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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CENTRO DE EDUCAÇÃO E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSO EM SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS NÍVEL DE MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS MAC DONALD FERNANDES BERNAL A ÁRVORE DA VIDA REFLEXÕES SOBRE O ARTESANATO DE REFERÊNCIA CULTURAL DO TERRITÓRIO TRINACIONAL DO IGUAÇU FOZ DO IGUAÇU - PR 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ

CENTRO DE EDUCAÇÃO E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSO EM

SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS – NÍVEL DE MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS

MAC DONALD FERNANDES BERNAL

A ÁRVORE DA VIDA

REFLEXÕES SOBRE O ARTESANATO DE REFERÊNCIA CULTURAL DO

TERRITÓRIO TRINACIONAL DO IGUAÇU

FOZ DO IGUAÇU - PR

2015

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MAC DONALD FERNANDES BERNAL

A ÁRVORE DA VIDA

REFLEXÕES SOBRE O ARTESANATO DE REFERÊNCIA CULTURAL DO

TERRITÓRIO TRINACIONAL DO IGUAÇU

Dissertação apresentada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – para obtenção do título de Mestre, junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Sociedade, Cultura e Fronteiras, nível de Mestrado. Linha de pesquisa: Território, história e Memória. Orientador: Prof. Dr. José Carlos dos Santos

FOZ DO IGUAÇU PR

2015

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MAC DONALD FERNANDES BERNAL

A ÁRVORE DA VIDA

REFLEXÕES SOBRE O ARTESANATO DE REFERÊNCIA CULTURAL DO

TERRITÓRIO TRINACIONAL DO IGUAÇU

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Sociedade, Cultura e Fronteiras - Nível de Mestrado, da Universidade Estadual do

Oeste do Paraná – UNIOESTE.

COMISSÃO EXAMINADORA

___________________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Bento Ribeiro Universidade Federal de Pelotas – UFPEL

_____________________________________________ Prof.ª Dra. Regina Coeli Machado e Silva

Membro Efetivo (da Instituição)

__________________________________________ Prof. Dr. José Carlos dos Santos (UNIOESTE)

Orientador

Foz do Iguaçu, 27 de março de 2015

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Dedico este trabalho à minha esposa, Vanuza, e aos meus filhos Suzan, Mayck e Lucas, pelo incentivo e carinho na superação de todos os obstáculos.

Aos meus pais, Paulo Lúcio Fernandes e Birna Bernal (in memoriam).

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. José Carlos dos Santos, pela orientação sábia e amiga, pelo

conhecimento e dedicação inspiradores que me insentivaram a percorrer novos

caminhos.

Aos Professores do programa, sujeitos importantíssimos deste processo de

expansão do conhecimento, em especial ao Prof. Dr. Valdir Gregory, Prof. Dr.

Fernando José Martins, Prof. Dr. Ivo José Dittrich, Prof. Dr. Samuel Klauck, Prof.ª

Dra. Silvana Aparecida de Souza, Prof. Dr. Fábio Lopes Alves, e às minhas

conterrâneas Prof.ª Dra. Regina Coeli Machado e Silva e Prof.ª Dra. Maria Elena

Pires Santos.

Aos meus colegas de mestrado, pela amizade demonstrada nos momentos

que passamos duarante este período de aprendizado e que certamente tornaram

as aulas mais agradáveis e divertidas.

À todos os amigos e colegas de trabalho que me incentivaram e me

ajudaram a abrir portas para que eu pudesse chega até aqui.

À equipe do Ñandeva, Coart e Fundação Cultural, que colaboraram

imensamente, fornecendo as informações necessárias para esta pesquisa.

Aos índios da comunidade Guarani do Ocoy, em São Miguel do Iguaçu,

que sempre me receberam com prontidão calorosa e me dedicaram atenção

necessária para esta pesquisa. A eles o meu respeito e admiração.

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“Somos uma árvore da vida. Nesses 500 anos perdemos nossos galhos, nossas folhas, nossos frutos, mas ainda restou o nosso tronco, porque nós temos raiz milenar e devemos preservar.”

(Depoimento indígena durante o V Encontro Cultivando Água Boa – nov./2008).

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BERNAL, Mac Donald Fernandes. A Árvore da Vida. Reflexões sobre o Artesanato de Referência Cultural do Território Trinacional do Iguaçu. 2015. 155 f. Dissertação (Mestrado em Sociedade, Cultura e Fronteiras). Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste. Foz do Iguaçu.

RESUMO

O texto resulta de uma pesquisa sobre evocações culturais de remanescentes da cultura guarani na região da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Vinculado a temas da antropologia, sociologia, filosofia e história, o texto concentra-se em enfocar algumas imagens recorrentes no momento da formação do reservatório do lago de Itaipu, demonstrando a rearticulação de saberes mediante a evocação de imagens culturalmente significativas regionalmente. Com a inundação causada para o enchimento do lago, os animais que viviam na região afetada procuraram refugiar-se nas copas das árvores para poderem salvar suas vidas. Este fenômeno, uma vez registrado, culminou com a criação do artesanato de referência cultural intitulado como “A Árvore da Vida”, atribuído aos índios guarani, e que serviu para aglutinar bases referenciais de crenças e símbolos fundamentais da cultura indígena desta etnia, com forte paralelismo entre fatos e mitos. Além da árvore, os mitos do Dilúvio, a busca pela Terra sem Males, dentre outros, compõem a fenomenologia guarani em torno da formação do lago. Fontes iconográficas, memórias narradas e escritas são usadas como meio de demonstrar a experiência cotidiana de tecer o dia a dia na tarefa de sobrevivência de índios Pai-Tavytera ou Kaiowa, Mbÿá e os Ñandeva, todos os que foram desalojados no momento de formação do Lago Internacional de Itaipu.

PALAVRAS-CHAVE: Iguaçu, Guarani, Árvore, Artesanato.

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BERNAL, Mac Donald Fernandes. The Tree of Life. Reflections of the Handicraft Cultural Reference of Trinational Iguassu Territory. 2015. 155 f. Dissertation (Master of Society, Culture and Borders). Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste. Foz do Iguaçu.

ABSTRACT The text is the result of a survey on remnants of cultural evocations of the Guarani culture in the tri-border region between Brazil, Paraguay and Argentina. Linked anthropology themes, sociology, philosophy and history, the text focuses on focus on some recurring images at the time of formation of the Itaipu Lake Reservoir, demonstrating the re-articulation of knowledge through the evocation of culturally significant images regionally. With the flood caused to the lake filling, the animals living in the affected region sought refuge in the trees in order to save their lives. This phenomenon, once registered, culminated in the creation of cultural reference crafts titled as "The Tree of Life", attributed to the Guarani Indians, and that served to unite references bases of fundamental beliefs and symbols of indigenous culture of this ethnic group with strong parallelism between facts and myths. In addition to the tree, the myths of the Flood, the search for Land Without Evil, among others, make up the Guarani phenomenology around the formation of the lake. Iconographic sources, written and narrated memories are used as a means of demonstrating the everyday experience of weaving the daily task of Pai-Tavytera or Kaiowa, Mbÿá and Ñandeva’s Indians, all who became homeless at the time that Itaipu’s International Lake was formed. KEYWORDS: Iguassu, Guarany, Tree, Handicraft.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 – Imagem representativa do momento vivenciado: “o dilúvio”................... 39

Figura 02 – Registro da desolação do município de Alvorada do Iguaçu em função da formação do Lago de Itaipu (o “Grande Lago”)....................................................

40

Figura 03 – O leito do Rio Paraná quase seco (próximo à Ponte da Amizade) no período do fechamento das comportas para a formação do Lago.............................

41

Figura 04 – Inundação dos campos acima da barragem........................................... 41

Figura 05 - Catalogação de motivos de decoração do tipo cerâmico Itacorá Pintado ....................................................................................................................................

45

Figura 06 - O Ciclo da Madeira. ................................................................................ 57

Figura 07 - Marumas e jangadas levavam rio abaixo as toras extraídas da mata nativa...........................................................................................................................

58

Figura 08 - Operação Mymba Kuera no Lago de Itaipu ............................................. 60

Figura 09 - A Árvore da Vida Guarani – Ocoy ........................................................... 61

Figura 10 – Figura 10 - A árvore da vida. Livro de Mórmon....................................... 63

Figura 11 – Barco Quarai, utilizado na operação Mymba Kuera, em exposição permanente no Ecomuseu de taipu...........................................................................

66

Figura 12 – Imagem de Sete Quedas de Guaíra, PR................................................ 67

Figura 13 - Homem que ficou preso a uma árvore por dois dias durante a enchente do Rio Piquiri...............................................................................................................

71

Figura 14 - Brasão do Paraná de 1910, com grinaldas de pinho e mate................... 110

Figura 15 – Cartaz da Fartal 1978 – Acervo Fundação Cultural de Foz do Iguaçu.... 127

Figura 16 – Sede da Coart ........................................................................................ 128

Figura 17 - Ícone “A Árvore da Vida” do Programa Ñandeva .................................... 140

Figura 18 - Mosaico “A Árvore da Vida” no PTI ......................................................... 142

Figura 19 – “A Árvore da Vida” num quadro sem autoria exposto na sala de recepção do PTI.........................................................................................................

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12

1. 1. MITOS E SIMBOLOS NA CONSTRUÇÃO DE ESPACIALIDADES .................. 23

1.1 Um imaginário da grandiosidade na tríplice fronteira ......................................... 23

1.2 Superlativos na abertura das matas .................................................................. 30

1.3 Mitos científicos – as escavações encontram seu significado ........................... 41

1.4 A iconografia escrita – relatos historiográficos ................................................... 45

1.5 O Dilúvio e a Terra sem Males ........................................................................... 48

1.6 Árvore e dilúvio na história contemporânea ...................................................... 57

1.7 O dilúvio na tríplice fronteira .............................................................................. 65

2. OS GUARANIS ENTRE SÍMBOLOS E MITOS OU COMO O PASSADO

REVIVE NO PRESENTE .........................................................................................

72

2.1 Uma breve historiografía indígena do Brasil ...................................................... 72

2.2 O processo de ocupação da aldeia Ocoy .......................................................... 82

2.3 A construção de mitos ........................................................................................ 91

2.4 O Símbolo .......................................................................................................... 95

2.5 O símbolo e a manutenção das tradições .......................................................... 100

2.6 Árvores-símbolo ............................................................................................... 103

2.7 O Guarani e a Árvore ....................................................................................... 107

2.7.1 A Lenda do Cedro .......................................................................................... 109

2.7.2 A Lenda de Anahí ......................................................................................... 109

2.7.3 A Lenda da Erva-Mate .................................................................................. 110

2.8 A Árvore da Vida do Parque das Aves .............................................................. 111

2.9 As Árvores da Vida de Itaipu .............................................................................. 114

2.10 A Árvore da Vida e suas variações .................................................................. 115

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3. COMO O PRESENTE ENCONTRA O PASSADO .............................................. 117

3.1 O artesanato de referência cultural.................................................................... 117

3.2 O Artesanato Guarani ........................................................................................ 121

3.3 O Artesanato institucionalizado ......................................................................... 127

3.4 O Programa Ñandeva e os guaranis ................................................................. 132

3.5 Outras ações ..................................................................................................... 143

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 146

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 150

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INTRODUÇÃO

Fronteiras são lugares indefinidos. Nelas podem ser pensados temas que

outrora as tradições acadêmicas colocaram como coisas definidas e delimitadas.

Assim puseram o território do Estado, a história diplomática, e as identidades

culturais. Mas estas delimitações são “líquidas” e transbordam, como diz o termo

cunhado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Fronteiras são, portanto, lugar

da liquidez e não do sólido.

Neste aspecto queremos referir também aos estudos de Clifford Geertz,

para discutir o termo identidade cultural. Geertz aponta para a negociação e

infixidez da memória contemporânea, embora a cultura a que se aludem, pode

estar apoiada num passado com um ideal comum projetado e fixado como uma

construção social estabelecida, e que pode fazer seus participantes se sentirem

mais próximos e semelhantes. Do ponto de vista antropológico, é possível

argumentar que a identidade é constituída, principalmente, a partir de dois

elementos principais: as características presentes no espaço territorial ocupado e

o conjunto de símbolos e signos linguísticos, códigos e normas (moral e ética),

objetos, monumentos, artefatos, costumes, ritos e mitos (religião, folclore, música,

culinária, vestimentas etc.) aceitos e praticados coletivamente, capazes de

distinguir um determinado grupo social dos demais. Nos estudos de Geertz a

forma do como se apela para estes símbolos e signos devem ser identificados

para perceber a estrutura imaginária da cultura estudada.

Estas reflexões surgiram após ter-me defrontado com uma fonte principal

que instigou esta pesquisa. Trata-se do artesanato “A Árvore da Vida”, uma

variação iconográfica que teria surgido a partir de uma escultura feita em madeira

que representa uma árvore com animais em sua copa, cuja autoria é atribuída aos

índios guaranis que habitam a região da tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e

Argentina) e que, no contexto em que se insere, sugere um grande apelo à traços

culturais deste povo. Esta peça serviu de base para a composição de um conjunto

de imagens iconografadas numa produção ilustrativa compilada e assinada por

designers de grande expressão internacional, cujo título é “Elementos da

Iconografia das Três Fronteiras”, sob coordenação do designer italiano Giulio

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Vinaccia1, mesmo autor de obras eméritas, dentre as quais, uma Iconografia do

Caminho de Santiago de Compostela. A produção tem a pretensão de vincular os

sujeitos sociais e determinadas imagens, jeitos de fazer, usos de materiais, ou seja,

identificar os chamados traços culturais de uma região, neste caso, da tríplice

fronteira. Esta constatação levou a formular o problema de pesquisa: o artesanato

“Árvore da Vida”, classificado como sendo ‘de referência cultural’, cumpre o papel

de ser um dos representantes simbólicos da tríplice fronteira? É possível delimitar

ícones deste artesanato que se vincule à existência de grupos sociais?

As investigações destas questões foram sendo delineadas na medida em

que se passou a mapear o espaço territorial ocupado. Sujeitos e instituições

surgiram neste mapeamento e, ao mesmo tempo, alguns símbolos e signos

linguísticos, códigos e normas que regem os acontecimentos da vida na fronteira.

Esta forma de análise não é novidade. Diversos locais (países, cidades e

regiões) e manifestações culturais (celebrações, história, crenças, folclore etc.)

possuem símbolos que servem para identificá-los ou referenciá-los. Muitas

cidades são conhecidas, por exemplo, por monumentos e elementos

arquitetônicos, onde a simbologia constituída em torno deles fortalece uma

representação de identidade, tornando-se um de seus maiores pontos de

referência. Por exemplo: Estátua da Liberdade = Nova York / Coliseu = Roma /

Big Ben = Londres / Torre Eiffel = Paris / Cristo Redentor = Rio de Janeiro.

Na esfera cultural, de costumes e tradições, podemos citar os símbolos do

folclore e festas populares: Dragão = China / Dança do ventre = Oriente Médio /

Bumba meu boi (boi-bumbá) = Brasil /, entre outros.

Algumas categorias de artesanato também foram memorizadas como

elemento simbólico referencial para regiões, povos e nações: Pêssanka (ovos de

páscoa pintados à mão) = ucranianos / Origami (dobraduras em papel) =

japoneses / Bonecos de barro (cangaceiros, retirantes, músicos e rendeiras) =

Nordeste-BR / Namoradeira (escultura) = Minas Gerais / Fita do Senhor do Bonfim

= Bahia /, etc. Em muitos casos, a simbologia referencial assume o caráter de

1 - Conferir também: https://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/estilista-da-ferrari-

apresenta-desenhos-que-retratam-tres-fronteiras?page=100

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suvenir. Um objeto que resgata memórias que estão relacionadas a uma

experiência vivenciada em uma viagem, geralmente um destino turístico.

A denominada Região Trinacional do Iguaçu2 compreende a tríplice

fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, reunindo três cidades polo: Ciudad

Del Este (Paraguai), Foz do Iguaçu (Brasil) e Puerto Iguazú (Argentina). Neste

ambiente geográfico, muitas narrativas são memorizadas enquanto símbolo das

diversas culturas regionais, quase sempre relacionadas a pertencimentos étnicos,

visto que a formação da territorialidade dos Estados nacionais apelaram para o

mito da racialidade na definição de identidades culturais.

Estas narrativas mencionam tradições escritas e oralizadas. Segundo

narrativas históricas escritas, a região era habitada por índios Caingangues e

Guaranis, antes da expansão colonialista iniciada a partir de 1452, época em que

se deu a chamada “descoberta das Cataratas do Iguaçu” com a passagem da

expedição comandada pelo espanhol Álvar Núñez Cabeza de Vaca rumo à

Assunção, no Paraguai. Mais tarde, a colonização local ganhou impulso,

influenciada pelas Missões Jesuíticas, extração da erva-mate e madeira, e a

presença militar com a função de assegurar os limites fronteiriços. Época em que,

além de indígenas, brasileiros, argentinos e paraguaios, alguns grupos espanhóis,

franceses e ingleses já se aventuravam por esta região.

No que se refere ao sujeito guarani, há muitas traços considerados

tradicionais e do grupamento. Mitos geográficos, cosmogônicos, aquáticos, quase

todos mencionam uma espécie de panteísmo3 que apontam para uma fusão entre

natureza e espiritualidade. Este seria um clássico nexo do exotismo indígena da

fronteira. Não menos importante, a memória registrou que as delimitações

geográfico-políticas do Estado nacional é ignorada pelo sujeito indígena. De

acordo com Schallenberger (2005), era comum entre eles deslocarem-se para

aldeias distantes, onde permaneciam temporariamente para daí migrarem adiante

2 Fonte: Estatuto Social-Consolidado-Instituto de Promoção Turística do Iguaçu, Título I, Artigo 3º,

§ 1º – 2010. 3 - O panteísmo ensina que Deus é todo o universo, a mente humana, as estações e todas as

coisas e ideias que existem. A palavra panteísmo vem de dois termos gregos que significam tudo e deus. Poetas que escreveram sobre a natureza foram com frequência adeptos do panteísmo. Um bom exemplo desta crença são alguns poemas do poeta português Fernando Pessoa. Doutrina que concebe Deus como a única realidade verdadeira e o mundo como uma realidade subordinada, emanação ou "processo de Deus", segundo Spinoza.

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para encontrar a sua gente. Acostumados a longas caminhadas, os guaranis

tornaram-se, de certa forma, os melhores conhecedores de toda a região irrigada

pela bacia do Prata. A apropriação do espaço e a sua integração ao seu modo de

ser significaram, ao nível do simbólico, a constituição de uma territorialidade

guarani, cujas fronteiras possuíam os limites do espaço circulante trilhado,

habitado e visitado pelos seus membros.

Ainda segundo Schallenberger (2005), não se tratava de um território que

possa ser definido a partir de sistemas complexos de intervenção moderna, como

redes de transporte ou aparatos jurídico-institucionais e político-administrativos,

mas a partir de um sistema de assentamento humano e de uma rede de relações

que teve como autorreferência primeira o meio circulante natural no qual era

possível identificar elementos culturais comuns, encontrados nas aldeias

dispersas dos Guaranis ou das tribos guaranizadas.

A fragmentação da territorialidade guarani resultou, sobretudo, da fixação de outras culturas que ocuparam o espaço estabelecendo fronteira, o que quer dizer, delimitando-o para fins de interesse político e econômico. O assentamento agrícola, através das encomendas, o descimento bandeirante e a apropriação do espaço pela inversão do capital religioso para a fixação dos sítios missioneiros, através da redução dos guaranis, representaram intervenções que afetaram a representação da territorialidade a partir da acumulação histórica de experiências de contato intertribal e figurações de vivências socioambientais. A conquista e a ocupação colonial fragmentaram a territorialidade guarani, o que significa dizer, romperam com a unidade que, na diversidade cultural, representava o elemento material central da identidade guarani – espaço de livre circulação e assentamento. SCHALLENBERGER (2005).

O auge da desintegração do território simbólico dos guaranis deu-se no

período da unificação das coroas da Espanha e de Portugal, de 1580-1640. Neste

período, conhecido como filipino, estabeleceram-se as bases administrativas e os

mecanismos da conquista, pela fixação da colonização e pela ação missionária.

Contudo, traços e remanescentes da cultura guarani teimam em permanecer

presentes, conflitando entre a negação e a admissão de suas bases culturais num

esforço contínuo de rememorização conveniente com a realidade vigente.

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Na região de Foz do Iguaçu, algumas características deste cenário

histórico guarani foi sendo diluído para dar lugar a um movimento turístico

recente, adequado ao mercado e ao gosto de um consumidor específico. Estes

apelos fluíram mediante um grande desarranjo político do status quo na fronteira,

que desabrigou alguns discursos e sujeitos da rotina cotidiana iguaçuense. A

construção da Usina de Itaipu foi causadora de impactos muito maiores que o

volume de água e da geração de energia que o discurso político insiste em

demarcar4. Com a construção do reservatório de Itaipu, retoma-se este tema

identitário dos sujeitos de fronteira, especialmente dos guaranis, o que veremos

mais adiante.

Esta região Trinacional do Iguaçu foi se modernizando para atender a

demanda turística; recebeu infraestrutura viária com a construção das pontes que

interligam os três países, e sofreu a explosão demográfica, ocasionada,

sobretudo, pela construção da Hidrelétrica de Itaipu e pelas oportunidades

oferecidas pelo comércio de fronteira. Razão pela qual, vários grupos étnicos, de

diversas partes do mundo, vieram se somar aos que já haviam se fixado no local

em épocas coloniais.

Em decorrência da demanda turística, o apelo a algumas simbologias é

evidente como uma roupagem de modernidade. Por conseguinte, oportunizam-se

formas de atrair consumidores deste segmento. Uma delas é reinvenção de

signos que atendam a demanda do turismo regional e da própria busca por uma

cultura global de elementos tradicionais culturais. Outra são os argumentos

políticos da gestão dos recursos naturais que remetem o Estado e as ações

políticas de Itaipu a repensar o conceito de consumo de recursos e impactos nos

meios naturais, inserindo-os no discurso da sustentabilidade ambiental.

Programas como “Cultivando Água Boa”, o “Ñandeva” de artesanato, o

“Ecomuseu”, os cursos de língua guarani ofertados pela UNILA (Universidade

Federal da Integração Latino-Americana), dentre outros, são investimentos para

se criar uma tradição imaginada a partir de um ideal cultural projetado, num

constante esforço de aceitação e negação de fatores que sejam mais apropriados

4 Itaipu ainda é considerada a maior hidrelétrica do mundo em volume energético; no ano de 2013

foi a hidrelétrica que mais gerou energia em todo o mundo, quebrando seu próprio recorde de anos anteriores.

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a este fim. Estes grandes signos que servem como referenciais discursivos são

dimensionados como fortes eixos do fator econômico da cidade.

Neste aspecto de cunho mercadológico, Micheu de Certeu (1994) lembra

que as maneiras de fazer, estilos de ação dos sujeitos reais, obedecem a outras

regras que não aquelas da produção e do consumo oficiais. Criam um jogo

mediante a estratificação de funcionamentos diferentes e interferentes, dando

origem a novas 'maneiras de utilizar' a ordem imposta. Para além do consumo

puro e simples, os praticantes desenvolvem ações, fabricam formas alternativas

de uso, tornando-se produtores/autores, disseminando alternativas, manipulando,

ao seu modo, os produtos e as regras, mesmo que de modo invisível e marginal.

...diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como consumo, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas piratarias, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar ?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos. (CERTEAU, 1994. p.94)

Na esfera mercadológica é fato que a cultura se encontra constantemente

absorvida. Para Adorno (1998), existe a constatação de que algo que

caracterizava a cultura se perdeu nos dias atuais, tornando-a um objeto de

consumo. Já o filósofo Gilles Lipovetsky (2007) considera que, numa sociedade

onde as necessidades dos cidadãos estão constantemente em observação e a

ser alvo de elaboradas estratégias de mercado, as pessoas são estimuladas, de

forma manipuladora, a consumir.

Naturalmente, a referência simbólica que mais se consolidou como

representação da região de Foz do Iguaçu são imagens de seus atrativos

turísticos, como a Hidrelétrica de Itaipu e, principalmente, as Cataratas,

amplamente replicada na mídia, na comunicação visual e em todo tipo de suvenir,

juntamente com figuras da fauna, tais como onças, quatis e tucanos. Nesta lógica,

se insere a produção da Iconografia das Três Fronteiras. Contudo, o

aproveitamento puramente comercial dessas representações se afasta do sentido

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mais coerente que se dá ao termo “referência cultural”. Há outro tipo de saber que

se criva com este, formando uma teia rizomática5. De acordo com o Inventário

Nacional de Referências Culturais do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (2000), a noção de referência cultural pressupõe a produção de

informações e a pesquisa de suportes materiais para documentá-las. Um trabalho

de elaboração desses dados, de compreensão da ressemantização de bens e

práticas realizadas por determinados grupos sociais, tendo em vista a construção

de um sistema referencial da cultura daquele contexto específico. Desta forma, o

que o IPHAN propõe é um procedimento racionalizado com fundamento

metodológico e que se insira na perspectiva de evidenciar traços identitários,

contribuindo com este intuito, para a dinamização dos signos e representações do

imaginário nativo, dialogando com um saber já sistematizado e o elevando à

símbolo nacional.

A partir deste parâmetro é possível identificar a reivenção de símbolos e

signos na tríplice fronteira sobre a cultura referencial indígena, sobretudo o

artesanato produzido na comunidade Guarani do Ocoy, em São Miguel do Iguaçu,

mais precisamente a obra entitulada “A Árvore da Vida”, como representativo da

identidade cultural de um povo nativo da região. Como objeto de pesquisa

antropológico, o artefato indígena agrega em sua concepção fatos, crenças e

mitos que oferecem significado mais profundo às representações, e que

apresenta ainda, forte aderência com fatores históricos ocorridos na região.

Dentre muitos signos eleitos como pertencentes à identidade guarani, pelas

várias ordens dos relatos escritos e orais, na tríplice fronteira a árvore aparece

como um elemento especial centralizador, com presença marcante na história da

região e na articulação da vida guarani.

5 Modelo descritivo ou epistemológico na teoria filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari, onde a

organização dos elementos não segue linhas de subordinação hierárquica – com uma base ou raiz dando origem a múltiplos ramos –, mas, pelo contrário, qualquer elemento pode afetar ou incidir em qualquer outro. Em um modelo arbóreo de organização do conhecimento - como as taxionomias e classificações das ciências - o que é afirmado dos elementos de maior nível é necessariamente verdadeiro também para os elementos subordinados, mas o contrário não é válido; já em um modelo rizomático, qualquer afirmação que incida sobre algum elemento poderá também incidir sobre outros elementos da estrutura, sem importar sua posição recíproca. O rizoma carece, portanto, de centro, característica que torna-o particularmente interessante na filosofia da ciência e política, e também para a semiótica e as teorias da comunicação contemporâneas. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rizoma_(filosofia). Acesso em 15/10/2014.

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A formação do reservatório de Itaipu serviu para aglutinar bases referenciais

de crenças e símbolos fundamentais da cultura guarani, com forte paralelismo entre

fatos e mitos. Com o subir das águas, os animais buscaram abrigo no topo das

árvores na tentativa de salvar suas vidas. Estas seriam então como “árvores da

vida”, que mais tarde se tornariam o artesanato atribuído aos guaranis que leva o

mesmo nome, e que obteve notoriedade comercial sob intervenção do programa

Ñandeva, de desenvolvimento do artesanato regional, com o apoio institucional de

Itaipu. A Operação Mymba Kuera (que em tupi-guarani quer dizer “pega-bicho”)

foi a ação de resgate dos animais silvestres que se encurralavam no topo das

árvores, realizado por biólogos de Itaipu através de barcos, e que serviu de fonte

para a concepção da obra “Árvore da Vida”.

Além da árvore, os mitos do Dilúvio, a busca pela Terra sem Males, dentre

outros, compõe a fenomenologia guarani em torno da formação do lago, e serão

esmiuçados adiante.

Como procedimento metodológico, procura-se mapear um tempo e um

espaço para a produção do artesanato atribuído à cultura guarani na tríplice

fronteira a partir de fontes escritas e orais. Numa perspectiva interdisciplinar

busca-se na antropologia, na filosofia, na história, na geografia e na sociologia

formas de situar este espaço e tempo, apresentando modos de usos de diversas

linguagens referentes às imagens fundadoras de uma cultura indígena na tríplice

fronteira, de modo especial da cultura guarani.

Geertz, ao propor discussões acerca do objeto da antropologia e introduzir o

tema da descrição densa, afirma que o objeto antropológico é uma hierarquia de

estruturas significantes e superpostas que permitem distinguir um comportamento

espontâneo como um tique nervoso de suas imitações e de seus ensaios de

imitações, através da observação e da interpretação dos comportamentos

ocorridos. Já a descrição densa é analisada por Geertz como parte integrante do

objeto antropológico, pois distingue um tique nervoso de uma simples piscadela,

por ser ela formada de dados significantes, cuja densidade exige interpretações. E

essa descrição densa possui características peculiares, pois, além de ser

microscópica, ela interpreta o fluxo do discurso social para salvar e transformar

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tudo o que fora dito em registros pesquisáveis, de modo que ele não se extinga

(GEERTZ, 1978: p. 13-41).

Metodologicamente, a pesquisa apresentada usa dois tipos de fontes:

escritas e orais. Quanto aos primeiros, os dados escritos – historiografia, textos

jornalísticos, estudos científicos, normas (leis) projetos, Estatutos – serão aqui

tomados como “piscadelas” que fazem parte de características microscópicas, mas

de sentido amplo, que possuem fluxo de âmbito social e que desejam, em última

instância, reorganizar politicamente o social. Oralidades, por sua vez, tem a dupla

função de perceber as articulações do sujeito frente à instigação do entrevistador e

de rememorar ocorrências do passado, rearticulando no tempo presente. As

narrativas oralizadas, serão utilizadas como contraposição, negociação de sentidos

e recurso simbólico de domesticação do cotidiano de uma história mais de “chão”.

Como disse a historiadora Maria de Fátima Bento Ribeiro,

“...a história oral tornou-se fundamental para uma análise do verdadeiro significado de Itaipu, pois a versão narrada pelas camadas populares traz outra perspectiva sobre a ‘obra do século’ que a versão ‘oficial’ preserva nos arquivos, bibliotecas, atas, tratados, fotografias e, mais recentemente, no painel do barrageiro.” (BENTO RIBEIRO, 2002).

Dar voz aos remanescentes de Ocoy requer que outras fontes sejam

utilizadas para dar visibilidade e estes outros sujeitos da fronteira. A observação

direta, a trajetória social e a oralidade, vem assim, construir a visão deste outro

sobre o mesmo espaço tempo.

É neste contexto da história contemporânea que se percebe o amplo apelo

discursivo em torno de signos que imprimiram na paisagem da territorialidade,

elementos simbólicos que deram sentidos a uma história de fronteiras. Dentre

estes elementos discursivos estão o turismo e a sustentabilidade, elementos

significativos cujo poder político e econômico se magnetizam para pensar o

ordenamento social. A imagem guaranítica sofre redimensionamentos que estão

para além da imaginação do próprio grupo social, mas que atende ao apelo

turístico e da sustentabilidade ambiental.

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Menciona-se que, ao pensarmos tempo e espaço na construção de uma

percepção de cultura, também a produção historiográfica é aqui lembrada como

demarcada por um tempo e espaço. Segundo Paul Feyerabend, a história da

ciência está repleta de momentos onde metodologias, que eram bem aceitas,

foram deixadas de lado em prol desta mesma ciência. Lembra também que

devemos admitir que o mundo é em grande parte desconhecido e, por isso, nós

não podemos saber de antemão qual será a melhor metodologia para lidar com

aquilo que ainda não conhecemos. Em outras palavras, manter-se aberto para

novas formas de conhecer não é só uma descrição da história da ciência, mas

também é uma prescrição para o futuro da mesma. Em conformidade com isso

Feyerabend diz que “Essa maneira liberal de agir não é, repito, apenas um fato da

história da ciência. É algo razoável e absolutamente necessário para que se

desenvolva o conhecimento” (FEYERABEND, 1977).

Nesta compreensão, pretende-se colocar o uso de fontes desta pesquisa.

Os textos escritos por historiadores, geógrafos, textos livres e/ou jornalísticos são

apresentados ao lado da tradição oral, iconográfica e da observação presencial,

colocando-as em diálogo como mensura dos rituais de origens, das

reapropriações simbólicas para ordenação do espaço territorial ocupado. Por esta

razão, serão tratadas no interior de representações mais gerais dos signos e

símbolos cujos apelos de seus intérpretes serão indicados como demarcações,

disputas e controles do tempo contemporâneo.

A narrativa segue em fluxo espiral, onde os discursos são apresentados, e

muitas vezes retomados, de forma que os assuntos, por vezes bastante diversos,

se mostram entrelaçados. O texto foi instrumentalizado de forma que o primeiro

capítulo descreve o panorama discursivo historiográfico da região onde se formou

o lago de Itaipu, e sua relação com símbolos referenciais que surgiram em

consequência deste evento. A partir deste fator, são explorados discursos que

contribuíram para a formação de um imaginário cultural local que construiu modos

de ver sobre a cultura indígena e contribuiu para internalizar representações

consideradas mitologias pertencentes a grupos culturais. Árvores, dilúvio, língua,

lendas, fertilidade, são apresentados neste capítulo como demarcadores de um

tempo e espaço.

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No segundo capítulo faz-se uma discussão de narrativas escritas e a

descrição de determinados mitos e lendas atribuídas aos índios guaranis.

Procura-se demonstrar um tempo espaço sustentado pela presença da árvore

(árvores no plural) em muitas instâncias do tempo presente da fronteira. Retoma-

se o ambiente de Ocoy, o assentamento indígena, produções historiográficas que

construíram evidências sobre identidades, racialidades e traços culturais como

pertencentes aos grupos sociais ao lado do mito da nação única. Demonstra-se o

quanto a imagem da árvore permeia a imaginação regional, seja na letra do

especialista ou mediante a descrição folclórica de grupos tradicionais, neste caso,

os índios guaranis.

No terceiro capítulo pretende-se explorar parte do universo mítico guarani a

partir de relatos de seus representantes, conectando o surgimento do artesanato;

as peças, a discussão sobre a imitação dos artistas; a árvore da vida como

artesanato, o discurso da integração cultural através do artesanato e da

sustentabilidade ambiental e políticas de assistência em Ocoy.

Em seu conjunto, os três capítulos pretendem fazer uma delimitação

espaço-temporal onde as experiências contemporâneas de sujeitos e instituições

apelam para determinadas imagens fortes como forma de organizar a vida

cotidiana. No todo, aponta-se uma história do surgimento de uma política de

divulgação de conhecimentos artesanais na tríplice fronteira como se fosse a

ponta de um iceberg. Olhado em sua profundeza, há muito mais que peças

artesanais.

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1. MITOS E SÍMBOLOS NA CONSTRUÇÃO DE ESPACIALIDADES

1.1 Um imaginário da grandiosidade na tríplice fronteira

Segundo discussões do sociólogo francês Michel Mafessoli, o imaginário

não é algo que serve para identificar somente as tramas sociais estabelecidas por

um sujeito. Embora afirme que “o imaginário é o estado de espírito”, remete à

compreensão de que se trata de uma comunidade de sentidos “de um grupo, de

um país, de um Estado-nação, de uma comunidade, etc”. (MAFFESOLI, 2001).

Segundo este autor:

O imaginário estabelece vínculo. É cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser individual [...] Insisto que há proximidade entre cultura e imaginário. Nesse sentido, pode-se dizer que o imaginário é a cultura de um grupo. Contudo, se voltamos ao que foi dito, veremos que o imaginário é, ao mesmo tempo, mais do que essa cultura: é a aura que a ultrapassa e alimenta. (MAFESSOLI, 2001, p. 76)

Não se pretende discutir o imaginário como categoria de análise nesta

pesquisa. No entanto, a forma proposta por Mafessoli permite perceber muitos

fios da trama cultural estabelecida na fronteira geográfica dos três países em

questão e, ao mesmo tempo, estabelecer um diálogo conceitual com outros

autores, um significativo contributo para a compreensão de imagens fortes como

áureas, que estão em suspenso neste espaço territorial fronteiriço, resultando em

uma atmosfera comunicativa e ao mesmo tempo demarcadora de grupos e

diversidades culturais.

Ao lado de Mafessoli, é possível colocar as pesquisas de antropologia

cultural de Clifford Geertz. O diálogo entre os autores pode ser estabelecido a

partir dos conceitos de cultura e imaginário. Segundo Geertz um tempo histórico é

um permeado de estruturas significantes e superpostas que, manejados pelos

grupos sociais, permite que sentidos sejam construídos criando uma certa

estabilidade para a existência individual e coletiva. Segundo este pressuposto, a

abrangência destes crivos culturais se estende como os tentáculos de um

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monstro marinho que abarca desde um princípio até seu lugar mais distante, e ou

“inconfessável” da psicologia social.

A amplitude destes crivos atinge mesmo todos os sujeitos – intelectuais ou

leigos (Bourdieu) – e seu lugar social. Isto significa assumir que o lugar da

ciência, seus instrumentos, seus procedimentos, suas sentenças, têm história, ou

seja, pertencem a este esforço de organização da cultura. No mesmo sentido

deste apontamento de Bourdieu, deve ser colocado Mircea Eliade (1994) quando

afirma: “o homem moderno se considera constituído pela História, o homem das

sociedades arcaicas se proclama o resultado de certo número de eventos

míticos”. História, mesmo se mencionarmos sua vertente escrita e mitos não se

diferenciam na sua essencialidade, pois teriam em comum o fato de albergarem

sentidos mais profundos, mitológicos, de outra natureza, que não aqueles

somente expressos em signos pictóricos alfabéticos. Porém, justamente devido a

estas referências - como estruturas significantes - podem evocar um lugar de

rememoração de mitos fundadores que remetem às origens. Começos, cujos

usos contemporâneos criam não somente uma estabilidade existencial, mas,

sobretudo, elas remetem a ícones fundamentais da identidade grupal. Através das

ritualizações dos mitos, “aprende-se não somente como as coisas vieram à

existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam

quando desaparecem” (p. 18.), por isso, “não é preciso conhecer o mito da

origem, é preciso recitá-lo”. (ELIADE, 1994.)

Com este autor, ainda pode-se compreender que há uma necessidade de

rememorar estes mitos:

[...] recitando ou celebrando o mito da origem, o indivíduo deixa-se impregnar pela atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos. O tempo mítico das origens é um tempo forte, porque foi transfigurado pela presença ativa e criadora dos entes sobrenaturais. Ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se consequentemente, contemporânea, de certo modo, dos eventos evocados, partilha da presença dos deuses ou dos heróis. (ELIADE, 1994. p. 21)

Na contemporaneidade vive-se o fundamento dos mitos da modernidade.

Considerando que sua principal performance foi escrita e cujos especialistas

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vieram de muitas áreas do saber (BURKE, 2014), as fontes escritas que

passaremos a analisar serão demonstradas como fomentadoras de mitos,

especialmente focadas na questão das origens, seja origens de um grupo social,

seja origem de um Estado Nacional.

Ainda na linha de Eliade (1994), a finalidade desta vivência mitológica não é

outra senão a necessidade de amenizar o tempo. “Ao viver os mitos, sai-se do

tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente,

um tempo sagrado, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável”

(idem, p. 21). Por tempo sagrado não se deve entender o fundamento somente

com origem no sagrado, mas numa forte presença de fundamento e

prolongamento da estabilidade do cosmos que coloca o imprevisível, o

tempestivo, dentro de uma ordem, como o Estado, por exemplo. Neste sentido,

ciência e crença são ícones inseparáveis, pois que, com ferramentas diferentes (e

muitas vezes opostas) convergem para a domesticação do mundo. Como disse

Eliade (1994), “todo mito de origem conta e justifica uma situação nova – nova no

sentido de que não existia desde o início do mundo” (p. 26). É neste sentido que,

na tríplice fronteira, pode ser pensada uma formação cosmogônica, porque, ao

final, uma das funções do mito é a da instalação territorial do grupo. Em outros

termos, é a história de um novo começo, réplica da criação do mundo.

Ainda segundo Eliade (1994), é no fundamento territorial que “o mito

recorda brevemente os momentos essenciais da criação do mundo, para contar a

seguir, a genealogia da família real, ou a história tribal...” (p. 37). Nesta formação

de territorialidade, pode-se pensar que “a origem de uma coisa corresponde à

criação dessa coisa” (p. 39). E esta não é senão o apaziguamento de

inquietações criadas na tessitura da organização do tempo histórico. Ciência e

crenças neste aspecto fazem parte de uma cerimônia de controle do tempo.

Intelectuais e leigos assim participam de um mesmo mundo, de uma mesma

hierofania, cujo grande combate é ordenar a vida cotidiana. Um texto escrito e um

conto, mesmo se opondo num ponto de vista, tem como finalidade, em última

instância, dizer um dizer mais sabido, último, fundador. Da mesma forma um

grande projeto de intervenção na natureza pode, em um momento, ser um veio de

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brasilidade e, em outro, um conjunto idílico salvacionista da modernidade. Assim,

eles não se opõem, mas “prolongam” a cosmogonia.

É a existência desta mesma cosmogonia que possibilita a existência de

uma multiculturalidade na fronteira. Com este tema, nos ocuparemos mais ao

final. Por hora, basta afirmar que são muitos os símbolos evocados na tríplice

fronteira. A imagem da água talvez seja uma das mais fortes. A ela está

associada a existência de caminhos desbravadores e navegáveis, de rios

piscosos, de bandeirantes e jesuítas intrépidos, hábeis navegadores,

desbravadores, militares e “fortalezas iconográficas como Itaipu Binacional, A

Maior em Produção de Energia, Cataratas do Iguaçu, uma das Novas Sete

Maravilhas da Natureza” (OLIVEIRA, P. 118 – grifos da autora). Estas imagens

fortes estão associadas às velhas tradições de descrever o espaço remontando à

um certo hábito dos gregos de trazer ao domínio aquilo que é desconhecido e

narrar com foco no fantástico e grandioso.

A água como símbolo narrativo permite conceber um imaginário mais

longínquo em que se remetia à origem, aos elementos naturais. Os quatro

elementos foram mitos fundadores da territorialidade paranaense (SANTOS,

2014). Autores como Euclides da Cunha conceberam um “Hércules Quasímodo”

para descrever um corpo humano criado pela natureza íngreme do sertão. O

historiador paranaense Brasil Pinheiro Machado falou de um “Homem Tapera”,

criado pelo tempo, acanhado, desajeitado e feio. Mas estas monstruosidades

foram concebidas como formas arquetípicas de um tempo remoto, cujas

características o tempo moderno haveria de apagar (SANTOS, 2014).

Os três elementos naturais como discursos da origem estão, segundo Julia

Tomás (2013) presentes no imaginário da cultura portuguesa que foi disseminado

na busca desenfreada pelo novo mundo. O desconhecido enfrentado por nobres e

homens simples foi narrado como enfrentamentos entre deuses e semideuses,

onde foi reunida uma série de personagens mitológicos cosmogônicos, ou seja,

organizadores da territorialidade do desconhecido. Deuses, monstros, tormentas,

grandes águas, o mar, as montanhas, a mata, o sem fim, evocaram entidades

superiores para dominar este desconhecido. A autora lembra, assim como Mircea

Eliade, que na mitologia helênica, Eurínoma, a “Deusa de Todas as Coisas”,

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nasceu nua do Caos mas os seus pés não encontraram nenhum lugar onde

pousar. Decidiu, por isso, separar a água do céu. As narrativas olímpicas contam,

por seu lado, que a Mãe-Terra nasceu do Caos e enquanto dormia, deu à luz um

filho chamado Urano:

[...] os mares, bem como todas as coisas do universo, foram criados pela união entre mãe e filho. Nos mitos homéricos, antes de tudo, havia-se formado o Céu (Úrano) e a Terra (Gaia) que deram origem aos Titãs, considerados geralmente como a geração primitiva dos deuses. TOMÁS (2013, p. 2).

Outra imagem simbólica forte deste imaginário é aquele que reúne o deus

do tempo Cronos e o do oceano, Poseidon. Segundo a pesquisadora portuguesa:

[...] a Odisseia de Homero é baseada em mitos da Grécia Antiga e descreve com clareza a hierarquia familiar dos deuses do Olimpo, filhos dos Titãs. Conhecemos, assim, deuses e outros seres marinhos do mundo helênico, dos quais o mais poderoso é Posídon, Senhor e Rei do Mar. Posídon (o equivalente romano é Neptuno), à imagem do mar, pode ser benigno formando novas ilhas e oferecendo águas calmas. No entanto, se o ofender (o que acontece facilmente), o deus bate com o tridente no chão provocando maremotos e cruéis vendavais que causam afogamentos e naufrágios. TOMÁS (2013, p. 12).

Narrativa com muita semelhança está na Bíblia cristã. Como se lê em

Genêsis (Genesis 1.1-1.10), Deus criou o céu e a Terra, em seguida, no primeiro

dia, criou o dia e a noite e, no segundo dia, separou as águas das águas,

formando assim as águas terrestres e as águas celestes. Ao terceiro dia, Deus

criou os continentes e chamou “mares” às acumulações de águas e “terras” aos

lugares que se encontravam secas. Para o cristão, os mares, os sem fins, os

sertões, representam quase sempre a hostilidade de Deus e um perigo mortal.

Júlia Tomas faz uma advertência importante para a compreensão da cosmogonia

territorialista destes “descobridores”:

[...] parece-nos desde já adequado sublinhar a influência greco-latina no imaginário português. Povo de pescadores e marinheiros, os portugueses sempre seguiram a fé cristã. O

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paralelo entre os pescadores da Bíblia e os de Portugal é evidente. Humildes e pobres, os pescadores arriscam a própria vida para alimentar a família. Sem proteção nem conhecimentos, frente à ira de Deus, muitos se perdem e nunca regressam. TOMÁS (2013).

O imaginário marítimo e a memória portuguesa disseminou-se rapidamente

no chamado novo mundo. O “descobrimento” é fruto da combinação deste

fantástico com as ambições políticas. Um mundo construído por uma epopéia

com navegadores, missionários, piratas e aventureiros que reinavam em tronos

indígenas. O imaginário da colonização é uma complexa tecelagem de lendas e

mitos servidos pela concepção do inferno dantesco. A terra brasilis ora é um

inferno tropical – de calor, pestilências, vestais e animais devoradores de gente –

ora uma terra de luxúria, devassagem, pecados e castigos.

Compreende-se, assim, o pavor face ao desconhecido (e a necessária

coragem para o desbravar) e o terror perante a morte, refletido nas imagens do

abismo no horizonte. É neste limite discursivo que se encontra as produções

culturais, artísticas, literatas. Neste mesmo horizonte que se fundem com criações

de museus, institutos, casas de assistência, educandários e templos. Mefistófeles

(o mal, o medo, o desconhecido) precisava ser exortado definitivamente; isto

ocorreria na medida em que a modernidade afastasse a ignorância ou o medo do

desconhecido. O desconhecido era o horror, o fantástico. Padres, cientistas,

políticos foram antecedidos por bandeirantes e sertanistas. Como disse Santos:

A produção historiográfica, a partir destes Centros, pode ser entendida como uma memória estética do Paraná. Uma arte escrita que cria uma ordem de espacialidade, gradativamente, que insere o homem num espaço. A produção, então, tem ares de uma disciplina do corpo, uma vez que se coloca um homem pré-histórico que, até o domínio da história, muda suas qualidades físicas. (SANTOS, 2013. p. 21)

As letras e as artes retratam muito bem estes combates. Um misto de

natureza e deuses demonstra um grande sentido antropocêntrico cuja finalidade é

demarcar como cultural um espaço territorial ocupado. O uso destas fontes na

pesquisa permite reconstruir um caminho do imaginário (as estruturas do

imaginário) da territorialidade. Sutilmente há evidências de uma simbiose

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antropológica entre o desejo político e a mensagem dos deuses. Como disse

Geertz, o imaginário é maleável e adaptável ao tempo, transformando-se em

memória e em consciência coletiva, o que reflete a eterna angústia e, na mesma

mão, a luta do Homem perante Cronos, Thanatos, Gaia e Urano. Neste mesmo

território há também outros saberes que jogam com outras regras porque

respondem a outras necessidades. Eles também são monstros que habitam os

sertões, as fronteiras, os vazios demográficos. Os mitos dos povos guaranis são

operacionalidades específicas que também mapeiam o espaço com pretensões

menores que os “conquistadores portugueses” ou modernos colonizadores

europeus. Eles se encontram nestes lugares que chamamos fronteiras no plural. As

identidades entram em fricção; como o jogo é estabelecido entre os homens e não

entre os deuses, estes parecem observar do cimo do Olimpo o resultado da batalha

para tomar sua decisão. Mas como disse Geertz, o imaginário não é algo fixo; em

universos multiculturais os semi-deuses descem ao solo e permitem a

promiscuidade. É no jogo cotidiano que as práticas definem as apropriações

resignificando o universo simbólico. No espaço multicultural da tríplice fronteira

muitas são as identidades móveis; fala-se muitas línguas, muitos são os credos,

várias são as atividades laborais; veste-se de muitas formas e com várias cores;

alimenta-se de maneiras, temperos, e produtos também muito variados. A tríplice

fronteira é, portanto, plurissignificativa, o que a faz multicultural.

Ao lado da água como elemento simbólico, pode-se colocar a Árvore. Ela

remete ao segundo elemento, terra. Ela está essencialmente ligada ao mito da

fertilidade. É, porém, uma imagem dúbia de muitas fases quando pensada diante

do território ocupado. Foi caracterizada como um monstro que resiste ao homem,

destrói suas construções, atrapalha seu destino; pode ser a matéria prima que

acolhe, protege, abriga; pode dar o alimento ou a bebida; pode também ser um

monstro que liga os dois mundos de Uranos e Gaia (céu e terra). Mas em ambos

os casos as narrativas são construídas com imagens dos semi-deuses,

grandiosos, construtores de culturas, quase fálicos. Situa-se aqui o mito do

colonizador ou do pioneiro regional.

As narrativas sobre territorialidades são confrontantes com as florestas.

Outrora lenhadores, conquistadores, fundadores de cidades. Hoje o combate ocorre,

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sobretudo como prática escriturística.. É importante registrar que no dicionário

Michaelis se classificou como definição de floresta: “1- Vegetação cerrada constituída

de árvores de grande porte, cobrindo grande extensão de terreno; mata. 2- A

extensão de terra coberta dessa vegetação. 3- Confusão, labirinto” 6.

Na arte escrita fica evidente todo o esforço de construção de uma memória

imagética desta grandiosidade relacionada à arvore: “de grande porte”; o seu

coletivo: “extensão de terra coberta dessa vegetação”; e por fim: “confusão,

labirinto”. Não é difícil perceber que o autor ao definir pela tinta da caneta, está

contemplando um quadro diabólico do desconhecido, ameaçador. Se juntarmos

os personagens linguísticos – árvore, floresta, labirinto - temos um sentido a este

diabólico: coletivo de monstros que confunde o homem. Logo, colonizar ou

desmatar será um apelo à batalha donde emerge o herói colonizador. A conquista

destas florestas será como a saga dos titãs: na batalha entre os seres, se

conquista e se torna mais humano, diga-se, mais moderno. Os feitos são grandes,

superlativos como “construir o Oeste”, “construir cidades”, “construir o maior lago

artificial do Mundo”.

Mas como se diz com a linguagem mitológica, nas florestas habitam muitos

seres. Dentre as muitas culturas da tríplice fronteira, está também a nominada

indígena. Nesta cultura há os seus mitos de territorialidades. Na interculturalidade,

eles se encontram e, como dito acima, as práticas políticas vão decidir pelos

deuses: quais imagens terão o poder maior de organizar o mundo de Cronos?

1.2 Superlativos na abertura das matas

A formação do lago de Itaipu está diretamente relacionada à forma de vida

dos indígenas na tríplice fronteira e, de modo especial, dos indígenas em Foz do

Iguaçu. A desapropriação de terras ocorrida naquele período atingiu agricultores e

nativos da mesma forma, causando remoção de ambos para outras localidades: os

agricultores, conforme negociações individuais e relativas ao tamanho de suas

6 Fonte: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/definicao/floresta%20_967132.html.

Acesso em 15/06/2014.

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propriedades; e os indígenas, alocados em uma colônia então nominada Ocoy. As

opções eram mínimas neste cenário onde se travava um combate desproporcional.

A construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu é um destes monumentos em

que o grandioso está presente. Os discursos em torno de temas referentes à

Itaipu tendem, quase que em sua totalidade, ao superlativo. Itaipu foi a maior

usina hidrelétrica do mundo até 2008, ano do término da construção da represa

de Três Gargantas na China, que a superou em tamanho. Porém, mantém-se a

afirmativa de ser a maior do mundo atualmente em produção de energia.

A ditadura militar brasileira (1964-1985), que patrioticamente descrevia o

país sob seu comando como “Brasil grande”, buscou mais do que eficiência e

expansão com seu programa intenso de obras públicas. Como o nome “Brasil

grande” sugere, tamanho é documento. Um dos discursos de Médici, transmitido

por rádio e televisão em honra do sétimo aniversário da Revolução de 1964 –

denominação oficial do golpe que pôs os militares no poder –, defendia que, para

superar suas dificuldades, o Brasil precisava “promover o desenvolvimento em

dimensões mundiais” (MÉDICI, 1971). O próprio discurso do militarismo brasileiro

vai se colocar num combate titânico da ordem interna, do combate internacional

do comunismo e no milagre faraônico do desenvolvimento econômico do Estado

Nação (LENHARO. 1988). Itaipu foi apenas uma das grandes obras que “rasgam

as florestas e criam desenvolvimento”. Junto a ela, podemos citar a rodovia

Transamazônica e a usina nuclear de Angra dos Reis e, mais recentemente, a

polêmica obra da usina de Belo Monte.

Em outro discurso de 1971, referindo-se mais especificamente à natureza

superlativa das iniciativas desenvolvimentistas do regime, Médici descreveu a

usina de Itaipu como sendo construída por uma companhia binacional “que não

terá paralelo, no mundo, por sua natureza e magnitude” (idem, 1972).

Ao demonstrar sucesso numa área específica do progresso nacional, a

modernização simbolizada pelas obras públicas monumentais do regime serviu

para legitimar a ditadura tanto internamente quanto no exterior. Aproveitando o

clima otimista da vitória do Brasil na Copa de 1970, o chamado “milagre

econômico” do regime usou tais obras para promover sua imagem.

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Muito além da concepção política, o conceito de grandeza foi largamente

difundido durante, e também nos anos que sucederam as obras, e está

impregnada até hoje na imagem institucional da empresa. Não apenas por seu

porte monumental, que faz com que, aos olhos dos visitantes, pessoas e carros

sejam comparadas a formiguinhas, em Itaipu o gigantismo em torno da obra está

em toda parte.

Antes de visitar as instalações da grande usina, todos os visitantes são

convidados a assistirem um filme de aproximadamente 30 minutos, focado na

descrição das bases de constituição do acordo bilateral, firmado entre o Paraguai e

o Brasil para construção daquele complexo. Boa parte do filme exibido aos

visitantes volta-se aos programas de sustentabilidade criados pela empresa. A

natureza é muito valorizada nas imagens. São apresentados também o registro das

diferentes etapas atingidas pelo canteiro de obras. Os números já colocados na

roupagem de “sustentabilidade” impressionam e a tecnologia empregada constitui

um marco na construção de obras similares, ainda inédita em muitos aspectos.

As descrições demarcam um espaço geográfico e social na territorialidade

ocupada. Segundo dados divulgados pela empresa, a Usina Hidrelétrica foi

construída a 190 Km de Sete Quedas, no Rio Paraná, no trecho de fronteira entre

o Brasil e o Paraguai, a 14 Km ao norte da ponte da Amizade (divisa entre Brasil e

Paraguai), a 20 Km da Foz do Rio Iguaçu. A área do projeto se estende desde

Foz do Iguaçu, no Brasil, e Ciudad Del Este, no Paraguai, ao sul, até Guaíra

(Brasil) e Salto Del Guairá (Paraguai), ao norte. A Hidrelétrica possui a altura de

196 metros, que equivale a um prédio de 69 andares, com o comprimento de

7.760 metros.

A grandiosidade usa o recurso da analogia para criar de si mesmo uma

imagem representacional. O filme e o site institucional da empresa assim descrevem:

Com o concreto que foi usado para a construção da barragem de Itaipu seria possível construir mais de 200 estágios do tamanho do Maracanã, um prédio de 1000 andares, ou até moradias para 4 milhões de pessoas, 6 pirâmides como a de Quéops, no Egito. Na barragem há 12,5 milhões de metros cúbicos de rocha e 5,1 milhões metros cúbicos de terra. O volume total de terra e rocha é equivalente a mais de duas vezes ao volume do Pão-de-Açúcar do Rio de Janeiro. O ferro e o aço de construção utilizada seriam

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suficientes para edificar 380 vezes a Torre Eiffel (Paris). Se o Brasil tivesse de obter a energia gerada por Itaipu, a óleo, seria necessário queimar 434 barris de petróleo por dia. O vertedouro de Itaipu suporta uma vazão máxima 40 vezes superior à média das Cataratas do Iguaçu. O ritmo das obras foi equivalente à construção de um edifício de 20 andares a cada 55 minutos. Atualmente a usina Hidrelétrica de Itaipu tem a potência instalada de 14 milhões de Kw (quilowatts), com 20 unidades geradoras de 700 mil Kw cada uma. (Fonte: http://www.itaipu.gov.br/energia/comparacoes. Acesso em 15/06/2014).

No período de maior intensidade dos trabalhos, Itaipu lançava em média

300.000 m³ de concreto por dia. O canal do desvio do Rio Paraná foi aberto em

pouco mais de três anos (1975-1978), com 2.000 metros de comprimento e 150

de largura e 90 de profundidade. Itaipu removeu mais de 60 milhões de metros

cúbicos de rocha e terra nas suas escavações. Os construtores brincavam

dizendo: “aqui não é a fé que remove montanhas, mas nossas máquinas e nossos

braços” (MAZZAROLLO, 2003).

Na execução da obra, aproximadamente 1.800 Km² de terras passaram ao

domínio da Itaipu Binacional (1.000 Km² no Brasil e 800 Km² no Paraguai), para a

instalação do canteiro de obras, formação do reservatório de água com a

capacidade para 29 bilhões de metros cúbicos e para a faixa de segurança. Deste

montante, a água cobre 835 Km² no Brasil e 625 Km² no Paraguai. O lago de

Itaipu equivale a três Baías de Guanabara.

Outros números da hidrelétrica que foram divulgados como imagem forte de

sua grandiosidade foram os que se referiram à mão de obra empregada. De acordo

com Mazzarollo (2003), no período de maior necessidade e intensidade de

operários para a construção da barragem, empregava-se até 40.000 trabalhadores.

Para este número novo de habitantes foi necessário construir 9.500 residências

distribuídas em três conjuntos habitacionais no Brasil e oito no Paraguai. Além das

residências, os novos bairros receberam também clubes, escolas, hospitais, igrejas,

centros esportivos e recreativos. As refeições eram fornecidas aos trabalhadores no

canteiro de obras, em imensos refeitórios que lá foram construídos. No Ecomuseu

de Itaipu é possível conhecer, em exposição permanente, alguns utensílios de

cozinha imensos utilizados nesta época, além de veículos, máquinas e outros itens

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de grande porte. O custo econômico dessa grandiosidade, sem dúvida foi altíssimo.

Ainda segundo Mazzarollo (2003), quando o Congresso Nacional aprovou o projeto

da obra, o orçamento era, a princípio, estimado em US$ 2,5 bilhões, mas quando

os trabalhos foram iniciados esse valor passou para US$ 4 bilhões. Logo em

seguida para US$ 8 bilhões, mais tarde para US$ 14 bilhões e no final das contas

chegou ao custo total de US$ 20 bilhões.

Há “sinais” de grandiosidades contemporâneos de Itaipu. A usina bateu

recorde de produção em 2012, fechando o ano com geração total de 98.287.128

megawatts-hora (MWh), o maior da história. Esse número supera o de 2008,

quando gerou pouco menos de 95 milhões de MWh. Como tudo que se refere à

usina, os números são grandiosos, o procedimento de analogia evidenciou que o

recorde de energia registrado seria suficiente para atender à demanda do mundo

inteiro por dois dias; do Brasil, por 81 dias; da Argentina, por dez meses; do

Estado do Paraná, por três anos e sete meses; e da cidade do Rio de Janeiro, por

seis anos e quatro meses7.

O Lago artificial de Itaipu, concluído em 1982, tem área de 1.350 km2 e

profundidade média de 22 metros, chegando até 170 metros nas barragens. O lago

fornece a água que movimenta os geradores de eletricidade. Por tamanha

grandiosidade, seu projeto envolveu considerável impacto socioambiental, dividindo

opiniões sobre seus benefícios. Por conta disto, é perceptível uma constante

manutenção da imagem institucional da empresa no sentido de fortalecer valores

ligados à ecologia e sustentabilidade. Segundo informações da instituição, quase

trinta anos depois de entrar em operação, “o lago é tido como modelo de gestão

sustentável”. Atualmente, há 20 programas realizados nos 29 municípios que

compõem a bacia do Paraná – moradia de cerca de 1 milhão de pessoas. Os

dados produzidos pela empresa dimensionam esta autocompreensão de

“sustentável”, pois afirmam que, “desde 1984 foram plantados 43 milhões de

árvores e, graças à energia hidrelétrica produzida em Itaipu, o Brasil deixa de emitir

a cada ano 85 milhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera”. Os projetos

que tornaram a usina um modelo de sustentabilidade estão ativos em áreas tão

diversas quanto a de geração de energia. Sustentabilidade, pesca, produção de

7 Fonte: https://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/itaipu-crava-novo-recorde-historico-do-

semestre. Acesso em 15/06/2014.

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alimentos sem agrotóxicos e manutenção de um corredor ecológico de 27

quilômetros de extensão são alguns exemplos8.

Este discurso é contemporâneo e nele se insere muitas ações políticas da

Hidrelétrica, que procura rever ações de danos ambientais. Nesta lógica política

se insere os projetos “Água Boa” e de Artesanato “Ñandeva” que se atribui aos

atuais remanescentes indígenas guaranis, como será explorado mais adiante.

Para além da imagem da sustentabilidade, hoje também está presente o

símbolo da natureza como turismo. A visita à Itaipu é tida como “obrigatória” para

o turista que pretende conhecer Foz do Iguaçu. Perde apenas para as Cataratas

no quesito “visitação”. Logo na chegada à usina o turista “pressente” as marcas

da fronteira trinacional, pois se depara com um grande bloqueio com acesso

controlado onde se exige identificação e justificativas da presença do visitante.

Devidamente “enquadrado” nos requisitos, haverá uma “recepção aos visitantes”

em um moderno espaço no complexo de recepção. O passeio é feito em ônibus

especial. Do centro de visitantes até o mirante central, o clima por pouco faz

lembrar o filme “Jurassic Park”. Porém em vez do vislumbre dos gigantes do

passado natural, a expectativa é para ver de perto o colosso do futuro criado pelo

homem. Agregado ao passeio, nos arredores do trajeto é possível contemplar o

monumental canteiro de obras de um dos últimos projetos assinados por Oscar

Niemeyer em vida, o futuro campus da UNILA (Universidade Federal da

Integração Latino-Americana), ela mesma inserida no discurso político da

grandiosidade do Mercosul e do discurso da “cordialidade dos povos latino-

americanos”. Também aparece justaposto no caminho, como que de forma

proposital, a visão do Canal de Piracema de Itaipu, mostrando que a barragem

não representa um grande obstáculo à migração dos peixes no Rio Paraná. A

presença de famílias de capivara vivendo tranquilamente próximos ao canal

fortalece o conjunto de itens que formam o imaginário de uma terra utópica, onde

o homem, a energia, a ciência e a natureza vivem em perfeita harmonia. A vitrine

de um futuro ideal e onde os monstros finalmente repousam em paz.

8 Fonte: http://www.respostassustentaveis.com.br/blog/usina-de-itaipu-geracao-de-energia-e-

sustentabilidade. Acesso em 10/06/2014.

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No circuito turístico a expectativa cresce até chegar ao mirante, onde é

possível descer e registrar o momento através de fotos e filmes. Daí em diante, o

que se apresenta não vai muito além do que já se tenha visto através dos meios

de comunicação. Contudo, o sentimento que segue constante é sempre o de

assombro e admiração, alimentado por um aparato simbólico de imagens e

argumentos construídos em torno dela. A obra, porém, é fria e inerte, um

gigantesco amontoado de concreto e rochas. Uma bonita lápide para esconder

um imenso túmulo que consumiu grande parte da riqueza natural do lugar, seus

animais, seus nativos e seus sonhos. Uma lembrança certamente marcante que,

ao final do passeio, poderá ser levada para casa em forma de suvenir, adquirido

numa loja credenciada do programa Ñandeva de Itaipu, presente no Centro de

Recepção de Visitantes, local de início e fim da jornada. As grandes quedas,

aves, bichos e árvores remoram lembranças indígenas, e neste caso específico

demonstram mais a sua ausência física que sua presença. Neste circuito turístico

são presenciadas algumas peças artesanais que “lembram” o artesanato guarani;

porém, o sujeito indígena não adentra o recinto; não é um consumidor e não pode

desenvolver sua atividade de vendedor.

Este cenário artificial criado para o visitante lembra em muito as narrativas

escritas – que trazemos ao lado das observacionais e narradas pela tradição oral

– escritas ainda anteriormente à formação do alagado. Na fonte de informação

oficial de Itaipu, afirma-se que região que margeava o Rio Paraná em 1982, acima

da Hidrelétrica de Itaipu (na época em sua fase final), “era composta por áreas de

plantios e por fragmentos de Floresta Estacional Semidecidual. O clima

subtropical úmido e água abundante permitiam a existência de uma grande

variedade de espécies botânicas e uma rica fauna, composta de famílias de

mamíferos, aves, insetos e répteis, além de diversos tipos de peixes que

povoavam açudes e afluentes do Rio Paraná” 9.

Ao lado desta narrativa, é digno de nota o importante registro do Jornalista

Juvêncio Mazzarollo. Conhecido como o último preso político do Brasil,

Mazzarollo esteve constantemente voltado para questões sociais como a causa

indígena, pequenos proprietários de terras desapropriados com a construção de

9 (Fonte:http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/avesmigratorias/sul/vesSUL_hidre.pdf.

Acesso em 05/09/2013).

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Itaipu e a intervenção militar nas pequenas cidades. Pelas constantes críticas

tecidas ao sistema, foi chamado em 1982 pelo comando militar e processado pela

Lei de Segurança Nacional, permanecendo preso durante dois anos em

Curitiba10. A época em que o lago de Itaipu estava prestes a ser formado coincide

com o período em que Mazzarollo foi redator do jornal Nosso Tempo de Foz do

Iguaçu, e que traz relatos impressionantes daqueles dias, muito ressonantes com

a realidade atual. O recorte apresentado a seguir, sob o título de “Réquiem para

as Sete Quedas” relata o clima vivido às vésperas da inundação, e a pífia

“homenagem” que as autoridades da época formularam para amenizar a situação:

Itaipu é condenável sob inúmeros aspectos, mas há um e que é especialmente forte – o sepultamento das Sete Quedas de Guaíra, em virtude da formação do reservatório de água que acionará 18 possantes turbinas geradoras de eletricidade. Para muitos o argumento que condena a obra é a expulsão de 12 mil famílias (brasileiras e paraguaias) da terra inundada. Para outros a condenação se baseia nos 1.450 quilômetros quadrados de terra que ficarão inutilizados para a produção de alimentos. Outros mais não se conformam com a violação ecológica global representada pelo represamento do rio Paraná, com seus efeitos no clima, na flora e na fauna. Não faltam também os que refutam a obra pelo seu custo astronômico ou pela ameaça que representa à segurança das populações espalhadas à jusante do lago artificial. Efetivamente é fácil encontrar motivos para condenar Itaipu. Entre eles o desaparecimento da fantástica maravilha das Sete Quedas é particularmente forte. Sozinho, este motivo é suficiente para levar à uma conclusão definitiva sobre o erro representado pelo projeto da hidrelétrica. (...) Mas, afinal, de que adianta protestos? Para que servem críticas se é sabido que no final de 1982 o rio Paraná será represado e as Sete Quedas desaparecerão aos olhos de todos? Por mais lágrimas que e se derramem sobre um cadáver, nem assim ele volta à vida. Resta o quê então? Há ao menos uma lição a ser aprendida no enterro das Sete Quedas e um registro que nossa geração precisa fazer na história humana. É necessário deixar claro que houve muito inconformismo pela violência cometida e que não foram todos os homens desta época que aceitaram a agressão. Talvez seja possível também deixar claro que os inconformados não tiveram culpa, porque não foram consultados antes de ser decidido o empreendimento assassino. (...) Uma barragem de 176 metros de altura, um lago de 1.450 quilômetros quadrados... Quais efeitos colaterais terá esta gigantesca cirurgia, só no futuro saberemos com certeza. Por enquanto, a ferida aberta ainda sangra, provocando a dor, aguçando os sentidos de quem dela se

10

- Faleceu recentemente, aos 69 anos, vítima de um AVC, no dia 05 de junho de 2014, em Foz do Iguaçu.

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aproxima. Os agricultores já abandonaram suas terras, os últimos guaranis já despejados, e o peixe dourado, habitante comum daquelas águas, já não pode subir o rio Paraná para a desova que garante sua reprodução, e prepara-se para ceder seu lugar à piranha. (...) Diante do fim das Sete Quedas, das ilhas, da flora, da fauna, dos campos cultivados, dos agricultores pioneiros e dos habitantes indígenas, o Movimento Adeus Sete Quedas está propondo um ritual nacional, “um réquiem ao gigante crucificado. De um lavrador ao cacique, reunindo brasileiros de todos os cantos, onde cada um preste sua homenagem, a seu jeito, com sua criatividade” – conforme reza o projeto da coordenação de Curitiba. “Que o músico musique, o cantor cante, o fotógrafo fotografe, o cineasta filme, o ator encene, o poeta poete. Teremos então o Festival de Artes. Que o historiador rememore e registre, o ecólogo compreenda, o tecnólogo, o cientista social, o filósofo e o político reflitam – e teremos um Seminário sobre Guaíra, sua história, realidade e sina, e sobre as implicações e as lições deste marco no relacionamento entre o homem e seu universo”. (Jornal Nosso Tempo, 23/12/1981, pg. 20).

Por dentre os muitos argumentos, Mazarollo descreve uma imagem

mitológica que ficou registrada em muitas fontes escritas e no imaginário popular

deste período: o dilúvio.

ÚLTIMO AVISO DE ITAIPU - Saiam todos, que o dilúvio vem mesmo! Uma nota de alerta divulgada pela Itaipu Binacional deu início à contagem regressiva nos poucos passos que restam ser dados para que uma riquíssima e belíssima área de 1.350 quilômetros quadrados – 78 no Brasil e 570 no Paraguai – fique submersa num lago ameaçador: “Atenção, senhores desapropriados que ainda moram na área do reservatório. No final deste ano, as águas do rio Paraná vão começar a subir para formar o lago de Itaipu. Em duas semanas, uma vasta região será completamente coberta pelas águas.” [...] “Há pessoas que não sabem, ou não querem acreditar, que em breve tudo isso ficará debaixo d´água. [...] Para que não aconteçam problemas, desde março a Itaipu vem solicitando a todos os colonos que deixem a área do reservatório”. O tom da nota pretende ser apenas de informação e aconselhamento, mas esconde dento de si uma notável dose de ameaça, capaz mesmo de causar pânico, porque efetivamente ainda restam os que “não querem acreditar” que tão fantástica violência contra a natureza e o ser humano esteja prestes a consumar-se [...] das terras que serão encobertas e inutilizadas, os milhares de agricultores arrancados violentamente do solo que cultivavam produziam também milhões de unidades de energia, não medida em quilowatts, mas em alimentos – seguramente o tipo de energia mais essencial à vida e também o tipo de energia que mais está fazendo falta para brasileiros e paraguaios. [...] A área do reservatório de Itaipu, outrora povoada, plantada e produtiva, oferece hoje a imagem acabada de uma

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região em ruínas, uma vastíssima área que dá a impressão de ter sido preparada para o mais assombroso e tétrico filme de terror, onde antes verdejava pastagem os intermináveis trigais douravam planícies e colinas, onde brotavam flores e frutos em abundância, onde estavam os núcleos habitacionais das comunidades em sua vida intensa, hoje só os escombros, ervas-daninhas, podridão, deserto, silêncio, destroços, é terrível percorrer os 200 quilômetros de Foz do Iguaçu até Guairá. (...) Se alguém percorresse o Oeste do Paraná sem saber, nem mesmo a notícia da construção de Itaipu, ao chegar à área do futuro lago certamente se convenceria de que alguma praga ou alguma radiação atômica tornou a vida impossível ali. (Jornal Nosso Tempo, 15/06/1982, pg. 3).

Para ilustrar o mencionado acima segue uma imagem representativa do

momento vivenciado. Para salvar a casa das águas, valia qualquer coisa:

Figura 01 – Imagem representativa do momento vivenciado: “o dilúvio”.

Foto: João Luiz Thomazi Fonte:https://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/40-anos-itaipu-transformafoz-

em-um-dos-maiores-municipios-do-parana Acesso em 12/10/2014.

A narrativa do jornalista permite entrever muitas imagens imaginárias. Há

um evidente combate entre o bem o mal; há inocentes sendo devorados; há um

monstro que usa as águas como dilúvio. É o caos; e a nova nação não ressurge

após a vinda do sol e a separação das águas, tal como o texto bíblico. O narrador

assume o papel de Noé: alerta, esbraveja. É ignorado e insultado.

Outro periódico desta mesma época, a Revista Painel, traz o registro de

que em Guaíra e Foz do Iguaçu, além da diversidade natural, havia propriedades

rurais e comunidades urbanas bem estruturadas, como a de Alvorada do Iguaçu,

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que tiveram de ser desocupadas frente à iminente inundação provocada pela

formação do Lago de Itaipu.

Figura 02 – Registro da desolação do município de Alvorada do Iguaçu em função da formação do Lago de Itaipu (o “Grande Lago”).

Fonte: Revista Painel nº 54 – junho de 1978 –Tezza Editores –Foz do Iguaçu, PR.

Nesta outra fonte escrita, apela-se para uma imagem invertida da

grandiosidade, afirmando-a pela negação. Esta foi uma característica marcante

da literatura anti Itaipu: apontar as perdas, as desagregações, os prejuízos.

Mesmo nestas “negações” os grandes mitos estão presentes embora não na

forma de monstros grandiosos. O colunista ao mencionar “aqui existia” quer

lembrar um tempo de alvorecer, de estabilidade, de cosmogonia. Nela havia casa

e árvore, depois menciona terra, lavoura e por fim águas. Mas não águas

quaisquer: são águas invasoras do Rio Paraná. Na sua simplicidade e de

ressonância local de um saber que não pretende se impor politicamente nas

práticas oficiais, os titãs se alvoraçam, pois estão sendo interpelados frente a uma

ameaça da estabilidade social.

Água, terra, árvores dão forma ao dilúvio que se encontram no oeste do

Estado do Paraná. A Tríplice Fronteira é inundada pela tríade da mitologia. O

grandioso é, portanto, um discurso plurissignificativo que, interpelado, pode

justificar de várias formas o espaço territorial. O passado é, portanto projetado de

muitas formas como estruturas do presente. Ao poder Estatal neste momento,

havia um clima de admiração pelos resultados grandiosos da intervenção; aos de

baixo, que sofreram a fúria de Poseidon, a perplexidade, penúria e revolta.

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Figura 03 – O leito do Rio Paraná quase seco (próximo à Ponte da Amizade) no período do fechamento das comportas para a formação do Lago. Fonte: Acervo Fundação

Cultural de Foz do Iguaçu.

Figura 04 – Inundação dos campos acima da barragem. Foto: Valdenor Franzen.

Fonte: https://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/40-anos-itaipu-transforma-foz-em-um-dos-maiores-municipios-do-parana Acesso em 12/10/2014.

1.3. Mitos científicos – as escavações encontram seu significado

Passado o grande dilúvio contemplado com a festa e o choro, vem os

tempos de sedução por parte dos deuses. Em exposição permanente no

Ecomuseu de Itaipu estão artefatos líticos e cerâmicos, resgatados na região

onde se formou o reservatório, bem como uma cópia do P.A.I. (Projeto

Arqueológico Itaipu - julho de 1980 a junho de 1981) relatando que antes da

formação do lago foram localizados e cadastrados 71 indígenas, compondo 13

famílias, que formavam a Comunidade de Jacutinga – de índios do ramo “Avá” da

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Nação Guarani – em área de 30 hectares. Por conta da inundação iminente essas

famílias foram transferidas para a então recém-criada Reserva Indígena do Ocoy,

com uma área de 250 hectares, recebendo apoio técnico e financeiro da Itaipu.

Nessa mesma época, levantamentos arqueológicos comandados pelo professor

Igor Chmyz, da Universidade Federal do Paraná, registrou 210 sítios só na

margem brasileira do Rio Paraná, onde pesquisadores recolheram grande

quantidade de peças de madeira, pedra e cerâmicas confeccionadas por

populações que habitaram a região entre 1.000 a 8.000 anos passados.

As pesquisas relativas ao sexto ano do Projeto Arqueológico Itaipu,

foram desenvolvidas em quatro etapas, totalizando 86 dias. O relatório faz o

seguinte registro:

Constatou-se, no trecho das pesquisas, que houve uma intensificação das práticas agrícolas mecanizadas, as quais causaram danos ainda maiores aos vestígios arqueológicos. As lavouras de trigo e soja dificultaram, também, a procura dos sítios. Os trechos cobertos por pastos artificiais, agora bem mais numerosas, igualmente entravaram as pesquisas. No extremo norte da área já eram numerosas as propriedades abandonadas e cobertas por cerrada capoeira. Mesmo assim, os trabalhos possibilitaram a descoberta de 23 sítios arqueológicos. (P.A.I., 1981).

A posição dos cientistas assume a postura de defesa de Gaia. Coloca-se

uma ancestralidade que deseja demarcar um poder de Cronos além do calendário

contemporâneo. Ademais, assumem a postura de defesa da ancestralidade não

apenas atribuindo o direito ao controle do espaço, mas, adiantando que a paisagem

contemporânea, resultante da demanda cultural típica, é perniciosa, destrutiva.

As evidências coletadas pelos cientistas em vários sítios foram

transportadas para Curitiba e manipuladas nos laboratórios de arqueologia do

departamento de Psicologia e Antropologia, Setor de Ciências Humanas, Letras e

Artes da Universidade Federal do Paraná. As tarefas de limpeza, marcação,

análise e interpretação abrangeram 15.908 peças líticas e cerâmicas. Este ato de

“isolamento” das peças e seu contexto parece desejar afirmar que havia

necessidade de “isenção” na análise decifratória do saber que as relíquias

revelam; uma lógica do saber científico que satisfaz o intelectual e o Instituto.

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O imaginário da ciência arqueológica no Paraná circula por dentre o saber

historiográfico. Segundo o relatório, as pesquisas desenvolvidas no sexto ano

deste Projeto tiveram como palco os “espaços ocupados no início do século pelas

companhias de exploração de erva-mate de Júlio T. Allica e a Mate-Laranjeira,

nos atuais municípios de Marechal Cândido Rondon e Guaíra” (P.A.I., 1981). A

primeira no extremo Sul, pouco abaixo do Porto Mendes, e a segunda, do referido

Porto Mendes para o norte, em direção à cidade de Guaíra. Os registros atestam

que outrora eles foram palmilhados por indígenas e, a partir do século XVI, por

espanhóis, jesuítas e portugueses.

Ainda segundo o relatório, as edificações do Porto Mendes ainda existiam

durante as pesquisas, porém as de propriedade da Allica estavam demolidas e

modificadas, restando muitos indícios da sua engenhosidade. No decorrer dos

trabalhos, inclusive, junto aos sítios arqueológicos, foram encontrados sinais da

antiga estrada de ferro da Companhia Mate-Laranjeira.

Os detalhes descritos no relatório são minuciosos a ponto de permitir

recriar mentalmente a paisagem local existente naquela época:

As atividades agrícolas modernas que empregam mecanização em extensas áreas acarretaram na devastação quase que completa da exuberante mata pluvial subtropical que existia. Permaneceram alguns tufos daquela vegetação no topo das elevações ou ao longo dos cursos fluviais. Em grandes proporções do terreno, a mata fora substituída por pastos artificiais. A fauna nativa que conseguiu sobreviver nesse ambiente é insignificante. A topografia é caracterizada por suaves elevações, ladeadas por cursos fluviais pequenos. A margem esquerda do Rio Paraná é extremamente íngreme, dificultando o acesso ao seu curso. Mesmo acompanhando a margem dos afluentes, é com grande esforço que se consegue atingir suas águas. O desnível existente entre os dois extremos abordados no rio Paraná, ou seja, entre o Porto Mendes e a foz do rio Bandeiras, é de 25 metros, ocasionando fortes correntezas e rápidos, como os de Santa Maria. O rio ou arroio Guaçu é o único de seus afluentes que oferece condições de navegabilidade, mesmo assim com algumas corredeiras e saltos nas proximidades de sua foz. O terreno é constituído geralmente por terra de coloração marrom-avermelhada, resultante da decomposição do basalto do Trapp-Paraná. Afloramentos de basalto ou meláfiro também eram comuns, às vezes havia formação de várzeas ao longo ou nas nascentes dos cursos fluviais menores. (P.A.I., 1981).

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Neste relato é possível constatar que a primeira parte apela para um

discurso de sustentabilidade, na medida em que identifica a mecanização como

algo maldito. O relatório é do mesmo grupo de cientistas que isolaram os

fragmentos para decifrar seu enigma no interior daquela instituição. Neste trecho

do relatório, momentaneamente, colocam em suspenso os fragmentos da

ancestralidade e demonstram grande admiração pelos traços de Gaia e Poseidon.

Terra e água exerce sobre os pesquisadores um grande fascínio que parece

esquecer o motivo que os trouxe até ali. Os trabalhos de compilação da

Arqueologia do Paraná terá esta marca inconfundível: a de afirma que a

ancestralidade do Brasil é “aquática”. Este relatório não se opõe a este

imaginário. Pelo contrário, afirma que o indígena do Paraná, ao viver às margens

do rio de mesmo nome do Estado, tinha uma cultura essencialmente ligada ao

humor de Poseidon, isto é, ligada ao regime das águas. Dai, sendo os rios

anteriores à formação das fronteiras. Os indígenas são também, anteriores às

fronteiras, dai sua ancestralidade espacial.

O saber arqueológico constante no relatório daquele biênio (1980/81) aponta:

[...] vinte e três sítios, dos quais quatro pré-cerâmicos e dezenove cerâmicos, que foram registrados nas pesquisas. “Dos sítios pré-cerâmicos, três pertencem à fase Vinitu, ainda não filiada a tradição, e um à fase Pirajuí, da tradição Humaitá. Entre os sítios cerâmicos, todos relacionados à tradição Tupi-guarani, dezesseis correspondem à fase Itacorá, da sua subtradição Pintada, e dois da fase Ibarajé, de sua subtradição Corrugada”. (P.A.I., 1981).

De maneira geral, os sítios das fases pré-cerâmica tendiam a se localizar

mais internamente, ao longo dos pequenos afluentes. Os das fases cerâmicas

estavam mais próximos da margem do rio principal.

Em vários pontos da área pesquisada, foram encontrados indícios

arqueológicos, espaços que corresponde a movimentação de pequenos grupos

de caça ou coleta, representando tanto povos pré-ceramistas, como ceramistas.

As gravuras a seguir, descrevem parte deste sítio.

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Figura 05 - Catalogação de motivos de decoração do tipo cerâmico Itacorá Pintado, da fase Itacorá e formas reconstruídas e perfis de bordas de vasilhames recolhidos no sítio.

Fonte: Projeto Arqueológico Itaipu – 1980-81

A arqueologia como campo de saber, a partir de seus instrumentos teóricos

e práticos, criou este resultado para a ordem temporal. Observou, descreveu,

posicionou-se. No exercício das práticas políticas, no entanto, muitos jogos são

possíveis. De um modo geral, eles se aliam aos mitos fundadores.

1.4 A iconografia escrita – relatos historiográficos

A partir de referências de Eliade (1994), afirmamos anteriormente que uma

cosmogonia se reúne em torno de mitos escritos e oralizados. Mafessoli (2001)

afirma que o imaginário é a própria realidade, pois se confunde com ela. Pois

bem: ao lado destas imagens diluvianas pode-se colocar registros oriundos do

trabalho científico produzidos individualmente e ou por sociedades científicas a

cerca da cultura local.

Tanto quanto este da arqueologia foi o relato histórico da presença indígena

na região da tríplice fronteira, apontados nos escritos do sargento José Maria de

Brito, da expedição militar que em 1888 veio do Rio de Janeiro para Guarapuava,

para descobrir a foz do rio Iguaçu no rio Paraná. O sargento teria revivido os

tempos bandeirantes, porque, segundo qual, “reclama para o Brasil toda a região

que vai das Sete Quedas ou Guaíra até a Foz do Iguaçu, até então sob o domínio

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da Argentina e do Paraguai, e finalmente abrindo vias de comunicação com o

sertão oeste paranaense, onde ajudou a fundar colônias militares que tiveram por

sede Foz do Iguaçu, Xopin e Xanxerê”. Sendo ele mesmo uma autoridade cuja

outorga os símbolos nacionais reconheciam, parte em defesa do território praticado,

lugar onde devia repousar os efeitos da brasilidade.

Fazendo parte do destacamento do Tenente José Joaquim Firmino, José

Maria de Brito é reconhecido como um dos descobridores da foz do Rio Iguaçu

em 1889, numa árdua jornada através de uma picada de 60 léguas pelo sertão

desconhecido e, segundo suas palavras, “só habitado por animais selvagens,

feras bravias e bugres que nunca antes tiveram contato com civilizados”. Embora

seu relato não registre nenhum encontro sangrento com os locais – caso comum

nas narrativas românticas deste período – os “conquistados” são descritos como

temerosos; talvez fossem mesmo, ou, apenas caricaturados para valorizar os

feitos do sertanista relevando o fato de que o texto escrito era um pertencimento

da autoridade que o emitiu. Há de se considerar também que existe na base um

imaginário fálico do próprio militarismo e dos sentidos políticos do Estado Nação.

Estes signos de poder funcionam (Bourdieu, 1989) como símbolos no momento

da construção de suas narrativas.

A experiência de sua aproximação com os índios, José Maria de Brito

assim descreve:

Aldeados todos os índios, verificamos ter atingidos seu número a 63 almas: 7 homens, 23 mulheres e os demais menores de ambos os sexos. Estes índios passaram do Paraguai para o Brasil há 200 anos11. Cruzaram o rio nas Sete Quedas, único ponto em que o mesmo rio permitiu vadeá-los. Nas imediações das Cataratas, viviam muitos anos em doce paz de que vinham gozando e não mais tiveram paradeiro nem tranquilidade. (BRITO, 1938 in 2005)

Digno de nota é que os mesmos registros históricos dão conta de que o

próprio José Maria de Brito, nomeado chefe dos índios da região de Guarapuava

e Catanduvas, casou-se com uma índia, fez família, ocupou vários cargos púbicos

até que se rendeu à função de professor rural em Foz do Iguaçu, vindo a falecer

11

Considerando este fato na época descoberta (1889).

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em 1942, num leito da recém criada Santa Casa Monsenhor Guilherme.

Conquistou pela força e pela sedução.

O argumento sobre a presença dos índios Guarani na região de sete

Quedas de Guaíra é fortalecida pelos estudos do professor Erneldo

Schallenberger, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), que

relata da seguinte forma:

Já faz anos que estudo a questão das reduções jesuíticas nas fronteiras do Prata, e o meu foco são as Missões do Guairá, que é um território, uma província eclesiástica da Igreja Católica, criada em 1608. Mas a menção às terras ou aos sertões do Guairá é anterior, e deriva de um nome dado pelos espanhóis em virtude da existência de um cacique guarani chamado Guairacá. Porém há outra versão dos jesuítas, de quando eles vieram do Paraguai para o oeste do que é hoje o estado do Paraná, de que Guairá significa em guarani “salto intransponível”, e a expressão se referia então às cataratas das Sete Quedas, hoje submersas pelo lago de Itaipu. (SCHALLENBERGER in CARUSO, 2011)

Os estudos do autor lembra esta memória construída sobre a

ancestralidade. Registra também que a história contemporânea não tem como

hábito conservar estes traços, senão “afogá-los” numa tentativa de excluir tal

memória. Sabe-se o nome de rios, animais, plantas, peixes..., mas pouco se sabe

sobre sua etimologia que, em quase sua totalidade, tem sua origem no universo

cultural tupi-guarani.

Estes relatos que apelam para a imagem da cultura impregnada pelo

imaginário da água foi um dos grandes fatores que definiu o nome da unidade da

federação em homenagem a um rio. Por força deste imaginário, afirma-se que:

O “rio Paraná (do tupi 'como o mar') é o segundo maior rio sul-americano, que nasce na confluência de dois importantes rios brasileiros: o rio Grande e rio Paranaíba, entre os estados de Minas Gerais, São Paulo e Mato Grosso do Sul” (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Paran%C3%A1. Acesso em 10/06/2014).

Foi por força deste imaginário que, ainda em 1973, visando o

aproveitamento de seu potencial hídrico, técnicos percorreram o rio de barco em

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busca do ponto mais indicado para a construção da Itaipu Binacional. O local é

escolhido após a realização de estudos com o apoio de uma balsa. Uma pequena

ilha num trecho do rio, conhecido como Itaipu que, em tupi, quer dizer "a pedra

que canta". A ilha foi transformada em um grande lago. Gaia perdeu uma batalha

para Poseidon. Havia um argumento técnico do milagre brasileiro e das grandes

obras para justificar a ganha da batalha: o Estado cresce; a nação precisa de

energia, enquanto produto e enquanto libido.

Na prática política os deuses que tudo observavam tomaram partido.

Venceu a disputa os “interesses nacionais”; arquivou-se a memória da

ancestralidade. Mas eles, porém sobrevivem.

1.5 O Dilúvio e a Terra sem Males

A força do mito do dilúvio foi também uma destas imagens fortes que está

ao lado da grandiosidade construída na formação do alagado da Hidrelétrica de

Itaipu. Não seria diferente porque o dilúvio não somente apela para o imaginário

de afogamento e destruição, como mencionado anteriormente nos registros dos

órgãos de imprensa da época, mas também apela para a renovação,

transformação, passagem. Seu primeiro momento lembra Caronte12, o barqueiro

do Inferno. O dilúvio é mesmo uma perdição e sacrifício. Mas no segundo

momento, purificado, as águas infernais passam a ser “Água Boa”, curiosamente

o nome de um projeto de sustentabilidade criado pela Itaipu para “repovoar a

comunidade lindeira de boas maneiras com os recursos naturais”.

A água é considerada como purificadora na maioria das religiões, incluindo

o Hinduísmo, Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Xintoísmo e Wicca. O exemplo

do batismo nas igrejas cristãs é praticado com água, simbolizando o nascimento

de um novo ser, purificado com a remissão dos pecados. No Judaísmo e no

Islamismo é ministrado aos mortos um banho de água purificada, simbolizando a

passagem para a nova vida espiritual eterna. Ainda no Islã, os fiéis apenas podem

praticar as cinco orações diárias após a lavagem do corpo com água limpa, no

12

Na mitologia grega, Caronte é o barqueiro do Hades, que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos.

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ritual de ablução denominado abdesto (ou wudu). No Xintoísmo e na Wicca, a

água é usada em quase todos os rituais de limpeza dos praticantes.

Em outras tradições, deuses e deusas são mencionados como patronos

locais de nascentes, rios ou lagos, como no exemplo da mitologia grega e

romana, onde Peneus era o deus do rio. Na religião Wicca a água é tida como um

dos símbolos da Grande-Deusa, assim como o cálice e o caldeirão.

O termo dilúvio refere-se a uma grande quantidade de chuvas, capazes de

inundar e devastar toda uma região. Em sentido estrito, “Dilúvio”, segundo diversas

mitologias, foi uma terrível inundação que teria coberto todo o mundo conhecido, ou

ao menos terras ancestrais de determinados povos. Nas mais variadas culturas, em

todos os continentes, existiram tradições que aludem à ocorrência de um dilúvio

global com paralelismos espantosos entre si, tendo sido documentadas narrativas

de centenas deste fenômeno em contextos culturais diferentes.

Para a civilização ocidental, a história mais conhecida a respeito do dilúvio

é a da Arca de Noé, segundo a tradição judaico-cristã. O Dilúvio também é

descrito em fontes americanas, asiáticas, sumérias, assírias, armênias, egípcias e

persas, entre outras, de forma basicamente semelhante ao episódio bíblico,

porém em algumas civilizações se relata sobre inundações em vez de chuvas

torrenciais. A narrativa judaica é a mais conhecida, muito semelhante à de outras

culturas. Jeová, estando disposto a limpar a Terra de uma humanidade corrupta,

escolhe um homem bom aos seus olhos (Noé) para construir uma arca para

abrigar sua criação enquanto durasse a inundação. Após certo período, a água

baixa, a arca fica encalhada numa montanha, os animais repovoam o planeta e os

descendentes de tal homem geram todos os povos do mundo.

Entre os índios do Brasil também existem histórias sobre o ciclo de

destruição da Terra e sua posterior reconstrução pelos sobreviventes. As

pesquisas de Shaden (1974) apontam que na mitologia de todos os grupos

guaranis hoje existentes no Brasil ocorre um Incêndio Universal e um Dilúvio

Universal, que teriam destruído uma terra anterior. Provavelmente estas

representações fazem parte da antiga tradição mítica da tribo. A recompensa por

tamanho cataclismo é a nova terra a ser repovoada. Schaden assim o descreve:

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Parece indiscutível que o espírito místico dominante em todos os setores da vida Guarani pode ser compreendido em seus devidos termos somente quando considera o lugar da cataclismologia no conjunto das representações místicas. Os mitos do dilúvio, do incêndio Universal e de outros cataclismos do passado são histórias de função exemplar que se projetam no porvir como perigos, pairando assustador sobre o destino da humanidade. A terra em que vivemos está condena a destruição, em um futuro mais ou menos próximo, expectativa que não pode deixar de ser motivo de pânico para os que nela vivem. Daí a necessidade psíquica de procurar uma tábua de salvação, que o guarani veio encontrar no mito da “terra sem males”, hoje elemento genuíno da sua cultura. Assim o espírito guarani oscila entre o sentimento de pavor que lhe causa o inelutável cataclismo e a esperança de alcançar o paraíso antes que seja tarde. E é talvez por isso que a ideia de redenção se tenha tornado tão relevante na religião tribal. (SCHADEN, 1974).

Esta narrativa do autor tem singular importância na discussão deste tema.

As imagens fortes que demarcam a cultura contemporânea na tríplice fronteira,

segundo sua afirmação, estão presentes num imaginário indígena. Água, dilúvio,

árvores e fogo. Está presente o sentimento de sofrimento e purificação; a

destruição e a renovação. Nossas heranças cristãs parecem dialogar neste

sentido. Como acima destacamos, há muitos saberes na “floresta”. Em algum

momento, eles se encontram.

Há registros de sobrevivência de memórias entre os índios Kaingang. O

mito é contado pela seguinte narrativa:

Em tempos imemoráveis deu-se um dilúvio que cobriu a terra inteira habitada pelos antepassados dos índios Kaingang. Somente o cume da serra Krinjinjimbé (a Serra do Mar) sobressaía das águas. Os índios nadaram em direção à serra, cada um com um luminoso tição entre os dentes. Alguns não aguentaram e afundaram. Suas almas foram viver dentro das montanhas. Os Kaingang chegaram ao alto da serra com dificuldade. O espaço era pequeno e muitos subiram nas árvores por que não havia lugar para todos. Passaram alguns dias sem que as águas baixassem e sem que houvesse mais alimentos. Os índios já esperavam a morte quando ouviram o canto das saracuras. Elas voavam trazendo cestinhos com terra que derramavam sobre as águas. O trabalho era lento e elas chamaram outras aves para ajudá-las. Depois de algum tempo, as águas começaram a recuar e formou-se uma planície onde os Kaingang já podiam viver. As saracuras haviam começado a jogar a terra do lado onde nasce o sol. Por isso é que os rios daquela região nascem todos na costa do Brasil e correm para dentro do

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continente, desembocando no grande rio Paraná. Alguns homens que haviam subido nas árvores decidiram não descer mais, e transformaram-se em macacos. Outros índios que haviam subido nas palmeiras jerivás deixaram os pés pendendo dentro das águas. Os índios comiam as frutas da palmeira e os peixes vinham apanhar os caroços jogados na água, mas mordiam também os pés daqueles índios. É por isso que hoje o dedo mindinho de nosso pé é menor que os outros.

Fonte: http://www.iande.art.br/boletim022.htm. Acesso em 28/05/2014

Belíssima recriação do mito sagrado para lembrarmos de Mircea Eliade

(1994). Recriação com referências da existência grupal ao substituir Saracuras

pelos pombos brancos do texto bíblico. A árvore, neste caso, salva, protege da

morte os ameaçados pelo “barqueiro” que ceifa as vidas, transformando-as em

montanha. Novamente Gaia e Cronos travam uma batalha.

Na cultura guarani o Noé dos Tupis chama-se Tamandaré (ou Aré).

Tamandaré é “aquele que fundou povo”, repovoando a terra, e a sua etimologia

deriva, talvez, de tab-moi-inda-ré, como cita o historiador e antropólogo Câmara

Cascudo. Na tradição indígena, de Tamandaré descendem os Tupinambás e de

Aricute, seu irmão, os Tomimis:

Os dois irmãos, assim como conta a lenda, viviam numa aldeia: o primeiro era sábio, o segundo imprudente e impulsivo. Aricute pôs em perigo a aldeia inteira com o seu comportamento inconsiderado e ofensivo; então Tamandaré, batendo com o pé no chão, fez brotar um manancial de água, que inundou a terra, cobrindo todas as coisas. Tamandaré escapou ao dilúvio, com sua mulher, subindo para uma palmeira e nutrindo-se dos seus frutos; Aricute o imitou, trepando num jenipapeiro, junto com sua esposa, e alimentando-se com os frutos daquela planta, até que as águas si retiraram. Então, desceram das árvores, separaram-se e repovoaram a terra.

Fonte: http://www.caeiro-portit.it/tamandare.htm. Acesso em 15/10/2014

O dilúvio, num contexto indígena, é também o ápice do famoso romance

brasileiro “O Guarani”, que tornou conhecido seu autor, José de Alencar. A obra

foi desenvolvida, a princípio, no folhetim Correio Mercantil, de fevereiro a abril de

1857 e, logo após, publicado como livro no fim daquele ano.

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A obra conta a história de Peri e Cecília, respectivamente um índio

goitacá13 e a filha de um fidalgo português da época do Brasil recém-descoberto.

Peri é um índio com características heróicas que, por ter salvado Cecília da

morte, ganha a confiança da família dela. Porém a casa do pai da moça é atacada

por selvagens, pois o irmão de Cecília acidentalmente mata uma selvagem e Peri

faz de tudo para salvá-la, não só disso, mas também do terrível Loredano, um ex-

padre que cobiça a moça para si. No final, Peri foge com Cecília para salvá-la e

os dois ficam vivendo na mata, formando a futura raça brasileira.

No ápice da trama, Peri e Cecília rumam durante dias para um destino

desconhecido e são surpreendidos por uma forte tempestade, que se transforma

em dilúvio. Abrigados no topo de uma palmeira, Cecília espera a morte chegar,

mas Peri conta uma lenda indígena segundo a qual Tamandaré e sua esposa se

salvaram de um dilúvio abrigando-se na copa de uma palmeira desprendida da

terra e alimentando-se de seus frutos. Ao término da enchente, Tamandaré e

esposa descem e povoam a Terra.

As águas sobem, Cecília se desespera. Peri, com uma grande força,

arranca a palmeira e faz dela uma canoa para poderem continuar pelo rio,

deixando subentendido que a lenda de Tamandaré se repetiu com Peri e Cecília.

Assim é a descrição do trecho do dilúvio:

Eu e Cecí, sozinhos entre as árvores. Ao olhar para ela via em seus olhos o quanto estava apreensiva e com medo. Isso só aumentava a minha responsabilidade sobre a minha senhora. Os dias se passavam e íamos nos acostumando com a nova realidade. Era alta noite, quando fui surpreendido por um rumor surdo e abafado que quebrou o silêncio profundo da mata. Então ergui meus olhos em direção ao rio para tentar ver o que estava acontecendo. Cecí dormia tranquilamente ao meu lado, quando vi que o rio se elevava, que um grande dilúvio estava para acontecer e que precisávamos nos salvar. Tudo na mata era arrastado pela força da água. Foi quando peguei Cecília em meus braços e a levei para a copa da árvore e então ela acordou assustada. Ao ver o que estava acontecendo ao nosso redor, falou: - Podemos morrer, meu amigo! Disse ela com uma

13

Ainda que, contraditoriamente, o título do livro se refira à etnia dos guaranis, nada tem a ver com os goitacás.

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expressão sublime. Peri estremeceu; ainda nessa hora suprema seu espírito revoltava-se contra aquela ideia, e não podia conceber que a vida de sua senhora tivesse de perecer como a de um simples mortal. - Não! Exclamou ele. Tu não podes morrer. A menina sorriu docemente. - Olha! Disse ela com a sua voz maviosa, a água sobe, sobe... - Que importa! Peri vencerá a água, como venceu a todos os teus inimigos. Então eu me suspendi aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água e me agarrei aos troncos de uma palmeira. Então começou uma luta da terra contra mim, luta da força contra a imobilidade. Por fim, consegui arrancar a palmeira e salvar minha senhora. E no último instante nossos lábios se abriram como asas de uma ave em um beijo soltando vôo, e sumimos no horizonte. Fonte: http://www3.universia.com.br/conteudo/literatura/O_guarani_de_jose_de_alencar.pdf. Acesso em 28/05/2014

Há o registro de uma outra “lenda” atribuída à indígenas sobre um tal

Senhor Incestuoso. Embora tenha a conotação diretamente ética, menciona a

árvore e a água:

Papari desejava desposar a irmã de seu pai, o que era proibido pelas normas da terra. Mas Papari realizou seu desejo e a terra começou a tremer. Quem primeiro ouviu foi o pássaro kuchiu (um pássaro que até hoje canta quando vai chover). Ele disse: "Ei, vocês! Ouviram o que eu ouvi?” Os outros fizeram troça dele. Mas a terra continuava a tremer e kuchiu não parava de se lamentar: "Vocês ouvem o que eu ouço?". Mas como ninguém acreditava nele, ele se calou. Quando as águas chegaram, kuchiu foi o primeiro a voar. As outras aves também fugiram. Papari entrou dentro da correnteza e rezou aos céus: - Faça com que novamente surja uma pequena palmeira pindo azul, ó meu Pai primeiro! Seu Pai teve piedade e fez crescer a árvore no meio das águas. Papari agarrou-se a ela e se salvou. Seu Pai lhe disse: - Agora sim, meu filho Papari, você possui o saber das coisas. Seu coração é grande, e isso é bom! Se as coisas se arranjarem um dia, você, do alto, enviará palavras aos seus companheiros! E Papari passou a ser chamado Karai Jeupié, o senhor incestuoso.

Fonte: http://www.iande.art.br/boletim022.htm. Acesso em 28/05/2014

O Pai, cujo nome não se menciona neste texto, parece ser o senhor das

árvores e da água. Ele causa o dilúvio para punir os homens. Quando o

sofrimento e o arrependimento são explícitos, então o Pai cessa o dilúvio,

enviando uma árvore (palmeira) para salvar sua gente.

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Os dois únicos sobreviventes são os dois culpados, a mulher e seu

sobrinho, filho de seu irmão. E não somente Karai Jeupié escapa à cólera dos

deuses como também ganha para si mesmo o estatuto de divino, dado que se

torna um Karai14.

Este conto é citado pelo antropólogo Pierre Clastres (1990). Embora citado

aqui como afirmação de nossas análises, o autor também tece comentários

importantes sobre esta narrativa. Para executar a disjunção daquilo que foi

originalmente unificado era preciso uma grande transgressão de efeitos

irreversíveis: o incesto como conjunção do mesmo e do mesmo, o incesto como

uma dobra sobre si próprio do humano, como desafio e negação do divino. O

fluxo do desejo que toma conta de Karai Jeupié e a irmã de seu pai desencadeia

o dilúvio universal, e a primeira terra desaparece sob a água. Ele assim descreve:

O fim da primeira terra é a disjunção do humano e do divino, a ruptura de sua boa vizinhança, a explosão do Um, que, dividido, reparte-se desde então, de um lado e de outro, em uma fronteira além da qual permanecem os deuses. Imagem simbólica da separação, ao mesmo tempo obstáculo real do retorno em direção ao não-separado: a grande água, o mar, cujas margens opostas obrigam doravante de um lado a Terra Sem Mal, morada divina da vida eterna, e de outro a terra feia, morada terrestre demais dos que ainda se querem eleitos. (CLASTRES, 1990. Pg. 90).

No âmago de seu coração, o sentimento doloroso da perda toma o lugar da

serenidade refrescante de outrora. O imediatismo experimentado do bem-viver é

substituído pela nostalgia e pela esperança. O fim da primeira terra é a certidão

de nascimento da humanidade.

Nestas representações, os guaranis veem a terra sem males como terra

ideal, em que se realizam os desejos que nesse mundo não são satisfeitos.

14

Neste aspecto o autor aponta uma ambiguidade na violação do interdito maior: ela condena os homens a só serem homens, permite ao mesmo tempo que o culpado tome lugar junto aos deuses. O incesto é então, simultaneamente, a mediação na direção do humano e o caminho na direção do divino. Dizer que o incesto não se opõe ao divino é reconhecer que as regras são feitas para os homens e não para os deuses. Karai Jeupié comete incesto; por esse fato mesmo recusa a regra, quebra a condição humana, iguala-se aos deuses, que, ignorando a proibição, situam-se além da culpabilidade. A esse discurso mítico articula-se com precisão a palavra profética dos Karai de antigamente, quando conclamavam os índios para que abandonassem tudo, saindo em busca da Terra Sem Mal, para tornarem-se semelhantes aos deuses. Essa busca, efetuada na prática contínua do jejum e da dança, implicava também e, sobretudo o abandono radical da regra social por excelência, a que proíbe o incesto.

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Clastres (1978) aponta que, para os povos Tupi-Guarani, a sociedade – todas as

suas regras e necessidades: o trabalho, as leis, as obrigações – tem um peso

insuportável. Ela é demasiadamente maléfica. Alcançar a “Terra sem Mal” é a

possibilidade de superação dessa condição, a contraordem, a recusa da atividade

social. É o momento em que os Guaranis, despidos em vida de sua condição

humana, se transmutariam em homens-deuses, e se tornariam capazes de viver

sem se fadigar, eternamente jovens e felizes, numa terra esplêndida.

Pierre Clastres fala em “filosofia guarani”. Nesta pesquisa não se assume

esta perspectiva, mas se reconhece em seus escritos algumas descrições que

remetem às imagens formadoras que estamos descrevendo. Neste sentido ele

afirma que “na filosofia Tupi-Guarani, é possível atingir essa terra esplêndida sem

que seja necessário passar pela prova da morte”. A “Terra sem Mal” é um local a

ser buscado em vida; daí a necessidade de migrar, caminhar, guiado pelo maracá

do Caraí15. Migra-se para terras longínquas, florestas desconhecidas que

guardarão as relíquias – os saberes e o próprio corpo – de uma ameaça

semelhante ao dilúvio: a cultura europeia. Segundo sua narrativa, há dois

momentos na vida Guarani. Um é a vida em aldeia, onde são construídas casas,

cultivadas roças, mobilizadas as alianças de parentesco. O outro é o caminhar

direcionado pelo Caraí. Neste momento, come-se apenas o que se encontra

(planta-se pouco ou quase nada), dorme-se precariamente e se dança muito, em

coletividade. O anseio é perder o peso de ser homem e se fazer leve, para poder

alcançar a “Terra sem Mal”.

É como se pretendessem escapar do peso da sociedade, da coletividade

demasiadamente humana para, desta forma, conseguirem atingir o suposto lugar

da “terra prometida”, na condição de homens-deuses.

Ainda segundo Clastres (1978), insucessos na busca têm origem em

causas acidentais: desobediência às práticas rituais, insuficiência da devoção,

insuficiência do guia, ou mesmo a um erro quanto à localização específica da

“Terra sem Mal”. A validade da busca ou a possibilidade de atingir o tão almejado

lugar sem a mediação da morte é algo que não se coloca em questão.

15

Caraí em tupi-guarani significa literalmente:¨rio dos carás¨ (cará+i).

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Esta é uma memória registrada. Há sobre muitas versões porque a vida é

ambivalente. Vive-se socialmente na terra imperfeita, ao lado da Natureza, no

Tekoha 16, em busca do Ivy marãey (“Terra sem Mal”). A tríplice fronteira reúne

estes dois elementos. Isto fez, possivelmente, o moderno bandeirante José Maria

de Brito apelar para a imagem no momento de ver as Cataratas e os migrantes

guaranis paraguaios. Seus registros trazem também a narrativa do “Dilúvio

Universal” como prática de perpetuação da cultura entre os guaranis nos tempos

da fundação da colônia militar na região de Foz do Iguaçu:

É costume entre os indígenas, os velhos fazerem os moços conhecerem o passado desde os seus primórdios. Em obediência a este costume, os velhos abrem-lhes as folhas do livro verbal que receberam dos seus antepassados, livros que os moços por sua vez, abrem às gerações futuras. Desta maneira os índios atuais têm noção dos acontecimentos dos tempos imemoriais. [...] Em virtude da praxe estabelecida uma Guarani ou Cayuá, contava a história do Dilúvio Universal, tal qual aconteceu! Esta mesma índia, a quem ensinei a ler e escrever, era de uma inteligência prodigiosa. Aprendeu logo a falar nosso idioma; a cortar e costurar roupa tanto pra homem quanto para senhora, em máquina; desarmava e armava as mesmas; consertava-as se porventura necessitavam de conserto, etc. Trabalhava com perfeição em crochê, em bordado e em muitos outros confeccionados com fio. Era parteira muito feliz; só a sua presença aliviava a parturiente, tal a confiança que inspirava esta mulher! (BRITO, 1938 in 2005)

Possivelmente, devido aos superlativos, esta mulher “Cayuá ou Guarani”

seja sua futura esposa. Sem nos ater ao deslocamento da falocracia que isto

representa – pois não é o tema desta pesquisa – este personagem abre o “livro

verbal” para as futuras gerações; fala do dilúvio... na terra das água, o meio

facilita a imaginação.

16

O tekohá congrega um conceito cultural sincrético muito mais abrangente que a simples possessão de uma área de terra, significando o lugar, o meio e o modo de ser guarani. O conceito de terra para o povo indígena Guarani é intimamente relacionado à ideia de terra-sem-males. Esta concepção aponta a terra como um lugar no qual se vive o “bom viver”. Neste sentindo, Meliá (1989) chama a atenção que, para estes indígenas, viver não é sinônimo de produzir. Assim, a terra não é apenas um espaço de produção econômica, mas é um lugar no qual se vive o teko. Como nas palavras dos velhos guarani – sem tekohá (lugar para viver – terra), não há teko (jeito de ser). Ou seja, sem a materialidade da terra, não há possibilidade de construir-se enquanto ser cultural. (DEPRÁ, 2006. Pg. 25).

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1.6 Árvore e dilúvio na história contemporânea

No meio do caos, o mito renasce: a árvore. Presente desde “tempos

imemoriais”, ela participa das representações da colonização moderna do Paraná;

foi um símbolo forte que está inserido no imaginário do homem regional. Em

muitos museus do Estado – e em todos os museus regionais – estão guardados

fragmentos de memórias que remetem às imagens positivas ou a imagens

negativas com a árvore. Nos primeiros tempos, os pioneiros são representados

como homens fundadores de cidades. Eles posam ao lado de enormes troncos

como se fossem monstros vencidos. Essas imagens descrevem troncos

tombados cujos dominadores estão em pé, ou com o pé direito sobrepujando o

“animal”. Ao lado do corpo caído, o caminhão Ford ou uma junta de bois “bem

aparelhada”. Essas imagens só fizeram sentido quando havia discursos sobre o

sertão como ameaça e empecilho do desenvolvimento da economia nacional e

regional (SANTOS, 2011).

Nos museus estas fotos cumprem a papel turístico hoje atribuído a estes

lugares, onde rememorar é entrar em confusão com o passado. Nas escritas

iconográficas, no entanto, o status mais tenso, sério, metodológico, representa a

madeira fundida à própria existência de Gaia. A madeira é proposta como um ciclo,

um tempo contado entre sua existência e seu extermínio. De igual forma, mas com

outro viés, uma maneira de festejar a morte dos monstros finalmente sobrepujados.

Nos dias atuais, quando as consequências climáticas reforçam as ideias de

preservação ambiental, esse discurso foi reelaborado.

Figura 06 - O Ciclo da Madeira. O caminhão que transportava madeira para a Argentina em 1956. Acervo cedido por Sinclair Maria Venson.

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Figura 07 - Marumas e jangadas levavam rio abaixo as toras extraídas da mata nativa. Acervo de Ricardo Pfeifer.

Fonte: Exposição Memória das Cataratas – Parque Nacional do Iguaçu, Pr.

O simbolismo da árvore presente em muitas culturas transmite um sistema

cosmológico unificador que pretende homogeneizar o inconsciente coletivo. Ela

proporciona uma renovação não só da natureza, mas também da própria

humanidade, levando a equacionar a importância fundamental de uma

interpretação simbólica do Cosmos (PONTES, 1998). Os Museus regionais têm

esta finalidade como ícones deste imaginário.

Esse símbolo esteve quase sempre associado ao imaginário da ascensão. A

árvore traduz inevitavelmente esse anseio que a humanidade carrega, desde sempre,

de alcançar a realização espiritual renunciando à suas fraquezas, à suas

incapacidades e a seus defeitos. Possivelmente esse sentido de ascensão está ligado

a essas imagens de dominação e de controle da natureza, de exposição de sua fonte,

à terra, de mudança de sua natureza – transformando árvore em “madeira” útil.

Nessa constatação é importante citar, ao lado de Tuan (1983), o conceito

de arquétipo de Jung. Neste estudo não se fará um estudo de psicanálise (mesmo

quando citado por vezes a expressão “fálico”), mas lembrar Jung fará

compreender esse imaginário da árvore que, se de um lado está vinculada à

cultura local, por outro há uma imagem fundamental pairando por sobre esta

cultura e sempre à disposição para se materializar em sentimentos domésticos,

hodiernos. Conforme Fierz:

Na medida em que o homem tem a consciência sob seu comando, a maneira típica e instintiva de agir inclui a maneira típica de olhar para as coisas, o que Jung chamava de o arquétipo. Assim, quando uma pessoa sofre sem instinto ou sem compreender sua

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posição, a imagem arquetípica, a forma como o homem tipicamente imagina o mundo, vem em sua ajuda: ela torna possível a orientação e a ação instintiva. (FIERZ, 1997: p. 101).

Cabe comentar que os estudos sobre arquétipos foram alargados por

pesquisadores como Gaston Bachelard, Mircea Eliade, Gilbert Duran, Bourdieu,

dentre outros, e que abordaram a existência humana frente a universos

simbólicos, atribuindo a estes, certo dinamismo estruturante do psiquismo

humano. Para Jung, imagens fundadoras teriam esse importante papel de

presentificar as ações, remendando as razões de viver e essas imagens

fundamentais. A árvore, neste estudo, parece-nos ser um desses modelos

arquetípicos fundadores de ações.

Na operação “pega bicho”, ocorrida em detrimento da formação do Lago de

Itaipu, há uma remição direta à imagem fundadora da árvore como nutridora,

protetora da vida. Ela é um monstro que “liga” o céu e a terra. Ela ressurge em

meio ao dilúvio como descrito em várias narrativas. Há um dilúvio ocorrendo na

formação do reservatório. Esta descrição foi feita em muitas iconografias escritas.

Narrou-se que choveu durante muitos dias e “nem os técnicos da hidrelétrica

poderiam prever que o lago encheria tão rapidamente”. Não havia agentes

capazes e equipados para promover o resgate de animais e pessoas – a imagem

que vai para a imprensa, para os jornais e, portanto, para os arquivos, é a de uma

pequena árvore onde estão alojados macacos, cobras e aves; ao lado, a

inundação; não há mais terra; tudo coberto. O barco se aproxima e resgata. A

árvore “da vida” estava sendo afogada, mas ainda sólida, guarda as vidas e

depois “tomba” (submerge).

Esta operação conhecida como Mymba-Kuera foi um desses não raros

momentos da memória da formação do lago em que a fronteira ficou demarcada

pelo caos. Não somente pelo fato de sua emergência mais rápida do que o

previsto, mas, sobretudo, por demarcar um tempo antes não conhecido. Foi

também caótico. As diversas equipes técnicas não se haviam preparado para

efetuar o resgate de animais em tão poucos dias, dada a velocidade com que as

águas subiam hora a hora.

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Essa operação foi caracterizada pela divulgação de imagens

documentadas em fotos e vídeos dos biólogos de Itaipu percorrendo o lago com

seus barcos, resgatando diversos bichos que se refugiavam no topo das árvores

quase imersas pelo dilúvio.

Figura 08 - Operação Mymba Kuera no Lago de Itaipu Fonte: www.itaipu.gov.br

Outro fato digno de registro em relação à imigração destas estruturas de

pensamento está presente na produção das peças artesanais por estudiosos do

design. Uma das peças atribuídas à cultura guarani levará este simbólico nome

de “árvore da vida”. A peça é uma das obras de maior destaque do Programa

Ñandeva, de desenvolvimento do artesanato de referência cultural da região.

Programa este, que tem o apoio de Itaipu, sediado dentro do perímetro da usina.

A obra “Árvore da Vida” pretende representar este fenômeno consequente da

formação do Lago de Itaipu “na visão da Comunidade Guarani do Ocoy, do distrito

de Santa Rosa do Ocoí, em São Miguel do Iguaçu”. Como descrito anteriormente,

com o subir dessas águas, os animais buscaram abrigo no topo das árvores, na

tentativa de salvar suas vidas. Estas seriam então como “árvores da vida”, que

mais tarde se tornariam o artesanato que leva o mesmo nome. No último capítulo

deste estudo será discutido melhor este tema referente ao pertencimento do

saber. Neste momento, indica-se apenas a transmigração da imagem forte que

parece teimar em existir no imaginário da modernidade. O dilúvio e a árvore como

imagens de purificação/salvação manifestou-se novamente.

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Figura 09 - A Árvore da Vida Guarani - Ocoy Fonte: http://www.nandeva.org/pt-br/produtos?title=&field_categoria_value=All&page=3

Esta imagem traz a referência de pertencimento da produção. No sítio da

empresa referido na imagem pode ser lido “Árvore da Vida Guarani – Ocoy”.

Facilmente se percebe uma analogia entre esta representação e a foto da

“operação Pega Bicho”. Fruto do zelo ou da intencionalidade? Difícil apontar. Mas

o signo cultural da árvore e do mito salvanista está em ambas. O registro, no

entanto, leva à compreensão do ritual e do compartilhamento com outros atores

no momento da concepção e execução da peça de artesanato “Árvore da Vida”.

Como referência identitária da imagem, o sítio de internet inunda o leitor com a

seguinte informação:

Artesanato típico guarani, representando a formação do lago de Itaipu em árvore com vários animais. São esculturas confeccionadas em madeira leiteiro ou canjarana. A matéria-prima utilizada em sua fabricação foi obtida de forma ambientalmente correta, socialmente benéfica e economicamente viável. Embalagem: Produto não acompanha embalagem. Medidas do produto (LxCxA): 29x18x20 cm. A beleza do artesanato está naquele que aprecia e faz o seu melhor com as próprias mãos.

Fonte: http://www.nandeva.org/en/produto/arvore-da-vida-guarani-ocoy

Embora visível a estratégia mercadológica – que intenciona atingir o

consumidor e sua “consciência ecológica” (cuja representação não será aqui

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explorada), o texto menciona aspectos importantes das representações sociais.

Primeiramente menciona um sentido “histórico de fundação”: a imagem

construída remeteria à ancestralidade guarani. Em seguida, sua relação com a

formação do reservatório da usina hidrelétrica. Quanto à matéria-prima, faz-se

questão de evidenciar que a madeira utilizada não é carne de monstros

domesticados quando do período da formação. São imagens fortes de um

contradiscurso, ou seja, da negação daquilo que o lago representou: morte! Morte

de animais, morte de árvores, morte de terras agricultáveis, morte de lembranças.

O reservatório é um cemitério. E o texto quer expressar, ironicamente, a sua

antítese. Até mesmo os índios guaranis, ao perderem suas terras, foram

“assentados” em uma reserva cujo nome leva a nominação de um rio: Ocoy.

Corria o ano de 1982.

Não por mera coincidência os deuses descem novamente do Olimpo: Na

representação artística que foi nominada “árvore da vida” há muita semelhança

com a foto que registrou a operação “pega bicho”. A foto, no entanto, antecede o

artesanato. Esse fato nos remete a compreender o lugar e o momento do registro,

a intencionalidade do olhar do fotógrafo17. Há também uma terceira imagem

produzida a partir desta referência que é a iconografia do artesanato, o qual será

explorado posteriormente. Porém esta imagem não foi produzida por mera

intuição de seu autor. Existe já uma predisposição estrutural (Geertz, 1997) para

que as práticas fossem alojadas neste sentido. Ao mesmo tempo, as alterações

de paisagem causada pelo represamento do rio Paraná, portanto, foi um desses

grandes acontecimentos que alterou um “diálogo domesticado”, alterou a

“nomização do caos”, como diria Peter Berger (1973: p. 37). Antes havia um

controle do tempo: o trabalho, a colheita, o regime de chuvas, das geadas, enfim,

um ecossistema equilibrado. O grande acontecimento criou novamente o caos.

Em outros períodos e continentes, a árvore já foi mencionada em estudos

científicos, contos, lendas e memórias as mais diversas. No Egito Antigo, na Ásia,

17

Há uma discussão muito importante sobre a construção da imagem, mas não podemos apresentá-la neste momento por questão de delimitação do tema. Citam-se algumas referências para remeter o leitor a elas: SANTAELLA, L. e NOTH, W. 1999. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras; KOSSOY, Boris. 2000. Fotografia e história. São Paulo: Ática; DUBOIS, Philippe. 2001. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus. (Coleção Ofício de Arte e Forma).

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na Índia, na Mesopotâmia, no Antigo Testamento, na história das religiões, nos

ritos, nos símbolos, na arte e nas tradições populares do mundo todo, ela está

presente sob diversos títulos: Árvore Cósmica, Árvore da Vida, Árvore da

Imortalidade, Árvore Invertida, Árvore da Juventude Eterna, Árvore da Sabedoria,

dentre outras. Nessas diversas culturas, ela está vinculada a rituais que “ligam” o

sagrado e o profano; rituais que podem conduzir ao céu assim como às

profundezas do mundo subterrâneo; pode estar, enfim, ligada à vida e/ou à morte.

É justamente essa flexibilização de sentidos simbólicos que nos remete a

relacionar a árvore à fertilidade e aos papéis humanos femininos. Importante fator

de perpetuação, a árvore tem em comum com a mulher o ato sagrado da

fecundidade. Imbuída da função de gestação, a árvore liga-se ao instinto feminino

da maternidade. Ambas trazem, dentro de si, o fruto que assegura a existência.

De forma significativa, essa aproximação foi consolidada no cristianismo. Árvore,

terra e água, ficaram metaforicamente direcionadas ao corpo feminino. Germinar,

criar a vida, proteger, dar frutos este é o mito sagrado da fecundidade. No

paraíso bíblico, a humanidade foi gerada com a proteção da árvore.

Figura 10 - A árvore da vida. Livro de Mórmon. Fonte: httppt.wikipedia.com

A árvore, no imaginário cristão, era o centro do Jardim do Éden. Segundo

inscrições bíblicas do Gênesis, havia a ordem a Adão: "E ordenou o SENHOR

Deus ao homem, dizendo: ‘De toda a árvore do jardim comerás livremente. De

todas, menos uma, a do conhecimento do bem e do mal’" (Gen 2,16). Os textos

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relatam que essa árvore foi criada antes do casal fundador da humanidade;

muitos comentaristas afirmam que essa árvore não possuiria qualidades

intrinsecamente vitalizadoras nos seus frutos, mas seria um símbolo

representativo da garantia de vida eterna, da parte de Deus, para aqueles a quem

fosse permitido comer do fruto dela. Visto que Deus colocou essa árvore ali, crê-

se que o objetivo seria permitir a Adão que comesse do seu fruto, talvez após

ficar provada a sua fidelidade ao ponto que Deus julgasse satisfatório e suficiente.

O que realmente estava em jogo não era o fruto, mas a obediência de Adão, sua

fidelidade para com Deus. Quando Adão desobedeceu, foi-lhe cortada a

oportunidade de comer daquela árvore, impedindo a ele e à sua descendência de

alcançar a vida eterna.

Expulso do Éden foi impedido de retorno:

Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente, o Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado. E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida. GÊNESIS 3,22-24.

A expulsão, no entanto, originou o recurso de possibilidade de retorno. No

apocalipse, foi assim escrito (Apocalipse 2:7): “Quem tiver ouvidos, ouça o que o

Espírito diz às igrejas: Ao vencedor darei de comer (do fruto) da árvore da vida,

que se acha no paraíso de Deus”.

No Apocalipse, o texto se refere aos modos de religação dos dois mundos,

o sagrado e o profano. Ele menciona a possibilidade de retorno ao desfrute da

árvore da vida, a comunhão com Deus. Segundo Salgado Neto, alguns escritos

religiosos da antiga Caldeia afirmam que:

Próximo de Eridu havia um jardim em que havia misteriosa Árvore Sagrada, uma Árvore da Vida, plantada por divindades, cujas raízes eram profundas, ao passo que os ramos atingiam o céu, protegido por espíritos guardiões, e sem nenhum homem entrar. (SALGADO NETO, 2009: p. 67).

Também no Egito havia o culto à árvore. Segundo o mesmo autor,

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Os antigos egípcios também possuíam lendas similares, sendo que, numa delas, se apresentava a crença de que, depois do Faraó morrer, havia uma árvore da vida da qual teria de comer para se sustentar no domínio do seu pai, Rá. (idem: p. 69).

A utilização da madeira se funde com a história da humanidade. A imagem

do carpinteiro aponta para o símbolo do criador, aquele que é capaz de criar e

moldar através da madeira que, oriunda da árvore, tem uma ligação com o

arquétipo da mãe. Ele cria a partir da mãe, sendo, portanto, um símbolo do pai

gerador. Taré, pai de Abraão foi um bom marceneiro; Tvashtar, pai de Agni, um

ferreiro e carpinteiro; Hefesto, o pai de Hermes era carpinteiro, ferreiro e escultor;

José, pai de Cristo, carpinteiro; Ciniras, pai de Adônis, carpinteiro. Existem vários

mitos descrevendo os homens nascendo da árvore, e a presença de uma fenda já

é suficiente para relacioná-la à mãe, pois a fenda equivale ao útero.

Arquétipo (Jung) ou elemento da nominação (Berger), esta imagem da

árvore é central na simbologia cristã. E, sempre lembrado por Kreutz (1991) e

Azzi (1993), o cristianismo foi um elemento fundamental na formação cultural

brasileira e, de modo especial, do sul do Brasil onde os imigrantes foram

escolhidos em função destes elementos culturais ligados a religião cristã.

1.7 O dilúvio na tríplice fronteira

Registros oficiais apontam que as obras da usina de Itaipu se iniciam em

1974 com a chegada das primeiras máquinas ao futuro canteiro de obras, e

finalizam em 1982 com a formação do reservatório da barragem. Em 13 de

outubro de 1982, entre 5h45 e 5h53, o fechamento das 12 comportas do canal de

desvio do Rio Paraná iniciou a formação do Lago de Itaipu. A previsão era de que

a operação levasse 90 dias. Mas o mau humor do tempo (ira de Poseidon),

devido às chuvas fortes e à maior enchente ocorrida na região em 40 anos, as

correntezas do Rio Paraná levaram apenas 14 dias para encher o reservatório.

Nesse período, as águas subiram 100 metros e chegaram às comportas do

vertedouro às 10 horas do dia 27 de outubro. Este argumento demonstra o

embaraço tecnológico e, indiretamente culpa a imprevisibilidade como causadora

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do caos, pois a Itaipu não tinha solução técnica para tornar mais lento o

enchimento do reservatório.

Iniciada anteriormente ao episódio das chuvas torrenciais, a operação

Mymba Kuera (ou “pega bicho”), parte para uma ação mais efetiva correndo

contra o tempo. “Conseguiram salvar a vida de 36.450 animais que viviam na área

a ser inundada pelo lago”. Segundo relatos do jornalista Juvêncio Mazzarollo

(2003), ao final da operação, inexplicavelmente encerrada poucos dias após o

enchimento da represa, as equipes de captura, compostas por cerca de 200

homens em 17 lanchas e dois helicópteros, não puderam evitar que o grande lago

se transformasse num imenso cemitério:

A operação havia capturado cerca de 11.000 animais na margem brasileira e cerca de 10.000 na margem paraguaia – números aparentemente expressivos, mas que se reduzem a nada quando se considera que, para cada animal salvo, pelo menos outros 50 foram vitimados pelo dilúvio. Além disso, boa parte dos animais recolhidos acabou morrendo por incompetência ou falta de meios de salvamento. (MAZZAROLLO, 2003).

Figura 11 – Barco Quarai, utilizado na operação Mymba Kuera, em exposição permanente no Ecomuseu de Itaipu.

Fonte: http://revistafoz.com.br/?p=4783

Em 5 de novembro de 1982, com o reservatório já formado, os presidentes

do Brasil, João Figueiredo, e do Paraguai, Alfredo Stroessner, acionam o

mecanismo que levanta automaticamente as 14 comportas do vertedouro, liberam

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a água represada do Rio Paraná e, assim, inauguram oficialmente a então maior

hidrelétrica do mundo, após mais de 50 mil horas de trabalho.

A formação do reservatório interferiu na vida de milhares de pessoas que

habitavam as margens do Rio Paraná entre Foz do Iguaçu e Guaíra. Os

moradores de Foz viram o rio esvaziar a jusante da barragem, enquanto Guaíra

lamentou o alagamento das Sete Quedas.

Figura 12 – Imagem de Sete Quedas de Guaíra, PR.

Fonte: wordpress

Os saltos de Sete Quedas tinham o maior volume d’água para esse tipo de

quedas compiladas naturalmente no mundo. Estudiosos comparavam esse volume

com o das cataratas de Niágara – atualmente o maior volume do mundo -, com

cerca de 2.407 m³/s, sabendo-se que as cataratas de Guaíra tinham um volume de

13.300 m³/s e foram completamente submersas pelo reservatório da usina.

A perda foi significativa para todo o Estado do Paraná que tem na atividade

turística um forte atrativo e movimentação de recursos. Apesar de ser conhecido

como Sete Quedas, o local era composto por 19 cachoeiras com quedas de até

114 metros. O rugido das águas desses saltos era ouvido por até 20 km de

distância. O movimento de turistas e de moradores no município era significativo e

havia uma população, no entorno, de 60 mil habitantes (IBGE). Essa mesma

população, conforme o censo de 2013, foi reduzida a 32.190 pessoas.

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Além das Sete Quedas, ao longo da faixa de 170 quilômetros submersos,

8.519 propriedades urbanas e rurais foram alagadas na margem brasileira e seus

proprietários, indenizados.

Segundo Arnaldo Carlos Müller, engenheiro florestal que chefiou ações de

meio ambiente na parte brasileira de Itaipu, dentre as principais consequências do

impacto sobre o ecossistema com a criação do lago, a extinção das Sete Quedas

de Guaíra foi a principal:

Sobre esse impacto, havia muito pouco a fazer. Fizemos coletas de plantas da área rupestre das rochas de Sete Quedas, mas foi mais para registro. O salvamento foi tentado, mas com resultados pífios. Ao se formar o reservatório, descobriu-se que nas fendas das rochas havia centenas de morcegos muito pequenos, que escaparam da inundação e invadiram as casas de Guaíra, causando um pânico que durou três dias entre os moradores. Esse foi um impacto que não havíamos previsto.

(Fonte: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,falar-em-preservacao-era-poesia,966 2 14,0.htm>. Acesso em: 26 fev. 2014).

O relato do autor deixa evidente que, a partir de então, houve uma

intervenção nos ecossistemas locais e que a população regional iria sofrer com estas

alterações. Morcegos, cobras, aranhas, peixes, aves, ratos, enfim, animais de muitas

espécies foram desalojados de um ambiente até então, naturalmente acomodado.

Sobre o resgate de animais no reservatório, Müller acrescenta:

Nossa equipe tinha cinco ou seis pessoas. Procuramos analisar a área que seria desmatada e toda a parte histórica que seria inundada. O diretor dizia que não tinha dinheiro para grandes ações, então desenvolvemos um sistema de resgate de fauna chamado mymba-kuera ("pega-bicho", em guarani), além dos refúgios biológicos. Na medida em que o reservatório foi enchendo, fomos resgatando o máximo que conseguimos entre Sete Quedas de Guaíra e Itaipu. Tínhamos cinco bases, com cinco a sete barcos cada uma, e recolhíamos o que estava ao alcance (oficialmente, foram mais de 36 mil animais resgatados). Apenas de cobras venenosas eram cerca de 2,4 mil. Boa parte foi enviada de caminhão ao Instituto Butantã.

(Ibidem <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,falar-em-preservacao-era-poesia,966 21 4,0.htm>. Acesso em: 25 fev. 2014).

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Outro informe do jornal Nosso Tempo desta mesma época registra danos

ocorridos no município de Terra Roxa em consequência da formação do reservatório:

Prefeito culpa Itaipu pelos prejuízos em terra Roxa.

O prefeito José Texeira, de Terra Roxa do Oeste decretou estado de emergência no município, provocado pelas últimas chuvas. Texeira se diz convencido de que grande parte do problema enfrentado pela população com o recrudecimento da erosão devem ser atribuídos aos efeitos do Lago de Itaipu: “Não temos dúvidas quanto à responsabilidade da empresa. O lençol freático subiu e as águas ocuparam o vazio com grande rapidez”. Apontando os dados de recente relantamento que mandou efetuar nas áreas atingidas, Texeira informou que: “Pelo menos 100 casas na sede do município estão apresentando rachaduras. Algumas pessoas estão sendo obrigadas a desmanchar e reconstruir suas casas”.

(Fonte: Nosso Tempo, 19 a 26 de maio de 1983 – pg. 18)

Além do impacto socioambiental, alterações climáticas nas cercanias do

reservatório e, de modo geral, no lado oeste do Paraná, foram percebidas com o

passar dos anos. Os verões são quentes, com médias acima de 22ºC, e invernos

pouco intensos, com geadas raras. As chuvas se concentram no verão e o

inverno corresponde à estação seca. As chuvas que tinham um regime

previsional, parecem agora não obedecer a um regime exato. Chove muito em

alguns períodos e pouco em outros; esse fator é um dos geradores de prejuízos

para agricultura, pois alterou o tempo da germinação e o regime de chuvas,

provocando, inclusive, a imprevisibilidade, modificando não somente a paisagem,

mas, sobretudo, a relação humana com o meio natural de produção da

sobrevivência. A formação do reservatório e a alteração no regime de chuvas

representou riscos reais à saúde humana, como constataram os estudos de

Ueslei Teodoro et al.18

18

TEODORO, Ueslei et al. Culicídeos do lago de Itaipu, no rio Paraná, Sul do Brasil. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 29, nº 1, fev. 1995. De janeiro a dezembro de 1991 foram realizadas capturas mensais de culicídeos, no Município de Guaíra, Estado do Paraná (Brasil), na margem esquerda do lago de Itaipu, ao lado da via de acesso que conduzia aos Saltos das Sete Quedas, usando-se armadilha luminosa de Shannon, e isca humana em área urbanizada. Obtiveram-se informações sobre a fauna culicidiana, as espécies prevalentes, a variação sazonal, o horário de maior densidade e a afinidade dos mosquitos em relação ao hospedeiro humano. Foram identificadas 41 espécies de culicídeos dos gêneros Anopheles, Aedes, Aedomyia, Coquillettidia, Culex, Mansonia, Psorophora e Uranotaenia. Capturaram-se 21.280 mosquitos em armadilha de Shannon e 1.010 em isca humana. As espécies mais frequentes em armadilha de Shannon -

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É importante considerar também que a relação de agricultores com a terra

é uma relação de sentimento. Como afirmou Tuan (1983), o espaço precisa ser

um lugar da experiência: “[...] experienciar significa aprender, significa atuar sobre

o dado, e criar a partir dele” (TUAN, 1983, p. 10). É nesse exercício sobre o

mundo dado que todos os sentidos são postos em movimento (TUAN): o tato, a

visão, os cheiros, o trabalhar a terra, o sentir a chuva, o tomar a água. É com

esse experienciar com o dado que os mitos são lembrados, postos a dialogar, a

criar soluções ou, simplesmente, para elaborarem respostas.

Ao lado deste conceito de experienciar de Tuan, pode ser colocado Geertz

e as estruturas referenciais, as estruturas do imaginário de Durand para

compreender a existência do imaginário como imagens fortes, fundadoras e que

fazem parte de um campo de representação e, como expressão do pensamento,

se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da

realidade. Como disse Evelyne Patlagean, “o domínio do imaginário é constituído

pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas

constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas

autorizam. (...)” (Apud. PESAVENTO, S. J. 2009. p.16).

Até por imposição da natureza, o imaginário do dilúvio teima em persistir e

não se esgota com o tempo. Curiosamente, é recente um fato que muito faz

lembrar o ocorrido com os bichos na formação do lago de Itaipu. O inverno de

2014 foi marcado pela incidência de grande quantidade de chuvas no Paraná,

levando cerca de 130 cidades a decretaram situação de emergência. Por conta

deste fator, segundo noticiou a imprensa nesta ocasião, o agricultor Josias Camilo

da Graça, de 52 anos, ficou preso a uma árvore por dois dias durante a enchente

do Rio Piquiri em Francisco Alves, no oeste do estado. O homem estava na ilha

Tapejara na segunda-feira (9 de junho), quando foi surpreendido pela cheia, até

ser resgatado na tarde de terça-feira (10 de junho), depois de quase 30 horas.

Com medo de dormir e cair, o agricultor conta que se amarrou à arvore durante a

cheia. “Ficava lá vendo a água levar os dois ranchos. Era uma água pesada e

Coquillettidia shannoni, Mansonia humeralis, Anopheles triannulatus, Aedes scapularis e Anopheles albitarsis perfizeram 82,78% dos mosquitos capturados. Em isca humana, Aedes scapularís, Mansonia humeralis e Anopheles albitarsis somaram 91,21% dos insetos capturados.

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muito galho”, recorda. “De tardezinha chegou o resgate. Vi o barco, comecei a

gritar, mas demoraram para escutar porque estavam com o motor ligado. Quando

me viram e chegaram perto perguntaram se eu estava machucado, falei: ‘graças a

Deus que não. Ainda bem que vocês chegaram’.”

Figura 13 - Homem que ficou preso a uma árvore por dois dias durante a enchente do Rio Piquiri.

Fonte: http://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2014/06/nunca-vi-uma-coisa-daquelas-diz-homem-que-ficou-dois-dias-em-arvore.html. Acesso em 12/06/2014.

Estes registros são alguns dos fragmentos que permitem apontar a

presença fundamental da tríade terra, água e árvores. Pretendeu-se neste

capítulo demonstrar um cenário da tríplice fronteira demarcado pela formação do

lago artificial de Itaipu e do quanto a intervenção gerou a necessidade de

reorganização da cosmogonia do espaço territorial ocupado. Houve festejos e

choro diante do caos.

Após os festejos, deuses seduzem homens; algumas imagens foram

alocadas para reordenamento simbólico do mundo social. Como uma analogia

com os deuses, muitos mitos foram relembrados como signos existenciais, como

poder de intervenção. Foram “evocados” porque possuem raízes históricas mais

profundas na cultura brasileira, herdada pela tradição oral e escrita, e de

colonizadores e indígenas. São imagens fortes, ritualizadas de muitas formas

para que sejam lembradas especialmente nos momentos de risco social. São

momentos em que os deuses intervêm e colocam ordem no caos.

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2. OS GUARANIS ENTRE SÍMBOLOS E MITOS OU COMO O PASSADO

REVIVE NO PRESENTE

2.1 Uma breve historiografia indígena do Brasil

Pensadores folcloristas como Camara Cascudo contribuíram em muito para

disseminar determinados mitos e símbolos que afirmaram ter recolhido dentre a

memória popular. Mas podemos considerar também a grande contribuição de

viajantes estrangeiros de muitas nacionalidades que escreveram sobre os indígenas

brasileiros e latino-americanos, e que traduziram essas culturas em práticas escritas,

as mais diversas, e as disseminaram para as várias partes do mundo.

Por outro lado, não menos importante são as compilações produzidas por

ciências contemporâneas como a etnografia, arqueologia e antropologia enquanto

saberes descritivos de hábitos, tradições, língua, alimentos, etc. de cultura

indígena. Mas ao lado destas narrativas, é preciso colocar o papel de simbolização

que estas narrativas construíram a partir de um grupo cultural ágrafo.

Como disse Edinaldo Bezerra de Freitas, o “estudo da historiografia pode ser

um bom lugar para pensar as contradições de ideologias e imaginários de uma

sociedade”. Em uma consideração rápida pela historiografia indígena é possível

acompanhar a construção e, portanto, a disseminação de representações da

presença (e ausência) das populações indígenas na chamada “História do Brasil”.

Construtores de mitos, os historiadores, a exemplo dos arqueólogos construíram

alguns mitos escritos sobre essas populações, muitas vezes carregados de termos

valorativos que, de uma forma ou outra, contribuíram para construções, senão um

consenso, ao menos versões sobre este sujeito social.

As narrativas escritas relatam a trajetória das diversas sociedades

indígenas, pré-existentes, coletâneas atuais ao processo de sua formação

histórica. Quase sempre relegaram ao indígena um papel de figura retórica, como

elemento estratégico de fundamentação de um “projeto étnico” nacional, onde em

conjunto com “brancos” e “negros” amálgama uma certa concepção de “mito

fundador”, onde as três raças comporiam os elementos propulsores da chamada

“democracia racial brasileira”.

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A historiografia indigenistas criou muito mais omissões que vozes a estes

sujeitos históricos. A omissão da voz e da vez dos índios faz pensar sobre os

limites constitutivos do próprio fazer historiográfico, onde perfis ideológicos

implicam, nesse caso, em uma tomada de posição europeizante, elitista, que

tende a um compromisso com padrões de produção e reprodução sócio-cultural,

segundo posições ocidentais, mal classificados pela ciência evolucionista do

século XIX como “civilização”.

Precisamente no momento em que, em meados do século XIX, tentavam-se

alicerçar as bases de um projeto de Estado Nação para o Brasil, Antonio Adolfo

Varnhagen, considerado pela tradição “pai da História do Brasil”, decretava em

1854: “de tais povos na infância, não há história; há só etnografia” (VARNHAGEN,

1981, p. 30). Sua História Geral do Brasil é uma apologia à “Nobreza” do Império

brasileiro e ao governo da dinastia dos Bragança. Para os índios, ao que deixava

explícito, traçava um destino menor. É bom lembrar que é justamente no século

XIX, que se vai buscar no índio, um elemento de expressão romântica para

fomentar os princípios cívicos de sustentáculo para o Estado Nação brasileiro.

Trata-se do “Movimento Indianista”, onde pontificaram figuras como o romancista

José de Alencar e poetas como Gonçalves Dias. O Índio apropriado por esse

romantismo é, no entanto, um elemento puramente de literatura, estilizado,

simbólico, adaptado e a serviço do projeto colonizador. Nessa conjuntura, em

contrapartida às figuras folhetinescas de Ubirajara, Iracema e Peri estão distantes

das populações indígenas que de fato, naquele momento, continuavam a se

debater com o avanço das frentes econômicas, em processos de invasões,

perseguições e massacres sobre seus territórios (MOREIRA NETO, 1971).

Mas o século XIX teve seus intentos em busca de conhecimento sobre os

indígenas brasileiros. Nesse período, o grande impulso partiu dos trabalhos dos

viajantes e naturalistas, participantes de expedições científicas, patrocinadas

principalmente pelos governos europeus. Nesse período, porém, o espaço

concreto de produção de conhecimento mais sistemático sobre as comunidades

indígenas será o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB. Fundado sob

auspícios da monarquia e criado à semelhança dos similares franceses de então,

a instituição albergava nomes representativos da elite econômica e política do

império. Em 1839, o primeiro número de sua revista, traz no texto de sua

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apresentação, o uso da alegoria indígena para si: “Qual robusta indígena das

florestas brasileiras, se apresentava garrida e bem disposta para a rude missão

de trabalhar pelo engrandecimento de sua tribo” (RIHGB, 1839 I:177).

Em 1844 o Instituto Histórico e Geográfico promoveu um concurso de

redação sobre “Como escrever a História do Brasil”. O concurso declarava assim,

uma dupla tarefa da instituição: a explícita necessidade de produção de uma

historiografia para fundamentar o recente processo de independência política de

Portugal e, portanto, um discurso constitutivo de legitimação da nova nação. Por

outro lado, ficava visível a carência de caráter metodológico, do como produzir tal

conhecimento. O vencedor do pleito foi sintomaticamente um estrangeiro.

Tratava-se do naturalista alemão Karl Friedrich Phillipp Von Martius, o mesmo que

no início do século XIX estivera em viagem pelo Brasil e tornara-se sócio

correspondente daquela casa. A sua dissertação propõe uma didática

apresentação do Brasil, composta de elementos provenientes de três raças:

Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país que tanto promete, jamais deverá perder de vista quais os elementos que aí concorrerão para o desenvolvimento do homem. São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da mescla das reações mútuas e mudanças dessas três raças, formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular (MARTIUS, 1982, p. 87).

Apresenta então o naturalista uma descrição sumária de como observar a

“índole” característica a cada raça, constatando a existência dos “cruzamentos”, e

propõe uma ordenação, onde através de metáforas, o “sangue português” aparece

como “um poderoso rio” onde deveriam ser absolvidos os “confluentes” das “raças

índias e etiópicas”. Lembra que é na “classe baixa” que tem lugar esta “mescla” e

prevê a formação das “classes superiores”. Sugere assim mecanismos que

comunicarão “aquela atividade histórica para a qual Império do Brasil é chamado”

(MARTIUS, 1982, p. 88). Fica claro desta forma o projeto conservador de história,

embora ao mesmo tempo persista na importância de conhecer os elementos

distintivos das três raças. Na visão de Martius, os índios eram “ruínas de povos”,

isto é, uma raça em estado de decadência. Para tratar sobre estes, aconselha o

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estudo da vida e a história do desenvolvimento dos “aborígines”. Segundo ele os

caminhos para realizar tais estudos, estariam nos “documentos históricos”, assim

por ele classificados: língua, mitologia, “teogonia” (ou vestígios de religiões) e

“geogonia” (distribuição e uso do espaço físico), além dos por ele considerado

“vestígios” de “símbolos” e “tradições de direito”. Por fim, cita a importância de

também se considerar o estudo de investigações arqueológicas. Para a realização

dessa tarefa, o autor fala da necessidade de “um historiador filosófico e etnógrafo”.

Seu texto, embora resumido, é de grande valor para o entendimento de todo um

ideário em muito hegemônico, sobre a historiografia brasileira e neste caso

específico, sobre o olhar de uma história para os índios do Brasil.

Seguramente é esta a fonte onde se inspirou Varnhagen ao defender a

proposta de delimitação sobre sua História Geral do Brasil, havendo em parte até

uma guinada ainda mais conservadora neste historiador, principalmente no que

diz respeito à suas tomadas de posições anti-indígenas. Em sua obra os

indígenas ganham descrições extremamente detratoras, indo desde as

tradicionais acusações de indolentes, canibalismo, a falta de patriotismo e de

valores humanitários de coletividade.

A principal contribuição do IHGB para o conhecimento sobre os indígenas

brasileiros foi, sobretudo, com a publicação de textos, ensaios, coletâneas de

palavras indígenas e extratos de mitologias. Entre seus sócios, agregavam-se

posições controversas, onde se debatia sobre o papel dos indígenas naquele

momento. De um lado, Varnhagen chegou a proclamar a necessidade de guerra e

escravidão para as populações “selvagens e hostis” (VARNHAGEN, 1851 e

1867), por outro, os poetas românticos como Gonçalves de Magalhães e

Gonçalves Dias, portadores de visão preservacionista, muito embora

comungassem com a visão decadentista de Martius, antagonizavam e

denunciaram as posições belicistas de Varnhagen. De Gonçalves Dias, além do

valor literário de seus poemas-manifestos a favor da causa indígena (I Juca-

Pirama, Marabá, Canção do Tamoio), sabe-se que intercalou sua produção

artística com uma série de pesquisas etnográficas, tendo viajado e coletado

material em áreas indígenas, enquanto membro do Instituto, e funcionário público

(Amoroso e Sàez in: Silva e Grupioni, 1995 e Guimarães, 1988).

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É interessante acompanhar as notícias de um acirrado debate que na

época envolvia a temática indígena, expresso no IHGB e fora dele, nos jornais,

onde se instigavam argumentos sobre a identidade da nação brasileira. Para os

indígenas, entrava na ordem do dia uma definição quanto a seu papel, ora como

força de trabalho, ou na continuidade do papel da catequese como tarefa

civilizadora, ora ainda sobre suas funções enquanto papel militar de guardas das

fronteiras do Império Brasileiro (FREITAS, 1999).

Também membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o General

Couto de Magalhães, político de grande penetração no Segundo Império

Brasileiro (1840-1889), defendeu por essa época, um projeto de “indigenismo

pragmático”. Advogava a criação de “colônias militares” onde os índios

receberiam treinamento para servirem de intérpretes e agentes para outros

elementos indígenas, visando o aproveitamento eficaz de sua mão-de-obra. O

militar em suas publicações contribuiu com descrições de traços culturais de

grupos indígenas e é um dos pilares do discurso assimilacionista tão presente na

história do pensamento indigenista brasileiro (MAGALHÃES, 1935 e 1957).

É necessário ter em conta que o conjunto de ideias científicas em vigor no

século XIX é, em grande maioria, de cunho pessimista, negativo e preconceituoso

em relação aos indígenas. Segundo as teorias racistas e evolucionistas de então,

são eles vistos em estágio inferior ou de degradação. Prevalece a tese de

extinção eminente. São posições díspares, ora implicando em conceitos como de

poligenia e mutações biológicas (Agassiz), ora prendendo-se a visões de racismo

histórico (Gobineau), ou tendendo a aspectos os mais bizarros como a defesa da

perfectibilidade e da eugenia. Os ideários transitavam assim entre os extremos da

edenização à detração racial (Schwarcz, 1993).

Nesse momento é mesmo sugestivo tomarmos como referência o

pensamento de um importante filósofo europeu do século XIX, representante da

ilustração racionalista. Para Hegel, as sociedades indígenas não possuíam

qualquer importância para a humanidade enquanto história, pois não detinham

sequer existência objetiva. Segundo ele, somente através da sociedade de

Estado seria possível o desenvolvimento da única realidade possível: a razão.

Nesse propósito, em suas Lições Sobre a Filosofia da História, apresenta os

índios da América sob forma pejorativa e preconceituosa, descrevendo-os como

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espécie pré-humana, carente de todo conhecimento. Pelo seu evolucionismo, os

povos pré-históricos fatalmente sucumbiriam diante do “espírito” europeu, pois os

julgava física e espiritualmente impotentes (HEGEL, 1995, p.74).

No Brasil, todavia, mesmo se a história oficial de então impingisse ao

esquecimento os índios, delegando como sua protagonista uma elite “branca” e

“cristã”, temos exemplos historiográficos de exceção. Capistrano de Abreu,

funcionário da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, professor de história e

também membro do IHGB, desenvolveu, pela passagem do século, uma obra de

estimado valor no conhecimento da História Nacional. Com propensões críticas,

percebeu o preconceito contra os índios. Foi por ser contra esses valores que

esse pesquisador veio a realizar trabalhos de conteúdo etnográfico. Artigos e

livros sobre grupos indígenas, suas línguas e costumes, são parte de sua

produção intelectual. Não é por acaso que este seu papel de divulgador do

conhecimento sobre a cultura indígena foi e é, em parte até a atualidade, tão

esquecido, sendo ele à época criticado por “negligenciar” assuntos julgados mais

relevantes. Capistrano de Abreu pôs em ação sua lida historiográfica em um

período de transição política entre o fim da Monarquia e a instalação da República

no Brasil. Suas posições polemizaram, seja com o grupo conservador anterior

(contra Varnhagen), seja com eminências de sua contemporaneidade, como os

grandes pensadores da nacionalidade brasileira como Sílvio Romero,

germanicista que defendia então valores recrudescentes sobre a teoria das raças

superiores (Amoroso e Sãez in: Silva e Grupioni, 1995 e Araújo, 1988).

Para o período de instauração e solidificação do regime republicano

brasileiro a única menção importante no contexto do conhecimento sobre os

índios no Brasil é a campanha desenvolvida pelos membros do Apostolado

Positivista - a Igreja Positivista do Brasil, de inspiração nas ideias de Augusto

Comte. Durante os debates sobre a primeira Constituição da República, o

apostolado positivista, liderado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, apresentou

propostas específicas para o trato com a população indígena. Suas ideias, que

chegavam a ser extremamente inovadoras, propagavam a criação não de um,

mas dois Estados Confederados para o país, sendo um destes denominado

“Estados Americanos Brasileiros”, que deveria ser constituído pelas “hordas

fetichistas esparsas pelo território de toda a república” (Lemos e Mendes, 1934).

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Animado pela teoria comteana o Apostolado Positivista foi responsável por

debates que ganharam a via pública, pelos jornais e pela edição de uma série de

pequenos livretos onde divulgavam suas posições. Nesse caso, a defesa da

causa indígena justificava-se filosoficamente por serem considerados

representantes da etapa “fetichista” da humanidade, assim escalonada por fases

de evolução e por os considerarem em uma espécie de “infância” primeira e,

portanto, necessitando de “proteção fraternal”. Somente assim, pensavam, depois

de estimulados, atingiriam o “estado positivo” apontado como o estágio superior,

científico e atual, visto como o definitivo da humanidade.

O projeto de Constituição apresentado pelos positivistas, como era de se

esperar, não foi aprovado pelos republicanos. Porém, não deixou de ser esse um

primeiro passo em torno de um bem sucedido percurso de influência desse grupo

sobre os destinos das populações indígenas brasileiras. Nesse sentido, tal

processo culminou com o debate sobre a forma política de atenção do Estado

sobre essas comunidades. Advogava os positivistas a substituição do trabalho

catequético das missões e ordens religiosas por um serviço laico. É esta a origem

do Serviço de Proteção aos Índios - SPI, Órgão criado em 1910 e dirigido pelo

então Tenente-Coronel e depois Marechal do Exercito Brasileiro Cândido Mariano

Rondon, membro confesso da Igreja positivista e maior nome do indigenismo

oficial brasileiro.

Para a historiografia brasileira, os reflexos da presença indígena enquanto

temário continuou pífio. Somente a partir da década de trinta do Século XX alguns

trabalhos apontaram para uma tomada de posição, em um momento em que

processos políticos redirecionavam a trajetória do próprio Estado Nacional

brasileiro. Entre os historiadores, merece destaque a contribuição de Sérgio

Buarque de Holanda. Já em Raízes do Brasil, editado pela primeira vez em 1936

(HOLANDA, 1978), aparece nitidamente uma valorização dos indígenas na

formação do homem brasileiro no, por ele denominado, “homem cordial”,

padronizando a face patrimonialista dos valores. Esse livro, em conjunto

com Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre que teve primeira edição em

1933 (FREYRE, 1995), fundamentam as grandes explicações do “caráter”

brasileiro produzidos no século XX (Leite, 1969 e Mota, 1980).

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Buarque de Holanda deteve parte de sua obra aos estudos da expansão e

ocupação territorial brasileira. Nesse intento, procurou dar lugar de destaque à

presença indígena. Em Monções de 1945 (HOLANDA, 1976), o autor apresenta a

importância das frentes de comércio colonial, onde essas populações contavam,

seja como colaboradores, seja como conflitantes. Em Caminhos e Fronteiras de

1957 (HOLANDA, 1975), esta presença é ainda mais acentuada, dedicando

capítulos à identificação de “índios e mamelucos”, ou seja, aí incluindo as

populações miscigenadas, imputando-lhes como base do conhecimento e da

cultura formulada na colônia, e do seu papel como condutores das estradas de

percurso para “entradas e bandeiras”.

O tema indígena tem recorrência na sua obra, tendo destaque na Visão do

Paraíso, de 1959 (HOLANDA, 1985), e ainda em uma obra inacabada - O

Extremo Oeste, publicado em 1986 (HOLANDA, 1986), onde também ali está

destacada a nítida presença indígena na colonização, descrevendo de um lado a

“insana caça a peças indígenas” - a chamada “preação” pelos sertanistas, para

venda no mercado escravo - principalmente no século XVII, e por outro, alertando

para o importante papel exercido pela cultura indígena a favor da adaptação da

vida colonial nos “inóspitos” sertões.

Vale ainda um adendo, para o trabalho deste historiador como coordenador

da publicação da História Geral da Civilização Brasileira, dirigindo os tópicos

referentes à Época Colonial e do Império, onde se esmerou em convidar figuras de

destaque no conhecimento sobre história e cultura indígenas para preencher os

espaços dedicados a estes - valendo destacar nomes como do etnosociólogo

Florestan Fernandes e o antropólogo Egon Schaden. A obra teve início de

publicação nos anos de 1960-70 e delimitou a partir daí, para toda uma hegemonia

da historiografia paulista e uspiana (da Universidade de São Paulo - USP) sobre a

própria historiografia brasileira (Holanda, 1963 e 1967). Afora o caso desse

historiador, e de forma bem menos acentuada, os indígenas terão lugar em

algumas páginas no trabalho de outro grande historiador daquele momento, Caio

Prado Júnior, o primeiro a aplicar a teoria marxista ao estudo da História do

Brasil. Em sua Evolução Política do Brasil, de 1933 (PRADO Jr., 1975), e

principalmente em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942 (PRADO Jr.,

1979), onde esse pensador analisa o processo de formação colonial brasileiro. Em

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sua obra as populações indígenas são apresentadas como vítimas do conflito pela

ocupação territorial e pela contenda de utilização de sua mão-de-obra. Contudo,

essa citação não tem dimensões mais visíveis e fica clara, em certas passagens de

sua escrita, uma visão tipicamente evolucionista e determinista, em um parecer

nitidamente carregado de preconceitos. Diz ele abertamente:

A população indígena, em contato com os brancos, vai sendo progressivamente eliminada e repetindo mais uma vez um fato que sempre ocorreu em todos os lugares e em todos os tempos em que se verificou a presença, uma ao lado da outra, de raças de níveis culturais muito apartadas: a inferior e dominada desaparece. E não fosse o cruzamento, praticado em larga escala entre nós e que permitiu a perpetuação do sangue indígena, este estaria fortemente condenado à extinção total (PRADO Jr., 1979, p. 105-106).

Um terceiro historiador também desse período, Nelson Werneck Sodré, é

ainda mais restrito ao conhecimento das sociedades indígenas. A sua Formação

Histórica do Brasil, de 1962 (SODRÉ, 1976) é, nesse sentido, bastante tradicional.

Trata-se de um escritor de orientação marxista e em seu trabalho fica facilmente

perceptível o quanto a rigidez metodológica sacrifica suas ideias. Assim, o autor

parece estar sempre mais interessado em comprovar uma doutrina pré-

estabelecida do que analisar historicidades.

Ainda da década de quarenta, o trabalho solitário de Alexander Marchant,

um dos pioneiros na produção de trabalhos dos chamados “brasilianistas”, ou

seja, os intelectuais estrangeiros dedicados ao estudo de aspectos da história e

cultura brasileiras. Nesse caso, com a produção de uma obra que aponta para as

possibilidades de recortes históricos específicos, onde a temática indígena é

eleita como caminho para compreensões e interpretações de certos momentos.

Seu Do Escambo à Escravidão é de 1943 (MARCHANT, 1980), nele são focados

aspectos econômicos do usufruto da mão-de-obra indígena no Brasil quinhentista.

A primeira edição desse livro sendo publicada em inglês.

Nos anos 1950 David Hall Stauffer apresentou à Universidade do Texas

(Austin) a tese de doutoramento intitulada “The Origin and Establishment of Brazil's

Indian Service, 1889 - 1910”. A exemplo do trabalho de Marchant, este texto é

também um testemunho de pesquisa onde se aprofunda a temática da História sobre

as relações com as populações indígenas, nesse caso, das origens da política

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indigenista brasileira do século XX. Com copiosa utilização de fontes documentais, a

obra, no entanto, não foi traduzida para português, se não a parte correspondente

aos cinco primeiros capítulos, editados na Revista de História da Universidade de

São Paulo. (Stauffer, 1959, 1960,1961 Revista de História da Universidade de São

Paulo nº 37,42,43,44e 46). O trabalho de Stauffer demarca a questão da ocupação

territorial no Brasil em momento de expansão das fronteiras econômicas,

principalmente no período de transição entre os séculos XIX e XX, acompanhando

os debates acirrados em torno dos que se posicionaram, a favor e contra, o

extermínio dos índios que “impediam o progresso”. A obra acompanha a ação

governamental brasileira até apresentar a trajetória de Rondon e a criação do SPI.

Só mais recentemente, com o advento da chamada “Nova-História”, quando

o olhar do historiador se adequa a uma perspectiva ampla de questões, e mediante

o predomínio da chamada história cultural, a temática indígena parece ter sido

despertada. Ainda é pequeno o número de obras publicadas, e algumas teses e

dissertações acadêmicas aparecem timidamente. É possível apontar nesse caso, o

trabalho vigoroso de John Monteiro - Negros da Terra: Índios e Bandeirantes

nas Origens de São Paulo (MONTEIRO, 1994), que lança uma nova luz sobre os

estudos da relação entre mão-de-obra indígena e escravidão, fazendo repensar o

processo de formação da região bandeirante paulista. Destaca-se ainda o trabalho

de Ronaldo Vainfas - A Heresia dos Índios - Catolicismo e Rebeldia no Brasil

Colonial (VAINFAS, 1995). Nesse caso, trata-se de obra bastante instigante,

percorrendo a tendência mais atual da história cultural e apresentando o processo

de formação e destruição das “santidades” - manifestações religiosas praticadas

por índios, mamelucos e indianizados, e onde afere simbologias de sincretismos

culturais, no caso especialmente localizados já nos primeiros séculos da

colonização brasileira. Também recente, o livro Imagens da Colonização,

Representação do Índio de Caminha a Vieira, de Ronald Raminelli (RAMINELLI,

1996), igualmente envereda pelo campo das representações indígena, desta feita

buscando na iconografia e nos registros descritivos dos primeiros séculos da

colonização, o olhar de quem retratou sua presença e daí partindo para uma

análise da natureza, estereótipos e conflitos do período.

O processo historiográfico parece ter sido esse. Apontam-se lacunas e

limites, e deve ser percebido como diálogo e complemento à considerável

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produção da linha de Etno-História mais recentemente desenvolvida pelos

antropólogos. O desafio do conhecimento sobre culturas e histórias das

populações indígenas no Brasil tem o tamanho e a simbologia do próprio desafio

contemporâneo de sobrevivência dessas populações, diante da luta para

preservar seus espaços territoriais, a organização social e política, e suas

especificidades de identidade cultural e étnica. Tem-se o alento e a esperança de

se estar pouco a pouco alargando o espaço do conhecimento da História Indígena

Brasileira. Alguma mudança qualitativa nesse campo tem ocorrido. Muitos outros

passos deverão ainda ser dados.

Estas referências construídas sobre a indigenidade do Brasil foi tornada

memória pela imprensa nacional, os livros didáticos e pela mídia brasileira. Há

uma verdadeira memória compilada por esses meios, acessíveis como grandes

imagens chave das representações culturais indígenas no Brasil. Na tríplice

fronteira, lugar multicultural, não é diferente, e o consumo se faz, também, de

muitas formas. Percebe-se, no entanto, que a tríade se faz presente, seja de

forma narrada, seja na tradição oral.

2.2 O processo de ocupação da aldeia Ocoy

Por força dos mitos de fundação, para muitos historiadores, a colonização

do oeste do Paraná iniciou-se a partir do final do século XIX, com o fim da Guerra

do Paraguai (1865- 1870) e a descoberta do domínio das obras na exploração

ilegal da erva-mate. Nestes mitos, a tríade água, terra e árvores aparecem como

as marcas deléveis sobre as quais se edificam os símbolos que os representam.

Este tipo de colonização para estes historiadores está essencialmente

ligado à necessidade de ocupação territorial. Neste sentido, foi consenso a

criação de uma colônia militar no oeste do Paraná por seu valor estratégico de

área de fronteira. (SILVA; BULHÕES; PERIS, 2002, p.17). Em 1888, após

Thomaz José Coelho de Almeida ter assumido o Ministério da Guerra, organizou-

se uma comissão com objetivo de encontrar a foz do rio Iguaçu e fundar a colônia.

A comissão foi oficializada no Rio de Janeiro e enviada à Guarapuava, que se

tornou a sede por ser o centro urbano mais próximo da região. A comissão era

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composta por uma expedição militar, sob o comando do segundo tenente José

Joaquim Firmino:

No final do ano de 1888 os trabalhos tiveram início. A comitiva enfrentou muitas dificuldades no trajeto, pois precisavam abrir picada em meio a uma floresta densa. Puderam assim, constatar que a região estava depredada por paraguaios e argentinos devido à exploração da erva-mate. Naquele período a região contava com um total de 324 habitantes, sendo que apenas 9 eram brasileiros. (WACHOWICZ, 2001. p. 232).

Na narrativa do historiador o grande combate de conquistas foram

produzidas em meio a monstros verticais. Registra também a pífia presença de

brasileiros. Após este ano de 1888, o Ministério da Guerra recebeu um relatório

dessa comissão em que informava a situação da região. As medidas tomadas

foram a fundação da colônia e o seu povoamento. Por conseguinte, uma segunda

expedição foi formada no dia 13 de setembro de 1889, comandada pelo primeiro

tenente Antônio Batista da Costa Júnior. Essa expedição saiu de Guarapuava e

chegou a Foz do Iguaçu em 22 de novembro de 1889, na vigência do regime

republicano. (SILVA; BULHÕES; PERIS, 2002, p.20 e 22).

Na colônia foi estabelecido um centro agrícola e pastoril que, no entanto,

não teve êxito, pois as famílias de colonos que estavam nos lotes cedidos

acabaram substituindo a atividade agrícola pela extração da erva-mate nativa, já

que era considerada mais lucrativa. Esta, aliás, configurou-se como a principal

atividade econômica exercida na região, juntamente com a exploração da

madeira, que “assentou-se num modelo de exploração que ficou conhecido pelas

narrativas como obrages”. (SILVA; BULHÕES; PERIS, 2002, p. 23).

Os trabalhadores que eram empregados nessas obrages eram, na sua

maioria, oriundos do Paraguai, os chamados guaranis modernos ou mensus19,

que trabalhavam de forma braçal, e quando estes “manifestavam qualquer

descontentamento, passavam a ser tratados a chicote e a pistola”.

(WACHOWICZ, 2001, p. 235).

19

Os mensus, uma derivação do espanhol mensualista, eram a mão-de-obra quase absoluta empregada nos trabalhos de extração. Sua arregimentação era feita pela força e eles deviam obediência irrestrita aos obrajeros e seus capatazes, verdadeiros monarcas, com poder de vida e morte sobre os trabalhadores.

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De acordo com (COLODEL, 1988), no fim do século XIX havia ainda

vastíssimas áreas despovoadas no território paranaense, levando tanto o governo

Imperial, e posteriormente o governo republicano, a adotarem certa política de

concessão de terras, assim como a construção de ferrovias, principalmente entre

os anos de 1880 a 1900, com o intuito de integrar as regiões com o restante do

país. SILVA; BULHÕES; PERIS exemplificam:

No Estado do Paraná, no período conjuntural da Primeira República (1889- 1930), foram encetadas grandes concessões de terras . No oeste paranaense imensas fatias de terras foram adquiridas a preço vil e sobre elas assentaram-se legalmente as obrages. As principais foram concedidas a Waldemar Mate; Miguel Matte; à companhia São Paulo – Rio Grande; Petry; Meyer B. Azambuja; Domingos Barthe; Núnes y Gibajia; Companhia Maderas Alto Paraná; companhia Mate Laranjeira e a Julio Tomás Alica.(SILVA; BULHÕES; PERIS, 2002,p.30)

Essa forma de política apenas contribuiu para o fortalecimento das obrages

e, consequentemente, o aumento de lucros dos proprietários e comerciantes,

principalmente de Corrientes e Missiones:

Da exploração intensiva da erva–mate e madeira criou-se uma classe de proprietários e comerciantes poderosos (…). A presença brasileira nessa conjuntura era insignificante, apenas nominal, assim como eram as suas repartições públicas, fiscais e aduaneiras. (SILVA; BULHÕES; PERIS, 2002, p.32-33).

Aparentemente os esforços governamentais eram apenas paliativos, até

mesmo insignificantes para a existência de povoamentos e para o incentivo do

desenvolvimento na região.

Segundo pesquisas da geógrafa Graciela Maculan20, a forma como estava

sendo explorada, a região foi denunciada em escala nacional pelos rebeldes

militares em 1924-1925, quando rebeldes paulistas conhecidos como Coluna

Paulista, comandada por Isidoro Dias Lopes, e os rebeldes do Rio Grande do Sul,

20

Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/ideacao/article/view/9898. Acesso em 07/02/015.

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denominados de coluna Prestes, comandados por Luíz Carlos Prestes, resolvem

fugir em direção ao oeste do Paraná.

[...] ao mesmo tempo em que combateram as forças governamentais, os destacamentos rebeldes penetraram nas obrages e libertaram, na medida do possível, os mensus que por ali se encontram trabalhando em estado quase servil. (SILVA; BULHÕES; PERIS,2002,p.36)

Essa realidade do domínio das Obrages na região, somente seria

modificada a partir da revolução de 1930, quando Getúlio Vargas assume a

presidência da república e começa a ser discutida as formas de nacionalização. A

mais defendida seria a criação de um Território Federal.

Essas terras foram cedidas, desde 1850, a Francisco Antônio dos Santos

pelo juiz responsável pela comarca de Guarapuava e, em 1889, com um decreto

do Império sob o numero 10.343, houve o consentimento que as mesmas terras

passassem ao engenheiro João Teixeira Soares para a construção da estrada de

ferro que ligaria São Paulo à Rio Grande do Sul, a Companhia Estrada de Ferro

São Paulo – Rio Grande (CEFSPRG) passando pelo oeste do Paraná. E este,

mais tarde transferiu parte da concessão das terras à Companhia Brasileira de

Viação e Comércio (BRAVIACO), subsidiária da Brasil Railway Company.

(BORITZA, 1994 apud CRESTANI, 2011, p.02)

Como esse projeto não foi executado pela empresa, o interventor Mário

Tourinho, em 1931, baixou o decreto 300, em que anulava os domínios da Brasil

Railway Company, fazendo com que estas terras voltassem ao domínio do Estado

do Paraná. Entretanto o Governo Federal, para criar o Território do Iguaçu,

baixou, em 1940, os decretos 2.073 e 2.436, e incorporou à União todos os bens

da Brasil Railway Company, iniciando uma longa disputa judiciária entre Paraná e

a União. (PALUDO, S/D, p.33 apud BORITZA, 1994, p.5).

Em 1937 Getúlio Vargas instalou o Estado Novo. É criado o artigo 165 na

constituição federal, a qual consistia na formação de uma faixa de fronteira de 150

km de largura. Nessa faixa os Governos Estaduais eram proibidos de fazer

projetos colonizadores sem autorização do Governo Federal:

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O oeste do Paraná estava dentro do perímetro da faixa de fronteira recém- criada (...) criou-se oficialmente o Território Federal do Iguaçu, em 13 de setembro de 1943. O Território Federal do Iguaçu permaneceria em vigência até que foi extinto por uma emenda na constituição de 1946. (SILVA; BULHÕES; PERIS, 2002, p.41).

Na década de 1950 iniciam-se inúmeros conflitos agrários no oeste do

Paraná, entre posseiros e grileiros, pois segundo as informações divulgadas pelo

Livro Branco da Grilagem de Terras (1999, p.17), elaborado pelo Instituto Nacional

de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a forma de colonização das áreas feita

pelo governo do estado promoveu a expedição de títulos sem levar em consideração

se estas estavam ou não ocupadas. E eram. Por pequenos posseiros, que foram

expulsos por jagunços ou pela polícia estadual. O próprio poder judiciário contribuiu

para essa violência ao permitir a existência de títulos falsos.

Isso ocorreu devido à superposição de títulos concedidos pelo estado do

Paraná, devido ao cancelamento destes, que haviam sido entregues a empresas

de construção de ferrovias e de colonização em 1930. As terras deveriam retornar

ao domínio da União, por ser uma área de faixa de Fronteira, mas, “(...) o estado

do Paraná reclamou o domínio sobre as mesmas e passou a expedir novos títulos

de propriedade a empresas de colonização e a inúmeros outros beneficiários”.

(MYSKIW, 2002, p.146)

A partir de 1970 tem início a desapropriação de terrenos no oeste do

Paraná pelo INCRA, devido às irregularidades entre os imóveis: “Colônia "K",

Colônia Cielito, Gleba Cinco Mil, Gleba Pindorama, Guairaca, Rio Azul/Piquerobi

e Ocoí”.

Entre Foz do Iguaçu e São Miguel do Iguaçu foram desapropriados nessa

época 12.500 hectares, pertencentes ao fazendeiro Santos Guglielmi, dono da

fazenda Ocoí.

A desapropriação foi publicada no diário oficial da União no dia 22 de

outubro de 1971 pelo presidente da República Emílio G. Médici, a partir do

decreto número 69.411, a qual no artigo primeiro, letra b, decretava que a antiga

gleba n°.84, de aproximadamente 12.500 hectares, cadastrada sob n°.

52.0901550001/003 e 52.09.098.50297, localizada nos Município de Foz do

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Iguaçu e São Miguel do Iguaçu. Essa gleba pertencia a H. Gallo, através de título

expedido em 16 de maio de 1922, registrado na Seção de Arquivo da Secretaria

de Estado dos Negócios da Fazenda, Agricultura e Obras públicas em Curitiba,

transcrita posteriormente sob o número 2.615, de 28 de abril de 1952, e mais

tarde sob n°. 2.768, fls.136, do Livro 3-C, do Registro de Imóveis de Foz do

Iguaçu em nome de Santos Guglielmi e Balneário Conventos Ltda, Comércio

Indústria Agrícola. (Portal da Câmara dos Deputados- Diário Oficial da União -

Seção 1 - 25/10/1971, Página 8626, Publicação Original).

Posteriormente com a desapropriação da fazenda Ocoí, segundo Seixas e

Brenneisen (2001, p.12) ocorreu a implantação do Projeto Integrado de

Colonização, o PIC- Ocoí, onde foram reassentadas 457 famílias de agricultores

que haviam sido expropriadas em 1972 do Parque Nacional do Iguaçu. Essa

área foi preparada para receber essas famílias com infraestrutura básica, como o

arruamento e a construção de escola e igreja. Mas, com a construção da Usina

Hidrelétrica de Itaipu em 1982, esta área foi reduzida para 4.500 hectares, se

restringindo ao município de São Miguel do Iguaçu. (VENCATO, 2009, p. 173)

Neste local havia a aldeia guarani Oco`y-Jacutinga. As terras dessa aldeia

foram invadidas em dois momentos, em 1973 e 1982. Em 1973 parte das terras

dessa aldeia foram invadidas por representantes do INCRA, armados, os quais

expulsaram os guaranis, sendo no seu lugar, ali reassentados colonos que

haviam sido obrigados a se retirarem também da área do Parque Nacional do

Iguaçu. A parte restante do território, onde os guaranis ficaram reduzidos, entre o

rio Paraná e os colonos que ocuparam suas terras, foi mais tarde coberta pelas

águas do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu em 1982. Assim, novamente

os responsáveis pela invasão foram às instituições do Governo Federal,

obviamente pelos interesses do mesmo Parque e Hidrelétrica.

Segundo pesquisas de Maria Lucia Brant de Carvalho (2013)21, a porção

territorial em que os Avá-Guarani do Oco`y, juntamente com outras populações da

etnia guarani do sub-grupo Ñandeva, consideram seu território tradicional,

imemorialmente ocupado, compreende a Bacia do Paraná na região da Tríplice

21

Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-17022014-105114/pt-br.php. Acesso em 07/02/2015.

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Fronteira localizada entre o Brasil, Paraguai e Argentina. Esta área de ocupação

tradicional Guarani-ñandeva, é formada por floresta tropical úmida e compreende

o sudoeste do Paraguai, até o rio Aguary-Guazu, sobre a Serra do Maracaju, que

delimita a fronteira territorial entre Mbyá e os Ñandeva; continua para o sul,

cruzando o rio Jejuí, seguindo até o rio Acaray, no Paraguai; contorna pelo

nordeste da Argentina, em toda a província de Missiones (predominantemente

mbyá, com alguma presença Ñandeva); e no Brasil, já em domínio de Mata

Atlântica, ocupam grande parte do sudeste, centroeste e noroeste paranaense, ou

seja, do rio Iguaçu, prolongando-se por ele, em direção leste, até as cabeceiras

do rio Piquiri, do ivaí, do Tibagi e do Paranapanema, na fronteira com São Paulo;

por fim, ocupam ainda, o sul do Mato Grosso do Sul, que compreende a fronteira

até o rio Iguatemi, sobre a Serra do Maracaju.

O conjunto da população Guarani-Ñandeva no Brasil, também denominada

de Guarani-Txiripá no Paraguai, tem como território de imemorial ocupação22,

esta região. Ela é denominada tradicionalmente pelos guaranis como sendo parte

do Tekoa Guassu, que traduzido expressa “conjunto grande de aldeias ou de

terras guarani, ou ainda território grande guarani”.

As narrativas afirmam que as populações das aldeias pertencentes ao

Tekoa Guassu, localizadas nesses três países, estabelecem amiúde relações de

reciprocidade desde tempos imemoriais. Segundo dados arqueológicos trazidos

ao lado destas narrativas, considerados “mais antigos encontrados nesta região”

afirmam que os guaranis habitam este território, desde pelo menos o século I

Depois de Cristo (D.C.) (Chmyz, 2002). Esta região pode-se afirmar que constitui

o “berço” da cultura guarani, a partir das subdivisões que conhecemos hoje,

Kayowá, Ñandeva e Mbyá.

Sobre a noção de territoriedade dos povos guaranis é possível perceber a

estreita conexão desta questão com seus mitos ancestrais:

22

Deve-se esclarecer essa série de conceitos correlatos, que são citados de forma recorrente no âmbito indigenista, e que são fundamentais para compreender o direito indígena ao território, são eles: “Posse Imemorial”, “Ocupação Primitiva”, “Direito Consuetudinário” e “Indigenato”. Todos eles expressão a antiguidade dos índios em termos históricos no território, mais especificamente sua anterioridade perante a presença do não índio. Daí o seu direito sobre as terras ser, originário, primitivo, imemorial, histórico e ainda, legítimo por si. (CARVALHO, 2013).

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A busca de abertura de novas aldeias pelos guaranis têm-se verificado mais intensa em função de duas taxas invertidas: a histórica perda de terras e o alto crescimento demográfico do agrupamento. Assim a luta pela sobrevivência faz com que procurem outras terras, ressurgindo assim, dialeticamente, novas aldeias guarani. A busca dessa população por terras livres da ingerência da sociedade envolvente, muito embora não seja seu primordial determinante de origem, está contida no cerne do milenar mito guarani denominado “Terra Sem Males”. Apesar da restrição territorial em cada local considerado “Terra indígena”, os guaranis mantêm forte relação simbólica e prática com todas as parcelas do território ocupado ao longo de séculos, sem perder de vista o macroterritório guarani original, mantendo tradicional circulação de famílias entre as diversas aldeias e trilhas existentes em seu interior. Os guaranis mantêm assim sua presença, mesmo que em espaços diminutos, em praticamente toda a extensão de seu território tradicional. (CARVALHO, 2013).

O grupo guarani focado nesta pesquisa, pertence ao subgrupo Ñandeva,

vindos da extinta aldeia do Oco`y-Jacutinga, localidade que tradicionalmente

ocupavam no extremo oeste paranaense, entre os rios Paraná, Ocoí e córrego

Jacutinga. Portanto, essa é uma das várias aldeias integrantes do Tekoa Guassu,

aldeias as quais se localizavam em passado recente até os anos 80 do século

XX, em suas cercanias.

Após as terras dessa aldeia terem sido inundadas pelo reservatório da

Usina Hidrelétrica de Itaipu em 1982, alguns grupos familiares foram

compulsoriamente reterritorializados para a denominada Terra Indígena Avá-

Guarani do Oco`y, às margens do extinto córrego Santa Clara, também inundada

pelo Lago de Itaipu. O Oco`y está estabelecido em zona rural, na chamada Vila

Santa Rosa do Ocoí, município de São Miguel do Iguaçu, localizado a cerca de 40

km de Foz do Iguaçu, Pr. Nesta aldeia nota-se a presença também de guaranis

do sub-grupo Mbyá. Os ñandeva do Oco`y autodenominam-se Avá-guarani, que

traduzido expressa Homens-Guarani.

Informações contidas no site da Itaipu relatam a adoção de uma estratégia

de tratamento desta questão territorial indígena. Informam que em 1982, antes da

formação do lago de Itaipu, foram localizadas e cadastradas 13 famílias indígenas

compostas por 71 pessoas, que formavam a Comunidade de Jacutinga – de

índios do ramo “Avá” da Nação Guarani – em área de 30 hectares. Essas famílias

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foram transferidas para a então recém criada Reserva Indígena do Ocoy, com

uma área de 250 hectares, recebendo apoio técnico e financeiro da Itaipu23.

Em função do crescimento vegetativo e migratório da população do Ocoy, a

área tornou-se insuficiente para a sobrevivência da comunidade. Em 1997,

quando o número de famílias havia aumentado para 74, a Itaipu adquiriu 1.744

hectares no município de Diamante do Oeste e para lá transferiu 32 famílias.

Formou-se assim a aldeia Tekohá Añetete, considerada por laudos antropológicos

e pelos próprios índios como ideal para o assentamento. A Reserva do Ocoy

permaneceu com 42 famílias, contingente que lhe conferia uma situação bastante

tranquila e sustentável.

Por solicitação da Funai, a Itaipu, juntamente com o município de Diamante

do Oeste, implementou nova ação de apoio técnico e financeiro visando à

consolidação do assentamento.

Esta consolidação, no entanto, perde seu status devido a um fenômeno

que segundo estudos da antropologia é típica da cultura indígena: as migrações.

As narrativas afirmam que fazem parte da cultura Avá-Guarani. Esses índios

costumam migrar frequentemente, mas sempre retornam aos locais de origem. A

base cultural se estabelece no conceito de “famílias nucleares”, unidades de

produção e consumo, evoluindo para “famílias extensas”. A distribuição de terra

no Brasil contribuiu para o retorno daquelas famílias que, durante os anos 60 e

70, haviam migrado para o Paraguai. O retorno resultou em superpopulação na

reserva do Ocoy, passando de 42 para 128 famílias (cerca de 600 pessoas) numa

área insuficiente para atender às necessidades do novo contingente. A aldeia do

Ocoy novamente se viu diante do problema da pouca terra e muita gente.

Depois de muita articulação dos índios e negociações entre Itaipu e Funai

(Fundação Nacional do Índio), esta adquiriu para eles uma área de 242 hectares,

lindeira ao Tekohá Añetete. A área foi entregue em fevereiro de 2007 para a

formação de nova aldeia, denominada Itamarã, que em Guarani significa

“diamante” (alusão ao município de Diamante do Oeste, que abriga a

comunidade). Na Bacia do Paraná 3 (BP3) há, portanto, três aldeias (tekohas):

23

Fonte: http://www.itaipu.gov.br/es/node/202. Acesso em 08/02/2015.

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Ocoy, com 250 ha; Añetete, 1.744 ha; e Itamarã, 242 há., totalizando 2.236 há,

para 205 famílias e 1.100 pessoas 24.

Por entre narrativas da historiografia sobre o fortalecimento do Estado no

controle territorial no século XIX, a colonização do século XX, e a desapropriação

pela formação da reserva florestal e Lago de Itapu, estão os indígenas

remanescentes guaranis. Um ir e vir que os levam a perder não somente alguns

traços ancestrais de sua cultura. Parecem conservar o hábito de deambular entre

as divisões territoriais do Estado Moderno. Buscam, no entanto, firmarem-se em

um território mesmo que aldeados, o que demonstra uma habilidade de

organização política para buscar ganhos reais para os membros aldeados.

2.3 A construção de mitos

Mitos, lendas, rituais, constituem um mundo fantástico e sedutor, um

universo espiritual integrante de cada cultura manifestada. Relatos fascinantes

ocupam páginas e mais páginas da História e da Literatura nas suas vertentes

escrita e oral. Eles são e têm sido fonte da arte (música, pintura, escultura, vídeo,

cinema) e da psicanálise, assim como das disciplinas filosóficas, pois aí estão

suas representações, abarcadoras em sua totalidade do vital núcleo de

significação que encontram lugar na vida cotidiana individual e social de todos os

tempos. “O conhecimento dos mitos tem servido para dar significado e localizar o

homem com maior propriedade sobre esse terreno de fundo vulnerável, frágil e

efêmero, que é a vida humana sobre a terra” (ZAMBONI, 2005).

Mafessoli (2001), ao fundir imaginário e cultura, chama a atenção dos

pesquisadores sobre esta indissociabilidade entre um compartilhamento e uma

individualidade que marca a existência do sujeito histórico e seus convivas. Ao

aqui tratarmos de mito, nos referimos muito mais à sua lembrança, o modo como

no tempo contemporâneo se busca justificar e/ou compreender ações cotidianas

em imagens-lembranças de um passado acessível pela memória. Do mesmo

modo, relembrando, esta memória se torna acessível mediante fontes escritas,

24

Fonte: http://www.itaipu.gov.br/es/node/202. Acesso em 12/10/2014.

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oralizadas e imagéticas. Uma peça artesanal, construída por um designer ou por

um ancestral indígena não tem o mesmo significado, nem o mesmo material. Do

mesmo modo, um caminho indígena recontado pelos historiadores, ainda que

seja o mesmo traçado, jamais se constituirão no mesmo objeto. No entanto,

ambos têm pertinência na cultura na medida em que há certo consumo como

prática, seja para o campo acadêmico ou para o circuito turístico. Porém ambos

estão reunidos por uma temporalidade cotidiana que favorece confrontos,

dispersões ou apropriação de seu campo iconográfico.

O mito é constitutivo da mente humana na sua capacidade de criá-los.

Responde a uma necessidade fundamental do espírito, e pode ser encontrado em

todos os tempos e lugares. Nasce como uma forma de união com o

transcendente, sua presença lhe dá sentido à vida, é um modo inconsciente de se

defender da fragilidade humana.

Este universo metafísico é intimamente aderente à essência da razão.

Observando o mundo contemporâneo, Michel Maffesoli (1998), em sua obra

Elogio da razão sensível, elabora uma discussão entre, de um lado, as razões da

razão abstrata, e, de outro, as intuições e as pretensões da razão vital. Segundo

ele, o racionalismo dos intelectuais críticos por transcender ao mundo da

representação, em que há uma perfeita congruência entre o sujeito e o seu

objeto, se tornou abstrato, imóvel, estático e, consequentemente, dogmático. Na

prática significou a recusa do mundano, o rompimento com uma vida de pura

fruição, na qual o sensível, o afeto e a comunhão com a natureza constituem o

essencial da existência humana. A razão fechada tornou-se incapaz de

reconhecer o potente vitalismo que move toda a vida social, devido ao fato de a

própria vida não poder ser reduzida a uma ordem abstrata.

É por meio da descrição, intuição e metáfora que a razão sensível, na

contemporaneidade, se embriaga de vida, ao evitar a amputação dos sentimentos

que estão impregnados na razão, na forma de se interpretar o mundo em seu

dinamismo, potência e complexidade. Essa sensibilidade resgata o desejo de

interação entre o conhecimento e o viver, sem excluir um ou outro, que

paradoxalmente ou não, coexistem harmonicamente no cotidiano, mas não no

mundo das ideias, que, ao nomear o que se apreende, mata aquilo que é

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nomeado. Dito de outro modo: no mundo proposto pelo demiurgo, o que existem

são entidades metafísicas preexistentes que representam ideias separadas das

forças vitais.

Outros teóricos sustentam ainda que em cada mito se esconde um saber

filosófico velado, verdades de ordem moral ou do mundo natural, acontecimentos

históricos que o tempo deformara, mas dos quais se extrai uma concepção do

que seria uma verdade universal.

Um mito refere-se sempre a acontecimentos ocorridos no passado, mas em

uma dimensão diferente da habitual dos relógios. O mito é um tempo não medido,

tempo sem tempo, um passado que volta a se apresentar, a ser presente e

presença, sempre renovável mediante o rito. Aparece nomeado como “aquele

tempo”, “antes da criação do mundo”, “durante as primeiras eras”, “faz muito

tempo”, “era uma vez”. Estas formas, e os verbos impessoais: “contam”, “conta-se”,

“diz-se”, etc., são comumente usados para encabeçar os relatos de base mítico-

tradicional. Esta é uma estratégia narrativa adotada, por exemplo, pelo folclorista

Camara Cascudo, como teremos oportunidade de demonstrar adiante.

É neste sentido que é pertinente lembrar o antropólogo Da Matta (1987)

que aponta dois conceitos de tempo simultaneamente nas culturas indígenas

brasileiras: um ‘presente anterior’ e um ‘presente atual’. Enquanto o presente

anterior se remete a um passado durante o qual o mundo tal como é hoje ainda

não existia, o presente atual se refere ao estado de coisas no mundo de hoje em

dia25. Ainda sobre o mito, quanto ao seu valor intrínseco, segundo Lèvi-Strauss

(1996), provém de estes acontecimentos, que se supõem ocorridos em um

momento do tempo, formarem também uma estrutura permanente. Ele se refere

simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro.

Afirma-se que existem motivos míticos universais. São algumas

características básicas no universo mítico que podem ser reconhecidos nos

relatos tradicionais dos povos da terra de todas as épocas e lugares. A arte, em

geral, é um lugar onde os mitos se encarnam e onde o simbolismo das coisas

humanas, de sua imaginação e seus desejos resplandecem. Os motivos míticos

25

- DaMatta, R. Relativizando: uma introdução á antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

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são facilmente reconhecíveis nos relatos da literatura, estão imersos em seus

argumentos, renovados em seus personagens ou lugares atualizados.

Os mitos cosmogônicos buscam explicar o princípio do mundo e os escatológicos marcam seu fim catastrófico ou estágio final. Chamam-se mitos etiológicos os que dão causa e origem de determinados aspectos ou seres do universo, por exemplo: a origem do fogo, das plantas, de algumas cataratas, um pássaro, uma constelação ou alguma peculiaridade dos seres vivos, sejam pessoas ou metamorfose. (ZAMBONI, 2005).

Segundo pesquisas da arqueóloga da UFGD, Vanderlise Machado Barão

(2007), os guaranis veem o mundo em que vivemos atualmente como uma imagem

do mundo real. Este mundo real, onde a terra era boa de se viver, a água era limpa,

no mato havia caça em abundância e os guaranis moravam em uma grande aldeia

junto de Ñande Ru - Kwrahy, filho de Ñanderuvusu, que vivia nesta terra. Isto foi há

muito tempo, depois da formação do primeiro mundo, pois hoje vivemos no

segundo mundo, depois do dilúvio que destruiu o primeiro mundo e após a guerra

entre os Juruá – homem branco - e os índios, onde os Guarani foram levados pelo

Kechuita – entidade mística - para um lugar seguro e que só retornaram quando a

Guerra havia acabado e Ñande Ru – entidade mitológica - se retirado para a Terra

sem Mal – Yvy marã’ey - lugar mítico e ideal para onde vão todos os Guarani, que

viverem nesta imagem de mundo, neste reflexo da terra ideal, de maneira correta,

no seu modo de ser, seguindo as prescrições do Paí - Karaí – líder religioso - e de

Ñanderu. Esta terra pode inclusive ser alcançada antes da morte, desde que o

guarani seja o mais autêntico e respeitador possível das regras sociais, porém isso

é um grande desafio já que neste mundo torto e desregrado é difícil seguir o modo

de vida sem desvios de conduta.

Essa e outras relações místicas fazem parte do cotidiano dos guaranis,

com algumas variações entre as áreas de ocupação territorial, assim como de

tantas outras populações indígenas, pois essas populações recriam seus mitos e

sua história através da arte que produzem e do espaço que ocupam e exploram.

Mesmo aqueles grupos que são vistos hoje vendendo artesanato fora da aldeia,

mesmo expostos aos confrontamento com culturas diferentes da sua, de alguma

forma permanecem unidos ao mito presente nas peças artísticas que produzem e

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comercializam. Estão unidos a ele pela sua função diária. Uma “filosofia” que, ao

ganhar plasticidade, passa a proporcionar uma prática econômica.

Segundo Silva (2001), a arte indígena é um sistema de signos

compartilhado pelo grupo que, através das expressões estéticas, representam

sua identidade étnica e cultural, porque a arte significa e não apenas representa.

(LEVI – STRAUSS, 2002).

Ela permite compreender melhor por que os mitos nos aparecem simultaneamente como sistemas de relações abstratas e como objetos de contemplação estética; com efeito, o ato criador que engendra o mito é inverso e simétrico àquele que se encontra na origem da obra de arte. LEVI-STRAUSS (2002, p. 41).

O que nos leva a compreender que a arte indígena traduz o mito, que por

sua vez conta a história, na sua totalidade, partindo de uma estrutura (filosófica,

cosmológica, mas real), que dará origem a um conjunto de interpretações

representadas na arte. Os índios atuais não vivem conforme os mitos; vivem com

fragmentos deles preservados pelos mais velhos; no fabrico artesanal, está

presente uma ação de reprodução de peças e não seu sentido mais significativo.

Os mitos e as histórias traduzidas no desenho gráfico da cultura material

desses povos também podem ser vistos como um elemento de resistência ao

próprio processo de fricção interétnica, pois mesmo recebendo novas influências

da sociedade de atrito, estas são recriadas, acabando por reforçar o mito e muitas

vezes remodelar o rito, mas não chegam a destruir a visão de mundo e filosofia

da sociedade autóctone. (CUNHA, 1986).

2.4 O Símbolo

Segundo Mircea Eliade (1992) a ação simbólica sempre esteve presente na

mente humana, apresentando-se de diferentes formas, mas sendo praticada

através de arquétipos que são reconhecidos pelo grupo que os detêm. O homem

reconhece suas ações através da repetição de atos praticados pelos heróis

fundadores, sendo estes sempre repetidos nos rituais, onde se manifestam as

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ações dos mitos, e nos elementos da cultura material que compõem o cotidiano

de suas sociedades. A cosmologia indígena é sua filosofia, é ali que se

encontram as explicações para o mundo e para a organização social. E o homem,

conforme salienta Geertz (1978), só existe enquanto ser cultural, sendo que a

cultura depende do homem, os símbolos e seus significados, que são específicos

em cada cultura, são criações desta e dos homens que a construíram. A busca

das variações culturais leva ao conhecimento do homem, enquanto ser construtor

de suas próprias leis e padrões de vida.

O artesanato de referência cultural é parte desta cosmogonia que combina

mitos – narrados e contados – e conta um pouco destas leis e padrões de vida, já

que traduz em seus desenhos e em suas formas artísticas esse mundo místico

que em geral existe na mentalidade indígena, em suas memórias ancestrais, em

sua oralidade, mas que é o motor que faz essas sociedades continuarem vivas e

atuantes como característica do imaginário cotidiano, dito por Michel Mafessoli.

Tem-se dito que nas populações indígenas, as imagem é a forma de

diálogo mais compreensível. As pinturas corporais, naqueles que ainda a

preservam, são códigos que podem representar várias coisas, como clãs,

hierarquia social, parcialidades, etc.

Os mitos são interpretações que os povos indígenas fazem do mundo em

que vivem, e essas interpretações ganham formas materiais nos objetos criados a

sua imagem, são significados que são armazenados através dos símbolos,

dramatizados nos rituais e relatados nos mitos. Tornam-se assim padrões estéticos

repetidos e valorizados pelas novas gerações que vem recebendo essa educação e

convivendo com esses símbolos (GEERTZ, 1989). Não se pode falar, no entanto,

da pureza dos mitos. Os remanescentes de Ocoy também fazem parte de um

processo de esquecimento e ou reelaboração frente a uma nova realidade em que

os constantes desalojamentos territoriais provocaram. Também é provocador da

reelaboração o hábito de visitarem parentes distantes e permanecer com estes

longos períodos. Há, com certeza, um movimento de sincretismo cultural. Contudo,

isso faz parte da preservação do ethos, da maneira de ser, que é diferente da visão

de mundo, mas que carrega na filosofia expressada na arte indígena o cerne do

ethos que o identifica com sua cultura, já que:

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ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito de natureza, de si mesmo, da sociedade. (GEERTZ, 1989, p.93).

A palavra símbolo provém da junção de dois vocábulos gregos: o sufixo

sin, que quer dizer junto, e o verbo bolein, que quer dizer lançar. Portanto o

símbolo é a imagem visual que “lança junto”, em uma imagem reduzida, toda uma

complexa cadeia de significados. Diferentemente dos signos e sinais (como as

placas indicativas que encontramos nas rodovias), os símbolos trazem sempre

conteúdos arquétipo capazes de suscitar percepções cognitivas e emocionais do

inconsciente. Um cristão teria uma forte impressão emocional ao visualizar a

imagem de uma cruz, que traria à sua mente todo o conteúdo e significado de sua

fé. Um muçulmano teria impressão semelhante ao ver um crescente lunar.

Mito não é o mesmo que símbolo, mas ambos estão conectados. Um relato

mítico geralmente apresenta elementos simbólicos ou toda uma alegoria, isto é,

uma cadeia organizada de símbolos, a cuja semântica individual se lhe apresenta

uma variável totalizadora do conjunto.

As representações simbólicas fazem parte do itinerário do desenvolvimento

histórico cultural onde pode ser observada a adoção de arquétipos (Jung) ou

adoção de símbolos fortes para a naturalização da cultura (Bourdieu). A atribuição

de significados a seres inanimados, ritos de passagem, ocorrências e fenômenos

naturais, seres fantásticos e míticos, fazem parte da história da humanidade. De

acordo com o filósofo Gilbert Durand (1988), é através da representação

simbólica que nos apropriamos do mundo. Logo, os mitos são disseminados no

jogo cultural através do conhecimento e reconhecimento de determinados

conjunto de símbolos. No conjunto das aldeias indígenas, há um grande esforço

por parte das gerações de mais idade, em conservar alguns traços ancestrais,

justamente por perceber sua importância para controle do grupo. O projeto de

educação indígena, por exemplo, desenvolve um significativo trabalho nestas

colônias, coma finalidade de ensinar cultura indígena aos índios.

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O conjunto de representações que formam a memória social pode ser

descrita como uma iconografia, uma forma de linguagem visual que utiliza

imagens para representar determinado tema. O uso da simbologia encontra bases

através da fenomenologia peirceana, onde um signo, ou representamen, é aquilo

que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém.

A simbologia visual faz parte do cotidiano de qualquer pessoa, seja

vendendo produtos ou comunicando informações de relevância. Santaella (2001)

ressalta que o mundo torna-se cada vez mais cheio de complexidade e cada vez

mais fica hiperpovoado de signos que estão aí para serem compreendidos e

interagidos. A noção de signo não equivale exclusivamente ao signo linguístico,

ou seja, o signo não é mais somente verbal, mas também não-verbal por meio

das imagens. E estes, por sua vez são uma importante ferramenta didática para a

absorção do conhecimento cultural, como é o caso do que se apresenta através

do artesanato.

Vale a pena lembrar que o artesanato indígena é trabalhado dentro desta

perspectiva da linguagem para ser inserido no mercado como produto. Os

especialistas do marketing sabem muito bem como fazer estes nexos em gosto

e imagens. Os designers do grupo de Giulio Vinaccia investiram exatamente

nesta perspectiva.

Segundo Dondis (1999), a compreensão visual é um meio natural que não

precisa ser aprendido, mas refinado através do que ela chama de “alfabetismo

visual”. O que vemos não é, como na linguagem, um substituto que precisa ser

traduzido de um estado para o outro. Em termos perceptivos, uma maçã é a

mesma coisa para um norte-americano como para um francês, ainda que o

primeiro o chame de apple, e o segundo, de pome. Diga-se, porém que, da

mesma forma que na linguagem, a comunicação visual efetiva deve evitar a

ambiguidade das pistas visuais e tentar expressar as ideias de modo mais

simples e direto. É através da sofisticação excessiva e da escolha de um

simbolismo complexo que as dificuldades interculturais podem surgir na

linguagem da comunicação visual. Essa percepção de Dondis leva a entender

que, mesmo a falsificação da origem da obra árvore da vida que remetem aos

guaranis seja flagrante, a cultura local deve compartilhar arquétipos mais

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fundamentais e talvez compartilhados pelo multiculturalismo da fronteira

iguaçuense. Quando ampliamos a visão através das fontes e se busca os

arquétipos arbóreos construídos pelas narrativas escritas, percebemos

justamente o compartilhamento do alfabetismo visual, alegado pelo autor.

Através da linguagem visual, somos capazes de estruturar uma afirmação

direta, absorvida com muito pouco esforço, se comparado à lenta decodificação

de outros tipos de linguagem. A inteligência visual transmite informações com

uma extraordinária velocidade e, se os dados estiverem claramente organizados e

formulados, essa informação não só é mais fácil de absorver, como também de

reter e de ser utilizada referencialmente.

Bourdieu compreende a identidade como inserida dentro de um mercado

de bens simbólicos, compreendida propriamente na lógica simbólica de distinção,

em que existir não é somente ser diferente, mas também ser reconhecido

legitimamente diferente e em que, por outras palavras, a existência real da

identidade supõe a possibilidade real, juridicamente e politicamente garantida, de

afirmar oficialmente a diferença. Qualquer unificação, que assimile aquilo que é

diferente, encerra o princípio da dominação de uma identidade sobre outra, da

negação de uma identidade por outra.

Neste aspecto uma obra que é “representação” tal como a “Arvore da Vida”

não se explica por si mesma, mas carece de informação como complemento para

contextualizá-la. O relato da construção da barragem, da criação do lago, a

inundação, a operação pega bicho, etc. serviram de inspiração para a concepção

da iconografia da Arvore da Vida, mas não estão explicados na obra. O leigo, sem

ser provido de informações complementares, poderá apreciar a estética da obra,

mas dificilmente poderá decodificá-la para além do óbvio.

O uso de imagens para finalidades “descoladas” e direcionadas a objetivos

políticos não é nenhuma novidade. Imagens ricamente elaboradas e pensadas

como operadores simbólicos constituíram um dos recursos largamente utilizados

pelos intelectuais do Estado Novo, por exemplo. Esse recurso atendia a uma

finalidade imediata. Por meio de imagens, veiculava-se com rapidez e precisão o

recado que se visava transmitir. Hitler, em Minha Luta, já chamava a atenção para

o fato de que “[...] a imagem proporciona mais rapidamente, quase de um golpe

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de vista, a compreensão de um fato a que, por meio de escritos, só se chegaria

depois de enfadonha leitura”. Na obra de Cassiano Ricardo, lê-se:

(...) Tentei explicar, linhas atrás, o segredo do gosto que o brasileiro tem pela imagem. Duas razões justificam essa predileção incurável. Primeiro porque a imagem é um processo democrático de expressão. Segundo porque a imagem fala mais ao sentimento do que à razão, e o Brasil é uma democracia sentimental. O sentimento democratiza os homens pela solidariedade, caminhando para todos os lados da planície social. Enquanto o indivíduo pensa, o maior número sente. (...) Só a imagem, pois, convence o povo, em sua democracia sentimental. Uma imagem vale cem vezes mais do que um argumento. (Marcha para o Oeste: p. 499 e 501).

Cassiano Ricardo, um dos muitos intelectuais do chamado Estado Novo,

remete a pensar para além da relação política, a forma sedutora que a imagem

carrega.

2.5 O Símbolo e a manutenção das tradições

Nas narrativas anteriormente descritas sobre a ancestralidade, em que os

mitos de Gaia e Poseidon funcionam como arquétipos de Cronos, há a possibilidade

de afirmarmos que existe uma memória dispersa, criada sobre estes símbolos e

manifesta de diversas formas na iconografia presente em produtos artesanais, como

os que são comercializados na região de Foz do Iguaçu. Elementos que fazem

perdurar esse imaginário através da construção das tradições.

Geertz (1997) aborda a transmissão de costumes e tradições analisando a

vulnerabilidade existente na narrativa escrita. A transcrição de texto para texto

análogo ou de um texto como discurso para ação como discurso é a inscrição ou

fixação do significado. Segundo ele, o que dizemos flutua à nossa volta na forma

de eventos como qualquer outro tipo de comportamento a menos que o que

dissemos esteja inscrito em texto. Se for inscrito, seu significado permanece (o

que foi dito e não o dizer). Isso também se aplica à ação em geral: seu significado

tem meios de perdurar, mas sua realidade não. O significado é fixado em um

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metanível. O filólogo é uma espécie de autor secundário: interpreta um texto

através de outro texto.

Este é o processo através do qual qualquer coisa que tenha a ver com a imaginação se desenvolve em nossas mentes, e é transformado, socialmente transformado, deixando de ser algo que sabemos simplesmente que existe ou existiu, em um lugar qualquer, para ser algo propriamente nosso, uma força que funciona em nossa consciência comum (GEERTZ, 1997, p. 75).

A prática das tradições é de suma importância para a perpetuação cultural

de grupos determinados. Na concepção de Hobsbawn (1984), as tradições esse

conjunto de práticas de natureza ritual teriam por objetivo incorporar

determinados valores e comportamentos definidos por meio da repetição em um

processo de “continuidade em relação ao passado”, via de regra, um passado

histórico apropriado. Essas tradições podem ser expressas pela escolha de um

símbolo, por exemplo, funcionando como uma reação a situações novas, ou como

referência a situações anteriores em uma continuidade artificial. Na definição

memorizada pelo Dicionário Michaelis, na descrição arqueológica e historiográfica

do Paraná fica bem exposto este deslocamento da memória no sentido de projetar

o tempo contemporâneo (Cronos) e um passado heróico. Essa “repetição” nos

autoriza a pensar na relação da representação e da permanência, em uma imagem

sempre ao alcance da mão para realizar a imaginação. Os monstros estarão

sempre a postos para assumir corporalidades nos momentos de risco.

Michel de Certeau (1996) indica uma intrínseca relação da tradição com o

cotidiano, trazendo-a para uma participação contínua no presente:

[...] o cotidiano é aquilo que nos é dado a cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente. [...] O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. [...] É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. [...] Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta ‘não história’, como o diz ainda A. Dupont. “O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível (...) (CERTEAU, 1996. p. 31).

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É a essa relação de manipulação do tempo que podemos também referir

às pesquisas de Pierre Bourdieu. Na análise de Bourdieu (1989), a tradição

neokantiana trata os diferentes universos simbólicos (mito, língua, arte e ciência)

como instrumentos de conhecimento e de construção do mundo dos objetos,

como “formas simbólicas”, reconhecendo o aspecto ativo do conhecimento. Logo,

viver é presentificar os mitos com a manipulação do seu material sagrado. A

constituição desses símbolos não está isenta de uma articulação objetiva, ou seja,

o “poder simbólico” exerce grande eficácia dentro de um plano metodológico. A

árvore como elemento simbólico, portanto, deve se manifestar em outros

momentos da vida social e responder a outros usos com a devida dilatação dos

seus significados iniciais.

Nesses termos, pode-se pensar uma espécie de identidade de grupo onde

cada membro compartilhe de alguma – mas não de forma dominante, homogênea

– uma representação do símbolo. Trata-se de uma “realidade” que, sendo em

primeiro lugar representação, depende profundamente tanto do conhecimento

quanto do reconhecimento.

Segundo Bourdieu, para uma concepção simbólica, a objetividade do

sentido do mundo define-se pela concordância das subjetividades estruturantes,

ou seja, o julgamento é igual ao consentimento ou, em suas palavras, o senso é

igual ao consenso: “Nesta tradição idealista, a objetividade do sentido do mundo

define-se pela concordância das subjetividades estruturantes (senso = consenso)”

(Bourdieu, 1989a: p. 8).

Já para os sistemas simbólicos como estruturas estruturadas, Bourdieu

considera que são passíveis de uma análise estrutural. Essa análise estrutural

tem em vista isolar a estrutura permanente de cada produção simbólica:

Os “sistemas simbólicos”, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, “uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências”. (BOURDIEU, 1989b: p. 9).

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Nesse sentido apontado pelo autor, os símbolos são instrumentos por

excelência da “integração social”. Enquanto instrumentos de conhecimento e

comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo

social, o que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social. A

integração lógica é a condição da integração moral.

Neste quesito é possível aproximar Bourdieu de Geertz, quando este

afirma a existência de comunicação entre membros de um grupo cultural ou

antropológico através de estruturas significantes e superpostas, mas que criam as

especificidades dos grupos sociais.

A ritualização das representações fundamentais (Hobsbawn; Bourdieu),

seguindo um determinado status de símbolo, precisa ser “repetível” de muitas

formas. Somente pelos rituais podemos ter a certeza, não somente de sua

existência, mas, sobretudo, do poder de nomizar o mundo (Berger) e de criar a

ordem gnosiológica (Bourdieu). Nesses termos, o programa Ñandeva (“Todos

nós”) pode ser colocado ao lado da operação “pega bicho”. As viagens

bandeirantes, a arqueologia e historiografia, a norma, enfim, toda iconografia

demonstra as intervenções que são, ademais, práticas sociais.

2.6 Árvores-símbolo

Nas representações do ser brasileiro está presente essa especificidade em

relação à simbologia da árvore. Essa memória social é compartilhada por muitos

integrantes do corpo social, confluindo para uma espécie de autoimagem do

“povo brasileiro”. Essa memória social é de grande importância na formação da

identidade de um povo, pois o passado do país, compartilhado por seus

integrantes, influencia na imagem que o grupo tem dele mesmo no presente.

Diversos pontos de referência (monumentos, personagens, datas históricas,

paisagens, tradições, lendas e costumes) inserem a memória individual na

coletiva, o que envolve um processo de seleção e de negociação para que haja o

máximo de pontos de contato construídos sobre uma base comum,

fundamentando e reforçando o sentimento de pertencimento e as fronteiras

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socioculturais, gerando coesão pela adesão afetiva (Tuan, 1983) e não pela

coerção. São esses os elementos que, uma vez codificados como símbolos,

servem como construção de uma referência cultural.

Há muitas “árvores da vida” na memória escrita do Brasil. Em 1500,

quando os portugueses chegaram à Bahia, a costa do Brasil, desde o Rio Grande

do Norte até o Rio de Janeiro, estava repleta de árvores de pau-brasil. Algumas

tinham mais de 20 metros de altura e quase três metros de diâmetro. Segundo

pesquisas do jornalista e historiador Eduardo Bueno (2000), mais de 50 milhões

de pés foram derrubados ao longo dos dois séculos seguintes.

Corantes naturais eram, desde a Antiguidade, produtos valiosos. A árvore

encontrada em grande quantidade no Nordeste do Brasil foi avistada pelo

navegador Américo Vespúcio no momento em que a moda europeia passava por

um revolução com o desabrochar do Renascimento e a expansão da indústria

têxtil que tinham transformado o vermelho na cor da moda. O pau-brasil virou um

produto mais cobiçado que nunca. Como os Tupis, por sua vez, cobiçavam

anzóis, machados e facas, os portugueses não tiveram dificuldades em fazer com

que, em troca de objetos de metal, os nativos cortassem, atorassem e

transportassem as duríssimas e pesadas toras de pau-brasil.

Antes do ouro e especiarias, o comércio do “pau-de-tinta” foi a primeira

fonte de lucro que a Coroa portuguesa encontrou na nova colônia. Em menos de

uma década, esse comércio alcançaria dimensões tão amplas que o território

avistado por Pedro Álvares Cabral passou a ser chamado de Terra do Brasil. A

árvore que dá nome ao país, hoje se encontra na lista do Instituto Brasileiro do

Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis de espécies ameaçadas de

extinção na categoria "vulnerável" e na da União Internacional para a

Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais na categoria "em perigo".

Todo símbolo representa uma certa ideia interligada de conhecimentos,

significados e conteúdos. Em termos do discurso da legalidade, no Brasil, os

estados passaram a ter o direito de criar seus próprios símbolos com a aprovação

da primeira Constituição da República em 1891.

Para além da oficialidade, é muito comum que as comunidades criem e

adotem símbolos espontaneamente para o local ou região onde vivem,

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contribuindo para o fortalecimento da identidade e da auto-estima da comunidade

local. Eles se encontram e interagem em momentos bem específicos.

Como força do imaginário de Gaia, tanto quanto símbolo representativo do

coletivo nacional, quanto muitos de seus estados federados e até mesmo cidades

instituíram uma espécie de árvore como símbolo, adotando nomes de árvores

nativas que eram frequentes em suas regiões geográficas, como exemplos:

Imbuia (SC), Guarantã (SP), Louveira (SP), Angicos (PE), Cedro (SP), Juazeiro

(BA), Castanhal (PA), Videira (SC), Limeira (SP), dentre outras. São centenas de

cidades nomeadas como árvores, da mesma forma que existem várias cidades e

Estados que foram nomeados como rios. Essa prática não é exclusiva do Brasil;

outros lugares do mundo também utilizam alguma espécie de árvore como

símbolo. Há universidades, restaurantes, empresas e muitos outros segmentos

que usam o nome popular de alguma espécie de árvore como identidade de seus

empreendimentos. Vale mencionar também que, em Foz do Iguaçu, a Vila “B” de

Itaipu (condomínio dos funcionários de alto escalão da usina) possui suas ruas

batizadas com nome de árvores.

Em todo o mundo muitas pessoas possuem sobrenome originado de

alguma espécie de árvore. No Brasil, alguns sobrenomes como Pinheiro, Lima,

Figueira, Oliveira e Carvalho, são comuns.

Algumas árvores-símbolo26 mais comuns ao morador da Região Trinacional

do Iguaçu:

Araucária – Araucária angustifólia – originária do Brasil, é a árvore-símbolo do

Paraná, conhecida como Pinheiro-do-Paraná. Esta espécie aparece

representada em praças, calçadas, poesias e também nos símbolos oficiais,

estando na bandeira do Estado e nos brasões de aproximadamente oitenta

municípios paranaenses, além de designar estádios, clubes,

estabelecimentos comerciais e industriais. Sua semente, os pinhões, é

apreciada pelo homem e pelos animais, sendo o principal alimento da gralha

azul, a ave símbolo do Paraná. Esta árvore também é símbolo de Campos do

Jordão e foi declarada nos termos da Lei Municipal nº. 1.264, de 15 de julho

de 1981- Parágrafo 4º.

26

Fonte: http://www.floraefauna.com/arvores_simbolo.htm. Acesso em 10/09/2013.

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Cedro – “Cedrus libani” – é a árvore símbolo do Líbano, escolhido como

emblema da bandeira, cujo significado relaciona-se intimamente com a ideia

de eternidade. O cedro é muitas vezes mencionado na Bíblia Sagrada,

representando força e imortalidade. Nos tempos bíblicos, em Israel, era

costume celebrar o nascimento plantando uma árvore – cedro para homens e

pinheiro para mulheres.

Erva-mate - Ilex Paraguaiensis foi escolhida a árvore-símbolo do Estado do

Rio Grande do Sul, através da lei nº 7.439, de 08 de dezembro de 1980, pela

sua importância econômica. Esta mesma lei constituiu a “Semana Estadual da

Erva-Mate”, a ser comemorada, anualmente, na segunda semana do mês de

setembro. O consumo da erva-mate se faz sob a forma de chá, tereré ou

chimarrão, sendo esta última a mais usual. Para o consumo do chimarrão,

utiliza-se cuia (purungo), bomba e chaleira com água quente. O chá é a

bebida feita da infusão da folha do mate e pode ser consumido quente ou frio.

A erva-mate manteve-se como principal produto paranaense durante o

período entre a Emancipação Política do Paraná (1853) e a Grande Crise de

1929, chegando a representar 85% da economia paranaense. As mudanças

que ocorreram nos meios de transporte se intensificaram com o

desenvolvimento da economia ervateira a partir do século XIX. A erva-mate

era conduzida pelo homem, do lugar da colheita até o engenho, através do

raído - fardo de erva-mate que chegava a pesar 200 Kg. O sentido histórico,

simbólico e mítico acerca da Erva-mate na região de Foz do Iguaçu será

abordado mais adiante.

Ipê roxo – Tabebuia avellanedae - Foi instituído árvore símbolo do município

de Foz do Iguaçu através da Lei nº 1.889/1994, estabelecendo como data

comemorativa o dia 21 de setembro. A espécie está imune ao corte em toda a

área do município, salvo em situações de extrema necessidade, após criteriosa

avaliação e autorização pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente.

Pau-brasil - Caesalpinia echinata - O Brasil é o único país do mundo batizado

em função de uma árvore. O pau-brasil só foi reconhecido como Árvore

Nacional cinco séculos após o descobrimento. Em 1961, o presidente Jânio

Quadros aprovou um projeto declarando o pau-brasil como árvore símbolo

nacional e o ipê como flor símbolo.

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No sentido simbólico atribuído às diversas árvores aqui listadas, é evidente

as práticas políticas de adoção. São práticas que remetem à memória política, à

singularização da existência de grupos ou classes sociais; são votos fálicos de

estados e municípios. Por serem “pluriformes” eles sofrem o apelo de muitas

demandas sociais. A iconografia da colonização portuguesa e moderna no Brasil

teve muito empenho em narrar os grandes feitos, como já expostos acima. Foi um

saber de grande utilitarismo, inclusive na contemporaneidade.

2.7 O Guarani e a Árvore

De acordo com o relato do cacique da aldeia Ocoy em São Miguel do

Iguaçu, Daniel Maraca Lopes27, os guaranis nutrem uma relação de profundo

respeito com a natureza que lhes garante sua sustentabilidade, considerando

como se ela fosse um “irmão”, fornecendo todas as condições necessárias para

seu povo manter e revitalizar suas tradições. Todo o artesanato produzido pelos

guaranis tem sua matéria-prima extraída da natureza.

Ele acrescenta que, para o índio guarani, tudo é recíproco, todas as ações

sempre são retribuídas. Para se cortar uma árvore, fazer um roçado, caçar, ou

mesmo fazer uma caminhada na floresta, primeiro deve ser avaliada a

necessidade, depois é pedido permissão ao deus da mata para que nada de mal

aconteça. Caso contrário, essa pessoa pode ficar doente e, até mesmo, morrer

por não respeitar a natureza que, desde sempre, sustentou seus antepassados. O

cacique ao fornecer esta informação, fala de um tempo imemorial que já não

existe mais. No entanto, como guardião da tradição, deve repetir esta memória.

Ele verbaliza que povo indígena considera-se guardião da floresta, pois

acreditam que a natureza faz parte deles e eles fazem parte dela. Nasceram na

floresta, cresceram na mata e, certamente, morrerão onde nasceram, o que é muito

importante para eles. Tudo o que é retirado da terra tem que ser, de alguma forma,

devolvido. Quando é retirado e não é reposto é como estar roubando a terra.

Árvores como o cedro, o coqueiro e a erva-mate são muito respeitadas

pelos guaranis, que as consideram sagradas. A palmeira, por exemplo,

27

Entrevista concedida em 23/02/2014.

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representa a “longevidade”. São árvores plantadas em volta da aldeia e no

cemitério para manter vivos os espíritos dos que já se foram. Conseguem mudas

no meio da mata e plantam para preservar a espécie. As palmeiras demoram

onze anos para se desenvolverem, e o plantio com a comunidade indígena se

reveste de um aprendizado dos saberes milenares.

No artesanato produzido na aldeia, as esculturas em forma de animais são

chamadas de vicho ranga, expressão traduzida para o português como

“bichinhos”. Tais bichinhos são confeccionados em madeira das árvores

sagradas. A extração da matéria-prima é feita com respeito e devoção. A madeira

é coletada com cuidado a fim de não “maltratar” a árvore, de forma que ela possa

voltar a oferecer esse mesmo material mais tarde. O coletor jamais destrói a

árvore por completo.

Da mesma forma, os animais também são considerados sagrados para os

guaranis. Cotia, paca, papagaio (ou “louro”), quati, dentre outros, cada animal

está ligado a um significado místico. Para esses índios, as onças (ou “tigres”:

Yauaretê) são como os próprios guaranis, que vivem, caçam e cuidam da floresta

por toda a vida.

Esses relatos, informados pelo jovem cacique, demonstram a variação de

representações mediadas pelas demandas do tempo presente. A construção de

peças artesanais, sua comercialização, estratégias de venda, etc., não permite

dizer que se trata de um saber milenar que os religaria ao povo guarani que tinha

o controle do território transfronteiriço. Demonstra, porém, ao mesmo tempo, um

deslocamento nesse universo simbólico, cujo ato de apelar para uma identidade,

representa uma afirmação no tempo presente. Seu tempo presente é demarcado

pelos objetivos políticos da Itaipu Binacional, dos projetos escolares indígenas

que insistem em recuperar uma memória ancestral. Como leitor do tempo

presente, estas representações estão presentes na recuperação da memória feita

pelo cacique informante. Relembrando Certeau, os sujeitos são plenos de

saberes, jogadores, estrategistas.

Perguntado sobre árvores e seus antepassados, o cacique fez lembrar

alguns “contos” da tradição guarani, transcritos a seguir:

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2.7.1 A Lenda do Cedro

O cedro é utilizado na medicina tradicional e considerado “sagrado” para os

guaranis que acreditam que a madeira e a casca desta árvore são vermelhas pelo

fato de o sol morar dentro dela e, assim, a utilizam para tratar tristeza, solidão e

depressão. Acreditam que, ao tomar o chá da casca do cedro, o sol volta a brilhar

no coração da “pessoa triste”. É proibido para os guaranis cortar a árvore do

cedro, pois cada pessoa que cortar um cedro estará condenando a humanidade a

sofrer de depressão: “[...] na aldeia, sempre que preciso, lembramos que não se

pode cortar essa árvore”, afirma ele.

2.7.2 A Lenda de Anahí

Há muito tempo, uma tribo guarani habitava as margens do rio Paraná. O

cacique da tribo era venerado e respeitado por todos os índios, e tinha uma filha cujo

nome era Anahí que, em guarani, significa “aquela de doce voz”. A princesa índia

entoava nostálgicas e misteriosas canções espalhando harmonia ao seu redor.

Certo dia, a paz daquelas tranquilas terras foi quebrada, devido à invasão

do homem branco. Índios e espanhóis entraram em luta e o grande cacique foi

morto por um capitão inimigo.

Anahí, cega de dor, jurou vingar a morte de seu pai. Numa noite sem luar,

entrou no acampamento e matou o capitão espanhol, entretanto foi presa sendo

condenada a morrer na fogueira. Ela foi amarrada a uma árvore e rodeada de

lenha a que atearam fogo. Ela inclinou a cabeça para o lado e começou a sofrer,

em profundo silêncio, a sentença imposta pelos conquistadores. Mas parecia que

o fogo não queria tocá-la.

Como que recebendo ordens dos deuses, e entendendo a mensagem, a

árvore foi tomando Anahí e fundindo seu corpo ao tronco num abraço acolhedor.

No dia seguinte, os soldados se viram ante uma árvore de verdes folhas e flores

aveludadas de cor vermelho carmim, que mostrava o desejo dos Índios de serem

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livres junto à terra e sua ecologia. Desde então, a flor da corticeira adorna e

bendiz as agrestes ribeiras, onde o rio embala esta lenda da frágil indiazinha.

2.7.3 A Lenda da Erva-Mate

Como dito anteriormente, a erva-mate é tida como sagrada para os

Guaranis, e está intimamente ligada à história local. Seu cultivo fez parte da

antiga forma ciclópica de contar o tempo pelos geólogos e historiadores em ciclos.

Foi do primeiro ciclo econômico de Foz do Iguaçu, juntamente com a extração da

madeira28. Registrou-se que os primeiros a fazer uso da erva-mate foram os

índios Guaranis, que habitavam a região definida pelas bacias dos rios Paraná,

Paraguai e Uruguai, na época da chegada dos colonizadores espanhóis. Da

metade do século XVI até 1632 a extração de erva-mate era a atividade

econômica mais importante da Província Del Guairá, território que abrangia

também o Paraná29, sendo inclusive elemento figurativo na composição do brasão

oficial deste estado, presente até os dias atuais.

Figura 14 - Brasão do Paraná de 1910, com grinaldas de pinho e mate. Autoria de Alfredo Andersen. Acervo do Dep. Est. de Arquivo Público do Paraná.

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/especial-erva-mate/origens.phtml

28

Fonte: http://www.jtezza.com/capa_232.htm. Acesso em 15/06/2014. 29

Fonte: http://www.museuparanaense.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=62. Acesso em 15/06/2014.

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Para os índios o ato de tomar chimarrão vai além de ser um mero costume,

relaciona-se especialmente com a vida espiritual da tribo. Entre os Guaranis,

conta-se a seguinte lenda sobra a erva-mate:

Um velho guerreiro guarani vivia triste em sua cabana pois já não podia mais sair para as guerras, nem mesmo para caçar e pescar, vivendo só com sua linda filha yari, que o tratava com muito carinho, conservando-se solteira para melhor dedicar-se ao pai. Um dia, Yari e seu pai receberam a visita de um viajante que pernoitou na cabana recebendo seus melhores tratos. A jovem cantou para que o visitante adormecesse e tivesse um sono tranqüilo, entoando um canto suave e triste. Ao amanhecer, o viajante confessando ser enviado de Tupã e quis retribuir-lhes a hospitalidade dizendo-lhes que atenderia a qualquer desejo, mesmo o mais remoto. O velho guerreiro, sabendo que sua jovem filha não se casara para não abandoná-lo, pediu que lhe fosse devolvidas as forças, para que yari se tornasse livre. O mensageiro de Tupã entregou ao velho um galho de árvore de Caá, ensinando-lhe a preparar uma infusão que lhe devolveria todo o vigor. Transformou ainda Yari, em deusa dos ervais e protetora da raça Guarani, sendo chamada de Caá-Yari, a deusa da erva-mate. E assim, a erva foi usada por todos os guerreiros da tribo, tornando-os mais fortes e valentes. Quando os espanhóis por aqui chegaram, encontraram os índios guaranis dóceis e receptivos, já então utilizando uma bebida que sorviam em cabaças por meio de um canudo, preparada com folhas de uma árvore nativa da região – chamada cáa – dizendo que esta lhes havia sido dada pelo deus Tupã. De imediato os espanhóis adquiriram este hábito e passaram a tomar a erva-mate, desde os soldados até oficiais, sem distinção de classes sociais

Fonte: http://www.erva-mate.com/lenda_da_erva_mate.html. Acesso em 15/06/204

Os símbolos nacionais são invenções do Estado Moderno. Nos elementos

simbólicos do Paraná, incentivado pela percepção de um sociologismo positivista,

vários elementos representativos de culturas ancestrais foram postos para elencar

uma grande galeria de conquistas. A erva mate e o falcão serão dois símbolos

eleitos como representativos de ancestralidades e territorialidades. Uma ficção

que deslocou o sentido primitivo para a soberania estatal.

2.8 A Árvore da Vida do Parque das Aves

O Parque das Aves é um amplo espaço ecológico particular criado em

1994, voltado ao ecoturismo e conservação ambiental. Situa-se no município de

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Foz do Iguaçu, em frente à entrada do Parque Nacional do Iguaçu, local também

de acesso à visitação das Cataratas. Ali são mantidas e preservadas

aproximadamente 900 aves de 150 espécies diversas e também outros animais.

O Parque é considerado o maior espaço de preservação de aves de toda América

Latina e recebe diariamente um grande número de turistas do mundo todo. As

trilhas do parque conduzem os visitantes aos viveiros de aves diversas, jacarés,

iguanas, jibóias, e borboletário. O percurso é ricamente ambientado com uma

grande variedade de plantas e árvores nativas.

Uma lenda intitulada “Arvore da Vida” é contada num dos primeiros

recintos, logo na entrada do Parque das Aves. De autoria desconhecida, seu

intuito ali é o de ilustrar uma das maiores preocupações atuais em relação à

conservação: a extinção das espécies. Ao iniciar o passeio, o visitante se depara

com um cômodo artificial que lembra um tronco oco de uma imensa árvore.

Dentro dele existe um quadro com a pintura de uma grande árvore semelhante ao

próprio recinto, e duas placas onde se encontram escritos, em português e inglês,

os seguintes dizeres:

Árvore da Vida - Tree of Life

Conservação é tentar e atingir a sustentabilidade global

O Parque das Aves utiliza seu recinto de Lóris para ilustrar uma estória da

mitologia. Esta lenda antiga nos lembra da ameaça que a humanidade impõe ao

nosso planeta e declara a verdade extrema:

“A natureza não precisa de nós, mas precisamos da natureza”.

Conservation is to try and achieve global sustainability

Parque das Aves uses its lorikeet aviary to illustrate a story from mythology.

This ancient legend reminds us of man`s self-imposed threat towards “his”

planet earth, and it speaks the ultimate truth:

“Nature does not need us, but we need nature”.

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A Lenda da árvore da Vida

Em suas andanças pelo mundo o jovem deus Wotan se depara com a

Árvore da Vida. Entre as raízes da árvore nasce a fonte do Saber.

O Deus oferece um olho em sacrifício para beber da água e então com sua

espada corta um pedaço do tronco. Com esta madeira ele cria uma lança, na qual

entalha as regras do mundo. Com esta lança ele domina o mundo.

Mas... A árvore ao ser ferida morre e a Fonte do Saber seca. A árvore pega

fogo, se espalha e consome toda a Terra. Depois a água inunda tudo...

extinguindo homens, gigantes, anões e deuses. As águas descem... e a natureza

ressurge, porém desta vez sem seres humanos

The Legend of Tree of Life

The tree of life grows strong and beautiful in paradise. From its roots

emerge the waters of a fountain: the fountain of wisdom.

A young god approaches. He sacrifices one eye to drink from the water of

wisdom. With his sword he cuts out of the tree of life a piece of wood and carves a

lance with it. In its shaft he engraves the law of the earth. With it he rules and

dominates the earth: humans, giants, dwarfs, animals But the world ash tree, due

to its injury, dies slowly. The water of wisdom dries up. The tree catches fire, which

spreads across the earth.

Gods, men, giants disappear. Out of the flood nature emerges, and the

cycle of life starts again. In their wanderings the young god Wotan is faced with

the Tree of Life . Among the roots of the tree is born the source of Knowledge.

The God offers an eye in sacrifice to drink the water and then with his sword

cut a piece of the trunk . With this wood he creates a spear , which carves the

rules of the world . With this spear it dominates the world. But ... The tree dies and

when injured Source of Knowledge dry . The tree catches fire , spreads and

consumes the earth. After the water fills all ... extinguishing men , giants , dwarfs

and gods . The waters descend ... and nature resurfaces , but this time without

humans

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2.9 As Árvores da Vida de Itaipu

A construção de uma hidrelétrica provoca impactos na biosfera. Por isso,

desde 2003, a responsabilidade socioambiental integra a missão institucional

da Itaipu. Dados da empresa demonstram que seu programa de

reflorestamento já promoveu o plantio de mais de 44 milhões de mudas nas

margens brasileira e paraguaia.

O Bosque do Visitante, localizado no Centro de Recepção de Visitantes

(CRV) da Usina Hidrelétrica de Itaipu, surgiu em 1991, motivada pela previsão da

quantidade de visitas de autoridades à hidrelétrica decorrente da conferência Eco-

92, no Rio de Janeiro, que reuniu líderes de cerca de 170 países. A Divisão de

Relações Públicas (CSRP.GB), é responsável pela organização de cada plantio, e

a Divisão de Áreas Protegidas (MARP.CD), coordena a execução.

O chanceler alemão da época, Helmut Kohl, plantou a primeira das quase

500 árvores da área – uma muda de ipê roxo. Desde então, chefes de Estado,

políticos, artistas e personalidades das mais variadas áreas, do Brasil e do

exterior, também foram homenageadas com uma árvore com seu nome na

margem esquerda da binacional. Entre eles, o então presidente Lula, o premiê

britânico Tony Blair, o cartunista Ziraldo, o cineasta Francis Ford Coppola e o

astronauta Marcos Pontes.

Em 1998 um grupo de empregados sugeriu que um espaço fosse

reservado para que eles, assim como os figurões proeminentes, também

pudessem registrar suas passagens pela usina. E assim surgiu o Bosque do

Trabalhador, nas imediações do Mirante Central. No ano em que completa 15

anos de serviços prestados à Itaipu, o empregado planta a sua muda, em uma

cerimônia promovida na semana de aniversário da empresa, o que ocorre no mês

de maio. No Bosque do Trabalhador, familiares dos colegas homenageados

também são convidados para o momento de plantio.

Em ambos os bosques, segundo a CSRP.GB, já foram plantadas cerca de

2.000 árvores. Ao lado de cada uma delas, uma plaquinha indica o nome do

homenageado, a data do plantio e os nomes científico e popular do vegetal. No

caso dos empregados, há ainda a informação do ano de admissão na Itaipu.

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Para que o plantio fosse possível, foi necessário que técnicos da MARP.CD

preparassem os terrenos. Uma camada espessa de terra foi colocada por cima da

rocha de basalto. Naquela área dos trabalhadores, o solo ainda estava como nos

tempos da construção da usina. Após a colocação da terra, planta-se a grama. Há

também uma seleção de quais espécies serão plantadas, com o critério de serem

nativas e que se adaptem bem ao clima da região e à condição dos bosques, ou

seja, sem competir em espaço com as outras dentro do solo.

O evento celebrado através do gesto de plantar uma árvore vai além da

manutenção ou da construção de uma imagem institucional positiva, de

comprometimento com o desenvolvimento sustentável. Ela vem carregada de um

sentimento de aderência e enraizamento com o local. Violar a terra, lançar a

semente ou depositar uma muda em seu sulco é semelhante ao ato de germiná-la

como um progenitor. A árvore, como filho, torna-se como que uma extensão de

quem a plantou. Um legado de lembranças, esperanças e sonhos acompanharão

o desenvolvimento daquela planta. Uma relação de afeto por toda a vida. Neste

aspecto, mesmo sem receber o título de “Arvore da Vida”, estas são, por todo o

caráter cerimonial e simbólico, “árvores de toda uma vida”.

2.10 A Árvore da Vida e suas variações

O termo “Árvore da Vida” é ambíguo. Existem várias representações, em

diversas categorias, que receberam o nome de “Árvore da Vida” ao longo da

história. É referido na Bíblia e na Cabala. Pintores de renome, como o brasileiro

Cândido Portinari e o austríaco Gustav Klimt conceberam obras com esse nome.

O naturalista britânico Charles Darwin registrou num dos seus cadernos uma

das representações mais marcantes da Teoria da Evolução. Ela apresenta-se com

as formas mais antigas na base e seus descendentes ramificando-se

irregularmente ao longo do tronco. Assim, Darwin revelou a “transmutação” – a

descendência com modificação, o que chamamos hoje de Evolução. Este desenho

ficou conhecido como “árvore filogenética” ou “árvore da vida de Darwin”,

posteriormente aprimorada com as pesquisas do biólogo alemão Ernst Haeckel.

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O mito da “Árvore da Vida” é aderente com o conceito de ecologia, tornando

sua simbologia atemporal. Não se vincula apenas a contos antigos. Recentemente

o cineasta canadense James Cameron, ao conceber o filme Avatar (2009), se

utilizou de elementos arquetípicos pra transmitir o que muitos cinéfilos consideram

quase como uma experiência mística. A árvore sagrada que aparece no filme

Avatar representa a fonte de todo o conhecimento e união de todos os seres vivos

do planeta Pandora, pois, por meio dela, os nativos Na'vis tem acesso às memórias

dos antepassados e a possibilidade de ligar-se a sua divindade, Ewoa.

Outro filme que explorou o tema mítico da Árvore da Vida, e que inclusive dá

nome à obra, é “The Tree of Life”, um filme estadunidense de 2011, escrito e

dirigido por Terrence Malick e estrelado por Brad Pitt, Sean Penn e Jessica

Chastain. No filme é apresentado dois temas bíblicos tradicionais: a “árvore da

vida” e os “dois caminhos”. Na narrativa, há dois caminhos possíveis para

responder à árvore, segundo se anuncia logo nas primeiras cenas do filme: um é

o caminho da Natureza, que rejeita desapegar-se de si e alimentar-se da árvore,

que insiste em sua rigidez e por isso se quebra, e o caminho da Graça, que aceita

a dor com esperança e que vê na Árvore tanto a fonte última da Natureza como a

única capaz de levá-la à Vida Eterna. O símbolo da árvore aparece do início ao

fim do filme, e em todos os seus momentos cruciais. Às vezes como uma

pequena planta, às vezes como uma árvore frondosa.

Estes caminhos parecem ser, retornando a Eliade, mitos profundos instalados

e partilhados de muitas formas pelos grupos culturais da contemporaneidade. O

artesanato da fronteira é uma fonte que demonstra este sincretismo profundo

cultural. A imagem da árvore é símbolo vendido nas ruas e construído pelos

remanescentes indígenas como meio de arrecadação comercial; é fruto também da

fruição dos designers que criaram o manual sobre iconografia indígena.

Ao lado da árvore, a água e a terra. Os índios remanescentes sabem da

importância de ter a terra e dispor da água. O Estado brasileiro busca controlar a

água e gerar com ela dividendos sociais e políticos. A seguir, ao abordar mais

proximamente a historia do artesanato ñandeva, este vínculo ficará mais evidente,

afinal, fronteiras são líquidas e não sólidas.

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3. COMO O PRESENTE ENCONTRA O PASSADO

3.1 O artesanato de referência cultural

Artesanato é o próprio trabalho manual ou produção de um artesão. Mas

com a mecanização da indústria o artesão é identificado como aquele que produz

objetos pertencentes à chamada cultura popular. O artesanato é tradicionalmente

a produção de caráter familiar, na qual o produtor (artesão) possui os meios de

produção (sendo o proprietário da oficina e das ferramentas) e trabalha

geralmente com a família em sua própria casa, realizando todas as etapas da

produção, desde o preparo da matéria-prima, até o acabamento, ou seja, não

havendo divisão do trabalho ou especialização para a confecção de algum

produto. Em algumas situações o artesão conta com um ajudante ou aprendiz.

O termo “referência” é de uso corrente na linguagem cotidiana, pelo menos em

um registro culto. Etimologicamente, vem do verbo latim referre, que significa “levar”,

“transferir”, “remeter”. Pressupõe uma relação entre dois termos, um movimento em

determinada direção. Em sentido conotativo, “referência” evoca a ideia de um ponto de

apoio ou de encontro, base, e, por extensão, uma “verdade” consensualmente aceita

por um determinado grupo, ou uma autoridade coletivamente reconhecida. Aponta,

portanto, para uma convergência de pontos de vista.

A expressão “referência cultural” tem sido utilizada, sobretudo em textos

que têm como base uma concepção antropológica de cultura, e que enfatizam a

diversidade não só da produção material, como também dos sentidos e valores

atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais. Essa perspectiva

plural de algum modo veio “descentrar” os critérios, considerados objetivos,

porque fundados em saberes considerados legítimos, que costumavam nortear as

interpretações e as atuações no campo da preservação de bens culturais.

Referências culturais significam, pois, dirigir o olhar para representações

que configuram uma “identidade” da região para seus habitantes, e que remetem

à paisagem, às condições e objetos, aos “fazeres” e “saberes”, às crenças,

hábitos, etc. O ato de apreender “referências culturais” pressupõe não apenas a

captação de determinadas representações simbólicas como também a elaboração

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de relação entre elas, e a construção de sistemas que “falem” daquele contexto

cultural, no sentido de representá-lo.

O artesanato de referência cultural objetiva criar o que se pode chamar de

“território portátil”, onde é possível transportar para outro lugar, ou carregar

consigo, não só um objeto, mas toda uma carga imaginária do local onde a peça

foi concebida. Neste aspecto, Geertz apresenta a seguinte reflexão:

...como aquilo que é profundamente diferente, pode ser profundamente entendido, sem se tornar menos diferente; ou ainda, de que maneira o extremamente distante pode tornar-se extremamente próximo, sem estar menos distante. [...] Como é que as criações de outros povos podem ser tão próximas a seus criadores e, ao mesmo tempo, e tão profundamente, uma parte de nós. (GEERTZ, 1997, p. 76; 84).

Ao lado de Geertz, pode ser lembrado o conceito de poder simbólico de

Bourdieu. É esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade

daqueles que estão sujeitos a esse poder ou mesmo daqueles que o exercem. O

artesanato de referência cultural encontra fundamento nessa perspectiva de

cumplicidade quando permite definir um objeto de arte pela intencionalidade

estética do objeto e não por uma funcionalidade, onde o espectador, para fruir a

obra, precisa estar “pré-disposto” a tal, a aceitar seus códigos, mesmo que não

seja um iniciado no campo dos conceitos da arte. Mesmo assim, uma introdução

à história da arte, no caso ao conceito em que o objeto está inserido, dotará o

espectador de algumas ferramentas úteis para a decifração de tais códigos

inerentes ao objeto artístico, proporcionando legitimação à obra e a seu modo

de produção.

Artesanato, madeira, árvores, bichos e água fazem parte do imaginário

local. Não são estranhos a ele. Logo, a veiculação desses signos não necessita

de uma força coativa. Um artesanato representando a formação do lago de Itaipu

com uma árvore contendo vários animais e fazendo uso de materiais variados,

como a madeira leiteiro ou canjarana, parece ser naturalmente absorvido pelos

expectadores que, sem muito esforço, logo assimilam a representação de cunho

artístico atribuída aos índios guaranis e denominada “Árvore da Vida”.

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É neste deslocamento de sentidos que muitos atores se acham autorizados

a falar sobre artesanato na fronteira, como o SEBRAE. Segundo esta fonte, no

artesanato de referência cultural se utiliza:

[...] as cores e elementos da paisagem local, suas imagens mais características, sua fauna e flora e retrata os tipos humanos e seus costumes mais singulares, utiliza-se as matérias-primas disponíveis na região e as técnicas que foram passadas de geração em geração. São produtos cuja característica é a incorporação de elementos culturais tradicionais da região onde são produzidos. São, em geral, resultantes de uma intervenção planejada de artistas e designers, em parceria com os artesãos, com o objetivo de diversificar os produtos, porém preservando seus traços culturais mais representativos. (Fonte: Termo de Referência do Artesanato – SEBRAE, 2010).

É notável, no entanto, que se trate de um chevauchement, isto é, uma

sobreposição de imagens. Para SEBRAE, o artesanato de referência cultural é, em

geral, aquele resultante de uma intervenção planejada de artistas e designers.

Embora se afirme que “[...] há uma parceria com os artesãos, com o objetivo de

diversificar os produtos, porém preservando seus traços culturais mais

representativos [...]”, as peças, ao serem processadas (racionalizadas) pela

computação gráfica e pela autoria de sujeitos que não compartilham do ambiente

natural donde flui o trabalho real, sofrem a falsificação da representação, no sentido

de divergência cultural.

Este trabalho de falsificação faz-se uso de uma iconografia (símbolos e

imagens) que figuram elementos típicos da região onde são produzidos, assim

como, das técnicas de elaboração tradicionais, acrescidas de certas inovações

tecnológicas apenas com o objetivo de dinamizar sua produção exercendo uma

força de descaracterização original e colocá-lo em circuito de consumo.

Um circuito de consumo é uma rede construída a partir de ações privadas

e/ ou públicas para despertar ou satisfazer uma necessidade de consumo. É

nesse sentido que Barreto (2007) afirma que o fluxo turístico pode aumentar as

oportunidades de negócios voltados aos produtos artesanais, trazendo benefícios

à economia local, pois é por meio da demanda turística que a produção artesanal

encontra um importante acesso aos mercados. O artesanato de referência cultural

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é, portanto, uma forma promissora da atividade artesanal (SEBRAE, 2010) porque

responde a este apelo mercadológico. Além de valorizar a produção dessa

técnica, faz com que os objetos produzidos sejam revestidos de conceito,

portadores de uma história singular autêntica, que, ao ser contada, acaba

tornando-se seu maior valor agregado. Nesses objetos, sua forma final, as cores

neles aplicadas, a matéria-prima, os elementos gráficos e visuais que os

distingue, nada é gratuito nem desprovido de significado. O produto é vinculado a

uma história própria, seja através do uso de certos materiais e insumos ou

técnicas de produção típicas da região, seja pelo uso de elementos simbólicos

que fazem menção às origens de seus produtores ou de seus antepassados e

seus lugares. Essa atividade artesanal, no entanto, não se confunde com a

criação, utensilagem material e sentimental de muitos outros atores que

hodiernamente manipulam essas mesmas imagens, ou seja, as pessoas

remanescentes de cultura indígena. Este circuito criado atende a outra

expectativa de público.

O artesanato de referência cultural possui a qualidade de ser transformado

em suvenir, consistindo, no caso, em objeto que resgata memórias que estão

relacionadas ao destino turístico. O suvenir pode ser obtido pelo processo

artesanal ou industrial, sendo que muitos dos produtos para este fim são

industrializados (SEBRAE, 2010). O processo industrial reduz os custos de

produção, proporcionando ao mercado produtos com menor preço, o que gera

maior volume de venda. O suvenir sugere o entendimento de “coisas menores”,

isto é, objetos de tamanho reduzido, fáceis de carregar e expressam a condição

de relíquia que traduz a idéia de lembrança do lugar visitado. A compra do suvenir

é um ritual de aquisição de objetos simbólicos que estão ligados a cidade, região

ou o local visitado, ou seja, possuem o nome ou são réplicas dos atrativos, no

sentido de divulgá-la e conferir ao turista o status social da visita. São atributos

valorizados por um mercado globalizado, ávido por produtos diferenciados e que

atende a uma demanda mercadológica detectada também na Região Trinacional

do Iguaçu. Este significado construído necessita de uma força performativa

(Bourdieu) que coloque o seu significado no círculo de consumo. Este papel é

exercido pela Itaipu Binacional e seus programas de assistência aos

remanescentes residentes na colônia Ocoy.

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3.2 O Artesanato Guarani

A menção dos índios guaranis como sujeitos históricos possivelmente

responda a uma questão estratégica do marketing para o Artesanato de

Referência Cultural da chamada Região Trinacional do Iguaçu. Registros do

século XVI apontam a existência de núcleos guaranis distribuídos ao largo de

toda a margem oriental do Paraguai e pelas duas margens do rio Paraná, limitado

ao norte pelo Rio Tietê e ao oeste pelo Rio Paraguai. O núcleo de Iguaçu,

localizado na confluência dos rios Iguaçu e Paraná era, no período, o mais

povoado pelos guaranis de diversos troncos culturais. Depois, porém, com o fim

das missões jesuíticas e a migração da população branca para esse território,

houve um declínio forçado da população indígena.

Na região Oeste do Paraná encontram-se três comunidades guaranis que

participam do “Programa de Sustentabilidade de Comunidades Indígenas” da

Itaipu Binacional: Tekoha Ocoy (São Miguel do Iguaçu), Tekoha Añetete e Tekoha

Itamarã (Diamante D´Oeste). O discurso oficial de Itaipu afirma que há o

desenvolvimento de ações integradoras dos habitantes desses assentamentos.

Programas foram criados para os municípios lindeiros ao Lago e especificamente

para as comunidades indígenas. Esta representação é veiculada mediante ações

de “conscientização” que promovem encontros locais, regionais e internacionais.

No site do programa lê-se:

[...] o programa objetiva promover condições para a sustentabilidade do modo de vida guarani, promovendo o respeito à diversidade e a valorização da alteridade, considerando os seguintes eixos: melhoria da infraestrutura; produção agropecuária; fortalecimento da diversidade cultural; estímulo à formação de parcerias; e segurança alimentar e nutricional.

(Fonte: <http://www.cultivandoaguaboa.com.br/>. Acesso em: 26 fev. 2014).

O Programa define-se, portanto, como uma ação assistencial e

integracionista para o modo de vida dos assentados remanescentes guaranis que

foram deslocados pela formação do reservatório de Itaipu. Nestas representações

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estão presentes apelos a certos mitos construídos sobre o modo de ser dos

guaranis ancestrais. No entanto, trata-se de arremedos de mundo, de costuras,

de composições, de chevauchement, de sobreposições imaginadas, visto que os

homens do tempo presente pouco se reconhecem no interior das mesmas

representações. No imaginário guarani, constatou-se que há a presença da árvore

como ícone forte ou imagem referencial. Mas nosso informante lembra mais

facilmente de madeiras utilizadas no artesanato feito por eles e vendido nas ruas

de Foz do Iguaçu.

O artesanato, para esses indígenas, está intimamente relacionado com as

atividades do cotidiano, pela confecção de instrumentos utilitários e para uso nos

rituais. Nas comunidades Ocoy, Añetete e Itamarã, os indígenas trabalham

principalmente com materiais naturais como madeira, bambu, folhas de

bananeira, cabaça, sementes e penas. Seus trabalhos são expostos e vendidos

no “atelier” da aldeia, na rua, em pontos de visitação, em exposições, em visitas a

lugares de grande circulação e também nas lojas do Programa Ñadeva.

Quando existe a venda direta (índio/comprador), geralmente nas ruas, é

recorrente o uso de crianças para convencer o consumidor. Este é outro circuito,

não oficial, autônomo.

Próximo a restaurantes, churrascarias ou estabelecimentos comerciais em

que se nota uma clientela predominantemente formada por turistas é possível

conhecer outro tipo de indígena, diferente dos guaranis. Geralmente se vestem

como índios norte-americanos, com grandes cocares e adereços, e muitos deles

além de vender pulseiras e colares, vendem CDs, tocam e comercializam a flauta

pan e outros tipos de apitos. É o caso de uma pequena família equatorianos da

etnia Aimarã que armam seus badulaques junto a uma kombi, próximo à entrada

do Parque Nacional do Iguaçu e Parque das Aves.

Neste aspecto é interessante observar que isso faz lembrar um efeito de

recursividade. O índio buscando vender (divulgar) um símbolo de si mesmo, e que

na verdade é uma imagem projetada de um arquétipo. Como um ídolo da massa

media, onde o ser real é diferente daquele que assume papéis para o consumo e

satisfação dos fãs. Neste caso, o artesanato não responde mais a necessidades

rituais da comunidade, mas sim satisfaz uma necessidade material de

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sobrevivência inserido num circuito de produção e consumo. Não é possível

identificar nesta bricolagem30 se o remanescente indígena imita o programa oficial

de Itaipu que oferece produtos a um mercado específico ou se aprendeu por sua

própria necessidade que há um público consumidor que adquire “um pouco de

cultura do outro” mediante seus souvenirs. É possível sim, diferenciar os modos

de vida que ambos os projetos sustentam e que são divergentes.

Ao se considerar que um objeto indígena possui qualidades artísticas,

podemos estar lidando com conceitos que são próprios da civilização ocidental,

mas estranhos ao índio. Muitos povos não possuem nenhuma palavra para

designar arte. No entanto, os objetos produzidos pelos índios têm exercido grande

fascínio sobre os ocidentais desde os primeiros contatos, e tem sido difícil evitar

atribuir-lhes qualidades artísticas pelo seu grande apelo plástico, pela sua

originalidade, pela aura de mistério e exotismo que cerca suas culturas, pelas

suas associações simbólicas e sociais, pelas suas funções rituais ou mágicas,

elementos que são importantes também na definição ocidental de várias

categorias artísticas.

Nestas tradições indígenas, no entanto, as produções são quase

invariavelmente destinadas a algum uso. Confundem-se para eles arte e artefato,

não existindo a ideia de arte por si mesma, aquela entendida primariamente para

o puro desfrute estético. Isso, no entanto, não quer dizer que os índios não

saibam o que é beleza. Ao contrário, sua sensibilidade para a beleza é grande.

Mas principalmente, os objetos decorados, os entalhes, a cestaria, a cerâmica, a

ornamentação corporal, a música, a dança, servem a funções definidas, ou dizem

coisas específicas, utilizando uma linguagem de domínio público.

Não falta, no entanto, autores que atribuem um sentido artístico para a

produção artesanal indígena. Ribeiro por exemplo afirma que:

A arte impregna todas as esferas da vida do indígena brasileiro. A casa, a disposição espacial, os meios de transporte, os objetos de uso cotidiano e, principalmente, os de cunho ritual estão embebidos de uma vontade de beleza e de expressão simbólica. Estas características transparecem quando se observa que o índio emprega mais esforço e mais tempo na produção de seus

30

Trabalho ou conjunto de trabalhos manuais, ou de artesanato.

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artefatos que o necessário aos fins utilitários a que se destinam; e quando passa horas a fio ocupado na ornamentação e simbolização do próprio corpo. Neste sentido, a arte indígena reflete um desejo de fruição estética e de comunicação de uma linguagem visual”. (RIBEIRO, 1989, p. 13).

Arte, portanto, seria a utilização do tempo de modo diferente,

ornamentando e ornamentando-se; uma espécie de contraposição ao tempo do

trabalho. Contudo, quando em Ocoy se observa que os remanescentes indígenas

são colocados em um circuito de produção e assumem parcialmente este projeto,

ou mesmo vendendo na rua o produto artesanal, esta representação de arte

firmada por Ribeiro, não se confirma, visto que tal artesanato é oferecido como

produto, ou seja, não tem qualquer sacralidade.

Um elemento de discussão nesta questão da estética, foi dado há algum

tempo, por Lévi-Strauss. Ele afirmou não crer que, no âmbito tribal a arte seja um

elemento isolado:

“Não creio que a arte ocorra como um fenômeno completamente separado como ele costuma ser em nossa sociedade. Nessa sociedade tudo tende a se separar: a ciência se desliga da religião, a religião se desliga da história, e a arte se desliga de todo o resto. Nas sociedades estudadas pelos etnólogos, evidentemente, tudo isso se encontra unificado”. (STRAUSS, 1982, p.24).

Neste enfoque, faz-se necessário buscar bases sobre o conceito de

interpretação. A Antropologia Interpretativa exige grande rigor e precisão

conceitual. O antropólogo tenta entender o que acontece, mas também está no

meio do acontecimento. Por isso, teorias antropológicas também são temporárias,

elas também estão no meio da travessia.

A interpretação do que acontece, segundo Clifford Geertz, não pode se

distanciar daquilo que acontece. Para ele, o trabalho do antropólogo é realizar

etnografia. Um ser humano pode ser um enigma completo para outro ser humano.

Nós não compreendemos o povo, ainda que dominemos seu idioma. Nós não

podemos nos situar entre eles. Para Geertz, entender os objetos estéticos através

de uma interpretação é concebê-los como parte da cultura e da sociedade, é

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identificar os signos que neles se apresentam, ou se mantêm ocultos, e, com

esses signos, identificar no real o espírito, a sensibilidade, a experiência que os

estimula. Não como o pesquisador que acredita no desvelamento de um

significado oculto, mas como o crítico que acredita que "uma boa interpretação de

qualquer coisa - um poema, uma pessoa, uma história, um ritual, uma instituição,

uma sociedade - leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar".

Esse não é um exercício sociológico de atenuar dificuldades através da explicação, nem um exercício historiográfico de explicar apenas o contexto: é uma forma de chegar ao próprio objeto de estudo [...] Não podemos nunca entender, de forma adequada, a imaginação de outros povos ou de outras épocas, da mesma forma que entendemos a nossa. [...] Por mais estranhos que sejam os modos de pensar e os sentimentos de outras pessoas, estes podem, de alguma forma, ser relacionados com a maneira em que vivemos hoje. (GEERTZ, 1997, p. 65; 69; 73).

Com estes argumentos, não podemos sustentar que a arte indígena feita

em Ocoy seja a mesma arte produzida por guaranis do passado. Não podemos,

da mesma forma, afirma que o artesanato Ñandeva seja um artesanato indígena.

Há também muita dificuldade em sustentar a tese de que as peças artesanais

produzidas pelos remanescentes indígenas do Ocoy e vendidas na tríplice

fronteira, tenham um sentido cultural artístico que pertença somente ao grupo

antropológico. De modo especial, justamente pela definição territorial da fronteira,

muitos jogos linguísticos são possíveis e intercambiáveis, não sendo possível

falar de uma cultura pura, isolada ou sobreposta às outras 71 etnias presentes,

segundo dados oficiais. É necessário entender que a fruência do tempo presente

permite que os atores se apropriem das representações para criar os sentidos

mais diversos da existência” (SANTOS, 2014)

É no tempo presente que a "arte" indígena passa por um forte apelo

imagético e seu forte utilitarismo produzido pelas muitas agências interessadas

neste circuito. Pode ser tratado como “arte tradicional” porque tende a certos

padrões construídos coletivamente por um grupo social, que desenvolvem

pequenas variações ao longo do tempo, tomando formas, usos e significados

estáveis bem caracterizados. Isso é o que permite distinguir os trabalhos de uma

tribo dos de outras, e aproxima a sua arte do folclore. Nesta “arte” imagética,

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também não existe a figura do artista como um indivíduo cuja preocupação maior

é com a criação incessante do novo ou com a satisfação do consumidor. A mão

individual, porém, sempre deixa marcas reconhecíveis na obra, uma marca que,

permanecendo dentro de limites estreitos, é apreciada, e que também permite

reconhecer os mestres em cada especialidade, cujo trabalho se destaca entre os

demais e os habilita a ensinar a outros a tradição.

O artesanato indígena caracteriza-se principalmente por seu estilo tribal, a

tal ponto que, por esse critério, pode-se distinguir e classificar numerosas tribos

pelo artesanato tradicional, típico de cada uma. Este “estilo” de design encontra-

se hoje vastamente replicado em diversos segmentos da sociedade como forma

artificial de caracterizar marcas, logotipos, tatuagens, nomes, e outros diversos

empreendimentos com o intuito de ligá-los com o universo indígena,

proporcionando dessa forma, um conceito agregado de valores utópicos ao tipo

“ocidental” comum. Este design quase sempre cumpre uma tarefa meramente

estética e decorativa, uma falsificação variada que não implica obrigatoriamente

com os significados simbólicos atribuídos à grafia indígena original. Seria algo

como um “não índio” convertendo o traço indígena a um patamar aperfeiçoado,

adequado ao design da moda do mercado atual.

O trabalho de construção artesanal, neste aspecto, não poderia ser

associado ao conceito atual de “trabalho”. Enquanto resultado do grupo, o

artesanato era geralmente motivado por ocasiões precedentes a festas e outras

ritualizações próprias da tribo. Com o passar do tempo, estas manifestações

artesanais foram afetadas e desvirtuadas por várias causas. Primeiro pela

introdução europeia e uso de instrumentos de ferro, facas, machados e anzóis,

principalmente, e também pela de produtos industrializados e meios mecânicos

de trabalho.

A ferramenta e a máquina, inegavelmente, causaram redução de tempo de

trabalho e rapidez da produção artesanal. Uma produção artística, que era

concebida penosamente, mas com prazer e deleite, para a satisfação íntima da

alma e manutenção da tradição tribal, passou a ser feita “mecanicamente” para

atender uma demanda econômica, pois a tribo passou a “necessitar” de outros

subsídios outrora desnecessários.

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No modo como a proporção de índios e tribos diminui, cresce a raridade das

peças artesanais genuínas, autênticas e puras. E com ela, a demanda e o preço. Todo

esse processo de descaracterização é marcado pela perda de importância do trabalho

com as mãos, já chamado de “mímico”. O que causa, cada vez mais, o aumento do

valor monetário corrente dos objetos hand made, por sua excepcionalidade.

Crescente, na razão direta do aumento de produção automatizada.

Trabalho, ferramentas e mercado são a realidade dos remanescentes na

fronteira brasileira de Foz do Iguaçu. Os guaranis são ensinados e introduzidos

naturalmente ao mercado para consumo.

3.3 O Artesanato institucionalizado

O artesanato insere-se como produto turístico, conjunto de bens e serviços

relacionados a toda e qualquer atividade deste setor. Sendo Foz do Iguaçu

considerada como importante centro econômico de vocação turística, a atividade

do artesanato na região vem se desenvolvendo e se organizando já há algum

tempo. O Assessor de Eventos da Fundação Cultural de Foz do Iguaçu, Paulo

Rigotti, disponibilizou fotos e documentos do acervo da Fundação que registram

esforços de institucionalização da atividade de artesanato na cidade desde a

década de 70, com a criação da FARTAL – Feira de Artesanato e Alimentos; e a

COART, Cooperativa de Artesanato de Foz do Iguaçu.

Figura 15 – Cartaz da Fartal 1978 – Acervo Fundação Cultural de Foz do Iguaçu.

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Figura 16 – Sede da Coart. Fonte: http://www.viajenodetalhe.com.br

Em fins de l976 a então Assessoria de Cultura da Representação da

Diretoria Geral da Itaipu Binacional em Foz do Iguaçu iniciou uma pesquisa

referente ao artesanato existente na região. A partir de então, começaram a ser

cadastrados os artesãos operantes, as técnicas empregadas e as matérias-

primas mais frequentes.

Paralelamente foi feita uma pesquisa específica sobre as olarias existentes

e a qualidade do barro, ficando provada a alta qualidade e a quantidade desta

matéria-prima na região. Constatados estes fatos planejou-se a criação de um

Centro de Cerâmica, que viria formar novos artesãos, dar trabalho organizado aos

atuais ceramistas, e ainda desenvolver uma cerâmica que reproduzisse a

cerâmica indígena regional, baseada na pesquisa arqueológica feita pela Itaipu

Binacional e Universidade Federal do Paraná.

Para imediato apoio aos artesãos, que praticamente não possuíam renda

alguma, foram organizadas feiras periódicas (3 por ano) desde final de 1976.

Surge assim, a 1ª FAL - Feira de Artesanato e Alimentos da Região, por ocasião

das comemorações alusivas ao aniversário da Revolução - 31 de março de l977.

No ano seguinte, a FAL passou a fazer parte das comemorações do aniversário

do Município de Foz do Iguaçu (10 de junho) e, através de um concurso, passa a

denominar-se FARTAL, tornando-se o maior e mais tradicional evento da cidade

até os dias atuais.

De início, não sendo suficiente o apoio econômico que estas feiras

periódicas davam aos artesãos, a necessidade da criação imediata do Centro de

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Cerâmica e subsequente criação de centros de trabalhos em madeira e outros

materiais, acelerou as solicitações de apoio a diversos órgãos estaduais e

federais. Reforçado o pedido da referida Assessoria pelo SINE do Paraná, a

mesma recebeu em agosto de 1978 a orientação do Plano Nacional de

Desenvolvimento do Artesanato - PNDA, através de seu Presidente e

Coordenador, Dr. Osvaldo de La Giustina. A orientação foi a seguinte: em vez da

criação de vários centros, deveria ser criada, num prazo de 10 a 15 dias, uma

Cooperativa que abrangesse todas as modalidades artesanais existentes na

região. A razão do prazo tão curto foi a existência da reserva de uma dotação de

CR$ 200.000,00 (duzentos mil cruzeiros), que deveria ser liberada imediatamente,

caso contrário a Região perderia este apoio.

A Assessoria da Representação da Diretoria Geral da Itaipu Binacional,

contando com o apoio e entusiasmo de seu Diretor na época, Dr. Wilson de

Souza Aguiar, do Incra Regional, do SINE do Paraná, do CEBRAE, do CEAG, das

Prefeituras Municipais de Foz do Iguaçu, Toledo, Marechal Cândido Rondon e

Guaíra, empreendeu viagem pela Região, e no dia 24 de agosto de 1978

coordenava a Assembléia de Constituição da Cooperativa de Artesanato da

Região Oeste e Sudoeste do Paraná Ltda - COART, que se realizou na sede da

Associação Comercial e Industrial de Foz do Iguaçu, com a presença do então

Representante do Incra, Sr. Hamilton Nunes, do Deputado Estadual Tércio Alves

Albuquerque, do Presidente do Sindicato Rural de Foz do Iguaçu, Sr. Cleodon

Albuquerque, do Representante do SINE, Sr. Daniel Smith; do Presidente da

Associação Comercial de Foz do Iguaçu, Sr. Fouad Fakih, de Representantes das

Prefeituras Municipais da Região, dos Assessores da Representação da Diretoria

Geral da Itaipu Binacional, Dr. Luiz Pernando Teigão e Srta. Aglaé Sinke

Guimarães, dos 28 sócios fundadores da Cooperativa e da Imprensa Estadual.

Sendo aprovado o Estatuto, foi eleita a primeira diretoria, composta de um

Conselho Administrativo (8 membros) e um Conselho Fiscal (6 membros). Desta

data, até 31 de março de 1979, quando se inaugurou a sede da COART,

houveram as seguintes realizações:

• em 21 de setembro de 1978 - Foi expedido pelo Incra, certificado de

Licença de Funcionamento sob nº 2681/78

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• em 20 de outubro de 1978 - Registro na Junta Comercial do Paraná

41.400.000.109

• em 26 de outubro de 1978 - Cadastro no Ministério da Fazenda: C.G.C.

77.944.817/0001-42

• em novembro de 1978 - a Prefeitura de Foz do Iguaçu concedeu

autorização para o uso da propriedade situada na Rua Quintino

Bocaiúva - 342, para a instalação da sede da COART.

• em 18 de dezembro de 1978 - Inscrição Estadual- Secretaria de

Finanças do Estado do Paraná nº 42.203.487-L

• ainda em dezembro – Deu-se início a obra de reforma e construção da

sede.

Como a COART, nesta ocasião, só possuía um capital de CR$ 3.300,00

proveniente das cotas das partes de 33 artesãos, não teria condições de

empreender sozinha esta obra. Com a aliança entre a Representação da Diretoria

Geral da Itaipu Binacional, ao SINE do Paraná e à Prefeitura de Foz do Iguaçu, foi

possível acelerar a liberação da verba de CR$ 200.000,00 do PNDA e conseguiu-

se do Prodopar - Programa de desenvolvimento do Oeste do Paraná, outra verba

de CR$400.000,00, que foram aplicadas na compra de equipamento, material

permanente e material de construção. A Comunidade da Região, especialmente a

de Foz do Iguaçu, muito contribui para o término deste empreendimento. Suas

doações alcançaram o montante de aproximadamente, CR$ 817.000,00.

Este esforço conjunto resultou na construção de:

• loja-exposição;

• depósito de estoque;

• escritório;

• oficina de cerâmica;

• conjunto de vestiário e banheiros;

• cômodo para a gerente;

• cozinha e sala de reuniões;

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• jardim para o lazer de turistas e população local.

A COART nasceu com dois objetivos básicos:

• dar apoio sócio-econômico ao artesão já existente na região de sua

abrangência.

• formar novos artesãos.

Em 1979, a COART contava com 47 artesãos provenientes dos municípios

de Foz do Iguaçu, São Miguel do Iguaçu, Cascavel, Toledo, Marechal Cândido

Rondon, Palotina e Guaíra. Atualmente, a COART encontra-se no mesmo local de

sua origem e seus objetivos. Na fala de nosso informante, os traços do tempo

presente e a rearticulação entre valor e estética: “a COART aprimorou-se para

organizar, estruturar e divulgar a atividade artesanal, dotando o artesão de um

ponto de venda para a produção e, ao mesmo tempo, preservando assim a arte e

a cultura antiga da região”. Dados oficiais estimam que são comercializados mais

de 2.000 peças de artesanato por mês, das mais variadas técnicas e materiais,

confeccionadas por artesãos do município e proximidades31.

A atual Presidente da COART, a artesã Nilse Mognol relata que a COART

integra hoje, juntamente com o Sebrae e o Conselho de Desenvolvimento dos

Municípios Lindeiros, o Programa Ñandeva, que tem como objetivo desenvolver o

artesanato típico local. Segundo ela, em 2004 foi estabelecido um convênio entre

o SEBRAE, prefeituras Municipais de Foz do Iguaçu, São Miguel do Iguaçu,

Marechal Cândido Rondon e Guaíra, a COART e as Associações de Artesãos dos

municípios lindeiros, surgindo assim o “Artesanato do Lago de Itaipu”. Através de

diagnóstico e diálogo entre os artesãos de cada município, se definiu a técnica e a

temática a ser desenvolvida. Paralelo a isto, foi implantado o Projeto Ñandeva no

PTI – Parque Tecnológico de Itaipu, o qual viabilizou um diálogo entre artesãos da

região e designers do Brasil e de fora do país para desenvolverem produtos de

alto valor agregado em cerâmica, madeira, fibras, fios e tecidos. Após dois anos,

o projeto Ñandeva incorporou o projeto Artesanato Lago de Itaipu, e o mesmo

passou a ser um só, intitulado como “Programa Ñandeva”. Com já dito em outros

31

Fonte: http://www.pmfi.pr.gov.br/turismo/%3Bjsessionid%3D4fbbfebed6e6cd93585ebb888fb1?idMenu=1231. Acesso em 08/02/2015.

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momentos do texto, embora haja um forte apelo da preservação da cultura

indígena, há muitos outros valores e objetivos incorporados no empreendimento.

No momento em que a cooperativa se constitui, atrai outras experiências e

valores, embora o apelo aos traços cerâmicos indígenas seja evidente.

3.4 O Programa Ñandeva e os guaranis

Ñandevas, também conhecidos como nhandeva ou nhandevas, é o nome

dado a um dos povos guaranis contemporâneos, que se autorreconhece como

Avá Katú Eté. São conhecidos também pelas expressões Xiripá, Ava-Xiripá,

Tsiripá e Apytare nos territórios em que habitam. Existem diversos sentidos em

que a expressão nhandeva é empregada em diferentes regiões. Na região do

Chaco, no Paraguai, a expressão está vinculada à língua tapiete, um dialeto

específico relacionado à língua nhandeva, sendo utilizada também nesta região

como uma denominação geral que abarca todos os grupos guaranis. Nhandeva é

também uma expressão existente nos outros dialetos guaranis como o embiá e

significa "nossa gente" ou "gente como a gente", dando conta de relações de

parentesco e pertença étnica. No Mato Grosso do Sul, por oposição aos caiouás,

os nhandevas são designados simplesmente como "guaranis".

O programa de artesanato Ñandeva apropria-se desta nomenclatura,

traduzindo seu significado do idioma guarani para “Todos nós”, com intuito de

criar um conceito de integração entre os artesãos inscritos no programa e sua

relação com a região32. O programa surgiu para oferecer suporte às necessidades

de produção artesanal, transferência de tecnologias e abertura de canais de

comercialização, a fim de gerar oportunidades de emprego e renda para os

artesãos, buscando, desta forma, consolidar a produção artística do artesão e

garantir o desenvolvimento sustentável. Segundo informações contidas em seu

site institucional, o programa constitui-se numa organização sem fins lucrativos

32

Há uma deturpação de significado, pois que “nossa gente” remete à identidade grupal, enquanto que “todos nós” remete à ideia de aldeamento geral, como se, no interior de uma identidade nacional, todos fôssemos de fato iguais. Na vida cotidiana da fronteira, o guarani é aldeado, vai para o Ocoy. Então é uma “igualdade” que aprisiona, delimita, cerca.

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que apoia o desenvolvimento do artesanato na categoria “de referência cultural”.

Definiu-se que sua finalidade é:

[...] a busca pelo fortalecimento de uma identidade cultural da Região Trinacional do Iguaçu (região de fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai) através da inserção de elementos e ícones que remetem à cultura destes povos, com foco no setor artesanal e design. São articuladas ações para a capacitação, contribuindo para a melhoria da qualidade das peças, transferência de tecnologias aplicadas ao artesanato e a busca por canais de comercialização dos produtos, gerando emprego e renda para os artesãos”. (Fonte: <http://www.nandeva.org/pt-br/quem-somos>. Acesso em: 26 fev. 2014).

O Programa foi oficialmente instituído em 2006 através de um Plano Diretor

Trinacional elaborado por 23 entidades da região e sua área de abrangência está

situada ao longo do rio Paraná, numa extensão de aproximadamente 600 km,

compartilhados pelos três países. Hoje a marca Ñandeva no Brasil é de

propriedade da Fundação Parque Tecnológico de Itaipu - FPTI/Brasil; na

Argentina é de propriedade da FAM – Fundacion de Artesanías Misioneras; e no

Paraguay, do Parque Tecnológico de Itaipu - PTI/Paraguai.

O programa Ñandeva tem como seu público-alvo os artesãos,

cooperativas, associações e empreendimentos do setor artesanal, abrangendo os

3 países e 25 municípios, sendo 09 no Paraguai, 08 na Argentina e 08 no Brasil.

As cidades brasileiras abrangidas são: Guaíra, Marechal Cândido Rondon, Santa

Helena, Pato Bragado, Itaipulândia, Medianeira, Santa Terezinha de Itaipu e Foz

do Iguaçu, sendo o Centro de Cultura e Tecnologia para o Artesanato (CCTA) a

sede brasileira do programa, localizada na Fundação Parque Tecnológico de

Itaipu (FPTI) em Foz do Iguaçu, PR. Na Argentina, abrange os municípios do

estado de Misiones, saindo de Puerto Iguazu até Posadas. E no Paraguai, de

Ciudad del Este até Encarnacion, na região compreendida pelo estado de Alto

Paraná e Itapúa.

Desde sua origem, a iniciativa conta com o apoio de associações de

artesãos, associações comerciais, prefeituras, dos três países. Além destas

instituições, conta ainda, do lado brasileiro, com o apoio do Ministério do Turismo

(MTur), Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comercio Exterior (MIDIC),

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Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), Ministério de Ciência e Tecnologia,

Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), Instituto de

Tecnologia Aplicada e Inovação (ITAI), Universidade Estadual do Oeste do

Paraná (UNIOESTE) e do Conselho de Desenvolvimento dos Municípios

Lindeiros ao lago de Itaipu. Da Argentina, a Faculdade de Artes de Oberá UNAM,

e Consejo Federal de Inversiones (CFI); e do Paraguai, o Instituto Paraguaio de

Artesanato (IPA), além da Itaipu Binacional.

Os produtos do segmento turístico do Programa são vendidos por meio de

revenda ou venda direta. A revenda ocorre quando o produto é comercializado

pelo programa para outras lojas, como é o caso dos produtos revendidos na loja

do Centro de Recepção de Visitantes (CRV) na Itaipu Binacional. A venda direta

engloba os produtos comercializados nas lojas com a marca própria Ñandeva,

que são destinadas exclusivamente para a venda dos produtos com a marca do

programa, e nas lojas da Cooperativa de Artesanato (COART) que comercializa

tanto produtos da Coart quanto do Ñandeva. Afirma-se que a parceria não tem

fins lucrativos e o valor pago na compra dos produtos é destinado aos custos de

operação de vendas, sendo revertido para o setor artesanal da região Trinacional

do Iguaçu. No total, são três pontos ativos de venda direta de produtos artesanais

para o mercado turístico através do programa: no Hotel das Cataratas, na

Fundação Parque Tecnológico de Itaipu e na loja da Coart.

Para vender seu produto por meio do Ñandeva, o artesão cadastrado

define o preço do produto e o repassa ao programa, que acrescenta uma

porcentagem média de 25% referente aos gastos com a manutenção para

direcionar o produto para a revenda e adiciona 80% quando o produto é

comercializado na loja própria do programa (ÑANDEVA, 2011).

O Ñandeva promove, em parceiras com as instituições PTI-

Empreendedorismo e o SEBRAE, ações nas áreas de produção e

comercialização, sendo que para a transferência de tecnologia o programa realiza

oficinas e cursos. As oficinas são gratuitas e abertas ao público, sendo realizadas

no Centro de Cultura e Tecnologia do Artesanato (CCTA), localizado no Parque

Tecnológico de Itaipu em Foz do Iguaçu, que além de sediar o escritório central

do Programa Ñandeva, possui laboratórios de madeira, cerâmica, fios e tecidos,

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joalheria, fibras e couro. (ÑANDEVA, 2011). As ações não são restritas aos

remanescentes indígenas, mas abertas para artesãos ou aprendizes de

artesanato. No site do programa, há uma galeria de sócios artesãos. Não há um

único artesão indígena nesta galeria; há um ícone que menciona “comunidade

Ocoy São Miguel”33 e um texto que afirma: “O artesanato é alternativa sustentável

para todas as famílias indígenas, fazendo parte de muitas histórias. Fazemos

parte do Ñandeva há 7 anos, o programa é um órgão que facilita todos os cursos,

e nos auxilia na comercialização”. Um sujeito ausente, mas que “representa” o

pensamento de “todos nós”.

Segundo declara o site institucional da organização, os produtos artesanais

desenvolvidos com o apoio do Programa Ñandeva caracterizam-se pela

combinação entre o cuidado com a natureza, a cultura da região e a criatividade

do artesão. Por isso, cada peça é exclusiva, podendo haver pequenas variações

de cores, tamanhos, formatos, materiais e uso da iconografia. As matérias primas

utilizadas na confecção dos produtos são de dois tipos: natural e processada,

sendo que ambas podem ser de origem mineral, vegetal ou animal. Dentro do tipo

natural estão: argila, pedra, fibras, madeira, couro, osso, penas, lã, semente e

cascas. A processada envolve metais, vidro, plástico, parafina, fios, tecidos,

papel, couro, lã e fio de seda.

As simbologias iconográficas que são aplicadas ou servem de premissas

para a confecção das peças é resultado de um trabalho de campo realizado por

pesquisadores que identificaram “elementos característicos da região”. Com

esses dados, um grupo de designers visitou 28 municípios da região Trinacional,

sob orientação do designer italiano Giulio Vinaccia, para colher imagens dos

elementos. Vinaccia reúne nomes expressivos da mídia comercial como a Ducatti,

Yamaha, Pirelli e Ferrari. Seu trabalho na fronteira resultou em um banco de

imagens com aproximadamente cinco mil fotos, que serviu de base para a criação

dos primeiros 450 símbolos característicos da região como proposta para uma

“referência cultural”.

Este trabalho culminou com a elaboração do livro "Elementos da

iconografia das Três Fronteiras", com a proposta de ser um “manual de trabalho”

33

http://www.nandeva.org/pt-br/artesao/comunidades-indigenas

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para o artesanato de referência cultural do Ñandeva. Lançado em julho de 2007

num evento suntuoso, a pesquisa apresentada no livro foi dividida em dois

volumes, num total de 832 páginas, subdividido em oito capítulos: colonização,

arquitetura, nação guarani, reduções jesuíticas, flora e fauna, artes plásticas,

turismo e geografia; o livro traz informações sobre o significado de cada ícone e

sugestões de aplicação em artesanato ou diversos outros fins. A obra conta ainda

com o prefácio das seguintes autoridades de então: Sr. Luis Jacobo, Ministro de

Ecologia y Turismo da província de Misiones; Sra. Vera Mussi, Secretária de

Cultura do estado do Paraná; e do Sr. Bruno Barrios Sosa, da Secretaria Nacional

de Cultura do Paraguay.

Giulio Vinaccia, autor do livro e consultor do Ñandeva no início do

programa, também participou do lançamento do livro. Vinaccia é responsável pela

criação da coleção de produtos para motociclismo da Ferrari e pela iconografia do

Caminho de Santiago de Compostela, entre outros.

Gorette Milioli34, atual coordenadora executiva do Ñandeva, acrescenta

que, apesar de todo investimento financeiro e humano aplicado nesse

empreendimento, este trabalho recebeu duras críticas por parte de artesãos

integrantes do programa e de membros da comunidade em geral, que não

concordaram que uma “referência cultural da região” fosse presumida pela ótica

de um estrangeiro. Pior ainda é que, por conta disso, muitos julgam o trabalho

apresentado no livro como algo elaborado sem um critério lógico plausível. A

maioria das imagens seriam de objetos sem importância, fotografados como que

aleatoriamente. Isso fez com que o livro obtivesse uma mísera porcentagem de

aproveitamento técnico. “Bonito de se ver, mas sem utilidade prática”.

Outra relação carregada de interferências pode ser percebida entre a

cultura indígena e os processos comerciais da contemporaneidade. O cacique

Daniel, da aldeia Ocoy em São Miguel do Iguaçu, relata que uma das grandes

riquezas culturais conhecidas nas comunidades indígenas é o artesanato.

Existem os mais diversos tipos: colares, pulseiras, brincos, anéis, saias, cocares,

cerâmicas e também artesanatos que além de serem instrumentos de caças e

34

Entrevista concedida em 17/09/2014.

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pescas são utilizados nas danças e rituais de algumas comunidades como a

maraca, a borduna, e o arco e flecha.

Os materiais mais utilizados na aldeia para a fabricação do artesanato são

as sementes, palhas, madeiras, barro, penas e ossos de animais, coletados

conforme conseguem encontrar no meio ambiente que os cerca. Ele relata que

todos fazem isso de modo que os velhos repassam para os mais jovens,

mantendo dessa forma, algumas características de grupo.

No entanto, observa-se que há a intrusão de elementos estranhos neste

jeito de fazer. A Prefeitura de São Miguel do Iguaçu, com o apoio de Itaipu,

mantém uma professora de artesanato e um funcionário da secretaria municipal

de agricultura, que atualmente coordenam o Núcleo Artístico Cultural Indígena

nos trabalhos realizados em uma oficina dentro da aldeia, própria para este fim. O

Núcleo busca auxiliar a atividade comercial do artesanato, fomentando canais de

venda, a organização, planejamento e logística comercial, a sistemática de

produção e o padrão de qualidade das peças produzidas. Segundo eles, esta

“intervenção” é necessária, pois a prática organizacional de comércio não é algo

típico da cultura guarani. Contudo, salientam que os planos de ação são

prioritariamente formulados pelos guaranis, tendo a função do núcleo como

facilitadores dos processos, o que não objetiva a intervenção na cultura deles. O

artesanato é produzido por cerca de 50 indígenas. Esta atividade gerou, de

janeiro a setembro de 2013, uma renda de cerca de R$ 32 mil reais35.

Já o Programa Ñandeva atua como um dos principais “clientes” dos

guaranis. Os produtos artesanais são encomendados de acordo com o

planejamento comercial da organização e atendendo a demanda das lojas

credenciadas, ou mesmo da participação do programa em eventos realizados

periodicamente. O Núcleo de Artesanato de São Miguel do Iguaçu envia ao

Ñandeva a quantidade de peças solicitadas. Estas, e propostas de novos

produtos artesanais produzidos, são previamente inspecionadas para que

atendam ao padrão de qualidade comercial a que o programa se destina,

recebendo então, na sua aprovação, a etiqueta do Ñandeva, que é como um “selo

de qualificação”. Neste critério, existe a orientação de designers do Ñandeva que

35

Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/noticias?id=132308&id_pov=81. Acesso em: 17/06/2014.

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avaliam se as peças estão de acordo com o desejado ou precisam retornar à tribo

para receber “ajustes”; ou são simplesmente rejeitadas. Os critérios de avaliação

estabelecidos pelo programa para a certificação são: qualidade, valor estético

cultural, adequação de embalagem, identidade regional, o não uso de produtos

tóxicos e de mão de obra infantil. A racionalidade econômica fica evidente, onde

todo o exercício é feito no sentido insertivo do sujeito e seu trabalho na ordem do

consumo. Uma perfeita imitação da produção em série.

Mas no portfólio do programa há um apelo para o valor artístico, com a

seguinte narrativa:

Se o enfoque Ñandeva, no que diz respeito à preservação da memória guarani, é dar-lhe visibilidade para contribuir com a preservação de sua identidade cultural, para os artesãos de ascendência europeia, recém-chegados ao território, o Programa trabalha em diferente sentido: auxiliá-los a construir referências e a extrair do impacto de suas culturas originais com a herança guarani a matéria-prima de uma nova arte, de um novo jeito de ver, sentir e interpretar o meio em que vivem. (Ñandeva, 2010. Pg 109.)

Embora o uso de materiais e o jeito de fazer artesanato se distanciem cada

vez mais do trabalho produzido pelo Ñandeva e pelas peças dos designers,

apela-se justamente por isto, a “alguns traços” de uma cultura fragmentada. Dos

animais entalhados em madeira às cestas de bambu e fibras de bananeira,

procura-se um vínculo a crenças e costumes tradicionais, porém não são mais

que corpos vagos, vazios de sentido. O circuito agora é outro em face da

desterritorialização do mundo, isso aprofundado pelo reassentamento em 1982. O

caos do “nomos” cria pequenos circuitos possíveis. Os guaranis de atualmente

não são mais os guaranis de outrora. O que há é um cultivo de lembranças que

servem de motivadores para respostas cotidianas, ou seja, faz-se a recomposição

de fragmentos de memória modificados pelas intervenções sociopolíticas na

fronteira. Essas modificações, por sua vez, provocam novas interpretações e

forçam a novas respostas.

O Ñandeva jamais será cultura indígena. Ela é mais ampla e carregada de

outros sentidos. Isso está dito na Missão do Programa:

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Fortalecer a identidade cultural da Região Trinacional do Iguaçu, com foco no setor artesanal e design, articulando ações para capacitação, transferência de tecnologia e geração de emprego e renda. (<http://www.nandeva.org/pt-br/quem-somos>).

Isto está explícito que não se trata de cultura indígena no programa da

Cooperativa; os traços criados por Vinaccia também denuncia este aspecto. O

cacique acrescenta que “desde sempre” é costume dos guaranis confeccionarem

cestos, balaios, arte plumária, adereços e pinturas corporais. Porém a escultura

de animais (vicho ranga), não era habitual na aldeia até o ano de 1994. A partir da

incorporação desta prática é que surge também a produção da obra “árvore da

vida”, cuja autoria original ele não soube precisar. Ou seja, após o tempo do

Grande Dilúvio na fronteira, a vida cotidiana tomou novo rumo. Foi necessário

aprender a fazer do artesanato um produto, usar materiais até então

desconhecidos. O imaginário da árvore, tão presente por entre os contos, cantos,

lendas e da vida territorial indígena, toma outra forma: um adorno para as salas

decoradas de brasileiros e estrangeiros que visitam Foz do Iguaçu.

Sobre a árvore da vida, ele finaliza lembrando com bom-humor que no

programa Ñandeva a imagem da árvore com os bichos em seus galhos foi

redesenhada (iconografada) de forma errada, pois capivaras e tartarugas não

sobem em árvores, coisa que não se vê na escultura produzida na aldeia. Falhas

dos designers que conheciam sobre os bichos e seus modos de vida? Linguagem

abstrata? Difícil decifrar. No entanto, o Cacique deixa claro: na nossa linguagem e

conhecimento, tartaruga e capivara não sobre em árvores. Um mesmo objeto,

visto do ponto de vista diferente. A peça mencionada pelo cacique, segue abaixo.

A narrativa do cacique tramita entre aquilo que é realmente fazer cotidiano

e que marca a existência do grupo, e que tem pertencimento simbólico, sendo,

portanto, referência cultural. Compreende os dois cenários, o da história e o da

ironia. Porém, estrategicamente, joga com ela e, bem possivelmente, até onde lhe

parecer vantajoso. Assim parece ser também o diálogo com o projeto escolar. É

ironia a escola existente na aldeia desejar “recuperar” o índio. No entanto, de

alguma forma, ela deve contribuir para a cosmologia territorial guarani hoje,

porque tem continuidade.

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Figura 17 - Ícone “A Árvore da Vida” do Programa Ñandeva Fonte: http/www.nandeva.org

A simbologia iconográfica foi concebida a partir de uma pesquisa

fotográfica local, onde foram feitos registros de elementos característicos (objetos,

fauna e flora, tipos de materiais) que serviram de premissas para a concepção

dos ícones. A partir de então, profissionais da área de design trabalharam as

peças, criando a impressão iconográfica moderna e o uso de materiais diversos

atendendo ao requinte dos possíveis consumidores. Daí decorre a razão da

imersão do leitor na apresentação da peça citada acima.

Esta terceira variação sobre o mesmo tema apareceu sem autoria definida,

assim como as anteriores. Contudo, por se tratar de um ícone com traço gráfico

mais simples e monocromático, dentre os três modelos apresentados talvez seja

o mais popular, certamente pela versatilidade de sua aplicação, proporcionando

possibilidades diversas.

No livro "Elementos da iconografia das Três Fronteiras" a árvore da vida é

classificada sob o número 504. Segundo é possível constatar neste manual, o

ícone não foi concebido a partir da fotografia do Mymba Kuera, nem tão pouco da

escultura de madeira feita pelos guaranis, mas de uma “toalha bordada à mão

simbolizando a árvore da vida” (ÑANDEVA, 2007). Bem desenhada e colorida,

com os animais dispostos conforme a silhueta do ícone. Esta seria então outra

variação detectada (não oficial) da árvore da vida que teria sido concebida entre a

escultura e o ícone. O livro, contudo, não menciona seu autor, somente a cidade,

São Miguel do Iguaçu, onde certamente a foto que dá origem ao ícone foi tirada.

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Apesar de a imagem constar no capítulo intitulado “Nação Guarani” do manual, é

sabido que não é costume dos guaranis, especialmente os do Ocoy, a prática do

bordado. Isto se dá até mesmo por questões de limitação instrumental, pois a

imagem que se apresenta no livro, por sua complexidade, certamente teria sido

feita à máquina.

De qualquer forma, não é possível negar que, além desta, existam outras

réplicas, outras variações. Porém, de todas as árvores da vida pesquisadas aqui,

desde a foto, a escultura guarani, até o ícone e suas variações, a única coisa que

se pode afirmar é que não foi possível dar nome aos seus autores.

O ícone é largamente replicado, de várias formas, nas diversas peças de

artesanato de alguns artesãos ligados ao Ñandeva. Desde o início do programa, o

ícone da árvore da vida já foi transformado em troféu, placa condecorativa,

lembrança, dentre outras, ofertada a pessoas de destaque em eventos especiais,

especialmente os ligados à temática de sustentabilidade de Itaipu. No Parque

Tecnológico Itaipu (PTI) é possível conhecer um mosaico do ícone da árvore da

vida exposto num grande painel na parede de um dos blocos que fica defronte às

instalações da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), num

corredor de grande fluxo de estudantes. Curiosamente, neste painel a tartaruga é

exibida ao pé da árvore, perto das águas, e no seu lugar está uma cobra, coisa

que não se vê em outras representações deste mesmo ícone. Contudo a capivara

(que não sobe em árvores) ainda está lá. Outra variação da árvore da vida

também pode ser vista num quadro pendurado na parede do luxuoso saguão de

recepção do PTI.

Próximo dali o ícone também ganha destaque no Centro de Cultura e

Tecnologia do Artesanato (CCTA). Está estampado na parede da oficina do

Centro, em tamanho suficientemente convidativo para ser um dos principais locais

para se fotografar e levar como lembrança da visita feita ao local. A coordenadora

do centro, Gorette Milioli explica que, apesar do esforço de promover a árvore da

vida como “carro-chefe” do programa, hoje seu volume de vendas é equiparado à

de outras peças comercializadas pelo Ñandeva. Tudo depende do propósito do

local ou do evento onde a peça é vendida. No Centro de Recepção de Visitantes

de Itaipu, o artesanato de maior venda são os que figuram a Hidrelétrica. Da

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mesma forma são as que figuram as cataratas e animais silvestres em lojas nas

dependências do Parque Nacional do Iguaçu.

Apesar de ser um dos objetivos do Ñandeva, fortalecer a “referência cultural

da Região Trinacional do Iguaçu” através do artesanato, Gorette admite que a

Árvore da Vida está mais ligada à história de Itaipu do que à região como um todo.

Possivelmente exista uma carência de opções de artesanato que possam figurar

este posto de “artesanato de referência cultural da região”. Uma obra artística que

contemple a diversidade característica desta região do Oeste do Paraná.

Figura 18 - Mosaico “A Árvore da Vida” no PTI, realizado pelos alunos da oficina de mosaico, em maio de 2010, sob coordenação do Prof. Javier Guerrero (PTI, Ñandeva,

Itaipu, MCT, ITAI, Unila e Fundação Cultural).

Figura 19 – “A Árvore da Vida” num quadro sem autoria exposto na sala de recepção do

PTI. Fotos: Mac Fernandes.

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Este ícone, portanto, pode ter a força de representação de uma história

deslocada. Não se trata de conhecimento ancestral indígena nem de outro

artesão, mas de um ícone que remonte a uma historia do tempo presente: uma

história do alagamento, da cobertura da terra, de dilúvio provocado pela

intervenção na natureza. O ícone é uma imagem da agressão.

3.5 Outras ações

Este sentido da agressão está fortemente vinculado com o imaginário da

árvore. Ela é uma imagem signo muito forte que é manipulada por diversos atores

e muitas representações na vida contemporânea da fronteira. Em outros

discursos da Hidrelétrica, por exemplo, ela é perceptível. Segundo informações

veiculadas pelo site36 da hidrelétrica, com a incorporação da responsabilidade

social e ambiental na missão da Itaipu, em 2003 foi implantado, dentro do

Programa Cultivando Água Boa, o projeto Sustentabilidade das Comunidades

Indígenas, “com os objetivos de melhorar a infra-estrutura das aldeias, fortalecer a

autonomia e o sentimento de identidade étnica e cultural, e contribuir para a

valorização das tradições”. Segundo este objetivo institucional foram definidas as

seguintes metas:

Melhoria da infra-estrutura: adequação de estradas, construção de centro

de artesanato e nutrição na aldeia do Ocoy, casas de reza e habitações,

instalação de rede elétrica, de água e saneamento – sempre de acordo

com modelos aprovados pelos índios;

Fortalecimento da diversidade cultural: cursos de artesanato, cestaria,

argila, madeira, valorização da música e da dança;

Apoio à ampliação ou abertura de áreas agrícolas, preparo do solo para

plantio e estímulo à produção agrícola e pecuária pelo sistema orgânico;

Fornecimento de materiais, animais, mudas e sementes;

36

(Disponível em : http://www.itaipu.gov.br/en/node/202?voto=5. Acesso em 15/10/2014).

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Estímulo à formação de parcerias entre as comunidades indígenas e

agentes econômicos, como cooperativas, especialmente para a

comercialização de excedentes de produção e do artesanato;

Apoio à produção pesqueira em tanques-rede; e

Suplementação alimentar em caso de necessidade.

Ao utilizar este procedimento, a Itaipu não somente cria um circuito de

produção e consumo, mas está também formando um circuito de inserção de

modos de sobrevivência em que os remanescentes adotem meios e tecnologia

para a produção de sua sobrevivência. Neste aspecto, o artesanato não é

lembrado como arte expressiva da cultura indígena, mas como artefato gerador

de meios de sobrevivência. O sentido identitário de grupo, de usos culturais como

meio de ritualização que singulariza a existência do grupo não é a prioridade. Mas

o centro do discurso, “moldado como responsabilidade social e ambiental” e

dissemina ações ditas de preservação do meio e de culturas.

A viabilização deste projeto tem se dado por meio de um Comitê Gestor

composto por representantes das comunidades indígenas, prefeituras de São

Miguel do Iguaçu e Diamante do Oeste, e parceiros. A execução das ações

geralmente é viabilizada por convênios entre as os atores envolvidos.

Todas as metas acima referidas são acompanhadas por diversos parceiros

que compõem o comitê: Ministério Público Federal, Funai (Fundação Nacional do

Índio), Funasa (Fundação Nacional de Saúde), IAP (Instituto Ambiental do

Paraná), Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais

Renováveis), Prefeituras de São Miguel do Iguaçu e Diamante D’Oeste,

Cooperativa Agroindustrial Lar, Diocese de Foz do Iguaçu, Pastoral da Criança,

Centro Trinacional de Artesanato Ñandeva e, evidentemente, as próprias

comunidades indígenas.

Os resultados abrangem vários ramos de atividades: da produção ao lazer,

da educação à religiosidade. Destacam-se a implementação do artesanato em

escala comercial, viabilizado por meio de cursos e construção de local apropriado;

fortalecimento da atividade agropecuária; tratamento de doenças e vacinação;

construção de casas e instalação de tanques-redes para criação de peixe. Enfim,

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tenta-se envolver este sujeito na cultura local envolta com atividades econômicas

da produção agrícola, suína, bovina e piscicultura.

Em seu discurso oficial, Itaipu afirma que essas ações estão contribuindo

de maneira decisiva para a melhoria nos índices de saúde e educação dos índios,

especialmente pelo atendimento mensal prestado às crianças de 0 a 6 anos pelo

Programa Nutrição Infantil, que resultou no índice zero de mortalidade infantil e de

crianças em risco de desnutrição. Na sua maioria, elas estão incluídas nos

programas sociais do Governo Federal, como o Fome Zero.

No mesmo sentido, afirma-se que a segurança alimentar e nutricional das

famílias têm sido priorizada mediante incentivo e suporte técnico da Itaipu na

produção de grãos e leite e no cultivo de peixes: “Itaipu doa sementes e

maquinários para o plantio direto e comunitário, além de apoio no beneficiamento

da produção”. A mesma fonte afirma que “na aldeia Tekoha Añetete, por exemplo,

os próprios índios produzem e distribuem mensalmente 2.800 litros de leite. A

produção visa, prioritariamente, ao consumo familiar, focado na nutrição infantil”.

A questão da saúde indígena na fronteira do Brasil, Paraguai e Argentina é

outro flanco de ação que o projeto está abrindo. Para isso foi criado o Grupo de

Trabalho Saúde na Fronteira, para projetar ações conjuntas e coordenadas nos

três países (Brasil, Paraguai e Argentina). Neste aspecto, mais uma vez é notada

a intrusão de ações externas à cultura tradicional indígena, onde surge a

controvérsia sobre as formas de tratamento da medicina moderna frente à rica

diversidade de plantas, raízes curativas, e a própria função do pajé e seus

saberes milenares.

Por isso cabe ressaltar que no tempo presente, as representações

assumem várias formas, dependendo sempre a que tipo de apelo sofrem na

ordem cotidiana. Fala-se muito de artesanato de referência cultural. O muito que

se fala demonstra a diversidade de manipulação dos diversos atores. Como são

muitos os atores, não é uma somente a representação. Dilúvio, árvores, animais,

água são imagens fortes do imaginário desta fronteira. Com fruto da diversidade

cultural, muitos são seus sentidos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas últimas décadas a valorização da diversidade cultural vem sendo uma

tendência crescente na destinação de recursos e em políticas de governos, fóruns

e organizações transnacionais. Há um progressivo conceito de reconhecimento

de uma dívida histórica em relação às populações nativas que foram vítimas de

todo tipo de exploração, assim como um grande interesse - ecológico, científico,

econômico – pelos ecossistemas em que habitam muitos desses povos e seus

reconhecimento sobre eles. Mais do que um ato voluntário de governos e

instituições, porém, as conquistas em favor dos povos nativo resultam de suas

reivindicações e lutas ao longo dos anos.

No Brasil, a Constituição de 1988 foi um divisor de águas. Depois de

muitas batalhas e pressões do movimento indígena e seus aliados, reconheceu-

se aos povos indígenas o direito a uma cultura diferenciada, assim como direitos

originários (anteriores à formação do Brasil) às terras que tradicionalmente

ocupam e que sejam necessárias à sua reprodução física e cultural. É perceptível

que falta muito para estes e outros direitos posteriormente conquistados sejam

plenamente efetivados. Porém, em comparação com um passado recente, em

que predominava a ideia de que para único futuro para os índios era serem

integrados na “civilização”, o reconhecimento das culturas indígenas deu um novo

rumo a essa história.

Mas “cultura” também pode ser uma palavra perigosa. Assim como a

palavra “índio”, ela foi inventada pelos brancos para converter a diferença (que é

uma relação) em entidade (que é uma coisa). E pode acabar aprisionando numa

forma fixa algo que é movimento e fluxo. Ao dar o nome de cultura aos diferentes

modos de vida, os não-indígenas geralmente se empenham em registrar,

classificar e apresentar essas culturas em livros, museus e outras instituições. O

problema é o predomínio de uma visão de cultura como um conjunto de produtos,

técnicas e ideias que constitui o patrimônio de um povo, e que deve ser

preservado ou resgatado. Só que a vida não é um patrimônio que possa ser

separado da história ou resgatado do passado como se fosse uma coisa. A vida é

feita de relações entre pessoas, e desta com o mundo, relações que precisam ser

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cotidianamente cultivadas e reinventadas. Há, portanto, uma preocupação com a

preservação das coisas (como o artesanato, a música, a dança, as casas e festas

tradicionais), mas nem sempre com as condições de vida e concepções de

mundo que produziram e que dão sentido a essas coisas.

A valorização das expressões culturais remete, portanto, a uma dimensão de

cultura como verbo, movimento, e não por formas ou sistemas fixos e folclorizados

por aqueles que olham de fora, de longe e de cima. É a cultura como modos de

construção e significação do mundo, equacionando continuidades e atualizações

para que a diversidade cultural não seja vista como um mostruário de exotismos,

mas um campo de trocas, reflexões e conexões que não resultam em

homogeneização, mas na coexistência de diferenças, o que implica um exercício

político continuado e uma extrema criatividade por parte de todos. É aqui que se

situa as diversidades e as divergências dos atores. A obras dos artistas Elementos

da Iconografia das Três Fronteiras, foi produzida a partir de traços que não mais

são sustentados por sentidos tradicionais. Eles se perderam no tempo. No entanto,

como efeito de linguagem, eles apelam para este texto exótico em atendimento a

um público consumidor que insiste em adornar sua sala como se fosse a tenda de

pajelanças do cacique. Mesmo se “uma capivara não suba em árvores”. Ao mesmo

tempo, o sujeito indígena herói de outrora agora reduzido em uma aldeia moderna,

com luz, água tratada, casa de alvenaria e colchão de espuma é lembrando ainda

como sujeito ao meio ambiente quando, as práticas conservacionistas da água e do

solo o recolocam novamente neste meio natural.

O produto do trabalho artesanal na fronteira é dissociado entre estas

imagens fortes do imaginário local. Nele a árvore e o dilúvio estão presentes seja

no uso da madeira como material gerador do produto, seja na iconografia dos

animais subindo em árvores para fugir da morte.

Nesse contexto, as ditas expressões culturais, como no caso do

artesanato, é mais que um símbolo ou memória do passado, mas um projeto

contemporâneo que demonstra as profundas transformações e desigualdades

culturais na sociedade.

A deliberação da construção de uma obra como a Itaipu atendeu,

objetivamente, aos propósitos da macroeconomia do país. Nesse caso, o

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surgimento da ideia da construção da então maior usina hidroelétrica do mundo

em pleno regime militar brasileiro representou uma postura governamental

perante as demandas impostas pelo crescimento e demanda de energia elétrica e

a simbologia das grandes obras, pleiteada então pelo regime. Esse grande

empreendimento teve, contudo, um preço maior que o valor material. Além das

demandas particulares de quem estava tendo que sair de suas terras e

abandonar uma história de vida construída de forma colaborativa com dezenas de

outras pessoas pertencentes à comunidade, todos os municípios atingidos

perderam significativas quantidades de terras extremamente produtivas e

sofreram com o impacto das perdas de laços comunitários, separação de

comunidades e famílias, destruição de igrejas, capelas, cemitérios e inundação de

locais sagrados para comunidades indígenas e tradicionais.

Na área ambiental, as perdas foram sentidas com o desaparecimento do

hábitat de muitas espécies. O ecossistema aquático, por exemplo, isto é, a porção

do rio Paraná que formou o lago, deixou de ser um ambiente lótico (hábitat de

água corrente) para ser uma ambiente lêntico (hábitat de água parada), com

consequências ecológicas profundas.

Mesmo assim, contudo, o pensamento popular ensina que "Uma ostra que

não foi ferida não produz pérolas". Pérolas são produtos da dor, resultado da

entrada de uma substância estranha ou indesejável no interior da ostra que

resulta na formação de uma linda pérola. Grandes obras de arte nasceram em

tempos de adversidade, como algumas das mais significativas músicas da MPB,

que, nos tempos da ditadura militar, vinham carregadas de críticas subliminares

escondidas nas entrelinhas de seus poemas.

A beleza e a força simbólica da “Árvore da Vida” guarani do Programa

Ñandeva encontra-se nesse contexto. Trata-se de uma arte complexa, que

apresenta uma numerosa gama de possibilidades de interpretações e de

certificações teóricas interdisciplinares.

Mesmo que possa parecer de forma velada, fatos, mitos e imaginários

estão presentes e conectados. As imagens aqui descritas – o dilúvio, o “pega

bicho”, as palavras do cacique – não são representações soltas, mas estão

intrincadas em um imaginário que demonstra as articulações cotidianas de grupos

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sociais, quase sempre divergentes, que estão nessa territorialidade nominada de

tríplice fronteira.

A beleza da cultura local está na possibilidade de ocorrer esse diálogo

multicultural. Há, contudo, de ser notado que a história política hierarquiza esses

grupos através da apropriação/desapropriação de saberes. Os antigos guaranis –

hoje nominados de Pai-Tavytera, ou Kaiowa, Mbÿá e os Ñandeva que habitam a

reserva de Ocoy também têm o desafio de territorializar esse mesmo cotidiano. A

árvore parece adquirir o status de um ser que permite a (re)ligação desses

mundos (refiro-me aos grupos sociais) tão dispersos e tão desiguais, ainda que

conectados inconscientemente.

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(Brasil Diferente)