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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ LUZANILBA MOREIRA DA SILVA A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO PRESSUPOSTO DE EFETIVIDADE DO DIREITO HIMANO FUNDAMENTAL DE ACESSO À JUSTIÇA Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

LUZANILBA MOREIRA DA SILVA

A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO PRESSUPOSTO DE

EFETIVIDADE DO DIREITO HIMANO FUNDAMENTAL DE ACESSO À JUSTIÇA

Rio de Janeiro 2008

2

LUZANILBA MOREIRA DA SILVA

A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO PRESSUPOSTO DE

EFETIVIDADE DO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL DE ACESSO À JUSTIÇA

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

ORIENTADOR: PROF DR HUMBERTO DALLA BERNARDINA DE PINHO

Rio de Janeiro

2008

3

VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO PRESSUPOSTO DE

EFETIVIDADE DO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL DE ACESSO À JUSTIÇA

elaborada por

LUZANILBA MOREIRA DA SILVA e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado em Direito como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, de março de 2008

BANCA EXAMINADORA _________________________________________ Profº. Dr Humberto Dalla B de Pinho Universidade Estácio de Sá Orientador __________________________________________ Prof Universidade Estácio de Sá __________________________________________ Prof°. Dr Universidade

4

DEDICATÓRIA

Às mulheres que justificam o mais nobre dos sentimentos - o AMOR: filha Beatriz; tia-mãe Mariinha; irmã Luzanira e a melhor das amigas, Gecilda. Obrigada.

5

AGRADECIMENTOS

Aos professores Humberto Dalla B. de Pinho e Theophilo de Azeredo Santos, que ao longo do curso ultrapassaram a orientação acadêmica para direcionar-me na condução da própria vida.

6

RESUMO

A presente dissertação, dentro da Área de Concentração Direito Público e Evolução Social, na

linha de pesquisa a Legitimidade da Defensoria Pública como pressuposto de efetividade do

direito humano fundamental de acesso à Justiça, coordenado pelo prof. Dr. Humberto Dalla B

de Pinho, do Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá, analisa o contexto histórico

e a evolução da legislação constitucional e infraconstitucional que rege a Defensoria Pública,

bem como a doutrina e jurisprudência referente ao acesso à justiça e tutela coletivas. Com

essa orientação teórica, procura-se, através de interpretação principiológica, contribuir para

dirimir perplexidades que ainda persistem quanto às possibilidades e limite da ação da

Defensoria Pública. Para análise do tema, optou-se por uma abordagem principiológica-

constitucional, tomando-se como fontes, a par da legislação constitucional e

infraconstitucional, a doutrina produzida recentemente por pensadores do direito, sobre

formas de ampliação do acesso à justiça. Os principais resultados indicam que a Defensoria

Pública tem legitimidade para a defesa dos interesses difusos, na forma da recém-alteração da

Lei 7510/85. Ao final, apresentam-se conclusões referentes à ampliação dos procedimentos

processuais para a defesa da tutela coletiva, o que vem a contribuir para o acesso à Justiça.

Essas conclusões deixam claro que a inclusão da Defensoria Pública no seleto rol dos

legitimados para a defesa da tutela coletiva não enfraquece ou inibe a atribuição do Ministério

Público para promover a defesa desses mesmos interesses.

Palavras-chave: Acesso à Justiça; .Defensoria Pública; Tutela Coletiva; Ação Civil Pública

7

ABSTRACT

This essay within the Concentration Area Public Right and Social Evolution,following

the research development of Public Defending Councel Legitimacy as effectiveness

purpose of fundamental human right access to Justice, analyse the historical

context and evolution of constitutional and infraconstitutional legislation

that governs Public Defending Councel as well as the doctrine

and jurisprudence referring to justice access and collective tutelage.With

this theorical orientation, was tried, through principles` comprehension,to

contribute to extinguish the astonishments which still persist when talking

about possibilities and limits of the Public Defending Councel action.In

order to analyse the theme, was chosen a principle constitutional approach,

having as sources to infraconstitutional and constitutional legislation,the

doctrine recently produced by law thinkers about ways of enlarging the access

to Justice.Main results show Public Defending Councel has legitimacy to defend

scaterred interests, based on the newly change of Law 7510/85.In the end,

conclusions about process procedures enlargement to defend collective tutelage

are presented, what contributes to Justice access.These conclusions demonstrate

that Public Defending Councel enclosure in the selected list of legitimized

in the defense of collective tutelage, doesn`t weaken or repress the Public

Ministry attribution to promote defense of the same interests.

Key words/. Justice access,Public Defending Councel,Collective Tutelage,Public

Civil Action

8

SUMÁRIO Páginas

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 1.1. Introdução ao Tema ................................................................... 01 2 – TUTELA COLETIVA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA. 2.1 - Panorama da História da Tutela Coletiva ................................................................. 29 2.1.1 Do Código de Hamurabi à Modernidade ................................................................... 33 2.2. Despertar do tema com Mauro Cappelletti ............................................................... 39 2.3. Os interesses transindividuais nas legislações infraconstitucionais ......................... 44 2.4. A defesa dos interesses transindividuais na Carta Magna de 1988........................... 52 2.5. O Código de Defesa do Consumidor ........................................................................ 55 2.6 - A class Action do Direito Norte Americano ............................................................ 59 3 - DO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA LEGITIMIDADE DA

DEFENSORIA PÚBLICA DIANTE DA LEI 11448/07 3.1 - Interpretação e alteração da norma constitucional .................................................. 67 3.2. Princípios como forma de hermenêutica constitucional .......................................... 73 3.3 - Considerações sobre a recém-legitimidade .............................................................. 80 3.4 - A Defensoria Pública e o procedimento análogo ao inquérito civil ........................ 92 3.5 - Críticas à nova autorização legislativa e comentários às ADINs 3943/07 e ADI 558-8/600 /1991.............................................................................................. 94 4 - A DEFENSORIA PÚBLICA E A DEFESA DO ACESSO ÀS POLÍTICAS

PÚBLICAS COMO FORMA DE INCLUSÃO SOCIAL 4.1 - Interesse difuso e interesse social ........................................................................... 105 4.2. Políticas Públicas .................................................................................................... 112 4.3. Atos discricionários ................................................................................................ 121 5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 134 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 144

9

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A retrospectiva da evolução do homem em sociedade e a recente história da

Defensoria Pública, cotejadas ao avanço doutrinário decorrente do movimento social

motivador do projeto de lei que determinou a inclusão dessa Instituição no rol dos legitimados

para defesa da ação civil pública, o que resultou na edição da Lei 11.448/07, serão de

fundamental importância para compreender o porquê do interesse do legislador em instituir

outro legitimado para a defesa desses direitos; garantindo o acesso de maior número de

jurisdicionados à efetivação dos seus direitos.

Quando se reflete, no contexto da Lei 11.448/07, sobre a recém-outorgada

legitimidade ativa à Defensoria Pública para a defesa da tutela coletiva como forma de acesso

à Justiça, torna-se evidente seu reflexo na elaboração do termo de ajustamento de conduta

(TAC), com atenção especial para a defesa ao acesso às políticas públicas como forma de

inclusão social.

Um dos problemas freqüentemente debatidos é o aumento da demanda dos

jurisdicionados, o que traz a lume, entre outros fenômenos sócio-culturais e econômicos, a

globalização, que promoveu o incremento da circulação de capitais, informações, bens e

serviços, facilitou o acesso ao crédito, e a conseqüente volatilização dos bens, no contexto de

uma sociedade marcada pela velocidade e dinamismo de inovações tecnológicas. A

globalização serviu, ainda, para encurtar distâncias e formar a consciência da sociedade no

sentido de equilibrar as relações entre produtor de bens, fornecedor de serviços e consumidor,

estimulando a criação de novas regras jurídicas a fim de garantir os direitos.

Nesse cenário, o consumidor, consciente dos seus direitos, não mais aceita

pacificamente as regras ditadas no interesse dos produtores ou fornecedores de serviço,

socorrendo-se do Judiciário sempre que se sentir lesado.

Diante dessas peculiaridades, a presente pesquisa tem por finalidade suscitar e

propor questionamentos a respeito da recém-legitimidade ativa da instituição Defensoria

Pública para a defesa da tutela coletiva como forma de acesso à Justiça, em especial no que

concerne à legitimação da instituição na defesa dos interesses difusos. Desta feita, o tema

dissertado estará atrelado ao interesse público, tendo o povo como o destinatário final da

aplicação das normas jurídicas.

10

O tema é instigante em razão da abordagem sistêmica que se pretende realizar,

enfocando argumentos não somente da ciência jurídica, como também das demais ciências,

como a sociologia, filosofia, história e economia, entre outras. A perspectiva é a de que o

acesso individual do cidadão ao Judiciário acarreta uma sobrecarga desnecessária da máquina

jurisdicional, envolvendo maior número de pessoas para a solução dessa demanda, retardando

ou cerceando o acesso à prestação da tutela jurisdicional, como também possibilitando a

ocorrência de decisões conflitantes.

A retrospectiva histórica comprova que a consciência do indivíduo acerca dos

seus direitos, bem como a responsabilidade do Estado em assegurá-los, teve início já na

vigência do Estado Liberal, fundado com o propósito de proteger o indivíduo das ações do

Estado, que para tanto precisou assumir o compromisso de garantir a convivência harmoniosa

dos indivíduos entre si e com as instituições. Essa função é atualmente denominada de

garantia dos direitos de primeira geração1, os quais, isoladamente, não foram suficientes para

atender às expectativas da sociedade da época, que reclamava por uma atuação positiva do

Estado, no sentido de concretizar os direitos já existentes, bem como os de segunda geração,

que marcaram a passagem do chamado Estado Mínimo para o Estado Intervencionista,

levado a incorporar tarefas até então próprias da iniciativa privada2

A decadência do liberalismo decorreu da evolução da economia, da perspectiva

individualista e dos conflitos sociais, decorrentes da excessiva patrimonialização e do que se

passou a designar como capitalismo selvagem. Em outras palavras: a filosofia individualista

do Estado Liberal revelou-se incapaz de responder aos questionamentos da nova sociedade.

Essa foi a gênese dos direitos de segunda geração, que correspondiam à exigência por

transformação política do Estado, tendo em vista a inclusão de um número maior de cidadãos,

pois restou demonstrada a inconsistência do fundamento do liberalismo, calcado na tese de

que todos os homens eram iguais3.

A partir de então, emergiu a semente da nova filosofia do solidarismo, o qual

tem se desenvolvido ao longo dos séculos, privilegiando-se a visão coletiva da sociedade, em

detrimento do individualismo liberal, abrindo espaço para a reflexão e defesa dos direitos

difusos, os quais não podem ser personificados, são indivisíveis.

1 MARINONI, Luiz Guilherme, in A Jurisdição no Estado Constitucional, texto acessado no site www.jus2.uol.com.br em novembro de 2006 2 Idem 3 Ibidem

11

O interesse para aprofundar a análise do tema teve início com a observação da

atuação dos Defensores Públicos em órgãos de execução com atribuições diversas, seja em

varas cíveis, ou criminais. À época, emergiu o sentimento de que faltava algo para

aperfeiçoar a atuação desses profissionais, com possibilidade de melhor desenvolvimento

jurídico, o que resultaria no melhor atendimento dos interesses daqueles que recorrem aos

serviços prestados pela Defensoria Pública. Inúmeras foram as oportunidades em que se

verificou a ausência do Estado no cumprimento de matérias de sua competência, resultando

sua omissão na transferência de responsabilidade para as organizações não governamentais e

para a iniciativa privada. Trata-se de grave problema, eis que deixa a descoberto seu papel

constitucional, inclusive a responsabilidade de executar os fundamentos do Estado

Democrático de Direito, esculpidos no artigo 1º, e assegurar os objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil, elencados no artigo 3º, todos da Carta Magna.

Com freqüência muito maior do que admissível, alguns entes da administração

pública, seguindo a ideologia do laissez-faire, são omissos na implementação dos deveres

prestacionais, sob o argumento de que o respeito aos direitos de liberdade individual impedem

a interferência na autonomia privada dos cidadãos. Criou-se, dessa forma, um Estado

irresponsável, alienado em relação às questões sociais, no qual as autoridades públicas ficam à

margem da aplicação dos direitos e garantias individuais assegurados ao cidadão na Carta

Magna, com clara violação da democracia e inobservância dos direitos fundamentais, em total

afronta aos princípios do Estado Democrático de Direito.

Em contraponto à omissão estatal, defende-se o reconhecimento dos interesses

plurissubjetivos, no contexto do Estado Social de Direito, inicialmente com a Constituição

Mexicana de 1917, a de Weimar de 19194. No Brasil, isso somente ocorreu com a

Constituição de 1934, mas de curta vigência, vez que em 1937 foi instituído o Estado Novo,

com a outorga de nova Carta Constitucional. A preocupação exclusiva com o indivíduo foi

estendida para prestar e assegurar aos particulares condições materiais mínimas para que

pudessem viver dignamente, buscando a redução das desigualdades com o fim de amenizar os

problemas decorrentes da massificação. .

O Estado Social de Direito, também designado como Estado Providência,

decorreu da redução da capacidade auto-regulamentadora da sociedade civil e da conseqüente

necessidade de intervenção do Estado nas áreas relacionadas ao social. O Estado

4 Idem

12

Intervencionista se caracteriza pelo interesse nas funções desempenhadas pela norma e nos

aspectos sociais da aplicação do direito, com manifesta preocupação com o interesse difuso,

mesmo que inicialmente em menor escala que a atual. Enquadra-se na segunda geração de

direitos fundamentais e se encontra relacionado aos ideais de liberdade, àqueles inerentes

somente à autonomia privada, com vistas a garantir renda mínima, alimentação, saúde,

habitação e educação à população, sendo, desta feita, não mais como caridade, mas como

direito político5.

Gregório Assagra de Almeida observa que foi no Estado Social que eclodiu a

conflituosidade social decorrente das novas necessidades da sociedade de massa, exigindo a

regulação e a proteção dos interesses transindividuais.6

Atualmente, defende-se o Estado Democrático de Direito, com a perspectiva

de transformação da realidade social, em busca da redução da desigualdade material, em

contraposição ao conformismo da igualdade formal preconizado pelo Estado Liberal. A

desigualdade é reconhecida, mas busca-se erradicá-la7. Nessa linha de pensamento, o

desequilíbrio social deve ser revisto e sanado por meio de ações positivas do Estado, através

dos direitos prestacionais, investindo-se o Judiciário no poder de cumprir a sua parte no

processo de transformação social.

Contudo, quando se trata de direitos prestacionais comumente são usados

argumentos que transbordam o âmbito das normas jurídicas pertinentes ao tema, utilizando-se

das expressões como “reserva do possível”, “mínimo existencial” e “discricionariedade”,

comprovando que a reflexão jurídica não está adstrita às normas, mas também a conceitos-

chaves doutrinários8.

Mesmo diante dessa afirmação, não há como deixar de reconhecer que a

Constituição da República de 1988 assegura aos cidadãos os direitos de terceira dimensão

que, segundo Ingo Sarlet9, também são denominados direitos de fraternidade - último ideal do

lema revolucionário francês do século XVIII, os chamados direitos de solidariedade. Eles

abarcam aqueles dotados de titularidade plurissubjetiva e ligados aos direitos coletivos em

sentido lato.

5 MARINONI, Op cit 6 ALMEIDA, Gregório Assagra, Direito Processual Coletivo Brasileiro, Ed. Saraiva, São Paulo, 2003, p.53 7 BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, 13ª Ed., São Paulo: Malheiros, 2003 8 GOUVEA, Marcio Maselli, O controle judicial das Omissões Administrativas, Rio de Janeiro: Forense, 2003 9 SARLET, Ingo, A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 1998.

13

Essa mudança de paradigma do pensamento liberal clássico, que restringia o

dano, risco ou lesão à esfera pessoal do indivíduo, foi substituída pela socialização do risco ou

do próprio dano, com a celebração de acordos de solidariedade, celebrados de forma

espontânea ou compulsória para a garantia de existência da humanidade. A síntese dessa

mudança está em que o direito social passa a ser o resultado de um equilíbrio entre interesses

conflitantes, formalizados por acordo que visa à pacificação social.

O Mestre Jose Afonso da Silva10 adverte que a terminologia “Estado

Democrático de Direito” não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado

Democrático e Estado de Direito, eis que o termo democrático, que qualifica o Estado, irradia

os valores de democracia sobre todos os elementos constitutivos deste. Tem por fim realizar a

síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, marcado pela conflituosidade,

superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social, que deve

estar acima das questões individuais.

O individualismo processual que, até então, predominava, era definido como

conseqüência natural e necessária para regular os interesses decorrentes dos direitos

subjetivos do indivíduo. Com isso, somente o titular do direito material era legitimado para

propor ação para a defesa dos seus interesses, uma vez que o direito de ação era

compreendido como propriedade individual privada, integrando o patrimônio do indivíduo.

Norberto Bobbio11 atribui a alteração na identificação dos direitos, bem como a

sua conseqüente defesa, ao fato da passagem do indivíduo uti singuli (pessoa) a sujeito que

extrapola o indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas e inclui a humanidade

em seu conjunto.

Ao mesmo tempo em que ocorria a transformação acima mencionada, o

homem passou a ser visto em suas peculiaridades com outros em igual situação.

Exemplificativamente, nos últimos anos do século passado e até mais recentemente houve a

edição do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei

8069/1990), a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), as condições de acessibilidade para os

portadores de necessidade especial (Lei 7853/1989), dentre outras legislações especiais.

Todos esses diplomas legais permitem tratamento adequado e diferenciado para tais

singularidades, proporcionando tratar de forma desigual os desiguais, com o fim de diminuir,

10 SILVA, Jose Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, 10ª Ed., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 119 11 BOBBIO, Norbertto, A era dos direitos, Rio de Janeiro :Caupes, 1992)

14

caso não seja possível erradicar, a desigualdade existente. Pode e deve haver diferenças, que

devem ser respeitadas; o que se pretende é erradicar as desigualdades produzidas socialmente.

Com a consciência de que são necessárias respostas coletivas, alguns

processualistas12, cientes de que o processo civil atua como resolução de conflitos e

instrumento de modificação de comportamento, voltaram os olhos para a instrumentalidade e

a efetividade do processo, com a concepção do processo coletivo como instrumento de

transformação social.

Como é consenso entre os pensadores do Direito e na própria sociedade,

mesmo os conflitos tipicamente individuais não encontram no processo civil o amparo que

merecem, haja vista a morosidade e o alto custo do sistema judicial, incompatível, muita vez,

com o valor econômico do direito violado. Há de ser lembrado que, por trás deste aspecto

econômico, está o desrespeito àquele que foi violado na sua qualidade primeira, a de ser

cidadão.

É ilusório pensar que um cidadão lesado nos seus direitos, titular de um

interesse econômico de pequena monta ingresse com medida judicial que lhe custará mais do

que perdeu economicamente em razão dessa violação. Comprovação dessa tese está da

explosão de ações perante os Juizados Especiais, onde não há custas judiciais, além da não

obrigatoriedade de advogado para a defesa do direito. A negação do acesso à Justiça repousa

no fato de que, juntamente com o custo do processo, deve ser considerar o deslocamento para

o próprio jurisdicionado e suas eventuais testemunhas, os dias em que faltará ao emprego para

acompanhar o processo, além do incomensurável desgaste emocional que se perpetuará

enquanto não houver decisão final. Ao largo disso, o litigante habitual usufruirá de todos

esses contratempos e contará com a passividade do lesado, com a complexidade e morosidade

do sistema judicial para continuar violando direitos.

A idéia básica do Estado Providência é a de equilíbrio entre fortes e fracos.13

Na hipótese de negação a esse equilíbrio, o acesso à Justiça restará prejudicado porque negará

aos hipossuficientes a possibilidade de exercício dos seus direitos, até dos mais simples e

gerará o efeito perverso de contaminar a jurisprudência com a visão dos litigantes habituais,

12 Entre esses podemos citar Luiz Guilherme Marinoni, Humberto Dalla B. Pinho, Gregório Assagra de Almeida e Nelson Nery Junior. 13 SARMENTO, Daniel, Livres e Iguais – estudos de direito constitucional, Rio de Janeiro, Lúmen Iuris, 2006

15

acima mencionados, aqueles econômica e processualmente possibilitados a usar, com

eficiência, o aparelho judicial.

As constituições falam com freqüência do povo em razão da necessidade de

assim legitimá-las, acondicionando-as a um invólucro democrático, por mais que o seu

conteúdo não o seja. A doutrina, de forma mais presente no dia-a-dia dos juristas, bem como a

jurisprudência, desde que essa não seja elaborada de forma retrospectiva, devem tornar o

poder constituinte do povo como prática diária. Um texto constitucional que pretende ser tido

como democrático não pode pretender obter a legitimidade de uma vez para sempre, com a

sua simples promulgação, uma vez que essa aferição deve ser feita de forma cotidiana,

adequando-se à realidade de maneira permanente. Não se pode aceitar que a divisão da

sociedade em grupos acabe por criar minorias excluídas, privadas de qualquer possibilidade

de ação, alienadas do sistema, reduzidas a meros corpos sem individualidade.

A leitura da norma constitucional vigente, bem como seu reflexo na legislação

infraconstitucional, deve ser feita sob o ângulo da ampliação da antiga dicotomia público-

privado para a atual realidade tricotômica do Direito: público-privado-transindividual. Existe

entre a classificação “privado” e “público” um número expressivo de direitos e interesses

difusos e coletivos que estão à espera de coletivização. Inicialmente, ainda se justificava a

dicotomia, por meio da inserção dos direitos transindividuais na categoria de público; no

entanto, autores como Antônio Herman V. Benjamin14 esclarecem que os direitos públicos

são dotados de conflituosidade mínima, o que não ocorre com os direitos metaindividuais,

que podem surgir de uma situação de alta conflituosidade, diferença que impede que o

mesmo seja subdivisão do direito público.

É nesse cenário de renovação doutrinária e legislativa que surgiu a Lei da

Ação Civil Pública, elevada à categoria de garantia fundamental ao acesso coletivo à Justiça,

onde o acesso à tutela de direitos ou interesses violados deve ser permitido através de

mecanismos jurídicos variados, sejam esses judiciais ou não, onde os titulares dos direitos

envolvidos devem estar plenamente conscientes dos direitos e habilitados material e

psicologicamente para exercê-los.

Anteriormente à promulgação da Lei 11.448, de 15 de janeiro de 2007, quando

ainda não havia a indicação expressa da Defensoria Pública no rol dos legitimados do art. 5º

14 BENJAMIN, Antônio Herman V., A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico:apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumido, acessado em http// bdjur.stj.gov.br em 23/11/2007

16

da Lei 7.347/85, o fundamento legal para afirmação da legitimidade genérica dessa instituição

para as ações coletivas estava presente na interpretação da norma constitucional,

especialmente no que não foi normatizado pelo Poder Constituinte Originário e Derivado.

Essa afirmativa era fundamentada na atribuição outorgada à Defensoria Pública

na Carta Constitucional de 1988 no Capítulo IV, que menciona as instituições que exercem as

funções essenciais à Justiça; onde a Defensoria Pública consta no artigo 134, bem como na

Lei 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor e acrescentou o artigo 21 na

Lei da Ação Civil Pública a fim de aplicar à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos

e individuais, no que for cabível, o Título III do CDC, que dispõe sobre a Defesa do

Consumidor em Juízo.

Ao refletir sobre o problema, é pertinente ter em conta que a Constituição é um

sistema de normas abertas a várias soluções interpretativas em razão de estar em constante

comunicação com o sistema social, tal qual um rio que é abastecido pelos afluentes que

compõem aquele sistema hidrográfico (fundamento sociológico); constituída por mecanismos

capazes para perceber e acatar as modificações apresentadas pela dinâmica social.

A forma sistêmica de como o texto constitucional se apresenta decorre da

ordem teleológica dos seus princípios jurídicos, que tem função organizadora do pensamento

expressado pelo Poder Constituinte. Esses princípios devem ser entendidos como matriz e

diretriz desse sistema e harmonizar-se entre si.

A afirmativa de que não há norma jurídica que dispense interpretação decorre

da característica de generalidade das normas, sendo necessário, quando o caso concreto se

apresenta, perquirir a melhor interpretação atual da norma jurídica diante das novas

necessidades e condições sociais.

Por essa razão, e sempre em vista a realização da filtragem constitucional para

abordar o tema, faz-se necessário discorrer sobre os princípios constitucionais fundamentais, o

que será abordado à frente.

Resta cristalino que o poder do legitimado para representar os interesses da

coletividade deve obedecer, no processo, aos mesmos princípios fundamentais que o próprio

titular do direito material obedeceria se estivesse em juízo, não sendo permitido ao legitimado

ir de encontro àquele, sob pena dessa legitimidade deixar de ser legítima por estar dissociada

dos princípios constitucionais.

17

Peter Häberle15 defende a adequação da hermenêutica constitucional à

sociedade aberta por meio da democratização da interpretação da Constituição, com vistas a

possibilitar a ampliação dos participantes nesse processo hermenêutico, questionando-os sob

uma abordagem puramente sociológica da experiência”.16

Ademais, fortalecendo a tese da legitimidade, a Defensoria Pública, segundo

dispõe o artigo 134 da Constituição Federal, é instituição essencial à função jurisdicional do

Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa integral e permanente, em todos os

graus, dos necessitados, assim considerados aqueles que comprovem insuficiência de

recursos. O teor desse artigo é de vital importância e não pode ser objeto de interpretação

literal, pois são de conteúdo jurídico indeterminado, pendente de interpretação conforme a

constituição.

Com o reconhecimento constitucional expresso do desiderato dessa instituição,

o que ocorreu em momento anterior à alteração do rol dos legitimados expressos, a Defensoria

Pública já alcançara reconhecimento doutrinário17 e jurisprudencial18 acerca da possibilidade

de ingressar com ações visando à defesa da tutela coletiva.

Exemplo dessa conquista está na ação civil pública proposta pelo NUDECON

– Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em

janeiro de 1999, contra a excessiva onerosidade a desfavor da massa consumidora quando da

15 HÄBERLE, Peter, Hermenêutica constitucional, Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, reimpressão 2002 16 Idem. P. 19 17 Nessa qualidade podemos citar Nelson Nery Junior e Humberto Dalla B. de Pinho

18 “Agravo de Instrumento. - Ação civil pública. - Defesa de direito coletivo. - Legitimidade ativa da Defensoria Pública. - Existência. - Decisão que impede a interrupção do fornecimento de energia elétrica, motivada pelo não pagamento das contas. - Imperceptível a necessária verossimilhança. Ausente a razoabilidade, quando se premia a inadimplência, pondo em perigo de colapso o fornecimento de energia elétrica, levando, assim, o risco do dano irreparável a toda a coletividade. - RECURSO PROVIDO. - DECISÃO CASSADA. – TJRJ. Processo AGRAVO DE INSTRUMENTO no. 2003.002.23562. Rel. Des. DES. JOSE DE SAMUEL MARQUES . DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL. Julgado em 02/06/2004”.

“Direito Constitucional. Ação Civil Pública. Tutela de interesses consumeristas. Legitimidade ad causum do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública para a propositura da ação. A legitimidade da Defensoria Pública, como órgão público, para a defesa dos direitos dos hipossuficientes é atribuição legal, tendo o Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 82, III, ampliado o rol de legitimados para a propositura da ação civil pública àqueles especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código. Constituiria intolerável discriminação negar a legitimidade ativa de órgão estatal – como a Defensoria Pública – as ações coletivas se tal legitimidade é tranqüilamente reconhecida a órgãos executivos e legislativos (como entidades do Poder Legislativo de defesa do consumidor). Provimento do recurso para reconhecer a legitimidade ativa ad causum da apelante. – TJRS, AC 2.003.001.04832. Rel. Dês. Nagib Slaibi Filho. 6a. Cam Civ. Julg. Em 26/08/2.003”.

18

vertiginosa elevação do valor nominal das amortizações pactuadas em moeda estrangeira para

compra de carro importado ante a desvalorização da moeda nacional.

A decisão de 1º grau declarou que o NUDECON, órgão de execução da

Defensoria Pública, era parte legítima e cumpria o seu mister nos estritos limites assegurados

pelo inciso XI do art. 4º da Lei Complementar 80/94, nos termos do parágrafo único do artigo

134 da Constituição Federal; do artigo 176, in fine, da Constituição do Estado do Rio de

Janeiro; do inciso IV do artigo IV e com o artigo 5º da Lei 7.347/85.

A mencionada sentença foi reformada em grau de recurso, apreciado pelo

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sob o argumento de que não existia

dispositivo legal que autorizasse a Defensoria Pública ajuizar, em nome próprio, ação

reclamando direito alheio, devendo ao caso ser aplicado o artigo 6º do Código de Processo

Civil: Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado

por lei. A fundamentação do acórdão demonstrou visão estreita da realidade jurídica e

retrocesso ao avanço doutrinário, mantendo expressamente o reconhecimento da legitimidade

para a defesa daqueles interesses somente ao Ministério Público, na forma do artigo 129, III,

da Constituição Federal.

Os que assim defenderam esse posicionamento, com base no artigo 6º do

Código de Processo Civil acima transcrito, voluntariamente negaram reconhecimento de que

o mencionado dispositivo já nascera defasado diante das reformas que na década anterior à

sua promulgação se operavam em alguns países europeus, em especial a Itália e, no continente

norte-americano, nos Estados Unidos. O Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 surgiu

da proteção aos direitos individuais influenciada pelos princípios liberais que caracterizaram

as legislações do século XIX. Em razão de o processo civil comum considerar o direito de

ação como um bem que integra o patrimônio do indivíduo, havia quem entendesse que

somente o titular do direito material discutido está autorizado a defendê-los judicialmente,

sem importar-se que estivesse em discussão direito individual homogêneo. Contudo, essa

regra não é idônea para solucionar o problema da legitimação para a causa na tutela dos

direitos transindividuais, modalidade de direitos de defesa judicial recente.

Essa mesma ação proposta pelo NUDECON, em Recurso Especial de nº RE

555.111 – RJ, o Superior Tribunal de Justiça, acolhendo o voto do Ministro Relator Castro

Filho, reformou o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro sob os

seguintes argumentos:

19

(...) Além disso, o requisito de relevância social necessário à defesa dos denominados direitos individuais homogêneos (artigo 81, parágrafo único, inciso III) [do Código de Defesa do Consumidor], decorrentes de origem comum, resta amplamente preenchido diante do fato da maxidesvalorização do real que atingiu e atinge milhares de consumidores em todo o país. De fato, é função institucional da Defensoria Pública tanto o patrocínio da ação civil, quanto a defesa dos direitos e interesses do consumidor lesado (art. 4º, incisos III e XI, da Lei Complementar nº 80/94). Da mesma forma, cabe a ela atuar na defesa dos necessitados, devendo-se considerar também como tais os consumidores, tendo em vista a presunção (legal) de fragilidade em relação ao fornecedor de produtos e serviços. Reconhecida e relevância social, ainda que se trate de direitos essencialmente individuais, vislumbra-se o interesse da sociedade na solução coletiva do litígio, seja como forma de atender às políticas judiciárias no sentido de se propiciar a defesa plena do consumidor, com a conseqüente facilitação ao acesso à Justiça, seja para garantir a segurança jurídica em tema de extrema relevância, evitando-se a existência de decisões conflitantes.”

Anteriormente à edição da Lei 11.448/07, o Código de Defesa do Consumidor,

no Título que dispõe da Defesa do Consumidor em Juízo, no seu artigo 82, inciso III, já

constava o rol dos legitimados para a defesa desses interesses, sendo expressa a menção às

entidades e órgãos da Administração Pública, ainda que sem personalidade, especificamente

destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por aquela lei.

A Ministra Nancy Andrighi, após solicitar vista dos autos, assim se

posicionou: (...) De fato, se a Constituição Federal impõe, por um lado, ao Estado o dever de promover a defesa dos consumidores (art. 5º, LXXIV) e de prestar assistência jurídica integral (e aqui repiso o integral) aos que comprovem insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV) e, por outro lado, que a execução de tal tarefa cabe à Defensoria Pública (cfr. o art. 134, da CF c/c o art. 4º, inciso XI, da Lei Complementar nº 80/94), o âmbito de atuação dessa não pode ficar restrito, pela vedação ao manejo de tão importante instrumento de tutela do direito do consumidor e de fortalecimento da democracia e da cidadania como a ação civil pública, sob pena de não se dar máxima efetividade aos referidos preceitos constitucionais. Ademais disso, assinale-se que tal legitimidade beneficia a economia processual e a devida prestação jurisdicional, pois evita a proliferação de grande quantidade de ações individuais, impede a existência de decisões conflitantes, e garante o funcionamento célere e efetivo do Poder Judiciário. ............................................ “

O Ministro Carlos Alberto Direito, atualmente integrante do Supremo Tribunal

Federal, acompanhou o voto dos seus pares pelos mesmos fundamentos expostos. Já o

Ministro Ari Pargendler, na qualidade de voto vencido, manifestou-se pela confirmação do

acórdão recorrido, sob o argumento de que a norma legal citada “(...) não legitima o Defensor

Público a propor qualquer ação, porque sua específica destinação é a de patrocinar casos

20

individuais de consumidores hipossuficientes; a ação civil pública alcançaria outro tipo de

clientela.”

Com respeito ao entendimento do Ministro, assistência judiciária não significa

tão somente assistência processual, bem como necessitados não são mais considerados os

única e economicamente pobres, mas todos aqueles que necessitam da tutela jurídica, como

ocorre com os pequenos litigantes nos novos conflitos de uma sociedade de massa, onde do

outro lado estará um litigante profissional.

A hipossuficiência, até então vista somente como miserabilidade econômica,

em razão dos conflitos de massa, onde o adversário jurídico geralmente é um experiente e

contumaz contendor, passa a representar a necessidade jurídica de se fazer representar por um

terceiro que possua a mesma experiência e capacidade processual do adversário. Utiliza-se a

Teoria da Hipossuficiência 19, que vê nos indivíduos que compõem o grupo com direitos

violados a qualidade de pessoas vulneráveis, sem paridade de condições para defender o

direito material a ser debatido. Assim, diante da hipossuficiência, é necessária a escolha de

representantes adequados. Impõe-se o sacrifício da autonomia privada em benefício da

adequada defesa desses direitos por um terceiro tecnicamente capaz para tal. O conflito então

resolvido sob o aspecto coletivo proporciona maior estímulo econômico para a propositura da

ação.

Deve prevalecer, nessas condições, a aplicação do ideal de justiça

aristotélico20, segundo o qual os direitos dos indivíduos somente seriam iguais se fossem

observadas as diferenças existentes entre os mesmos. A igualdade formal não atende à

necessidade da justiça.

A processualista Ada Grinover21, em sintonia com a doutrina de Pontes de

Miranda, reconhece que o direito público subjetivo à assistência judiciária está assegurado por

norma que é self executing, não havendo necessidade de lei para o cumprimento da regra

constitucional,

O entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no recurso especial

acima transcrito encontra respaldo na doutrina, uma vez que Nelson Nery Junior22, após a

19 LEAL, Marcio Flavio Mafra, Ações coletivas: história, teoria e prática, Porto Alegre: SAFE, 1998 20 ARISTÓTELES. A Política. [Tradução: Torrieri Guimarães]. São Paulo, Martin Claret, 2002.

21 GRINOVER, Ada Pelegrini, Novas Tendências do Direito Processual; de acordo com a Constituição de 1988, 2ª Ed, Rio de Janeiro, Forense

22 JUNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil anotado, Editora Revista dos Tribunais

21

edição do Código de Defesa do Consumidor, afirmara que, para se confirmar a uma

determinada entidade a legitimação nas ações coletivas, basta afirmar tratar-se da defesa de

interesses metaindividuais, sem que se mostre necessário identificar quais os efetivos titulares

do direito buscado.

Reflexamente, o tema da legitimidade nas ações coletivas tomou importância

vital após a edição da Emenda Constitucional 45/2004 que, dentre outras importantes

alterações, introduziu o inciso LXXVIII no art. 5º, assegurando a razoável duração do

processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, o que será

indiscutivelmente alcançado com a utilização da tutela coletiva pela Defensoria Pública,

deixando-se de ingressar mensalmente com centenas de ações com o mesmo pedido e réu para

diferentes assistidos, atendendo, também, aos interesses de todos aqueles que pessoalmente

não puderam buscar a tutela jurisdicional por não ter meios de chegar a postular judicialmente

sua pretensão quer por falta de informação, quer por falta de recursos.

Os pedidos dessas medidas judiciais são os mais variados, partindo do simples

fornecimento de leite sem lactose para crianças alérgicas, até a indicação de hospitais da rede

pública para proceder a intervenções cirúrgicas de grande porte, inclusive com o pedido para a

aquisição de próteses de valores elevados, tratamentos de saúde e transplantes de órgãos no

exterior.

A temática do acesso à Justiça, tema ao qual a dissertação está relacionada,

aliada à percepção da necessidade de haver legitimados para a defesa dos interesses do grupo,

sejam esses interesses passíveis de individualização ou não, é questão de relevância recente,

assim considerada a longa história da humanidade, quando o homem apenas associou-se aos

demais por necessidade de defesa, jamais considerando a perspectiva social do grupo. O

homem jamais teve a consciência da proteção do coletivo, promovendo a defesa deste como

forma de proteção pessoal. Com o passar dos séculos, em razão de várias transformações que

lhe foram impostas, devido a sua própria negligência até com o meio em que vive, passou-se a

visualizar a defesa dos interesses que ultrapassavam o direito individual, posicionados em

espaços não pertencentes ao Estado ou ao indivíduo e sim a toda a coletividade, como vieram

a caracterizar-se os direitos difusos, com a impossível individualização de sua titularidade.

A defesa judicial do cidadão, que até então era feita de forma individual, uma

vez que somente assim o mesmo era visto diante da sociedade, passou a considerar a

necessidade da defesa metaindividual. Embora diante dessa consciência, ainda há resistência

22

em parte da doutrina em reconhecer a defesa do interesse coletivo ou difuso por outro que não

seja o titular do direito em questão.

Para aqueles providos de recursos financeiros, jamais houve impedimento para

a defesa dos seus interesses, uma vez que tinham acesso à estrutura organizacional do Estado,

podendo contratar advogado para promover a postulação em juízo, bem como o valor das

custas judiciais não era questão preocupante. Mas o que fazer com aquela extensa camada da

população desprovida de recursos financeiros, bem como sem acesso à informação, a mais

grave forma de alienação do indivíduo? O filósofo Hegel define alienação como processo

essencial à consciência e pelo qual ao observador ingênuo o mundo parece constituído de

coisas independentes umas das outras, e indiferentes à consciência. Diante desse conceito

verifica-se que a informação constitui a base para a cidadania, por meio da inserção

consciente do indivíduo no contexto social, apto a participar da democracia participativa que

constitui o Estado Democrático e Social de Direito.

Diante da falta de consciência causada pela desinformação e insuficiência de

recursos financeiros, que advogado o indivíduo carente procuraria, em uma sociedade

capitalista, para defender, com o mesmo interesse de um advogado contratado e remunerado,

os seus interesses, inclusive antecipando o recolhimento das custas judiciais necessárias para a

defesa do seu direito? Um ou outro abnegado poderia existir, mas não em número suficiente

para atender à demanda da classe, uma vez que na Defensoria Pública do Rio de Janeiro,

atualmente, existem aproximadamente setecentos defensores públicos em exercício e, mesmo

assim, ainda é um número insuficiente para cobrir a demanda do Estado, resultando em

acumulação de órgãos de atuação por esses profissionais.

A questão se torna ainda mais grave quando se depara com a falta dos direitos

prestacionais do Estado, os quais, se não atendidos, têm os requisitos para a propositura de

ação civil pública. A solução não está somente no mundo das normas jurídicas, mas perpassa

pela disponibilidade de recursos do erário como critério para possibilitar a prestação desses

direitos aos cidadãos, em sua quase totalidade assistidos natos da Defensoria Pública. Os

direitos sociais, tidos como direitos positivos, ou direitos prestacionais em sentido estrito, que

dependeriam de uma facere por parte do Estado, dependem de meios materiais garantidos por

previsão orçamentária, por meio de alocação de recursos, repercutindo na esfera discricionária

aos administradores públicos, o que lhes colocaria sob o manto da reserva do possível23

23 Marcio Maselli Gouvêa, O Controle Judicial das Omissões Administrativas, Ed. Forense, 2003

23

Alguns autores, dentre os quais podemos citar Ricardo Lobo Torres, defendem

que as despesas realizadas em função dos direitos prestacionais inviabilizariam outros

projetos estatais, inclusive aqueles projetos relacionados a outros direitos fundamentais.

Ocorre que, na prática, essa escolha é feita pelo magistrado diante do caso concreto,

envolvendo decisão por prioridades. Diante das freqüentes, mas não unânimes decisões

judiciárias nesse sentido, a doutrina contrária ao deferimento desses pedidos, idealizou o

princípio da reserva do possível jurídica, sob o argumento de que o Poder Judiciário não

disporia de instrumentos jurídicos para determinar uma reformulação do orçamento, uma vez

que este é elaborado mediante os esforços do Executivo e do Legislativo.24

Deve-se ter conta que o orçamento não é uma peça livre para o administrador

dispor de acordo com a sua conveniência. Há rubricas e percentuais que são priorizados pelas

Constituições Federal e Estadual, onde o mesmo não tem qualquer discricionariedade, pois,

do contrário, seria lhe dar o poder de negar, pela via transversa, os valores pré-definidos de

prioridades e de urgência constitucionalmente fixados, com total interferência em outro Poder.

A única tentativa de harmonizar esses interesses estaria na idéia de ponderação de

princípios, não esquecendo de que o princípio da reserva parlamentar em matéria

orçamentária não é absoluto, o que sobrepõe o reconhecimento de que os direitos assegurados

no artigo 5º da Constituição têm aplicação imediata.

A realidade comprova que todos os direitos assegurados em sede constitucional e

infraconstitucional são pendentes de alocação de recursos para sua implementação, bem como

necessitam de fiscalização, o que será possível ser exercido pela sociedade por meio de uma

ação civil pública, inclusive com a confecção de um termo de ajustamento de conduta

proposto pelos legitimados enumerados no art. 5º da Lei 7.347/85. Ações individuais

contribuem para o caótico comprometimento do orçamento público, gerando decisões

conflitantes, medidas liminares sem cumprimento, buscas e apreensões inexitosas que, por

fim, configuram o crime de desobediência.

O problema orçamentário demonstra o grau de complexidade da questão, vez que

atualmente aos profissionais do Direito tem sido imposta a árdua tarefa de administrar a

aplicação dos recursos do interesse do Estado, servindo de negociador entre as partes, não

apenas para impedir a frustração da expectativa dos cidadãos que buscam o Judiciário como

via de acesso ao direito e à justiça. 24 Idem

24

Em consonância com o acima exposto, cabe fazer menção ao princípio da

efetividade, onde os atos jurídicos devem ser analisados com o intuito de verificar se os

efeitos gerados são aqueles que se pretendiam alcançar. Confirmando o entendimento de

Marcos Maselli Gouvêa, em obra acima citada, mais importante do que a efetivação do

processo é a efetivação do direito material pelo processo, que é o meio para a consecução do

direito buscado por meio da tutela jurisdicional, e não um fim em si mesmo.

Em razão do distanciamento que paulatinamente tem sido feito da exagerada

importância dada aos direitos patrimoniais, típica do Estado Liberal, verifica-se entre os

autores contemporâneos uma evolução no pensamento jurídico no sentido do reexame da

classificação das sentenças feito por Chiovenda diante das costumeiras sentenças em ações

com obrigação de dar, obrigação de fazer ou obrigação de não fazer, representativas de um

estado capitalista, onde o patrimônio era considerado o bem da vida, com a busca da entrega,

da prestação da coisa ou a sua conversão em perdas e danos.

O ordenamento jurídico vigente tem valorizado a entrega do próprio bem ou

direito pretendido e não a sua conversão em perdas e danos, pois esta não assegurará aos

jurisdicionados a proteção do seu direito. De que adiantará a indenização pelo Estado em

razão do falecimento de um ente da família, em razão da não prestação de atividade do Estado

(falta do serviço)? A Justiça deve possibilitar mecanismos para compelir o devedor a fornecer

a prestação do serviço ou a entrega do bem protegido pelo ordenamento jurídico, sendo a

condenação em perdas e danos a excepcionalidade desse comando.

Observa-se que o homem, como forma de solução desses impasses jurídicos

que lhes são apresentados e na busca da segurança da efetividade dos seus direitos, tende a

desenvolver, até de forma inconsciente, estrutura de assimilação de experiência, criando

meios para controlar a complexidade das novas relações sociais, públicas ou privadas,

estabelecendo estruturas para estabilizá-la frente a esses desapontamentos. Sob o ponto de

vista sociológico25, na medida em que desapontam, as estruturas regulam o medo e forçam a

aceitação dos riscos, o que no mundo jurídico é feito sob a forma da alteração da realidade

material e processual jurídica, onde a doutrina e a jurisprudência, que devem andar adiante da

lei, exercem papel fundamental.

25 ROCHA, Leonel Severo, Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito, Ed. Livraria do Advogado, Ed. 2005.

25

O desapontamento gera o risco, o incerto, ou seja, desestabiliza. Esse

desapontamento não causa inércia; pelo contrário, gerará atividade, desencadeando processos

internos (psicológicos) e/ou externos, vindo a causar frustrações em várias outras expectativas

alheias e próprias, com a possibilidade de criação de novos conflitos, os quais irão desaguar,

mais cedo ou tarde, às portas do Judiciário, que deverá possibilitar a integração da expectativa

do outro e o reflexo dessa expectativa no terceiro.

Esse é o papel deflagrador da sociedade, impulsionando as reformas jurídicas

necessárias para possibilitar a prestação jurisdicional eficaz, o que somente será possível com

observância do prazo de duração razoável dessa prestação, com utilização dos mecanismos de

antecipação da tutela e liminares até a definitiva apreciação do mérito. O propósito é manter

equilibrado o binômio segurança jurídica-celeridade processual. A função normativa do

direito, como meio de assegurar a convivência em sociedade, é estabilizar as estruturas.

Nesse sentir está a natural necessidade de criar novas estruturas para solucionar

o interesse jurídico de várias pessoas, sem que seja necessário o ingresso individual de

demandas, o que sobrecarrega o Poder Judiciário. O modelo tradicional de processo não mais

corresponde às necessidades sociais em geral, deixando parte das reivindicações jurídicas

descobertas. A sociedade moderna necessita de instrumentos mais céleres, tais como as

tutelas diferenciadas para alcançar o seu direito material.

Com essa visão panorâmica do tema, resta demonstrado que inicialmente foi

necessária a ocorrência de várias ações individuais com interesses homogêneos para surgir a

tutela coletiva, vez que a avaliação da relevância da expectativa de cada indivíduo

isoladamente e as chances da mesma vir a ser realizada, terá melhor sorte com a utilização

dessa forma de tutela, diluindo a expectativa e o custo entre todos os litigantes, pois percebem

que o seu problema jurídico não é individual, mas comum a uma coletividade. A tutela

coletiva, com a defesa garantida por um dos legitimados, equilibra a defesa entre os litigantes,

pois, no pólo passivo, estará presente um litigante contumaz, material e emocionalmente

amparado para a defesa dos seus interesses.

O desapontamento com o resultado individual de uma demanda, frente a outros

resultados positivos de terceiros sobre o mesmo tema, embora previsto, pode desencadear

processos psicológicos negativos desnecessários, com frustrações em várias outras

expectativas alheias e próprias. Nesse sentido, o sistema social deve canalizar e orientar o

26

processamento de desapontamentos e expectativas, estabilizando as estruturas, o que, sem

dúvida, terá melhor resultado por meio da tutela coletiva 26

As expectativas repetidamente desapontadas têm importância para o mundo

jurídico, pois denunciam a falta de adequação das expectativas à norma institucionalizada no

passado, impondo sua revisão. O que não pode ocorrer é a espera incessante e frustração

constante das necessidades, em razão de o aplicador da lei continuar com a sua atuação

jurisdicional voltada para o passado, alheio às transformações da sociedade em que o mesmo

vive como indivíduo, expectador das necessidades alheias e próprias.

O Direito deve ser visto como um alívio para as expectativas e uma das bases

da evolução social. Luhmann27 define Direito como estrutura de um sistema social que se

baseia na generalização congruente de expectativas comportamentais normativas. Para que

tais expectativas possam ser alcançadas, faz-se necessária a existência de instrumentos que

possibilitem o acesso à Justiça.

Conforme será abordado nessa dissertação, Mauro Cappelletti28 e Bryant Garth

demonstraram preocupação com o tema do acesso à Justiça em pesquisa realizada na década

de 70. Inicialmente a preocupação dos pesquisadores era com a questão da hipossuficiência, a

qual posteriormente demonstrou-se apenas como a ponta do iceberg, uma vez que por debaixo

desta estavam outras questões tão relevantes quanto, como a falta de informação, a defesa dos

direitos prestacionais e a legitimidade para a defesa dos mesmos, para depois alcançar os

direitos difusos e a quem caberia a sua representação em juízo.

No Estado do Rio de Janeiro a preocupação com a camada da população

desprovida de recursos para arcar com o pagamento das custas judiciais e dos honorários

advocatícios sem o prejuízo da própria mantença e de sua família veio solucionada em

meados da década de 50 com a criação dos primeiros cargos isolados de Defensor Público,

mas somente em 08 de dezembro de 1962 foi promulgada a Lei Orgânica do Ministério

Público e da Assistência Judiciária, que tomou o nº 5.111, atribuindo aos Defensores Públicos

o patrocínio gratuito, em ambas as instâncias judiciais dos direitos da população

hipossuficiente.

26 ROCHA, Leonel Severo, Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito, Ed. Livraria do Advogado, Ed. 2005. 27 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983-85 28 CAPPELLETI, Mauro, GARTH, Bryant (tradução de Ellen Gracie Northfleet). Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Frabris, 1988.

27

Com o amparo no parágrafo 32 do artigo 153 da Constituição Federal de 1969

e do artigo 199 da Constituição Estadual então vigente, houve a desvinculação da Defensoria

Pública do Estado do Rio de Janeiro do Ministério Público em 22 de maio de 1970, data

anterior à fusão, passando a ter denominação de órgão de Estado, com atribuição para prestar

patrocínio aos carentes em ambas as instâncias. Nova reformulação institucional se deu com a

fusão entre os Estados do Rio de Janeiro e o da Guanabara, ocorrida em 13 de março de 1975,

quando houve a opção para o retorno da Defensoria Pública para ficar sob a chefia

institucional do Ministério Público, sendo que a partir de então os Defensores Públicos não

eram mais integrantes da classe inicial da carreira daquela Instituição.

Com a promulgação da Constituição Estadual do Rio de Janeiro, em 23 de

julho de 1975, a Defensoria Pública, pela primeira vez, teve assento constitucional em

capítulo próprio – Assistência Judiciária, com a incumbência da postulação da defesa, em

todas as instâncias, dos direitos dos juridicamente necessitados. Em 12 de maio de 1977 foi

editada a Lei Complementar nº 6, que dispunha sobre a organização da Assistência Judiciária,

o que lhe outorgou a autonomia administrativa, estabelecendo o regime jurídico de seus

membros. O senão ainda estava no fato da chefia institucional caber ao Secretário de Estado

de Justiça, que indicava um Coordenador-Geral para a instituição. Essa situação perdurou até

a Emenda Constitucional Estadual nº 37/87, quando o chefe institucional passou a ser

denominado Procurador-Geral da Defensoria Pública.

A Constituição do Estado do Rio de Janeiro, já na vigência da Constituição

Federal vigente, descreveu as atribuições da instituição no seu artigo 176 e em razão da

inovação do conteúdo das mesmas, houve a propositura de ação declaratória de

inconstitucionalidade – ADIN 558-8/RJ, com o fim de excluir do referido texto a expressão

“ação civil pública”, sendo que o Supremo Tribunal Federal manteve a expressão, nos termos

do voto do Ministro Relator, Sepúlveda Pertence. Com esse entendimento consagrou-se a

interpretação conforme a constituição, proporcionando o alargamento das funções

institucionais da Defensoria Pública, sempre com vistas à consecução do interesse social, o

qual é o fundamento da presente dissertação no que tange à legitimidade da Defensoria

Pública para a defesa dos interesses difusos, principalmente em sede de direitos prestacionais,

onde o interesse social é manifestamente existente.

Outros avanços institucionais ocorreram, sendo importante ressaltar a inserção

da Defensoria Pública no texto da Constituição Federal de 1988 na qualidade de instituição

essencial à função jurisdicional do Estado e a conseqüente edição da Lei Complementar

28

Federal nº 80/94, que organizou a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos

Territórios.

Com redação mais técnica que a Constituição de 1969, a Carta vigente

consagra o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, garantindo o acesso de

todos à defesa de direitos individuais, coletivos e difusos, enquanto que aquela limitava esse

acesso à defesa de direito individual, evoluindo para a garantia da assistência jurídica gratuita

e integral aos necessitados, um conceito mais amplo e que alcança tanto a consultoria como a

assistência extrajudicial em geral.

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, que em seu artigo 82

dispôs sobre os legitimados concorrentes para a defesa do consumidor em juízo, houve a

menção às entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem

personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos

protegidos pelo referido código. Diante dessa disposição legal a Defensoria Pública, por meio

do órgão de atuação Núcleo de Defesa do Consumidor, iniciou de forma exitosa a defesa

desses interesses.

Inicialmente a jurisprudência mostrou-se temerária com o avanço legislativo, o

que acarretou algumas decisões contrárias, as quais acabaram por ser reformadas em grau de

recurso nos Tribunais Superiores, conforme será a frente mencionado.

A mesma norma infraconstitucional dispôs no artigo 117 que fosse acrescido à

Lei 7.347/85, lei da ação civil pública, o artigo 21 que mencionava que os dispositivos do

Título III do Código de Defesa do Consumidor (CDC), onde está inserido o artigo 82 acima

mencionado, fossem aplicados à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e

individuais homogêneos. Destarte, restou assegurado não só à Defensoria Pública, como aos

demais legitimados do artigo 82 do CDC, a titularidade para ingressar com ação para a defesa

de direito difuso, coletivo e individual homogêneo.

Esta segunda disposição legal causou maior impacto na doutrina e na

jurisprudência, principalmente aqueles que permaneciam presos aos princípios do direito

processual civil clássico, onde o direito subjetivo de ação constituía parte do patrimônio

individual, razão que impossibilitava que terceiro defendesse esse direito em nome próprio.

Essa forma de legitimação, denominada de legitimação extraordinária, tinha previsão expressa

das hipóteses em que caberia e estava mencionada no artigo 6º do Código de Processo Civil.

29

De acordo com os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni29, se nas

doutrinas clássicas o juiz apenas declarava a lei ou criava a norma individual a partir da

norma legal, agora ele cria a norma jurídica a partir da interpretação da Constituição, do

controle da constitucionalidade e da adoção da regra da proporcionalidade dos direitos

fundamentais no caso concreto.

A tese defendida por alguns, de que a Defensoria Pública está destinada à

defesa do direito individual, não mais se coaduna com a realidade social e jurídica que

impregna a comunidade jurídica há mais de quatro décadas. Ressalte-se que, conforme acima

mencionado, quando a Defensoria Pública foi criada nos idos de 1950, predominava os

princípios do liberalismo, de valores exclusivamente individuais, o que não mais existe

hodiernamente com a mesma ênfase. A sociedade tem evoluído e junto com ela houve a

ampliação dos direitos, objetos de defesa por essa Instituição, permitindo que hoje promova a

defesa dos direitos fundamentais em uma dimensão objetiva, como princípios conformadores

de modo como o Estado que o consagra deve organizar-se e atuar.30

O reconhecimento da importância da Defensoria Pública se deu ao longo dos

anos, com a comemoração pela categoria de todas as conquistas realizadas, uma vez que as

mesmas não tiveram reflexos apenas institucionais, o que é, sem dúvida alguma, de suma

importância para o desenvolvimento da auto-estima dos seus membros, mas também refletiu

no acesso à Justiça dos hipossuficientes. Estes, que inicialmente tinham a garantia do acesso

judicial, tiveram o seu direito estendido aos atos extrajudiciais e à consultoria jurídica.

A importância da garantia ao acesso aos instrumentos disponibilizados para a

defesa extrajudicial está na forma preventiva de solução de conflitos ou até mesmo, se já

ultrapassada esta fase, na forma extrajudicial de solução dos mesmos, como ocorre com os

métodos alternativos de solução de conflitos, denominados como ADR – abreviatura inglesa

para alternative dispute resolution. Com autonomia em relação à esfera processual, ainda

encontra pouca utilização como forma de evitar o processo, uma vez que dentre as várias

modalidades possíveis, tais como a negociação, mediação, arbitragem ainda não fazem parte

do cotidiano da população, arraigada aos valores de que somente o juiz pode dizer o direito no

29 MARINONI, Luiz Guilherme, A Jurisdição no Estado Constitucional, texto acessado no site www.professormarinoni.com.br em setembro de 2006. 30 GUERRA FILHO, Willis Santiago, Processo constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999

30

caso concreto. Na modalidade de mecanismos anexos aos tribunais, há a transação penal e o

compromisso de ajustamento de conduta nas ações coletivas.31

A doutrina estrangeira não tem entendimento pacífico a respeito da aplicação

dos métodos alternativos de solução de conflito, contando nos Estados Unidos com a posição

favorável de Lon Fuller, que tem uma visão sistêmica do direito e contrária a de Owen Fiss.

Na Itália a doutrina favorável conta com Mauro Cappelletti e os oposicionistas são liderados

por Vitório Denti.32

Tal qual ocorreu com a propositura da ADIN 558-8/RJ, que levantava a

inconstitucionalidade da expressão “ação civil pública” constante na Constituição Estadual do

Rio de Janeiro, no artigo que definia as atribuições da Defensoria Pública do Estado do Rio de

Janeiro, novo questionamento ocorreu após a edição da Lei 11.448/07, que integrou a

Defensoria Pública, na qualidade de instituição estatal, ao mesmo patamar jurídico do

Ministério Público, possibilitando a defesa dos direitos arrolados na Lei 7.347/85. O

proponente da ação de inconstitucionalidade, desta feita, foi a CONAMP – Associação

Nacional dos Membros do Ministério Público, que originou a ADIN 3.943-2007/, que, em

síntese, aduz que a Defensoria Pública somente teria atribuição para a defesa de necessitados

economicamente, o que não poderia ocorrer nas ações civis públicas para a defesa dos

interesses difusos em razão da impossibilidade de individualização e identificação do sujeito,

bem como que a recente norma impediria o Ministério Público de exercer plenamente as suas

atividades.

As alegações da CONAMP, conforme serão melhores enfrentadas a frente, não

podem prosperar diante dos princípios modernos norteadores do processo; da preocupação

doutrinária de acesso à Justiça e, por fim, da não exclusividade da titularidade da ação civil

pública pelo Ministério Público. Ressalte-se, contudo, que embora a ação tenha sido proposta

pela Associação Nacional, os argumentos ali lançados não refletem a unanimidade do

entendimento da categoria, uma vez que é comum em alguns estados da federação a

existência de litisconsórcio entre essas instituições.

Duas associações postularam e tiveram deferido o seu ingresso no feito na

qualidade de amicus curiae, são elas a Associação Nacional dos Defensores Públicos da

União e a Associação Nacional dos Defensores Públicos. O Instituto Brasileiro de Advocacia 31 Apontamentos de sala de aula do Curso Mecanismos de Solução Alternativa de Conflitos ministrado pelo Prof. Humberto Dalla no ano de 2006 na UNESA. 32 Idem

31

Pública, por meio da Carta de Nova Friburgo, aprovada no 11º Congresso da Advocacia

Pública, ocorrido em 6 de setembro de 2007, aprovou a tese de legitimação da Defensoria

Pública para a propositura de ação civil pública, uma vez que estaria em perfeita consonância

com suas atribuições institucionais e constitui instrumento importante para a defesa da

cidadania.

O Direito, como norma positivada, tal qual como a ninfa mitológica Eco, que

tinha prazer em contar estórias com a característica de ter para si a última palavra da conversa,

é a narrativa da realidade em forma normativa e que também ecoa a última manifestação de

vontade da sociedade, daí refletir realidade pretérita, pois o legislador, ao elaborar a lei, deve

ter a preocupação de traduzir o interesse social já sedimentado. Diante disso, a constituição

deve estar em sintonia com a realidade social, sob pena de ser abusiva nas suas proposições.

No entanto, como acentua Fabio Konder Comparato33, um dos paradoxos mais

relevantes para a história do direito é a influência negativa de corpo bem-sucedido de normas

jurídicas, porque diante delas os juristas se limitam a reproduzir os pensamentos nelas

contidos, o que acaba por atrofiar a inovação necessária. Em um dado momento, a realidade

social necessita de uma nova versão normativa, por melhor que tenha sido o texto originário,

com a finalidade de adequá-la à mudança do curso imposto, uma vez que o Direito não é

resultante de um sistema fechado, ao contrário, é continuamente influenciado pela realidade

social e por aqueles a quem esse mesmo ordenamento irá incidir.

Diante dessa argumentação, conclui-se que a norma constitucional, a fim de

manter-se conectada à validade social e assegurar a estabilidade das relações deve, em

condições materiais, formais e circunstanciais próprias, sofrer as necessárias alterações de

acordo com as novas exigências do progresso e do bem-estar social, seja através das

alterações formais da constituição, seja por meio da mutação constitucional, reconhecendo em

seu texto os novos significados legislativos que a sociedade – povo deseja. O direito deve ser

considerado em sua vigência, na sua realidade aplicada, e não apenas na expressão textual de

suas normas. O nacional-positivismo representa a negação da ciência jurídica, pois repudia

aquele princípio de explicação unitária da realidade, que constitui a meta de todo

conhecimento científico.34

Esta é a função da doutrina e dos tribunais, perceberem as mudanças, promover

questionamentos e transformar a realidade jurídica a fim de adequá-la às necessidades do 33 COMPARATO, Fabio Konder, no prefácio da obra de MULLÜER, Frierich, Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia – Tradução de Peter Naumann, São Paulo: Editora Max Limonad, 3 Ed., 2003 34 Idem

32

povo, destinatário final das normas, sem que haja a ocorrência da exclusão dos mesmos do

contexto social O povo deve ser reconhecido como participante do processo democrático, não

apenas de forma indireta, quando participa do sufrágio, como um referencial quantitativo. A

sua manifestação legitima a democracia na medida em que a interpretação constitucional é um

exercício de cidadania, onde a participação democrática não pode resumir-se no direito ao

voto.

Diante dessas necessárias modificações no ordenamento jurídico está a

pretensão desse trabalho levantar questionamentos e apresentar argumentos, não só jurídicos,

para que a questão da defesa do direito difuso não se torne monopólio de uma instituição, uma

vez que esse direito, se não possui titular identificável, não pode ficar a mercê de, na prática,

somente um legitimado, vez que é inquestionável que, apesar dos demais legitimados,

somente o Ministério Público é responsável pela quase integralidade das ações civis públicas

propostas.

A defesa dos interesses difusos como forma de possibilitar o acesso à Justiça já

foi objeto de estudo de Mauro Cappelletti, denominando-o como segunda onda e

argumentando que “ ... embora as pessoas na coletividade tenham razões bastantes para

reivindicar um interesse difuso, as barreiras à sua organização podem, ainda assim, evitar

que esse interesse seja unificado e expresso.” 35

Diante dessas preleções, cabe questionar, e esse é o mote do presente trabalho,

por que parte da doutrina e da jurisprudência ainda entendem que essa instituição ficou alijada

da legitimidade de defesa das ações civis públicas.

Considerando as observações acima, a dissertação pretende abordar a dimensão

da expressão “tutela coletiva”, a origem e a definição desse instituto no direito brasileiro, bem

como os motivos que determinaram a inclusão da Defensoria Pública do rol dos legitimados

expressos para a defesa da tutela coletiva e em que medida essa instituição pode atuar,

considerando os princípios constitucionais vigentes. Caberá verificar a sindicabilidade, ou

não, dos atos discricionários, típicos do Poder Executivo e necessários para a implementação

das políticas públicas. Para finalizar, discorrer sobre a importância da falta de proteção aos

interesses difusos e interesse social.

Optou-se por essa linha de pesquisa em razão de à época do início do Curso de

Mestrado não haver legislação que expressamente legitimasse a Defensoria Pública para a

35 CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant, Acesso à Justiça, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1988

33

defesa da ação civil pública, embora na prática alguns Tribunais já reconhecessem essa

legitimidade.

Ao longo do Curso foi editada a lei objeto do estudo, de pronto definindo a

suscitada questão da legitimidade. Contudo tal instrumento jurídico não foi suficiente para

dirimir as questões, pois permaneceu o debate sobre a extensão da legitimidade da Defensoria

Pública, se a mesma também alcançaria a defesa dos interesses difusos, o que passou a ser o

novo mote da pesquisa.

Mas, diante de tantas controvérsias existentes, e certa de que a referida

Instituição detém as condições técnico-jurídicas para estar no rol dos legitimados, houve o

interesse para mais detalhadamente debruçar sobre o tema, até então discutido com Colegas.

A dissertação envolve amplo debate sobre as questões jurídicas processuais e

constitucionais, bem como mantém estreito contato com outras ciências, como a história,

filosofia e hermenêutica, voltada a sua aplicação para o acesso à Justiça, estando de acordo

com a linha de pesquisa procurada.

O tema dissertado tem interesse para os Defensores Públicos em sua atuação

diária em razão da disponibilidade de novo instrumento processual para promover a defesa

dos assistidos.

O sistema social apresenta duas possibilidades contrárias de reação a

desapontamentos de expectativas: num primeiro momento há a modificação da expectativa,

com a sua conseqüente adaptação à realidade apresentada, sendo então denominada de

expectativas cognitivas e, em outra hipótese, a expectativa inicial é mantida, mesmo diante do

desapontamento, transformando-se num eterno protesto, esta, então, denominada de

expectativas normativas, onde há a determinação em não assimilar o desapontamento, que

pode levar à formação de normas através da normatização posterior, como ocorreu com a

edição da Lei 11.448/07.

A doutrina tem, por sua vez, conforme mencionado, fortemente se manifestado

sobre a questão da extensão da referida legitimidade, o que tem contribuído sobremaneira

para a ampliação do debate, onde ganhará o Poder Judiciário com maior interpretação da lei,

bem como os demais profissionais que atuam nesse processo, além da sociedade civil como

um todo.

Assim, a importância do tema está em que a expectativa frustrada do

jurisdicionado, em razão do lapso temporal indeterminável de uma medida judicial, gera

desnecessária descrença nas instituições e prejuízos materiais tanto ao cidadão quanto ao

34

Estado, que cada vez mais investe em projetos para acelerar os procedimentos, em detrimento,

muitas vezes, da própria segurança da decisão.

Trata-se de pesquisa documental, orientada pelo modelo crítico-dialético, pois

se parte do pressuposto de que os interesses coletivos e a ação da Defensoria Pública

caminham em paralelo com a trajetória da sociedade brasileira.

As fontes de pesquisa são:

a) Legislação: Constituição Federal de 1988, Lei 4.717/65 (Lei da Ação

Popular); Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública); Lei 7.853/89 (Lei que dispõe sobre as

pessoas portadoras de deficiência); Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei

8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); Lei 8.429/92 (Lei da Improbidade

Administrativa); Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso); Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) que

dão suporte legal a sua pesquisa;

b) Doutrina: Será de substancial importância a leitura da obra de Peter

Häberle (Hermenêutica Constitucional), a qual seduz pela forma democrática de condução do

raciocínio, onde a constituição é apresentada como um sistema de normas aberto a várias

soluções interpretativas em razão de estar em constante comunicação com o sistema social

(fundamento sociológico), com capacidade para aceitar as modificações apresentadas pela

dinâmica da sociedade.

Indispensável a leitura atenta da obra de Mauro Cappellettti (Acesso à Justiça),

com a visão de vanguarda da importância de acesso à Justiça àqueles que necessitassem da

defesa de direitos e interesses difusos e coletivos, da qual resultou a alteração da legislação

processual bem como a própria estrutura do Poder Judiciário. Cappelletti inicialmente analisa

essa questão sob o ponto de vista da assistência jurídica aos pobres, o que denomina de

primeira onda; a representação dos interesses difusos, segunda onda; e o acesso à

representação em juízo; terceira onda. A idéia do citado autor é a de que essas ondas sejam

apreciadas de forma simultânea, uma vez que todas as questões abordadas dificultam, quando

não impossibilitam, o acesso à Justiça.

De grande valia foram as obras do processualista Barbosa Moreira, que desde a

década de 70 já escreve sobre o tema, proporcionando ao leitor a impressão de que a obra foi

recém-escrita em razão da pertinência com as questões atualmente suscitadas.

Conforme será demonstrado ao longo da dissertação, a obra de Gregório

Assagra de Almeida, com produção específica sobre a locução tutela coletiva, foi fundamental

para o desenvolvimento do tema.

35

Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, que em sua dissertação de mestrado pela

Universidade Estadual do Rio de Janeiro também discorreu sobre o tema acesso à Justiça a

participação da Defensoria Pública na tutela coletiva contribui para os primeiros

esclarecimentos sobre tão intrigado tema.

Os Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro, Cleber Francisco Alves e

Marilia Gonçalves Pimenta, na obra Acesso à Justiça em Preto e Branco, contribuem de

forma significativa não só para relatar a história de sua instituição, como também para

fortalecer a idéia da legitimidade na tutela coletiva, bem como os textos da lavra de Jose

Augusto Garcia , Humberto Pena de Moraes e dos grandes mestres da Defensoria Pública,

Jose Fontenelle e Paulo César Galliez.

Marcos Maselli Gouvêa, com a obra O Controle Judicial das Omissões

Administravas, foi de contribuição essencial não só para a elaboração da presente dissertação

como para o dia a dia do Defensor Público.

Outros autores que já escreveram sobre o tema são: Ingo Sarlet, na obra

Eficácia dos direitos fundamentais; Jose Marcelo Menezes Vigliar, na obra Interesses

Individuais homogêneos e seus aspectos polêmicos; Jose dos Santos Carvalho Filho, em Ação

civil pública; e Lenio Streck em Hermenêutica jurídica em crise.

Em razão do enfoque constitucional do tema, a maior fonte de consulta

jurisprudencial foi o Supremo Tribunal Federal, mas de menos valia não foram as decisões

dos Tribunais Estaduais onde há mais tempo existe a instituição Defensoria Pública.

A pesquisa teve primordial caráter bibliográfico, partindo da premissa da

assertiva da legitimidade ativa da instituição Defensoria Pública para a defesa da tutela

coletiva, conforme já assentado mo ordenamento jurídico, por parte da doutrina, algumas

decisões jurisprudenciais isoladas e a ação declaratória de inconstitucionalidade em trâmite no

STF.

Após este capítulo, o desenvolvimento do trabalho é apresentado em quatro

partes: a primeira com o fim de introduzir o leitor nas considerações iniciais da pesquisa em

si; como os fundamentos históricos e circunstanciais do tema.

A segunda parte abordará o instituto da tutela coletiva, relatando a sua história,

o despertar para os interesses transindividuais, inicialmente nas legislações

infraconstitucionais, até tomar assento na Carta Constitucional. Caberá tecer comentários

sobre a forte influência da class action do Direito norte-americano e a mesma importância

desse instituto no Direito brasileiro.

36

A terceira parte demonstrará, com ênfase na abordagem constitucional, as

razões que justificam a inclusão da Defensoria Pública no rol taxativo dos legitimados

expressos da Lei 7.347/85, bem como o conteúdo e a forma do procedimento análogo ao

inquérito civil e o termo de ajustamento de conduta, como também a posição crítica daqueles

que defendem a inconstitucionalidade da mencionada lei includente sob a justificativa de

usurpação de função (ADIN 3.943/07).

À quarta parte cabe discorrer especificamente sobre o interesse difuso e o

interesse social, tecendo um paralelo em ambos, e a relação dos mesmos com a

implementação das políticas públicas previstas em lei. Caberá discorrer sobre os poderes da

Defensoria Pública na defesa do acesso do jurisdicionado a essas políticas, na qualidade de

assistidos naturais da Defensoria Pública, por mais que no contexto mais amplo no qual se

insere esse direito difuso, outras pessoas, não hipossuficientes, estejam presentes. Caberá,

ainda, em sintonia com a doutrina que discorre sobre o tema, tecer comentários sobre os atos

discricionários e a questão da sindicabilidade dos mesmos.

37

2. TUTELA COLETIVA

2.1. Panorama da História da Tutela Coletiva

O desenvolvimento da humanidade nos dois últimos séculos, principalmente

após a Segunda Guerra Mundial, com o crescimento da atividade secundária e, por

conseguinte, do setor terciário, foi determinante para que fosse necessário o aprofundamento

no estudo dos interesses transindividuais. Desde aquela época, as relações sociais

apresentam-se de forma macroscópica, ocasionando o surgimento de demandas na mesma

proporção. E, como não poderia deixar de ser, emergiu a necessidade de soluções coletivas,

uma vez que o problema a ser solucionado dizia respeito à coletividade. Naquela época ainda

não havia a preocupação com sobrecarga de propositura de demandas individuais, uma vez

que o indivíduo não era considerado de forma isolada, mas sim como parte do grupo do qual

era integrante.

O Direito, como ciência, não promove mudanças sociais; cabe-lhe reconhecer

as mudanças e as demandas sociais, proporcionando-lhes o atendimento efetivo. Essa foi a

razão da resposta jurídica aos interesses da sociedade, que demandava o reconhecimento da

premência de criação de mecanismos para a defesa da tutela coletiva. Causa determinante

para essa demanda foi o desenvolvimento da tecnologia, atingindo número indeterminado e

ilimitado de pessoas, possibilitando a massificação do consumo.

Um exemplo dessa problemática foi o fato de que o desenvolvimento científico

e tecnológico apresentou reflexos negativos, com a gradual destruição do meio-ambiente, que

embora não integrasse o patrimônio individual de alguém, passou a exigir a atenção dos

legisladores no intuito de regular sua correta utilização.

Em se tratando de direitos transindividuais, onde é impossível determinar

individualmente o titular, houve resistência por parte de alguns estudiosos da ciência

processual em admitir que um terceiro representasse os interesses do grupo ou da sociedade36,

principalmente naquelas hipóteses em que existem direitos que estão além da esfera do direito

individual dos seus titulares, em uma área de interesse comum de todos, como é o exemplo

dos direitos difusos.

36 A afirmativa tem por base as decisões dos Tribunais Estaduais e algumas dos Tribunais Superiores, principalmente as mais antigas, quando ainda não havia produção doutrinária suficiente sobre o tema

38

Esse terceiro legitimado, contrariando as normas jurídicas do processo civil, até

então cunhado no direito individual, passou a dispor de representatividade adequada para

atuar em prol dos interesses do grupo, substituindo o direito do indivíduo de comparecer em

juízo para defender esses interesses (ideological plaintiffs) da doutrina norte-americana. Esse

direito de ter personificação no homem individualmente considerado cedeu lugar à defesa do

próprio direito que interessa a todos os indivíduos, e não somente a um destes em particular.

Em outras palavras: trata-se de direito de maior dimensão, que ultrapassa a individualidade.

Essa não é a única mudança que caracteriza a defesa das ações coletivas, pois a

mesma avança ao dispensar a formação de litisconsórcio por meio da mitigação formal do

direito à informação, assegurando o resultado da demanda àqueles que dela necessitem, sem

necessidade da inclusão dos mesmos no pólo ativo da relação processual. Houve, ainda, a

mitigação necessária da publicidade dos atos processuais, inúmeras vezes de prática

impossível diante de uma numerosa coletividade.37

Outra alteração significativa, intrinsecamente relacionada com a dispensa da

formação do litisconsórcio, diz respeito ao alcance da coisa julgada, que passa a atingir

componentes desse grupo ou classe que não participaram do processo como litigantes através

da denominada coisa julgada erga omnes, ultra partes ou utilibus, melhor estudada quando

for discorrido sobre os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Há muito utilizando os estudos e a prática já desenvolvida nos Estados Unidos

para a class action, dela, no entanto, se afastou o Direito brasileiro no que concerne à

legitimidade, retirando a figura da representatividade adequada da coletividade. Optou o

legislador brasileiro por politicamente indicar a quem deve o Direito atribuir legitimidade

ativa para agir, em juízo, em defesa de tais direitos, de forma que, sem cercear os direitos

individuais dos membros da comunidade lesada, concedeu a possibilidade de tutela efetiva

sempre por meio dos mesmos legitimados, que defenderão integralmente os direitos

ameaçados ou lesados em juízo, minimizando os riscos para aqueles que não ingressaram no

processo, pois serão alcançados, de forma utilitária, pelos efeitos da decisão.

A representativa adequada tem maior relevância quando se questiona a

legitimação das associações que, embora legitimadas em tese para a defesa dos direitos

coletivos, não podem defender qualquer interesse, mas tão-somente aqueles pertinentes ao

objeto constante nos seus estatutos sociais. Essa representatividade é verificada à vista do

37 GIDI, Antonio, op cit

39

preenchimento de dois requisitos: pertinência temática, que corresponde à finalidade

institucional compatível com a defesa judicial do interesse; bem como da comprovação da

pré-constituição há mais de um ano, sendo que esse requisito, em particular, o juiz pode

dispensar por interesse social, conforme a dimensão ou as características do dano, ou

conforme a relevância do bem jurídico a ser defendido, conforme consta do próprio texto

legal.

No entanto, a legalidade dessa verificação de pertinência temática pelo STF

não tem entendimento doutrinário pacífico, pois Pedro da Silva Dinamarco38 entende que a

expressão “representação adequada” refere-se a outros elementos a serem analisados pelo

juiz, tais como ser o autor pessoa idônea e ir defender, de forma eficaz, os interesses das

pessoas ausentes do processo, não tendo pertinência com o objeto estatutário ou o tempo de

constituição da associação.

Manifestando-se sobre o tema da representatividade, Ada Pellegrini

Grinover, que participou da elaboração do Projeto de Lei Flavio Bierrenbach, entende que

esse controle deveria ser exercido pelo juiz. No entanto o projeto sofreu alterações e, quando

da edição da Lei 7.347/85, foi acolhido o substitutivo do Ministério Público do Estado de São

Paulo, optando pela não aferição temática por parte do juiz, no que foi seguido posteriormente

pela Carta Constitucional de 1988 e pelo Código de Defesa do Consumidor.

Contudo, passados mais de vinte anos da edição da referida lei, problemas

práticos têm surgido quando da propositura da ação para a defesa da tutela coletiva pelas

associações que, embora superem o requisito objetivo da legitimidade e pertinência temática,

não dispensam a análise subjetiva, pois não apresentam credibilidade e conhecimento técnico-

científico, dentre outros critérios essenciais para produzir de forma eficaz a defesa dos

representados. Diante de hipótese como a apresentada, teria sido melhor que o legislador

tivesse conferido esse poder ao juiz, evitando a extinção de ações desse gênero sem o

julgamento do mérito, o que leva a descrédito o instituto da ação coletiva.

O controle exercido pelo juiz brasileiro, que não detém os mesmos poderes do

juiz estadunidense, é feito de forma precária, de maneira apenas a assegurar aos interesses do

grupo o mínimo de proteção, sem os deixar completamente fora do controle judicial. Embora

com diferentes possibilidades de atuação entre os juizes desses dois países, não se verifica 38 DINAMARCO, Pedro da Silva, Ação Civil Pública, São Paulo:Saraiva, 2001, p.201-202

40

omissão por parte do juiz brasileiro, que pode e deve estar atento ao que acontece durante a

instrução processual. Trata-se de um poder-dever do magistrado, sob pena de procrastinação

do oferecimento da tutela jurisdicional, movimentando desnecessariamente a máquina

judiciária.

Outra questão divergente, não menos importante, é a possibilidade prevista no

ordenamento jurídico brasileiro unicamente da ação coletiva ocorrer no pólo ativo da relação

processual, enquanto no direito estadunidense é possível a defendant class action.

Com a criação de uma codificação específica para a defesa da tutela coletiva,

restará ao direito processual comum, regulador de direitos individuais, solucionar problemas

decorrentes da Vara de Família, Vara de Órfãos e Sucessões e outros conflitos tipicamente de

natureza individual, deixando para a legislação processual especial a solução dos conflitos de

massa, onde as regras do direito processual comum não têm adequação de acordo com a

celeridade e a economia processual, além da desconformidade com o princípio constitucional

do razoável tempo de duração do processo.

Para melhor compreensão da relevância doutrinária sobre a tutela coletiva, faz-

se necessária uma retrospectiva histórica, a qual, conforme reconhecida pela doutrina e já

acima mencionado, ainda é impregnada pelos princípios do liberalismo, com marcante

predomínio do individualismo e da presunção da autonomia da vontade, esta averiguada

somente na hipótese de demonstração da existência de algum dos vícios do consentimento, o

que proporcionou uma Justiça voltada para a solução do conflito individual, com a

prevalência da manifestação da vontade como forma aparente de justificar a liberdade do

indivíduo diante do Estado.

António Manuel Hespana39, jurista e historiador português, chama atenção para

a relevância da apreensão de dados históricos com vistas à compreensão da realidade social:

“Esta teoria do progresso linear resulta frequentemente de o observador ler o passado desde a perspectiva daquilo que acabou por acontecer. Deste ponto de vista é sempre possível encontrar prenúncios e antecipações para o que se veio a verificar. Mas normalmente perde-se de vista tanto todas as outras virtualidades de desenvolvimento, como as perdas que a evolução que se veio a verificar originou. Por exemplo, a perspectiva de evolução tecnológica e de sentido individualista que foi a das sociedades contemporâneas ocidentais tende a valorizar a história do

39 HESPANA, Antonio Manuel, Panorama histórico da cultura jurídica européia. Portugal. Fórum da Cultura, 1998

41

progresso científico-técnico da cultura européia, bem como as aquisições político-sociais no sentido de libertação do indivíduo. Deste ponto de vista, a evolução da cultura européia deixa de ler-se como uma epopéia de progresso e sua história pode converte-se uma celebração disto mesmo. Mas o que se perde é a noção daquilo que, por causa deste progresso, se fechou como oportunidade de evolução o que se perdeu.”

Não há como esquecer que a história é contada pelos vencedores, de modo a

justificar as opções realizadas e o reflexo destas nos acontecimentos; somente a versão destes

é a divulgada e na forma como interessa que seja conhecida. Não se pretende, com isso,

retirar da narrativa do passado a sua relevância, mas apenas destacar que não se pode deixar a

cargo exclusivo de personagens destacados pela história a responsabilidade pelos fatos, como

se outros não tivessem concorrido e, da mesma forma, influenciado para a ocorrência dos

avanços e fatos narrados.

Há, com certeza, um movimento social implicitamente contido na evolução da

história da humanidade que, embora não figure como dados expressamente determinantes

para os acontecimentos fáticos, contribuiu para o estágio no qual a sociedade hoje se encontra,

uma sociedade de massa e globalizada, com interfaces a serem discutidas de forma

multidisciplinar.

2.1.1. Do Código de Hamurabi à Modernidade

As formas de solução codificada de conflito, tais como a autodefesa, a auto-

composição e a mediação existem desde o Código de Hamurabi40. A rigor, a partir do

momento em que o homem percebeu a existência de uma forma prévia de solução de conflitos

futuros – a norma jurídica, começou a converter em leis as necessidades sociais, deixando

para o passado a solução ou imposição pela força física, inicialmente usada para defesa nos

tempos da caverna.

O direito romano, por sua vez, além da defesa individual, previa a

possibilidade de ação popular para a tutela de interesses comunitários. Outro exemplo de

solução de conflito para a defesa da coletividade estava nos interditos que visavam evitar a

obstrução de caminhos; a ação pretoriana effusis et dejectis, que tinha por fim a aplicação da

pena de multa a quem atirasse objetos sobre a via pública, como forma de proteção e 40 em www.humbertodalla.pro.br/artigos/artigo 55 acessado em 23/09/2006

42

assecuratória do interesse alheio. Essas medidas buscaram, como o fazem até hoje, defender

o interesse de um número maior de pessoas que o do próprio postulante, evitar a justiça pelas

próprias mãos, envolvidas com a passionalidade e a conseqüente geração de maiores

conflitos, não mais harmoniosos com a evolução do homem daquela época41.

Embora a origem moderna da ação coletiva esteja no século XVII, no bill of

peace que, segundo Marcio Flavio Mafra Leal42, era:

“ ...uma autorização para processamento coletivo de uma ação individual e era concedida quando o autor requeria que o provimento englobasse os direitos de todos que estivessem envolvidos no litígio, tratando a questão de direito uniforme, evitando a multiplicidade de processos.”

Contudo, outro autor43 assinala que as primeiras soluções de conflitos de

interesse dessa natureza teriam ocorrido no ano de 1199, também na Inglaterra, formulado por

um pároco, em face de determinado grupo de paroquianos com o fim de assegurar o direito a

oferendas e serviços. O fenômeno do group litigation decorria da preexistência do grupo

devido à própria conformação da sociedade feudal, onde os indivíduos se associavam a uma

comunidade ou a uma corporação44, que os identificava perante outros grupos, e em nome de

quem um componente poderia representá-los em juízo, seja no pólo ativo ou passivo da

demanda (plaintiff or defendant). Uma vez que não se distinguia indivíduo da sociedade, não

havia discussão acerca da representatividade do autor da ação coletiva.

Tal como nos dias atuais, para que uma ação fosse reconhecida como

representativa, era necessário que o grupo envolvido fosse tão numeroso a ponto de tornar o

litisconsórcio impraticável; que todos tivessem um interesse comum e que o autor

adequadamente representasse os interesses dos membros ausentes. A decisão faria coisa

julgada erga omnes, com vinculação de todos do grupo.

A representação da sociedade ocorria de forma espontânea, mas geralmente

coincidia com que a defesa fosse patrocinada pelos mais ricos, que respondiam pessoalmente

por eventuais condenações, sendo posteriormente ressarcidos pelos ausentes à ação. A regra,

contudo, é a de que, em razão de na Idade Média não existirem Estados formalmente

41 ALMEIDA, Gregório Assagra, Op cit. 42 LEAL, Marcio Flavio Mafra, Ações Coletivas: historia, teoria e prática, Porto Alegre:SAFE, 1998, p.22 43 Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, in Ações Coletivas, Ed. RT, 2002, p. 43, citado por Jose dos Santos Carvalho Filho, in Ação Civil Pública, Ed. Lumen Júris, 2007, p.3 44 As corporações eram inicialmente um conjunto de indivíduos reunidos por um interesse comum, mas de caráter informal.

43

constituídos, não havia a preocupação de garantir aos cidadãos a defesa dos seus interesses,

principalmente quando a demanda era pertinente ao grupo, forma encontrada pelo homem

para melhor defender-se do perigo da própria natureza, bem como da ação de outros grupos.

A comunidade jurídica, embora de forma intermitente, de longa data tem

demonstrado a necessidade de, ao largo das soluções dos conflitos individuais e com

características próprias, ter a solução daqueles denominados como da terceira onda, que

refletem a preocupação com o coletivo, o social e os direitos difusos, transcendendo ao

individualismo originário.

Assim, em quase sete séculos desde o surgimento do Estado Absolutista

Português, no ano de 1350, houve a modificação da realidade feudal, que passou pelo

mercantilismo, até alcançar o turbilhão de idéias e princípios que ensejaram a Revolução

Francesa. Entre esses, foi determinante o da defesa da liberdade; embora o mesmo não possa

ser traduzido como princípio democrático, foi um marco para o desenvolvimento da

manifestação do pensamento. Em nome do povo, a burguesia pregou a igualdade sob o ponto

de vista formal, mas não material. A distância entre esses dois pólos tem se estreitado ao

longo dos anos de forma lenta e gradual por meio da substituição do individualismo pela

busca do coletivo, da solidariedade que deve existir em sociedade.

Dos ideais da Revolução Francesa – igualdade, liberdade e fraternidade, o que

prevaleceu no capitalismo foi a liberdade, entendida sob o ponto de vista econômico, o que

contribuiu para a desigualdade social; o socialismo, por sua vez, valorizou a igualdade dos

bens materiais. O ideal de fraternidade ainda não se concretizou, porque pressupõe valores

éticos altruístas, que conferem ênfase aos interesses coletivos, em detrimento do

individualismo capitalista exacerbado.

Nesse sentido, cumpre lembrar que, em razão do período de transição de idéias,

quando o homem ingressou em uma sociedade individualista, a figura do indivíduo foi

lentamente dissociada do grupo, fazendo-se necessária a criação de uma teoria que ainda

possibilitasse a representação dos grupos remanescentes por um dos seus integrantes,

surgindo as corporações, admitidas oficialmente por meio de concessões da Coroa ou do

Parlamento para operar no mercado. Aqueles que não obtinham essa autorização ficavam à

margem desses direitos, como ficaram reconhecidas as sociedades joint-stock companies e as

friendly societies45, que não eram reconhecidas como pessoas titulares de direitos e

obrigações.

45 GIDI, Antonio, Op. cit

44

A antiga representatividade coletiva dos feudos e burgos deu lugar às

demandas coletivas individuais, por meio das corporações, que não mais defendiam o grupo

como estrutura primeira de vinculação entre as partes, mas circunstancialmente, em razão de

algum interesse surgido posteriormente à formação desse grupo.

O grupo deveria contar com o consentimento dos seus integrantes quando

necessitasse promover a sua defesa de interesses comuns. Em razão da existência desse grupo

ser diversa daquela de estrutura de sobrevivência da idade medieval, a legitimação passou a

ser questionada, pois não mais encontrava amparo pela nova ordem social, sendo necessária a

presença de todos os interessados para o julgamento da causa (necessary parties rule)46.

Ocorre que as mencionadas corporações a cada dia tinham o seu número

reduzido formalmente; além disso, outras formas de grupos permaneciam à margem dessa

forma de solução coletiva de conflito. Fazia-se necessário encontrar justificativas teóricas

para o reconhecimento do direito daquelas entidades não autorizadas pela lei para figurar no

pólo passivo ou ativo de um litígio.

Diante dessas dificuldades teóricas para permitir a defesa do direito de grupos,

atrofiou-se o instituto da representação; em contrapartida, tornou-se mais robusta a proteção

do direito individual, valorizado diante da premissa de que todos eram iguais perante a lei.

Com essa orientação, o acesso à Justiça somente foi possibilitado àqueles com disponibilidade

econômica para arcar com o alto custo das despesas necessárias à defesa do seu direito. O

Estado desconsiderava os conflitos de natureza interindividuais, não interferindo na esfera

privada dos indivíduos, sob o pressuposto de que todos eram formalmente iguais perante a lei,

princípio basilar do liberalismo. Mais tarde, esse dogma caiu por terra, diante da falta de

argumentos para assegurar as reivindicações dos cidadãos diante da patente desigualdade

material47.

O princípio da legalidade foi a forma encontrada pela burguesia para substituir

o absolutismo vigente na Revolução Francesa e manter-se no poder.

A divisão de poderes, tal como proposta por Montesquieu, citado por

Marinoni48 surgiu da inquietação das classes submetidas à burguesia que, com receio de

retornar ao autoritarismo de uma classe, limitaram essa soberania, decompondo-a entre os

Poderes do Estado, o que acabou por privilegiar o Legislativo em detrimento do Executivo,

que somente executava o estabelecido nas leis, enquanto o Judiciário não podia julgar fora do 46 Idem 47 BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, 13ª Ed., São Paulo: Malheiros, 2003 48 MARINONI, Luiz Guilherme, in A Jurisdição no Estado Constitucional, texto acessado no site www.jus2.uol.com.br

45

disposto naquelas mesmas leis, o que levou Montesquieu a concluir que o poder de julgar era

um poder nulo. O Legislativo assumiu total primazia, originando o positivismo jurídico,

limitando a atividade do jurista à descrição do texto legal, sem poder avaliar a realidade social

do caso concreto, sob pena de interpretar a lei e interferir nas relações privadas, o que era

vedado ao Judiciário.

A primazia do Legislativo mais tarde cedeu lugar ao Poder Executivo,

concedendo-se ampla margem de discricionariedade dos seus atos, impondo resistência de

verificação dos mesmos pelo Judiciário, sob o frágil argumento da não-interferência entre os

Poderes, embora reste comprovado que só há possibilidade de Governo com o necessário

manejo de concessões e controle recíprocos entre esses poderes.

A Inglaterra, inspirada em outros acontecimentos e com realidade social

diversa da francesa, proporcionou novo modelo constitucional, encerrando a fase do

constitucionalismo burguês, avançando para uma idéia mais democrática de participação total

e indiscriminada entre os homens. A igualdade apregoada pela Revolução Francesa emergiu

do contratualismo de Rousseau49 que, ao invés de pregar a divisão dos poderes, concentrou

todo o poder no povo, fundado no consentimento, revestindo-o de caráter jurídico,

transformando os direitos naturais em direitos civis. Há quem fortemente critique Rousseau,

acusando-o de fazer apologia de uma democracia meramente formal, quando, na verdade, sua

doutrina tenderia para justificar um Estado totalitário.

Em razão do crescimento do individualismo processual, que conforme

mencionado, privilegiava a autonomia da vontade, surgiram, no século XVII, duas teses que

justificavam a representação do grupo por meio da ação coletiva. Uma teoria se

fundamentava no consentimento de todos os participantes, enquanto a outra se baseava na

comunhão de interesses dos participantes do grupo. Frederick Calvert, citado por Clarissa

Dias Guedes50, foi o primeiro a sistematizar princípios à realidade da representativa coletiva

das sociedades por ações e das friendly societies. Ele entendia que a autonomia individual

dos componentes da classe devia ser preservada, de maneira que o consentimento prévio fosse

a regra geral. No entanto, quando não fosse possível ou conveniente a obtenção da

aquiescência prévia e geral, admitir-se-ia a representação desde que se verificasse a comunhão

de interesses entre os representantes e os representados.

49 RUSSEL, V. Betrand, apud Marcos Maselli Gouvêa, O controle judicial das omissões administrativas, Forense:Rio de Janeiro, 2003, p. 223. 50 GUEDES, Clarissa Dias, Representatividade e legitimidade ativa na ação civil pública, dissertação para título de mestre em Direito Processual, UERJ, 2005

46

O avanço contínuo de idéias permitiu o reconhecimento da necessidade de

assegurar os direitos sociais, não só por parte dos governos, como também pelas

comunidades, associações e indivíduos, como forma de convivência pacífica em sociedade. A

conduta passiva do Estado, típica do laissez-faire, foi alterada para atuar ativamente, com o

fim de assegurar àquelas pessoas os direitos garantidos em lei.

Somente a partir do século XVIII tornou-se freqüente a busca do Poder

Judiciário para a solução de conflitos particulares, com a finalidade de exigir que o poder

público, bem como outros indivíduos, se abstivessem de interferir ilegitimamente em sua

vida, liberdade e propriedade.51

Outro fato histórico determinante para a ação coletiva está na Revolução

Industrial do século XVIII, com o nascimento de uma nova classe social de grande

contingência, a classe operária, trazendo à luz conflitos nos movimentos sociais em razão da

ascensão das massas. Com o fortalecimento da classe operária, nasceram outros segmentos

sociais, como os sindicatos, e as mais variadas associações para a defesa de interesses

diversos.

A estrutura social dos países que adotaram a industrialização foi alterada

radicalmente, resultando na agregação da mecanização ao trabalho humano e na

transformação da fábrica como centro de vida social e econômico. Com a aceleração

desordenada da urbanização gerada pelo deslocamento da população que migrava para o novo

mercado de trabalho, emergiram os problemas decorrentes da falta de planejamento, como a

falta das condições mínimas de habitação, segurança e saúde.

A migração para os grandes centros urbanos continuou durante todo o século

XX, inicialmente foi intensificada no Brasil com o fim da República do Café nos anos 30,

ocasionada pelo remanejamento do investimento nacional e estrangeiro, até então efetuado

nesse segmento econômico, transferindo-se para o setor da industrialização. A insuficiência

dos recursos para a aplicação nas políticas públicas resultou no surgimento do desemprego,

miséria, violência, além do crescente índice de poluição52.

A preocupação legislativa com o social também ficou evidente por conta da

responsabilidade civil diante dos danos individuais e em grupo causados pelos acidentes

ferroviários, com a presunção de responsabilidade objetiva pelo transportador, bem como a

51 GOUVEA, Marcos Maselli, O Controle Judicial das Omissões Administrativas, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.1 52 LEAL, Marcio Flavio Mafra, : Ações coletivas: história, teoria e prática, Porto Alegre: SAFE, 1998

47

criação de consórcio entre as seguradoras para pagamento de seguro em razão de acidente

automobilístico – DPVAT.

2.2. A tutela coletiva pós Mauro Cappelletti

Passado pouco mais de um século da Revolução Francesa e da Revolução

Industrial, em meio à Primeira Guerra Mundial, a doutrina indicava preocupação com a

exclusão das minorias no acesso à Justiça. Inicialmente, a ênfase recaiu no valor econômico

das custas judiciais e dos honorários advocatícios. Na Alemanha, entre os anos de 1919 e

1923, iniciou-se o sistema de remuneração dos advogados, enquanto que, na Inglaterra, a

principal reforma ocorreu com o estatuto de 1949, que não apenas recompensava os

advogados pelo aconselhamento jurídico, como também pela assistência judiciária.

Nesse momento, Mauro Cappelletti 53, em obra que é o divisor de águas sobre

o tema, analisa o acesso à Justiça sob o ponto de vista da assistência jurídica aos pobres, o que

denomina de primeira onda; a representação dos interesses difusos, segunda onda; e o acesso

à representação em juízo, de terceira onda.

O citado autor defende que essas ondas sejam apreciadas de forma simultânea,

uma vez que todas as questões dificultam, quando não impossibilitam, o acesso à Justiça, não

se apresentando por etapas, sendo inadmissível que uma seja pré-requisito da outra. Em razão

das diferenças culturais e regionais, as ondas necessitam ser dosadas de acordo com as

características apresentadas.

Na definição embrionária de acesso à Justiça, Cappelletti o entende como

direito formal do indivíduo agravado de propor ou de contestar uma ação. Ele defende que o

sistema jurídico moderno não deve tão-somente garantir direitos, mas possibilitar o acesso aos

mesmos. A idéia garantista, vigente até então, ainda estava ligada ao jusnaturalismo, direito

superior às próprias normas ditadas pelo Estado, que pregava a não-interferência deste na

defesa ou consecução dos direitos individuais.

A preocupação de Cappelletti com os interesses difusos se justificava pelo fato

de que a ninguém, até aquele momento, como pessoa física, era dada isoladamente a tarefa de

corrigir a lesão a um interesse coletivo ou, quando não, a vantagem econômica para a defesa

desse direito era demasiadamente pequena, ao ponto de desencorajar os mais dispostos. O

53 CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant (tradução de Ellen Gracie Northfleet). Acesso à justiça, Porto Alegre: Fabris, 1988.

48

mesmo autor 54 argumenta que “... embora as pessoas na coletividade tenham razões

bastantes para reivindicar um interesse difuso, as barreiras à sua organização podem, ainda

assim, evitar que esse interesse seja unificado e expresso”.

A relevância do tema trouxe grandes modificações, inclusive para o direito

processual civil, iniciando importante reforma legislativa, com vistas a atribuir legitimação

ativa a determinadas pessoas e instituições, difundindo uma concepção social e coletiva.

Embora, numa análise açodada, a iniciativa possa parecer que tais transformações

representaram uma conseqüência natural do ordenamento jurídico, a rigor, é pertinente

assinalar que resultou num grande avanço, pois o mundo estava impregnado da influência do

estado liberal, com predomínio da autonomia da vontade, onde eram levadas a juízo

discussões a respeito de interesses privados. Por conseqüência, o pensamento jurídico

predominante era inspirado em um individualismo excessivo, que necessitava ceder lugar à

nova realidade social, fundada na concepção social da coletividade.

Antônio Herman Benjamin55, em sintonia com os ensinamentos de Arruda

Alvim, menciona que a crise do acesso à justiça, no Estado Social, é, de fato, mais profunda

do que a expressão sugere.

“ (os sujeitos) a) não sabem que têm direitos; b) se eventualmente têm consciência de que os têm, todavia não têm condições de arcar com os custos de um litígio; c) e, em função de características cada vez mais acentuadas das sociedades moldadas pelo sistema capitalista, em grande número de hipóteses, muitos litígios acabam não sendo individualmente compensatórios, mesmo que o lesado tenha consciência dos seus direitos e teoricamente pudesse cogitar de arcar com os ônus de um litígio"

O acesso à justiça deixou de ser visto somente como a possibilidade de a parte

ingressar com medida judicial, mas também como o direito de ter profissional habilitado para

promover sua defesa, mesmo na hipótese de hipossuficiência, com as mesmas condições de

produção de provas, principalmente as periciais, o que, em regra, no direito brasileiro foi

melhor defendido por algum dos legitimados no artigo 5º da Lei. 7.347/85, diante do rito

processual previsto em lei.

Gregório Assagra de Almeida56, em análise do tema sobre a conflituosidade

social e a problemática do acesso à Justiça, comenta:

54 Idem 55 ARRUDA ALVIM, Anotações sobre as perplexidades e os caminhos do processo civil contemporâneo – sua evolução ao lado do direito material. In Revista do Direito do Consumidor, RT, Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, Vol. 2, abril-junho 1992, pág.79

49

“Na verdade o Estado Social não surgiu de uma verdadeira transformação e rompimento com o Estado Liberal. É um Estado onde se implantou uma política de proteção de alguns direitos sociais, mas sem adaptar o seu sistema jurídico para a tutela dos interesses primaciais da sociedade, como os decorrentes dos conflitos transindividuais. Não é verdadeiramente um novo Estado, mas um remendo de Estado.”(grifo do original)

A sociedade evoluiu, mas o último Código de Processo Civil Brasileiro,

editado em 1973 e moldado sob as idéias do liberalismo, com acentuado predomínio da

autonomia da vontade, já nasceu com um déficit temporal e inadequação às idéias

processualistas vigentes no mundo, que já percebiam as necessidades decorrentes dessa nova

sociedade de massa na qual o mundo se transformou, demandando novas formas de

composição e de solução de conflitos mais eficazes. Nesse processo, a produção de bens e

serviços, com aumento excessivo do consumo, geraram relações jurídicas instantâneas, como

as ocorridas por meio virtual, trazendo a lume, por conseguinte, conflitos que necessitam de

solução de massa. Juntamente com a possibilidade de propositura de ações coletivas, o

implemento de métodos alternativos de solução de conflitos alcança especial importância,

pois promove a possibilidade de que as partes espontaneamente alcancem a melhor solução

para a demanda. Em outros termos, cumpre atender aos interesses de ambas as partes, pois se

contará com a aceitação, decorrente da mediação ou conciliação, resultando num acordo, onde

não haverá parte vencedora ou vencida.

O acesso à justiça foi elevado ao tema central das discussões acadêmicas e

jurisprudenciais, quando se descobriu que não interessa ao Estado a prática sistemática de

litígios entre os cidadãos e que a resposta às reivindicações sociais precisam ser rápidas não

somente em razão do interesse do cidadão, também pelo custo financeiro e emocional que as

longas demandas representam, neste último aspecto eternizando a angústia da demanda na

vida do jurisdicionado, com a possibilidade de gerar novos conflitos.

A demora na prestação jurisdicional, além de criar instabilidade na situação

jurídica das partes, impede que aquele que teve direito cerceado usufrua o mesmo durante a

demanda, eternizando a violação. Segundo leciona Leonardo Greco57, a tutela jurisdicional

efetiva ganhou conteúdo de direito fundamental diante da constitucionalização e da

internacionalização dos direitos fundamentais. Nessa linha de pensamento, o processo deve 56 ALMEIDA, Gregório Assagra, Direito processual coletivo brasileiro um novo ramo de direito processual – São Paulo:Saraiva, 2003, p. 53 57 GRECO, Leonardo, Garantias fundamentais do processo, in Júris Peoesi, Rio de Janeiro:Universidade Estácio de Sá, ano 7, nº 6 , 2004 p.3

50

ser visto como meio justo para um fim justo, subordinando-se aos princípios contidos no

artigo 37 da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.

Nesse sentido, citando J.J. Calmon de Passos, pode-se inferir que “é

necessário conceber o processo como instrumento de realização efetiva dos direitos

individuais e coletivos, sendo então, em última análise um instrumento político de

participação social”58.

Conforme entendimento de Eduardo Santos de Carvalho, a ação deixa de ser

um direito abstrato para se transformar em instrumento voltado para a efetividade da tutela

pleiteada, exigindo o acesso a um resultado justo.59

Para a solução desses conflitos, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro60 propõe um re-

estudo da garantia constitucional de acesso à justiça a partir de quatro grandes princípios, os

quais devem ser observados de forma concomitante, pois são complementares: acessibilidade,

operosidade, utilidade e proporcionalidade que, em apertada síntese, seriam:

Acessibilidade – garantia do acesso à informação, possibilitando aos sujeitos

de direito a consciência da possibilidade da defesa de seus direitos em juízo, utilizando-se de

todo o instrumental jurídico para a perfeita realização do acesso à justiça, pois é inegável que

a tutela coletiva permite esse acesso àqueles que não teriam meios de litigar em juízo, não só

por falta de recursos financeiros, mas também por falta de discernimento para compreenderem

os seus direitos. Não há como desconhecer que o processo de exclusão social acaba por minar

a cidadania, incutindo na mentalidade dos excluídos a sua suposta inadequação social, como

se da sociedade não fizessem parte, sem direito de utilizar ou reivindicar os serviços

prestacionais do Estado.

Operosidade – situa-se no aspecto subjetivo dos sujeitos processuais que

devem empenhar-se eticamente para a melhor e mais rápida solução do conflito, com a

utilização correta dos meios processuais, com a busca da verdade e a índole conciliatória.

58 CALMON DE PASSOS, J.J. Democracia, participação e processo, in Participação e Processo, Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1988, p. 95.

59 CARVALHO, Eduardo Santos de, Ação Civil Pública: instrumento para a implementação de prestações estatais positivas, in Revista do Ministério Público, RJ, nº 20 60 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, Acesso à Justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública, tese de cátedra em Teoria Geral do Processo apresentada à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Forense, p. 55 ss, citado por Humberto Dalla em www.humbertodalla.pro.br/artigos/artigo _55

51

Utilidade – consubstancia-se nos princípios anteriores, pois o processo visa dar

ao vencedor tudo aquilo a que ele tem direito, de forma rápida e proveitosa, mas sem

sacrifício desnecessário ao vencido.

Proporcionalidade- dirige-se ao julgador, que deve privilegiar a solução que

atenda ao interesse mais legítimo do maior número de pessoas. Como esclarece Barbosa

Moreira 61, a ação coletiva constitui fator de correção ou atenuação de certa desigualdade

entre as partes. O litigante individual é eventual, enquanto os demais comparecem

continuamente em juízo.

Sob esse enfoque, para a efetividade do estudo dos interesses transindividuais,

típico da sociedade de massa, faz-se necessário empreender a análise dos interesses difusos,

coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, direitos chamados de terceira geração

em razão da solidariedade que caracteriza os interesses sociais, presentes no cotidiano de

todas as pessoas, independente de sua classe social ou espaço geográfico onde esteja

localizada.

Ao contrário dos interesses individuais, os transindividuais caracterizam-se

pela pluralidade de sujeitos com interesses convergentes, que incidem sobre o mesmo bem

indivisível, de modo que a satisfação do interesse de um dos sujeitos implicará a satisfação

dos demais. Abrangem direitos que, embora de grande importância para o indivíduo, são de

pequena expressão se considerado de per si, o que, por vezes, desestimularia o embate

judicial, que encontra nas ações coletivas um eficaz instrumento de proteção.

Quando do início das ocorrências das questões plurissubjetivas a serem

solucionas judicialmente, o direito processual civil respondeu à demanda por meio de

métodos até então disponíveis, como o litisconsórcio, onde os seus participantes agem em

nome e proveito próprio, ou senão das modalidades de intervenção de terceiros, o que afasta a

idéia de representatividade que caracteriza a ação coletiva. Naquela época ainda não eram

reconhecidos os direitos subjetivos transindividuais, pertinentes a membros de grupos ou

coletividades que necessitassem de resposta judicial, sendo esses interesses normalmente

confundidos com o interesse público, cuja defesa da titularidade era reconhecida somente ao

Estado, embora, por vezes, fosse ele próprio quem desrespeitava os direitos em tela.

A forma privada e individual de ver o Direito era originada na

patrimonialização, característica da legislação vigente, direcionada à proteção absoluta da

61 MOREIRA, Jose Carlos Barbosa, Temas de Direito Processual, Terceira Série. São Paulo, Saraiva, 1984

52

propriedade, destituída de qualquer função social, cultura ainda arraigada ao capitalismo

dominante, típico do ambiente cultural do liberalismo-individualista. Foi necessária uma

forma de pensar que percebesse o caráter indisponível dos direitos tutelados por meio da

tutela coletiva e, dessa forma, não só propiciando redução das demandas individuais a serem

apreciadas pelo Poder Judiciário, como também garantindo o acesso à Justiça a um maior

número de pessoas, que muitas vezes, por falta de conhecimento, deixavam de promover a

defesa dos seus interesses.

O processo coletivo surgiu ao lado do direito processual penal e do direito

processual civil, tomando as vestes de direito processual coletivo, subdividindo-se em

especial, quando o objeto material for o controle em abstrato da constitucionalidade; e

comum, quando a tutela for do direito coletivo lesionado ou ameaçado de lesão, em

decorrência de um ou de vários conflitos coletivos ocorridos no plano concreto.

2.3 – Os interesses transindividuais na legislação brasileira

Os interesses transindividuais caracterizam-se pela presença de sujeitos com

interesses convergentes, justapostos, incidentes sobre o mesmo bem indivisível, ocasionando

que a satisfação do interesse de um desses sujeitos importará na satisfação dos demais, por

mais que não tenham sido parte nomeada naquela ação, ou sequer que tenham tido o

conhecimento da propositura da mesma.

A legislação trabalhista foi reconhecidamente a precursora do movimento

social no tocante à defesa do interesse coletivo, com destaque aos direitos sociais, resultando

na Consolidação da Legislação do Trabalho em 01 de maio de 1943. Esse novo ordenamento

jurídico, muitíssimo avançado para o contexto jurídico da época, já trazia preocupação com a

instituição de ações coletivas, através dos dissídios coletivos de trabalho, bem como com a

legitimação dos sindicatos para a defesa do interesse dos seus associados. Pesa sobre a

legislação, contudo, o fato de ter cedido às pressões das oligarquias vigentes e ter

expressamente excluído do seu texto os trabalhadores rurais, que, somente na década de 50,

em razão de apelos sociais e políticos, tiveram parte dos seus direitos reconhecidos62.

Assim, a maioria das ações coletivas vigentes tem origem na Constituição

Federal, conforme disposto no artigo 129, III (ação civil pública); artigo 5º, LXXIII (ação

62 ALMEIDA, Gregório Assagra, Op. cit

53

popular); artigo 5º, LXIX e LXX (mandado de segurança coletivo); artigo 114, parágrafo 1º

(dissídio coletivo); artigo 5º. LXXI (mandado de injunção); artigo 102, I, a (ação direta de

inconstitucionalidade). Destarte, a fim de adequar-se à necessidade processual interna e sob

as fortes influências do direito comparado, o legislador brasileiro criou os seguintes

mecanismos na legislação infraconstitucional:

Anterior à edição dessa lei propriamente dita, a sua denominação já constara na

Constituição do Império de 1824. Mancuso63 assevera que, no artigo 157 da mencionada

Carta, era previsto que “Por suborno, peita, peculato, e concussão haverá contra elles acção

popular, que poderá ser intentada dentro de anno e dia pelo próprio queixoso, ou por

qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecido na Lei.”

A primeira Constituição que a amparou foi a de 1934, no inciso 38 do seu

artigo 113, formulado com o seguinte teor: “Qualquer cidadão será parte legítima para

pleitear a declaração de nulidade ou a anulação dos atos lesivos do patrimônio da União,

dos Estados ou dos Municípios.” Contudo, a mesma foi suprimida da Carta de 1937, somente

retornando na Constituição de 1946, em seu artigo 141 parágrafo 38, que aumentou o seu

objeto, estendendo-a para que ficassem sob tutela os atos da administração indireta, nos

seguintes termos: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a

declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios,

das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista.”

A Constituição de 1967 manteve-a no artigo 151 parágrafo 31, nos seguintes

termos: “Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise anular

atos lesivos do patrimônio de entidades públicas.”, o que constituiu forma de retrocesso em

relação ao texto da Carta de 1946, por ter restringido o seu objeto às entidades públicas,

deixando de fora as empresas públicas e as sociedades de economia mista.

Nesse sentido, encaminhou-se o instituto de vanguarda no Direito brasileiro, o

qual retrata uma hipótese de legitimação extraordinária. No entanto, a ação popular não foi

suficiente para a defesa do cidadão comum, uma vez que sempre restou comprovada a

disparidade entre as partes. Segundo Alcides A. Munhoz da Cunha64, a ação popular foi

idealizada para que qualquer cidadão pudesse atuar em juízo para a preservação do patrimônio

público, impugnando atos lesivos à Administração Pública, o que na prática demonstrou ser

63 MANCUSO, Rodolfo de Camargo, Ação Popular, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994, p. 37-38 64 MUNHOZ DA CUNHA, Alcides A., in Revista de Processo n. 77, p. 224 ss

54

ineficaz em razão do desequilíbrio das partes, pois enquanto o cidadão defendia só a sua tese,

o ente público contava com uma procuradoria para promover a sua defesa.

O referido artigo da Carta de 1967 foi regulamentado pela Lei 4.717/65, que

em seu artigo 18 inovou ao dispor que “A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível

erga omnes, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de

prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento,

valendo-se de nova prova.” Esse dispositivo serviu de modelo para a eficácia da coisa

julgada nas demais ações coletivas.

Posteriormente, esse instituto perdeu forma diante da amplitude do texto da Lei

da Ação Civil Pública, bem como acabou desvirtuando-se para fins políticos, despindo-se de

sua finalidade originária, um precioso instrumento de cidadania, gerando descrédito, quando

de sua utilização, embora acionado por cidadão com legítimos interesses.

A defesa da tutela coletiva, termo assim tomado como gênero para caracterizar

as normas jurídicas que têm por fim a defesa de interesses meta-individuais, avançou com a

edição da Lei 7.347/85, que, inicialmente, era limitada à defesa do meio ambiente,

consumidor e ao patrimônio artístico, estético, histórico, paisagístico e turístico. Com o

advento da Constituição da República de 1988, houve sensível incremento do seu objeto, com

a proteção de “outros interesses difusos e coletivos”.

Essa ampliação, ainda em 1988, somente previa a defesa desses interesses pelo

Ministério Público, eis que a ampliação temática havia ocorrido especificamente no Capítulo

das suas funções institucionais, o que impossibilitava a atuação dos demais legitimados

indicados no artigo 5º da referida Lei da Ação Civil Pública.

Contudo, o Código de Defesa do Consumidor não só aperfeiçoou a defesa dos

interesses difusos e coletivos, como também estendeu essa legitimidade aos atuais

legitimados. Esse diploma legal passou formalmente a interagir com a Lei da Ação Civil

Pública, proporcionando um sistema processual coletivo até então inexistente e que, embora

já ultrapassados os dezessete anos de sua promulgação, ainda assim causa temor para alguns

aplicadores do Direito, arraigados aos princípios do processo civil individual.

Reconhece-se que a ação civil está relacionada historicamente ao Ministério

Público, em razão de ter sido atribuição deste pleitear a aplicação da atividade jurisdicional

em matéria civil. Com o advento da Lei 7.347/85, o termo ação civil pública passou a ser

entendido como hábil à defesa de pretensão transindividual, seja ela individual, homogênea,

coletiva ou difusa, desvinculando-se da legitimidade ativa exclusiva do Ministério Público.

55

Conforme assinalado por Humberto Dalla65, a legitimação para a ação coletiva

é de natureza política, por ter sido opção legislativa expressamente indicar nominalmente os

legitimados, não tendo sido tal legitimidade reconhecida ao sujeito em abstrato da relação

jurídica de direito material, permitindo que sempre um mesmo rol de entes a promovesse em

nome do interesse ameaçado ou já lesionado.

A legitimidade ativa da ação civil pública tornou-se disjuntiva e concorrente,

porque qualquer um dos legitimados, respeitando a legitimada exigida para a defesa de cada

um desses interesses, pode ajuizar a ação sem a necessidade da presença de outro legitimado.

O rol é taxativo, porque somente poderão ser autores os entes arrolados no artigo 5º da Lei

7.347/85, o que a diferencia da class action norte-americana, onde a legitimidade é aferida

caso a caso, através do instituto da representatividade adequada.

Houve avanço na defesa do interesse público em razão da ampliação do rol dos

legitimados, entes ou órgãos que dispõem de garantias e estrutura suficiente para estar em

paridade processual com o réu, que, em sua maioria, são geralmente outros entes públicos ou

privados, que agem por delegação do poder público ou com recursos públicos; bem como pela

extensão dos novos interesses que poderiam ser defendidos por essa nova via, uma vez que o

objeto de proteção da lei foi sensivelmente ampliado. Decorreu dessa ampliação a

possibilidade da proteção do meio ambiente, dos consumidores, dos bens e direitos de valor

artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Outro aspecto importante foi a possibilidade de se acumular pedido liminar

com o principal, bem como a eficácia erga omnes da coisa julgada, nos limites da

competência territorial do órgão prolator, o que ainda constitui retrocesso, porque implica

possibilidade de existência de decisões conflitantes sobre o mesmo tema em razão da

diferença territorial. Exceção à regra da coisa julgada ocorrerá quando houver sentença de

improcedência, por falta de provas ou a coisa julgada ocorrer secundum eventum litis.

Em continuidade a essas modificações, o legislador prevê a possibilidade da

existência da formação de litisconsórcio entre os entes legitimados; a possibilidade de o juiz

conferir efeito suspensivo a qualquer recurso, além de poder determinar o cumprimento

específico da obrigação de fazer e não fazer.

Eficaz também foi a previsão de formação de um fundo com o produto das

condenações por violação desses interesses, o que permitiu a criação de recursos para reparar

65 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de, A Legitimidade da Defensoria Pública para a Propositura de Ações Civis Públicas: primeiras impressões e questões controvertidas, acessado em 15/11/07 http:www.humbertodalla.pro.br

56

o dano já concretizado. Nessa mesma esteira de pensamento, pode ser utilizada a previsão do

art. 634, e seguintes, do CPC, que consiste na possibilidade de execução de coisa fungível

pelo credor ou por terceiro, a expensas do devedor.

Essa modalidade de subrogação em face do Estado é medida extrema, de

grande utilidade na falta ou insuficiência de previsão orçamentária e somente terá cabimento,

depois de esgotadas todas as tratativas possíveis com o Estado. A subrogação consiste na

determinação do Poder Judiciário, mediante requerimento do legitimado processual, à

Administração Pública para que seja incluída no projeto de lei orçamentária do exercício

vindouro a verba necessária para o cumprimento da obrigação.66

A prática tem comprovado que nem sempre será possível aguardar a inclusão

no orçamento para obter o recurso necessário ao cumprimento da prestação, sob pena de

inutilidade do seu cumprimento ante o mal já concretizado. Nessa hipótese, o Judiciário

poderá determinar à Administração o remanejamento de verba já orçada e aprovada, sob pena

de descumprimento de uma ordem jurídica justa.

A legislação infraconstitucional iniciou uma nova fase, desta feita voltada para

a defesa de grupos, em claro reconhecimento da necessidade de defesa coletiva desses. No

ano seguinte à promulgação da nova Carta Constitucional, é editada a Lei 7.853/89, que

dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social, instituindo a

tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos desse grupo social. Conforme consta do

artigo 3º da mencionada lei, os legitimados à proteção de interesses coletivos ou difusos das

pessoas portadoras de deficiência serão o Ministério Público, a União, Estados, Municípios e

Distrito Federal; as associações constituídas há mais de 1 (um) ano, nos termos da lei civil,

autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista que inclua, entre suas

finalidades institucionais, a proteção às pessoas portadoras de deficiência.

Aos demais legitimados ativos é permitida a possibilidade de habilitarem-se

como litisconsortes nas ações propostas por qualquer deles, bem como, no caso de desistência

ou abandono da ação, também lhes é assegurado assumir a titularidade ativa.

Por analogia à alteração da legitimidade ocorrida na Lei da Ação Civil Pública,

a Defensoria Pública também poderá defender esses direitos de forma coletiva. É pertinente

esclarecer que a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro há mais de uma década conta

66 CARVALHO, Eduardo Santos de, Ação Civil Pública: instrumento para a implementação de prestações estatais positivas, in Revista do Ministério Público, RJ, nº 20

57

com órgão especializado para a defesa dos interesses das pessoas portadoras de necessidades

especiais.

Em prosseguimento à edição de legislação para defesa coletiva, é editada a Lei

7.913/89A primeira lei com características de class action for damages no Brasil. Cuida da

reparação de danos coletivos e legitima o Ministério Público - e nesse particular ressalte-se

que a instituição permanece com a exclusividade para a defesa desses interesses, a adotar as

medidas judiciais para evitar prejuízos ou ressarcir os danos causados aos titulares de valores

mobiliários e aos investidores do mercado, especialmente quando decorrerem de operação

fraudulenta, prática não eqüitativa, manipulação de preços ou criação de condições artificiais

de procura, oferta ou preço de valores mobiliários.

A defesa ocorrerá por ocasião de compra ou venda de valores mobiliários, por

parte dos administradores e acionistas controladores de companhia aberta, utilizando-se de

informação relevante, ainda não divulgada para conhecimento do mercado, ou a mesma

operação realizada por quem a detenha em razão de sua profissão ou função, ou por quem

quer que a tenha obtido por intermédio dessas pessoas. Também será objeto de defesa a

verificação de que ocorreu omissão de informação relevante por parte de quem estava

obrigado a divulgá-la, bem como sua prestação de forma incompleta, falsa ou tendenciosa.

Em 1990 é editado o Estatuto da Criança e do Adolescente por meio da Lei

8.069. A mencionada legislação confirmou o disposto no artigo 227 da Constituição Federal,

que estabelece:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Refletindo a preocupação do legislador, garante em título próprio, denominado

Do Acesso à Justiça, artigo 141, o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública,

ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos. A mesma

preocupação se repete no Título VI quando dispõe da Proteção Judicial dos Interesses

Individuais, Difusos e Coletivos. O artigo 208 dispõe sobre os direitos assegurados à criança

e ao adolescente, adotando a cautela de expressamente mencionar que o rol não é taxativo:

“As hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção judicial outros interesses

58

individuais, difusos ou coletivos, próprios da infância e da adolescência, protegidos pela

Constituição e pela Lei”67.

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, desde o início da década de

90, conta com órgão especializado para defesa de criança e do adolescente, em atuação

relevante perante a Vara da Infância, Juventude e Idoso da capital e de todo o Estado, seja

para defesa e proteção da criança em situação irregular, seja para aquela que cometeu ato

infracional, inclusive com atendimento das instituições onde os menores são internados.

Em prosseguimento à defesa da titela coletiva, e com vistas à preservação da

conduta dos agentes públicos, é editada a Lei 8.492/92, que dispõe sobre as sanções aplicáveis

aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo,

emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional, conhecida como

“Lei de Improbidade Administrativa”. A legitimidade ativa cabe ao Ministério Público ou à

pessoa jurídica interessada. A ação tem natureza coletiva, pois não visa à proteção do

interesse exclusivo da Fazenda, eis que privilegia o interesse transinvividual da coletividade,

lesada pela ação ou omissão do funcionário público ou pessoa a ele equiparada.

A tipificação dos atos que importam em improbidade administrativa e resultam

em enriquecimento ilícito ou que causam prejuízo ao erário estão descritos no artigo 9º e 10º,

respectivamente, da mencionada lei. O artigo 11 relaciona os atos de improbidade

67Várias foram as ações já propostas pelas Instituições Defensoria Pública da União e dos Estados para a defesa da criança e do adolescente, conforme retrata a notícia que segue: Brasília, 25/07/2006 (DPGU) - O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em agravo de instrumento interposto pela Defensoria Pública da União, reconheceu a legitimidade da Instituição para ajuizar Ação Civil Pública em que cobra imediata atuação do Poder Público (União, Estado e Município) em benefício de crianças e adolescentes em situação de risco, moradores de rua na cidade de Belém. O próprio Ministério Público Federal, em manifestação, citou que a “Defensoria Pública da União, como órgão estatal destinado à promoção do direito fundamental, é permitido valer-se de quaisquer medidas judiciais adequadas à defesa dos direitos metaindividuais das pessoas carentes”.No processo, iniciado em novembro de 2004 pelo Defensor Público da União Anginaldo Oliveira Vieira, o juiz de primeira instância não havia reconhecido a DPU como parte legítima para o pleito. Em sua petição inicial, o Defensor Público Anginaldo Vieira citou o estado das crianças e adolescentes “abandonadas à própria sorte, vítimas da omissão do Estado em cumprir com a sua obrigação de colocá-las a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.Lembrando o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, ele requereu que o Poder Público tomasse providências no sentido de colocar as crianças em abrigos especialmente destinados ao atendimento dos seus direitos, a inclusão das mesmas, ou das respectivas famílias, em programas de assistência como o `Fome Zero´ e “Bolsa Família´, o imediato tratamento médico de viciados em substâncias entorpecentes ou acometidos de algum tipo de moléstia e a matrícula com freqüência obrigatória em estabelecimentos oficiais de ensino fundamental”, entre outras. Com a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a Defensoria Pública da União volta a acompanhar a Ação Civil Pública em defesa das crianças e adolescentes moradores de rua em Belém, como autora da proposta inicial

59

administrativa que atentam contra os princípios da administração pública, os quais também

são considerados condutas criminalmente puníveis.

Em 1994 é editada a Lei Antitruste, Lei 8.894, que dispõe sobre a prevenção e

a repressão às infrações contra a ordem econômica, transformando o Conselho Administrativo

de Defesa Econômica (CADE) em autarquia. Logo no parágrafo único do artigo 1º, deixa

claro que a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por aquela lei. Em seu artigo

29, menciona que os prejudicados por condutas descritas nesse documento legal, por si ou

pelos legitimados do artigo 82 da Lei 8.078/90, poderão ingressar em juízo para, em defesa de

seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obterem a cessação de práticas que

constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas

e danos sofridos, independente do processo administrativo.

A proteção do meio-ambiente (organismos geneticamente modificados), foi

objeto de atenção do legislador ao editar a Lei 8.974/95, que foi revogada pela Lei 11.105/05.

A lei revogada estabelecia técnicas para o uso de engenharia genética e liberação no meio

ambiente de organismos geneticamente modificados. Foi expressamente revogada pelo artigo

42 da Lei 11.105/05 que, ampliando o seu objeto de proteção, estabelece normas de segurança

e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam a construção, o cultivo, a produção,

a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a

pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação do meio ambiente e o descarte de

organismos geneticamente modificados – OGM. Todas essas etapas relacionadas aos OGM

têm por fim a proteção à vida e à saúde humana, vegetal e animal, com a observância do

princípio da preocupação para a proteção do meio ambiente.

Desta feita voltado para o uso da propriedade urbana, o legislador editou a Lei

10.257/01 que, ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece

diretrizes gerais da política urbana por meio de normas de ordem pública e de interesse social,

que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, tais como a usucapião

coletiva e o IPTU progressivo, com clara demonstração de preocupação com o interesse

difuso e coletivo da sociedade, estabelecendo que todas essas disposições também devem

estar em consonância com o equilíbrio ambiental.

Em relação ao artigo 230 da Carta Constitucional, é editada a Lei 10.741/03,

que dispõe sobre o Estatuto da Pessoa Idosa, assim considerada a pessoa acima de 60

(sessenta) anos, indicando no artigo 81 que, para as ações cíveis fundamentadas em interesses

60

difusos, coletivos, individuais indisponíveis ou homogêneos, consideram-se legitimados,

concorrentemente, o Ministério Público, a União, os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios; a Ordem dos Advogados do Brasil; e as associações legalmente constituídas há

pelo menos 1 (um) ano, de acordo com sua adequação temática. Em razão da recém

legitimidade da Defensoria Pública para a defesa desses interesses, entende-se que a essa

Instituição também se estende a legitimidade para a defesa da pessoa idosa.

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro conta com o Núcleo

Especializado de Atendimento e Proteção da Pessoa Idosa, criado pela Resolução DPGE/80,

de 25 de setembro de 1997.

De recente edição é a Lei 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da Penha”,

que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos

do parágrafo 8º do artigo 226 da Carta Magna, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as

Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,

Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, inclusive com a criação de Juizados de

Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Essa política pública deverá ser implementada por meio de um conjunto

articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações

não-governamentais.

Às mulheres em situação de violência doméstica e familiar é garantido o acesso

aos serviços da Defensoria Pública ou da Assistência Judiciária Gratuita, em sede policial e

judicial, na forma do disposto no artigo 28 da referida lei.

A defesa dos interesses e direitos trans-individuais previstos nesta Lei poderá

ser exercida, de forma concorrente, pelo Ministério Público e por associações de atuação da

área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos moldes do já preconizado em

legislações anteriores.

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro integra a teia de instituições

que promove a defesa da mulher vítima de violência, com participação no Conselho Estadual

dos Direitos da Mulher – CEDIM, em razão do trabalho prestado no Núcleo Especializado no

Atendimento à Mulher Vítima de Violência.

2.4 – A defesa dos interesses transindividuais na Carta Magna de 1988

Embora importantes e necessárias as inovações anteriormente mencionadas, foi

no campo legislativo constitucional que ocorreu a ampliação da proteção a todos os interesses

61

transindividuais e a consagração dos direitos aos cidadãos e deveres ao Estado, com a

implementação de políticas públicas, decorrência da evolução do Estado Liberal para o Estado

Social, proporcionando a criação de novas leis e programas voltados para defesa dos direitos

difusos.

A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da inafastabilidade do

controle jurisdicional, garantindo o acesso de todos à defesa de direitos individuais, coletivos

e difusos, enquanto que a Carta Constitucional de 1969 limitava esse acesso à defesa de

direito individual. A expressão assistência judiciária, da Constituição anterior, foi substituída

por assistência jurídica gratuita e integral aos necessitados, um conceito mais amplo e que

alcança, tanto a consultoria, como a assistência extrajudicial em geral. O dispositivo em tela,

ao dispor que a assistência jurídica será “integral”, aponta que tal termo não constitui mero

adjetivo, mas dotado de significado próprio de abranger toda e qualquer modalidade de ação

que vise à proteção desses interesses.

A defesa do consumidor é caracterizada como direito fundamental,

constituindo um dos princípios da ordem econômica e financeira, conforme dispõe o art. 170,

V, da CF e, diante de um sistema de cunho eminentemente capitalista, são necessárias normas

jurídicas para regular as relações entre fornecedores/prestadores de serviço e consumidores,

ocasionando demandas que envolvem direitos individuais e metaindividuais.

De considerar a ampliação do objeto da ação popular, a possibilidade do

mandado de segurança coletivo, a legitimidade dos sindicatos para ajuizar ações coletivas em

defesa dos interesses transindividuais da sua categoria referente às suas qualificações e

atividades próprias e, por fim, a legitimação do Ministério Público para ajuizar ação civil

pública em defesa do patrimônio público e social e de qualquer outro interesse difuso ou

coletivo, sem exclusão de outros entes expressamente legitimados na Constituição Federal ou

na Lei, conforme estabelece o artigo 129, parágrafo 1º da Carta Magna.

Questiona-se a respeito da representatividade adequada para a impetração do

mandado de segurança coletivo, sendo comum que os sindicatos impetrem ação de segurança

coletiva em prol dos seus associados.

No entanto, a questão doutrinária de repercussão está em que, sendo o

mandado de segurança entendido como ação coletiva, a ele deve ser aplicado o regime da

coisa julgada, prevista pelo Código de Defesa do Consumidor; ou seja, somente será cogitável

naqueles casos de acolhimento da pretensão, deixando a possibilidade daqueles que não

62

participaram diretamente do processo recorrer ao Poder Judiciário para obtenção da prestação

jurisdicional.

Ocorre que, em seguimento ao sistema da coisa julgada nas ações coletivas, a

sua formação será secundum eventum litis, gerando disparidade, por exemplo, entre

contribuintes associados em sindicatos diversos, quando somente um destes impetrou ação

visando anulação de determinado tributo comum a outros sindicatos, obtendo provimento

favorável ao final. Como pode a um mesmo fato ser aplicada solução diversa?

Melhor sorte seria se o efeito da decisão nessa hipótese fosse erga omnes.

Mas, para que haja pertinência lógica e jurídica, e essa decisão tenha efeito secundum

eventum litis, há que ser entendido que a possibilidade contida na letra b do inciso LXX do

artigo 5º da CF, o sindicato somente poderá impetrar mandado de segurança coletivo para a

tutela de interesses próprios de cada coletividade.

A opção do legislador em conferir às ações coletivas o efeito previsto no artigo

81, III do CDC, formando coisa julgada somente para a hipótese de procedência da ação,

desestimula as vítimas a concentrarem esforços numa ação coletiva, onde haveria maior

interesse e eficácia na apuração da verdade, mas pelo contrário, dilui a produção de prova,

estimula a abstenção e a expectativa do insucesso da ação coletiva para ingressar com uma

ação individual.

Outra questão a ser apontada está em que, independente do rol dos legitimados,

sempre que o juiz entender que aquele que se apresenta como portador de uma pretensão

coletiva não possuir condições para bem representar a classe ou a coletividade, deverá

indeferir o seguimento da ação. Como isso não ocorre em tempo oportuno, resulta em

decretos de carência da ação, extinguindo-a, desperdiçando atos processuais ultimados.

Com referência a ação direta de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal

Federal realiza duas verificações acerca da legitimidade: a primeira se dá com a legitimidade

em abstrato, em tese (segundo rol do art. 103 da CF); e no caso de entidades privadas, se há

pertinência temática que comprove o interesse jurídico na impetração da ação.68

Essa segunda verificação é uma criação exclusivamente jurisprudencial. O STF

entende que há necessidade de reconhecer possibilidade de agir àqueles que demonstrem

serem representantes adequados, o que não tem amparo legal, uma vez que essa ação não tem

partes, sem apreciação de qualquer direito subjetivado de quem quer que seja.

68 Nesse sentido consultar as ADIN 1159-6 AP e ADIN 1693-0 MG

63

2.5 - Código de Defesa do Consumidor

Constituiu avanço legislativo para regular as relações de consumo,

expressamente definindo o consumidor como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou

utiliza produto ou serviço como destinatário final. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica,

pública ou privada, nacional ou estrangeira, que desenvolve atividade de produção,

montagem, criação, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização

de produtos ou prestação de serviços.

O Código de Defesa do Consumidor, a fim de dissipar possíveis dúvidas, foi

expresso em dispor que na coletividade de consumidores incluem-se nessa qualidade não só

os consumidores de fato, como também todas as pessoas da coletividade que hajam intervindo

nas relações de consumo ou estejam sujeitas às práticas comerciais, objeto do Capítulo V do

Código, que trata do processo administrativo.

Trouxe a ampliação das suas disposições para qualquer ação coletiva,

estabelecendo total interação entre o texto da Lei da Ação Civil Pública com este novo

Código, como se fossem uma única lei. A ação coletiva conceitua-se como o direito de exigir

do Estado a prestação da tutela jurisdicional em nome de uma coletividade, determinada ou

não. (Hugo Mazzilli)

Barbosa Moreira, citado por Mafra Leal69, aponta como principal elemento

caracterizador dessa ação a representação de interesses por uma única pessoa, percebendo que

há duas espécies de ações coletivas distintas: uma que trata de litígios essencialmente

coletivos e outra que cuida de litígios acidentalmente coletivos.

O artigo 81 da referida Lei classifica e conceitua os interesses transindividuais,

para o que cabe tecer os seguintes comentários sobre os mesmos:

Inicialmente, como assevera Kazuo Watanabe70, a expressão tutela coletiva

abrange dois tipos de direitos e interesses coletivos: os essencialmente coletivos são utilizados

para abranger os direitos difusos, previstos no inciso I, do parágrafo único, do artigo 81 do

CDC, e os coletivos propriamente ditos, descritos no inciso II do mesmo artigo. Já os direitos

individuais homogêneos entrariam em uma segunda classificação em razão de serem

69 LEAL, Marcio Flavio Mafra, Ações Coletivas: historia, teoria e prática, Porto Alegre:SAFE, 1998, p.41 70 WATANABE, Kazuo, Código de Defesa do Direito do Consumidor, p. 739

64

eventualmente coletivos, definido no inciso III do mesmo parágrafo do artigo 81 do CDC. No

entanto, para esse autor, a expressão tutela coletiva é sinônima, uma vez que naquele

momento todos os direitos ali dispostos necessitam da tutela coletiva. Ademais, todo interesse

transforma-se em direito no momento em que passa a ser amparado legalmente.

No entanto, a doutrina diverge sobre o tema. Há autores71 que reconhecem

diferença entre direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, não restringindo a

análise somente em relação à ligação que os titulares mantêm entre si, sejam elas de fato ou

de direito, mas a intensidade dessa relação, que no direito difuso, como o próprio nome diz, é

menor definido que nos direitos coletivos.

Há na doutrina estrangeira corrente contrária à diferenciação entre interesses

difusos e interesses coletivos. Mas, partindo da corrente que os distingue, os interesses difusos

são transindividuais e têm natureza indivisível em razão da total impossibilidade de fracionar-

se o bem lesionado, os titulares são, por conseguinte, indeterminados e ligados entre si em

razão de circunstância de fato – liame fático, não possuem vínculo jurídico formal com a parte

contrária.

Não importa que eventualmente exista uma associação visando proteger seus

interesses, porque esta será de natureza essencialmente formal e não terá condições jurídicas

de identificar todos os possíveis interessados de modo a organizá-los em classes, grupos ou

categorias.

As decisões farão coisa julgada erga omnes. Se o pedido for julgado

procedente, a sentença será revestida pela impossibilidade de modificação – imutabilidade da

coisa julgada, impedindo sua rediscussão por outro interessado. No entanto, se o pedido for

julgado improcedente por falta de provas, permite a possibilidade de ingressar com nova ação

por outro legitimado munido de novas provas. Contudo, se a improcedência do pedido for

fundamentada no convencimento do magistrado no sentido de que não assiste razão à parte

autora, a lide também se tornará imutável.

O grande mérito dessa inovação processual está em estender os efeitos da

sentença favorável, com a força da imutabilidade da decisão, a terceiros estranhos àquela

relação jurídica estabelecida com a ação coletiva, alcançando e beneficiando toda a

comunidade titular do interesse lesado.

A distinção básica entre o interesse coletivo e o difuso reside em que enquanto

os titulares dos interesses difusos serão sempre indeterminados, os titulares dos interesses 71 ALPA, Guido, Interessi Difusi, Revista de Processo, nº 81, jan-março 1996 p. 146-157

65

coletivos poderão ser determinados; embora o interesse que os une permaneça com natureza

indivisível. O liame entre eles é a relação existente entre os componentes desse coletivo e uma

segunda relação, esta tendo como origem a ameaça de lesão ou a própria lesão já ocorrida ao

direito desses.

A coisa julgada se opera ultra partes, porque além das partes formais, atinge

todos os sujeitos determinados da lide enquanto integrantes do grupo, classe ou categoria com

interesses diferenciados e determináveis. Somente a coletividade titular do direito lesado e

seus membros são atingidos pela coisa julgada, e não todas as pessoas indiscriminadamente,

uma vez que há uma prévia relação jurídica entre as partes.

Os interesses individuais homogêneos são, na verdade, direitos individuais que

poderiam ser defendidos de forma isolada por cada indivíduo lesionado em razão deste ser

identificado desde a ocorrência da lesão e o direito envolvido ser de natureza divisível. Mas,

por questões de celeridade e efetividade processual, bem como em razão da origem comum,

possibilitam a defesa por meio da utilização da tutela coletiva.

Simboliza a primeira class action do direito brasileiro, já que o direito por ela

objetivado é individual e não difuso ou coletivo. Tem tratamento de tutela coletiva em razão

de sua natureza divisível. A origem desse direito é comum e a prevalência dessas questões

comuns sobre as individuais deve estar presente, sendo sua condição de admissibilidade. O

que se pretende com a ação é uma condenação genérica em favor de todas as vítimas, ou dos

seus sucessores, em virtude de danos sofridos nessa mesma origem. A divisibilidade do

direito se opera apenas no momento da liquidação dos danos pessoalmente sofridos e no

momento da execução, transformando-se em uma reparação material individualizada.

A coisa julgada se dará erga omnes, como se os co-titulares dos interesses

individuais homogêneos fossem sempre indeterminados e o efeito será secundum eventum

litis somente para os casos de procedência, excluído o caso de improcedência pela falta de

provas.

Questão a ser esclarecida é a legitimidade concorrente do titular do interesse

difuso, diretamente atingido no seu direito, com os legitimados para a tutela coletiva na

modalidade interesse difuso ou coletivo, conforme consta nos artigos 103, parágrafos 1º, 2º, 3º

e 104 do Código de Defesa do Consumidor. Quando o legislador deixou em aberto a

possibilidade do titular do direito coletivo ou individual homogêneo de pessoalmente buscar a

defesa do seu direito, independente da propositura da ação coletiva, propiciou ao

jurisdicionado mecanismos de participação direta no processo coletivo, permitindo a

conjugação de instrumentos de democracia representativa e instrumento de democracia direta.

66

A fim de dar exeqüibilidade às decisões judiciais e estimular a tutela coletiva, a

lei atribui ao autor da ação individual o ônus de requerer a suspensão da ação até o trânsito em

julgado das ações coletivas, sob pena de ter de submeter à decisão do julgado em sua ação

individual, por mais favorável que tenha sido a decisão na ação coletiva.

No que tange aos efeitos da coisa julgada, os três incisos do artigo 81 Código

de Defesa do Consumidor acima comentado têm em comum a regra de que a coisa julgada

ocorrerá sempre para beneficiar o titular do direito lesado, na forma dos artigos 103, I a III e

seus parágrafos 1º a 3º.

No momento da execução da ação coletiva, uma vez obtida a sentença genérica

de procedência, cessa a legitimação extraordinária, dependendo da iniciativa do próprio titular

do direito lesado, tornando-se verdadeira ação individual.

Cabe discorrer sobre a possibilidade de transação nas ações coletivas. Como

não há disposição expressa no texto legal, há duas alternativas: ou é vedada a sua realização

ou, se realizada, não se pode cogitar do seu caráter vinculante, ao menos para aqueles

membros ausentes que discordarem dos termos da convenção.

O CDC alterou a Lei da Ação Civil Pública no seu parágrafo 5º do art. 5º,

passando a ser facultado somente aos órgãos públicos tomarem compromissos de ajustamento

de exigências legais com eficácia de título executivo extrajudicial. No entanto, na seara do

compromisso de ajustamento de conduta, ou termo de ajustamento de conduta como ficou

conhecido, não se trata de transação, uma vez que o mesmo é um reconhecimento implícito da

ilegalidade da conduta e promessa de que o infrator se adequará à lei, independente do

ressarcimento de eventual prejuízo causado. A natureza jurídica do instituto é de ato jurídico

unilateral quanto à manifestação volitiva, e bilateral somente quanto à formalização.72

No entanto, em se tratando de ações coletivas propriamente ditas, a transação

poderá ser efetivada desde que o juiz verifique vantagem na sua realização, bem como não

pode excluir a possibilidade de sua contestação por pessoa que se sinta lesada no seu direito.

Após essas considerações, cabe esclarecer que o tema da natureza jurídica do

termo de ajustamento de conduta não é pacífico, uma vez que Rodolfo Camargo Mancuso e

Hugo Mazzilli entendem que a natureza jurídica do termo de ajustamento de conduta é de

uma transação processual. No entanto, em posição contraposta e de igual peso, temos Paulo

Cezar Pinheiro Carneiro que sustenta não se tratar de transação, mas sim uma forma de

reconhecimento do pedido.

72 Jose dos Santos Carvalho Filho, Ação Civil Pública, Ed. Lúmen Júris, 2007, p. 215

67

Tecidas as considerações acima, o tema da tutela coletiva é de especial

relevância para o estudo e garantia aos direitos prestacionais em sentido estrito, assim

caracterizados por Alexy:

“Os direitos e prestações em sentido estrito são direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que – se o indivíduo possuísse meios financeiros suficientes e se encontrasse no mercado uma oferta suficiente – poderia obtê-lo também de particulares. Quando se fala em direitos sociais fundamentais, por exemplo, do direito à previdência, ao trabalho, à moradia e à educação, se faz referência primordialmente a direitos e prestações em sentido estrito.” 73

Nesse diapasão, a importância do estudo da tutela coletiva, dentre outras

questões, está na necessidade de implementação de políticas, típico direito prestacional, o qual

não pode ser obtido livremente do mercado pelo cidadão, sendo necessária a participação

efetiva do Estado na sua consecução, conforme melhor será visto no Capítulo 4.

2.6 - A Class Action do Direito norte-americano

O instituto da ação civil pública brasileira tem sua origem no direito norte-

americano, que já o conhecia desde 1820 e que, por sua vez, teve como referência histórica o

bill of peace74, datado do século XVII, na Inglaterra, embora outras fontes tenham contribuído

para a sua existência nos moldes atuais, conforme acima mencionado quando falado sobre a

parte histórica do instituto da tutela coletiva. O bill of peace envolvia uma autorização para o

processamento de ações individuais como coletiva, desde que houvesse um número excessivo

de interessados que, se unidos em litisconsórcio, o mesmo seria impossível ou impraticável;

73 Marcos Maselli Gouves, O Controle Judicial das Omissões Administrativas, Ed. Forense, 2003 74 O tribunais de equidade (courts of equity ou courts of chancery), com existência concomitante aos tribunais de direito, permitiam o litisconsórcio fundado na existência de questões comuns e determinavam a intervenção obrigatória de todas as pessoas interessadas no julgamento da lide; enquanto os tribunais de direito somente admitiam o litisconsórcio necessário e exigiam a exigiam a intervenção compulsória de terceiros em determinado processo quando houvesse ligação direta e imediata do terceiro e o julgamento da lide. No entanto, os courts of equity perceberam que tal obrigatoriedade de intervenção por vezes frustrava o intento dos demais interessados, uma vez que dificultava e retardava o andamento do processo. A fim dar solução a esse impasse passaram a admitir exceções à regra geral e assim surgiu o bill of peace, quando se passou a permitir as ações representativas.

68

deveria haver o interesse comum entre os envolvidos e que o autor representasse

adequadamente os interesses daquele grupo que se encontrava na mesma situação conflituosa.

Há peculiaridades da class action impossíveis de serem transportadas para o

Direito brasileiro, uma vez que o Direito norte-americano tem por base a common law,

enquanto aquele, a civil law. Espera-se, contudo, que os objetivos visados por essa ação sejam

comuns nos dois países: promover a economia e celeridade processual, além de possibilitar o

aceso à Justiça aos jurisdicionados.

Antonio Gidi75 afirma que a ação coletiva pode proporcionar com melhor

eficácia a proteção de interesses de pessoas hipossuficientes, como comumente ocorre com as

minorias oprimidas, que nem mesmo sabem que seus direitos foram violados ou, se o sabem,

não possuem as demais informações necessárias para buscar a tutela jurisdicional para

defendê-los. Outra hipótese defendida pelo autor está no temor de que algumas pessoas se

contraponham ao responsável pela conduta ilícita com receio das represálias.

Outra questão que independe da reparação pecuniária do dano, está no caráter

pedagógico das ações coletivas, uma vez que potenciais infratores, diante da existência de

legislação e de legitimados eficientes, se sentirão desencorajados a praticar condutas ilícitas

diante do receio da punição, com aplicação de altas sanções pecuniárias, promovendo, de

forma compulsória, a observância da legalidade.

Como regra ao juiz norte-americano cabe tão-somente o impulso processual,

bem como zelar pelo regular desenvolvimento do processo. A autonomia das partes no Direito

norte-americano é princípio absoluto, sem a permissão, no litígio individual, que o juiz avalie

o conteúdo de um acordo realizado entre as partes. No entanto, em sede de class action, o juiz

passa a ter uma posição ativista, conduzindo o feito como verdadeiro protagonista da ação. O

magistrado conta com liberdade de contratação de quadro de profissionais para ajudá-lo na

gestão da ação, com elaboração de relatórios, visitas ao local dos fatos, aproximando-se do

local da ameaça de dano ou onde o mesmo já foi causado.

O pensamento norte-americano para a aplicação da representação coletiva

iniciou-se no século XIX por meio de estudos do juiz da Suprema Corte norte-americana,

Joseph Story, extremamente dedicado ao estudo da equity76. Para ele a legitimidade coletiva

fundamentava-se ora no vínculo interno e existente entre as partes interessadas; ora na

75 GIDI, Antonio, A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos, as ações coletivas em uma perspectiva comparada, Revista dos Tribunais:São Paulo, 2007, p.31 76 A partir do século XVI, em razão do crescente número de petições, estas passaram a ser julgadas por um alto funcionário da Coroa, o Chanceler, que procurava em cada caso o julgamento por equidade, definindo regras de acordo com as quais examinaria e julgaria os variados pleitos. Eram as regras de equidade – rules of equity.

69

comunidade de interesses e, residualmente, na impossibilidade de todas as partes

comparecerem em juízo.

Os estudos do juiz Story têm o mérito de iniciar o debate sobre o tema, mas

não se apresentaram resistentes à análise mais crítica, uma vez que os critérios objetivos

(interesse geral ou comum) e subjetivos (relação entre os membros da classe), não excluem

uns aos outros. Por sua vez, o fato da impossibilidade de todos os interessados não poderem

comparecer em juízo não pode ser utilizado isoladamente, sem levar em consideração os

demais elementos.

Por sua vez, outro posicionamento amplamente difundido pelo jurista foi o de

não vincular os membros ausentes da classe à decisão do litígio coletivo, o que acabou por ser

incorporado pela Equity Rule 48, a primeira lei que regulou a matéria nos Estados Unidos

entre os anos de 1842 a 1912, que admitia o ajuizamento desse tipo de ação de classe em

razão do excessivo número de partes, a fim de evitar tumulto e a demora na prestação

jurisdicional. Caberia ao Tribunal, de acordo com a discricionariedade do juiz ao analisar o

caso concreto, dispensar o comparecimento de todas as partes.

Contudo, uma década após a promulgação da Equity Rule 48, a Suprema Corte

norte-americana pronunciou-se contrariamente a essa regra no caso Smith v. Swormstedt77, em

que determinou que a decisão final deveria alcançar todos os membros do grupo, ou seja, é

necessária a representatividade adequada como condição de julgamento justo da causa.

Esse raciocínio da Suprema Corte norte-americana relacionara a

representatividade à coisa julgada, numa forma de garantir a decisão a todos os componentes

da classe, desde que os mesmos tivessem sido adequadamente representados.

Em 1912 a Equity Rule 48 foi substituída peal Equity Rule 38, na qual se

omitiu a ressalva de que a decisão prolatada em class action não poderia prejudicar os

membros ausentes da classe. A Suprema Corte, em 1938, edita a Norma de Processo Civil

Federal Americano, unificando as regras da commom law e da equity, regulando na Regra 23

as ações de classe. Não se trata de um código ou de uma lei, trata-se de um conjunto de

normas emitido pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Com essa promulgação restaram

unificados os sistemas da equity e da law passando as class actions a serem utilizadas para os

direitos reconhecidos pela equity bem como para os direitos do sistema law. 77 Caso citado por Clarissa Dias Guedes, op. Citada. Trata-se de ação representativa proposta em nome de todos os sulistas que faziam parte de uma entidade assistencial metodista – cujo objetivo era fornecer pensões aos pregadores idosos e a seus viúvos – contra todos os ministros nortistas da mesma entidade, diante da recusa dos curadores dos fundos da sociedade a repassar recursos aos autores sulistas. A recusa tinha como causa a posição abolicionista da Igreja metodista, em oposição ao regime de escravidão que vigorava nos estados do Sul anteriormente à guerra civil.

70

A nova redação da Regra 23 exige a presença dos pressupostos de

admissibilidade e de desenvolvimento. Quanto ao primeiro, é necessária a existência de uma

classe e de um candidato com intenção de representá-la, sendo que o mesmo deve ser membro

da classe. O número de componentes da classe há de ser tão numeroso que a reunião de todos

se torne impraticável (numerosity), bem como as questões de fato e de direito devem ser

comuns a essa grupo (commonality). Como conseqüência, os pedidos, no caso de plaintiff, ou

a defesa, na hipótese de defendant, devem ser idênticos aos da própria classe (tipically). Como

pressuposto final para a admissibilidade, os litigantes devem atuar e proteger adequadamente

os interesses da classe (adequacy of representation) . Esse controle tanto diz respeito às partes

quanto aos advogados, sob pena da corte determinar a intervenção de outro integrante da

classe, mais idôneo e adequado, a fim de que a representação seja apropriada.

Conceitualmente a class action é um “Procedimento em que uma pessoa,

considerada individualmente, ou um pequeno grupo de pessoas, enquanto tal, passa a

representar um grupo maior ou classe de pessoas, desde que compartilhem, entre si, um

interesse comum.” 78

Por criação do Professor James Moore, a class action dividia-se em três

espécies:

True class action – assim denominada por ser verdadeiramente a única

ação coletiva a permitir representação quando o litisconsórcio de todos os integrantes do

grupo fosse essencial para a solução da demanda. O direito deve ser absolutamente comum a

todos os membros da classe a que houvesse risco de decisões judiciais colidentes, uma vez

que o direito era joint ou common, equivalente ao interesse difuso brasileiro;

Hybrid class action - quando o direito fosse comum em razão das

várias demandas sobre o mesmo bem (several rights), embora o direito dos membros fosse

distinto uns dos outros. Há pretensão declaratória ou injuncional contra o Estado, equivalente

ao interesse coletivo brasileiro. A coisa julgada vincularia apenas as partes do processo, assim

considerados todos os membros do grupo relacionados ao direito discutido na ação; e

Spurious – Quando houvesse uma questão comum de fato ou de direito

afetando os diversos direitos de várias pessoas que se reuniram para litigar, sem que houvesse

relação entre os membros da classe. Ou seja, o direito era distinto, mas dependente de uma

mesma questão de fato ou de direito, que ensejaria uma decisão uniforme. Não é tecnicamente

78 BUENO, Cassio Scarpinella, As Class Actions Norte-Americanas e as Ações Coletivas Brasileiras: Pontos para uma reflexão conjunta, in Revista de Processo, nº 82

71

uma ação coletiva, mas recebe esse tratamento para facilitar a condenação e futura execução

de uma reparação em ação que tenha um dano comum entre as partes. Equivalente ao direito

individual homogêneo na legislação pátria.

Essa classificação, contudo, não ficou livre de críticas, pois os termos joint,

common e several eram utilizados de forma incerta e obscura pela jurisprudência. Por sua

vez, as cortes também contribuíram para a inadequação conceitual, ora classificando ações

como true ou sugerindo que os julgamentos deveriam ser decisivos para a classe onde estes

resultados pareceriam apropriados, mas que foram alcançados por meio da destituição de

significado coerente à palavra “several”.79 A classificação foi abandonada com a Reforma de

1966, que deu nova redação à Rule 23, que foi editada com o objetivo promover a aplicação

das políticas públicas contra a discriminação racial.

Talvez o que de mais relevante tenha ocorrido com a Reforma de 1966 foi o

efeito vinculante da coisa julgada em face de todos os membros do grupo e para todos os tipos

de ações, independente do resultado da ação. A fim de não ser atingida pelo resultado da ação,

a parte deveria requerer o opt out, ou seja, a sua exclusão da demanda. O membro da classe,

quando notificado da existência da ação, tem o direito de requerer a sua exclusão do feito,

deixando de estar adstrito aos efeitos da coisa julgada. Os que deixam de optar pela exclusão,

o que corresponderia ao critério opt in, serão atingidos pela coisa julgada sem a necessidade

de anuência expressa, mas desde que tenha havido notícia pessoal do ajuizamento da ação.

Ao contrário dessa conseqüência, a legislação brasileira criou a formação da

coisa julgada secundum eventum litis e in utilibus, liberando do manto da coisa julgada. Em

caso de não acolhimento da pretensão, os efeitos da coisa julgada não atingirão aqueles que

não foram parte da ação, conforme acima mencionado quando falado sobre interesses difusos

e coletivos.

Como bem leciona Antonio Gidi80, o instituto do opt in or opt out não tem

relevância para o Direito brasileiro porque a extensão da coisa julgada só ocorrerá secundum

eventum litis, não causando prejuízo para aqueles que fizeram parte da demanda.

No que diz respeito às teorias que justificam a utilização da class action,

predominou a teoria substantiva, que entende ser uma manifestação de acesso à Justiça

79 GUEDES, Clarissa Dias, Op. Cit. 80 GIDI, Antonio, A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos, as ações coletivas em uma perspectiva comparada, Revista dos Tribunais:São Paulo, 2007, p.306

72

sempre que a prestação da jurisdição estiver inviabilizada pelo elevado número de ações

individuais que seriam propostas.81

A class action tem por característica a existência de uma classe extensa o

suficiente de modo a impossibilitar ou não ser conveniente a reunião de todos os seus

membros individualmente considerados em um só processo. A Corte deve acreditar ser esse o

meio apropriado para o julgamento da controvérsia, impedindo a ocorrência de diversidade de

decisões, impondo condutas divergentes para o mesmo condenado, como no caso de anulação

de um tributo para uns e redução da alíquota desse mesmo tributo para outros.

A representação adequada é corolário da garantia constitucional do devido

processo legal, permitindo que os representados se façam presentes na ação e tenham

garantido o direito do devido processo legal por meio do representante. Enfatiza o

comprometimento do litigante ativo e do seu advogado com as prioridades da classe, além de

fazer cumprir os princípios processuais da lealdade e da probidade. Tal preocupação com o

risco da class action não é infundado, pois a mesma, na aparência da legalidade, pode

encobrir objetivos meramente econômicos ou acordos que não atendam aos interesses da

classe, prevenindo abusos por parte de indivíduos que tenham a intenção de, por meio dessa

ação, intimidar seus adversários. O juiz deve pautar suas observações orientando-se pelos

elementos da boa-fé, habilidade profissional, capacidade de arcar com os ônus e o alto custo

de um litígio coletivo e, talvez o mais importante, aptidão de apreender os reais interesses da

coletividade representada.

A certificação da demanda como class action não significa que sobre a mesma

o juiz não mais possa se manifestar, uma vez que esse controle deve ser feito durante o curso

do processo e ex officio. A importância da representação é de tal monta que nem mesmo a

existência da coisa julgada impossibilita a sua revisão por parte daqueles que não foram

adequadamente representados em juízo. A representação adequada também é do interesse da

parte contrária porque se o representante for considerado inadequado, o réu não poderá usar o

benefício da coisa julgada aos membros ausentes do grupo que desejem promover nova ação

pelo mesmo pedido.

A adequada representação consiste em demonstrar que os membros presentes e

nomeados na ação têm interesse jurídico na promoção da demanda; a competência dos

advogados que conduzirão a ação, não só no sentido da boa fé como também na capacidade

técnica para a defesa desses interesses; a Corte ainda deverá examinar a inexistência de

81 DALLA, Humberto , Ações de Classe. Direito Comparado e Aspectos Processuais Relevantes, Simpósio de Processo Civil em 28/09/2001 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

73

qualquer conflito interno no interior da classe cabendo, se for o caso, determinar a sua

subdivisão em quantas classes forem necessárias.

A questão de representatividade adequada é de tal importância para os

estudiosos da class action que os faz logicamente questionar:

“(...) se todos estes membros ausentes foram devidamente representados, não há como questionar que tenham tido their own day in court, e, fique dito de pronto, não há qualquer necessidade de autorização prévia dos membros putativos de uma classe para que possam ser representados em juízo pelo autor da class action.”82

A representação adequada, enfatize-se, é examinada em dois momentos pela

Corte: o primeiro quando da propositura da ação e, por fim, ao final desta, por algum membro

ausente da classe, o que implicará na possibilidade deste ingressar, ou não, individualmente

com nova ação, pois não estará sob o manto da coisa julgada.

Quanto aos pressupostos de desenvolvimento, os quais somente devem ser

analisados após a confirmação dos pressupostos de admissibilidade, são no sentido de que

fique caracterizado que o ajuizamento de ações separadas possa configurar o risco de as

sentenças proferidas venham a impor ao litigante contrário à classe um comportamento

antagônico; e se tais sentenças prejudicarem ou tornarem extremamente difícil a tutela dos

direitos de parte dos membros da classe estranhos ao julgamento. Outra hipótese está em que

o litigante contrário à parte tenha se recusado a atuar de maneira uniforme perante todos os

membros, impondo uma decisão à classe; e, por fim, quando o Tribunal entender que as

questões de direito e de fato comuns aos componentes da classe tenham maior relevância do

que as questões de caráter individual, sendo a class action o instrumento adequado para a

tutela jurisdicional.

A fim de garantir a publicidade, é necessário que a existência da ação seja

noticiada individual e pessoalmente para todos os membros da classe que possam ser

identificados e encontrados com razoável esforço, mesmo que esse procedimento custe

milhares de dólares. Esse custo será suportado pelo autor da ação e, se vitorioso, poderá ser

cobrado de toda a classe na proporção do benefício ao qual cada integrante tenha alcançado.

No Brasil, em razão da possível indeterminação das vitimas em alguns casos, optou-se pela

82 BUENO, Cassio Scarpinella, As Class Actions Norte-Americanas e as Ações Coletivas Brasileiras: Pontos para uma reflexão conjunta, in Revista de Processo, nº 82

74

intimação por edital, embora o artigo 94 do CDC oriente no sentido da divulgação da

existência da ação pelos meios de comunicação social.

Essa disposição justifica-se pela necessidade de cada membro poder exercer o

seu direito de auto-exclusão, não se submetendo aos efeitos da coisa julgada.

A certificação da ação como class action é atividade discricionária do Tribunal

e na hipótese de negativa da certificação, prosseguirá como uma ação individual, sem a

possibilidade de extensão da coisa julgada aos demais membros da classe.

As ações promovidas perante o direito processual norte-americano são

encerradas, em noventa por cento dos casos, por meio de acordo. É de considerar-se, ainda, a

grande quantidade de possíveis demandas resolvidas extrajudicialmente. No entanto, em sede

de ações coletivas há maior resistência para a celebração do acordo por parte do autor, uma

vez que a simples certificação da ação como tal já lhe garante maior vantagem para acordar.

Em razão do caráter representativo da demanda, o juiz deve supervisionar os

interesses dos membros ausentes, interferindo inclusive nas hipóteses de desistência da ação

por parte do representante da classe. Qualquer proposta de acordo ou transação visando ao

encerramento das ações coletivas deverá de vir acompanhada da demonstração de que sua

finalidade alcança o interesse dos indivíduos que estariam sujeitos ao efeito dessa decisão e,

somente após, será submetida à Corte com a comprovação da notificação dos membros dos

grupos. Tal medida tem a finalidade de proteger os interesses dos membros ausentes, já que os

mesmos estão vinculados aos efeitos desse acordo ou transação.

Esses acordos poderão ser efetivados mesmo sem a anuência dos

representantes ou de algum membro da classe que tenha atendido à notícia de sua realização.

75

3 - DO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA LEGITIMIDADE DA

DEFENSORIA PÚBLICA DIANTE DA LEI 11.448/07

3.1. Interpretação e alteração da norma constitucional

Para dimensionar o alcance da afirmação da existência de fundamento

constitucional para a legitimidade da Defensoria Pública diante da Lei 11.448/2007, é

necessário percorrer os métodos formais e informais de alteração constitucional, uma vez que

a norma constitucional, nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu artigo

48, determinou que o Congresso Nacional elaborasse um código para a defesa do consumidor

no prazo de 120 dias da promulgação, autorizando a criação da legislação infraconstitucional,

a qual se transformou na Lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor. Essa legislação, em

consonância com o texto constitucional, atribui legitimação a entidades e órgãos da

Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica,

especialmente destinados à defesa dos interesses e direitos defendidos por aquele código.

Nesse sentido, a Defensoria Pública ou o próprio órgão de execução especializado, que a

mesma possui para a defesa do consumidor, é legitimado para a defesa de direitos coletivos e

individuais homogêneos.

A recente história da Defensoria Pública, que na época dos debates da

Assembléia Nacional Constituinte da Carta de 1988 ainda não existia em alguns Estados da

federação ou, quando existia, era criada de forma incipiente, com poucos profissionais em

atuação, determinou que no período pós-constituinte fosse ressaltado aos aplicadores da lei,

ao longo destes quase vinte anos da promulgação da Carta, que embora o texto não tenha sido

expresso àquela época no que tange à extensão das atribuições institucionais, seria possível,

através da análise dos princípios constitucionais e das atribuições expressas constantes da

Carta Constitucional de 1988, legitimar a pretensão da Defensoria Pública para patrocinar a

defesa de interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Essa interpretação conforme a constituição ocorreu por meio do fenômeno de

mutação constitucional, método informal e democrático de alteração constitucional, que não é

limitado às pessoas investidas no poder constituinte derivado, possibilitando também àqueles

que vivenciam a realidade constitucional realizar uma releitura de Carta de acordo com a

interpretação dos princípios. Trata-se de um mecanismo essencial para fomentar a questão da

76

nova hermenêutica constitucional, privilegiando a ampla participação de todos aqueles que

vivenciam essa norma jurídica.

Peter Häberle, na obra Hermenêutica Constitucional, menciona que a

constituição é apresentada como um sistema de normas aberto a várias soluções

interpretativas em razão de estar em constante comunicação com o sistema social – seu

fundamento sociológico, com capacidade para aceitar as modificações apresentadas pela

dinâmica da sociedade sem que necessariamente o texto constitucional sofra emenda ou

revisão, o que demanda processo legislativo mais demorado em razão da natureza rígida da

Constituição.

O texto constitucional interage com a realidade sócio-política, sendo um claro

indicativo de que a norma constitucional não é atemporal, pelo contrário, é sensível aos

padrões sociais do momento de sua interpretação. A interpretação de uma norma jurídica,

mesmo que seja a da própria norma constitucional, possibilita a evolução do pensamento

jurídico, conferindo-lhe a legitimidade outorgada por aquele titular do Poder Constituinte – o

povo. As mais variadas formas de manifestação da sociedade serão as fontes nas quais irá

abeberar-se o profissional do mundo jurídico para justificar um pedido ou uma decisão.

Caberá ao legislador ou ao aplicador da lei, sensível a essas mudanças e em consonância com

as alterações doutrinárias e jurisprudências, justificar no anteprojeto de lei, ou na decisão

judicial, as razões que o levaram a criá-la, seja em abstrato, como a lei, ou no caso concreto, a

sentença.

Dessa forma, embora ciente de que a norma jurídica retrata uma realidade

pretérita, o legislador deve ter cautela no afã de atender aos apelos sociais, verificando se

estes são de fato os anseios da sociedade, os quais podem ser meros reflexos do interesse de

momentâneos ou originários de grupos de pressão, sem qualquer “pré-ocupação” democrática.

A relevância do tema ora discutido está em que as relações criadas pelo Direito

inscrevem-se na esfera mais ampla do social, sem que por isso perca a marca específica e as

conseqüências que daí decorrem, direcionando-se para a normatização das exigências contidas

na realidade, sempre concreta, de modo a balizarem os atores sociais ao tomarem suas

decisões.

Caso essa correlação do normativo com o social não ocorra, o ordenamento

constitucional deixará de acompanhar o pensamento social e perderá o seu fundamento de

validade, qual seja, a soberania popular. J.J. Rousseau disse que toda lei que o povo não haja

77

ratificado pessoalmente é nula, não sendo lei e, por conseguinte, não possuindo legitimidade

para ingressar no mundo jurídico.

Para Norberto Bobbio83, a sociedade civil, que serve de fundamento para a

validade das normas, deve ser entendida como o conjunto de relações não reguladas pelo

Estado, as quais, ligadas ao jusnaturalismo, antecedem ao próprio, na forma de associação de

indivíduos, organizações de classe, grupos de interesse, sejam estes constituídos por questões

sociais, étnicas ou de gênero.

A sociedade civil atua de forma participativa e fiscalizadora, contribuindo para

a necessária transformação das normas, seja na sua reformulação, seja na interpretação do

conteúdo das normas já instituídas. Opera como controle externo do Estado-Administração na

defesa da consecução dos direitos assegurados em lei.

A origem das constituições escritas, segundo Paulo Bonavides84, tem como

marco as lutas políticas inglesas, com a vitória do Parlamento, bem como a célebre obra de

Rousseau – Contrato Social, que asseverava ser “(...) mais adequado concretizar em um pacto

ou contrato as normas de convivência entre governantes e governados”.

É da tradição constitucional brasileira a forma de constituição rígida e, como

observado por Nagib Slaibi Filho85, daí resulta o controle de constitucionalidade das leis, pois

somente em países de constituição rígida é possível a sua existência.

A rigidez constitucional, em razão do seu processo qualificado de alteração,

visa a garantir maior estabilidade e segurança às constituições, sem com isto engessar a

aplicação do Direito, dissociando-a da realidade, haja vista que o Poder Constituinte, ao

elaborá-la, o faz não só para esta geração como também para as futuras.

O Prof. J.J. Gomes Canotilho86, em abordagem do tema, preleciona que “O verdadeiro problema levantado pelos limites materiais do poder de revisão é este: será defensável vincular gerações futuras a idéias de legitimação e a projectos políticos que, provavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte? A resposta tem de tomar em consideração a verdade evidente de que nenhuma constituição pode conter a vida ou parar o vento com as mãos, nenhuma constituição evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, conseqüentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa.”

O Direito, mundo dos valores, dos princípios e das normas jurídicas, deve ser

observado em dois sentidos, sendo que estes devem estar interligados: um relacionado ao que

83 BOBBIO, Norberto, Estado, Governo Sociedade, Paz e Terra, 7ª Edição 84 BONAVIDES, Paulo – Curso de Direito Constitucional – 13 Edição, Malheiros, pag. 85 85 SLAIBI FILHO, Nagib, Direito Constitucional, Forense, 2004, pag. 13 86 CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional, 6ª Edição, Coimbra, 1993, pag. 1129

78

deve ser – ponto de vista normativo; e o “ser”, que de fato ocorre na sociedade – ponto de

vista sociológico, principalmente quando o tema é norma constitucional, paradigma de toda a

legislação infraconstitucional e que necessita ter na sociedade o seu fundamento de validade.

Diante do mundo sistêmico no qual o Direito está inserido, quando se fala em

ordem jurídica, preceitos jurídicos, deve ter-se em conta que a questão deve ser analisada sob

o aspecto jurídico e sociológico. Desta forma, há o sentido normativo, ligado ao que deve ser,

e o sociológico, pertinente ao que de fato ocorre na realidade social. Somente assim haverá

uma correta interpretação da mesma, uma vez que as constituições são organismos vivos que

interagem com as forças presentes na sociedade.

Diante dessa argumentação, conclui-se que a norma constitucional, a fim de

manter-se conectada à validade social e assegurar a estabilidade das relações deve, em

condições materiais, formais e circunstanciais próprias, sofrer as necessárias alterações de

acordo com as novas exigências do progresso da evolução e do bem-estar social.

Caso fosse possível a concepção de uma Constituição imutável, sob a

justificativa de manter a estabilidade e a segurança jurídica, ocorreria a inevitável e abrupta

ruptura social, com sérios prejuízos para a sociedade, com alteração legislativa nem sempre

legítima, além do sentimento de desvalorização da própria constituição, que deixaria de

representar o pensamento do povo, seu legítimo titular.

Assim, diante da necessidade imposta pela realidade social, as constituições

podem ser alteradas por meio de mecanismos formais, tais como a emenda constitucional,

com o fim de não cristalizar os dispositivos originais, bem como por meio da revisão

constitucional, prevista pelo constituinte como forma de atualização e adaptação da

Constituição.

Outra forma de modificação, conforme já brevemente introduzida, é a mutação

constitucional, pois não altera o texto da Constituição, possibilitando tão-somente a

interpretação das normas preexistentes, conferindo-lhes novo entendimento em razão da lenta

e gradual evolução da sociedade. É efeito necessário e indissociável do processo de

concretização das normas constitucionais, em que a atividade de atualização constitucional

desloca-se do poder reformador para os intérpretes da constituição, em vista à sedimentação

do conteúdo mais adequado à realidade.

O Superior Tribunal Federal, na qualidade de Tribunal Constitucional, bem

como reconhecendo que o direito é um fato social, deve interpretar a Constituição de modo

evolutivo, sensível às mudanças de ordem temporal e circunstancial do texto diante da

79

realidade estrutural, reconhecendo no texto constitucional um significado além de sua

qualidade semântica. A Constituição não pode padecer de hermenêutica retrospectiva.

O jurista Uadi Lammego Bulos, ao tratar do tema mutação constitucional,

leciona que:

“Assim, denomina-se mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais.”87

As mutações constitucionais, ao servirem de meio de adaptação do texto

constitucional à realidade social, possibilitam o acesso à justiça em seu sentido amplo, na

forma preconizada por Mauro Cappelletti, uma vez que o acesso à Justiça não se restringe ao

valor das custas judiciais ou dos honorários advocatícios, mas sim das interpretações

adequadas em favor da defesa dos interesses sociais.

Questão a ser observada está na afirmação de que o Poder Constituinte é o

fundamento das reformas constitucionais formais – revisão e emenda constitucional. Nesse

sentido, qual seria o fundamento que legitimaria a mutação constitucional? Conforme acima

explanado, o direito deve estar inserido em um contexto normativo e sociológico, e seria a

conformação da Constituição com esses valores que fundamentaria a mutação constitucional.

Mas, uma vez considerada essa afirmação como válida, este meio de reforma

não é ilimitado, sendo que sequer o poder constituinte derivado o é, sob pena de incorrer na

insegurança jurídica total. Esse poder reformador recebe influências estranhas ao mundo

jurídico, como as de ordem moral, ideológica, religiosa, cultural, e todos os demais

componentes da realidade social, mas está circunscrito nas mesmas limitações materiais da

reforma formal da Constituição.

A mutação constitucional, além de diferenciar-se da emenda e da revisão

constitucional pela maneira informal como ocorre, também se diferencia pelo seu aspecto

lento, gradativo e imperceptível, resultante da evolução natural do pensamento social,

desenvolvendo-se em momentos cronologicamente distintos, diante de situações diferentes,

sem alteração expressa da Constituição.

87 BULOS, Uadi Lammêgo, Mutação Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 57

80

Bulos, em outra passagem de sua obra, ensina que a mutação constitucional é o

chamado poder constituinte difuso, em estado latente, pois surge na medida da necessidade da

sociedade:

“(...) não possui as marcas da iniciatividade, autonomia e incondicionalidade, nem, tampouco, os traços da secundariedade, limitabilidade e condicionalidade, não está previsto por mecanismos instituídos na ordem jurídica e não advém da linguagem prescrita pelo legislador constituinte”88.

Ao discorrer sobre mutação constitucional, Paulo Bonavides89 assevera que

“O emprego de novos métodos da hermenêutica jurídica tradicional fez possível uma considerável e silenciosa mudança de sentido das normas constitucionais, sem necessidade de substituí-las expressamente ou sequer alterá-las pelas vias formais de emenda constitucional.”

Essa visão democrática de interpretação constitucional fundamenta a tese, ao

lado da observação sociológica, de validade do fenômeno jurídico informal que é a mutação

constitucional, uma vez que a Constituição, ao ser democraticamente interpretada, deve estar

adequada à realidade social, resultando no importante papel a ser exercido pelos agentes que

conformam esta realidade.

Häberle propõe a tese de que não é possível o estabelecimento de um número

limitado de intérpretes da constituição na medida em que o Estado por seus órgãos, e a

sociedade civil por meio dos seus diferentes grupos, estão envolvidos nesse processo de

interpretação, que deverá ser tão mais aberto quando mais pluralista for essa sociedade:

“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que é indireta ou, até mesmo diretamente regulado por ela, é um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico.”90

Paulo Bonavides91 entende que após a promulgação de uma carta

constitucional, a tarefa de mantê-la consentânea com a realidade faz com que sejam

88 Idem, p. 171 89 BONAVIDES, Paulo, Ciência Política, 10ª Edição, Malheiros, 1999 90 HÄBERLE, Peter, Hermenêutica Constitucional, Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Sergio Antonio Fabris, reimpressão 2002 91 BONAVIDES, Paulo, obra citada, p. 186

81

reconhecidas duas formas de poder constituinte: o derivado, com regras prescritas no próprio

texto constitucional, e outro poder sem titularidade definida, difuso, autônomo e político. A

força normativa deste último se faz presente na realidade e no meio social, tendo por isso

função originária e, de algum modo, se caracteriza como o mesmo poder constituinte

originário em estado potencial.

A atividade legislativa deve conformar-se com os princípios constitucionais

uma vez que a Constituição traz em seu bojo normas de estrutura aberta que possibilitam essa

verificação e, se necessário, utilizando-se do instituto da mutação constitucional, romper com

dogmas que não se encontrarem em consonância com a vontade popular, a qual não deve se

fazer presente unicamente por meio do poder constituinte, pois essa vontade fica latente em

todo o curso constitucional, seja através de alterações constitucionais expressas ou implícitas,

decorrentes da interpretação dessas normas.

3.2 – Princípios como forma de hermenêutica constitucional

. Para iniciar o tema e de pronto dirimir eventuais dúvidas, cabe trazer à baila a

definição de J.J.Gomes Canotilho92 sobre o que são os princípios constitucionais

fundamentais: “São os princípios constitucionais que explicitam as valorizações políticas

fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções políticas

nucleares e se reflete a ideologia inspiradora da constituição.”

Os valores constitucionais são unidades abstratas que indicam que

determinados comportamentos são mais prestigiados que outros, estando situados no plano

axiológico, mostrando o melhor a ser feito diante de uma realidade social. Difere-se, por

conseguinte, dos princípios e das regras, que pertencem ao plano deontológico – do dever ser

em razão da força normativa que carregam. No entanto, deve-se ter em conta que os

princípios, conforme melhor explanado abaixo, têm caráter normativo, embora estejam fora

do direito positivo, que é integrado unicamente pelas normas. Destarte, os princípios

permitem uma maior aproximação entre o direito e os valores sociais. Embora não imponham

uma solução específica, como a norma, têm por finalidade maior orientar o caminho a seguir,

norteando a implementação da vontade do constituinte.

92 CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Ed Coimbra: Almedina, 2003, p. 1166)

82

Os princípios, na qualidade de normas jurídicas, são de alto grau de

generalidade e geralmente devem ser entendidos numa realidade do que se espera, sendo

dotados de validade, vigência e obrigatoriedade, indicando fins, ideais a serem alcançados,

com necessidade de aplicação do processo de ponderação diante da possível confrontação de

valores tão diversos, sempre tendo em conta os fundamentos e os objetivos fundamentais

pertinentes à República Federativa do Brasil.

Os princípios são indispensáveis para a verificação de validade das normas que

regulamentam a legitimação coletiva, objeto do presente estudo, e a coerência dessa

legitimidade com o ordenamento vigente. Para o direito processual, mais especificamente,

princípio seria a diretriz que orienta a atividade jurisdicional. Estão mais próximos da idéia de

valor e de direito, conformando as idéias de justiça, equidade e de moralidade. Sob o ponto de

vista de validade, os princípios são válidos a partir do seu próprio conteúdo; são universais,

absolutos, objetivos e permanentes, sendo mais abstratos do que as regras.

O Mestre Celso Antonio Bandeira de Mello93 ensina que:

“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.”

Assim, de acordo com a doutrina de Gregório Assagra de Almeida94, há os

seguintes princípios do direito processual coletivo especial:

- princípio da proteção do Estado Democrático de Direito – decorre da

correlação existente entre direito processual coletivo e Estado Democrático de Direito.

Encontra seu fundamento de validade nos artigos 1º e 102 , caput, da Constituição Federal.

Em razão da missão de guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal está

comprometido com o controle da constitucionalidade, à proteção do Estado Democrático de

Direito. Portanto, em seus julgamentos deve fundamentar suas decisões com observância dos

direitos e garantias fundamentais inerentes ao Estado Democrático de Direito.

- princípio do devido processo legal como cláusula constitucional interpretativa

vinculatória genérica de dimensão processual e substancial – Embora o princípio do devido 93 MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 11º Ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 630 94 Op. Cit. P. 235-248

83

processo legal tenha origem histórica no ano de 1215, na Carta Magna de João Sem-Terra, a

primeira expressão somente foi utilizada no ano de 1345, em lei inglesa conhecida como

Statue of Westminster of the Liberties of London, baixada no reinado de Eduardo III. Contudo,

a verdadeira extensão da expressão ocorreu nos Estados Unidos da América por meio das

decisões da Suprema Corte, que lhe conferiu dimensão substancial, pois até então era restrita

à dimensão processual.

A mencionada dimensão processual assegura a todos o acesso à justiça, ao

contraditório, à ampla defesa, a um juiz natural e imparcial, ao direito às provas lícitas e

legítimas, o direito à igualdade de armas processuais, o direito a uma decisão fundamentada e

o direito aos recursos e outros meios impugnativos inerentes ao sistema. Nelson Nery Junior,

citado por Assagra, ressalta que o prestígio do direito constitucional norte-americano tem

como principal fundamento a interpretação da cláusula due process of law pela Suprema

Corte. Em relação à dimensão substancial, significa que ninguém pode ser privado de sua

vida, liberdade ou propriedade sem a observância do direito material constitucional e

infraconstitucional.

Essa é a dupla dimensão na qual o princípio do devido processo legal deve ser

concebido no direito processual coletivo especial, de sorte que possa ser instrumento que

garanta a concretização dos outros princípios, garantias e regras constitucionais e

infraconstitucionais, ao mesmo tempo em que possa ser parâmetro de proteção em abstrato do

direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade; direitos consagrados no

caput do artigo 5º da Constituição Federal.

- princípio da proporcionalidade como técnica constitucional de ponderação - o

papel de destaque atribuído a esse princípio se deve, principalmente, ao Tribunal

Constitucional alemão e pela doutrina alemã. Houve a transposição desse princípio do campo

do direito administrativo para o plano constitucional, apoiando suas decisões nas expressões

“excessivo”, “inadequado”, “necessariamente exigível” e “proibição de excesso”.

Willis Santiago Guerra Filho, citado por Gregório Assagra, aduz que a Corte

Suprema da Alemanha tem utilizado o que a doutrina descreve como a tríplice manifestação

do mandamento da proporcionalidade, igualmente denominado proibição de excesso no

mesmo texto. O autor ressalta que a primeira decisão alemã a utilizar a formulação data de

16.03.71, quando foi afirmado:

84

“O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado quando com o seu auxílio se pode promover o resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro e igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental.”

A Constituição brasileira não faz menção expressa ao princípio da

proporcionalidade. O jurista Gregório Assagra, na obra anteriormente citada, entende que em

razão da própria rigidez e da supremacia constitucional, como características da Carta Magna

vigente, traduzem a idéia de proporcionalidade. Acredita o autor que o fundamento

constitucional do princípio da proporcionalidade está no princípio do Estado de Direito,

consagrado no artigo 1º da Constituição Federal, que traduz a idéia de justa solução para o

caso concreto, de transformação positiva da realidade social, da ponderação entre bens e

valores.

Como derivação do princípio acima, fala-se em subprincípios: princípio da

adequação, que se destina a aferir se o meio empregado possibilita a finalidade desejada; o

princípio da exigibilidade, também conhecido como princípio da intervenção mínima, que

afere a necessidade e a medida da lei, a fim de verificar se existiria outro meio menos

prejudicial; e, por fim, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que impõe o

sopesamento entre bens e direitos em situação de colisão.

- princípio da supremacia da Constituição – é o fundamento natural para a

existência do controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. O Supremo

Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 107.769, da relatoria do Ministro Célio Borja95,

publicado em 21.08.1992, que tinha como objeto a tributação de ISS em operação de leasing,

já demonstrava, há quinze anos, a sua preocupação e a importância com o tema:

“O princípio da supremacia da ordem constitucional – consectário da rigidez normativa que ostentam os preceitos de nossa Constituição – impõe ao Poder Judiciário, qualquer que seja a sede processual, que se recuse a aplicar leis ou atos estaduais em conflito com a Carta Federal. A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, de uma fundamental law, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado.”

95 Publicado na RTJ 140:954, 1992, p.964)

85

- princípio da interpretação conforme a Constituição – esse princípio também

deve a sua origem e desenvolvimento à jurisdição constitucional alemã, sendo instrumento

próprio dos tribunais constitucionais nos processos objetivos de controle da

constitucionalidade das normas.

O Professor Luís Roberto Barroso96 oferece as exatas dimensões desse

princípio:

“1. Trata-se da escolha de uma interpretação de norma legal que a mantenha em harmonia com a constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admita; 2. Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura do seu texto; 3. Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição. 4. Por via de conseqüência, a interpretação conforme a constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle da constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura de uma norma legal.” (os grifos não são do original)

Com a utilização dessa técnica não há alteração do texto constitucional, que

passa, contudo, a ter campo de aplicabilidade restrito.

- princípio da presunção da legitimidade da lei e dos atos normativos do Poder

Público – de maior utilização quando do controle constitucional concentrado por meio de

ADIn. Esse princípio é uma decorrência geral da superação dos Poderes e funcional como

fator de autolimitação da atividade do Judiciário, que somente deve invalidar os atos diante de

casos de inconstitucionalidade flagrante e incontestável, conforme leciona Luís Roberto

Barroso.97

- princípio da indesistibilidade da ação coletiva de controle abstrato de

constitucionalidade – Tem disposição expressa nos artigos 5º e 16 da Lei. 9.868/99. Justifica-

se pela natureza objetiva de controle em abstrato da Constituição, especialmente no interesse

público e social de preservação da supremacia da mesma.

- princípio da unidade da Constituição – tal princípio impõe que toda

interpretação constitucional preserve a unidade da Constituição como lei fundamental. “Para

que possa subsistir como unidade, o ordenamento estatal, considerado na sua globalidade, 96 BARROSO, Luís Roberto, Interpretação e aplicação da constituição, 3º Ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.181-182 97 Op. Cit, p. 180

86

constitui um “sistema” cujos diversos elementos são entre si coordenados, apoiando-se um ao

outro e pressupondo-se reciprocamente. O elo entre esses elementos é a Constituição, origem

comum de todas as normas. É ela, como norma fundamental, que confere unidade e caráter

sistemático ao ordenamento jurídico”98

- princípio da efetividade – pressupõe a inexistência de normas constitucionais

inúteis, uma vez que todas têm eficácia. Wilson Antônio Steinmelz, citado por Gregório

Assagra, afirma:

“Sem o imperativo da efetividade, os direitos fundamentais seriam reduzidos a meras declarações políticas ou exortações morais, é retórica tão impressionante quanto vazia, com a pretensão de dar ares de civilidade a uma sociedade não-civilizada.”

Há casos em que o legitimado, para a defesa da ação coletiva, recebe críticas a

respeito de sua legitimidade ou então percebe aparente colidência entre o direito a ser

defendido e os direitos fundamentais de primeira e segunda geração, estes de cunho

marcadamente individual. Nessa hipótese, deve verificar, por meio dos princípios, a qual

desses interesses o ordenamento jurídico conferiu prioridade para, por fim, afirmar sua

legitimidade e decidir pelo ajuizamento, ou não, da ação. As regras concernentes à

legitimação ativa não podem contrariar preceitos que se traduzam em opção política

fundamental do legislador constituinte.

Assim, a afirmativa da legitimidade da Defensoria para a defesa dos interesses

e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos precisou caminhar ao longo destes anos

que separam da promulgação do texto da Carta Magna de 1988 até a publicação da Lei

11.448/2007 para ser expressamente reconhecida, uma vez que somente há pouco tempo é

utilizada no exercício da atividade jurídica, o que os doutrinadores da matéria constitucional

reclamam: filtragem constitucional, sendo a Carta Magna o paradigma para as legislações

infraconstitucionais, ao contrário do que ainda é assustadoramente visto em algumas decisões:

o afastamento do texto constitucional para acolhida de atos administrativos.

A Lei 11.448/07 tem conteúdo de conformação constitucional formal e ético,

porque encontra na Constituição Federal a sua derivação como norma válida, eis que no texto

constitucional, artigo 5º, inciso LXXIV, assegura a assistência jurídica integral e gratuita a

todos que comprovarem insuficiência de recursos, que deve ser interpretado de forma

conjugada com o inciso que garante o acesso ao Judiciário para a defesa de lesão ou ameaça 98 Op. Cit. P. 188

87

de direito, determinando a interpretação mais ampla da expressão “hipossuficiência”, sem a

limitação ao recurso econômico. Por sua vez o artigo 134 da Carta Magna eleva a Defensoria

Pública à qualidade de instituição essencial à função jurisdicional, incumbindo-lhe a defesa e

orientação jurídica aos necessitados, fazendo remição ao inciso LXXIV acima mencionado. A

citada lei tem consonância com a realidade social, com os valores vigentes na sociedade

diante da atuação da Defensoria Pública na defesa dos interesses coletivos.

Kazuo Watanabe, um dos autores do projeto de lei do Código de Defesa do

Consumidor, afirma que o legislador não se limitou a ampliar a legitimação para agir.

Expressamente legitimou entidades e órgãos da administração pública, direta e indireta,

mesmo que sem personalidade jurídica, para atuar em Juízo. Cabe lembrar que os autores do

mencionado projeto são profissionais do Estado de São Paulo, onde somente no ano de 2006

foi aprovada a lei para a instalação da Defensoria Pública, desconhecendo por visão própria a

importância e seriedade do trabalho realizado por essa instituição, não só no Estado do Rio de

Janeiro, como nos demais Estados da federação.

Nunca é demais lembrar a advertência, feita por Ada Pellegrini Grinover, de

que os institutos do processo civil ortodoxo não atendem às necessidades da problemática dos

interesses difusos e coletivos, de sorte que o processualista moderno deve procurar outros

meios para buscar a efetividade do processo, (...)”99

Na mesma esteira de pensamento, segue Mancuso100, reconhecendo a

importância para agir aos grupos sociais de fato, não personificados, por duas razões: a

natureza da tutela dos interesses metaindividuais conduz, de per si, uma legitimação difusa; e

a desvalia da exigência da personalidade jurídica como pressuposto da capacidade processual

para a defesa, em juízo, dos interesses difusos.

Ainda com o pensamento de Mancuso101 ao discorrer sobre a história da ação

civil pública, considera que essa ação, voltada à proteção de interesses e valores maiores da

sociedade, atingindo sujeitos indeterminados, bem como sendo o Brasil uma república

democrática participativa, não faria sentido que a legitimação ativa para a defesa desses

interesses ficasse restrita à legitimação exclusiva, ainda que superlativamente qualificada

como a do Ministério Público, sob o risco de estreitar a defesa de tão relevantes interesses. A 99 GRINOVER, Ada Pellegrini e Outros, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado, Forense, RJ, 2001 p.956 100 MANCUSO, Rodolfo Camargo, Ação Civil Pública, 9ª Edição, RT, São Paulo, 2004 101 MANCUSO, Rodolfo de Camargo, A ação civil pública L. 7347/1985 – 15 anos, A ação civil pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2ª Edição, 2002 p. 754

88

ação não é pública porque o Ministério Público pode promovê-la, mas sim porque ela

apresenta um largo aspecto social de atuação permitindo o acesso à Justiça de certos

interesses metaindividuais que, de outra forma, permaneceriam num certo “limbo jurídico”.

A condição legitimante, ou seja, o que deve ser analisado no momento da

verificação da legitimidade ativa do ente, está no binômio relevância e representação

adequada, o que possibilita o acesso à Justiça de certos interesses ainda não nominalmente

normatizados.

3.3 - Considerações sobre a recém legitimidade

A legitimidade jurídica para a propositura de qualquer ação pressupõe que o

ordenamento jurídico vigente outorgue a um ente poderes para judicialmente atuar na defesa

de um direito material, bem como pressupõe a existência de uma situação de fato que também

expresse a vontade geral. São imprescindíveis a aptidão técnica e a idoneidade para

legitimamente bem desempenhar o múnus da representatividade.

Para Donaldo Armelin102, a idoneidade, na teoria geral do direito, deve ser

entendida como:

“(...) a idoneidade do sujeito para a prática de determinado ato ou para suportar seus efeitos, emergente em regra da titularidade de uma relação jurídica ou de uma situação de fato com efeitos jurígenos, asseguradora de plena eficácia deste mesmo ato, e, pois, de responsabilidade pelos seus efeitos, relativamente àqueles atingidos por este.”

Considerando o direito processual civil brasileiro, formulado e com aplicação

voltada para a tutela individual, a regra é a de que, pelo menos em tese, a legitimidade

pertence aos detentores do direito material deduzido em juízo. Assim, legitimidade seria a

necessária correlação entre direito processual e direito material. Em que pese a afirmativa

acima, a mesma deve ser realizada em abstrato, sem levar em consideração o mérito da causa,

ou seja, se há ou não o direito a um provimento jurisdicional favorável. O direito do 102 ARMELIM. Donaldo,Legitimidade para agir no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1979)

89

legitimado consubstancia-se no fato de poder requerer um provimento jurisdicional acerca do

mérito, seja esse favorável ou não.

Para o Mestre Barbosa Moreira103, em estudo publicado há mais de trinta e

cinco anos:

“Para todo e qualquer processo, considerado em relação à lide que por meio dele se busca compor, cria a lei, explicita ou implicitamente, um esquema subjetivo abstrato na formação do contraditório. (...) Denomina-se legitimação a coincidência entre a situação jurídica de uma pessoa, tal como resulta da postulação formulada perante o órgão judicial, e uma situação legitimamente prevista em lei para a posição que a essa pessoa se atribui, ou que ela mesma pretenda assumir.”

Ocorre que com essa aparente simplicidade de raciocínio utilizada pelo

processualista para identificar o ente legitimado no processo civil individual, há quem ainda

pretenda adaptar essa mesma lógica jurídica para discorrer sobre a legitimidade da tutela

coletiva. A legitimidade ad causum para a primeira hipótese – tutela individual - está na

identificação, no caso concreto, de uma situação de fato à qual possa moldar-se o ente

legitimado, o que não pode ser feito em relação aos interesses difusos, pois não há como

identificar um titular individual, pertencente esse direito a toda sociedade.

Assim, a identificação do legitimado para a tutela coletiva é muito mais

complexa em razão do mesmo ter a missão de representar judicialmente não só o seu

interesse, como também o dos demais integrantes dessa comunidade que se encontram

simbioticamente irmanados no mesmo interesse. Dessa forma, o instituto da legitimidade

adequada consiste em demonstrar quem será esse legitimado; ou seja, inicialmente é

necessário identificar todos aqueles que se mostrem adequados para tutelar aquele

determinado bem transindividual.

Destarte, para que seja possibilitado o acesso à Justiça, ultimado pela forma

eficiente e eficaz com a qual o Poder Judiciário proverá a solução definitiva da demanda, o

mesmo somente será alcançado se for permitida que a lide, seja essa coletiva ou individual,

tenha o seu mérito julgado, o que não ocorrerá com a extinção da ação por conta da

ilegitimidade da parte.

103 BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos, Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Revista dos Tribunais, v.404, junho 1969 p.3-10

90

O tema da legitimidade e do acesso à Justiça é complexo e tem repercussão

acadêmica editorial desde a década de 70, com os estudos dos festejados Mauro Cappelletti e

Garth que, preocupados com a pobreza organizativa, procuravam atendê-las por meio de

soluções baseadas na implementação de novas formas de legitimação. Essa carência

organizacional, quando não ultrapassada, faz cair por terra a pretensão do grupo,

impossibilitando a demonstração de sua pretensão e, por conseguinte, da oportunidade de

apreciação do mérito.

Em seqüência de argumentação, o fato de o Ministério Público ser o natural

legitimado para a defesa dos interesses da sociedade e, por conseqüência, um legitimado

natural para as ações coletivas, não o torna exclusivo, uma vez que a legitimidade para as

ações coletivas permanece concorrente e disjuntiva. O parágrafo primeiro do artigo 129 da

Constituição Federal dispõe que a legitimidade do Ministério Público para propor as ações

cíveis previstas naquele artigo, dentre elas a ação civil pública, não impede a legitimação de

terceiros, nas mesmas hipóteses previstas tanto na Constituição quanto na legislação ordinária,

o que ocorreu com a edição da Lei 11.448/07.

O Supremo Tribunal Federal, por meio de interpretação dos princípios, vez que

não há norma constitucional nesse sentido, legitimou o Ministério Público para utilizar a ação

civil pública como instrumento para a tutela de direitos individuais homogêneos. Assim o fez

interpretando as atribuições institucionais gerais do Ministério Público para proteção de

interesses sociais relevantes. Essa mesma interpretação faz-se necessária com a expressão

“assistência jurídica integral” para o fim também de capacitar a Defensoria Pública a melhor

atender as suas atribuições constitucionais, bem como não excluir do Judiciário a apreciação

de lesão ou ameaça de direito a bens tão relevantes, como são os direitos difusos.

Carlos Alberto de Salles104 assevera que o problema da ampliação do rol dos

legitimados para a ação coletiva não está somente em se facilitar o acesso à Justiça, mas o de

garantir mecanismos institucionais capazes de propiciar a efetiva defesa dos interesses difusos

e coletivos, que poderiam ficar sem apreciação.

O Projeto de Lei 5.794/2005, que deu origem à Lei 11.448/07, em sua redação

original previa a ampliação dos legitimados para a propositura das ações coletivas, no qual

objetivava estendê-la ao Presidente da República, à Mesa da Câmara dos Deputados e do

Senado Federal, aos Governadores de Estado e do Distrito Federal, às Mesas das Assembléias 104 SALLES, Carlos Alberto, A proteção judicial de interesses difusos e coletivos: funções e significados In SALLES, Carlos Alberto (Coord) Processo civil e interesse público, São Paulo : RT, 2003, p. 131-7

91

Legislativas dos Estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal, aos Prefeitos, e às

Mesas das Câmaras Municipais, ao Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil e às suas

seccionais e à Defensoria Pública. O Projeto foi alterado pelo Deputado Luiz Antonio Fleury

Filho para incluir apenas a Defensoria Pública no rol daqueles previamente legitimados no

artigo 5º da Lei 7.347/85. O texto obteve parecer aprovado por unanimidade na Comissão de

Constituição e Justiça e de Cidadania em 13.06.2006, com a disposição que segue:

“Apenas à Defensoria Pública é que deveria ser reconhecida a legitimidade para a propositura da ação civil pública, tendo em vista a importância desta instituição e a natureza de suas atribuições, sempre voltadas para a defesa dos cidadãos e para a luta pela construção neste País de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.”

Por sua vez, a Lei 11.448/07, ao indicar a Defensoria Pública como ente

legitimado, não restringiu a sua atuação quanto aos interesses a serem defendidos ou quanto à

presença de pessoa hipossuficiente. Para que a norma alcance o fim que inspirou o legislador,

assegurando o acesso à Justiça àqueles que tiveram seus direitos violados, sejam esses direitos

difusos ou coletivos, assegurada está a atuação da Defensoria Pública, sob pena de

inobservância dos princípios da unidade da Constituição e o da efetividade, acima vistos.

Sobre esse tema há quem defenda, ainda em sede de debates, ser possível que,

mesmo que comprovada a inexistência de interesse de pessoa economicamente

hipossuficiente, será possível a defesa desses interesses pela Defensoria Pública, o que

constituiria outra forma de atuação atípica da instituição, tal como já ocorre com a curadoria

especial e a defesa dativa em processo criminal, onde esses valores econômicos não são

levados em consideração, uma vez que prepondera o princípio do direito de ampla defesa, do

contraditório e do devido processo legal.

Rodolfo Camargo Mancuso leciona que “assiste-se agora a uma alteração

fundamental na condição ou no critério legitimante para o acesso à Justiça, que, nesses temas

de larga repercussão social, vai se deslocando da rota da titularidade (incabível na espécie)

para a relevância social do interesse trazido a juízo.”105

105 MANCUSO, Rodolfo Camargo, A proteção judicial de interesses difusos e coletivos: funções e significados In SALLES, Carlos Alberto (Coord) Processo civil e interesse público, São Paulo : RT, 2003 p. 125-9

92

No que tange à natureza jurídica da legitimidade coletiva, valem os

ensinamentos de Nelson Nery Junior e Rosa Nery no sentido de se trata de legitimação

autônoma para a condução do processo, conforme explicitado no texto abaixo:

“A dicotomia clássica legitimação ordinária – extraordinária só tem cabimento para a explicação de fenômenos envolvendo direito individual. Quando a lei legitima alguma entidade a defender direito não-individual (coletivo ou difuso), o legitimado não estará defendendo direito alheio em nome próprio, porque não se pode identificar o titular do direito. Não poderia ser admitida ação judicial proposta pelos “prejudicados pela poluição”, pelos “consumidores de energia elétrica”, enquanto classe ou grupo de pessoas. A legitimidade para a defesa dos interesses difusos e coletivos em juízo não é extraordinária (substituição processual), mas sim de legitimação autônoma para a condução do processo (selbständige Prozebfürungsbefgnis): a lei elegeu alguém para a defesa de direitos porque seus titulares não podem individualmente fazê-lo.”106

A escolha do legitimado para a defesa da tutela coletiva é política e tem sua

razão de ser na medida em que o mesmo terá as seguintes barreiras a ultrapassar: identificação

dos reais interesses da classe independente do número de indivíduos que a compõe, e até

mesmo quando estes forem ilimitados; capacidade técnica e financeira para defender os

interesses postulados em igualdade de condições com a outra parte. As referidas barreiras não

causariam embaraço à defesa da tutela coletiva pela Defensoria Pública, uma vez que essa

instituição, com a autonomia inclusive financeira lhe assegurada constitucionalmente, possui

meios para bem desempenhar a atribuição expressamente outorgada na Lei 11.448/07, uma

vez que já exercia anteriormente por força do Código de Defesa do Consumidor, que

interagindo com a Lei 7.347/85, já havia possibilitado essa legitimidade.

Owen Fiss107 reconhece o viés político na legitimação coletiva norte-

americana. Esse é o pensamento de Humberto Dalla Bernardina de Pinho para a classificação

da legitimação na ação coletiva no Brasil, uma vez que os direitos coletivos são defendidos

por pessoas diversas de seus titulares em razão de escolha legislativa.

Antes de discorrer precisamente acerca da extensão da legitimidade ativa para

a propositura da ação civil pública, cabe esclarecer que quando a Lei 11.448/07 incluiu a 106 Código de processo civil comentado, 5ª Ed. São Paulo:RT, 2001, p. 1866 107 FISS, Owen. Teoria política das ações coletivas, In FISS, Owen Um novo processo civil:estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade.Coordenação e tradução de Carlos Alberto Salles. Tradução de Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004 p.240

93

Defensoria Pública no rol dos legitimados para a propositura dessa ação, não a colocou em

grau de paridade com o Ministério Público, uma vez que não se pode equiparar instituições

com atribuições e misteres diferentes, já que esta defende os interesses da sociedade, enquanto

aquela tem a sua atribuição voltada para a defesa dos hipossuficientes, estejam esses

identificados ou não, desde que sofram lesão, mesmo que indireta nos seus direitos.

A Defensoria Pública, assim como os demais legitimados indicados no art. 5º

da Lei 7.347/85, tem legitimidade para ingressar com ação civil pública, observadas as suas

atribuições originárias e pertinências temáticas, cujo texto não foi alterado pela Lei

11.448/207.

A legitimidade ativa da Defensoria Pública para a promoção da ação civil

pública já fora reconhecida por tribunais anteriormente à edição da lei em comento,

reconhecendo a extensão da expressão “necessitados”:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DEFENSORIA PÚBLICA – LEGITIMIDADE ATIVA – CRÉDITO EDUCATIVO – Agravo de instrumento. Ação Civil Pública. Crédito Educativo. Legitimidade ativa da Defensoria, para propô-la. Como órgão essencial à função jurisdicional do Estado, sendo, pois, integrante da Administração Pública, tem a Assistência Judiciária legitimidade autônoma e concorrente, para propor ação civil Pública, em prol dos estudantes carentes, beneficiados pelo Programa do Crédito Educativo. Assim, a decisão que rejeitou a argüição de ilegitimidade ativa, levantada pelo Parquet, não lhe causou qualquer gravame, ajustando-se, in casu, à restrição acolhida na ADIN 558-8-RJ – Recurso reputado prejudicado em parte e em parte desprovido.(TJRJ- AI 3274/96-Reg. 040497 –Cód. 96.002.03274 – Vassouras – 2ª C. Cív. – Rel. Des. Luiz Odilon Bandeira – J. 25.02.97). 108

108 Em outro acórdão, desta feita do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, foi reconhecida a legitimidade da Defensoria Pública em data anterior à edição da Lei 11.448/07: Direito Constitucional. Ação Civil Pública. Tutela de interesses consumeristas. Legitimidade ad causum do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública para a propositura da ação. A legitimidade da Defensoria Pública, como órgão público, para a defesa dos direitos dos hipossuficientes é atribuição legal, tendo o Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 82, III, ampliado o rol de legitimados para a propositura da ação civil pública àqueles especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código. Constituiria intolerável discriminação negar a legitimidade ativa de órgão estatal – como a Defensoria Pública – as ações coletivas se tal legitimidade é tranqüilamente reconhecida a órgãos executivos e legislativos (como entidades do Poder Legislativo de defesa do consumidor). Provimento do recurso para reconhecer a legitimidade ativa ad causum da apelante. – TJRJ, AC 2.003.001.04832. Rel. Dês. Nagib Slaibi Filho. 6a. Cam Civ. Julg. Em 26/08/2003.

94

Embora espécies do gênero metaindividuais, não há como confundir interesse

ou direito difuso com o direito coletivo e não é essa a interpretação para que se fortaleça o

argumento da legitimidade da Defensoria Pública, que em ambos os interesses têm

legitimidade para a defesa dos hipossuficientes. Há, segundo Mancuso109, pelos menos duas

diferenças básicas entre esses direitos: uma quantitativa, que ao interesse difuso concerne um

universo maior do que o interesse coletivo; e outra qualitativa, que consiste em que o direito

coletivo está adstrito a uma relação base, com grupos definidos. Os interesses difusos não

pertencem a uma pessoa isolada nem a um grupo nitidamente delimitado de pessoas, mas sim

a uma série indeterminada de pessoas, tais como aquelas que vivem sob determinadas

condições econômicas.

A indivisibilidade característica dos direitos difusos determina uma espécie de

comunhão tipificada pelo fato de que a satisfação de um só implica, por força, a satisfação de

todos, conforme lecionado por Barbosa Moreira.110 Destarte, na ação civil pública, o

legitimado busca tutela jurisdicional em prol de interesses supraindividuais, com

possibilidade de a coisa julgada atingir pessoas que não participaram da relação processual,

sejam essas hipossuficientes ou não, pois o que tem relevo para o interesse difuso não é a

qualidade econômica das pessoas que porventura tem ameaça ou a efetiva lesão de direito,

mas sim o direito propriamente dito, o interesse público, que se não defendido naquele

momento, efetivamente lesionará pessoas e causará dano de impossível ou difícil reparação.

Não se pode argumentar no sentido de que em sendo o direito difuso, somente

ao Ministério Público caberia essa legitimação. Não se pode conceber a hipótese de, quando

em atuação no órgão de execução, um Defensor Público tivesse conhecimento de dano ou

ameaça de dano a um direito difuso, aguardasse que o dano fosse concretizado, alcançasse

interesse de pessoa comprovadamente hipossuficiente, por mais que outrem já tivesse

lesionado, para somente depois agir ou, de outra sorte, oficiar para um representante do

Ministério Público com atribuição para a defesa dos direitos difusos. Se tal fato assim

ocorresse, esse profissional incorreria em desídia funcional, ao contrário do que afirmado por

aqueles que defendem a ausência de legitimidade da Defensoria Pública para a defesa dos

interesses difusos, que vêem nessa atuação “usurpação de função”, conforme mencionado na

ADIN 3.943/07, adiante comentada.

109 MANCUSO, Rodolfo de Camargo, Interesses Difusos, SP, Revista dos Tribunais, 3ª Ed., 1994, p. 50 110 BARBOSA MOREIRA, A legitimidade para a defesa dos interesses difusos no direito brasileiro, Revista Forense, Vol. 276.

95

O dano é requisito indispensável para o surgimento da obrigação de ressarcir,

mas não para a constituição do ilícito, que pode existir sem a ocorrência daquele. Evitar a

realização do dano deve ser a regra e o fim preponderante da ação civil pública e não o

questionamento se um dos legitimados tem poderes extensivos para os interesses difusos.

Compensar ou recompor é um dever acessório, somente utilizado para a hipótese da falência

ou insuficiência das medidas protetivas.

Uma vez lesado ou ameaçado de lesão o patrimônio público, o mesmo deixa de

ser considerado como exclusivamente afetado pela entidade estatal a que pertence para ser

amplamente caracterizado como de interesse de toda a coletividade, tutelável pelos

legitimados para a defesa da ação civil pública. Essa foi a intenção do legislador ao

possibilitar que tantos fossem os legitimados expressos.

A sociedade de massa á caracterizada pela convivência simultânea de

diferentes indivíduos e grupos sociais, que eventualmente podem sofrer dano aos seus

interesses, sejam esses de natureza individual e divisível, onde ocorrerá num processo

coletivo a soma desses interesses com vistas a uma defesa mais eficiente e menor esforço

processual para os litigantes, ao contrário do que se fossem buscar a defesa dos seus interesses

de forma isolada e esse é a finalidade do princípio da operosidade citado por Paulo Cezar

Pinheiro Carneiro, acima mencionado Como observa Pedro Dinamarco, citado por Jose

Antonio Lisboa Neiva111, esses direitos são conseqüência da moderna sociedade de massa,

onde a concentração de pessoas em grandes centros e a produção em série possibilitam que

essa massa de pessoas seja prejudicada com um único fato.

Com uma visão à frente do seu tempo, Barbosa Moreira já afirmara no início

da década de 80, em data anterior à edição da Lei. 7.347/85:

“(...) a luta do cidadão isolado contra os responsáveis que lesem ou ponham em risco um “interesse difuso”, sobretudo quando emane da Administração mesma, corre o risco, em inúmeros casos, de assemelhar-se à que travaria contra o gigante um Davi desarmado de funda.”

111 NEIVA, Jose Antonio Lisboa, Ações Coletivas no Direito Brasileiro, uma visão geral, Edição Histórica Revista nº 1 EMARF – Agosto de 2005.

96

Nesse sentido, com o intuito de melhor armar o cidadão com instrumentos

hábeis para a defesa dos seus interesses, não sobrecarregando as instituições do Estado e

tampouco causando conflito de atribuição desnecessário entre elas, temos as seguintes

legislações que corroboram a legitimação da Defensoria Pública para a defesa da tutela

coletiva, inclusive os interesses difusos.

A Carta Magna, em seu artigo 134, dispõe que a Defensoria Pública é

instituição essencial à função jurisdicional do Estado, com atribuição, em sentido lato, para a

defesa dos necessitados. A pobreza deve ser entendida como fenômeno multidimensional em

razão de ter como origem vários fatores de contribuição, indo além da ausência de recursos

materiais. Deve-se ter em conta que a pobreza tem relação com a desigualdade, não

importando a natureza desta, mas sim o seu reflexo: a exclusão social, o que acabará por

construir um ciclo de reprodução de pobreza, de insuficiência de bens e de oportunidades.

Destarte, não somente os economicamente pobres podem ser assim rotulados, mas todos

aqueles que se inserem no contexto da exclusão social, mesmo que momentaneamente.

A falta de recursos materiais, por si só, não caracteriza a pobreza, pois esta

vem acompanhada de danos psicossociais, que limitam a capacidade do cidadão de se

apropriar e fazer uso de recursos, bens e serviços disponibilizados pelo Poder Público, com

predomínio da baixa auto-estima, resignação, ressentimento e subalternidade em relação a

outros. Seria o que a doutrina norte-americana denomina de underclass, os marginalizados

sociais.

A exclusão social é produto do mundo contemporâneo e a baixa renda passa a

compor, com outros elementos, as condições que potencializam situações de risco. A exclusão

é o resultado da sociedade de massa capitalista, que rejeita aquele que não dispõe das

condições standarts traçadas pela minoria detentora do capital. Quando se focaliza o

problema da pobreza e da exclusão sob o ponto de vista das políticas públicas, torna-se

necessário lançar mão de outros parâmetros que não a renda, sob pena do enfoque do tema

ficar circunscrito ao crescimento econômico. A partir dos anos 90 percebeu-se que o

crescimento econômico e a diminuição da desigualdade relacionavam-se com o incremento

das políticas públicas, principalmente investimento em saúde e educação, repercutindo no

bem estar do cidadão e redução do sentimento de incapacidade.

Dessa forma, ao instituir a Defensoria Pública como órgão essencial à função

jurisdicional e responsável pela defesa dos mais necessitados que, segundo estima o IBGE,

são cerca de 119 milhões de brasileiros que sobrevivem com renda familiar de três salários

97

mínimos, a Constituição Federal atribuiu a esse órgão o dever, petrificado em seu artigo 5º,

LXXIV, de prestar assistência jurídica integral e gratuita a todos aqueles que demonstrarem

insuficiência de recursos, conferindo-lhes todo o instrumental legal necessário ao alcance de

suas finalidades. Conseqüentemente, a interpretação dos dispositivos constitucionais que

regem a atuação dessa instituição deverá ser sempre pautada pela busca da maior amplitude

possível, de modo a lhe assegurar a máxima efetivação, afastando qualquer restrição de ordem

interpretativa constitucional ou infraconstitucional, tendo em vista que tais dispositivos são

reflexos de uma garantia constitucional assegurada aos mais necessitados, não esquecendo

que o termo “necessitado” há muito está distanciado da sua expressão primária, relacionado à

miserabilidade financeira, sendo hodiernamente entendido como a hipossuficiência em geral,

conforme acima mencionado.

A Lei Complementar Federal nº 80, de 12 de janeiro de 1994, dispõe

exemplificativamente sobre as funções institucionais da Defensoria Pública, enumerando,

dentre outras, a promoção extrajudicial de conciliação entre as partes em conflito; patrocínio

da ação penal privada e subsidiária da pública; patrocínio da ação civil, incluindo sua defesa e

reconvenção; patrocínio da defesa em ação penal; atuação como curador especial; exercer a

defesa da criança e do adolescente; atuação em estabelecimentos policiais e penais como

forma de garantir a observância do exercício dos direitos e garantias individuais; assegurar o

princípio do contraditório e da ampla defesa, seja judicial ou extrajudicialmente; patrocinar os

direitos e interesses do consumidor lesado. O rol é meramente exemplificativo, mas pela

simples leitura do mesmo verifica-se o grau de relevância das atribuições e a natureza da

complexidade necessária para a solução desses conflitos, razão pela qual sempre caberá a

atuação institucional quando for vislumbrado que há interesse ou direito de pessoa

hipossuficiente, em sentido lato, a ser defendido, não importa se em ação individual, coletiva

ou quando o mesmo estiver no contexto de um direito difuso ameaçado ou lesado.

Interpretação em sentido diverso seria negar o princípio constitucional de que

os instrumentos de tutela judicial devem ser dotados de máxima efetividade.

Por sua vez, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, em seu artigo 179,

dispõe que cabe à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro a orientação integral e

gratuita, a postulação e a defesa, em todos os graus e instâncias, judicial e extrajudicial, dos

direitos e interesses individuais e coletivos dos necessitados.

Nesse sentido, em que pesem os posicionamentos contrários, a Defensoria

Pública do Estado do Rio de Janeiro, assim como as demais Defensorias Públicas, tem

98

atribuição legal para a defesa dos direitos ou interesses difusos. Esse entendimento tem por

base, além dos dispositivos legais acima mencionados, a Constituição Federal que, em seu

artigo 129, inciso III combinado com o parágrafo primeiro do mesmo artigo determina que

são funções institucionais do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil

pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros

interesses difusos e coletivos, sem prejuízo da legitimação de terceiros para as mesmas

hipóteses, omitindo a defesa dos interesses individuais, mesmo que homogêneos.

Por sua vez, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, ao dispor no Capítulo

IV sobre as Funções Essenciais à Justiça, enumera as seguintes instituições: Ministério

Público, Procuradoria Geral do Estado e a Defensoria Pública, e estabelece as atribuições de

cada uma delas:

Ministério Público (artigo 173, inciso III) – promover o inquérito civil e a ação

civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, do

consumidor, do contribuinte, dos grupos socialmente discriminados e de qualquer outro

interesse difuso e coletivo, não mencionando direitos individuais.

Defensoria Pública (artigo 179 e seus parágrafos) – a defesa dos direitos e

interesses individuais e coletivos dos necessitados. Na alínea e do inciso V, parágrafo 2º do

mencionado artigo, há a previsão para a defesa dos interesses difusos quando se tratar de ação

civil pública em favor das associações que incluam entre suas finalidades estatutárias a

proteção ao meio ambiente e a de outros interesses difusos e coletivos. Entende-se que a

interpretação no sentido de defesa dos direitos coletivos não está restrita ao interesse próprio

dessa associação, uma vez que os interesses difusos não podem ser apropriados pois

pertencem a uma categoria em especial por ser tratar de um direito transindividual e

indivisível.

Nessa linha de pensamento, percebe-se que há, em parte, concorrência de

legitimidade para a atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública na propositura das

ações civis públicas, em vista de suas vocações à defesa do interesse público, no qual os

necessitados e os economicamente pobres se inserem de uma forma geral. O acesso à Justiça,

inegavelmente, representa interesse público primário, carecendo de largueza no momento de

sua interpretação.

99

Assegura-se que o Ministério Público não possui a legitimidade exclusiva para

a promoção da ação civil pública, nos exatos termos do art. 129, § 1º da CF/88. Ambas as

instituições possuem legitimidade universal para a mesma em razão de defesa do mencionado

interesse público. Interesses coletivos, gênero do qual são espécies os interesses difusos e os

coletivos propriamente ditos, segundo conceituado pelo próprio Código de Defesa do

Consumidor, são os transindividuais de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas

por circunstâncias de fato.

A afirmativa da concorrência de atribuições não há de ser entendida como

competitividade institucional, pelo contrário, trata-se de oferecer ao cidadão mais uma via de

acesso à Justiça. O que é por ora defendido é a atribuição da Defensoria Pública para a defesa

de interesses ou direitos difusos diante do imperativo constitucional maior de garantir o

acesso à Justiça diante dos valores, princípios e normas constitucionais e legais. A defesa dos

direitos difusos não tem o seu foco no direito individual, divisível e determinado, mas no

todo, exatamente naquelas partes em que não há interesse individual manifesto ou não

convém que o indivíduo o defenda por ser ínfima ou incomensurável a lesão do seu direito,

mas de dimensão extraordinária quando considerado o contexto onde a lesão ocorreu, o que

mais uma vez comprova a tese de que o protagonista da ação em defesa de um direito difuso

não é a identificação do lesado, e sim o direito lesionado.

Exemplo dessa flexibilização da ação civil pública é abordado por Kazuo

Watanabe:

“Esses mesmos fatos – publicidade enganosa e colocação do mercado de produtos com alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança dos consumidores – podem repercutir, em termos de lesão específica, na esfera jurídica de consumidores determinados. Nessa perspectiva, estaremos diante de ofensa a interesses ou direitos individuais. Se várias forem as vítimas, teremos então os chamados interesses ou direitos individuais homogêneos.”112

A defesa dos direitos coletivos, quando estes estão inseridos em um contexto

mais amplo, a ser defendido como interesse difuso, acaba por atomizar as questões, deixando

112 WATANABE, Kazuo, Código brasileiro de defesa do consumidor. Comentado pelos autores do anteprojeto. 7 Ed.- Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 p.742

100

de proteger aqueles direitos que não fazem parte da esfera individual, componentes da liga

que une um direito individual ao outro, os quais somente podem ser defendidos por meio da

defesa do interesse difuso.

Em razão da natureza molecular do direito difuso em relação ao direito

coletivo, uma vez que ambos são transindividuais, a análise da legitimação para agir será

realizada pelo aplicador do direito quando da análise da causa de pedir e do pedido.

Tomando por empréstimo o mesmo exemplo anterior – a da publicidade

enganosa e a veiculação de produto impróprio ao uso – a Defensoria tem interesse jurídico na

defesa do direito difuso, não podendo reduzir sua atuação para restringir o pedido unicamente

para reparação dos danos que a propaganda causou a pessoas identificáveis e individualizadas,

deixando ao largo a continuidade de veiculação da propaganda com potencial probabilidade

de causar dano a um maior número de pessoas, inclusive outras na mesma situação já

defendida, o que não ocorreria se desde o início a ação tivesse natureza de defesa do direito

difuso, cessando a veiculação da propaganda.

3.4 - A Defensoria Pública e o procedimento análogo ao inquérito civil

Com a denominação expressa de “inquérito civil”, firmada pelo parágrafo 1º

do artigo 8º da Lei de Ação Civil Pública, o qual foi recepcionado pela Constituição Federal

de 1988 em seu artigo 129, inciso III, coube inicialmente ao Ministério Público, com

exclusividade, a sua presidência.

Trata-se de um procedimento administrativo, tal qual o inquérito policial,

destinado a obter elementos de convicção – provas idôneas, para garantir a eficácia da ação

coletiva a ser ajuizada, evitando a propositura de ações temerárias, com a qual todos sairão

com a imagem maculada, seja o Ministério Público, até então o único legitimado para

instaurá-lo, ou atualmente também a Defensoria Pública, seja com essa nomenclatura ou com

diversa, em razão da forma precipitada e análise superficial dos fatos que formaram o seu

convencimento, o que é incompatível com o munus dessas Instituições. A parte em face do

qual a ação foi proposta também tem interesse na instauração do procedimento. Embora neste

não haja contraditório, a parte poderá juntar documentos que contribuirão para a sua defesa,

uma vez que pode não ter havido responsabilidade pelo dano ou o mesmo, se de fato de sua

responsabilidade, já lhe trará prejuízos financeiros de monta, os quais não precisarão ser

agravados com a publicidade negativa e despesas processuais, mantendo, dentro do possível,

101

sua imagem preservada perante a população, o que não seria possível com a publicidade da

propositura de uma medida judicial.

Em razão da recém-deferida legitimidade à Defensoria Pública, pela Lei

11.448/2007, para a propositura da ação civil pública, a Defensoria Pública do Estado do Rio

de Janeiro, considerando a complexidade do procedimento que permeia todo o processo

coletivo, editou a Resolução nº 382, de 07 de março de 2007, estabelecendo o procedimento a

ser adotado para instruir esse mesmo procedimento administrativo, denominado como

procedimento de instrução.

Nessa modalidade de procedimento em regra não há contraditório, mas a sua

ocorrência não o viciará, uma vez que o mesmo se destina à colheita de informações, sendo

que aquelas prestadas espontaneamente pelo investigado possibilitarão ampliar a abordagem

dos fatos, além de conferir maior legitimidade à prova a ser colhida.

Como acima mencionado, em razão de ter natureza de procedimento

administrativo, submete-se basicamente às três fases daquele: instauração, instrução e

conclusão, sendo que essa terceira fase poderá ser o ajuizamento da ação coletiva pertinente

ou o arquivamento do procedimento, o que determinará o seu encerramento.

Em sede de procedimento de instrução, termo adotado pela Defensoria Pública

do Estado do Rio de Janeiro para o procedimento análogo ao inquérito civil, quando ocorrer a

hipótese de dano de interesse exclusivamente local, preferiu-se adotar a atribuição

concorrente entre o Defensor Público do Núcleo de Primeiro Atendimento do local do fato

com a Coordenadoria de Interesses e Direitos Coletivos (CIDC) do respectivo interesse

lesado, esta com atribuição territorial em todo o Estado do Rio de Janeiro.

Caberá aos Defensores Públicos com atribuição para instruir o procedimento

de instrução empreender os esforços necessários para a celebração do Termo de Ajustamento

de Conduta, que será firmado, em qualquer hipótese, em conjunto com a Coordenação

Especializada daquele interesse e com a Assessoria Jurídica do Defensor Público Geral.

Essa ênfase dada à celebração do TAC tem por fundamento o espírito de

litigiosidade marcante do momento social e jurídico atual, resultante da convivência e

interpenetração de interesses conflitantes entre si, que podem ter natureza pública, privada ou,

mais recente, difusa. Deve haver investimento na possibilidade de realização do termo de

ajustamento, pois o mesmo tem natureza jurídica de reconhecimento expresso pelo infrator da

conduta que lhe é imputada, característica essencial para distingui-lo da transação. A

celebração do termo permite, de forma mais célere que o desenvolvimento de uma medida

102

judicial, a consecução de um resultado mais rápido para a efetivação do direito com maior

presteza.

Mas, na hipótese de paralisação do procedimento de instrução pelo prazo igual

ou superior a 180 dias, ou na hipótese do seu arquivamento, a fim de garantir a co-

responsabilidade dessa decisão, a Corregedoria Geral da Defensoria Pública deverá ser

comunicada do fato, oportunidade na qual abrirá vista ao coordenador temático e, após o

parecer deste, determinará o arquivamento ou prosseguimento do procedimento no âmbito das

Coordenadorias. Na hipótese de encerramento definitivo, essa decisão será comunicada ao

Conselho Superior da Instituição.

O arquivamento do procedimento de instrução ou do inquérito civil não gera

coisa julgada ou preclusão para o legitimado que o deflagrou e tampouco para outro

legitimado expresso, que estará autorizado a promover o ajuizamento da ação coletiva

respectiva ao direito em tese lesionado.

3.5 - Críticas à nova autorização legislativa e comentários às ADINs 3943/07 e ADI 558-8/1991

Em 16 de agosto de 2007, a Associação Nacional dos Membros do Ministério

Público – CONAMP, ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3943, Ministra

Relatora Carmen Lucia, tendo por objeto a Lei 11.448/07, que alterou a Lei 7.347/85, que

disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao

consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico, atribuindo

legitimidade à Defensoria Pública, concorrentemente com os demais legitimados, para a

propositura de ação civil pública.

Eis o inteiro teor do dispositivo legal impugnado:

“Art. 5º. Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público; II – a Defensoria Pública; III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V – a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.”

103

A Autora da ADIn argumenta no sentido de que a norma legal citada

hipoteticamente afronta os artigos 5º, LXXIV, e 134, ambos da Constituição Federal, por

entender que, diante desses dispositivos, a Defensoria Pública somente teria atribuição para

prestar assistência jurídica aos necessitados, assim entendendo aqueles que possuem recursos

insuficientes para se defenderem judicialmente ou que precisem de orientação jurídica. Para

tanto, acresce, esses necessitados devem ser individualizáveis e identificáveis.

Transcreve-se as normas constitucionais tidas como violadas:

“Art. 5º. ... LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.

Prossegue e afirma que a Defensoria Pública não tem possibilidade alguma de

atuar na defesa dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos como possuidora

de legitimação extraordinária. Parágrafo à frente, contudo, reconhece “Ainda que se entenda

poderem os defensores públicos propor ação civil pública, quando se tratar de interesses

coletivos ou individuais homogêneos (...)”, não teriam os defensores públicos legitimidade

para os interesses difusos. Alega que a norma impugnada afeta diretamente as atribuições do

Ministério Público. A recém-atribuição da Defensoria Pública impediria o Ministério Público

de exercer plenamente as suas atividades. Finaliza com o pedido de declaração de

inconstitucionalidade do inciso II do artigo 5º da Lei 7.347/85 ou, se assim não for entendido,

seja dada interpretação conforme a constituição para excluir da Defensoria Pública a

legitimidade para a defesa dos interesses difusos.

A Advocacia Geral da União – AGU, nas informações AGU/SF N° 10/2007, sustenta

que a recém-alteração legislativa em nada impede ou diminui a atuação do Ministério Público,

que continua a deter as mesmas atribuições e poderes de antes. A alteração propicia,

simplesmente, que a Defensoria Pública venha, na realidade, a somar esforços na conquista

104

dos direitos e interesses coletivos, individuais homogêneos, ou difusos da sociedade, direitos

e interesses esses que poderão ser defendidos, inclusive, tanto pela Defensoria Pública, como

pelo Ministério Publico em litisconsórcio ativo. . Sendo, portanto, ilógico e desarrazoado a

pretendida exclusão da participação da Defensoria Pública no campo da tutela da coletividade.

Nesse diapasão, a AGU refuta a frágil argumentação da Associação autora

quando do argumento da exclusividade de atuação da Defensoria Pública aos

economicamente necessitados. Essa afirmativa viria tão somente restringir a atuação coletiva

às hipóteses de hipossuficiência econômica, acarretando grave prejuízo à sociedade, haja vista

a oportunidade para indesejáveis casuísmos

A AGU, em suas informações, argumenta no sentido de que as normas

constitucionais supostamente violadas com a edição da Lei 11.448/07 não exige,

absolutamente, que todos os assistidos sejam necessitados. Faz-se necessário apenas que haja

demonstração ou indícios de que parte ou boa parte dos assistidos pela Defensoria Pública

tenham ou devam ter, de fato, essa qualidade. Da mesma sorte, no que tange à argumentação

da defesa coletiva não ser possível pela Defensoria Pública, a AGU traz a lume a decisão do

Egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, na apelação Cível n° 2004.32.00.005202-

7/AM, que conclui que nada há nestes dispositivos dos artigos 5º, LXXIV, e 134, ambos da

Constituição Federal, nem no restante deste capítulo da Constituição, que diga que a defesa

dos necessitados só pode ser individual.

Socorrendo-se do artigo da lavra do Professor Doutor Humberto Dalla B. de

Pinho113, a AGU defende a constitucionalidade da norma impugnada com base em que, em

geral, normas definidoras de direitos e garantias devem ser interpretadas de forma extensiva, o

que encaminha à conclusão lógica de que a Defensoria Pública, ao menos hoje, tem

legitimidade para a tutela das três espécies de direitos (difusos, coletivos e individuais

homogêneos).

Duas instituições requereram o ingresso no feito, na qualidade de amicus

curiae: a Associação Nacional dos Defensores Públicos da União e a ANADEP – Associação

Nacional dos Defensores Públicos, o que lhes foi deferido.

113 PINHO, Humberto Dalla B. de, A legitimidade da defensoria pública para propositura de ações civis públicas: primeiras impressões e questões controvertidas, publicado na Revista de Direito da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, N. 22, novembro de 2007

105

A manifestação da Associação Nacional dos Defensores Públicos é lastreada,

inicialmente, nos princípios que regem o Estado de Direito, o qual deve ser fazer presente de

forma incondicional, haja vista a patente desigualdade social existente, com a característica da

maioria da população ser constituída de pessoas hipossuficientes, vitimadas pela

marginalização e pela exclusão social, sem a mesma possibilidade de acesso à Justiça que as

demais camadas da população. A negativa da legitimidade para a defesa dos interesses

difusos, coletivos e individuais homogêneos à Defensoria Pública acabaria por caracterizar a

privação do acesso aos mesmos direitos disponíveis às demais pessoas que integram esse

mesmo Estado de Direito.

A essencialidade e a constante consagração do trabalho na defesa dos direitos

difusos, coletivos e individuais homogêneos desenvolvido pela Defensoria Pública em vários

estados da federação propiciou o recente Projeto de Lei, elaborado para alteração da Lei

Complementar Federal n.º 80/94, no qual foi expressamente incluída entre as atribuições da

Defensoria Pública, nos incisos VIII e IX, do art. 4º, do aludido Projeto, "promover ação civil

pública objetivando a tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos

visando preservar os direitos e reparar as violações aos direitos dos destinatários de suas

funções", bem como "patrocinar ação civil pública em nome de associações ou organizações

que incluam entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, aos direitos

fundamentais da pessoa humana e a outros interesses difusos e coletivos, demonstrada a

insuficiência de recursos dessas entidades”.

A prática processual tem demonstrado que a Defensoria Pública tem sido um

representante adequado para a defesa de um grupo lesado em algum direito coletivo, como é o

caso dos hipossuficientes econômicos, visando à efetivação do acesso à justiça e ao

cumprimento de suas funções institucionais. Nessa linha de pensamento, foi considerada

legitimada para ajuizar ações coletivas justamente por cumprir com os requisitos básicos para

a propositura de tais ações, conforme restou decidido no acórdão 70014404784/2006, em

julgamento de apelação cível da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul, relatado pelo desembargador Araken de Assis, em 12.4.2006, cuja ementa consta nas

informações da AGU e ora se transcreve:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSE COLETIVO DOS CONSUMIDORES. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA. 1. A Defensoria Pública tem legitimidade, a teor do art. 82, III, da Lei 8.078/90 (Cód. de Defesa do Consumidor), para propor ação coletiva

106

visando à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores necessitados. A disposição legal não exige que o órgão da Administração Pública tenha atribuição exclusiva para promover a defesa do consumidor, mas específica, e o art. 4.°, XI, da LC 80/94, bem como o art. 3.°, parágrafo único, da LC 11.795/02-RS, estabelecem como dever institucional da Defensoria Pública a defesa dos consumidores. 2. APELAÇÃO PROVIDA”.

Corroborando a linha de pensamento seguida ao longo da presente dissertação,

a AGU, utilizando-se dos argumentos lançados na peça da Associação Nacional dos

Defensores Públicos, transcreve o seguinte trecho daquela peça:

“Em suma, a legitimação da Defensoria Pública visa a assegurar o acesso à justiça, e não restringi-lo, evitando-se decisões contraditórias, insegurança jurídica e o acúmulo de demandas versando sobre o mesmo fato. Assinale-se que tal legitimidade beneficia, também, a economia processual, pois atinge a um só tempo os ideais de redução de custo econômico, em materiais e pessoas, bem como o de julgamentos uniformes para um grande número de situações conflituosas, sem deslembrar da devida prestação jurisdicional, pois evita a proliferação de grande quantidade de ações individuais e garante o funcionamento célere e efetivo do Poder Judiciário, proporcionando uma efetiva racionalização da justiça.”

Importante destacar que desde a edição da Lei 11.448/2007, a qual atribuiu à

Defensoria Pública legitimidade para a propositura de Ações Civis Públicas, a Defensoria

Pública da União ingressou com 12 (doze) ações civis públicas114, onde todas tiveram a sua

legitimidade reconhecida.

114 Processo 2006.61.00.027802-9, da 7ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos do Ministério Público da União; Processo nº 2007.61.00.000433-5, da 23ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos do Agência Nacional de Saúde Suplementar; Processo 2007.61.00.001723-8, da 7ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos do Agência Nacional de Vigilância Sanitária; Processo 2007.61.00.001722-6, da 10ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos da Câmara dos Deputados; Processo 2007.61.00.03010-3, da 25ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos da Agência Nacional de Aviação Civil; Processo 2007.61.00.002795-5, da 1ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos da Câmara dos Deputados; Processo 2007.61.00.010539-5, da 13ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, mandado de segurança coletivo em que se pleiteia a isenção da taxa de expedição do Registro Nacional de Estrangeiro para os hipossuficientes; nº Processo 2007.61.00.011093-7, da 15ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, sobre os expurgos inflacionários do Plano Bresser; Processo 2007.51.01.017691-7, da 11ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro, visando à isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para Procurador

107

Inicialmente a ANADEP aduziu a ilegitimidade da entidade autoral em razão

do posicionamento do próprio Superior Tribunal Federal, que exige pertinência temática entre

os objetivos estatutários e o objeto da norma impugnada. A entidade autora tem como objeto

estatutário defender as prerrogativas, garantias, direitos e interesses, diretos e indiretos, da

Instituição e de seus integrantes, bem como o fortalecimento dos valores do Estado

Democrático de Direito, ou seja, tem por fim a discussão de temas de interesse institucional

do Ministério Público ou dos seus integrantes.

Alega que não há, por sua vez, como vislumbrar e, principalmente,

fundamentar o argumento de que a legitimidade da Defensoria Pública afeta diretamente os

interesses do Ministério Público, pois o impede de plenamente exercer as suas atividades em

razão da Lei 11.448/07 tão-somente ter acrescentado a Defensoria Pública no rol dos demais

legitimados existentes, que já atuam de forma concorrente e disjuntiva, permanecendo o

Ministério Público na qualidade de, além de legitimado ativo, atuar como custus legis e

assumir a condução da ação nas hipóteses de desistência ou abandono da mesma.

Sobre o tema do suposto impedimento causado à atuação do Ministério

Público, o Supremo Tribunal Federal, na ADIN 558/91, que também questionava a atribuição

da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro diante de expressões constantes da

Constituição Estadual, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, posicionou-se:

“Não me impressiona, de sua vez, a increpação de que as atribuições aí deferidas à Defensoria Pública implicaram invasão de áreas de atuação reservadas ao Ministério Público. Essa suposição – que está subjacente a quase toda presente ação direta e explica sua origem -, parte, data vênia da confusão indevida entre a legitimação ativa do Ministério Público para a promoção, em nome próprio e incondicionada, da ação civil pública (CF, art. 129, III), a função de assistência judiciária, confiada á Defensoria Pública para a representação em juízo de outras pessoas físicas ou jurídicas concorrentemente legitimadas pela lei federal à defesa de interesses difusos ou coletivos (CF, art.129, §1º).”115

da Fazenda Nacional; Processo 2007.51.01.020475-5, da 9ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro, em que se pleiteia leite materno para as pessoas hipossuficientes; Processo 2007.51.01.0171051, da 8ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro, visando o conserto de aparelhos em hospitais públicos; Processo 2007.34.00.003387-9, da 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, sobre a correção das provas de redação de todos os candidatos as vagas reservadas a deficientes físicos no 4º concurso para provimento de cargos para o Tribunal Regional Federal e Justiça Federal da 1ª Região 115 STF. ADI nº558-8-RJ. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ de 26.03.93.

108

Nessa ação, o Supremo Tribunal Federal negou pedido de suspensão cautelar

em razão de, na visão do Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, as associações têm sempre

natureza altruística, e, portanto, sempre serão passíveis de proteção pela Defensoria Pública: “Certo, a própria Constituição da República giza o raio de atuação institucional da Defensoria Pública, incumbindo-a da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus dos necessitados (art. 134). Daí, contudo, não se segue a vedação de que o âmbito da assistência judiciária da Defensoria Pública se estenda ao patrocínio dos direitos e interesses (...) coletivos dos necessitados, a que alude o art.176, caput, da Constituição do Estado (do Rio de Janeiro): é óbvio que o serem direitos e interesses coletivos não afasta, por si só, que sejam necessitados os membros da respectiva coletividade” .......................... “A Constituição Federal impõe, sim, que os Estados prestem assistência judiciária aos necessitados. Daí decorre a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública. Não, porém, o impedimento a que os seus serviços se estendam ao patrocínio de outras iniciativas processuais em que se vislumbre interesse social que justifique esse subsídio estatal”116. ............................ “Penso, entretanto, que a suspensão da vigência dos textos impugnados poderia resultar, em contrapartida, na subtração de pendência desta ação direta, de relevantes serviços que sabidamente a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro vem prestando à defesa dos interesses coletivos de comunidades efetivamente carentes, organizadas em associações civis, assim como de consumidores desprovidos de recursos para a veiculação processual de seus direitos”

A Lei 11.448/2007, que alterou a Lei 7.347/1985, ao incluir a Defensoria

Pública para o rol dos legitimados à propositura da Ação Civil Pública, seguindo as alterações

processuais civis que há mais de uma década se operam no ordenamento jurídico nacional,

concretiza o programa constitucional de ampla assistência jurídica, dotando-o de maior

abrangência ao direcionar instrumento processual de grande importância para a proteção de

direitos da população carente – a ação civil pública, em franca demonstração da consciência

da importância do acesso à Justiça para essa minoria excluída. Se a Lei em comento aumenta

as atribuições da Defensoria Pública para que exerça com maior efetividade suas funções, é

evidente que está em conformidade com a Constituição e faz realizar o princípio aventado da

maior eficácia possível das garantias constitucionais e do Estado Democrático de Direito, cuja

defesa expressamente consta do estatuto da entidade autora.

A ausência de legitimidade expressa na Constituição não é óbice para o

reconhecimento de legitimidade ativa em Ação Civil Pública, uma vez que o Supremo

116 STF. ADI nº558-8-RJ. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ de 26.03.93

109

Tribunal Federal, reconhecendo ao Ministério Público legitimidade para atuar na tutela de

direitos individuais homogêneos, valendo-se de interpretação sistemática, considerou as

atribuições institucionais gerais do Ministério Público para proteção de interesses sociais

relevantes. Em Recurso Extraordinário nº 195.056-1, o Ministro Sepúlveda Pertence sustentou

em seu voto que:

“A afirmação do interesse social para o fim cogitado há de partir de identificação do seu assentamento nos pilares da ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência à persecução dos objetivos fundamentais da República, nela consagrados. Afinal de contas – e malgrado as mutilações que lhe tem imposto a onda das reformas neoliberais deste decênio – a Constituição ainda aponta como metas da República ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’ e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Esse critério(...) se poderia denominar de interesse social segundo a Constituição”.

A Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, na Informação n° CCJ/CJ

215/2007-ACBFF, em síntese, aduz, preliminarmente, a ausência de pertinência temática,

uma vez que a Associação autora tem sua margem de atuação restrita às normas legais que, de

alguma forma, repercutem na organização e funcionamento da entidade a que estão

vinculadas as pessoas representadas pela mesma, tal qual anteriormente mencionado pela

ANADEP – Associação Nacional dos Defensores Públicos. No mérito, defende que o a

inovação da legitimidade importa tão somente na adoção pelo legislador ordinário de novos

critérios legais para a propositura da ação civil pública, ampliando o rol dos legitimados a

propô-la, e simplificando os trabalhos da Defensoria Pública no atendimento e na defesa dos

interesses dos mais necessitados, poupando-lhe o implemento de ações individuais,

economizando os recursos do erário e reduzindo o número desnecessário de ações cujo objeto

abrange a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, perfeitamente

identificáveis dentre as várias causas postas à manifestação da nova legitimada.

Ao analisar o trâmite do processo legislativo do Projeto de Lei nº 131, de 2003,

de iniciativa do Senado Federal, que deu ensejo à promulgação da Lei nº 11.448, de 15 de

janeiro de 2007 e altera o artigo 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, inicialmente foi

sugerida a inclusão da Defensoria Pública nos rol dos legitimados à propositura da ação civil

pública pela Emenda nº 01 manifestada perante Comissão de Constituição, Justiça e

Cidadania, merecendo as considerações constantes do r. relatório do eminente Senador Pedro

110

Simon, entendia desnecessária a mencionada norma, uma vez que a Lei Complementar da

categoria já autorizava a ingressar com ação civil pública, assim consignadas as suas palavras:

“ Deixe-se registrado que a Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios, prescreve normas gerais para sua organização nos Estados e dá outras providências, inclusive relativas à ação civil pública, como se constata nos textos abaixo transcritos dos arts. 1º e 4º. Portanto, prever ou deixar de prever a legitimação da Defensoria Pública para ajuizar ação civil, como está proposto na Emenda nº 1 – CCJ, em nada altera o art. 5º da Lei nº 7.347, eis que a referida emenda, nesse tópico, apenas estaria repetindo o texto da norma instituidora daquela entidade.”.

O entendimento do Senador Pedro Simon foi reformulado pelo ilustre DD.

Relator, ao apreciar o substitutivo da Câmara dos Deputados, de nº 5.704/2005, naquela Casa

Revisora: consignando por sua aprovação, atestou que117 “O Substitutivo da Câmara dos Deputados ao PLS nº 131, de 2003, apresenta-se consentâneo com os requisitos formais e materiais de constitucionalidade, tendo em vista que compete privativamente à União legislar sobre direito processual civil, a teor do disposto no art. 22, inciso I, da Constituição Federal (CF), e que a matéria se insere no âmbito das atribuições do Congresso Nacional, o que atende ao caput do art. 48 da Carta Magna, no qual se confere aos Deputados e aos Senadores livre iniciativa para disciplinarem sobre o tema.”

Encaminhado à Câmara dos Deputados, casa designada como revisora, foi

endereçado ao Projeto de Lei do Senado Federal de nº 131, de 2003, adotando o nº de 5.704,

de 2005, o r. Parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, relatado pelo

Deputado Federal Luiz Antônio Fleury, que, ponderou pela inclusão da legitimação somente à

Defensoria Pública, conforme transcrito em Capítulo anterior. A Secretaria de Assuntos

Legislativos do Ministério de Estado da Justiça, provocada pela Subchefia de Assuntos

Parlamentares da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência

da República, manifestou o r. Parecer de nº 106/2006, no qual se infere que

“... o Projeto de Lei em exame ao incluir a Defensoria Pública no rol dos legitimados ativos ad causam para a propositura da ação civil pública além de superar a controvérsia retro mencionada, contribuirá, dada a abrangência da norma, para o efetivo cumprimento de sua função institucional que é a de assegurar, mediante a prestação de

117 Conforme se extrai do r. Parecer de nº 1.320, de 2006, do Senador Pedro Simon, relator do Projeto de Lei nº 131, de 2003, do Senado Federal – Publicado no Diário do Senado Federal de 21 e 22 de dez. de 2006, pp. 39.478 e ss. – Cópia em anexo.

111

assistência jurídica gratuita e integral, o acesso à Justiça a todos os cidadãos necessitados na forma da lei (art. 134, caput, da Constituição).”

A Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça considerando os cânones

estabelecidos pelo princípio da presunção de constitucionalidade das normas jurídicas e dos

atos do Poder Público em geral, conclui que deve militar a dúvida em favor da conservação

sempre que houver a impossibilidade de se reconhecer mácula de inconstitucionalidade, o que

ocorrerá quando a pretensa invalidade não for manifesta e inequívoca. O princípio da

interpretação conforme a Constituição, de origem germânica, deve se fazer presente somente

diante de interpretações plausíveis e alternativas, destacando-se dentre estas uma capaz e

suficiente a compatibilizar o preceito legal à Carta Constitucional vigente.

Abeberando-se dos ensinamentos de J. J. GOMES CANOTILHO118, com

propriedade, pondera que “A interpretação conforme a Constituição só é legítima quando

existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) em que são admissíveis várias

propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser

preferidas, e outras em desconformidade com ela.”.

O promotor de justiça Emerson Garcia119, citado pela Associação de classe

autora da ADIn, posiciona-se do sentido de que a Defensoria Pública não foi alçada à posição

de legitimada universal para a propositura de ação civil pública, necessitando que a atribuição

dos defensores públicos sofra um balizamento para ajustá-la aos objetivos constitucionais da

instituição a fim de “(...)preservar a coerência do sistema constitucional do prever a

existência de duas instituições, o Ministério Público e a Defensoria Pública, e indicar a

esfera de atribuição de cada um”. Entende o mencionado promotor de justiça que a

Defensoria Pública está condicionada à existência de dois requisitos: que a atuação seja

direcionada aos necessitados e que estas sejam comprovadamente carente de recursos. Data

máxima vênia àqueles que comungam dessa opinião, a mesma está na contramão do

ordenamento jurídico, assim considerado os valores, princípios e normas constitucionais,

estes sim balizadores da realidade social. Conforme foi acima mencionado, a hermenêutica

constitucional é aberta, deixando de ser restrita à atividade de poucos. Nesse sentido, diante

da globalização que impera no mundo, sem risco de perda da soberania nacional, os países

devem comungar dos mesmos imperativos sociais que garantem à população o direito de

acesso à Justiça, sentido mais amplo que se pode dar ao acesso ao cumprimento de políticas 118 In “Direito Constitucional” – Livr. Almedina – Coimbra - 1986 – p.236. 119 GARCIA, Emerson, A legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento da ação civil pública: delimitação de sua amplitude,consulta no site http://www.acmp.org.br, acessado em 02/11/2007

112

públicas, bem como à execução de direito e garantias fundamentais assegurados não só no

texto constitucional, como também nos tratados internacionais.

A visão estreita manifestada nos fundamentos da autora da ação declaratória de

inconstitucionalidade da Lei 11.448/07 causaria preocupação na comunidade jurídica se a

mesma fosse compartilhada, mas por sorte não é, cabendo ao Supremo Tribunal Federal dar

ao caso a correta interpretação, pautando-se pela constitucionalidade da lei em comento,

deixando no vazio as vagas e imprecisas argumentações de parte daqueles que tem a

atribuição de defender os interesses da sociedade, os quais foram deixados à margem quando

da superficial e perfunctória análise da Lei 11.448/07.

113

4 - A DEFENSORIA PÚBLICA E A DEFESA DO ACESSO ÀS POLÍTICAS

PÚBLICAS COMO FORMA DE INCLUSÃO SOCIAL

4.1. – Interesse Difuso e Interesse Social

Desde os primórdios da civilização, as fronteiras entre o público e o privado

são móveis e instáveis, variando em função de políticas governamentais e manifestos

interesses da sociedade, o que vem determinar que a classificação do direito entre esses dois

ramos esteja em constante alternância. Na Grécia antiga a prioridade era o cidadão, o homem

público, através de sua participação política na destinação dos interesses de sua comunidade.

Na Idade Média houve completa inversão, com prioridade do privado em decorrência das

relações de dominação feudal, baseada na importância atribuída à propriedade territorial. Já o

Estado Moderno é caracterizado por uma relação complexa entre o público e o privado,

entrelaçando-se com freqüência, a ponto do próprio Rei Luis XIV confundir o Estado com ele

próprio na célebre frase “L’Etat c’est moi”. No entanto, o predomínio da autoridade pública

sobre a vontade dos particulares, a concentração do poder e a monopolização do uso legítimo

da força física caracterizaram a predominância do público nessa época.

A divisão entre público e privado passa a se definir após três séculos, com o

surgimento do Estado Liberal após as Revoluções Burguesas do século XVII (inglesa) e

XVIII (norte-americana e francesa), em razão da manifesta separação entre Estado e a

sociedade. O Estado cuidaria da segurança interna e externa, enquanto a sociedade, composta

por indivíduos formalmente iguais – embora fosse negado o direito de voto às camadas

empobrecidas da população, perseguiriam livremente os seus próprios interesses privados,

uma vez que o Estado não poderia interferir nas relações travadas em sociedade.

Conforme ressaltado nos capítulos anteriores, a passagem do Estado Liberal

para o Estado Social se deu em razão daquele estar premido pelas pressões sociais,

necessitando intervir na sociedade diante da constatação da desigualdade existente no campo

das relações privadas. No Estado de Direito, os atos emanados pelos Poderes de Estado, para

terem validade e legitimidade, têm de ter respaldo não somente na mera coincidência entre o

ato ou a conduta do seu prolator e a norma de vigência, mas também estar em consonância

com os valores principiológicos da moralidade financeira, economicidade, razoabilidade e

proporcionalidade.

114

O jurista Daniel Sarmento120 leciona que normalmente costuma-se associar o

público à esfera de interesses gerais da coletividade, que dizem respeito à pessoa humana na

qualidade de cidadão, como membro da comunidade política. Ao direito privado

corresponderia o homem considerado individualmente, em suas relações pessoais e familiares,

que não são do interesse da sociedade em geral. Contudo, há de se ressaltar a existência de

uma nova teoria hermenêutica, denominada democrático-funcional, que acentua

particularmente o momento teleológico-funcional dos direitos fundamentais no processo

político-democrático, ou seja, os direitos são concedidos aos cidadãos para serem exercidos

como membros de uma comunidade e no interesse desta. Assim como todo o texto

constitucional dirige-se para uma função social, descaracterizando o rigor privado existente

nas constituições e legislações infraconstitucionais anteriores, a melhor, senão a correta

interpretação constitucional a ser feita, é no sentido de dar aos direitos fundamentais uma

interpretação em favor da coletividade e não exclusivamente no interesse pessoal do cidadão.

Atualmente, além da divisão entre público e privado, surge fortalecido um

terceiro setor, composto pelas organizações não governamentais, associações de moradores,

entidades de classe e outros movimentos sociais voltados para atuar em prol da coletividade,

na forma denominada de sociedade civil; que inicialmente surgiu como algo oposto ao

Estado, no sentido daquilo que não seja estatal, com a finalidade de se organizar na luta por

maior inserção na atividade política, legitimada, principalmente, pela ocorrência de duas

determinantes: a impossibilidade de resolução dos grandes problemas, que hoje assolam a

humanidade, através de ações unicamente governamentais ou de mecanismos de mercado; a

segunda determinante está na atual situação de descrédito nos sistemas de representação

política. Bobbio121 leciona que "Sob este aspecto, sociedade e Estado atuam como dois

momentos necessários, separados, mas contíguos, distintos, mas interdependentes, do sistema

social em sua complexidade e em sua articulação interna". Em um sentido mais amplo

representa, também, toda espécie de organização social que lute por seus direitos,

independentemente de fins altruísticos.

Outra distinção pertinente, a fim de melhor compreensão da atuação da

Defensoria Pública para a defesa do acesso às políticas públicas, está entre interesse social e

interesse difuso. A Constituição Federal de 1988 distingue os dois conceitos, sempre

120 SARMENTO, Daniel, Livre e Iguais- Estudos de Direito Constitucional, Rio de Janeiro:Lúmen Juris, 2006, p.38 121 BOBBIO, Norberto, Estado Governo Sociedade, Para uma teoria geral da política pág. 52.

115

acentuando que o interesse público estaria relacionado à figura do Estado. Para Ada Pellegrini

Grinover122, interesse social são interesses espalhados e informais à tutela das necessidades

coletivas, relacionados à qualidade de vida da população. São interesses de massa que

convergem para um ponto comum, o bem estar da coletividade. Nessa linha de raciocínio,

Rodolfo de Camargo Mancuso123 entende interesse social, interesse geral e interesse difusos

com grande número de semelhanças, como direito que interessa à maioria da sociedade civil,

que reivindica a tutela de valores e bens mais elevados.

A doutrina predominante é no sentido de identificar o interesse social como

aqueles que têm a coletividade como titular, sendo de todos, mas não pertencendo

individualmente a ninguém, possuindo, como objeto, bens ou valores essenciais para a vida

em sociedade.

Mafra Leal124 reconhece que o conteúdo dos direitos difusos não garante

propriedade ou liberdade econômica, que foram objeto de proteção dos direitos de primeira

geração, nem implicam em redução dos mesmos. A característica dos direitos difusos está na

não-patrimonialidade, com interesse de proteção em dois aspectos fundamentais: qualidade de

vida e uma concepção de igualdade diversa do Estado Liberal, desta feita como direito de

integração ou de não-exclusão às esferas da vida social.

Os direitos difusos determinam reformas sociais e revisão no comportamento

coletivo, deixando o Estado de ser o único responsável pela consecução e manutenção desses

direitos.

Diante dessas considerações, são encontradas semelhanças que quase se

transformam em identidade, como ocorre quando estudado o sujeito desses dois interesses –

interrese social e interesse difuso, que são os grupos sociais compostos de pessoas

indeterminadas, que não estão necessariamente ligadas por um vínculo jurídico, mas sim por

circunstâncias de fato. No que tange ao objeto, é indivisível. A distinção entre ambos é sutil e

mais apropriada no campo doutrinário, entendo Mancuso que os interesses difusos estão

relacionados à massa normativa já estabelecida; são sentimentos coletivos ligados a valores

parajurídicos, representando o sentimento comum da sociedade em determinado tempo e

lugar.

Nessa linha de evolução do pensamento, a Defensoria Pública tem atuado para

promover a consecução e manutenção dos interesses sociais e dos interesses difusos, uma vez 122 GRINOVER, Ada Pellegrini, Considerações sobre interesse social e interesse difuso, In p.62 123 MACUSO, Rodolfo de Camargo, Interesses difusos, conceito e legitimação para agir, RT:São Paulo, 2000, p.29 124 LEAL, Marcio Flavio Mafra, op cit. P. 103

116

que a cada dia, principalmente após a Carta Constitucional de 1988, onde houve manifesta

preocupação de não somente definir direitos, mas também a de assegurá-los, está mais tênue a

linha que separa o público do privado, diante do nascimento de uma sociedade civil

organizada, bem como a separação destes direitos do próprio interesse social, que é o

desiderato das políticas públicas. O interesse social dia a dia se confunde com os interesses

difusos, com grande área comum entre os mesmos, onde se proliferam entidades da sociedade

civil com a finalidade de defendê-los, embora nem sempre imbuídas do interesse público no

qual deveriam se pautar.

A supra-individualidade que caracteriza os interesses difusos deve ser

analisada sob dois aspectos: o material, que se preocupa com os bens; e o processual, que é

objeto deste estudo, que tem a sua atenção voltada para os interesses envolvidos, que são

comuns a todos e quaisquer cidadãos e nem o Estado tem o poder de excluir a sua utilização

por quem quer que seja.

Segundo Antonio Herman Benjamin125, em estudo que discorreu sobre os bens

comunais, este entendido como expressão sinônima para interesse difuso, leciona que se

regem por dois princípios básicos: o primeiro é o da indivisibilidade do benefício, o que

impede a sua apropriação individual com exclusividade; e o segundo é o princípio da não-

exclusão dos beneficiários, no sentido de que um terceiro, tendo ou não participado para a

produção do resultado proveitoso, tem o direito de usufruir o mesmo. Esses bens têm as

seguintes características: transindividualidade real; a indeterminação dos seus sujeitos;

indivisibilidade ampla; indisponibilidade; vínculo meramente de fato a unir esses sujeitos;

ausência de unanimidade social – dado que o diferencia do interesse público, conforme abaixo

explanado.

No mesmo estudo publicado, o jurista ressalta as características qualificadoras

do interesse público: pluralidade de sujeitos titulares, chegando a confundir-se com a

comunidade; a indeterminação dos seus sujeitos; fruição indivisível desse direito e a sua

indisponibilidade; a existência de um vínculo abstrato que une esses sujeitos; relevância da

unanimidade social; organização desnecessária, impossível, impraticável ou difícil porque os

seus pressupostos gozam de unanimidade social.

Os interesses pertinentes ao meio ambiente e ao consumo, que dão origem aos

conflitos de natureza individual, também podem originar litígios exclusivamente supra-

individuais. O meio ambiente, nas palavras de Edis Milaré, mais uma vez citado por Antonio

125 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos,

117

Herman Benjamin: “ (...) é um bem público, de uso comum de todo o povo. Não pertence ele

a ninguém em particular, mas pertence a todos, toda a comunidade tem interesse em preservá-

lo”.

Dessa forma, a recém-outorgada legitimidade à Defensoria Pública para a

defesa, e não mais somente o patrocínio, dos interesses difusos demonstrou a preocupação do

legislador no sentido de reconhecimento da ampliação da atuação institucional ao longo dos

anos, da transformação ocorrida na sociedade, mais consciente dos seus direitos, bem como, e

principalmente, da manifesta vontade daquele em possibilitar o acesso à população aos

direitos constitucionalmente outorgados, promovendo a redução das desigualdades sociais e

regionais, uma vez que a população, na sua imensa maioria hipossuficiente, sofre com a falta

de atuação do poder público nas questões dos seus interesses primários.

Conforme mencionado alhures, aqueles que se posicionam no sentido da

constitucionalidade da Lei 11.448/07, afirmam seu posicionamento no sentido de não haver

como estabelecer, e com certeza essa não teria sido a mens legis, concorrência de atribuição

entre a Defensoria Pública e o Ministério Público para a defesa dos interesses difusos. As

duas instituições, na qualidade de órgãos do Estado e com observância de suas atribuições

constitucionais e legais, despidas de outros interesses, devem zelar pela correta aplicação da

Lei da Ação Civil Pública, a fim de que a mesma não se transforme em um instrumento

político como ficou conhecida a Lei da Ação Popular. Nessa esteira de raciocínio, embora

haja um movimento por parte do Estado Social no sentido de expandir o objeto de proteção

dos interesses designados como supra-individuais, esse mesmo Estado ainda penderia de

atuação no sentido de possibilitar o acesso coletivo à Justiça aos cidadãos, o que demanda um

maior número qualitativo de legitimados para a defesa de tão relevantes interesses.

Exemplo da expansão do objeto de proteção desses direitos está no direito ao

meio ambiente ecologicamente equilibrado, classificado como um dos direitos fundamentais

da pessoa humana, uma vez que o artigo 225 da Carta Magna menciona que esse direito

pertence a todos; sendo de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,

impondo não somente ao Poder Público, mas também à coletividade o dever de defendê-lo e

preservá-lo, consagrando o princípio da participação popular – democracia semidireta ou

participativa, razão pela qual os doutrinadores o classificam como integrante dos direitos de

terceira geração.

Mas na prática, como essa minoria terá acesso à defesa do meio ambiente na

forma como determina a Carta Constitucional, se criam barreiras hermenêuticas para

118

dificultar o acesso dessa massa populacional à Justiça, na medida da tentativa de exclusão da

Defensoria Pública – defensora natural das minorias, do rol dos legitimados para a defesa dos

direitos previstos na Lei 7.347/85. Os direitos difusos, guarda-chuva que abriga os

denominados direitos de terceira geração, surgem no contexto do Estado Democrático de

Direito, no âmbito de uma sociedade complexa, onde os direitos deixam de ser caracterizados

como público e privado, com o reconhecimento da existência de um novo direito que está

acima dessa classificação, pois interessa a um número indeterminado de pessoas,

encontrando-se além de suas esferas individuais de interesses, bem como ao próprio Estado.

Quando se pensa em direito difuso, termo aqui usado para incluir os interesses sociais e o

interesse público, ultrapassa-se a questão da divisão dicotômica entre público e privado, pois

o mesmo está acima disso, sendo comum à coletividade, daí ser denominado como direito

supra-individual.

O reconhecimento da existência dos interesses difusos e coletivos é realizado

sob a análise dos princípios gerais, e não como o resultado da soma de direitos individuais.

Contudo, não se pode deixar de ter em conta que o meio ambiente tem repercussões coletivas

strictu sensu, individual homogênea e até mesmo pública, não estando livre o cidadão

hipossuficiente, termo que ultrapassa a questão econômica, de no plano concreto ser

individualizado e se mostrar carecedor da defesa dos seus direitos por parte da Defensoria

Pública.

Como já afirmado, o caráter indeterminável dos titulares dos interesses difusos

não significa que pessoas individualmente consideradas não sofrerão as ameaças ou lesões

causadas. Se dentre os sujeitos lesionados houver pessoas que não sejam hipossuficientes,

esse não será o obstáculo para a defesa daqueles que comprovarem essa qualidade, conferindo

às garantias constitucionais o máximo conteúdo de efetividade e eficácia.

Diante desses argumentos, a doutrina não reconhece fundamento para justificar

a negativa da Defensoria Pública em exercer a tutela dos interesses dos necessitados quando

esses últimos aparecerem jungidos, indissociavelmente, a interesses de pessoas que a priori

não se possa afirmar serem hipossuficientes, uma vez que essa negativa implicaria no

descumprimento do dever constitucional que foi atribuído à Defensoria Pública, deixando

expostos interesses de cidadãos que o legislador constituinte almejou resguardar.

Citando o exemplo de Antonio Herman de Vasconcellos Benjamin, uma

atividade poluidora pode causar danos ao meio ambiente em geral através de contaminação do

ar e possível extinção de espécies da fauna e flora; ao mesmo tempo, pode afetar os

119

trabalhadores da fábrica onde a atividade danosa é realizada, bem como atingir indivíduos

particularizados por meio da diminuição da produção leiteira ou degradação do patrimônio

imobiliário dos vizinhos da fonte poluidora. Nessa hipótese, ressalvada a atribuição do

Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública tem atribuição legal para ingressar com

a ação civil pública para a defesa dos interesses difusos lesados pela contaminação do ar e

extinção das espécies da flora e fauna e, em razão dos demais danos causados, tem interesse

em fazer cessar a atividade danosa e reparar civilmente o que não for mais objeto de

reparação in natura, bem como a promover a defesa de eventuais direitos coletivos e

individuais homogêneos. Não há cabimento para o Poder Judiciário ser acionado pela

Defensoria Pública, por meio de uma ação civil pública unicamente para a defesa dos

interesses coletivos e dos individuais homogêneos daqueles que comprovadamente

demonstrarem a hipossuficiência, enquanto o dano causado diretamente ao meio ambiente

permanece sem defesa, gerando a ocorrência de outros danos em cascata.

O direito ambiental tem como princípio a prevenção do dano uma vez que este,

quando ocorre, será de difícil ou impossível reparação. Deve ser interpretado como a

utilização de todas as medidas capazes de evitar a ocorrência de dano, reduzindo ou

eliminando as causas que possam originá-lo. Dessa forma, de acordo com o entendimento

daqueles que entendem constitucional a Lei 11.448/07, mais uma vez sai fortalecido o

argumento da ampla legitimidade daqueles expressamente indicados no artigo 5º da Lei

7.347/85 para promover a sua defesa, devendo fazê-lo tão logo tenham conhecimento da

existência de alguma conduta que ponha em risco o meio ambiente.

A Defensoria Pública, a mais nova legitimada para a defesa dos direitos

elencados na Lei 7.347/85, é instituição com inestimável atuação na defesa individual do

cidadão, onde estes a reconhecem como porta-voz de suas questões jurídicas, estando apta

para a defesa dos interesses difusos perante o Judiciário por meio de ações coletivas – termo

tomado como gênero, único meio de acesso eficaz à Justiça, como em feliz síntese reconheceu

Álvaro Luiz Valery Mirra126: “Como se pode concluir, a participação judicial se mostra politicamente relevante não tanto no caso de dedução de interesses individuais, mas de salvaguarda de interesses metaindividuais, cuja afirmação ou sacrifício podem repercutir ponderavelmente sobre a sociedade.”

126 MIRRA, Álvaro Luiz Valery, A Ação Civil Pública, após 20 anos Coord. Edis Milaré, São Paulo:Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 41)

120

4.2 – Políticas Públicas

Canotilho vê a efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais dentro da

“reserva do possível” e aponta a sua dependência dos recursos econômicos, o que demarcaria

um limite fático à efetivação dos direitos sociais prestacionais127.

Conforme palavras de Ronaldo Porto Macedo Junior, “ (...) o direito social

torna-se um instrumento de Governo e administração, na medida em que orienta os critérios

de legitimação das políticas sociais e dos acordos de cooperação econômica.”128

Durante séculos houve o entendimento de que o processo judicial teria a

utilidade única de solucionar conflitos individuais. Esse pensamento não poderia ser diverso

diante da realidade social da humanidade, focada para relações individuais onde somente essa

forma de conflito era judicialmente passível de solução. Os interesses comuns à coletividade

eram considerados como questão política e não jurídica, razão pela qual não eram apreciados

pelo Judiciário.

Com o evoluir da consciência social, a sociedade percebeu que os interesses da

coletividade estavam além das simples questões individuais, bem como não poderiam ser

tratados como questões políticas, não se encontrando a sua concessão submetida à esfera de

apreciação dos interesses do administrador que, conforme já mencionado, nem sempre

refletiam os interesses dos administrados.

Nesse sentir, não há como dissociar o interesse público das garantias

individuais e sociais fundamentais, bem como das políticas públicas, que englobam um

conceito mais amplo, tal como a segurança pública, a moralidade administrativa, a qualidade

de vida consistente na educação, acesso ao pleno emprego, etc. A concretude do interesse

público está no universo das políticas públicas. Nos países de tradição constitucional

européia, os direitos difusos são vistos como desdobramentos dos direitos fundamentais de

primeira e de segunda geração, mas com ocorrência simultânea a estes, e integrante das metas

de políticas públicas do Estado Social, com a possibilidade do Judiciário aferir a atuação da

Administração. A justificativa jurídica para a defesa judicial está na inserção constitucional do

interesse público, onde o Poder Público não pode eximir-se da sua observância sob o

argumento da discricionariedade dos seus atos.

127 Canotilho. J.J. e Moreira. Vital. Fundamentos da constituição, 1991, p. 131. In Streck, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, 2° ed., p 128 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto, Ação civil pública, o direito social e os princípios In A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios, Coord. Edis Milaré, São Paulo : Revista dos Tribunais, 205, p.559

121

As políticas públicas estão inseridas no contexto dos direitos de segunda

geração – prestacionais, fortalecidos com a ocorrência da solidariedade social e a valoração da

dignidade humana. O titular desses direitos continua sendo o homem sob o aspecto individual

(sujeito dos direitos de primeira geração) que, juntamente com os direitos de segunda geração,

tem a possibilidade jurídica de, sob outro prisma, obter do Estado a execução do direito ao

qual faz jus, o chamado direito de crédito em relação do Estado.

Diante do dever do Estado Democrático de Direito em garantir os direitos de

segunda geração e também preocupado com sua responsabilidade de assegurar o equilíbrio

ambiental, o legislador estabeleceu, por meio do Estatuto da Cidade – Lei 10.257/01, norma

de ordem pública e de interesse social para regular o uso da propriedade urbana em prol do

bem coletivo. Dentre as diretrizes da mencionada norma jurídica está o saneamento ambiental

e a infra-estrutura, com vistas a garantir o bem estar não só desta geração como de gerações

futuras. Para que isso ocorra é necessária a gestão democrática por meio da participação da

população e da sociedade civil organizada, em parceria com os governos, tudo a fim de dar

atendimento ao interesse social.

O conceito dos direitos difusos expande-se a cada dia, englobando novos

valores, uma vez que a sociedade conscientiza-se de que os mesmos caracterizam-se pela não-

patrimonialidade e visam à qualidade de vida de todos, e não de uma camada em particular da

população. Não há como fazer separações estanques da legitimidade de defesa do direito, seja

para mantê-la, restaurá-la ou indenizá-la, bem como para promover a integração, o acesso de

todos a esse direito, de caráter universal e imprescindível para a qualidade de vida da

população, que deixa de ser restrita a do local do evento com potencial probabilidade de dano,

mas para toda a humanidade. Diante do mundo globalizado no qual vivemos, não há como

imaginar que um dano ambiental ocorrido em determinado local não importará em

modificação do meio ambiente alhures.

É pacífico o entendimento doutrinário129 e jurisprudencial no sentido de que a

Lei de Ação Civil Pública é a norma jurídica a ser utilizada para a defesa dos direitos sociais,

que reivindicam não apenas as melhorias das condições de vida da população, como também

a inclusão daqueles que ainda estão à margem desses direitos, como o próprio acesso aos

direitos sociais básicos indicados no artigo 6º da Constituição Federal: educação, saúde,

trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e

129 YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato, A Ação Civil Pública, após 20 anos Coord. Edis Milaré, São Paulo:Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 111)

122

a assistência aos desamparados, com grande atuação da Defensoria Pública dos Estados e da

União na defesa individual e, já em data recente, coletiva dos mesmos.

A interpretação jurídica deve ser entendida como processo aberto em

conseqüência do escalonamento das fontes, ainda que analisado sob uma perspectiva

sistêmica, há que ser atribuída prevalência à norma constitucional. Dessa forma, os princípios

constitucionais contidos no mencionado artigo 6º da Carta Magna somente serão alcançados

se operados em conjunto com as demais normas jurídicas, sejam essas infraconstitucionais ou

oriundas de poder reformador, sempre de forma harmonizada.

Celso Antonio Pacheco Filho130 assevera com pertinência que:

“E a cidadania e a dignidade plena da pessoa humana podem ser consideradas os bens jurídicos difusos que sintetizam todos os demais bens e valores difusos tutelados pela ordem constitucional e que nada mais são do que desdobramentos daqueles meios e instrumentos para o atingimento da plenitude desses referidos bens.”

Políticas públicas são instrumentos utilizados pelo Governo para intervir na

sociedade, na economia, na política, executando programas políticos em busca de melhores

condições de vida aos seus cidadãos. Para Comparato131, é uma espécie de padrão de conduta

que indica qual a meta deve ser alcançada, para o quê o governo deve direcionar-se a fim de

assegurar igualdade de oportunidades aos cidadãos, tendo por fim garantir as condições

materiais de uma existência digna a todos, com a diminuição da desigualdade sócio-

econômica através dos órgãos de atuação da Administração Pública. Deve-se ter em conta

que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, disposto no artigo 3º

da Carta Magna, descritos de forma textual, é garantir uma sociedade justa, livre e solidária,

por meio do desenvolvimento nacional, de forma a erradicar a pobreza e marginalização,

reduzindo as desigualdades sociais e regionais, a fim de promover o bem de todos, sem

preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O Ministro Eros Roberto Grau, ao interpretar a Constituição da República de

1988, citado por Mafra Leal132, conceitua políticas públicas como:

130 Op. Cit, acima p. 116 131 COMPARATO, Fabio Konder, Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade das políticas públicas. Revista dos Tribunais, v. 737, 1979, p. 18 132 LEAL, Marcio Flavio Mafra, Ações Coletivas: História, teoria e prática, Sergio Antonio Frabis Editor:Porto Alegre, 1999, p.108

123

“A expressão política pública designa atuação do Estado. (...) O advento, neste século, do Estado ‘intervencionista’ desencadeia, contudo, um verdadeiro salto qualitativo, que informa, enriquecendo-o, o conteúdo de suas atuações. (...) Deixa o Estado, desde então, de intervir na ordem social exclusivamente como produtor do Direito e realizador de segurança, passando a desenvolver novas formas de atuação, para que faz uso do Direito positivo como instrumento de implementação de políticas públicas. (...) O Estado Social se legitima antes de tudo pela realização de políticas, isto é, programas de ação: assim, o government by policies substitui o government by law.”

Um dos meios encontrados pela doutrina para propiciar a execução do direito

de não-exclusão é a ação afirmativa, definida como política de governo que visa a garantir a

grupos minoritários, vulneráveis e excluídos da sociedade, o acesso a cargos, instituições,

escolas e universidades públicas, a programas de distribuição de financiamento de casas, por

exemplo133. A grande vantagem dessa modalidade de ação coletiva traduz-se no fato de não

gerar despesa pública direta, possibilitando que o Judiciário conheça e decida a matéria em

conflito sem questionamento a respeito da previsão orçamentária para a despesa em discussão,

questão frequentemente levantada pela Administração para justificar o não-cumprimento da

execução do direito, o que geralmente retarda o cumprimento da decisão, além da discussão

do tema da independência dos Poderes, conforme será melhor visto abaixo.

Como já afirmado, o Direito não é uma ciência isolada, resulta da realidade

social, interligada a outras ciências, como a econômica, e sob esse aspecto resta comprovada a

dependência do atendimento dos direitos sociais à distribuição de renda. Ou seja, direitos

sociais têm relação direta com despesa pública. Assim, o limite orçamentário determina a

aplicação de recursos nos direitos sociais. A fim de dar maior fundamentação à teoria da

reserva do possível, surge a teoria da reserva do possível jurídica, que entende ser a alocação

de recursos uma atividade inerente ao Executivo e ao Legislativo, que, por força

constitucional, devem elaborar o orçamento público e, mesmo em hipótese de disponibilidade

de recurso orçamentário, não poderia o Judiciário, por via oblíqua, efetuar a reformulação

dessas verbas e aferir a discricionariedade da aplicação desses recursos.

O princípio da separação dos poderes tem respaldo na soberania popular, uma

vez que, em países como o Brasil, somente os membros do Executivo e do Legislativo são

escolhidos pelo povo, o que lhes confere poder político para a escolha de suas decisões. Ao

133 LEAL, Marcio Flavio Mafra, Ações Coletivas: História, teoria e prática, Sergio Antonio Frabis Editor:Porto Alegre, 1999, p.113

124

Judiciário, em razão do ingresso por concurso público, onde prevalece o conhecimento

técnico-jurídico, não cabe determinar a execução de prestações que, além do critério da

legalidade, devem inspirar-se numa escolha política, a qual não deve direcionar para casos

concretos, em razão do princípio da impessoalidade que deve prevalecer, em regra, nas

escolhas administrativas.

Aqueles que partilham da corrente contrária à interferência do Judiciário para a

determinação da implementação de prestações estatais positivas justificam seu entendimento

na cláusula da reserva do possível diante da impossibilidade de permitir a todos o acesso aos

direitos sociais, sob pena de falência do Estado. A indisponibilidade de recursos para o

cumprimento da prestação se apresenta como óbice real para o acesso ao direito,

impossibilitando o cumprimento de outros direitos sociais previstos na lei de planejamento

orçamentário, ferindo ao princípio igualitário e geral que deve direcionar o administrador

público, uma vez que por meio de decisão judicial uma pessoa ou grupo de pessoas seriam

privilegiados em detrimento de outros que não se utilizaram desse expediente. Note-se que

quando se trata de direitos sociais, os seus destinatários são, em regra, a camada mais pobre

da população, que por vezes sequer tem acesso à Justiça para reivindicar a obtenção dos seus

direitos, confiando na execução dos programas de Governo.

Em posição contrária a esse argumento encontram-se aqueles que, apoiados no

princípio da efetividade, impõem ao Estado o dever de implementar os direitos

constitucionalmente assegurados, uma vez que o magistrado, ao controlar a atuação dos

outros poderes, não o faz por vontade pessoal, mas sim como aplicador da lei, por aqueles

mesmos elaborada.

J.J. Canotilho designa o princípio da efetividade como princípio da eficiência

ou da interpretação efetiva, uma vez que entende que a uma norma constitucional deve ser

atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. A denominação do princípio, por si só, já traduz

a idéia de sua aplicação: que a norma atinja a finalidade social para a qual foi criada, a

concretização do mundo normativo no mundo dos fatos, materializando os preceitos legais e

aproximando, tanto quanto possível, o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

Como leciona Luis Roberto Barroso134, o preceito legal é normalmente

observado, mas a despeito do constitucionalismo, tanto no Brasil quanto no exterior,

presencia-se a falta de efetividade da Constituição, a sua incapacidade de moldar e submeter à

realidade social. A Constituição tem existência própria, motivo pelo qual deve ordenar e

134 BARROSO, Luis Roberto, Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo; Saraiva, 6ª. Ed. P. 248

125

conformar o contexto social e político da nação. Por essa razão, não há lei editada para não ser

cumprida. No entanto, sempre haverá um antagonismo entre o dever-ser normativo e o ser da

realidade social, sob pena da inutilidade da criação da lei, uma vez que a mesma é criada para

dispor sobre comportamentos até então não efetuados. O equilíbrio entre esses dois extremos

é que conduz a um ordenamento jurídico socialmente eficaz.

O desenvolvimento do referido princípio é resultado de uma transformação da

própria percepção do papel do direito constitucional, que no Brasil afastou-se da visão da

ciência política para enfocar o direito processual, permitindo maior instrumentalidade para o

acesso aos direitos e garantias constitucionalmente previstos. O princípio da efetividade é

conseqüência natural da interpretação conforme a constituição, uma vez que procura

interpretar as normas infraconstitucionais de acordo com o disposto constitucionalmente.

Diante dessa instrumentalidade do direito processual constitucional, as normas

constitucionais programáticas, embora não sejam asseguradoras de direito subjetivo aos

jurisdicionados, os investem na faculdade de demandar dos órgãos estatais que se abstenham

de quaisquer atos que contrariem as diretrizes nelas traçadas como forma de proibição de

retrocesso.

No entanto, o princípio da efetividade não ficou livre de crítica, sendo a ele

atribuído um reducionismo metodológico decorrente da supervalorização da norma

constitucional, em razão de critérios hermenêuticos que ultra dimensionam a literalidade da

norma. A falta de precisão analítica do método deixa de fornecer critérios materiais que

permitam solucionar dúvidas decorrentes da interpretação. A finalidade do princípio da

efetividade é possibilitar a concreção da norma à realidade, mas em razão do forte

subjetivismo do método, acaba por distanciar-se de sua finalidade.

Uma segunda crítica está na conotação política dada ao princípio, relacionando

a noção de justiça social ao rol dos direitos fundamentais, garantindo-lhe a auto-

aplicabilidade, o que não estaria correto diante da natureza das normas pertinentes a esses

direitos, bem como da questão da impossibilidade de concretude diante da reserva do

possível, escapando à discricionariedade do administrador, que não executa os programas por

completa falta de recursos.

Diante do reconhecimento pela doutrina da impossibilidade de aplicar o

princípio da efetividade de forma isolada, e a fim de encontrar meio-termo para as duas

correntes acima, encontra no próprio princípio citado, aliada a doutrina sobre

126

proporcionalidade, mínimo existencial, direitos fundamentais135 e a cláusula de proibição de

retrocesso, a solução para o problema. Assim, sempre que a efetivação dos direitos

assegurados em lei ou em constituição possam de fato comprometer as finanças do Estado,

deve haver a ponderação desses interesses de forma a harmonizá-los, o que somente poderá

ser avaliado diante do caso concreto.

Como as normas que definem as políticas públicas contêm e ao mesmo tempo

estão contidas em um universo que envolve questões econômicas e sociais, é natural que estes

direitos usufruam, em razão dos seus destinatários e da essencialidade desses direitos ao

indivíduo, de uma posição de superioridade em relação aos demais direitos, cobertos por uma

característica própria, a do mínimo existencial, que consiste em interesses ligados à

preservação da vida e à dignidade da pessoa humana, garantindo a fruição de direitos sociais

mínimos.

Mesmo os autores136 que são contrários à idéia de fundamentalidade dos

direitos sociais, crêem na existência de direitos sociais mínimos, a fim de garantir condições

mínimas de existência humana que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda

exige prestações estatais positivas. Ricardo Lobo Torres, na obra citada, afirma que o mínimo

existencial carece de conteúdo específico, abrangendo qualquer direito, ainda que

originariamente não-fundamental; tem fundamento nas condições para a fruição da liberdade,

na idéia de felicidade, nos direitos humanos e no princípio da igualdade.

Para que o princípio da efetividade realmente seja observado é necessário que

o Judiciário, afastando-se dos princípios conservadores do passado, bem como deixando de

efetuar interpretação retrospectiva, tenha um papel mais ativo em relação à concretização das

normas constitucionais.

Como observado por Eduardo Santos de Carvalho137, que comunga do mesmo

pensamento de Ana Paula de Barcellos e Marcos Maselli, o próprio Judiciário não adota

posicionamentos pacíficos para decidir sobre recursos públicos. Quando instado a decidir

135 Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, Theorie der Grundrechte / Tradução de Ernesto Valdés. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997, p. 497, seguindo a mesma linha de pensamento, menciona “Que o direito, na condição de direito prima facie, é um direito vinculante e não tem, por exemplo, só um caráter programático se percebe claramente quando se diz que o direito não pode “depender em sua validade normativa do menor ou maior grau de suas possibilidades de realização”. Porém, a propriedade de direito vinculante prima facie significa que a cláusula restritiva deste direito, a “reserva do possível em sentido de aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade”, não tem como conseqüência a ineficácia do direito. Esta cláusula expressa simplesmente a necessidade de ponderação deste direito”. 136 Nesse sentido Ricardo Lobo Torres In Os Direitos Humanos e a Tributação,Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 124 137 CARVALHO, Eduardo Santos de, Ação civil pública: instrumento para a implementação de prestações estatais positivas, Rio de Janeiro: Revista do Ministério Público, n. 20, 2004

127

sobre a implementação de políticas públicas, nega a pretensão sob o argumento da reserva do

possível, uma vez que não pode interferir no orçamento público com a determinação de

aplicação ou remanejamento de verbas do orçamento público, elaborado em conjunto pelos

Poderes Executivo e Legislativo. Por outro lado, quando a demanda tem por objeto interesse

individual, como na hipótese de indenizações de valores tão ou mais elevados que aqueles

negados na apreciação do dever de implementar políticas públicas, o magistrado defere o

pedido, sem questionar a repercussão da decisão no orçamento público, como se aquela

questão individual não fosse repercutir no erário. Cabe ao Judiciário esclarecer porque

permanece preso à concessão de verbas elevadas para a proteção do direito individual e

porque a nega para a concessão dos direitos coletivos, arraigado aos princípios do direito

processual civil individual clássico.

O conservadorismo do Poder Judiciário em relação ao reconhecimento dos

direitos prestacionais é comum em outros países. A experiência pioneira do seu

reconhecimento ocorreu na década de 70 nos Estados Unidos quando do movimento de

reforma do sistema penitenciário, incentivado em grande parte pelo reconhecimento e

valorização dos direitos humanos que vigiam àquela época. Até esse momento reinava o

entendimento de que o Judiciário não poderia se imiscuir nas questões dos presídios em razão

da matéria ser da alçada do Executivo. Nos anos que se seguiram houve uma série de decisões

que acabaram por determinar a reforma completa do sistema penal do Estado de Arkansas. A

partir dessa experiência outros Estados a aderiram, o que ocorreu até a década de 90, quando

houve retração do pensamento em razão do conservadorismo que marcou o período, com

aversão aos direitos dos presos e a necessidade de contenção orçamentária.

Considerando que o conceito de políticas públicas está relacionado ao conceito

de democracia, direitos fundamentais e justiça social, há o fortalecimento das opiniões dos

estudiosos que freqüentemente debatem sobre a possibilidade de eventual controle judicial.

Ou seja, a partir do momento em que as políticas públicas lesem a ordem constitucional,

defende-se o controle judicial a fim de conservar os valores do Estado Democrático de

Direito, deixando a questão de ser posta como mérito administrativo diante da análise da

conveniência e oportunidade de sua implementação.

A Carta Constitucional de 1988 estimulou a possibilidade do Judiciário se

manifestar sobre essas questões, principalmente em sede de direitos da criança e do

adolescente, onde foram providas as primeiras ações visando à implementação de direitos

prestacionais.

128

O controle das políticas públicas pode ser feito de forma preventiva, por meio

da necessária participação popular representada nos conselhos deliberativos, de forma

concomitante ou posterior à sua prática. Nesta última fase são avaliados os efeitos sociais e

jurídicos decorrentes da política já implementada, com obediência ao princípio da legalidade e

da legitimidade, oportunidade na qual a doutrina é pacífica em admitir a obrigatoriedade do

controle. Quando o povo, por meio da democracia indireta na qual vivemos, através do

sufrágio universal elege seus representantes, não outorga a esses uma cessão dos seus direitos,

mas sim o poder de, em seu nome, ou seja, permanecendo titular dos direitos outorgados, bem

exercê-los em seu nome. Assim, em qualquer momento, como em todo mandato, pode e deve

verificar o seu fiel cumprimento, e somente poderá fazê-lo por meio de medidas judiciais.

O questionamento doutrinário de maior relevância não está presente na

possibilidade da verificação dos atos administrativos, pois os mesmos são passíveis de

verificação por meio de mandado de segurança ou da Lei de Ação Popular. Interesse está na

falta de atuação da Administração, ou seja, na omissão desta quando teria o dever de atuar.

O Supremo Tribunal Federal, instigado a se posicionar sobre o tema, se

manifestou no sentido de que “(...) o exercício do poder estatal, quando praticado sob a égide

de um regime democrático, está permanentemente exposto ao controle social dos cidadãos e à

fiscalização de ordem jurídico-constitucional dos magistrados e Tribunais”138.

O julgado acima mencionado tem por base a relativização da

discricionariedade administrativa uma vez que a doutrina tem demonstrado que não existem

atos administrativos puramente discricionários ou vinculados, havendo uma simbiose entre

ambos, com a classificação em atos administrativos vinculados propriamente e atos

administrativos de discricionariedade vinculada aos princípios139, ora prevalecendo uma

dessas formas, sem que, contudo, permita a existência de uma forma exclusiva, o que faz por

determinar o controle jurisdicional dos atos administrativos e até das políticas públicas. A

Ação Civil Pública passa a viabilizar a participação social na disposição da vontade estatal.140

138 Ag. Regimental em Agravo de Instrumento 236.546, rel. Min. Celso de Mello 139 Essa classificação é feita por Juarez Freitas, citado por Germana de Oliveira Moraes na obra Controle Jurisdicional da Administração Pública, São Paulo: Dialética, 1999, p.35. Contudo a mencionada autora não concorda com essa recente classificação, argumentando no sentido de que os atos emanados da competência discricionária também estão vinculados aos princípios jurídicos. Endente ser mais correto afirmar que atos predominantemente vinculados e atos predominantemente discricionários, e que nos dois tipos há total vinculação à legalidade e aos demais princípios jurídicos. 140 Há autores com posicionamento contrário a esse, como Jose dos Santos Carvalho Filho, na obra Ação Civil Pública, bem como Paulo Salvador Frontini, na obra Ação Civil Pública e Separação de Poderes. Têm como argumento que a ação civil pública tem característica exclusivamente processual, com a impossibilidade de criar norma de conteúdo material para a sua proteção.

129

4.3 – Atos Discricionários

Toda a problemática dos direitos prestacionais, nos quais se incluem as

políticas públicas, gravita em torno da discricionariedade, ou seja, o poder do agente público

em decidir sobre o objeto e o motivo do ato a ser praticado. A atividade do administrador é

política porque decidirá sobre alocação de esforços e recursos públicos diante do resíduo

poder transferido pelo legislador, que voluntariamente deixou uma lacuna a ser preenchida de

acordo com a conveniência e a oportunidade apresentada no momento da decisão,

constituindo o mérito administrativo, que está fora do alcance da sindicabilidade. Quando se

fala em discricionariedade, implicitamente está contido no tema o princípio da efetividade,

especialmente na interpretação de conceitos jurídicos indeterminados; proporcionalidade e

direitos fundamentais

Celso Antonio Bandeira de Mello141 conceitua discricionariedade como: “a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, em, dentre pelos menos dois componentes cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente.”

A razão de ser do poder concedido ao administrador está na visão

macroscópica da conjuntura sócio-política e econômica da sua esfera de poder, com melhor

conhecimento dos demais elementos que repercutem no ato a ser praticado, ou que dele

sofrerão reflexo, a fim de manter-ser no juízo político já positivado na Constituição e demais

legislações infraconstitucionais. Esse conhecimento é ausente ao magistrado que, em razão

disso, deve ater-se, em regra, à legalidade do ato praticado.

Em razão da insindicabilidade em tese do ato administrativo, aquele que

desejar contrapor-se à ação ou omissão da Administração Pública terá que fazê-lo por meio da

verificação da legalidade do ato praticado e do princípio da moralidade, uma vez que este

exige do ato administrativo, além de sua licitude, a demonstração do interesse público,

honestidade, probidade, lealdade e, dentre outros valores, o respeito à dignidade do ser

humano, requisito da boa administração. A doutrina tradicional, defendida inicialmente por

Seabra Fagundes, e a jurisprudência têm se inclinado para considerar juridicamente

141BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Discricionariedade e Controle Jurisdicional, São Paulo: Malheiros, 1998, p.48

130

impossível impor ao Estado a obrigação de realizar despesas, como atualmente defendido por

Pedro da Silva Dinamarco e Humberto Theodoro Junior.

O Superior Tribunal de Justiça, em sentido contrário a esse entendimento,

decidiu no Recurso Especial 194.732-SP, relator Ministro Jose Delgado, no sentido que, em

ação civil pública é cabível reconhecer da pretensão de compelir o Município à regularização

de loteamento clandestino, rejeitando a tese impugnada de que esses atos eram de natureza

discricionária e, por essa razão, escapavam ao controle do Poder Judiciário. Mesmo a

discricionariedade está sujeita a limites, os quais podem e devem ser observados pelo

Judiciário não só com o fim de declarar a legalidade do ato praticado, mas também a fim de

dar transparência da conduta administrativa, vez que sobre a mesma pairou dúvidas, a ponto

do contribuinte-cidadão ter ingressado com a demanda. Objetiva-se com isso o

restabelecimento da adequação da conduta do administrador à lei, de forma a efetivar o

sistema de freio e contrapesos que deve existir no regime constitucional vigente. Ao

interpretar a lei o Poder Judiciário não está realizando uma opção discricionária, mas sim uma

atividade intelectiva, dizendo o que a lei é.

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, em agravo regimental em Recurso

extraordinário de São Paulo, nº 410.715, Segunda Turma, Relator o Ministro Celso de Mello,

ao analisar a omissão do poder público municipal de Santo André na implementação de

creches e unidades pré-escolares para crianças menores de seis anos de idade decidiu que

diante da alta relevância social de que se reveste a educação infantil, a mesma deve ser

entendida como obrigação constitucional em criar condições objetivas de possibilitar o seu

acesso às crianças de até seis anos de idade, na forma prevista no artigo 208, inciso IV da

Carta Magna, sob pena de caracterizar omissão governamental. :

A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda

criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente

discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo

governamental. O mandamento constitucional é juridicamente vinculante, o que representa

fator de limitação de discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, sendo

inaplicável o juízo de conveniência e oportunidade.

Em adesão à corrente doutrinária que admite a sindicabilidade da conduta

administrativa, esta assim considerada no sentido de ação ou omissão administrativa, está

Luiz Guilherme Marinoni, citado por Eduardo dos Santos Carvalho: “Sempre que a lei regula de forma vinculada a atuação administrativa, obrigando a administração a um determinado

131

comportamento, não se pode falar em sindicabilidade dessa atuação, justamente porque, existindo o dever de atuar, não há margem para qualquer consideração de ordem técnica e política (...) sendo assim, e se há uma norma no sistema que estabelece para a administração o dever de agir em determinada situação, o descumprimento do dever é pura e simplesmente violação da lei, como tal passível de corrigenda pelo Poder Judiciário.”

Em tese de Mestrado sobre o tema, Ana Paula de Barcellos142: assim sintetiza:

"Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível."

A população brasileira alcança ano a ano uma expectativa de vida cada vez

maior. Esses dados também comprovam que o custo para manter a qualidade de vida dessa

população fica cada vez mais elevado, vez que os órgãos do ser humano têm uma expectativa

de regular atividade em determinado número de anos, necessitando de maior investimento nos

direitos sociais para melhorar e manter o seu pleno funcionamento, o que demanda maior

aplicação de recursos, não só na área de saúde ambulatorial, mas principalmente para a saúde

preventiva.

Como mencionado por Eduardo dos Santos Carvalho, afirmar que somente a

Administração Pública poderá aferir se há interesse público para o cumprimento do disposto

em texto legal, seria atribuir ao Poder Executivo o monopólio da definição do que é interesse

público. O Estado Democrático de Direito não permite ao intérprete proceder de tal forma.

Nenhum Poder detém a possibilidade de eximir-se do cumprimento da lei.

142 Barcellos. Ana Paula de . A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, p. 245-246, 2002.

132

No entanto, em razão da apontada escassez de recursos derivada da falta de

previsão orçamentária nas três esferas do Poder Executivo, e em conseqüência, da aplicação

de políticas públicas nessa área, já são freqüentes as medidas judiciais que têm por objeto o

pedido de indenização em face do Estado, em razão de perda de órgão transplantado por não

fornecimento de medicamento para impedir a rejeição do órgão.

Essas ações não só geram uma insatisfação na esfera subjetiva do autor da ação

de reparação de danos que, não se esqueça, na maioria das vezes, é autor de uma segunda

ação, pois geralmente não aguardou inerte a prestação do fornecimento do medicamento, uma

vez que também foi autor de ação visando a sua obtenção, na qual deve ter obtido sucesso em

termos de sentença condenatória, mas não logrou a obtenção regular do seu fornecimento,

ocasionando a perda do órgão transplantado.

A lei orçamentária permite ao administrador o remanejamento de verbas,

possibilitando a abertura de crédito suplementar em favor de projetos de interesse da

Administração. De outra forma não poderia ser, uma vez que seria inadmissível que o

Executivo ficasse engessado em previsões orçamentárias ditadas com um ano de antecedência

e nada pudesse fazer diante de imprevistos que determinassem a necessidade de

remanejamento de verbas ou mesmo o aumento das mesmas diante do caso concreto.

A mencionada cláusula reserva do possível não pode ser torpemente utilizada

pela Administração Pública com a finalidade de justificar a não realização de conduta

constitucionalmente prevista, sob forma de nulificar as normas contidas na Carta Manga,

tornando letra morta os direitos fundamentais assegurados. A fruição de direitos individuais

não pode estar condicionada à conveniência da elaboração do planejamento orçamentário. O

administrador público está vinculado à Constituição e às normas infraconstitucionais para a

implementação das políticas públicas relativas à ordem social constitucional. Como afirma

Luis Roberto Barroso, citado por Eduardo Santos de Carvalho143, “se a lei atribui um direito,

o mesmo só não será sindicável se for evidente e demonstrável a possibilidade de sua

realização no mundo dos fatos”.

O constituinte de 1988, diante da primazia conferida aos direitos fundamentais,

assegurou no parágrafo 1º do artigo 5º que os mesmos têm aplicação imediata. Importante

ressaltar que o Supremo Tribunal Federal reconheceu na ADIN 939-7 que os direitos

143 CARVALHO, Eduardo Santos de, Ação civil pública: instrumento para a implementação de prestações estatais positivas, Rio de Janeiro: Revista do Ministério Público, n. 20, 2004, p. 81

133

fundamentais não estão circunscritos no referido artigo 5º, encontrando-se esparsos em outras

passagens do texto constitucional.

As decisões acima mencionadas partem do princípio de que não existe poder

sem controle, ainda mais quando defendemos a idéia de que estamos inseridos em uma

democracia participativa, onde não tem pertinência o argumento da inexistência de recursos

ou a falta de previsão orçamentária porque, se alegada, deverá vir acompanhada de farta

documentação comprobatória não só da inexistência de recursos, mas também do

demonstrativo sobre em que os mesmos foram gastos.

Contudo, ainda há decisões em sentido contrário, como a proferida pelo

Ministro Celso de Mello, RE 272.834/RS, onde assevera que a preocupação orçamentária não

deve ser objeto de manifestação do Judiciário, que deve ater-se à administração da Justiça,

entendendo ser aquela matéria exclusiva do administrador público.

Sobre o tema do controle jurisdicional da Administração Pública, Germana de

Oliveira Moraes144 tem o entendimento de que: “ (...) os princípios da inafastabilidade da tutela jurisdicional e da separação de poderes são compatíveis entre si, pois quando, da atividade não vinculada da Administração Pública, desdobrável em discricionariedade e valoração administrativa dos conceitos verdadeiramente indeterminados, resultar lesão ou ameaça de direito, é sempre cabível o controle da legalidade (...) publicidade, impessoalidade, moralidade e eficiência (...) , do princípio constitucional da igualdade (...) e dos princípios gerais de Direito da razoabilidade e da proporcionalidade, para a fim de invalidar o ato lesivo ou ameaçador de direito (...)”

Sobre o mesmo tema, o Ministro Celso de Mello, no voto do Agravo em

Recurso Extraordinário acima mencionado, assim manifestou-se: “É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas do Poder Público (...)”

A discricionariedade do administrador, legado de autonomia de vontade do

Estado Liberal, está adstrita às hipóteses em que a lei não regula de maneira completa a sua

conduta. Os atos administrativos discricionários eram considerados como o centro da função

administrativa e ainda hoje encontram resistência de controle por parte de alguns, que

entendem que estão na barreira de sindicabilidade. Assim, em tese, dentro dessa margem

144 MORAES, Germana de Oliveira, Controle Jurisdicional da Administração Pública, São Paulo: Dialética, 1999, p. 176

134

poderia o administrador atuar livremente e não sofrer o controle do Judiciário, que por sua vez

só poderia exercer esse controle na área de atuação vinculada à lei.

Não se trata de atribuir ao Poder Judiciário a formulação e implementação de

políticas públicas e tampouco esse é o intento dos Tribunais Superiores, mas esse Poder não

pode se omitir diante da inércia dos órgãos estatais competentes que ofendem direitos

constitucionalmente previstos em razão da ausência de medidas assecuratórias.

Como discorre Hugo Nigri Mazzilli, citado por Rodolfo de Camargo

Macuso145: “Como o interesse do Estado ou dos Governantes não coincide necessariamente com o bem geral da coletividade, Renato Alessi entendeu oportuno distinguir o interesse público primário (o do bem geral) do interesse público secundário (o modo pelo qual os órgãos da administração vêem o interesse público); com efeito, nem sempre o governante atende ao real interesse da comunidade.”

Mas deve-se ter em conta que, mesmo diante da ausência de norma jurídica,

desde que haja princípio constitucional que regule a matéria versada no ato administrativo, o

administrador terá a sua liberdade de atuação cerceada e, caso não haja a observância daquele

princípio, o ato se transformará em ilegal, arbitrário. Em razão dessa ampla margem de

liberdade dada ao administrador, no século XIX, na Áustria, foi levantada a questão sobre o

que fazer com os conceitos jurídicos indeterminados, os quais são de uso freqüente pelo

administrador como motivo ou finalidade de um ato administrativo. Afinal, qual a extensão

do termo interesse público, moralidade, utilidade?

Alguns autores, como Ingo Sarlet146, vê nos direitos prestacionais meros

direitos relativos, como dispositivos programáticos, desprovidos de caráter vinculante. Essas

normas seriam esvaziadas por conceitos jurídicos indeterminados ou fluídos, o que lhes

determinariam a ausência de auto-aplicabilidade. Penderiam de uma interpretação política, a

ser feita pelos legitimados para tal, Executivo e Legislativo, não sendo passíveis de integração

pelo Judiciário. Outro senão quanto às normas que definem os direitos prestacionais estaria na

amplitude do seu objeto, sem estabelecer parâmetros precisos para a sua concretização.

Conforme leciona Barbosa Moreira147, admitindo que o Judiciário integre essas

normas, na fixação de conceitos jurídicos indeterminados abre-se ao aplicador da norma, 145 MANCUSO, Rodolfo de Camargo, A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios – Transposição das Águas do Rio São Francisco, Coord. Edis Milaré , São Paulo : Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p.774 146 SARLET, Ingo, A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1988, p. 279 147 MOREIRA, Jose Carlos Barbosa, Regras de experiências e conceitos juridicamente indeterminados, Temas de Direito Processual, 2ª Ed., 2ª série, São Paulo:Saraiva, 1988, p.65

135

como é intuitivo, certa margem de liberdade. Algo de subjetivo sempre ocorrerá nessa

operação concretizadora, sobre tudo quando ela envolve, conforme ocorre com freqüência, a

formulação de juízos de valor. A sindicabilidade dos atos administrativos, principalmente em

sede de utilização de conceitos jurídicos indeterminados, deve ser feita segundo a

Constituição. O princípio da efetividade impõe, ao lado da interpretação conforme a

Constituição, que esta deve servir de norte para a legislação infraconstitucional. Nesse

sentido, o juiz não pode deixar de aplicar um preceito, seja esse constitucional ou legal, sob o

argumento de que existe termo carente de definição. Em tese, sempre caberá ao Poder

Judiciário rever a definição atribuída pelo Executivo, sem que isso seja considerado

interferência de um poder no outro, uma vez que a atividade interpretativa é função do

Judiciário.

Nesse sentido, no plano das políticas públicas existem alguns termos que

possibilitam ampla interpretação, tais como: erário, infância e juventude e interesse social, por

exemplo, que necessitarão de carga de subjetividade por parte do intérprete. No entanto, o que

não se deve perder de vista é que a Constituição, ao estabelecer onde e quando tal conduta

deve constituir uma abstenção ou atuação, assegura à sociedade o poder de controle sobre

essas condutas em face da autoridade ou do órgão competente. Há de ser observada a vontade

do constituinte que optou por uma democracia participativa na defesa do interesse

metaindividual, possibilitando que a mesma seja exercida por vários co-legitimados nas

diferentes modalidades de ações, como o cidadão-eleitor; associações, sindicatos, órgãos e

entes públicos.

A responsabilidade do Poder Executivo está em que este não apenas executa as

leis, como também formula e executa as próprias políticas públicas e programas necessários à

realização do ordenamento legal, viabilizando-os aos cidadãos. Ao estabelecer uma política

pública o administrador atua como intérprete do texto constitucional e nessa função utiliza

valores e visão pessoais, o que não deve impedi-lo de criar um direito em favor da

coletividade destinatária, pois essa atuação corresponde a um dever por parte do Poder

Público na sua execução. Marcelo Abelha, citado por Rodolfo de Camargo Mancuso148,

afirma que é “reduzidíssimo o campo de discricionariedade administrativa porque, com a introdução do princípio da eficiência no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, sobre muito pouco (quase

148 MANCUSO, Rodolfo de Camargo, A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios – Transposição das Águas do Rio São Francisco, Coord. Edis Milaré , São Paulo : Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 541

136

nenhum) espaço para escolha do administrador, de forma que no caso concreto deve ser escolhida a única opção possível do ponto de vista dos princípios norteadores do Administrador Público (moralidade, legalidade, finalidade, eficiência, etc.).”

Diante do reconhecimento da plena discricionariedade da administração

pública na elaboração dos atos administrativos, restaria dificultado, ou até então cerceado, o

acesso à Justiça para questionar uma lesão sofrida por atuação ou omissão da Administração,

uma vez que o legitimado terá dificuldade em demonstrar se o ato é político, discricionário ou

vinculado, impedindo-o de comprovar até mesmo o seu interesse de agir. As verdadeiras

questões políticas, as quais escapam à sindicabilidade pelo Judiciário, são aquelas,

exemplificativamente, destinadas a dispor sobre políticas econômicas, declarar a guerra e

negociar a paz, declarar a intervenção nos preços e na moeda, etc. Assim, a moderna

concepção de políticas públicas e o reconhecimento de sua judiciabilidade ocorreu de forma

gradativa e em paralelo ao surgimento das teorias e doutrinas fulcradas no reconhecimento do

interesse social, priorizando aspectos concernentes ao justo e ao eqüitativo.

Assevera Paulo Bonavides149 que a questão da jurisdicialização dos direitos

sociais é de fundamental importância para as constituições do Estado Social. Para tanto, é

necessário reconhecer a vinculação constitucional do legislador a tais direitos, reconhecendo-

os como direitos de eficácia imediata. Deve ocorrer a institucionalização do controle da

constitucionalidade com o fim de estabelecer mecanismos que possibilitem efetivar a

aplicabilidade desses direitos.

No que tange aos direitos sociais existe controvérsia se os mesmos são, ou não,

direitos fundamentais, o que implicaria na possibilidade de exigência de sua aplicação

imediata. A doutrina é controversa nesse aspecto, inclusive com doutrinadores150que

entendem que somente certos direitos sociais estariam contidos nessa classificação, mas

mesmo assim só o seriam na medida em que correspondam a condições mínimas de existência

digna. Ao hermeneuta cabe ter em mente que no discurso jurídico o alcance dos preceitos

deve estar na análise dos direitos e das normas, uma vez que estas têm apenas uma visão

estreita da realidade, enquanto os direitos têm conteúdo mais amplo. Assim, é possível que

algumas normas jurídicas sejam consideradas inválidas à vista de valores morais. Esta

assertiva parte do princípio de que a sociedade evolui na sua concepção dos fatos, passando

moralmente a rechaçar condutas até então descritas em normas jurídicas do passado. 149 BONAVIDES, Paulo, A constituição aberta, 2ª Ed. São Paulo : Malheiros, 1996, p. 186 150 GOUVES, Marcos Maselli, O controle judicial das omissões Administrativas – Novas perspectivas de implementação dos direitos prestacionais, Forense:Rio de Janeiro, 2003, p. 99

137

Os programas de ação governamental têm de estar fundamentados em direitos

previstos, ainda que genericamente, na Constituição Federal. As políticas públicas envolvem

processo político de escolha de prioridade para o governo, tanto em termo de finalidade como

de procedimentos. Segundo Comparato151, a legitimidade do Estado não está na expressão

legislativa da soberania popular, mas na realização de finalidades coletivas que remetem ao

conceito de interesse público dentre a margem de conveniência e oportunidade ditadas pelos

valores desse Estado Democrático.

A justificativa do controle judicial está no direito ao acesso à Justiça. A

participação do Poder Judiciário como agente do Estado que possibilita a busca da verdade

real, o princípio da isonomia entre os indivíduos, bem como os princípios constitucionais

administrativos. Ao ser chamado para dirimir essa modalidade de conflito de interesse, estará

no legal desempenho da realização do bem comum, impondo, e não criando, o cumprimento

de metas previamente estabelecidas na Constituição Federal ou nas leis que determinam uma

atuação positiva do Estado para, dentre outras metas, erradicar a pobreza, reduzir a

marginalização e fornecer assistência social para assegurar o pleno desenvolvimento e o

mínimo de dignidade à pessoa humana.

Por toda sorte desses argumentos, é consenso doutrinário no sentido de que a

Administração Pública atua sobre constante controle dos seus atos diante da indisponibilidade

do interesse público, cada vez mais restrita à margem da efetiva discrição. Considerando que

as políticas públicas devem ser estabelecidas com olhos à consecução de programa ou metas

previstas em sede constitucional ou legal, as mesmas estão sujeitas ao amplo controle,

especialmente no que concerne à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos

resultados alcançados.

Uma vez editada a norma jurídica, não cessa para o Estado o seu dever, este é

estendido até a efetividade do estabelecido naquela norma por meio do aceso à população ao

serviço assegurado, restando à sociedade a posição de credora dos direitos. A lei passa a ser

tomada no sentido de programa ou meta governamental diante da substituição do Estado

monocrático pelo Estado telocrático que, no dizer de Rodolfo de Camargo Mancuso152,

impende implementar eficazmente as declarações contidas nas normas. O Estado moderno é

fonte provedora e mantenedora de políticas públicas estabelecidas em prol de finalidades

específicas do bem comum.

151 ___, p.11-12 152 Op. Cit. Pág. 781

138

O Jurista Fabio Comparato, na obra citada, afasta de plano a frágil defesa

daqueles que argumentam no sentido de que o Poder Judiciário não pode julgar decisões

políticas. Para aqueles que assim ainda pensam, o Mestre esclarece que o entendimento

retrógrado advém da interpretação da Carta Constitucional de 37 que “vedava ao Poder

Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas”. No entanto a hermenêutica correta

seria no sentido de que era vedado o controle judicial sob questões “de política”.

Eduardo Garcia de Enterría153leciona que a doutrina dos atos políticos foi

criada pelo Conselho de Estado francês em uma época na qual era necessário impedir a

resposta a questionamentos sobre atos decorrentes da derrocada do regime napoleônico, sendo

mantida até o ano de 1872. Atualmente, menciona que somente é admitida a ampla

discricionariedade em matérias específicas, todas por questões eminentemente políticas.

Conclui-se, assim, que a discricionariedade não é regra, e sim conduta excepcional do

administrador, uma vez que no Estado de Direito não há ato meramente político.

A doutrina154, como forma de amparar o aplicador da lei na árdua tarefa de

aplicá-la ao caso concerto, elenca os instrumentos processuais pertinentes para possibilitar a

implementação de prestações estatais positivas, seja por meio de coerção, seja como forma de

subrogação, quando a prestação é realizada por terceiro ou pelo próprio Judiciário:

Multa – encontra inspiração da doutrina francesa, sob a denominação de

astreintes. A Lei da Ação Civil Pública, em seu artigo 11, prevê a cominação de multa diária,

embora a mesma somente será exigível após o trânsito em julgado da sentença, o que retira a

coerção desse instrumento, haja vista que a multa somente poderá ser passível de execução

após anos de sua fixação, perdendo o objetivo de forçar o célere cumprimento da obrigação.

Melhor sorte para o cumprimento da obrigação está na imposição de multa

pessoal ao agente que embaraçar ou descumprir a efetivação de providências judiciais,

prevista no parágrafo único do artigo 14 do CPC que, diante da possibilidade de

comprometimento do seu patrimônio, agiliza o cumprimento da prestação.

Sanções criminais – embora tenha caráter punitivo, exerce, nesse caso, função

coercitiva, estimulando o agente a atender à determinação judicial, embora, na prática, não

seja comum a sua ocorrência em razão do foro privilegiado ou por recair na esfera de

competência dos Juizados Especiais Criminais, com a possibilidade de ocorrência da

transação penal e a sanção ficar restrita ao fornecimento de cestas básicas. 153 ENTERRÍA, Eduardo Garcia, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, RT, 1990 154 CARVALHO, Eduardo Santos de, Ação civil pública: instrumento para a implementação de prestações estatais positivas, Rio de Janeiro: Revista do Ministério Público, n. 20, 2004

139

Prisão civil – tem natureza coercitiva, coagindo o devedor ao cumprimento da

prestação, sendo que a Constituição somente a permite para o devedor de alimentos e para o

depositário infiel. Alguns autores procuram estendê-la para a hipótese de descumprimento de

decisão judicial sob o argumento de que seria ato atentatório à dignidade e autoridade da

Justiça. Na mesma esteira de pensamento, pretende-se expandir a idéia de alimentos não

somente àqueles fixados em ação pertinente, mas a toda e qualquer prestação cuja função seja

a de possibilitar a subsistência digna do credor, o que atenderia a natureza coercitiva para o

cumprimento das prestações, objeto das ações coletivas.

Meio de subrogação – caracteriza-se pela possibilidade de execução de

obrigação fungível pelo devedor, ou por terceiro às custas daquele, sendo que, na prática, tem

se demonstrado extremamente demorada, sem a celeridade necessária para o implemento da

prestação, sempre urgente. No entanto, quando se trata de prestações estatais positivas, não

efetuadas por falta de previsão orçamentária suficiente, fazem-se necessárias outras formas de

intervenção, as quais devem ser adotadas somente em caso de comprovada necessidade e de

forma menos gravosa para o devedor, preservando a independência entre os poderes e o

princípio da eficiência e legalidade do administrador público.

Na hipótese de inexistência de espontaneidade do cumprimento da prestação e

da não-celebração do termo de ajustamento de conduta, o Judiciário deverá deferir o pedido

para que a Administração inclua no projeto de lei orçamentária do próximo exercício

financeiro a previsão de recursos para o cumprimento da prestação exigida, como se

precatório judicial fosse em favor do próprio Estado, com a vinculação a verba para a

finalidade determinada na decisão judicial.

Pode ocorrer, contudo, que a prestação a ser satisfeita não possa aguardar até o

exercício financeiro vindouro, o que determinará que o Judiciário, atendendo ao pedido da

parte interessada, decida que a Administração remaneje prontamente verba para a realização

da prestação.

Por fim, há a intervenção judicial no órgão público devedor da prestação, nos

moldes da structural injunctions do Direito norte-americano, que normalmente se dá através

de auxiliares do juízo a fim de acompanhamentos do atendimento das determinações judiciais.

Mas, como tem ressaltado por Marcos Maselli Gouvêa, na obra inúmeras vezes citada, além

da tradicional aversão ao ativismo judicial, o Judiciário brasileiro não dispõem das mesmas

condições estruturais do norte-americano, nem conta com condições políticas que na prática

lhe garantam essa determinação. Nesse sentido, essa forma de subrogação é medida extrema,

mas juridicamente possível.

140

Os três Poderes da República necessitam assumir as suas competências a fim

de que possam concretizar a fala de Mauro Cappelletti no sentido de “coexistir um legislador

forte com um executivo forte e um judiciário forte”.

O Estado moderno caracteriza-se por assumir mais compromissos e

conseqüente interferência na vida social, carecendo de produção legislativa de qualidade a fim

de permitir que juizes com independência funcional, livre de amarras, verifiquem a atuação do

Executivo, gestor do interesse coletivo, no cumprimento de seus misteres.

Com total pertinência ao tema, o ensinamento de Rodolfo Camargo

Mancuso155 quando dispõe que o objeto da ação civil pública está sendo ampliado para

alcançar o controle das políticas públicas, uma vez que está presente o problema da

sindicabilidade judicial dos atos de governo, das políticas governamentais, searas em

princípio, propícias à atividade discricionária da Administração. A idéia de que esses atos

estavam sob o manto dos atos discricionários ou exclusivamente políticos deixou de ser uma

verdade absoluta, cabendo ser perquirido se fato o são. Hoje, entende-se que a grande maioria

dos atos administrativos é de algum modo vinculado, seja porque seu agente está no exercício

de um munus público, seja pela própria natureza desses atos de gestão, seja pela precípua

indisponibilidade do interesse público.

Corroborando a afirmação do poder-dever do administrador na execução das

políticas públicas previstas constitucionalmente, deve-se ter em conta o princípio da

integralidade muito utilizado na área da saúde, reconhecido como conseqüência direta da

definição pluridimensional da exclusão, determinando que sejam manejadas todas as formas

possíveis de satisfação de um direito em favor do necessitado, seja na área de saúde,

educação, habitação ou jurídica. Em uma sociedade caracterizada pela desproporcionalidade

da renda per capita, situações como insuficiência de rendimento e emprego precário

(trabalho), moradias degradadas (habitação), baixa escolarização e qualificação profissional

(educação), problemas de saúde (saúde), ou seja, ausência dos direitos sociais previstos no

artigo 6º da Carta Magna, são necessárias ações que ataquem em todas estas frentes essas

desigualdades. A consciência dos efeitos negativos das políticas compartimentadas,

decorrentes da inexistência de políticas públicas adequadas, motivou as pessoas que

diuturnamente vivenciam a exclusão a buscarem solução para os seus problemas.

155 MANCUSO, Rodolfo Camargo, Ação Civil Pública, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, 6ª ed., p. 40/41):

141

Dessa sorte, a atuação do legitimado ativo para a defesa da ação civil pública

restará ampliada para outros atos que não somente a correção de atos comissivos da

administração que porventura desrespeitem os direitos constitucionais do cidadão, mas

também deve atuar na correção dos atos omissivos, ou seja, para a implantação efetiva de

políticas públicas visando à efetividade da ordem social prevista na Constituição Federal de

1988.

142

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução da sociedade ao longo dos séculos, evidenciou afastamento da

forma primária de defesa e da auto-regulamentação de conflitos; nesse processo o homem

assimilou as mudanças do meio ambiente, vez que mantém relações dialéticas com a

sociedade, do que resultam transformações sociais. Não há como dissociar o homem do meio

em que vive; a simbiose existente entre o homem e a sociedade é tal que um não sobrevive

sem o outro, alterando-se mutuamente.

Desde o início do milênio passado, o homem evidencia mudanças

comportamentais significativas, associando-se a outros indivíduos como forma de

autoproteção contra outros, de cultura e até idioma diferente, considerados como inimigos.

Psicologicamente, o homem vive em grupos por necessidade primária e característica

gregária, não importando a dimensão do grupo ao qual se associa. Não existe ser humano que

desde sempre tenha sido isolado do contato com outro homem. Por mais que consiga

sobreviver, poderá ser tudo, menos humano, despossuído dos valores que caracterizam a

humanidade.

A necessidade social e psicológica de associação fez com que inicialmente o

homem não fosse reconhecido em sua unidade, e sim como parte de um todo, passível de

representar e ser representado por qualquer membro desse grupo em razão da qualidade de

parte, sem consideração jurídica, integrante do todo, não se questionando a existência de

legitimidade para a representação.

Com a evolução da sociedade, os grupos primários mesclaram-se, aumentando

sua dimensão, constituindo vilarejos e cidades, quando o grupo inicial perde a identidade

primária, descaracterizando-se. Em paralelo, passou a ser reconhecido como indivíduo. A

partir de então, surgiram os conflitos interpessoais, com a necessidade de regulamentação não

só dos direitos do grupo, mas também do indivíduo.

A evolução social aperfeiçoou-se e alcançou a forma de Estado, dividido em

classes sociais, onde, de início, somente a nobreza e o clero tinham direitos. Às demais

classes eram garantidas somente proteção estatal em troca de contribuição compulsória de

impostos, ou da própria escravidão do homem, mantenedores da abastança da aristocracia.

A situação não tardou a impor desconforto de tal monta para as classes

desfavorecidas, que culminou com movimentos sociais formados pela burguesia e intelectuais

que tinham acesso às informações sobre as idéias existentes em outros países, promovendo

143

uma revolução política no continente europeu e norte-americano, com reflexo no restante do

mundo.

A sociedade do século XVII foi marcada pela celeridade de produção

proporcionada pela Revolução Industrial, criadora de uma nova, numerosa e forte classe

social – a dos operários, determinando a imposição de mudanças no sistema social, uma vez

que reconhecia o seu valor como força de trabalho, sem poder auferir pessoalmente das

riquezas por eles produzidas e se conscientizava da fruição do mesmo pela classe dominante.

Reconhecia-se que, na indústria moderna do capitalismo, o trabalho é odiado pelos

trabalhadores, que o vêem somente como meio de sobrevivência, sem prazer da sua execução,

que os oprime. A Inglaterra foi o berço das transformações ideológicas, seguida pela França

e, posteriormente, pelos Estados Unidos.

As idéias de aparente liberdade que marcaram o liberalismo foram baseadas

somente em dados teóricos e abstratos de igualdade, que existia no plano formal, uma vez que

se destinavam apenas a demonstrar preocupação com o povo, o qual não era visto, onde nem

todos tinham acesso ao mais elementar dos direitos: o direito de voto. A inconformidade do

povo com a omissão do Estado e o receio de novamente vir a ser submetido ao controle da

classe dominante determinou a separação dos poderes do Estado, os quais deveriam ser

harmônicos entre si.

Comprovou-se, contudo, que o Judiciário foi destituído de poder de interpretar

o direito, num sentido mais amplo do que lei, limitando-se a aplicar o texto legal ao caso

concreto, sem poder emanar qualquer interpretação, despindo o juiz da tarefa de produção

intelectual. Rousseau entendia que melhor seria a celebração de um contrato – Contrato

Social, onde o povo delegaria ao Estado a sua representação.

Com os anos, percebeu-se que os princípios do liberalismo, com ênfase na

autonomia da vontade, não atendiam às necessidades individuais em razão da patente

existência de desigualdade entre as pessoas. A igualdade baseava-se em dados teóricos,

preocupando-se com uma igualdade formal, pois, no plano concreto os indivíduos não

contavam com o Estado para regular os seus interesses. O Estado argumentava que a não-

interferência garantia a liberdade do cidadão, que era senhor de sua vida.

Diante da fragilidade prática das teorias produzidas pelo Estado Liberal, surge

o Estado Social, também conhecido como Estado Providência ou Estado Intervencionista que,

como o próprio nome denota, surge com a missão de assegurar aos indivíduos os direitos de

primeira geração, caracterizados pela preocupação individual, bem como os de segunda

144

geração, ditos direitos prestacionais, a fim de executar ações que de fato reduzissem as

diferenças sociais.

As primeiras constituições com cunho social foram a do México em 1917 e a

de Weimar em 1919 e em 1934 a do Brasil, embora de curta duração em razão da constituição

do Estado Novo em 1937.

A implementação do Estado Social foi dificultada pela ocorrência de duas

guerras mundiais, determinante de grande transformação política, social e industrial. O

mundo se transformava a passos mais largos do que o Estado tinha condições de reconhecer e

assegurar direitos. As normas constitucionais e infraconstitucionais não tinham tempo

cronológico para acompanhar a transformação social, a qual era fomentada em tempo real por

informação sobre as transformações ocorridas no mundo, aumentando a consciência sobre

seus direitos e necessidades, promovendo questionamento de vários valores sociais.

Acompanhando a evolução política do mundo, percebeu-se que o formato do

Estado Social de Direito não mais atendia à realidade, revelando-se insuficiente, em face da

consciência dos direitos individuais e dos direitos prestacionais devidos pelo Estado.

Esses direitos precisavam ser implementados não mais para satisfazer as

necessidades do indivíduo isoladamente no seu direito privado, mas àqueles pertinentes a

necessidade comum do grupo. A atenção do legislador precisava ser deslocada do foco

individual, de visão micro, para a questão coletiva, macro, molecular da sociedade, até, por

fim, atingir a essência dos direitos que ultrapassavam a titularidade até do grupo, alcançando

toda a sociedade, de forma indivisível. Esses são designados como direitos difusos, que

impõem ao direito positivo uma dimensão social e não mais individual da realidade.

Diante desses novos direitos e com a consciência de que ao cidadão não

interessa apenas o reconhecimento expresso de direitos, mas também a garantia de sua

execução, criou-se o Estado Social e Democrático de Direito, que irradia valores de

democracia e preocupação com as questões sociais em todo o texto constitucional, mesmo

quando dispõe sobre a ordem econômica, como é o exemplo da menção às relações jurídicas

decorrentes das relações de consumo.

Acompanhando as mudanças sociais, o Direito, embora com o atraso

legislativo que deve existir entre os reais anseios sociais e as normas jurídicas, iniciou sua

adaptação à nova realidade social – o dinamismo das relações e a submissão do homem ao

consumo como forma de alienação de seus valores, os quais necessitavam permanecer

resguardados.

145

A doutrina brasileira, inspirada no direito comparado, principalmente o que

ocorria na Itália, Alemanha e Estados Unidos, contribuiu de forma excepcional para estimular

a produção de normas legislativas. Entre os estudiosos das alterações que pendiam de

implementação no Direito está Mauro Cappelletti e Garth, que, na última década de 1970,

iniciaram pesquisa visando a identificar os problemas que impediam o acesso à Justiça.

Inicialmente, o estudo teve a preocupação voltada para o alijamento das minorias nesse

processo, em razão do valor das custas judiciais e do pagamento dos honorários advocatícios,

quando se concluiu que a questão do acesso à Justiça era mais ampla, necessitando de

mecanismos para também permitir o acesso à qualidade técnica de profissionais envolvidos na

defesa dessas pessoas.

Posteriormente a essa fase, ainda com Cappelletti e Garth, tal qual ocorreu com

a história da evolução das necessidades sociais do homem, houve a preocupação com a defesa

dos interesses difusos e a forma de representação dos mesmos em juízo, vez que são

destituídos de titularidade identificável, pertencendo a um número de pessoas indeterminadas

e identificáveis. Havia situações em que o direito estava situado em um patamar que não

justificava a sua defesa por um só cidadão, impondo que se um assim o fizesse, tal decisão

beneficiaria um número muito maior de pessoas.

A jurisprudência e a doutrina, com passos curtos e cautelosos, reconheceram a

procedência dos estudos de Cappelletti e Garth, o que contribui para a edição de leis de defesa

dos direitos difusos, os quais estão presentes em toda a sociedade, independente da

característica regional ou econômica da mesma, o que lhes assegurou a preocupação de todos,

uma vez que não diziam respeito apenas a determinado segmento da população, geralmente a

mais necessitada, atingindo os interesses de todos, de forma indistinta.

A sociedade civil, organizada principalmente por meio de organizações não

governamentais e associações, principalmente de moradores, diante da omissão do Estado,

assumiu a tarefa de auxiliá-lo na defesa desses interesses. Diante da forte atuação dessas

entidades, deixou de existir a divisão dicotômica entre público e privado, sendo acrescentada

a essa um terceiro setor, constituído por organismos da sociedade civil, que inicialmente

surgiu em posição antagônica ao Estado, contrapondo-se a este, em razão da ausência de

execução de políticas públicas.

Nesse contexto social, como forma de implícito reconhecimento da titularidade

do indivíduo para a defesa coletiva, foi editada a Lei da Ação Popular que, embora utilizasse

os dispositivos do Código de Processo Civil de 1939, vigente à época de sua edição, adaptou-

se ao Código de 1973, determinando a eficácia erga omnes da coisa julgada. Essa foi

146

considerada legislação de vanguarda para a sociedade da época, haja vista o rígido regime

jurídico vigente no Brasil à época de sua promulgação.

Outra legislação de suma importância foi a Lei da Ação Civil Pública, elevada

à categoria de defesa de bens e valores da coletividade, inclusive naqueles interesses de difícil

ou impossível verificação de titularidade, cuja defesa não resistiria ao crivo da tradicional

verificação da existência das condições da ação, o que fez com que a mesma trouxesse

dispositivos processuais próprios.

Três anos após a edição da Lei da Ação Civil Pública, foi promulgada a nova

Carta Constitucional, inicialmente criticada pelo preciosismo e excesso de especificidade dos

direitos, sob o argumento de que esse não era o papel de uma constituição, que deveria ater-se

a estabelecer princípios e valores por meio de normas essencialmente constitucionais e que

deveria deixar a cargo da legislação infraconstitucional tecer minúcias do direito assegurado.

Ocorre que o constituinte era conhecedor da morosidade do processo

legislativo brasileiro e da resistência dos congressistas em regular direitos assegurados em

sede constitucional, onde é mais fácil retirar do texto direito assegurado, como a norma que

pendia de regulamentação para que a taxa de juros fosse de doze por cento ao ano, do que

regulamentá-lo.

O texto constitucional vigente, na integralidade dos artigos assecuratórios de

direitos individuais, retirou dos mesmos o caráter patrimonial, privado, de interesse exclusivo

do cidadão, conferindo ênfase ao reflexo social da utilização desses direitos pelo indivíduo.

Exemplo dessa inferência está na função social da propriedade, inclusive com a disposição de

que a propriedade urbana deve cumprir sua função social, determinando a aplicação de IPTU

progressivo para as hipóteses de subaproveitamento ou não utilização do solo urbano. Outro

exemplo repousa na constituição da usucapião urbano como forma de regularizar o direito de

habitação.

A preocupação do constituinte com os direitos e garantias, não só do cidadão,

como de estrangeiro que estivesse em território nacional e da pessoa jurídica, inclusive dos

sindicatos, fez com que esses direitos fossem localizados no Título II da Constituição, atrás

somente do Título que trata dos Princípios Fundamentais. Como último título, a Carta de

1988 dedicou cinqüenta e oito artigos para dispor sobre a Ordem Social, onde trata de

seguridade social, educação, cultura, desporto, ciência, tecnologia, comunicação social, meio

ambiente, família, criança, adolescente, idoso e, por fim, os índios.

A fim de possibilitar a consecução mais célere dos direitos assegurados no

texto constitucional, a doutrina, com forte influência dos processualistas, incentivou a edição

147

de leis que protegessem as minorias, objeto de proteção do Estado Democrático de Direito,

com a finalidade de reduzir as desigualdades existentes.

Como fonte de pesquisa da experiência do assunto no direito comparado, os

doutrinadores observaram que, desde 1820, o direito norte-americano utilizava-se da

experiência da tutela coletiva no direito inglês decorrente do bill of peace, que era uma

autorização para o processamento de ações individuais como coletivas, bastando que

houvesse um número excessivo de interessados, impossibilitando a formação de

litisconsórcio; bem como que os participantes tivessem interesses comuns e que o autor

adequadamente representasse o interesse de todos.

Embora com peculiaridades processuais próprias decorrentes da base

legislativa de cada país, Estados Unidos e Brasil buscaram na utilização das ações coletivas

promover a economia e a celeridade processual, de modo a possibilitar o acesso à Justiça aos

jurisdicionados, uma vez que a mesma pode proporcionar com melhor eficácia a proteção de

interesses de pessoas hipossuficientes que, sem acesso à informação, desconhecem seus

direitos ou a forma de acesso à defesa dos mesmos.

No contexto brasileiro, não houve aplicação integral das normas jurídicas

vigentes naquele país, pois na legislação estadunidense há a previsão da ação coletiva no pólo

ativo e no passivo da demanda, o que não foi repetido no Brasil, restringindo-a ao pólo ativo.

Outra diferença entre a ação coletiva e a class action está em que o legislador

brasileiro adotou a opção pela legitimidade política, nominalmente enumerando aqueles que

poderão representar os interesses em juízo. A legislação norte-americana preferiu não indicar

legitimados, deixando que essa árdua aferição da legitimidade seja feita caso a caso, através

do instituto da representatividade adequada, que deverá observar os seguintes critérios: a

verificação do interesse de agir dos membros da demanda; a competência dos advogados que

a conduzirão; a verificação da existência de eventual conflito interno na classe, de modo a

impor sua subdivisão.

A doutrina brasileira, mais uma vez diferenciando-se da norte-americana, não

optou pelo instituto do opt in or opt out, que consiste, respectivamente, no requerimento de

inclusão ou exclusão do feito, a fim de não se submeter aos efeitos da demanda, adotando a

eficácia erga omnes da decisão da medida da utilidade da demanda para os membros

interessados; ou seja, a coisa julgada somente atingirá o membro ausente ou presente para

beneficiá-lo, não havendo prejuízo para o mesmo permanecer na demanda, pois somente

poderá ser beneficiado com a decisão.

148

Era necessário que esses institutos processuais de proteção e defesa da tutela

coletiva estivessem à disposição dos operadores do Direito, pois o direito processual,

formulado com vistas ao direito individual, não atendiam a esses questionamentos, pois a

tutela coletiva não pode ser reconhecida como o somatório de interesses individuais.

O aumento da população mundial determinou que a indústria acelerasse o

sistema de produção de bens, a fim de atender à demanda crescente. A sociedade de massa

implicou também o incremento do setor terciário, com a dinâmica das relações de prestação

de serviços e comercialização dos bens produzidos. As relações jurídicas abandonaram o

formalismo contratual para tornarem-se instantâneas e até virtuais, atendendo aos anseios de

imediatismo dessa sociedade de massa. Hoje, é inconcebível pensar no formalismo contratual

vigente no Direito Romano, com necessidade de manifestação de palavras determinadas,

coberto de rituais para ver comprovado o consentimento.

O progresso decorrente do avanço tecnológico não escapou das críticas dos

mais observadores e não tão envolvidos nessa realidade desmedida de consumo, porque, com

a mesma celeridade deste e diante de sua prática de produção de bens e serviços em série,

propiciava danos a um número indeterminado de indivíduos. A celeridade na formação das

relações jurídicas exigiu que a sociedade de massa, consciente dos danos aos seus direitos,

buscasse, ao largo da legislação processual vigente, outras normas jurídicas para regular os

inúmeros conflitos surgidos dessas relações.

Em atendimento ao determinado no artigo 48 do Ato Constitucional das

Disposições Transitórias da Carta Magna de 1988, em 1990, foi editado o Código de Defesa

do Consumidor, que trouxe a ampliação de suas normas jurídicas, até mesmo para o direito

individual, com a previsão da inversão do ônus da prova, bem como inovando a tutela de

qualquer ação coletiva, interagindo plenamente com a vigente Lei de Ação Civil Pública,

expressamente prevendo e conceituando os direitos transindividuais, assim considerados os

direitos difusos e, por ficção e decisão de técnica legislativa, os direitos coletivos e os

individuais homogêneos.

Os direitos difusos caracterizam-se pela indeterminação do titular e pela

indivisibilidade desse direito, deixando de integrar a classe de direitos até então conhecidos,

sobre os quais o aplicador da lei estava habituado a decidir e que integram o patrimônio do

cidadão, para alcançar o interesse esparso de toda a sociedade. Em decorrência da

indeterminação do titular, houve resistência doutrinária e jurisprudencial para aceitar que

outros legitimados o defendessem, além do Ministério Público, instituição histórica voltada

para a defesa dos interesses da sociedade.

149

A correta interpretação da legitimidade para a defesa da tutela coletiva deve

estar atenta ao fato de que a legitimidade inerente à defesa dos direitos difusos não pode ser

feita de acordo com a clássica classificação entre legitimidade ordinária ou extraordinária.

Diante da transcendência desses direitos, a legitimação dos mesmos é política, em razão da

opção do legislador, nomeando aqueles que considerava capacitados e com legítimo interesse

para a defesa, uma vez que o patrocínio da ação civil pública impõe a existência de um

legitimado idôneo, capacitado técnica e economicamente, com meios de bem produzir

argumentos e provas com o intuito de demonstrar o dano ou ameaça de dano a esses direitos

de dimensão transindividual.

Os direitos coletivos, por sua vez, recebem essa denominação pela defesa ser

concentrada no interesse em comum do grupo, na relação jurídica que os une e, embora haja a

possibilidade de identificação dos seus membros, permitindo a divisibilidade do direito, o

interesse que os une faz com que permaneça com natureza indivisível. Somente no momento

da execução da sentença, o titular do direito defendido em nome do grupo terá legitimidade

para promovê-la, não podendo fazê-lo o legitimado, passando a prevalecer as regras do direito

processual civil individual.

Como forma de acesso à Justiça, a decisão obtida nessa ação permite que os

efeitos subjetivos da coisa julgada, opondo-se se ao direito processual civil tradicional,

alcance terceiros, estranhos àquela relação jurídica processual, beneficiando toda a

comunidade titular do interesse lesado.

Com pertinência ao terceiro grupo de direitos defendidos no Código de Defesa

do Consumidor, os individuais homogêneos, é o exemplo mais próximo da tradicional class

action norte-americana para reparação de danos. Trata-se de direitos individuais que

poderiam ser defendidos de forma isolada, mas por questão de celeridade e economia

processual, permitem a defesa por meio da tutela coletiva, garantindo o resultado da demanda

de forma unitária, evitando decisões conflitantes, de modo a estabilizar as estruturas que se

encontram em conflito durante a tramitação da relação jurídica processual.

Como explanado no Capítulo 2, o tema da tutela coletiva é de especial

relevância para o estudo e garantia de execução dos direitos prestacionais pelo Estado, vez

que o benefício da execução das políticas públicas interessará a um número incomensurável

de pessoas, com reflexo em outros direitos como meio de concretizar o acesso aos direitos

sociais e ao meio ambiente em equilíbrio, na forma preconizada no texto constitucional, que

tem como fim o interesse social.

150

A definição da execução dos direitos prestacionais cabe ao Poder Legislativo,

por meio da designação de verba no orçamento, bem como do Executivo que indica onde as

verbas devem ser aplicadas. O orçamento público estabelece a aplicação da verba em tese,

cabendo ao Executivo concretizá-la, inclusive com o remanejamento de rubricas. Ressalta-se

que a elaboração do orçamento, votado nas Câmaras dos Vereadores, Assembléias

Legislativas dos Estados e pelo Congresso Nacional não constitui carta em branco, dada pelo

povo ao Legislativo e tampouco ao Executivo no momento de sua implementação. O poder

jamais deixou de pertencer ao povo, sendo que este o exerce por meio de representantes, sem,

contudo, despir-se na qualidade de titular dos mesmos, podendo, por meio de medida judiciais

questionar a alegada discricionariedade no momento de escolha da aplicação das verbas

públicas.

A doutrina e jurisprudência evidenciam forte tendência a reconhecer que não

há ato inteiramente discricionário, com exceção prevista unicamente para aqueles que

impliquem opções essencialmente políticas.

O interesse social tem a coletividade como titular, não pertencendo

individualmente a qualquer grupo, estando acima de qualquer classificação primária. Como

percebeu Marx, a questão social não pode ser resolvida por meios puramente jurídicos: não

será por meio da elaboração de uma lei que se acabará com a pobreza e, a partir de então,

todos terão assegurados os direitos do provimento das necessidades essenciais do indivíduo.

Ao contrário, é necessário, de forma intervencionista e democrática, que seja assegurado a

todos que estão no seu território o acesso aos direitos descritos no artigo 6º da Constituição

Federal de 1988, sob pena da norma jurídica perder a função de promover a erradicação das

desigualdades, por mais que mantidas as diferenças entre os indivíduos. Ser diferente não

implica em ser desigual.

Originalmente a legislação legitimou com exclusividade o Ministério Público

para a defesa da sociedade, tanto na esfera penal quanto na cível. Sem prejuízo de outras

legislações que lhe determinam intervenção, sob pena de nulidade, o artigo 82 do Código de

Processo Civil prevê sua atuação como custus legis, bem como sua legitimação extraordinária

para a defesa dos incapazes para requerimento de sua interdição, quando inexistente familiar

ou por haver desídia deste, bem como para a investigação de paternidade de filhos havidos

fora do casamento nas hipóteses previstas na Lei 8.560/92.

A intenção do legislador foi a de assegurar a defesa de tão relevantes interesses

a uma instituição de Estado, com prerrogativa dos seus membros para bem exercer as suas

atribuições, vez que possuidores de ampla gama de poderes, como o de requisitar documentos

151

e informações com a finalidade de melhor defender os interesses, sem a preocupação da

existência de meios para a produção da prova, principalmente a pericial, vez que como

instituição do Estado, mesmo em data anterior à autonomia financeira e administrativa,

contava com as demais instituições estatais para auxiliá-lo nessa tarefa.

Conforme referido, houve grande transformação social e política na sociedade

nos últimos cinqüenta anos, determinando a edição de leis e do próprio texto constitucional

com idéias democráticas e sociais, orientadas para garantir o acesso à execução dos direitos

dispostos em lei.

A previsão constitucional para o acesso à Justiça ocorreu na Carta

Constitucional de 1934, influenciada pelos valores sociais vigentes no Estado Social de

Direito, já esculpidos na Carta do México de 1917 e a de Weimar de 1919. Diante do Estado

Novo, a Carta outorgada em 1937 deixou de mencionar expressamente esse direito, que

permaneceu em estado latente na sociedade, retornando ao assento constitucional com a

Constituição de 1946, repetindo-se a partir de então em todas as constituições brasileiras que

se seguiram àquela.

O instituto da assistência judiciária aos necessitados foi regulamentado pela

Lei 1.060, de 05 de fevereiro de 1950, em atendimento ao disposto no texto da Carta

Constitucional de 1946. Determinou o dever dos poderes público federal e estadual,

independente da colaboração dos municípios e da Ordem dos Advogados do Brasil, para

conceder esse direito aos necessitados. Para efeito da lei em comento, necessitado seria todo

aquele nacional ou estrangeiro cuja situação econômica não lhe permitisse pagar as custas do

processo e os honorários do advogado, sem prejuízo do sustento próprio e de sua família. A

magnitude da lei está em deixar de tratar o tema de acesso á Justiça como forma caritativa,

alçando-o à qualidade de direito subjetivo público do cidadão juridicamente necessitado.

O significado do termo necessitado evoluiu do simples “atestado de pobreza”

fornecido pela autoridade policial nas décadas de 60 e 70, para que, diante da dimensão de

reconhecimento de direitos na qual a humanidade se apresenta, seria uma visão

essencialmente simplista reconhecer que tudo mudou, exceto o conceito de pobreza e de

necessitado, que continuava preso à questão do dinheiro, bem essencial do capitalismo. A

necessidade, hodiernamente, é aferida no momento do acesso à Justiça, uma vez que a

existência de eventual patrimônio não deixa de caracterizá-la se naquele momento não puder

arcar com o pagamento das custas judiciais e dos honorários advocatícios, o que

impossibilitaria o acesso à defesa dos seus direitos, pois o patrimônio existente nem sempre

está disponível ou o mesmo pode ser de difícil liquidez.

152

O aumento descontrolado do consumo fez surgir nova categoria de

endividados – os compulsivos, que se orgulham do número de cartões de crédito que

possuem, como se não houvesse a obrigação do pagamento da fatura posteriormente enviada.

A facilidade do acesso ao crédito é outro fator de endividamento, chegando ao confisco dos

salários, deixando o cidadão de ter recursos para manter-se no seu dia-a-dia, impondo a

contratação de novo empréstimo para esse fim.

Nesse sentido, diante da falta de possibilidade, precisa de comprovação da

qualidade de necessitado que, diga-se, ninguém gostaria de tê-la, a Defensoria Pública,

especificamente para a defesa da tutela coletiva, não está adstrita à comprovação da

hipossuficiência daqueles que serão beneficiados com o resultado da demanda, uma vez que a

Lei 11.448/07, ao alterar a Lei 7.347/85, acrescentando a Defensoria Pública no rol de

legitimados, não fez essa exigência, pois se o fizesse seria atécnica, pois não há como ser

discutida a qualidade econômica de indivíduos em sede de direitos de natureza indivisível.

Em sede de interesses difusos e coletivos a condição individual de quem irá

aproveitar-se da decisão é irrelevante. Se a própria lei reconhece que nesses direitos é

impossível a sua individualização e a identificação do seu titular, como negar à Defensoria a

legitimidade para promover a sua defesa sob o argumento de esta, por norma constitucional,

estar adstrita à defesa daqueles que comprovarem sua condição de hipossuficientes?

A Carta Constitucional de 1988 estabeleceu o critério de hipossuficiência para

a assistência jurídica integral pela Defensoria Pública porque se tratava da defesa de direitos

individuais, onde essa aferição é possível. Quando houve a inclusão da instituição para a

defesa da tutela coletiva, principalmente em sede de direitos difusos, não poderia haver essa

exigência pela própria natureza desses direitos.

Diante desses argumentos, que, desde o início da dissertação, fundou-se na

justificativa histórica da sociedade e o reflexo desta nas normas jurídicas, entendeu-se

pertinente e com respaldo constitucional a Lei 11.448/07 que alterou a Lei da Ação Civil

Pública para acrescentar a Defensoria Pública no rol de legitimados apara defesa da tutela

coletiva, o que já era admitido desde a edição do Código do Consumidor, quando este

também introduziu o artigo 21 na Lei 7.347/85, estendendo a essa todo o Título III do Código

de Defesa do Consumidor, que nesse título trata da Defesa do Consumidor em Juízo, com

reflexo da legitimidade para propor a ação.

153

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