que defende a ideia de que a EJA não forma leitores, que
os alunos inseridos nessa modalidade (não gostam de ler, têm aversão à leitura, têm
preguiça de ler, não dominam o processo de leitura e escrita). Mas que ensino de
leitura a escola tem ofertado aos educandos e educandas da EJA?
Os professores que ensinam Língua Portuguesa nos Eixos IV e VI afirmam que
os alunos, ao regressarem à escola, por passarem muito tempo sem contato com a
leitura, criam resistência em ler os textos propostos. Mas que leituras têm sido
ofertadas em sala de aula? Leituras que emudecem o pensamento, sem contexto,
sem sentido, sem porquês, sem sabor, sem saber dialogar com o jovem, adulto e
idoso. São leituras que não se leem, porque não leem o leitor. Há que se oportunizar
espaço/tempo de planejamento para se pensar na “pedagogia do desejo de ler”
(MUNIZ, 2010) e suscitar no aluno da EJA o desejo de ler textos para se deleitar ou
ler para aprender a aprender.
Há quem busque prazer no texto literário que exala o perfume da Florbela ou
se cala diante do silêncio da Rosa de Hiroshima. Há quem se deleite com a gênese
do mundo, alimentando o espírito com a palavra sacrossanta que lhes restaura a fé;
há quem procure um texto para sorrir, outros choram com a dor do herói que tarda
56
em conquistar sua amada; há os que se mantêm informados com as notícias diárias;
ou os que buscam se profissionalizar; e há outros ainda, que se afastam da leitura
legítima definida pelo cânone escolar, porque escolhem textos “selvagens”. O que
define leitura e leitor? Quem define o que é leitura e leitor?
Ao refletir sobre a leitura pós-alfabetização, negada pela escola aos alunos da
EJA, que, em tempo pré-definido, não conseguiram garantir a aquisição da leitura e
da escrita, remete-nos à importância do ato de ler defendido por Freire (2011). Todo
sujeito tem direito à aprendizagem da leitura em qualquer tempo. O autor brinda-nos
com seus escritos ao difundir a compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota
na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e
se alonga na inteligência do mundo e, nessa concepção, linguagem e realidade se
atraem. Ao lermos um texto, compreendemos seus escritos e isso implica a
percepção das relações entre o texto e contexto, resultado da compreensão da
palavra-mundo.
Um avanço importante dessas concepções são as experiências mais recentes
que incorporam a visão de alfabetização como processo que exige um grau de
continuidade e sedimentação. A formação leitora advém dum processo contínuo,
pois todo sujeito se constitui leitor no dia a dia, na interação com o mundo, com as
pessoas, nas experiências discursivas ao longo de sua vida e não apenas no
período de alfabetização. Com isso, entendemos que é tempo de ler e fazer
acontecer a aprendizagem da leitura nas classes de EJA. A idade não é obstáculo
para aprender a ler ou ler para aprender.
Há muito que se pensar sobre o que se propõe como prática de letramento nas
classes de EJA, nos Eixos IV e VI, quando há três problemas: (1) há professores
que se recusam a alfabetizar letrando por não serem formados para alfabetizar; (2)
outros não criam espaço e tempo de leitura que contemplem as experiências de vida
dos estudantes da EJA, (3) outros, ainda, tomam o texto como objeto de dissecação
gramatical e/ou a leitura com foco no texto, considerando a língua como estrutura
cuja concepção corresponde a de sujeito determinado, “assujeitado” pelo sistema,
caracterizado por uma espécie de “não consciência” (KOCH, 2016, p. 10).
57
Nesse sentido, o ensino e a aprendizagem da leitura, na escola, devem refletir
sobre as novas demandas de leitura exigidas pela sociedade cada vez mais
centrada no uso social da escrita. No entanto, a prática social da leitura e da escrita
não é uma exigência atual, ela nos remete há tempos remotos, assim, julguei
essencial analisar no tópico a seguir o contexto histórico-sócio-cultural em que a
palavra letramento surgiu no Brasil.
3.2 EM DIÁLOGO COM A HISTÓRIA DO LETRAMENTO
Na década dos anos 80, enquanto no Brasil as estatísticas apontavam altos
índices de analfabetismo, os países desenvolvidos como Austrália, Estados Unidos
e Inglaterra estavam focados em incluir os sujeitos em práticas sociais de leitura,
visto que as pessoas dominavam os códigos linguísticos, mas não interpretavam
nem compreendiam o que liam ou escreviam. Com a escolarização da
aprendizagem da leitura, o analfabetismo foi sendo superado e as pessoas
aprenderam a ler e a escrever. A sociedade, aos poucos, se tornou grafocêntrica,
mas não bastava apenas ler e escrever, era preciso incorporar a prática de leitura e
escrita às necessidades cotidianas do sujeito. Tal fato suscitou discussões acerca da
alfabetização, exigindo a criação de uma palavra para explicar esse fenômeno
social. É nesse contexto que nasce o termo Literacy condicionado à necessidade de
poder elucidar o contexto social em que esta palavra emerge.
Realmente, um grande contingente de pessoas aprende a ler e escrever, mas
não adquire “competência” para usar a leitura em situações do dia a dia. Não leem
livros, jornais e revistas, não sabem redigir documentos oficiais nem formulários. No
final do século XIX, para escrever, por exemplo, um ofício recorria-se a um “escrivão
que estava sempre a serviço dos iletrados” (CHARTIER, 1999, p. 101). O escrevente
público se tornou um mediador forçado entre a suposta “incompetência” daquele que
sabe ler e escrever e o domínio daquele que conhece as normas e sabe usá-las em
situações sociais.
Os desenvolvimentos social, cultural, econômico e político trazem novas,
intensas e variadas práticas de leitura e de escrita, fazendo emergir novas
58
necessidades, além de novas alternativas de lazer. Esse novo fenômeno surge e
com ele aflora a necessidade de se criar uma nova palavra para a condição que
envolve os indivíduos alfabetizados, mas que apresentam deficiência em usar a
leitura e a escrita no âmbito social. É nesse momento que a palavra letramento
desloca-se para o espaço escolar. Surgem, então, programas de letramento a fim de
assegurar ao sujeito resultados excepcionais nos exames que medem competências
e habilidades de leitura, além de inclusão, emancipação e ascensão social.
Muitos estudos sobre o letramento avançaram nos países mais desenvolvidos,
entretanto não devemos confundir quando falamos sobre os altos índices de
analfabetismo como o conceito de illiteracy, já que se refere à atuação das pessoas
que não demonstram, em suas práticas sociais, habilidades de leitura e de escrita.
No Brasil, a criação da palavra letramento se dá ao mesmo tempo na França
com illettrisme e em Portugal com literacy. Nos Estados Unidos e Inglaterra já
existia, em seu dicionário, a palavra illiteracy desde 1660 enquanto surge Literacy no
final do século XIX. (SOARES, 2014)
No Brasil, até então, só existia a palavra analfabetismo que nega o termo
alfabetizado, ou seja, designa a ação dos que não dominam a leitura e a escrita.
Vale a pena ressaltar que o termo alfabetismo chegou a ser utilizado na literatura
especializada, como podemos verificar neste trecho escrito por Soares no ano de
1995, e que permanece na edição mais atual do livro “Alfabetização e Letramento”:
O surgimento do termo literacy (cujo significado é o mesmo de alfabetismo), nessa época, representou, certamente, uma mudança histórica nas práticas sociais: novas demandas sociais pelo uso da leitura e da escrita exigiram uma nova palavra para designá-las. Ou seja: uma nova realidade social trouxe a necessidade de uma nova palavra (SOARES, 2014, p. 29, grifos da autora).
Sabe-se que a falta de um termo impulsiona a criação de um novo termo que
possa explicar a existência de um fenômeno inédito. Diante de toda a reflexão que
ocorreu na época sobre o analfabetismo, foi necessário encontrar um termo que se
referisse à condição ou ao estado contrário daquele expresso pela palavra
analfabetismo, ou seja, uma palavra que representasse o estado ou condição de
59
quem está alfabetizado, de quem domina o uso da leitura e da escrita. Nesse
contexto, surge a palavra letramento, vinculada ao campo das letras, para explicar o
fenômeno da alfabetização.
É nesse contexto que surge, no Brasil, o termo literacy traduzido como
letramento e pode ser considerado bastante atual no campo da educação brasileira.
Segundo Soares (2014, p. 33), esse termo parece ter sido usado pela primeira vez
no país por Mary Kato em seu livro “No mundo da escrita: uma perspectiva
psicolinguística” no ano de 1986. Como parte de título de livro, o termo apareceu no
ano de 1995 nos livros “Os significados do letramento”, organizado por Angela
Kleiman e “Letramento e Alfabetização” de Leda V. Tfouni. Para essa discussão,
vale conhecer as concepções de letramento que versam nas literaturas.
Para Kleiman, (1995, p. 19), letramento é “um conjunto de práticas sociais que
usa a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos, para objetivos específicos”. Refletindo sobre o surgimento do termo
letramento, a autora argumenta que o conceito de letramento
[...] começou a ser usado nos meios acadêmicos como tentativa de separar os estudos sobre o impacto social da escrita dos estudos sobre a alfabetização, cujas conotações destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita. (2008, p. 15, grifo da autora).
Tfouni concebe letramento como consequências sociais e históricas da
introdução da escrita em uma sociedade, para ela, são “as mudanças sociais e
discursivas que ocorrem em uma sociedade quando ela se torna letrada” (1995, p.
20). A autora explicita que a necessidade de se começar a falar em letramento
surgiu da tomada de consciência que se deu, principalmente entre os linguistas, de
que havia alguma coisa além da alfabetização, que era mais ampla e até
determinante desta.
Soares (2004) esclarece que a palavra alfabetismo não criou raízes na
literatura da área e foi, progressivamente, sendo substituída pelo termo letramento.
Conforme a nota da autora: “Após a publicação deste texto, em 1995, foi-se
progressivamente revelando, na bibliografia, preferência pela palavra letramento [...]
60
em relação à palavra alfabetismo (SOARES, 2014, p. 29, grifos da autora)”. Assim, o
termo letramento vem gradativamente substituindo o termo alfabetismo, no entanto,
ainda podemos encontrar o termo alfabetismo na literatura especializada.
Em relação à etimologia do termo, podemos fazer referência à Soares (2014),
que expressa o senso comum do meio quando afirma que a palavra letramento é
uma tradução do termo inglês literacy, que, por sua vez, tem origem do latin littera,
que se refere à letra. A palavra literacy poderia ser decomposta da seguinte forma:
littera (letra) + cy (condição ou estado de). Soares interpreta esta definição da
seguinte forma: “[...] literacy é a condição de ser letrado – dando à palavra “letrado”
sentido diferente daquele que vem tendo em português (2014, p. 35, grifo da
autora)”. Qual seria, então, o sentido da palavra letrado a que Soares se refere? O
sentido comumente dado à palavra letrado, no Brasil, está ligado à ideia de pessoa
erudita, pessoa versada em letras e o seu antônimo, iletrado, seria a pessoa que
não é erudita, pessoa que não possui conhecimentos literários.
A UNESCO apresentou, em 1958, definições de letrado e iletrado com a
finalidade de padronizar as estatísticas internacionais para quantificar o número de
letrados e iletrados.
Letrado é a pessoa que consegue tanto ler quanto escrever com compreensão uma frase simples e curta sobre a sua vida cotidiana. Iletrado é a pessoa que não consegue ler nem escrever com compreensão uma frase simples e curta sobre a sua vida cotidiana. (UNESCO, 1958, p.4)
Essas concepções foram alvo de críticas no meio acadêmico, cabendo uma
nova definição de letramento funcional como sendo os conhecimentos e habilidades
de leitura e escrita que tornam uma pessoa capaz de “engajar-se em todas aquelas
atividades nas quais o letramento é normalmente exigido em sua cultura ou grupo”.
A partir desse conceito, a UNESCO, em 1978, julgou procedente inserir um novo
grau de letramento baseado em habilidades individuais, anteriormente letradas,
fundamentadas nos usos sociais de leitura e escrita:
61
Uma pessoa é funcionalmente letrada quando pode participar de todas aquelas atividades nas quais o letramento é necessário para o efetivo funcionamento de seu grupo e comunidade e, também, para capacitá-la a continuar usando a leitura, a escrita e o cálculo para seu desenvolvimento e o de sua comunidade. (UNESCO, 1958, p. 1)
Nessa perspectiva, não basta apenas saber ler e escrever, mas usar tais
habilidades e competências para solucionar conflitos, desenvolver, em sua
comunidade, práticas sociais de leitura, usar argumentos para defender-se, ler uma
bula de remédio para manter-se informado, interpretar leis, reconhecer direitos e
deveres, tornar-se independente e estar apto para ir e vir.
Nos escritos até aqui, evidenciamos que estudiosos da língua, com base em suas
pesquisas, defendem certas concepções que favorecem os estudos desenvolvidos
no Brasil, propiciando o uso da palavra letramento para separar os dois fenômenos:
letrar e alfabetizar. O termo letramento está diretamente relacionado com a língua
escrita, seu lugar, suas funções e seus usos nas sociedades grafocêntricas
(sociedades organizadas) em torno de um sistema de escrita e em que esta,
sobretudo, por meio do texto escrito e impresso, assume importância central na vida
das pessoas, em suas relações com os outros e com o mundo em que vivem.
Considerei essencial apresentar os argumentos que levaram a adotar o termo
letramento que, sem consenso, motiva uma discussão que perdura há muitos anos.
Contudo, pretendi situar o contexto histórico que propiciou a adoção da palavra no
campo da pesquisa educacional brasileira com o propósito de realizar reflexão
teórica acerca do letramento e de sua atual designação e reformulação, sempre
atrelando as discussões, aqui propostas, às práticas de letramento construídas para
a EJA. Essa nova concepção requer a reconfiguração do letramento, tornando
essencial a escolarização das práticas sociais de leitura e escrita e suscita
mudanças curriculares no ensino de Língua Portuguesa. Nos tópicos que seguem,
pontuo algumas contribuições da pedagogia dos novos letramentos voltadas à
formação das professoras no que diz respeito à temática da EJA.
62
3.3 CONCEPÇÃO DE LETRAMENTOS E O CONTEXTO DA EJA
A palavra analfabetismo, no que se refere ao público jovem, adulto e idoso, nos
remete a um país que, desde o seu “descobrimento”, nasceu nessa condição. Isso
reverbera no comportamento da corte que trouxe de longe os jesuítas, visando
alfabetizar – na língua portuguesa – o povo “selvagem” que habitava as terras
brasileiras. Os índios, desde então, sofreram discriminação, porque não
compreendiam a língua que os seus futuros algozes usavam para se comunicar. A
língua indígena sofreu um processo de desvalorização e marginalização por um
novo padrão incorporado à sua cultura linguística. O objetivo dos colonizadores não
era incluir ou firmar os direitos do povo indígena; a pretensão era criar, por meio da
aquisição da língua dominante, uma política de exploração.
As práticas de alfabetização de jovens, adultos e idosos, no período da
colonização, se relacionavam, também, à catequização dos índios, ao ensino da
leitura, visando à inserção do povo indígena nos rituais da igreja católica. Os jesuítas
utilizavam gramáticas da língua Tupi e os catecismos e as doutrinas, objetivando o
ensino da leitura. Soares (1998, p. 45) aponta que, desde o Brasil Colônia,
convivemos com o fato de existirem pessoas que não sabem ler e escrever, pessoas
analfabetas e, ao longo dos séculos, temos enfrentado o problema de ensinar as
pessoas a ler e escrever, isto é, alfabetizar. Os que não conseguiam acessar a
língua por meio da leitura eram e são, até hoje, denominados de analfabetos,
“palavra criada para adjetivar os sujeitos que não eram alfabetizados” (SOARES,
1998, p. 31-32). O termo analfabetismo, portanto, foi criado intencionalmente como
um processo lento e cruel de excluir, marginalizar, amputar direitos, segregar, dividir
os sujeitos em letrados e não letrados para garantir o domínio sobre eles.
Após séculos, e mesmo com a democratização da escola pública,
evidenciamos registros nos quais constatamos o abismo que há entre a sociedade
letrada e não letrada de falantes/leitores que divide o país entre os sujeitos que
acessam a cultura erudita exclusiva da classe dominante e a cultura de “menor”
prestígio. Segundo Street,
63
o letramento, nesse sentido, se torna uma chave simbólica para vários dos problemas mais graves da sociedade: [...] questões de sucesso (ou fracasso) podem ser desviadas nas formas de explicações sobre como a aquisição do letramento pode ser aperfeiçoada e como a distribuição do letramento pode ser ampliada. (2014, p. 141)
Não é possível separar o sujeito do contexto e dos recursos envolvidos em sua
aprendizagem. Ao legitimar um tipo de letramento, outros são desvalorizados. Sobre
isso, Street (2014) propunha duas divisões entre dois enfoques do letramento nos
estudos para os quais ele denominou enfoque ideológico e enfoque autônomo do
letramento.
O modelo autônomo, cujo foco é a técnica, prioriza habilidades relacionadas à
codificação e decodificação da linguagem, concebe o letramento como uma
atividade estável, homogeneizadora e alheia às práticas sociais e, o segundo, o
modelo ideológico, vê as práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às
estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas
culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos. Para Rojo,
O significado do “letramento” varia através dos tempos e das culturas e dentro de uma mesma cultura. Por isso práticas tão diferentes em contextos tão diferenciados são vistas como letramento, embora diferentemente valorizadas e designando a seus participantes poderes também diverso. (2009, p.99).
Essa concepção justifica a ideia de letramentos no plural e põe a escola no
âmbito dessas discussões, sobretudo porque a reconfiguração do letramento como
prática social crítica exige que levemos em conta essas perspectivas históricas e
também transculturais. O letramento, nesse sentido, “se torna uma chave-simbólica
para vários problemas mais graves da sociedade: questões de identidade étnica,
conflito, sucesso (ou fracasso) podem ser desviadas” (STREET, 2014, p. 141) de
maneira a responsabilizar o indivíduo por seu fracasso na aprendizagem do
letramento, desviando a culpa das instituições para os indivíduos.
64
Há séculos, a escola tenta, sem sucesso, homogeneizar o letramento como se
fosse possível compartimentar a língua que, enquanto instrumento vivo de
comunicação, se torna tão particular, específica, única ao ser mobilizada por sujeitos
constituídos de linguagem que imprimem saberes identitários construídos a partir da
história, da herança cultural, da memória e de sua posição ideológica.
É, portanto, dentro da perspectiva do modelo ideológico, que a escola,
sobretudo na modalidade da EJA, deveria assumir, em suas práticas, o letramento
social dos sujeitos sem reafirmar ou padronizar a hegemonia do letramento –
autônomo – considerado legítimo, padrão e prestigiado. Ao legitimar um letramento,
outras culturas são marginalizadas e, consequentemente, amplia o número de
sujeitos que, ao regressar à escola, não se sente acolhido, porque a escola constrói
suas práticas pedagógicas fundamentadas na ideia de um padrão nacional
compartilhado. (STREET, 2014)
É preciso conceber a ideia de que, ao retomar seus estudos, os jovens, adultos
e idosos manifestam uma linguagem, enquanto produto da história, limitada pelos
seus usos e pelos espaços sociais desses usos, marcas linguísticas que deveriam
ser consideradas. Portanto, a língua nunca pode ser ensinada como um produto
acabado, estanque, passivo, pronto, fechado em si mesmo, visto que está sempre
em construção, na interatividade, com outras possibilidades de usos e estilos. A
língua é um conjunto de recursos expressivos (palavras) que está sempre em
constituição e, no convívio com o outro, se difere e se reparte, diferentemente, na
sociedade, formando uma variedade linguística. Essas variantes são marcadas pela
complexidade dos dialetos (regionais, sociais, culturais etc.).
Nesse sentido, a escola tanto pode se organizar para negar às classes
populares o acesso ao conhecimento como para garanti-lo. Para garantir, no
entanto, é necessário instrumentalizar os jovens, adultos e idosos para assumirem
sua posição de agentes de transformação social e garantir que tenham acesso a
novos instrumentos de letramento, levando em conta suas experiências pessoais.
Mesmo sabendo que a oralidade é uma forte característica da nossa cultura, não
podemos nos restringir a ela, pois o texto escrito também é produzido a partir de um
processo interlocutivo no qual o sujeito interage com o mundo, com o contexto, com
65
o já dito e produz novos saberes; destarte, é imprescindível que a escola apresente
o texto escrito como fonte de acesso ao conhecimento histórico. Isso demanda uma
gestão democrática engajada com a visão política de inclusão; reorganização
pedagógica; construção de um projeto de transformação da sociedade,
alfabetizando e letrando, universalmente, considerando o sujeito histórico e social.
O letramento social, desenvolvido na comunidade, constitui um sujeito de
linguagem que a escola, durante séculos, desconsiderou sua herança cultural e
linguística. Desde a sua escolarização, esse sujeito sente-se, inúmeras vezes,
marginalizado (1) ao perceber que a qualidade de sua identidade linguística sofre
um juízo de valor quantificado no boletim escolar; (2) quando os textos a eles
oferecidos não traduzem a língua que eles reconhecem como falante; (3) quando
percebe que a linguagem oral a que tem acesso na escola não traduz as marcas de
sua oralidade; (4) ao perceber-se desvalorizado pelo professor nas avaliações
desfavoráveis manifestadas em linguagem verbal e gestual; (5) e, ainda, quando sua
experiência social de letramento não é acolhida pela escola. A não valorização do
ser-aluno afeta a aprendizagem da leitura e da escrita, dificulta o processo de
alfabetização, exclui os jovens, adultos e idosos, afastando-os do ambiente escolar.
Embora, na escola, se considerem os letramentos de forma ampla, eles
passam por práticas escolarizadas e formais. Nesse tipo de letramento, geralmente,
não são levados em conta os eventos de letramento os quais os alunos da EJA
vivenciam em seu contexto social (trabalho, vizinhança, família etc.). Os professores
controlam o acesso ao conhecimento fundamentando sua prática às situações
contextuais e objetivos educacionais. O ensino de língua é compartimentado,
separado do uso, distribuído em especialidades. As formas pelas quais os
professores e os seus alunos interagem, se configuram como uma prática social em
que há relação de poder, sobretudo porque o professor legitima o letramento de um
grupo que tem o domínio da língua portuguesa e desconsidera o letramento como
prática social de leitura e escrita (STREET, 2014, p.19) a que os alunos da EJA já
tiveram acesso fora dos muros da escola e também na própria escola, interagindo
com os colegas e com os professores que lecionam outras disciplinas.
66
Tais concepções deveriam refletir nas práticas escolares de letramento e
aprofundar o debate sobre letramentos socialmente construídos fora dos muros da
escola, podendo ser potencializados na escola. Ao valorizar as práticas de leitura
dos alunos, os professores podem colaborar para que o aluno seja capaz de
produzir os seus próprios discursos.
Refletindo sobre os tipos de letramento, evidenciamos que o letramento escolar
distancia o sujeito de suas vivências diárias. O letramento não pode ser
compartimentado e nem concebido como instrumento passivo de comunicação.
Letramento é algo ativo, quem o pratica, protagoniza cenas de interlocução,
interagindo com o texto oral e/ou escrito.
Decerto a palavra liberta! Ao aprender a ler, o sujeito se sente seguro, forte,
poderoso, valorizado, incluído. Isso é fato! Mas o ideal é que a escola valorize a
história de leitor, suas experiências discursivas, seu modo de falar como variante
dialetal e não como “erro”, e que escrever, falar e ler bem o “português” não sirva de
parâmetro para exclusão. Porque o povo do lado de lá – os considerados iletrados,
que vivem à margem da sociedade letrada, é capaz de aprender em qualquer
tempo. Portanto, faz-se necessário que a escola considere as particularidades
dialetais como forma diferente de expressão. O ideal é criar, no ambiente escolar,
espaço para práticas de linguagem, visando ampliar o número de leitores, escritores
de história de outrem e também de sua própria história e que, nessa interlocução, a
valorização seja de comum acordo: alunos prestigiando a língua “padrão”, tomando-
a como uma nova possibilidade de expressão, e os professores valorizando as
diferenças dialetais do aluno.
Com base nisso, é possível propor ao aluno da EJA um ensino de Língua
Portuguesa cuja prática pedagógica contemple a ação de alfabetizar letrando, ou
seja, escolarizar as práticas de letramento em que os alunos estão envolvidos em
seu contexto diário. Desse modo, o aluno terá acesso, na escola, aos gêneros
discursivos que vivenciam diariamente na comunidade, ou seja, na escola se
trabalha o tipo de texto narrativo explorando o conto, a fábula, a crônica; na
comunidade, eles têm acesso a relatos, notícias, bilhetes. Esses gêneros poderiam
ser bem mais explorados, assim, os estudantes da EJA atribuiriam uma razão às
67
aulas de língua portuguesa, sentir-se-iam acolhidos e autores de seu próprio
discurso.
Soares (2000) discorre a respeito disso quando diz que a escola é a principal
instituição responsável pela difusão do letramento, entretanto, as atividades
desenvolvidas em sala de aula não contemplam as práticas de letramento que
circulam socialmente, dando ênfase ao letramento escolar, que se preocupa com um
tipo de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabéticos),
processo geralmente percebido em termos de uma competência individual
necessária para o sucesso e promoção na escola. Outras agências de letramento,
como a família, a igreja, a o local de trabalho, por exemplo, mostram orientações de
letramento muito diferentes (KLEIMAM, 1995).
Dessa maneira, os (as) educandos (as) da EJA não dão conta de realizar as
práticas de escrita e leitura solicitadas pela escola, as quais não contemplam os
usos cotidianos da leitura e da escrita em contextos reais de utilização da
linguagem. Desse modo, esse público conclui – quando conclui – o ano letivo sem a
aquisição de competências necessárias para participar das práticas letradas da
sociedade. Isso exige do professor maior conhecimento e domínio da questão para
que não reproduza antigos modelos de ensino-aprendizagem, estruturalistas e
desvinculados da prática social. O ideal seria redesenhar caminhos de preparar esse
aluno jovem, adulto e idoso para agir como protagonista no mundo.
Esse público aprende melhor por meio de problemas reais visto que possui
ampla experiência discursiva que influencia a sua aprendizagem; somente se
apropriam da leitura e da escrita os adultos que associam os eventos de letramento
dos quais participam, diariamente, aos eventos de letramento mediados pela escola;
os adultos necessitam de métodos variados para aprender; os adultos possuem
ritmos diferentes de aprendizagem e os adultos aprendem melhor em ambiente
informal.
As práticas escolares demandam ações pedagógicas capazes de incluir o
letramento social, desenvolvendo ações que causem impactos além dos muros da
escola. Nesse sentido, escolarizar as práticas sociais de leitura dos educandos e
educandas da EJA seria um passo importante para construir práticas de letramento
68
que envolvam os gêneros discursivos que esse público acessa em seu contexto
diário. Dito isto, vale a pena refletir sobre gêneros discursivos no próximo tópico.
3.4 LETRAMENTO SOCIAL EM DIÁLOGO COM OS GÊNEROS DISCURSIVOS
A diversidade dos gêneros do discurso que circulam na sociedade é infinita.
São igualmente infinitas as possibilidades de comunicação que fazem parte,
diariamente, da atividade humana, porque o ser humano é ser linguagem e, por isso,
é grande a necessidade de interagir com o mundo que o cerca. É no contato diário
com a língua, que o indivíduo se apropria da linguagem e se constitui sujeito de
linguagem, interagindo com o mundo que o cerca; é, portanto, no contato com o
outro e com o mundo que nos tornamos sujeitos constituídos de e pela linguagem.
(BAKHITIN, 1992; GERALDI, 1996).
À medida que a nossa necessidade de comunicação muda, e que aumenta o
nosso campo de atuação, também aumenta o repertório de gêneros aos quais temos
acesso nas comunidades, seja na família, na igreja, no trabalho, na vizinhança. A
prática diária da linguagem desenvolve o letramento social (STREET, 2014). Cabe
ressaltar, em especial, a notável heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e
escritos) nos quais é possível incluir as modalidades de diálogos que se diferenciam
no tema, na situação, nos participantes que o compõem; os relatos diários, que
divergem nos repertórios, nas necessidades, nas manifestações públicas de ordem
social e política; as modalidades científicas; os gêneros literários (BAKHITIN, 1992),
enfim todas as nossas falas, sejam em situações cotidianas ou formais, estão
articuladas em um gênero discursivo (ROJO, 2015). Assim, para cada gosto e
necessidade, há um repertório de gêneros que permeiam em nossa vida diária,
organizam a nossa comunicação e desenvolvem o letramento.
Segundo Bakhtin, qualquer que seja o objeto de discurso dos falantes não se
torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, isto é, o falante
não é o primeiro a falar sobre ele, o objeto já está elucidado de diferentes modos;
nele se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vistas. O falante não é
69
um Adão bíblico que se relaciona com os objetos inanimados e animados pela
primeira vez, dando-lhe nome e significado.
Toda prática social de leitura envolve, igualmente, linguagem, ou seja, todas as
atividades, sobretudo as mais cotidianas, se dão por meio da língua/linguagem e dos
gêneros que as organizam e as estilizam, possibilitando que façam sentido para o
outro (ROJO, 2015), isto é, os gêneros discursivos organizam a linguagem. Desse
modo, o contato diário com o mundo letrado envolve os gêneros discursivos.
O que está em jogo são as necessidades urgentes de os jovens, adultos e
idosos serem incluídos socialmente e o papel do educador de identificar tais
necessidades no sentido de contribuir e/ou ajudar esses sujeitos a desenvolver e
expandir suas práticas de letramento para atuar de maneira competente na
sociedade letrada, tendo acesso, na escola, a diversos gêneros discursivos, a outros
suportes, estilos, linguagens etc. Isso demanda uma visão de ensino de língua
dentro da perspectiva do modelo ideológico de Street (2014) que reconhece a
multiplicidade de letramentos, uma vez que os significados, usos e práticas de
letramento estão relacionados a contextos culturais específicos.
No entanto, a escola tende a descartar o letramento desenvolvido na
comunidade e cria parâmetros para avaliar o letramento dos alunos, valorizando o
que mais se aproxima daquele desenvolvido na escola. Nesse sentido, exploram-se
os modos e as concepções dominantes de letramento que são construídas
especificamente a partir de modelos autônomos, únicos. No que diz respeito ao letramento escolarizado, é incontestável que, em geral,
o modelo autônomo de letramento vem dominando o currículo e a pedagogia
(STREET, 2014). Isso é perceptível nas perguntas feitas pelos professores, na
excessiva correção da linguagem oral e da leitura, buscando aproximação com a
linguagem escrita padrão (dominante); na ênfase dada à correção gramatical e à
grafia “correta”, no direcionamento pedagógico; nas técnicas e métodos utilizados no
ensino e aprendizagem da leitura, enfim, há um domínio disso na manutenção do
currículo oficial de Língua Portuguesa.
O método Paulo Freire de ensino em campanhas de alfabetização, no Brasil e
em outros países, tentou contestar o modelo autônomo de letramento. Paulo Freire
70
criticou o modelo bancário de ensino que configura o conhecimento como um
conjunto fixo de fatos a serem transferidos para o aprendiz, construindo um modelo
ideológico de letramento, defendendo uma abordagem que parte da
conscientização, permitindo aos oprimidos investigarem as fontes de sua opressão.
Ele iniciava suas aulas, discutindo conceitos-chave no contexto local, como por
exemplo, “favela” explorando o conceito da palavra a partir da percepção de seus
educandos e educandas, suscitando com isso uma reflexão crítica sobre o contexto
social a que estavam submetidos. Quando a palavra se tornava familiar no sentido
crítico, então os alunos tinham acesso a sua escrita. Paulo Freire entrecruzava o
contexto social com técnicas linguísticas para ensinar os alunos a ler e escrever. Os
alunos conseguiam rapidamente aprender a escrita, porque esse método envolvia
seu contexto cultural específico, suas experiências de vida.
Diante desse quadro, é indispensável intensificar o trabalho com leitura diária,
mas não apenas para potencializar o nível de letramento dos alunos, mas para
colocá-lo em contato diário com a língua, disponibilizando instrumentos de
letramento que gerem interlocução entre autor-texto (oral-escrito) - leitor e que façam
sentido para eles. Daí a necessidade de o professor da EJA beneficiar-se dos
gêneros discursivos em um trabalho inventivo de leitura, que explore textos do
cotidiano dos alunos, suscitando maior interação entre texto e leitor.
O sujeito aprendente tem autonomia para escolher o que deseja ler e cabe ao
professor se valer de suportes textuais que agreguem gêneros e materiais de leitura
adequados à faixa etária desse público, estratégias lúdicas, atraentes, criativas para
motivar a leitura e análise desse material. E assim, proporcionar momentos de
prazer e aprendizagens significativas, associados a momentos de leitura na escola,
no sentido de romper as barreiras que travam o trabalho inventivo de leitura nas
classes de EJA, porque:
O leitor na escola é o sujeito que se encontra no meio do caminho,
entre as armadilhas do texto, da sala de aula e do mundo. Preso
entre as grades de um plano de leitura cujas atividades práticas são
convencionais, artificiais, datadas, modeladas por uma ordem em
71
que o “eu” do leitor, atado às normatividades de um poder que dele já
se apropriou, vai sendo anulado. (MUNIZ; SILVA, 2009, p. 444).
Desse modo, é preciso apontar as setas do caminho, quebrar paradigmas e
convenções para que os estudantes aprendam a ler o texto nas entrelinhas, isso
demanda procedimentos de leitura que habilitem o aluno a subjetivar e abstrair a
mensagem do texto; dialogar com o autor; argumentar, tecer opiniões, reflexões; ir
além do imaginário, inferindo e transcendendo o texto; descobrir novas
possibilidades de agir, pensar, viver, sentir e ser. Para alcançar esse objetivo, é
preciso romper com velhos paradigmas e redimensionar o ensino da língua
portuguesa, construindo novos métodos e técnicas de leitura; selecionar textos que
extrapolem os fragmentos dispostos nos livros didáticos, oferecer literaturas que
provoquem discussão ou reflexão, textos que dialoguem, que atraiam e leiam os
leitores jovens, adultos e idosos.
Os PCN orientam que as práticas de letramento escolar devem considerar a
diversidade dos gêneros textuais e atentar para a forma de recepção desses textos
para que o aluno dedique maior atenção aos propósitos discursivos que ele tem.
Esses propósitos serão definidos diante do contexto situacional. Os alunos precisam
ter clareza das características linguísticas e discursivas dos gêneros estudados. Fica
claro nos PCN que “[...] todo texto se organiza dentro de determinado gênero em
função das intenções comunicativas como parte das condições de produção dos
discursos que geram usos sociais que os determinam”. (BRASIL, 1998, p. 21).
O sistema educacional, fortemente influenciado por novas perspectivas
sociointeracionistas da língua, aprofundou reflexões acerca do trabalho com gêneros
textuais nas escolas, que, até então, era protagonizado pelo livro didático. Para
Vóvio (2007, p. 91), “essas representações são acionadas em variados momentos e
podem, por meio das atividades e interações que se realizam nas turmas de EJA,
ser confirmadas, transformadas, ressignificadas e/ou apagadas [...].” Em vista disso,
o professor que atua na modalidade da EJA precisa conhecer e entender o espaço e
as vivências de EJA para escolher uma metodologia que melhor se adeque a essa
modalidade de ensino.
72
Trabalhar leitura na perspectiva do letramento é ensinar aos alunos o
funcionamento dos textos nas diversas práticas socioculturais. Para a EJA, isso tem
dupla importância e resulta em aprendizagem significativa da leitura. “Os educandos
e educandas da EJA são inseridos em práticas legitimadas que lhes permitirão
interagir, culturalmente, em variados âmbitos sociais”. (VÓVIO, 2007). Destarte,
trabalhar com gêneros discursivos na EJA contribui para a escolarização do
letramento social, tendo como desafio apresentar aos jovens, adultos e idosos
múltiplas situações de interação que envolvam práticas de leituras presentes no
contexto diário desses alunos.
É importante, também, o professor considerar nas ações pedagógicas de
leitura, em sala de aula, os textos que boa parte do público da EJA não teve contato
fora da escola. Assim, faz-se necessário incluir materiais de diversas áreas do
conhecimento: textos jornalísticos, relatos históricos, gêneros da Bíblia, textos
literários, esquemas, tabelas, gráficos, mapas e imagens com o objetivo de ampliar a
competência cognitiva e as possibilidades de interpretação e compreensão e
produção de sentido (ROJO, 2015).
A sociedade atual, cada vez mais centrada no uso social da leitura, requer
jovens e adultos atuantes; para tanto, é necessário formar leitores, cidadãos
conscientes, capazes de interagir com o mundo, contribuindo para a sua
transformação. Nesse sentido, é importante priorizar:
[...] a diversidade de níveis de letramento social e escolar encontrada nas classes de alfabetização de jovens e adultos, tantas vezes tratada como um empecilho para o planejamento das atividades pedagógicas, além de ser respeitada e conhecida, deve ser levada em conta. Assim, o educador pode, a partir do conhecimento das experiências de seus alunos como indivíduos “não-crianças”, quase sempre excluídos da escola e participantes de diferentes grupos culturais e sociais, construir um fio condutor para interligar as vivências comuns com as práticas de sala de aula. (MOLLICA; LEAL, 2009, p. 59)
As autoras enfatizam que a escola deveria valorizar os saberes dos sujeitos da
EJA sem infantilizar as atividades de leitura, prática muito recorrente nessa
modalidade. O professor – agente de letramento – poderia propor discussões,
73
oferecendo textos que façam sentido para o aluno, agucem sua curiosidade, que os
desafiem, pois, só assim, tornariam o sujeito mais esclarecido, atuando como agente
de interação.
É imprescindível também desenvolver e criar, nas classes da EJA,
procedimentos metodológicos que incluam o uso de variados gêneros textuais com o
propósito de desenvolver experiências de leitura para os educandos e educandas,
adequando a seleção de textos escolares aos gêneros discursivos que fazem parte
do repertório diário do público da EJA, que já foram internalizados por eles,
havendo, assim, uma maior interação entre autor-texto-leitor para a produção de
sentido e melhor compreensão e interpretação do texto oral e escrito. Os gêneros
textuais são instrumentos de que os sujeitos dispõem para atuar nos diferentes
domínios da atividade humana, constituem textos empiricamente realizados,
cumprindo funções em situações comunicativas, uma vez que respondem a uma
necessidade e atendem uma expectativa (MARCUSCHI, 2011). Logo, para haver
interação com a leitura de um dado texto, faz-se necessário que o aluno conheça as
suas intenções comunicativas, agindo sobre a linguagem também em seus aspectos
psicológicos (seus valores, sentimentos, experiências).
A proposta curricular do 2º e 3º segmentos da EJA orienta o professor a
priorizar, em suas atividades de leitura, os gêneros discursivos presentes no
cotidiano dos sujeitos aprendentes, os modos de ler e de ter acesso aos suportes
textuais. Para tanto, é preciso que o professor investigue sobre as experiências de
leitura desse público, informe-se sobre suas práticas cotidianas de letramento, os
suportes textuais a que têm acesso. “Para trabalhar a diversidade de textos, é
fundamental também considerar os modos de ler tais gêneros e as características
dos suportes em que circulam”. (BRASIL, 2002, p. 42, grifo meu).
As abordagens teóricas sobre língua-linguagem, leitura, alfabetização,
letramento, gêneros discursivos e formação do professor para atuar na EJA, que
constituem o corpus deste capítulo, foram necessárias para fundamentar esse
estudo, que, por hora, tem como objetivo interpretar sob que concepção de
linguagem as professoras de Língua Portuguesa – sujeitos desta pesquisa – têm
construído suas práticas de letramento, visando ao ensino da leitura para a
74
emancipação cidadã dos sujeitos da EJA, tendo como pressuposto as reais
necessidades dos jovens, adultos e idosos, seus anseios, desejos, especificidades,
sua história, suas dificuldades, carências e necessidades exigidas nos eventos
sociais a que eles têm acesso e assegurando-lhes a aprendizagem ao longo da vida.
Para tanto, torna-se relevante discutir sobre a formação dos professores de
Língua Portuguesa que atuam na EJA e sua postura política diante do direito à
alfabetização e ao letramento. Parece decorrer de tudo isso a necessidade de o
professor – como formulador de planejamento – conhecer não só a teoria
educacional, mas também a teoria linguística, a teoria do letramento, a teoria social
para construir, com maior autonomia e competência, práticas pedagógicas que
auxiliem os educandos e educandas da EJA a situar suas práticas de letramento
dentro e fora dos muros da escola. A reconfiguração do letramento como prática
social exige que o professor leve em conta as perspectivas históricas e as
experiências transculturais nas ações em sala de aula. Daí a necessidade de
refletirmos sobre as condições de produção de saberes a que os professores têm
sido submetidos, ao longo da carreira, porque isso reflete nas práticas de letramento
que constroem e implica na relação social que têm com seus alunos da EJA. São
questões relevantes que convido o leitor a refletir no tópico a seguir.
3.5 O SABER DOCENTE E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA EJA
Neste tópico, pretendo discutir a questão da formação dos professores de
Língua Portuguesa que atuam na modalidade da EJA, isto é, os saberes, o saber-
fazer, as concepções, competências e habilidades que refletem suas práticas de
letramento.
Quais concepções sobre o ensino de Língua Portuguesa na EJA os
professores apresentam na formação inicial e na atuação profissional docente? Na
graduação, os cursos de licenciatura em Letras Vernáculas não formam professores
de português alfabetizadores e nem capacitam professores para atuarem como
formadores na EJA. Não há espaço no currículo da graduação para se pensar em
75
práticas de letramento que incluam o contexto, as especificidades, as necessidades
e as vivências linguísticas do estudante em defasagem idade-série.
Outrossim, a concepção moderna do educador exige uma sólida formação
política, científica, técnica subordinadas aos saberes socialmente construídos. A
proletarização do profissional da educação faz com que os professores se
aproximem cada vez mais da classe operária. Isso é percebido nas políticas
educacionais concebidas nesse tempo de neoliberalismo, que baseadas no modelo
das competências e dos desempenhos, influenciam diretamente a formação dos
professores, reduzindo suas práticas à mera execução de tarefas para atingir
determinadas metas. Assim, “enquanto os países desenvolvidos se preocupam com
o fenômeno do “iletrismo”, nosso problema maior continua a ser os altos índices de
analfabetismo e fracasso escolar”. (ALBUQUERQUE, 2006, p. 21). A sociedade
culpabiliza os professores por esses resultados.
O professor é visto como um técnico em sala de aula, um mero executor de
normas, de técnicas e do currículo com o objetivo de solucionar problemas surgidos
na prática. Isso tem provocado um abismo entre investigação e prática, sobretudo
nas discussões que envolvem o ensino da leitura nas classes de EJA, porque, em
geral, os produtores de conhecimento, distantes dessa realidade, desconhecem
seus verdadeiros problemas e demandas e, por isso, propõem soluções que não se
aplicam a determinadas situações. Por outro lado, ao se formarem, os professores
são abandonados nas escolas a sua própria sorte e, sem ter acesso à formação
continuada, executam trabalhos solitários.
Para Lüdke (2004), a formação do professor, do ponto de vista da reflexão
sobre a prática, liga-se à perspectiva de um professor, pesquisador da sua prática,
capaz de construir um conhecimento a partir da observação e reflexão sobre o seu
cotidiano, orientando-se por uma atitude investigativa. Nóvoa (1995, p. 54)
acrescenta que a formação dos professores não é um conceito unívoco, por isso
deve proporcionar situações que possibilitem a reflexão e a tomada de consciência
das limitações sociais, culturais e ideológicas da própria profissão docente e
endossa a ideia de que o processo formativo vai além da simples aquisição das
76
técnicas e conhecimentos, pois é um espaço em que se desenvolvem a socialização
e a construção profissional.
Essa preocupação tem dominado, de uma maneira geral, as literaturas desde a
inclusão da Educação de Jovens e Adultos na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Pela LDB, o país, enfim, reconhece essa modalidade de
educação, assumindo como responsabilidade do Estado prover todos os meios para
a sua promoção (JARDILINO, 2014, p. 136). Dentre os compromissos firmados, está
o de capacitar professores para atender a essa população escolar. Nesse contexto,
a formação do professor de Língua Portuguesa para atuar nas classes de EJA,
configura-se como tema necessário na discussão da EJA, sobretudo pela estatística
que aponta o alto índice de jovens, adultos e idosos entre 14 e 64 anos de idade
que, a cada ano, amplia a estatística de analfabetos em nosso país.
Levanto aqui a bandeira de um ensino público democrático e de qualificação
formativa dos professores de Língua Portuguesa que atuam na modalidade EJA
para que todos os alunos tenham acesso às práticas de letramento dentro do
espaço escolar e que isso reverbere fora dos muros da escola. É preciso criar
espaços de debate para discutir a história da EJA, criar novas metodologias de
ensino, analisar práticas, trocar experiências, pesquisar para a produção de
conhecimentos e instigar o professor a engajar-se na luta pela democratização e
fortalecimento da EJA, principalmente no quesito alfabetização. É relevante
mobilizar esforços para ampliar pesquisas nessa esfera.
A formação dos professores que atuam na modalidade EJA é tema que
aparece na LDB, inciso VII do art. 4º, que recomenda a necessidade de atenção às
características específicas dos trabalhadores que estudam em cursos noturnos,
jovens e adultos numa faixa etária diferenciada, pertencentes a grupos culturais com
características singulares, excluídos da escola e à margem do mercado de trabalho
pela condição de não escolarizados. O professor precisa ser melhor preparado para
atuar como agente de formação leitora a fim de criar estratégias de leitura,
procedimentos metodológicos apropriados para a classe de EJA, intensificando o
trabalho com gêneros discursivos que dialoguem com o público da EJA e tomando a
língua como um potente instrumento de comunicação e interação social.
77
Vale ressaltar que o Plano Nacional de Educação (PNE) faz referência à
valorização do professor e busca assegurar para os profissionais do magistério, e
em todos os sistemas de ensino, planos de carreira compatíveis com as demandas
da profissão, o que deverá ser feito num prazo de dois anos (Meta 18).
Formar professores para atuar na EJA é uma demanda da profissão, sobretudo
pelo crescente número de jovens, adultos e idosos que estão fora do contexto
escolar. Minha experiência com a EJA permite afirmar que há professores
despreparados para atuar numa modalidade que requer novos olhares, metodologia
diferenciada, didática específica e de planejamento flexível adequado à realidade e
às necessidades de aprendizagem dos educandos e educandas da EJA. O saber-
fazer sobrepõe-se ao domínio dos conteúdos, colocando os conhecimentos
pedagógicos, habilidades, competência, a didática e a escolha da metodologia em
evidência.
Num depoimento proferido, informalmente, às professoras participantes desta
pesquisa, uma estudante do Curso de Pedagogia da UNEB, ex-aluna da EJA do
Colégio Estadual Azevedo Fernandes, 50 anos de idade, falou sobre os desgastes
emocionais e o grande esforço que fazia para acompanhar as demandas iniciais do
curso de graduação que exige leitura, interpretação e a compreensão de textos.
Segundo a estudante, nas classes de EJA, ela quase não lia, porque as aulas se
resumiam ao estudo da gramática e quando lia as professoras não tinham paciência
de “escutar” a leitura. A pouca habilidade com a leitura afetava diretamente a sua
autoestima, o que motivou, no início, o abandono do curso de graduação por
acreditar ser incapaz de continuar o seu percurso formativo. A desistência não se
consolidou, porque encontrou apoio das professoras que integram a equipe do
Mestrado Profissional da Educação de Jovens e Adultos da Universidade do Estado
da Bahia – MPEJA.
O ensino de Língua Portuguesa na EJA implica numa ação pedagógica que
leve os educandos e educandas a perceber a língua e a linguagem como fenômenos
históricos complexos, a compreender seu funcionamento, usos e formas; além disso,
“saber usá-la com propriedade nas modalidades oral e escrita, em especial, para
estudar, aprender e viver sua subjetividade” (BRITTO, 2012, p. 142).
78
É possível inferir do depoimento da estudante de Pedagogia que os jovens e
adultos têm convicção de suas necessidades de aprendizagem e que, por isso,
regressam à escola para ampliar sua competência leitora e ter acesso a situações
diversas como, por exemplo, o direito a cursar uma universidade; a inserção no
mercado de trabalho e em espaços sociais diversos; o domínio da leitura para que a
sociedade os reconheça como pessoas capazes, valorizando-os; a compreensão de
textos complexos etc. Isso demanda, por parte da escola, procedimentos
metodológicos que ampliem a competência linguística, desenvolvendo a capacidade
oral, escrita e, sobretudo, leitora desses sujeitos.
Segundo Jardilino (2014), pesquisas recentes mostram que os professores da
EJA, originários de diversas áreas de formação, são diplomados para atuar no
Ensino Regular e, por diversos motivos (complementação de carga horária,
incompatibilidade de horários ou por escolhas pessoais) acabam ingressando na
EJA. Em geral, esses professores não possuem formação teórico-metodológica
para o trabalho com jovens e adultos e constroem sua metodologia, sua
compreensão e concepções das necessidades da EJA no cotidiano de sua prática.
Nos dias atuais, ainda são pouco expressivas as iniciativas de formação inicial
de docentes para atuar na EJA, assim como as propostas de programas e projetos
de extensão que contemplem ações de formação de professores e cursos de
especialização para essa modalidade:
os dados do INEP de 2005 apontavam 1.698 cursos de Pedagogia
no Brasil, em 612 IES. Dentre estas instituições, 15 oferecem a
habilitação de EJA em 27 cursos: 7 instituições na Região Sul,
ofertando 19 cursos com a habilitação, 4 na Sudeste com 4 cursos e
4 na Nordeste com 4 cursos. Do total de cursos de Pedagogia,
apenas 1,59% oferecem a habilitação, sendo que as Regiões Norte e
Centro-Oeste não apresentam nenhum registro. (JARDILINO; SILVA,
2014, p.96).
Faz-se necessário criar estratégias de acesso dos professores aos fóruns de
EJA, a encontros de formação, a espaços de debate e troca de experiências. A
Universidade do Estado da Bahia – UNEB integra o MPEJA – Mestrado Profissional
79
de Educação de Jovens e Adultos, atualmente, coordenado pela professora Tânia
Dantas, visando à formação de professores pesquisadores no âmbito da EJA, mas a
oferta não atende à demanda. É necessário ampliar o número de vagas em cursos
de Especialização nas universidades e abrir caminhos para a discussão sobre a EJA
nos cursos de licenciatura. É preciso criar, urgentemente, políticas públicas de
incentivo e formação de professores para atuar na EJA, haja vista os 13,1 milhões
de pessoas acima de 15 anos de idade que não sabem ler nem escrever, o
equivalente a 8,3% para esta faixa etária. (IBGE, 2015); a baixa qualidade na leitura
entre jovens e adultos; o alto índice de evasão e reprovação.
A Escola do século XXI não está preparada para as atuais demandas
socioeducativas que requerem metodologias específicas previstas por Lei para
garantir aos jovens, adultos e idosos a aprendizagem ao longo da vida. É preciso
vislumbrar a alfabetização e o letramento na EJA, como um ato político, e a sua
aprendizagem como um direito de todos. Faz-se necessário envolver os professores
na luta contra a ausência de políticas de inclusão, os cortes no orçamento, a
redução da oferta que caracterizam a ineficiência do Estado frente às necessidades
da EJA.
Outrossim, nos dias atuais, com o advento da tecnologia, surgiram novas
demandas de práticas sociais de leitura advindas das necessidades de ler e
escrever, usando novos suportes.
O sujeito se torna ativo, podendo interagir com o mundo virtual, tendo acesso,
no ciberespaço, aos suportes textuais e equipamentos digitais, às hipermídias, aos
hipertextos etc. e surgem, com isso, “novas formas de ser, de se comportar, de
discursar, de se relacionar, de se informar, de aprender” (ROJO 2015, p. 116).
Nesse contexto, surge o termo multiletramentos como uma extensão do letramento,
ou seja, das práticas sociais de leitura e escrita em cenários sociais midiáticos.
A grande questão, quando pensamos sobre os eventos de multiletramentos em
que os educandos e educandas da EJA estão envolvidos diariamente, é
compreender as limitações desses sujeitos diante dos cenários virtuais e, a partir
disso, construir práticas de multiletramentos, na escola, que possibilite a sua
interação com o mundo social midiático.
80
Pensar sobre letramento e multiletramento no contexto da EJA suscita
discussões acerca de ações pedagógicas que sejam capazes de letrar e multiletrar
esse público, preparando-o para atuar, de maneira competente, na sociedade
cibernética do século XXI.
Em vista disso, pretendi situar o contexto histórico que propiciou a adoção da
palavra no campo da pesquisa educacional brasileira, sempre atrelando as
discussões, aqui propostas, às práticas de letramento e multiletramento construídas
para a EJA. Nos tópicos que seguem, pontuo algumas contribuições da pedagogia
dos novos (multi)letramentos voltada à formação de professores que atuam nessa
modalidade de curso.
3.6 MULTILETRAMENTOS NO CONTEXTO DA EJA
Atualmente, em pesquisas na área dos estudos da linguagem, o termo
letramento tem se destacado, quando comparado há alguns anos, em que
raramente era utilizado em razão da predominância do termo alfabetização. No
Brasil, como já foi dito, as discussões sobre letramento e alfabetização começaram
no século passado com as autoras Mary Kato, Leda Tfouni, Ângela Kleiman, Roxane
Rojo e Magda Soares.
Hoje com o acesso rápido à informação, em razão do advento da tecnologia e
da modernização dos meios de comunicação, as práticas sociais de leitura e escrita
têm ganhado novas configurações, espaços e suportes em que os textos têm sido
veiculados e, consequentemente, manifestam-se “novas formas de ser, de se
comportar, de discursar, de se relacionar, de se informar, de aprender” (ROJO,
2015, P. 116). Há a necessidade de se rever discursos e paradigmas que lidam com
novas concepções acerca do letramento.
É nesse contexto que surge o termo multiletramento com o intuito de englobar
as atuais discussões referentes às novas pedagogias do letramento e difere do
conceito de letramentos por este se referir à multiplicidade e variedade das práticas
letradas da nossa sociedade e aquele fazer referência tanto à multiplicidade cultural
quanto à semiótica de constituição dos textos (ROJO, 2012).
81
Segundo Rojo (2015, p. 135), para o Grupo de Nova Londres, o conceito de
multiletramentos englobaria duas multiplicidades indicadas pelo prefixo multi-: (a)
Multiplicidade de culturas – multiculturalismo; (b) Multiplicidade de
linguagens/multissimiose e de mídias. Para Rojo; Moura (2012) trabalhar com
multiletramentos:
pode ou não envolver (normalmente envolverá) o uso de novas tecnologias da comunicação e de informação (‘novos letramentos’), mas caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de referência do alunado (popular, local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos, para buscar um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático - que envolva agência – de textos/discursos que ampliem o repertório cultural na direção de outros letramentos (p. 8).
Com isso, as novas concepções de letramento pedem uma reconfiguração das
práticas pedagógicas nas escolas que ainda hoje privilegiam quase que
exclusivamente a cultura dita “culta” sem considerar os multi e novos letramentos, as
novas práticas, os novos gêneros que surgem conforme as demandas sociais que
englobam a cultura digital.
Assim, a escola poderia apresentar propostas que implicam a imersão e o
reconhecimento da prática crítica e analítica dos (as) estudantes da EJA,
valorizando suas experiências discursivas. É importante ressaltar que a prática
multiletrada vai além do conceito de letramentos múltiplos (que se refere à
multiplicidade e variedade das práticas letradas reconhecidas ou não pelas
sociedades), já que “o multiletramento aponta para a multiplicidade cultural das
populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio dos
quais ela se informa e se comunica” (ROJO, 2012, p.13). Nada mais relevante a
escola considerar essa multiplicidade presente na sociedade contemporânea,
porquanto vivemos desde o século XX imersos numa sociedade letrada cujas
produções culturais configuram textos híbridos de diferentes gêneros, campos e
produtores que ultrapassam a escrita manual (papel, pena, lápis, caneta, giz e
lousa), incorporando áudios, vídeos, tratamento de imagem, edição, diagramação
etc.
82
Com efeito, o texto está perdendo seu caráter unilateral, fechado,
compartimentado; agora o texto pode ser questionado, dialogado, já que sua
qualidade de multi passou a hiper: hipertextos, hipermídias e similares, podendo
agora o leitor interagir com outros textos, imagens e sons (ROJO; MOURA, 2012),
além de lhe dar certa autonomia de transgredir e ultrapassar a fronteira da
passividade.
A pedagogia do multiletramento exige a formação de educandos e educandas
críticos, autônomos: em vez de se discriminar o uso da internet e dos celulares e
suas câmeras na escola, esses instrumentos poderiam configurar como recursos
para interação e comunicação. O aluno da EJA não é depósito onde inserirmos
nossos conhecimentos; para o multiletramento, o aluno passa a ser o sujeito de sua
aprendizagem e ganha autonomia para escolher, planejar, criar etc..
Nesse sentido, a escola deveria refletir sobre as demandas sociais e analisar
criticamente o seu currículo frente às novas exigências da sociedade e construir
propostas de ensino que qualifiquem e incluam os alunos nas práticas da web,
viabilizando experiências significativas e construindo práticas de letramento que
contemplem os gêneros que circulam em ambientes digitais, servindo, portanto, a
inúmeras práticas sociais dadas por meio das diversas linguagens que circulam nos
diferentes gêneros textuais e mídias. A partir desse exemplo, vejo que a pedagogia
dos novos letramentos visa a tornar o ensino mais significativo para o aluno,
aproximando a escola à vida (ROJO; MOURA, 2012).
No cenário da EJA, a pedagogia do multiletramento se torna ainda mais
enfática, visto que os estudantes não têm acesso às ferramentas tecnológicas, no
ambiente escolar, por várias razões: (1) os professores consideram que ensinar a ler
e escrever, por meios tradicionais, é prioridade na EJA; (2) despreparo dos
professores para lidar com as ferramentas tecnológicas; (3) ausência de projetos de
letramento que explorem práticas na web. No entanto, fora da escola, os jovens,
adultos e idosos estão imersos no mundo digital, ou seja, participam de redes
sociais; enviam e recebem mensagens de aplicativos digitais; utilizam os terminais
eletrônicos em bancos etc.
83
Seria importante que os educandos e educandas da EJA tivessem acesso, na
escola, a textos que explorassem diversas linguagens, mídias, e tecnologias, pois os
adultos aprendem fazendo e aprendem, principalmente, o que sentem necessidade,
e saber lidar com as novas práticas de letramento em mídias digitais, configura-se
como uma necessidade urgente.
Com base nisso, é fundamental escolarizar as práticas de multiletramento em
que os alunos estão envolvidos em seu contexto diário. Desse modo, o professor
poderia explorar hipertextos que circulam em mídias digitais (e-mail, mensagens do
facebook, whatsApp, blogs, sites etc.). Nesse contexto, as práticas de
multiletramentos deveriam ser bem mais exploradas em sala, uma vez que podemos
pensar na composição de um currículo multiletrado que leve em conta os novos
letramentos em contexto digital, possibilitando uma “contextualização sócio-histórica
dos gêneros e práticas de linguagem que permitam não só o tratamento teórico-
metodológico no estudo dos gêneros, mas também sua didatização na/pela escola”
(ROJO, 2015, 133), tendo como propósito a inclusão dos sujeitos da EJA no mundo
letrado midiático. Atualmente, com as novas mídias, precisamos renovar, reinventar
nossa prática escolar para desenvolver práticas de multiletramento, escolarizando,
assim, as práticas na web.
Dessa maneira, além da formação dos professores para atuarem na EJA, é
importante envolvê-los em situações de aprendizagens em que sejam capazes de
lidar com a multimodalidade textual, contribuindo com a formação também dos
educandos para que leiam e produzam textos tanto orais e escritos quanto digitais
ou impressos para atuarem de maneira crítica frente à diversidade nos mais distintos
contextos sociais.
Diante do exposto, convido o leitor a interagir com o quarto capítulo no qual se
encontram os alicerces que fundamentaram esta pesquisa colaborativa e os
caminhos percorridos durante o processo de investigação, bem como os
instrumentos que geraram os dados para análise do objeto da pesquisa. Os
encaminhamentos metodológicos contribuíram para intervir, socialmente, nas ações
pedagógicas, ensejando uma ação-reflexão-ação sobre as concepções de
linguagem que refletem as práticas de letramento no cenário acadêmico da EJA.
84
4. PERCURSO METODOLÓGICO
Pensar sobre os pilares que sustentarão os processos de construção de uma pesquisa, combinando aventura e rigor metodológico, demanda uma discussão sobre os movimentos concretos que o pesquisador precisa realizar para sustentar e dinamizar a construção da sua investigação, e sobre a pesquisa entendida como um fazer que se dá no ir entre o construto teórico e as vivências/experiências. (SILVA, 2012)
A pesquisa é um campo da práxis social (MACEDO, 2012, p. 22) que reúne o
pensamento e a ação de uma pessoa no esforço de elaborar conhecimentos sobre
aspectos da realidade que deverão servir para a composição de soluções propostas
aos seus problemas. Esses conhecimentos são frutos da curiosidade, da inquietação
e da ação investigativa do pesquisador.
O processo de construção de uma pesquisa requer rigor metodológico e isso
demanda um olhar investigativo despido de preconceitos e prejulgamentos, o que
desafia o pesquisador a desnudar-se de ideias preconcebidas para tecer um olhar
reflexivo, analítico e imparcial sobre seu objeto de pesquisa. Ao delinear seu projeto
de estudo, o sujeito pesquisador seleciona os objetivos, as questões, os
instrumentos de investigação etc. como pilares que sustentarão a arquitetura do
projeto durante todo o processo de construção.
Nessa dinâmica de produção, uni o meu olhar a outros muitos olhares,
permitindo que a minha voz ecoasse outras vozes para articular ideias que dialogam
entre si e, nessa interação, construí o corpus desta pesquisa, entendendo que o
conhecimento é construído nas relações interativas entre o – “eu” e o – “outro” por
meio da interpretação dos múltiplos significados que constituem os fatos. É nessa
dimensão que esta pesquisa pretendeu, a partir de tendências contemporâneas,
intervir nas práticas sociais da escola.
Os resultados desta pesquisa procuraram socializar as descobertas que esta
investigação traduziu acerca das concepções de linguagem que norteiam as práticas
educativas de três professoras que ensinam a língua portuguesa nas classes de
EJA, numa escola pública situada no Centro Histórico de Salvador.
85
Com a intenção de construir uma arquitetura coerente com a metodologia da
pesquisa, apresento, neste capítulo, o delineamento de todo o processo investigativo
dividido em três partes: (1) a metodologia; (2) descrição do processo de coleta dos
dados; (3) descrição das formas de organização dos dados e dos procedimentos.
4.1 A ARQUITETURA DA PESQUISA QUALITATIVA
A qualidade de uma pesquisa está alicerçada no objeto de estudo, na lógica
sobre a qual se organiza a proposta investigada, nos aportes teóricos e os
dispositivos de coletas, na análise de dados e na capacidade do pesquisador de
intervir na realidade em que realiza seu trabalho de pesquisa. Nessa perspectiva, é
imprescindível que, ao delinear sua proposta de investigação, o pesquisador seja
coerente nas escolhas desses pilares que nortearão todo o processo de
investigação.
Nesse sentido, propus um diálogo com o objeto de pesquisa e com a realidade
pesquisada, interpretando “com o rigor que um trabalho científico requer, e com a
maior autenticidade possível a fim de deixá-lo mais próximo do contexto investigado
e de seus “atores/autores sociais” (MACEDO, 2009, p. 15). Tomando como base a
concepção de Minayo (2007) e Freire (1996), reforço aqui a ideia de que a pesquisa
tem a ver com a questão do inacabamento do homem e do conhecimento, e ambos
estão relacionados com as constantes transformações processadas na realidade. “O
papel do pesquisador é justamente o de servir como veículo inteligente e ativo entre
esse conhecimento construído na área e as novas evidências que serão
estabelecidas a partir da pesquisa” (LÜDKE; ANDRÉ, 2015, p. 05). Nessa linha de
pensamento, este estudo pretendeu interpretar sob quais concepções de linguagem
os professores de Língua Portuguesa têm construído suas práticas de letramento no
contexto da EJA, considerando o universo do Eixos IV e VI, tomando como objeto as
práticas de letramento (s) das professoras de Língua Portuguesa, visando ao ensino
da leitura nas classes de EJA. A opção pelos Eixos IV e VI está vinculada à
dificuldade de aprendizagem da leitura que os educandos e educandas da EJA
86
enfrentam ao regressarem aos estudos nos anos iniciais. Eixo IV (6º e 7º anos do
Ensino Fundamental) e Eixo VI (1ª e 2ª Séries do Ensino Médio).
A arquitetura da pesquisa e a proposta de investigação determinam a escolha
da metodologia a ser adotada pelo pesquisador. Assim, por se tratar de uma
investigação no âmbito socioeducativo, optei pela pesquisa qualitativa, concebendo-
a como princípio investigativo e instrumento de intervenção social construída nas
relações interativas e nas implicações com os sujeitos que dela fazem parte.
Nessa premissa, procurei, durante todo o processo de investigação, elucidar o
real, experimentando situações de aprendizagem que revelaram novos
conhecimentos sobre o objeto de estudo, tendo como consequência a minha
aproximação e interação com os sujeitos pesquisados. Para Minayo (2007), quando
ocorre essa aproximação, o sujeito e o objeto investigado se completam e se
transformam à medida que se dá a tessitura do conhecimento científico. Isso foi
evidenciado durante o processo de pesquisa. Nos encontros de formação, as
professoras passaram a refletir sobre suas práticas e no contato face a face, por
meio dos diálogos, os saberes se configuravam na troca de experiências, gerando
novas aprendizagens, frutos da motivação, da inquietação, da curiosidade e da
inteligência. Com isso, os professores, conjuntamente com a pesquisadora,
analisaram novas propostas de letramento, investigaram novas metodologias,
interessaram-se por novas leituras, enfim, assumiram uma postura de professor-
pesquisador. Nessa perspectiva de pesquisa qualitativa, é importante explicitar que:
A concepção de pesquisa aqui trabalhada, entretece sem hierarquizações e antinomias, implicação como competência epistemológica e qualidade investigativa. Nestes termos, vínculo, pertencimento e afirmação como mobilizadores de modos de criação de saberes e atores como sujeitos coletivos criadores interativos de sapiências [...] (MACEDO, 2012, p. 23)
Tudo o que fazemos está associado às nossas implicações, incluindo aí nossas
opções, instituições e segmentos sociais e todas as nossas ações da pesquisa, por
isso é fundamental que o pesquisador observe, se observe e seja observado. Os
procedimentos adotados para gerar os dados desta pesquisa estão vinculados à
minha experiência com o objeto de pesquisa, desta maneira, a minha relação com
87
este estudo é histórico-existencial, porque estou vinculada pessoalmente com a
práxis científica e na interação do grupo com o qual trabalho.
A implicação com o campo de pesquisa me fez tecer um olhar atento para o
objeto de estudo. Há quatro anos vivencio as angústias e desafios de formar
educandos e educandas da EJA, na escola campo, situada no coração do Centro
Histórico de Salvador. São alunos falantes, desinibidos, com talentos artísticos,
marcados pela exclusão, características que os tornam ainda mais especiais. Daí
resulta um dos muitos desafios de atrair os olhares, a atenção e o querer desses
alunos para o que se propõe a escola: formar cidadãos críticos, falantes, leitores da
língua portuguesa e sanar o problema da evasão escolar. É alto o índice de
abandono!
O maior problema da escola, não é a oferta de vagas; garantir a permanência
desses alunos no espaço institucional para sua formação continuada e ampliar a sua
competência leitora, constitui-se hoje um grande desafio. Por entender a dimensão
da proposta deste estudo com foco na resolução de um problema social que envolve
a escola, optei pela pesquisa colaborativa, visando criar a cultura de uma prática
reflexiva na escola e potencializar os saberes das professoras. Assim, nos encontros
grupais, criei um ambiente de discussão, viabilizando trocas de experiências e
momentos de estudo.
Considerei como pressuposto, para esse tipo de pesquisa, interpretar as
concepções e saberes das professoras sobre linguagem e suas representações de
leitura, considerando o contexto em que a escola está inserida. É importante
salientar que essa pesquisa colaborativa garantiu momentos de formação
consolidados durante os encontros para a entrevista coletiva.
No âmbito dessa pesquisa colaborativa, pesquisador e docentes produziram
novas concepções sobre suas ações pedagógicas a partir de problematizações,
estudos, leituras e reflexão sobre a sua práxis a respeito do que se propôs investigar
(IBIAPINA, 2008). Nessa dialética, durante os encontros grupais, professores e
pesquisadora foram se apropriando de uma escuta atenta, do respeito à fala do
outro. As discussões foram mediadas a partir de questões pontuais, visando à
problematização.
88
Entendo que concepções mudam a partir do momento em que o sujeito
conhece o novo, “reflete sobre sua práxis e pratica a reflexão” (FREIRE, 1996), é
despertado para mudar paradigmas e para um saber-fazer novo. É por meio do
acesso às informações que o professor se forma e reinventa e reflete sobre sua
práxis.
O professor, como pesquisador de sua própria prática, transforma-a
em objeto de indagação dirigida à melhoria de suas qualidades
educativas. O currículo enquanto expressão de sua prática e das
qualidades pretendidas é o elemento que se reconstrói na indagação,
da mesma maneira que reconstrói a própria ação. (CONTRERAS,
2002, p. 119)
Nessa perspectiva, reconheço o valor de uma pesquisa colaborativa, que exige
ações bem planejadas com as professoras e não apenas para as professoras,
procedimentos coerentes com o objetivo e respeito às participantes da pesquisa –
que não são “idiotas sociais”, pois possuem saberes socialmente construídos ao
longo de seu percurso formativo e experiencial. Por conseguinte, é necessário “se
desfazer da concepção supra-orgânica de cultura como uma realidade que se
projeta acima dos atores sociais e guia suas ações”.
No rigor da pesquisa, as participantes foram densamente observadas; e, ao
saber que estavam inseridas nesse contexto, e que suas práticas de letramento
figuravam como objeto de estudo, passaram a refletir sobre o objeto: suas práticas
de letramento para responder às indagações de maneira voluntária. Assim, as
pessoas podem compartilhar símbolos, mas não compartilham forçosamente o
conteúdo destes (MACEDO, 2012).
Compreendemos que, na busca de elucidar o real, o pesquisador experimenta
situações de aprendizagem que revelam novos conhecimentos sobre um dado
objeto de estudo, tendo como consequência a aproximação do pesquisador e
pesquisado. Segundo Minayo (2007), “quando ocorre essa aproximação, o sujeito e
o objeto investigado se completam e se transformam à medida que se dá a tessitura
do conhecimento científico”.
89
Esta pesquisa qualitativa de inspiração etnográfica reuniu características que,
segundo (LÜDKE; ANDRÉ, 2015), configuram esse tipo de estudo: (1) tem o
ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal
instrumento. Tive contato pessoal e prolongado com a realidade estudada e, durante
seis meses, visitei a escola campo para investigar as concepções acerca do ensino
de língua portuguesa com vistas à formação leitora dos jovens, adultos e idosos; (2)
os dados coletados são predominantemente descritivos, desta forma, apresentamos
a descrição e análise dos dados, explorando variados métodos de coleta de dados
(observação direta, entrevista), visando fornecer um quadro mais vivo e completo da
situação estudada e da história de vida pessoal, profissional, acadêmica e leitora
que envolveu as participantes da pesquisa, considerando o maior número de
elementos presentes na situação estudada: sentimentos, gestos, emoções,
angústias, alegrias da vivência de professoras da EJA, a interação com os alunos, a
metodologia, os pontos de vistas; (3) numa pesquisa qualitativa, é importante que o
pesquisador observe o valor que as pessoas dão às coisas e a sua vida. Assim,
revelamos os pontos de vistas das participantes a partir de suas convicções,
percepções, sempre checando a veracidade, confrontando concepção e prática etc.
É importante salientar que as abstrações foram se desenhando, consolidando-se a
partir das impressões registradas ao longo do processo de investigação.
O uso da etnografia em educação deve envolver uma preocupação em pensar
o ensino e a aprendizagem dentro de um contexto cultural amplo, relacionando o
que é aprendido dentro e fora da escola (LUDKE; ANDRÉ 2015). Tomando como
princípio esses aspectos, apropriamo-nos do método etnográfico para conduzir a
pesquisa com as professoras participantes. Dessa maneira, estabeleci relações
entre as informações obtidas nas entrevistas e nas observações, transcrevi textos,
levantei genealogias. O foco foi se tornando preciso à medida que o estudo foi se
desenvolvendo.
Concebendo etnografia como a descrição de um sistema de significados
culturais de determinados grupo, procurei interpretar as concepções de linguagem
que norteiam as práticas de letramento de três professoras da EJA, tomando como
ilustração trechos de entrevistas, impressões, falas, atividades elaboradas para
90
analisar as concepções e representações de leitura das participantes, suas maneiras
de perceber a sua prática e suas próprias ações e reflexões. Destarte, parto do
princípio de que o método etnográfico tem a finalidade de desvendar a realidade
através de uma perspectiva sociocultural a partir de sua descrição densa (MACEDO,
2012), interpretada como uma mera compilação de fatos externos ao pesquisador.
Outra especificidade que fundamenta essa pesquisa de cunho etnográfico, é a
estrutura que organiza o seu corpus. Segundo Lüdke e André (2015, p. 18), a
pesquisa etnográfica descreve-se em três etapas: exploração, decisão e descoberta,
as quais configuram a base dessa pesquisa. Em vista disso, passo a descrever a
abordagem escolhida para desenvolver a pesquisa qualitativa realizada e os
métodos para a geração, coleta e análise de dados.
4.2 O PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO
O processo de investigação aconteceu entre os meses de abril e setembro.
Antes de iniciar a investigação, expliquei às professoras e à gestora da escola a
natureza dos procedimentos etnográficos para a constituição dos registros que
originariam os dados para análise desta pesquisa. Nos dias 11 e 18 de abril,
formalizei o convite e definimos as etapas de realização da pesquisa. Fizemos um
cronograma prévio de visitas para não causar nenhum constrangimento às
professoras. Definimos as datas para a observação das aulas, entrevistas individuais
e em grupos. A pesquisa de campo foi suspensa em maio e retomada em junho por
motivos de mudança de gestão, greve e paralisação.
A primeira reunião com as professoras Ametista e Esmeralda aconteceu na
sala dos professores em 11 de abril de 2016. Esse encontro consolidou os primeiros
passos da pesquisa colaborativa quando sensibilizei as professoras sobre a
importância dos encontros de formação e dos momentos em que elas poderiam
refletir sobre suas práticas. Explicitei os benefícios educacionais, profissionais e
científicos possibilitados por esse tipo de estudo.
Após a leitura da carta convite e de entenderem o processo de investigação, as
professoras demonstraram um engajamento em participar da pesquisa, assumindo o
91
compromisso firmado por meio da carta convite. Nessa perspectiva, o engajamento
representa um ato volitivo, por parte das partícipes, que devem decidir se estarão
dispostas a assumir o compromisso de refletir sobre a sua prática, (re) elaborando
saberes que modificarão o seu saber-fazer pedagógico.
Nesse momento, julguei necessário também esclarecer sobre a metodologia da
pesquisa a fim de obter das professoras o consentimento informado via documento
impresso e a assinatura do termo de adesão voluntária à pesquisa, princípio ético
fundamental à pesquisa colaborativa, que evidencia o compromisso e a
responsabilidade da pesquisadora e das professoras, além de dar início ao
estabelecimento de confiança mútua e esforços sinceros.
Após a realização dessa etapa, o engajamento, procedi à entrevista e à
observação da prática para construir um diagnóstico que orientasse as escolhas dos
temas que seriam discutidos nos momentos dos encontros de formação.
Dispensei as apresentações, visto que as professoras e eu já éramos colegas
de jornada. Nesse dia, entreguei a carta de aceite, li com elas os termos
estabelecidos no documento e elas aceitaram e assinaram. Registrei o horário de
suas aulas para organizar o calendário de observação. Agendei com as professoras
o melhor dia para observar suas aulas, realizar as entrevistas e os encontros de
formação. Após ter concluído a reunião, as professoras Esmeralda e Ametista
pediram que tivéssemos mais outro encontro a fim de falarmos um pouco mais sobre
a pesquisa e esclarecer o motivo da observação de suas aulas, o que as deixou um
pouco apreensivas. Marcamos uma reunião para o dia 18/04/2016.
Em 18 de abril de 2016, nos reunimos na sala dos professores, dialogamos
sobre algumas questões que previamente elaborei para orientar a nossa conversa.
Na ocasião, convidei a Coordenadora Pedagógica da LabDimus para apresentar, às
professoras, projetos de (multi) letramento(s) que a equipe pedagógica realiza em
parceria com escolas públicas situadas no Centro Histórico. A professora Esmeralda
já conhecia os projetos. A professora Ametista apreciou os trabalhos e se
surpreendeu com os resultados.
Nesse mesmo encontro, socializei minha experiência de estágio com a
professora Dra. Dinéa Sobral Muniz e a proposta de ensino que desenvolvemos
92
como prática na disciplina Estágio I na Faced – UFBA com as alunas de Letras.
Apresentei a bibliografia utilizada e as ideias que norteavam as obras. As
professoras se interessaram muito pela proposta. A professora Ametista solicitou o
empréstimo do livro Aula de Português - de Irandé Antunes. Diante dessa
motivação, no dia que retornei à escola para entrevistá-las, presenteei cada
professora com um exemplar da obra. Após receberem o livro, combinamos a
socialização da leitura que seria discutida no segundo encontro de formação com
previsão para acontecer em junho. Após organizar a agenda com as datas das
entrevistas, observação das aulas e os encontros de formação, despedi-me das
professoras.
A seguir, descrevo a escola pesquisada, apresento características das
participantes da pesquisa, informo a maneira como fui acolhida e apresento um
quadro geral dos encontros de formação, das observações participadas, entrevistas
e relatos realizados para coleta de dados cuja análise compõe os capítulos V e o VI
deste projeto. É importante declarar que no período da Jornada Pedagógica, no
início de fevereiro, fiz o primeiro contato com a escola a fim de observar as
professoras e selecionar os sujeitos da pesquisa que trabalhariam nos cursos da
EJA.
4.2.1 O campo de pesquisa
Defini como campo de pesquisa um colégio público situado no Centro Histórico
de Salvador. Pelo caráter e rigor desta pesquisa, é importante informar que exerci o
cargo de vice-diretora nos anos 2011 a 2013. Em 2014, por opção, reassumi a
função de professora na modalidade da EJA. Outrossim, esforcei-me para não
prejulgar ou tecer olhares preconceituosos sobre as práticas das professoras,
porque:
Os professores desenvolvem etnométodos, maneiras de compreender os alunos e solucionar problemas que surgem no cotidiano da sala de aula e que a entrada no campo não pode ser pensada de forma a separá-la da cosmovisão de homem, sociedade, ciência e da qualidade da pesquisa (MACEDO, 2004, p. 95).
93
A escola está situada no coração da capital da Bahia no Centro Histórico de
Salvador, no Largo do Pelourinho – palco multicultural. Para preservar a identidade
das professoras, o nome da escola também será preservado. Há em seu entorno um
cenário de pobreza, violência e desigualdade social. É umas das poucas escolas
públicas de Salvador que ofertam vaga para alunos jovens e adultos em situação de
risco, visando incluí-los socialmente e garantir sua aprendizagem ao longo da vida.
Grandes são os desafios para quem trabalha nesta instituição, que conta com o
empenho e profissionalismo dos professores, funcionários e de uma gestão atuante.
Os alunos que cursam a modalidade da EJA são jovens que têm em comum o
fato de carregarem a marca da pobreza e de, exatamente por este motivo, não
terem a possibilidade de realizar uma trajetória educativa tradicionalmente
considerada como satisfatória. Esses alunos vivem nas vilas, ruelas e morros do
Centro Histórico de Salvador, são, majoritariamente negros, circulam no espaço
escolar um incansável número de vezes, com entradas, saídas e retornos após o
período estabelecido com o próprio para a vida escolar. Muitos desses alunos vivem
nos casarões com constantes ameaças de desapropriação por serem imóveis
tombados pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC. Outros
moram em sobrados abandonados e condenados pela defesa civil, outros ainda,
moram em residências particulares ou alugadas.
São jovens e adultos irreverentes, criativos, sonhadores e fortes que lutam para
sair da condição de extrema pobreza e garantir os direitos ao acesso aos bens
culturais de forma a conquistar a cidadania em sua plenitude. Homens e mulheres
unidos pelo amor, pela dor e pela cor, um povo lindo, forte e inteligente que surge
das ladeiras do Pelourinho marchando contra o passado, contra a injustiça social a
favor de um futuro. Unidos, gritam contra a exclusão e contra o silêncio que os pune
(VAZ, 2011). É a sua força que os levam a cantar e dançar aos sons dos tambores
que tocam a alma e alegram o espírito, acredito ser este o motivo pelo qual esses
jovens não desistem de voltar e quando voltam, anseiam ficar, mas por encontrarem
pedras “no meio do caminho” (ANDRADE, 2012), acabam desistindo do seu
percurso formativo e evadem. Os que continuam o seu percurso, descem e sobem a
94
ladeira do Pelourinho, anseiam para além de tocar tamborins, ler, poetizar, diplomar-
se, fazer e acontecer.
A escola de Ensino Fundamental e Médio ocupa um casarão de arquitetura
neoclássica datada de 1680, antiga residência da classe burguesa. Por ser um
prédio tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Arquitetônico – IPAC não há
possibilidade de reforma e nem de adaptação do casarão, adequando-o a um
espaço escolar. Possui cinco salas de aula amplas, dois banheiros para alunos e
dois para professores e funcionários, um refeitório, um pátio amplo, uma sala para
professor, uma sala adaptada para biblioteca e outra adaptada para auditório. A
atual gestora construiu um Laboratório de Informática com 10 (dez) computadores,
sendo 5 (cinco) com acesso à internet. Apesar da construção antiga, o ambiente é
limpo, arejado e acolhedor. Não possui quadra esportiva. Funciona nos três turnos,
ofertando os cursos regulares, Tempo de Aprender e EJA. Os funcionários são
comprometidos e muito queridos. A diretora trata os alunos com carinho e respeito.
Fui recebida com um abraço acolhedor. No dia 14/07/2016, ela parabenizou o
trabalho de pesquisa:
Percebe-se com transparência a mudança na postura das professoras frente ao ensino de Língua Portuguesa. Desde a formação, a atitude delas mudou. Estão mais envolvidas, procurando parcerias para realizar o trabalho de letramento, intensificaram o trabalho de leitura com textos que abordam temas daqui da comunidade do Pelourinho. (TELES, GESTORA, 14/07/2016)
4.2.2 Participantes da pesquisa
Recebei o meu ensino, e não a prata, preferi o conhecimento, antes do ouro puro. Porquanto, melhor é a sabedoria do que as mais finas joias, e de tudo o que se possa ambicionar, absolutamente nada se compara a ela! Eu sou a Sabedoria! Em mim habita todo o conhecimento, o discernimento e [...] (Provérbios 8: 10-12)
Como participantes da pesquisa, selecionei três professoras de Língua
Portuguesa que atuam na modalidade Educação de Jovens e Adultos. Para fins de
proteger a identidade das professoras e inspirada pelo versículo bíblico: “Há ouro e
95
abundância de rubis, mas os lábios do conhecimento são joia preciosa” (Provérbios
20:15), utilizei a simbologia das pedras preciosas para referenciar as professoras
colaboradoras desta pesquisa, entendendo que a profissão do Magistério é um
campo no qual se trabalha com a produção de saberes de sujeitos preciosos – os
professores. Assim, as nomeei de Esmeralda, Ametista e Rubi e assim serão
identificadas nesta pesquisa.
Diante das inúmeras caracterizações levantadas a partir das entrevistas
semiestruturadas apresentamos, a seguir, um quadro resumo com o perfil
profissional das docentes. Essas informações poderão ser confrontadas com o texto
que descreve cada uma nas páginas 89 e 90 que seguem:
Quadro 4 – Quadro resumo da caracterização das professoras - Fonte: entrevista concedida pelas
participantes da pesquisa
A professora Esmeralda cursou Magistério no antigo curso técnico, graduou-se
em Letras Vernáculas pela Universidade Católica de Salvador, curso concluído em
1986. Seu pai concluiu o Ensino Médio e a mãe o antigo ginasial – com admissão.
Atua como professora há mais de 38 anos – aguardando aposentadoria. Há 16
anos leciona a disciplina Língua Portuguesa na modalidade EJA na mesma
instituição, desenvolvendo suas atividades laborais em 40 horas semanais. Pela
manhã, ministra aulas nos cursos da EJA – Eixo VI – equivalente ao 1º e 2º anos e
VII equivalente ao 3º ano e à tarde no Eixo V (7ª e 8ª séries). Costumava planejar as
atividades por unidade, em casa, durante os finais de semana. Quando não está
lecionando, administra o lar e é responsável pelas atividades pedagógicas de dois
SUJEITOS FORMAÇÃO LEITURAS TEMPO
DE EJA
FORMAÇÃO
LEITORA
INFLUÊNCIA
LEITURA
Ametista Letras - UFBA
Espec. Letramento
Magda Soares
Paulo Freire
10 anos Infância Pai
Escola
Esmeralda Letras - UCSAL Paulo Freire 16 anos aos 15 anos Profissão
Rubi Letras - UCSAL Paulo Freire 22 anos aos 10 anos Professora
96
netos que estudam em escolas privadas. Optou por lecionar as classes de EJA para
“ajudar aos alunos que passaram anos sem pegar numa caneta”.
A professora Ametista cursou Turismo no Ensino Médio Técnico, graduou-se
em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia, em 1993, posteriormente
fez Especialização em Letramento. Em 2014, participou de formação na área de
língua portuguesa ministrada por profissionais da Fundação Roberto Marinho. O
objetivo do curso era formar professores leitores, potencializando sua prática para a
formação de alunos da EJA. É filha de pais que cursaram até o ginasial. Atua como
professora de Língua Portuguesa há 12 anos e há dois anos leciona nessa
instituição. Há trinta anos trabalha em escolas públicas e privadas, ministrou aulas
de Redação em cursos profissionalizantes e preparação para o vestibular.
Atualmente, é corretora de Redação do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio.
Desde 2006, leciona nas classes de EJA. Iniciou suas aulas nesta modalidade por
não ter outra turma disponível na ocasião, mas após a experiência, a professora se
identificou com os alunos da classe. No turno oposto, costuma ler, estudar, trocar
informações com os colegas nas redes sociais. Planeja as aulas quinzenalmente e
busca sempre textos motivadores em livros, revistas e internet para “aplicar” em
sala.
A professora Rubi cursou o antigo 2º grau, é graduada em Letras Vernáculas
pela Universidade Católica do Salvador. Seus pais cursaram o antigo ginásio. Atua
como professora há trinta anos. Há vinte e três anos, leciona a disciplina Língua
Portuguesa e há vinte e dois anos atua na modalidade EJA na mesma instituição,
desenvolvendo suas atividades laborais em quarenta horas semanais. Pela manhã,
ministra aulas nos cursos da EJA – Eixo IV – equivalente às 5ª e 6ª séries e no
noturno no Eixo V (7ª e 8ª séries). No turno da tarde, a professora atua no cargo de
líder da comunidade do Pelourinho, exercendo forte influência política na
comunidade onde tem viabilizado benfeitorias, oferecendo cursos profissionalizantes
e técnicos para os residentes. A professora nasceu e se criou no Pelourinho,
estudou na escola onde hoje é professora. Tem um relacionamento duplamente
afetivo com a escola por ter sido aluna e com os alunos por ter vivenciado
experiências semelhantes. Pela aproximação com a comunidade local, ela conhece
97
a realidade, a história e a família de cada um dos alunos. Segundo ela, a escola,
onde hoje leciona, é responsável por sua formação cidadã e acadêmica,
preparando-lhe para a vida e, por isso, se empenha para ofertar aos alunos uma
educação de qualidade. Nos dias de folga, prepara as aulas do dia seguinte ou “fica
em casa, relaxando”, declarou ela. Optou por lecionar as classes de EJA, porque,
segundo ela, “é um desafio que dá resultado”.
As docentes – participantes da pesquisa – lecionam Língua Portuguesa nos
Eixos IV e VI. A professora Ametista desenvolve suas atividades laborais no turno
matutino, a professora Esmeralda no turno vespertino e a professora Rubi no turno
noturno. O acompanhamento dos trabalhos dessas professoras aconteceu durante
seis meses, tempo que julguei necessário para observar suas práticas educativas,
realizar as entrevistas e acompanhar mudanças significativas nas ações das
professoras frente a suas concepções de linguagem.
4.3 É TEMPO DE OBSERVAR E ESCUTAR
Ao olharmos para um determinado objeto, é muito provável que cada sujeito o
interprete a partir de suas vivências, experiências pessoais e bagagem cultural como
afirmam os estudos fenomenológicos de Husserl. Da mesma forma, o tipo de
observação que fazemos de uma determinada situação é influenciado por nossa
história pessoal, “o que nos leva a privilegiar certos aspectos da realidade e
negligenciar outros” (LÜDKE E ANDRÉ, 2015, p. 29). Daí a importância de escolher
métodos adequados para o tipo de pesquisa que se pretende realizar, bem como os
instrumentos a serem utilizados para coletar os dados que constituirão o capítulo de
análise.
Desse modo, escolhi como instrumentos de coleta de dados a entrevista
semiestruturada e observação que resultaram em registros importantes, os quais
foram objeto de reflexão e análise. Apresento a seguir um esboço geral dos
procedimentos metodológicos utilizados para a coleta de dados que fundamentam
essa pesquisa qualitativa.
98
Visando traçar um caminho coerente para alcançar os objetivos propostos
nesta pesquisa, entrevistei cada professora individualmente a fim de conhecê-las e
analisar seus saberes. As questões das entrevistas tiveram como eixo as
concepções de linguagem e as representações de leitura que fundamentam as
práticas de letramento das professoras. Como procedimentos para esta pesquisa
colaborativa, organizei encontros de formação com o propósito de criar
momentos/espaços para reflexão da práxis, troca de experiências, socialização de
leituras, estudo de teorias e produção de novos saberes.
4.4.1 instrumentos de coleta de dados
Entrevista individual – Momento de escuta sensível
As entrevistas individuais foram realizadas com as professoras Esmeralda e
Ametista em 18/04/2016 e 13/06/2016 e Rubi em 14/06/2016 e 17/07/2016.
Iniciamos as conversas com as professoras, explicando o valor da entrevista como
método para a pesquisa, perguntei se elas aceitariam participar dessa etapa de
investigação e se autorizavam a gravação de todo o processo: perguntas e
respostas. As entrevistas foram fundamentais para estabelecer maior interação com
as participantes da pesquisa. Os locais de entrevistas foram variados, na sala dos
professores, em momentos pedagógicos, no horário de intervalos e em um
restaurante-café situado no Centro histórico. As professoras, embora um pouco
“receosas”, estavam sempre receptivas e motivadas; colaboraram com a pesquisa,
fazendo com que as informações fluíssem de maneira natural e verdadeira.
Durante as entrevistas, esclareci dúvidas, problematizei questões observadas
nas aulas sobre as concepções de linguagem e de leitura que norteavam suas
práticas de letramento. Realizei as entrevistas individuais em momentos informais.
Não houve rigidez sequencial nas perguntas realizadas, visto que, na maioria
das vezes, a professora, ao responder uma pergunta, contemplava as outras
informações. Algumas indagações foram feitas a fim de elucidar as dificuldades de
interpretação que surgiam. As perguntas versaram sobre concepções de linguagem,
99
leitura, letramentos, práticas pedagógicas nas classes de EJA, experiências de
leitura e formação acadêmica das professoras. As questões foram cuidadosamente
elaboradas com base nos objetivos gerais e específicos, traçados para esta
pesquisa.
Empenhei esforços para manter o foco das discussões centrado no objeto
deste estudo; assim, escolhi como técnica a entrevista semiestruturada, sem
posição rígida de questões; as professoras discorreram sobre o tema proposto com
base em seus saberes. Destarte, procedi à entrevista para orientar a discussão, em
grupo, concebendo leitura como um processo em que o leitor interage com o texto e
a ele atribui sentidos, propondo o diálogo com diferentes autores que abordam a
aprendizagem das práticas sociais de leitura na perspectiva do letramento.
As questões também orientaram informações sobre as diretrizes curriculares
para o ensino de Língua Portuguesa na Educação de Jovens e Adultos que prioriza
o ensino da linguagem em uma visão interacionista por ser este um valioso
instrumento que possibilita desenvolver as competências necessárias para a
aprendizagem da leitura e da escrita, bem como a possibilidade de aumentar a
consciência em relação ao estar no mundo, ampliando a capacidade de participação
social no exercício da cidadania. É por meio do estudo da linguagem que
conseguimos formalizar todo conhecimento produzido nas diferentes disciplinas e
que se explica a maneira como o universo se organiza.
As entrevistas foram transcritas pela própria pesquisadora a fim de interpretar,
inferir, categorizar com maior rigor e detalhes a análise dos dados. Os registros das
entrevistas passaram por uma análise cuidadosa e constituíram os dados que
auxiliaram na compreensão entre a concepção teórica e a prática, permitiram ainda
a captação imediata e corrente da informação desejada e o aprofundamento de
pontos obscuros levantados no momento da observação. A análise das entrevistas
constitui o capítulo V deste estudo.
Observação – Momento de apreciar os saberes docentes transformados em práticas
de letramento
100
O período de observação iniciou-se em abril de 2016, sendo finalizado em
setembro. Foi sistematizado em dois momentos para que eu pudesse analisar as
práticas pedagógicas construídas pelas professoras antes e após os momentos de
formação a fim de constatar se haveria mudança nos procedimentos metodológicos.
Procedi à observação das aulas das professoras Esmeralda e Ametista entre os
períodos de 18/04/2016 e 21/09/2016. Observei a professora Rubi entre 21/07/2016
e 21/09/2016.
Os procedimentos de observação eram realizados sempre depois das
entrevistas, após os momentos de diálogo, socialização de experiências, discussões
e estudos que norteavam o encontro grupal. Conduzi desta forma para verificar se
esta pesquisa colaborativa estava contribuindo para ação-reflexão-ação, intervindo
nas práticas sociais e pedagógicas das professoras.
Optar por esse instrumento de pesquisa – a observação – proporcionou
compreender como as professoras estabeleciam, na prática, os saberes produzidos
ao longo de sua vida acadêmica e de como esses saberes socialmente construídos
se consolidavam nas práticas de letramento, na interação com os alunos, na
metodologia utilizada, nos objetivos traçados para as aulas etc..
O foco desta pesquisa é o professor, entretanto, nos momentos de observação
julguei necessário registrar a fala de alguns alunos para configurar a análise dos
dados e a interação entre professor-aluno em sala de aula. Destarte, os alunos e
alunas que tiveram suas falas registradas, serão aqui identificados como: os alunos
e alunas da professora Esmeralda – AE1, AE2; os da professora Ametista – AA1,
AA2; os da professora Rubi – AR1, AR2, sucessivamente.
A rotina de observação consistia no ingresso à escola, visando acompanhar as
aulas das professoras. Era costume chegar sempre antes de iniciar as aulas. Além
de observar as aulas em sala, acompanhei atividades de multiletramentos
extraclasses, descritos no capítulo VI.
No segundo contato com a turma, no mês de julho, percebemos uma
inquietação por parte dos alunos, mas logo se adaptaram. A partir dos outros
encontros, os alunos não apresentavam mais nenhum gesto de inquietação, pois já
haviam se acostumado com minha presença in locus. Em todas as aulas que
101
observamos, nos períodos entre abril e outubro, houve interação entre os
professores e os alunos. Observamos nas aulas da professora Ametista e Rubi uma
maior interação entre discente e docente num processo de escuta e respeito mútuo.
Suas aulas ultrapassavam os métodos tradicionais em que o professor não assume
totalmente a autoria do projeto de ensino. Os alunos participam da escolha dos
conteúdos, dos temas e dos gêneros textuais.
A observação proporcionou, ainda, uma convivência efetiva com os envolvidos
da pesquisa e desvendou sutilezas observadas em nuances de seus
comportamentos reveladas em gestos, comportamentos, olhares, o que oportunizou
a percepção de diversos aspectos que interferem nas práticas dos professores, as
dificuldades em estabelecer um trabalho sistemático, regular e fluído e nas relações
afetivas que estabelecem com os sujeitos envolvidos nesse processo, neste caso,
os alunos da EJA.
Os dados coletados durante essa fase de observação refletiram o perfil das
práticas que os professores realizaram durante as visitas em sala e que fizeram
parte de sua rotina diária, pois era evidente a alegria dos professores em planejar e
executar atividades que envolviam práticas de letramento.
A rotina de observação consistia no ingresso à escola, visando acompanhar as
aulas do professor. Durante os encontros de observação da práxis pedagógica, era
costume chegar sempre antes de iniciar as aulas. Além de observar as aulas
realizadas em sala de aula, acompanhamos atividades de multiletramentos
realizadas extraclasse em parceria com a equipe pedagógica do laboratório de
informática da diretoria de museus (LabDimus) que desenvolve com a escola
projetos de letramento em mídias digitais.
4.4 A FORMAÇÃO – TEMPO DE REFLETIR E TEORIZAR A PRÁTICA
Como procedimento desta pesquisa colaborativa, organizei com as professoras
encontros grupais para a formação realizados entre os meses de maio e julho.
Durante os encontros, preservei as atitudes imparciais para não conduzir respostas,
colocações, reflexões, ideias acerca das questões que nortearam os diálogos.
102
Procurei problematizar algumas situações que observei em sala de aula e para não
constranger as professoras, mantive preservadas suas identidades, bem como suas
atitudes em sala. Utilizei sempre perguntas de caráter geral para analisar o que cada
uma sabia, pensava e praticava a partir da interação nas situações dialogais.
Durante os encontros, procurei acolher as profissionais num ambiente
tranquilo, seguro e de mútuo respeito, configurando os encontros de formação em
espaços/momentos de interação, onde as professoras teriam liberdade de expressar
acerca das dúvidas, angústias, necessidades de aprendizagens e compartilhar as
dificuldades que encontram para enfrentar a complexidade da realidade escolar.
Durante os encontros, não assumi postura de professor detentor de saberes, a
minha presença, nas reuniões para a formação tinha como objetivo mediar as
discussões, escutar, compartilhar leituras, concepções e teorizar as práticas de
letramento e também aprender com elas, entendendo, assim como Paulo Freire, que
ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos
nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre. Nesse sentido, as
professoras e eu compartilharmos pensamentos, crenças, saberes acerca das
concepções sobre educação de Língua Portuguesa na EJA, as quais refletiam as
suas práticas de letramento.
Na interlocução com as muitas vozes teóricas, as docentes construíram
entendimentos sobre a concepção de linguagem que orientam os direcionamentos
para o ensino da Língua Portuguesa nas classes de EJA. Desta forma, esta
pesquisa colaborativa contribuiu para a formação das professoras e para criar a
cultura da prática reflexiva na escola. Enquanto seres humanos conscientes,
podemos lutar pela democratização da escola pública. Entendo, assim, que essa
pesquisa se insere nessa luta, colaborando com a formação do professor para uma
melhor atuação nas classes de EJA, ofertando um ensino compatível com as
necessidades desse público.
Compartilhamos ideias sobre o trabalho com os gêneros textuais a fim de
desenvolver experiências de leitura para os educandos e educandas, adequando a
seleção de textos escolares aos gêneros discursivos que fazem parte do repertório
diário dos sujeitos da EJA e que, por isso, já foram internalizados por eles, havendo,
103
assim, uma maior interação entre autor-texto-leitor para a produção de sentido e
melhor compreensão e interpretação do texto oral e escrito. Durante os encontros,
fizemos leituras e pesquisas que culminaram em discussões e reflexões importantes.
O material trabalhado com as professoras foi escolhido, cuidadosamente, com
base em suas reais necessidades de leitura. Durante as entrevistas e na observação
das primeiras aulas, percebi a urgência de viabilizar discussões que levassem as
professoras a refletir sobre suas práticas. Além de selecionar materiais que versam
sobre a EJA, tomei como base a bibliografia básica utilizada pela Dra. Dinéa Sobral
Muniz, na disciplina Estágio I, da Faculdade de Educação oferecida ao Curso de
Letras Vernáculas da UFBA. Eu participei dessa disciplina como estagiária na
disciplina Tirocínio Docente.
As professoras tiveram acesso aos materiais por meio de livros, exposição
participada e impressos. A seguir, apresento um quadro resumo bibliográfico que
compõe a bibliografia básica que norteou os estudos, as discussões em nossos
encontros e permitiu que as professoras teorizassem suas práticas e refletissem
suas ações.
O tempo de formação consolidou-se em ricos momentos de interação,
dialogicidade e produção de novos saberes. Desta maneira, o trabalho desenvolvido
com as professoras serviu como um aparato crítico reflexivo em busca de respostas,
métodos, concepções, diretrizes educacionais que melhor orientassem as práticas
de letramento que estão em curso na modalidade educacional na EJA.
MATERIAL ATIVIDADE OBJETIVO
Leitura e discussão das ideias expressas no livro em diálogo com os PCN e a LDB para a EJA.
Refletir sobre questões que envolvem metodologia, objetivos e concepções de linguagem Analisar as diretrizes que orientam o ensino de Língua Portuguesa na EJA
104
1. Capítulos 1, 2 e 5 2. 3. 1. Linguagem como interação
social; 4. 5. 2. A gramática na atividade
discursiva;
Discutir a prática de análise de textos privilegiando os aspectos global, semântico, pragmático. Perceber que o texto converge ações cognitivas, linguísticas e também sociais;
6. Capítulos 1 e 5 1. Uma visão sumária das práticas pedagógicas de análise de textos.
2. Práticas de análise de textos quanto a sua dimensão global
Discutir a importância de trabalhar a gramática dos gêneros discursivos relacionando as práticas sociais de leitura dos alunos da EJA. Propor atividades de leitura que levem o aluno a refletir sobre a função social da língua.
1. O insucesso escolar no Brasil do século XXI. 2.Práticas de letramento em diferentes contextos.
Discutir os índices de analfabetismo entre as pessoas com 15 e 64 anos; Construir conceitos de leitura, alfabetização e letramento; Analisar práticas de letramento adequadas ao contexto da EJA.
1.Dialogamos com as ideias de Paulo Freire
7. Obs. As três professoras já tinham lido.
Refletir sobre o ato de ler na EJA como prática concreta de libertação e construção da história, capaz de inserir o alfabetizando num processo criador, de que ele é também um sujeito.
Apreciação do filme É tempo de potencializar a leitura na EJA. Discutir sobre como alfabetizar letrando na EJA.
Quadro 5 – Quadro resumo bibliográfico
Durante o processo de investigação, proporcionei condições para que as
professoras pudessem rever conceitos e práticas, possibilitando às partícipes um
saber-fazer autônomo e uma necessidade constante de continuar produzindo
saberes pela positiva relação teoria-prática.
Nos encontros de formação, as professoras tiveram acesso a novos
conhecimentos, puderam compreender e analisar melhor a realidade do contexto
105
escolar; criaram condições favoráveis à transformação da prática educativa, de um
fazer espontâneo para um saber fazer consciente e conscientizador.
Nesse sentido, esta pesquisa colaborativa reconciliou duas dimensões da
pesquisa em educação, a produção de saberes e a formação continuada das
professoras. Essa dupla dimensão privilegia pesquisa e formação, fazendo avançar
os conhecimentos produzidos na academia e na escola, havendo aproximação com
estudos científicos.
O tempo/espaço e os objetivos dos encontros
No primeiro encontro de formação, realizado na primeira semana de maio
05/05/2016, as professoras participaram de uma formação em Patrimônio,
Identidade e Memória com o mediador Eduardo Moleiro que culminou com a oficina
de contação de história ministrada pela filósofa, museóloga e escritora – Iray Galvão.
O trabalho de campo teve a duração de 1h 40min.; a oficina de contação de história,
60 min.; a apresentação da proposta de letramento literário, 30 min.; as professoras
pensaram em construir propostas que explorassem “a leitura de mundo e a leitura da
palavra” (FREIRE, 1997). Elas construíram propostas de leitura, contemplando
temas do cotidiano dos alunos e os gêneros discursivos.
Considerei importante discutir sobre o universo letrado que envolve os alunos
da escola, visto que eles participam de cursos e projetos ofertados por instituições
que recebem ajuda do governo local e de entidades internacionais. Entre os nomes
que figuram essas ONGs, destacamos o Projeto Axé – que atua na área da arte
educação; a Oi Kabum – Escola de Arte e Tecnologia que oferece formação em
artes gráficas e digitais; a FUNCEB – Fundação Cultural do Estado da Bahia – que
oferece aula de dança e teatro; a LabDimus – Laboratório de Letramento, Arte e
Tecnologias Digitais que oferece cursos dentro da perspectiva do letramento e
trabalha com a História, Memória e Identidade, desenvolvendo projetos com
estudantes de escolas públicas. É nesse universo letrado e multicultural que os
jovens, adultos e idosos estão inseridos.
106
No segundo encontro de formação, ocorrido em 12/07/2016, estavam
presentes as três professoras. Organizei uma pasta com um acervo de textos do
livro Gramática Contextualizada e Análise de textos de Irandé Antunes, textos sobre
Jorge Amado, sobre a arquitetura do Pelourinho e biografias de figuras populares do
Pelourinho. As professoras socializaram a leitura do livro Aula de Português de
Irandé Antunes, falamos sobre nossas experiências de Língua Portuguesa na
Educação Básica e na educação superior; recordamos as professoras que
marcaram a nossa infância, a metodologia utilizada e a didática aplicada.
No terceiro encontro de formação, ocorrido em 27/07/2016, organizei um Café
Literário para as professoras participantes da pesquisa. Na ocasião, dialogamos
sobre as concepções de leitura (FREIRE, 1996) e (CHARTIER, 1999); Alfabetização
e letramento (SOARES, 1998) e letramentos (ROJO, 2009; STREET, 2014). As
professoras apresentaram muitas dúvidas acerca das concepções de alfabetização
e letramento. Após estudo teórico, iniciamos diálogo para discutir leitura,
alfabetização e letramento na EJA. Analisamos as propostas de letramento,
envolvendo o trabalho com gêneros discursivos iniciados em classe. Analisei com as
professoras a distinção entre letramento social e letramento escolar.
No quarto encontro, ocorrido em 16/08/2016, as professoras socializaram as
novas propostas de leitura que tinham colocado em prática. A professora Esmeralda
engajou-se, com seus alunos, em um projeto de letramento realizado em parceria
com o LabDimus. As professoras Ametista e Rubi planejaram trabalhar com a
arquitetura urbana do Pelourinho, visto que os alunos enfrentavam, na ocasião,
conflitos sociais envolvendo moradia, alguns perderam seus casarões – antigos
sobrados – em desabamentos por conta das fortes chuvas e incêndios e
aguardavam inscrição para ter direito ao benefício da casa própria; outros
enfrentavam. Para isso, trabalharam com o gênero notícia e Ametista acrescentou o
filme Capitães da Areia – adaptação da obra literária com a visitação ao Museu
Casa de Jorge Amado, enfatizando que o famoso escritor também residiu num dos
casarões situados no Pelourinho.
À medida que as professoras pensavam sobre as concepções que norteavam
suas práticas pedagógicas, elas produziam novos saberes por meio da leitura, da
107
pesquisa e das discussões geradas em torno do objeto deste estudo, e estas novas
aprendizagens refletiam suas práticas num movimento de ação-reflexão-ação.
(FREIRE,1997)
Os diálogos tecidos durante os encontros de formação e nos tempos das
entrevistas individuais reforçaram a necessidade de qualificação dos profissionais
envolvidos no processo ensino-aprendizagem da leitura nas classes de EJA. É
fundamental que a formação da equipe docente seja amparada por leis que
garantam o acesso dos professores à formação inicial, nos cursos de licenciatura e
na continuação do exercício docente numa prática reflexiva. “Ninguém nasce
educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador,
permanentemente na prática e na reflexão da prática”. (FREIRE, 1997, p. 58). Para
o autor, formação permanente é uma conquista da maturidade, da consciência do
ser. Durante os encontros, as professoras motivaram discussões acerca da
necessidade de ampliarmos pesquisas no âmbito da colaboração, visto que não há
políticas públicas efetivas para a formação de profissionais para atuar na EJA. A
pesquisa colaborativa é um método eficaz para a transformação desse contexto.
Destarte, compreende-se a tripla dimensão que tem caracterizado a pesquisa
colaborativa que (i) supõe a construção de um objeto do conhecimento entre
pesquisador e práticos; (ii) associa ao mesmo tempo atividades de produção do
conhecimento e de desenvolvimento profissional; (iii) visa uma mediação entre
comunidade de pesquisa e comunidade de prática (IBIAPINA, 2008).
O saber do professor é multidimensional e incorpora elementos relativos à
identidade pessoal e profissional de suas tradições culturais, assim, teoria e prática
estão entrelaçadas por um fio condutor que interliga os saberes construídos ao
longo de sua vida e refletem as suas práticas de letramento. Essa concepção foi
traduzida em dados que constituem os capítulos V e VI.
Apresento, a seguir, os resultados gerados a partir da análise desses dados,
propondo uma discussão acerca disso. A sua organização foi estruturada em
quadros que categorizaram os tipos de procedimentos mobilizados pelos sujeitos da
pesquisa, apresentando a análise dos resultados obtidos a partir da fala das
professoras.
108
5 O SABER DOCENTE EM DIÁLOGO COM PRÁTICAS DE LETRAMENTO
Aprendemos porque somos seres humanos e nos tornamos humanos através do ato de conhecer o mundo, ou seja, nosso processo de “humanização” é marcado pelas relações de aprendizagem que vivenciamos ao longo da nossa história de vida. Nossa forma de aprender está marcada pela maneira como fomos iniciados nos nossos primeiros contatos com o mundo das coisas e com o mundo das pessoas. Como fomos ensinados a olhar, a falar, a tocar e a perceber as cores e odores do mundo que nos cerca. (DOWBOR, 2007, p. 31)
Nossa forma de aprender reflete em nossa maneira de ensinar, assim o ato de
aprender e ensinar estão marcados pela maneira como fomos iniciados em nossos
primeiros contatos com mundo das letras, das coisas, das pessoas, do mundo.
Nesse sentido, as concepções de linguagem do professor refletem suas práticas de
letramento e definem as opções metodológicas, os objetivos de ensino, a seleção
dos materiais didáticos etc., podendo potencializar a ação pedagógica, tornando-a
mais produtiva ou não.
Esta concepção norteou todo o processo de investigação e me fez refletir sobre
que saberes os professores têm produzido ao longo de suas experiências pessoais,
e que heranças culturais trazem para a pedagogia da sala de aula a fim de garantir
aos alunos da EJA uma formação leitora capaz de incluí-los no mundo socialmente
letrado. A partir deste questionamento, procurei interpretar as concepções de
linguagem que permeiam as práticas de letramento das professoras Ametista,
Esmeralda e Rubi – colaboradoras desse estudo.
Nesse sentido, esta pesquisa colaborativa desenvolveu-se a partir de uma
metodologia que permitiu às professoras colaboradoras se beneficiarem diretamente
do processo de investigação. Assim como Ibiapina (2008), defendo a pesquisa
colaborativa, destacando a construção coletiva do conhecimento e intervenção sobre
a realidade estudada, compreendendo que a colaboração é um processo
compartilhado de avaliação e reorganização de práticas, incluindo-se os aspectos
metodológicos no qual se criam contextos abertos para que todos os participantes
falem, questionem, relatem etc..
109
Partindo dessa premissa, adotei como procedimento de pesquisa colaborativa,
ações que permitiram às professoras ampliarem as possibilidades de conhecerem
formalmente os significados internalizados, confrontá-los e reconstruí-los por meio
de um processo reflexivo, permitindo a tomada de consciência dos conhecimentos
que já foram internalizados e a consequente redefinição e reorientação dos
conceitos e das práticas adotadas nos processos educativos por eles mediados
(IBIAPINA, 2008).
Na pesquisa colaborativa, a habilidade do pesquisador consiste em propor aos
professores atividades reflexivas que permitam, de um lado, atender as
necessidades de desenvolvimento profissional, e de outro lado, atender as
necessidades do avanço do conhecimento do domínio da pesquisa no qual os
professores são o foco e a sua prática, o objeto. Isso reforça a ideia de que a escola
também é espaço onde os professores aprendem nas práticas de interlocução e da
interação com o outro. A escola é um local privilegiado de troca de informações, de
encontros, de legitimação de práticas sociais, de interação, de construção de
conhecimento e que, portanto, é locus privilegiado também de pesquisas que
promovem intervenção social.
Assim, durante os encontros de formação, as professoras tiveram acesso às
teorias do conhecimento sobre linguagem, alfabetização e letramento (s); analisaram
novas práticas sociais de leitura – incluindo os gêneros discursivos, refletiram sobre
suas ações pedagógicas e trocaram experiências. Elas expressaram dificuldade em
escolarizar práticas sociais de leitura sem envolver as práticas tradicionais do ensino
da gramática, visto que o ensino da língua como estrutura afigura-se como um
marco na rotina de suas ações pedagógicas.
Desse modo, os encontros foram fundamentais também para fortalecer as
práticas educativas das professoras e consolidar a produção de novos saberes
acerca do ensino de língua e concepções de linguagem. As professoras
compartilharam de momentos significativos de formação, participaram de oficinas de
letramento tendo acesso às metodologias adequadas para o público da EJA. Foram
seis encontros de formação, entretanto, apresentarei os diálogos em recortes de
quatro momentos.
110
Para alcançar os objetivos propostos para esse estudo, subdividimos esse
capítulo em dois tópicos: no primeiro, apresento os resultados da análise dos dados
coletados nas entrevistas individuais que contemplam os saberes conceituais das
professoras colaboradoras; o segundo tópico, se limita a interpretar os dados
coletados durante os encontros de formação em que as professoras dialogaram
sobre o saber-fazer, ou seja, saberes que orientam e/ou passaram a orientar as
suas práticas pedagógicas.
5.1 POR QUE ALFABETIZAR LETRANDO NA EJA?
Em 14 de julho, quando observei a aula da professora Ametista, antes da
reunião, a aluna AA1 me chamou a atenção por sua participação e interesse na aula
de Língua Portuguesa. Ao final da aula, perguntei sobre o que tinha motivado seu
regresso à escola. Ela respondeu:
Outro dia eu fui fazer uma entrevista de emprego e um homem lá pediu pra gente ler um texto na frente dos outros, aí, eu cheia de vergonha, li gaguejando, o povo riu de mim, fiquei muito triste e me senti humilhada. Voltei pra escola pra aprender a ler direito. (AA1- Aluna da EJA, 14/07/2016)
Os anseios de aprendizagem dos alunos, em relação à escola, estão
relacionados, na maioria das vezes, às necessidades diárias, às experiências de
vida, a maior autonomia e segurança para realizar determinadas atividades que
envolvem leitura e escrita. A maioria dos estudantes egressos do contexto
educacional retorna à escola porque anseia ler e escrever palavras e textos que
circulam em nossa sociedade.
Nesse sentido, o discurso da jovem evidencia que ela pleiteia maiores chances
de inserção no mercado de trabalho por meio dos estudos e uma maior autonomia
nas situações em que a leitura está presente, enfim, sua fala nos remete, além da
necessidade de aprender a ler, a questões econômicas e sociais. Percebemos, com
isso, que suas expectativas em relação ao que deseja aprender estão vinculadas ao
episódio de humilhação que a fez sentir-se diminuída socialmente. Esse sentimento
111
é resultado de representações construídas socialmente e reforça a ideia do modelo
ideológico autônomo (STREET, 2014) que prestigia uma língua padrão,
desqualificando as pessoas que não têm o domínio da leitura e que por isso são
submetidas às experiências de humilhação, depreciação e vergonha.
Nesse episódio, em particular, uma situação de letramento, na comunidade,
requereu uma competência de letramento desenvolvida na escola. A aluna da
professora Ametista, por exemplo, retornou aos estudos, impulsionada por um
desejo: o direito de atuar com competência e autonomia em situações sociais de
leitura sem ser discriminada. Ela busca hoje desenvolver na escola, além de sua
autoestima, o domínio necessário da leitura e escrita para conquistar uma vaga de
emprego, ou seja, os alunos da EJA retornam para “aprender a ler direito”, porém
quando não conseguem, sentem-se incompetentes, impotentes diante de uma
sociedade que dita a seguinte regra: a pessoa só será bem-sucedida na vida, se for
bem-sucedida na escola. Concebemos, assim como Albuquerque (2010, p. 73), que:
A escola, desse modo, tem um importante papel a cumprir, ao favorecer o acesso a tais tipos de habilidades. É claro que a escola não tem apenas essa função, mas sem dúvida, a tarefa de ensinar a produzir e compreender textos é complexa e pode favorecer muitas outras aprendizagens e vivências na vida dos jovens e adultos.
Os sujeitos da EJA nutrem sonhos e acreditam que a escola poderá
desenvolver a sua competência intelectual, o que nos leva a refletir sobre a grande
importância que a sociedade letrada dá às habilidades necessárias ao domínio
autônomo da leitura. Daí a importância de a escola legitimar as práticas discursivas,
preparando o indivíduo para atuar, com autonomia, na sociedade letrada, assumindo
a distinção entre práticas letradas na comunidade e na escola (STREET, 2014, p.
129). Esclareço que a escola, embora se configure como espaço privilegiado para
alfabetizar letrando, não é a única agenciadora de letramento, há outras instâncias a
exemplo da família, da igreja, da rua, do trabalho etc. que constituem espaços
sociais de desenvolvimento de letramento (s).
Diante do exposto, depreendemos que a instituição escolar é o espaço onde os
alunos da EJA desejam ampliar sua capacidade leitora e que, portanto, esperam
112
vivenciar, em sala de aula, situações concretas de práticas de letramentos que
considerem também suas necessidades mais urgentes, suas experiências, suas
memórias de leituras, seus gostos pessoais, daí a necessidade de projetos de leitura
que além de alfabetizar, escolarizem as práticas sociais de leitura.
O que está em jogo aqui é a forma como a escola concebe o processo de
aprendizagem da leitura e da escrita. As crianças são introduzidas ao mundo letrado
por meio do processo de alfabetização. O mesmo vem ocorrendo com estudantes da
EJA que chegam à escola sem o domínio da leitura, visando dar continuidade ao
seu processo de alfabetização, portanto, desejam aprender a ler. Se o jovem, o
adulto e o idoso frequentam a sala de aula com o desejo de ler é muito mais fácil
empreender um trabalho com leitura nessa classe do que em turmas “cujo aluno
está na sala de aula porque foi levado e não porque escolheu estar lá, aí exige um
trabalho de maior cuidado pedagógico” Muniz (2015, p. 114). Não ignoro o fato de
que a EJA demanda um trabalho igualmente cuidadoso no sentido de potencializar
as habilidades de leitura frente às dificuldades apresentadas, mas já existe o desejo
do sujeito em aprender a ler e isso já facilita o trabalho dos professores.
Chamo a atenção para a forma como os alunos da EJA são introduzidos nas
experiências de leituras reducionistas que visam apenas ao processo de
alfabetização como uma mera mercadoria e não a leitura como um direito humano.
Há décadas, os objetivos do ensino de LP, nas classes de EJA, têm favorecido a
aprendizagem da gramática como suporte básico para o estudo da língua. Afirmo
isso com base em minhas experiências como formadora de professores que atuam
nessa área e com dados analisados a partir desta pesquisa.
As professoras – sujeitos desta pesquisa – por exemplo – utilizavam textos em
sala de aula para trabalhar as nomenclaturas gramaticais, orientando a identificação
e classificação de palavras soltas, descontextualizadas, mudas. A professora
Esmeralda, por exemplo, quando questionada sobre os procedimentos adotados
para trabalhar leitura com os alunos, respondeu:
Os textos são complexos e os alunos não conseguem acompanhar. Eles chegam sem saber nada, nem a letra do alfabeto. Por exemplo, eles chegam no Ensino Fundamental II, os do Eixo IV, sem saber ler
113
e escrever. Eu oferecia para eles textos da terceira série e da 4ª série com uma linguagem mais fácil. O mesmo acontece com os meus alunos do Eixo VI. Mesmo com linguagem mais fácil, eles resistem, não gostam de ler, têm preguiça. Se eu trabalho com poesia, eles sentem muita dificuldade em interpretar poesia. Então eu prefiro trabalhar com frases e aí vou analisando com eles no quadro. Eles precisam aprender gramática, a conjugar bem os verbos [...] (PROFESSORA ESMERALDA, 13/06/2016).
Ao privilegiar o ensino da gramática, a professora Esmeralda contraria o
discurso da aluna que declarou ter retornado para a escola a fim de aprender a ler. A
concepção de Esmeralda reforça o objetivo do ensino tradicional da escola brasileira
que sempre foi transmitir aos alunos o ensino do português padrão. Para alcançar
esse objetivo, a escola sempre adotou a ideia de que para falar bem e escrever
bem, o sujeito deveria adquirir um saber gramatical.
No entanto, afirmar que para falar e escrever bem a pessoa, obrigatoriamente,
tem que aprender os mecanismos de funcionamento da língua, trata-se de um mito.
“Há algum tempo já sabemos que boa parte das classificações, dos conceitos e das
definições da Gramática Tradicional são falhos, incoerentes e muitas vezes
contraditórios” (BAGNO, 2002, p. 51).
Isso nos desafia a pensar em um ensino de LP capaz de inserir os educandos
e educandas da EJA na sociedade (multi) letrada, exercendo as práticas de leitura e
de escrita que circulam na sociedade em que vivem e amplia o debate para uma
questão muito discutida no âmbito do ensino público que se refere aos objetivos
traçados para o ensino de Língua Portuguesa no século XXI frente aos novos
desafios da sociedade que requer pessoas culturalmente letradas e multiletradas.
Essas questões me motivaram a criar, na escola, um espaço/tempo para que
as docentes pudessem refletir sobre a necessidade de planejarem ações
pedagógicas que priorizem a formação de homens e mulheres que interajam,
dialoguem e participem dos espaços discursivos, a que têm acesso, com autonomia
e senso crítico para emitir opinião, argumentar, lutar por direitos sociais etc..
Nesse sentido, construí um ambiente de discussão, trocas de experiências,
momentos de estudo com o propósito de criar a cultura da prática reflexiva e
potencializar os saberes das professoras como meio de intervenção social.
114
5.2 FORMAÇÃO DO PROFESSOR NO CONTEXTO DO PELOURINHO
No encontro de formação sobre Patrimônio, Identidade e História, ocorrido em
05/05/2016, as professoras participaram de oficinas que permitiram uma maior
aproximação entre comunidade e escola para conhecer o contexto histórico social
em que o público da EJA estava inserido, visando propor atividades de leitura e
escrita que contemplassem o letramento social de seus estudantes, isto é, construir
práticas de letramento, entendendo que os alunos participam, no contexto diário, de
experiências discursivas.
Mediadas pelo historiador Eduardo Moleiro, as professoras realizaram um tour
pelo Pelourinho, tendo acesso à história do Centro Histórico de Salvador, à
arquitetura urbana local – Patrimônio da Humanidade; visitaram os museus
Tempostal, Casa de Jorge Amado, a Igreja Rosário dos Pretos para conhecer a
história de sua criação, que envolve a cultura africana, e a partir desse
conhecimento, refletir sobre a importância de construir práticas de leitura que
explorassem melhor temas do cotidiano dos alunos para maior interação da turma,
chamando a atenção das professoras para outros espaços em que o público da EJA
desenvolve letramentos. A professora Esmeralda, por questões pessoais, não
participou desse encontro.
Após a visitação, as professoras participaram da oficina de Contação de
História – Memórias de minha cor preta – ministrada pela filósofa, museóloga e
escritora – Iray Galvão – que aborda, em seus escritos, temas da cultura africana. O
nome de Iray surgiu pelo trabalho de inclusão social que ela desenvolve com jovens,
adultos, idosos em situação de risco, na comunidade do Pelourinho, sendo alguns
destes, estudantes da escola.
À medida que as professoras iam conhecendo o espaço onde a escola estava
situada, aprendiam sobre a história do Centro Histórico – Patrimônio da
Humanidade, e se reconheciam também participantes desse contexto. Perguntei às
professoras se elas contemplavam, em suas práticas de letramento, textos que
115
referenciavam o contexto sócio-histórico dos sujeitos da EJA. A professora Rubi
respondeu:
Eu nasci e me criei aqui, estudei na escola onde agora sou professora e nunca pensei em levar para a sala de aula nada que tivesse relação com o Pelourinho. Engraçado! As minhas professoras que ensinaram aqui, também nunca falaram nada sobre o Pelourinho[...] era só aula de gramática. Leitura mesmo só vi com a professora da antiga 6ª série ginasial ela trabalhava com literatura. Vou levar textos sobre o Pelô para ver se eles vão gostar de ler. (PROFESSORA RUBI, 05/05/2016)
Nesse viés, as professoras repensaram sobre quais leituras poderiam
contemplar o contexto sociocultural e discursivo dos educandos e educandas da
EJA, de maneira a desenvolver a linguagem desse público, usando textos com os
quais eles pudessem interagir com as ideias do autor e a elas produzissem sentido.
As professoras pensaram em inserir no currículo o tempero da Bahia que envolve
arte, cultura, literatura e a história da língua portuguesa usada na Bahia que inclui a
história de outros continentes: em destaque a África e a Europa. Outrossim,
considerei também importante que as professoras tivessem acesso à variante
linguística usada no Pelourinho e, que por meio do reconhecimento da identidade
cultural, das formas de falar, dos seus saberes, pudessem se aproximar do
letramento que esses alunos e alunas desenvolvem em sua comunidade e que
também deve ser considerado pela escola. Para Antunes (2009):
[...] vale a pena sonhar com o dia em que a escola saiba despertar nos alunos a paixão pela língua portuguesa; inclusive pela língua portuguesa falada no Brasil. Uma língua que sofreu influência e que por isso tornou-se tão diversificada, tão impregnada de história, de mares e de terras, tão misturada de cores (e sabores), de sons e ritmos, por isso mesmo impossibilitada de ficar igual a si mesma, petrificada ou cristalizada numa forma única e invariável. (ANTUNES, 2009, p.31)
A dimensão social dos trabalhos com textos oferece uma diversidade de
gêneros discursivos. Os professores, ao planejar suas atividades pedagógicas,
poderiam trabalhar a partir desses gêneros, conceitos, atitudes e procedimentos a
fim de construir pontes referenciais e aproximar o contexto social-aluno-escola,
116
explorando o contexto multicultural em que seus educandos e educandas estão
inseridos e, com isso, contemplar além da dimensão cognitiva, a formação integral
do cidadão capaz, ampliando a sua visão crítica de mundo.
Essa formação causou grande impacto e suscitou reflexões profundas acerca
do letramento social. As professoras participaram de práticas de letramento que
subsidiaram a construção de novas práticas. Elas traduziam, no olhar e em suas
falas, o encantamento da descoberta de um saber-fazer-novo e com isso poder
redescobrir novas maneiras de agir pedagogicamente e, ao mesmo tempo, sentiam-
se acolhidas, tocadas e valorizadas.
A professora Esmeralda pensou em trabalhar com um trecho da obra Capitães
da Areia para ensinar pontuação, ou seja, trabalhar leitura para aplicar exercício de
gramática sem levar em conta a função social do texto, a visão política do autor que
contextualiza história dos sujeitos da EJA que residem no Pelourinho.
Diante da dificuldade da professora em reconfigurar os objetivos de suas aulas
de Língua Portuguesa, apresentei propostas de trabalhos com gêneros textuais, que
versam as literaturas, que poderiam contribuir para ampliar a competência linguística
desses sujeitos, incluindo-os no mundo letrado sem, com isso, desvalorizar a sua
identidade comunicativa. O objetivo era fazer com que o público da EJA
compreendesse que sua forma de expressão escrita e oral – que constitui uma
variante linguística, não é menos prestigiada que a dita – linguagem padrão. É, na
verdade, a expressão de uma língua que sofreu influência de povos, culturas,
costumes, contextos específicos do que propriamente da língua portuguesa que
herdamos dos colonizadores portugueses.
Para alcançar o objetivo proposto com esse tempo de formação, criei o
momento reflexivo para casa. No final desse encontro, solicitei que as professoras
pensassem novas propostas de letramento que rompessem os limites dos muros da
escola, aproximando alunos e comunidade. O objetivo era fazer com que as
professoras construíssem um projeto de ensino-aprendizagem da língua com foco
nas práticas sociais de leitura e escrita, entendendo que para poder participar da
vida social o sujeito deve aprender a manejar bem as palavras, exercitar a língua em
117
sua dimensão oral e escrita e isso demanda um ensino de Língua Portuguesa para
além da concepção de língua como sistema simbólico.
5.3 A TEORIZAÇÃO DO ENSINO E A REFLEXÃO DA PRÁTICA
No encontro realizado em 12/07/2016, fomentei as discussões a partir da
socialização da leitura do livro Aula de Português: encontro e interação de Irandé
Antunes. Selecionei esta obra, porque oferece uma nova proposta pedagógica para
o ensino de língua materna. A autora introduz novas diretrizes para o ensino de
Língua Portuguesa e suscita reflexões sobre as práticas escolares tradicionais.
Antes de iniciar o processo de questionamentos e teorização das práticas de
letramento das educadoras e das concepções que orientam suas práticas, realizei
uma dinâmica com a intenção de promover maior interação entre as professoras.
Para suscitar uma reflexão inicial, escolhi a canção “Sapato velho”, uma
composição de Carvalho; Nucci e Tapajós, interpretada pelo grupo Roupa Nova.
Enquanto as professoras apreciavam a letra e música, elas iam ressignificando as
cores, o designer dos sapatos e rememorando o percurso formativo desde o início
de sua carreira até os dias atuais. Na sequência da dinâmica, à medida que as
professoras escutavam a canção, coloriam os sapatos; foram orientadas a
selecionar um verso da canção que referenciasse sua história profissional. A
professora Esmeralda declarou:
Eu me sinto como um sapato velho, usada e reusada pelo Estado, sem direitos, sem valor, desgastada, sem serventia e que a qualquer momento, quando não servir mais pra nada, será encostada, esquecida num canto, deixada de lado. (ESMERALDA, 12/07/2016)
A professora Esmeralda está perto de se aposentar e por diversas vezes
percebi em seu discurso um tom de revolta e desapontamento pela condição
precária que o Estado impõe à educação pública e pela condição de abandono dos
professores. Ela sentiu-se várias vezes exposta a sua própria sorte, solitária na sala
de aula, tendo como aliados suas experiências de vida e os saberes construídos ao
longo de sua vida acadêmica e profissional.
118
A professora Rubi escolheu o verso “eu tinha estrelas nos olhos, um jeito de
herói”, rememorando o início de sua carreira quando se sentia “mais forte e mais
veloz”, tinha sonhos, projetos. Entendi que com o tempo, os projetos da professora
Rubi foram ficando amarelos como uma folha de caderno que usamos anos, após
anos, até quando nos damos conta de que há novos “cadernos” no mercado (novas
metodologias, teorias, pesquisas), então, nos esforçamos para deixar a nossa zona
de conforto e decidimos traçar novos objetivos numa folha em branco. Resolvemos
recomeçar!
A professora Ametista declarou:
Eu escolhi os versos [...] É talvez eu seja simplesmente como um sapato velho, mas ainda sirvo, se você quiser [...] Sinto-me como o sapato velho de uma professora que percorreu muitos caminhos, passou por muitas experiências, aprendeu muito e está aberta a novas aprendizagens e desafios. Sempre me perguntei o que é preciso para calçar um excluído. (AMETISTA, 12/07/2016)
A professora Ametista criou uma relação humana com o objeto da canção que
lhe serviu como metáfora para simbolizar a figura de um professor que impulsionado
por sua trajetória profissional e experiências, sente-se motivado a construir novos
saberes, vislumbrar novas perspectivas educacionais, novas práticas e seguir novos
rumos.
Após esse momento de reflexão em que se permitiu que as professoras
externassem suas angústias profissionais, elas passaram a discutir as ideias
fichadas no livro. À medida que iam interagindo com as colegas, elas refletiam sobre
suas práxis.
A leitura da obra inquietou as docentes sobre questões que envolveram
metodologia, objetivos e concepções de linguagem que fundamentavam suas
práticas, visto que trabalhavam “leitura” para ensinar a gramática normativa,
conservando, em suas aulas, a cultura de “usar textos como pretexto de dissecação
gramatical” (ANTUNES, 2010, p. 43).
Aproveitamos a discussão para entendermos leitura como um processo de
construção de sentido, como um ato de raciocínio em que o leitor ativa vários
saberes para elaborar a interpretação das informações dispostas no texto e dos
119
seus conhecimentos. Diferentemente de um processo insociável, silencioso, isolado,
a leitura implica um processo dialógico mediado pela palavra, envolvendo leitor-
autor, “confundindo-se com uma tomada de posição do que é dito e compreendido”
(BAKHTIN, 1992, p. 292). Portanto, a leitura do ponto de vista interacionista
configura-se como um processo que se constitui a partir do momento em que o leitor
interage com o texto produzindo sentido. Para Soares (1999), trabalhar leitura
apoiados apenas no estudo inócuo da gramática é ignorar a dimensão sociocultural
da leitura e da escrita.
Esse ponto foi amplamente discutido durante os encontros. Isto permitiu às
professoras examinarem as teorias implícitas em suas práticas, os esquemas de
funcionamento, suas atitudes etc., realizando um processo constante de
autoavaliação que passou, desde então, a orientar o trabalho das docentes sobre
como planejar práticas de letramento que contextualizassem o ensino de língua,
privilegiando os eixos: tema, domínio discursivo, gêneros textuais e explorando a
leitura em sala de aula e fora dela.
Para conduzir as discussões, procedi à entrevista coletiva cujas respostas,
gestos, sentimentos, expressões geraram os dados aqui analisados. Para tanto,
organizei um roteiro com duas perguntas-chave, lançadas ao grupo,
progressivamente.
PESQUISADORA: (1) O que te afetou no ensino de língua da EJA após refletir sobre as ideias de Irandé Antunes e Paulo Freire acerca do ensino e aprendizagem da leitura? (2) Você já participou de alguma formação em Língua Portuguesa que orientasse você a desenvolver projetos de leitura na EJA? (12/07/2016)
A leitura do livro “Aula de Português” ativou a memória afetiva das professoras
Esmeralda e Rubi que recordaram práticas de leitura de suas antigas professoras de
Língua Portuguesa. É possível identificar na fala da professora Esmeralda
lembranças que marcaram os 16 anos de experiências como aluna, tempo suficiente
para adquirir crenças, representações, certezas, concepções de linguagem etc..
120
Eu queria ter sido uma professora melhor, juro, mas eu vim do interior e lá a gente ia pra escola para aprender a ler e escrever para votar. A gente lia a gramática escrita na lousa. É isso que a gente lia para aprender a conjugar os verbos e aprender o que é substantivo, adjetivo, pronome... Eu não lia outra coisa! No interior, a professora dizia que a gente tinha que aprender a falar direito e assinar o nome para votar. [...] acabei levando essa prática para a sala de aula [...]Eu estava errada esse tempo todo, é isso? (PROFESSORA ESMERALDA,12/07/2016)
Esmeralda relembra que, em sua infância, não havia espaço/tempo para leitura
na escola; o ensino da morfologia e da sintaxe tinha maior relevância. Ao propor o
ensino de Língua Portuguesa nas classes de EJA, a professora Esmeralda aciona
saberes e práticas advindas de suas experiências como aluna. Essa mesma
ocorrência pode ser inferida da fala da professora Rubi:
[...] eu trabalho com eles, o que aprendi na escola – a tal da análise sintática. [...] tem aluno que lê um texto e nem sabe identificar um substantivo, eu tenho que ensinar. Eu repito muito o jeito de minha professora de português da 6ª série, D. Zilca. Na aula de Didática, da professora Lícia Beltrão eu lembro que ela orientou um trabalho com textos em sala, ela gostava muito de poesia, mas na escola nunca tinha material. (PROFESSORA RUBI,12/07/2016)
Rubi também rememora que o ensino da gramática ocupava um lugar de
destaque nas aulas ministradas pela professora do ginásio, e esse saber, fortemente
consolidado também em suas práticas, sobrepunha o saber-fazer ensinado nas
disciplinas pedagógicas do Curso de Letras. Nesse sentido, as professoras
construíram um conhecimento pessoal, constituído de vários saberes, advindos de
“princípios diversos que podem ser tanto de experiências e vivências pessoais e
sociais, como também do trabalho, as quais irão influenciar sua prática e constituir
seus habitus” (TARDIF, 2014, p. 19).
As professoras Esmeralda e Rubi, centradas no ensino tradicional da gramática
normativa, até então privilegiavam o pensamento conteudista, ignorando “as novas
maneiras de ensinar a língua” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 17), resistiam ao novo,
não experimentavam, nem ousavam romper paradigmas, por isso não
ressignificavam a sua prática, tendo em vista as novas demandas educativas que
121
visam instruir os alunos para atuar de maneira competente numa sociedade cada
vez mais centrada no uso social da leitura. O tempo é outro, as pessoas são outras,
a sociedade tem outros interesses etc., portanto, a escola deve preparar os sujeitos
para serem capazes de atuar com competência no mundo (multi) letrado.
As professoras e eu dialogamos sobre o conhecimento profundo da gramática,
que segundo Geraldi (1996, p. 72), “é um conhecimento necessário para quem se
dedica ao estudo da língua e ao seu ensino”. Para o estudante, a gramática não
pode ser vista como um conteúdo único e exclusivo para ensinar o sujeito a
comunicar-se. Por meio da leitura, é possível ensinar gramática dentro do contexto
da Língua Portuguesa, criando possibilidades para que o aluno leia, interprete,
compreenda, faça inferência etc., cedendo lugar a um ensino fundamentado na
concepção interacionista da linguagem.
Após ouvir atentamente as discussões acerca do ensino de LP nas classes de
EJA, a professora Ametista tomou a fala para si e respondeu:
Eu participei, em 2014, de um curso de formação ministrado pela Fundação Roberto Marinho que tratou do ensino da leitura nas classes de EJA [...] a atualização foi boa, [...] a participação nesse curso me fez refletir muito e eu resolvi mudar de mim mesma. (PROFESSORA AMETISTA, 12/07/2016)
Essa fala demonstra que quando os professores de EJA têm acesso a cursos
de formação, planejam, com maior cuidado, suas aulas a partir das demandas dos
estudantes, articulando as concepções de língua e de linguagem com os objetivos e
procedimentos que norteiam suas ações pedagógicas. Contudo, além de querer
mudar, como Ametista declarou que “eu resolvi mudar de mim mesma”, os
professores precisam ter acesso aos espaços de formação continuada que
viabilizem a construção de novos saberes. Sobre esta questão, a professora Rubi
respondeu:
[...] eu nunca fiz um curso direcionado pra EJA. Nunca ouvi falar de
EJA na faculdade, não fiz Magistério, não sou alfabetizadora e não
me sinto apta para trabalhar como alfabetizadora de adulto. Não
somos preparadas nas Universidades para lidar com as novas
demandas socioeducativas. [...] (PROFESSORA RUBI, 12/07/2016)
122
Como pode então o professor articular saberes tão diversos no âmbito da
escolarização de jovens e adultos, sem ter acesso a espaços de discussão que
norteiem sua prática, sem acesso às novas metodologias, sem conceber novas
práticas de letramento?
A práxis pedagógica na EJA é desafiadora, sobretudo porque um educador
consciente da importância de sua atuação política e de seu papel na inclusão social
e formação cidadã dos educandos deveria reconhecer que ensinar a ler é um direito
de todos e, portanto, é um ato político (FREIRE, 1997). Ensinar na EJA requer
planejamento adequado para essa modalidade, melhor qualificação do trabalho em
sala de aula, adoção de projetos de leitura para desenvolver a linguagem e
metodologias fundamentadas na LDB para a EJA.
As Leis de Diretrizes e Bases para o ensino da Língua Portuguesa nas classes
de EJA seguem as orientações dos PCN. Esses documentos orientam a construção
de objetivos voltados para um ensino de Língua Portuguesa comprometido com as
necessidades urgentes da sociedade letrada; recomendam o trabalho de leitura
como prática de linguagem, priorizando o trabalho com os gêneros discursivos,
centrado na esfera de comunicação, portanto, conhecê-los é importante, mas as
professoras informaram que desconheciam tais orientações.
Segundo Soares (1998), uma das razões para as incertezas do professor face
à mudança paradigmática profissional, que coincide com um ambiente de
desprestígio e exacerbação dos docentes, é o desconhecimento por parte do
alfabetizador e do professor de Língua Portuguesa das teorias de linguagem que
embasam os documentos oficiais, pois elas não fazem parte da maioria dos
programas dos cursos de Pedagogia e de Letras que os formam.
O que está em jogo aqui é a forma como a escola concebe o processo de
aprendizagem da leitura e da escrita. As crianças são introduzidas ao mundo letrado
por meio do processo de alfabetização. O mesmo vem ocorrendo com estudantes da
EJA que chegam à escola sem o domínio da leitura, visando dar continuidade ao
seu processo de alfabetização, eles desejam aprender a ler. Se o jovem, o adulto e
o idoso frequentam a sala de aula com o desejo de ler é muito mais fácil empreender
um trabalho com leitura nessa classe do que em turmas “cujo aluno está na sala de
123
aula porque foi levado e não porque escolheu estar lá, aí exige um trabalho de maior
cuidado pedagógico” Muniz (2015, p. 114). Não ignoro o fato de que a EJA demanda
um trabalho igualmente cuidadoso, no sentido de potencializar as habilidades de
leitura frente às dificuldades apresentadas, mas já existe o desejo do sujeito em
aprender a ler e isso já facilita o trabalho dos professores.
Outrossim, os objetivos que traçamos, a seleção dos conteúdos, a escolha da
metodologia, as atividades que planejamos são reflexos das representações que
temos sobre linguagem, leitura, alfabetização, letramento etc.. Assim como as
concepções e representações são construídas, elas também podem ser
ressignificadas.
Os professores compartilham, em sala de aula, concepções e saberes
produzidos na academia de sua memória afetiva, das experiências que tiveram com
seus antigos professores e de suas experiências como aluno/alunas do ensino
regular. Esse distanciamento pode ser visto como um choque da dura realidade,
porque ao entrar na sala de aula da EJA, por exemplo, os professores percebem a
limitação de seus saberes pedagógicos ao constatar que é preciso redimensionar
valores, olhares, concepções e adaptar à realidade dos alunos da EJA, a didática, os
métodos, o currículo etc.. Por isso, o professor da EJA precisa de formação
continuada específica, tanto na área quanto na modalidade em que atua.
5.4 CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Entender a relação entre alfabetização e letramento é fundamental para que
possamos construir práticas construtivas e efetivas de ensino da leitura e da escrita
em turmas da Educação de Jovens e Adultos. Em vista disso, considerei importante
refletir com as professoras sobre esses dois conceitos que como propôs Soares
(1998) são distintos, mas indissociáveis. Assim, no encontro que ocorreu em 27 de
julho de 2016, organizei um Café Literário para, num tom informal, eu e as
professoras versarmos sobre esses conceitos.
Analisaremos a seguir trechos das entrevistas que revelam as concepções das
professoras acerca do letramento. Iniciei o diálogo com a seguinte questão:
124
PESQUISADORA: Percebo uma recorrência na fala de vocês sobre os termos alfabetização e letramento. Como vocês definem alfabetização e letramento? Eu sempre gostei de ler e escrever e por isso eu quero que o meu aluno aprenda a ler e escrever textos. [...] Para mim, alfabetizar letrando [...] é potencializar a competência leitora e escrita do aluno dentro e fora da escola. (PROFESSORA AMETISTA, 27/07/ 2016)
É possível inferir da fala da professora Ametista um conceito vago sobre
alfabetização e letramento que se distancia das definições encontradas nas
literaturas que definem Alfabetização como a ação de alfabetizar, de ensinar
crianças, jovens, adultos ou idosos a ler e escrever. Letramento, conforme a
definição de Soares (1998), é o estado ou condição de quem não só sabe ler e
escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na
sociedade em que vive, conjugando-as com as práticas sociais de interação oral.
A escola deveria propor um ensino de língua com base nessas definições e ser
capaz de fazer os alunos desenvolverem um grau de letramento cada vez mais
elevado, que lhes permitam atuar na sociedade letrada, fazendo uso da leitura e da
escrita em situações sociais. É importante que a escola reconfigure o letramento
como prática social, levando em conta as perspectivas sociais e históricas que
auxiliam os alunos a situarem suas práticas de linguagem dentro e fora da escola
(STREET, 2014, p. 149).
A fala da professora Ametista nos leva a interpretar que ela reconhece, em
seus alunos, um letramento desenvolvido tanto na escola como fora de seus muros,
reconhece, ainda, que o termo letramento referencia a ação competente da leitura
em situações sociais e escolares.
Para professora Rubi, os termos alfabetização e letramento são o ato de
decifrar os códigos linguísticos. Isso pode ser evidenciado em sua resposta:
Quando eu falo que meus alunos não são alfabetizados, eu quero dizer que eles não são letrados, não sabem ler [...] eu me preocupo em alfabetizar meus alunos, mas não conheço os níveis de letramento. (PROFESSORA RUBI, 27 /07/ 2016)
125
Para a professora Rubi, o sujeito é letrado quando sua leitura domina o sistema
escrito, isto é, quando apresenta uma leitura moldada pela língua escrita. Para ela,
não há um conceito preciso para diferenciar alfabetização e letramento. Essa
mesma concepção é recorrente na fala da professora Esmeralda:
Para mim alfabetizar e letrar é a mesma coisa [...] ensinar os alunos a decifrarem os códigos linguísticos. O aluno letrado é aquele que sabe ler, assinar o nome, né. Pelo menos no interior, o cidadão letrado era o que sabia ler, assinar o nome e saber falar muito bem. [...] Outro dia eu ouvi falar sobre analfabetismo funcional, mas não sei ao certo do que se trata [...] para mim um leitor é aquele que lê textos longos, que interpreta e compreende o que lê. (PROFESSORA ESMERALDA, 27/07/ 2016)
A professora Esmeralda apresenta muitas contradições acerca da concepção
de letramento e alfabetização. Para ela, o aluno bem alfabetizado compreende e
interpreta o que lê. Neste conceito está implícita a ideia de que aprender a ler traz
consequências culturais, políticas, linguísticas, quer para o grupo social em que o
sujeito leitor está inserido ou uma condição para que o sujeito seja incluído na
sociedade letrada. Diante dessa concepção, as professoras deveriam propor um
ensino de língua com o objetivo de levar o aluno a adquirir um grau de letramento
cada vez mais elevado, isto é, desenvolver nele um conjunto de habilidades e
comportamentos de leitura capaz de incluí-los na sociedade letrada com
capacidades técnicas de atuar com competência em situações sociais de leitura e
escrita (BAGNO, 2012). Elas associam “o letramento com o ensino e a pedagogia da
leitura” (STREET, 2014, p. 144).
A concepção de Rubi e Esmeralda, respectivamente, remete-nos à década de
1980 quando, no Brasil, alfabetismo e letramento recobriam significados muito
semelhantes e próximos, sendo usados indiferentemente e/ou como sinônimos nos
textos. Soares (1998, p. 23), por exemplo, afirma que
o neologismo [letramento] parece desnecessário, já que a palavra vernácula alfabetismo [...] têm o mesmo sentido de literacy, assim, os vários sentidos da palavra literacy em inglês (alfabetização, letramento, alfabetismo) têm um papel nessa aparente sinonímia.
126
Após refletirmos sobre seus saberes acerca dessa temática, apresentei as
teorias que fundamentam as novas concepções de letramento introduzidas no Brasil
a partir da década de 1980 e, especificamente na Bahia, na década de 1990, para
distinguir a partir do quadro teórico os conceitos de alfabetização e letramento.
Após esclarecermos que o termo alfabetismo tem um foco no individual, bastante ditado pelas capacidades e competências (cognitivas e linguísticas) escolares e valorizadas de leitura e de escrita (letramentos escolares e acadêmicos), numa perspectiva psicológica, enquanto o termo letramento busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam elas valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola, etc.), numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural. (ROJO, 2009, p. 98)
Nessa perspectiva, a escola deveria criar situações em que os alunos tivessem
oportunidade de refletir sobre os textos que leem e escrevem fora da escola, usando
de forma contextualizada a gramática da língua, as características de cada gênero e
tipo de texto, o efeito das condições de produção do discurso na construção do texto
e de seu sentido. Deveria também desenvolver habilidades de leitura para que o
sujeito da EJA pudesse interagir socialmente a partir do grau de letramento que traz
de seu grupo familiar e cultural, uma vez que há uma grande diversidade nas
práticas de letramento que os alunos desenvolvem na comunidade, na família, na
igreja, no trabalho, enfim, fora do contexto escolar.
A partir das novas aprendizagens construídas acerca de alfabetização,
letramento (s), perguntei às professoras se as novas propostas de ensino, que elas
estavam construindo, consideravam as práticas sociais e os eventos de letramento
que seus educandos e educandas estavam inseridos. Questionei se elas estavam
priorizando, em suas práticas de letramento, a leitura como ato discursivo,
enfatizando o estudo de gêneros considerados relevantes para a vida cotidiana e
pública do estudante da EJA e que são orientados pelos PCN e as diretrizes para o
ensino da LP. As professoras aprofundaram questionamentos acerca de suas
práticas, de suas experiências e refletiram, mais profundamente, sobre suas práticas
de letramento na perspectiva do trabalho com gêneros textuais (que circulam na
127
escola) e gêneros discursivos (que circulam no contexto social dos estudantes). As
respostas a esses questionamentos constituem o corpus que analisa suas práticas
de leitura apresentadas no seguinte tópico.
5.5 GÊNEROS DISCURSIVOS EM PRÁTICAS DE LETRAMENTOS
O trabalho com leitura, sob o ponto de vista da concepção de linguagem, nas
classes de EJA, exige uma reflexão a respeito de quais olhares sobre o mundo os
textos impulsionam. Há uma constante preocupação em ressaltar a necessidade de
se preparar o aluno da EJA para as diversas situações que envolvam “o domínio da
leitura em situações de uso público da linguagem” (PCN, 1998, p. 49). No entanto, a
escola não trabalha leitura na perspectiva do letramento, visando ensinar aos alunos
o funcionamento dos textos (orais/escritos) nas diversas práticas socioculturais; o
que observamos, ainda hoje, é a valorização do ensino da gramática.
Assim, o mito de que a função do professor de língua seria ensinar um padrão
idealizado de língua culta reforça a ideia de que a escola não assume a distinção
entre letramento social e letramento escolar. Ao não considerar as variantes
linguísticas, prestigiando uma língua padrão, a escola também não leva em conta as
experiências discursivas dos alunos e o letramento desenvolvido na comunidade,
assim, não escolariza as práticas sociais dos estudantes da EJA.
Sobre essas questões amplamente discutidas durante os encontros de
formação, as professoras informaram que eram conceitos novos e que por isso elas
sentiam dificuldade em construir práticas de letramento alicerçadas nas diretrizes
para o ensino de L.P. na EJA, que orienta o trabalho com diversos gêneros dos
textos do tipo poéticos (poema, canção), narrativos (conto, lenda), publicísticos
(propaganda, anúncio, cartum), jornalísticos (notícia, reportagem), dissertativos
(artigos de opinião).
Visando contribuir para a ação-reflexão-ação, viabilizei situações discursivas
que permitiram maior interação entre as professoras. Ao escutar as professoras
sobre suas práticas, pretendi valorizar o saber-fazer de cada uma e, ao mesmo
tempo, problematizar algumas questões observadas em sala, suscitando reflexões
128
sobre os saberes que fundamentavam suas práticas de letramento. Cada uma
compartilhou suas experiências e então puderam perceber que é possível envolver
os sujeitos da EJA no processo ensino-aprendizagem, viabilizando momentos de
interação em que suas vozes pudessem ser escutadas.
Questionei às professoras, se em algum momento de suas aulas, elas
utilizavam textos com outros propósitos que não fossem o ensino da gramática.
Rememorei a nossa aula de campo e perguntei se elas tinham colocado em prática
alguma atividade de leitura que contemplasse o contexto histórico e cultural em que
os sujeitos da EJA estavam envolvidos, considerando o cenário multicultural do
Centro Histórico de Salvador, e as agências de letramento a que eles têm acesso e
configuram-se como locus social de leitura e escrita.
Pretendi, com isso, verificar se, após a formação que as professoras fizeram
com o historiador Eduardo Moleiro em 05/05/2016 sobre patrimônio, identidade,
memória e história do Pelourinho, elas, ao construir novas práticas de letramento
contemplavam o contexto em que estão inseridos seus alunos da EJA. Nesse viés,
questionei às professoras:
Quais os critérios de seleção adotados por vocês para escolher os textos a serem trabalhados na EJA? Dos trabalhos envolvendo leitura que você realizou nas classes de EJA, qual você considerou mais exitoso e como você avalia os resultados desse trabalho?
Diante dessas perguntas, a professora Ametista respondeu que tinha
trabalhado com uma notícia de jornal que falava sobre o projeto Axé. Ela lembrou:
Eu trabalhei esse texto com alunos de outras escolas, mas aqui no Pelourinho, o texto ganhou um novo significado. [...] porque é o mundo deles. Os alunos fizeram comentários pertinentes, tem alguns textos, por exemplo, que eles não compreendem, mas esse aqui eles compreenderam, porque eles são daqui, o projeto é aqui no Pelourinho, e muito deles participam, por isso é interessante trabalhar textos que abordem assuntos que fazem sentido para eles. (PROFESSORA AMETISTA, 19/07/2016)
Infere-se desta fala que a professora tem o cuidado de planejar suas aulas,
selecionando textos cujos temas referenciam o contexto social dos alunos e
129
propiciando interação entre autor-texto-leitor. Assim, a professora constrói pontes
referenciais entre a escola e a comunidade, contextualizando suas aulas. Ao
valorizar os projetos da comunidade e abordar temas que os alunos conhecem, a
professora alcança resultados positivos como: maior participação e interesse dos
alunos; motivação dos alunos para ler os textos, interagir e produzir sentido a eles e,
com essa dinâmica, os alunos desenvolvem a linguagem escrita e oral, a autoestima
e aprendem novas informações. Com o domínio da fala, da leitura e da escrita, o
sujeito “será capaz de refletir tecnicamente, sistematicamente, cientificamente sobre
a língua e tomar a língua como objeto de estudo” (BAGNO, 2012, p. 48).
A professora Ametista, ao escolher o texto Projeto Axé – lições de cidadania,
considerou os saberes acumulados pelas experiências de vida dos educandos e
educandas da EJA no contexto multicultural histórico e social em que estão
inseridos, explorando a linguagem verbal para estabelecer a comunicação.
Trabalhou, ainda, a linguagem como produto da interação social e da interação dos
interlocutores, utilizando-se de conteúdos materiais e sociais. Há aqui uma
concepção de que a leitura contribui para interação do sujeito consigo, com o
mundo, com o outro, para aprender algo novo, para construir saberes, para dialogar,
para conhecer a ideia do outro e não apenas para aprender a ler.
Nessa premissa, ao trabalhar com o gênero notícia, a professora contemplou
dois aspectos: (1) trabalhou a leitura como ativação dos conhecimentos dos alunos,
visando à produção de sentido; (2) tornou as aulas mais interativas e dinâmicas,
motivando a participação efetiva dos estudantes da EJA e gerando novas
aprendizagens.
A língua não pode ser considerada uma estrutura abstrata, sem realização
concreta, tampouco mero reflexo da realidade material. As aulas ficam mais
interativas com o enlace da tríade autor-texto-leitor, ou seja, o aluno interage com a
mensagem do texto, vê-se representado, ideologicamente, pela leitura que o
professor propõe em sala de aula.
Além de trabalhar com notícias, a professora Ametista declarou que explora os
gêneros anúncios, propagandas. É possível um trabalho que associe os letramentos,
explorando gêneros que fazem referência ao mundo real dos alunos. Essa escolha
130
depende exatamente das “situações de uso público da linguagem”. Cada esfera do
discurso público – e mesmo o privado – determina as opções de gêneros possíveis e
os recursos linguísticos apropriados à sua realização (Bahktin, 1992, p. 279).
Os gêneros discursivos não são abstrações teóricas. São textos universais,
concretos que circulam na vida real, no dia a dia, no cotidiano a exemplo do
anúncios e propagandas, que são veiculados na TV, nos jornais impressos, em
revistas, nos outdoors, nas rádios, na internet com a intenção de persuadir o
consumidor a comprar um produto ou serviço ou aderir a uma determinada ideia. É
aqui, então, que Bahktin (1992) introduz o conceito de gênero discursivo. As
diferentes realizações dos enunciados configuram os diferentes gêneros discursivos,
escolhidos em função da esfera de comunicação, das necessidades de
expressividade do enunciador e do contexto em que se dá a comunicação.
A professora Rubi também desenvolve suas práticas letradas, explorando
temas do cotidiano dos alunos para estabelecer a inter-relação autor-texto-leitor,
concebida como uma dinâmica que há de conduzir a um resultado final
(ARAPIRACA; BELTRÃO, 2012). Nesse trabalho de interlocução, leva-se em conta o
aspecto dialógico em que o sujeito de linguagem é um sujeito social e histórico. A
professora Rubi, que antes, fundamentava o ensino de L.P. na EJA ao estudo das
nomenclaturas gramaticais, surpreende-nos com a resposta:
[...] Eu tento seguir o programa, mas agora tenho escolhido, com os
alunos, os temas que eles querem trabalhar [...] acho importante
trabalhar textos como notícia, currículo, formulário [...] eles não
sabem preencher um formulário, e agora com o recadastramento que
está acontecendo aqui no Pelourinho para conseguir os benefícios
da casa própria e do cartão bolsa família, eles precisam preencher e,
às vezes, não conhecem alguns termos e sentem dificuldade de ler
as perguntas. Eu preciso ensinar para eles como preencher o
formulário para que eles tenham acesso a um direito e não percam a
oportunidade por causa de uma informação errada [...] o adulto
conhece a sua necessidade e eu não gosto de perder tempo, mesmo
porque eles já perderam tempo demais. (PROFESSORA RUBI,
19/07/2016)
131
Nessa fala, especificamente, a professora Rubi considera importante para a
formação do leitor da EJA “contextualizar a leitura para que o aluno perceba que o
que ele está lendo tem a ver com a leitura diária dele” (ANTUNES, 2003, p. 87). Ela
também leva em consideração as necessidades de aprendizagem dos alunos e a
sua atuação no mundo letrado e por isso desenvolve, na escola, práticas sociais de
leitura.
Ao propor o trabalho com formulários, notícias, por exemplo, a professora Rubi,
concebeu o ensino da leitura como prática relacionada ao contexto de ação, ou seja,
facilitou a aprendizagem de seus alunos, não para no futuro se converter em leitores
e aprendizes independentes, mas para aprender no seu cotidiano aquilo que vale a
pena aprender, percebendo a língua como um instrumento vivo, facilitador e que por
meio dela é possível participar ativamente e com maior autonomia do mundo letrado
que o cerca. Segundo Soares (2014), a prática de letramento fundamentada nos
usos sociais de leitura e escrita corresponde ao sentido que a UNESCO em 1978
atribuiu ao letramento:
Uma pessoa é funcionalmente letrada quando pode participar de todas aquelas atividades nas quais o letramento é necessário para o efetivo funcionamento de seu grupo e comunidade e, também, para capacitá-la a continuar usando a leitura, a escrita e o cálculo para seu desenvolvimento e o de sua comunidade. (UNESCO, 1978a, p. 1)
Ao propor uma atividade que referencia uma prática social de letramento – o
preenchimento de formulário para o cadastramento do benefício da casa própria –
que envolveu o direito à moradia, o contexto, as necessidades e demandas dos
educandos e educandas da EJA, a professora Rubi explora “um gênero discursivo
secundário que serve como finalidades públicas na esfera da comunicação”
(BAKHTIN, 1992, p. 268). Esses gêneros são mais complexos, regularmente se
valem da escrita mais formal e têm função social.
Ações desse tipo aumentam a consciência do jovem, adulto e idoso em relação
ao estar no mundo e ampliam sua capacidade de participação social – objetivo que
constitui as orientações das Diretrizes Curriculares da Educação de Jovens e
132
Adultos. A docente trabalhou leitura e escrita como fonte de aprendizagem, como
forma de o estudante ter acesso à informação.
É importante que os professores da EJA tenham autonomia para criar seu
próprio material e/ou acervo de textos comprometidos com a ampliação da
competência linguística e comunicativa do seu público, considerando os gêneros
discursivos e os eventos de letramento que estão envolvidos.
Nesse sentido, a professora entende que “letramento tem caráter social e
ideológico” (STREET, 2014, p. 144) e não disfarça isso com atividades meramente
pedagógicas, ela se comunica com os alunos, ensina e com eles aprende. Nesse
sentindo, não há um tipo especifico de cidadão letrado, ambos interagem, e nessa
interlocução de vozes, saberes, estilos, ocorre a comunicação. Essa relação
dialógica enfoca a interação entre sujeitos que mediados pela linguagem produzem
discursos, tornando-se desse modo parceiros de um ato comunicativo. A professora
Esmeralda respondeu:
[...] eu perguntei aos alunos que textos eles gostariam de trabalhar, eles sugeriram poema [...] eu levei um poema de Mário Quintana para a gente reconhecer as figuras de linguagem, aquela aula que você observou, lembra Adriana? (PROFESSORA ESMERALDA, 19/07/2016)
Inferimos desta fala que a professora Esmeralda usou o texto como pretexto
para ensinar gramática. A gramática é um dos componentes de que se constitui
uma língua. Um dos componentes, bem entendido. Não é o único nem o mais
importante. Para além de se trabalhar as figuras de linguagem, a professora poderia
explorar o sentido que as figuras de linguagem atribuem ao poema. No entanto, o
objetivo da aula era fazer com que os alunos apenas classificassem e
reconhecessem as figuras de linguagem no texto. Conhecer tecnicamente esse
recurso linguístico não tornará mais eficiente o desempenho dos alunos da EJA na
sociedade. Há inúmeras possibilidades de o professor trabalhar com o texto poético,
implementando um diálogo acerca desse gênero, sua funcionalidade, suas
características, as condições de sua produção, questionar junto à turma por que
133
escolheu esse gênero, trabalhar os efeitos de sentido das figuras de linguagem para
a sua compreensão etc.
Poesia é um gênero que quase não se trabalha nas classes de adultos –
porque há um senso comum de que os alunos adultos não gostam de ler poesia – e
quando se tem oportunidade de trabalhar com textos da preferência da turma, a
professora em vez de ensinar um universo enorme e rico que é a língua portuguesa,
transformada em poesia por Mário Quintana, dedicou-se a ensinar um pedacinho
ínfimo desse universo de possibilidades de fazer o outro interagir, transcender,
inferir, compreender, interpretar, dialogar, conhecer novos letramentos,
possibilitando uma convivência mais sensível com o outro, consigo mesmo, com os
fatos do cotidiano, com a vida e com a linguagem. Diante do interesse dos alunos, a
professora Esmeralda poderia oferecer poesia em sua sala como “um pão cotidiano
de todos, uma aventura simples e grandiosa do espírito”, como afirma Murilo
Mendes (1972, p. 165).
Para além de qualquer intenção específica que a poesia pode ter, há sempre a
ideia de alguma nova experiência que o poeta quer comunicar. O trabalho com
poesia é rico, porém, a professora Esmeralda utilizou o gênero poema, reduzindo-o
a um objeto fixo de análise técnica. A educação de língua portuguesa tem por
objetivo formar um leitor capaz de decidir pelo que lhe é mais significativo e no que
tange à arte capaz de, por meio dela, fruir e indagar a condição humana (BRITTO,
2012, p. 114); e a leitura do poema induz a isso.
A competência comunicativa que espera que seja alcançada pela leitura de
textos, deve incidir também, naturalmente, sobre o conhecimento das
particularidades dos tipos e dos gêneros textuais, a forma composicional do poema,
as estrofes, os recursos estilísticos, a escolha das rimas, as palavras que produzem
sentido a partir de sua sonoridade etc.. Talvez, por essas vias, conseguiremos nos
convencer de que os conhecimentos gramaticais, se são necessários, são também
insuficientes. A professora Esmeralda explora em suas aulas o gênero charge
também com a mesma concepção:
134
[...] outro dia a gente trabalhou uma charge numa avaliação e pedi para o aluno identificar o aposto, a oração subordinada dentro da charge, a gente pode fazer isso sempre, mas cadê o material na escola pública que não tem? Eu mesma trago meu material de casa e tenho que escrever tudo no quadro. (PROFESSORA ESMERALDA, 27/07/2016)
Ao propor desenvolver uma atividade com a charge, a professora não
considerou a riqueza de seus recursos visuais em diálogo com os verbais; invalidou
a função social desse gênero discursivo que circula na esfera jornalística e expressa
a opinião crítica do autor sobre um acontecimento em destaque no momento em que
foi produzida; não levou em conta a opinião crítica do autor sobre o assunto
abordado. A charge é um texto rico no campo da discursividade que dialoga com
outros textos presentes no jornal como notícia, editorial etc., tendo como principal
característica a crítica feita por ironia e humor. Esse gênero explora a linguagem
verbal (pequeno texto) e não-verbal (desenho caricato).
A charge é um gênero textual que provoca humor, desenvolve a visão política e
o senso crítico dos alunos. Esse gênero segue modelos convencionais de
comunicação social para além da gramática. Há outros recursos linguísticos,
estilísticos, interpretativos que poderiam ser explorados e que auxiliam no processo
de interpretação e compreensão. Ao se apoiar na escolha da charge para trabalhar
análise sintática, a professora Esmeralda, reduz o ensino de língua ao mero ensinar
da gramatica, essa postura não cabe mais nos dias atuais frente às exigências
sociais do século XXI e as diretrizes educacionais para o ensino de Língua
Portuguesa na EJA que orienta um ensino desvinculado da concepção reducionista
da língua como sistema estável, compartimentado.
Nesse caso específico, a professora trata a língua como se ela fosse externa
ao aluno e a si mesma, como se tivesse qualidades autônomas e não sociais e que
se impusesse a seus usuários. De um lado, a gramática da língua e do outro, o
aluno, que tem que decodificar as regras para aprender a utilizar a língua de
maneira competente, supervalorizando a gramática como se fosse “um conteúdo
externo, desconsiderando a gramática interna da língua e os eventos
sociolinguísticos a que os alunos estão acostumados”. (STREET, 2014, p. 129). A
135
supervalorização da gramática como instrumento de poder e dominação de um
pequeno grupo sobre os demais na sociedade reforça, nos alunos da EJA, a ideia de
que são incompetentes.
Diante do exposto, evidenciamos que as práticas de letramento são
construídas com base em diferentes concepções sobre a maneira como
aprendemos e sobre como ensinamos a língua portuguesa. Ao traçar objetivos para
fins de ampliar a competência linguística dos alunos e adotar uma metodologia que
contemple o desenvolvimento da linguagem verbal numa perspectiva dialógica, a
professora contribui com a conquista da autonomia linguística, capacitando os
sujeitos aprendentes para atuar no mundo, interagindo com ele ou transformando-o.
Evidenciamos também que privilegiar o ensino da gramática nas aulas de L. P.,
não é coisa do passado, as professoras, sujeitos da pesquisa, planejavam suas
atividades guiadas por essa ideia. Supervalorizavam a gramática como se fosse um
conteúdo externo, desconsiderando a gramática interna da língua e os eventos
sociolinguísticos a que os alunos estão acostumados. (STREEET, 2014).
A professora Esmeralda traduzia, em suas práticas, um gosto pelo ensino da
gramática – análises morfológicas e sintáticas em frases soltas, escritas na lousa –
colocar a língua compartimentada em frases na lousa serve como uma técnica que
permite o aluno a objetificar a linguagem, tornando-a um problema que precisa ser
analisado, trabalhado em conjunto para ser compreendido e solucionado. Esse
processo distanciava cada vez mais os alunos jovens e adultos do objeto de ensino
– a língua portuguesa – que para eles se configurava num problema a ser resolvido
a cada tempo de aula.
Outrossim, a leitura dos textos tinha como foco o destaque de palavras para
análise morfológica, não havendo um trabalho que problematizasse questões
pertinentes ao tema, suscitando um diálogo entre leitor, texto e autor. Pareciam
tratar “a língua como algo externo aos alunos, como se tivesse qualidades
autônomas, não sociais, que se impusessem aos seus usuários” (STREET, 2014, p.
131). A linguagem, nesse sentido, era trabalhada apenas como estrutura. Nestes
termos, concordo com Silva (2012) que para além disso:
136
a linguagem precisa ser produzida como acontecimento, como produção de sentido – já que nos constituímos sujeitos produzindo efeitos de sentido –; como referência para (re)significar o mundo. Assim sendo, repensar a linguagem no contexto acadêmico, implica refletir sobre sua incompletude, sua ação constitutiva e transformadora [...]
A concepção de língua como estrutura, que é observada nas práticas da
professora Esmeralda, corresponde a de sujeito determinado, “assujeitado” pelo
sistema, caracterizado por uma espécie de “não consciência”. Nessa concepção de
língua como um código – portanto como mero instrumento de comunicação – e de
sujeito como (pre) determinado pelo sistema, a leitura do texto é vista como simples
produto de codificação de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte,
bastando a este, para tanto, o conhecimento do código utilizado (KOCH, 2006, p.
06).
Nesse sentido, os recortes iniciais, desta investigação, evidenciam professores
que fundamentam suas práticas de letramento, tomando a língua como objeto de
análise sem levar em conta a sua função social, a formação leitora e as demandas
da EJA. Entretanto, é possível identificar, nas práticas pedagógicas adotadas, após
diálogo com os teóricos, nuances de mudanças na postura das professoras frente ao
exercício da profissão e de pensar novas propostas de ensino para alfabetizar
letrando os educandos e educandas da EJA.
Os recortes dos dados até aqui analisados, também reforçam a necessidade
de ampliarmos estudos na área das pesquisas colaborativas com o propósito de
contribuir para a reconfiguração do ensino de Língua Portuguesa, proporcionando
momentos de interação com as professoras nas classes de EJA e intervindo em
suas práticas. Ouvir os professores, significa dar voz a sujeitos que têm muito a dizer
de si, do outro e do mundo e a Universidade a contribuir para potencializar os atos
pedagógicos. Pesquisadora e professores aprendem mutuamente em ações
constituídas de respeito e valorização. São momentos em que Universidade e
escola se aproximam e interagem. Essa ideia ficou evidente na fala da professora
Esmeralda.
137
A gente chega aqui tão desmotivada e sai muito inebriada de conhecer e saber tantas coisas novas. Eu não sabia a diferença entre alfabetização e Letramento, para mim era tudo igual. Julgo importante conhecer também os aspectos qualitativos que definem os níveis de alfabetização dos alunos porque poderá me auxiliar na prática de leitura, saber em que nível meu aluno se encontra para então poder ajudá-lo a ampliar seus conhecimentos de leitura. Que pena que eu já estou me aposentando, mas, com certeza, farei um trabalho melhor com as minhas próximas turmas. A partir de agora será diferente. (PROFESSORA ESMERALDA, 16/08/2016)
Progressivamente, as professoras foram introduzindo em suas aulas novas
maneiras de proporcionar aos educandos e educandas da EJA um contato mais
expressivo com o objeto de ensino e aprendizagem – a Língua Portuguesa, ao
oferecer-lhes meios eficazes de aprender a ler e a escrever, libertando-os das
amarras dos preconceitos linguísticos, porque:
a língua não está de antemão pronta, dada como um sistema de que o sujeito se apropriaria para usá-la, mas que o próprio processo interlocutivo, na atividade de linguagem, está sempre e a cada vez a reconstruindo, tenha produzido as consequências pedagógicas de aposta na dialogicidade, na mediação e na polifonia do textos. (GERALDI, 1996, p.55)
A experiência dos encontros consolidou-se em momentos significativos de
aprendizagem, reflexão sobre as ações pedagógicas quando pudemos inferir que
nossas práticas refletem os saberes que construímos ao longo de nossa vida
pessoal, acadêmica, formativa e profissional. Compreendemos e descobrimos que
concepções influenciam as práticas e que se aprendemos novas concepções, é
possível ressignificá-las. Nesse sentido, avaliei de forma positiva os encontros e os
resultados desta pesquisa, concordando com a professora Rubi que declarou:
[...] eu gostei dos encontros porque aqui cada um fala sem constrangimento, fala de suas vivências sem medo, sem vergonha de mostrar sua fragilidade. Não percebi aqui você querendo mostrar que é melhor do que a gente, ou que sabe trabalhar e a gente não. Eu mesma participei de um curso de produção textual, eu não quis ficar no curso porque era só exibição. E, no final, todo mundo passa pela mesma dificuldade, não somos formadas para isso, para alfabetizar o jovem e adulto. (PROFESSORA RUBI, 16/08/2016)
138
Considerei importante essa discussão para suscitar reflexões acerca das
práticas de letramento que as escolas, sobretudo na Educação de Jovens e Adultos,
têm indigitado aos seus educandos e educandas, uma vez que vivemos o forte
impacto das políticas públicas de avaliação da compreensão leitora cujos resultados
apontam o baixo nível de letramento entre as pessoas com 15 e 64 anos de idade.
Esse fator aumenta a responsabilidade de discutirmos e refletirmos sobre as
relações entre o desenvolvimento de programas de letramento e as possibilidades
de mudança social.
É tempo de pensarmos letramento como conceito plural, assumindo a distinção
entre o letramento na comunidade e letramento na escola e incluirmos o jovem, o
adulto e o idoso em práticas sociais de leitura que considerem sua identidade
linguística, realizando em salas de EJA um trabalho inventivo de leitura e escrita que
contemple os gêneros do discurso. O adulto é um sujeito que já construiu uma
história de vida, uma identidade e que mesmo não sabendo ler e escrever, como a
sociedade exige, está inserido em práticas efetivas de letramento e cotidianamente
produz cultura.
Os alunos da EJA, embora apresentem dificuldades no uso da linguagem,
envolvendo leitura e escrita, reúnem qualidades que a maioria das escolas não
levam em consideração, porque estão preocupadas em padronizar a língua, cumprir
um programa, um currículo. Destarte, acredito que no diálogo entre os pares e no
contato com outras vozes, outros dizeres, as professoras – sujeitos da pesquisa –
foram se constituindo novos educadores de linguagem. Nessa fusão, a
aprendizagem de novas concepções e teorização das práticas e novas formas de
pensar um ensino de Língua Portuguesa para as classes de EJA estariam
imbricados.
No próximo capítulo, apresento a descrição de momentos significativos de
interação em que os educandos e educandas da EJA expressaram a sua linguagem
sem constrangimento, havendo maior interação entre professor-aluno sem a
legitimação de um único padrão de língua. As professoras construíram novas
propostas de ensino, traduzindo os saberes em práticas de letramento.
139
6. A LEITURA DA PALAVRA-MUNDO ENTRE OS SONS DO PELÔ
Meu maior desafio era trabalhar leitura [...] porque eles resistiam muito [...] agora trago textos do cotidiano deles, do dia a dia [...] outro dia eu trouxe um texto que falava de quando Jorge Amado veio morar aqui no Pelourinho [...] os alunos se interessaram muito [...] descobri uma aluna que hoje mora perto do sobrado onde o escritor morou. Os alunos participaram muito dessa aula. (PROFESSORA. RUBI, 16/08/2016)
O texto escrito é uma porta aberta para a leitura que entremeia o mundo, o
outro e as (im) possibilidades de nossas lembranças, histórias contadas, cantadas e
choradas. Aí se forma a linha divisória entre leitor na escola e leitor da palavra-
mundo enunciada por Paulo Freire, pois permite que o sujeito faça “leituras de si, do
outro e do mundo” (FREIRE, 1996). Esta porta, no entanto, se encontra entreaberta
na EJA, esperando que por ela entrem leitores. Quem fará o convite? O Estado, a
escola, ou os professores?
Essa formação do leitor do mundo, proposta por Freire, requer também a
formação de professores leitores de si, que reflitam sobre sua prática; leitores do
outro, que investiguem o que é necessário que o aluno, no contexto da EJA,
aprenda; e leitores do mundo, que questionem sobre o seu papel no mundo e a sua
influência na mediação do conhecimento para formar sujeitos leitores.
Só podemos oferecer aquilo que temos. Para contribuir com o letramento do
outro, o professor, antes, teria que passar por esse processo de valorização do ser
cidadão, do ser professor. Há pedras preciosas na educação, precisando ser
encontradas, despertadas, esperançadas. Se quisermos alcançar uma educação de
qualidade para os jovens, os adultos e os idosos excluídos da sociedade letrada, é
preciso, entre outros aspectos, instruir os seus mestres, porque todo aquele que for
bem instruído será como o seu mestre. O Mestre quando orienta bem o seu
discípulo forma leitores de si, do outro, do mundo; promove a inclusão; desconstrói
os discursos hegemônicos; constrói novos discursos que partem da subjetividade,
da identidade e da herança cultural e que dão voz a sujeitos produtores de sua
própria história.
140
É na interação, com o outro, com o mundo que o indivíduo se torna sujeito
constituído de múltiplos olhares e múltiplas linguagens, pois todos os diversos
campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. O caráter e as
formas desse uso são tão multiformes quanto o campo da atividade humana, o que
não contradiz a unidade nacional de uma língua (BAKHTIN 1992, p. 261). É através
da língua/linguagem que expressamos sentimentos, emoções e saberes e muito
desses saberes são construídos por meio dos discursos – o que escutamos – e
também por meio da escrita – o que lemos.
Uma análise crítica do trabalho docente na EJA, em especial, implica,
certamente, em considerar alguns dos elementos que colaboram no processo de
constituição da profissão, as práticas docentes, as concepções de língua/linguagem,
as práticas de letramento que considerem as necessidades, especificidades,
urgências, dificuldades do sujeito aprendente e os mecanismos de profissionalização
docente.
Nessa perspectiva, a formação apoiou-se “em uma reflexão dos sujeitos sobre
a sua prática de modo a lhes permitir examinar suas teorias implícitas, seus
esquemas de funcionamento, suas atitudes etc., realizando um processo constante
de autoavaliação” que orientou o trabalho docente. (LEIRO; SOUZA, 2010, p. 80)
Concebendo essa linha de pensamento, estabeleci um diálogo com as
professoras durante todo o percurso, e como procedimento metodológico, analisei
com elas um projeto de letramento literário cujo título é – A literatura humana de
Jorge. “Esta produção também esteve fincada nos próprios textos e com seus
autores, na perspectiva de pensar e sentir, criticamente, as questões fundamentais
da humanidade” (ARAPIRACA; BELTRÃO, 2009). Esse projeto teve como princípio
o letramento literário, reconhecendo o relevante papel da literatura como um eixo de
formação de leitores e cidadãos críticos. O acervo-material reuniu textos da literatura
local e abordou temas da memória, história, identidade, patrimônio, transformados
em práticas de letramento. Pautei o ensino de língua em uma dimensão textual, visto
que “o ser humano é ser linguagem” e é na dimensão textual que a linguagem
141
realmente adquire existência, que o sujeito interage com o seu objeto de estudo: a
língua portuguesa. (BAGNO, 2002).
Há um desafio aqui proposto: incorporar ao conjunto de saberes de referência
que alicerçam o trabalho do professor com relação à concepção de linguagem
entrelaçada na dinâmica das interações sócio-históricas, portanto, um movimento
complexo, estruturado, polissêmico, incompleto. Essa incompletude da linguagem é
o que torna possível a produção de sentido realizada no momento de interação entre
leitor-texto-autor (BAKHTIN,1992; GERALDI,1996; SILVA, 2012)
Durante os diálogos que tivemos nos encontros, percebi que as professoras
sabiam mais do que falaram na entrevista, no diálogo com os autores, elas
passaram a pesquisar e a ler mais. As professoras, encorajadas e motivadas,
puseram em jogo tudo o que sabiam, os saberes que tinham construído para
descobrir o novo. Aos poucos, elas foram se revelando, desnudando-se e arriscaram
ousar fazer diferente. E na produção de saberes em diálogos com as práticas de
letramento, percebi nuances de mudanças em suas práticas pedagógicas.
Segundo Arapiraca, (2012), é preciso devolver para o currículo o riso. E esta foi
a proposta das professoras, ousar levar para o chão da sala de aula o sorriso, a
alegria, as cores do Pelourinho, o som de vozes atiçadas pela curiosidade, pelo
sentimento de pertença, pelo calor do acolhimento. Era preciso sugar da classe de
EJA um novo tipo de leitor, um sujeito cidadão que lê o mundo por meio de suas
palavras, que expõe sua visão, seus sentimentos e faz valer sua opinião, que expõe
através de sua voz tantas vezes silenciada a verdade implícita nas histórias de
exclusão que se repetem ano após ano.
O objetivo da pesquisa colaborativa era provocar olhares que tocassem a alma
dos alunos e os colocasse no centro do processo ensino aprendizagem. A porta da
sala estava entreaberta às novas maneiras de ensinar, de misturar os letramentos
de fora e de dentro, sem preconceito linguístico. E nessa mescla de falares, de
estilos, de trocas, a linguagem privilegiada foi a linguagem de um coração que fala a
língua universal, porque educar é um ato de amor e por ser um ato de amor, não há
espaço para a exclusão. Há espaço para arriscar o novo. O convite para o aluno
adentrar à sala seria um abraço que acolhe e um sorriso que abraça.
142
Nessa linha de pensamento, convido-lhe a adentrar comigo esta porta
entreaberta e observar as práticas de letramento das professoras de Língua
Portuguesa, agora ressignificadas. Apresento recortes das análises dos dados
gerados a partir da observação atenta às ações das professoras.
Para melhor orientar a leitura deste capítulo, organizei-a em três tópicos: no
primeiro tópico, apresento uma proposta de letramento na comunidade que envolveu
os alunos e a professora Esmeralda – Pelourinho: a palavra-mundo em quadrinhos;
constitui o segundo tópico as práticas de letramento de Ametista – Notícias: em foco
o letramento social e o terceiro tópico compõe a análise da observação realizada
nas aulas da professora Rubi que figurou a seguinte proposta – Leitura e interação:
a notícia nossa de cada dia.
6.2 PELOURINHO: A PALAVRA-MUNDO EM QUADRINHOS
TODO RISCO Damário Dacruz A possibilidade de arriscar
É que nos faz homens.
Voo perfeito
No espaço que criamos.
Ninguém decide
sobre os passos que evitamos.
Certeza de que voamos.
Tristeza de que vamos
Por medo dos caminhos...
(DACRUZ, 1993. p. 11)
Ousar fazer novo, ousar compartilhar espaços e tempos de aula, ousar buscar
parcerias para ressignificar as aulas de Língua Portuguesa, ousar quebrar
paradigmas, dogmas, conceitos enraizados é uma arte – porque ousar exercita a
arte de se ter coragem. Assim, a professora Esmeralda foi encorajada a ousar.
143
Em 18/04/2016, convidei a equipe da LabDimus para apresentar as propostas
de atividades que construí conjuntamente com o setor educativo da Dimus,
coordenado pela pedagoga Cristina Melo. Todo trabalho é desenvolvido com base
nos projetos estruturantes, orientados pela Secretaria de Educação do Estado da
Bahia. Em julho/2016, a coordenadora pedagógica do LabDimus contribuiu com a
formação da professora Esmeralda, desenvolvendo, com os alunos, o projeto
interdisciplinar de Letramento com HQ. Essa proposta de trabalho teve como
objetivo potencializar o letramento que os alunos desenvolvem na comunidade do
Pelourinho, local onde estão inseridos.
O LabDIMUS (Laboratório de Educação Digital: Museu, Arte e Cultura) faz a
interlocução entre as tecnologias e as coleções em exposição nos Museus da
DIMUS. Com isso, pretende manter o intercâmbio com as instituições de ensino de
forma interdisciplinar, contribuindo para a melhoria da educação formal a partir da
promoção de oficinas de interesse de professores e estudantes.
Esta proposta de letramento, especificamente, teve como base a construção de
histórias em quadrões para dar vida à “Turma do Patrimônio”, composta por oito
personagens – Mestre Melaço, D. Zefa, Gabriel e Galileu, Jonas, Lourdinha, Pelô e
Zito, criados pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) com o
objetivo de auxiliar na mobilização e conscientização da população baiana em busca
de atitude mais participativa para a proteção do rico acervo artístico, arquitetônico e
cultural (material e imaterial) da Bahia.
Imagem 1 - Foto: AscomSecult-BA
144
Teve também como objetivo contextualizar a história da Bahia por meio do
olhar dos alunos, discutindo o contexto cultural em que estão inseridos. A
construção das histórias em quadrinhos explorou o que os alunos já conheciam, as
leituras que faziam do Pelourinho a partir de suas vivências.
Para a construção da história, os alunos participaram de oficinas que versaram
sobre patrimônio material e imaterial mediada pelo historiador Moleiro. Tiveram
acesso a textos que traduziam o perfil de cada personagem. As aulas foram
planejadas de maneira a intercalar, às segundas-feiras, momentos em sala de aula;
na escola e, às sextas-feiras, os momentos das oficinas que ocorriam no laboratório
de tecnologia digital da Dimus.
Apresento a seguir o quadro resumo que mostra os procedimentos para
analisar o letramento dos alunos e os objetivos das aulas que nortearam essa
prática em atividades realizadas durante as oficinas no LabDimus.
AULA PROCEDIMENTOS OBJETIVOS ESPECÍFICOS
1ª
26/07
Dinâmica de grupo;
Apresentação da proposta de trabalho;
Apresentação dos personagens aos alunos.
Oficina de letramento – lendo o gênero HQ
Socializar o grupo
Ler História em quadrinhos
Dialogar com os colegas sobre e os personagens e a parte teórica que irá compor o texto da HQ
/ 2ª
08/08
Organização das equipes;
Entrega de um cartaz por equipe com as figuras e perfis das personagens (cada equipe ficou responsável por ler o perfil de um personagem);
Leitura analítica do perfil das personagens que convivem no contexto do Pelourinho;
Socialização e discussão sobre as personagens e os perfis.
Identificar se há coerência entre a história do perfil construído para as personagens e o contexto em que estão inseridos.
Ativar saberes do letramento social;
Levantar as características dos cidadãos locais, suas maneiras de falar.
3º/4º
15/08
Produção do texto descritivo –construção dos perfis a partir dos saberes socais, locais e culturais em que as personagens estão inseridas.
Socialização dos perfis construídos por cada equipe;
Descrever personagens, ativando saberes sociais e escolares.
Contextualizar a história da capital baiana por meio do olhar dos educandos e educandas da EJA
Criar perfil sociocultural dos personagens;
145
5ª/6°
22/08
Construção dos diálogos constituintes das HQs com base nos perfis construídos, considerando a identidade linguística das pessoas que moram, trabalham no Pelourinho – cenário da história.
Produzir diálogos para HQ com base no
letramento social dos alunos.
Quadro 6–Planejamento das oficinas HQ
Diferentes práticas de letramento foram construídas pelos alunos como
pudemos observar no mapa de eventos. Os textos escrito e oral foram bastante
explorados. A leitura foi realizada em espaços diversos: museu Solar Ferrão, em
sala de aula e no laboratório da DIMUS.
Para estudar os perfis das personagens, os alunos ativaram os saberes sociais
alicerçados na visão que têm do outro e do mundo que os cerca. Utilizaram a língua
para refletir sobre o sentido que o autor, participante da mesma sociedade, imprimiu
ao texto e a partir das expressões usadas por eles no dia a dia atribuíram outros
sentidos conduzidos por fios que geraram interpretação e compreensão textual.
Os alunos construíram o discurso direto para compor os diálogos da HQ; foram
orientados a refletir sobre os vários usos de linguagem, valorizando a identidade
linguística dos falantes, cidadãos trabalhadores e moradores do Pelourinho,
buscando maior coerência entre os diálogos estabelecidos e as personagens que
figuram o Centro Histórico de Salvador, considerando as variantes linguísticas,
“assumindo uma perspectiva mais culturalmente sensível e politicamente consciente”
(STREET, 2014, p. 143) sem reproduzir a hegemonia da língua. A ideia era valorizar
o patrimônio humano, o letramento que os alunos desenvolvem em sua comunidade.
A leitura desse gênero textual não foi transformada em objeto de imitação, ou
seja, oferecendo uma HQ como modelo para a construção de outra HQ. Esse
trabalho mobilizou saberes linguísticos (linguagem verbal, não verbal, concisão,
coerência); saberes de leitura (interpretação, compreensão, produção de sentido
etc.) e saberes sociais (contexto sócio-histórico, identidade, memória afetiva,
experiências pessoais e locais etc.). Os alunos construíram as histórias a partir de
sua visão de mundo e de suas experiências discursivas com os personagens reais
(cidadãos do Pelourinho) para transformar em ficção.
146
A proposta de letramento (s) com Tiras em Quadrões – gênero explorado no
suporte jornal cujo conteúdo já tinha sido trabalhado com os alunos mobilizou os
saberes já construídos com os alunos acerca desse gênero, muito apreciado por
eles. A professora criou um espaço/tempo de reflexão sobre o já conhecido para
aprender o desconhecido. Os alunos já tinham trabalhado com HQs, mas, desta vez,
foram instigados a ressignificar o perfil das personagens, criando textos coerentes
entre os personagens e o contexto social e ideológico do Pelourinho. As atividades
exploraram a leitura, produção de textos descritivos, criação de diálogos para
compor a HQ, promovendo uma reflexão sobre a linguagem.
Daí a importância de um ensino de Língua Portuguesa que permita, ao aluno
da EJA, uma experiência ativa na elaboração de textos a partir das leituras que eles
fazem e da linguagem a que eles têm acesso para discutir o papel da linguagem
verbal, sua função social e política, tanto no plano do conteúdo como no plano da
expressão. É importante que o aluno perceba que a língua é um instrumento vivo,
dinâmico, facilitador e por isso tão diversificado. Por meio da língua, é possível
participar ativamente e essencialmente da leitura e da construção da mensagem de
qualquer texto.
Ao inserir os alunos da EJA numa atividade de (multi) letramento, a professora
Esmeralda reconfigurou a concepção de letramento e os objetivos do ensino de
Língua Portuguesa antes reduzidos ao ensino da gramática. Ela demonstrou que
pensa um ensino de língua implicado numa ação didático-pedagógica, capaz de
levar o estudante a compreender a língua e linguagem como fenômenos históricos
complexos e compreender seu funcionamento, usos, léxicos e formas. Assumiu a
distinção entre letramento social e letramento na comunidade, explorou o uso da
linguagem em situações discursivas a que os alunos têm acesso, valorizando o seu
letramento, sem preconceito, sem apartheid linguístico. Com esse trabalho, os
alunos aprenderam que é possível usar a língua oral ou escrita em diversas
situações e contextos, levando em conta as marcas identitárias. Soares (1998)
defende que uma escolarização adequada não poderia ignorar essa dimensão
sociocultural da leitura e da escrita.
147
Essa proposta de (multi)letramento mobilizou diversos tipos de informações
das quais destaco duas: aquelas que os alunos constituíram em suas experiências
de vida e aquelas que lhes forneceu o autor em seu próprio texto. À medida que os
alunos liam os personagens reais no próprio contexto cultural, eles praticavam a
leitura de mundo; quando liam os personagens descritos por Jorge Amado,
exercitavam a leitura da palavra. E, nessa dinâmica, palavra e mundo interagiam
com o leitor.
É neste sentido que a leitura é um encontro de sujeitos, enquanto tais, sujeitos situados numa sociedade e por ela influenciados, mas não com resultados mecânicos de suas condições, mas com sínteses destas condições históricas e de suas ações sobre elas. (GERALDI, 1996, p. 125)
Ressalto a importância de a professora Esmeralda firmar parcerias fora da
escola, criando novas possibilidades de aprendizagem para os alunos da EJA. É
relevante conhecer a história da comunidade, ampliar a oportunidade de interação
entre professor, escola e comunidade local, e alunos viabilizando momentos de
convívio com o mundo cultural expresso na herança cultural dos estudantes – daí a
grande importância também de escolarizar as práticas sociais de leitura – para que
os alunos jovem e adulto não possam apenas reconhecer a sua cultura, mas serem
produtores dessa cultura.
Nesse contexto, é imprescindível criar, dentro e/ou fora da sala de aula - novos
espaços-tempos de aprendizagens significativas, tomando a leitura como
instrumento potencializador de letramentos sociais, de novas aprendizagens e
descobertas; transformar a sala de aula em outros espaços interativos onde homens
e mulheres, ao desenvolverem suas capacidades intelectuais e linguísticas, possam
também constituir-se sujeitos. A leitura é capaz de subverter homens e mulheres e
libertá-los da visão do outro que limita a sua capacidade de ler o mundo por meio de
seus próprios olhos e poder intervir, insinuar, interpretar, inferir. Não há nada mais
universal do que a leitura que transporta os sujeitos no tempo e no espaço, nesse
sentido, o ato de ler pode alcançar o infinito e tornar finito o presente que marca o
tempo de uma leitura inesquecível.
148
6.2 NOTÍCIAS - EM FOCO O LETRAMENTO SOCIAL
A professora Ametista apresentou um projeto de ensino estruturado em uma
sequência didática fundamentada na teoria da linguística textual. Optou por trabalhar
com gêneros discursivos a partir do diagnóstico das dificuldades linguísticas da
turma, considerando o letramento dos alunos, o contexto do Centro Histórico de
Salvador e as necessidades de aprendizagens do público da EJA. A professora
escolheu o gênero notícia, utilizando como parâmetro as experiências discursivas
dos estudantes – a leitura de jornais configura um hábito em suas práticas cotidianas
de letramento. Em 14/07/2016, a professora Ametista sondou o nível de leitura que
os alunos já possuíam para ampliar sua competência linguística e, com isso,
desenvolver a linguagem verbal.
Ao questionar aos alunos sobre os eventos sociais de letramento nos quais
estariam inseridos, os alunos responderam que além de terem desenvolvido o gosto
por ler jornais, estavam acostumados também em ler revistas, escrever bilhetes, ler
mensagens em redes sociais, acessando o WhatsApp e o Facebook e apreciavam
filme, livros e verbetes enciclopédicos virtuais etc.. Ou seja, diariamente, os alunos
da EJA estão inseridos em práticas de letramento e multiletramentos. A Aluna AA1
informou:
Eu gosto muito de ler livros de direito penal. Na casa do meu patrão tem uma biblioteca cheinha de livro de direito, eu gosto de ler. Outro dia fui limpar o escritório e encontrei um livrinho pequeno que falava sobre o direito das pessoas que compram, ah! Eu aprendi muita coisa. (14/07/2016)
Da fala dos alunos, pode-se depreender que eles têm acesso a uma
diversidade de gêneros que Bakhtin (1992) classifica como primários (de menor
complexidade) e secundários (de maior complexidade), demonstrando a diversidade
de linguagem que os alunos utilizam para ter acesso ao mundo letrado. A
professora, ao escolher um gênero discursivo para embasar suas aulas de leitura,
não se preocupou em selecionar textos próximos do “português clássico” que Street
149
(2014, p.148) considera como letramento dominante. Ametista não usou a leitura
como artifício para “levar” os alunos a ler, falar e escrever “corretamente”, mas
mobilizar outros saberes por meio da leitura: coesão, coerência, léxico, semântica e
outros aspectos linguísticos, viabilizando a interlocução entre leitor-texto-autor
defendida por Koch:
[...] uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. (2006, p. 11)
Nesse sentido, a professora trabalhou temas de interesse coletivo com o
propósito de motivar a participação dos alunos e dinamizar as discussões em classe
a partir da leitura. Ela optou por trabalhar com o tema – Moradia: um direito de todos
– tendo como foco a Arquitetura Urbana do Pelourinho. Quando perguntei o porquê
da escolha do tema, a professora respondeu:
Eu percebo que os alunos têm vergonha de falar que residem no Pelourinho. Eles precisam ter o sentimento de pertencimento. O Pelourinho tem história, é um local importante [...] Os alunos daqui também têm muitos problemas de moradia. (PROFESSORA AMETISTA, 14/07/2016)
É papel da escola assumir-se enquanto espaço de intervenção para
proporcionar ao aprendiz condições para que ele domine o funcionamento do texto
com vistas a sua inserção social, explorando a reflexividade dos estudantes. Nesse
sentido, a proposta do trabalho com o jornal estava vinculada às experiências
sociais dos aprendentes. A professora desenvolveu aspectos da linguagem e
explorou o contexto social em que os alunos estão inseridos, valorizando a
arquitetura urbana do Pelourinho – lugar onde os alunos residem. Esse plano de
trabalho, em conformidade com a Proposta Curricular para a Educação de Jovens e
Adultos, amplia a visão de conteúdo para além dos conceitos, inserindo
procedimentos, atitudes e valores como conhecimentos relevantes chamados
Temas Transversais.
150
Após escolher o tema – Moradia: um direito de todos – e o gênero – notícia –, a
professora conduziu o projeto, organizando as atividades em sequência didática: (1)
apresentou a proposta de trabalho ao educandos e educandas da EJA; (2) realizou
aula de campo pelo Pelourinho com visita ao Museu Casa de Jorge Amado; (3)
escolheu subtemas com os alunos para selecionar as notícias; (4) leu e discutiu as
notícias, explorando as múltiplas linguagens.
Em 19/07/2016, a professora iniciou o projeto, fazendo um passeio com seus
alunos pelo Pelourinho, tendo como mediador o historiador Eduardo Moleiro que
chamou a atenção para a beleza arquitetônica dos casarões. No Museu Tempostal,
eles viram Salvador antiga e ficaram impressionados com as mudanças. Muitos
alunos conseguiram identificar suas casas nas fotos antigas. Os alunos apreciaram
muito essa atividade.
No Museu Casa de Jorge Amado, conheceram um pouco da história e da obra
do escritor– narrada num acervo que reúne o olhar de Jorge sobre o Pelourinho. Os
alunos ouviram atentos que Jorge Amado residiu no Pelourinho aos 14 anos de
idade quando veio para a Bahia estudar no Colégio Ipiranga e aprenderam sobre as
personagens que residiam no Pelourinho. A professora informou à turma que
pretendia ler dois capítulos da obra Capitães da Areia – atividade planejada para a
IV Unidade e que para realizar essa atividade usaria o acervo da biblioteca da
escola que dispõe de dezoito exemplares da obra.
Em 26/07/2016, como dispositivo para dinamizar a leitura do gênero notícia, a
professora, em um tempo que durou 45 minutos de aula, propôs um diálogo com a
turma sobre as construções antigas que formavam o conjunto arquitetônico do
Pelourinho. Falou sobre as condições de moradia, os conflitos sociais em que os
alunos estavam envolvidos, o direito à moradia garantido na constituição, os
episódios de desabamento e incêndios, enfim, promoveu uma discussão sobre o
direito à moradia e as condições reais das pessoas que residem no Pelourinho. Este
momento foi significativo para os alunos da EJA, pois os jovens explicitaram seus
conhecimentos acerca do tema, falaram sobre os conflitos que enfrentavam, sobre
os embates com os agentes da prefeitura etc..
151
Em seu discurso com a turma, a professora retoma elementos da aula anterior,
explorando os recursos visuais a que o grupo teve acesso quando apreciou a
arquitetura local com o objetivo de contextualizar as ações propostas e possibilitar a
continuidade das discussões sobre moradia, tema da próxima aula. Nessa dinâmica
de interação, a professora Ametista construiu pontes referenciais, aproximando os
(as) alunos (as) dos parâmetros contextuais físicos e sociais. Subsidiou também a
interação entre leitor-tema, possibilitando a continuidade de significados já
construídos e aqueles que seriam construídos na próxima atividade de leitura.
Em 28/07/2016, em dois tempos de aula, a professora iniciou sua prática,
explorando o gênero notícia. Usou um jornal trazido de casa para trabalhar com a
classe: a função, características, estrutura, recursos visuais – imagens. Em seguida,
orientou que os alunos abrissem o livro didático da EJA na matéria de Língua
Portuguesa, página 38, e solicitou a leitura da notícia: “Vítimas das chuvas no RJ
ganham kits com móveis e eletrodomésticos”. Solicitou que lessem a notícia em
silêncio, procedeu à chamada na caderneta e após 8 min pediu que um voluntário
lesse em voz alta. Após à leitura oral, a professora explorou o lide da notícia,
perguntando aos alunos: O que aconteceu? Onde e quando? Por quê? Como foi a
entrega? Quem tinha recebido os benefícios?
Iniciou a atividade com uma prática escolar tradicional de abordagem da
notícia. Antes de discutir sobre os efeitos de sentido que o gênero tem para o leitor e
analisar os mecanismos de escrita, estabelecendo interação entre autor-texto-leitor,
a professora explorou a forma de composição do jornal: manchete/lide/corpo. A
professora chamou a atenção para o título, o conteúdo da notícia, a fotografia e a
legenda, perguntando qual a relação que eles tinham. A professora explicou que:
a notícia trabalha com fatos, e que a fotografia ilustra, comprova o que realmente aconteceu por isso a fotografia tem relação com a notícia que o título motiva a curiosidade do leitor por isso geralmente é dramático e tem que apresentar um resumo do que o texto trata para que as pessoas façam uma leitura rápida – por isso que tem que ser curto e criativo. (PROFESSORA AMETISTA, 28/07/2016)
152
Ao explorar os recursos visuais e linguísticos, a professora compreende que o
gênero notícia, muitas vezes, está associado a um bloco temático e que geralmente,
está vinculado a outros gêneros (fotografia, legenda etc.). Nesse caso especifico, um
texto se torna central e os outros secundários, e a passagem de um para o outro
nem sempre é nítida, pois assumem um caráter hibrido de textos independentes e,
ao mesmo tempo, da parte de um todo. (BONINI, 2015). Assim, o mecanismo do
jornal e de seus gêneros parece articulado. Ao trabalhar com a notícia é importante
enfatizar os outros gêneros que a compõem.
O trabalho realizado pela professora Ametista, com base na análise da notícia,
teve como proposta fazer com que os sujeitos da EJA reconhecessem a estrutura de
um gênero que integra uma classe de eventos socialmente comunicativos. Ao lerem
a notícia, as alunas associaram o seu conteúdo a fatos ocorridos em sua
comunidade, entrecruzando o fato relatado na notícia e o vivenciado em sua
comunidade. Consolidou-se a tríade leitor-texto-autor.
Após ter lido o texto, a professora empreendeu com os alunos um diálogo
sobre o gênero notícia. Uma de suas alunas informou que naquela semana a chuva
tinha derrubado um casarão na Ladeira da Saúde numa rua próxima da escola e de
onde ela morava. Analisemos o diálogo.
ALUNA AA1: Professora, aqui em baixo onde moro, na Ladeira da Saúde,
a chuva derrubou um casarão que fica na esquina, bem na subida da
ladeira.
PROFESSORA: O que aconteceu?
ALUNA AA1: Um casarão desmoronou, professora, e as pessoas ficaram
na rua.
PROFESSORA: Quem morava na casa?
ALUNA AA1: minha vizinha morava com dois netos, a filha e o marido da
filha. Ela estuda aqui na escola.
PROFESSORA: Onde aconteceu esse fato?
ALUNA AA1: Na Ladeira da Saúde.
PROFESSORA: Você acabou de construir o lide de sua notícia. Todos
Compreenderam agora o que é o lide?
A ação retórica da professora teve como proposta o interacionismo, porque
essa prática de letramento reforçou o caráter social do gênero notícia, bem como o
153
seu vínculo à comunidade discursiva. Ao interagir com a aluna, perguntando: “O que
aconteceu”; “Quem morava na casa? ”; “Onde aconteceu” etc., a professora propôs
uma metodologia específica de tratar a leitura, a interpretação dos textos, a
composição e a análise dos recursos estilísticos, considerando seu gênero
discursivo, que partiu de sua significação e funcionamento social para a forma que o
mesmo tomou. Nesse caso específico, a professora se beneficiou de um texto da
tradição oral, o relato, para trabalhar o gênero notícia, criando uma ponte referencial
entre o texto oral e escrito, ambos gêneros discursivos, reforçando, assim, a
dimensão social da língua.
A participação e o interesse da aluna da EJA, nessa atividade, em especifico,
evidenciam o quanto a escolha de um gênero discursivo pode causar impactos
positivos na formação leitora dessas pessoas, desenvolvendo habilidades de leitura
significativas para o desenvolvimento da linguagem verbal escrita e oral.
Essa vivência de letramento, na escola, proporcionou aos educandos da EJA
um momento de interação, tendo como base a leitura como prática de
desenvolvimento também da expressão oral. Nesse sentido, a professora Ametista
compreende que aprender a falar, é aprender a estruturar enunciados, isto é, “os
gêneros do discurso organizam a nossa fala da mesma forma que organizam as
formas gramaticais” (BAKHTIN, 1992, p. 301-302), quando relatamos algo, narramos
por enunciados e não por frases isoladas.
Ao proceder com o esquema pergunta e resposta, a professora foi delineando
com a aluna o lead da notícia e a partir das escolhas linguísticas e da forma de
composição do texto no gênero a professora fez ecoar a estrutura do texto. Fugiu do
lugar comum e vivenciou uma prática distante da maneira tradicional de ensinar
leitura sem tomar como base uma metodologia normativa ou prescritiva, visto que,
há centenas de anos, na escola lemos e escrevemos textos do tipo narrativo,
seguindo a tradição da leitura de contos, fábulas, romances e na vida lemos notícias,
relatamos nosso dia, recontamos um episódio etc..
Uma das características da dinâmica discursiva da sala de aula diz respeito à
retomada que a professora faz durante a atividade, exercendo duas funções,
simultaneamente, a retrospectiva dos conceitos trabalhados e a prospectiva que
154
subsidia novas aprendizagens. Essa ação evidencia a importância da retomada dos
conhecimentos, indicando que os eventos de letramento que os alunos participam,
dentro e fora de aula, são igualmente importantes por constituírem processos de
aprendizagem da língua socialmente situados.
A interação da professora com aluna AA1 consolidou um momento significativo
de aprendizagem, levando em consideração o contexto social da aluna e sua
experiência. Quando a aluna AA1 relatou o que ocorreu em sua comunidade, a
professora não ignorou o fato e imediatamente associou o gênero discursivo ao seu
contexto diário. Essa postura permitiu que os educandos e educandas da EJA
construíssem um entendimento do lugar social que ocupam na escola, das
interações, das expectativas de como participar das discussões em sala,
colaborando de maneira eficiente para a construção de novas aprendizagens a partir
de seus conhecimentos, de suas experiências de vida, de seus saberes sociais,
culturais e identitários, possibilitou, ainda, que fossem vistos como sujeitos capazes
de produzir história a partir de uma consciência crítica de si mesma e de seu
contexto.
A professora se beneficiou da fala da estudante para ensinar a estrutura do
gênero notícia. Na dialética com o texto, a aluna AA1 interagiu com e sobre ele,
construindo sentido a partir de fatos do seu cotidiano. Essa interlocução se realiza
quando o leitor desempenha seu papel, tão fundamental quanto o papel
desempenhado pelo escritor, isto é, o leitor compreende o texto e a ele atribui
sentido.
A interlocução com o texto foi possível, também porque, na semana que a
professora trabalhou com o tema moradia, ocorreram episódios de desabamento
causados pelas fortes chuvas, desabrigando muitas famílias em Salvador. Esse
tema foi amplamente noticiado em suportes textuais orais – telejornais –; e escritos -
jornais impressos. Nesse sentido, compreender é, portanto, transformar em ato as
possibilidades que o texto deixa em aberto. No trabalho com jovens e adultos, a
leitura deve ser prioridade.
Os alunos refletiram sobre a linguagem a partir de uma operação
contextualizada organizada e mediada pela professora, essa ação favoreceu a
155
produção de valores referenciais dos signos, pelos valores situacionais
(representações dos valores físicos do contexto) e pelos valores interacionais
(representação dos parâmetros físicos sociais). Isto é, os alunos interagiram
socialmente com o texto por serem agentes do lugar social e pela relação entre os
sujeitos da interação – os colegas – num processo de articulação da linguagem.
Essa aula ilustra aspectos do processo interacional e das práticas de letramento
com o gênero notícia. Nesse processo de leitura, a aluna interagiu com o mundo
letrado que a cerca, compreendendo o caráter discursivo do gênero que está
presente em seu contexto diário.
O trabalho com notícia se configura como um dispositivo social e um
instrumento de desenvolvimento da linguagem por ser um gênero associado às
práticas sociais correntes na sociedade. Nessa perspectiva, a professora relacionou
o tema moradia com outras notícias, provocando discussão sobre o envolvimento
com o social, a denúncia à injustiça, a reflexão sobre leis, a compreensão sobre os
direitos do cidadão à moradia, o direito do amparo pelo Estado e Município. Ao
propor a escrita do gênero a partir de um evento relacionado com o contexto dos
alunos, a professora escolarizou a prática social do grupo, aproximando escola e
comunidade.
Assim, colocada a definição de “gêneros” fica subordinada ao funcionamento social diversificado das instituições humanas (“esferas de atividade”), para o qual é necessária a comunicação ou interação entre as pessoas, por meio da utilização da língua. Para isso servem os gêneros, em sua variedade e heterogeneidade. (ROJO, 2015, p. 44)
A professora optou por trabalhar com o gênero notícia com um propósito
socialmente constituído, vinculado ao estudo da linguagem para a inclusão social e a
construção do conhecimento. O trabalho realizado que envolveu o jornal na sala de
aula explorou o gênero notícia na dimensão da leitura, da oralidade e da escrita.
Após ter explorado bastante os recursos linguísticos e estruturais, a professora
solicitou a produção de uma notícia para avaliar se a aprendizagem tinha sido
significativa.
156
Os alunos foram orientados a produzir uma notícia a partir de fatos ocorridos
em seu cotidiano, com isso, a professora reconhece a importância de trabalhar com
a notícia, visto que é um gênero discursivo que faz parte do contexto diário dos
alunos; e se trata, portanto, de uma “entidade da vida – e não da teoria – e se define
pelo modo como funciona social e comunicativamente”. (ROJO, 2015, p. 27)
6.4 LEITURA E INTERAÇÃO - A NOTÍCIA NOSSA DE CADA DIA
Os pensamentos pedagógicos de Paulo Freire, assim como a sua proposta de
alfabetização de jovens e adultos, inspiraram os principais programas de educação
popular realizados no país nos anos 60. Paulo Freire elaborou uma proposta de
alfabetização de adultos conscientizadora cujo princípio básico era: “A leitura do
mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1997, p. 41). O objetivo desta
proposta é levar o educando a assumir-se como sujeito de sua aprendizagem, antes
mesmo de iniciar o aprendizado da escrita. Os materiais didáticos produzidos nesse
período referiam-se à realidade imediata dos adultos, problematizando-a.
Essa linha de pensamento freireana fundamenta as práticas de letramento
propostas pela professora Rubi que desenvolveu atividade de leitura com o gênero
jornal nas classes de EJA. Ao questionar à professora o porquê da escolha desse
gênero, obtive como resposta: “são textos simples, de linguagem simples, que
dialogam com o estudante da EJA, porque fazem parte do seu cotidiano”.
O gênero notícia está inserido no trabalho escolar e nos livros didáticos por ser
um gênero relevante em termos de práticas sociais correntes na sociedade; é um
gênero que propicia exercícios mais relevantes no sentido do desenvolvimento de
habilidades de linguagem importantes para os educandos e educandas da EJA.
Tomei como opção esses princípios teóricos para analisar as práticas de
letramento da professora Rubi que desenvolveu trabalho com o gênero notícia. A
professora preparou o conteúdo para três aulas, organizou o tempo em três etapas
de atividade: (1) explorou os conhecimentos prévios dos alunos a partir da oralidade;
(2) leu com os alunos notícias para identificar o lead; (3) propôs diálogo a partir da
157
leitura da notícia, socializando os saberes dos estudantes com foco na interação
autor-texto-leitor.
Em 28/07/2016, no turno noturno, procedi à observação da aula da professora
Rubi. Cheguei e encontrei a porta entreaberta, adentrei sob os olhares curiosos e
sentei no fundo da sala. Observava a aula como quem lia um livro, atenta a todos os
detalhes.
Ao iniciar a aula, a professora propôs um diálogo com a turma sobre os
eventos sociais a que eles tinham acesso no cotidiano fora do espaço escolar.
Considerei essa característica marcante da atuação docente, visto que a presença
constante do diálogo com linguagem e tratamento adequados ao público da EJA,
fortalece a interação professor-aluno. O diálogo é a confirmação conjunta do
professor e dos alunos no ato comum de conhecer e reconhecer o objeto de estudo.
Em vez de transferir o conhecimento mecanicamente, colocando-se como detentor
do saber, o professor valorizou os saberes dos alunos.
[...] o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias e serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE, 1983, p. 198)
Nesse sentido, a professora dialogou com a classe, compartilhou seus gostos
de leitura com a turma, ouviu sobre os gostos dos alunos, seus hábitos
comunicacionais. Foi um momento significativo de interação que merece análise.
PROFESSORA: Quem aqui lê jornal?
ALUNA AR1: Eu leio, professora.
PROFESSORA: Onde vocês leem jornal?
ALUNA AR1: Na banca de jornal, professora
ALUNA AR2: Eu leio no trabalho na hora do cafezinho.
PROFESSORA: O que vocês costumam ler no jornal?
ALUNA AR1: O resumo das novelas e a parte policial.
ALUNA AR3: Eu leio a parte dos empregos, professora.
ALUNA AR4: Eu gosto de ler notícia sobre meu time do coração – Bahia.
158
ALUNA AR2: Eu leio a parte policial para ver se alguém daqui foi preso ou
morreu.
ALUNA AR5: Eu gosto das receitas, para levar para o meu chefe do
restaurante ver [...].
ALUNA AR6: Eu gosto da parte da política, vou votar no pastor que se
candidatou /.../
PROFESSORA: Eu trouxe alguns jornais para vocês escolherem uma
notícia a partir do gosto de cada um.
É possível inferir desse diálogo que a professora Rubi, antes de iniciar o
trabalho com o jornal, em sua prática de letramento, avaliou o que os sujeitos
sabiam sobre ele; como e onde acessavam esse suporte textual; indagou sobre os
gêneros do jornal que eles tinham acesso, o que eles gostavam de ler. Investigou
como os seus alunos atuavam em situações de leitura que envolviam o jornal.
A metodologia usada pela professora, antes de iniciar a aula, estabeleceu um
clima motivacional propício para a aprendizagem de todos os alunos. Com isso, a
professora Rubi ativou a atenção, o interesse, a curiosidade dos alunos, realizando
um trabalho de sedução, mobilização e motivação para a aprendizagem. É evidente
que esse trabalho deve acontecer ao longo de todas as aulas e não apenas no início
de cada uma delas, mas o começo das atividades é um dos mais marcantes, como
foi evidenciado por esta pesquisa. Essa sequência discursiva é exemplar nos
momentos de interação em que é significativa a participação da classe. Essa
postura, além de motivar a leitura do jornal, foi um potencial determinante para a
construção de uma aprendizagem significativa. A professora faz perguntas e os
alunos respondem individualmente, sem ser em coro, isso evidencia que as
perguntas feitas pela professora possibilitaram aos alunos construírem respostas
com base nas práticas discursivas que vivenciam fora do contexto escolar.
É importante entender que os sujeitos estão implicados com vivências e
práticas sociais concretas influenciadas por diversas ideologias e relações de poder
que prestigiam o letramento desenvolvido na escola – o que Street denominou de
modelo “autônomo”. Em oposição a essa concepção, o autor defende o modelo
ideológico, para melhor compreensão do letramento como prática social, ou seja, ele
159
defende que as práticas letradas são resultados da história, da cultura humana, dos
discursos. Isso nos faz refletir sobre os múltiplos letramentos em que os alunos
estão inseridos e a importância de sua escolarização, com isso, não defendo a ideia
de pedagogizar o letramento, mas de criar, na sala de aula, possibilidades de incluir
esses alunos no processo ensino aprendizagem, explorando suas experiências
discursivas.
Após interagir com a turma, a professora dispôs sobre a mesa os jornais que
trouxera de casa e solicitou que a classe escolhesse uma notícia; explicou o que era
lead, em seguida, pediu que os alunos o identificassem no texto que haviam
escolhido. Durante a aula, a professora circulou na sala, indo de carteira em carteira
para ouvir as dúvidas de seus alunos e auxiliá-los. Após perceber uma recorrência
nas dúvidas, a professora decidiu copiar no quadro o conteúdo sobre lead, que
estava no livro didático da EJA para revisar. Alguns alunos sentiram dificuldade de
responder o exercício por não compreenderem o comando da professora, pois
desconheciam os jargões jornalísticos.
Diante dos questionamentos, a professora demonstrou impaciência, mas ao
notar que os alunos estavam interessados em realizar a atividade, pegou um jornal e
foi identificando passo a passo o lead da notícia com eles. Observou que alguns
alunos estavam com o gênero reportagem e, por isso, sentiram dificuldade de
identificar o lead. A professora, então, resolveu substituir as duas reportagens dos
alunos por notícia.
Nesse primeiro momento do trabalho, a professora assumiu a concepção de
língua como representação do pensamento. Isto é, o aluno, ao ler o texto, constrói
uma representação mental e deseja que esta seja “captada” pelo interlocutor da
maneira como foi mentalizada (KOCH, 1996), sem fazer inferência, interpretar, visto
como um produto lógico do pensamento, isto é, cabe ao aluno captar informações
do texto numa atitude passiva sem dialogar e/ou interagir com ele.
Na segunda aula, observada em 18/08/2016, antes de iniciar o trabalho com a
classe, notei uma postura diferente frente aos objetivos da leitura. A professora
informou que tinha trazido alguns jornais para os alunos lerem. A aluna AR1, 45
anos de idade, falou: “Professora, a senhora já trabalhou com notícia na aula
160
passada”. A professora explicou que, na aula anterior, tinha trabalhado com notícia e
agora trabalharia com a reportagem. O objetivo da aula era pontuar semelhanças e
diferenças entre os gêneros e identificar o lead de uma reportagem e depois quem
quisesse poderia falar sobre o texto escolhido.
Nessa aula, exploraram-se notícias atuais e locais com temas selecionados
pelos alunos, valorizando a sua participação em sala e a interação entre autor-texto-
leitor. Nesse sentido, a professora construiu suas práticas de letramento,
entendendo linguagem como resultado de práticas discursivas de uso da língua em
situações cotidianas, e que, é no contato diário com a língua, que o indivíduo se
apropria da linguagem e se constitui sujeito de linguagem, interagindo com o mundo
que o cerca.
A professora copiou, no quadro, o conceito de lead e suas partes – o quê,
como, por que, quando, onde, com quem – com o objetivo de revisar o conteúdo
ministrado, pois alguns alunos apresentaram dificuldade em executar a tarefa na
aula anterior. Ela acredita ser importante, nas classes de EJA, uma retomada dos
conteúdos trabalhados para revisar o que foi ministrado a fim de avaliar se os alunos
aprenderam. Os alunos registraram no quadro.
Ao final dessa aula, a professora solicitou alguns voluntários para socializar a
leitura, comentar a notícia e explicou o porquê da escolha. A aluna AR1 expressou:
Escolhi a do pastor, professora, vi logo a foto dele [...] acho bonito o trabalho que ele faz na comunidade. Ele já foi na igreja pedir voto [...] eu já gosto de política, lá na minha rua o povo fala que sou a prefeita [...] (ALUNA AR1, 18/08/2016)
Por ser um gênero que recorre também à linguagem não verbal, pois,
geralmente, vem assessorado por fotos, ilustrações, grafismos, explorar essa
linguagem se torna importante para a leitura e produção de sentido. Notei que ao
permitir que os alunos folheassem os jornais em busca daquele que seria o seu
objeto de leitura e análise, a professora viabilizou a produção de sentido, visto que
os alunos escolheram as notícias, analisando foto e título. A aluna AR1, por
exemplo, escolheu a notícia atraída pela imagem. Portanto, para os efeitos de
161
sentido (temas) e para a análise dos textos da contemporaneidade seja em termos
de forma de composição de estilo, a multimodalidade ou multissemiose tem de ser
levada em conta (ROJO, 2015).
É importante que ao decidir trabalhar com um gênero discursivo o professor
reconheça-o como um texto que trata de operação comunicacional em que operam,
simultaneamente, ações linguísticas, sociais e cognitivas. A ação linguística não se
faz “apenas com gramática ou com léxico, mesmo que gramática e léxico tenham
uma função determinante na construção da coerência e da relevância dos sentidos
ativados” (ANTUNES, 2010, p.15). Ao final da aula, perguntei à professora Rubi
qual a percepção dela sobre as aulas, envolvendo notícia com temas sugeridos
pelos alunos.
Essa é a terceira aula que trago os jornais para a sala de aula, já percebo um maior interesse da turma pela leitura, envolvimento e interação. O objetivo é fazer com que os alunos, a partir da leitura de notícias escolhidas por eles, construam argumentos. (PROFESSORA RUBI, 18/08/2016)
Nesse sentido, a professora dá condições aos alunos de compreenderem a
função social dos gêneros textuais e a interagir com ele, produzindo sentido. Ao
propor leitura como processo de desenvolvimento também da expressão oral,
compreende que a notícia é gênero como um “todo discursivo”, ou seja, aprender a
falar, a argumentar é aprender a estruturar enunciados porque falamos por
enunciados e não por frases isoladas. “Os gêneros do discurso organizam a nossa
fala da mesma forma que organizam as formas gramaticais”. (BAKHTIN, 1992, p.
301-302). Ele entende gêneros discursivos como: produtos coletivos e em constante
interação social, determinados por agentes sociais no interior de esferas
comunicativas específicas. Infere-se, ainda, da fala de Rubi, que a concepção de
leitura centrada na estrutura da língua vai perdendo lugar de destaque em suas
propostas pedagógicas. O trabalho com jornais contemplou leitura como modo
também de organizar a escrita; para ela, leitura e escrita não podem ser trabalhadas
separadamente.
Nesse ponto de vista, o foco da ação pedagógica, para o ensino da leitura,
incluiu a oralidade espontânea e as expressões características dos discursos de
162
escrita, não limitou a prática da leitura a um mero processo de codificação e
decodificação de mensagem. Nessa lógica, os educandos e educandas da EJA
passaram a operar com signos e significados dentro de um mundo pleno de valores
e de sentidos, para eles, socialmente mercados, sobretudo, porque “a autonomia de
ler e de grafar decorre dessa experiência e não o contrário” (ROJO, 2015, p. 28).
Ao trabalhar com o gênero notícia, a professora propôs atividades para
desenvolver mecanismos de compreensão, ativar conhecimentos prévios e
contemplar os eventos sociais de leitura em que os alunos estão inseridos com os
seguintes objetivos: (1) ler para aprender algo novo, se informar; (2) ler para
desenvolver a competência comunicativa; (3) consolidar a ideia de que a notícia é
um gênero discursivo, portanto um modo de proceder em um meio social específico.
Na terceira aula observada, em 15/09/2016, fomos ao teatro. A professora
iniciava uma nova proposta de trabalho, envolvendo leitura e produção de texto. Os
alunos seriam repórteres por um dia e, em seguida, produziriam uma notícia a partir
da leitura da peça, orientados pela leitura do folder. Ao final do espetáculo, a
professora comentou, em voz baixa: “Será que os alunos entenderam a peça?”.
Fiquei em silêncio, sem fazer nenhum juízo de valor, enquanto caminhávamos (a
professora, os alunos e eu), descendo a ladeira do Pelourinho até o estacionamento.
Nesse intervalo de tempo, a professora perguntou se os alunos tinham gostado da
peça. A aluna AR2, Eixo IV, noturno, fez o seguinte comentário:
A infância dele lembrou a minha, eu já gostava de montar meus brinquedos com o que encontrava no quintal: lata, pedaço de pau, gostava também de descascar a laranja bem fininha para rodar e acertar a letra do meu amado, levava horas chupando laranja com minha vó, mas o outro espetáculo que assisti foi mais movimentado, esse teve mais emoção, mexeu comigo [...] (ALUNA AR2, 15/09/2016)
A ideia de que alunos da EJA são iletrados, são incapazes de ler e
compreender o texto oral e escrito, é uma ideia genérica preconcebida por
professores da EJA que não têm formação nessa área de ensino. Os estudantes, a
exemplo da aluna AR2, produzem sentido a partir de textos que dialogam com eles.
Ao experimentar situações de interlocução, em momentos de interação com os
163
sujeitos da EJA, contextualizando seus saberes de mundo, o professor promove a
leitura de mundo que Paulo Freire propõe em seus escritos.
Diante da análise dos dados que constituem esse capítulo, é possível
evidenciar que a produção de novos saberes provocou mudanças significativas nos
atos pedagógicos das professoras e no modo de interação com o público da EJA. As
práticas de letramento realizadas em sala de aula incluíram os sujeitos da EJA à
medida que as professoras entenderam que esse público participa, cotidianamente,
de práticas de letramento em contextos sociais. Eles têm rostos, histórias, sonhos,
memórias e identidade.
Ao refletir sobre a leitura pós-alfabetização negada, pela escola, ao aluno da
EJA em tempo pré-definido, as professoras entenderam que todo sujeito tem direito
à aprendizagem da leitura em qualquer tempo. É possível criar novas propostas de
ensino da leitura na dimensão sociodiscursiva da linguagem como atividade
constitutiva, de interação verbal em que se relacionam um eu e um tu e na relação
dialógica em que constroem os próprios instrumentos – a língua – que lhes permitem
a intercompreensão (Bakhitin, 1992; Geraldi, 1996), assumindo a distinção entre
letramento na escola e letramento na comunidade (Soares, 2014; Kleiman, 1998b;
Street, 2014; Rojo).
É factível trabalhar leitura nas classes de EJA na perspectiva do letramento
social e ensinar aos alunos o funcionamento dos textos nas diversas práticas
socioculturais. É importante acessar às orientações que versam nos PCN e nas
diretrizes curriculares para o ensino da leitura nessa modalidade a fim de que os
educandos e educandas da EJA sejam “inseridos em práticas legitimadas que lhes
permitam interagir, culturalmente, em variados âmbitos sociais”. (VÓVIO, 2007).
Trabalhar com gêneros discursivos na EJA contribui para a escolarização do
letramento social, tendo como desafio apresentar aos jovens e adultos múltiplas
situações de interação que envolvam leitura e que estão presentes em seu contexto
diário.
Nesse sentido, é tempo de criar políticas públicas de formação continuada para
os professores da EJA. Envolvê-los, enxergá-los, observá-los como se estivéssemos
entremeando as frestas de uma janela para perceber suas sutilezas, ações, gestos,
164
falas e contribuir para que eles proponham o ensino de Língua Portuguesa para
além do técnico (a gramática), problematizando-a em situações discursivas em que
envolva a leitura de si, do mundo, do outro, porque de uma janela podemos enxergar
somente parte de um mundo complexo, entretanto, a fração apresentada é sempre
um convite para o conhecimento pleno do mundo, para a sua provocação, para a
sua problematização. Assim também penso que a pesquisa colaborativa, é uma
dessas janelas que nos desafia a enxergar e relativizar as parcialidades quando há
necessidade do todo, e indo além, das motivações e dos interesses que constituem
o desvelamento do mundo, do homem e do educador (FREIRE,1996).
Assim deixo a janela e a porta entreaberta para adentrarmos no universo da
Educação de Jovens e Adultos e analisarmos os entrelaces finais dessa pesquisa
que procurou entender, em partes, os saberes produzidos pelas professoras ao
longo de sua vida sobre os quais elas constroem suas práticas de letramento para
produzir saberes com seus alunos na sala de aula.
165
ENTRELACES FINAIS
“As palavras são portas e janelas. Se debruçarmos e repararmos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancarmos as portas, o enredo do universo nos visita. Ler é somar-se ao mundo, é iluminar-se com claridade do já decifrado. Escrever é dividir-se. Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem caminhos, entre linhas, para viagens do pensamento. O livro é passaporte, é bilhete de partida”.
[Bartolomeu Campos de Queirós, 1999, p.23]
Dou início à tessitura deste capítulo com a certeza de quem seguiu um
caminho sem volta. No trajeto percorrido, as setas apontavam o desconhecido – era
preciso, então, desbravar, investigar. O meu olhar não é mais o mesmo, os meus
saberes são outros. Durante o percurso, metamorfoseei concepções e práticas na
interlocução com outras vozes que seguiram esse mesmo trajeto. Em terra firme,
alicerçada por teorias, despojei-me das folhas secas para transformar em frutos os
girassóis colhidos no caminho.
A estrada começou larga, sinuosa, porém, durante o percurso o objeto
determinou o método, objetivos e procedimentos para alcançar, com rigor e
disciplina, os resultados desta pesquisa. As escolhas que fiz projetaram o meu olhar
para onde o girassol projeta suas pétalas – para o alto. Foi do alto que me sobreveio
a coragem de continuar com os pés na estrada, tinta e papel nas mãos e o olhar
curioso de pesquisadora que me projetava, possibilitando-me novas descobertas
durante o processo de investigação.
A escrita deste estudo reuniu ideias do observador, do ouvinte e do
pesquisador. Encontrei em cada palavra a porta entreaberta, pedi licença e adentrei
para entreolhar as práticas de letramento das professoras de Língua Portuguesa
com a pretensão de interpretar sob quais concepções de linguagem elas têm
construído suas práticas de letramento nos cursos de EJA, considerando o universo
dos Eixos IV e VI.
Esvaziei-me de minhas conjecturas para investigar o intangível e interpretar a
subjetividade humana no diálogo com os outros. Esses outros, a quem me refiro,
166
são os sujeitos desta pesquisa – as professoras – cuja sabedoria excede o valor de
pedras que ao serem lapidadas, externaram sua natureza preciosa, transformando-
se em Rubi, Ametista e Esmeralda. Eu as acolhi com respeito, compreendendo que
“as experiências sociais criam saberes legítimos e que os fundantes – neste caso
específico, os professores – são teóricos e sistematizadores dos seus cotidianos”
Macedo (2012, p. 22). Observei suas aulas, seus gestos e atitudes na interação com
os jovens e adultos e os saberes e concepções que fundamentam seus atos
pedagógicos.
Desta forma, encerro esta pesquisa retomando e copilando os pontos mais
relevantes observados, discutidos e analisados no processo de desenvolvimento da
investigação, considerando-os, não como resultados oclusos, mas como indicativos
que possibilitam a interpretação e compreensão de questões vinculadas às práticas
de letramento construídas pelas professoras nas classes de EJA.
Nessa mesma linha de pensamento, pretendi estabelecer um diálogo que
pudesse articular os saberes docentes e sua proposta de ensino, valorizar uma
articulação entre a formação, as experiências das professoras e suas ações. Nessa
sequência, problematizei o saber-fazer de cada uma, visando estabelecer um
diálogo coerente em que as professoras pudessem articular a teorização de seus
atos pedagógicos e construir o hábito de uma prática reflexiva.
Nas entrevistas em grupo, realizadas durante os encontros de formação, as
professoras socializaram os saberes acerca de suas concepções de linguagem, de
leitura, alfabetização, letramento e multiletramento que requereram leitura de teorias
e pesquisas. Os encontros grupais se consolidaram num espaço de interação,
participação e reflexão, tornando-se inevitável o processo de formação que cada
uma assumiu na reflexão de sua prática.
Fundamentei minha investigação, compreendendo que o ato de ler nos põe em
contato com mundo e, com ele, vamos descobrindo as rimas que embalam os
poemas, os acordes que dão sentido às palavras, as memórias que tecem as
narrativas, os significantes e significados que desnudam a subjetividade do texto. A
leitura impulsiona o homem a transpor barreiras e compreender o mundo externo
através do mundo que esconde dentro de si e, nesse processo, interagir com o texto
167
e a ele atribuir sentidos. Tais ideias se vinculam ao pensamento de Paulo Freire
quando o autor afirma que a compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota
na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, se antecipa e se
alonga na inteligência do mundo. Nessa concepção, linguagem e realidade se
atraem. Ao lermos um texto, compreendemos seus escritos e isso implica a
percepção das relações entre o texto e contexto resultantes da compreensão da
palavra-mundo.
Contrariando esta linha de reflexão, os recortes iniciais desta pesquisa
mostram, por meio de entrevista, professoras que definem leitura como um conjunto
de habilidades desenvolvidas na escola para que o sujeito possa ter competência
para utilizá-las e, com isso, ascender socialmente. Para alcançar esse objetivo, elas
tentavam, por meio de ações pedagógicas tradicionais, normatizar o estilo e a
maneira de o sujeito articular a língua, negando as variantes e a identidade
linguística desses sujeitos; tratavam as instituições, o texto e a linguagem de forma
homogênea, desconsiderando o seu contexto social.
Muito do discurso das professoras dava ênfase à leitura de textos escritos
como instrumento de aprendizagem da gramática e para desenvolver habilidades de
leitura sem conceber o texto como uma unidade discursiva. A autoconsciência sobre
a língua e a elaboração de termos específicos para descrevê-la eram vistas como
parte do desenvolvimento cognitivo, levando ao pensamento crítico, ao
desprendimento e à objetividade.
Nesse ponto de vista, as professoras de Língua Portuguesa se guiavam pela
ideia de que o papel da escola moderna é ensinar a estrutura sintática e morfológica
aos alunos que se encontram em defasagem idade e série. Nesse sentido, as
professoras se esforçavam para avaliar os conhecimentos sobre gramática, sem
levar em conta a função social da língua, e a atuação desses estudantes em
diferentes situações discursivas. Os dados das entrevistas indicam ainda que as
professoras entendiam que a escola é a única instituição capaz de desenvolver o
letramento desse público, desconsiderando as práticas sociais de leitura e escrita
em que os jovens, adultos e idosos estão inseridos no contexto diário, seja no
trabalho, na comunidade, na igreja etc..
168
Foi no calor das constantes discussões e reflexões que as professoras
Ametista, Esmeralda e Rubi dialogaram sobre os equívocos e contradições que
refletiam suas práticas de letramento e expressaram a necessidade de o Estado
criar políticas públicas de formação de professores para atuar nas classes de EJA.
Dessa maneira, além da formação continuada, é importante envolvê-las em
situações de aprendizagens em que sejam capazes de lidar com a multimodalidade
textual, contribuindo com a formação também dos educandos para que leiam e
produzam textos, tanto orais e escritos quanto digitais ou impressos. Nesse ponto de
vista, o ensino de Língua Portuguesa, nas classes de EJA, deveria buscar
desenvolver valores, conhecimentos e habilidades capazes de ajudar os alunos a
interpretar de maneira crítica a realidade em que vivem e nela inserir-se de forma
mais consciente e participativa com o objetivo de aperfeiçoar as concepções dos
alunos sobre si, sua participação na e sobre a sociedade (multi) letrada e a ela
integrar-se progressivamente.
As novas concepções de letramento pedem uma reconfiguração das práticas
pedagógicas nas classes de EJA, que ainda hoje privilegiam quase que
exclusivamente a cultura dita “culta” sem considerar os multi e novos letramentos, as
novas práticas, os novos gêneros que surgem conforme as demandas sociais que
englobam a cultura digital.
Os educandos e educandas da EJA não têm acesso, na escola, a textos que
explorem diversas linguagens, mídias e tecnologias, pois os adultos aprendem
fazendo e aprendem, principalmente, o que sentem necessidade, e saber lidar com
as novas práticas de letramento em mídias digitais, configura-se como uma
necessidade urgente. A escola deve pensar na composição de um currículo
multiletrado que leve em conta os novos letramentos, tendo como propósito a
inclusão dos sujeitos da EJA no mundo letrado midiático, escolarizando, assim, as
práticas na web.
A história que envolve os sujeitos da EJA, no que se refere ao desenvolvimento
da linguagem, inclui muitas injustiças e, em razão disso, a missão fundamental dos
professores de Língua Portuguesa é melhorar as oportunidades educacionais dos
jovens, adultos e idosos, pois com a mudança no mundo social advinda das novas
169
comunicações tecnológicas, o ensino tradicional engessado em leitura e escrita,
visando à aprendizagem gramatical, deveria ceder espaço à aprendizagem da língua
de modo contextualizado em que o social e o cultural não estejam dissociados da
língua em si, priorizando a diversidade, considerando o mundo letrado e multiletrado
em que estão imersos.
Constatei que os educandos e educandas da EJA, que residem no Pelourinho,
estão inseridos num contexto multicultural e participam de cursos ofertados pelo
setor educativo dos museus, por ONGs, pelo SENAC, desenvolvem atividades
culturais e têm acesso a outras agências de letramento. No entanto, as professoras
não contemplavam em suas propostas de ensino o contexto sócio-histórico,
desconsiderando que as práticas letradas são resultados da história, da cultura
humana, dos discursos, portanto estamos em constante interação com o mundo e
precisamos aprender a atuar nele e sobre ele. Isso nos faz refletir sobre os múltiplos
letramentos.
Verifiquei, ainda, que duas professoras assumiam, em suas práticas de leitura,
a concepção de língua como representação do pensamento, nesse sentido, o aluno
era motivado a captar informações do texto sem ter liberdade para se deslocar e
interagir com o autor-texto, neutralizando, desta forma, a interação entre autor-
sentido-texto. As práticas de leitura, com foco no autor e texto, limitavam a
capacidade de interpretação e compreensão, a interação e produção de sentido. Os
objetivos do ensino de leitura estavam vinculados às convenções e aos hábitos que
descaracterizam a leitura como processo que permite ao sujeito da EJA
compreender sua razão de ser no mundo, buscando, incessantemente, mais
conhecimentos sobre a sua realidade.
O sistema educacional fortemente influenciado por novas perspectivas
sociointeracionistas da língua, aprofundou reflexões acerca do trabalho com gêneros
textuais nas escolas, que até então era protagonizado pelo livro didático. No entanto,
os resultados iniciais desta pesquisa constataram que, após décadas da publicação
dos PCN, é possível identificar práticas do ensino de língua em classes de EJA,
condensadas em regras e nomenclaturas gramaticais. Com a justificativa de que os
alunos da EJA não dominam o código alfabético, uma das professoras não adotava
170
um trabalho inventivo de leitura nem traçava objetivos com esse propósito, isto é,
nos espaços das aulas por ela planejados não havia tempo para escolarizar as
práticas de multi e novos letramentos.
Essa postura contribui para aumentar o número de jovens, adultos e idosos nas
estatísticas de pessoas entre 15 e 64 anos com o nível de leitura rudimentar,
sobretudo porque a professora, ao reduzir suas aulas à análise sintática de frases
soltas, escritas na lousa, não subsidia atividades, visando ampliar a competência
linguística desse público. Pensar leitura, no contexto da EJA, como potencializador
dos letramentos sociais, pressupõe adentrar num campo de luta engajado com o
compromisso de realizar projetos pedagógicos que visem ao ensino da leitura como
instrumento de emancipação cidadã e de construção democrática, porque ler é
direito de todos. Os alunos da EJA são introduzidos em experiências de leituras
reducionistas que visam apenas ao processo de alfabetização como uma mera
mercadoria e não da leitura como um direito humano.
Os resultados também mostram que as práticas de letramento escolar das
professoras – participantes desta pesquisa – expressam os saberes por elas
adquiridos em seu processo de formação (nos cursos de Magistério e Licenciatura);
pelas experiências como aprendizes em seu próprio processo de escolarização, por
sua representação de como se dá o processo de aprendizagem de jovens e adultos,
suas necessidades de aprendizagem e suas experiências de vida. Refletem as
concepções de leitura construídas na experiência acadêmica e são resultados
também do “saber-fazer”, ou seja, saberes transformados em metodologias e
práticas pedagógicas. Destarte, suas práticas pedagógicas retratam suas heranças
culturais, sua identidade.
Julguei importante observar as aulas das professoras numa dinâmica que
contemplou suas práticas isoladas antes e depois das reflexões feitas a partir da
interlocução com as vozes teóricas. Os resultados alcançados pós-encontros
fortaleceram a importância científica de uma pesquisa colaborativa.
As trilhas de leitura, por elas percorridas, durante o processo de investigação
figuraram mudanças significativas. À medida que as professoras refletiam suas
ações, no cotidiano da sala de aula, elas produziam novos saberes por meio da
171
teorização de suas práticas, da leitura, da pesquisa e das discussões geradas em
torno do objeto deste estudo, e estas novas aprendizagens refletiam sua práxis num
movimento de ação-reflexão-ação. Isso foi possível porque, nos encontros
formativos, as professoras socializavam experiências, expressavam suas
dificuldades, elucidavam dúvidas, liam, estudavam e, progressivamente, iam
descobrindo e redescobrindo novas possibilidades de desenvolver práticas
significativas de leitura.
Ao analisar sobre a leitura pós-alfabetização negada, pela escola, aos
educandos e educandas da EJA em tempo pré-definido, as professoras entenderam
a urgência de criar projetos de leitura com base nas LDB e PCN que orientam um
ensino de Língua Portuguesa capaz de inserir os sujeitos da EJA em práticas
legitimadas que lhes permitam interagir, culturalmente, em variados âmbitos sociais.
Ao aprofundar-se nos conceitos de alfabetização, alfabetismo e letramento e
refletir sobre suas práticas, as professoras entenderam que ensinar leitura, nas
classes de EJA, é, antes, um ato político que garante um direito humano. Assim, o
objetivo de trabalhar com os alunos da EJA não cogitava mais a reprodução de
explicações tecnicistas como ensinar aos alunos a decodificar sinais escritos,
nomenclaturas gramaticais e/ou evitar problemas de ortografia. O objetivo era
alfabetizar letrando. Nesse sentido, elas ressignificaram suas práticas, construíram
um projeto de ensino comprometido com a história, a identidade, o cotidiano do
aluno-cidadão, tendo como proposta potencializar o letramento do aluno-trabalhador
e despertar o aluno-sonhador, compreendendo que adultos sonham, têm história e
projetos de vida.
A observação das aulas, após formação, evidenciou que ao planejar suas
atividades, as professoras se apropriaram de novas concepções, reconstruindo-as a
partir de suas experiências e do contexto sócio-histórico em que estão inseridos os
educandos e educandas da EJA.
No que se refere à interação em sala de aula, essa pesquisa mostrou que, ao
se apropriarem de novos saberes, as professoras constituíram-se de novas
concepções refletidas nas atitudes em sala. A releitura que faziam dos alunos e do
contexto em que os mesmos estão inseridos, fizeram-nas entender que a docência,
172
no contexto da EJA, envolve saberes, métodos, tempos e espaços diferenciados e
que, por isso, requer mudanças metodológicas a fim de escolarizar as novas
práticas sociais de leitura, e que, portanto, deve considerar os saberes acumulados
pelas experiências de vida dos educandos e educandas no contexto multicultural,
histórico, político e social em que estão inseridos.
Observei que as professoras, em suas interações discursivas, permitiam que
os alunos explicitassem os conhecimentos já construídos sobre um determinado
tema a partir de suas experiências pessoais e que diferentes vozes ressoassem,
constituindo a dinâmica discursiva das aulas. Destarte, o ambiente da sala figurou-
se como espaço de constituição de sujeitos de linguagem, o que contribuiu para a
formação de homens e mulheres capazes de interagir e dialogar, com autonomia e
senso crítico, em outros espaços sociais para emitir opinião, argumentar e/ou lutar
por direitos sociais. Para alcançar isso, as professoras, em um processo de
investigação e escuta, traçaram objetivos coerentes com as necessidades de
aprendizagens desse público, entendendo que as experiências não podem ser
transplantadas, mas reinventadas.
Constatei que, ao desenvolverem o hábito da prática reflexiva, as professoras
iam, progressivamente, construindo uma identidade de professora da EJA que exige
saberes (outros) que envolvem conceitos pedagógicos, humanos, políticos e
filosóficos: aprender a aprender os conceitos, teorias, concepções que versam sobre
o objeto de ensino; aprender a ser professor de EJA, a ser pesquisador, a ser
ouvinte, a ser mediador, a ser político e envolver-se na luta pela democratização da
aprendizagem da leitura na EJA, visando à qualificação de seus educandos e
educandas. Envolvem, ainda, atitudes e procedimentos didáticos e metodológicos:
estar disposto a aprender a conviver, interagindo com os jovens e adultos em atitude
de respeito e colaboração e, com eles, descobrir fatos, conhecimentos, informações,
explorando o novo e ressignificando o já dito, o já visto e por fim, o aprender a fazer,
considerando que o projeto de ensino de Língua Portuguesa na EJA envolve
saberes, métodos, tempos e espaços diferenciados e que, por isso, requer
mudanças metodológicas a fim de escolarizar as novas práticas sociais de leitura.
173
Logo os novos saberes foram, passo a passo, ressignificando as ações
pedagógicas das professoras. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança: todo mundo é composto de mudança, tomando
sempre novas qualidades”. (CAMÕES, 1872). Daí incide o valor de uma pesquisa
colaborativa que contribui para a mudança de paradigmas e promove intervenções
sociais.
Diante do exposto, concluímos que esta pesquisa colaborativa, no âmbito
escolar, desenvolveu um trabalho de interação entre a pesquisadora e três
professoras consolidada num processo de estudo teórico-prático que envolveu
constantes questionamentos, reflexões e teorização sobre as práticas que norteiam
o trabalho docente. Entendendo que toda a pesquisa é produzida com o professor e
não para ele, valorizei uma articulação entre a formação, as experiências dos
professores e suas práticas de letramento. Construímos juntas novas
aprendizagens, tecemos novos olhares fortalecidos na prática. O pesquisador teve,
na realidade estudada, o seu objeto de investigação, podendo construir
conhecimento com base nesse contexto, descrevendo, explicando e também
intervindo nele.
Nesse sentido, esta pesquisa fez ressurgir das ladeiras do Pelourinho,
professoras que romperam com o silêncio que as punia. Unidas pelo amor, pela
angústia e dor da profissão galoparam, contra o passado, a favor de práticas
pedagógicas que permitiram a mistura de poemas com o som de tamborins. Em sala
de aula, seus alunos produziram narrativas periféricas que brotavam das vielas do
Centro Histórico de Salvador. Deu voz ao grito contra a arte patrocinada pelos que
corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso
crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha (VAZ, 2011).
Estas considerações finais se materializam, fisicamente, no último suspiro
limitado pelo ponto, mas deixo aqui janelas e portas entreabertas, encorajando o
leitor a se apropriar das ideias aqui tecidas e que apanhe esse grito e o lance a outro
e, que, com muitos fios, se cruzem a outros fios de sol (MELO NETO, 1975) a favor
de jovens, adultos e idosos que clamam por arte, literatura, cultura e universidade
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174
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TAYASSU, Catitu. Alfabetização e Letramento: Condições de Inclusão Social (?), in GONÇALVES, Adair Vieira; PINHEIRO, Alexandra Santos, (Org.), Nas trilhas do Letramento: entre teoria, prática e formação docente. – Campinas, SP: Mercado das Letras, 2011. TARDIF, M. Saberes docentes e a formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. – São Paulo: Editora Cortez, 1995. UNESCO. Conferência Internacional de Educação de Adultos – V: 1997: Hamburgo, Alemanha: Declaração de Hamburgo: agenda para o futuro. Brasília, SESI/UNESCO. 1999. UNESCO. Conferência Geral. – X : 1958: Paris, França: Aprovação das Resoluções 2.43. Unesco. 1959. VAZ, Sérgio. Cooperifa: antropofagia periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. ______. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011.
VÓVIO, Cláudia Lemos. Entre discursos: sentidos, práticas e identidades leitoras de alfabetizadores de jovens e adultos. – Campinas, SP, 2007.
181
APÊNDICE – A Entrevista individual semiestruturada
ENTREVISTA
NOME DA PARTICIPANTE___________________________________________________________
ROTEIRO DE QUESTÕES
FORMAÇÃO ACADÊMICA
1. Qual curso de graduação você cursou? Em qual instituição? Este curso foi realizado em
modalidade regular ou especial, presencial ou à distância?
2. Concluiu algum curso de pós-graduação? Informe o nome do curso. Este curso foi realizado
em modalidade presencial ou à distância?
3. Você costuma participar de formações, seminários, grupos de estudo que versem sobre como
trabalhar a língua portuguesa, o texto, o ensino de leitura em sala de aula de EJA?
SOBRE O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA ( CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E LEITURA)
1. Em seu plano de aula há direcionamentos para o ensino de leitura? Que atividades você
desenvolve em sala de aula para trabalhar com práticas de leitura?
2. Qual a sua concepção de leitor, leitura, alfabetização e letramento?
3. As questões propostas pelos materiais de leitura, escolhidos por você, ou indicados pelo
material didático utilizado, proporcionam aos alunos fazer reflexão crítica, e construção de
sentidos? Caso isso não aconteça, o que você faz?
SOBRE AS PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA EJA
1. Quais os recursos e procedimentos que você adota para ensinar leitura?
2. Que critérios de seleção você adota para escolher os textos a serem trabalhados na EJA?
3. Qual o seu maior desafio de trabalhar leitura na EJA?
4. Dos trabalhos envolvendo leitura que você já realizou nas classes de EJA, qual você
considera mais exitoso e como você avalia os resultados desse trabalho?
FORMAÇÃO DO PROFESSOR:
1. Quais foram os encaminhamentos sugeridos durante sua formação pedagógica em
leitura, na academia, para a práxis docente? Houve algum encaminhamento relacionado
a EJA?
2. Quais caminhos metodológicos lhes foram apontados para a prática com os alunos?
Você teve acessos aos documentos oficiais ( PCN, LDB, etc.)
3. Como você se viu na atuação, no dia-a-dia com a prática e com o seu público real de
trabalho? Houve impasses entre a teoria a que teve acesso e a prática, como os resolve?
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APÊNDICE – B CRONOGRAMA DOS ENCONTROS
ENCONTROS FORMAIS
DATA PROCEDIMENTOS
11/04/ 2016 Sensibilizar as professoras sobre a importância dos encontros de
formação;
explicitar os benefícios educacionais, profissionais e científicos
possibilitados pela pesquisa colaborativa; leitura da carta convite, explicar o
processo de investigação; obter o consentimento via documento; assinar o
termo de adesão voluntária; registrar o horário de aulas para organizar o
calendário de observação; agendar com as professoras o melhor dia para
observar suas aulas, realizar as entrevistas e os encontros de formação.
18/04/ 2016 Diálogo acerca das práticas pedagógicas; apresentação de projetos de
(multi) letramento(s) realizados em parceria com a labDimus; socializar
experiência de estágio realizado com a professora Dra. Dinéa Sobral
Muniz na disciplina Estágio I na Faced – UFBA com as alunas de Letras;
apresentar a bibliografia utilizada e as ideias que norteavam as obras.
ENCONTROS DE FORMAÇÃO
DATA TEMA METODOLOGIA
05/05/2016 Patrimônio, Identidade e Memória
Contos africanos de Iray Galvão
1. VISITAÇÃO
Elevador Lacerda, Igreja
Rosário dos Pretos, Museu
Tempostal.
2.Oficina de contação de
histórias
3. Workshop sobre
Patrimônio
12/07/2016 Práticas de letramentos na Educação de Jovens
e Adultos
Projetos de leitura para a EJA contemplando os
gêneros discursivos.
Reflexão da ação
Socialização do livro Aula de
Português: encontro e
interação de Irandé Antunes
27/07/2016 Projetos de leitura para a EJA
Letramento Social e letramento escolar
Apreciação do filme:
Café Literário
Bate-papo
Perguntas e respostas
16/08/2016 Novas ações pedagógicas adotadas para a EJA
Socialização dos projetos
realizados em classe e da
nova metodologia adotada.
183
ANEXO A – TEXTOS TRABALHADOS NOS ENCONTROS DE FORMAÇÃO
MATERIAL TEXTO METODOLOGIA
8. Canção sapato velho Dinâmica - Ouvir a canção e relacionar a sua letra ao sentimento do ser professor no século XXI. Destacar o verso da letra Socializar com o grupo o verso escolhido e relacioná-lo ao sentimento do professor, a sua trajetória profissional;
Leitura e discussão das ideias expressas no livro em diálogo com os PCN e a LDB para a EJA.
Mesa redonda – Cada professor participante, respondia uma questão sobre Educação, ensino de Língua Portuguesa e leitura na EJA numa entrevista coletiva.
9. Fábula – Os urubus e os sabiás – Rubem Alves (p. 96 a 103) Texto expositivo: A geografia linguística do Brasil (p. 103 a 109) Poema: A missa dos inocentes – Mário Quintana ( p. 109 a 115)
Leitura e análise de textos privilegiando os aspectos global, semântico, pragmático. As professoras compreenderam que além dos aspectos gramaticais, o texto converge ações cognitivas, linguísticas e também sociais.
Viver – Mário Quintana (p. 125 -126) Os invisíveis – Heloisa Lima (p. 127) Embora soneto – Paulo Monteiro (p. 130)
Discussão sobre a importância de trabalhar a gramática dos gêneros discursivos relacionando as práticas sociais de leitura dos alunos da EJA. Análise de textos dando ênfase aos conectores. Refletir sobre:
O que é gramática contextualizada?
Como contextualizar a gramática?
O que priorizar no ensino da linguagem na EJA?
Rios sem discurso - João Cabral de Melo Neto, 1975
Discutir sobre o ensino de L.P. com foco em análises morfológicas e estudo de palavras descontextualizadas
184
ANEXOS B - TEXTOS UTILIZADOS EM CLASSE PELAS PROFESSORAS
PROJETO - QUEM SOMOS
Patrimônio – Memória – Identidade – História em práticas de Letramento
TEXTO – O Pelourinho – Atividade
1. Porque o Largo do Pelourinho ou Ladeira do Pelourinho é considerado um dos marcos urbanos de Salvador? Que importância histórica esse lugar tem para a nossa cidade?
2. Porque as casas antigas do Centro histórico foram demolidas no século XVIII
3. Que eram as pessoas que residiam nesse lugar no século XVIII?
4. Que fato histórico foi responsável pela decadência do Pelourinho no final do século XIX ? Quem passou a morar no Pelourinho a partir dessa data?
5. Que obras de Jorge Amado retratam a história do povo que vivia no Centro Histórico de Salvador durante este período? ( Português)
6. Em que data Jorge Amado escreveu o romance Suor? E o que o autor retrata nesse romance? ( Português)
7. Você sabia que Jorge Amado morou no Pelourinho em 1934? Você seria capaz de informar em que rua do Centro Histórico esse grande escritor residiu? (Português)
8. Pesquise no dicionário os vocábulos que você desconhece (Português)
9. Escolha um casarão do Centro Histórico (Igreja, casa, museu, centro cultural, loja) e tire uma foto no celular – Artes – Atividade é para ser realizada com o fotógrafo da LabDimus.
10. Produza uma notícia a partir de relatos de pessoas residentes no Pelourinho sobre um fato que envolveu o
tema moradia.
Jorge Amado. Fundação Casa de Jorge Amado. – Salvador: Casa de Palavras, 2008.
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ANEXO C – REVISTAS PRODUZIDAS PELOS ALUNOS EM PARCERIA COM A LABDIMUS
Revista em quadrinho nº 01/ 2016 Ministrante da Oficina: Emerson Alan (LabDimus) | Coordenação: Cristina Melo / Parceria Colégio Estadual Azevedo Fernandes; Roteiro: alunos ( Eixo VI, 1º e 2º Anos) ; Edição e diagramação: Tiago Santos ( Ascom Dimus). |