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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MINTER UESB/UFBA EDMACY QUIRINA DE SOUZA A EDUCAÇÃO INFANTIL E O CURRÍCULO: UM ESTUDO SOBRE AS CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO PRESENTES NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE PROFESSORAS DA PRÉ-ESCOLA Salvador 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MINTER UESB/UFBA

EDMACY QUIRINA DE SOUZA

A EDUCAÇÃO INFANTIL E O CURRÍCULO: UM ESTUDO SOBRE AS CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO

PRESENTES NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE PROFESSORAS DA PRÉ-ESCOLA

Salvador 2009

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EDMACY QUIRINA DE SOUZA

A EDUCAÇÃO INFANTIL E O CURRÍCULO: UM ESTUDO SOBRE AS CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO

PRESENTES NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE PROFESSORAS DA PRÉ-ESCOLA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação. Orientadora: Profa. Drª. Maria Antonieta de Campos Tourinho

Salvador 2009

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UFBA/ Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira

S729 Souza, Edmacy Quirina de. A educação infantil e o currículo: um estudo sobre as concepções de currículo presentes nas práticas pedagógicas de professoras da pré- escola / Edmacy Quirina de Souza. – 2009. 169 f. Orientadora: Profa. Dra. Maria Antonieta de Campos Tourinho. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2009. 1. Educação pré-escolar. 2. Currículos. 3. Infância. 4. Prática de ensino. I. Tourinho, Maria Antonieta de Campos. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 372.21 – 22. ed.

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EDMACY QUIRINA DE SOUZA

A EDUCAÇÃO INFANTIL E O CURRÍCULO: UM ESTUDO SOBRE AS CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO

PRESENTES NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE PROFESSORAS DA PRÉ-ESCOLA

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 16 de março de 2009.

Banca Examinadora

Maria Antonieta de Campos Tourinho – Orientadora ____________________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia

Eronilda Maria Góis de Carvalho ___________________________________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia Universidade Estadual de Santa Cruz

Lívia Diana Rocha Magalhães ______________________________________________ Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - SP Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

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A Deus, razão da minha existência, pelo dom da vida e por seu amor infinito que não se pode exprimir com palavras. “Por que Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas” (Romanos, 11: 36). Pedro (em memória), meu querido pai, exemplo de honestidade, força e determinação, que marcaram a minha vida; um homem de predicados raríssimos. Alexandrina, mãe querida, exemplo de bondade e carinho, pelos dias e noites dedicados a mim. Cid, esposo, companheiro, por me amar e me fazer acreditar no amor.

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AGRADECIMENTOS

São muitas as pessoas especiais que contribuíram para mais esta conquista na minha vida. A

todas elas, externo os meus agradecimentos.

A Deus, pela fé, convicção e a plena certeza de que está sempre do meu lado. Agradeço por

todas as conquistas que Ele tem me proporcionado. Tudo que tenho e tudo que sou, devo a

Ele.

A Cid, pela paciência e carinho. Uma semana depois do casamento, já precisei viajar. Entre

viagens, trabalho e estudo, quase não sobrava tempo para nós. A sua compreensão e incentivo

me ajudaram a vencer os obstáculos.

À minha família pelo carinho e cuidado que sempre teve por mim, em especial minha querida

mãe, por acreditar sempre no meu potencial, pelo seu incentivo e apoio; Gideon, meu irmão,

por não me ter permitido desistir na graduação quando já estava no meu limite. À minha irmã

Edna, pelas constantes orações e carinho nos momentos difíceis e pelos anos que

compartilhamos a mesma casa, momentos que muito ajudaram no meu crescimento,

especialmente, o espiritual.

A Maria Antonieta de Campos Tourinho, minha orientadora, que, mesmo não sendo da área

da educação infantil, se disponibilizou a me orientar e muito contribuiu para o meu

crescimento profissional.

A Professora Lívia Diana, que, mesmo não tendo oportunidade nem tempo de continuar as co-

orientações, me ajudou a dar um outro olhar ao meu projeto inicial. Aos professores co-

orientadores da UESB – Leila Pio Mororó, Ana Elizabeth, Ana Palmira, e Reginaldo de

Souza.

A UESB pela oportunidade singular de iniciar e concluir esse curso de Pós-Graduação e a

UFBA por ter aberto as portas para a implementação deste mestrado interinstitucional.

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Ao meu querido amigo Elson de Souza Lemos, pela nossa trajetória sempre juntos – colegas

desde o ensino médio – apoio e discussões.

Às colegas Mari, Pri e Kau, assim, carinhosamente, chamadas na nossa convivência em

Salvador. Foram muito bons os momentos que compartilhamos em “nossa casa”, com

discussões, confidências, brincadeiras, risadas... E a todos os colegas do MINTER.

Aos professores Roberto Sidnei Macedo, Robinson Tenório e José Albertino e à professora

Maria Roseli Sá, pelo apoio e carinho com que nos receberam na UFBA.

Às escolas municipais e suas respectivas diretoras por abrirem as portas para a realização da

pesquisa, pelo acolhimento e carinho com que nos trataram. Às professoras do curso de

educação infantil, pela disponibilidade de nos receber e pela sua significativa contribuição. Às

crianças da pré-escola, crianças lindas, que muito contribuíram para o resultado deste

trabalho.

Meu obrigada a todos e a todas por colaborarem, cada um a sua maneira, para o meu

crescimento profissional e pessoal.

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Deixai vir a mim as criancinhas

e não as impeçais,

porque delas é o reino dos céus (Lucas 18:16).

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SOUZA, Edmacy Quirina de. A Educação Infantil e o Currículo: um estudo sobre as concepções de currículo presentes nas práticas pedagógicas de professoras da pré-escola. 169 f. il. 2009. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009. Resumo

O presente trabalho objetiva discutir as concepções de currículo presentes nas práticas pedagógicas dos professores da pré-escola. Busca ainda analisar a influência desse currículo na formação e construção da identidade sociocultural da criança de forma que possibilite a reflexão sobre as várias dimensões da educação pré-escolar, as ações, as práticas e os discursos instituídos pelos profissionais que atuam nessa etapa da educação básica. Propõe, em um primeiro momento, uma discussão sobre os pressupostos histórico-filosóficos da pesquisa segundo os quais se deu o trabalho investigativo. A pesquisa se realizou de acordo com os princípios teóricos e epistemológicos da abordagem qualitativa em uma pesquisa do tipo etnográfica, tendo como campo de investigação duas escolas públicas do município de Itapetinga, cidade localizada no Sudoeste da Bahia, que atendem crianças de quatro a seis anos de idade. Foram utilizados, como instrumentos de coleta de dados, a entrevista semiestruturada, o grupo focal e a observação do espaço educativo. Participaram dessa investigação seis professoras e suas respectivas turmas (crianças de quatro e seis anos de idade). Em relação aos resultados da pesquisa, procurou-se estar atento ao que dizia a realidade educativa, os discursos e as ações cotidianas das práticas pedagógicas, buscando compreender as concepções não só de currículo, como também de criança, infância e de educação infantil presentes nos depoimentos e atuações dos sujeitos da pesquisa. Lançando mão dos aportes teóricos, este estudo se balizou em discussões sobre infância e educação infantil de autores, como Ariès (1981), Arroyo (1995), Arce (2007, 2002,), Rousseau (2004), Sarmento (2003, 2001), Froebel (2001), Garcia (2000) e Kramer (2008, 2006, 2001, 1998,); autores da área de currículo, como Macedo (2005, 1999), Silva (1999), Burnham (1998), Comenius (2001), Freire (1997, 1996), Moreira (2006, 2000) Morin (2006, 2003, 1998) e Pacheco (2005). Os resultados do estudo apontam para a necessidade de investimento nos processos formativos dos docentes que cuidam e educam crianças nas instituições de educação infantil, tendo em vista a mudança em sua concepção de infância e currículo, ampliando e redimensionando a sua prática pedagógica para atender às necessidades das crianças e promover o seu desenvolvimento integral nos mais variados aspectos, tais como: físico, cognitivo, afetivo, motor, ético e estético.

Palavras-chave: Educação pré-escolar. Currículos. Infância. Prática de ensino.

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SOUZA, Edmacy Quirina de. The Child Education and the Curriculum: a study on the curriculum conceptions present in the teaching practices of pre- school teachers. 169 f. il. 2009. Dissertation (Master science) – College of Education, Federal University of Bahia, Salvador, 2009. Abstract This paper discusses the conceptions of teaching practices present in the curriculum for teachers of pre-school. Also search examine the influence of the curriculum in training and building of the socio-cultural identity of the child in a way that allows the reflection on the various dimensions of pre-school education, the actions, practices and speeches done by professionals engaged in this stage of basic education. Proposes in a first time discussion on the historical and philosophical assumptions upon which the search and the investigative work was done. The research was conducted in accordance with the principles of theoretical and epistemological approach to a qualitative type of ethnographic research, field research with the two public schools in the municipality of Itapetinga, located in the southwest city of Bahia, that serve children from four to six years of age. Were used as instruments to collect data a semi-structured, interview the focus group and the watching education area. Participated in this research six teachers and their classes (children of four and six years of age). For search results, tried to be attentive to the educational reality, the speeches and actions of everyday pedagogical practices, seeking not only understand the concepts of curriculum, as well as children, childhood and early childhood education present in statements and actions of research subjects. Making use of theoretical contributions, this study beacons in discussions on childhood education and children's authors, as Ariès (1981), Arroyo (1995), Arce (2007, 2002,), Rousseau (2004), Sarmento (2003, 2001), Froebel (2001), Garcia (2000) e Kramer (2008, 2006, 2001, 1998,); autores da área de currículo, como Macedo (2005, 1999), Silva (1999), Burnham (1998), Comenius (2001), Freire (1997, 1996), Moreira (2006, 2000) Morin (2006, 2003, 1998) e Pacheco (2005). The results suggest the need for investment in training processes for teachers who care and educate children in the institutions of early childhood education in order to change his conception of childhood and curriculum, extending and reframing their pedagogical practice to meet the needs of children and promote their full development in the most varied aspects, such as: physical, cognitive, affective, motor, ethical and aesthetic.

Keywords: Pre-school education. Curricula. Childhood. Practice of teaching.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CF – Constituição Federal

CNE – Conselho Nacional de Educação

COEDI – Coordenação Geral de Educação Infantil

COEPRE – Coordenação de Educação Pré-Escolar

DCNEI – Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil

DNCr – Departamento Nacional da Criança

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização

dos Profissionais da Educação.

FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização

do Magistério

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

LBA – Legião Brasileira de Assistência

LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

MEC – Ministério da Educação e Cultura

MINTER – Mestrado interinstitucional

PC – Proposta Curricular

PNAD – Plano Nacional de Amostra Domiciliar

PNE – Plano Nacional de Educação

PNEI – Plano Nacional de Educação Infantil

PPP – Projeto Político-Pedagógico

RCNEI – Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil

SEB – Secretaria da Educação Básica

SME – Secretaria Municipal de Educação

UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

UFBA – Universidade Federal da Bahia

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 13

CAPÍTULO I - OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS........

1.1 INÍCIO DE CONVERSA................................................................................................

1.2 FENOMENOLOGIA: UMA VISÃO DE VIDA.............................................................

1.3 O CAMINHO PERCORRIDO........................................................................................

1.4 CAMPO, SUJEITOS E INSTRUMENTOS....................................................................

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CAPÍTULO II - INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL: ASPECTOS

HISTÓRICO, FILOSÓFICO, LITERÁRIO E LEGAL...................................................

2.1 INTRODUÇÃO...............................................................................................................

2.2 A INFÂNCIA: UMA COMPREENSÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA.........................

2.3 A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA: UM DIÁLOGO ENTRE O PEQUENO

PRÍNCIPE, EMÍLIO E EMÍLIA.....................................................................................

2.4 A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA E A PRÁXIS PEDAGÓGICA...........................

2.5 POR UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA.........................................................................

2.5.1 Em busca do sentimento de infância no Brasil.........................................................

2.5.2 A criança nas leis e documentos oficiais brasileiros.................................................

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CAPÍTULO III - CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO E A EDUCAÇÃO INFANTIL..

3.1 CURRÍCULO: TRAJETÓRIA E CONCEPÇÕES.........................................................

3.2 O CURRÍCULO SEGUNDO A COMPLEXIDADE E A

MULTIRREFERENCIALIDADE..................................................................................

3.3 O CURRÍCULO E A EDUCAÇÃO INFANTIL............................................................

3.3.1 O currículo infantil e a visão de Friedrich Froebel...............................................

3.3.2 O Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil....................................

3.3.3 O currículo e a prática pedagógica na educação infantil......................................

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CAPÍTULO IV - CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E DE CURRÍCULO NO

CONTEXTO DA PRÉ-ESCOLA........................................................................................

4.1 INTRODUÇÃO................................................................................................................

4.2 IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL.............................................................

4.3 INFÂNCIA/CRIANÇA: O OLHAR DAS PROFESSORAS..........................................

4.4 CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO NO CONTEXTO DA PRÉ-ESCOLA E A

PRÁTICA PEDAGÓGICA..............................................................................................

4.4.1 O currículo e os aspectos socioculturais na constituição da identidade e na

construção do conhecimento da criança..................................................................

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CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 155

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 164

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INTRODUÇÃO

Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana.

Rousseau, Emílio

A discussão desta temática é de grande relevância para mim desde o momento em que,

ainda cursando a oitava série do ensino fundamental, em um pequeno povoado (Novo

Horizonte) de uma cidade do Sul da Bahia, já ensinava, com apenas 16 anos de idade, uma

turma de crianças na faixa etária de cinco a seis anos. No ensino médio (segundo ano de

magistério), lecionei para uma turma de crianças de três e quatro anos em uma escola

particular no município de Porto Seguro, na Bahia.

Ao concluir o magistério, voltei para o meu município, Ibirapitanga, na Bahia, onde

fui trabalhar com uma turma de pré-escola (crianças entre quatro e seis anos de idade). Nesse

mesmo período, 1994, participei de um curso de capacitação para professores que atuavam na

educação infantil, promovido pelo Instituto Anísio Teixeira (IAT), órgão vinculado ao

governo do estado da Bahia. Quando concluí o curso, saí decidida a prestar vestibular para o

curso de pedagogia. Fui aprovada e, em 1995, comecei a estudar na Universidade Estadual de

Santa Cruz, graduando-me em 1998. Na época, o currículo do curso de pedagogia estava em

processo de reforma, por isso não foi possível cursar a disciplina que tratasse mais

especificamente de educação infantil. Em seguida, fui trabalhar como coordenadora

pedagógica no meu município, onde passei a coordenar uma creche e uma instituição de pré-

escola, o que me motivou ainda mais a continuar o estudo desta etapa da educação básica.

Logo depois, fiz um curso de Especialização em Educação Infantil na UESC, o qual me

possibilitou uma pesquisa maior na área de infância e educação infantil.

Essas experiências foram gratificantes, pois me fizeram ver a educação infantil com

outros olhos. Até então estava ainda impregnada de uma visão fragmentada de criança, tida

como um miniadulto. Passei a observar e ver a relação adulto/criança que antes passava

despercebida. A creche, como uma instituição assistencialista, e a pré-escola, como uma

preparação para a primeira série do ensino fundamental, começavam a me inquietar. Já não

via como normal alguns discursos de que a educação infantil era importante para que os

alunos não fossem retidos na primeira série do ensino fundamental.

Assim, quer na coordenação da educação infantil em Ibirapitanga, quer na função de

acompanhar os estagiários nas escolas de Itapetinga, percebi que as práticas pedagógicas da

educação infantil ainda eram vistas mais como preparação para o ensino fundamental do que

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como uma etapa do desenvolvimento integral da criança. Existe entre os professores uma

preocupação mais acentuada com os conteúdos de português (letras) e matemática (números),

isto é, com os aspectos cognitivos, do que com a valorização da potencialidade infantil

(aspectos sociais, culturais, motores, éticos, estéticos, espirituais etc.). Há uma ansiedade com

a aprendizagem do ler, escrever e contar, para que, dessa maneira, a criança, alfabetizada, não

venha a fracassar na primeira série.

A formação da criança, em geral, apresenta-se fragmentada quando privilegia os

aspectos cognitivos em detrimento de outros aspectos como, por exemplo, os afetivos e

sociais. A concepção de criança como um adulto em miniatura, como um ser que imita o

adulto, desde o projeto iluminista principalmente à luz de Rousseau e Pestalozzi, ainda carece

de maiores questionamentos em nossa sociedade.

Chegamos ao século XXI ainda com uma concepção “inacabada sobre a criança” e a

sua educação, particularmente a escolar. A falta de clareza sobre o conceito de criança e de

infância, no corpo da nossa sociedade, acompanha também as políticas educacionais e,

consequentemente, a concepção de escola e de currículo. A ideia de currículo, sobretudo

como um conjunto de conhecimentos sistematizados em disciplinas, parece indicar que a

escola não é o lugar adequado para as crianças menores.

A abordagem “cognitivista” de currículo tem levado a uma formação apenas cognitiva

das crianças, isto é, privilegia-se o ensino da leitura e da escrita e despreza-se a formação do

sujeito como pessoa e do respeito à sua cidadania. Essas considerações nos levam a indagar

por que um tema fundamental como a “formação da criança” sempre esteve em segundo

plano nas políticas públicas brasileiras.

A pré-escola deve ser vista como uma etapa de educação na vida do sujeito, um lugar

que promove o desenvolvimento pleno da criança, e não apenas um espaço para “guardar” a

criança. A escola e o currículo para esta etapa da educação básica devem ser pensados de

forma crítica, respeitando a faixa-etária e as particularidades infantis.

Segundo Moreira (2000, p. 21), o “currículo é entendido como uma prática social

discursiva e não discursiva, na qual instituições escolares corporificam saberes, normas,

preceitos morais, relações de poder, valores, regras e regulamentos”. Daí, a influência do

currículo na vida das crianças pequenas.

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Concebemos a criança como um sujeito completo, complexo e global, que necessita de

formação integral para que possa desenvolver suas múltiplas inteligências1, e a educação

infantil tem essa função social de contribuir para a formação global do ser humano, uma

formação pautada nos valores éticos e estéticos. O ser humano/criança não deve ser visto

como um sujeito fragmentado, dicotômico, segundo uma concepção racionalista, tampouco a

educação que lhe é oferecida deve ser vista dessa forma. A criança é um ser com

potencialidades, com direitos e deve viver a sua infância, isto é, a sua fantasia e criatividade.

O currículo, por sua vez, não é apenas um conjunto de conhecimentos organizados e

sistematizados a ser transmitido às crianças. O currículo deve facultar às escolas e aos

professores da educação infantil cumprir a sua função social, que não se limita à reprodução

da sociedade ou dos saberes sistematizados, mas se estende à transgressão das verdades

absolutas, ao respeito às novas identidades e diferenças socioculturais, em busca da

valorização do amor a si e aos outros, do respeito a si e aos outros e da cooperação – um

currículo que veja a criança como um ser completo e complexo, que não seja apenas intelecto.

Refletir sobre currículo na contemporaneidade é pensar sobre a condição do

conhecimento produzido nos espaços da escola, como também fora dela, e isso nos leva a

pensar nas escolas e nos currículos praticados para além dos seus contextos imediatos.

É possível afirmar que os papéis que os sujeitos desempenham no cotidiano escolar não

podem ser definidos apenas institucionalmente, de acordo com as normas decorrentes da lógica

hierárquica de funções e/ou formações. Hoje, entendemos o currículo como um artefato

sociocultural que possibilita o desenvolvimento, no âmbito educacional, desde os

conhecimentos já construídos pela humanidade nas áreas específicas (disciplinas), como a

filosofia da escola, a forma como os docentes trabalham, a relação escola-comunidade-alunos,

a concepção de mundo dos envolvidos, até a concepção de cultura e de construção do

conhecimento.

É nessa perspectiva que concebemos o currículo da educação infantil, pois o

conhecimento não acontece no vazio, tampouco de forma fragmentada, mas na construção

coletiva, por meio da linguagem, reflexão e criatividade dos sujeitos envolvidos. O currículo

não é um corpo de conhecimentos fixo e imutável; ele é dinâmico e está presente em todas as

ações da escola, de forma explícita ou implícita, caracterizando-se como um espaço de luta

cultural e de construção de significados e tem um grande papel na formação e constituição do

sujeito autônomo, reflexivo, participativo. Diante dessa relevância, vale questionar: como 1 Conceito utilizado por Gardner (1995) para explicar que o sujeito possui várias inteligências, como, por exemplo, a inteligência lógico-matemática, lingüística, interpessoal, espacial, entre outras.

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temos pensado e trabalhado o currículo de educação infantil? Como esse conjunto articulado

de saberes é produzido na escola e qual a sua influência na formação do sujeito/criança?

Assim, baseado em uma investigação sobre o currículo de educação infantil e suas

implicações, torna-se relevante saber: quais as concepções de currículo presentes nas práticas

pedagógicas realizadas na pré-escola da rede pública municipal de Itapetinga e qual a sua

influência na formação sociocultural do sujeito-criança? Quais as concepções de infância nos

discursos e nas práticas pedagógicas do professor? De que forma este currículo contribui na

formação da criança, na construção do conhecimento e na sua identidade sociocultural?

Nessa perspectiva, busquei fazer uma análise do currículo das escolas de educação

infantil (pré-escola), procurando compreender a sua função como expressão de cultura, de

socialização e de formação humana e o perfil dos professores que atuam nessas escolas sob o

ponto de vista de uma perspectiva crítica e cultural. Ressalto a importância da articulação entre

as concepções de currículo e o papel dos professores das escolas de educação infantil, como

também a conexão entre a teoria e a prática curriculares na atuação desses profissionais.

A pesquisa buscou identificar as concepções de currículo presentes nas práticas

pedagógicas realizadas na pré-escola da rede pública municipal de Itapetinga e a sua

influência na formação sociocultural do sujeito-criança. Parti de uma abordagem qualitativa

do tipo etnográfica, mediante a qual procurei construir e interpretar a realidade pesquisada por

meio do diálogo entre os sujeitos, o que requereu debate e discussão constante e não apenas a

obediência a fórmulas prontas e inflexíveis para alcançar os objetivos. Nesse sentido, salienta

González Rey (2005, p. 05) que “a Epistemologia Qualitativa defende o caráter construtivo-

interpretativo do conhecimento, o que de fato implica compreender o conhecimento como

produção e não como apropriação linear de uma realidade que se nos apresenta”. Seguindo

essa visão de pesquisa, busquei captar os dados por meio de observação das aulas, entrevistas

semiestruturadas, análise de documentos e realização de grupo focal.

Com essa perspectiva qualitativa, a pesquisa foi realizada com seis professoras (três de

cada instituição) e suas respectivas turmas (crianças de quatro e cinco anos de idade) de duas

escolas de educação infantil do município de Itapetinga, cidade localizada no Sudoeste do

estado da Bahia. Peço licença às autoras que fundamentam este trabalho, especialmente

autoras que falam sobre infância, educação infantil e currículo, Sônia (Kramer), Alessandra

(Arce), Teresinha (Burnham), Regina (Garcia), Fúlvia (Rosemberg) e Ivani (Fazenda), para

utilizar os seus nomes na cognominação das professoras envolvidas na pesquisa. Essa ideia

surgiu em discussão com a orientadora, depois de um depoimento sobre a não-hierarquização

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na construção do saber, visto que o conhecimento produzido pelas professoras deve ser

respeitado e levado em conta, assim como os teóricos aqui referendados. Não que os discursos

das professoras envolvidas na pesquisa sejam igualados aos dos teóricos; entendo-os como

saberes diferentes que merecem ser valorizados e respeitados. Essa construção, portanto, não

poderia se tornar uma dicotomia: de um lado, o saber teórico-científico (dos autores) e, do

outro, o saber do senso comum, isto é, sem rigor científico (das professoras). Todos são

conhecimentos. São diferentes, multirreferenciais, e não melhores ou piores. É nesse campo

de relações autores/atores/cenário que o saber vai sendo tecido, “num fluxo desierarquizado

de construção de sentido no qual pensar e ser são o mesmo” (TOURINHO e SÁ, 2002, p. 34).

Ao dar o nome de algumas autoras às professoras, estou tentando também valorizar as

construções e concepções destas últimas sobre as temáticas discutidas. Quanto às

denominações das escolas onde foi realizada a pesquisa, apropriei-me dos nomes de duas

obras de Lobato para nomeá-las: Memórias de Emília e Reinações de Narizinho.

Este trabalho está estruturado em seis capítulos:

No Capítulo I, apresento os pressupostos teórico-metodológicos e proponho uma

contextualização histórica da construção do conhecimento científico, na qual são abordados

os diversos paradigmas existentes na sociedade, e uma reflexão dentro da abordagem

fenomenológica de construção, reconstrução e compreensão do conhecimento. Discuto a

construção do conhecimento, numa abordagem qualitativa, os fundamentos e os caminhos

percorridos. Destaco os instrumentos de coleta de dados utilizados na pesquisa, os sujeitos e o

local onde se deu tal investigação.

No Capítulo II, exponho a compreensão de infância e seus fundamentos histórico,

filosófico e legal, trazendo uma abordagem também histórico-filosófica de infância e de

criança, desde o pensamento platônico até o pensamento rousseauniano, promovendo um

diálogo sobre a concepção de infância entre Rousseau, Lobato e Exupéry, além de uma

abordagem política e legal de educação infantil no contexto brasileiro.

No Capítulo III, discuto as concepções de currículo e de educação infantil no decorrer

da história, quando destaco a criança pequena no cenário educacional, relacionando-a com a

realidade atual.

No Capítulo IV, analiso as concepções de infância e currículo no contexto da pré-

escola, presentes nos discursos e nas práticas pedagógicas das professoras. Interpreto os dados

coletados, fazendo uma reflexão à luz dos pressupostos teóricos, salientando a importância da

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educação infantil, as concepções de infância/criança e currículo manifestados nos

depoimentos do grupo pesquisado.

Nas Considerações Finais, discuto algumas inquietações vivenciadas nos estudos e

faço uma análise pessoal sobre tudo o que ocorreu no período da pesquisa e na construção

desta dissertação.

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CAPÍTULO I – OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

Somos algo e não tudo (...) incapazes de conhecer

com segurança e de ignorar tudo.

Pascal

1.1 INÍCIO DE CONVERSA...

Fazer ciência requer planejamento e seguir esse caminho inclui sempre a percepção

emancipatória do sujeito que busca, questiona e indaga a realidade e não aceita os fenômenos

como prontos e acabados. A construção do saber ocorre no diálogo com a realidade histórica

que se transforma constantemente, pois o conhecimento é dialético e dialógico, está em

permanente transformação.

Este estudo objetivou identificar as concepções de currículo presentes nas práticas

pedagógicas realizadas na educação infantil na rede pública municipal de Itapetinga e a sua

influência na formação sociocultural do sujeito-criança. Para isso, houve necessidade de

compreender o cotidiano escolar e as experiências diárias.

Proponho, inicialmente, um percurso histórico-filosófico da construção do

conhecimento e, posteriormente, o enveredamento pelo caminho metodológico dessa

construção e, especificamente, para a constituição da pesquisa.

No decorrer da história, o homem sempre procurou conhecer. Foi pelo thauma

(admiração) que ele começou a buscar o conhecimento, desvendar os mistérios da natureza e

compreender o mundo. Esta busca é uma tarefa bastante desafiadora, pois, nesse percurso, ele

encontra obstáculos, dificuldades que precisa ultrapassar.

O fato é que o homem sempre busca o conhecimento, seja de pessoas, seja de

acontecimentos, seja de objetos físicos. Está constantemente investigando o saber, a vida, os

sujeitos, os fenômenos e a realidade que o cerca. Aprendemos que, para conhecer algo, é

necessário estabelecer uma relação entre sujeito (alguém que deseja conhecer) e objeto

(elemento a ser conhecido). Hoje compreendemos que nessa relação não há mais a

necessidade de isolar o objeto a ser conhecido, pois, nas ciências do espírito, o sujeito está em

estreita relação com o objeto, ou seja, estão completamente imbricados. Por essa relação é que

há possibilidade de se chegar ao conhecimento.

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Mas o que é realmente o conhecimento? Esse é o questionamento de Sócrates a

Teeteto. Quando é que conhecemos algo? A partir de que momento, sei que conheço? Que

caminho devo percorrer para chegar ao conhecimento? Qual o papel do pesquisador nessa

busca? Com esses questionamentos, este trabalho possibilita uma discussão sobre as

concepções de currículo presentes nas práticas pedagógicas de professoras da pré-escola.

Antes, porém, faremos uma trajetória pelos caminhos percorridos para a construção do saber.

Etimologicamente, o termo “conhecer” deriva do latim cognoscere, que significa ter

noção, informação, saber. O Novo Dicionário Aurélio (2004) diz que conhecer é “ter noção,

informação de; saber; ser muito versado em; apreciar, julgar, avaliar; sentir, experimentar”.

Conhecer, então, é ter informação, é saber sobre determinado objeto ou fenômeno não só pela

observação, mas também pelo diálogo e pela vivência.

No diálogo de Platão denominado Teeteto, livro que busca investigar a teoria do

conhecimento como episteme, Sócrates instiga o seu interlocutor a responder em que consiste

o conhecimento, a que Teeteto responde: “Conhecimento é tudo que se aprende, desde a

geometria até a arte dos sapateiros” (PLATÃO, 2001, p. 45). Mas Sócrates não quer a

enumeração de uma variedade de conhecimento, e, sim, o que é o conhecimento em si

mesmo. Teeteto é instado por Sócrates a pensar, a refletir e a responder o que é o

conhecimento. A partir daí, inicia-se uma grande discussão sobre o saber.

Em cada época, cada filósofo, com a sua maneira de refletir e compreender o seu

contexto histórico-social, a sua realidade, busca conhecer. A princípio a mitologia grega é que

procurava explicar tudo o que acontecia no universo. Insatisfeitos com as explicações

mitológicas, os primeiros filósofos começaram a se questionar sobre a origem do cosmo, do

universo, daí o nome dessa filosofia ser cosmologia. Nesse momento não havia uma

preocupação direta com o conhecimento em si, mas em saber como surgiram o mundo, as

plantas, os animais, o universo, o homem. Ao questionar sobre a natureza e tudo que existe,

eles estavam procurando “conhecer algo”. Esses primeiros filósofos, denominados pré-

socráticos, contribuíram muito com a construção do conhecimento. Com eles, o homem deu

os primeiros passos na busca do saber sistematizado; não mais um saber fundado na

mitologia, na religião ou no senso comum.

Dessa forma, a teoria do conhecimento, ou a epistemologia, procura pesquisar as

origens, os fundamentos e o valor do conhecimento (episteme) de forma sistemática, isto é,

fora da mera opinião (doxa).

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Com o pensamento socrático, houve uma preocupação com o Homem não só com a

sua origem, de onde ele veio e para onde vai, mas com os aspectos da sua vida, as atitudes, os

valores. Até então, os denominados filósofos da natureza não se questionavam sobre o

conhecimento; eles indagavam sobre o surgimento do cosmo. Com Sócrates, começou a haver

uma preocupação com o conhecimento, com a virtude, a justiça, elementos que fazem parte da

personalidade e da essência do homem. Segundo esse filósofo, conhecer é passar da aparência

à essência, é ultrapassar o mundo ilusório e buscar a verdade. Embora considerado por toda a

humanidade como um grande sábio, Sócrates se considerava um não-sabedor, um ignorante.

Ele relacionava o conhecimento às dores do parto, quando há algo na alma que quer vir à luz.

Assim argumenta:

a arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro (PLATÃO, 2001, p. 47).

No seu diálogo com Teeteto, Sócrates diz que ainda está em estado de gravidez e com

dores de parto a respeito do conhecimento. Com o seu método denominado maiêutica,

Sócrates procurava tirar das pessoas a ideia que elas têm de algo, seja de justiça, do bem,

felicidade, amor etc. Segundo Cortella (2004, p. 72), “Sócrates buscava refletir sobre como

estabelecer verdades que pudessem ser válidas para todas as pessoas indistintamente”.

Platão (428 - 347 a.C), discípulo de Sócrates, também deixou a sua contribuição na

construção do conhecimento. Para aquele filósofo, os conhecimentos provindos de fora, do

mundo sensível, são ilusórios, aparências, concepção falsa da realidade, pois o conhecimento

verdadeiro provém da razão, das ideias. Essa concepção influenciou fortemente a educação

(concepção inatista de aprendizagem), pois muitos educadores acreditam, ainda hoje, na teoria

do dom, no destino pré-determinado, na ideia de que a criança já traz consigo ao nascer tudo

que ela sabe. Segundo essa visão, a escola influenciará muito pouco ou quase nada na

constituição desse sujeito.

Aristóteles (384-322 a. C.), por sua vez, defendeu que o conhecimento se baseia na

experiência sensível, isto é, decorre dos órgãos dos sentidos. Segundo esse filósofo, nosso

conhecimento vai sendo formado e enriquecido por acumulação das informações trazidas por

todos os sentidos. Assim, ele dizia que as verdades não estão no mundo das ideias, mas na

experiência que obtemos da realidade por meio dos órgãos dos sentidos. Essa concepção

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também marcou profundamente a escola e seus educadores, os quais passaram a acreditar que

o conhecimento do aluno é construído unicamente a partir da realidade externa, da

experiência; os aspectos biológicos são completamente desconsiderados. Falas como “o aluno

não sabe nada” estão presentes no cotidiano das escolas, seja de forma explícita, seja

implícita. Essas ideias são disseminadas a cada dia nas práticas educativas.

Na Idade Média, embora esse período da história tenha sido dominado pelo

cristianismo, o debate entre o pensamento de Platão (mundo das ideias) e o de Aristóteles

(mundo sensível) continuou nos dois principais filósofos/teólogos que melhor representaram

essa época: Santo Agostinho (354 - 430) e São Tomás de Aquino (1224 - 1274). O primeiro,

de origem platônica, via o conhecimento como iluminação divina. Dizia que o conhecimento

inteligível distingue-se do sensível, pois este é incerto, duvidoso. Para esse autor, aprender é

recordar o que já está dentro do indivíduo, e o que importa na formação humana é a

consciência moral, a profundeza espiritual, que ilumina a inteligência e nos faz reconhecer a

lei divina e a soberania de Deus. São Tomás de Aquino, por sua vez, recusou a teoria das

ideias inatas e afirmou que o raciocínio torna inteligíveis as imagens adquiridas pelos sentidos

e que o conhecimento verdadeiro parte da experiência. Para Aquino, a educação habitua o

educando a desabrochar todas as suas potencialidades e possibilita uma formação integral do

sujeito.

A dicotomia entre mundo das ideias e mundo sensível interfere diretamente na vida

das pessoas: umas são preparadas para pensar, e outras para executar tarefas. Essa discussão

levou, consequentemente, à cisão entre sujeito/objeto, corpo/alma, razão/emoção, influenciou

na construção do conhecimento no âmbito das ciências humanas e conduziu a humanidade ao

grande embate entre racionalismo e empirismo na Idade Moderna.

Ainda hoje, vemos esse embate entre muitos profissionais de educação quanto às

concepções inatista e ambientalista da aprendizagem. Pela concepção inatista, o aluno é visto

como um iluminado, aquele que recebeu a dádiva da inteligência, aquele que já nasceu com o

dom e se tornará aquilo que deverá ser, sem interferência dos contextos sociais e históricos.

Pela concepção ambientalista da aprendizagem, a criança é considerada como uma folha em

branco, aquela que chega à escola sem saber nada, em cuja cabecinha “vazia”, a escola é que

tem o papel de incutir o que ela deve ou não aprender. O conhecimento torna-se apenas a

inculcação da cultura das gerações mais velhas às gerações mais novas, sem muita ou

nenhuma relação com a realidade da criança. Essa dualidade inato versus adquirido perdurou

por muito tempo no contexto educacional se é que ainda não exista.

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Os racionalistas atribuem à razão humana a capacidade única de conhecer a Verdade.

Para se chegar ao conhecimento, essa verdade é a única autoridade. Descartes (1596-1650)

inaugura a “Filosofia do Cogito”, segundo a qual o conhecimento só pode ser considerado

verdadeiro se seguir o método e, só dessa forma, evitará o erro. O erro, por sua vez, resulta de

um mau uso da razão, de sua aplicação incorreta em nosso conhecimento de mundo.

Argumenta Descartes (1996, p. 14):

É verdade que, enquanto me limitei a considerar os costumes dos outros homens, quase nada encontrei que me desse segurança [...]. De forma que o maior proveito que disso tirava era que, vendo várias coisas que, embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas, não deixam de ser comumente aceitas e aprovadas por outros grandes povos, aprendia a não crer com muita firmeza em nada do que só me fora persuadido pelo exemplo e pelo costume; e assim desvencilhava-me pouco a pouco de muitos erros, que podem ofuscar nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão2.

Esse argumento deixa claras a supervalorização e a infalibilidade da razão. O

conhecimento só é verdadeiro se passar pela razão, pois só esta, segundo ele, é a fonte que

não contém erro. A realidade, as experiências cotidianas ofuscam a luz natural, isto é, o que o

sujeito já traz com ele.

Os empiristas, por sua vez, veem a construção do conhecimento de forma oposta aos

racionalistas. Para eles, todo conhecimento provém da experiência sensível. O próprio termo

empeiria significa o saber derivado da experiência sensível. Na visão de Locke (1632-1704),

as experiências são indispensáveis na constituição das ideias, não há ideias inatas; tudo que

conhecemos provém das percepções sensíveis. Para esse filósofo, a mente humana é como

uma “folha em branco”, que, com a experiência, vai sendo moldada, e a criança (o

bonequinho de cera), sendo desprovida de qualquer conhecimento, poderia ser moldada e

transformada no que quiséssemos.

Na construção do conhecimento, o debate entre empirismo e racionalismo continua.

Surgem então Kant e Hegel tentando resolver esse impasse histórico: inato ou adquirido,

razão ou experiência?

Immanuel Kant (1724 - 1804) tratou dos equívocos, tanto dos inatistas, por suporem

que os conteúdos são inatos, quanto dos empiristas, por pensarem que a estrutura da razão é

adquirida pela experiência.

2 Grifo nosso.

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Segundo Chauí (2003), o que Kant chama de inato é a estrutura da razão, que é vazia,

como se fosse uma forma pura sem conteúdos. Esta razão é universal, e todos os seres

humanos a possuem indistintamente. “A estrutura da razão é a priori (vem antes da

experiência e não depende dela)” (p. 77). Contudo, os conteúdos que conhecemos, esses, sim,

dependem da experiência. É o que Kant chama de a posteriori.

Assim, no discurso de Kant,

Nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam por ela. Será possível um conhecimento independente da experiência e das impressões dos sentidos? Tais conhecimentos são denominados “a priori”, e distintos dos empíricos, cuja origem é a “posteriori”, isto é, da experiência. Consideraremos, portanto, conhecimento “a priori”, todo aquele que seja adquirido independentemente de qualquer experiência. A ele se opõem os opostos aos empíricos, isto é, àqueles que só o são “a posteriori”, quer dizer, por meio da experiência (Versão eletrônica, p. 03).

Percebemos, portanto, que a construção do conhecimento em Kant acontece mediante

a tentativa de conciliar razão e sentidos. Ele sofre uma forte crítica de Hegel (1770-1831),

segundo o qual tanto os empiristas, quanto os racionalistas e o kantismo estavam todos

equivocados. Para Hegel, não há dicotomia entre empirismo e racionalismo, pois “tudo que é

real é racional, e tudo que é racional é real”. Para Hegel, a razão é histórica, o que não foi

compreendido por seus antecessores. Assim, afirma Chauí (2003), ao discutir sobre a

concepção hegeliana de conhecimento:

ao afirmar que a razão é histórica, Hegel não está, de modo algum, dizendo que a razão é algo relativo, que vale hoje e não vale amanhã, que serve aqui e não serve ali, que cada época não alcança verdades universais. Não. O que Hegel está dizendo é que a mudança, a transformação da razão e de seus conteúdos é obra racional da própria razão. A razão não está na História: ela é a História. A razão não está no tempo; ela é o tempo. Ela dá sentido ao tempo (p. 79-80).

Quando Hegel argumenta que a razão é histórica, ele está nos mostrando que a

harmonia entre o objetivo e subjetivo, entre a realidade e o sujeito do conhecimento, não é um

eterno, mas uma aquisição histórica da razão e uma conquista que se realiza no tempo.

Nesse embate histórico, no século XIX, surgiu, com o sociólogo Augusto Comte

(1798-1857), o positivismo, corrente filosófica que influenciou intimamente as ciências

humanas e objetivou validar o conhecimento científico, único capaz de proporcionar o

conhecimento da realidade. Segundo Comte, mediante um método adequado, poder-se-ia

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desvelar a realidade nas “ciências do espírito”. É preciso um maior aprofundamento, um

estudo mais científico da sociedade. De que forma se daria esse conhecimento? Que método

seria utilizado para construir o conhecimento nas ciências humanas?

A psicologia sofreu intensa influência do positivismo, cuja base para a pesquisa era o

fato externo e observável, isto é, o comportamento humano. Seu objetivo não mais seria o

psiquismo, como consciência, mas o comportamento. Por haver uma valorização maior do

método experimental, a psicologia passou a estudar (pesquisar) o comportamento, que é

observável, manipulável, enquanto o psiquismo, por ser algo muito subjetivo, seria impossível

de ser estudado cientificamente. Tanto a psicologia, como a sociologia e outras ciências

humanas só poderiam se firmar como ciência se utilizassem os procedimentos de análise

criados pelas ciências naturais. O positivismo seria a única via, única forma (método) de

construir o conhecimento verdadeiro. Para chegar ao conhecimento, os fatos precisariam ser

observáveis, quantificáveis, mensuráveis. O conceito de ciência estava centrado no viés de

dados quantificáveis, apenas.

Conforme essa visão, González Rey (2005) afirma que “dentro das ciências sociais se

manifesta um modelo quantitativo, empírico e descritivo o qual se caracteriza por um

positivismo ateórico”, assegura ainda que “[...] o positivismo que até hoje continua

dominando o imaginário da pesquisa cientifica ignorou tudo o que significa produção teórica,

ideias modelos e reflexões” (p. 01). Nessa perspectiva, surge a necessidade de abrir uma

discussão epistemológica para a construção de uma pesquisa científica.

Ainda por essa visão, o paradigma positivista

pressupõe uma distinção radical entre o sujeito e o objeto do conhecimento. O sujeito visa revelar as características próprias do objeto, utilizando, para isso, procedimentos metodológicos predominantemente do tipo estatístico-experimental, e conduzindo estratégias de investigação de orientação hipotético-dedutiva (SARMENTO, 2003, p. 141).

Vimos, assim, que o homem sempre esteve interessado em desvendar os mistérios da

vida. No afã de conquistar o conhecimento e o status de ciência, de como poderia ou não

conhecer, muitos se esqueceram do ser, do homem em si, do ser-no-mundo-com, da

sensibilidade, da cultura, da vida e passaram a adotar uma visão de homem como objeto

manipulável.

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1.2 FENOMENOLOGIA: UMA VISÃO DE VIDA

A crise paradigmática e as rupturas epistemológicas3 possibilitam mudanças na visão

de conhecimento. O ser humano, visto como sujeito social da e na história, constrói-se

dialeticamente por meio de relações, estabelecendo-se como sujeito. O conhecimento não

pode ser separado do meio sobre o qual o sujeito age.

A hermenêutica fenomenológica surgiu como uma necessidade de compreender a

existência humana, questionando criticamente o que é o ser, abrindo espaços para

questionamentos sobre o educar, o aprender, o compreender e o dialogar. Segundo Hermann

(2002, p.10), “a hermenêutica expôs essa abertura em toda a sua radicalidade, apontando a

história e a linguagem como elementos estruturadores de nosso acesso ao mundo e de nosso

aprendizado”.

Portanto, é necessário interpretar a realidade. À luz da hermenêutica, busca-se

compreender o real. Termos como compreensão e interpretação passaram a fazer parte dessa

nova visão de ciência, pois eles são parte da existência humana.

Filósofos como Dilthey (1833 – 1911) entendem que é preciso mudar a visão sobre as

ciências e propor uma abordagem para as “ciências do espírito” que, segundo ele, precisam

“abandonar a perspectiva reducionista e mecanicista das ciências naturais e encontrar uma

abordagem adequada à plenitude dos fenômenos” (PALMER, 1996, p.110). Para esse

filósofo, não há como compreender os fenômenos humanos com os mesmos métodos das

ciências naturais, pois “as ciências explicam a natureza, os estudos humanísticos

compreendem as manifestações da vida” (PALMER, 1996, 112). Há sempre um dilema entre

a interioridade (sensibilidade, subjetividade) e a cientificidade, (objetividade, neutralidade).

Dilthey (1986) procurava um método tão respeitável quanto o das ciências naturais. Assim,

ele acreditava que “compreender” é a palavra-chave para os estudos humanísticos, enquanto

“explicar” deveria ser empregada para as ciências naturais. Esse dilema compreender/explicar

vai perdurar por muito tempo na obra de Dilthey, que seria a sua aporia, termo que significa

“dúvida racional, isto é, dificuldade inerente a um raciocínio. Dificuldade efetiva de um

raciocínio ou da conclusão a que leva um raciocínio”. (ABBAGNANO, 2003, p. 75).

Compreender para Dilthey não significa apenas o entendimento racional de determinado

fenômeno; estende-se desde o balbucio da criança até obras de arte, como música, pintura etc.

3 Como, por exemplo, a ruptura com a racionalidade cartesiana, que não mais dava conta da realidade.

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Assim Dilthey (1986, p. 120) assevera que:

Compreender não se refere à compreensão de uma concepção racional, como, por exemplo, a de um problema matemático. O termo compreensão é reservado para designar a operação na qual a mente capta “a mente” de outra pessoa. Não é de modo algum uma operação puramente cognitiva da mente, é aquele momento muito especial em que a vida compreende a vida: Explicamos por meio de processos puramente intelectuais, mas compreendemos por meio da actividade combinada de todos os poderes mentais da apreensão.

Filósofos, como Husseal, Heidegger, entre outros, buscaram uma filosofia, um método

que desse conta de desvelar o ser humano em sua plenitude. A fenomenologia surgiu como

uma forma de interpretar a realidade humana, como uma maneira de compreender o Ser no

mundo, isto é, uma forma de ver o homem de maneira mais completa. Com a fenomenologia,

o sujeito “aprende a ser” e a “não ser4”. Trata-se da busca às coisas mesmas, só que não é uma

busca qualquer, mas uma busca de múltiplas vozes, isto é, uma busca polifônica, segundo o

professor Galeffi5. A fenomenologia é uma filosofia da vida. Não é apenas mais um método a

seguir dentro da filosofia, mas uma forma diferente de se ver, de ver o mundo, de ver o outro.

A dialética eu/outro e o diálogo são elementos fundamentais para a construção do sujeito e do

conhecimento. Assim, a raiz dessa construção é a vida em toda a sua complexidade, e não o

logos apenas, como muitos acreditavam e preconizavam.

Vimos anteriormente que a filosofia ocidental esteve preocupada com o modo como o

homem conhece: se pela razão, ou pelas sensações. Esse embate perdurou por um longo

período na história. Heidegger, com seus estudos, procurou investigar a questão do ser.

Segundo ele, a história do pensamento ocidental é a história do esquecimento do ser.

Segundo Galeffi (2000, p. 32), a fenomenologia é uma ciência da essência do

conhecimento. “Pode-se compreendê-la de fato como uma nova possibilidade capaz de

iluminar a abertura do projeto do ser-do-homem-no-mundo na abrangência do processo de

suas efetividades vividas”.

Assim, esse mesmo autor destaca que

4Aula proferida pelo professor Dante Galeffi em 22 de agosto de 2007. 5 Aula proferida pelo professor Dante Galeffi em 19 de setembro de 2007.

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a fenomenologia é um método para o próprio esclarecimento do ser humano na história. E isto significa que ela, além de ter que levar em conta o já instituído de forma ampla e criteriosa, deve também saber investigar as condições de possibilidade do ser que, independente das vontades alheias, permanece sendo o instituinte de todo o vir-a-ser, isto é, o sentido e a finalidade permanentemente presentes na própria ausência de acabamento do ser-do-homem-no-mundo (2000, p. 34).

Ademais, para entender ou trabalhar fenomenologicamente, é inevitável mergulhar em

si mesmo, isto é, fazer um mergulho egológico. Ver na imaginação o que não se vê no real.

Voltar-se para si mesmo e, a partir de si, investigar a constituição das coisas; compreender a si

e, a partir daí, compreender o outro e a realidade. Ter essa consciência é algo permanente, é

um eterno devir. Não é algo que se faz uma vez e acaba – “Pronto! Já estou agindo

fenomenologicamente” –, mas é um exercício constante na nossa vida cotidiana.

Edgar Morin (1998), filósofo francês, um dos principais expoentes da atualidade,

propõe um diálogo com base no pensamento complexo, segundo o qual, o ser humano, para

chegar ao conhecimento, precisa sacudir, desequilibrar, contextualizar e articular os saberes.

Se não existir contextualização, não existe conhecimento. Segundo esse mesmo autor, o saber

não pode estar isolado, pois, se estiver, deixa de ser pertinente. É preciso religar o todo às

partes, e vice-versa. Para tanto, faz-se necessária uma “reforma no pensamento”, isto é,

“recusar as concepções reducionistas de conhecimento” (p. 21), de educação, de ciência e se

abrir ao novo. Abrir para reaprender, rever, reavaliar, religar, repensar etc. Não basta apenas

isolar o sujeito de um lado e o objeto do outro, ou tomar distância, para se chegar ao

conhecimento científico.

De acordo com essa concepção, é preciso aproximação de pólos contraditórios

(objetividade/subjetividade, sujeito/objeto); é a relação dialógica e dialética na construção do

saber. O pensamento – por que não dizer? – heracliano confirma que a realidade é justamente

essa harmonia dos contrários (dia e noite, bom e mau, quente e frio). Tudo não cessa de se

transformar, um eterno vir-a-ser, um fluxo perpétuo de transformação. A educação e o

conhecimento são para Morin esse fluir permanente. Com essa visão, cientistas lutam por uma

ciência com o “rosto humano”, com uma prática científica que permita o diálogo com a

natureza, com os seres humanos, com os opostos.

Diante de tantas concepções e discussões sobre a construção do conhecimento na

história da humanidade, chegamos à conclusão de que conhecimento não é revelação, em que

tudo está pronto e determinado. Também não é uma mera descoberta, como uma capacidade

de poucos, dos gênios, por exemplo. O conhecimento é de fato uma construção dialética de

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cada sujeito. E isso se dá por meio das relações entre os sujeitos, da relação com a realidade

histórica por intermédio do diálogo, da linguagem. Com esses elementos, o ser humano não

somente expressa o mundo, mas também o cria e recria.

Como sujeito histórico-social que somos, refutamos a ideia de que tudo que é sensível

ou qualitativo é um meio para o erro, segundo a visão positivista, mas também não vemos o

sujeito como um ser vazio, desprovido de qualquer elemento. As condições culturais,

históricas e sociais não devem ser colocadas de lado na construção do conhecimento. Como

diz Freire (1996, p. 47), é preciso “saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar

as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”.

E o que estamos chamando de “conhecimento” não é apenas o conhecimento científico

– este tido como único verdadeiro –, mas todas as formas de expressão humana, como, por

exemplo, o Mito, a Filosofia, o Senso Comum, a Arte, a Teologia. Todos esses modos de

conhecer a realidade, com as suas especificidades (fé, crenças, razão, objetividade,

subjetividade, sensibilidade) devem ser respeitados e valorizados.

Assim, Morin (2003, p. 25) propõe que é preciso “romper com esta visão restrita do

mundo e aprender a religar, contextualizar e articular o conhecimento”, uma vez que o sujeito

também não é uma máquina, mas ser humano que ri e que chora, que vive na certeza e na

incerteza, na ordem e no caos. Embora estas contradições pareçam, no primeiro momento,

incompatíveis, é possível construir o conhecimento dentro desses opostos, dentro do uno e do

múltiplo, do singular e do plural. O construir perpassa justamente essa complexidade.

Nessa construção, o sujeito deve ser visto na sua totalidade, com sentimentos e

emoções, sujeito que chora e que ri; que se oculta e se desnuda para o mundo. A objetividade

apregoada pelo positivismo não dá conta da realidade em que estamos vivendo. O

conhecimento não deve ser algo pronto e acabado, estático, tampouco sobrenatural. Para se

chegar a essa construção que tanto desejamos, faz-se necessário ter consciência do

inacabamento, de que somos seres históricos e estamos em permanente construção. A

mudança precisa começar em nós, educadores.

É com este tipo de educação que se objetiva atualmente preparar as novas gerações

para conviver, partilhar e cooperar no seio das sociedades complexas, democráticas e

solidárias. Buscar, construir ou sociabilizar o conhecimento não deve ser um mero artifício

instrumental ou metodológico. Torna-se indispensável à discussão com teor filosófico, já que

não se pode aprender a pesquisar sem que fique definida a possibilidade de o homem poder

conhecer.

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1.3 O CAMINHO PERCORRIDO...

Tratamos neste capítulo do caminho percorrido, pois, para uma boa pesquisa, é

imprescindível o planejamento – um projeto, um método. Uma pesquisa é a investigação do

conhecimento, embora, durante muito tempo, tenha-se acreditado que só era considerado

conhecimento científico aquele que pudesse ser quantificável, manipulável, mensurável,

como, por exemplo, os objetos das ciências naturais e físicas ou, como alguns preferem

chamar, “ciências duras”. Daí, a dificuldade que as Ciências Humanas tiveram de se firmar,

pois o sujeito (ser humano) do conhecimento também é o objeto, e não há cisão entre eles.

Porém, essa concepção fragmentada de sociedade, de homem, de conhecimento foi se

modificando na história. Com a abordagem fenomenológica, que busca descrever,

compreender e interpretar os fenômenos que se apresentam à percepção, houve uma

valorização maior do conhecimento produzido pelas ciências humanas. A visão

fenomenológica preconiza que toda realidade percebida é humana, portanto sujeito e objeto

não podem estar separados, isolados. Nessa perspectiva, os “fenômenos” sociais, educacionais

passam a ser estudados, descritos, compreendidos e valorizados conforme pressupostos

teórico-epistemológicos.

André (1986, p. 02) assegura que,

para se realizar uma pesquisa, é preciso promover o confronto entre os dados, as evidências, as informações coletadas sobre determinado assunto e o conhecimento teórico acumulado a respeito dele. Em geral, isso se faz a partir do estudo de um problema, que ao mesmo tempo desperta o interesse dos pesquisadores e limita sua atividade de pesquisa a uma determinada porção do saber, a qual ele se compromete a construir naquele momento.

Segundo esse ponto de vista, o pesquisador não está isolado do mundo. Há uma

relação direta dele com o ambiente e a situação que está sendo investigada, e não há separação

entre sujeito e objeto, empiria e teoria. Na pesquisa qualitativa, propõe-se um método com

que se busca descrever a cultura, a realidade humana; não apenas constatar a realidade, mas

compreender os sentidos.

Assim, apresento neste trabalho um estudo sobre as concepções de currículo presentes

nas práticas pedagógicas do professor da pré-escola e sua influência na formação da

identidade sociocultural da criança, a partir de uma pesquisa do tipo etnográfica. Por que a

escolha por esse tipo de pesquisa? Entendo que uma pesquisa de caráter etnográfico

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possibilita a descrição das escolas estudadas compreendendo e respeitando a sua

singularidade.

Assim, para Lüdke e André (1986, p. 14),

A etnografia tem um sentido próprio, é a descrição de um sistema de significados de um determinado grupo. O uso da etnografia em educação deve envolver uma preocupação em pensar o ensino e a aprendizagem dentro de um contexto cultural amplo. Da mesma maneira, as pesquisas sobre a escola não devem se restringir ao que se passa no âmbito da escola, mas sim relacionar o que é aprendido dentro e fora da escola.

Geertz (1989) garante que a etnografia faz uma “descrição densa”, ao interpretar a

cultura. O etnógrafo penetra na realidade e busca desvendar e descrever o que é esta realidade.

Para ele, “o etnógrafo ‘inscreve o discurso social’: ele o anota. Ao fazê-lo, ele o transforma de

acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um

relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente” (p. 14).

O método etnográfico não tem um caráter apenas descritivo (da realidade, da cultura)

sem os fundamentos teóricos, como muitos acreditam. Existe imbricação entre o trabalho

teórico e a tarefa descritiva, até porque, em uma visão de pesquisa qualitativa, os fundamentos

teóricos são imprescindíveis para que se compreenda a realidade.

González Rey (2005, p. 3) propõe uma epistemologia qualitativa em que

O desenvolvimento de uma posição reflexiva, que nos permite fundamentar e interrogar os princípios metodológicos, identificando seus limites e possibilidades, coloca-nos de fato diante da necessidade de abrir uma discussão epistemológica que nos possibilite transitar, com consciência teórica, no interior dos limites e das contradições da pesquisa científica. É preciso romper com a consciência tranqüila e passiva com a qual muitos pesquisadores se orientam no campo da pesquisa, apoiados no princípio de que pesquisar é aplicar uma seqüência de instrumentos cuja informação se organiza, por sua vez, em uma série de procedimentos estatísticos sem precisar produzir uma só idéia.

Uma metodologia qualitativa requer, sem dúvida, discussão teórico-epistemológica,

para que não se caia na coisificação dos instrumentos, pois estes não falam por si só. Para esse

autor, a pesquisa qualitativa emergiu como meio de romper com o ponto de vista estreito e

opressivo do positivismo. Uma metodologia qualitativa implica debate, discussão, e não

apenas o uso de métodos rigorosos e sem reflexão sobre o que está sendo pesquisado.

É preciso entender a importância do método para a pesquisa, mas, também, entender a

necessidade de que seja flexível. Para Morin (2003, p. 21-22), “o método não é algo pronto e

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acabado em si mesmo, algo pré-determinado, mas algo que está em permanente construção e

reconstrução”. Utilizar um método não é seguir um receituário para construir algo, é seguir o

caminho passo a passo.

É nessa percepção de conhecimento, de pesquisa e de método que procurei investigar

as concepções de currículo presentes nas práticas pedagógicas realizadas na pré-escola da rede

pública municipal de Itapetinga e a sua influência na formação sociocultural do sujeito-criança.

Propus um trabalho que tem como suporte uma abordagem de pesquisa de natureza qualitativa,

por primar por uma interpretação da realidade, embora não estejamos nos opondo ao

positivismo, pois se assim o fizéssemos, estaríamos caindo nas velhas dicotomias já discutidas

anteriormente. Não podemos perder de vista que quantidade e qualidade estão complexamente

relacionadas, como salienta Minayo (1999, p.22): “o conjunto dos dados quantitativos e

qualitativos não se opõem, ao contrário, se complementam, pois a realidade abrangida por eles

interage dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia”. Ainda, para a autora, este tipo de

pesquisa trabalha com o universo de significados: o que o indivíduo pensa e acredita, suas

ações e reações, seus motivos e aspirações.

A abordagem escolhida possibilita uma ação reflexiva do investigador conforme uma

ressignificação dos dados e uma busca teórica constante para dar novo sentido ao que é

encontrado durante todo o processo de estudo.

Então o que é necessário para legitimar uma pesquisa científica segundo uma

abordagem qualitativa? Não há como mensurar, quantificar os fenômenos, pois estes são

analisados subjetivamente pelo pesquisador. Porém, subjetividade não é sinônimo de falta de

rigor científico. Como a pesquisa ganhará o status de ciência se os fenômenos forem

analisados de forma subjetiva? Deixará de ser ciência se analisado dessa forma? Eis alguns dos

muitos questionamentos feitos sobre a legitimidade da pesquisa qualitativa.

Aplicar determinados instrumentos e realizar a análise em uma perspectiva subjetiva

não significa abrir mão do rigor científico. O que há é uma mudança de método, isto é, usar

outro caminho para chegar à construção do conhecimento científico. Construir esse

conhecimento requer uma “consciência teórica”, e não apenas aplicar instrumentos e analisar

os dados sem qualquer rigor. Assim, falar de metodologia qualitativa implica um debate

teórico-epistemológico.

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1.4 CAMPO, SUJEITOS E INSTRUMENTOS

A presente pesquisa empírica ocorreu em Itapetinga, município localizado na região

Sudoeste da Bahia, que possui uma área 1.615 Km2 e fica a aproximadamente 571 km da

capital baiana e a 100 km da cidade de Vitória da Conquista. Sua população é de 61.212

habitantes, segundo dados do IBGE de 2006. A denominada Capital da Pecuária hoje conta

com algumas indústrias (Azaléia, Valedourado e Frigorífico Bertin), as quais diversificaram a

economia6 do município e contribuíram com o seu desenvolvimento. Também o campus da

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) aí localizado tem concorrido para o

crescimento do município.

Selecionei para a pesquisa de campo as escolas Memórias de Emília e Reinações de

Narizinho, as quais atendem crianças de quatro a seis anos de idade, por duas razões: por

ofertarem especificamente curso de educação infantil e por estarem localizadas em dois

extremos da cidade – uma em um bairro central e a outra em um bairro periférico – o que me

motivou a observar este contraste. Esses nomes foram escolhidos por mim como uma

referência às obras de Lobato, utilizadas neste trabalho, que retratam uma concepção de

infância e criança embasada no respeito e valor por essa etapa da vida do sujeito. Uma criança

que fala, discute, tem ideia e tem infância.

Constituíram-se sujeitos participantes do processo de investigação seis professoras de

duas instituições pré-escolares (três professoras de cada instituição), que atuam no quadro da

rede municipal de ensino de Itapetinga. Da Escola Memórias de Emília, foram selecionadas as

professoras Sônia, que cursa Formação de Professor em Serviço, trabalha na educação infantil

há dois anos e atende crianças de cinco anos de idade (Pré II); Alessandra, que cursa o IV

Semestre de Pedagogia na UESB, sendo o primeiro ano que trabalha com a educação infantil,

com crianças de quatro anos de idade (Pré I); e Teresinha, pedagoga, que trabalha há sete anos

com a educação infantil, com crianças na faixa etária de quatro anos. Da Escola Reinações de

Narizinho7, selecionei as professoras Regina, que cursa Formação de Professor em Serviço e

trabalha com crianças pequenas há vinte anos (crianças com cinco anos de idade); Fúlvia, que

cursa Formação de Magistério, há quinze anos trabalha com a educação infantil e atua em uma

turma com crianças de quatro anos; e Ivani, que cursa o VII Semestre de Pedagogia na UESB e

trabalha há cinco anos na educação infantil (as crianças têm cinco anos de idade). Embora

6 Dados retirados do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Itapetinga. 7 Nomes fictícios já justificados na Introdução.

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tenhamos feito observações sobre o tempo de atuação das professoras na educação pré-escolar,

esse fato não caracteriza diferenças na qualidade do trabalho docente por elas realizado.

Para investigar as concepções de currículo presentes nas práticas pedagógicas das

professoras da pré-escola e como este currículo tem influenciado na formação dos sujeitos,

utilizei instrumentos que considerei imprescindíveis para produção dos dados, tais como:

observação das atividades no cotidiano escolar das turmas de pré-escola e utilização do diário

de campo para as anotações do que foi observado; entrevista semiestruturada realizada com as

professoras das respectivas turmas; grupo focal para discussão da temática de forma mais

aberta e análise do Projeto Político-Pedagógico das Escolas e da Proposta Curricular

Municipal para a Educação Infantil.

Os instrumentos foram utilizados da forma mais dinâmica, criativa e reflexiva possível,

pois eles por si só não têm efeito algum para o desenvolvimento de uma pesquisa, como afirma

González Rey (2005, p. 42-43): “o instrumento é uma ferramenta interativa, não uma via

objetiva geradora de resultados capazes de refletir diretamente a natureza do estudado

independente do pesquisador (...). O instrumento representa apenas o meio pelo qual vamos

provocar a expressão do outro sujeito”.

O primeiro instrumento a ser utilizado foi a Observação, por considerá-lo de extrema

importância na compreensão da realidade (cultura) pesquisada. Na observação, há o

envolvimento mais direto do investigador com o ambiente a ser pesquisado. Em nosso dia-a-

dia, estamos constantemente em observância, seja de pessoas que estão próximas, de

determinadas situações seja, até mesmo, de comportamentos. Só que esta não é uma

observação qualquer. Não é um olhar qualquer, mas um olhar que constata, vê. Há um

objetivo, uma sistematização de condutas e procedimentos e de focalização no objeto de

pesquisa.

Com a observação, o pesquisador tem a possibilidade de descrever e analisar o que se

passa no interior da escola. Não é uma mera descrição dos fatos, daquilo que interessa ao

pesquisador, mas uma “descrição densa”, uma descrição do dito e não dito, do visto e não

visto, uma descrição que não foge à interpretação e reflexão do observado. Na observação, há

envolvimento do pesquisador com o ambiente pesquisado, um inter-relacionamento com os

sujeitos, a cultura, os valores, as crenças etc.

Segundo Tura (2003, p. 190), “a descrição densa é o esforço de articulação entre fatos,

o envolvimento na lógica de sua organização, o decifrar dos aspectos obscuros, o buscar pistas

para desvendar certos mistérios – tudo isso exige interpretação e reinterpretação do

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pesquisador”. Assim levanto alguns questionamentos: o que quero perceber com a observação?

O que e como observar? O que devo priorizar na observação? Quanto tempo deve durar a

observação?

Essas angústias foram sendo respondidas no decorrer da pesquisa, pois não existe uma

fórmula a seguir. Entendo que o contato pessoal com o fenômeno pesquisado e a

fundamentação prévia do pesquisador darão o suporte necessário para que os questionamentos

e as inquietações sejam respondidos, ou não.

Assim, nos meses de maio a julho de 2008, aconteceram as observações nas seis salas

de aula da pré-escola: três turmas que atendem crianças de quatro anos, denominadas Pré I, e

três turmas que atendem crianças de cinco anos, denominadas Pré II. Foram cinco observações

em cada sala de aula, totalizando trinta observações.

De imediato, percebi que as professoras ficavam inseguras e agitadas com a minha

presença até mesmo pela inquietação das crianças. Com o passar dos dias, esse comportamento

foi se modificando. De início, expliquei o tema do meu estudo, os meus objetivos e falei da

observação que faria às aulas durante certo período. Não especifiquei as datas; disse apenas

que, como estava observando duas escolas, poderia comparecer em qualquer dia da semana.

Assim, alternava tanto os dias como os turnos. Procurei não fazer anotações na frente das

professoras para que elas não se sentissem constrangidas e também porque buscava interagir

com as crianças e a professora. Diante disso não foi utilizado o diário de campo. Assim, ao sair

da escola fazia as anotações do que havia ocorrido, as quais muito contribuíram para o próprio

processo da pesquisa e para a análise dos dados. Foram anotadas e descritas não só falas, mas

também percepções, comentários, ansiedades e angústias, tanto das professoras, quanto das

próprias crianças.

As Entrevistas Semiestruturadas com gravação em áudio, outro instrumento utilizado

na pesquisa, foram posteriormente transcritas na íntegra e tornaram possível uma melhor

compreensão da realidade de estudo, pois, segundo Lüdke (1986), por ser um instrumento mais

flexível, a entrevista permite o aprofundamento das informações.

Macedo (2006) argumenta que a entrevista “com uma estrutura aberta e flexível pode

começar numa situação de total imprevisibilidade, em meio a uma observação ou em contatos

fortuitos com os participantes. Pode estruturar-se no desenrolar das interações” (p. 102). Foi

nessa perspectiva que conduzi as entrevistas. Não como uma “camisa de força” seguindo um

roteiro, mas de forma dialógica com o entrevistado.

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No momento da entrevista, perguntei se poderia utilizar o gravador, pois ficaria muito

difícil escrever enquanto elas falavam. Só uma, das seis professoras entrevistadas, manifestou

um pouco de constrangimento diante do gravador, mas, depois que começou a falar, “se

desligou” completamente de que havia um gravador e “se soltou”. As professoras foram

contatadas antecipadamente sobre a possibilidade de participar da entrevista e se colocaram à

disposição.

Nos dias 22 a 29 de julho de 2008, no final das observações, aconteceram as

entrevistas, exceto com a professora Fúlvia, que, por ter entrado de licença por motivos de

doença em família, só foi entrevistada quase três meses depois. O interessante é que eu já

havia desistido, mas como a professora se prontificou, e eu não havia terminado de analisar os

dados, decidi fazer a entrevista com ela, o que muito contribuiu para o desenvolvimento do

trabalho em foco.

Outra fonte utilizada para coletar os dados da pesquisa foi a Análise Documental, isto

é, a análise da Proposta Curricular do Município e dos Projetos Político-Pedagógicos das

escolas selecionadas. Esses documentos deram um grande suporte para a análise das

concepções de criança e de currículo neles implícita ou explicitamente presentes. Escolhi esse

instrumento, a Análise Documental, por considerar que não há como identificar as concepções

de currículo presente nas práticas pedagógicas da escola sem analisar os documentos que

tratam do currículo da educação infantil, ou seja, o que a escola programou para trabalhar, o

quê e como de fato tem trabalhado e a consonância da sua proposta pedagógica com as

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e os Referenciais Curriculares

Nacionais para a Educação Infantil.

Em virtude de algumas questões, como concepções de infância e de currículo, não

terem ficado claras nas entrevistas, propus o Grupo Focal como outra forma de recolher mais

informações sobre o problema do projeto, além de complementar as informações já obtidas nas

entrevistas. Esse instrumento possibilitou interações, partilhas e trocas de experiências entre as

pessoas envolvidas. “A pesquisa com grupos focais tem por objetivo captar, a partir das trocas

realizadas no grupo, conceitos, sentimentos, atitudes, crenças, experiências e reações, de um

modo que não seria possível com outros métodos” (MORGAN E KRUEGER apud GATTI,

2005, p. 09).

Assim, no dia 1º de agosto (sexta-feira) de 2008 às 15h30min no Módulo

Administrativo da UESB, aconteceu o encontro do Grupo Focal, com a participação de todas

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as professoras entrevistadas (seis no total) e mais uma colega (minha convidada), que ficou

responsável pela administração do gravador.

Quando cheguei ao local marcado, duas professoras já se faziam presentes e, logo

depois, chegaram mais duas. Como já havia passado meia hora do horário marcado e as

pessoas presentes estavam ansiosas por terem outras atividades, resolvemos começar. Assim

que me apresentei e comecei a falar sobre o significado de grupo focal, chegaram as duas

professoras que estavam faltando. Apresentei os membros do grupo, já que eram professoras

de escolas diferentes. Explicitei o objetivo do encontro e o porquê da escolha das

participantes, o que se justificava pelo fato de terem sido selecionadas para as observações em

sala de aula e as entrevistas, então o grupo focal seria mais um instrumento utilizado com os

mesmos sujeitos.

Perguntei se poderia gravar em áudio com o argumento de que seria impossível copiar

as falas e prestar atenção às discussões, ao que responderam que não haveria problema.

Utilizei dois gravadores, um em cada extremo do grupo, para captar todas as falas. Informei

sobre o sigilo dos registros e identidade das participantes. Esclareci que todas deveriam se

sentir livres para compartilhar seus pontos de vista, mesmo que houvesse divergências e que

se tratava de um diálogo.

No primeiro momento, solicitei que cada participante fizesse um comentário geral

sobre infância e currículo. Propus que, se quisessem, poderiam fazer anotações pessoais antes

de se posicionarem diante do grupo. Todas estavam meio apreensivas. Um momento de total

silêncio pairou no ambiente, mas logo uma professora começou a falar sobre a sua concepção

de currículo e, em seguida, as outras entraram na discussão. A professora Teresinha8 queria

falar o tempo todo, prolongando-se no discurso. A partir daí fiz uma observação sobre a

importância do respeito à fala dos outros membros do grupo.

A coleta e interpretação dos dados obtidos puderam dar conta dos fenômenos existentes

na escola. As técnicas utilizadas asseguraram a consistência teórica do método, possibilitando

que o “não dito” fosse revelado, o que me esclareceu em parte o que estava oculto no

currículo, o que estava por trás das práticas pedagógicas das professoras.

A análise das observações, descrições e reflexões anotadas no diário de campo e a

análise das entrevistas e do grupo focal foram agrupadas em categorias de acordo com

proximidades e semelhanças apresentadas, o que permitiu compreender a concepção que as

professoras têm sobre currículo e a manifestação dessa concepção na prática pedagógica.

8 Nome fictício já explicado anteriormente.

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Assim foi possível identificar o currículo e analisar a sua influência na construção do

conhecimento e na formação sociocultural da criança.

Os documentos produzidos durante a pesquisa juntamente com os referenciais teóricos

utilizados possibilitaram a consonância entre as expressões dos sujeitos da pesquisa e as

reflexões do investigador.

Esse foi o caminho que percorri para chegar a este trabalho, para construir esse

conhecimento. No Capítulo II, discuto a compreensão de infância e de educação infantil

segundo os fundamentos histórico, filosófico, literário e legal, relacionando-os à prática

pedagógica da pré-escola.

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CAPÍTULO II – INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL: ASPECTOS HISTÓRICO,

FILOSÓFICO, LITERÁRIO E LEGAL

Felicidade é a gente poder olhar para trás e encontrar

esse vago mundo em “sol menor” que se chama infância.

Adivinhação da vida. Bem sei que, com muita gente,

acontece essa coisa estranha: torna-se adulto sem ter sido criança.

Ou, o que é pior: ter sido criança sem ter tido infância.

A infância, para mim, não é apenas e simplesmente uma idade,

mas justamente aquele mundo de pequeninas coisas que

tornam inconfundível na lembrança um tempo de alegria,

um tempo em que conhecemos a felicidade

sem ao menos nos apercebermos dela. JG de Araújo Jorge

2.1 INTRODUÇÃO

Abordo neste capítulo a compreensão de infância segundo as perspectivas histórica,

filosófica, literária e legal. Começo por fazer algumas indagações, quais sejam: o que é

infância? O que é ser criança? Que compreensão, temos de infância? Infância e criança

significam a mesma coisa? Como os filósofos clássicos9 e medievais compreendiam a

infância? Como a criança é vista na literatura infantil? Que compreensão temos da infância

hoje? Mudou alguma coisa, ou tudo permanece como antigamente?

Não tenho respostas para todos esses questionamentos, mas quero discutir um pouco a

compreensão de infância em alguns momentos da filosofia, da história e das políticas públicas

de educação e de atendimento à educação infantil.

Não pretendo trazer aqui o pensamento de todos os filósofos da Antiguidade e da

Idade Média, sobre o que pensaram e escreveram em relação à criança. Na filosofia clássica,

Platão é o que representa melhor o pensamento grego por ter sido o filósofo que sistematizou

o pensamento de Sócrates, e é em seu diálogo, A República, que encontramos referência à

criança. Santo Agostinho foi selecionado por ser o primeiro filósofo do período medieval e,

sendo de origem platônica, traz uma visão de infância bem característica do período medieval.

Posteriormente, traçarei um diálogo sobre a compreensão de infância, com base no

pensamento de dois escritores franceses – Rousseau e Saint-Exupéry – e do brasileiro

Monteiro Lobato. Rousseau, por ter sido um marco na descoberta do sentimento de infância

9 Denomina-se Filosofia Clássica o período que vai de Sócrates a Aristóteles.

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no período da Renascença, pois, até então, não existia esse sentimento e também por sua obra

ser caracterizada como um romance que aborda a educação de uma criança – Emílio. Saint-

Exupéry, com a obra O Pequeno Príncipe, por ter representado a criança como indivíduo

inteligente e capaz e por ter feito crítica à concepção que as “pessoas grandes” têm de criança.

Monteiro Lobato, por ser considerado um marco na literatura brasileira para a infância e por

sua compreensão diferenciada de infância em relação ao paradigma existente, Emília,

representa bem essa infância caracterizada por Lobato.

A opção por Monteiro Lobato se deu também em razão de um debate que ocorreu nas

aulas da disciplina “Compreensão e Práxis Pedagógica”, quando a professora e minha

orientadora Tourinho teceu comentários sobre a importância das obras de Lobato na

valorização da infância10. Em discussão com um colega de trabalho, ele também enfatizou a

relevância da obra desse autor. Li alguns livros, refleti sobre a temática e percebi que seria

interessante trazê-lo para discussão.

Percebi, então, que poderia estabelecer um diálogo entre O Pequeno Príncipe

(personagem de Saint-Exupéry), Emílio (personagem de Rousseau) e Emilia (personagem de

Lobato) e, posteriormente, fazer uma conexão entre a concepção de infância trazida por esses

autores e a práxis pedagógica; refletir sobre o significado, a compreensão e a relação da

infância nesses contextos literários e, por fim, discutir o surgimento do sentimento de infância

e de educação infantil no cenário brasileiro.

É sabido que durante muito tempo não houve o reconhecimento do sentimento de

infância11. A criança se misturava aos adultos e aprendia o ofício deles. Não existia a mínima

valorização da criança, muito menos de suas particularidades, até porque não havia infância.

Se basearmos o nosso pensamento na própria etimologia do termo infância, de origem

latina, vemos que ele é formado do prefixo “in” (negação) e do radical “fans” (falante)12.

Infância, então, significa “aquele que não fala”. Assim, durante muito tempo na história da

humanidade, a criança foi vista como aquele sujeito que não fala, tampouco é ouvido. Não

queremos trazer à discussão um ser que não fala, mas um ser que não só fala, como pensa,

sente e vive. Um ser de direitos, que não precisa que alguém fale o tempo todo por ele, mas

que o ouça.

Não quero falar também de uma concepção naturalizada de criança, isto é, como

aquele ser que só traz características inatas, que são universais e que, em todos os países e

10 Discussão da sala de aula na Disciplina Compreensão e Práxis Pedagógica em 14/07/2008. 11 Compreendido como o que distingue a criança do adulto, com respeito à particularidade infantil. 12 Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa Nova Fronteira.

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lugares, são iguais, “uma etapa pré-fixada de amadurecimento que toda criança apenas repete”

(ARROYO, 2008, p. 121), mas de um ser histórico e social com características identitárias

distintas.

A infância é uma construção social, e não algo inato e universal. Como afirma

Sarmento (2001, p.13), “a verdade é que, se houve sempre crianças, não houve sempre

infância. A consideração das crianças como um grupo etário próprio, com necessidades e

direitos genuínos, é muito recente, é mesmo um projeto inacabado da modernidade”.

As crianças sempre existiram, sempre nasceram, continuam nascendo e sempre

nascerão, porém a ideia de infância, como se pode concluir, não existiu sempre nem da

mesma maneira. Ao contrário, ela aparece com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na

medida em que mudaram a inserção e o papel da criança na comunidade. É com essa

compreensão que tentarei traçar uma visão panorâmica da construção infância na história.

Compreender a infância não é tarefa fácil. Ora a criança é vista como um adulto em

tamanho menor, ora como um projeto de adulto, ora como um “futuro” cidadão. É preciso

compreendê-la nos seus aspectos de criança, respeitando a “natureza infantil”13. A criança,

como sujeito de sua história e também produtora de cultura, expressa o ser social que é, e não

um ser abstrato e universal.

2.2 A INFÂNCIA: UMA COMPREENSÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA

Observamos que, na história da filosofia, a criança não tinha um lugar. Embora traga

aqui uma discussão do pensamento platônico sobre criança, é importante lembrar que Platão

não escreveu uma obra específica para as crianças ou para a sua educação. Infância, criança

não eram temas de discussão desse filósofo. Em vários de seus diálogos, vimos discussões

sobre justiça, amor, conhecimento, dever etc. As poucas referências em relação à infância ou

à educação estavam relacionadas com o projeto da cidade idealizada – a polis.

Na obra A República, Platão (428/27–347 a.C.), em diálogo com Sócrates, Glauco,

Polemarco, Adimanto etc., não discute especificamente a respeito de criança / infância. Fala

sobre a construção de uma cidade. Nessa obra é manifestada uma preocupação com a

constituição da Polis, como se construiria essa cidade idealizada por Sócrates. O que se

discute é o conceito de justiça. O que era justiça, qual a sua essência? O que era ser injusto ou

13 Esta natureza infantil não é compreendida pela visão naturalista ou romântica de criança, em que a pré-escola é um jardim, as crianças são as flores ou sementes, e a professora é a jardineira (KRAMER, 1998).

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justo? Nessa discussão, eles começam a ponderar como seria uma cidade com governantes

justos. Para pensar em uma cidade justa, uma polis com guardião justo, era preciso pensar a

educação das crianças. Não era uma preocupação com a criança em si, com as características

próprias de infância, mas uma preocupação política, isto é, com o cidadão que governaria a

cidade. Quando procuramos a criança nesses estudos, a encontramos como uma preparação

para atuar na polis, na cidade. Como se daria a formação dos guardiões dessa cidade? Esse era

o questionamento de Sócrates a Glauco. O que seria necessário para educar essas crianças de

modo que elas se tornassem bons guardiões da Polis? Como estaria sendo “moldada” a

natureza da criança para esse projeto político?

Esses questionamentos possibilitariam traçar um currículo para a educação das

crianças, pois, segundo Platão (2005), Sócrates afirmava que, se quisesse ser “um perfeito

guardião da cidade”, teria que ser “por natureza filósofo, fogoso, rápido e forte” (p. 55).

Notamos, assim, que pensar o cuidado e a educação para com a criança era pensar no

guardião para a polis. A visão platônica de infância e de educação tinha uma intencionalidade

política. Se nos nossos dias vemos ainda a criança como aquele futuro cidadão, aquele que

precisa de formação para se tornar o cidadão de amanhã, para melhorar a sociedade, entre os

filósofos daquela época, pensava-se na educação da criança também como uma preparação

para atuar na sociedade. Assim argumentava Sócrates: “Mas de que maneira é que se hão de

criar e educar estes homens? E, porventura, avançaremos, se examinarmos a questão, na

descoberta do motivo de todas as nossas indagações14 – a maneira como a justiça e a injustiça

se originam na cidade? [...] Que educação há de ser?” (PLATÃO, 2005, p. 55).

Sócrates propõe que a educação para as crianças seja uma educação semelhante à

educação grega, em que a música é para a alma o que a ginástica é para o corpo. A partir da

música seriam incluídas as literaturas, porém não era qualquer mito que se deveria contar às

crianças. Segundo Sócrates, a criança não poderia ouvir qualquer espécie de fábula, pois as

marcas que a criança recebe nesse período, na mais tenra idade, são imodificáveis e

incorrigíveis. Assim, não se deve contar

14 Essas indagações eram sobre a justiça. Como se daria essa cidade justa que eles almejavam (observações nossas).

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que os deuses lutam com os deuses, que conspiram e combatem – pois nada disso é verdade -, se queremos que os futuros guardiões da nossa cidade considerem uma grande vileza o odiarem-se uns aos outros por pouca coisa. Não se deve contar lutas de gigantes e outras inimizades múltiplas e variadas de deuses e heróis [...] que Hera foi algemada pelo filho, e Hefestos projetado a distancia pelo pai, quando queria acudir à mãe, a quem aquele estava a bater, e que houve combates de deuses, [...] É que quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que o não é. Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indelével e inalterável. Por causa disso, talvez, é que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histórias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possível, orientadas no sentido da virtude (PLATÃO, 2005, p. 57).

Era preciso haver uma seleção dos melhores textos e influenciar mães e amas a contá-

los às crianças e, dessa maneira, moldar as suas almas por meio das fábulas e dos mitos, pois

era necessário ter mais cuidado com a alma do que com os corpos.

Dizia ainda Sócrates: “Haveremos de consentir sem mais que as crianças escutem

fábulas fabricadas ao acaso por quem calhar, e recolham na sua alma opiniões na sua maior

parte contrárias as que, quando crescerem, entendam que deverão ter?” (idem, 2005, p.56).

Por esses argumentos apresentados por Sócrates e seus interlocutores em A República,

vemos que a inquietação em relação à educação das crianças não era pelas crianças em si,

pelo que elas eram, mas pelo que poderiam vir-a-ser. Para tanto, fazia-se necessário moldar a

natureza da criança, tornando-a “boa”. A educação tinha o papel de corrigir, melhorar uma má

natureza, adequando-a para uma cidade justa.

Kohan, em seu artigo intitulado Infância e Educação em Platão, discute a criança

numa perspectiva platônica e argumenta que, para Platão,

as crianças são seres impetuosos, incapazes de ficarem quietas com o corpo e com a voz, sempre pulando, gritando na desordem, sem o ritmo e a harmonia próprios do homem adulto [...] As crianças, sem seus preceptores, são como os escravos sem seus donos, um rebanho que não pode subsistir sem seus pastores. Não devem ser deixadas livres até que seja cultivado “o que neles tem de melhor” (PLATÃO apud KOHAN 2003, p. 07).

A percepção de infância, de fato, não havia nesse período da história. Os escritos de

Platão deixam clara a inexistência dessa fase da vida do ser humano. Não é de se estranhar

que, ainda hoje, as crianças sejam tratadas com tamanha indiferença. Trata-se de uma

construção histórica. A criança não era nada, mas poderia ser um grande “cidadão”. A

preocupação com a formação moral, a bondade e a justiça era em razão da cidade idealizada.

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Hoje muitas pessoas em nossa sociedade veem que educar as crianças pequenas é promover

transformações sociais e salvação de uma sociedade degradada.

O filósofo que escolhemos para representar a Idade Média é Aurelius Augustinus ou

Santo Agostinho (354 - 430 d.C.), por ser o primeiro filósofo-teólogo do período medieval,

além de ser de origem platônica. Os filósofos-teólogos desejavam encontrar uma doutrina que

conciliasse religião e racionalidade, verdade revelada e conhecimento adquirido. Nessa visão,

Agostinho criou a Teoria da Iluminação Divina, segundo a qual, a inteligência humana não

pode funcionar senão pela ação iluminadora e imediata de Deus e não pode encontrar a

certeza do seu conhecimento fora das regras eternas e imutáveis da ciência divina. Nessa

perspectiva, as ideias são os pensamentos de Deus. A Doutrina da Reminiscência15 de Platão

passa a ser para Agostinho a Teoria da Iluminação Divina por meio da qual ele questiona a

mente humana, indagando como pode a mente mutável e falível atingir uma verdade eterna

com certeza infalível sem uma iluminação divina.

E a criança para esse filósofo? Para Santo Agostinho16, a criança apresenta uma

natureza corrompida, e a educação tem a obrigação de discipliná-la. O homem, desde a

infância, possui inclinação para o mal, mas com um esforço consciente teria possibilidade de

se livrar do pecado original. O decisivo na formação da criança é, portanto, a consciência

moral, pois ela já se encontra corrompida desde o nascimento. Segundo essa perspectiva, por

não falar, isto é, não possuir linguagem, a criança é desprovida de razão, ao contrário dos

adultos, que possuem o reflexo da condição divina.

Assim, o objetivo maior da educação para Santo Agostinho é a salvação da alma.

Todas as áreas do conhecimento, isto é, as matérias, tais como: literatura, retórica, lógica,

aritmética e os exercícios físicos deveriam ser vistos como um meio, cuja finalidade seria o

aprimoramento da cultura religiosa e, para alcançá-la, o educador deveria utilizar todos os

recursos que lhe fossem disponíveis, até mesmo os castigos físicos, contanto que moldassem a

natureza pecaminosa da criança. É uma educação voltada para o disciplinamento, para o

desvio do mal.

15 É também denominada de Anamnese (recordação) – imortalidade da alma – conhecer seria recordar. Começa aqui a concepção inatista do conhecimento. O conhecimento inato serve de ponto de partida para todo o processo de conhecimento. 16 Estudo feito em diversos livros de história da filosofia tais como: MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997; PENHA, João da. Períodos filosóficos. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1998; ROSSI, Roberto. Introdução à Filosofia: história e sistemas. Tradução Aldo Vannuchi. São Paulo Edições Loyola, 1996.

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Ainda falando da criança do período medieval, o historiador francês Philippe Ariès

(1981, p. 30-40) fez um retrato da infância, por meio de exames de pinturas, antigos diários de

famílias, testamentos, igrejas e túmulos a fim de mostrar a evolução e as mudanças de

atitudes, ao longo dos séculos, em relação à criança e à família. Ele relata a transformação dos

sentimentos da infância (consciência da particularidade infantil) em concomitância com as

transformações que vão se operando no entendimento de família, sobretudo a partir da

modernidade.

Segundo esse autor, no período medieval, não havia um sentimento de infância.

Acriança era caracterizada como homens ou mulheres em tamanho reduzido, os corpos eram

pequenos, porém as expressões e as vestes eram de adulto. “A criança não despertava nenhum

interesse, pois esse período era logo ultrapassado e a lembrança era logo perdida” (idem,

1981, p. 52).

A criança era vista como engraçadinha, como um bichinho de estimação que divertia

os adultos. Se, por um lado, era paparicada como se fosse uma coisinha engraçada, por outro,

havia uma preocupação com a disciplina e moralização como vimos na percepção de

Agostinho. Segundo Ariès, só se começa a introduzir a criança na pintura, a partir da

representação do menino Jesus (infância religiosa).

No final da Idade Média começa a se perceber a importância da escola para

“disciplinar” o infante, mas ainda havia uma distinção entre as classes e entre homem e

mulher. Mesmo havendo essa preocupação com a escolarização, as crianças continuavam a

entrar no mundo dos adultos muito cedo, pois a fase de dependência precisava ser logo

ultrapassada, para que elas se tornassem produtivas e úteis na sua comunidade.

A mudança da sociedade feudal para a urbano-industrial, as grandes revoluções

daquele momento histórico, a nova concepção de homem (humanismo) e de mundo,

características estas que marcam a Renascença – século XV –, fizeram surgir também uma

nova era na história da educação, da família e também da infância. A sociedade burguesa

começou a perceber que a criança é “alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada

para o futuro” (KRAMER, 2006, p. 19).

Assim, observamos que a compreensão de infância vai se modificando de acordo com

o momento histórico e contexto, cujos filósofos e teóricos, preocupados com a situação da

criança, questionam sobre a importância dessa fase da vida do ser humano. Com o projeto

iluminista, especialmente a partir da obra Emílio ou Da Educação, inaugura-se uma nova

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história da infância e da educação. Rousseau introduziu a concepção de que a criança é um ser

com características próprias e distintas dos adultos e que precisa ser respeitada.

Teceremos uma discussão sobre a compreensão de infância à luz dos ideais de

Rousseau, que, no século XVIII, possibilitou a descoberta do sentimento de infância,

relacionando-os com a obra O Pequeno Príncipe de Saint- Exupéry e algumas das obras

(Literaturas Infantil) de Monteiro Lobato, as quais deram suporte para uma nova compreensão

de infância.

2.3 A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA: UM DIÁLOGO ENTRE O PEQUENO

PRÍNCIPE, EMÍLIO E EMÍLIA.

O Pequeno Príncipe

Quem foi Saint-Exupéry? O que há no livro O Pequeno Príncipe que demonstre uma

compreensão de infância? Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry

(1900 - 1944) foi piloto da Segunda Guerra Mundial, além de escritor. Foi ele mesmo o

ilustrador de sua obra O Pequeno Príncipe. Exilado nos Estados Unidos, publicou a primeira

edição desse livro um ano antes de sua morte.

Saint-Exupéry começa sua história falando que, quando tinha seis anos, viu num livro

uma jibóia que engolia um elefante. A história dizia que, quando a jibóia engole um elefante

inteiro, fica seis meses digerindo o animal. Imaginem uma criança ouvir essa história e ficar

refletindo sobre um elefante no interior de uma cobra!

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O autor, que é um dos protagonistas da história, desenha a jibóia com um elefante

dentro da barriga e, ao mostrar o desenho ao adulto, indaga se dava medo. O adulto perguntou

por que um chapéu daria medo.

Eis o desenho da jibóia:

Vemos com essa resposta da “pessoa grande” que não há nenhum interesse em tentar

compreender o que está por trás do desenho; ele vê apenas o visível, o aparente. A criança vai

além do aparente, consegue ver e perceber o que o adulto não consegue, seja por falta de

interesse, por pressa, seja pela correria do dia-a-dia.

Então ele desenhou o interior da jibóia, a fim de que as “pessoas grandes” pudessem

compreender melhor o desenho, pois as “pessoas grandes têm sempre necessidade de

explicações detalhadas” (SAINT-EXUPÉRY, 2006, p. 10).

Eis o segundo desenho:

Se a Emília do Sítio do Picapau Amarelo estivesse presente diria que esse adulto era

sem imaginação e que só ela, com suas ideias mirabolantes, estaria apta a decifrar e

compreender o desenho.

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E qual a relação dessa visão de criança com a obra de Rousseau? Saint-Exupéry via os

adultos como pessoas incapazes de compreender a infância, pois haviam esquecido que um

dia foram crianças. O próprio livro, ele o dedica à criança que toda pessoa grande já foi um

dia. Nesses primeiros parágrafos, fica explícita a compreensão de criança, do respeito e da

valorização do imaginário infantil. Uma compreensão do que a criança é, e não do que ela

poderá vir-a-ser.

Jean Jacques Rousseau17 (1712 – 1778), o grande precursor do sentimento de infância,

preconiza uma visão diferente para essa fase da vida humana, pois, até a Renascença, a

criança não era vista nem respeitada. Esse autor inaugura uma nova era na história da infância

e da educação, em que a infância ganha um novo olhar, o reconhecimento, o respeito às suas

peculiaridades. Rousseau introduziu a concepção de que a criança é um ser com

características próprias em suas ideias e interesses e, por isso, não mais poderia ser vista como

um adulto em miniatura. Como nos fala Rousseau (2004), “é preciso respeitar a liberdade da

criança, e não procurar o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem” (p.

04). Segundo esse filósofo, os adultos sempre procuram o homem na criança; Saint-Exupéry

argumenta que, na condição de adultos, devemos pensar na criança que um dia já fomos.

Percebemos o respeito desses dois escritores à compreensão de infância. Com Rousseau,

começa a existir realmente a infância18; não apenas crianças.

O precursor da literatura brasileira para criança, Monteiro Lobato, também contribuiu

para uma compreensão de criança não como ser incapaz e inferior, mas como um ser

inteligente, ativo e livre. José Bento Renato Monteiro Lobato ou Monteiro Lobato (1882 -

1948), como todos o conhecem, quase contemporâneo a Exupéry, nos anos 20 e 30,

revolucionou a concepção de criança / infância. Em uma época em que não havia, no Brasil,

nenhum sentimento de infância, Lobato, com a sua literatura, contribuiu para uma nova era na

história da infância brasileira.

Retornemos a Exupéry. Ante os desenhos de jibóias fechadas e abertas, as “pessoas

grandes’ aconselharam-no a deixar de lado os desenhos e se dedicar de preferência à

geografia, à historia, à matemática, à gramática. Segundo o autor, foi a partir daí que

17 Este filósofo foi considerado um romântico/naturalista por defender a ideia de que Emílio deveria ser criado em meio à natureza, sem contato, até a fase adulta, com a sociedade corrompida. Não quero externar aqui o romantismo do autor, mas abordar a descoberta da infância, o sentimento de respeito e valorização dessa fase da vida. 18 Quando eu me refiro à infância, não estou me referindo à etimologia da palavra, mas a uma construção social de respeito e valorização das particularidades infantis.

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abandonou uma promissora carreira de pintor. “As ‘pessoas grandes’ não compreendem nada

sozinhas e é cansativo, para as crianças, estar a toda hora explicando19”.

Fica explícito nesse argumento que os adultos desejam o tempo todo que as crianças

aprendam logo o que, segundo eles, futuramente terá “utilidade”. Geografia, matemática,

história e gramática serão úteis, mas que utilidade terá o desenho, a pintura? Não

compreendem que, nos desenhos, na invenção de histórias, aparentemente coisas

insignificantes, há um mundo de ideias e fantasias. Com os desenhos, a criança desenvolve a

fantasia, a imaginação, a criatividade, cria um mundo só delas. Rousseau afirma que “é

preciso deixar amadurecer a infância na criança” (2004, p. 89). Entendemos esse amadurecer

não como algo inato, mas como respeito às características próprias de criança, sem duvidar de

seu potencial, de sua capacidade para entender as coisas que se passam a sua volta.

Esse autor ainda expõe que:

Depois de terem ensinado isto ou aquilo, vale dizer, depois de terem enchido sua memória ou de palavras que não podem entender, ou de coisas que não lhe servem para nada [...], colocam este ser factício nas mãos de um preceptor que acaba de desenvolver as sementes artificiais que já encontra completamente formada, e lhe ensina tudo, exceto a se conhecer, exceto a tirar partido de si mesmo, exceto a saber a viver e se tornar feliz20 (idem 2004, p. 26).

Como eram livres e felizes as crianças do Sítio do Picapau Amarelo! Talvez o leitor

pense que ali reinava um mundo de fantasia e que, portanto, a realidade de nossas crianças

hoje é outra – exploração do trabalho infantil, prostituição infantil, crianças nas ruas,

violência domiciliar, pedofilia – temas tão corriqueiros na sociedade pós-moderna. Não

discutiremos os problemas enfrentados pelas crianças de hoje, mas a sua capacidade de

aventura e criação mesmo em meio a tantos problemas.

Saint-Exupéry entendia que é muito difícil para os adultos – que ele considerava como

seres estranhos – compreender a esperteza de uma criança. Para confirmar esse pensamento,

ele passou a fazer um teste que consistia em mostrar, a cada vez que encontrava com um

adulto, o seu primeiro desenho (jibóia fechada) e a resposta era sempre a mesma – um chapéu.

Aí ele dizia: “então eu não falava nem de jibóias, nem de florestas virgens, nem de estrelas,

colocava-me no seu nível. Falava de bigode, de golfe, de política, de gravatas. E a pessoa

19 Grifo nosso 20 Grifo nosso

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grande ficava encantada de conhecer um homem tão versátil” (SAINT-EXUPÉRY, 2006, p.

11).

O que o adulto quer, na maioria das vezes, é que a criança seja aquilo que ele deseja,

que se desenvolva da maneira que ele almeja e seja um prodígio na sociedade. “Mas o que

pensar de uma educação que sacrifica o presente por um futuro incerto? que prende uma

criança em correntes de todo tipo, (...). A idade da alegria passa-se em meio a prantos,

castigos, a ameaças” (ROUSSEAU, 2004, p. 72), deixando de ser aventureira, criativa e livre,

como Emília, Narizinho e Pedrinho no Sítio do Picapau Amarelo ou como o Pequeno

Príncipe, se aventurando pelo mundo afora.

Lobato, por sua vez, não compreende a criança como ser inferior ou fraco que

necessite o tempo inteiro de paparicação; pelo contrário, quando lemos Memórias de Emília,

Reinações de Narizinho, Caçadas de Pedrinho, Sítio do Picapau Amarelo, vemos crianças

inteligentes, sensíveis, espertas e livres para viverem as suas aventuras.

Nessa perspectiva, Gibello (2006, p. 02) afirma que

a infância do Sítio é muito feliz e sem grande preocupações. As crianças são livres para viver as aventuras, para dialogar com os adultos, para darem opiniões. [...] ser forte, muito diferente da idéia que usualmente se tem da fragilidade infantil. Os netos de Dona Benta – cada qual à sua maneira e proporção possuem coragem e habilidade que lhes permitem viver intensamente as aventuras; ou seja, ser criança não significa ser inferior. [...] Os textos buscam sempre evidenciar as habilidades intrínsecas das crianças.

Por diversas vezes nos textos de Lobato, vemos Emília com as suas ideias e esperteza

criando situações e resolvendo problemas no Sítio de Dona Benta. “Emilia tinha um modo

desnorteado de pensar. Assim suas célebres ‘asneirinhas’, não eram asneiras, eram modos

diferentes de encarar as coisas” (LOBATO, s/d, p. 546). Isso mostra que Lobato não via a

criança como um ser frágil, imperfeito que tivesse de ser moldada pelo adulto a sua maneira.

Depois de vários testes com os desenhos, Exupéry fala sobre o pouso que teve que

fazer no deserto do Saara, onde se encontrou com o Pequeno Príncipe.

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No momento em que se deparou com o principezinho, a primeira coisa que ele

solicitou foi: por “favor... desenha-me um carneiro” (EXUPÉRY, 2006, p. 11). E agora como

resolver aquele dilema? Exupéry passou a se questionar: Se não sabia desenhar, se fora

tolhido ainda criança dessa arte? Então resolveu desenhar a jibóia fechada e ao entregá-lo ao

menino, este disse: – “Não! Não! eu não quero um elefante numa jibóia”. Qual foi a sua

surpresa. Como ele conseguiu entender que ali era uma jibóia com o elefante dentro se a

jibóia estava fechada? Só uma criança, com sua imaginação, consegue realmente ver o que

está além do visível. Se fosse a Emília, do Sítio do Picapau Amarelo, com certeza, diria que

era um elefante dentro da jibóia. Emílio, mesmo em época e contexto tão diferentes, também

conseguiria ver a jibóia com o elefante dentro, pois as crianças têm essa capacidade singular

de imaginar e criar.

Visconde, também personagem do Sítio, se refere a Emília como uma pessoinha que

“faz coisas que até espanta a gente, de tão sensatas [...] tem saídas para tudo, não se aperta,

não se atrapalha. E em matéria de esperteza, não existe outra no mundo. Parece que vê através

dos corpos” (LOBATO, s/d, p. 280).

Rousseau (2004), ao discutir a esperteza e a capacidade das crianças, assim argumenta:

“raciocinam muito bem em tudo o que conhecem e se relacionam com interesse presente e

sensível” (p. 121).

Observamos, entre os três escritores, a valorização do pensamento e da capacidade

infantil. Muitas escolas, ainda hoje, veem as crianças apenas como uma reprodutora da

realidade. Faz-se necessário vê-las como pessoas que pensam, que criam e não apenas copiam

ou reproduzem o real.

Mais uma prova de que a criança “vê através dos corpos” é quando Exupéry faz o

desenho do primeiro carneiro.

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Eis o desenho:

O Pequeno Príncipe observou atentamente o desenho e disse que aquele carneiro

estava doente. Como se pode observar, a expressão do carneiro é triste, o que para ele

aparentava doença. É incrível como as crianças têm essa sensibilidade de captar as coisas que

estão acontecendo a sua volta. Mesmo não estando de forma clara para o adulto, ela consegue

perceber e sentir.

No segundo desenho do carneiro, ele disse ser um bode, pois havia chifres. E ele não

queria um bode, e sim um carneirinho. Eis o desenho:

O terceiro desenho, ele também o recusou, dizendo que o carneiro estava muito velho

e que ele queria um que vivesse muito tempo:

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Não sabendo mais como desenhar um carneiro, Exupéry arriscou desenhar apenas uma

caixa e disse que o carneiro estava dentro. Imaginou que o principezinho não aceitaria aquele

desenho, até porque ele já tinha se tornado uma pessoa adulta e não mais compreendia as

coisas de crianças. Eis o desenho da caixa com o carneiro dentro:

Qual não foi a surpresa do desenhista ao observar a felicidade na face do

principezinho, que dizia “é assim mesmo que eu queria! Será preciso muito capim para esse

carneiro? [...] Olha! Ele adormeceu...” (EXUPÉRY, 2006, p. 15). Isso é que é ser criança, ter

infância. É imaginar, é criar, é fantasiar.

Será que, se os adultos olhassem para a caixa, conseguiriam ver algo além da própria

caixa? Se olhássemos para cada carneirinho, veríamos os vários estados dos carneiros?

Acredito que não teríamos a mesma percepção que teve o principezinho e que teria qualquer

criança ao se deparar com os desenhos, pois, como disse o próprio autor, estamos sempre

apressados, e só as crianças colocam o nariz na vidraça para ver o que está do lado de fora. Só

as crianças conseguem ver além do real.

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Talvez Dona Benta seja uma exceção, pois ela se envolve de tal maneira no mundo

encantado das crianças que chega a dizer: “Não imagina o que acontece neste Sítio! Só vendo.

Tanta e tanta coisa, que hoje, não me admiro de mais nada. Se o sol aparecer ali na porteira e

me disser: – ‘Boa tarde D. Benta! Eu o recebo como se fosse o Compadre Teodoro: – Entre,

Senhor Sol’” (LOBATO, s/d, p. 260). O próprio Exupéry (2006, p. 15) achou que tivesse

envelhecido, pois não conseguia ver um carneiro através de caixa. Tornara-se uma “pessoa

grande”.

Esse é o mundo da criança, e o adulto precisa entrar nele como fez D. Benta. Embora

alguns críticos considerem a obra de Lobato pedagógica e que o intuito do autor seria formar

os novos brasileirinhos, não há dúvida de que é uma literatura interessantíssima para crianças.

E mesmo que fosse mais pedagógica do que literária, o que destacamos é a valorização

explícita da criança em seus textos. Não é uma literatura para adultos em miniatura. As

histórias não são para conscientizar e moralizar as crianças, mas para promover a imaginação

e viver a fantasia.

Russeff (2006, p. 285) faz uma crítica a Lobato dizendo que,

apesar de isentá-lo do pedagogismo [...], não se pode dizer que a intenção tenha sido totalmente abandonada; e, se evitou os seus excessos ‘instrutivistas’, manteve-o latente. Temos então, um La Fontaine à nacional? Já foi dito que não, mas o fato é que, embora Lobato tenha construído uma fabulação muito mais artística do que pedagógica, e, portanto, indiscutivelmente literária, o seu intuito foi sempre o de ensinar as crianças, na constante vontade de modificar o mundo.

Mesmo que haja ensinamento nas obras de Lobato, e isso é perceptível em alguns

livros como, por exemplo, em Emília no País da Gramática, Geografia de Dona Benta,

Aritmética de Emília, notamos também que tais obras eram críticas de Lobato às formas de

ensino. Isso fica claro quando Pedrinho se refere a D. Benta quando esta lhe ensina a

gramática: “Ah, assim sim! – dizia ele – Se meu professor ensinasse como a Senhora, a tal

Gramática, até viraria brincadeira. Mas o homem obriga a gente a decorar uma porção de

definições que ninguém entende” (LOBATO, s/d, p. 293). Nessas obras, Lobato tece críticas à

forma (metodologia) como se ensinava às crianças; não as utiliza como pretexto para ensinar

os conteúdos escolares.

O diálogo do Pequeno Príncipe com Exupéry continuou por um bom tempo. O

primeiro sempre fazendo perguntas, querendo saber sobre tudo: se o carneiro come arbusto, se

come flores mesmo tendo espinhos, para que servem os espinhos etc. Exupéry afirma que o

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principezinho “jamais renunciava a uma pergunta, uma vez que a tivesse feito” (2006, p. 29).

Questionamentos têm tudo a ver com criança. Quem já não vivenciou uma “avalanche” de

perguntas de uma criança? E quanto mais o adulto responde, mais ela tem perguntas a fazer.

Não há como trazer aqui uma reflexão sobre toda a obra de Exupéry. Porém, além dos

desenhos, outro ponto interessante é o seu diálogo com a raposa que encontrou no Planeta

Terra. O Pequeno Príncipe perguntou se poderia brincar com ela, e ela respondeu que ele não

a havia cativado ainda para que pudessem brincar. Para isso, teriam que, em primeiro lugar,

criar laços.

Quando se fala em criar laços, há uma relação de afetividade. E as crianças? Como as

“pessoas grandes” podem cativá-las? Isso é necessário? Segundo Exupéry (2006), “só se vê

bem com o coração e só conhecemos bem o que cativamos” (p. 69). Os adultos precisam

cativar as crianças para que elas se sintam importantes e valorizadas e possam também cativar

outras crianças e outros adultos.

E Rousseau, como compreendia a criança se não cativou nem os próprios filhos? A

obra Emílio talvez tenha sido justamente uma forma de expurgar o pecado, pelo que fez com a

sua prole. Mas não vem ao caso discutir o abandono dos próprios filhos por esse autor. O que

destacamos é o seu respeito e valorização da infância, em uma época em que a criança não

passava de um ser sem voz (infans – que não fala), assim como o fizeram Exupéry e Lobato.

Quem já não viu ou ouviu, quando alguém, ao querer se referir a um ato bobo do

adulto, usar o termo “criancice” (Que criancice essa sua!) com o significado de bobagem,

asneira, burrada, besteira? Ou denominar de “infantil” determinadas atitudes dos adultos? Isso

mostra a real compreensão que temos de infância. Como esses escritores em tempos e espaços

distintos pensaram a criança como seres capazes, que falam, pensam, que deveriam viver sua

infância de forma livre e que merecem ser valorizadas pelo que são?

Quando falamos de liberdade, de crianças livres, nos lembramos de Emílio, que

precisava estar livre das amarras, que deveria ser criado e educado em liberdade; em O

Pequeno Príncipe, percebemos a liberdade do personagem ao visitar diversos planetas e

dialogar com quem encontrava pelo caminho. Com Emília, a liberdade estava presente no seu

dia-a-dia, nas suas aventuras, nas suas ideias, com as quais já havia percorrido o mundo.

Vemos, nesses personagens, a criança em uma perspectiva criadora, aventureira e livre.

Os três autores apresentados mostram uma compreensão de infância que respeita o que

é característico da criança, sem reduzi-la ao anonimato nem infantilizá-la, tampouco

discipliná-la. Uma criança que, de fato, vive a sua infância de forma alegre e feliz.

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2.4 A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA E A PRÁXIS PEDAGÓGICA

Qual a relação entre toda essa discussão sobre infância/criança e a práxis pedagógica?

Com base nos pressupostos relatados, como trabalhar com a criança? Se, de um lado, existe

uma concepção salvífica da sociedade, de preparação do futuro cidadão, por outro, existe a

visão biológico-natural, segundo a qual a criança irá se desenvolver sem a interferência do

adulto, seguindo o seu desabrochar natural. Que caminho seguir? O que seria melhor para a

criança?

Não podemos trilhar o caminho do “ou isso ou aquilo”, de uma coisa ou outra; dos

extremos. Devemos pensar a criança como um ser completo21, que precisa desenvolver todas

as suas potencialidades, e não apenas a cognitiva ou disciplinar. A criança é um ser também

histórico e social, e não apenas biológico.

Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Antonio Geraldo da

Cunha, o termo “concepção” vem do latim conceptio que é o ato ou efeito de conceber. Este,

por sua vez, também de origem latina – concipere – significa gerar. O termo latino

comprehensio-ônis significa conter em si, abranger, perceber, entender. Diante desses

significados, objetivamos não apenas conceber, gerar a criança, mas buscar, conter em si,

entendê-la em seus mais complexos e variados aspectos.

Para Palmer (1996, p. 110 - 112), a compreensão tem uma amplitude que escapa à

teorização racional. É um pensar silencioso, algo inerente ao ser humano. Pertence a uma

relação de diálogo, pois, por meio do diálogo, os sujeitos vão mediatizando, construindo as

falas e os sentidos. Se a hermenêutica é a arte de ouvir, como nos fala Palmer, a compreensão

da criança também o é, pois quando a compreendemos estamos abertos a ouvi-la.

Tourinho e Sá (2002, p.30.) discutem que “a compreensão é tida como ‘um

movimento no fazer poético e no aprender a fazer poeticamente’ [...], a compreensão envolve

o des-ocultar, o des-velar” e essa é a compreensão da infância: a partir do desocultamento e

do desvelamento, deve-se estudar poeticamente, aprender poeticamente, ensinar

poeticamente, viver poeticamente, numa visão polifônica, isto é, ouvindo as múltiplas vozes

na construção de uma práxis pedagógica, ou seja, não considerar absurdas as referências

trazidas pelos alunos; na verdade, os conhecimentos trazidos por eles são tão relevantes

quanto as referências das ciências trazidas nos conteúdos curriculares; não há uma

hierarquização do conhecimento. 21 Embora a Psicanálise considere que o sujeito é marcado pela falta, e, portanto, incompleto, trago esse conceito de que a criança deve ser vista em todas as áreas da vida humana que precisa ser desenvolvida.

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Para Galeffi (2007), a compreensão é o âmbito em que se dá o poemático e o

pedagógico. Poemático é o saber fazer; mas um saber pleno. Assim, se chegaria à

compreensão do Ser-no-mundo-com22, por meio de uma práxis pedagógica que não busque

uma única verdade, mas que tenha várias visões de vida. Uma prática pedagógica dialógica. E

isso seria possível na educação infantil? Se pensarmos a criança como esse ser apresentado no

título anterior, não só é possível, como imprescindível na formação de qualquer ser humano e

em qualquer idade.

Ainda hoje, há discursos em que, de um lado, está a teoria e, do outro, a prática; de

um, o saber sistematizado, do outro, a fantasia; de um, a cognição, do outro, a sensibilidade, a

arte; de um lado, o cuidar, do outro o educar; de um lado a explicação, do outro a

compreensão. E, assim vão sendo fragmentados o conhecimento, a criança, o ser humano.

Tourinho e Sá argumentam que o compreender não exclui o explicar, e vice-versa. “O

explicar e o compreender não representam necessariamente posições polarizadas, porque o

professor precisa compreender o que ‘explicou’ e o explicar não exclui o compreender”

(2002, p. 38).

O que se busca é a unidade na diversidade, é o uno e o múltiplo imbricados. A unidade

no pensar, no fazer da sala de aula, na construção do conhecimento, tornando possível a

práxis, que compreendemos como ação consciente, como atividade de quem faz escolhas

conscientes e, para tanto, necessita de teoria. A prática pedagógica da educação infantil

envolve conhecimento, saber, valores, atenção, afeto.

Nesse intuito, a educação de crianças pequenas não deve ser vista nem pensada apenas

como técnica, como treinamento, como uma prática desprovida de qualquer reflexão,

especulação teórica, como muitas vezes tem acontecido, acreditando que a criança não tem

“capacidade” de entender. Não se deve forçar a criança a amadurecer antes do seu tempo,

tampouco privar ou limitar a sua capacidade.

Abro um parêntese para falar de uma prática das crianças no cotidiano das escolas de

educação infantil: chamarem as professoras de tia. Compreendo que a relação de afetividade

construída no cotidiano das escolas deve estar sedimentada no diálogo e no respeito entre

professor e aluno. Muitos confundem a relação de afetividade com a forma de tratamento

utilizada. A relação de afetividade acontece na relação dialógica.

Segundo Freire (1997, p. 09), “a tarefa de ensinar é uma tarefa profissional que, no

entanto, exige amorosidade, criatividade, competência científica [...] ensinar é profissão que

22 Aula proferida pelo professor Dante Galeffi na Disciplina Epistemologia do Educar em 19/19/2007.

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envolve certa tarefa, certa militância, certa especificidade no seu cumprimento, enquanto ser

tia é viver uma relação de parentesco”. Não é simplesmente sendo boazinha e meiguinha que

será uma boa professora. O “cativar” as crianças vai muito além do tratamento de tia, pois a

criança poderá estar chamando a professora de tia sem ter nenhuma relação de respeito, de

diálogo e de afeto. Aceitando esse tratamento, o professor poderá também estar perdendo a

sua identidade profissional, pois as “boas tias não devem brigar, não devem rebelar-se, não

devem fazer greve” (idem, 1997, p. 09) por melhores condições de trabalho, por exemplo. Por

ser tia, precisa pensar que seus “sobrinhos” não podem ficar sem aulas. É necessário rever

alguns conceitos e ideologias impregnados no cotidiano das escolas de educação infantil e

entre os profissionais que atendem a essa faixa-etária.

2.5 POR UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA

Em cada momento da história da humanidade, os indivíduos instituem discursos que

mostram seus ideais e expectativas em relação a objetos, fenômenos, fatos, coisas, à vida.

Nessas manifestações, aparecem diferentes representações de sociedade, escola, mulher,

homem e – por que não dizer? – de criança e infância. É nesses diferentes discursos que a

infância vai se construindo ao longo da história. Cada época tem sua maneira própria de

considerar o que é ser criança e de caracterizar as mudanças que ocorrem com ela no decorrer

da vida. Nessa perspectiva, a ideia de infância vai além da compreensão da natureza infantil,

abstrata e universal, a qual, em todo tempo e lugar, ocorre da mesma forma e maneira.

A certeza que temos é que todo ser humano, um dia, foi criança, mas não podemos

dizer o mesmo em relação à infância. A infância é uma construção social que varia de acordo

com o momento, as gerações e o contexto histórico. Não é uma determinação biológica pela

qual toda criança passará indistintamente. Claro que existem os determinantes biológicos

pelos quais todas as crianças passarão como, por exemplo, falar, andar, exceto se houver

algum problema de saúde que as impossibilite desenvolver essas fases. Porém, a infância vai

se construindo a cada dia, e muitas crianças não vivenciam esse momento tão significativo na

vida do ser humano. Para essas, a infância constitui um processo de transição para a fase

adulta. Sendo a infância uma construção social e histórica e um projeto “inacabado” da

modernidade, é possível afirmar que não tem mais que dois séculos de existência. Somente a

partir do século XVIII é que a ideia de criança como um ser ímpar que merece ser respeitado

nas suas particularidades e diferenças começou a surgir.

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Com a sociedade capitalista, com a explosão industrial, instituições de atendimento às

crianças menores de sete anos foram criadas em vários países da Europa e da América Latina,

com o objetivo de atender à nova ordem social e econômica (mulheres trabalhando nas

fábricas, aumento da população urbana). Mesmo com toda essa motivação em criar espaços

para as crianças pequenas, não havia ainda uma preocupação com o educar. As instituições de

creches e pré-escolas apresentavam um caráter assistencialista, a favor das famílias carentes,

que visavam “a guarda da criança”, isto é, o cuidado com a alimentação, higiene e segurança

da criança. De cunho assistencialista e caritativo, essas instituições funcionavam mais como

“asilo Infantil”.

Não havia interesse com a formação integral/global da criança, isto é, com os aspectos

cognitivo, psicológico, social, cultural, afetivo e psicomotor. As transformações perpetradas

pela modernidade, juntamente com o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade urbano-

industrial, conduziram a novas formas de entendimento da família e, do mesmo modo, de

compreensão da criança e de sua infância. Com a emergência do pensamento pedagógico

moderno, a partir dos séculos XVI e XVII, impregnado de cientificismo e tecnicismo,

surgiram novas perspectivas educacionais, que terminariam repercutindo na educação das

crianças. Refletindo sobre esse processo, Bujes (2001) salienta que

Durante muito tempo, a educação da criança foi considerada uma responsabilidade das famílias ou do grupo social ao qual ela pertencia. Era junto aos adultos e outras crianças com os quais convivia que a criança aprendia a se tornar membro deste grupo, a participar das tradições que eram importantes para ele e a dominar os conhecimentos que eram necessários para a sua sobrevivência material e para enfrentar as exigências da vida adulta. Por um bom período da história da humanidade, não houve nenhuma instituição responsável por compartilhar esta responsabilidade pela criança com seus pais e com a comunidade da qual estes faziam parte. Isso nos permite dizer que a educação infantil, como nós a conhecemos hoje, realizada de forma a complementar à família, é um fato muito recente. Nem sempre ocorreu do mesmo modo, tem, portanto, sua história (p. 12).

Outro fator que contribuiu para a criação de instituições de educação infantil está

relacionado aos estudos de alguns teóricos e psicólogos, que passaram a pesquisar sobre a

natureza infantil, e de médicos/higienistas, que estavam preocupados com o alto índice de

mortalidade infantil daquele período. Embora a criança tenha ocupado o pensamento de

filósofos, psicólogos e médicos, como já foi discutido, é com o projeto iluminista

fundamentado nos ideais rousseaunianos que se amplia o leque de preocupações com a

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infância. Pesttalozzi e Froebel, por exemplo, sistematizaram o atendimento às crianças nessas

faixas etárias.

Ao longo da modernidade, principalmente a partir do século XVI, vários teóricos,

educadores ou não, desenvolveram suas ideias sobre educação, incluindo aí a educação

infantil, como afirma Kramer (1998, p. 29):

é a partir do ideário iluminista que a criança será reconhecida como objeto de estudo da ciência. Essa inserção está ligada a um importante momento de transformação da relação do homem com o conhecimento e seus métodos de produção por meio das ciências... Essa preocupação, porém, embora pioneira, não tinha por objetivo tratar das peculiaridades dessa “etapa” de vida. Ao contrário, olhava-a negando-a, uma vez que o que interessava é que ali estava um pequeno adulto, o homem de amanhã.

Com os trabalhos de João Amós Comenius, Jean-Jacques Rousseau, Heinrich

Pestalozzi, Friedrich Froebel e Célestin Freinet, surgiu um novo “sentimento de infância” que,

conforme afirma Wajskop (2001, p. 19-20), “protege as crianças e que auxilia este grupo

etário a conquistar um lugar enquanto categoria social. Dá-se início à elaboração de métodos

próprios para sua educação, seja em casa, seja em instituições específicas para tal fim”. No

âmbito psico-filosófico, alguns teóricos como Montessori, Piaget, Vygotsky, Wallon, entre

outros, contribuíram para a superação desse estigma de criança – ser passivo e incompleto –

passando a valorizá-la e vê-la como um ser social, ativo e criativo, arquiteto de sua própria

vida.

2.5.1 Em busca do sentimento de infância no Brasil

O entendimento e as representações acerca da infância ao longo da história brasileira –

a partir da chegada dos europeus às nossas terras23 – estiveram relacionados aos vários

projetos de desenvolvimento econômico e político elaborados pelos poderes instituídos. O

sentimento de infância, no Brasil, tardou a surgir. Inicialmente as crianças eram comparadas

aos bichinhos domésticos e, ao atingir a idade de cinco a seis anos, ao passar a fase crítica da

mortalidade infantil, era logo inserida no ambiente de trabalho escravo ou no meio dos

adultos, encerrando a fase considerada infantil.

Notamos que a história social e pedagógica da criança brasileira não se difere muito da

história das crianças dos países europeus, por exemplo. Vimos que nos séculos XVI e XVII a

23 Antes dos europeus, havia crianças indígenas aqui no Brasil.

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infância era marcada pela indiferença e invisibilidade social. No Brasil, só a partir do século

XVIII é que a sociedade começou a pensar e discutir a situação das crianças pequenas em

virtude do alto índice de mortalidade infantil.

Pensar a educação das crianças no Brasil que se despontava é pensar também nas

mudanças que estavam ocorrendo na sociedade, como, por exemplo, o crescimento urbano,

pois a história da infância não está desvinculada da história da educação e da história do

Brasil.

No Brasil nascente, a educação de crianças começa mesmo com a chegada dos jesuítas

às nossas terras, porém as crianças escravas não tinham qualquer privilégio. Aos cinco ou seis

anos, encerrava-se a infância, e a criança passava para o trabalho escravo. As meninas iam

ajudar nos afazeres domésticos da “casa grande” ou fazer companhia às filhas dos senhores.

Os meninos eram os companheiros de brincadeiras ou eram eles mesmos o brinquedo da

criança branca, isto quando o filho do senhor gostava dele. As crianças escravas que iam

nascendo se constituíam em mais um escravo em potencial para aquela fazenda. Não havia

escola para as crianças negras. Elas não tinham direito à infância, se quer o direito ao leite

materno.

Assim para Farias (2005, p. 42),

a criança negra era uma personalidade anulada no meio social; ela passava a ser “algo”, às vezes “alguém”, tomando sempre como referencial outras personalidades que interferiam na sua realidade. Em relação aos pais, era o filho parido, ao senhor da casa-grande, o futuro escravo adulto e ao filho do senhor, um escravinho em miniatura ou um brinquedo.

A criança branca, de elite especificamente, tinha uma ama-de-leite para cuidar dela e

logo depois um preceptor que lhe dava as primeiras instruções. Para as mulatas ou mesmo as

brancas da classe desfavorecida, a situação se assemelhava à das crianças negras, isto é, não

havia qualquer privilégio nem direito à educação.

Já as crianças indígenas passaram a ter uma educação elementar para serem

convertidas à fé cristã e, depois, elas mesmas converterem também os pais. Segundo

Chambouleyron (2004, p. 58), “a Companhia escolheu as crianças indígenas como papel em

branco; cera virgem, em que tanto se desejava escrever; e inscrever-se”.

A primeira experiência de assistência às crianças foi desenvolvida pelos padres

jesuítas e consistia na catequização das crianças para que, futuramente, pudessem professar a

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fé cristã. Quando chegavam a ser educadas, pois os filhos dos escravos não tinham esse

privilégio, as crianças deveriam ser preparadas bem cedo para assumir responsabilidades.

Com os altos índices de crianças abandonadas e de mortalidade infantil, alguns setores

da sociedade começaram a se preocupar com a causa da infância e passaram a criar

instituições de atendimento à criança. Assim, o atendimento às crianças pequenas se deu

mesmo com o trabalho desenvolvido pela Igreja nas Santas Casas de Misericórdia com a

criação da Roda dos Expostos. Essa instituição também chamada no Brasil de “Casa dos

enjeitados” era uma instituição de idealização européia24, que consistia em recolher as

crianças abandonadas. Elas tinham também um cunho missionário, pois, assim que as crianças

eram deixadas na instituição, logo era “providenciado o batismo, salvando a alma da criança”

(MARCILIO, 2006, p. 54). No Brasil, a primeira Roda foi criada em Salvador, logo depois,

espalhada por outras capitais brasileiras, só deixando de existir no meado do século XX.

Mesmo havendo muitas críticas a essas instituições, o certo é que elas desempenharam

um papel na história da infância brasileira. Apesar de muitas daquelas crianças abandonadas

não sobreviverem, em razão da alta taxa de mortalidade infantil da época, o importante é que

havia um amparo, mesmo sendo só assistencial, à criança exposta. No século XXI, ainda nos

deparamos com o abandono de crianças em latas de lixo, portas de igrejas, casas particulares e

instituições de atendimento à criança, além das que são encontradas, já sem vida, em rios,

lixões, viadutos etc.

Em conformidade com os ideais europeus e froebeliano, o primeiro jardim-de-infância

brasileiro foi criado no Rio de Janeiro em 1875 pelo médico Menezes Vieira. Era uma

instituição privada que atendia a nova classe social que surgia – burguesia. O objetivo,

segundo Kuhlmann Jr. (2001), era “moralização da cultura infantil, na perspectiva de educar

para o controle da vida social, preocupado que estava com os conflitos espelhados em suas

brincadeiras [...] a solução seria adotar como que um antídoto àquelas ameaçadoras práticas”

(p. 16).

As instituições de atendimento a crianças menores de sete anos que surgiram no Brasil

apresentavam as mesmas características das existentes na Europa e Estados Unidos a partir do

século XVII e objetivavam assistir às crianças carentes.

24 Primeira Roda dos Expostos surge na Idade Média na Itália. Consistia de uma roda na porta da instituição, onde era deixada a criança, e, ao girá-la, a pessoa que estava dentro da instituição recolhia a criança, garantindo assim o anonimato de quem abandonou e evitando que as crianças fossem deixadas nas calçadas, lixos e florestas.

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Muitos projetos elaborados por grupos particulares, como médicos e higienistas, com

o objetivo de minimizar a mortalidade infantil e combater o aleitamento mercenário, que era

uma das causas da mortalidade infantil, intensificaram o progresso no campo da higiene, da

medicina e da educação em relação ao atendimento à criança. Mesmo assim, as crianças das

classes populares não tinham nenhum atendimento educacional nesse período. Os poucos

acolhimentos que existiam estavam relacionados ao atendimento assistencial para crianças

abandonadas ou para as famílias de baixa renda e neles eram oferecidos abrigo e alimentação.

Não havia uma preocupação com a educação, na forma que a compreendemos hoje – processo

que busca a transformação de todo ser humano, em todos os seus aspectos (afetivo, social,

cultural cognitivo/linguístico) e por toda a vida. Para Rosemberg (2006, p. 151),

O modelo de uma pré-escola brasileira de massa, desempenhando também função de assistência, foi introduzido no Brasil sob influência de propostas divulgadas pelas organizações intergovernamentais, em especial o UNICEF e a UNESCO. A mais antiga influência na elaboração da nova proposta de pré-escola foi exercida pelo UNICEF através do Departamento Nacional da Criança.

A partir do século XX, intensificou-se a criação de órgãos e instituições, e diversas leis

foram promulgadas para o atendimento a crianças de zero a seis anos, o que influenciaria

também na concepção de criança manifestada na realidade brasileira. Ela passou a ser vista

como um sujeito global que precisa desenvolver-se como um ser autônomo, um ser histórico,

que se constrói no contexto social em que vive. Segundo Arroyo (1995, p. 17), “a infância é

algo que está em permanente construção”. Para ele, a concepção que nossos pais tinham sobre

nós quando éramos crianças é muito diferente da que temos em relação aos nossos filhos.

Durante muito tempo a criança não foi percebida como sujeito de direitos. Mas, com

as mudanças ocorridas na sociedade contemporânea, ela passou a ser observada e estudada

pela sociedade e é obrigação desta, juntamente com a família, valorizar essa idade da vida.25

“Cada idade tem, em si mesma, a identidade própria, que exige uma educação própria, uma

realização própria, enquanto idade e não enquanto preparação para outra idade” (ARROYO,

1995, p. 17), seja esta preparação para a série seguinte ou para se tornar um “bom cidadão”. A

criança em si já é um cidadão que tem os mesmos direitos de viver com decência e dignidade

e, ainda, ter um bom atendimento nas creches e pré-escolas.

25 Termo usado por Ariès (1981) para dizer que em cada época da sociedade se privilegiava uma idade, ora juventude, ora infância, ora velhice.

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Em uma sociedade dualizada (criança/adulto, cuidar/educar, bonito/feio, rico/pobre,

branco/preto), a exclusão de crianças torna-se, muitas vezes, invisível aos olhos. As

contradições e diferenças acabam por fragmentar também a compreensão que se tem de

infância, e isso é um perigo, pois cada vez mais nos deparamos com pessoas que não se

espantam, nem se indignam frente a situações de abandono, trabalho infantil, violência,

preconceito, considerando muitas vezes tudo normal ou natural. É preciso resgatar uma

sociedade para todos, que esteja consciente da diversidade da raça humana e estruturada para

atender às necessidades de cada cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos

marginalizados, isto é, atender crianças de zero a seis anos, pertencentes a qualquer grupo

social.

As crianças existem, pensam, sentem e criam. É um ser de direito: direito à saúde,

educação, cuidado, lazer, enfim, direito à vida. Embora tenham limitações de crianças, não

significa que devam ter acesso apenas ao cuidado, nem, por outro lado, apenas ao

disciplinamento, ao ensino, mas a uma educação que não se restrinja aos conteúdos

curriculares.

2.5.2 A criança nas leis e documentos oficiais brasileiros

Situo nesta parte a organização legal do processo educacional de crianças de zero a

seis anos de idade com base nas Constituições Federais (1934, 1937, 1946, 1967, 1988), na

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN (1961, 1971, 1996), em

documentos oficiais como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

(DCNEI), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Referencial Curricular Nacional

para a Educação Infantil (RCNEI), a Política Nacional da Educação Infantil (PNEI) de 2006,

Plano Nacional de Educação (PNE) e nas Leis do FUNDEF26 e FUNDEB27. Considero as

formas de encaminhamento e atendimento a crianças de zero a seis anos de idade e reflito

sobre a compreensão de criança e de educação oferecida de acordo com o contexto histórico e

social.

Nessa perspectiva, traço uma discussão sobre a educação infantil nas legislações e

documentos oficiais brasileiros, como resposta aos seguintes questionamentos: que

26 Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério. 27 Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.

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compreensão de criança/infância está explícita ou implícita nesses documentos oficiais do

Estado brasileiro? Como a criança é vista em cada momento histórico?

Nem sempre a educação da criança foi contemplada na legislação brasileira. Quando

se criava algum documento, o objetivo geralmente era o de suprir alguma carência.

As transformações políticas e econômicas da década de 1930 (processo de

industrialização, urbanização crescente) influenciaram significativamente a visão de

educação, que, a partir e então, passou a ser um meio de sucesso profissional e de ocupação

de posições mais valorizadas na sociedade. A Revolução de 1930 instituiu a República Nova.

Foi nessa década que surgiu o Programa de Educação dos Pioneiros da Escola Nova, que

previu a criação de instituições que atendessem crianças do pré-escolar e creche, e a educação

deveria estar assentada nos princípios de laicidade, obrigatoriedade e gratuidade. A

Legislação Trabalhista de 1932, instituída por Getúlio Vargas, previa a criação de creches

pelas empresas em seus estabelecimentos para atender às crianças em idade pré-escolar filhas

das funcionárias. Também, nessa década, foi criado o Ministério da Educação e Saúde e já

existia o Departamento da Criança no Brasil, que era um instituto de proteção e assistência à

infância, criado em 1919, de vinculação privada28.

Nesse contexto de mudanças foi escrita a Constituição Federal de 1934, que, mesmo

considerada uma lei democrática em razão da influência dos ideais apresentados no Manifesto

dos Pioneiros29, que reconhecia a educação como o direto de todos e dever do Estado, e com

avanço para a educação da sociedade brasileira, não faz nenhuma referência à educação de

crianças com menos de sete anos. Esta Constituição, no Artigo 149, estabelece que “A

educação é direito de todos e deve ser ministrada, pela família e pelos Poderes Públicos”. As

alíneas a e b do Artigo 150 estabelecem respectivamente: “ensino primário integral e gratuito

e de freqüência obrigatória extensivo aos adultos”; “tendência à gratuidade do ensino

educativo ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível”. Vemos nessas alíneas a

importância dada à educação para as crianças em idade obrigatória (dos 7 aos 14 anos), uma

referência ao ensino primário, que correspondia ao atendimento às crianças a partir dos sete

anos de idade, considerada por muitos filósofos como a “idade da razão”. Já para a criança

pequena, não existia e, se existisse, seria assistência, e não educação, como vimos

anteriormente.

28 Kramer, 2006, p. 51 29 Grupo de educadores que lutaram por melhores condições para a educação e contra a pedagogia da imposição. Esses manifestantes, como Anízio Teixeira, Florestan Fernandes, Lourenço Filho, foram influenciados pelos ideais de John Dewey.

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Ainda nessa década, começaram a ganhar força muitas ideias antiliberais e autoritárias,

e o clima político ficou acirrado. Azevedo Amaral e Francisco Campos não estavam de

acordo com uma “política descentralizada de ensino, que concedesse poderes às unidades

federadas para a organização de seus respectivos sistemas” (HAIDAR e TANURI, 2004, p.

60). A orientação centralista desencadeou em 1937 numa nova Constituição e, logo em

seguida, o Golpe de Estado que instituiu o Estado Novo. Se a educação ainda não gozava de

efetivas mudanças, com essa lei, completamente oposta à de 1934, a situação se agravou.

Foram eliminadas todas as conquistas do Movimento Renovado. Era uma carta que previa o

mínimo de gastos e de envolvimento do Estado na educação.

Se a de 1934 foi considerada democrática por conter muitas ideias dos representantes

do Manifesto dos Pioneiros, a de 1937 foi completamente antidemocrática, apresentando a

real situação da ditadura Vargas. O Artigo 125, pro exemplo, estabelece que “A educação

integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho

a esse dever30, colaborando de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução

ou suprir as deficiências e lacunas da educação popular”. Percebemos que o compromisso do

Estado com a Educação é secundário, já que a primeira obrigação é dos pais. O Estado

poderia auxiliar, colaborar no que fosse possível, isto é, “não seria estranho a esse dever”, mas

não era obrigado oferecer. Se o Estado não tinha compromisso com a Educação das crianças

maiores (a partir dos sete anos, até então considerada obrigatória) imaginem a educação

infantil para a qual nem mesmo existia a obrigatoriedade. Os Artigos 129 e 130 estabelecem

que

a infância e à juventude, a que faltarem recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da nação, dos Estados e dos Municípios. O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados.

Havia incentivo para que a sociedade civil, empresas ou instituições assumissem a

educação ou criassem instituições particulares.

Com a derrocada da ditadura Vargas, uma nova ordem começa a ganhar corpo, isto é,

discute-se sobre a descentralização do poder instituído e uma Nova Carta Constitucional é

promulgada em 1946 sob os ideais de redemocratização da nação. O Artigo 166 dessa

Constituição determina que “a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola”. O

Artigo 168 inciso I afirma que “o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua

30 Grifo nosso.

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67

nacional”. O Estado/Nação volta a assumir suas responsabilidades da educação nacional, o

ensino primário é garantido por lei e o acesso à educação é direito de todos (sete aos quatorze

anos de idade).

Apesar de a educação infantil não ter sido garantida na Constituição Federal, algumas

instituições e projetos foram criados e implementados para o atendimento às crianças menores

de sete anos. Em 1940 foi criado o Departamento Nacional da Criança (DNCr), vinculado ao

recém-criado Ministério da Educação e Saúde, cuja tônica era o atendimento médico,

objetivando uma medicina preventiva para que os altos índices de mortalidade infantil fossem

minimizados. Embora esse departamento promovesse publicações de livros e artigos para

divulgação sobre o desenvolvimento da criança e estabelecesse normas para o atendimento

em creches, não teve força suficiente para que a educação de crianças pequenas começasse a

ser vislumbrada. Sua atuação era muito mais assistencial do que educativa. Em 1942, foi

criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), órgão federal que previa assistir às crianças e

famílias carentes. Segundo Rosemberg (2006, p. 151), a LBA era “considerada como criadora

e criatura do serviço social no Brasil, o qual desenvolveu uma série de programas destinados à

maternidade e à infância, com base no voluntariado”.

Em 1961, a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 4.024/61,

foi promulgada, trazendo (Artigo 23), pela primeira vez, uma referência à educação infantil,

ou, como é denominada no texto da lei, educação pré-primária, “destinada aos menores de

sete anos, e será ministrada em escolas maternais ou jardins-de-infância”. Embora se refira à

educação para os menores de sete anos, não fala do dever do Estado em oferecê-la. O Artigo

24 determina que “as empresas serão estimuladas a organizar e manter, por iniciativa própria

ou em cooperação com os poderes públicos, instituições de educação pré-primária”. Aí vemos

o incentivo à criação de instituições particulares, ou mantidas por empresas ou grupos

particulares.

Acreditamos que esta referência (educação pré-primária) seja para o atendimento a

crianças de quatro aos seis anos, ou cinco e seis anos em escolas maternais ou jardins-de-

infância. Observamos que as crianças de zero a três anos ficaram de fora, pois a creche não foi

contemplada. Esta LDB de 1961 trata também da obrigatoriedade a partir dos sete anos de

idade. Se com obrigatoriedade (curso primário, por exemplo), já era gritante a quantidade de

crianças (a partir dos sete anos) fora da escola, imaginem a situação das crianças com menos

de sete anos, para quem a obrigatoriedade de oferta de educação escolar não era contemplada

na Lei! Mesmo que tenha ficado só no papel, a referência à educação pré-primária foi um

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marco na história da educação infantil brasileira, pois, pela primeira vez, reconhecia-se o

direito da criança à educação.

Nesse ínterim, em 1964, foi instituída a Ditadura Militar no Brasil e, em 1967, foi

promulgada uma Nova Constituição Federal. A educação infantil assim como nas

constituições anteriores não foi contemplada. A obrigatoriedade foi pronunciada apenas para

as crianças a partir dos sete anos de idade.

Uma década mais tarde, em 1971, a Lei 4.024/61 foi substituída em sua grande parte,

permanecendo apenas as finalidades e os objetivos, pela Lei 5.692/71, que fixa diretrizes e

bases para o ensino de 1º e 2º graus. A educação infantil mais uma vez não foi contemplada

nessa reformulação. Muda-se a nomenclatura para ensinos de 1º e 2º graus. Fala-se de

currículos, dias letivos, organização administrativa e didática, disciplinas e habilidades dos

profissionais. O Artigo 19, § 2º, pronuncia que “os sistemas de ensino velarão para que as

crianças de idade inferior a sete anos recebam conveniente educação em escolas maternais,

jardins de infância e instituições equivalentes”. No entanto, essa referência é muito vaga, pois

o que é velar? Seriam as próprias instituições de primeiro grau que ofereceriam essa

educação? E qual o papel do Estado frente a isso?

No Novo Dicionário Aurélio (2004), existem dois significados para a palavra velar. O

primeiro vem do latim velare, significa cobrir com véu; encobrir, esconder, ocultar, disfarçar,

dissimular; tornar sombrio; anuviar. O segundo, também de origem latina, vigilare, significa

estar alerta; vigiar; estar de vigia, de guarda, proteger, patrocinar, zelar. Nesse caso, qual seria

a função das escolas de primeiro grau em relação à educação infantil? Vigiar, proteger, zelar

ou dissimular, disfarçar, ocultar o atendimento às crianças pequenas?

Ainda fazendo referência a Lei 5.692/71, o Artigo 61 fala no estímulo das empresas

em organizar e manter educação que preceda o ensino de primeiro grau. Havia uma isenção

completa do Estado em relação à educação de crianças pequenas. As poucas iniciativas que

existiam em relação à pré-escola nessa década (1970) objetivavam “compensar” as crianças

com déficit cultural, isto é, as crianças das classes populares eram consideradas menos

capazes em virtude da privação cultural que sofriam e, se se quisesse melhorar os índices de

aprovação no primeiro grau, seria necessário oferecer educação a essas crianças. Muitos

acreditavam que as crianças fracassavam porque apresentavam desvantagens socioculturais e,

assim, surgiram vários programas compensatórios, como afirma Kramer (2006, p. 24):

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[...] a concepção de infância implícita nos discursos oficiais, ao contrário, supõe que existe um padrão médio, único e abstrato de comportando e desempenho infantil: as crianças das classes sociais dominadas (economicamente desfavorecidas, exploradas, marginalizadas, de baixa renda) são consideradas como “carentes”, “deficientes”, “inferiores” na medida em que não correspondem ao padrão estabelecido. Faltariam a estas crianças, “privadas culturalmente”, determinados atributos, atitudes ou conteúdos que deveriam ser nelas incutidos. A fim de suprir as deficiências de saúde e nutrição, as escolares, ou as do meio sócio-cultural em que vivem as crianças, são propostos diversos programas de educação pré-escolar de cunho compensatório.

Em 1975, o Ministério da Educação e Cultura criou a Coordenação de Educação Pré-

Escolar (COEPRE)31 e, em 1976, a LBA implementou o primeiro programa de educação pré-

escolar de massa que objetivava diminuir os índices de reprovação na primeira série e resolver

alguns problemas sociais que estavam diretamente ligados à educação das crianças. Era

preciso compensar essas crianças carentes, tanto social como culturalmente.

Porém, mesmo já em pleno século XX, o Brasil continuava atrasado em relação ao

atendimento educacional às crianças de zero a seis anos. O que havia até então, como vimos

no supracitado texto, era um atendimento caritativo, pois a maioria dos atendimentos estava

vinculada aos Programas Sociais ou ao Ministério de Assistência Social.

As discussões, os debates e movimento de luta pela redemocratização não só do ensino

brasileiro, mas da sociedade até então regida pela Ditadura Militar, estavam em uma

verdadeira efervescência. A luta por eleições diretas encontrava-se no limiar de sua conquista.

Em 1985 cai a ditadura militar e o primeiro presidente é eleito pelo voto direto. Assim,

começam as discussões para a promulgação da Nova Constituição Brasileira a qual é

promulgada em 1988. É só a partir dessa constituição que a criança começa a ser vista como

um ser de direito.

Assim, as décadas de 80 e 90 do século passado foram cruciais nas conquistas das

crianças pelo direito à educação. A partir de muitas discussões e mobilizações de vários

segmentos da sociedade (profissionais de educação infantil, ONGs, sindicatos, sociedade civil

organizada), começa-se a compreender a criança como alguém que tem direito a todos os

direitos garantidos em lei, sem exceção ou discriminação de raça, cor, sexo, religião ou classe

social. Passa-se a vê-las como um pequeno cidadão, enquanto tal, um ser de direito. Diante

dessa realidade, Kramer (2008, p. 55) expõe que “as crianças - também as de zero a seis anos

- são cidadãos de direitos, têm diferenças que precisam ser reconhecidas e pertencem a

31 Kramer, 2006, p. 51

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diversas classes sociais, vivendo na maioria das vezes uma situação de desigualdade que

precisa ser superada”.

A educação infantil dos anos 80 surge associada à afirmação de uma classe que

começa a mobilizar, reivindicar esse direito. Ampliam-se os debates sobre a educação infantil.

Alguns grupos de educadores e mães (donas de casa) passaram a lutar pela garantia da

educação das crianças de zero a seis anos. Sendo a educação responsabilidade de todos

(família, comunidade, poderes públicos), deve-se pensá-la em conjunto, envolvendo a todos.

Foi isto o que a comunidade, pais e educadores fizeram: lutar pela garantia da oferta da

educação pública e gratuita para seus filhos menores de sete anos. E assim várias instituições

começaram a surgir no cenário brasileiro, porém as instituições destinadas a essa faixa etária,

tinham, na sua maioria, ainda um caráter asilar e eram voltadas para as crianças das classes

populares.

No entanto foi só a partir da Constituição de 1988 que, pela primeira vez, houve,

efetivamente, a oferta dessa educação de maneira que pudesse atender as crianças de zero a

seis anos. Porém havia ainda uma distância entre o que estava garantido na lei – o legal – e o

que de fato era oferecido – o real. Embora a legislação, os poderes públicos passassem a

reconhecer a criança como um ser de direto, ainda não havia uma política de criação de

instituições e formação de profissionais para atender a essa faixa-etária. Muitas instituições

continuaram sendo assistenciais e não educativas.

No Artigo 208 da Constituição de 1988, o Inciso IV pronuncia que o “atendimento às

crianças de zero a seis anos de idade será em creche e pré-escola”. O Artigo 211, § 2º, reza

que “os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil”.

Assim pela primeira vez, uma Constituição Federal se refere à educação infantil como dever

do Estado, estabelece atribuições, isto é, responsabiliza os municípios em garanti-la.

A década de 1990 foi outro marco na história da infância brasileira. A criança passou a

ser valorizada, compreendida e assegurada no seu direito à saúde, à educação, ao lazer, à

proteção etc. Foram criados leis e documentos oficiais que beneficiaram a criança não apenas

as de zero a seis anos, mas as crianças maiores e os adolescentes. O primeiro desses

documentos foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), comumente conhecido como

ECA. Entendemos que uma legislação específica para a infância e o adolescente é um ganho

significativo porque, até então, não havia qualquer garantia em lei desse direito, exceto a

Constituição de 1988. No Artigo 53, o ECA afirma: “A criança e o adolescente têm direito à

educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da

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cidadania e qualificação para o trabalho...” e no Artigo 54: “É dever do Estado assegurar à

criança e ao adolescente (...) IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a

seis anos de idade”, reafirmando assim o que já estava garantido na Constituição Federal, que

é o direito da criança pequena à educação.

Assim como foi exposto, ao longo do século XX, a educação infantil se desenvolveu

de acordo com as políticas sociais e culturais, as quais influenciaram de forma decisiva, a

partir das reivindicações de vários segmentos da sociedade, na criação e na garantia da

educação dessa faixa etária. A criança não era mais vista com um adulto em miniatura,

tampouco como um ser sem importância. A partir de então, inicia-se a criação de instituições

infantis – creches e pré-escola. Era necessário que cada município ofertasse vagas para essa

faixa-etária e garantisse o acesso das crianças.

Nessa mesma década, em 1994, foi instituída a Política Nacional de Educação Infantil

(PNEI) com o propósito de esclarecer e desmitificar a dicotomia entre o cuidar e o educar,

porquanto as instituições de atendimento a criança pequena permaneciam com as mesmas

características das existentes até então, isto é, com um atendimento assistencial e caritativo. O

objetivo dessa política era possibilitar uma discussão sobre os processos de educação e

cuidado e que a educação não pode está desvinculado do cuidado e vice-versa. Nessa

perspectiva, Bujes (2001, p. 16) aborda que

a educação da criança pequena envolve simultaneamente dois processos complementares e indissociáveis: educar e cuidar32. As crianças desta faixa etária, como sabemos, têm necessidade de atenção, carinho, segurança, sem as quais elas dificilmente poderiam sobreviver... Na prática é que tanto os cuidados como a educação tem sido entendida de forma muita estreita.

Nesse caso, cuidar vai além da preocupação com higiene, alimentação, sono ou

proteção dos acidentes, pois envolve os aspectos de afetividade, relacionamentos e de moral.

O educar também vai muito além de uma escolarização ou disciplinamento. A dimensão

educativa deve ver o sujeito-criança como um ser de sonhos, de fantasias, que brinca, cria e

recria a realidade. Ainda hoje há uma discussão em torno desse binômio cuidar versus educar.

Daí vale o questionamento: quem cuida, educa? E quem educa, cuida?

Com a promulgação da Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei

9.394/96) a educação infantil (creche e pré-escola) se estabeleceu como a primeira etapa da

32 Grifo nosso

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educação básica, juntamente com o ensino fundamental e o ensino médio, em vez de

permanecer ligada às Secretarias de Assistência Social. Com isso, não mais focalizada apenas

no cuidar, mas também no educar e como uma obrigação dos poderes públicos de oferecê-la.

Um dos fatores que contribui para o assistencialismo, ainda hoje, nas creches está relacionado

com a formação dos profissionais que atuam nessas instituições, os quais, na sua maioria, não

possuem formação nem mesmo em nível de ensino médio, normal, o que caracteriza apenas o

cuidar – dar banho, alimentar e colocar para dormir. Em relação aos profissionais da educação

infantil, Cerisara (2002, p. 4) salienta que

[...] a lei proclama ainda que todas deverão até o final da década da educação ter formação em nível superior, podendo ser aceita formação em nível médio, na modalidade normal. Ou seja, até o ano de 2007 todas as profissionais que atuam diretamente com crianças em creches e pré-escolas, sejam elas denominadas auxiliares de sala, pajens, auxiliares do desenvolvimento infantil, ou tenham qualquer outra denominação, passarão a ser consideradas professoras e deverão ter formação específica na área. É importante ressaltar o desafio que esta deliberação coloca uma vez que muitas dessas profissionais não possuem sequer o ensino fundamental.

A Lei de Diretrizes e Bases declara, ainda, o direito das crianças à educação de zero a

seis anos de idade e que, embora a educação nessa fase não seja obrigatória, é dever do Estado

oferecê-la. O Artigo 29 determina que “a educação infantil, primeira etapa da educação

básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até os seis anos de idade,

em seus aspectos físicos, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família

e da comunidade”.

No Título III, Do Direito à Educação e do Dever de Educar, o Art. 4º. [prevê que]: “O

dever do Estado com a educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: IV -

atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de Idade”.

Porém quando se refere à responsabilidade e incumbência de cada um dos entes

federativos (União, Estado e Municípios), o Artigo 11 Inciso V, diz que os municípios

deverão “oferecer a educação infantil em creche e pré-escola, e, com prioridade, o ensino

fundamental”. Em razão do emprego do termo “prioridade”, muitos municípios se acharam

no direito de não ofertar a educação infantil. A preocupação dos municípios era com o ensino

fundamental, e a educação infantil ficava para um segundo, senão último, plano, por causa da

omissão ao financiamento da educação infantil nessa lei.

Essa situação vai se agravar ainda mais com a Lei 9.424/06 – FUNDEF, a qual declara

que, dos 25% dos recursos destinados à educação, 15% seriam para o ensino fundamental e

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10% para a educação infantil e a educação de jovens e adultos. Entretanto, como a própria

denominação da lei já explicita “manutenção e valorização do ensino fundamental”, a

educação infantil mais uma vez é relegada. Essa visão é confirmada no Artigo 2º: “Os

recursos do Fundo serão aplicados na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental

público, e na valorização de seu magistério”. Essa disposição legal foi se confirmando no dia-

a-dia de muitos municípios, pois os 10% que poderiam viabilizar a educação infantil não eram

aplicados e, mais uma vez, essa etapa não foi atendida, pois não era prioridade; a

obrigatoriedade era com o ensino fundamental.

A falta de recursos para a educação infantil fez com que muitos municípios, para

garantir os recursos do Fundef, começassem a matricular as crianças de seis anos no ensino

fundamental, respaldados no Artigo 87, § 3º e Inciso I, onde se lê: “matricular todos os

educandos, a partir dos sete anos de idade e, facultativamente33, a partir dos seis anos, no

ensino fundamental”. Muitos municípios matriculavam até crianças de cinco anos, tornando

multisseriadas as classes, para que o professor recebesse seus vencimentos pelo Fundef.

Ainda existia o fato de que, por não receberem pelo Fundef, muitos profissionais não queriam

mais ensinar nas pré-escolas e creches, ficando as turmas de crianças pequenas relegadas

àqueles professores que não tinham outra escolha.

Em virtude disso, ainda estão fora das pré-escolas e creches muitas crianças por falta

de oferta de vagas. Dados do Plano Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD) de 2003

apontam que, do total de crianças de zero a seis anos, apenas 37,7% frequentam instituição de

educação infantil; e, na população de zero a três anos, esse percentual é de apenas 11,7%.

Observamos que o índice de crianças de zero a três anos fora das creches é ainda alarmente.

Com a LDB No. 9.394/96, alguns discursos começaram a ser travados no cenário

brasileiro sobre a importância da educação infantil e a sua função social. Essa etapa da

educação básica requer ações pedagógicas, e não apenas instituições pra abrigar e assistir as

crianças carentes. Para esse novo atendimento, faz-se necessário, além do cuidado, educação,

por isso passa-se a discutir currículo e propostas pedagógicas para a educação infantil.

A Coordenação Geral de Educação Infantil (COEDI) do MEC criou os Referenciais

Curriculares Nacionais para Educação Infantil (RCNEI) em 1998, com novas propostas

pedagógicas e uma possibilidade de mudança na concepção de educação infantil que até então

estava fundada nos pressupostos da concepção assistencialista. Segundo o documento editado

33 Grifo nosso

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pelo MEC, a PNEI de 2006, o RCNEI “consiste num conjunto de referências e orientações

pedagógicas, não se constituindo como base obrigatória à ação docente” (2006, p. 10).

Nesse mesmo ano (1998), o Conselho Nacional de Educação (CNE) instituiu as

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), cujo Artigo 3º, inciso I,

estabelece que as Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil devem

respeitar os princípios éticos, estéticos e políticos. Esse documento reconhece a importância

da identidade pessoal dos alunos, das famílias e das instituições, promovendo práticas de

educação e cuidado, possibilitando a integração entre os aspectos físicos, emocionais,

afetivos, cognitivos/linguísticos e sociais da criança. No Inciso V, institui que as Propostas

Pedagógicas “devem organizar suas estratégias de avaliação e acompanhamento, mas ‘sem o

objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental’”. Com esse documento,

observa-se o reconhecimento da importância da educação infantil e de uma diretriz que

normatize o cuidado e a educação das crianças.

Notadamente as décadas de 1980 e 1990 foram bastante promissoras e significativas

para o reconhecimento da educação infantil como direito e respeito às particularidades da

infância.

Existem divergências entre alguns pesquisadores e estudiosos da área em relação à

educação de crianças e alguns questionamentos se fazem necessários: qual o objetivo da

educação infantil? Ela deve preparar para o ensino fundamental ou tem uma importância em

si mesma? A educação infantil deve ou não ser considerada escola, deve ou não ter currículo e

programas? Deve treinar para a alfabetização? Ou deve dar ênfase nos aspectos de

desenvolvimento global da criança? Na sociedade em que vivemos, o que é educar uma

criança? Ante esses questionamentos, os grupos vão se divergindo nos discursos e sempre se

dicotomizando: ou uma coisa ou outra.

Devemos reconhecer a importância das DCNEI como princípios relevantes para o

desenvolvimento integral da criança e considerar que nessa fase não é o cuidado que deve

prevalecer, tampouco apenas a educação. Esses dois aspectos precisam estar complexamente

relacionados. O cuidar no educar, e vice-versa, sem excluir um ou outro.

O primeiro ano do século XXI também vai marcar a história da educação infantil

brasileira, pois foi editado em 2001 o Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº. 10.172.

Este documento apresenta como objetivos elevar o grau de escolaridade da população e

melhorar a qualidade de ensino em todos os níveis. Quando aborda “todos os níveis”, notamos

a educação infantil sendo contemplada. Nesse plano, observamos uma preocupação também

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com a educação infantil e não só com o ensino fundamental como vimos em muitos

documentos anteriores, até por que se assim o fosse estaria em contradição com a LDB

9.394/96.

As metas e objetivos previstos no PNE objetivam “ampliar a oferta de educação

infantil de forma a atender, em cinco anos, 30% da população de até 3 anos de idade e 60% da

população de 4 a 6 anos (ou 4 e 5 anos) e, ate o final da década, alcançar a meta de 50% das

crianças de 0 a 3 anos e 80% das de 4 a 5 anos”. O PNE aborda ainda os padrões mínimos

necessários para funcionamento das instituições de educação infantil, seja pública, seja

privada, com instalações adequadas para o atendimento às crianças menores de sete anos e

formação apropriada para os profissionais de educação infantil. Assim, o PNE não só garante

à criança pequena o direito à educação, como também planeja a sua oferta e atendimento.

Em 2006, o MEC, juntamente com a Secretaria da Educação Básica e a Coordenação

Geral da Educação Infantil, publica a Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das

crianças de zero a seis anos à Educação, em que propõe diretrizes, objetivos, metas e

estratégias para a área infantil. Uma das metas é “atender, até 2010, 50% das crianças de 0 a 3

anos, ou seja, 6,5 milhões, e 80% das de quatro a seis anos, ou seja 8 milhões de crianças

(BRASIL, 2006, p. 21).

Segundo dados do IBGE, PNAD 2006, há um crescimento significativo do número de

crianças de zero a três anos de idade: os percentuais passaram de 7.4% para 15.5%. Para as

crianças de quatro aos seis anos, as taxas passaram de 53.8% para 76.0%, o que significa um

aumento de mais de 40% (BRASIL, IBGE).

Ainda segundo dados do IBGE/2006, para as crianças de 7 a 14 anos, há quase uma

universalização da educação: 97,6%. Porém, ainda existem 14 milhões de crianças de 0 a17

anos de idade, em todo o Brasil, fora da escola ou creche. Contudo, desse total, o maior

percentual se concentra entre as crianças de zero a seis anos – educação Infantil, isto é, 82,4%

estavam na faixa etária de 0 e 6 anos. Para o atendimento em creche, ou seja, crianças de zero

a três anos, esse percentual ainda é maior do que o da pré-escola. Sobraram assim 17,6% para

o ensino fundamental e médio. Percebemos que ainda é a educação infantil que apresenta o

maior índice de criança fora da escola. Embora tenha havido aumento no atendimento dessas

crianças, a demanda continua sendo maior que a oferta de vagas em instituições públicas, pois

as crianças das classes médias e altas frequentam escolas infantis particulares.

Nesse mesmo ano (2006), foi promulgada a Lei 11.274 de 6 de fevereiro de 2006, que

amplia o ensino fundamental para nove anos, isto é, as crianças de seis anos são

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obrigatoriamente matriculadas no ensino fundamental. Antes dessa legislação, a SEB/MEC

promoveu encontros regionais em diversos estados brasileiros para debates e discussões sobre

a inserção de crianças de seis anos no ensino fundamental. Assim alguns artigos da LDB

foram alterados e passou a ser obrigatória a matrícula de criança no ensino fundamental a

partir dos seis anos e “os municípios, os Estados e o Distrito Federal terão prazo até 2010,

para implementar a obrigatoriedade para o ensino fundamental de nove anos” (BRASIL,

2006).

O Terceiro Relatório do Programa de Ampliação do Ensino Fundamental para Nove

Anos apresenta possibilidades de organização do ensino fundamental de nove anos, os quais

“demandam estudos, análises e reflexões por parte dos sistemas de ensino” e, para tanto, tais

reflexões “devem levar em conta os sujeitos e suas temporalidades humanas, uma vez que,

antes de serem estudantes, as crianças e os adolescentes são sujeitos em desenvolvimento

humano” (BRASIL, 2006, p. 05). Assim, a educação infantil agora passa a ser o atendimento

para crianças de zero a três anos (creche) e quatro a cinco anos (pré-escola). A primeira etapa

do ensino fundamental passa a ter cinco anos, como a segunda etapa mantém-se com quatro

anos, o atendimento obrigatório compreende a faixa etária dos 6 aos 14 anos.

Esperamos que essa proposta não seja apenas mais uma entre tantas outras criadas

pelos poderes públicos e que só ficaram no papel. Almejamos que essa mudança venha

possibilitar efetivamente a qualidade do ensino e o desenvolvimento integral da criança; que

não seja apenas mais um ano de acréscimo na escolarização da criança e, para isso, o Terceiro

Relatório, citado anteriormente, propõe que as instituições revejam suas concepções de aluno,

de currículo e suas ações para o atendimento às crianças.

Nas reflexões sobre o currículo, esse relatório aponta que

O primeiro ano do ensino fundamental de nove anos não se destina exclusivamente à alfabetização. Mesmo sendo o primeiro ano uma possibilidade para qualificar o ensino e a aprendizagem dos conteúdos da alfabetização e do letramento, não devem ser priorizadas essas aprendizagens como se fossem a única forma de promover o desenvolvimento das crianças dessa faixa etária. É importante que o trabalho pedagógico implementado possibilite ao aluno o desenvolvimento das diversas expressões e o acesso ao conhecimento nas suas diversas áreas. [...] o conteúdo do 1º ano do ensino fundamental de nove anos não deve ser o conteúdo trabalhado no 1º ano/1ª série do ensino fundamental de oito anos, pois não se trata de realizar uma adequação dos conteúdos da 1ª série do ensino fundamental de oito anos. Faz-se necessário elaborar uma nova proposta curricular coerente com as especificidades não só da criança de 6 anos, mas também das demais crianças de 7, 8, 9 e 10 anos, que constituem os cinco anos iniciais do ensino fundamental (BRASIL, 2006, p. 9).

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Em 2007, mais uma mudança acontece na educação brasileira, com a promulgação da

Lei 11.494/2007 – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de

Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). Essa mudança foi efetivada

justamente para garantir a educação às crianças de zero a cinco anos, já que as de seis anos

agora fazem parte do ensino fundamental. A educação infantil, como parte da educação

básica, passa a ser contemplada e desaparece a “prioridade” a qualquer outra etapa de ensino.

Mesmo após a LDB, momento em que a educação infantil passou a fazer parte da

educação básica, as secretarias de assistência social continuaram financiando e administrando

os recursos para o atendimento às crianças de zero a seis anos. Com a aprovação do

FUNDEB, que cria um padrão de financiamento para a educação básica (educação infantil,

ensino fundamental e ensino médio), toda a rede de educação infantil será assumida pelo

sistema de educação e não mais pela secretaria ou sistema de assistência Social.

Finalmente, a educação infantil, primeira etapa da educação básica, é considerada não

apenas como um espaço para “guardar” a criança, mas como um lugar que promove o

desenvolvimento pleno da criança, porque se entende que não existe separação entre cuidar e

educar. É um espaço (creche e pré-escola) que cuida/educa crianças para que possam se

desenvolver com qualidade; espaço que promove o desenvolvimento e contribui para o

crescimento (físico, cognitivo, social, afetivo, emocional) saudável.

Neste capítulo, analisamos o tratamento dado à infância, à criança e à educação

infantil pelas políticas públicas brasileiras, na história da legislação educacional brasileira. No

próximo capítulo, discutiremos o currículo e a sua trajetória no cenário educacional com

ênfase no currículo da educação infantil, isto é, da pré-escola.

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CAPÍTULO III – CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO E A EDUCAÇÃO INFANTIL

[...] o pensamento complexo em currículo é coletivizar/

cultivar a dialogicidade na incerteza e no conflito. Roberto Sidnei Macedo

3.1 CURRÍCULO: TRAJETÓRIA E CONCEPÇÕES

O currículo está sempre presente na nossa trajetória, seja na vida profissional, seja na

pessoal. Quando falamos de programas de ensino em sala de aula, de conhecimento produzido

ou transmitido nas escolas, estamos nos referindo a currículo. Quando nos preparamos para

conseguir uma vaga de emprego no mercado de trabalho, estamos nos referindo ao curriculum

vitae, isto é, à carreira da vida. Mas, o que significa essa palavra que tem provocado tantas

reflexões nos centros acadêmicos? A discussão sobre currículo é ampla e complexa e requer

maiores aprofundamentos teóricos e filosóficos.

As reflexões acerca do currículo fazem parte da nossa vida pessoal/profissional, do

cenário educacional e, consequentemente, das políticas de educação, tendo em vista as

transformações que estão ocorrendo nas sociedades contemporâneas, nos seus mais variados

aspectos, seja no campo da cultura, do conhecimento, da economia ou das relações sociais.

Emergem, por isso, novas concepções de educação, de conhecimento, de criança e de

currículo, num embate constante.

Os papéis que os sujeitos desempenham no cotidiano escolar não podem ser definidos

apenas institucionalmente e de acordo com as normas decorrentes da lógica hierárquica de

funções ou formações, pois hoje entendemos o currículo como um artefato sociocultural que

possibilita o desenvolvimento no âmbito educacional, desde os conhecimentos já construídos

pela humanidade nas áreas específicas (disciplinas), como a filosofia da escola, a forma como

os docentes trabalham, a relação escola-comunidade-alunos, a concepção de mundo dos

envolvidos, até a concepção de cultura e de construção e reconstrução dos saberes instituídos.

Nessa perspectiva, o currículo na escola de educação infantil, especialmente de pré-escola,

deve ocupar um lugar central nas discussões pela sua importância na construção/reconstrução

do conhecimento e da identidade cultural da criança.

Reconhecendo a relevante contribuição do currículo para o desenvolvimento não

apenas cognitivo do aluno, mas para a sua formação social, política e cultural, percebemos a

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necessidade de fazer um estudo mais aprofundado nesta área e refletir sobre o currículo e a

construção do conhecimento na educação de crianças.

Partindo dessa visão, propomos uma discussão voltada para a desmitificação da ideia

de que o currículo é apenas um conjunto de normas e técnicas a ser seguido pela escola.

Muito pelo contrário, é um artefato social e cultural que está presente na vida da criança/aluno

e que influenciará diretamente na sua forma de pensar e ver o mundo. Os argumentos

apresentados buscam suporte na filosofia e em alguns curriculistas brasileiros, com o objetivo

de identificar a relação entre o currículo e a construção do saber na educação infantil.

Ao iniciar uma discussão a respeito de currículo, achamos necessário, em primeiro

lugar, compreender o próprio significado do termo. O étimo da palavra currículo é a forma

latina curriculum, que significa “ato de correr”, que deriva do verbo latino currere – correr –,

que, por sua vez, significa deslocar-se com rapidez.34 Quando se fala em correr, fala-se de

caminho, de percurso. Nessa perspectiva, o currículo seria o percurso, o caminho a seguir? A

própria etimologia da palavra denota movimento, processo, ou seja, algo que não é estático,

imóvel, parado. E, é dessa forma, que o currículo deve ser entendido, nesse sentido mais

abrangente, como artefato dinâmico e essencial no processo da educação. O curriculum vitae

fala de corrida da vida, e o currículo da escola seria o caminho percorrido pela escola. A

escola vai seguir o caminho para chegar ao conhecimento ou vai seguir o caminho do

conhecimento para chegar à formação do homem? Qual seria o significado propriamente de

currículo? A que currículo, estamos nos referindo?

O saber sistematizado a respeito de currículo nem sempre existiu da mesma maneira

na história da humanidade, mas sempre houve uma preocupação com o que deveria ser

ensinado a crianças e jovens.

Com os povos antigos, havia a transmissão do conhecimento próprio das atividades da

vida prática. Transmitiam-se os conhecimentos agrícolas, da caça e da pesca; conhecimentos

dos fenômenos meteorológicos. Era uma educação por imitação, adquirida na convivência

com os pais e outros adultos. Cada povo (chinês, hindu, egípcio, hebreu) tinha a sua maneira

própria de educar as suas crianças: uns, dando prioridade aos conhecimentos morais,

religiosos; outros, priorizando os saberes domésticos ou agrícolas. Independente do que se

ensinava, havia uma educação familiar.

A educação de crianças pequenas surgiu como um saber mais sistematizado apenas

com a civilização grega, especialmente a educação dos atenienses. Depois dos sete anos, as

34 Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa Nova Fronteira.

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crianças eram entregues a uma educação oficial, que valorizava a ginástica e a música. Até

então, essa educação se dava no seio familiar. No entanto, Platão defendia a ideia de que, na

educação da primeira infância, deve-se trabalhar com jogos educativos. Haveria aí um

primeiro olhar sobre a organização curricular da educação infantil?

Segundo Pacheco (2005, p. 30), “a palavra currículo é de origem recente e aparece

com o significado de organização do ensino, querendo dizer o mesmo que disciplina” ou área

de conhecimento a ser ministrada nas escolas. Se pensarmos o significado de currículo por

essa visão restrita, isto é, como um programa ou plano de ensino a ser seguido pelas escolas,

percebemos que, na Antiguidade, já havia a preocupação com o que se deveria ensinar à

criança. Quais seriam então as disciplinas ou área de conhecimento que fariam parte do

programa de ensino? Os gregos defendiam um currículo em que se ensinasse a música, a

dança, a preparação física e, ainda, a oratória.

Vimos, no capítulo anterior, a discussão entre Sócrates e Glauco sobre a sociedade

ideal e a visão de que uma cidade fundada nos ideais de justiça social e de felicidade humana

só seria alcançada mediante a educação do indivíduo, em que “primeiro se deveria ensinar a

música para depois a ginástica”. A partir da música, “incluir também a literatura” (PLATÃO,

2005, p. 55). Observamos já uma discussão sobre currículo e uma preocupação com a

formação integral da criança, do homem.

As inquietações com o que se deveria ensinar às crianças e aos jovens continuaram a

existir na Idade Média. O currículo é manifestado com a seleção das disciplinas que fariam

parte daquele programa a ser seguido pelos alunos: o trivium (os três caminhos) – gramática,

dialética e retórica; e o quadrivium (os quatro caminhos) – aritmética, geometria, astronomia e

música. Esse era o currículo defendido no período medieval pelas instiuições de ensino.

Com a Contra-Reforma, os jesuítas também manifestaram interesse na educação das

crianças. O Ratio Studiorum, conjunto de normas para regulamentar o ensino nos colégios

jesuíticos, que tinha uma base comum e objetivava ordenar as atividades, as funções e os

métodos de avaliação, também deu a sua contribuição na história da educação e de currículo,

ao selecionar o que deveria ser ensinado às crianças. Mesmo voltado para a confissão,

pregação e catequização, atividades espirituais, havia também uma preocupação em promover

o ensino da leitura, da escrita e do cálculo. Os Jesuítas tiveram um papel importante na

educação de crianças, até porque eles dominaram o sistema educacional por dois séculos.

Um dos precursores da organização do ensino que deveria ser ministrado nas escolas

foi Comenius (1592-1670), que, com a sua obra Didática Magna, o Tratado da Arte Universal

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de Ensinar Tudo a Todos, contribuiu na constituição do currículo ao propor um método

seguro e excelente, por meio do qual todos pudessem aprender. Ele advertia que os

“professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho,

menos enfado, menos trabalho inútil, e, ao contrário, haja mais recolhimento, mais atrativo e

mais sólido progresso” (COMENIUS, 2001 p. 12). Com esse método, seria impossível,

segundo ele, não conseguir bons resultados. “Ensinar rapidamente, ou seja, sem nenhum

enfado e sem nenhum aborrecimento para os alunos e os professores, mas antes com sumo

prazer para ambos os lados” (idem, 2001, p. 13).

A obra de Comenius, considerada clássica, expressa a formação do homem em vários

aspectos e demonstra a compreensão da educação, do homem, da filosofia e da didática tendo

sempre como base a teologia. Segundo este autor, era preciso plantar os germes da sabedoria,

da honestidade e da piedade desde a infância, a que ele chamava de Primeira Idade. Comenius

propõe um sistema articulado de ensino, reconhecendo o igual direito de todos os homens ao

saber. Para ele, a educação deveria ser permanente, isto é, acontecer durante toda a vida

humana, pois nós sempre estamos sendo homens e, portanto, estamos sempre nos formando.

Assim, ele indica alguns atributos indispensáveis à vida humana, que são:

instrução – conhecimento pleno das coisas, artes, línguas; virtude, ou seja, honestidade de costumes não apenas a urbanização exterior, mas a plena formação interior e exterior dos movimentos da alma – que seja capaz de dominar as coisas e a si mesmo; e religioso ou seja piedade – veneração interior, pela qual a alma humana se liga e se prende ao Ser Supremo – que dirija a si e a todas as coisas para Deus, fonte de tudo (COMENIUS, 2001 p. 75).

Vemos que o currículo proposto por Comenius era pautado em três princípios básicos:

instrução, virtude e religião e, a partir daí, iriam se construindo o conhecimento, os saberes.

Comenius apresenta uma proposta sobre o quê e como ensinar. De que forma o legado

deixado pela humanidade deveria ser ensinado? O que deveria ser privilegiado? Sua proposta

universal é que deveria ensinar tudo a todos, porém essa é uma questão é complexa, pois

jamais poderemos ensinar tudo a todos, também não conseguiremos saber tudo. Não é

objetivo dessa discussão apresentar uma reflexão crítica dos ideais de Comenius, mas refletir

sobre a concepção de currículo presente naquele momento histórico.

A descoberta da infância segundo os ideais romântico-naturalistas de Rousseau

inaugurou uma nova visão de criança e de educação. Surgem educadores como Pestalozzi

(1746-1827), que dedicará a vida a pôr em prática os ideais rousseaunianos. Após leitura da

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obra de Rousseau, Pestalozzi procurou aplicar as ideias pedagógicas expostas na obra Emílio

ou Da Educação, abrindo uma escola para atender crianças pobres e abandonadas. O currículo

por ele desenvolvido dava ênfase ao atendimento oral, à geografia, à aritmética, às artes

manuais, ao canto, às atividades de grupo e ao contato com a natureza. Partia sempre das

experiências concretas das crianças para estimular a observação e o raciocínio. Para esse

autor, tudo que fosse ensinado deveria ter utilidade para a vida. A família tinha um papel

preponderante no pensamento pedagógico desse educador, e a criança deveria ser educada

segundo princípios morais e religiosos.

Arce (2002) assegura que, para Pestalozzi, a família deveria promover a primeira

educação, pois assim a criança teria na escola uma educação melhor. Na obra de Pestalozzi

denominada Leonardo e Gertrudes, fica claro o papel desempenhado pela mãe na educação

dos filhos. “A mãe deve zelar pelo bem mais precioso da família: a criança, educando-a e

protegendo-a da degeneração moral, missão primeira de toda educadora” (ARCE, p. 117).

O pensamento pedagógico de Pestalozzi estava pautado na educação pelo exemplo,

pois, para ele, não adiantava muito o professor ensinar a boa moral se não a vivesse. Tudo que

a criança deveria fazer deveria estar voltado para o Criador e deveria haver equilíbrio entre o

homem, a natureza e Deus.

O resultado do sistema de ensino de Gertrudes, personagem principal da obra de

Pestalozzi, para com os filhos era que

[...] cada criança era talentosa, inteligente e ativa para a idade. A instrução que ela dava a eles nos básicos princípios da aritmética estava inteiramente ligada com a realidade da vida. Ela ensinava-os a contar os números dos degraus de um cômodo para outro e duas das fileiras de cindo vidraças, em uma das janelas, deu a ela a oportunidade para abrir as relações decimais dos números. [...] Acima de tudo, em cada ocupação da vida ela os ensinava uma observação acertada e inteligente de objetivos comuns e de forças da natureza (PESTALOZZI apud ARCE, 2002, p. 112).

Nesse pensamento, Pestalozzi está se referindo à educação dada por Gertrudes a seus

filhos. Essa era a primeira educação que a criança deveria receber, mediante situações práticas

e a partir da experiência. Acrescenta que “a leitura, a escrita e a aritmética não são o que elas

mais precisam; é muito bom para elas aprender algo, mas o que é realmente importante para

elas é ser algo, para que elas se tornem o que devem ser mesmo que geralmente não tenham

ajuda ou orientação em casa” (idem, 2002, p. 113). Com esse argumento, o autor está se

referindo às crianças da sua instituição, que não tinham orientação em casa e para as quais ele

agia como um pai. O pensamento de Pestalozzi influenciou significativamente a educação e,

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especialmente, a educação de crianças pequenas e contribuiu também na construção de um

currículo para a educação pré-escolar.

Nessa perspectiva, a trajetória do currículo foi sendo construída historicamente. Mas,

segundo Moreira e Silva (2000, p. 09), é com Dewey e Kilpatrick, que surgiram os primeiros

estudos e propostas mais específicas voltadas para o currículo.

Dewey (1859-1952), filósofo e pedagogo, fundador da Escola Ativa, contribuiu de

forma significativa para a construção de uma educação de qualidade, uma educação que não

privilegie apenas o cognitivo. Ele teceu várias críticas às escolas por trabalhar de forma

fragmentada os conhecimentos (temas, lições), sem conexão uns com os outros e com a vida.

Para Dewey, a educação é um processo de vida e não uma preparação para vida futura, e a

escola deve representar a vida presente tão real e vital para o aluno como a que ele vive em

casa ou no bairro.

Suas inquietações em relação aos métodos e propostas das escolas levaram-no a

propor um currículo que valorizasse os interesses do aluno e um ensino que ocorresse pela

ação e não apenas pela instrução. As instituições de ensino não deveriam obrigar os alunos a

trabalharem com uma excessiva compartimentação da cultura em matérias, temas, lições e

abundância de conteúdos com pouca serventia. A educação, segundo o pensamento

deweyano, é um processo vital e presente na vida do aluno e não apenas uma preparação para

vida futura como muitos acreditam.

Cunha (1994, p. 38-39), ao fazer uma análise das obras de Dewey, salienta que, para

esse autor,

Educar não é um mero procedimento pelo qual se instrui as crianças para que reproduzam determinados conhecimentos. Educar é pôr o indivíduo em contato com a cultura a que pertence e, mais do que isto, é prepará-lo para discernir situações que exijam reformulações e para agir em consonância com estas necessidades de transformação. Todo procedimento educativo tem a finalidade primordial de possibilitar a continuidade da vida do agrupamento social. A finalidade da educação não deve se encerrar no interior de qualquer instituição formalmente criada para instruir, mas deve estar enraizada na necessidade de sobrevivência coletiva.

Dessa forma, o currículo proposto por Dewey visa atender às necessidades dos alunos

para que eles possam aprender com prazer e não de forma enfadonha e cansativa. O

currículo, nessa perspectiva, deveria valorizar o interesse do aluno, o valor que ele dá ao

conhecimento, o significado de estar ou não aprendendo determinada coisa, e propor situações

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que despertem a curiosidade do aluno, para que, dessa forma, ele não sinta diferença entre a

vida exterior e a vida escolar.

A partir dos ideais de Dewey e do seu discípulo Kilpatrick (1871-1965), surgiram os

primeiros passos para a nossa, hoje, tão conhecida Pedagogia de Projetos, pois Kilpatrick

levou para a sala de aula as ideias deweyano, objetivando globalizar o ensino, e isso, para ele,

aconteceria por meio de atividades manuais. O projeto como método didático é uma atividade

intencionada que consiste em os próprios alunos fazerem algo num ambiente natural,

integrando ou globalizando o ensino. Por meio de, por exemplo, uma temática, poderiam ser

ministrados vários ensinamentos como arte, cálculo, geografia, história etc. Essa proposta de

ensino por meio de temas serviria como mediador das disciplinas.

Assim, termos, como currículo integrado, global, transversal, interdisciplinar,

metodologia de projetos, projetos de trabalho, fazem parte do contexto educacional e do dia-a-

dia do professor e remetem à possibilidade de trabalhar com as questões sociais, com os

problemas cotidianos da vida do aluno e com a diversidade e heterogeneidade existentes na

escola.

Questionamentos sobre o que ensinar, como ensinar, o que privilegiar na construção

do conhecimento nas escolas, fizeram surgir, nos Estados Unidos, nos anos 1920, uma

teorização sobre currículo, mas só nos anos 60/70, época de grande efervescência no âmbito

social, político e também educacional, é que nasceu a denominada Teoria Crítica do

Currículo, que objetiva levar em conta não apenas o que se deve ensinar, mas também as

desigualdades educacionais centradas nas relações de gênero, raça, cultura, classe social etc.

Desse ponto de vista, “as teorias críticas são teorias de desconfiança, questionamentos e

transformação radical. Para as teorias críticas o importante não é desenvolver técnicas de

como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o

currículo faz” (SILVA, 2005, p. 30).

Falar de currículo não é o mesmo que falar de programa, embora, por um tempo, essas

palavras fossem compreendidas como sinônimas. Falar de currículo hoje é falar de processo,

construção e reconstrução. As primeiras propostas/reflexões foram importantes para a

construção reconstrução de novos significados, mas era preciso romper com essa visão restrita

de currículo.

Reconhecemos que é impossível ensinar tudo a todos. O que se preconiza no mundo

contemporâneo é um currículo como uma construção social e não como algo estático e restrito

a programa. Para Pacheco (2005, p. 58), faz-se necessário “analisar o currículo como uma

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construção social, cultural, individual e ideológica a partir dos pressupostos sociedade,

cultura, aluno e ideologia/hegemonia”.

As investigações curriculares de Dewey e Kilpatrick objetivavam adaptar a escola e o

currículo à ordem capitalista que se consolidava naquele momento histórico, para atender

àquele contexto emergente – industrialização e urbanização da sociedade. Assim, surgiu a

necessidade de um currículo mais aberto ao projeto de formação do homem. Naquela

sociedade moderna, o currículo tornar-se-ia um instrumento ideológico que regularia as

relações entre a sociedade e a escola.

Nessa perspectiva, Moreira e Silva (2000, p. 10) salientam que

A escola foi, então, vista como capaz de desempenhar papel de relevo no cumprimento de tais funções e facilitar a adaptação das novas gerações às transformações econômicas, sociais e culturais que ocorriam. Na escola, considerou-se o currículo como o instrumento por excelência de controle social que se pretendia estabelecer. Coube, assim, à escola, incluir os valores, as condutas e os hábitos “adequados”.

Como vimos, o currículo escolar reflete concretamente o recorte cultural que visa

atender a certos interesses que permeiam as relações de poder na manutenção de uma

determinada estrutura. Isto se traduz tanto nos conteúdos ensinados pela escola, quanto nos

valores veiculados pelas relações sociais estabelecidas. No espaço escolar, estão implícitos

jogos de interesses de forças políticas que perpassam não apenas o que está estruturado na

cultura velada na escola, mas também as crenças, os valores e as atitudes que permeiam a ação

dos professores. Costa (2003, p. 41) destaca que o currículo

constitui um conjunto articulado e normatizado de saberes, regidos por uma determinada ordem, estabelecida em uma arena em que estão em luta visões de mundo e onde se produzem, elegem e transmitem representações, narrativas e significados sobre as coisas e os seres do mundo.

De acordo com essa visão, o currículo, hoje, não é apenas um conjunto de disciplinas e

conteúdos fragmentados, mas tudo o que envolve a vida escolar do aluno, desde as questões

socioculturais, as relações interpessoais até as atividades desenvolvidas. Moreira e Silva

(2000) falam de uma tradição crítica do currículo guiado por questões sociológicas, políticas,

epistemológicas. Segundo esses autores,

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O currículo há muito tempo deixou de ser apenas uma área meramente técnica, voltada para questões relativas a procedimentos, técnicas, métodos. Embora questões relativas ao “como” do currículo continuem importantes, elas só adquirem sentido dentro de uma perspectiva que as considere em sua relação com questões que perguntem pelo “por que” das formas de organização (p. 7).

As reflexões de Pacheco (2005, p. 33), como curriculista, apontam que

não se conceituará currículo como um plano, totalmente previsto ou prescrito, mas como um todo organizado em função de propósitos educativos e de saberes, atitudes, crenças e valores que os intervenientes curriculares trazem consigo e que realizam no contexto das experiências e dos processos de aprendizagem formais e/ou informais.

Ante essas visões, observamos duas concepções distintas: uma que vê o currículo

como programa, “uma seqüência ordenada”, e outra que o vê como “noção de totalidade”

(PACHECO, 2005, p. 35), em que o significado e a experiência do aluno são pedras angulares

do processo educativo.

Embora essas duas concepções sejam distintas, convém refletir que elas não podem ser

aceitas como dicotômicas, ou seja, ou uma, ou outra. Se pensarmos assim, vamos cair nas

velhas dicotomias da história da humanidade, sempre em uma sociedade dualizada

(sujeito/objeto, corpo/alma, razão/emoção, trabalho manual/intelectual, pensar/executar,

bonito/feio etc.) como já abordamos anteriormente. É preciso romper com o hábito de ver

tudo de forma linear e unidimensional, isto é, olhar apenas por uma perspectiva. Pacheco

(2005, p. 34) afirma que “currículo se define, essencialmente pela sua complexidade35 e

ambigüidade, pois trata-se de um conceito que não tem sentido unívoco”. Não existe uma

definição precisa sobre currículo, porque não existe consenso. Mas, também não se pode cair

no extremo de dizer que currículo é tudo, pois dessa maneira não há possibilidade de

conceituá-lo. Se for tudo, também poderá não ser nada.

Há muitas críticas à ideia de currículo como um programa, um plano, um curso e,

também, como um meio apenas de controlar o conhecimento e a sociedade, representação da

ideologia da classe dominante. Observamos que os dois extremos são perigosos e que não

deve haver essa separação. O currículo como uma construção histórica e social se efetiva nas

relações sociais dos sujeitos envolvidos no processo educativo, com toda a sua diversidade

35 Discutiremos esse termo no próximo tópico com base na teoria da complexidade de Edgar Morin.

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(crenças, valores, cultura, interesses), e reflete a concepção de conhecimento, de homem, de

criança e de escola.

Seja a concepção formalista, isto é, tradicional ou a concepção emancipatória e

democrática, o currículo está presente no cotidiano das escolas e é preciso vê-lo no seu todo,

como um “código cultural, social e ideológico em permanente reconstrução” (PACHECO,

2005, p. 77).

Segundo Macedo (2005, p. 68), “a formação no currículo deve pleitear, o caminhar,

enquanto dispositivo de alteração, no sentido de alterar-se com o outro, buscando a construção

da autonomia”. Essas alterações vão se dar na construção coletiva, nas relações sociais e

interpessoais, e não de forma imposta.

É preciso refletir sobre currículo à luz de um pensamento complexo dialógico, pois o

ser humano percebe o mundo real que o envolve, ou seja, as relações sociais, a família, a

natureza, o trabalho, as instituições em geral, de forma diferente e complexa. A maneira como

o homem vê o mundo não é igual para todos, muito menos para a criança. A construção do

conhecimento deve ser resultado de um confronto entre diferentes alternativas de

compreensão e de concretização do mundo, fazendo surgir uma concepção epistemológica de

currículo e não apenas um conjunto de regras a ser seguido.

Faz-se necessário que haja mudança no paradigma das práticas escolares, para que o

ensino deixe de ser a transferência fiel de verdades aprendidas, repetições de saberes já

instituídos, e a aprendizagem não seja apenas a assimilação passiva de verdades ensinadas, de

acumulação e de memorização de conhecimentos. Rompendo com essa visão mecanicista e

ingênua das relações entre currículo, educação e sociedade, rompe-se também com a visão de

que conhecer não é apenas contemplar o mundo; conhecer é recriar o mundo com base em

vários contextos e diferentes visões. Dessa forma, o currículo poderá sair de uma concepção

de “grade”, que aprisiona a criatividade, e passar para uma visão muito mais aberta,

significativa, emancipatória com fundamento nas relações sociais, isto é, com uma postura

dialógica, curiosa, indagadora.

Nessa perspectiva de currículo, como é concebido o conhecimento e que conhecimento

deve ser ensinado? Que tipo de conhecimento (saberes) tem sido priorizado pelas escolas de

EDUCAÇÃO INFANTIL?

Moreira e Garcia (2006, p. 25) consideram o conhecimento escolar como o tema central

do campo do currículo:

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A escola está sendo acusada de não conseguir ensinar, de não promover a aprendizagem do aluno, de estar formando pessoas sem os conhecimentos indispensáveis à luta por uma vida mais digna. O conhecimento é hoje cada vez mais importante para toda e qualquer criança, todo e qualquer adulto. Logo, eu vejo o processo curricular na escola girando em torno de conhecimento. Obviamente não é qualquer conhecimento, desprovido de qualquer sentido, mas um conhecimento que, depois de uma série de perguntas que se façam e de respostas que se dêem, e com base em um posicionamento claro e consciente, tenhamos considerado importante de estar sendo trabalhado por alunos e professores.

O conhecimento que se busca com esse currículo não é um conhecimento racional

apenas, mas também um conhecimento estético, ético, das experiências (empírico) e das

relações sócio-históricas (interacionistas) do sujeito. Um conhecimento que esteja voltado para

toda a forma de expressão humana, visto que não é acabado nem estático, mas dinâmico.

Assim, como a escola deve preparar as novas gerações para enfrentar o mundo? Como

contribuir para que os sujeitos desenvolvam a cooperação, o respeito às diferenças, cultivem o

amor, aprendam a partilhar e a conviver com o diferente, aspectos estes indispensáveis na

formação humana?

Nessa busca, estes vocábulos – currículo integrado, interdisciplinaridade, educação

global, pedagogia de projetos, currículo transversal, educação holística – já mencionados,

passaram a fazer parte do mundo docente, porém, nada disso adianta se o profissional da

educação e, especificamente, da educação infantil não tiver uma postura crítica, de reflexão e

análise da realidade e dos aspectos pedagógicos para propor mudanças significativas.

Acreditamos que essa concepção curricular para a formação de ser humano autônomo,

democrático, solidário, justo, honesto deva mesmo começar na educação infantil.

Questões, como etnia, pluralidade cultural, por exemplo, que fazem parte do currículo,

não devem ser trabalhadas apenas em um momento estanque, ou em datas comemorativas, mas

devem ser assunto central da escola, em permanente discussão, transversalizando todas as

áreas do conhecimento.

A teoria curricular constitui-se um processo extremamente dinâmico e atento aos

desenvolvimentos teóricos em outros campos. Entendemos que refletir sobre currículo na

contemporaneidade é pensar sobre a condição do conhecimento produzido nos espaços da

escola, como também fora dela e, da mesma forma, pensar nas escolas e nos currículos

praticados para além dos seus contextos imediatos.

As proposições acerca do currículo e o desempenho dos sujeitos no dia-a-dia da escola

não devem ser definidos de maneira solipsista, reducionista e institucionalizada, pois hoje se

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entende o currículo como uma construção social interessada sim, mas, também complexa,

instituída e instituinte, por meio da qual os sujeitos manifestam suas ações no cotidiano

escolar, construindo e reconstruindo saberes, atribuindo novos olhares e dando novos

significados.

E, é nessa perspectiva que concebemos o currículo da educação infantil, pois o

conhecimento não acontece no vazio, tampouco de forma fragmentada; acontece na construção

coletiva, por meio da linguagem, reflexão e criatividade dos sujeitos envolvidos. Ainda é

importante pensar que o currículo não é um corpo de conhecimentos fixo e imutável, mas

concreto, que está presente em todas as ações da escola e fora dela, de forma explícita ou

implícita; de forma clara ou oculta. O currículo caracteriza-se como um espaço de luta cultural

e de construção de significados.

Os elementos discutidos até então nos levam a compreender que currículo pressupõe

intencionalidade. Não há como ensinar sem ter uma finalidade, um objetivo. Daí vêm as

seguintes questões: qual o objetivo do currículo da educação infantil? O que se pretende

ensinar e por quê? O que tem sido priorizado nessa fase da vida do ser humano? Esses

questionamentos nos levam a repensar o currículo das escolas de educação infantil.

Concebemos o currículo como um artefato sociocultural que tem um grande poder no

processo de construção do conhecimento, na formação do sujeito. E que tipo de sujeitos

queremos formar? Por isso, faz-se necessário repensar a sua prática no contexto escolar e

propor mudanças significativas, pois a escola deve ser um espaço de criação e recriação do

conhecimento e não apenas de reprodução, pois esse conhecimento não é neutro, como já

dizia Paulo Freire. Segundo Cortella (2004, p. 124), faz-se necessário “na escola, não apenas

falar sobre coisas prazerosas, mas, principalmente, falar prazerosamente sobre as coisas”.

É preciso romper com a educação fragmentada e estática, romper com esse olhar de

que a pré-escola não é escola, ou de que, por ser educação infantil, pode-se trabalhar qualquer

coisa, pois “eles não sabem nada mesmo”. Carecemos de uma educação infantil que pense na

criança na sua totalidade e não apenas a sua cognição e na sua preparação para a primeira

série, tampouco uma educação para compensar as carências culturais ou alimentares. A

escola (pré-escola) é um espaço de luta, de reinventar outro currículo, uma nova forma de

conceber a criança, o conhecimento e a sua construção. Um currículo para a educação pré-

escolar deve dizer não à discriminação, à violência, à injustiça, à corrupção e à opressão e

promover o desenvolvimento pleno da criança.

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3.2 O CURRÍCULO SEGUNDO A COMPLEXIDADE E A MULTIRREFERENCIALIDADE

A reflexão de currículo à luz da epistemologia da complexidade e da

multirreferencialidade e a interconexão dessas abordagens trazem a possibilidade de construir

um currículo escolar voltado para a complexidade, que esteja em permanente processo de

construção e reconstrução da realidade, do saber e, que, ao se construir, constrói o outro; que

esteja em permanente processo de criação e recriação do conhecimento. É nessa visão da

diversidade na unidade, e vice-versa, dos olhares e leituras diferenciados que se constrói um

pensamento complexo, articulando os múltiplos saberes da humanidade, as diversas áreas do

conhecimento numa postura multirreferencial da realidade e dos fenômenos educativos.

Mas qual o significado de multirreferencialidade e complexidade e qual sua relação

com currículo, especialmente o currículo da educação infantil?

A complexidade e a multirreferencialidade são conceitos forjados pelos filósofos

franceses e educadores da Universidade de Paris VIII, Morin e Ardoino, respectivamente, os

quais discutem concepções de homem, mundo, sociedade, educação, conhecimento,

rompendo com o modelo cartesiano e positivista de ver a realidade e resolver os problemas

humanos mecanicamente, fragmentando os saberes e o próprio homem. Morin e Ardoino

discutem e questionam o racionalismo cartesiano, insuficiente, segundo esses autores, para

resolver os problemas humanos dos quais participam também as emoções e os sentimentos.

Diante das diversidades contextuais (social, econômica, política, cultural, educacional)

e, também, como salienta Morin (1998, p. 13) e de “problemas polidisciplinares,

transdisiciplinares, transversais e multidimensionais e globais”, os quais a concepção

positivista não dá conta de resolver, Morin cria a teoria da complexidade para explicitar a

nova concepção de homem, de mundo e de como agir/viver nesse contexto diverso.

Para Morin, Ciurana e Motta (2003, p. 45),

complexidade é um tecido de elementos heterogêneos inseparavelmente associados, que apresentam a relação paradoxal entre o uno e o múltiplo. A complexidade é efetivamente a rede de eventos, ações, interações, retroações, determinações, acasos que constituem nosso mundo fenomênico. A complexidade apresenta-se, assim, sob o aspecto perturbador da perplexidade, da desordem, da ambigüidade, da incerteza, ou seja, de tudo aquilo que é se encontra no emaranhado inextricável.

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De tal modo, a complexidade rompe com tudo que é linear, fragmentado, único, certo,

determinado, universal, homogêneo e se embrenha em um universo multidimensional de

contradições, incertezas e heterogeneidades. Entretanto a complexidade não é uma panacéia

que busca curar todos os males da sociedade e especialmente da educação. Não é uma teoria

que pretenda dar conta, explicar e resolver tudo, mas uma atitude desafiadora que cada

estudioso, cada educador e cada sujeito deve buscar para sua vida seja profissional ou pessoal,

pois a complexidade não é apenas uma concepção teórica, mas uma atitude de vida, de

mudança.

Na concepção moriniana, o pensamento complexo objetiva juntar, interligar coisas,

pessoas, situações para que, dessa interação, surjam ideias novas. Mas procura fazer isso sem

perda da condição de individualidade, de singularidade que cada coisa e situação trazem em

si. Ainda se referindo à complexidade, Morin (2006) assegura que

existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo e o metodológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes (p. 14).

Esse filósofo vê o homem e a realidade de maneira não cindida, como foram vistos

durante séculos na história da humanidade. A abordagem multirreferencial busca também

romper com a visão reducionista de mundo, como salienta Borba (1998, p. 13), “um hino ao

esforço de liberação humana”. Ardoino e Morin discutem conjuntamente as teorias da

multirreferencialidade e da complexidade, aqui separadas por conta de uma organização

didática, pois essas duas concepções estão intimamente imbricadas. Elas não estão na lógica

do “ou/ou”, pois, quando agimos segundo essa lógica, deixamos uma de lado e privilegiamos

outra, ficando explícita a opção de uma como verdadeira, ou melhor, e a outra como não

verdadeira ou o pior. Essa lógica do pensamento linear exclui a complexidade e a

multirreferencialidade, e estas estão na lógica do “e/e”, isto é, na lógica do complexo, que

prima pela unidade na diversidade e vice-versa, a ordem dentro da desordem, a certeza dentro

da incerteza.

Segundo Ardoino (1998, p. 24), “a multirreferencialidade propõe-se a uma leitura

plural de seus objetos (práticos ou teóricos), sob diferentes pontos de vista” Nessa

perspectiva, na nossa vida cotidiana, estamos habituados a uma linguagem única, a uma única

explicação para determinadas situações, objetos, fenômenos. Porém se desejamos ter uma

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postura multirreferencial, faz-se necessário um olhar multirreferencial. A existência humana é

formada de contradições. A psicanálise fala de sentimentos ambivalentes que muitas vezes

nutrimos por outras pessoas ou fenômenos. Somos sujeitos ambivalentes, somos sujeitos da

contradição. Na nossa história de vida, manifestamos muitas vezes sentimentos contraditórios:

confiamos e desconfiamos, acreditamos e desacreditamos, amamos e odiamos ao mesmo

tempo. Essas contradições nos remetem a uma visão e postura multirreferencial, pois ela vai

se “preocupar em tornar mais legíveis a partir de certa qualidade de leituras (plurais), tais

fenômenos complexos (processos, situações, práticas sociais etc.)” (ARDOINO, 1998, p. 37).

Vivemos em um mundo marcado por profundas mudanças, um mundo em que tudo

que surge, como certas teorias e concepções, acaba virando modismo e é, muitas vezes,

reduzido a métodos e utilizado como fórmula ou procedimento para resolver algum problema,

como foi o caso da teoria da epistemologia genética de Jean Piaget, que muitos deturparam e

passaram a adotar como um “método de ensino”. Falava-se e utilizava-se, em sala de aula, o

“método de Piaget”, sem que esse biólogo e psicólogo tivesse criado qualquer método de

ensino. Outros se diziam construtivistas apenas por deixarem as crianças sozinhas, muitas

vezes, sem nenhum acompanhamento. Essa era a visão de “construção do conhecimento”, a

de que não se deveria interferir para que as crianças pudessem “criar” sozinhas. E assim

deturpa-se a concepção construtivista de educação. É preciso ter certa cautela para não

colocar tais concepções (complexidade e multirreferencialidade) no mesmo bojo,

restringindo-as a mais um método de trabalho ou de ensino.

Deparamo-nos com situações na educação em que, mais do que nunca, é necessário

repensar as posturas de muitos profissionais, pois alguns (no século XXI!) ainda acreditam

que devem continuar educando como foram educados. Muitos dizem que “antigamente era

que a educação era boa, pois os alunos aprendiam. Hoje os alunos não sabem nada, não se

cobra do aluno como antigamente”. Esse saudosismo daquele tipo de educação está muito

relacionado com uma aprendizagem cognitiva e nos faz pensar em uma educação, como diz

Paulo Freire, bancária, em que o aluno ouve passivamente o que o professor diz.

Diante de toda essa discussão, Burnham (1988, p. 53-54) faz também uma crítica ao

currículo instituído ao dizer que

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O currículo escolar, que sempre foi caracterizado por relações autoritárias, pelo aparente privilégio da razão e pela função de transmitir conhecimento, mais recentemente tem perdido essas suas características e se limitado a um mero espaço/tempo em que sujeitos se isolam durante um período de seus dias, sem clareza do que vão fazer. A imaginação, a exploração de si mesmo e do mundo para a reinvenção não tem lugar no currículo. Parece mesmo que o currículo se transforma num lócus de obstáculos para a imaginação, à vontade e a reflexividade; a atividade própria do sujeito, elemento fundamental para o estabelecimento de uma rede de relações sociais (de aprender, de criar, de construir) entre os sujeitos que habitam esse lócus, é tão ignorada quanto o seu desejo, o seu pensar, e o seu agir.

Pensar a complexidade e a multirreferencialidade na educação atual é mais do que

necessário, é imprescindível, pois a educação em que o aluno trata igual ou simplesmente

exclua o que é diferente é uma educação que mutila, que segrega, porquanto não existe

homogeneidade no mundo e muito menos na sala de aula. Pensar alunos todos iguaizinhos,

aprendendo todos ao mesmo tempo e no mesmo ritmo não é pensar no ser humano, e sim em

máquinas. A riqueza da humanidade consiste na heterogeneidade, e o profissional precisa

aprender a pensar complexa e multirreferencialmente para poder contribuir com os seus

alunos e para que esses possam também aprender a articular, religar, contextualizar o

conhecimento, pois “se o conhecimento estiver isolado deixa de ser pertinente” (MORIN,

1998, p. 21).

É diante da perspectiva da complexidade e da multirreferencialidade que precisamos

compreender o currículo e, para isso, Macedo (2005, p. 24) argumenta que “o pensamento

complexo e multirreferencial aparece como mobilizador contemporâneo potente de uma outra

visão, de uma outra prática no campo das concepções e implementações curriculares”.

O currículo, segundo esse ponto de vista, prima pelo intercâmbio com outros setores

da educação, contribuindo, dessa maneira, para a superação de barreiras (problemas de cunho

ético, social, político, econômico etc.) e para a construção de saberes, conhecimento, práticas

e experiências complexas e multirreferenciais.

As questões curriculares estão presentes na nossa prática e interferem diretamente na

construção do conhecimento e saberes das crianças/alunos, pois a compreensão do mundo

circundante leva a apreensões e articulações mediante o uso de múltiplas referências. Já não

dá para nos contentar com a resposta em uma única “língua”. As matrizes de aprendizagem

possibilitam que se vinculem os diversos saberes, a realidade e os fenômenos.

Como dissemos anteriormente, assim como o homem possui muitas facetas, o

currículo também se constitui na diversidade. A emergência do currículo consiste em

construí-lo em uma perspectiva polifônica e “poliglota”, em que as várias vozes e línguas se

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entrelacem e promovam o diálogo, desenvolvendo um pensamento complexo e

multirreferencial.

Macedo (2005, p. 28) assevera que o currículo, com base nessa visão, “deve ser

olhado como um sistema aberto, dialético e dialógico, que retém e que vaza”, devendo “ser

pensado como um sistema comunicante”.

Vimos, nas discussões anteriores, o currículo como programa, grade, disciplina,

conteúdos, objetivos. Essas discussões foram evoluindo e hoje a concepção de currículo

ganha um novo olhar, um novo significado, uma nova compreensão, isto é, “compreendê-lo

como um artefato social movimentando-se incessantemente em ressignificações que se afetam

mutuamente através de múltiplas mediações” (MACEDO, 2005, p. 48).

A concepção de currículo, segundo a teoria da complexidade e da

multirreferencialidade, possibilita pensar o aluno e o professor como articuladores do saber

com base no diálogo, no respeito às diferenças e na colaboração. Se no processo educativo

não existir contextualização, articulação, não existirá conhecimento significativo.

Segundo Burnham (1998, p. 48), se se quiser compreender o currículo à luz da

complexidade, deve-se fugir da visão simplista e procurar elucidar a emaranhada e

heterogênea rede de relações que o constituem. Para ela, deve-se considerar

o currículo como um processo não só historicamente construído (instituído) para a socialização, mas que também participa da construção (instituinte) dos sujeitos sociais e que, ainda, contribui para o duplo processo de continuidade/instituição de uma sociedade, isto é, para a manutenção/ (re)cosntrução /criação das relações dos sujeitos sociais, no complexo das relações de um mundo histórico – socialmente construído (instituído) e em permanente processo de (re)construção/criação (instituindo-se através das relações instituintes).

A mesma autora ainda assegura que

Considerar a análise do currículo como um processo de familiarização, de penetração na sua complexidade, requer abertura dos sujeitos que ali interagem, entendendo tal abertura segundo a polissemia que esta complexidade exige: abertura de-si-para-si-mesmo, quer como aluno, como professor ou como sujeito participante da coletividade da escola; e de-si-para-com-o-outro, qualquer que seja o lugar que este outro ocupe nas relações escolares; de-si-e-com-o-outro-para-com-o-mundo múltiplo em que convivemos (idem, p. 43-44).

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Sendo o currículo pensado, ouvido e falado segundo essas perspectivas, por que não se

pensar também o currículo da educação infantil?

Morin não escreveu especificamente sobre currículo, mas as suas reflexões propõem

que se articulem os saberes, ecologizem as disciplinas, as várias áreas de conhecimento. Ao

propor essa “reforma no pensamento” ele nos faz refletir sobre o currículo e questionar: por

que não um currículo que rompa com uma visão restrita de mundo, de homem, de aluno, que

rompa também com as concepções reducionistas? Essa reforma deve-se originar justamente

dos docentes, os quais “devem se colocar nos postos mais avançados do perigo que constitui a

incerteza permanente do mundo” (MORIN, 1998, p. 25). Nossas “certezas” como educadores,

muitas vezes, nos impedem de estar atentos a essa complexidade, de aceitar o olhar e a fala do

outro.

3.3 O CURRÍCULO E A EDUCAÇÃO INFANTIL

Diante do que já foi discutido sobre a educação de crianças, fica evidenciado que,

embora o sentimento de infância tenha tardado a aparecer, sempre houve uma preocupação

com o que se deveria ensinar às crianças. Muitos reconhecem a importância da pré-escola,

mesmo tendo nascido com fins assistencialistas e compensatórios, reconhecem a criança como

cidadão que tem direito à educação, embora exista um paradoxo: reconhecimento do direito à

educação de um lado e a inexistência de vagas suficientes de outro. Por um bom tempo se

criticou a educação infantil (pré-escola especialmente) pela sua forma assistencialista (apenas

o cuidar), mas, quando ela apresenta uma proposta de educação, isto é, um currículo e um

programa de atividades, dizem que ela está se transformando no ensino fundamental.

Ao reconhecer a importância da educação pré-escolar, surgem questionamentos, tais

como: o que trabalhar com as crianças pequenas? Como educar essas crianças? As discussões

em torno da existência e implementação ou não de um currículo para a educação infantil vêm

se intensificando: um grupo defende que não deve existir um currículo especifico para a

educação infantil, pois a caracterizaria como ensino fundamental, outro, ao contrário, diz que o

importante não é pensar a educação apenas na perspectiva do aspecto cognitivo, mas, sim,

como processo amplo de educação.

Algumas críticas foram tecidas a Kramer pelo seu livro Com a pré-escola nas mãos:

alternativas curriculares para a educação infantil, em que a autora discute como trabalhar

com as crianças de quatro a seis anos. O que Kramer sugere, entretanto, não é um programa

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que deve ser seguido pelas instituições de educação infantil; ela propõe um currículo que veja

a criança como um sujeito em toda a sua totalidade (afetivo, social, político, inteligente, ativo).

Porém, se estamos falando de currículo de forma ampla, aberta, dialógica e

emancipatória e que a educação de crianças não se restrinja a ler e escrever, esse currículo não

só deve ser pensado como também construído à luz da epistemologia da complexidade,

buscando articular as diversas referências. Nesse sentido, a educação pré-escolar é um espaço

de interação, trabalho heterogêneo e plural que precisa estar pautado em uma compreensão da

epistemologia da complexidade.

No cotidiano da pré-escola, ainda encontramos práticas em que o professor “segue a

linha do tão criticado adestramento mecânico”36 (FAZENDA, 1988, p. 46), em que a criança

faz intermináveis atividades mimeografadas de “coordenação motora”. Convivemos com uma

educação infantil tida como preparação para as séries seguintes, por isso, para alguns

profissionais, o fracasso nas primeiras séries seria consequência da falta dessa “preparação”.

Esses profissionais não veem a educação infantil como uma fase de formação para a vida;

buscam um resultado mais imediato (decodificar letras, escrever e contar, passar para a série

seguinte). Se, no começo, essa pré-escola era voltada para a assistência (cuidar), agora é para

“preparação”, esquecendo-se de que as crianças são “seres sociais e históricos, indivíduos que

vivem em sociedade, cidadãs e cidadãos” (KRAMER, 1998, p.19).

Nesse contexto da prática escolar distanciada da realidade, até mesmo nas atividades

lúdicas e na arte, há um distanciamento, uma dicotomia entre a vida da criança e as atividades

promovidas pela escola. Em um momento, estuda-se; no outro, brinca-se ou se faz algum tipo

de arte (divertimento, apenas) para compensar o período de estudo. Geralmente os professores

não percebem que, através do lúdico, da arte, de momentos vividos na escola, o aluno aprende

e apreende situações do contexto histórico-cultural, trabalha a sensibilidade, vive momentos

que podem ficar registrados na memória e na formação humana ao longo do seu processo de

sociabilidade.

Portanto, na perspectiva de viabilizar uma educação baseada nos princípios até aqui

discutidos, necessário se faz nos sentirmos desafiados a rever o currículo da educação infantil,

criando situações que atendam às necessidades de aprendizagem significativa da criança,

respeitando e valorizando sua identidade cultural. Esta proposição será mais bem concretizada

se ancorada nos pressupostos do trabalho coletivo, no estabelecimento de relações dialógicas

com os sujeitos envolvidos.

36 Atividade de cobrir linhas pontilhadas; preencher linhas inteiras com a mesma letra.

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3.3.1 O currículo infantil e a visão de Friedrich Froebel

Ao adentrar a discussão de currículo, vimos que Comenius e Pestalozzi, entre outros

filósofos e educadores, com sua maneira própria de pensar e ver o ensino, contribuíram,

significativamente, para construção de uma educação para crianças pequenas. No entanto, foi

com Froebel que as crianças em idade pré-escolar ganharam maior visibilidade na história da

educação.

O alemão Friedrich Wilhelm August Froebel (1782-1852) idealizador do jardim-de-

infância muito contribuiu para a propagação de uma educação para a primeira infância. Ao se

tornar preceptor em uma escola-modelo, por intermédio do seu diretor, Froebel passou a

conhecer as ideias do educador suíço Pestalozzi, pelas quais se apaixonou. Passou dois anos

com Pestalozzi, conhecendo o trabalho que ele desenvolvia com as crianças. Algumas

divergências ideológicas e de concepções fizeram com que retornasse ao seu país e, em 1816,

entregou-se completamente à educação de crianças pequenas, fundando sua primeira escola –

Instituto Geral Alemão de Educação. Em 1837, fundou o seu primeiro Kindergartem, ou seja,

o primeiro jardim-de-infância e, posteriormente, uma fábrica de brinquedos, denominada

“Estabelecimento para o cultivo das disposições naturais da criança e dos jovens”. Na Folha

Dominical, jornal criado e dirigido por ele, especificava os objetivos dos brinquedos e a sua

importância na formação da criança. Suas obras principais são: A Educação do Homem, Arte

da Educação, da Instrução e do Ensino, Pedagogia do Jardim-de-infância. No entanto, a

única obra traduzida para o português é o livro a Educação do Homem, no qual me baseei

para este estudo.

Os jardins-de-infância criados por Froebel começaram a se espalhar por vários países

da Europa e da América Latina. No Brasil, o primeiro jardim-de-infância foi criado em 1875

no Rio de Janeiro pelo médico e higienista Menezes Vieira, mas só atendia às crianças da

classe abastada. Não era uma instituição pensada para as crianças da classe popular ou para os

filhos de escravos, mas, sim, para as crianças da elite brasileira.

Em 1851, todos os jardins-de-infância da Prússia foram fechados por serem

considerados disseminadores de ideias perigosas e pensamentos ateus. Entre 1848 e 1852,

foram criados 31 jardins-de-infância na Alemanha. Em 1852, morre Froebel sem ver seus

jardins-de-infância serem reabertos, porém sua esposa dá continuidade ao seu trabalho.

Mesmo criticados e proibidos, seus ideais foram expandidos e divulgados por vários países da

Europa e América.

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As concepções pedagógicas de Froebel estão fundadas nos ideais de Emílio, em que a

infância é vista como idade da inocência, pureza, beleza e bondade. O idealizador e criador

dos jardins-de-infância também foi considerado um romântico/naturalista, que defendia uma

educação sem obrigações e cujas atividades deveriam partir sempre do interesse da criança e

da prática:

A educação, doutrina e qualquer ensino devem tender muito mais a seguir a espontaneidade e a adaptar-se a natureza, do que a prescrever normas e determinar condutas: se predominar unicamente exata última tendência, impedir-se-ão o desenvolvimento e o progresso do gênero humano ou, o que é o mesmo, a manifestação do divino no homem e em sua atividade espontânea37 e livre - único objeto e fim de toda educação e de toda vida (FROEBEL, 2001, p. 27).

Assim como Rousseau, Froebel critica veementemente a adultização das crianças

quando alguns pais querem que seus filhos se comportem como jovenzinhos ou como adultos,

“saltando por cima de etapas necessárias e essenciais” (idem, 2001, p. 48) à vida da criança,

não respeitando as características de cada idade.

Interessante notar no próprio nome jardim-de-infância uma relação direta com a

vivência e contato com a natureza. As crianças eram consideradas as plantas e a professora a

jardineira, pois, para ele, assim como as plantas precisam de cuidado para crescerem fortes e

saudáveis, as crianças também o precisam. Desse modo, a “verdadeira educação pode

prosperar, florescer e dar saborosos frutos” (FROEBEL, 2001, p. 31).

A base do pensamento e da educação froebeliana estava diretamente relacionada a sua

formação religiosa. O objetivo maior da educação era para ele despertar o princípio divino

que habita em cada indivíduo/criança. Deus, Homem e Natureza, considerados por ele a

Unidade Vital da existência humana, estão intimamente ligados e, é a parir desses princípios,

que deveria se constituir a educação da criança, pois o homem, por sua natureza divina,

terrena e humana, pertence a Deus, à natureza e à humanidade:

A educação ativa e diretiva principia propriamente para o homem quando ele começa a viver em união com Deus, quando começa a estabelecer-se em mútua compreensão e intimidade comum da vida entre pai e filho, porque assim a verdade se deriva da essência do todo e da natureza do individuo para poder ser sem esforço reconhecida (FROEBEL. 2001, p. 27).

37 Grifo nosso

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Froebel criticava veementemente a prescrição de normas e determinação de condutas

pelas escolas, por isso propõe jogos e brincadeiras como meios educativos. Ele foi o primeiro

educador a se preocupar com a educação de crianças em idade pré-escolar, a oferta dessa

educação em instituições (jardins-de-infância) e não apenas com a educação no convívio

familiar, mesmo reconhecendo o papel desempenhado pela mãe. Assim propõe os jogos e

brinquedos como atividades, que, segundo ele, constituem a mais autêntica, a mais espiritual

ação do divino. Porquanto,

[...] o brincar, o jogo – o mais puro e espiritual produto dessa fase de menino durante esse período, é a manifestação espontânea do interno, imediatamente provocada por uma necessidade do inteiro mesmo [...] engendra alegria, liberdade, satisfação e paz harmonia com o mundo. Do jogo, emanam as fontes de tudo que é bom [...]. Esse período não é, pois, a mais bela manifestação da vida infantil em que a criança joga e se entrega inteiramente ao seu jogo? [...] Os jogos dessa idade são os germes de toda a vida futura, porque ali o menino se mostra e se desenvolve por inteiro em seus variados e delicados aspectos, em suas mais intimas qualidades. Toda a vida futura do homem – até seus últimos passos sobre aterra – tem sua raiz nesse período (FROEBEL, 2001, p. 48).

Ao considerar os jogos como imprescindíveis na educação das crianças, ele mesmo

cria vários jogos educativos, como cubos, bastões, cilindros. Materiais como argila, areia

eram indispensáveis à educação proposta por esse educador.

Outro aspecto na educação das crianças proposto por Froebel diz respeito ao papel da

mulher/mãe, cuja importante contribuição está no desempenho de mãe delicada e dedicada,

que ajuda os filhos a pronunciar as primeiras palavras, fazendo com que eles relacionem as

palavras às coisas e se distingam dos objetos, visto que “o mundo exterior e a criança se

confundem: entre eles não se pode estabelecer uma distinção precisa” (FROEBEL, 2001, p.

43). A partir do momento em que os pais começam a pronunciar as palavras, a separação

entre o próprio ser (mundo interior) e as coisas (mundo exterior) vai se manifestando. “A

criança passa a adquirir consciência de si mesma – como uma coisa claramente separada,

completamente distinta das outras” (idem, 2001, p. 43). Como a mãe tinha um papel decisivo

na formação/educação da criança, este educador passou a criar cursos para ensinar às mães

como deveriam educar os filhos, possibilitando-lhes contato com músicas infantis, narrativas,

contos etc. As “professoras” das instituições (jardim-de-infância), por isso, eram constituídas

de mães, pois estas, com sua delicadeza e amor de mãe, já tinham uma predisposição nata

para a educação das crianças.

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Com base na atuação da mulher (mãe jardineira) é que a criança passaria a exteriorizar

o interior e interiorizar o exterior. Mas, o que significam esse exteriorizar o interior e

interiorizar o exterior? Os objetos, o mundo exterior “excitam o homem para que os

conheçam em sua essência e em suas relações”. Nessa relação de pegar e sentir os objetos, por

meio dos sentidos, “o menino começa espontaneamente, a exteriorizar seu interior”

(FROEBEL, 2001, p. 46), isto é, manifestar o desejo de conhecer as coisas que o cercam.

Respeitando o seu desenvolvimento deve-se possibilitar à criança o contato com tais objetos

para que ela possa explorá-los e assim construir significados e fazer relações. Em consonância

com o pensamento de Pestalozzi, havia uma valorização da vivência das crianças em

situações práticas. Porém, esses dois mundos (exterior/interior) precisam ser unificados, já

que um não existe sem o outro.

Segundo Froebel (2001, p. 86), todas as aprendizagens e doutrinas futuras têm seus

primeiros sinais na infância, e o ensino precisa “fazer com que o aluno se dê conta da unidade

de todas as coisas e de que todas existem, descansam e vivem em Deus”. Ao falar da

unificação, a escola deve intermediar o aluno e o mundo exterior, mantendo os “dois idiomas”

para que ele possa compreender a si e a seu contexto. Essa perspectiva faz-nos lembrar do

pensamento moriniano de que o conhecimento não se efetua na simples acumulação dos

conhecimentos produzidos pela humanidade, mas por transformações dos princípios que os

organizam.

Ante essa concepção de infância, educação, homem, natureza, Deus, Unidade Vital, a

educação para Froebel não se restringe a isso, mas a um currículo que possibilite essa unidade

e que pressupõe a integração de vários aspectos (espirituais, intelectuais, afetivos) da vida da

criança. A unidade entre as várias linguagens é imprescindível à formação da criança, por isso

ele propõe um ensino em que se valorize a religião a qual deveria possibilitar a consciência de

unidade entre o sujeito, a natureza e Deus. O estudo da natureza juntamente com o estudo do

homem, “associados com a evolução geral da humanidade, aclaram-se e complementam-se

mutuamente” (idem, 2001, p. 102). Froebel ainda destaca a importância do estudo da

matemática para as crianças:

a matemática não é uma ciência morta, encerrada em si mesma, nem, tampouco, uma mera soma eventual de princípios e verdades reunidos e ordenados; mas constitui um todo, um conjunto vivo e fecundo renovado sempre, ligado ao desenvolvimento e progresso do espírito humano em suas relações com a unidade e a pluralidade, com a intuição e o conhecimento (FROEBEL, 2001, p. 132).

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101

A arte, os jogos e as brincadeiras, o estudo da natureza, o cuidado com o corpo,

poesias e canções, trabalhos manuais, desenho, história, contos, excursões e viagens, todos

esses conhecimentos são indissociáveis e contribuem de forma decisiva para o

desenvolvimento da criança pequena. Esses aspectos são inseparáveis na construção de um

currículo complexo e aberto à diversidade.

Arce (2002, p. 181-182), falando sobre a educação na concepção de Froebel, salienta

que é necessário para o desenvolvimento da criança

“agir pensando e pensar agindo” que era o melhor método para evitar que o ensino por demais abstrato prejudicasse o desenvolvimento dos talentos dos alunos, o que os levaria à compreensão da tríade (Deus, Natureza, Homem) que guia todas as suas vidas, abrindo, portanto, as portas para se atingir a perfeição enquanto ser humano.

Froebel sofreu críticas por ser um romântico na sua concepção de infância, por

considerar a criança como um ser inocente e puro, por valorizar a importância dos pais

(especialmente a mãe) na primeira educação que as crianças recebem e por valorizar a

religião, isto é, a sua concepção de que toda educação deve ter como princípio básico

aproximar o homem de Deus. Em muitas dessas críticas, vemos a dicotomização entre ciência

e espiritualidade, crítica que atribuo a uma falha do pensamento moderno, que, para se

considerar científico, deve estar fundamentado unicamente na razão e afastado, ao máximo,

da espiritualidade. Vemos a contribuição de Froebel para a educação das crianças pequenas

como algo inovador para aquele momento histórico. Ele foi o divisor de águas entre a

educação de crianças pequenas: antes e depois de Froebel.

Froebel (2001, p. 29) propõe que todo ensino e qualquer educador devem atuar de

forma ambivalente, isto é, em duplo sentido, “dar e tomar, unir e separar, mandar e obedecer,

fazer e suportar, obrigar e ceder, apertar e afrouxar”. Ainda argumenta que

O ensino, assim como o educador mesmo, deve apresentar o individual e o particular como geral e o geral como particular e individual, comprovando-os na vida; deve exteriorizar o interior e interiorizar o exterior o externo e mostrar a necessária unidade38 de ambos; deve considerar o finito em seu aspecto infinito, e o infinito em seu aspecto finito, fazendo ver como um e outro se unem na vida; deve contemplar o divino no humano, e a essência do homem em Deus, [...] que se manifeste o eterno no temporal, o celeste no terreno, o divino no humano e na vida humana. [...] Se considere a unidade, a individualidade, a pluralidade e que nele se represente, ao mesmo tempo, o presente, o passado e o futuro (FROEBEL, 2001, p. 30).

38 Grifo nosso

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102

Nesse pensamento froebeliano, estão presentes vários aspectos da contradição humana

e os princípios para a construção de um currículo pautado nos ideais da complexidade de

Morin, em que o todo está na parte, e a parte está no todo, isto é, a religação dos saberes,

ideias e conceitos. Ao falar dessas contradições, observamos que tais autores, em contextos e

tempos tão distintos, apresentam, de alguma forma, uma relação ao discorrerem sobre

educação, seja uma educação na “era planetária” seja uma educação romântica. O que fica

explícito é que o indivíduo não está isolado no mundo. Ele é um ser histórico, cultural,

espiritual, emocional e, como tal, deve acompanhar as mudanças ocorridas na área do

conhecimento e na sociedade. O saber não está isolado, fragmentado nem solto, ele tem

relação direta com o homem e deve continuar sendo esse processo de descoberta e

redescoberta.

Porém, o homem muitas vezes está mais preocupado com o acúmulo de conhecimento

do que com a sua produção, construção e reconstrução. Froebel (2001, p. 87) ainda considera

que não são poucos “os professores que ensinam aos alunos uma quantidade enorme de coisas

sem saber uni-las, sem pôr em destaque a unidade necessária – íntima e espiritual de todas

elas”. Não pensam, não refletem, não se questionam para descobrir/redescobrir o outro, o

mundo, aceitam apenas o que está instituído. Não tornam o conhecimento dialético/ dialógico

ou em movimento permanente. Junto a essa visão, Froebel (2001, p. 31) salienta que “não há

critério mais prejudicial que o de considerar o desenvolvimento da humanidade como

definitivo e concluído, julgando que ela se limita a tão-só estender-se e repetir seus tipos”.

Assim, se tudo muda, vivemos um momento no qual nos encontramos (alunos,

professores, pais) perdidos, sem um elo e muitas vezes sem bases para compreender e discutir

os diversos problemas que circulam a sociedade. A compartimentalização, a fragmentação,

que também acontece na educação infantil, acaba por enclausurar o saber. O que poderia ser

divertido, prazeroso se torna maçante e enfadonho. Falta a contextualização.

Froebel deixou contribuições grandiosas para a infância e cabe a nós educadores

compreender a infância na nossa sociedade e no nosso contexto. A criança da sua época foi

uma, a da nossa época (século XXI) é outra, porém todas têm capacidade para criar e

compreender as coisas.

Para acontecer a mudança na visão, no caminhar, na compreensão, faz-se necessária a

conscientização que surge das reflexões, meditações e estudos dentro e com a nossa história.

É preciso uma mudança a ponto de reconhecer os equívocos e desequilibrar-se na busca do

novo, constatando que fomos vítimas e causa de uma sociedade que, hoje, se desconhece, não

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se compreende. Admitir erros, falhas, dúvidas é um grande passo para a busca do outro, para

o reconhecimento de que não nos bastamos a nós mesmos. É preciso abrir-se ao outro, ao

novo, ao incerto, ao desconhecido, tanto como pessoas quanto como profissionais. E tudo isso

deve começar pelos professores/educadores, principalmente os que trabalham na educação

infantil, pois é nesta fase que começam a vida escolar/educacional e a construção/

reconstrução do conhecimento.

3.3.2 O Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) é um documento

oficial do Ministério da Educação e Cultura promulgado em 1988. Compõe-se de três

volumes, Introdução, Formação Pessoal e Social e Conhecimento de Mundo, e apresenta uma

proposta curricular para a educação de crianças de zero a seis anos. Esse documento objetiva

proporcionar aos educadores de creches e pré-escolas a realização de um trabalho que valorize

a criança de forma integral.

Ante a realidade da educação infantil brasileira, esse documento surge como um

avanço significativo de mudança na concepção de criança e de educação infantil, que deixa de

ser vista, pensada apenas como atendimento ao cuidado e assistência. Com a edição desse

documento, passou-se a entender que a educação infantil deveria ter uma proposta

pedagógica, pois as crianças de zero a seis anos também têm direito à educação, como garante

a Constituição de 1988 e, como preconiza a LDB (Lei 9394/96), a educação infantil passou a

fazer parte da educação básica,

Entretanto, o RCNEI não é um modelo, um programa a ser seguido pelas escolas, mas

uma referência nacional que possibilita às escolas infantis o acesso e a adaptação a sua

realidade. O discurso do RCNEI fundamenta-se no respeito às diferenças, à diversidade

cultural, à individualidade, aos níveis de aprendizagens, visando superar as práticas de sala de

aula fragmentadas. Embasa-se nos seguintes princípios:

o respeito à dignidade e aos direitos das crianças, consideradas nas suas diferenças individuais; o direito das crianças a brincar; [...] o acesso das crianças aos bens socioculturais disponíveis, ampliando o desenvolvimento das capacidades relativas à expressão, à comunicação, à interação social, ao pensamento, à ética e à estética; a socialização das crianças por meio de sua participação e inserção nas mais diversificadas práticas sociais, sem discriminação de espécie alguma; o atendimento aos cuidados essenciais associados à sobrevivência e ao desenvolvimento de sua identidade (BRASIL, 1998, p. 13).

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O próprio documento deixa claro que é uma proposta “aberta, flexível e não

obrigatória”, que deve orientar as práticas pedagógicas, buscando melhoria de qualidade na

educação infantil.

O Volume I, do RCNEI, que é introdutório, traz uma discussão mais geral das

concepções e compreensão de creche e pré-escola, como instituições que nasceram com o

objetivo de atender às crianças das classes populares e assistir às crianças de baixa renda,

atuando muitas vezes de forma compensatória. Discute sobre a concepção de criança como

sujeito social e histórico, e não como um ser universal que em todo o contexto e espaço é

igual, e acerca da educação na infância. A criança que aparece nesse documento não é aquela

considerada um não-adulto, pois o olhar adultocêntrico sobre a criança manifesta a ausência

ou a negação das características próprias da infância. A criança apresentada por este

documento não é a consagrada pela modernidade, aquele ser cuja idade é a da não-razão.

A educação, por sua vez, segundos os referenciais, não se limita ao preparo para a

série seguinte, mas incorpora de maneira integrada as funções de cuidar e educar, que são

aspectos não excludentes. Quem cuida educa, e quem educa cuida. No RCNEI está explícito

que “educar significa, portanto, propiciar situações de cuidado, brincadeiras e aprendizagens

orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das

capacidades infantis e de relação interpessoal” (BRASIL, 1998, p. 23) e o cuidar, além dos

aspectos biológicos do corpo, como higienizar, alimentar, atentar para a saúde, envolve

também a dimensão afetiva.

Esse documento destaca a importância da brincadeira na pré-escola e na creche como

elemento indispensável para o desenvolvimento da linguagem infantil. O educar e o brincar

não estão dissociados de sua real função como aponta o RCNEI. Nas creches, o educador,

muitas vezes, fica com a função de apenas cuidar das crianças, sem estabelecer uma

veiculação entre os aspectos cuidar e educar. Afora, que existem ainda as recreacionistas, que

têm o papel apenas de brincar com as crianças para passar o tempo, enquanto chega o horário

das crianças irem para casa. O que o RCNEI propõe é romper com essa visão fragmentada de

educar e cuidar e valorizar as atividades individuais e coletivas desenvolvidas na pré-escola e

na creche. Enfatiza, ainda, a importância da formação do professor para atuar nessa faixa

etária.

Palhares e Martinez (1999, p. 60) consideram que

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A caracterização da instituição de educação infantil como lugar de cuidado - e - educação, adquire sentido quando segue a perspectiva de tomar a criança como ponto de partida para a formulação das propostas pedagógicas. Adotar essa caracterização, como se fosse um dos jargões do modismo pedagógico, esvazia seu sentido e repõe justamente o oposto do que se pretende. Educá-la é algo integrado ao cuidá-la.

O RCNEI discute ainda a importância da formação do profissional que atua na

educação infantil, a necessidade de que eles tenham conhecimentos específicos e que os

conhecimentos prévios devem ser como ponto de partida para a ação educativa e estar

vinculados às práticas sociais reais. Segundo o RCNEI, “a implementação e/ou implantação

de uma proposta curricular de qualidade depende principalmente dos professores que

trabalham nas instituições” (BRASIL, 1998, p. 41). Esta afirmação atribui a responsabilidade

da qualidade dos projetos aos professores. Podemos perceber as boas intenções do RCNEI,

mas é importante esclarecer que há um paradoxo entre o discurso e a prática, pois muitos

profissionais sequer têm conhecimento de tais propostas. Geralmente esses livros encontram-

se nas prateleiras das escolas sem nenhuma utilidade. Mas não culpemos os professores.

Entendemos que isso perpassa pela sua formação tanto a só inicial quanto a continuada.

O Volume II aborda a formação pessoal e social das crianças, no seu contexto

histórico-cultural. Para o desenvolvimento da identidade e a conquista da autonomia, faz-se

necessário conhecer as características e potencialidades das crianças e, consequentemente,

reconhecer seus limites. A confiança, o amor, o cuidado são imprescindíveis para a formação

pessoal e social da criança. Sendo assim, o trabalho educativo deve criar condições para as

crianças conhecerem, descobrirem e ressignificarem novos sentimentos, valores, ideias,

costumes e papéis sociais, contextualizando e se percebendo como ser de alteração.

Segundo essa perspectiva e visando o desenvolvimento infantil, as instituições

(escolas, igrejas) devem alargar o universo inicial (família) das crianças, para que possam ser

atendidas de maneira respeitosa, e atentar para as diversidades culturais, sociais e especiais

sem discriminação ou preconceitos. A criança precisa conviver em um espaço de harmonia,

de respeito e de cooperação para que se desenvolva como pessoa, respeitando as regras sociais

e o outro, tornando-se um sujeito autônomo.

O Volume III traz uma proposta pedagógica em que se destacam as diversas

linguagens na constituição dos sujeitos, tais como: Movimento, Música, Artes Visuais,

Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade e Conhecimento Matemático. Esta

valorização e a relação entre as diversas linguagens e a afetividade na vida da criança criam

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uma situação de vínculo entre as pessoas que a cercam contribuindo para o seu

desenvolvimento.

Mesmo sabendo que o indivíduo é um ser que aprende na relação com o outro, faz-se

necessário considerar ainda a sua singularidade, suas diferenças. Esta aprendizagem dá-se por

meio da observação, da imitação, do brincar, da oposição, da linguagem, do corpo etc. Todos

esses aspectos contribuem para a sua formação, para o seu desenvolvimento psicossocial.

O objetivo da educação infantil é criar esse ambiente de acolhimento, que dê

segurança e confiança às crianças; que elas possam interagir com as outras, fantasiar, usar a

criatividade, se expressar, seja essa expressão oral, escrita seja desenhos; que tenham espaço

para falar, conversar, expor o que pensam, mesmo que, para os adultos, esse pensamento seja

“incoerente ou sem sentido”. O ambiente institucional deve proporcionar segurança,

tranquilidade, alegria, e nele devem atuar adultos amáveis que escutem as necessidades das

crianças, respeitem suas diferenças individuais, ajudem em seus conflitos e lhes possibilitem

limites claros.

À medida que a criança vai crescendo, as atividades devem ser intensificadas, para

atender a sua faixa etária. O professor não deve fazer qualquer atividade simplesmente por

fazer, deve ter sempre um objetivo, uma meta, prestando muita atenção ao desenvolvimento e

participação das crianças; fazendo anotações de tudo que acontece, dos progressos, avanços,

bem como das regressões, para que possam alcançar bons resultados.

O professor de educação infantil, em primeiro lugar, deve gostar do que faz, ter

competência e compromisso. Este professor, querendo ou não, é um referencial muito

importante para o educando, porém, em alguns momentos, dependendo da sua ação no

cotidiano das escolas, ele pode contribuir para que as crianças se tornem objetos (Pinóquio às

avessas), e não seres humanos. Percebemos, assim, o cuidado, a responsabilidade que cada

educador tem em suas mãos.

Mesmo reconhecendo a importância do RCNEI para a educação infantil, várias críticas

são dirigidas a esse documento, quer pela maneira como foi construído, quer por explicitar

uma visão apenas “escolar” da educação infantil. Nessa perspectiva, Cerisara (2002, p. 8)

salienta que

as especificidades das crianças de 0 a 6 anos acabam se diluindo no documento ao ficarem submetidas à versão escolar de trabalho. Isso porque a "didatização" de identidade, autonomia, música, artes, linguagens, movimento, entre outros componentes, acaba por disciplinar e aprisionar o gesto, a fala, a emoção, o pensamento, a voz e o corpo das crianças.

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De fato é preciso considerar que, se, por um lado, há uma distância no que está escrito

no RCNEI e o que realmente acontece na instituição de educação infantil, por outro, este

documento não deve ser visto apenas como um manual a ser seguido. Não podemos

desconsiderar a sua relevância para a mudança na construção do currículo da educação

infantil. De acordo com essa visão, Palhares e Martinez (1999, p. 15) asseguram que há dois

riscos em relação ao referencial:

[...] por um lado ele pode ser uma “camisa de força” – se for lido como um ideal inatingível, uma receita, tão grande a distância entre a prática hoje efetiva, muitas vezes com outras qualidades ali não contempladas e a proposta apresentada. Neste caso, o RCN/Infantil torna-se um retrocesso, pois leva aos “engessamentos” de práticas criativas diversas das que ele preconiza. Por outro lado, dada a distância entre o “ideal” e o real, pode levar a um engavetamento do projeto por inviabilizar as alterações de cunho qualitativo na educação da criança pequena, tal a dificuldade de sua execução.

É interessante reconhecer a importância desse documento para as políticas públicas de

educação infantil e para os profissionais que atuam nessa etapa da educação, sem

desconsiderar, claro, o conhecimento das questões específicas de cada região (econômica,

social, ambiental), pois a valorização e a incorporação das culturas locais permitem elaborar

propostas curriculares mais reais e significativas.

Os projetos educativos precisam ser criados num clima democrático e pluralista, em

que o trabalho seja debatido, compreendido e discutido por todos. A formação continuada

deve fazer parte da rotina institucional, com momentos para a troca de ideias sobre a prática

dos professores e outras questões relativas aos projetos educativos. O RCNEI apresenta

indicativos sobre o espaço, recursos materiais, acessibilidade dos materiais, condições de

segurança, tanto no uso dos materiais, quanto no espaço físico, critérios para formação de

grupos de crianças, organização de tempo, entre outras sugestões. Se essas questões forem

discutidas e debatidas pelo grupo de professores de educação infantil, já é um caminho

possível para a tentativa de superar muitos problemas que surgem no âmbito escolar.

Esse documento apresenta uma concepção de currículo que é visto não como um

manual a ser seguido pelos profissionais da educação infantil, mas como um instrumento que

pode suscitar discussões nas escolas que atendem crianças pequenas. O profissional da

educação infantil que desejar melhorar a sua prática pedagógica encontrará subsídios no

RCNEI. As concepções de criança/infância, currículo, conhecimento, prática pedagógica e

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professor não constituem algo fragmentado nem distante da realidade vivenciada pelas escolas

de educação infantil e seus profissionais. O RCNEI traz

o espontâneo, o lúdico, o prazer, o não diretivismo no trabalho pedagógico como seus eixos norteadores. A criança é vista como construtora de conhecimentos, garantido-se, assim, seu direito a expressar-se. O professor, por sua vez, atua como um facilitador, um orientador, permitindo a interação entre as crianças e preparando o ambiente para que estas pesquisem e experimentem livremente, sempre acalentadas por uma atmosfera acolhedora e repleta de afetividade. Proporciona-se ao ser criança o desenvolvimento de suas habilidades cognitivas, sua identidade, a capacidade de socialização, independência, autonomia, auto-estima, criatividade... (ARCE, 2007, p. 27).

Nessa perspectiva, é urgente uma educação infantil verdadeiramente comprometida

com os valores de democracia, solidariedade e crítica se quisermos ajudar cidadãos e cidadãs

a enfrentarem essas políticas de flexibilidade, descentralização e autonomia, promulgadas nas

esferas trabalhistas. E isso começa nas escolas de educação infantil e com os profissionais que

lá trabalham. É preciso ainda proporcionar uma formação com ênfase na capacidade crítica e

solidária (crianças e educadores), se não quisermos deixá-la ainda mais indefesas.

3.3.3 O currículo e a prática pedagógica na educação infantil

Na compreensão da prática pedagógica, percebemos que sempre houve uma discussão

em relação à teoria e à prática e um desejo de muitos profissionais da educação em promover

essa articulação, cindidas até então. Antes, porém, faz-se necessário trazer uma reflexão sobre

a ideia e o significado de prática fazendo a sua correlação com o contexto da educação

infantil.

No meio educacional e muitas vezes na linguagem comum do nosso dia-a-dia,

ouvimos e convivemos com discursos em que há uma separação entre teoria e prática.

Ouvimos frases tais como: “a teoria é uma coisa, a prática é outra”; “a gente precisa de

prática”; “quero ver isso na prática”, e por aí vai, explicitando o significado e sentido de

prática. Ouvimos ainda referência a uma atitude “prática” de determinado indivíduo quando

sua ideia é concretizada, isto é, quando se refere a alguém como “muito prático”, aludindo à

possibilidade de concretizar uma determinada ideia. Essas são algumas referências da

compreensão de “prática” que vemos na nossa sociedade e muitas vezes no meio acadêmico.

Partindo da visão positivista, a prática é tida como instrumento, como técnica,

desprovida de qualquer pensamento ou reflexão, havendo mesmo uma separação entre aquele

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que pensa (teoria) e o que executa a ação (prática). Assim, a palavra Prática origina-se do

grego antigo Práxis, Práxeos, com o sentido de agir. Essa separação entre o que pensa e o que

executa vai refletir também no processo educativo. Quando mencionamos que o plano ou

algum projeto veio de cima para baixo, queremos dizer que alguém planeja e outro executar.

Abbagnano (2003) no seu Dicionário de Filosofia refere-se à prática como o que dirige

a ação. No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, prática é o “ato ou efeito de praticar;

uso experiência, exercício; rotina; hábito; saber produtivo da experiência; aplicação da

teoria”. Vê-se a prática como técnica, como algo que está desprovido da teoria, do pensar, e

que, na verdade, é a aplicação da teoria.

No pensamento platônico, manifesta-se a cisão entre esses dois pólos: a ciência

prática, desprovida de pensamento; e a cognitiva sem qualquer relação com a ação. Platão

também valorizava a teoria em detrimento da prática e afirmava que, por estar ligada ao

pensamento e à meditação, a filosofia era superior, enquanto as atividades cotidianas, as ações

(dos artesãos, por exemplo) eram consideradas inferiores, por serem desprovidas de reflexão.

Aristóteles dizia que prática era a atividade que se concretiza por sua imanência: o

pensar, o querer. Assim salienta que “na ciência prática a origem do movimento está em

alguma decisão de quem age porque prática e escolha39 são as mesmas coisas”

(ABAGNANNO, 2003, p. 785). Nesse pensamento de Aristóteles, vemos certa relação de

unidade entre a prática e a teoria. Quando este filósofo aborda a prática e a escolha, como as

mesmas coisas, somos levados a pensar que, para haver a prática, necessita-se do pensamento

para escolher e, posteriormente, praticar; ao desejar, querer, manifesta-se a relação do pensar

e do fazer.

Nessa perspectiva, observamos a dicotomização entre teoria e prática em muitos

discursos. Mesmo sendo termos diferentes e com significados distintos, eles não se opõem,

ao contrário, existe inter-relação entre eles, uma relação de unidade. Enquanto a teoria é vista

como um saber abstrato, como especulação filosófica, como meditação (visão platônica), a

prática significa o agir, a técnica, possuía um valor de ação utilitária.

Diante dessa realidade, o que se busca é a unidade, não apenas dos termos

teoria/prática, mas a unidade do ser humano, constituindo-se dessa forma a práxis.

Compreendemos por práxis uma ação inter-humana consciente, como atividade de quem faz

escolhas conscientes e para tanto necessita de teoria, pois por meio da conexão teoria/prática

39 Grifo nosso

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chegamos à práxis. A visão de práxis, muitas vezes fica restrita à prática no sentido de

utilidade.

Quando nos referimos a práxis, pensamos na unidade pensar/agir, teoria/prática, e

estes termos não estão dissociados; ao contrário, estão imbricados, interligados. E, é nessa

perspectiva que o marxismo designa a práxis “como um conjunto de relações de produção e

trabalho, que constituem a estrutura social, e a ação transformadora que a revolução deve

exercer sobre tais relações” (ABBAGNANO, 2003, p. 786). A produção de trabalho não está

desconectada da concepção teórica, do pensar e é, a partir dessa conexão, que vai se dar a

transformação.

Ademais a educação não deve ser vista nem pensada somente como técnica, isto é,

como prática, tampouco como especulação teórica apenas, mas como ação transformadora da

sociedade, daí, o sentido marxista de práxis como sendo uma atitude material do homem, que

transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano. E a educação deve

primar por essa humanização do homem. A práxis pedagógica implica nessa mediatização

entre diferentes sujeitos no espaço e na história; nessa inter-relação constante dos contrários.

Portanto a prática pedagógica e o ensinar exigem o pensamento crítico, isto é, estar

constantemente refletindo sobre a prática, pois esta não é apenas uma reprodução técnica da

realidade, mas exige pensamento, reflexão crítica a todo momento.

O que pretendemos compreender é a prática pedagógica dos profissionais da educação

infantil, entendida como o dia-a-dia da escola. O fazer no espaço educativo da educação

infantil. Mas, embora seja o fazer cotidiano (prática) não está desprovido do pensar, da

reflexão, pois a prática pedagógica requer um movimento dialético desses dois pólos – teoria

e prática – e que muitas vezes esses pólos opostos estão completamente fragmentados. Em um

momento a teoria se sobrepõe a prática ou em outro a prática se sobrepõe a teoria, que

manifesta uma acepção negativa tanto de uma quanto de outra. O que se busca em relação a

esses dois termos na prática pedagógica é justamente a unidade a partir de um pensamento

complexo. A prática pedagógica como uma dimensão complexa do fazer educativo deve

apresentar essa unidade. Unificar dialeticamente teoria e prática eis o desafio de uma prática

pedagógica dialética e dialógica na etapa inicial da educação básica.

A educação infantil há muito deixou de ser um espaço de cuidado e assistência para

tornar-se também um espaço educativo. A criança não é aquele sujeito passivo que apenas

ouve “as verdades” do adulto, mas um ser ativo dinâmico e histórico, autor e ator social. A

concepção de criança como “coisa”, um ser sem importância e valor, sem capacidade de

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pensar e falar, foi tecida ao longo da história da humanidade. Assim como há transformações

na sociedade, a compreensão de infância não poderia permanecer estática. A criança é um ser

da e na história. Essa compreensão vai sendo tecida, e a criança passa a ser vista e

compreendida como um ser epistêmico, capaz de construir o seu próprio conhecimento o qual

deve refletir-se na prática pedagógica.

Diante das mudanças dos paradigmas sobre o que é o homem, a escola, o currículo, a

educação, o mundo, a criança e a prática pedagógica, o ensino deixa de ser um ato de

transferir fielmente verdades aprendidas e de reproduzir o que está instituído pela sociedade.

A aprendizagem por sua vez não é apenas a assimilação passiva das verdades ensinadas, não

se dá de forma fragmentada e não é apenas o ato de contemplar o mundo ou reproduzir

verdades aprendidas, mas é o ato de recriar.

O currículo, por sua vez, não é apenas “grade” que aprisiona a criatividade do aluno; é

um meio pelo qual uma organização de ensino (seja ela qual for – infantil, fundamental,

médio) busca promover o desenvolvimento da criança, estabelecendo uma conexão entre o

que acontece na escola e na vida, envolvendo a complexidade e multirreferencialidade na

resolução de problemas. Um currículo pautado e fundamentado nas relações sociais e

culturais terá possibilidade de enriquecer a educação oferecida às crianças pequenas. Todas

essas questões perpassam a prática pedagógica da instituição de educação infantil e a

formação do professor que atua nesta etapa.

Para caminhar em busca dessa unidade entre teoria e prática também no currículo e no

dia-a-dia da escola, faz-se necessário globalizar os conteúdos e as aprendizagens dos sujeitos,

tendo como base as acepções complexas e multirreferenciais, as quais destituem as

concepções de carências culturais, possibilitam vencer preconceitos e resistência ao novo, ao

diferente e aceitar as incertezas e flexibilidades. Relacionando e defendendo saberes (técnico,

científico, artístico, filosófico, teológico, cultural), a prática pedagógica poderá promover um

caminhar dialógico e dialético.

Sobre a prática pedagógica, Freire (1996) nos lembra que o educador “não pode negar-

se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua

curiosidade, sua insubmissão” (p. 26) e, eu diria, a capacidade crítica, criadora e reflexiva da

sua própria prática. Pela reflexão constante de sua prática pedagógica, o professor está

construindo um currículo aberto à diversidade social e avesso a toda forma de preconceito e

discriminação, seja de raça, etnia, gênero, classe social ou religião.

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Na prática pedagógica, o currículo da educação infantil deve valorizar todas as

linguagens manifestadas na criança – práticas musicais, movimento, conhecimento de mundo,

ciências humanas, sociais e naturais, a arte, o jogo, o brincar, o faz-de-conta etc. –, pois o

cotidiano escolar é o lócus da produção do conhecimento, de valorização das diferenças, da

vida.

É preciso conhecer as crianças e o modo como constroem o conhecimento, valorizar a

manifestação das suas diversas linguagens e não apenas vê-las como reprodutoras de um

conhecimento acumulado e como um ser que responde mecanicamente ao que foi depositado

em suas cabecinhas. Muitas vezes achamos que as crianças não têm capacidade de apreender

e compreender a realidade por considerá-las desprovidas de pensamento. Entretanto, a criança

pequena é capaz de entender muito mais do que imaginamos e as diversas áreas de

conhecimento precisam ser exploradas para que ela tenha uma formação integral, como

defende Kramer (1998):

o currículo da pré-escola é, então, elaborado a partir desse referencial, levando em conta as características especificas das crianças e do momento em que vivem (seu desenvolvimento psicológico), as interferências do meio que as circundam (sua inserção social e cultural) e os conhecimentos das diferentes áreas (p. 37).

A constituição integral do sujeito e a construção do conhecimento se processam pela

contradição, pela ligação dos diferentes a uma unidade, sem que a dualidade se perca na

unidade (dialógica), pela ação/reação dos acontecimentos (feedbeck) e pela crítica dialética,

entendida como a possibilidade de conhecer o positivo no negativo. A conexão ente os

opostos não elimina nem anula a oposição; na mudança contínua e na transformação

permanente do conhecimento, a sociedade vai se constituindo e se alterando: eis os princípios

básicos do pensamento complexo.

Uma prática pedagógica na perspectiva intersubjetiva envolve a contextualização

social e cultural, considerando as histórias de vida de todos os envolvidos (crianças e

professores) no processo educativo. Na interação entre diferentes sujeitos que constituem o

sentido cultural da existência humana, é que se vai construindo e tecendo o sentido da

experiência de um indivíduo, havendo assim a comunicação e o diálogo. Com essa prática

pedagógica, as instituições de educação infantil estarão contribuindo para a formação

sociocultural, compreendida não apenas na celebração das diferenças, mas na valorização e

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respeito às diversidades sociais e culturais que existem na nossa sociedade, nos mais diversos

contextos.

Macedo, (2005) traz uma discussão sobre a criança, o currículo e a família segundo a

epistemologia do pensamento complexo, que critica a concepção de infância como invariante

da história, isto é, como uma propriedade que permanece a mesma, sem atentar, a priori, para

as mudanças por que passa a criança e para as políticas de educação infantil. Esse autor

assegura que o currículo nas instituições de educação infantil “reproduz muito mais o

conservadorismo colonizador da escola e menos o seu poder de transformar” (MACEDO,

1999, p. 90), tornando-se cristalizado, produzindo ainda práticas pedagógicas do liberalismo,

que, cada vez mais, exclui a infância do contexto social, educacional, criando uma opacidade

nítida na práxis educativa. Esquece-se ainda que a criança é um ator/autor social, é um ser

ontológico (ser-no-mundo), que pensa e deseja, altera-se de acordo com a temporalidade,

singularidade e pluralidade.

Nesse sentido,

a criança é um Ser que pensa e deseja, altera-se e autoriza-se em meio Às possibilidades e limites da instituída e instituinte conviviabilidade social, é um sujeito contextualizado, portanto, está inserida numa classe social, numa família, numa cultura e não raro, cultura uma religiosidade. Ademais, está marcada pelos âmbitos da etnia e do gênero, pelos quais, sincrônica ou assincronicamente, constrói um certo processo identitário (MACEDO, 1999, p. 92).

Observamos que pais, professores e comunidade, por estarem preocupados com o

momento da escolarização da criança, geralmente se esquecem que ela vive em um ambiente

histórico-social e que, de uma forma ou de outra, está construindo o conhecimento, pois o

indivíduo aprende com o sábio, com o não-sábio, com o que detém ou não o conhecimento

sistematizado.

Neste capítulo, analisamos a trajetória e as concepções de currículo, especialmente o

da educação infantil, relacionando-as à pratica pedagógica da pré-escola. No próximo

capítulo, com base em todas essas discussões travadas até aqui, analisaremos as ações, os

discursos e os depoimentos manifestados na pesquisa empírica.

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CAPÍTULO IV – CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E DE CURRÍCULO NO CONTEXTO DA PRÉ-ESCOLA

O corpo de ensino tem de chegar aos postos

avançados do mais extremo perigo,

que é constituído pela permanente

incerteza do mundo. Martim Heidegger

4.1 INTRODUÇÃO

A análise dos dados é um momento de extrema complexidade, pois requer do

pesquisador não apenas a descrição do que foi levantado na pesquisa, do que foi explicitado e

manifestado nas entrevistas e observações, como também ir além, desvelar o que está oculto,

o que está implícito, o que não foi revelado nos depoimentos. Por mais que os fenômenos se

apresentem, nunca se manifestam na sua totalidade. Sempre existe algo oculto. Assim,

precisamos fazer escolhas e, nessas escolhas, tomamos partido do que deve ser privilegiado.

As manifestações que emergem são fenômenos complexos e segundo Morin (2003, p. 43), “a

complexidade é efetivamente a rede de eventos, ações, interações, retroações, determinações,

acasos que constituem nosso mundo fenomênico”. Por esse pensamento complexo, a pesquisa

nunca está completa, ela vai sendo criada e recriada no próprio percurso.

Faz-se necessário ainda compreender as contradições existentes nas falas e nas ações

dos sujeitos da pesquisa. A análise de dados requer realmente um olhar hermenêutico, uma

interpretação da linguagem, do olhar, do silêncio, e isso não é nada simples. Para Macedo

(2006, p. 138), na análise dos dados, é necessário o pesquisador se “imbuir de uma

imaginação metodológica que ultrapassa a mera descrição e a interpretação sumária produto

de simples constatação”. Na análise, a epistemologia da complexidade é uma referência

importante para compreender ou tentar compreender os fenômenos do universo pesquisado.

A construção da narrativa deste momento da dissertação teve como referência as

observações feitas em sala de aula, as entrevistas realizadas com os professores, a análise

documental, as discussões no grupo focal, além da base teórica de autores, como Kramer,

Macedo, Morin, Arce, Froebel, entre outros. Todas essas técnicas foram usadas pela

necessidade de termos mais subsídios para a análise, como o Grupo Focal, por exemplo, que

surgiu no momento em que foi percebida a necessidade de elucidar alguns pontos que não

ficaram claros na entrevista.

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A pesquisa partiu de uma abordagem qualitativa fenomenológica, a qual requer a

busca de sentido dos fenômenos. As diferentes concepções nas relações de sujeito/objeto,

sujeito/sujeito, subjetividade/objetividade, que se manifestam no campo da pesquisa, muitas

vezes geram conflitos e enfrentamentos, o que é natural na convivência de contrários.

Para uma melhor organização didática dos dados e para facilitar a compreensão do

leitor, elenquei alguns itens para análise. O primeiro se refere à importância da educação

infantil e surge dos próprios depoimentos, já que todas as professoras selecionadas destacam a

importância dessa etapa da educação. Os outros itens – concepção de infância e criança,

concepção de currículo presente nas práticas pedagógicas e influência do currículo na

formação sociocultural, na constituição da identidade e na construção do conhecimento da

criança – surgem dos objetivos do projeto de pesquisa. Esses aspectos estão categorizados,

mas não significa que eles estejam fragmentados. Cada um não se esgota em si mesmo; eles

se completam e estão complexamente imbricados.

4.2 IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

A educação infantil brasileira atravessou diversos momentos: avanços, retrocessos,

valorização, desvalorização e momentos de luta, sempre em busca do reconhecimento da

criança como um ser com direito à educação. Algumas pessoas reconhecem a importância

dessa etapa da educação para o desenvolvimento pleno da criança em todos os aspectos da

vida, outras a veem como um meio de salvar a sociedade de problemas futuros e muitas ainda

a veem de acordo com seus objetivos e ideais, não pelo que as crianças representam ou pelo

seu direito à educação.

Só recentemente, para ser mais precisa, na década de 1990, foi que a educação infantil

passou a fazer parte da educação básica e a criança ganhou visibilidade social e política e,

como um ser de direito que é, adquiriu o direito à educação, e não a assistência ou a uma

educação compensatória/preparatória como já discutimos. A partir dessa década, começou-se

a compreender que esta fase (zero a seis, ou cinco) é imprescindível para o desenvolvimento

integral da criança, como preconiza a LDB. Assim, a educação infantil passou a ser garantida

por lei, e ao Estado coube o dever de oferecê-la a todas as crianças sem distinção de cor, raça

ou etnia. Mesmo com essa garantia em lei e mudanças nas concepções de educação infantil,

de criança e de infância perpetradas pela sociedade moderna e pós-moderna, muitos discursos

educacionais, inclusive de profissionais da área de educação infantil, se equivocam quanto à

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concepção e compreensão do valor da educação infantil na promoção do desenvolvimento

global e harmonioso da criança. O próprio acontecer no cotidiano das aulas manifesta esse

equívoco.

Todas as professoras entrevistadas destacaram a importância da oferta da educação

para essa faixa etária, porém nenhuma enfatizou a importância do direito à educação da

criança de zero a seis anos40 pelo que ela é em si mesma. Para elas, a educação infantil é a

base da formação do indivíduo e de preparação para o futuro, é um meio para formar um

“cidadão de bem” para a sociedade, como já previa Platão em seu diálogo A República, como

o futuro cidadão para governar a Polis. A professora Regina argumenta que “essa formação é

tudo, em comportamento, em limite, em educação mesmo [...] a educação infantil é muito

importante porque o que a criança aprende agora vai guardar para toda a vida e nessa fase a

criança tem uma assistência41”.

A professora Ivani acredita que os pais colocam os filhos na escola “não é pensando

no desenvolvimento da criança, mas porque vão trabalhar e precisam de alguém para tomar

conta”. Segundo esta professora, os pais das crianças veem a pré-escola como um espaço de

assistência, um lugar onde alguém poderá tomar conta do seu filho com segurança, não dando

“o devido valor que a escola tem na vida da criança”. Apesar de pensar dessa forma, quando

instada a falar sobre o desenvolvimento, constantemente a professora o relacionava às

questões de comportamento e de aprendizagens cognitivas.

Entretanto, se, por um lado, os pais veem a escola como um lugar de cuidado para seus

filhos – visão que fundamentou a criação de instituições para o atendimento às crianças

pequenas e que perdurou por muito tempo na história da educação infantil, se é que ainda não

perdura –, por outro lado, a escola (professores especificamente) vê a educação infantil como

um espaço de prontidão, onde a criança deve aprender a escrever, ler, contar, preparar-se para

as séries seguintes e tornar-se disciplinada. Vemos, nesse sentido, duas visões distintas,

contraditórias e extremas da educação infantil.

Buscando outras perspectivas, houve muita luta em defesa de uma educação infantil

em que as duas dimensões, cuidado e educação, não estivessem dissociadas, pois quem cuida

educa, e vice versa. Esses aspectos estão intrinsecamente relacionados, pois não é uma

educação cognitiva apenas, mas um educar no seu sentido mais amplo.

40 Embora a pré-escola agora se refira ao atendimento as crianças de quatro e cinco anos, com a ampliação do ensino fundamental para nove anos, continuarei me referindo a educação infantil, o atendimento as crianças de até seis anos de idade devido estas continuarem nas instituições de educação infantil em alguns municípios. 41 Grifo nosso

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Assim,

educar significa, portanto, propiciar situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de relação interpessoal, ser e estar com outros em uma atitude básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural (BRASIL, 1998, p. 23).

O cuidado e a educação, o conhecimento e a afetividade, a objetividade e a

subjetividade, a “seriedade e o riso precisam estar presentes na educação infantil” (KRAMER,

2008, p. 64). Essas dicotomias existem, porém, quando o profissional aprende a lidar com

esses pólos opostos sem fragmentá-los, isto é, sem privilegiar e/ou excluir, dentro de uma

visão de inclusão, de conexão, compreendendo a teoria do isso e aquilo e não do ou isso ou

aquilo, surge não só uma concepção da epistemologia da complexidade, mas uma ação no

fazer pedagógico.

Embora as professoras reconheçam a importância da educação infantil, mesmo que

seja na perspectiva do vir-a-ser, usam recorrentemente a expressão “ deixa muito a desejar”

nos seus discursos, referindo-se às dificuldades encontradas para desenvolver o trabalho,

como, por exemplo, espaço para atender às necessidades das crianças; salas lotadas; falta de

material didático e brinquedos; falta de área livre e parquinho para as crianças brincarem.

A professora Fúlvia, inicialmente, constrói o seu discurso em relação à educação

infantil de forma muito vaga: “A educação infantil é muito válida, é muito interessante na

vida da criança”. Aqui cabe um questionamento: é muito válida para quem? Para a criança ou

para o adulto? Pelo comentário a seguir, entendi que seria válida para a formação do futuro

adulto, já que é caracterizada como uma preparação para as séries seguintes. Esta professora

torna o seu discurso mais consistente ao afirmar que “a educação infantil é a base de tudo; na

pré-escola a criança passa por muitos períodos, o pré, a prontidão, muitas fases preparatórias,

porque a gente prepara a criança, né?”. Embora existam muitos estudos de teóricos, como

Sarmento, Kramer, Arce, Arroyo, Garcia, que discutem a importância da educação infantil

pelo que ela é em si mesma, observamos que nos argumentos das professoras subsiste uma

preocupação com o ensino fundamental ou então com o que a criança se tornará. Estudos

comprovam que a educação infantil é importante para o desenvolvimento da criança em seus

mais diversos aspectos e linguagens; não é apenas uma fase preparatória da vida da criança ou

um rito de passagem da infância para a vida adulta.

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Na discussão desenvolvida no Grupo Focal, a professora Fúlvia traz para o debate a

sua visão de educação infantil ao argumentar:

Eu vejo na pré-escola a preocupação do professor, nossa, que é formar a criança, que é a base de tudo. Muitos não sabem nem o que é escola. No Pré I, as crianças chegam sem noção de nada, da palavra. No Pré II, já vai dominando cores, o nome, a escrita, alguma coisa. Tem que passar por todo o processo e dominar o que deveria ser trabalhado no Pré I e ainda no Pré II. Trabalhar tudo, iniciando o que a criança não tem ainda. Se preocupa com o currículo e o que é importante deixa para traz. Tem que trabalhar dentro da necessidade do aluno. A gente não pega a criança pronta, mas quando chega no final (do ano)42 está mais ou menos. (profa. Fúlvia na discussão do Grupo Focal em 01/08/2008,).

É interessante notar que professora se refere à aprendizagem e ao desenvolvimento da

criança pequena como um processo de dominação, isto é, como exercício do poder, do

domínio sobre a leitura e a escrita para passar para a série seguinte. A aprendizagem, o

conhecimento, não é apenas um processo de domínio, mas, sobretudo, de interação entre o

sujeito que aprende e o seu contexto sociocultural. A criança da pré-escola não deve apenas

dominar esse ou aquele conteúdo, mas interagir com eles, compreender a relação deles com a

sua vida. Só desta maneira haverá uma aprendizagem significativa.

Ao questionar o objetivo da educação infantil, Kramer (1998, p. 49) enfatiza que esta

educação deve “propiciar o desenvolvimento infantil, considerando os conhecimentos e

valores que as crianças já têm e, progressivamente, garantindo a ampliação dos

conhecimentos, de forma a possibilitar a construção de autonomia, cooperação, criticidade,

criatividade e responsabilidade”, contribuindo para a formação do sujeito em todos os seus

aspectos e não apenas o cognitivo como vimos no discurso da professora.

Na análise da “Proposta Curricular”, da Secretaria Municipal de Educação de

Itapetinga – BA, encaminhada para que as escolas de educação infantil, com base nesse

documento, elaborem os seus Projetos Político-Pedagógicos, observei que a proposta não

apresenta objetivos, justificativa, pressupostos teóricos, metodologia, nem mesmo faz

referência aos princípios da educação infantil que constam das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Infantil e no Referencial Curricular Nacional para a Educação

Infantil. Nenhum documento legal fundamenta essa proposta. Apenas apresenta o que deve

ser trabalhado com essa faixa etária, isto é, com as crianças do pré-escolar (4 e 5 anos), pois

nem mesmo a creche é contemplada. É um documento em que consta um elenco de conteúdos

42 Acréscimo nosso

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ou, como dizem as próprias professoras, um “rol de conteúdos” a ser trabalhado com as

crianças, o que demonstra a sua concepção de educação infantil explicitada na proposta da

Secretaria Municipal de Educação. Eis um resumo do documento oficial da Secretaria

Municipal de Educação:

Língua Portuguesa: narração e dramatização de histórias, desenho livre, vogais e a apresentação do alfabeto em bastão, etc. Matemática: cores, tamanho, quantidade, numerais (até 10) etc. Ciências: ser humano, seres vivos (animal e vegetal), órgãos dos sentidos, etc. Geografia e História (Ciências Sociais): família, espaço, escola, profissão, meios de transporte, meios de comunicação, datas comemorativas, etc. e Arte: Recorte, confecção de objetos e maquetes, dobraduras, conhecimento e reprodução de danças folclóricas e populares (Proposta Pedagógica da SME).

Em um primeiro momento, achei que não havia nesse documento concepção de

infância, criança, educação infantil e currículo. Porém, refiz as minhas reflexões e entendi que

não havia reflexão teórica de tais conceitos, mas as concepções achavam-se presentes.

Quando se elabora uma proposta para atender a essa etapa da educação básica e se destaca

apenas o que deve ser trabalhado, fica explícita a concepção da educação infantil como uma

preparação para o ensino fundamental, o currículo como programa, e a criança como um ser

desprovido de pensamento, em quem se deve incutir o que é considerado correto pela

instituição. Embora exista na proposta um espaço para as expressões dramáticas e musicais,

narração, arte e ludicidade, há uma ênfase nas letras do alfabeto e nos numerais e nenhuma

reflexão sobre os objetivos da educação infantil, sobre o que é ser criança e sobre a infância.

No PPP da Escola Memórias de Emília, observei uma concepção mais ampla de

educação infantil, embora as falas das professoras contradissessem o que está escrito. Nele

está explicitada a visão de uma educação que respeita as particularidades infantis, pautada no

respeito à diversidade e com o objetivo de promover o desenvolvimento pleno da criança.

Assim o documento prevê uma educação infantil sedimentada nos princípios de humanização,

solidariedade e respeito às diferenças, quando aborda que:

a educação deve ser vista como uma proposta de humanização crescente pela qual o homem se constrói como pessoa, por isso as instituições educacionais infantis precisam possibilitar o cultivo dos bens culturais e sociais considerando as expectativas e as necessidades dos alunos, pais, membros da comunidade, professores, enfim de todos os envolvidos diretamente no processo educativo (PPP da Escola Memórias de Emília).

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Evidencia-se, nesse documento, a visão da educação infantil como a fase mais

importante na vida do ser humano, e a criança, como um ser repleto de potencialidades a

serem estimuladas pela escola juntamente com a comunidade.

O discurso do PPP da Escola Reinações de Narizinho confirma as falas das

professoras, ao argumentar que “a educação infantil, como primeira etapa da educação básica

tem como objetivo a construção de uma prática educativa assentada em fundamentos teóricos

metodológicos e didáticos, visando um preparo melhor para o ingresso no ensino

fundamental”43.

A professora Teresinha, da Escola Memórias de Emília, vê a educação infantil como

uma etapa pela qual a criança deve passar, como base da formação. Para ela, é fase em que a

criança, tendo uma boa educação, desde o começo, com certeza vai se tornar um adulto

melhor:

lá na frente ela não vai ter dificuldade, mas, às vezes, a gente fala assim que a educação infantil objetiva formar a criança em um cidadão crítico. Eu acho que para eles serem críticos não estão maduros o suficiente para ser um cidadão crítico. A gente trabalha de acordo, aí é que a gente vai ver como ele se desenvolve, não posso dizer que agora, por exemplo, terminou o ano e ele é um cidadão crítico (Entrevista feita com a profa. Teresinha em 29/07/2008).

O que é ser um “cidadão crítico”? Hoje, na nossa sociedade, essa expressão se

cristalizou de tal forma que acabou se tornando um modismo, vazio de qualquer significado.

Muitas pessoas e, até mesmo, discursos oficiais dão ênfase no “formar um cidadão crítico”

como um dos objetivos da educação. Por um lado, a professora tem razão, se ela pensa que o

cidadão crítico deve ser formado em um momento estanque. A criança não poderá sair no

final do ano dizendo “eu sou um cidadão critico”. Por outro lado, é preciso pensar a

criticidade como uma construção histórico-social permanente, pois, como sujeitos históricos,

estamos constantemente construindo e reconstruindo, analisando, apreciando, valorando,

formando opinião, examinando e expondo nossas ideias.

Essa mesma professora discorreu sobre a divisão dos horários na instituição – a hora

da brincadeira e a hora do sério –, referindo-se às atividades programadas. Segundo o seu

depoimento, ela sempre explica sobre a importância da escola para as crianças: “sempre falo

para os pais o que os filhos vão fazer na escola. Eles vão brincar, tem hora de brincar, de

estudar e de aprender”. Explicita-se, assim, a divisão do tempo na escola: horário para as

43 Grifo nosso

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atividades consideradas sérias e horário das brincadeiras, este reservado para a hora do

recreio. Nas observações feitas nas salas de aula, em nenhum momento, exceto nas aulas da

professora Alessandra, a brincadeira foi desenvolvida na sala de aula. As atividades se

restringiam a tarefas realizadas nas mesinhas.

O RCNEI assegura que as crianças da educação infantil desenvolvem-se de maneira

heterogênea e, por assim se desenvolverem, a escola de educação infantil precisa também se

articular, isto é, criar condições diferenciadas para possibilitar “o desenvolvimento integral

de todas as crianças, considerando também as possibilidades de aprendizagem que se

apresentam nas diferentes faixas etárias” (BRASIL, 1998, p. 47). Esse desenvolvimento

integral envolve os conhecimentos de ordem afetiva, cognitiva, estética, relação interpessoal,

cultural e, para isso, é preciso que sejam proporcionados momentos prazerosos para as

crianças.

Na análise da PC da Secretaria de Educação do Município, observei uma visão de

educação infantil fragmentada e descontextualizada, onde a criança é apenas um sujeito da

cognição. É nesse documento que a instituição explicita os seus objetivos em relação ao

processo de ensino e aprendizagem e traça o caminho para alcançar os objetivos e metas que

foram definidos.

Esse ensino e aprendizagem, a que estou me referindo, não se restringe aos conteúdos

escolares dos conhecimentos instituídos, mas a toda a forma de saberes, valores cotidianos e

expressão humana. Para atender às necessidades dos alunos, faz-se necessário que as escolas

estejam embasadas nas DCNs e nas orientações teórico-metodológicas que sustentarão e

nortearão o projeto. É preciso explicitar os objetivos, o que é prioridade na escola, a

concepção de educação infantil, de ensino e de aprendizagem, de criança (aluno), como esse

aluno aprende, quais os melhores caminhos para a aprendizagem, que sujeito a escola deseja

formar etc. São alguns questionamentos que se fazem necessários na construção de uma

Proposta Curricular ou de um Projeto Político-Pedagógico das instituições de ensino. Como

salienta Kramer (2008, p. 53), que “o projeto político pedagógico é fundamentalmente um

trabalho de opção, de decisão política, a que se subordinam objetivos, estratégias, recursos”.

Observam-se, assim, muitas contradições entre o que é apresentado nos documentos

oficiais das instituições de educação infantil e o que é manifestado nas falas das professoras

pesquisadas. Mas algo ficou claro: as professoras, na sua maioria, ainda concebem a educação

infantil conforme uma visão restrita e dicotômica de ser humano. Uma visão de educação

infantil como um espaço apenas preparatório e sem nenhuma relação com o seu entorno.

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4.3 INFÂNCIA/CRIANÇA: O OLHAR DAS PROFESSORAS

A infância, compreendida como uma construção histórica e social não se apresenta de

forma estática e universal; constitui-se como um processo em permanente construção, por

isso, em cada sociedade ou grupo social, esse ser pequeno denominado criança vive a infância

de forma diferenciada. Assim como a infância é construída de acordo com o contexto social

(infância urbana, rural, da favela, do orfanato, das ruas), as concepções e significados de

infância também se modificam ao longo da história. A infância, portanto, não é dada

naturalmente, como um período do desenvolvimento biológico da raça humana. Se em um

período havia a invisibilidade da infância quando a criança não tinha o direito de ser criança,

agora, na sociedade contemporânea, a infância passa a ter uma visibilidade social e a ser

respeitada pelas suas características identitárias próprias e singulares, pois a criança, esse ser

tão pequeno, já é um cidadão da nossa sociedade, é um ser de direito que requer respeito e

dignidade de vida.

Com base nos depoimentos das entrevistas, nas discussões do grupo focal, nos

documentos analisados e nas observações em sala de aula, discutirei as visões infância/criança

que as professoras e as instituições de educação infantil manifestaram no processo da

pesquisa. Os termos aqui apresentados infância/criança, ainda que sejam diferentes em seus

significados, o primeiro com uma dimensão histórica e social e o segundo como um período

de desenvolvimento da vida de todo ser humano, não apenas o desenvolvimento biológico,

mas também o social, são utilizados de forma complementar, pois, embora diferentes, estão

complexamente imbricados e interligados, não perdendo o seu próprio significado, pois, como

salienta Sarmento, todo ser humano foi ou é criança, mas nem todos tiveram ou tem infância.

A infância é vista pela maioria das professoras numa perspectiva romântica segundo a

qual a criança é naturalmente boa, “um ser puro, inocente, sem maldade”, como salienta a

professora Regina. Essa visão é confirmada pela professora Fúlvia quando argumenta que

as crianças não têm maldade, só têm amor, alegria, não têm má intenção nem com os próprios colegas, nem com a gente. Quando a gente chama a atenção delas, no mesmo instante, elas vêm com amor para o nosso lado. A criança não guarda mágoa da gente, mesmo tendo que chamar a atenção (Entrevista feita com a profa. Fúlvia em 14/10/2008).

Essa compreensão de bondade natural da criança converge para a concepção

rousseauniana de que o indivíduo é naturalmente bom, mas a sociedade o corrompe. Em

Emílio, personagem principal de sua obra, havia um cuidado para que ele não se corrompesse.

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O paradigma rousseauniano deu as bases para o surgimento do sentimento de infância até

então inexistente, como analisa o historiador francês Ariès, pois não havia respeito às

particularidades infantis nem mesmo nas obras e nas artes do período medieval. Embora

reconheçamos as significativas contribuições de Rousseau para o surgimento do sentimento

de infância e do respeito à criança, sabemos que existem críticas em relação a sua obra Emílio

ou Da Educação, pela sua visão romântica da criança como esse ser puro e inocente que

precisa desabrochar naturalmente. Mas foi com ele que a criança passou a ter uma visibilidade

social e educacional e passou a ter as suas características próprias reconhecidas e respeitadas.

Ele acreditava na capacidade de pensar da criança e não a considerava um ser desprovido de

entendimento, um infans – não falante. A obra de Rousseau influenciou significativamente na

educação das crianças menores a partir do século XVIII e se refletiu no trabalho desenvolvido

pelo denominado pedagogo dos jardins-de-infância, Friederich Froebel. Este educador

defendia a ideia do desenvolvimento natural e espontâneo da criança (concepção naturalista

romântica). Considerava a criança como uma plantinha e a professora a jardineira como ficou

caracterizado pelo próprio nome (jardim-de-infância) dado por ele à instituição de

atendimento às crianças de até seis anos de idade.

Essa visão faz com que as professoras desconsiderem as questões sociais e culturais da

vida da criança e de todo ser humano, pois, já que a criança se desenvolve apenas no aspecto

maturacional/biológico, não há necessidade de intervenção. Essa visão denota uma concepção

inatista de desenvolvimento. É preciso tomar cuidado com essa visão determinista do

desenvolvimento infantil para que, no processo educacional, não se descartem as outras

dimensões do desenvolvimento como, por exemplo, os aspectos sociais e culturais.

Não estamos desconsiderando a importância de Rousseau para a história da infância e

muito menos a influência de Froebel para a criação de espaços educativos para a criança

menor de seis anos. Porém, faz-se necessário rever essa visão naturalista, para não reduzir a

criança a apenas uma dimensão da existência humana – a biológica.

A professora Ivani argumenta que “a infância é a fase onde tudo começa. A partir daí

que começa a formar um adolescente, um jovem, um adulto. Então tudo parte da infância; se

essa infância for bem cuidada, com certeza mais tarde vai ter bons adultos44”.

A infância é o primeiro período da vida do ser humano após o nascimento, mas é

também um período que deve ser respeitado pelo que ele é, e não pelo vir-a-ser – “bons

adultos”. Essa visão de plantinha bem cuidada que dará bons frutos pode caracterizar uma

44 Grifo nosso

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124

concepção fragmentada e restrita de criança, que precisa ter assistência e cuidado para se

desenvolver. Vislumbramos também nessa fala uma concepção da criança como uma fase

preparatória para a vida adulta, um “bom cidadão”. Não se compreende que a criança já é um

cidadão e que tem direitos garantidos por lei.

No outro extremo, temos o olhar completamente oposto da professora Teresinha, que,

no encontro do grupo focal, argumenta dessa forma: “algumas já têm maldade e quando veem

alguma mais inocente influenciam as outras”. Essa é uma percepção contrária à anterior. Para

essa professora, nem todas as crianças são inocentes, algumas, além de terem maldade, ainda

são influenciadoras da maldade. Haveria aqui uma visão agostiniana segunda a qual a criança

é essencialmente má por ter herdado o pecado original? E por que existe criança má? Ela já

nasceu com a maldade ou esse sentimento foi despertado pelo seu contexto histórico e social?

Em relação a essa visão, ao fazer uma análise do pensamento agostiniano, Sarmento

(2007, p. 30-31) afirma que “a imagem da criança está associada a toda uma conceptualização

do corpo e da natureza como realidades que necessitam ser controladas pelo instinto, a criança

é concebida como uma expressão de forças indomadas e dionisíacas, com potencialidade

permanente para o mal”.

Essa polaridade ocorre não só nos discursos, mas nas ações cotidianas das escolas. São

duas visões distintas de criança: de um lado a inocência e, do outro, a maldade; de um, a

bondade e, do outro, a perversidade: de um lado, o ser perfeito e, do outro, o imperfeito que

precisa da ação do adulto para moralizá-lo. Kramer (2006, p. 18) assegura que

o sentimento moderno de infância corresponde a duas atitudes contraditórias que caracterizam o comportamento dos adultos até os dias de hoje: uma que considera a criança ingênua, inocente e graciosa e é traduzida pela “paparicação” dos adultos; e outra surge simultaneamente à primeira, mas se contrapõe a ela, tomando a criança como um ser imperfeito e incompleto, que necessita da “moralização” e da educação feita pelo adulto.

Sabemos que o sujeito possui aspectos instintivos, biológicos, naturais, mas ele

também é formado por outras dimensões como as sociais, históricas, culturais, estéticas e

éticas, dimensões essas que não estão separadas na vida do sujeito. Na condição de sujeito da

complexidade que somos, convivemos cotidianamente com essas contradições. E com a

criança não é diferente, ela também é esse ser complexo. Há crianças que são boas por

natureza e outras ruins? Umas nascem para o bem e outras para o mal? Essa é a constituição

da humanidade e da criança, especificamente, ser da contradição. A criança, como esse ser

complexo, requer um olhar em diferentes direções e óticas, pois, como salienta Burnham

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(1998, p. 35): “a aceitação da heterogeneidade é que constitui o complexo”. Um olhar

pluridimensional.

Nesse sentido, Sarmento (2007, p. 45) afirma que

a complexidade dos mundos da vida das crianças desafia uma ciência que parta ou que se fixe em imagens. Uma ciência outra, atenta a complexidade das condições de existência das crianças, capaz de combinar os vectores da socialização (horizontal e vertical, realizadas entre pares e com os adultos) com os da subjetivação, o grupo geracional na sua existência histórica concreta com a criança ator e autor da sua história singular de vida.

Considerando a diversidade (crenças, valores, espaços, família, escola) do universo

infantil, existe a possibilidade de construirmos uma concepção de infância pautada na

construção histórica. Nessa acepção, a professora Teresinha discute a diferença da criança do

passado e a criança do contexto atual. Segundo ela, com as mudanças na sociedade fica cada

vez mais difícil trabalhar com a criança, pois “antigamente as crianças brincavam mais,

observavam mais contar histórias; hoje elas nem ouvem as histórias que contamos na sala,

temos que chamar a atenção a todo o momento”. A professora acredita que talvez a TV esteja

influenciando no comportamento das crianças.

Como a infância é uma construção histórica, com certeza há diferenças entre a infância

dos nossos pais e a dos nossos avós, a nossa própria infância e a de nossos filhos. A

professora se refere de forma saudosista à infância de antigamente, como em Casimiro de

Abreu: “Oh! que saudades que tenho/Da aurora da minha vida/, Da minha infância querida/ -

Que os anos não trazem mais!”, como se as crianças do passado fossem melhores do que as de

hoje. O contexto social e familiar mudou e, consequentemente, o comportamento nas

atividades e brincadeiras desejadas e desenvolvidas pelas crianças. Confirmando esse

discurso, a professora Fúlvia argumenta que algumas atividades desenvolvidas em sala de

aula não chamam a atenção, não interessam às crianças, ao contrário das brincadeiras e das

histórias, e que “tudo que se trabalha na escola fica gravado para sempre na mente da criança”

e faz referência a sua própria infância com saudades.

Ao fazer alusão às atividades lúdicas que interessam às crianças, a professora

contradiz a sua fala anterior de que as crianças de hoje não se envolvem nas brincadeiras.

Mesmo em um contexto considerado pós-moderno, com muitos brinquedos eletrônicos,

computadores, TV etc., a criança continua a ser criança. Houve sim mudanças nos tipos de

brincadeiras, uma vez que o contexto é outro. Estamos em outro período da história e a

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mudança é inevitável. Não somos seres estáticos e muito menos a criança o é. Devemos levar

em conta os fatores heterogêneos, a diversidade do mundo adulto e também do infantil.

O que há é a diferença de contextos. Se em uma época, valorizavam-se cantigas de

roda, os “causos” contados pelos mais velhos (avós, pais), a criança de hoje prefere o

videogame, o computador, os desenhos animados. Ela não deixou de ser criança por isso nem

deixou de ter infância por preferir assistir a TV a brincar de gude na rua. . Seria muito

complicado querer impor às crianças brincadeiras que não fazem parte do seu contexto e

esperar que elas gostem ou participem de tais brincadeiras.

Na concepção da professora Alessandra, a infância

É a fase de descoberta e tem que ser respeitada. Às vezes, eles45 ficam muito focado nos conteúdos e aí eu falo que eles deveriam estar dando atenção ao que as crianças veem na escola e levam para casa. Coisa simples, como pedir para contar uma história, músicas que eles cantam. Ter atenção para ouvir, ver os desenhos que eles fazem. Eu peço para deixarem livre, assim, papel pra rabiscar, porque, às vezes, chegam à escola sem saber segurar no lápis. Eles podem muito bem já está vendo isso em casa. Pra ter um sentido para eles é bom se eles vissem isso e perguntassem, buscassem ver que significado tem pra criança aquele desenho. Eu converso muito com eles a respeito disso. De dar atenção a essa criança. Então essa criança chega à escola às vezes sem infância. A gente vê muito que o brincar fica de lado. Muitas crianças estão sendo miniadultos. Chegam aqui com uma linguagem diferente, aquela linguagem decorativa de adulto (Entrevista feita com a profa. Alessandra em 25/07/2008).

Esta professora vê a criança como um ser que merece ser respeitado nas suas

especificidades. Faz referência aos pais, os quais, segundo ela, estão muito preocupados com

os conteúdos e acham que as crianças vão para a escola estudar, “fazer dever”. Uma das

razões para esse “desaparecimento da infância” é que, muitas vezes, essas crianças estão

ajudando até mesmo nos afazeres domésticos. Na escola, especificamente na sua sala de aula,

a professora procura fazer com que se viva à infância de forma mais plena, proporciona

momentos de histórias, músicas infantis, jogos e brincadeiras, mas, segundo a professora,

quando as crianças chegam em casa, a realidade é outra. Muitas tomam conta de irmãos

menores, lavam prato etc. Esta docente acredita que a escola precisa resgatar a infância, e que,

o ponto fundamental da pré-escola é justamente esse resgate.

Embora essa professora tenha uma visão de infância como uma fase com

particularidades que devem ser respeitadas, em outro momento do discurso, ela acaba por se

contradizer ao afirmar que a criança chega à escola sem saber pegar no lápis. Qual a forma de 45 Está se referindo aos pais.

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pegar? Existe uma maneira correta? A forma correta é a do adulto? Qual a relevância disso

para construção social de uma criança de quatro anos de idade? Essa tão chamada

coordenação motora não vai ser desenvolvida com o contato no dia-a-dia da escola e no

contato com outros objetos. Pegar no lápis de forma “adequada” é o mais importante na

escola?

A professora Sônia externou a angústia que sentia ao se deparar com uma turma de

crianças de cinco anos, como via as crianças antes de trabalhar com elas e a forma como as vê

hoje. Sua concepção mudou a partir do momento em que começou a ter um contato direto

com as crianças. Nessa perspectiva argumenta que a infância “é viajar nesse mundo

imaginário que as crianças têm dos contos de fada. Aquela habilidade que elas têm de criar

coisas, inventar e contar histórias”. Hoje ela tem essa compreensão de infância e não

imaginava que a história tivesse tanto significado para as crianças, assim como as ilustrações

dos livros:

eu achava também que a história não era interessante. Mostrar o desenho para aluno... Eu contava a história, eu achava que a ilustração do livro não tinha importância. Esse ano, descobri que, através dos desenhos, eles podem criar sua própria história. E eles, quando ouvem a história que interessa, vivem como se fossem os personagens da história. Às vezes até acrescentam, “não tia, se fosse eu, fazia assim”. Eles já se veem sendo o personagem da história. Então o mundo infantil é esse aí, viajar pelo mundo da imaginação. Deixar vivenciar a imaginação (Entrevista feita com a profa. Sônia em 30/07/2008).

Essa é uma concepção restrita de infância, pois ter infância não significa apenas viajar

no mundo imaginário. Muitas crianças viajam nesse mundo, têm imaginação, criam histórias,

mas vivem o mundo do adulto, seja em casa nos afazeres domésticos, seja nas ruas, tendo que

se virar para comer e dormir, seja no mundo do trabalho, tendo que ajudar nas despesas em

casa ou, até mesmo, na escola onde não há espaço para o prazer e a alegria de viver. Quantas

dessas crianças viajam no mundo imaginário? Sonham por melhores condições de vida, com

brinquedos, com o lazer etc.? Claro que esses aspectos de fantasia e criação caracterizam a

infância, mas não é só isso.

Para a professora Teresinha, a “infância é o período desde o nascimento até a

adolescência, no caso assim a infância ele vai brincar, estudar, vai se envolver com outras

crianças na escola, isso aí tudo eu acho que é infância” A infância aqui é caracterizada como

um período biológico, e não como uma construção histórica e social. Em outro momento,

porém, ela expõe que

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tem criança que não vive a verdadeira infância. Como muitos meninos, as falas deles, conversando, você vê que não vive a infância, até o olhar, não é um olhar de criança que vive a infância. Tem muitos que chegam na escola e quer se soltar, porque tá envolvido com outras crianças do tamanho deles, eles se soltam, tem uns que são difíceis de concentrar [...] não ter infância, estou falando de amadurecimento cedo demais, às vezes tem que tomar conta de algum irmão, tem que ajudar em casa (Entrevista feita com a profa. Teresinha em 29/07/2008).

É perceptível certa contradição na fala da professora, pois, ao mesmo tempo em que

diz que a infância é uma fase (sentido biológico), pela qual todas as crianças passam

indistintamente, ela faz também uma distinção entre criança e infância, quando diz que

existem crianças que não vivenciam a infância. Nesta última assertiva, a infância é construída

historicamente; mas também há referência a uma visão de desenvolvimento natural, ao se

referir a “amadurecimento”, uma concepção de desenvolvimento maturacional, segundo o

qual a criança se desenvolve de acordo com determinados estágios.

A professora Regina vem confirmar essa visão do desaparecimento da infância com a

discussão de que

as meninas hoje não sabem brincar de casinha, de pular corda. Mas falam o tempo todo sobre gravidez. Houve uma situação em que a aluna (4 anos) disse que estava grávida. A outra perguntou se já estava mexendo e quem era o pai. Ela apontou para um colega e disse que ele era o pai. O garoto a ouviu dizer que ele era o pai e não gostou e disse imediatamente que não, pois não ia dar dinheiro a ninguém não (Entrevista feita com a profa. Regina em 22/07/2008).

As crianças podem ter ouvido esses assuntos em casa, na rua, na TV, não se sabem

especificamente, mas com certeza elas ouviram em algum lugar. Questionada sobre a sua

atitude diante da discussão das crianças, a professora disse que ficou apenas observando e que

não fez nenhuma intervenção ou participou da conversa, manifestando dificuldade em lidar

com questões que surgem dos diálogos entre as crianças. Quantos conhecimentos poderiam

ser explorados em sala de aula: a percepção do garoto de que se fosse o pai teria que arcar

com a responsabilidade de dar a pensão alimentícia; o saber que a criança mexe na barriga da

mãe. Observa-se que a criança estava brincando de casinha, de família. Ao falar do

nascimento de uma criança, do pai, da mãe, há aí a compreensão da constituição de um tipo

de família. Na sala de aula, o professor precisa levar em conta as situações que surgem no

cotidiano, nas conversas, e explorar as percepções e conhecimentos infantis que são

construídos também nessas situações, e não apenas na reprodução dos saberes já instituídos

pela humanidade.

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Com base nesses contextos, a criança passa a desvelar o mundo adulto e a conhecer a

realidade que lhe é dada, no entanto, muitas vezes por falta de diálogo dos pais e/ou

professores, por acharem que a criança não tem capacidade de compreender determinados

assuntos, preferem se calar e as crianças acabam ficando sem respostas para os seus

questionamentos. Quantas vezes ouvimos os adultos pedirem as crianças para que se calem

por estar falando demais, fazendo muitas perguntas? Kramer (2008, p. 92), ao discorrer sobre

a infância e o mundo que lhe é dado a conhecer, salienta que no “cotidiano do trabalho, na

política, nas relações familiares, o que se vê é a falta de diálogo e de escuta do outro”.

A professora Teresinha ratifica essa concepção ao falar que “as conversas deles são

conversas de adulto. Quem beijou, quem fez isso ou aquilo... A televisão, programas sem

nenhuma censura, cenas de sexo. Tudo é considerado normal”.

Realmente muitos pais não selecionam os programas que as crianças poderiam ou não

assistir, há uma permissividade a qualquer tipo de programa, o que acaba por influenciar na

formação da criança. No entanto, a escola precisa estar atenta para discutir tais questões no

seu dia-a-dia, abrir-se ao diálogo e não achar que isso não é um problema dela. Kramer (2008,

p. 94) discute “a necessidade de educar contra a barbárie”, o que nos remete ao educador

Paulo Freire, que já preconizava nas suas obras a necessidade de uma relação dialógica na

educação. É possível manter essa relação dialógica com crianças tão pequenas? A criança não

é um ser sem pensamento, desprovido de razão, pelo contrário, é um ser que fala, pensa, cria,

rir, chora, aprende.

As concepções de infância/criança não estão presentes nos Projetos Político-

Pedagógicos das escolas pesquisadas nem na Proposta Curricular da Secretaria Municipal de

Educação. Nos PPPs, ainda há referências aos objetivos da escola, o porquê do projeto, as

metas, o que a escola deseja alcançar, mas não está clara a sua concepção de infância/criança.

Apenas o que deve ser ensinado às crianças.

O PPP da Escola Reinações de Narizinho explicita que foi feito um diagnóstico e

foram elencados os pontos críticos que deveriam ser trabalhados no período de sua duração

(dois anos). Salienta que “está voltado para o rendimento escolar” com o objetivo de “superar

as insuficiências” da unidade escolar. O Projeto da Escola Memórias de Emília aborda que a

escola priorizará a

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construção de uma aprendizagem significativa exigindo o emprego variado de procedimentos didáticos que permitam uma participação coletiva e afetiva, que atenda os alunos na sua diversidade, pois é importante que a criança desenvolva uma auto-imagem positiva46, percebendo uma identidade própria e sendo valorizada nas suas possibilidades de ação e crescimento (PPP da Escola Reinações de Narizinho).

Embora haja referência ao desenvolvimento da criança, esse projeto não faz menção

ao documento oficial do Ministério da Educação que trata da educação infantil (RCNEI), mas,

sim, aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que são documentos oficiais para o

ensino fundamental. Também não há menção às DCNEIs. Em relação à expressão auto-

imagem positiva, Sônia Kramer em seu livro Com a Pré-Escola nas Mãos: uma alternativa

curricular para a educação infantil, discute a construção da identidade, com base em

trabalhos desenvolvidos em sala de aula, para que a criança possa se aceitar de forma positiva.

Esse conceito é bastante interessante nessa fase de construção identitária de grupos sociais.

Rubem Alves (2000), em uma de suas crônicas denominada a “inutilidade da

infância”, narra a história de duas crianças, uma saudável e outra que está com leucemia. O

pai da criança saudável questiona o que ela vai ser quando crescer. O segundo promete ao

filho que, se tudo correr bem, no domingo eles iriam ao jardim zoológico. O autor vai

abordando as duas maneiras de pensar a vida da criança: para um pai “o filho não é uma

entidade que ‘vai ser quando crescer’, mas que simplesmente é, por enquanto”; a outra “a

criança não é, só será depois que crescer, que ela só será depois que transformada em meio de

produção” (p. 50), isto é, um vir-a-ser. Diante da discussão, o autor questiona sobre o tipo de

criança que a escola tem tomado pelas mãos e adverte que “se a coisa importante é a utilidade

social, temos de começar reconhecendo que a criança é inútil, um trambolho” (p. 51). O autor

critica a visão que existe da criança como inutilidade.

Entendemos que os profissionais da educação infantil precisam tecer um novo olhar

sobre a criança, desconstruir o que está instituído pela sociedade hegemônica, deixando de vê-

la sempre de forma comparável ao que ela poderá vir-a-ser, sempre relacionando-a à vida do

adulto e lançar um novo olhar sobre a criança e a construção da infância.

46 Grifo nosso

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4.4 CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO NO CONTEXTO DA PRÉ-ESCOLA E A PRÁTICA PEDAGÓGICA

A compreensão de currículo discutida no decorrer desse trabalho é de uma construção

social e cultural que faz parte da vida cotidiana das instituições de ensino. Não é algo dado e

pronto, mas um tecido construído no dia-a-dia do espaço concreto da escola. Vai além da

preparação de aula, de um programa e/ou planejamento de aula. O currículo que

compreendemos envolve a concepção de mundo, de escola, de aluno, de professor, de

sociedade, de ensino e de aprendizagem. É preciso vê-lo no todo como “código cultural,

social e ideológico em permanente reconstrução” (PACHECO, 2005, p. 77). Mesmo que hoje

faça parte do currículo da escola uma diversidade de propostas (pedagogia de projetos,

currículo integrado, tema transversal, tema gerador) e a forma como desenvolver atividades,

não haverá significado nem mudança efetiva se o professor não estiver imbuído, impregnado

de uma visão crítica e democrática de educação infantil.

A professora Regina concebe currículo como um planejamento; como o que é

programado para ser executado na escola e na sala de aula, e que, às vezes, argumenta a

professora, nem sempre é possível colocar em ação e conclui o pensamento dizendo que

Currículo é o que a gente prepara no dia-a-dia de aula. Cada planejamento, a gente aprende mais, mas tem as dificuldades para colocar em prática e nem sempre conseguimos fazer o que a gente prepara. Às vezes a gente tem um projeto, tem um propósito, mas nunca pode aplicar por falta de material (Entrevista feita com a profa. Regina em 22/07/2008).

Nesse discurso, notamos que a professora entende currículo como a preparação das

aulas; manifesta uma concepção de currículo voltada para programa. Essa concepção é

criticada por Pacheco, Macedo, entre outros curriculistas, na qual o currículo não se limita aos

conteúdos, ou a preparação das aulas, mas o dia a dia da escola, as dificuldades encontradas

para colocar em ação um projeto, um plano, os caminhos encontrados para a sua

concretização em meio às dificuldades, tudo isso faz parte do currículo, e não só o elenco dos

conteúdos a ser trabalhado na escola.

Na discussão do Grupo focal, a mesma professora destaca que o currículo é um apoio

que tem para direcionar o que vai ser feito no cotidiano a escola:

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o currículo direciona o que vamos aplicar, às vezes não alcançamos todo o nosso objetivo, mas tem uma teoria para a gente seguir. Nem tudo a gente alcança, mas é importante. A coordenadora vê o problema do aluno na sala, tem cinco alunos que não acompanham. O currículo é importante, mas a gente tem que se virar com o aluno (profa. Regina na discussão do Grupo Focal em 01/08/2008).

A professora reconhece a importância do currículo na escola, entendido, entretanto,

como planejamento, como programa, como algo burocrático: “tem uma teoria para a gente

seguir”. Notamos uma visão de currículo como algo pronto e obrigatório. Outra questão que

merece destaque é a dificuldade da professora em lidar com a heterogeneidade. Segundo ela

cinco crianças não acompanham as demais. Acompanhar em que sentido? Responder às

atividades propostas pela professora? Talvez essas crianças não acompanhem o que a

professora quer que ela acompanhe, mas, com certeza, há outros aspectos que a criança pode

desenvolver e o professor precisa estar atento a isso.

A professora Ivani vê o currículo também como um planejamento, um programa.

Nessa perspectiva discute que:

a gente já recebe o currículo pronto - o rol de conteúdos. Está aqui em suas mãos para você seguir, para você cumprir. A criança tem que saber fazer o nome no final do ano, conhecer as letras do alfabeto, os numerais até 20. Então a gente fica com aquela preocupação... chegar o final do ano entregar o menino “pronto” para a outra série. O Pré II tem que saber, em termos de conteúdos, os numerais até 20, o alfabeto, letra cursiva e bastão, nome completo, nome da escola e outros conhecimentos de ciências, de geografia, de história (Entrevista feita com a profa. Ivani em 22/07/2008).

Observamos uma preocupação excessiva da professora com o desenvolvimento da

dimensão cognitiva. Em nenhum momento, ela fez referência a outros aspectos da vida da

criança, como, por exemplo, o cultural, o social, o afetivo. A preocupação é com a linguagem

escrita, o conhecimento das letras e dos numerais, e o desenvolvimento dessa habilidade. Será

que a aprendizagem da criança se restringe a esses conhecimentos? A inquietação da

professora está relacionada à assimilação do conteúdo, para que as crianças tenham condições

de ir para a turma seguinte, Pré II (crianças de cinco anos de idade), e ela, a professora, não

venha a sofrer críticas das colegas. Confirma, assim, a visão de currículo como programa,

planejamento, conteúdo programático. Esse discurso é ratificado na Proposta Curricular

enviada pela Secretaria de Educação do Município já apresentada no item anterior

(Importância da Educação Infantil), que elenca os conteúdos a ser trabalhados na pré-escola,

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sem nenhuma referência à concepção de criança, educação nem referencial teórico que

embase tais conteúdos.

Embora tenha uma visão de currículo como programa, essa professora reconhece que é

preciso entender e respeitar as crianças, nas suas particularidades. Na discussão do Grupo

Focal, salienta que:

O currículo é importante porque serve como uma base para definir o que vai trabalhar, o que meu aluno precisa saber. Pode atrapalhar porque às vezes a gente quer seguir o que está no papel e a gente não consegue dar conta, com isso fica preocupada. Não quer dizer que tudo que está aí a gente vai seguir. Tudo é uma continuação, senão não era dividido por série, ficava com os alunos até... As cobranças que vêm pra gente... Às vezes a gente fica muito preocupada pra cumprir o programa e até deixa de seguir outras coisas, até às vezes muito mais importante pra gente trabalhar (profa. Ivani na discussão do Grupo Focal em 01/08/2008).

O “atrapalhar” da professora pode significar que ela pode não dar conta daqueles

conteúdos selecionados no programa. A professora cita outros elementos que são importantes

para o trabalho com as crianças, como, por exemplo, parar para ouvi-las, no momento em que

elas expõem o que sentem e pensam, e isso requer tempo. A angústia é justamente a de ter de

“entregar” a criança com esses conhecimentos. Assim a partir dessa visão ela procura

desenvolver um trabalho mais prazeroso.

A professora falou das dificuldades encontradas para trabalhar, porquanto muitas

crianças não tiveram “preparo”, isto é, não fizeram o Pré I, “não têm coordenação nenhuma”.

Ela expõe que trabalha por meio de música, de texto; não trabalha as letras de forma solta,

nem o alfabeto na ordem e é preciso que “aprenda a identificar as letras, porque na ordem

muitos deles falam o alfabeto, mas quando pergunta uma ou outra sem ser na ordem elas não

identificam”. Outro problema levantado pela professora é a questão da quantidade de alunos

na sala de aula, o que a leva a não conseguir dar “assistência” individual.

Essa professora critica a forma como são desenvolvidas as atividades com as crianças,

pois ela acha que devem ser resgatados os aspectos da vida cotidiana. No seu dia-a-dia na

escola, busca atividades que envolvem as crianças, sempre procura trazer a ludicidade para a

sua prática pedagógica.

A professora Fúlvia tem a mesma opinião em relação ao currículo quando afirma que

“é o planejamento que a gente faz no período, às vezes, esse currículo não leva a nada, pois

não conseguimos colocar os nossos objetivos em prática”. Segundo a professora, ao fazer o

planejamento não dá para encaixar os conteúdos que gostaria de trabalhar. Assim conclui:

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“Currículo é isso aí, o trabalho que a gente faz no decorrer, preparar aulas, planejar”. Na

discussão do Grupo Focal, essa mesma professora salienta que:

O currículo é importante, mas, em determinadas situações, atrapalha. Quando a gente pega a criança com dificuldade e a gente quer que ela fique “pronta” no final do ano, a criança sem nenhuma noção do que trabalhou vai para o Pré II e perguntam “o que esse menino trabalhou no Pré I, pois não sabe nada”. “Não sabe grafar o nome”. Isso é uma dificuldade do aluno, que já vem do Pré I (profa. Fúlvia na discussão do Grupo Focal em 01/08/2008).

Embora a concepção de currículo seja a mesma (programa planejamento) dos

depoimentos anteriores e a visão de que, em algumas situações, o currículo “atrapalha”, em

relação à aprendizagem da criança, há uma diferença: enquanto a professora Ivani faz uma

crítica a esse “entregar pronto”, a professora Fúlvia acredita que a pré-escola deve

desenvolver tais conhecimentos e, se o menino não desenvolve, isto é, não aprende, é porque

ele já traz essa dificuldade da série anterior. É uma dificuldade da criança, e não da professora

ou da escola. Na sua concepção, a criança precisa desenvolver tais conhecimentos para ir para

a série seguinte (Pré II ou alfabetização).

Vemos que a concepção da professora Fúlvia é a mesma da professora Ivani: o Pré I

deve ser uma preparação para o Pré II, e este, por sua vez, é uma preparação para a

alfabetização, que, consequentemente, será uma preparação para a 1ª. série do ensino

fundamental. Em outro momento, ela destaca que a criança vai adquirir o conhecimento de

acordo com a sua maturidade e as dificuldades apresentadas são da própria criança, pois o

professor faz de tudo, trabalha o ano todo com a criança, mas ela não consegue aprender e que

“às vezes, tem criança que fica até três anos na alfabetização e não consegue aprender. Eu

acho que o problema é da criança e se deve esperar o tempo certo para aprender, chegar à

maturidade para alcançar o objetivo”. Esse aprender destacado pela professora está

relacionado aos conhecimentos cognitivos (conhecer e grafar as letras, os numerais, o próprio

nome, o nome da escola etc.).

Essa preocupação com a “prontidão” reflete o paradigma romântico que vê a

maturação como uma manifestação de capacidades internas, indicando se a criança está pronta

ou não para aprender, ou seja, para receber uma educação mais formal. O desenvolvimento

visto apenas no aspecto maturacional deixa de levar em conta a história da criança como autor

e ator social que é. Muitos profissionais ainda veem a educação nesta fase como uma

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prontidão, isto é, preparo da criança para o ensino fundamental. Nessa perspectiva, Macedo

(1999, p. 91) assegura que foi no contexto psicologizado e perverso que

o conceito de prontidão para aprender esbarrou num beco psicopedagógico sem saída, por ser muito mais um operador de excludências, face ao reducionismo teórico-prático que carregava, já que, por uma psicopedagogia fatalista e às vezes ortopédica, teve o papel acima de tudo de impiedosa seleção social, enquanto dispositivos de diagnósticos, com poder de previsão da aptidão ou não de uma criança para escolorizar-se. Desta perspectiva, em geral, é na criança e na sua família que são identificados os déficits meramente pontuais, portanto não relacionais, de uma suposta falta de condições para um determinado aprendizado, quando já se tem evidencias claras de que o fenômeno da aprendizagem no espaço escolar-familiar acontece num processo de interatividade ampliada e contextualizada.

Nas relações e interações entre crianças e professores, nesse acontecer cotidiano, as

crianças não só aprendem (cognitivamente), mas, também, constroem outros conhecimentos e

se constroem ao mesmo tempo. As instituições de educação infantil são espaços também

culturais. A partir do momento em que a criança adentra esse ambiente, está se modificando,

sendo influenciada e influenciando a todos os envolvidos naquele contexto.

A professora Alessandra argumenta que o currículo tem que levar em conta a fase da

criança e, ao narrar a sua concepção de currículo, começa abordando o nível da turma

(crianças de 4 anos), a qual não está no mesmo nível da outra turma da mesma idade. Discute

sobre sua prática pedagógica, sobre o processo de socialização entre os alunos, das crianças

que já chegam cansadas na sala e só querem dormir por estarem em um projeto do município

chamado AMCI47, que atende crianças com “dificuldades de aprendizagem”, fazendo aula de

reforço.

Dificuldade esta entendida como o não-desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita,

por isso as crianças vão participar desse projeto pela manhã e, à tarde, já chegam cansadas à

escola. Daí ela deixa essas crianças mais à vontade, até mesmo dormir na sala de aula – em

um canto da sala em um tapete ou em cima do banco. Em relação ao projeto de reforço, fico a

me questionar: o que uma criança de 4 e 5 anos estaria fazendo em um projeto desse tipo?

Que reforço é este? Que dificuldade é essa que a criança precisa ficar o dia inteiro na escola?

Que martírio não é para uma criança pequena passar o dia todo copiando palavras soltas e

fazendo “dever”?

47 Associação de Menores Carentes de Itapetinga.

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Esta professora aborda ainda o momento do planejamento, no qual, segundo ela, é um

trabalho feito coletivamente, com socialização das ideias. Ao final do depoimento, ela

argumenta que

O currículo... Acho que tem um objetivo para esse currículo. Tem que ser seguido, mas acho que deve ser assim... Como eu diria... Assim... O nosso currículo mesmo, ele é planejado, mas ele é flexível no momento em que está sendo empregado na sala de aula. Então às vezes a gente está mudando esse currículo também. Aqui na minha sala mesmo, às vezes... Tem salas que já estão num nível maior da matemática, de quantidade, dos números e aí eu estou fazendo um pouquinho atrás da outra por conta da minha turminha. Então flexiona-se um pouco. Acho que a questão do currículo vai de acordo com a necessidade da sala. É planejado o currículo aqui na escola, mas ele se torna flexível na medida em que a gente vai praticar. (Entrevista feita com a profa. Alessandra em 25/07/2008).

Segundo a professora Alessandra, o currículo só vai contribuir para formação da

criança quando tiver um sentido. Ela fala às mães e os pais para não ficarem preocupadas se a

criança tem uma grafia correta ou não, se identificam as letras, e salienta que tudo isso é

importante, mas se não tiver um sentido para a criança não adianta. Assim argumenta:

A partir do momento em que ele começa a analisar que no nome deles tem essas letras, tem uma significação para eles, que esse nome é importante desde o nascimento. A gente começa a explicar desde o inicio, aí há um valor, um significado. Então a gente deve levar mais em conta a questão do currículo, dando um sentido. A gente não se apega muito ao currículo aqui, a gente leva mais em conta como a criança está se desenvolvendo, como ela está se adaptando, primeiro essa adaptação do currículo para depois está sendo empregado na criança. Para não ser aquela coisa taxada, decorativa, uma coisa que ela está desenvolvendo (Entrevista feita com a profa. Alessandra em 25/07/2008).

Segundo a professora, não adianta elaborar projetos se não tiver um sentido, um

significado, pois fazer apenas para cumprir uma determinação da escola ou da coordenação

não adianta muita coisa. Mesmo com um olhar voltado para os objetivos e significados do que

se faz na instituição e embora tenha falado da prática pedagógica, da formação dos

professores, do respeito às características próprias das crianças, o currículo para ela ainda está

voltado para planejamento, ainda se restringe ao programa, o que deverá ser ensinado na

escola. Apesar disso, no decorrer do discurso a professora apresentou uma concepção mais

abrangente de criança, de ensino e de aprendizagem, não enxergando apenas o lado cognitivo

da criança, mas outros aspectos da formação humana, na qual a aprendizagem ganha

significado.

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Nesse sentido Garcia (2000, p. 16-17) salienta:

que sentido tem as crianças passarem de uma atividade pra outra (desenho, pintura, massa plástica, blocos de construção, etc.) sem qualquer finalidade, a não ser a atividade em si? As atividades, essas e outras, ganham sentido quando são meios para o desenvolvimento de projetos coletivos ou individuais. Faz uma diferença uma sala de aula em que as crianças pintam, desenham, recortam revistas e colam folhas em papel, e vão amontoando a sua “produção” em pastas, e outra sala em que as crianças planejam, executam e avaliam projetos coletivos em que estas atividades e outras passam a ter sentido porque têm como referência uma totalidade.

A professora Sônia concebe o currículo como “segmento das etapas da criança. Ter

cuidado com as etapas respeitando o momento do rabisco, da garatuja. Ter um olhar para não

aplicar conteúdo que a criança não esteja ainda naquela fase”. No momento seguinte ela diz

que não entende muito o que é currículo, mesmo depois de ver tanta coisa na Faculdade48 que

a “cabeça dela está até meio zonza” sem entender direito, mas ela se pergunta como aplicar

aquela bagagem toda ali com as crianças de cinco anos de idade. Então ela observa que é

preciso tomar cuidado com a fase para não aplicar conteúdos avançados demais para a idade

delas. A professora destacou que iniciou o ano trabalhando o alfabeto e que, para ela, bastava

“letra, papel, giz e quadro e acabou”, isso era o suficiente, mas naquele momento ela

compreendia que as crianças precisam dominar outros conceitos como os matemáticos, por

exemplo – seriação, classificação, figuras geométricas etc. e não só as letras como pensava

anteriormente.

Apesar da professora reconhecer que tenha mudado a sua postura e a sua compreensão

em relação à aprendizagem e ao desenvolvimento da criança, no final da fala acaba

confirmando uma visão ainda cognitivista, quando afirma que a criança precisa dominar

“conceitos matemáticos”. Tais conceitos não seriam conhecimentos cognitivos? Na sua

prática pedagógica, também estão presentes as atividades no caderno ou em folhas

mimeografadas para que as crianças copiem, cubram ou liguem letras e numerais a palavras e

objetos. Quando se refere à leitura, é leitura de palavras soltas escritas no quadro ou cartaz.

As aulas observadas na sala da professora Sônia, o momento da leitura se restringia a

leituras de palavras soltas, encontros vocálicos ou, até mesmo, letras do alfabeto escritas no

quadro, como, por exemplo: AI, UI, OI, AU, UAI, BOCA, DADO, PIPOCA, TOMATE,

SAPATO, de acordo com a letra que seria trabalhada naquele dia. Era listado um elenco de

até dezoito palavras no quadro de giz para que os alunos lessem. Esse era considerado pela 48 A professora faz o curso de Formação de Professor.

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professora o “momento de leitura”. No meu primeiro contato com a turma, quando a

professora disse que era a hora da leitura, imaginei que seriam distribuídos livros para que as

crianças pudessem pegar, folhear, ler, ou, mesmo, que a professora lesse alguma história para

elas. Qual foi a minha surpresa Varias palavras dispostas no quadro. A leitura dessas palavras

era feita coletivamente. Os alunos repetiam todos em coro. Eles não sabiam nem o que

estavam falando. Leitura de palavras desconexas e soltas sem nenhuma relação com a

realidade do aluno, com o seu contexto ou mesmo com a própria história que havia sido

contada anteriormente. O interessante é que alguns alunos conseguiam ultrapassar aquele

momento maçante: enquanto a professora lia as palavras com alguns, outros estavam

brincando com o colega, com a mochila ou com algum brinquedo que haviam trazido de casa.

Essa prática não se restringia a uma professora, mas à maioria delas.

A professora Teresinha destacou que “O currículo, de acordo com os conteúdos que

vamos trabalhar com os alunos, deixa muito a desejar, porque eles passam assim: ‘esse aqui é

o conteúdo do pré’”. O currículo aqui também é visto como o rol de conteúdos, o programa, o

planejamento. Afirmou ainda que ela é quem vai organizar o que será trabalhado com as

crianças. Sugeriu que a pré-escola deveria ter um “modulozinho” para as crianças do Pré I

(crianças de 4 anos) e Pré II (crianças de 5 anos), até mesmo confeccionado por elas, pois se

gasta muito papel para rodar tarefa todo dia ou se perde muito tempo copiando as atividades

nos cadernos das crianças. Esse módulo facilitaria muito a vida delas (professoras) e, de

acordo com o avanço da criança, iriam mudando de módulo. “Se para a alfabetização vem um

livro, por que para o pré não?” Argumenta ainda a professora:

O currículo deixa a desejar nos conteúdos e a forma que a gente passa para os alunos. Os conteúdos são alguns conceitos: alto/baixo... cores, números, letras, nome. De acordo o que ele vai aprendendo a gente vai avançar. Por exemplo, eu trabalho com a letra bastão, quando eu sei que eles já estão identificando a letra bastão apresento a cursiva e começo a trabalhar a bastão. Se o menino ainda não tem uma boa coordenação, a mãozinha ainda está dura, então o bastão é melhor para eles aprenderem, a cursiva vai demorar mais para aprender. Eu sempre trabalho assim. No Pré I ele vai aprender isso e o Pré II já tem que ir preparado. O Pré II é a continuação do Pré I, e vai continuando, alfabetização (Entrevista feita com a profa. Teresinha em 29/07/2008).

No Grupo Focal, a professora argumentava que “o currículo é importante, mas isso

não quer dizer que vamos seguir ao pé da letra”. Mesmo recebendo cobranças de órgãos

superiores ou de professoras das outras séries, elas tentam adequar o “currículo” ao nível da

turma e complementa: “tudo é uma continuação não quer dizer que o menino vai sair sabendo

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tudo do pré I, que vai sair preparado. Uns vão avançar, outros não. Outros têm o raciocínio

mais lento, porque nem todos são iguais”.

Já fizemos alusão a clichês, como estes: “raciocínio lento”, “chegou na escola sem

saber nada”, não sabe pegar no lápis”, “não aprende porque possui algum distúrbio”, que

acabam por estigmatizar e rotular a criança em uma categoria. Esses estereótipos e (pré)

conceitos são corporificados nas práticas pedagógicas, e a criança precisa atender a um

modelo de aprendizagem ideal, isto é, um modelo de como deve se comportar, pensar e agir.

As que não atendem ao padrão estabelecido pela escola, currículo, professor ou sociedade são

consideradas “anormais” ou “problemáticas”. As crianças que não apresentam logo o que

“aprenderam” são estigmatizadas e rotuladas, como se houvesse um saber universal, segundo

o qual todas as crianças teriam a obrigação de aprender as mesmas coisas, da mesma maneira

e no mesmo tempo.

O que seria esse raciocínio lento enfatizado pela professora? Seria o raciocínio das

crianças que não acompanham determinadas atividades? As atividades desenvolvidas em sala

de aula estão todas relacionadas com o desenvolvimento cognitivo. De uma coisa temos

certeza: os sujeitos não são iguais e que bom que somos diferentes! Cultura diferente, família

diferente, religião, etnia, valores etc. Como lidar com essas diferenças em sala de aula sem

estigmatizar, sem desrespeitar a identidade dos alunos?

A professora ainda falou das fichas de avaliação descritiva do pré-escolar que

precisam ser preenchidas:

No final do ano, a gente faz um parecer final – ficha de avaliação descritiva – de cada aluno. Sabe fazer os nomes, identifica as letras, se tem algum distúrbio, o que você acha que ele tem.... Isso é colocado em uma pasta para que a professora que vai pegar essa turma leia, mas só que não acontece, ninguém lê. Se cada professor pegasse a fichinha para ler, não ia dar continuidade? Mas fica na secretaria, e a gente não vê. Se a gente pedi para olhar, tudo bem, mas também falta até tempo para a gente ler ficha por ficha (Entrevista feita com a profa. Teresinha em 29/07/2008).

A avaliação descritiva é de extrema importância para o professor que trabalha com

essa faixa etária, mas encontramos nessa prática o mesmo problema: descreve-se se a criança

aprendeu ou não fazer o nome e identificar as letras. Será que são descritas as atividades de

socialização, a relação inter e intrapessoal da criança? Será que é descrito o contexto

sociocultural da criança, o seu envolvimento ou não nas atividades propostas pela escola, por

quê e como?

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As professoras entrevistadas veem o currículo, ora como um programa que é recebido

pronto do órgão superior, ora como o planejamento da aula. Outra questão que merece

destaque é a preocupação exagerada com o desenvolvimento cognitivo da criança: se está

aprendendo a fazer o nome, conhecer as letras e os numerais, reescrevendo-os. Em nenhum

momento houve destaque para as questões sociais, culturais, afetivas no desenvolvimento do

trabalho. Embora a professora Ivani tenha criticado a cobrança dos conteúdos pelos superiores

e apesar de procurar trabalhar de forma lúdica, mesmo como um recurso pedagógico, ela

acaba por desenvolver a mesma prática na sala de aula.

Nenhuma professora fez referência ao currículo oculto presente no cotidiano da escola

e que, de uma forma ou de outra, influencia a vida das crianças. Vale questionar: o que a

escola tem estimulado na criança: a coletividade ou o individualismo, a cooperação ou a

competição?

Das seis professoras entrevistadas, três são da Escola Reinações de Narizinho

(localizada em um bairro mais central) e três da Escola Memórias de Emília (bairro mais

periférico), no entanto, mesmo com localizações e clientelas diferentes, quase não há

diferença nas concepções e olhares sobre os temas discutidos, tanto nas entrevistas, quanto no

grupo focal e nas observações feitas em sala de aula, exceto a concepção apresentada pela

professora Alessandra da Escola Memórias de Emília. Há certa diferença entre as escolas em

relação aos Projetos Político-Pedagógicos, que veremos a seguir.

A Escola Memórias de Emília possui um excelente espaço físico, mas é pouco

aproveitado pelas crianças e pouco explorado pelos professores. Esta escola foi projetada para

atender crianças do pré-escolar, por isso todos os espaços (salas, banheiros – cada sala de aula

possui banheiro adequado à faixa-etária) e mobiliários são adequados às crianças. No entanto,

os alunos assistem às aulas o tempo todo na sala de aula, sentados ao redor das mesinhas.

O currículo das instituições pesquisadas caminha na perspectiva das atividades

mecânicas e padronizadas, que são realizadas por todas as turmas. As crianças ficam o tempo

todo sentadas nas cadeirinhas junto às mesinhas, desenvolvendo atividades de cobrir ou

copiar. Mesmo sem um espaço destinado ao lúdico, uma brinquedoteca, por exemplo, a escola

possui áreas livres. Em algumas salas de aula, há brinquedos conseguidos pelas professoras,

porém, não percebi, em nenhum momento, atividades lúdicas com as crianças. As crianças

não podem brincar porque estão sempre fazendo as atividades. As salas de aula são cheias de

painéis feitos pelos adultos, o alfabeto e seus respectivos desenhos, os numerais, todos

colados nas paredes. As únicas produções – atividades - feitas pelas crianças são expostas em

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um varal. Todos os cartazes e painéis expostos nos corredores são confeccionados pelos

adultos.

A Escola Reinações de Narizinho por sua vez possui uma área pequena, com salas de

aula também pequenas e dois banheiros para adultos. A escola não foi projetada para atender

a crianças dessa faixa etária. Há um pátio coberto que não dá para as crianças brincarem. No

horário do intervalo as crianças correm livremente no pequeno espaço descoberto que há na

escola. As mesinhas (mesas com quatro cadeiras) das crianças ficam basicamente coladas

umas nas outras, pois as salas de aula são muito pequenas. Os cartazes e painéis existentes na

escola seguem a mesma linha da escola anterior, todos confeccionados pelos adultos. As salas

são carregadas de informações, que não dizem muita coisa para os alunos, onde não há mais

espaço para colar um cartaz. São letras, numerais e palavras soltas sem nenhuma conexão

com o dia a dia das crianças.

As escolas de educação infantil também são criadas para atingir objetivos, não são

instituições sem propósitos. As atividades planejadas também possuem objetivos, embora não

atendam ao contexto da criança. A visão que as professoras manifestaram nos discursos

também é apresentada nos documentos analisados. O projeto aborda que “o planejamento

deve estar pautado nas necessidades dos alunos” e que o objetivo da instituição é acompanhar

sistematicamente o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem do aluno. Destaca

ainda que a educação infantil, como primeira etapa da educação básica, tem como objetivo “a

construção de uma prática educativa assentada em fundamentos teóricos metodológicos e

didáticos, visando um preparo melhor para o ingresso no ensino fundamental”49. Em

relação ao processo de ensino aprendizagem, enfatiza que a sua proposta de currículo está

baseada na “pedagogia de projetos, no qual se procura atender as necessidades e

peculiaridades dos alunos, sem deixar de lado os conteúdos da grade curricular”.

Durante o período de observação, não percebi o desenvolvimento de projetos na sala

de aula com os alunos. Houve, sim, dois projetos na escola: comemoração das festividades de

São João, em que as crianças cantaram algumas musiquinhas próprias dessa festa, pintaram

alguns desenhos relacionados à data e os professores realizaram todas as outras atividades, e a

I Mostra Cultural da Escola, em que houve um grande envolvimento dos alunos, com

apresentação de fragmentos de poesias, dramatização, dança. Todas estavam entusiasmadas

com as apresentações e com a presença dos pais e da comunidade. Houve uma situação

interessante quando uma criança (cinco anos), depois da sua apresentação, me perguntou:

49 Grifo nosso

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“Tia eu fui bem na apresentação?”. Foi um momento muito significativo e muito rico para as

crianças, os pais e a escola.

Mesmo com as dificuldades, a Escola Memórias de Emília procura desenvolver o seu

trabalho de forma a envolver os pais, buscando atender a realidade das crianças. Percebemos,

entretanto, que, embora a escola tenha promovido esses dois projetos, em nenhum momento

foi discutido em sala com os alunos.

Em sua Proposta Curricular, a Escola Reinações de Narizinho declara que “o currículo

do Ensino Básico é constituído de acordo com a base nacional comum e uma parte

diversificada constituída de acordo com as características regionais e locais da sociedade”.

Também nesse projeto ou proposta não há referência aos documentos oficiais da educação

infantil, tais como RCNEI e DCNEI. A partir desse momento, o projeto elenca os conteúdos a

serem trabalhados na pré-escola e suas respectivas orientações metodológicas como vemos a

seguir:

Letras (Língua Portuguesa): Utilizar diferentes linguagens (corporal, musical, plástica, oral e escrita); Ouvir e apreciar históricas: contos, poesias, fábulas; Manusear materiais impressos: livros, revistas, panfletos [...]; Fazer dramatizações etc.; Ter um ambiente alfabetizador, um espaço para diferentes atividades concretas; Propiciar situações em que o aluno possa manifestar seu conhecimento prévio, de maneira espontânea (individual ou em grupo) e descontraída viabilizando o processo de ensino-aprendizagem e ampliando os conhecimentos. Números (matemática): Perceber e valorizar a matemática como ferramenta necessária ao seu cotidiano, por meio de propostas que despertem o interesse e a curiosidade; Aproveitar o conhecimento prévio para solucionar problemas explorando espaços, quantificando, desenvolvendo estratégias, usando ensaio e erro, estimulando relações materiais concretos, etc.; Conhecer e identificar elementos da linguagem matemática; símbolos necessários, representações de figuras e formas; Dominar a ordem dos números trabalhando oralmente com continhas simples; Comparar quantidade, tamanho, distancia, peso; Identificar cores básicas. Recreação: Expressar-se por meio da música; Desenvolver a coordenação motora; Diversificar as atividades, utilizando outros materiais, fantasias, tintas, revistas e jornais, papéis variados, etc.

No dia-a-dia da sala de aula, essas atividades não acontecem como estão expressas no

documento. Embora haja destaque para dramatizações, histórias, contos, poesias, manuseio de

materiais, trabalho com músicas, pinturas, o que acontece de fato é a exploração das letras e

dos numerais e, o pior, de forma mecânica: simplesmente as crianças cobrem ou copiam.

A escola selecionou alguns projetos que serão desenvolvidos no período de

2007/2008, cujos temas, porém, são todos cíclicos: páscoa, circo, índio, mãe, festa junina, pai,

folclore, meio ambiente, semana da criança etc. Higiene é o único tema que não está

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relacionado a uma data comemorativa. Não estamos querendo dizer que a escola não possa

trabalhar com esses temas cíclicos, porém entendemos que há outros que poderiam ser

explorados pelas escolas: temas que pudessem ser sugeridos e discutidos pelas crianças, que

surgissem da vivência delas próprias e sobre os quais houvesse problematização e discussão

em sala de aula.

Kramer (1998, p. 50-53) propõe a organização do currículo para a pré-escola, a partir

de Temas Geradores, que não é uma ideia nova. Paulo Freire já elege essa proposta, muito

significativa por sinal, na alfabetização de jovens e adultos. Porém, a forma como são

selecionados os temas dos projetos não envolve as crianças, as famílias e outros profissionais

da escola. Seria de extrema importância que houvesse a inclusão de todos com articulação da

realidade dos indivíduos. Kramer salienta que os temas geradores significam

exatamente a possibilidade de articular a realidade sócio-cultural das crianças, o desenvolvimento infantil e os interesses específicos que as crianças manifestam, bem como os conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade a que todos têm direito de acesso. Os temas imprimem, ainda, um clima de trabalho conjunto e de cooperação na medida em que os conhecimentos vão sendo coletivamente construídos, ao mesmo tempo em que são respeitados os interesses individuais e os ritmos diversificados das crianças (KRAMER, 1998, p. 50).

Dessa maneira, a proposta curricular não se restringe às atividades, “tarefas em papel

mimeografado ou no caderno, que devem ser cumpridas pelas crianças sentadas ao redor das

mesinhas.

Ao propor a construção de tais projetos, as escolas estão projetando, como a própria

etimologia da palavra sugere, se lançando para a frente, manifestando sua autonomia e

organização. Nessa perspectiva, o PPP de uma unidade escolar é de extrema importância para

uma escola pública democrática e de qualidade. Não se trata de um elenco de ideias, de

concepções teóricas, mas da vida da escola, da sua essência, daquilo em que a escola acredita,

suas concepções de criança, educação, aluno, homem, sociedade, compreendendo o papel dela

e de cada um dos seus profissionais na sociedade.

No entanto, muito do que foi observado nos projetos está longe de se concretizar no

cotidiano da escola. Uma coisa é o idealizado, outra é atender a uma exigência superior –

formalismo, como salientaram as professoras – já vem pronto, e, a outra questão que é preciso

levar em conta, é a não-participação. Para que haja de fato a concretização do projeto, faz-se

necessário levar em conta todas essas questões.

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4.4.1 O currículo e os aspectos socioculturais na constituição da identidade e na

construção do conhecimento da criança.

A criança que frequenta a pré-escola é um ser em formação e, como tal, está em

processo de construção da sua identidade e de constituição de valores indispensáveis à vida de

qualquer ser humano, e, a forma como a escola concebe e constrói seu currículo irá

influenciar positiva ou negativamente na constituição do sujeito como um todo. Querendo ou

não há influência na formação da criança, não apenas no aspecto cognitivo, mas todos as

dimensões que constituem o sujeito. Assim nos questionamos: em que medida os aspectos

socioculturais presentes no currículo influenciam na construção da identidade e do

conhecimento das crianças?

Vimos que historicamente o paradigma da racionalidade sustenta a razão como suporte

do conhecimento e desvelamento das “verdades” científicas. A interação social em nenhum

momento era cogitada como estratégias para o desenvolvimento de trabalhos com as crianças

pequenas. O que era diferente, o que não fazia parte do “padrão”, estava errado e não se devia

levar em conta. A cultura não era pensada como uma das dimensões da vida do ser humano

que possibilitaria a construção do conhecimento.

A formação da identidade da criança se constitui um processo histórico e não como

algo inato/biológico. Na escola de educação infantil faz-se necessário levar em conta a cultura

da criança, sua etnia, classe social, família, para a sua formação. A valorização dos aspectos

socioculturais, suas referências individuais e coletivas, seu reconhecimento como parte de um

grupo social contribuirão na construção da identidade da criança e na sua constituição

enquanto pessoa solidária, cooperativa, amiga e humana.

Em relação ao conhecimento o que se percebe é a valorização dos saberes instituídos

pela humanidade, a supervalorização da cognição. O conhecimento discutido aqui é a

construção do conhecimento e não a sua reprodução, é a construção dos diversos saberes da

humanidade como o científico, o religioso, o social, a arte, e todas as formas de expressões da

humanidade.

Quando questionada sobre a construção da identidade e do conhecimento da criança a

partir do currículo, a professora Regina descreve sua felicidade quando vê o resultado do seu

trabalho e salienta:

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A gente quer formar cidadãos. O mundo já tem tanta coisa ruim, a gente só quer o melhor. Porque é muito gratificante quando a gente vê um menino que já passou por minha mão e hoje está na faculdade, em outro curso, e as professoras falam que ele tem bom comportamento (Entrevista feita com a profa. Regina em 22/07/2008).

Esse “formar cidadãos” é uma expressão que está cristalizada nos discursos das

pessoas. Que cidadão a escola de educação infantil quer formar? A criança não é um cidadão?

Fico me questionando o que seria esse “bom comportamento” para a professora. Seria

estar quieto em sala de aula ou seria respeitar as pessoas, desenvolver a cooperação e a

solidariedade? É interessante pensar no que a escola tem estimulado no aluno, pois uma

escola comprometida com a criança, com o seu desenvolvimento, com certeza, despertará

valores de solidariedade, respeito às pessoas, cooperação e coletividade, e não apenas “bom

comportamento”, no sentido de quietude ou do não questionamento.

A professora Regina se esforça para educar as crianças nos ensinamentos de Deus e

argumenta que a base religiosa é muito importante para a formação do ser humano não na

indicação da religião certa ou errada, mas fazendo com que a criança creia em Deus, como o

Supremo Ser, obedeça aos pais, e procurando educá-las na ética e nos valores. Como a

educação infantil é a base, é preciso passar as coisas boas para que a criança seja um bom

cidadão amanhã.

A professora Ivani argumenta que o currículo não influencia tanto assim na vida da

criança. Salienta que “a escola tem essa visão de formar cidadãos críticos, a gente tenta fazer

isso com a criança, mas essa formação é no dia-a-dia, não é só falando, é assim... você tem

que fazer desse jeito, é trabalhando no cotidiano da escola que essa formação vai acontecer”.

Segundo a professora, não é só na fala, através do discurso que as crianças vão se

desenvolver, mas nas ações cotidianas. Isso nos faz pensar que, mesmo tendo uma concepção

de currículo como conteúdo e programa, a professora acaba argumentando que o cotidiano da

escola influencia na vida da criança. Assim salienta:

Às vezes a criança chega aqui sem saber ir na Secretaria, é uma forma de conhecer a escola, de mostrar onde vai, como é... Isso tudo, acho que faz parte do currículo. Conhecimento do dia-a-dia. Tem criança que no início mal sabia falar o nome e agora... [Mudou até] no sentar, falar as histórias deles para o outro. Para mim tudo isso é conhecimento e às vezes até mais do que... Se preocupar com os conteúdos, com o currículo, com atividades. Acho que resolve muito mais (Entrevista feita com a profa. Ivani em 22/07/2008).

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Constatamos uma contradição na fala da professora, pois, num primeiro momento, ela

assegura que o currículo não influi tanto na vida da criança, referindo-se aos conteúdos e ao

planejamento e, em outro momento, ela argumenta que o conhecimento cotidiano dos alunos,

as suas histórias de vida, o próprio caminhar dos alunos pela escola fazem parte do currículo.

Para ela tudo isso é conhecimento e, às vezes, muito mais importante que os conteúdos. No

final, ela afirma que o conhecimento cotidiano é mais importante que o currículo, o que nos

deixa ver a sua idéia de currículo como algo estático e programático.

Os conhecimentos cotidianos, as atividades do dia-a-dia, a valorização do contexto

social, as interações sociais são realmente imprescindíveis na aprendizagem da criança.

Garcia (2000, p. 17) afirma que “coisas tão simples como lavar as mãos podem tornar-se

situações de aprendizagem, não apenas de hábitos, mas de conhecimentos”. Ao transformar

esse ritual de lavar as mãos em discussões e construção de conhecimento, confirma-se que

esse cotidiano, as vivências dos alunos são ponto de partida para o desenvolvimento da

criança.

A professora Fúlvia argumenta que é preciso a criança ter bom desenvolvimento e

aprendizagem para se tornar um bom cidadão:

O professor deve se preocupar em formação adequada. Essa formação adequada é que tenha oportunidade, ajudar a criança a se desenvolver. No desenvolvimento motor, na psicomotricidade, porque a gente vê muitas crianças com dificuldades. Umas avançam, outras são mais lentas, demoram de pegar o que a gente passa50. A gente precisa estar atenta e perceber, porque a gente sabe que nem todo mundo é perfeito51 e que o potencial de cada um é diferente (Entrevista feita com a profa. Fúlvia em 14/10/2008).

O destaque da professora Fúlvia está muito relacionado ao desenvolvimento cognitivo

e motor da criança. Ao falar das dificuldades, a professora se refere aos conteúdos abordados

em sala de aula, os quais algumas crianças conseguem fazer com mais facilidades e outras,

não. A diferença entre as crianças se manifesta para professora como um problema que

algumas crianças apresentam. Outro ponto destacado por essa professora em relação à

formação da criança está ligado à formação religiosa, que a criança precisa ter e que essa

formação deve-se dar também em casa com os pais.

Declara ainda que:

50 Grifo nosso 51 Grifo nosso

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Da minha parte, pra eu dar conta desse cidadão, com o conhecimento, uma formação cultural, social, é muito difícil, principalmente aquele que tem mais dificuldade. O que já está bonzinho52, você não se preocupa muito, mas aquele que está lá engatinhando, para a gente chegar e dar uma formação adequada a esse aluno, eu acho muito difícil (Entrevista feita com a profa. Fúlvia em 14/10/2008).

Constatamos uma preocupação com uma educação preparatória que manifesta a

supervalorização da aprendizagem da leitura e da escrita. Como assevera Saint-Exupéry

(2006, p. 10), as “pessoas grandes” estão mais preocupadas com os conhecimentos de história,

geografia, matemática, e não com desenhos ou – por que não dizer? – a arte, a ludicidade.

Como na crítica desse autor, as professoras estão muito mais preocupadas com o

desenvolvimento da leitura e da escrita da criança do que com o seu desenvolvimento social,

afetivo, psicomotor, linguístico, intelectual, espiritual, estético e ético. Muitas vezes o

professor fica tão angustiado, ansioso em “passar” os conteúdos que se esquece de ouvir as

próprias crianças, de observar as suas ações e interações. “Aprender com as crianças pode

ajudar a compreender o valor da imaginação, da arte, da dimensão lúdica, da poesia, do pensar

adiante” (KRAMER, 2008, p. 106).

O argumento da professora Teresinha confirma essa visão cognitivista e preparatória

da educação infantil, quando enfatiza que tudo é uma continuação e que a criança começa na

pré-escola e vai continuando, mas ela não pode dizer que a criança saiu preparada por que

[...] às vezes alguns conseguem avançar em uma coisa e o outro não consegue, não quer dizer que ninguém não conseguiu nada. Todo mundo conseguiu alguma coisa. Então no Pré eles devem sair preparados: fazer o nome, identificar as letras, saber as cores, os conceitos de lateralidade. Às vezes a gente fala assim “aí em cima”, e o menino não sabe nem o que é “em cima”. Muitos podem pensar que isso é bobagem, mas não é, pois até hoje tenho dificuldade com lateralidade porque não foi trabalhado comigo (Entrevista feita com a profa. Teresinha em 29/07/2008).

Essa visão cognitivista está presente em muitos discursos apresentados pelas

professoras, como se a influência do currículo estivesse relacionada apenas ao aspecto

cognitivo e que essa dimensão fosse a mais importante na constituição do sujeito. Outro

argumento apresentado pelas professoras é a sua concepção de “cidadão”, a qual manifesta

que a criança não é, mas será, um cidadão a partir do momento em que ela for educada para

tal. Se pensarmos a criança como sujeito social, como um ser de direitos, ela já é um pequeno

cidadão como salienta Kramer (2008, p. 81) um “cidadão de pouca idade”. 52 Grifo nosso – o bonzinho aqui é no sentido do desenvolvimento da escrita e identificação das letras e números.

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Há uma diferença muito grande entre a execução mecânica de tarefas e a possibilidade

de participação das crianças na criação, produção e execução das atividades propostas pela

escola de forma que não limite a sua capacidade criativa. O que se observa muito nessas

escolas pesquisadas são produções feitas pelos adultos. Se é uma capa de atividades, ela já

vem pronta, só para as crianças pintarem. Se é um painel para enfeitar a sala, a professora

confecciona, pois fica mais bonito e “bem feito”. As crianças pouco participam das produções

da escola.

A professora Alessandra, por sua vez, aponta que, no desenvolvimento do seu

trabalho, não está preocupada com a assimilação dos conteúdos, mas com a formação do

sujeito para que possa interagir, questionar, compartilhar. Para isso, ela acrescenta: “a gente

faz muita rodinha, muita socialização, muitos momento de conversa com as crianças”.

Argumenta ainda a professora:

Então, em uma história, elas falam muita coisa, dessa história vivenciam o que elas vivem em casa. A leitura de mundo que elas já têm. Acho que é essa busca de sugar tudo que têm, pois a criança vem já com um conhecimento. Elas não vêm sem conhecimento pra escola, então [deve-se] sugar esse conhecimento e compartilhar. Esse conhecimento que o professor tem junto com o do aluno é uma troca que aí vai enriquecendo. Eu aprendo muito com elas também. Muitas coisas elas falam que eu fico “nossa onde você aprendeu isso”? Então é uma descoberta a cada momento. A gente trabalha mais com essa questão de observar a criança e tentar tirar o máximo dela. Tá sempre buscando mais, não limitando essa criança. Às vezes a gente sente a necessidade de trabalhar (letras...), trazer os conteúdos programáticos, mas, primeiro, tem que ter um sentido, deixar eles demonstrarem um pouco a infância. Tem que resgatar isso, porque eles estão chegando aqui sem ter esse apoio em casa. A escola está resgatando isso também, a infância da criança (Entrevista feita com a profa. Alessandra em 25/07/2008).

O argumento da professora confirma a sua prática no cotidiano da escola, a qual

possibilita às crianças momentos diversos, tais como valorização das diferentes linguagens, do

lúdico, das conversas, troca de ideias e manifestação dos sentimentos a partir dos diálogos.

Garcia (2000, p. 17) salienta que é preciso “dar sentido as atividades, eis o que faz uma

professora competente, sabendo que cada atividade traz a possibilidade de novas

aprendizagens e provoca novos desenvolvimentos”. Um momento interessante na prática da

professora Alessandra foi quando colocou as crianças sentadas em um tapete e entregou para

elas vários gibis que havia trazido de sua casa. Foi um momento mágico para as crianças. Elas

ficaram fascinadas com os livros. Folheavam, observando atentamente cada imagem,

mostravam unas para as outras, corriam para mostrar à professora ou para mim. Havia um

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garoto (4 anos) próximo a mim que “lia as histórias” através das imagens, com toda a atenção.

O interessante é que ele fazia em voz alta. Quando chegava ao final do gibi, ele pedia outro.

Todas as crianças, indistintamente, estavam imersas no mundo da criação e da magia.

Em outro momento, a professora Alessandra passou a contar a história de um livro

intitulado: Pode o redondo ser quadrado? Nesse livro o personagem ia tomando forma de

animais e objetos, sempre redondos. Embora estivesse escrito no livro o que era cada novo

objeto, a professora perguntava para as crianças e elas iam falando, de acordo com o que

achavam, a partir da sua imaginação; estavam livres para criar as suas imagens. Houve uma

gravura que no livro dizia ser um ovo estrelado, porém uma criança disse ser um CD e DVD,

e realmente era semelhante, outra disse ser um pneu, outra disse ser um volante de carro, e

assim as crianças iam identificando os desenhos ou criando outros. Como essas atividades

contribuem para o aguçamento da criatividade e imaginação da criança! Como elas

conseguem fazer a relação com a realidade! Não foi percebida nenhuma dificuldade nas

crianças de falarem, argumentarem e criarem. Se o Pequeno Príncipe estivesse ali diria que

essa professora é uma “pessoa grande” que sabe compreender a criança, pois não precisou

ficar dando explicações detalhadas para que as crianças entendessem a história, tampouco

desvalorizando as suas como ele “fora desencorajado, aos seis anos, pelas pessoas grandes, da

carreira de pintor” (SAINT-EXUPÉRY, 2006, p. 12).

Ainda segundo essa professora, a escola pode, sim, contribuir muito na formação da

criança, e é papel do professor vê-la e respeitá-la como criança e a mudança só será possível

a partir do momento em que cada um ocupe sua função. Professor é professor, não psicólogo, pai, mãe, enfermeiro, coordenador. Ser de acordo com a sua função. Cada um assumindo a sua identidade profissional. Acontece muito isso, às vezes, o professor está se perdendo por estar assumindo o lugar de outro, de mãe, de psicólogo (Prof.ª Alessandra na discussão do Grupo Focal em 01/08/2008).

Essa é uma observação interessante feita pela professora Alessandra. É preciso o

professor assumir o seu papel, a sua identidade profissional. Enquanto alguns consideram que

o professor tem que ser tudo, palhaço, psicólogo, mãe, a professora argumenta a necessidade

de que cada profissional assuma o seu papel. E o professor já tem o seu próprio papel, não

precisa assumir os de outrem.

A professora Fúlvia, contrapondo-se à concepção da professora Alessandra, contra-

argumenta com uma total descrença na possibilidade de mudança: “Vamos esperar que venha

essa mudança, vamos esperar...” Nessa discussão (Grupo Focal), a professora deixa claro que

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não acredita mais em mudanças em relação à educação infantil. Fico me perguntando o que

fazer quando o professor chega a um total estágio de descrença na possibilidade de mudança.

Uma das questões fundamentais na educação infantil é assegurar a valorização da

cultura, das experiências de vida. Talvez por se tratar de crianças, não levamos em conta que

elas já possuem experiências, pois geralmente relacionamos experiências às pessoas mais

velhas. Segundo Kramer (2008, p. 103), as “experiências da cultura possuem um potencial

humanizador e formador” para as crianças.

Para a professora Sônia, a contribuição do currículo na formação da criança é muito

grande:

Antes eu falava assim: “Um dia vou ser professora do pré- escolar porque a professora do Pré não faz nada. Só canta e faz bagunça e mais nada. Vou querer trabalhar com o Pré”. Mas não é, é o primeiro alicerce. Se a gente não estiver olhando, observando, pesquisando, a gente acaba fazendo o trabalho errado, e a criança vai ter deficiência pro resto da vida, na seqüência de aprendizagem (Entrevista feita com a profa. Sônia em 30/07/2008).

Mesmo manifestando uma mudança na sua concepção de educação infantil e de

criança, percebemos que há ainda no discurso da professora alguns estereótipos, como o de

que a criança que não desenvolve determinada atividade acaba desenvolvendo uma

“deficiência”. Essa deficiência abordada pela professora está relacionada às dificuldades que a

criança passa a enfrentar na sua vida escolar em decorrência de uma má alfabetização, de uma

educação infantil que não a preparou direito para as séries seguintes.

A professora ainda argumenta que o currículo deve formar um ser humano que pense,

que reflita e que na sua época de criança não era assim; a criança não argumentava nem

questionava o professor; ela só fazia o que o professor mandava. Argumenta:

Hoje vejo que até mesmo na educação infantil a criança participa, pergunta, fala o que pensa. Até mesmo nas atividades, quando não gostam, elas falam: “Tia essa não está boa”. Outras dizem que está muito difícil, como foi o caso de uma aluna que/, ao tentar fazer a atividade, disse que aquela “prova” estava muito difícil. Em outros momentos, elas dizem que não vão fazer determinadas atividades. Isso a gente não via no nosso tempo. Hoje, a criança sabe que pode expor suas idéias (Entrevista feita com a profa. Sônia em 30/07/2008).

Mesmo com reflexões sobre essas mudanças na pré-escola, na prática pedagógica

dessa professora, as crianças estão sempre executando atividades mimeografadas, sem

nenhum sentido para elas, num processo contínuo de “prontidão”, isto é, de treino e repetição,

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sem nenhuma relação com a sua realidade, com os seus conhecimentos prévios, com a sua

vida.

Uma situação que merece destaque e que me deixou angustiada foi quando a

professora Sônia me perguntou se estava certa a forma como ensinava os alunos a contar as

vogais em uma determinada palavra. Dizia ela: “Eles insistem em contar duas vezes quando

há duas vogais iguais em uma mesma palavra e eu acho que eles só devem contar uma vez. Eu

ensino, ensino e eles continuam contando duas vezes”. Esclarecendo melhor: ela pedia que as

crianças identificassem quantas vogais havia na palavra PANELA, e as crianças falavam três.

Para a professora, a criança deveria responder duas, pois havia dois “As”, os quais não

deveriam ser contados duas vezes. Essa concepção da professora demonstra uma visão restrita

de construção de conhecimento, de percepção, do ser criança, da sua capacidade, limitando-a,

achando que não está “madura” para isso ou aquilo. O que fica patente é que a criança foi

muito além da percepção e compreensão da professora.

Houve um fato bastante curioso em uma das visitas a essa mesma turma: quando

cheguei, as crianças estavam todas sentadas em seus lugares, comportadas (quietas),

esperando a professora chegar. Uma funcionária da escola ia sempre à porta da sala para ver

se estavam bagunçando. Assim que a professora chegou, uma aluna questionou sobre o seu

atraso, argumentando que professora não pode chegar atrasada e que iria falar com a tia (a

diretora) para não deixá-la entrar. Diante dessa fala da aluna, a professora deu risada e tudo

ficou por isso mesmo. Observamos, no entanto, quantos conteúdos poderiam ser explorados

pela professora. Outra questão é que, mesmo querendo agir de forma “dedo duro”, delatando e

denunciando, há uma compreensão por parte da aluna sobre a relação de poder existente na

escola. Ela entendia que havia uma hierarquia, ou seja, que a diretora tinha o poder sobre a

professora, assim como a professora questionava os atrasos deles (alunos).

Mesmo tendo cinco anos e a professora considerá-la como uma das crianças que tem

“dificuldades de aprendizagem”, por não dominar ainda a leitura e a escrita de letras, números

e palavras trabalhadas, esta criança é muito esperta e participativa nas aulas. A professora a

considera “fraca” por não dominar código escrito, mas esta mesma aluna pediu à professora

para recitar uma poesia sobre as mães. E ela o fez na frente da sala para os colegas e ainda

dramatizou, depois veio até a mim e cantou uma música dos dias das mães. Ela é uma criança

capaz e muito esperta. Situações como essas nos levam a perceber a falta de preparo de

algumas professoras para lidar com situações problemas em sala de aula.

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Outra questão destacada pela professora é que o currículo poderá contribuir na

afetividade da criança e que não haverá aprendizagem se não houver uma relação afetiva entre

professor e aluno, pois muitos não têm essa afetividade na família, e outros, por terem, têm

dificuldade de se desapegar das mães e dos pais quando os trazem para a escola. Assim o

professor precisa criar esse vínculo com a criança para que ela se sinta segura e, depois de

conquistar a confiança da criança, o resto fica mais fácil para trabalhar.

Reconhecemos que a afetividade é imprescindível no desenvolvimento da criança. O

cuidado, tão enfatizado na educação infantil, também está relacionado com o vínculo afetivo e

não apenas com os cuidados básicos como já foi discutido no capítulo anterior. Porém não

podemos confundir a relação de afetividade com a simples forma de tratamento que ocorre

nas instituições de educação infantil como, por exemplo, as crianças chamarem as professoras

de tias. O tratamento de tia dado por alguns alunos às professoras não significa que exista uma

relação afetiva entre professor e aluno, pois foi observado que muitas professoras mantêm

certa distância dos alunos, nem mesmo dialogam com eles. Entendemos que para se

estabelecer uma relação de afetividade entre aluno e professor, faz-se necessário que o ensinar

e o aprender estejam fundados no diálogo como já preconizava Paulo Freire. A criança,

mesmo sendo pequena, e o adulto podem e devem dialogar e estabelecer esta relação, e não,

simplesmente, criar um parentesco que não existe para aparentar uma afetividade.

Outro fato que chamou a minha atenção no discurso da professora está relacionado à

questão da diversidade existente em sala de aula, da heterogeneidade. Alguns alunos (cinco)

de uma turma de vinte e oito, embora todos tenham a mesma idade (cinco anos), segundo ela,

não acompanham o restante da turma. Esses alunos, na sua concepção, têm dificuldade de

aprendizagem, e a dificuldade da professora reside justamente em acompanhar esses cinco

alunos “mais atrasados”. Não sabe como trabalhar com eles já que a maior parte da turma

apresenta um maior desenvolvimento – “os mais adiantados”.

As mesinhas das salas comportam cerca de quatro a cinco crianças. Aquelas crianças

consideradas, “mais atrasadas”, poderiam estar sempre misturadas com os outros alunos para

que houvesse socialização com todos. No entanto, essas cinco crianças sempre se sentam

separadas das outras. É como se fosse a “mesinha dos mais fracos”. A professora citou

algumas alternativas entre as que poderiam ser seguidas:

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Como a escola tem uma coordenadora, eu pensava que ela podia pegar esses alunos, pelo menos uma vez por semana, pra detectar, qual a causa da não aprendizagem53. Eu ainda não consigo conciliar as duas coisas: desenvolver atividades com os adiantados54 ou ficar só com eles, porque o grupo tira a atenção do outro e aí eu acabo não dando atenção direito nem a um nem a outro. Se desse também para liberar os mais adiantados mais cedo e ficar só com esses que a gente vê que ainda tem chance55... Disseram que poderia colocar juntos, na mesa dos adiantados. Eu os tiro dali (a mesa dos fracos) e coloco junto com os outros, o efeito é pior ainda, porque aí é que eles não fazem nada, pelo fato de ver os outros fazendo. Já fiz e não deu certo. Já está chegando o final do ano e o avanço é muito pouco. Se tivesse um acompanhamento mais direto eles tinham condição (Entrevista feita com a profa. Sônia em 30/07/2008).

Observamos, nesses argumentos, a dificuldade de a professora em trabalhar com a

diferença. Os estereótipos e (pré)conceitos são manifestados nas falas – crianças adiantadas e

atrasadas. Por que uma criança que não acompanha o ritmo de outra teria uma “causa” para a

não aprendizagem? De qual aprendizagem a professora está falando? O que foi observado, é

que a aprendizagem está relacionada aos aspectos cognitivos. Essas cinco crianças sentam em

mesinhas separadas (segregação) e não fazem as atividades propostas para a maioria da turma.

Elas não conseguem retirar palavras do quadro e escrever no caderno, por exemplo, como

fazem algumas crianças, mesmo tendo a mesma idade. Para a professora, não saber escrever

as letras e as palavras que foram trabalhadas é apresentar um quadro de dificuldade de

aprendizagem.

Verificamos ainda a falta de preparo dessa professora para lidar com a diversidade,

com ritmos diferenciados, e isso perpassa pelas políticas de formação de professor não só a

formação inicial, mas, também, a continuada.

Sabemos que as dimensões sociais e culturais do sujeito possibilitarão a construção de

sua identidade, isto é, a sua aceitação em determinado grupo, ou até mesmo sua relação com

as outras pessoas, e como estas a veem. Essas interações grupais influenciarão na sua vida

como um todo – pensar, agir, formar (pré) conceito, pois todas essas manifestações são

construídas nas convivências entre os sujeitos. É na socialização que as crenças e valores são

transmitidos de geração a geração e isso irá moldar a identidade da criança, fazendo-a adquirir

uma auto-imagem que será positiva ou não.

A educação e, especificamente, a educação infantil são processos sociais por meio dos

quais o sujeito, na condição de ser social, tem acesso aos conhecimentos não só cognitivos,

53 Grifo nosso 54 Grifo nosso 55 Grifo nosso

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mas aos valores e à cultura construídos historicamente. Nas relações dialética e dialógica, a

criança, além de construir conhecimentos, se constrói como pessoa. A interação social é um

dos meios que a escola deve explorar para a promoção de aprendizagens. A escola e o

currículo precisam considerar a diversidade sem deixar de respeitar a individualidade e os

ritmos de cada criança,

visando a ampliar e a enriquecer as capacidades de cada criança, considerando-as como pessoas singulares e com características próprias. Individualizar a educação infantil, ao contrário do que se poderia supor, não é marcar e estigmatizar as crianças pelo que diferem, mas levar em conta suas singularidades, respeitando-as e valorizando-as como fator de enriquecimento pessoal e cultural (BRASIL, 1998, p. 33).

A construção da identidade não se dá de um dia para outro, em um momento

específico de trabalho na escola, mas no dia-a-dia. Se não há respeito aos ritmos de cada

criança, às diferenças e às singularidades, não haverá a sua construção. O currículo da

educação infantil deve promover uma formação social e política, respeitando a diversidade

cultural e possibilitando às crianças atitudes de cidadania, como respeito, solidariedade,

cooperação etc. Deve conceber a criança como ser social livre e criativo. O ambiente deve ser

rico em estímulos que promovam o desenvolvimento integral, respeitando e valorizando as

múltiplas expressões da criança, tais como: oral (interpretar fatos no mundo, conversar, ouvir

as crianças, valorizando suas manifestações espontâneas, o faz-de-conta, as imitações,

narrativas, dramatizações, etc.); corporal (jogos, brincadeiras diversas, envolvendo

movimentos); estética (artes plásticas – desenhos, pintura, colagem, rabisco etc.) e afetiva

(relações interpessoais e intrapessoal). Compreendendo, assim, a criança como um “ser-no-

mundo-com”, comprometido com a construção de si mesma e do outro.

Como visto, é objetivo da pré-escola criar condições para que as crianças possam

desenvolver de forma prazerosa e feliz as diferentes linguagens e expressões infantis,

possibilitando-lhe um ambiente que proporcione o seu bem-estar físico, social, afetivo e

intelectual e desta forma ela vai construindo o seu mundo e se construindo como pessoa.

Nessa perspectiva, as concepções de criança/infância, currículo e educação infantil, prática

pedagógica discutidas no decorrer deste trabalho levaram-nos a algumas considerações as

quais veremos a seguir.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu companheiro menino,

neste reino serás homem,

um homem como o teu pai.

Mas leva contigo a infância,

como uma rosa de flama

ardendo no coração:

porque é da infância, Leonardo,

que o mundo tem precisão. Thiago de Mello

Depois de uma longa caminhada entre leituras, pesquisa de campo, reflexões, dúvidas,

questionamentos e discussões, chegamos ao momento não diria final, mas de algumas

considerações sobre esse longo caminhar na elaboração deste trabalho. No início da pesquisa,

o meu objetivo estava centrado em identificar as concepções de currículo presentes nas

práticas pedagógicas da pré-escola e sua influência na formação sociocultural da criança. No

decorrer da investigação, no entanto, foram surgindo outros questionamentos e acabei por

buscar uma compreensão de infância, de criança e de educação infantil manifestada nas

práticas pedagógicas e nos discursos instituídos pelos profissionais, visto que, na concepção

de currículo, manifesta-se também uma concepção de criança e de educação infantil.

Durante esse árduo percurso, muita coisa aconteceu e muitas dúvidas e incertezas não

foram dissipadas, pelo contrário, continuam muito mais presentes, após as leituras e o próprio

contato com a realidade/campo de pesquisa. Nesse percurso, ficou patente que as professoras

que atuam na pré-escola ainda têm uma visão restrita e fragmentada não só de currículo, como

também de infância, criança, educação infantil e, até mesmo, de educação de uma forma

geral.

Discorrer sobre currículo, educação infantil e, consequentemente, sobre criança não é

tarefa fácil. Primeiro, pela complexidade e pelo permanente processo de construção,

desconstrução e reconstrução que é o currículo; segundo, pela dificuldade em desmitificar a

ideia, historicamente construída, de educação infantil com caráter assistencial ou

compensatório.

Para a maioria das professoras envolvidas na pesquisa, a criança é vista segundo o

paradigma romântico, como um ser inocente e puro e que precisa de cuidado e moralização

por parte do adulto para se tornar gente. Embora essas professoras tenham dito em alguns

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momentos que viver a infância é viver a fantasia, no seu cotidiano de sala de aula, essa

fantasia não é explorada e a situação da criança é bem real.

Como abordamos em capítulos anteriores, a concepção de criança como sujeito

histórico e social ainda é muito recente. Vimos que, durante a Antiguidade e a Idade Média, a

criança esteve condenada a um não lugar na sociedade, misturada aos adultos, sem nenhum

respeito as suas particularidades. Em um momento, ela foi vista segundo uma percepção

romântica, como um ser inocente naturalmente bom e puro. Em outro, como um ser mau que

já traz em si o germe do pecado. A criança era pensada segundo esse paradoxo, ora

necessitando de moralização para se adequar à sociedade, ora necessitando preservar a sua

inocência natural. Na sociedade contemporânea, mesmo sendo objeto de estudo e pesquisa em

muitas áreas de conhecimento, a criança, geralmente, ainda é vista como um adulto em

tamanho menor.

Depois de muitos discursos e lutas, a criança passou a ter os seus direitos respeitados e

começou a ter visibilidade na sociedade, constituindo-se como cidadã. Assim, como sujeito de

cultura, passou a ser valorizada e respeitada nas suas particularidades e especificidades. Ainda

não chegamos a uma concepção ideal de respeito e de valorização dessa idade da vida, mas já

é um grande começo. A criança não deve ser concebida apenas como um ser que precisa de

formação, mas como um ser que tem direitos garantidos por lei.

A educação infantil, por sua vez, se apresenta como importante para o

desenvolvimento da criança, mas esse destaque está muito mais voltado para uma etapa

educacional que prepara a criança para entrar na escola propriamente dita, isto é, no ensino

fundamental, do que pela sua importância em si, o que confirma a visão fragmentada e

limitada de educação infantil, como aconteceu em muitos momentos no decorrer da história

das políticas públicas para a infância, visão esta que ainda está presente em nossa sociedade.

Ao longo da investigação sobre a trajetória e as concepções de currículo, ficou

evidente uma visão ainda muito restrita e limitada, uma visão ainda tecnicista e positivista,

isto é, uma perspectiva de que o currículo é um conjunto de disciplinas, uma seleção de

conteúdos ou ainda um programa de educação, e não um projeto em permanente construção.

O currículo manifestado nos discursos e nas práticas das professoras apresenta-se como algo

fragmentado, com valorização exagerada das competências cognitivas em detrimento de

competências afetivas, sociais, psicomotoras etc. É preciso haver um alargamento do conceito

tradicional de currículo para pensá-lo conforme uma concepção histórica, cultural e social de

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relacionamento do homem com a sua realidade, o qual influencia e é influenciado pelo

currículo, pela educação.

Na sociedade contemporânea, entende-se o currículo como algo que está presente no

cotidiano das escolas, desde a forma com que o professor ministra suas aulas, até sua

concepção de educação, de ensino, de aprendizagem e de aluno. O professor, querendo ou

não, faz o currículo no cotidiano das escolas e esse faz parte da vida dos sujeitos envolvidos

no processo educativo. O currículo não é apenas um conjunto de conteúdos ou a distribuição

das disciplinas por série. O currículo vai além dessa visão e segue o caminho da

multirreferencialidade e complexidade, já que no cenário escolar há uma complexa relação de

diferentes sujeitos, saberes e concepções que precisam estar em conexão para que se construa

um currículo na lógica do diálogo. Entendemos ainda que o currículo vai se construindo

também no dia-a-dia da escola e que não é algo pronto que vem de cima para baixo, como foi

manifestado nos discursos das professoras.

De acordo com essa perspectiva é que a multirreferencialidade deve-se fazer presente no

currículo, em especial o da educação infantil, pois é a partir das relações e comunicações, por

meio do diálogo, que os sujeitos vão se construindo e construindo o conhecimento. A

concepção de currículo e de criança/infância fragmentada e descontextualizada faz do

processo, que seria de construção significativa e prazerosa para as crianças, mero treinamento

de habilidades.

Muitos profissionais da pré-escola, ainda hoje, vêem a dimensão cognitiva como a

única e verdadeira em detrimento de outros aspectos de aprendizagem, os quais precisam ser

igualmente explorados. Um currículo para a educação infantil ou para qualquer outro nível de

ensino deve-se pautar na exploração e valorização das múltiplas formas de construção de

conhecimentos, de ensino e de aprendizagem, e não reduzir essa diversidade a uma única

forma de expressão da criança.

Ante as reflexões feitas até o momento, observamos que, na prática pedagógica, ainda

há uma visão fragmentada e descontextualizada de educação infantil, de infância/criança, de

currículo e de conhecimento, que leva o profissional da pré-escola a ver a criança como um

sujeito que precisa entender e “dominar” o mundo do adulto o mais rápido possível, para que

saia da fase de dependência.

As práticas pedagógicas das professoras envolvidas na pesquisa, na sua maioria, estão

fundadas em uma concepção de educação pré-escolar como preparação para o ensino

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fundamental, como uma etapa em que as crianças precisam dominar o código escrito,

ultrapassar a fase infantil e entrar na vida adulta.

Nos poucos momentos lúdicos, isto é, quando as professoras cantavam alguma música

e as crianças se empolgavam e se envolviam, logo vinha a exploração dos conteúdos – letras e

números. Uma professora promoveu um trabalho com uma receita, mas logos depois também

vieram os conteúdos de português e matemática.

Observei, nas práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas pesquisadas, a

concepção de linguagem como apenas decodificação do código escrito, com letras e palavras

soltas, como se isso fosse o suficiente para a criança compreender e construir a linguagem.

Embora a criança da pré-escola não esteja na fase de ser alfabetizada56, e sim de construir

outros aspectos da sua formação, as professoras demonstraram uma preocupação exagerada

com o domínio do código, com a associação entre letras (grafemas) e sons (fonemas), por

meio de exercícios mecânicos e sem sentido, os quais se restringiam a treinos de repetição,

visualização e memorização das palavras.

As aulas da maioria das turmas observadas começavam sempre da mesma maneira e

com os mesmos assuntos: letras e números. As atividades eram mimeografadas ou escritas

em caderno, para que as crianças escrevessem várias vezes, até mesmo as palavras que

fizeram parte do “momento da leitura”. Quando as crianças não conseguem “retirar” do

quadro as palavras com número maior de sílabas, as professoras escrevem no caderno as letras

maiúsculas e minúsculas e os numerais para que elas possam cobrir e depois copiar em

espaços a isso destinados. Há ainda a repetição da escrita do próprio nome.

Mas, mesmo nesses momentos de “dever”, como eram chamados pelas crianças,

sempre havia alguma situação diferente. As crianças sempre buscavam alternativas:

conseguiam “burlar” aquele momento maçante, conversando, trocando ideias e brincando. Em

um desses momentos depois do “dever”, as crianças que iam terminando corriam para pegar

alguns livrinhos que havia no canto da sala. Elas folheavam os livros com curiosidade,

observavam as gravuras, mostravam aos colegas e ficavam dizendo algo sobre cada imagem e

cada personagem. No entanto, esse momento era logo interrompido pela professora para que

se fizesse outra atividade – que envolvia números ou letras. As atividades de recorte, colagem

ou qualquer outra com sucata sempre envolviam letras ou números.

Duas professoras conseguiam ultrapassar esse momento de leitura e escrita de letras,

números e nomes, promovendo contação de histórias e diálogos com as crianças. Uma delas 56 Alfabetização aqui entendida como o domínio do código escrito. Embora saibamos que a alfabetização ultrapassa a simples decodificação e escrita dos códigos lingüísticos.

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tinha como rotina a hora da rodinha, que é uma atividade muito rica. É interessante observar

como todas as crianças querem falar, contar um fato que aconteceu na sua casa, um passeio

que fez. Ao contarem suas histórias, elas manifestam suas inquietações, seus dilemas, embora

não saibam que são. Esse momento de diálogo estabelecido pelas professoras com as crianças

é muito significativo, instiga as crianças a falar, a participar e a expor seus pensamentos. O

currículo concebido e construído nessa perspectiva realmente faz a diferença na vida da

criança.

Não percebi momentos de diálogo com as crianças das turmas das outras quatro

professoras. Elas permaneciam sentadas em suas mesinhas fazendo atividades, uma após

outra, sem conversas, sem diálogo, sem maiores interações com a professora. A conversa se

restringia ao que deve fazer ou não nas atividades. Só levantavam para ir ao banheiro ou beber

água. Quando as crianças estavam conversando, algumas professoras cantavam a musiquinha

do silêncio, cuja letra diz: “Vamos ouvir o som do mosquitinho/ pegue a chavinha/tranque a

boquinha/e zum!”, ou então faziam comentários sobre a letra dessa música: fechar a boquinha

e jogar a chave fora.

Com essa prática, as professoras continuam reforçando a ideia de que a criança não

deve falar, não pode expressar o que pensa ou sente, reafirmando a etimologia da palavra

“infância”, que significa “aquele que não fala”. As crianças continuam sem voz e sem vez,

pois as professoras, na sua maioria, não promovem momentos de diálogos, e o fato de as

crianças conversarem umas com as outras é motivo para mandarem se calar, fecharem a boca.

A professora Alessandra, porém, possibilita diversas atividades com jogos, músicas em CD e

DVD, filmes, livrinhos de histórias infantis, brincadeiras com bola, entre outras atividades

lúdicas, sempre explorando a capacidade criativa e imaginária da criança e respeitando as suas

particularidades, além de promover aulas em outros espaços da escola, como no pátio coberto

e na sala de TV.

Nos momentos de contação de história promovidos por duas das professoras

(Alessandra e Teresinha), observei que as crianças se envolviam e paravam para ouvir. A

história, o conto, de fada ou não, tem esse poder de fazer com que as crianças vivam a fantasia

e o encantamento. Elas reagem de acordo com o desenrolar da história, se emocionam,

demonstram medo, se divertem, enfim sentem prazer. Mesmo sendo histórias já conhecidas

por elas, como, por exemplo, a de Chapeuzinho Vermelho, é curioso observar como se

interessam e se envolvem, e a história se renova.

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Os poucos momentos de ludicidade promovidos pelas professoras (quatro entre as seis

selecionadas) também se relacionavam ao conteúdo a ser trabalhado. É o que alguns

estudiosos da ludicidade chamam de didatização do lúdico. Não há valorização da ludicidade

ou mesmo da arte, mas aproveitamento do momento para exploração de determinados

conteúdos, especificamente de português e matemática. O brincar passa a ser uma atividade

obrigatória ou uma premiação para a criança que termina mais rápida ou corretamente a

“tarefa”, isto é, quem termina a atividade recebe um jogo para brincar. Logo, as demais

crianças também se apressam para poder brincar. Esse rápido momento de ludicidade é

também uma forma de preencher o tempo que falta para o intervalo ou para o momento de

deixar a escola e em que não havia outra “tarefa” para se fazer. Sabemos que, por meio do

brincar, as crianças expressam emoções, sentimentos e pensamentos, e estudos comprovam o

valor da ludicidade na vida da criança. Um currículo em que o lúdico é valorizado possibilita

a construção de um conhecimento significativo, a interação social e o prazer de crianças tão

pequenas estarem na escola. Em conversas informais e em alguns momentos das entrevistas,

as professoras falavam da importância do lúdico no desenvolvimento da criança, reconheciam

a sua relevância mesmo sem procurar efetivá-lo no cotidiano das aulas. Nem mesmo durante o

intervalo as professoras partilhavam ou compartilhavam desse momento de brincadeiras com

as crianças. Uma das escolas pesquisadas possui um excelente espaço físico, no entanto as

professoras não se envolviam nas atividades com as crianças. A vantagem é que isso não as

impedia de brincar, de se divertirem. Elas corriam livremente pelo pátio, pulavam corda,

brincavam de pega-pega, viviam a sua infância.

Entendo que, por meio da brincadeira e da arte, a criança tem possibilidade de viver

criativamente no mundo. Tem possibilidade de criar, recriar, construir e de viver com prazer e

alegria. É inegável a contribuição da ludicidade, da arte no desenvolvimento da criança em

vários aspectos (desenvolvimento da oralidade, vocabulário, interação social, cooperação,

capacidade de concentração, desenvolvimento psicomotor, afetivo etc.) e não apenas, mas

também, o cognitivo tão valorizado pelos profissionais da educação infantil. Os momentos de

arte e de ludicidade desenvolvidos na escola devem também agradar ao aluno, não basta dizer

que se está fazendo arte e promovendo momentos de ludicidade. Se tais atividades não

envolverem as crianças, não terão significado para elas. As crianças muitas vezes vão fazer

por obediência ao professor, para satisfazer ao professor, e não por interesse ou prazer. E,

muitas vezes, o que impera é a visão do professor, o que ele gosta ou considera melhor para a

aprendizagem dos alunos.

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O curioso é que em muitos casos vi uma concepção igual à proposta pela educação

jesuítica segundo a qual a criança deveria aprender a ler, escrever e contar. Quando, no século

XXI, ainda existe uma prática onde o que impera na sala de aula é leitura e escrita de letras,

palavras e numerais soltos e desconexos sem uma discussão que promova uma visão maior de

mundo, de escola, de família, fico a me perguntar: o que a pré-escola está fazendo com as

nossas crianças?

Quando aconteciam discussões ou agressões físicas entre os colegas, não havia

nenhuma conversa com as crianças sobre o assunto; simplesmente diziam que não poderiam

bater no coleguinha, pois “papai do céu” não gosta. Não aproveitavam o momento para

suscitar discussões que resgatem valores tão imprescindíveis na vida do sujeito tais como:

respeito, tolerância, cooperação etc.

Em relação à formação sociocultural da criança, não percebi nos depoimentos,

tampouco nas observações, um trabalho de valorização da interação social, da cultura, embora

seja por meio da interação, do relacionamento, que as crianças ampliam o vínculo entre

colegas e professores e adquirem o respeito à diversidade e às diferenças.

Observei que o currículo manifestado na prática da maioria das professoras e nos

próprios depoimentos está pautado em uma concepção de programa e conteúdo,

especialmente de português e matemática, com uma supervalorização dessas duas áreas do

conhecimento em detrimento das outras. Os outros campos do saber são esquecidos,

descartados, não são importantes. A imaginação, criatividade, o ser criança, o viver a infância

não existem na maioria das turmas observadas. A escola, o currículo e o professor têm

dificuldade em compreender o processo de ensino aprendizagem e de trabalhar com as

diferenças socioculturais.

O que o adulto quer de fato é atrair a criança para o seu mundo racional, egoísta e

fragmentado. Só que a criança tem sentimentos, desejos, espontaneidade, vontade própria, que

precisam ser respeitados e valorizados para que possam passar de um ser individual e

egocêntrico para um ser social, solidário e cooperativo.

Mesmo nessa realidade observada e descrita neste trabalho, ainda há professoras

(duas) que promovem uma educação pré-escolar que atende às especificidades das crianças,

respeita o seu desenvolvimento físico e possibilita interações e momentos de manifestações

culturais. Tudo que é desenvolvido na escola deve ser resultado de uma metodologia

dialógica, pois é pela dialogicidade, pelas incertezas, que os sujeitos vão construindo os

saberes, se construindo, respeitando as diferenças.

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Compreendo que uma pré-escola que, de fato, se preocupa com o desenvolvimento

integral da criança deve procurar desenvolver uma imagem positiva de si mesma, se conhecer,

se valorizar e aceitar a sua cultura para poder conviver com o outro respeitando as diferentes

manifestações culturais.

A sociedade contemporânea e, consequentemente, a pré-escola continuam

dicotomizando o indivíduo: separa o intelecto do sentimento; a razão da emoção, da criação e

da imaginação. A aprendizagem para muitos profissionais é simplesmente o acúmulo de

respostas aprendidas, a repetição em coro do que é solicitado pelo professor, meramente a

junção de B+A, sem a compreensão de como articular e usar tais conhecimentos. Se o

conhecimento, as diversas áreas do saber não estiverem articuladas, interligadas, ecologizadas

em conexão com a vida não há aprendizagem que realmente valha a pena. Quando a escola

transmite o conhecimento fora do contexto social e cultural da criança, quando não há

relacionamento/interação professor-aluno e objeto do conhecimento, a aprendizagem deixa de

ser pertinente e significativa para a criança e passa a ser mecânica, enfadonha e cansativa.

Além de tudo isso, algumas professoras manifestam uma visão distorcida e

estereotipada sobre dificuldades de aprendizagem. Se a criança não aprende logo as letras e os

números trabalhados, é considerada como portadora de dificuldades de aprendizagem e,

geralmente a culpa é da criança. É a criança que tem transtorno, distúrbio ou outro problema

qualquer. Percebi que as professoras precisam ampliar suas concepções não só de currículo e

infância, mas, inclusive, de educação, de homem e de mundo, para que possam compreender a

criança e o mundo na sua totalidade.

Ate tudo isso, faz-se necessário rever o ensino e a formação dos professores que atuam

na educação infantil. Esses cursos devem possibilitar uma formação teórico-metodológica que

promova mudanças nas práticas dos professores da pré-escola, pois estes precisam ver as

crianças como sujeitos sociais e históricos que são e que, ao construírem o conhecimento,

estão se construindo como pessoa e não como um ser apenas biológico que manifesta o

desenvolvimento natural sem qualquer relação ou influência da cultura da sociedade em que

está inserida, ou ainda um ser desprovido de conhecimento, em cuja cabecinha é preciso

incutir os conhecimentos considerados importantes pelos adultos.

Os profissionais da pré-escola precisam ver o currículo como um artefato cultural e

social, que é construído cotidianamente na escola e não como algo formal (conteúdos,

programa) que precisa ser cumprido. A partir dessa mudança de concepção de currículo, com

o entendimento de que este não é neutro e que contém uma influência direta da vida das

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crianças, é que há a possibilidade de mudança na concepção de criança, de ensino, de

aprendizagem, de currículo. O currículo da educação infantil, em especial o da pré-escola,

objeto de nosso estudo, deve estar pautado em uma compreensão mais ampla de educação

infantil, de criança e de infância.

Faz-se necessário trazer à memória a visão de infância apregoada por Lobato, que

valoriza a criação, a imaginação e a liberdade, livrando a criança das amarras da racionalidade

e disciplinamento e lhe possibilitando vivenciar momentos de invenção, imaginação e

felicidade, isto é, a infância. Que a educação pré-escolar tenha a criança no centro dos seus

projetos e propostas, e não a aprendizagem. Para tanto, é preciso promover um maior

investimento na formação inicial e continuada do professor que atua na pré-escola, pois todas

as questões discutidas no decorrer deste trabalho requerem uma nova postura a fim de que as

mudanças ocorram não só nos modelos prontos, mas nas próprias concepções que os

profissionais da educação infantil têm de infância, criança, aluno, currículo e educação.

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