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Luciane Infantini da Rosa Almeida
Razões, sentimentos e projetos profissionais: experiências de vestibulandos/as (Vitória, ES, anos 2009 - 2010)
Rio de Janeiro
2010
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais
Faculdade de Serviço Social
Luciane Infantini da Rosa Almeida
Razões, sentimentos e projetos profissionais: experiências de vestibulandos/as (Vitória, ES, anos 2009 - 2010)
Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Trabalho e Política social.
Orientadora: Profª. Drª. Suely Gomes Costa
Rio de Janeiro
2010
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese. _____________________________________ ___________________________ Assinatura Data
A447 Almeida, Luciane Infantini da Rosa Razões, sentimentos e projetos profissionais: experiência dos
vestibulandos\as (Vitória, ES, 2009 - 2010)/ Luciane Infantini da Rosa Almeida - 2010.
267 f. Orientadora: Sueli Gomes da Costa Tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Faculdade de Serviço Social. Bibliografia. 1. Universidades e faculdades – Vestibular – Estudos de
casos – Teses. 2. Exame vestibular – Teses. 3. Vestibulandos – Condições sociais – Vitória (Espírito Santo) - 2010 – Teses. I. Costa, Sueli Gomes. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Serviço Social. III. Título.
CDU 371.27
Luciane Infantini da Rosa Almeida
Razões, sentimentos e projetos profissionais: experiências de vestibulandos/as (Vitória, ES, anos 2009 - 2010)
Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Trabalho e Política social.
Aprovada em: 27 de julho de 2010. Banca examinadora:
_______________________________________ Profª. Drª. Suely Gomes Costa (Orientadora) Faculdade de Serviço Social da UERJ _______________________________________ Profª. Drª. Carla Cristina Lima de Almeida
Faculdade de Serviço Social da UERJ
_______________________________________ Profª. Drª. Célia Frazão Soares Linhares Instituto de Educação Física da UFF
_______________________________________ Profª. Drª. Inez Terezinha Stampa Departamento de Serviço Social da PUC-RIO
_______________________________________ Prof. Dr. José Pedro Simões Escola de Serviço Social da UFRJ
Rio de Janeiro
2010
AGRADECIMENTOS
Dirijo, primeiramente, meus agradecimentos a Suely Gomes Costa. Mais do
que orientadora, Suely possibilitou-me um encontro com minhas experiências
pessoais e profissionais e, a partir delas orientou-me para as sínteses necessárias à
produção desse conhecimento. Carinho, atenção, confiança e dedicação foram de
grande valia para a realização deste trabalho, assim como o seu exemplo como
mulher e intelectual de prestígio. Sou e serei, eternamente, grata a essa mulher
fantástica sem a qual não teria concluído a tese.
Aos meus pais Celso Francisco da Rosa e Alice Maria Infantini da Rosa por
terem me propiciado educação e todas as experiências, que em sentimentos (e
ressentimentos) são traduzidas em minha própria trajetória. Ao meu pai agradeço
especialmente, por alguns traços que me passou, mais pelo convívio do que pela
genética, como a persistência, a vontade de vencer, de superar obstáculos e o gosto
pelos estudos. À minha mãe, sou grata pelo companheirismo, o carinho e a atenção
dedicados a mim e por estar sempre presente nas horas difíceis.
Ao meu filho, Arthur da Rosa Almeida, razão da minha existência, a quem
tenho profundo e incondicional amor. Agradeço pelos momentos de paciência e
ausência, os quais fizeram parte dessa jornada, e por ter me mostrado, mesmo sem
o saber, o que de fato possui valor em minha vida.
A Alexandre Wernersbach Neves pelo carinho, amor e cumplicidade, nesses
últimos quatro anos, que me possibilitaram momentos de alegria, prazer e
tranquilidade, fundamentais para revigorar energias e encontrar forças para
continuar esse árduo trabalho.
Aos meus irmãos Ordenilande Lemos Pereira, Celso Francisco Infantini da
Rosa, Leandro Infantini da Rosa e Rosiane Infantini da Rosa, que sempre me
apoiaram e incentivaram minhas conquistas. Agradeço, em especial, Leandro e
Rosiane que me auxiliaram em revisões deste trabalho.
Aos meus sobrinhos Bernardo Infantini de Aguiar, Lucas da Rosa e Vinícius
da Rosa e pela compreensão e carinho.
A todos meus outros familiares minha gratidão pela confiança depositada e,
em especial, à minha avó Dila Mascarello Infantini, uma amiga, companheira e
exemplo de mulher.
Agradeço, também, a Lúcio Viera de Almeida, pai do Arthur e um eterno
amigo, por quem tenho um profundo respeito e admiração, pela contribuição
material, intelectual e afetiva, necessária à realização deste trabalho.
Aos avós paternos de meu filho Suzane Elianete de Almeida e Lourival de
Almeida Filho por fazerem parte da rede de cuidados em momentos que precisei
dedicar-me a esse trabalho. Sobretudo, agradeço ao avô Lourival, por sua
indescritível colaboração.
Aos coordenadores/as e alunos/as dos cursos preparatório para o vestibular
que aceitaram ser parte da pesquisa, cujas contribuições foram valiosas.
Aos colegas e amigos da turma de doutorado e, em especial, a Cesar
Albenes de Mendonça Cruz, grande incentivador deste projeto.
À Silene de Moraes Freire e, em especial, à Elaine Marlova Venzon,
coordenadoras do Programa de Pós-Graduação, que contribuíram para a o desfecho
desta tese.
Aos membros da Banca, Drª. Carla Cristina Lima de Almeida, Drª. Célia
Frazão Soares Linhares, Drª. Inez Terezinha Stampa e Dr. José Pedro Simões por
aceitarem ser parte da Banca de Defesa de Tese.
À Cristina Ramos pelo comprometimento, atenção e carinho com que corrigiu
este texto e à Scheila Silva Rasch pelo suporte afetivo.
A todos àqueles que de maneira direta e indireta participaram deste trabalho.
Por último, a Deus e aos Espíritos Superiores, pois como parte de minhas
contradições, creio que são mais do que criações humanas. Sem eles nenhuma
história seria possível...
Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.
Simone de Beauvoir
O importante não é o que fazem de nós, mas o que fazemos
daquilo que fizeram de nós.
Jean Paul Sartre
RESUMO ALMEIDA, Luciane Infantini da Rosa Almeida. Razões, sentimentos e projetos profissionais: experiências de vestibulandos/as (Vitória, ES, anos 2009 - 2010). 2010. 267 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Dar nitidez aos sentimentos e razões que emergem das experiências dos
vestibulandos de Vitória-ES, entre 2009-2010, e que os movem em direção a seus projetos profissionais é objetivo deste trabalho. A noção de projeto aqui utilizada (VELHO, 1999) afasta-se da clássica compreensão liberal do ser humano, autônomo, livre e único, responsável por seus sucessos e fracassos, subjacente a estudos sobre “escolha profissional”. A ideia proposta é que campo de experiências dos sujeitos marca seus projetos profissionais, mas que suas condutas deliberadas, não necessariamente racionais, expõem certas expectativas de vida, quaisquer que sejam as posições sociais desses sujeitos. Para o exame dessas expectativas, esses sujeitos foram vistos em suas relações sociais - nas interseções de classes, gênero, de cor da pele, de gerações, etc. Reconheceu-se, ainda, que razões e sentimentos (WILLIAMS, 1969), também forjam projetos profissionais de sujeitos sob diversas condições sociais e apesar delas. Por considerar que esses projetos portam manifestações humanas, nem sempre perceptíveis e tantas vezes encobertas, a metáfora do “rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 2004), foi de utilidade metodológica. Alguns indícios (GINZBURG, 2007), sugeriram caminhos de pesquisa e alguns dos significados aos sujeitos para que esses projetos pudessem ser detectados. A perspectiva da longa duração histórica e dos tempos múltiplos presidiu o exame de trajetórias selecionadas de um conjunto de sujeitos pesquisados entre os anos 2009-2010, o que favoreceu a percepção de continuidades históricas, mas também a ocorrência de mudanças de certas tendências sociais. Dois cursos de pré-vestibular, um público e um privado, em Vitória, ES, nessa conjuntura, mostraram um pouco da pluralidade de expectativas de diferentes jovens - pobres, de classes média e alta, homens e mulheres, brancos, negros e pardos, mais novos e mais velhos em relação ao ensino superior – presente em seus projetos profissionais. Razões e sentimentos que os movem e que se movem, nem sempre examinados em estudos sobre a matéria, foram expostos. Contribuições de Elias (1990), de R. Williams (1969), de Bourdieu (2003, 2009), de E. P. Thompson (2002), de Löwy (1990), entre outros, apoiaram evidências de que as relações indivíduo e sociedade, sempre plurais e complexas, expressam apenas partes de seus sentidos civilizadores. Para reduzir incertezas, recorreu-se a dados macrossociais e microssociais (REVEL, 1998). Entrevistas com tais jovens e coordenadores de seus cursos, observações advindas de dinâmica de grupo e, também, exame de publicações oficiais, de periódicos de divulgação de matéria sobre vestibular, entre 2009-2010, situaram um trato de escalas analíticas de difícil exercício. Para além das relações de classes, gênero, cor da pele, geração etc., pode-se concluir que esses sujeitos, por razões e sentimentos variados, com seus projetos profissionais, tanto se deslocam de suas posições sociais de origem como as mantêm, mas todos, em suas novas experiências e de diferentes modos, também se preparam para atuar sobre os sentidos civilizadores de seu tempo.
Palavras-chave: Projetos profissionais. Campo de experiência. Horizonte de expectativas. Sensibilidades. Processos civilizadores. Relações de gênero. Escolha profissional.
ABSTRACT
Provide clarity to the feelings and reasons that emerge from the experiences of the students in Vitória-ES, between 2009-2010, and what move them toward their professional projects is the goal of this work. The notion of design used here (Velho, 1999) differs from the classical liberal understanding of human being, autonomous, free and unique, responsible for their successes and failures, underlie to studies on "career choice". The proposed idea is that the field experiences of the subjects mark their professional projects, but their deliberate conduct, not necessarily rational, expose certain life expectations, whatever is the social position of these individuals. To test these expectations, these subjects were seen in their social relations – on the intersections of class, gender, ethnicity, generations, etc. It was recognized also that the reasons and feelings (WILLIAMS, 1969) also forge professional projects of subjects under different social conditions and in spite of them. Considering that these projects carry human manifestations not always visible, often covered, the metaphor of "rhizome" (DELEUZE; GUATTARI, 2004) was useful as methodology. Evidences (GINZBURG, 2007) suggested research paths and some of the meanings attributed by those subject to these projects could be detected. The prospect of long-term historical and multiple times chaired the examination of trajectories of a selected group of subjects studied between the years 2009-2010, which favored the perception of historical continuities, but also the occurrence of certain changes in social trends. Two pre-university courses, one public and one private, in Vitória, ES, at this juncture, showed a bit of a plurality of different expectations of young people - poor, middle and upper classes, men and women, whites, blacks and browns, younger and older in relation to high school - present in their professional projects. Reasons and feelings that move them and that move is not always considered in studies on the subject, were exposed. Contributions of Elias (1990), Williams (1969), Bourdieu (2003, 2009), E. P. Thompson (2002), Löwy (1990), among others, supported evidences that the relation between individual and society, always plural and complex, express only parts of their civilizing senses. To reduce uncertainties, it was used macro and micro data (Revel, 1998). Interviews with these teenagers and advisers, observations from group dynamics and also examination of official publications, periodicals to disseminate material on vestibular, between 2009-2010, were located a tract of analytical scales difficult to exercise. Apart from relations of class, gender, skin color, generation, etc., is possible to conclude that these subjects, for reasons and various feelings, with their professional projects, move are not from their social origin, but all of them, in their new experiences and different ways, also prepare themselves to act on the senses civilizing of his time. Keywords: Field experiment. Horizon of expectations. Sensitivities. Civilizing processes. Gender relations. Professional choice.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Pirâmide Etária de Vitória.................................................................... Tabela 1 Crescimento Anual Médio do PIB: Espírito Santo e Brasil................. Tabela 2 Distribuição de homens e mulheres nos pré-vestibulares.................... Tabela 3 Comparativo de escolaridade de mães e pais dos/as
vestibulandos/as.................................................................................. Tabela 4 Qualificação dos sujeitos de pesquisa................................................. Figura 2 Movimentos contra e pró cotas na UFES............................................. Figura 3 Capa do periódico “Oportunidades Cursos e Concursos”....................
60 61 77 79 85 119 227
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 Classe Social dos/as vestibulandos/das de Vitória 2009-2010....... Gráfico 2 Escolaridade dos pais dos/das vestibulandos/das de Vitória
2009-2010...................................................................................... Gráfico 3 Escolaridade das mães dos/das vestibulandos/das de Vitória
2009-2010...................................................................................... Gráfico 4 Opções por cursos universitários no vestibular 2009 da UFES..... Gráfico 5 Percentual de vestibulandos/as 2009-2010 de Vitória que
trabalham....................................................................................... Gráfico 6 Autodeclaração de cor dos/as vestibulando de Vitória 2009-2010. Gráfico 7 Idades dos/as vestibulandos/as de Vitória 2009-2010...................
71 72 73 74 78 80 81
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CDV Companhia do Desenvolvimento de Vitória
CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e Caribe da Unesco
CEPE Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CST Companhia Siderúrgica de Tubarão
CUT Central Única dos Trabalhadores
DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudo
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
ES Espírito Santo
EUA Estados Unidos da América
FARC Forças Armadas Revolucionárias da Colombia
FBPF Federação Brasileira para o Progresso Feminino
FGV Fundação Getúlio Vargas IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IJSN Instituto Jones dos Santos Neves
ITA Instituto Tecnológico da Aeronáutica
LBA Legião Brasileira de Assistência
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
MEC Ministério da Educação
MPF Ministério Público Federal
OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OIT Organização Internacional para o Trabalho
ONG Organização Não Governamental
OV Orientação Vocacional
PEA População Economicamente Ativa
PIB Produto Interno Bruto
PNDA Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio
PNE Plano Nacional de Educação
PNUD Programa das Nações Unidas para a Educação
PPGSS Programa de Pós Graduação em Serviço Social
ProUni Programa Universidade para Todos
PUPT Projeto Universidade Para Todos
PUPT Projeto Universidade Para Todos
SECT Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia
SEDU Secretaria de Estado da Educação
SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFES Universidade Federal do Espírito Santo
UFF Universidade Federal Fluminense
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNB Universidade de Brasília
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
USP Universidade de São Paulo
USP Universidade de São Paulo
Vest UFES Vestibular da UFES
SUMÁRIO 1
1.1
1.2
1.2.1
1.2.2
1.3
1.4
1.5
2
2.1
2.2
2.2.1
2.2.2
2.2.3
2.2.4
2.2.5
2.3
2.3.1
2.3.2
2.4
2.4.1
2.4.2
2.5
3
3.1
INTRODUÇÃO...........................................................................................
“ESCOLHAS PROFISSIONAIS” E CAMPO DE EXPERIÊNCIAS...........
Educação Brasileira: elitização e Exclusão...........................................
“Escolhas Profissionais” e Projetos Profissionais..............................
“Escolha profissional” como problema teórico...........................................
Continuidades e rupturas: os projetos profissionais...................................
Os projetos profissionais localizam-se no tempo e no espaço...........
As experiências dos/as vestibulandos/as de Vitória sugerem algumas direções.....................................................................................
Mudança na Escala de Análise...............................................................
SENSIBILIDADES, MUNDO DO TRABALHO E ROMANTISMO POLÍTICO...................................................................................................
Dilemas de um Projeto Profissional: Fazer Medicina ou Design Gráfico?..................................................................................................... Razões, Sentimentos e o Mundo Trabalho............................................ Desejo de sucesso.....................................................................................
Medo do Fracasso......................................................................................
“Quero ser menos peão”: projetos, necessidade e desejo de
profissionalização.......................................................................................
Sentidos e exigências do mercado............................................................
O sistema de cotas: possibilidades, exigências de qualificação e a
marcha dos direitos....................................................................................
O romantismo das profissões.................................................................
“Mudar a vida e transformar o mundo”: a trajetória de Hanna...................
“Não quero muito sucesso”: A trajetória de Patiane...................................
Meios de comunicação e ideários de projetos......................................
O que circula sobre as profissões? O que os jovens devem escolher?.....
O que circula sobre os projetos profissionais?...........................................
Sentidos civilizadores e projetos profissionais....................................
RAZÕES, SENTIMENTOS E FEMINIZAÇÃO DE PROFISSÕES.............
Gênero e profissão: equidade na formação e no mercado de trabalho?...................................................................................................
15
38
39
46
48
55
59
68
83
90
91
98
98
103
105
109
113
122
126
128
130
131
135
137
139
141
3.2
3.2.1
3.2.2
3.2.3
3.3
3.3.1
3.3.2
3.3.2.1
3.3.2.2
3.4
4
4.1
4.2
4.2.1
4.3
4.4
4.4.1
4.4.2
4.4.3
4.5
4.6
5
Razões, sentimentos e projetos profissionais femininos .................... “Gostar de crianças”: razões e sentimentos ligados à maternidade..........
“Gosto de cuidar de gente!”: mulheres na saúde.......................................
“Querer ajudar a comunidade e ao próximo”: romantismos e feminização Costumes e Habitus no campo do gênero: continuidades e rupturas...................................................................................................... Desigualdades, Práticas domésticas e usos dos tempos...........................
Invenção de novas tradições......................................................................
Homens e espaços antes feminizados........................................................
Mulheres e espaços masculinizados...........................................................
Um balanço: o campo da profissionalização feminina.........................
PROJETOS DE CLASSE E PROJETOS PROFISSIONAIS......................
Propostas educacionais para elites e classes populares.....................
Exclusão, habitus e capital cultural........................................................ “Vocês são uns fracassados”......................................................................
O “sentido do jogo”..................................................................................
Projetos de Classes..................................................................................
Costumes e tradições das classes média e alta.........................................
Tradição e Mímesis.....................................................................................
Tradições das classes mais baixas............................................................
Para onde se dirigem as classes?..........................................................
Ressentimentos também orientam projetos profissionais...................
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................
REFERÊNCIAS..........................................................................................
APÊNDICE A - Questionário para alunos/as vestibulandos/as de
2009.............................................................................................................
APÊNDICE B – Termo de consentimento livre e
esclarecido..................................................................................................
APÊNDICE C – Opções de homens e mulheres por cursos
universitários...............................................................................................
ANEXO A - Gráfico.....................................................................................
ANEXO B - Tabela .....................................................................................
147
149
158
163
169
170
178
179
182
186
189
191
194
200
205
209
212
216
219
224
229
235
240
257
259
260
262
263
15
INTRODUÇÃO
O Objeto de Pesquisa
Hoje sabemos ou suspeitamos que as nossas trajectórias de vida pessoais e colectivas (enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem pavio. No entanto, este saber, suspeitado ou insuspeitado, corre hoje subterraneamente, clandestinamente, nos não-ditos dos nossos trabalhos científicos. No paradigma emergente, o caráter autobiográfico e autoreferenciável da ciência é plenamente assumido (SANTOS, 1996, p. 53).
Assumir esses “saberes e fazeres” que correm no subterrâneo de toda a
produção científica significa tratar de trajetórias de pessoas, que revelam em suas
singularidades atualizações de modos de vida, forjados na história e na cultura de
um povo. Significa, ainda, mostrar que em toda a construção de um objeto científico
há uma história de motivações e implicações pessoais e coletivas, o que nos faz,
incessantemente, buscar explicações para nossos próprios fazeres cotidianos.
Assim, aspectos da minha própria trajetória, além de elemento motivador, sugerem
pontos de convergência entre as trajetórias que serão tratadas. O ponto em comum
dessas histórias é o desvendamento dos processos sociais presentes nos projetos
profissionais, o que sugere uma inter-relação com inúmeros campos como: acesso à
informação, mercado de trabalho, trajetória escolar, educação familiar, inserção
econômica e social, entre outros. Esses processos sociais, compreendidos em seu
caráter processual – contribuições de Elias (1990) – vinculam-se às experiências
humanas. Vinculam-se à construção de disposições para a ação, de significados
sobre si e sobre o mundo e de sentidos civilizadores que se fazem num campo1
cultural e social ao qual pertencem os indivíduos. As trajetórias investigadas
mostram que passar no vestibular de uma Universidade Pública é um sentido que
move as experiências de vestibulandos/as no presente e delineia um horizonte de
expectativas em relação à futura profissão. São jovens que fazem planos. Portam
projetos de vida.
1 Assumirei aqui a noção de campo proposta por Bourdieu (1983), segundo a qual se constitui num espaço social de dominação e de conflitos, que funciona com certa autonomia e com regras próprias de organização e de hierarquização social. Nesse campo, os indivíduos agem de acordo com a posição em que ocupam no interior dele e lutam, constantemente, pelo controle da produção e pelo direito de classificarem e hierarquizarem certos bens simbólicos produzidos. Nessa luta, impõe-se como padrões culturais mais valorizados – ou até como a única forma cultural existente – àqueles pertencentes a grupos dominantes.
16
Dar nitidez aos sentimentos e razões, que emergem dessas experiências as
quais movem os projetos profissionais de vestibulandos/as de cursos preparatórios
para o vestibular em Vitória-ES é o objetivo deste trabalho. Muitas questões
emergem nesse campo: O que significa escolher uma profissão? O que, de fato,
motiva essas escolhas? Em que medida os lugares organizados em classes sociais,
raça e gênero interferem nas opções por profissões? Existem processos sociais
mais amplos que direcionam essas opções? Que processos são esses? As
experiências que vivem cotidianamente e o campo cultural, ao qual pertencem,
possuem algum impacto? E, qual o impacto da tradição familiar e do mercado de
trabalho? As representações que se constroem acerca das profissões,
desempenham alguma influência na opção por carreiras? Enfim, essas e outras
questões apontam para a complexidade envolvida na opção por uma profissão na
atualidade, não apenas por conjugar diversos fatores implícitos e explícitos os quais
compõem a esfera política, social, econômica, cultural e pessoal desses jovens,
mas, sobretudo, em função da complexidade que compõe o real e as diferentes
formas de interpretá-lo.
Isso me reporta ao fato de que diferentes sujeitos vivem e traduzem, de
maneira particular, as experiências tanto em “razão quanto em sentimentos”. Assim,
o que move suas histórias é aquilo que por muito ficou oculto dos estudos
científicos: são as sensibilidades2. As sensibilidades carregam as marcas de lugares
sociais transitáveis como classe social, etnia, gênero e imprimem movimentos
específicos e singulares na trajetória individual. Somente a partir da compreensão de
trajetórias de vida é possível compreender suas “escolhas”.
Aliás, é preciso – e o que farei logo de início – problematizar a própria ideia de
“escolha”, por pressupor a concepção de um indivíduo autônomo que opta
deliberadamente por uma profissão, o que atualiza uma visão liberal de ser humano,
visto como responsável por seus sucessos ou fracassos. Por compreender que não
há um determinismo do indivíduo sobre o curso de sua vida e, tão pouco do meio
social sobre o mesmo, utilizo a expressão “projeto profissional” em lugar de “escolha
profissional” – em função disso, quando precisar fazer uso do termo “escolha”, este
2 As sensibilidades dizem respeito justamente a uma forma de apreensão do mundo para além do conhecimento racional científico como indica Pesavento (2004). Tratam, portanto, de sensações, emoções, valores e sentimentos. É a forma pela qual os indivíduos interpretam o mundo não apenas pela via da razão, mas também do conhecimento sensível. O desafio é capturar “as unidades de sentido de uma determinada época” (p. 5), captar a forma de expressão da vida.
17
virá acompanhado por aspas. Proponho uma mudança no termo em função da
adoção de outra forma de conceber a relação indivíduo e sociedade, pautada não
apenas nas contribuições de Elias (1990), mas, também, nas construções de Velho
(1999) sobre a noção de projeto. Segundo Velho o projeto diz respeito a uma
“conduta organizada para atingir finalidades específicas” (p. 40)3. Essa conduta não
é necessariamente racional, mas resulta de deliberação consciente que se faz a
partir de circunstâncias presentes no campo de possibilidades em que está inserido
o sujeito. Isso significa que as condutas humanas se fazem em meio a limites,
proibições, transgressões e possibilidades. O projeto existe como forma de
comunicação, de expressão e de articulação de interesses, objetivos, sentimentos e
aspirações para o mundo. Além disso, os projetos são dinâmicos, complexos, estão
em constante reelaboração e se fazem em função de negociações com a realidade.
Dessa forma, os projetos profissionais portam sentidos civilizadores e produzem,
assim como são produzidos por uma rede de significados, ou seja, a cultura.
A tese, portanto, defendida é que os projetos profissionais resultam de
constantes negociações com a realidade que se fazem rumo a sentidos civilizadores
de cada tempo histórico. Não há determinismos sociais, econômicos ou psicológicos
na construção dos projetos, embora os indivíduos de uma mesma época partilhem
de certos sentidos que orientam às suas ações. Esses sentidos ganham contornos
específicos na esfera individual, se traduzindo em razões e sentimentos que cada
um faz uso em seu cotidiano. Assim, apesar de não haver determinismos na opção
por uma profissão, todos os processos sociais, que atravessam o indivíduo, são
parte de suas “escolhas” na medida em que passam a integrar suas sensibilidades.
É o que pode ser observado em relação ao gênero, cor, classe social, geração,
educação, etc.
Com a noção de projeto profissional é possível, então, vislumbrar a interação
indivíduo e sociedade. Além disso, inclui a noção de temporalidade à escolha de
uma profissão. Visto que esta não se faz em um momento estanque, mas resulta de
uma história individual e coletiva de deliberações mais ou menos conscientes.
3 Para a definição desta noção, Velho (1999) utiliza, dentre vários autores, as contribuições de Schutz nos livros “The problem of social reality” e “Fenomenologia das relações sociais”. De acordo com o autor, o projeto existe no mundo da intersubjetividade e, “por mais velado ou secreto que possa ser, ele é expresso em conceitos, palavras, categorias que pressupõem a existência do Outro.” Além disso, ele é “instrumento básico de negociação da realidade com outros atores, indivíduos ou coletivos” (p. 103).
18
Caminhos que Levaram à Construção do Objeto
Ao observar o caráter “autobiográfico” e “autoreferenciável” da ciência, como
indica Boa Ventura Souza Santos, verifico que dele retiro elementos para meu
primeiro movimento de construção do objeto. Localizo, em minha história pessoal e
profissional, os primeiros achados motivadores desta pesquisa. Experiências vividas
na trajetória pessoal indicam movimentos de recusa à identificação com a figura
materna, como afirmações e coadunações a outra forma de ser mulher. Registro em
minhas memórias trajetória de mulheres de minha família, marcadas por
humilhações, dependência e submissão a figuras masculinas. Na época, incapaz de
compreender as hierarquias de gênero, restou-me o desejo pela afirmação de outras
formas de viver. Ao que parecia, a independência financeira conquistadas pela
dedicação aos estudos e à carreira seriam boas estratégias para a fuga dos lugares
ocupados pelas figuras femininas que conhecia. A maternidade e o matrimônio,
vivido aos 20 anos, entretanto, trouxeram de volta dilemas presentes na história de
muitas outras mulheres, em que a dedicação à carreira é dividida com os cuidados
aos filhos e à casa. A partilha desigual do tempo, em tarefas domésticas e cuidados
com filho, trouxe algumas consequências também para a trajetória profissional. Isso
me despertou, então, para a relevância de conhecer mecanismos que, recriando
tradições e costumes, legitimam hierarquias sociais de gênero, marcas de tantas
trajetórias femininas. Foi, também, o modo de associar esta pesquisa às referências
voltadas no pensar de novas relações entre homens e mulheres. Pude, aí,
incorporar o entendimento de que os processos de produção de identidade dos
indivíduos não são naturais ou estáticos, mas se constroem ao longo da história
individual, inscritas num determinado momento histórico e num dado contexto social.
Assim, os dilemas vividos como mulher, em relação ao desejo de construir uma
família e, ao mesmo tempo, de afirmação profissional, começaram a me fazer
pensar que os projetos profissionais não se fazem ao largo das relações de gênero.
Além disso, os limites e possibilidades vividos em função do lugar social que
ocupara, serviram para fomentar minhas questões sobre essa temática.
Movimentos da trajetória pessoal misturam-se aos da profissional. A prática
como orientadora profissional colocou-me diante do desafio de repensar tanto as
abordagens teóricas quanto as práticas, que incidem sobre os projetos profissionais,
19
sobretudo aquelas pautadas numa visão liberal de homem e apoiadas,
exclusivamente, na aplicação de testes psicométricos. Percebi limites e grandes
lacunas sobre o entendimento da dinâmica das interações sociais, úteis para se
tratar do assunto.
Recupero em minhas memórias, um exemplo emblemático desses limites.
Destaco uma fala, ao mesmo tempo singular e plural, de uma jovem de 16 anos,
estudante de escola pública, negra que eu atendera no projeto de extensão
“Orientação Vital Vocacional” 4. Quando participa de uma dinâmica sobre profissões,
recorta a foto de uma mulher executiva de uma revista e explica a sua escolha: “O
que eu quero ser?... Eu quero andar de terninho, salto alto, bem arrumada,
escovada, maquiada, com pasta de couro, andando para lá e para cá. Quero
trabalhar num prédio bem alto e ‘chique’” e apontou para a figura. Nessa fala,
emerge o desejo de realização profissional, por meio da imagem de uma figura
feminina, aparentemente, bem-sucedida5. Mas, a qual profissão essa menina se
referia? O que, exatamente, gostaria de fazer? Que caminhos trilhar para chegar lá?
Ela não sabia... Na época, nosso trabalho consistiu na aplicação de testes
vocacionais e em, a partir dessa representação, tentar desmistificar aspectos
imaginários e tornar sua opção mais consciente – hoje sei da impossibilidade de
fazê-lo. Mas, havia algo mais. Essa fala ecoou durante anos, sobretudo por portar
significados que à época eu não percebia, não porque estivessem escondidos ou
distorcidos pelo efeito de alguma ideologia. Estavam lá, mas apenas estudos e
experiências posteriores possibilitaram-me vê-los. Estava diante da fala de uma
menina que, na sociedade atual, indicava a atualização de antigos modos de “ser
mulher” e de localizar-se no “mundo do trabalho” de uma dada “sociedade
capitalista”. Isso reforça a minha percepção sobre a necessidade de adentrar
estudos sobre o contexto e a produção de indivíduos sociais.
4 O projeto de extensão “orientação vital vocacional”, no qual minha participação se deu como extensionista, data de 1998, trata-se de uma ação do programa de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Éramos seis extensionistas e os atendimentos, sob a supervisão do Dr. Elmo de Oliveira Martins, eram feitos, somente, aos estudantes de escola pública da grande Vitória. 5 Erikson (1987), um importante estudioso no campo da adolescência, afirma que neste período irá definir-se de fato, a identidade sexual, profissional e ideológica (político-religiosa). As transformações que passaram os jovens, nessa etapa, resultarão num sentimento de “eu sou”. Utiliza uma base fundamentada na teoria psicanalítica em que concebe que as escolhas estão relacionadas com aspectos inconscientes do adolescente, pertencentes à dinâmica das pulsões e das relações objetais vividas com as figuras maternas e paternas. Embora não seja esse o pressuposto adotado na pesquisa, partilho a ideia de que a escolha da profissão marca, profundamente, a identidade de uma pessoa e, define, em certa medida, o lugar a ser ocupado socialmente por ela.
20
Nos estudos de Michel Foucault (1974, 1997, 2000 e 2004), encontrei
reflexões importantes sobre a produção dos sujeitos históricos, entendidas como
resultado de uma trama de poder e saber local. Nessa orientação, desenvolvi a
pesquisa de Mestrado em Educação na Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES): “Um estudo sobre as políticas de aprendizagem/cognição que se
materializam nas atividades educativas escolares”. O objetivo foi verificar como o
mundo do trabalho impacta as formas de produção das subjetividades pela via dos
processos ensino-aprendizagem, presentes nas práticas educativas escolares.
Nesse estudo, pude verificar que as formas de aprendizagem, atualizadas nas
práticas educativas, não dizem respeito apenas a uma concepção científica, mas,
principalmente, a uma questão política. Isso porque as formas de entender e de
conduzir os processos de aprender, efetivadas cotidianamente, se dão nos marcos
próprios a um dado contexto e, nele, são produzidas: desse modo, parecem atuar
sobre a rede de relações sociais e assim, forjar subjetividades6. Modos de ser, aí
produzidos, evidenciam as novas exigências do mercado de trabalho: um
trabalhador flexível, polivalente, criativo, capaz de aprender a aprender, frente às
inovações tecnológicas. Essas políticas conflitam, entretanto, com antigas práticas
que atuam na formação de alunos/as-trabalhadores/as no estilo taylorista-fordista,
marcadas pela rotina, repetição e mecanização dos processos de ensinar e de
aprender, entre outros. Muito embora nesse espaço de conformação, de formação
de modos de ser com vista ao mercado de trabalho, há possibilidades de luta e de
invenção de outros modelos e outras formas de ser e estar no mundo. Os estudos
de Virgínia Kastrup (1995, 1997, 1999), Félix Guattari (1996), Maturana e Varela
(1995), foram fundamentais para o desenvolvimento desse trabalho inicial e, ainda,
as contribuições de Harvey (1998), Antunes (1995) e Sennet (2001) que abordam o
impacto do mundo do trabalho na formação de modos de ser trabalhador,
desenhados no interior da instituição educacional. A perspectiva desenvolvida no
mestrado contribui, então, para alargar a noção de contexto e levou-me a considerar
o impacto da formação educacional, atrelada às necessidades impostas pelo modo
capitalista de produção, nos projetos profissionais.
6 Verificamos, ainda, que os discursos modernos sobre a “competência”, “aprender a aprender”, “criatividade”, entre outros, que se desenham no cenário educacional como inovadores, expressam as mudanças propostas pelo novo modelo de reestruturação da economia capitalista - a chamada reestruturação produtiva.
21
Continuaram outras inquietações. A questão de gênero atualizava-se naquela
lembrança referida a uma forma de representar o feminino: “quero andar de terninho,
salto alto, bem arrumada, escovada, maquiada”... E se misturava a tantas outras de
jovens que atendia: “os homens são bons em cálculos”; “mulheres são melhores em
história e geografia”; “psicologia é coisa de mulher”; “engenharia é mais para
homem”; “nunca vi um homem assistente social ou pedagogo”. De fato, ganhava
consistência a ideia de que o campo do gênero atua nos projetos profissionais. No
entanto, essa questão assume contornos mais bem definidos a partir dos estudos
realizados no Programa de Doutorado em Serviço Social da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ), cujas rupturas e continuidades, com estudos anteriores,
foram fundamentais para um melhor entendimento das relações de gênero. A visão
que possuía, advinda, sobretudo, da participação de movimentos sociais no Espírito
Santo, foi marcada por binarismos e por um forte apelo às teorias do patriarcado, o
que limita as possibilidades de explicações fora dos esquemas de dominação
tomados em oposição e definidos como próprios às relações entre masculino e
feminino7. Os estudos de Scott (1990, 2002), Heilborn e Sorj (1999), Nicholson
(2000), entre outros, auxiliam a compreensão do aspecto relacional do gênero. Ou
seja, um gênero só existe em função do outro, de tal forma que tanto o processo de
dominação, quanto o processo de emancipação envolvem relações de interação,
conflito e poder entre homens e mulheres. Também contribuem, sobretudo, os
estudos de Scott (1990), para o entendimento de que as relações sociais são
legitimadas e construídas pelo gênero e que, em função disso, pode ser considerado
uma primeira maneira de dar significado às relações de poder.
Últimos movimentos importantes para a delimitação do objeto de pesquisa
também se fizeram ao longo do curso de doutoramento. Ampliei as referências para
a compreensão das relações sociais e das relações entre indivíduo e sociedade a
partir do contato com Bourdieu. Com isso, passei também a considerar a relevância
do estudo das classes, de raça e geração no âmbito dos projetos profissionais. A
trajetória da jovem, em sua opção indefinida, mas em busca de “sucesso”, adquiriu
novos significados. Percebi que representações sobre modos de ser, significativos
de sucesso, pertencem a um dado campo cultural e associam conceitos que
7 Vale lembrar que os movimentos feministas, ao longo de sua história, foram marcados pelo paradoxo da diferença. Segundo Scott (2002), ele têm reafirmado a “‘diferença sexual’ ainda que pretenda eliminá-la”. Isso porque se pautaram em políticas democráticas que igualaram individualidade e masculinidade.
22
poderão orientar os projetos profissionais. Essas representações circulam no meio
social e formatam determinados capitais culturais, bem como comportamentos. Ser
mulher é uma coisa, mas ser mulher, negra, pobre, estudante de escola pública
muda expectativas; efetivamente, isso tem impactos em sua vida, como ela mesma
registra: “Não sei se consigo passar em Administração na UFES... Se eu não passar
no vestibular este ano, não vou tentar novamente... Preciso trabalhar logo.” A
posição que ela ocupava, por outro lado, também traduzia o desejo de “ser” algo que
lhe proporcionasse um futuro diferente. Buscava, assim, fugir de certas
determinações postas por condições sociais de classe como ser filha de empregada
doméstica e de eletricista. De fato, há lutas e tensões por conhecer no interior desse
campo.
Avalio nesse quadro o quanto explicações psicologizantes sobre as “escolhas
profissionais” têm escondido aspectos sociais, econômicos, históricos e culturais e
acabam por atribuir aos fatores internos do desenvolvimento do psiquismo a
responsabilidade de determinar a opção profissional dos adolescentes. Por outro
lado, não pretendo cair num extremo oposto, imputando essas “escolhas” apenas às
estruturas sociais, deixando de explicitar os mecanismos pelos quais determinações
presentificam-se nas diferentes trajetórias dos sujeitos. Uma perspectiva que articule
indivíduo e sociedade numa relação dialética, em que o indivíduo não apenas
atualiza e reproduz as influências de seu contexto, mas as articula em seu interior, é
afirmada neste estudo. Para isso, foi necessário alargar o campo de pesquisa e
buscar em outras áreas contribuições para se repensar essa questão.
Os estudos desenvolvidos na área da história política e cultural8,
acompanhados das orientações da professora Suely Gomes Costa, propiciaram o
entendimento de que a análise da trajetória dos indivíduos revela, em sua
singularidade, atualizações dos modos de ser, forjados no tempo histórico e na
cultura. As experiências humanas foram, então, relidas a partir de contribuições de
8 A história política e a história cultural são praticamente indissociáveis. O foco da política é o estudo da maneira pela qual os grupos de seres humanos organizam suas vidas e dirigem ações que determinam as relações no interior de grupos, o que implica necessariamente na criação de sentidos, significados e valores que organizam a vida coletiva, ou seja, implica na questão cultural. Esse campo, então, lida com realidade e pessoas na temporalidade. Sobrepõe-se à história das mentalidades e à nova história (RÉMOND, 2003). Remond (2003) identifica que a história política era considerada factual, subjetivista, psicologizante e idealista e aponta para uma história política renovada, na historiografia francesa, em função de mudanças no cenário político. Guerras, relações internacionais, mudanças nas políticas públicas dão crédito ao fato de o político ter consistência própria e “uma certa autonomia em relação aos outros componentes da realidade social.
23
Koselleck (2006), Elias (1990), Williams (1969), Velho (1999), Pesavento (2004),
Rémond (2003), Thompson (2002), Revel (1998), entre outros.
De minha aproximação com esse conjunto de informações, resultou a
compreensão de algo trivial: as experiências humanas situam-se num tempo
histórico e, caracterizam esse tempo de muitas complexidades. Examinar a relação
espaço-tempo no qual se situam as experiências dos sujeitos traz os desafios de
enfrentar o conhecimento das interseções de processos de longa duração histórica
com outros tempos múltiplos. Em geral, busca-se no passado as explicações para o
presente. A proposta deste trabalho se fez por outra via: são as experiências
inscritas e sentidas, no presente, que podem propiciar a compreensão do hoje,
perspectiva afirmada por Koselleck (2006). Busco compreender os projetos
profissionais a partir da análise das experiências no presente e com elas faço uma
releitura do passado. Nessa orientação, associo ainda, as contribuições de
Raymond Williams (1969) sobre as “estruturas de sentimentos”9. Seu intuito foi dar
visibilidade ao que foge ao fixo, ao que já está instituído e que, exatamente, por isso,
pode vir a não se manter. Tratar dessas estruturas, nas palavras do autor, significa
definir “[...] uma experiência social que está ainda em processo” (p. 134). Trata-se,
então, de pensar a formação dessas estruturas de sentimento – que persistem e que
mudam – nos projetos dos sujeitos que se preparam para o ingresso no Ensino
Superior. Quais as razões e sentimentos que portam? O que sonham? Que
aspirações e desejos esperam efetivar com seus projetos profissionais? O que move
esses projetos? Medo do fracasso, desejo de sucesso, querer seguir a profissão dos
pais... Muitas percepções, sensações e sentimentos misturam-se, mas é exatamente
isso que dá sentido aos projetos e que orienta as ações individuais.
Relevância do Tema
Localizo a relevância da pesquisa, em primeiro lugar, às contribuições que
traz ao próprio campo de estudos da área de orientação profissional. Nesse sentido,
significou um esforço de preenchimento de lacunas de conhecimento sobre as
9 O conceito desenvolvido pelo autor opõe-se ao conceito de ideologia, entendida tanto como visão de mundo de uma classe como ao conjunto de idéias, crenças e valores dominantes. O conceito de ideologia impede de se perceber valores e significados emergentes, do novo.
24
relações indivíduo e sociedade com vistas à compreensão dos projetos profissionais.
Passando por teorias, que focam a medição de características psicológicas
individuais – vertente ainda forte na atualidade – às teorias que explicam a
problemática pela via da psicanálise, da psicodinâmica, do desenvolvimentismo ou
do processo decisório, o fato é que essas tendências psicológicas ainda não
abordaram, de maneira suficiente, como se dá as interações entre indivíduo e o
contexto em que vive. Essas interações constituem-se em ponto fundamental para
se compreender o fenômeno em questão.
É possível situar algumas tendências atuais nesse campo de estudos. Há
teorias que focalizam as características pessoais e os processos psíquicos que
governam as “escolhas profissionais”, dando pouca atenção ao campo social no qual
o indivíduo está inserido. Outras, consideradas teorias econômicas, postulam que a
estrutura de salários e das profissões é que irá determinar o caminho a ser seguido
pela força de trabalho, desconsiderando seus gostos, desejos, vontades, etc. Há,
ainda, as consideradas sociológicas, que focalizam a explicação na reprodução da
estratificação da estrutura social em detrimento das características individuais ou da
forma de organização para o trabalho. A partir desse quadro, vê-se que ora a
explicação para o fenômeno da “escolha” centra-se ora no indivíduo, ora em
processos sociais, como se fossem entidades opostas e separadas. O que abre
caminhos para pesquisas que melhor investigue as relações entre indivíduo e
sociedade, e, as considere na feitura de projetos profissionais.
Esta pesquisa, também, traz contribuições a um terreno fértil de pesquisa
sobre gênero e profissões. Os estudos indicam que, apesar do aumento da
participação feminina no mercado de trabalho e do maior tempo de dedicação das
mulheres aos estudos, há uma concentração de mulheres em profissões precárias
que pagam menores salários, sobretudo, na área da educação, da saúde e em
programas assistenciais. A feminização de profissões tem sido investigada por
Bruschini (2007), Bruschini, Ricoldi e Mercado (2008), Dedecca (2008), Hirata e
Kergoat (2008), Schweitzer (2008), Salas e Leite (2008), Marry (2008), Henau e
Puech (2008), Chamon (2006), Lopes e Leal (2005), Apple (1987), entre outros.
Demonstram que em profissões tradicionalmente femininas como magistério, serviço
social e enfermagem há uma concentração de baixos rendimentos e condições
precárias de trabalho. É fato que, em exames conjunturais, vê-se o ingresso
crescente de mulheres em profissões como direito, medicina e engenharia,
25
profissões tradicionalmente, valorizadas. Por outro lado os estudos citados também
observam, que o ingresso maciço de mulheres, em determinadas profissões, inicia
uma tendência na queda de salários e de prestígio das mesmas. Mas, por que isso
ocorre? Ao que tudo indica, e o que procuro mostrar, as opções profissionais
femininas bem como a feminização de profissões apontam para a construção de um
campo de significações sobre o feminino e o masculino, assentada numa
experiência legitimada social e historicamente, e que se atualiza na construção dos
projetos profissionais. Do mesmo modo, as interseções das relações sociais de
gênero, com as de classes, de raças/etnias dentre outras, situa este estudo numa
busca de caminhos de entendimento sobre processos sociais mais amplos, que se
inscrevem no presente impactando as experiências dos jovens e adultos que estão
por ingressar no Ensino Superior.
Ocupar-se desses processos como reveladores de sensibilidades dos
entrevistados, permite-me ainda, situar a relevância deste estudo, mesmo que em
caráter preliminar, num conjunto de reflexões de duas questões políticas cruciais da
atualidade: as transformações do mundo do trabalho e as práticas de
democratização do ensino, sobretudo, o superior. As transformações do mundo do
trabalho são tratadas por Antunes (1995, 2009), no desenvolvimento da tese da
‘processualidade do mundo do trabalho’ no atual estágio do capitalismo. De um lado,
destaca a diminuição da classe operária industrial tradicional, com a entrada da
robótica, microeletrônica e outras novas tecnologias nas indústrias. Por outro, indica
o crescimento do assalariamento no setor de serviços e nas formas de emprego
subproletarizadas como indício da expansão do trabalho parcial, temporário,
precário, subcontratado e terceirizado. Todas essas transformações vêm
acompanhadas de impactos na subjetividade dos indivíduos, em suas formas de
perceber, ser, pensar, agir, comportar-se e sentir. É o que tem mostrado os estudos
desenvolvidos por pesquisadores sociais como Sennet (2001), Deleuze e Guattari
(2004) e Dejours (2004).10 Pesquisas no campo educacional também foram
10 Os impactos dessas transformações na subjetividade do trabalhador foram objeto de investigação de Sennet
(2001), em a “corrosão do caráter”, que mostra uma relação entre a flexibilidade exigida pelas novas formas de gestão do capitalismo atual e a ansiedade produzida nos trabalhadores. Junto a ela, Sennet mostra que o principal sentimento presente nos trabalhadores é o medo de perder o controle e deixar sua vida emocional à deriva. Deleuze e Guattari (2004) também denunciam a produção em larga escala que se faz através das instituições sociais das quais emerge uma “subjetividade capitalística” atrelada aos novos arranjos do sistema. Dejours (2004) também traz contribuições para a área de trabalho e subjetividade. Mostra, na “psicodinâmica do trabalho”, o quanto as condições adversas da atividade laborativa no capitalismo podem trazer sofrimento psíquico ao trabalhador. A noção de sofrimento é central em sua obra e implica um estado de luta constante do sujeito contra as forças que o estão empurrando em direção à doença mental. A partir dessa percepção o autor
26
desenvolvidas com o intuito de tratar do impacto na formação escolar dessas
transformações do mundo contemporâneo – dentre elas, destaco a própria pesquisa
que desenvolvi no mestrado, Almeida (2002). Os trabalhos de Frigotto (1996, 2001)
e Gentili (1996, 2001), nessa perspectiva, demonstram a criação de uma nova
ordem social e cultural a partir das transformações do trabalho que impacta todas as
esferas da vida humana – inclusive a educação e a formação de novos modos de
existência.
Atenta a tudo isso, esta tese vê-se diante de um enorme desafio quando
reconhece a necessidade de adentrar nesse universo, de maneira a investigar como
os processos mais amplos da sociedade estão compondo o campo de experiência
desses indivíduos. Que sentidos, esses processos, imprimem às conquistas, aos
sucessos e insucessos dos jovens que estão buscando uma profissão? E como
impelem, ou não, jovens e adultos na busca por uma formação superior?
Assim, tornou-se igualmente relevante avaliar as práticas de democratização
do ensino, sobretudo o superior, visto como modo de acessos a direitos sociais.
Organizações do trabalho têm priorizado análises sobre o tema assentadas no
modelo político-econômico-social contemporâneo, com foco nos nexos entre
profissões e políticas neoliberais, globalização e inovações tecnológicas (ANTUNES,
1995, 2002, 2009). O discurso sobre a “sociedade do conhecimento” ou o
“paradigma do conhecimento”, tem atribuído grande valor ao capital intelectual e, por
isso, à valorização da capacitação e da qualificação das pessoas no mundo do
trabalho (ZARIFIAN, 2003), situando incentivos à ampliação da escolarização e
proposições de garantia de direitos à educação. Essas proposições têm orientado
medidas enunciadas nas políticas de cotas no Ensino Superior e em projetos
estaduais e federais, como o Programa Universidade para Todos (ProUni)11, o
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)12 e Programa “Nossa Bolsa”, uma
expressão de políticas de caráter compensatório13. Essas têm facilitado o acesso de
jovens a instituições de Ensino Superior, convocados, a todo instante, num país
explica em que consistem as estratégias utilizadas pelos trabalhadores para enfrentar esse sofrimento e como elas surgem e evoluem. 11 Informações disponíveis em: http://ProUni-inscricao.mec.gov.br/PROUNI/inf_est.shtm acessado em
03/04/2020. 12 Informações disponíveis em site: www.enem.inep.gov.br. Acessado em 03/04/2010. 13 Informações disponíveis em: www.nossabolsa.es.gov.br. Acessado em 03/04/2010.
27
cujas práticas educativas têm sido precárias e marcadas por exclusão das classes
sociais menos favorecidas. Nesse contexto, há quem se posicione à favor das
políticas compensatórias, alegando ser uma forma de restabelecimento de direitos
negados, historicamente, a um grupo excluído. Como há aqueles que se posicionam
contra tais políticas, seja em função da afirmação da meritocracia ou do
reconhecimento de que essas políticas podem acirrar as diferenças entre negros e
brancos, ricos e pobres, homens e mulheres, entre outros. Para além desse debate,
este trabalho intercepta o campo de interesse dessas políticas ao voltar-se para
experiências dos indivíduos que pretendem ingressar na Universidade Federal do
Espírito Santo; sua relevância está nessa busca de compreensão de contingências
nas quais as expectativas profissionais se dão, considerando as orientações de
políticas compensatórias. Outra relevância da pesquisa localiza-se nas razões para profissionalização,
quando são restritos os achados que retratem a constante dinâmica das profissões e
suas ressignificações a cada conjuntura. Há uma concentração de estudos sobre as
profissões, tradicionalmente, prestigiadas como medicina, direito e engenharia
(BARBOSA, 1998, 2003; BONELLI, 2005) e sobre as profissões em que
predominam a feminização ou um caráter excludente como serviço social, nutrição,
enfermagem e magistério (APIREBENSE; BARREIRA, 2008; ENGUITA, 1989). A
contribuição dessa pesquisa, ao campo de profissionalização, dá-se no
detalhamento de razões e sentimentos que emergem das experiências de indivíduos
concretos e que colocam determinadas profissões em seu horizonte de expectativas.
Contribuições Teórico-Metodológicas
Com o objetivo de dar visibilidade ao campo de experiências dos sujeitos,
para compreender como constroem seus projetos profissionais, este trabalho viu-se
diante de desafios ao examinar contribuições da história política renovada em muitos
paradigmas: restaurar o lugar do sujeito na história, colocar em dúvida o
determinismo do passado sobre o presente e recuperar a análise das sensibilidades
28
como lugar de formação das lutas sociais 14. Nessa orientação, pensar as estruturas
de sentimentos (WILLIAMS, 1969) e, portanto, sensibilidades que emergem dos
processos de vivência de cada tempo, favorece o entendimento das contingências
em que práticas e hábitos sociais – sempre múltiplos e ambíguos – organizam-se.
Nessa perspectiva, as sensibilidades – razões e sentimentos – com que os
indivíduos expressam o que vivem, estão nas formas pelas quais a representam, lhe
conferem sentidos, e orientam suas escolhas. As reflexões de Bourdieu (2004, 2007)
sobre o habitus, entendido como um conjunto de maneiras permanentes e duráveis
que foi adquirido a partir de como os indivíduos representam e percebem a
realidade, convergem para a relevância de examinar essas sensibilidades15. O
habitus não se restringe apenas à esfera individual, mas experiências socialmente
partilhadas; desse modo, o autor expõe a vida social, mas, sem perder de vista a
posição social de origem do indivíduo. As ações humanas, organizadas pelo habitus,
são construídas nas condições de existência material e espiritual vividas,
historicamente, por um grupo; elas se fazem em vários “campos”, ou seja, em
espaços estruturados a partir da distribuição desigual de bens materiais e
simbólicos.
Com essas contribuições, entrevi a possibilidade de compreender que os
projetos profissionais se fazem em função de um conjunto de ações, percepções,
interesses, etc. os quais os indivíduos constroem ao longo de suas vidas e que, de
maneira consciente ou não, mantêm ou elevam a posição que ocupam na
distribuição dos bens materiais e simbólicos de um campo social. Assim, admitindo o
habitus como construído em função de determinadas condições constituintes de
campo sociais, tornou-se possível perceber a relevância de examinar os projetos
profissionais a partir de lugares e de atributos dos sujeitos junto a certos padrões de
comportamento, bem como de determinadas visões de mundo dos jovens. Essa veio
a se construir na matéria reconhecida nas entrevistas selecionadas para esta
14 Os estudos sobre sensibilidades no âmbito da história, presentes nas abordagens marxistas de Raymond Wlilliams (1969), Keith Thomas (1988) e E. P. Thompson (2002); são retomadas, mais recentemente, por Bourdieu; na história cultural são fundamentais as contribuições de Le Goff, de Certeau e de Chartier. Na antropologia, Durand representa essa perspectiva e, na filosofia, Castoriadis trata do tema. No Brasil, o tema ressurge nas diferentes tradições dos estudos culturais. 15 Sua perspectiva se desenvolve pelo viés da sociologia numa alternativa interacionista e dialética que foge tanto de explicações meramente subjetivistas quanto objetivistas, em que procura fazer uma mediação entre a instância social e as práticas individuais.
29
pesquisa. A construção do objeto de pesquisa foi permeada pela ideia que os
indivíduos constroem suas visões de mundo de maneira ativa e com uma
(re)construção nos deslocamentos de determinadas posições dos indivíduos no
interior de seu campo. Mas como adentrar nesse campo de análise?
Inicialmente, a orientação metodológica seguiu um caminho mais
macroanalítico, o qual se revelou insuficiente para a análise do problema proposto.
Era preciso penetrar a espessura do real, para dar visibilidade à construção de
razões e sentimentos, que acompanham os projetos profissionais, de modo a
entender sentidos/significados que os orientam. O que foi possível com a pesquisa
qualitativa. Aproximar-me, entretanto, não foi fácil. Há muita controvérsia e polêmica
em torno dessa questão. Além da crítica de interferência do sujeito em seu objeto de
estudos, feita por aqueles que, envoltos na ilusão da ciência moderna, crêem na
neutralidade/objetividade da ciência, há também outro conjunto de críticas que
denunciam a impossibilidade de generalização de resultados obtidos em uma
análise de caráter local. Os estudos nos quais são proferidas tais críticas pautam-se,
em geral, em macroanálises, em esquemas generalizantes do pensamento e numa
outra ilusão moderna: a de acreditar que o mundo funciona como uma máquina e
que é possível fragmentá-lo e entendê-lo a partir do conhecimento dessas partes.
Há limites, portanto, das abordagens quantitativas para a compreensão do real, que
é múltiplo e sujeito a transformações. Isso não significa, necessariamente,
abandonar a metodologia quantitativa de pesquisa, mas apenas dominar seus
limites diante da complexidade dos fenômenos que se desenham no campo social.
Conhecer os jogos de escalas postos pelas relações entre macro e a microanálise,
associadas, permite dominar as imprecisões de conhecimento que se dão numa e
noutra abordagem. A perspectiva qualitativa faz expressar aspectos ocultos das
macroanálises e oferece um modo de contornar limitações de conhecimento,
segundo Revel (1998).
Procurei, então, recorrer a microanálise: a partir do exame de trajetórias de
alguns estudantes, analisar razões e sentimentos que presidem projetos
profissionais. Também estive atenta às conjunturas em que essas experiências
observadas estão inscritas, sem desprezar dados macrossociais que lhes são
pertinentes. O desafio foi, exatamente, desvelar processos sociais e culturais tanto
restritos a essas experiências locais, quanto mais amplos e gerais que estão nos
projetos profissionais dos jovens selecionados para entrevista. Nesse ponto, os
30
estudos de Koselleck e de Elias16 trouxeram importantes contribuições. Elias (1990)
sugere que se busque no aspecto microssocial, características de processos sociais
de longo prazo, ou seja, que se visualize o instante, como significativo para um
recorte vivo de uma história de longa duração. Os projetos profissionais, então,
puderam ser compreendidos como um “espaço de experiência”, como afirma
Koselleck (2006), em que se constroem “horizontes de expectativas”. Localizar os
significados construídos num campo de experiência – o que se faz com um horizonte
de expectativas – pode contribuir para desvelar os processos sociais de longa
duração que estão colocados nesse campo. Isso me remete à questão: como esse
campo de experiências se faz e em torno de que horizontes de expectativas constrói
seus sentidos civilizadores?
O processo civilizador trata das transformações pelas quais os homens
operam na natureza física e social, criando formas sociais de convivência a partir da
definição de valores, formas de sentir e de agir em função dos interesses de grupos
ou classes sociais dominantes. Nesse sentido, reconheço a importância das
contribuições de Elias (1990), ainda que com certas cautelas teóricas quanto à
noção de processo civilizador tributário da perspectiva freudiana. Uma das
importantes contribuições de Elias, para este trabalho, está em reconhecer que
indivíduo e sociedade não são entidades estáticas e separadas. Estão em constante
transformação e são entendidos como processos que se articulam e participam das
transformações estruturais um do outro.
Dessa forma, é possível compreender as negociações que presidem a
construção dos projetos profissionais. Velho (1999) postula que um projeto se faz
num campo enorme de possibilidades do qual o indivíduo dispõe e em meio à forças
coercitivas de processos sociais mais abrangentes. Os projetos são implementados
e formulados em vários campos de possibilidades, de múltiplas dimensões sócio-
culturais, sobretudo nas sociedades complexas em que diferentes estilos de vida e
visões de mundo coexistem. Resultam de processos de negociação que constituem
a vida social e vinculam-se tanto aos códigos culturais de certas conjunturas, quanto
aos de processos históricos de longa duração. É possível, então, compreender que
um dado projeto expressa um desejo representado como uma configuração do
16 Elias (1990) denuncia que a sociologia do século XX fez desaparecer de suas pesquisas a investigação de processos de longa duração. Para ele isso ocorreu em função dos modelos teóricos de desenvolvimento social terem se baseado em questões políticas e não empíricas, caindo em descrédito. Isso fez com que se instalasse um presentismo na história.
31
futuro; trata-se de uma antecipação do futuro no presente; nela, há fixados objetivos
e fins. Esses estudos ajudaram-me a pensar sobre a perspectiva histórica e a
indagar em que medida a cultura se faz como expressão simbólica da realidade,
presente no campo de experiência individual, mas sempre como uma expressão de
expectativas futuras como indica Koselleck.
O Campo, os sujeitos e as fontes de pesquisa
Tendo por objetivo dar visibilidade ao campo de experiência dos/as
vestibulandos/as de pré-vestibular de Vitória, ES, para compreender como nele se
constrói um horizonte de expectativas em relação a futura profissão, foram
selecionados, nas entrevistas, elementos representativos, tanto em experiências que
compõe sua trajetória de vida, a partir de suas memórias, como das expectativas
traçadas em relação ao futuro. Para analisar sensibilidades presentes nessas
expectativas, vi-me diante da difícil tarefa de encontrar a tradução das emoções e
sentimentos com algum grau de materialidade, ou seja, com algumas “objetividades
palpáveis” (PESAVENTO, 2004, p. 6). Evidências do sensível podem ser
encontradas em palavras, sons, gestos, práticas, em razões e sentimentos muito
plurais. O testemunho, nesse caso, foi a fonte de expressão de razões e
sentimentos que orientam projetos profissionais dos/as entrevistados/as. Mas, cabe
ressaltar que as sensibilidades não são medidas; para examiná-las é necessário um
mergulho nas subjetividades localizadas nos modos pelos quais os indivíduos
expressam sua trajetória de vida e falam de seus projetos profissionais como
expectativas de vida futura.
Como sujeitos de pesquisa, foram escolhidos vestibulandos/as agrupados
segundo vínculos, com dois distintos cursos preparatórios para o vestibular de
Vitória, ES: um da rede privada e outro da rede pública. Esse critério decorreu do
mero reconhecimento de que esses cursos organizam a distinção de
vestibulandos/as segundo classes sociais a que pertencem esses estudantes. O
curso pré-vestibular privado é integrado ao terceiro ano do Ensino Médio. É um
curso que atende uma população bastante diversificada, em geral, pertencente a
32
diferentes segmentos sociais das classes médias e altas17. Visto que se trata de
uma escola considerada como a “melhor preparatória para o pré-vestibular”, para ela
se dirigem aqueles que possuem boas condições financeiras, embora também
incorpore aqueles que, mesmo sem dispor de grandes recursos, esforçam-se e
economizam para enfrentar os pagamentos exigidos. De qualquer forma, só há
indivíduos pertencentes à classe A, B e C, assim classificados segundo critérios
estabelecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os/as
vestibulandos/as desta escola, em geral, dedicam-se apenas aos estudos, não tendo
que dividir tais funções com uma atividade laborativa. Tem idades variando entre 16
a 20 anos e, para eles, passar no vestibular é quase uma “conseqüência natural dos
estudos”.
Já o segundo grupo é formado por vestibulandos/as do curso preparatório
para o vestibular oferecido pela Universidade Federal do Espírito Santo; é gratuito e
parte do projeto social “Universidade para Todos”18. Só podem estudar neste curso
vestibulandos/as de classes populares, que tiveram suas trajetórias acadêmicas em
escolas públicas e não possuem meios de custear seus estudos. O projeto é
mantido por uma Organização Não Governamental (ONG) sem fins lucrativos e
recebe contribuições de grandes empresas do Estado do Espírito Santo. Grande
parte desses vestibulandos/as já está inserida no mercado de trabalho. Muitos deles
pararam de estudar em função do trabalho e, atualmente, voltaram à sala de aula
para buscar uma profissão de nível superior. Utilizando como base a definição
econômica de classe social do IBGE encontram-se, aí vestibulandos/as que vêm das
classes D, E e alguns poucos da classe C.
A utilização do critério de distinção por curso e, desse modo, por nível de
renda criou a possibilidade de examinar esses dois grupos distintos, não apenas por
diferenças postas por condições econômicas, mas, também pela posse de ambos de
17 De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística a definição de classe é feita com base nos rendimentos em salários mínimos. Pertencem a classe E àqueles cujos ganhos são de até dois salários mínimos, a classe D obtém rendimentos de 2 a 6 salários mínimos, de 6 a 15 salários mínimos é considerada classe C, de 15 a 30 salários mínimos é considerada classe B e pertencem a classe A os que possuem rendimentos superiores a 30 salários mínimos. 18 Projeto Universidade Para Todos (PUPT) é um cursinho pré-vestibular cujo objetivo é levar conhecimento aos vestibulandos/as que cursaram o Ensino Médio em escolas públicas. Existe um processo seletivo muito disputado para a escolha dos ingressantes. É considerado um dos melhores cursinhos do Estado do Espírito Santo e aprova cerca de 10% dos vestibulandos/as que entram na UFES. Além disso, grande parte dos vestibulandos/as desse projeto consegue bolsa em faculdades particulares financiadas pelo PROUNI. Informações disponíveis em www.es.gov.br ou em www.ufes.br.
33
um dado capital cultural ou de determinadas disposições grupais e individuais para a
ação, que impulsionam trajetórias de mesmo sentido apesar das desigualdades
sociais.
A entrada, em ambos os grupos sociais deu-se, inicialmente, com a
apresentação de uma carta do Programa de Pós Graduação em Serviço Social
(PPGSS) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro à Coordenação Pedagógica
dos cursos e, posteriormente, entrevistas pessoais foram agendadas. A partir de
então, fiz a aplicação de um instrumento de qualificação a 460 vestibulandos/as de
ambos os cursos: 230 de cada um (apêndice 1) acompanhado do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (apêndice 2). O recorte por gênero, idade e etnia,
nas entrevistas que seguiram, deu-se com base na aplicação desse instrumento, o
que ainda possibilitou a identificação das opções por cursos superiores no vestibular
de 2009, na Universidade Federal do Espírito Santo. Desse instrumento, pude extrair
fontes de observação quantitativas.
Foi a partir da aplicação desses questionários que selecionei os 22 sujeitos
entrevistados/as, que forneceram importantes indícios para se compreender a trama
complexa que envolve o tema proposto. Agendei entrevistas com os sujeitos
selecionados. As entrevistas duraram cerca de uma hora e foram previamente
marcadas e posteriormente transcritas. Realizadas as entrevistas, complementei os
informes sobre entrevistas realizadas com coordenadores desses cursos,
considerando a relevância de suas observações sobre projetos profissionais de
vestibulandos/as em geral. Também foram utilizados registros de uma dinâmica de
grupo com essa amostra do curso pré-vestibular público sobre questões relativas
aos seus projetos profissionais. Essas fontes foram enriquecidas com achados
importantes, colhidos em uma dinâmica de grupo aplicada aos sujeitos do curso pré-
vestibular público, uma vez que o privado não autorizou a aplicação dessa etapa.
Também recorri à análise de periódico “Oportunidades Cursos & Concursos” que
trata sobre profissões, carreiras e vestibular, durante o referente período da
pesquisa.
A análise do sensível deu-se, principalmente, a partir das entrevistas
individuais com os/as vestibulandos/as. Foi preciso adentrar a superfície dessas
entrevistas e chegar a tantas questões desconhecidas aos próprios entrevistados, e
que se constituem em fontes de motivação, ainda que nem sempre conscientes. A
experiência da microanálise foi imprescindível. Essas entrevistas seguiram um
34
roteiro flexível para tentar apreender o real, evitando uma estrutura rígida de
proposições a serem respondidas. Nas entrevistas, busquei uma comunicação “não
violenta” que, como afirma Bourdieu (2003), um modo de minimizar a violência
simbólica que pudesse ser exercida sobre os entrevistados, em função da posição
com que o pesquisador, em geral, é visto quanto ao capital cultural que representa.
Procurei realizar uma “relação de escuta ativa e metódica” que se afastasse da não
intervenção da entrevista não dirigida e do excesso de dirigismo do questionário,
uma tarefa nada fácil. A proposta não foi, como alerta Bourdieu (2009), construir um
relatório oficial a partir de um relato coerente de uma sequência de acontecimentos,
mas ver as trajetórias que se fazem num campo descontínuo, efêmero, constituído
de múltiplos devires que só podem ser percebidos em seu movimento.
O material das entrevistas levou em conta a memória19 dos entrevistados.
Essas fontes permitem-me captar emoções e razões de uma temporalidade. Dão
visibilidade às experiências tão diversas, construídas com muitas imprecisões,
derivadas das mais diversas contingências. Autocensura, esquecimentos e
preservação de fatos, com apenas alguns de seus significados, fazem-me admitir
que suas manifestações estão longe de reconstituírem as experiências narradas em
todas as suas dimensões. A materialidade trazida está imersa na subjetividade dos
entrevistados e, a todo o momento pode expressar, como indica Bourdieu (2009), a
“ilusão biográfica”. A valorização da experiência pessoal e o resgate da memória,
entretanto, mesmo com todos os riscos, trazem informes sobre processos sociais
nem sempre percebidos. A oralidade20 tem permitido, nesses termos, uma
aproximação com o processo da comunicação e, em conseqüência, com um
importante aspecto cultural: a esfera simbólica.
A idéia central foi localizar, nesse conjunto de fontes, razões e sentimentos
que impregnam o campo de experiências vividas pelos/as vestibulandos/as. A tese,
portanto, é que são as razões e os sentimentos que movem os projetos
profissionais. Razões e sentimentos se constituem na dimensão de articulação entre
19 Como uma tentativa de restaurar a importância do sujeito, expulso durante a modernidade que constrói para a ciência um discurso de morte ao sujeito. Sarlo (2007) identifica nos estudos culturais a partir da década de 1969, uma grande guinada subjetiva, em que as identidades e os sujeitos tomam o lugar das estruturas. 20 A oralidade permite buscar o âmbito subjetivo da experiência humana. Os historiadores se valem da História Oral nos estudos sobre mentalidades e formação de identidades coletivas, em função de abarcar questões culturais e simbólicas. O historiador do tempo presente é contemporâneo a seu objeto, como alguém do seu próprio tempo – longe da neutralidade científica.
35
indivíduo e sociedade e são, por isso, a base sobre a qual se forjam os projetos
profissionais. Mas como parte desse campo de experiências os lugares sociais que
transitam não podem deixar de ser visualizados. Gênero, geração, etnia, raça,
classe social marcam as experiências atuais e também projetam horizontes de
expectativas sobre as quais se fazem os projetos individuais. Assim, deparei-me
com outros achados de pesquisa que serão defendidos ao longo deste trabalho: o
recorte de classe é parte constitutiva dos projetos profissionais; o campo do gênero
têm impacto sobre as opções profissionais; os projetos profissionais se constroem
atrelados à lógica da profissionalização e aos romantismos das profissões; a
educação é parte constitutiva do campo de experiência investigado.
Os resultados desses achados de pesquisa foram organizados em quatro
capítulos. No primeiro capítulo, “‘Escolhas Profissionais’ e Campo de Experiências”,
trato de questões relativas ao campo de constituições dos projetos profissionais. A
primeira delas refere-se ao campo educacional, diz respeito às possibilidades de
acesso e de ingresso ao Ensino Superior no Brasil. Revela o caráter discriminatório
e excludente da história da educação brasileira, fenômeno, aliás, de longa duração
histórica. No trato desse campo de experiências, como segunda questão, retomo os
sentidos atribuídos à opção por uma profissão e discuto esses sentidos no campo de
análise da orientação profissional. A terceira questão, referente a esse campo de
experiências é a caracterização espacial e temporal do recorte no qual se fazem as
experiências que investigo. A caracterização de Vitória e do Estado do Espírito
Santo, acompanhado de algumas tendências sociais e econômicas que impactam
nos projetos profissionais. Trato ainda de dados quantitativos, referentes aos 460
questionários utilizados, os quais ajudam a caracterizar os grupos investigados e
delimitar algumas tendências gerais na opção por profissões. E, por último, situo a
importância da investigação microanalítica que possibilita um olhar além das
tendências mais gerais.
No segundo capítulo, “Sensibilidades, Mundo do Trabalho e o Romantismo
Político”, analiso razões e sentimentos que se constroem atrelados à lógica da
profissionalização e, também, aos romantismos das profissões. Parto da discussão
sobre a profissionalização, como um movimento da modernidade, e que ressurge
nas atuais mudanças da organização do trabalho a partir dos autores ligados à
sociologia das profissões. Por outro lado, mostro como essas racionalidades
coexistem com sentidos românticos que são atribuídos às profissões. Mostro como
36
esses sentidos opõem-se aos valores propostos e veiculados pelas sociedades
capitalistas industriais. Como parte dos impactos das transformações do mundo do
trabalho, trato, também, do impacto das políticas de cotas sociais na Universidade
Federal do Espírito Santo, na construção dos projetos profissionais e os dilemas que
essa matéria atualiza. E, por último, recupero, no periódico investigado sobre
profissões, como os sentidos românticos e sentidos atrelados às racionalidades do
mundo do trabalho compõem a matéria em circulação sobre o assunto: profissões.
No capítulo três, “Razões, Sentimentos e Feminização de Profissões”, o
objetivo é mostrar, a partir da análise de trajetórias, o gênero como um dos campos
que compõe a experiência humana e seu impacto nos projetos profissionais. O
capítulo inicia com uma discussão sobre equidade entre homens e mulheres. Propõe
que, apesar da média de tempo de escolarização feminina ser superior a do homem
na atualidade – o que sugere uma conquista feminina – isso não se reflete em
igualdade no mundo do trabalho. A ideia principal é que as desigualdades não se
fazem apenas no nível dos salários, mas, principalmente, em função da segregação
setorial por gênero – ou seja, as mulheres concentram-se em profissões ou
ocupações menos prestigiadas, com menores ganhos e condições de trabalho mais
precárias. Mas por que percorrem esses caminhos? Na análise das trajetórias é
possível visualizar, a circulação no campo cultural das mulheres entrevistadas, de
determinados sentidos que criam disposição para a ação, habitus, atrelando o
trabalho feminino aos cuidados e à educação. Justifica-se, assim, a construção de
seus projetos profissionais em torno de certos sentidos, os quais levam às
profissões consideradas femininas. Junto a isso, processos de longa duração como
a “missão civilizatória” das profissões femininas são atualizados nas experiências em
questão. Além disso, também se atualizam nas trajetórias movimentos do mundo do
trabalho, os diferentes usos do tempo de homens e mulheres e a própria divisão
social do trabalho. Esse campo com todas as suas interseções, incluindo, classe,
geração e etnia produzem sentidos que se constroem no campo de experiências e
que se movem em função de um horizonte de expectativas.
No capítulo quatro, “Projetos de Classe e Projetos Profissionais”, a principal
discussão trava-se em como o recorte de classe é parte significativa da composição
e da direção dos projetos profissionais. A inserção em um campo cultural mais
pauperizado impõe aos sujeitos limites, não apenas econômicos, mas, também, de
acesso ao capital cultural, criando um habitus semelhante aos indivíduos que
37
ocupam a mesma posição. Neste capítulo, é possível visualizar como se constroem
as experiências dos jovens que ocupam posições sociais privilegiadas. Maior capital
cultural e econômico permite a construção de disposição duráveis para ações
bastante diferenciadas das encontradas nas camadas populares, o que permite a
esses sujeitos um certo “sentido do jogo”, como afirma Bourdieu (2004), pois se
apossam com facilidade das regras do jogo social e têm maior probabilidade de
ascensão. Cursar Ensino Superior, trabalhar apenas quando terminar os estudos (a
faculdade), passar numa Universidade Pública, ter o apoio financeiro e afetivo da
família, nessa trajetória, é parte dos costumes de classes mais privilegiadas. O que
se revela um fenômeno típico e persistente da classe média: buscar nos estudos e
no capital cultural, formas de ascensão social e “maiores aspirações para seus
filhos” como afirma Mayer (1984). Ter acesso a tradicionais cursos como medicina,
direito e engenharia não é apenas um desejo, mas, também, uma questão de honra.
Ao longo dos capítulos, tornou-se clara a percepção que as trajetórias
investigadas tanto seguem certas tendências como se constroem em movimentos de
rupturas a elas. Apesar de a construção de certas disposições para a ação, um
habitus, formado a partir da inserção em campo social e cultural – cruzado por todos
os processos sociais e de longa duração já mencionados – os indivíduos criam,
inventam e rompem com determinações de classe, gênero, raça ou geração. Isso é
visível nas negociações com a realidade de algumas trajetórias, que mostram como
a construção dos projetos transforma o sentido de negar antigos lugares ocupados.
38
1 “ESCOLHAS PROFISSIONAIS” E CAMPO DE EXPERIÊNCIAS
Pesquisadora: Para qual curso você fará vestibular?
Liliam: Eu queria mesmo, fazer direito. Meu sonho sempre foi fazer direito. Sempre gostei de história e geografia, de ler... E, desde criança, que tem aquela coisa de querer botar bandido na cadeia, querer fazer justiça mesmo.
Pesquisadora: Mas você não tentará o curso de direito?
Liliam: Não... Não tem como! Eu tenho medo de não passar... É um curso muito concorrido. Mesmo com essa coisa de cotas sociais fica difícil para mim, tive um Ensino Médio muito fraco. Não consigo entrar para o direito.
O diálogo com Liliam21 é indicativo de que gostos, desejos, percepções,
representações, sentimentos e ressentimentos compõe o campo dos projetos
profissionais. Razões e sentimentos que compõe o campo de experiências de Liliam
são a chave para a compreensão de seu projeto profissional. Mas a questão não é
tão simples. Não se trata de recortar sensibilidades individuais para a compreensão
do fenômeno estudado. Se assim o fizesse, não veria mecanismos e processos
sociais mais abrangentes que se escondem e que marcam as diversas trajetórias
investigadas. As experiências humanas são múltiplas e revelam tantos sentidos
construídos e partilhados em cada tempo histórico como processos sociais de longa
duração que permeiam tais experiências.
Começo, então, por investigar, a partir do relato de Liliam, as marcas da
exclusão educacional, um fenomeno da longa duração na história brasileira, como
parte dos projetos profissionais: “Tive um Ensino Médio muito fraco” relata. E,
portanto, Liliam não concorrerá a uma profissão de prestígio social como o direito.
Não se sente capaz. Isso aponta para a recorrência de um movimento de exclusão
no direcionamento dos projetos profissionais. Enquanto os/as vestibulandos/as de
classes mais baixas fazem opções por cursos superiores menos concorridos e de
menor prestígio social, aqules/as de classes mais altas optam por cursos mais
prestigiados e, em consequência, mais concorridos. Soma-se a isso, diferenças que
observei em relação ao gênero, raça e geração, muito atreladas, entretanto, ao
próprio movimento de classes. Embora isso seja melhor discutido ao longo do
trabalho, por ora, trago essas questões por apontarem para um importante
fênomeno de longa duração na história da educação brasileira, que perpassa os
projetos profissionais: o caráter excludente da educação. É a partir dessa realidade,
21 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
39
que compõe o campo de experiências em questão, que inicio a investigação dos
projetos profissionais.
1.1 Educação Brasileira: elitização e Exclusão
O caráter elitista e excludente da educação brasileira compõe o campo de
experiências e o horizonte de expectativas dos/as vestibulandos/as nos cursos de
preparatório para o vestibular de Vitória. Ingressar numa Universidade Pública do
nosso país é privilégio para poucos. Nessa medida, o vestibular constitui-se num rito
de grande importância, pois representa a possibilidade de entrada no mercado de
trabalho em melhores condições econômicas e sociais. E, acaba por se constituir
num indicativo de sucessos ou fracassos. Destaco, entretanto, que esse processo
meritocrático, de grande impacto na opção por carreiras, não reflete apenas um
momento, é resultado de uma história pessoal e, também, de uma história coletiva,
que merece ser recuperada. Essa história coletiva se entrelaça com a própria
história da educação brasileira. Nela, é possível observar a elitização do ensino e a
exclusão das camadas mais pobres da população – assim como de mulheres e
negros – a uma educação de qualidade e ao acesso às etapas superiores de ensino.
Algumas marcas como a seletividade do ensino (a própria existência do vestibular
para ingresso nas universidades é prova disso), a defasagem entre a demanda e a
oferta, a manutenção de uma educação aristocrática e disciplinadora, que veicula
interesses e valores dominantes, além dos interesses políticos e econômicos,
presentes nas legislações brasileiras, são tendências que se mantém como
aspectos de longa duração na educação brasileira.
Reconheço, como alerta Linhares (2008), os riscos que corro, como
pesquisadora, ao tentar traçar tendências. Riscos de me deixar aprisionar por
“formas, apreendidas em experiências anteriores, que muitas vezes, assumem
modos de clichês e como tais, travam o tempo” (p. 2). O risco de cristalizar o
observável, nas visões de tradições e teorias previamente estabelecidas, sem
observar o quanto a história se fez e se faz nas experiências concretas de homens e
mulheres de um dado tempo. Por outro lado, como a própria autora afirma, não dá
40
para deixar de incluir, na problemática educacional, histórias e heranças que a
constituem:
[...] nem vou me acomodar ao retalhamento da problemática educacional, contabilizando-a como uma adição de fatos, sem histórias, de que interdependem seus significantes e significados e, nem tão pouco, fazer-me surda às heranças de uma civilização e de uma racionalidade que nos constituem (LINHARES, 2008, p. 6).
A organização escolar do Brasil surge vinculada à política colonizadora dos
portugueses (RIBEIRO, 2007), marcada por um ideal civilizatório e disciplinatório,
que submetia negros, mulheres e índios aos “mandos” do homem branco,
constituindo-se em relações de submissão: “Submissão externa em relação à
metrópole, submissão interna da maioria negra ou mestiça (escrava e semi-escrava)
pela minoria “branca” [...] da esposa em relação ao marido” (RIBEIRO, 2007, p. 37).
Além disso, desde o surgimento com os jesuítas no século XVI, a educação sempre
foi para poucos e esteve atrelada a interesses políticos dos dominantes da época
(ROMANELLI, 1999). Sempre excluiu em função de classe social, gênero, raça e cor
de pele e com isso, acirrou as desigualdades entre sociais22.
A busca por igualdade no campo educacional surge com a Revolução
Francesa e pautam-se nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade,
proclamados pela “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Nesse
contexto, nasce os ideais da escola pública tal como a conhecemos, laica e
universal. É bem verdade, entretanto, que esses ideais jamais chegaram a se
efetivar como prática corrente na história da educação. A luta pela democratização
do ensino, como forma de garantir iguais oportunidades de acesso à educação tem
sido uma constante na história da educação brasileira. O início da democratização
da educação brasileira dá-se com a Proclamação da República, em 15 de novembro
de 1889. Até então, estava nas mãos dos jesuítas e, portanto, atendia aos
interesses civilizadores dos colonizadores portugueses, atrelados ao modo de
produção escravocrata. A instrução, nesse período, não era considerada atividade
social importante e precisava ser conveniente à camada dirigente do país na
articulação dos interesses metropolitanos às atividades coloniais: “Dela estava excluído 22 Kreutz (2001, p. 141), ao estudar sobre um conjunto de “estranhamentos e conflitos étnico-culturais” presentes no processo de expansão e implementação da escola pública no Brasil, mostra como o objetivo de “civilizar os povos”, silenciou e deslegitimou as especificidades étnico-culturais. Todas as políticas de inclusão de índios e negros, inclusive, passaram por essa “civilização”, por uma educação que acaba por ocultar especificidades desses povos (MENEZES, 2001).
41
o povo e foi graças a ela que o Brasil se ‘tornou por muito tempo, um país da Europa’,
com os olhos voltados para fora, impregnado de uma cultura intelectual transplantada,
alienada e alienante” (ROMANELLI, 1999, p. 35). A república, entretanto, modifica esse
quadro e instaura um ideário de crescimento que é necessidade da formação
educacional. A república resultou de um golpe militar que contou com uma parcela do
exército, a classe dominante proprietária de terra, os “barões do café” e
representantes das classes de intelectuais médias urbanas (RIBEIRO, 2007). Essa
camada progressista em constante crescimento e desenvolvimento, sobretudo, a
partir da urbanização do país nas primeiras décadas do século XX, contribuiu para a
democratização da educação:
Constata-se com certa facilidade que, após o advento da República, a cada década vai aumentando a pressão de significativos setores da população brasileira no sentido do ingresso e permanência na escola. Esta pressão tem origem, num primeiro momento, mais nos setores médios, mas vai se intensificando com a presença de setores populares propriamente ditos (RIBEIRO, 2007, p. 197).
Com isso, houve uma crescente pressão no sentido da expansão da rede
escolar e da missão de desanalfabetização do povo. Mas, como afirma Ribeiro
(2007), o ideário republicano tem poucas chances de se realizar, efetivamente, visto
os “limites representados pelo não-rompimento das relações de dependência com o
capitalismo internacional” (p. 199). Além da manutenção do latifúndio e da
monocultura, e por ter desenvolvido um tipo de industrialização que “se desenvolve
mais em razão de espaços deixados pela crise por que passam os países
capitalistas hegemônicos e não, propriamente, em razão de forças sociais internas”
(RIBEIRO, 2007, p. 199).
No período do Estado Novo, o Estado “se desincumbiu da educação pública
através de sua legislação máxima, assumindo papel apenas subsidiário”
(GHIRALDELLI, 1994, p. 81). A gratuidade do ensino, garantida pela Constituição de
1934, ganha novos contornos com a Constituição de 1937, a qual enfatiza o
financiamento da educação dos mais pobres pelos mais ricos, por meio da
contribuição da "Caixa Escolar”. Além disso, a legislação privilegiou as escolas
particulares, nas quais apenas a elite do país tem condições de frequentar, e
instituiu a educação profissional para as classes menos favorecidas, como dever
primeiro do Estado. Cabe destacar que o Ensino Superior, nesta fase, é
42
caracterizado por tentativas de democratização face a leis discriminatórias23. A partir
de 1937, essas leis “se fortificam pela consolidação de um forte controle e
centralização estatal ocorrido com a instauração do ‘Estado Novo’” (MOROSINI,
2009).
Após 1945, com a era Vargas, desenvolveu-se lutas para a ampliação do
acesso à escola pública e gratuita. Campanhas e movimentos de educação popular
(sobretudo de adultos) se faz presente (ROMANELLI, 1999). Já o período ditatorial é
marcado pela repressão e graves consequências se observa que contribuem para a
solidificação do caráter excludente da educação:
[...] privatização de ensino, exclusão de boa parcela das classes populares do ensino elementar de boa qualidade, institucionalização do ensino profissionalizante, tecnicismo pedagógico e desmobilização do magistério através de abundante e confusa legislação educacional (GHIRALDELLI JR., 1994, p. 163).
Nesse período é que ocorre a Reforma Universitária Brasileira que instituiu o
vestibular classificatório e dá às universidades um ar empresarial. Elas passam a ser
organizadas em unidades isoladas e multiplica-se as vagas em escolas superiores
particulares. Os altos índices de evasão e repetência no Ensino Fundamental e
Médio nas escolas populares, são indicativos da não chegada ao Ensino Superior. A
efervescência social, do período no qual predominam ideias liberais, propõe que a
educação seja oferecida para todos “não só como fator de incorporação das massas
ao progresso do país, mas também como fator de propulsão de desenvolvimento
pelo alargamento e circulação das elites” (MOROSINI, 2009, p. 309).
Com o golpe militar de 1964, as medidas reformadoras da educação foram
modificadas para se adaptar a uma política educacional do regime autoritário. O
ideal de democratização do ensino, que caracteriza o período anterior, é substituído
pela necessidade da modernização da educação. A questão universitária, neste
contexto, passa a ser encarada como um problema técnico, e não como uma
questão social. As reformas de ensino, implantadas no período da ditadura, por meio
das Leis nº 5.540/68 (Lei da Reforma Universitária) e nº 5.692/71 (Lei da Reforma de
Ensino de 1º e 2º Graus), adotam princípios empresariais para a resolução da
questão educacional, visando a modernização do ensino. Aplica-se a lógica das
empresas privadas, cujo principal objetivo é a produtividade e racionalização de
23 Como mostra Morosini (2009), o Ensino Superior é recente na educação brasileira, se comparado com outros países. Tem seu marco com a criação da Universidade do Rio de Janeiro, em 1920.
43
recursos para as instituições de ensino. Tratou-se de reformas autoritárias, sem a
participação dos demais setores da sociedade, que atrelou o sistema educacional
brasileiro ao projeto de desenvolvimento econômico do período ditatorial
(ROMANELLI, 1999).
Em anos posteriores, em virtude da grave crise econômica vivida pelo país
após o golpe de 64, greves e movimentos populares eclodem em função de uma
onda de pobreza que se alastrou pelo país. Em 1980, foram são criados partidos de
oposição, com destaque ao (Partido dos Trabalhadores) e a organização da CUT
(Central Única dos Trabalhadores), com o objetivo de lutar pelos direitos da classe
trabalhadora. Nesse período de transição, como destaca Romanelli (1999), os dados
são alarmantes sobre a educação brasileira e mostram o fracasso da política
educacional da ditadura: milhões de analfabetos e semiletrados que chegavam a
quase metade da população do país. Nesse contexto, como mostra Ghiraldelli
(1994, p. 221) é que se compreende o crescimento das várias conferências
educacionais e algumas “situações novas e promissoras para as classes populares
e para a viabilização da democracia”.
Somente após a década de 1990 é que o acesso à escola pública torna-se
uma realidade para grande parte da população. Muitas propostas de permanência e
de acesso à escola ergueram-se. Dentre esses acontecimentos, um destaque para a
Conferência Mundial de Educação para Todos (1990), realizada em Jomtiem, na
Tailândia, financiada pelos seguintes orgnismos internacionais: Organização das
Nações Unidas para a Educação (UNESCO), Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF), Programa das Nações Unidas para a Educação (PNUD), a
comissão Econômica para a América Latina e Caribe da Unesco (CEPAL) e Banco
Mundial. Um compromisso foi assinado, por nove países de maior contigente
populacional do mundo, dentre eles o Brasil, buscando a “Educação para Todos”.
Desse compromisso, como mostra Corággio (1996), decorre a elaboração do Plano
Decenal de Educação para Todos (1993 / 2003), pelo Ministério da Educação
(MEC), que tem como princípio um conjunto de diretrizes políticas que visa a
recuperação da escola fundamental, além da equidade e o incremento da qualidade
do ensino com base também na constante avaliação dos sistemas escolares. São
mudanças atreladas as políticas neoliberais que buscam orientar políticas
educacionais nos países em desenvolvimento. Como destaca Morosini (2009), a
influência internacional, no sistema de educação superior do país, é marca de
44
capitalismo internacional que orienta os países em desenvolvimento para a redução
do papel do Estado na educação, sobretudo na Educação Superior.
A problemática da exclusão educacional nunca foi tão atual. Para Ribeiro
(2007) há uma contradição básica que a permeia: ter que atender a um contingente
grande de pessoas com qualidade. As contradições qualidade e quantidade são
mais bem entendidas, como faz Ribeiro (2007), se for observado que, desde a sua
origem, a organização escolar brasileira vinculou-se com o sistema econômico,
político e social do capitalismo mundial. Um vínculo que determina a base da classe
social brasileira como descreve Ribeiro (2007, p. 14-15):
Enquanto sociedade constituída a base de uma contradição interna de classe, apresenta-se como sociedade periférica (dependente) e não central (hegemônica), não tendo, até nossos dias, superado a dominação externa, isto é, a submissão dos interesses da população brasileira (internos) em favor dos da população de determinados outros países (externos).
Esse traço de dependência, embora não compreendido de forma totalizadora
– se faz também em uma relação dialética de busca de autonomia e emancipação –
limitando as possibilidades de infra e de superestrutura da educação brasileira. É
assim, que Ribeiro compreende que as pressões na atualidade, sobre a melhoria da
educação brasileira, se faz mais sobre uma base quantitativa do que qualitativa:
Mais de ordem quantitativa porque é uma ampliação, como se viu, que mantém, e de forma aguçada, ou seja, agravada, os problemas já tradicionais, visto que até hoje é impossível atender toda a população em idade escolar, são altos os índices de repetência e de evasão. Uma ampliação que, de um lado, com o aumento da população, representa em números absolutos o atendimento de um maior número de pessoas, de outro, representa, também em números absolutos, mais gente sendo reprovada, expulsa da escola logo após a entrada (RIBEIRO, 2007, p.199).
Isso tudo indica que pouco se conseguiu alterar a vida das pessoas, e que se
mantém um histórico de exclusão nos limites do capitalismo internacional. É claro
que o quantitativo também é importante, visto que não se pode deixar grandes
massas da população em idade escolar fora da escola. Por outro lado, não se pode
deixar de ver a perpetuação das distâncias sociais e as consequências de um
Ensino Fundamental e Médio de pouca qualidade, para a continuidade dos estudos.
É visível, ainda, a falta de democratização do ensino em nível superior.
Para a maioria da população o Ensino Superior no Brasil sequer se desenha
em seu campo de possibilidades. Morosini (2009) mostra que somente 11,7% da
população brasileira está na Graduação, o que é muito baixo, mesmo quando
comparado aos países da América Latina, e, além disso, a taxa de sucesso, ou seja,
45
razão entre ingresso e conclusão, é muito baixa: 37%. Outro fator agravante é que
esse pequeno percentual concentra-se nas camadas mais ricas da população
brasileira, o que revela a permanência de exclusão do Ensino Superior no Brasil.
Em matéria recente, o jornal O Globo divulga dados de estudos do Ministério
da Educação que mostram uma maior elevação da qualidade de ensino nas séries
iniciais do Ensino Fundamental, entre os anos de 2007 a 2009, do que no ensino
médio, que teve o pior desempenho24. A avaliação é feita com base no Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), um indicativo do MEC, que mede a
qualidade do ensino público e privado, a partir das notas dos alunos na Prova
Brasil/Saeb e o índice de aprovação nas escolas.
O avanço captado pelo Ideb não significa que o nível de aprendizagem nas escolas brasileiras seja bom. Longe disso. A Prova Brasil/Saeb, usada no cálculo do índice, avalia conhecimentos de português e matemática a cada dois anos. A nota média dos alunos do 5º ano do ensino fundamental em português foi de 184,3 pontos, numa escala de até 400. A nota dos estudantes do 3º ano do ensino médio foi 268,8, na escala até 800. Em todos os níveis, no entanto, houve progresso. Em 2009, apenas 75,9% dos alunos de nível médio passaram de ano. Nas séries finais, 81,3%. Nas iniciais, 88,5%. 25
A aprovação no Ensino Médio, bem como a sua qualidade precária, dificulta o
acesso de jovens brasileiros à universidade. Em relação ao Ensino Superior, de
acordo com o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), apenas 10% da população jovem - entre 25 e 34 anos -
concluem o ensino superior (a média dos 36 países que participaram da pesquisa foi
de 34%), sendo um dos países o que possui o menor índice de adultos com diploma
universitário.26 Segundo a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, é próprio ao
Ensino Médio e ao Ensino Fundamental, como um todo, preparar para etapas
posteriores de ensino. O art. 22 da LDB dispõe que “a Educação Básica tem por
finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum e
indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhes meios para progredir no
trabalho e em estudos posteriores”. Conceitua o ensino médio como um elo entre
esse nível escolar e o superior. O Ensino Médio, portanto, segundo a LDB, precisa
assegurar condições ao educando de prosseguimento de seus estudos e exercer a
25 Disponnível em http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2010/07/02/ensino-medio-esta-pior-do-que-fundamental-mostram-dados-do-ideb-2009-917045246.asp. Acessado em 02/07/2010. 26 Disponível em: http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2009/09/08/apenas-10-dos-brasileiros-terminam-ensino-superior-767523965.asp. Acessado em 02/07/2010.
46
sua cidadania por meio da preparação para o mundo do trabalho. Assim, os
indivíduos deveriam ter condições de ingressar, automaticamente, na universidade
ao término do Ensino Médio. Mas, não é o que ocorre.
Na verdade o problema da educação não é a falta de recursos, mas,
principalmente, pela estrutura econômica baseada na concentração de recursos de
uma minoria interna e externa à sociedade brasileira, ou seja, à burguesia
monopolista do capitalismo mundial. Assim a internacionalização do ensino, com
propõe Morosini (2009), se faz nesse movimento de dependência do capitalismo
internacional e com vistas à melhoria do ensino em países em desenvolvimento.27
Traçar essas tendências sobre a educação no Brasil, em seu caráter
discriminatório e excludente, é importante, para esta pesquisa, na medida em que
elas compõem o campo de possibilidades (VELHO, 1999) em que se engendram os
projetos profissionais. O ingresso no Ensino Superior Público, por meio de
vestibular, revela mecanismos de poder e de exclusão característicos desse nosso
tempo, mas segundo forças que atravessam um período histórico de maior duração.
Há, entretanto, diversas tensões atuais que se colocam. Experiências de homens e
mulheres de diferentes idades, classes e raças, que lutam por igualdade de direitos
e oportunidades em relação à educação, misturam-se às perspectivas colocadas
pelos organismos mundiais, representantes do capitalismo mundial. Esses são
alguns dos sentidos que movem as experiências de jovens que buscam o ingresso
em níveis superiores de ensino.
1.2 “Escolhas Profissionais” e Projetos Profissionais
Verifiquei que experiências e expectativas de diferentes jovens (pobres, de
classes média e alta, homens e mulheres, brancos, negros e pardos, mais novos e
mais velhos), em relação ao Ensino Superior, poderiam ser examinadas e
delimitadas a jovens que estudam em cursos preparatórios para o vestibular da
UFES, em Vitória-ES, lugares de assentamento dos projetos profissionais e seus
dilemas. Entre os anos de 2009 e 2010, aproximei-me, mais intimamente, de
27 Morosini (2009), também observa um segundo movimento de internacionalização em relação ao Ensino Superior, iniciado no início do século passado e que se solidifica nos últimos tempos: formação em nível superior de uma elite em instituições universitárias no exterior, principalmente, nos Estados Unidos da América.
47
estudos voltados para estruturas de sentimentos, sensibilidades, e também de
ressentimentos presentes nas decisões humanas, retomando contribuições como as
de Raymond Williams (1969), E. P. Thompson (2002); S. Pesavento (2004) e nas
trilhas dos estudos de M. Löwy (1990, 1996, 2005), sobre o romantismo político.
Encontrei abrigo para o tema razões e sentimentos – matéria que então selecionei –
para exame dos projetos profissionais. Razões e sentimentos, desses jovens, na
definição de seus projetos profissionais sugeriram-me a análise qualitativa e a
aproximação microssocial com base em suas trajetórias.
Percebi que análises causais e lineares, para tratar do fenômeno estudado,
pouco ajudam a compreendê-lo. Isso porque, como sugere Gribaudi (1998, p. 130)
“a análise dos comportamentos e das escolhas revela cadeias de dependências
causais que ligam esferas, meios e dinâmicas tradicionalmente concebidos como
separados”. Com esse sentido, uma das dificuldades encontradas, foi de escapar da
tendência de analisar, em separado, fenômenos que se interrelacionam e tentar
superar uma certa linearidade expositiva. Outro esforço foi o de adotar um exercício
crítico e continuado, com vista a romper com tendências cartesianas, que se
constitui numa certa visão contemporânea de mundo, que fragmenta fenômenos
observados. O método cartesiano, pois, propõe “Dividir cada uma das dificuldades
que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para
melhor resolvê-las” (DESCARTES, 1996, p. 23). De acordo com esse método, para
a compreensão da realidade, bastaria juntar os fragmentos de análises, como se o
todo fosse igual à soma das partes. Tomadas essas cautelas, por mais que se trate
em separado cada aspecto das relações sociais, eles se articulam e, por isso, é que
proponho vê-los, um a um, e analisá-los, como um fio que puxo de uma trama
complexa. Lançando-me, pois, ao exame dessa trama, a primeira questão a ser
enfrentada referia-se às significações conferidas à “escolha profissional”.
A opção por uma profissão parece uma conduta humana trivial, comum e
bastante óbvia em nosso tempo. Há, entretanto, uma série de questões, de
crescente complexidade, pertinentes a campos de estudos próprios; é o caso da
história, da sociologia das profissões e da própria psicologia. Localizei, contudo,
mais algumas questões, não formuladas na produção que examinei sobre o assunto,
aliás, um dos motivos pelo qual passo a desenvolver a pesquisa: Que sentidos são
atribuídos à noção de “escolha profissional” nos dias que correm? Como essas
“escolhas” traduzem/atualizam visões de ser humano e de mundo? Que aspectos
48
de longa duração persistem em tais “escolhas” e que “sentidos civilizadores”
expressam (ELIAS, 1990)? Que razões e sentimentos presentes no campo das
experiências humanas irão compor os projetos profissionais?
Tudo isso me conduziu a uma reflexão de extrema importância neste trabalho:
a da relação entre indivíduo e sociedade. Retomo, desse modo, uma questão
bastante discutida em todas as áreas das ciências humanas: a que ponto as
escolhas são do indivíduo ou determinadas pelo meio? Embora já tenha sido tratado
em outras áreas do conhecimento e perspectivas interacionistas tenham daí surgido,
o tema ainda não foi suficientemente examinado no campo da orientação
profissional. Adentremos, portanto, nesse campo de discussões.
1.2.1 “Escolha profissional” como problema teórico
A emergência da “escolha de uma profissão”, fenômeno relativamente novo
na história da humanidade, está atrelada, não apenas a uma mudança na
organização do trabalho com o advento da grande indústria na modernidade, mas,
sobretudo, a uma mudança na visão de ser humano – de ser livre e autônomo
quanto a suas escolhas. A ideia de “escolher” carrega as marcas do individualismo
moderno e de todo o peso que se faz sobre a responsabilidade pessoal por
sucessos e fracassos futuros, o que tem sido reafirmado e propagado por teses
liberais e neoliberais do nosso tempo, caso de Hayek (1987). Ele dá pistas sobre a
concepção proposta por essas teses. Propaga-se que o ser humano é o único
responsável pela execução de seus objetivos e pelas próprias aspirações; cada
indivíduo deve lutar para atingir seus próprios objetivos, mesmo que cause prejuízos
aos seus semelhantes:
[...] o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não estando sujeito aos ditames alheios. É esse reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas idéias [sic] deveriam governar-lhe, tanto quanto possível, a conduta (HAYEK, 1987, p.76).
A liberdade individual embasa a concepção de esfera individual e os sentidos
da vida social na modernidade; avança a partir do século XVIII, estabelecendo a
base do liberalismo, revivido, amplamente, nos anos 80 do século XX. O destino,
49
nessa perspectiva, está nas mãos dos próprios indivíduos que têm num mercado
imprevisível e regido pela concorrência, em tese, iguais oportunidades de lutar pelo
sucesso pessoal. A concorrência oferece possibilidades de decidir se as
perspectivas desenhadas por uma dada ocupação são suficientes para compensar
as desvantagens e riscos futuros (HAYEK, 1987).
Reafirmando essas teses, o projeto neoliberal ganha força ao se configurar
numa alternativa para a crise de superprodução do capital de final dos anos de
1960, na maioria das sociedades capitalistas. A abertura para o neoliberalismo se
dá, principalmente, com o fracasso da regulação social keynesiana, o Estado de
Bem-Estar Social, em que o é controlador e financiador das necessidades básicas
da população, como saúde, educação, moradia, transporte, etc. Seu crescimento
coincide com o colapso do que Castells (1979) chama "socialismo real". Centrado na
lei de mercado, a proposta neoliberal tem como consequência a perda de direitos
sociais e a crise dos fundos públicos. Diante das tentativas de recomposição do
lucro capitalista, já internacionalizado, o capital rompe fronteiras nacionais e se
constitui num poder global. A principal alternativa para o ajuste à reestruturação
produtiva, promovida pela globalização é a desregulamentação – que se dá pela
descentralização do Estado e pelas privatizações das empresas estatais – ou seja, a
existência mínima de leis que garantam direitos sociais, antes assegurados pelo
Estado de Bem-Estar.
Cambaúva e Silva Júnior (2005) mostram que o neoliberalismo pretende
resgatar as teses liberais abandonadas na ocorrência da crise de 1929, quando
então o Estado adotou medidas de bem-estar social propostas por Keynes (1883-
1946), para retomar o crescimento do País (Cambaúva, 2002). O mercado passa a
ser o grande regulador das relações sociais. Estratégias culturais desse projeto
constroem novos significados sociais, que legitimam suas práticas. Como destaca
Gentili (1996), Anderson (1995) e Frigotto (1996), trata-se de um ambicioso projeto
de reforma ideológica da sociedade que, inclusive, procura tirar a legitimidade de
discursos que a eles se opõe (JAMESON, 1996). A ideia da “escolha profissional” é
também portadora desses sentidos e afirma racionalidades, atribuídas ao mundo do
trabalho nessa ordem. Entendo que uma profissão é concebida como uma prática
social e, por isso, revela sentidos de um tempo específico, no caso, os da
modernidade que persistem. Isso é parte do campo de experiências e das
expectativas de vestibulandos/as. Esses sentidos presidem e orientam os projetos
50
profissionais e revestem-nos de um ar de naturalidade. Por isso, nem sempre essas
condições são percebidas por quem faz essa ou aquela opção profissional. É o que
Velho (1999), chama de domínio inconsciente do campo de possibilidades de um
projeto. Mas, sentidos conferidos a “escolha” de uma profissão tem uma história que
se faz em função da finalidade com que fora criada.
A emergência dos estudos sobre orientação profissional está atrelada ao
surgimento da indústria moderna. Na Idade Média não havia uma preocupação em
escolher uma profissão, aliás, essa dimensão individual era valorizada; seguia-se o
ofício dos pais, na maioria das vezes. As práticas de Orientação Vocacional (OV)28
surgem com o intuito de identificar os trabalhadores mais aptos para tarefas laborais,
com vistas à garantia da eficiência da produtividade na sociedade industrial. Na
verdade, os estudos sobre a OV vieram posteriormente às práticas. Os estudos
sobre a matéria surgiram apenas na primeira década do século XX, com a criação
de Centros de Orientação Profissional na Europa e nos EUA. Como indica Carvalho
(1995), o Centro de Orientação Profissional criado por Frank Parsons, em 1907, na
cidade de Boston, é considerado o marco inicial da orientação profissional. A base
desses estudos reforçava a percepção inatista do ser humano, tratando habilidades
e aptidões como pertencentes à natureza humana. Estavam atrelados a uma lógica
classificatória e discriminatória em que se buscava identificar os mais capacitados
para assumir determinados cargos na grande indústria que surgia. A revolução
industrial fixa uma dada racionalidade apoiada na perspectiva de produção material
em que é preciso encontrar o “homem certo para o lugar certo”, com vistas à eficácia
da produtividade. Esses estudos, como os atrelados, ideologicamente, à sociedade
industrial, valorizaram a concepção liberal do ser humano e mais: contribuíram para
certa indissociabilidade dessa visão e das práticas de orientação vocacional. Isso
não elimina outras racionalidades, ou razões e também sentimentos que operam em
sentido oposto a esse, como veremos, negando visões de mundo aí estabelecidas.
Cabe destacar, ainda, tarefas assumidas por orientadores profissionais nessa
ordem e como partes dessa mesma racionalidade. Cabia-lhes o uso de técnicas
28 Embora ainda seja utilizado por alguns psicólogos, sobretudo em função da abordagem teórica adotada, o termo orientação vocacional tem sido substituído por orientação profissional em função de uma mudança no entendimento de como se forma as habilidades, aptidões e competências humanas. O uso corrente do termo vocação sugere “inclinação, propensão ou tendência para alguma coisa”. Essa inclinação estaria atrelada a uma disposição natural do espírito. Assim, o entendimento de que não existem disposições inatas no espírito humano para qualquer atividade específica e de que as capacidades humanas resultam da experiência, fez que o termo fosse repensado.
51
avaliativas das características individuais, que permitissem a identificação de
aptidões, habilidades e competências29, para poder ajustá-las às ocupações laborais
da época. Em 1869, Galton é o primeiro a mostrar que as aptidões30 humanas são
diferentes e se distribuem de acordo com uma curva estatística. Binet, no final do
século XIX e início do século XX, desenvolveu uma medida para os processos
mentais, assim como os primeiros testes de aptidão. Os testes mentais de Binet,
juntamente com testes de Casttel e a publicação “choosing a vocation” de Parsons,
em 1909, traduzem as preocupações da época. A crença básica, portanto, era a
existência de aptidões especificas mensuráveis, que precisavam estar em
conformidade com as exigências a serem desempenhadas em cada ocupação. Essa
prática, atrelada à psicometria, perdurou durante a Primeira e a Segunda Guerra
Mundial (Brown; Brooks, 1996; Carvalho, 1995). Apesar de pouca teorização, as
práticas se pautaram no modelo da Teoria do Traço e Fator, ou seja, na ideia de que
por meio de diagnósticos e prognósticos, acerca das habilidades e aptidões é
possível indicar as ocupações certas para cada indivíduo. Reforçou-se, então, a
partir dos testes de aptidão, habilidade e personalidade a indicação as profissões ou
ocupações apropriadas para cada um.
Outros construtos teóricos surgiram. Na década de 40, como indica Brown e
Brooks (1996), a “escolha profissional” foi compreendida com base nos conceitos
desenvolvidos por Carl Rogers acerca da Terapia Centrada no Cliente. Para Rogers,
a escolha é sempre individual e a necessidade maior é de instrumentalizar as
pessoas para que entrem em contato com seu “self” a fim de que façam boas
escolhas. Apesar de ressaltar as experiências do indivíduo ele o faz não
considerando a relação deste com o mundo. A ideia é que as pessoas busquem sua
autenticidade e obedeçam a sua tendência inata de “auto-atualização”, o que
contribui para reforçar as teses liberais nesse campo, ao colocar o indivíduo no
cerne dos sucessos e fracassos a ser conquistados.
29 Competência pode ser entendida como uma capacidade para produzir determinadas condutas. O termo foi introduzido na psicologia por Noam Chomsky e revela uma capacidade ainda não completamente manifesta. Assim a competência perceptiva, motora, mnésica ou cognitiva refere-se àquilo que o sujeito em condições de perceber, fazer, lembrar ou conhecer. Já Habilidade se refere a um conjunto de competências que se atualizam em comportamentos bem sucedidos e que resultam, portanto, da aprendizagem. Ou seja, é uma capacidade adquirida por meio da aprendizagem, podendo ser favorecida por aptidões inatas (DORON; PAROT, 2001). 30 De acordo com dicionário de psicologia, aptidão significa o êxito em qualquer atividade, quer se trate de uma tarefa isolada, de uma tarefa mais complexa, de uma aprendizagem ou mesmo no exercício de uma profissão. É preciso que o indivíduo possua capacidades e motivação necessária para realizar essa atividade. Vale destacar que a própria capacidade pode ser condicionada por uma aptidão que pode ser desenvolvida pela experiência e formação (DORON; PAROT, 2001).
52
Novos entendimentos emergiram a seguir. Em 1951, uma perspectiva
desenvolvimentista passou a predominar (BROWN; BROOKS, 1996). Donald Super
postula a “escolha profissional” como um processo que ocorre ao longo da vida toda,
através de diferentes estágios do desenvolvimento (SUPER, 1957). Ou seja, além
de conferirem ao indivíduo a tomada de decisão sobre uma profissão, entendem isso
como um processo que se faz ao longo do desenvolvimento humano. Nesta mesma
década, John Holland, como indica Brown e Brooks, postula que os interesses
profissionais são o reflexo da personalidade do indivíduo e, dessa forma, coloca os
interesses profissionais na base da definição de diferentes tipos de personalidade.
Ainda nessa década, e no início da década de 1960, publicações sobre as teorias
psicodinâmicas da “escolha profissional”, trouxeram o foco para a psicanálise e para
a teoria da satisfação das necessidades. De acordo com elas, a escolha passa a
fazer sentido se compreendermos as necessidades e os desejos de realizações que
são sempre individuais. Todas essas teorias dão um peso enorme àquilo que é
próprio e, por vezes, natural ao indivíduo. E, assim como as teorias de Carl Rogers,
acabam por reforçar as teses liberais.
Dentre todas essas teorias, destaco uma de bastante impacto na realidade
brasileira: a Estratégia Clínica de Orientação Vocacional de Rodolfo Bohoslavsky31.
Essa abordagem dá um passo importante ao considerar a natureza conflitiva que se
fazem nas intercessões indivíduo e sociedade. Na sua concepção, para que o
sujeito possa assumir uma Identidade Ocupacional, são estabelecidas relações com
os grupos sociais no qual ele está inserido e são estabelecidas identificações com
aspectos do mundo externo. Essas identificações possuem um caráter defensivo,
em nível inconsciente, no contato com os vários grupos sociais. O indivíduo admite,
então, determinados valores do grupo como sendo seus, em função da necessidade
de sentir-se parte deste grupo, repetindo regras dos grupos do qual faz parte. Em
outro momento elabora e recria essas regras. Assim, a identidade ocupacional é
definida na aproximação e no afastamento que são realizados com relação a esses
grupos de referência. Ou seja, é a expressão particular de como o indivíduo recria as
diferentes relações com os grupos sociais. Quatro fatores identificatórios são
fundamentais: as identificações com o grupo familiar, as identificações com o grupo
31 Introduzida no Brasil em 1970 por Maria Margarida de Carvalho (1995), ainda é usado nos dias de hoje. Bohoslavsky (1993) desenvolve sua teoria em oposição ao modelo da Teoria do Traço e Fator, é influenciado por Melanie Klein, da escola inglesa de psicanálise e pela psicologia do Ego norte-americana.
53
de pares, as identificações sexuais e a gênese do ideal do ego. Coloca à questão
para além da análise de aptidões, habilidades e personalidade.
O problema desse construto teórico é que, ao teorizar sobre o ideal do ego,
cuja origem é o narcisismo, recoloca-se a questão pessoal como primordial.
Semelhante a Carl Rogers que afirma uma tendência de auto-atualização,
Bohoslavsky (1993) situa, nos indivíduos, uma tendência a reencontrar a perfeição
narcisista da infância, marcada pelo amor de si mesmo e o sentimento de
onipotência. Na infância, a criança é seu próprio ideal, mas como a perfeição
narcisista não pode ser mantida, o narcisismo é perdido. E, esse é, então, deslocado
sobre o ideal de ego projetado em frente dele. Assim, vive-se impulsionado pelo
desejo de encontrar o tempo que ele era o seu próprio ideal. O ideal de ego,
segundo o autor, é o que leva os homens a construírem seus projetos.
Tendo a concordar com noções que vêem as experiências moverem-se em
função de certas expectativas humanas, mas isso não se dá, necessariamente, em
função daquilo que foi perdido pelo indivíduo na infância: a sensação de suposta
completude que será buscada por toda a vida. As experiências movem-se, é o que
pretendo mostrar, com certos sentidos civilizadores que se constroem nas mais
variadas formas de interação e de intercâmbio social. Dessa forma, mais do que
relações escolares, familiares e com pares estão em jogo. O contexto em que se
vive é muito mais amplo: há projetos familiares, posições de classe, relações de
gênero, raça e cor, acesso à educação, projetos e expectativas dos pais, economia,
capital cultural, significações culturais, enfim um campo de experiências múltiplas.
Distinguem-se outras perspectivas no campo das “escolhas profissionais”.
Teorias, consideradas econômicas, em geral, entendem essa problemática em
função da estrutura de salários e valorização social das profissões. Desconsidera
gostos, desejos, vontades e, sobretudo, processos sociais de longa duração
histórica, que possam incidir sobre esse fenômeno, segundo Silva (1995). Na
mesma perspectiva, teorias sociológicas dão ênfase à determinação do meio sobre
o indivíduo. Postulam que a estratificação da estrutura social determina a forma de
organização para o trabalho e a inserção dos indivíduos nela. Essas teorias,
entretanto, acabam caindo num extremo oposto: entendem o meio, seja econômico
ou social, como determinante nas escolhas individuais. O que se evidencia, até aqui,
é que as análises sobre a “escolha profissional”, ora recaem sobre o indivíduo, ora
54
nos determinismos sociais. O ponto frágil, entre todas elas, é não articular aspectos
individuais com os processos sociais mais amplos para a compreensão da questão.
Perspectivas mais recentes foram desenvolvidas em função dessa lacuna. No
campo educacional, Ferreti (1997), e Pimenta (1981), desenvolvem estudos que
enfatizam os processos sociais envolvidos na opção por uma profissão. Os autores
percebem o viés ideológico da orientação vocacional, atrelada aos interesses da
sociedade industrial. Destacam que o modo de produção capitalista condiciona as
pessoas em relação às atividades profissionais, em função das classes sociais de
origem e demonstram a influência dos fatores sócio-econômicos para a “escolha
profissional”. Os autores criticam, inclusive, as abordagens psicológicas em que esta
é compreendida a partir de conceitos psicanalíticos ou de características da
personalidade. Caminham no sentido de refletir sobre o contexto social no processo
da escolha de uma determinada profissão. No campo da psicologia essa problemática também foi levantada por Bock
(1995). Sua perspectiva se faz a partir da concepção dialética sobre a relação entre
indivíduo e sociedade. A base teórica são as proposições de Vygotsky. O autor faz
severas críticas às concepções de ser humano de sociedade, colocadas nas
abordagens da orientação profissional. Indica que grande maioria delas acaba por
reforçar o ideal liberal, criando a percepção de que a trajetória de vida da pessoa
depende exclusivamente dela mesma e, por isso, suas escolhas são essenciais
(BOCK, 2002). Na concepção liberal, a ordem econômica e social apenas colocaria
obstáculos que os indivíduos deveriam superar. Para ele, essas teorias “ao invés de
proceder a uma análise de como a sociedade está estruturada, desenvolve-se
análise do indivíduo para que ele bem se adapte a esta ordem sem jamais
questioná-la” (BOCK, 1995, p. 68).
Se por um lado, esses últimos estudos são importantes por denunciar o
caráter ideológico das práticas de OV e, por mostrar que o contexto em que o
indivíduo se insere, interfere nos projetos profissionais, por outro, não exploram
como se dá de fato essa articulação. Além disso, Ferreti (1997) e Pimenta (1981)
destacam que muitos jovens de classes sociais mais baixas não optam por uma
carreira ou ocupação, ou o fazem sob certas limitações, sujeitando-se a
subempregos e má remuneração, o que para eles é uma atitude sem escolha. Mas,
de fato será que apenas uma das classes é que pode efetivar “escolhas”? Concordar
com isso, não significa negar qualquer potencial de transformação humano e
55
condená-lo às determinações das condições que o forjaram? O fato de haver
diferentes condições de inserção econômica, política, social e cultural significa que
para os menos favorecidos não há chance de se fazer opções profissionais? Ou
será que podemos afirmar que há negociações com a realidade, em diferentes
planos, a partir das diferentes experiências? Nesse ponto foi necessário fazer
rupturas e superações em relação às formas de se conceber essa temática.
Proponho pensar os projetos profissionais como processo e como indissociável das
experiências humanas. São projetos que se constroem ao longo do tempo num
campo de experiências humanas e com um horizonte de expectativas, à moda de
Koselleck (2006). Por isso, prefiro o uso do termo “projetos profissionais” em lugar
da expressão “escolhas profissionais”.
1.2.2 Continuidades e rupturas: os projetos profissionais
Fugindo dos economicismos e quaisquer teorias determinísticas, numa
perspectiva de ruptura com a visão liberal de ser humano, encontrei importantes
contribuições em Velho (1999), sobre a noção de projeto. Para ele, projeto refere-se
a uma conduta organizada do indivíduo que se faz com vistas às perspectivas
futuras, delineadas no campo de possibilidades dos indivíduos. O projeto é
articulado a uma “dimensão mais racional e consciente, com as circunstâncias
expressas no campo de possibilidades, inarredável dimensão sócio-cultural,
constitutiva de modelos, paradigmas e mapas” (VELHO, 1999, p.9). Esse campo é
próprio da sociedade complexa moderna caracterizada por “províncias de
significados infinitas”. Permeado por oportunidades e alternativas múltiplas que se
constroem:
Campo de possibilidades trata do que é dado com as alternativas construídas ao processo sócio-histórico e com o potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura. O projeto no nível individual lida com performance, as explorações, o desempenho e as ações, ancoradas a avaliações de definições da realidade (VELHO, 1999, p. 28).
De acordo com a proposta do autor, a necessidade da construção de projetos
coloca-se em função dos indivíduos, na atualidade, viverem em uma sociedade
fragmentada e heterogênea, na qual a multiplicidade de motivações e a própria
56
fragmentação sócio-cultural produzem a necessidade de uma organização individual
e/ou coletiva de condutas. Isso traz, portanto, possibilidades de interação, mas
também de conflito, característico do processo constitutivo da realidade social. A
partir dessa visão, o entendimento é de que os indivíduos movem-se não porque são
determinados, socialmente, ou em função de sua vontade soberana, mas porque
fazem parte do processo de construção social da realidade:
Para lidar com o possível viés racionalista, com ênfase na consciência individual, auxilia-nos a noção de campo de possibilidades como dimensão sociocultural, espaço para a formulação e implementação de projetos. Assim evita-nos um voluntarismo individualista agonístico ou um determinismo sócio-cultural rígido, as noções de projeto e campo de possibilidades podem ajudar a análise de trajetórias e biografias enquanto expressão de um quadro sócio-histórico, sem esvaziá-las arbitrariamente de suas peculiaridades e singularidades (VELHO, 1999, p. 40).
Essa postura parece útil para pensar os projetos profissionais, visto que
pressuponho a “escolha profissional” não como um momento isolado na vida das
pessoas. Mas, como algo que se dá nas relações humanas. Também não a
considero como atitude que deriva de sua responsabilidade e autonomia em relação
às condições do meio. Por outro, utilizar a proposta desse autor permite-me uma
proposição que não esvazia os indivíduos de seu potencial criativo e transformador.
Ou seja, o potencial de metamorfose que possibilita aos indivíduos “transitarem
entre diferentes domínios e situações” (VELHO, 1999, p. 82). Um outro ponto
importante, que destaco desse entendimento que construo é que, apesar das
negociações com a realidade nem sempre se fazerem de forma consciente, os
projetos profissionais não são “abstratamente racionais”. Eles resultam de
“deliberação consciente”, feitas a partir de circunstâncias em que o sujeito está
inserido, ou seja, no seu campo de possibilidades. Isso implica no reconhecimento
de possibilidades, mas, também, de limitações. A postura que afirmo na construção
dos projetos profissionais é que há um sujeito ativo em seu processo de construção
da realidade. As pessoas pensam, sentem e agem e nesta interação com o campo
de possibilidades constrói sensibilidades. Um processo interativo com os múltiplos
sentidos e possibilidades da realidade social e, por isso, sempre sujeitos a
transformações. Como afirma Velho (1999, p. 104) “o projeto é dinâmico e é
permanentemente reelaborado, reorganizando a memória do ator, dando novos
sentidos e significados, provocando com isso repercussões na sua identidade”.
57
Os projetos profissionais não são necessariamente individuais, na medida em
podem ser elaborados e partilhados por um grupo social ou pela família. Os projetos
individuais conectam-se, além disso, aos projetos coletivos. Mas, é a “consciência e
valorização de uma individualidade singular, baseada em uma memória que dá
consistência a uma biografia, o que possibilita a formulação e a condução de
projetos” (p. 101). Memória e projeto amarram-se, “são visões retrospectivas e
prospectivas que situam o indivíduo, suas motivações e o significado de suas ações,
dentro de uma conjuntura de vida, na sucessão de etapas de sua trajetória”. Com
isso não pretendo desvalorizar ou não reconhecer processos inconscientes na
escolha “as circunstâncias e o campo de possibilidade de onde brotam os projetos
estão profundamente afetados por uma dimensão racional e não-consciente”
(VELHO, 1999, p. 140).
A concepção de projetos profissionais porta, portanto, o entendimento de que
indivíduo e sociedade estão em constante mutação e interação. Foi útil para esse
entendimento as contribuições de (ELIAS, 1990) sobre a negação do homo clausus,
ou seja, de um ser humano fechado em si mesmo. Muitas abordagens sobre
orientação profissional ainda se pautam nesse entendimento. O que afirmo é a
concepção de um ser social. Indivíduo e sociedade não são entidades estáticas; isso
significa reconhecer a experiência histórica como individual e coletiva. Como afirma
Elias (1990), indivíduo e sociedade não dizem respeito a objetos separados, “mas a
aspectos diferentes, embora inseparáveis, dos mesmos seres humanos, e que
ambos os aspectos (e os seres humanos em geral) habitualmente participam de
uma transformação estrutural”. Também entendo a mudança, “como característica
normal da sociedade” (ELIAS, 1990, p. 222), e não uma perturbação do equilíbrio
como reforçam as tendências positivistas.
A outra contribuição de Elias (1990) para se pensar os projetos profissionais
diz respeito ao entendimento de que a história humana se faz com sentidos
civilizadores. Esses sentidos não dizem respeito a uma concepção evolucionista ou
de progresso. Mas, observa nos estudos dos costumes que as sociedades
desenvolvem-se em direção ao que se concebe como certo ideal da civilização. É
fato que o autor esteja comprometido com ideias psicanalistas, as quais o fazem
postular que o processo civilizador se dá em função da repressão do desejo e da
dor. O custo de ser civilizado estaria na infelicidade humana. Ele situa o movimento
em direção a um autocontrole “mais forte e mais civilizado” como parte desse
58
processo. Mas, não é esse o ponto que considero o mais importante de sua obra e
não é o que pretendo afirmar. Os sentidos civilizadores orientam práticas e
representações sociais que compõem as experiências humanas, e, portanto, os
projetos como partes delas. Mas, são sentidos que se constroem no próprio campo
de experiências humanas, e não fora dele. Por isso, não se trata de evolucionismo,
mas admitir dadas configurações sociais, presidindo-os em muitas direções, daí, as
contradições que preserva.
As contribuições de Koselleck (2006), sobre a história, foram bastante úteis
para uma aproximação com o método histórico. Foram um atalho para a
compreensão de que as análises do presente incluem o passado e o futuro na
matéria de muitas complexidades. Revi-me e pude examinar muitos paradigmas.
Localizei, desse modo, indicações sobre meu próprio processo de tomada de
consciência em relação a escolhas metodológicas a seguir, e as opções em relação
ao método histórico ganharam nitidez. Nas indicações de Costa (2009, p. 111), vi-
me diante de meu próprio processo de tomada de consciência sobre o tempo
histórico, ou seja, ao modo de associar o presente, o passado e o futuro que um
dado projeto expressa:
Sem dúvida, nesse esforço de tomada de consciência, há modos de evitar surpresas. Mais uma vez Hartog (1999:129) serve de referência quando afirma que, na história, “não é mais o passado que deve esclarecer o futuro, mas, inversamente, cabe ao futuro esclarecer o passado” (p.133), daí outra pergunta: – Como, nessa nossa tarefa, responder à exigência de “circular entre passado, presente e futuro”, considerando que os processos sociais do presente são sempre o futuro dos processos vividos no passado? Para pensar conceitos que temos desenvolvido é preciso pensá-los como partes de processos sociais de longa duração histórica e de tempos múltiplos.
Aliás, experiência e expectativa são categorias que encaminham a percepção
do projeto como significativo do tempo histórico, nesse entrelaçar presente, passado
e futuro. “A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram
incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto elaboração
racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou
que não precisam mais estar presentes no conhecimento” (KOSELLECK, 2006, p.
309). Na experiência de cada um (transmitida por gerações e instituições) está
contida e conservada uma experiência alheia. A expectativa, como lembra
Koselleck, conserva aspectos individuais de uma história coletiva. A expectativa
também se realiza no hoje, “é futuro presente” voltada para o que não foi ainda
59
experimentado e pode ser apenas previsto. “Esperança e medo, desejo e vontade, a
inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem
parte da expectativa e a constituem” (p.310). A noção de experiência presente,
ligada ao passado e à expectativa ao futuro, indica que nada se desenvolve numa
perspectiva linear e nada chega a coincidir. Na verdade, o futuro não é o resultado
de um passado. A tensão entre experiência e expectativa é que faz emergir o tempo
histórico. O termo “horizonte” é usado por significar “linha por trás da qual se abre no
futuro um novo espaço de expectativa, que ainda não pode ser contemplado” (p.
311). A expectativa não pode ser experimentada da mesma forma que a experiência
(que é passada, portanto é espacial e pode ser localizada em um campo), mas pode
ser objeto de experiência enquanto um reflexo na consciência ou como portadora de
angústia e esperança.
No caso deste trabalho, entender os projetos profissionais, nessa ótica,
passou a significar a possibilidade de desvendar, mesmo que em parte, a trama
tecida por e entre seres humanos, em redes interdependentes, e poder verificar a
atualização de processos sociais que aí se expressam. Nessa orientação, examinei
processos sociais nem sempre percebidos, vistos na experiência pessoal e na
interação entre sujeitos, apesar dessa ou daquela condição social. Foi útil nessa
abordagem, pensar esses movimentos humanos recorrendo à noção de rizoma,
metáfora enunciada por Guattari e Deleuze (1997), conforme reflexões de Joana
Maria Pedro, discutidas por Suely Gomes Costa (2009a) para a história dos
feminismos. Nessa ótica, a organização dos elementos sociais que constituem a
energia propulsora de um desejo e de um projeto profissional não está
necessariamente visível, nem tampouco se refere a uma única conjuntura. Na
perspectiva da longa duração histórica, o exame de uma dada conjuntura, tanto
permite distinguir continuidades, como rupturas que podem mudar algumas
tendências sociais, mas nem todas.
1.3 Os projetos profissionais localizam-se no tempo e no espaço
As experiências humanas localizam-se num determinado tempo histórico e,
também, num dado campo de constituição de forças, ou seja, num espaço social
60
específico. Conhecê-lo, mesmo que por meio de indícios, é fundamental para
compreender os projetos profissionais. Dessa forma, aspectos regionais/locais
situam singularidades presentes nas experiências humanas e ajudam a compor esse
campo de possibilidades. Constituem sinais de uma temporalidade, indícios de uma
dada configuração espacial das experiências humanas. Localizadas e datadas, as
dinâmicas sociais se inscrevem em diversas configurações e apontam
diferenciações significativas (GRIBUADI, 1999). Há especificidades e tendências
regionais/locais por conhecer, que estão nessas configurações. Essas tendências,
em maior ou menor grau, fazem parte da rede de relações sociais, traduzindo
interação e conflito vividos pelos indivíduos nas suas decisões sobre projetos
profissionais. As experiências a que me refiro estão localizadas na cidade de Vitória,
capital do Espírito Santo.
Vitória é uma pequena ilha, o menor município da região metropolitana do
Estado. Somada à porção continental, possui uma população estimada em 320.156
habitantes, de acordo com dados do Governo do Espírito Santo32. Essa população
caracteriza-se por uma taxa de urbanização de 98,09% e uma grande quantidade de
jovens, como indicado na pirâmide etária: cerca de um terço da população de Vitória
possui entre 15 e 29 anos, ou seja, 29,2% de jovens, segundo dados atualizados33,
em 2008. A população feminina é ligeiramente superior a masculina como também
pode ser observado: Figura 1. Pirâmide Etária de Vitória
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Contas Nacionais. Vitória, 2009.
32 Disponível em: http://www.vitoria.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 33 Disponível em: www.agenciabrasil.gov.br. Acessado em 23/06/2010.
61
Essa cidade de jovens experimenta condições de crescimento econômico que são
também favoráveis à busca de cursos universitários. O Estado do Espírito Santo,
apesar de um território relativamente pequeno (0,54% do nacional) e de uma
população relativamente pequena, em comparação com os demais Estados
brasileiros, no ano de 2007, “apresentou a 4ª maior renda per capita entre as UF's
(R$18.003,00), ultrapassando Santa Catarina e sendo superado, apenas, pelo
Distrito Federal, São Paulo e Rio de Janeiro”34. A população, economicamente ativa,
é de quase 50% do total35. A tendência da renda média domiciliar per capita é
ascendente desde 200336. A taxa de crescimento do Estado de 2003 a 2007 foi,
inclusive, superior às taxas de crescimento do Brasil no Sudeste, segundo dados do
Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN)37. Mesmo em 2009, a despeito da crise
mundial, o PIB nominal estadual aumentou de um montante de R$ 40,2 bilhões38,
para R$ 63,5 bilhões. Nesse contexto, a cidade de Vitória possui um dos maiores
PIBs do Brasil. Isso tudo projeta uma perspectiva de crescimento para a região, o
que impacta nas ofertas de empregos e, por conseguinte, na construção dos
projetos profissionais. É a partir de 2005, de acordo com IBGE-IPEA39, que o
Espírito Santo demonstra um destaque significativo no crescimento do seu PIB:
Tabela 1. Crescimento Anual Médio do PIB: Espírito Santo e Brasil
Períodos/anos ES BR Diferença 70-80 12,08% 8,64% 3,44% 80-90 3,34% 1,59% 1,75% 90-05 3,83% 2,64% 1,19% 70-05 5,97% 4,01% 1,96%
2002-2005 3,72% 3,32% 0,40% 2006 6,00% 3,75% 2,25% 2007 8,00% 5,42% 2,58% 2008 8,00% 5,20% 2,80%
Fonte: IBGE-IPEA
34 Disponível em www.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 35 Disponível em www.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 36 Disponível em www.ijsn.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 37 Disponível em www.ijsn.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 38 Disponível em www.ibge.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 39 Disponível em www.ibge.gov.br. Acessado em 23/06/2010.
62
Esse crescimento econômico está atrelado à própria história do Estado. A
partir dos dados do IBGE é possível verificar o crescimento na produção industrial
de 30,1% entre 1990 e 1999, um crescimento de quase o dobro da média nacional.40
Apesar da desaceleração do crescimento do mercado mundial, e a conseqüente
queda no faturamento das indústrias, no primeiro semestre de 200941, houve um
crescimento no faturamento nas indústrias de Vitória. As principais atividades
industriais da cidade são: extração mineral, metalurgia básica e exploração de gás e
petróleo. Aliás, principalmente, as descobertas e já iniciadas atividades de
exploração de grandes bacias de petróleo, com grandes expectativas de produção,
contribuem para a projeção de um futuro de crescimento econômico para este
Estado. O que projeta também, perspectivas de emprego nestas áreas e reforça o
imaginário da região em relação aos cursos técnicos profissionalizantes ligados à
produção e, no caso das profissões superiores, reforça o interesse pelas
engenharias, sobretudo, a de petróleo e gás.
A exemplo do Estado, na região metropolitana de Vitória, o setor de
exportação de minério é o grande responsável pelo crescimento da região, além da
erradicação do café, antiga e importante atividade econômica do Estado, a qual
produz um êxodo do interior para a capital. As atividades ligadas à exploração de
petróleo e gás natural são, também, responsáveis por impactos positivos na
conjuntura do Estado e da cidade de Vitória: aumento de investimentos e geração de
empregos, a expansão das atividades portuárias, fomento ao turismo de negócios,
entre outros. Uma expansão visível da construção civil é parte desse
desenvolvimento, bem como o crescimento do setor de transporte, educação e
saúde com a vinda de famílias de outros estados, transferidas para empresas filiais
implantadas no Espírito Santo ampliando o campo de possibilidades profissionais
nas áreas do setor social.
Seguindo a tendência observada em outros centros desenvolvidos do país e
do mundo, Vitória também vem mudando o seu perfil econômico, deslocando seu
eixo dinâmico das atividades industriais tradicionais para uma ampliação e
diversificação de atividades de serviços, e para aquelas fortemente correlatas ao
40 A implantação das empresas industriais de porte dimensionado, nascidas na conjuntura econômica dos 'grandes projetos' dos anos 1980, como a Companhia Siderúrgica de Tubarão – CST, a Companhia Vale do Rio Doce e a Aracruz Celulose, impulsionaram esse desenvolvimento. 41 Disponível em www.ijsn.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010.
63
conhecimento e à propriedade intelectual. Os dados da Companhia de
Desenvolvimentos de Vitória (CDV)42 tratam da especialização das atividades que se
desenvolvem na Grande Vitória e, em especial, na capital, mostrando que cerca de
73% de empregos do mercado de trabalho encontra-se na produção de serviços
(incluída a administração pública), 18% no comércio e 9% no setor industrial. O
emprego industrial está concentrado na construção civil, que emprega um terço da
força do trabalho industrial da região. Uma das consequências dessas mudanças em
relação à população que investigo é a transferência da procura dos jovens por
cursos técnicos ligados às áreas industriais (como os cursos do SENAI que formam
quadros para diversas áreas da indústria) pela busca de qualificação superior.
Além disso, os dados macrossociais coletados servem para se compreender
o momento de crescimento da economia local, o que gera nos/nas jovens
investigados, exigências, bem como o desejo de maior qualificação profissional. Isso
está atrelado às transformações vividas no mundo de trabalho em escala planetária,
o que têm modificado as demandas de trabalho também nesta localidade. As
relações de trabalho, caracterizadas por meio de contratos formais realizados entre
‘patrões’ e ‘empregados’, e por um perfil de trabalhador médio, constituído por
indivíduos do sexo masculino, de baixa escolaridade, formados ‘no chão de fábrica’
das indústrias, diretamente nas linhas de produção, têm se modificado. Junto a isso,
as novas relações de trabalho mais flexíveis e o impacto das novas tecnologias tem
forçado esse trabalhador a se especializar e se escolarizar mais. Crescem, portanto,
as exigências de formação e de qualificação profissional. Esse é um ponto em
comum entre essas tendências, seja por medo de perder o emprego ou pelo desejo
de buscar melhores oportunidades.
Mas não há apenas essas tendências no horizonte de expectativas dos/as
vestibulandos/as que investigo. O ingresso no Ensino Superior ainda é uma
realidade distante para muitos. Camadas médias e altas da sociedade capixaba, que
buscam por formação superior e especializações, contrastam-se com uma
população pobre, que dispõe de poucos recursos econômicos e deficitário acesso à
educação. A realidade educacional do Estado ainda é precária. A permanência na
escola e o tempo médio de estudo são pequenos. Os dados do IBGE mostram que,
em 2008, no Espírito Santo, 553.396 pessoas matricularam-se no Ensino
42 Disponível em www.cdvitoria.com.br. Acessado em 23/06/2010.
64
Fundamental, enquanto que apenas 139.984 no Ensino Médio. As matrículas no
Ensino Superior caem ainda mais: 89.610. A média de estudo da população urbana,
com mais de 25 anos, é de 6,5 anos e a média da população rural cai para 3,4 anos.
Tendência também verificada no país.
A cobertura de Educação Fundamental, na capital, é um pouco melhor devido
à efetiva participação do município Vitória, juntamente com a oferta da iniciativa
privada, tendência que se verifica pela crise crônica do erário público que tem
afetado a rede estadual. Mas no Ensino Médio a situação é muito diferente, esse
segmento de responsabilidade do Estado do Espírito Santo é precário e sem
qualidade, o que exclui a parcela da população pobre do acesso aos níveis
superiores de ensino. Em contrapartida, a iniciativa privada oferece uma educação
de qualidade àqueles que podem pagar, impulsionando-os ao ingresso no Ensino
Superior, principalmente na Universidade Pública. Mas, de acordo com o Setor de
Estatística da Secretaria de Estado da Educação (DAD/SEDU), no Ensino Médio,
apesar do grande número de estabelecimentos de ensino privado, há mais
vestibulandos/as na rede pública de ensino do que na rede privada43. Um indicativo
do caráter elitista e discriminatório da educação desta localidade, o que também é
tendência brasileira. Analisando o quadro de matrículas, disponibilizados pelo
IBGE44 para o Estado do Espírito Santo, é possível perceber esse caráter excludente
visto que as matrículas, no Ensino Médio, caem, consideravelmente, em relação às
matrículas do Ensino Fundamental. Dessa forma, tendências de crescimento
econômico e perspectivas de maiores qualificações misturam-se às tendências de
exclusão tanto educacional como, em consequência, profissional, perspectivas
também comum aos quadros de crescimento brasileiro.
É nesse contexto que se compreende, ao menos em parte, porque cresce nos
últimos anos a procura por cursos superiores. Aliás, vive-se um boom das
Instituições de Ensino Superior Privado. Além da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), há no estado, 26 instituições privadas desse segmento. E o número
de matrículas nestas é superior aos da rede pública: 12.456, na escola pública
federal e 22.641, na escola superior privada45. Isso mostra que Ensino Público
43 Disponível em www.sedu.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010.Esses dados são pelas estatísticas do IBGE (ano 2008) que mostra que dos 17.730 vestibulandos/as matriculados no Ensino Médio, 11.294 matrículas estão na escola pública estadual, 597 matrículas na escola pública federal e 5839 na escola privada. 44 Disponível em www.ibge.gov.br. Acessado em 23/06/2010.
65
Superior é para poucos. A reversão no indicativo de matrículas, em relação ao
Ensino Médio, ainda sugere que ingressará na Universidade Pública a minoria
advinda do Ensino Médio Privado, enquanto a maioria do Ensino Público, em nível
médio, recorrerá às instituições privadas, ou, em grande parte dos casos nem
mesmo ingressará nessa etapa de ensino.
Os dados coletados também apontam para a constituição de uma classe
média baixa, que busca ascensão a partir da educação superior. As matrículas no
Ensino Superior, na região de Vitória, são, consideravelmente, maiores do que as do
Ensino Médio: 35.240 matrículas no primeiro, enquanto o Ensino Médio totaliza
18.88346. Muitos jovens, após o ingresso no mercado de trabalho, fazem a opção
pelo Ensino Superior. Isso também se explica em função da migração de jovens de
classes mais privilegiadas do interior, pois é comum nessa região que os filhos de
fazendeiros e profissionais liberais das cidades do Estado, migrem para a capital
para cursar o Ensino Superior, seja na Universidade Pública ou em instituições
particulares. A concentração dessa etapa de ensino, no município de Vitória, que
detém cerca de 60% dessa atividade e praticamente a totalidade da Pesquisa e da
Pós-Graduação.
A tendência de explosão na demanda por Educação Superior é uma realidade
brasileira. Conforme indica o Plano Nacional de Educação (PNE)47, a participação do
ensino privado em nível superior aumentou, sobretudo, na década de 70, em função
da pressão de demanda a partir da "questão dos excedentes", ou seja, aqueles que
não conseguiam passar na prova do vestibular para ingressar nessa etapa. Nos
últimos vinte anos, o setor privado oferece cerca de dois terços das vagas na
Educação Superior. E de 1994, até os dias atuais, o número de estudantes vêm
aumentando 36,1% nas instituições privadas. O número é superior ao das públicas,
cujo crescimento foi de 12,4% nas federais, 18,5% nas estaduais, e 27,6% nas
municipais. A realidade brasileira, também aponta para uma distribuição desigual de
vagas por região. Essa desigualdade resulta da concentração das matrículas em
instituições particulares das regiões mais desenvolvidas. O setor público, por outro
45 Disponível em www.ibge.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 46 Disponível em www.educacao.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 47 Disponível em www.portal.mec.gov.br. Acessado em 23/06/2010.
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lado, está mais bem distribuído e cumpre, assim, uma função importante de
diminuição das desigualdades regionais - função esta que deve ser preservada.
Neste contexto, observo a exemplo de tendências nacionais, o surgimento de
propostas de incentivo e democratização do Ensino Superior. O acesso à
Universidade é incentivado no ES por meio de projetos estaduais como o NOSSA
BOLSA48, o qual facilita a entrada de jovens em Instituições de Ensino Superior
privado. O programa Nossa Bolsa é uma iniciativa de Governo do Estado do Espírito
Santo, por meio da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia (SECT), que apoia
financeiramente estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas
públicas da rede do ES, e que não possuem condições para o custeio de seus
estudos.
O Programa Universidade para Todos (ProUni)49, uma proposta do Governo
Federal brasileiro, existente desde 2004, também se fez nessa perspectiva. O
objetivo é oferecer aos estudantes, de baixa renda, bolsas de estudo integrais ou
parciais em faculdades privadas, concedendo isenção de alguns tributos fiscais. Há
ainda o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)50. Trata-se de uma prova criada
pelo Ministério da Educação do Brasil, desde 1998, utilizada como exame de acesso
ao Ensino Superior em universidades brasileiras e, ainda, como forma de avaliação
da qualidade do Ensino Médio no país. O resultado dessa prova define a distribuição
de bolsas do ProUni e quanto maior a pontuação do/a aluno/a, maiores são as
possibilidades de escolha de um curso ou uma Instituição de Ensino.
É claro que são tentativas de democratização do ensino, que se atém muito
mais aos números do que a qualidade. Além disso, são políticas atreladas às
perspectivas mundiais de educação para a América Latina, como mostra Coraggio
(1996), revelando a tendência de dependência do Brasil em relação ao capitalismo
mundial (RIBEIRO, 2007). Mas, o fato é que se produzem impactos no delineamento
dos projetos profissionais e, por isso, trago essas questões para análise.
A Universidade Federal do Espírito Santo, também aderiu ao programa de
cotas sociais no vestibular. O sistema que visa democratizar o acesso ao Ensino
Superior no Estado, institui reserva de 40% das vagas da graduação para ex-
48 Informações no site: www.nossabolsa.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 49 Informações no site: http://prouni-inscricao.mec.gov.br/PROUNI/inf_est.shtm. Acessado em 23/06/2010. 50 Informações no site: www.enem.inep.gov.br. Acessado em 23/06/2010.
67
estudantes de escolas públicas. Os critérios para esta reserva são: 1. Ter estudado
em escolas da rede pública no mínimo durante sete anos (incluindo os três do
Ensino Médio); 2. Ter renda familiar inferior a sete salários mínimos. Contrário às
reivindicações do Movimento Negro do Estado, o sistema não fez distinção entre
brancos e negros, por prever que mais da metade dos/as vestibulandos/as (52%) de
escolas públicas de Ensino Médio do Espírito Santo são negros ou pardos51.
Um outro projeto local é criado para viabilizar o acesso ao Ensino Superior: o
Projeto Universidade para Todos (PUPT), cujo objetivo é oferecer um cursinho
preparatório para o vestibular aos estudantes de baixa renda, provenientes de
escolas públicas das cidades de Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacia e Linhares no
Estado do Espírito Santo. É neste pré-vestibular público, inclusive, que realizo as
entrevistas dos/as vestibulandos/as. Segundo entrevista com o coordenador e um
dos fundadores do PUPT, o projeto foi criado, em 1996, por três alunos do curso de
administração da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), no Centro
Acadêmico do próprio curso e, mais tarde, o que iniciou com apenas uma turma,
atende hoje a 2300 vestibulandos/as. 52 Em vista dos resultados positivos já no
primeiro vestibular, ou seja, como afirma o coordenador do curso “com a aprovação
dos vestibulandos/as de escola pública no vestibular da UFES mesmo antes do
sistema de cotas”, o projeto expandiu-se. Ele continua:
O trabalho que iniciou com parceria de apenas uma empresa, em 1997 passou a ser gerido pela fundação Ceciliano Abel de Almeida, que atua na gerência de recursos que a UFES recebe de parcerias e patrocinadores. O PUPT passou a ser mantido por essa Fundação no que diz respeito aos custos e à remuneração dos profissionais envolvidos.
No final de 2003, esses dois homens, na época estudantes do curso administração
da UFES, fundaram uma Organização Não Governamental (ONG) destinada a não
só gerenciar o projeto por eles criado, mas também associá-lo a projetos de cunho
social, na área educacional. A partir daí, a proposta do cursinho para alunos de
escola pública, idealizada por esses dois indivíduos juntamente com um terceiro, um
funcionário da UFES, seguirá duas vertentes: numa delas, sob responsabilidade da
51 Disponível em: http://portal.ufes.br/cotas. Acessado em 23/06/2010. 52 Conforme entrevista com um dos integrantes da ONG, fundador do projeto lá em 1996, dos 2500 vestibulandos/as que estudam no PUPT, aproximadamente 700 são atendidos pela ONG e 1800 pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida A Fundação Ceciliano Abel de Almeida trata-se de uma entidade jurídica de direito privado sem fins lucrativos, instituída em 27 de outubro de 1977, cuja finalidade é prestar consultorias, serviços técnicos e científicos nas diversas áreas de atuação da UFES.
68
Fundação Ceciliano Abel de Almeida, terá a coordenação de um dos mentores,
funcionário da Universidade; na outra vertente, esses dois antigos alunos e já
formados, criarão uma ONG para oferecer o mesmo serviço. Ainda que um projeto
de cunho social, ele visa facilitar o ingresso de jovens ao Ensino Superior e,
portanto, trabalhando em função da democratização do ensino, o acesso a ele não é
livre. É preciso uma prova seletiva para que os/as vestibulandos/as que cursam o
Ensino Médio possam, em horário alternativo, ter direito a essas aulas. Segundo o
coordenador do Projeto, a concorrência é grande e só passam os mais
“interessados”; chegaram a ter, inclusive, 8.000 inscrições. Há também duas turmas
as quais atendem vestibulandos/as de projetos sociais que já finalizaram o segundo
grau, entretanto, essa seleção, é feita por conta de cada comunidade.
Tudo isso, além de reforçar as perspectivas nacionais de democratização do
Ensino Superior, criam condições específicas que favorecem a redução de
embargos postos ao ingresso no Ensino Superior, ampliando, pois, esse campo de
possibilidades de projetos profissionais impensáveis sem esse apoio. São iniciativas
que registram tentativas de superar um universo de desigualdades de acesso à
educação, um fenômeno, aliás, da longa duração na história da educação brasileira.
Essa primeira aproximação do tema, mais macroanalítica, foi tratada como
indícios de partes constituintes do campo de experiências dos jovens entrevistados.
Distinguem deles, processos sociais vividos, portanto, a serem considerados nas
trajetórias individuais do conjunto dos jovens em seus movimentos de busca para
um curso no Ensino Superior.
1.4 As experiências dos/as vestibulandos/as de Vitória sugerem algumas
direções
Uma primeira aproximação com a questão se fez com base em dados
quantitativos, usuais a abordagens macrossociais do tema. Tomei-os como indícios,
vistos como fios que compõem um tapete cuja trama densa é aparentemente
homogênea (GINZBURG, 2003). Atenta ao alerta de Gribaudi (1998), com cautela,
preferi duvidar da capacidade da retórica macroanalítica servir de modelo
interpretativo global de processos sociais que, em geral, não são visíveis nessa
69
abordagem. Preferi uma outra tradição: centrada na metáfora de Ginzburg (2003),
servi-me da sugestão de pensar o pesquisador como alguém que se transforma em
caçador a perseguir rastros. A compreensão da história humana pode ser
reconstruída com base em rastros e indícios. E aí, o recurso à microanálise revelou-
se imprescindível (REVEL; 1998). Os elementos contextuais, que busco investigar,
dão pistas sobre a trama das relações sociais e ajudam a compreendê-las. Como
orientadora profissional vi-me, com isso, bastante próxima dessa proposição e, com
ela, também revi amplamente a matéria de minha formação.
Foram aplicados 460 questionários (modelo no apêndice 1) a
vestibulandos/as de dois cursos preparatórios para o vestibular de Vitória, nos anos
de 2009 e 2010, distribuídos 230 no curso pré-vestibular público, de iniciativa de
uma ONG e 230 questionários no privado. A opção por dois grupos dá-se em função
de poder trabalhar com as diferentes classes sociais, visto que são estudantes do
pré-vestibular público, somente vestibulandos/as e ex-vestibulandos/as de escola
pública, provenientes, portanto, de classes populares. No pré-vestibular privado,
estão estudantes de classes média e alta. Destaco que, de acordo com critérios
estatísticos, essa é uma amostra significativa da população que investigo. No curso
pré-vestibular público há, aproximadamente, 2300 vestibulandos/as e no curso pré-
vestibular privado esse total é de 1900, portanto, uso amostras igual ou superior a
10% da população53. A opção por dois grupos sociais, organizados nos cursos
preparatórios para o vestibular, possibilitou, de imediato, a sua utilidade na
categorização inicial dos sujeitos por segmentos de classes sociais diferenciadas
entre si, permitindo verificar suas inserções sociais diversas e disposições para a
ação tomadas nessa experiência comum do vestibular e nas distinções de seus
projetos profissionais.
Significados possíveis sobre os projetos profissionais também foram
associados a tendências regionais/locais, portanto, capazes de situar configurações
singulares das experiências examinadas. Restou-me, então, tratar dos sujeitos
dessa pesquisa em entrevistas de vestibulandos/as, por vezes, em presença de
outras pessoas e, ainda, observações/depoimentos extraídos de dinâmicas de
grupo.54 Nesse primeiro momento, o uso de fontes quantitativas confirmou sua
53 De acordo com critérios estatísticos de significância e representatividade da amostra, ela deve se constituir entre 10% a 30% da população investigada. 54 Todas acompanhadas do Termo de Consentimento de Livre Esclarecimento (apêndice 2).
70
utilidade ao indicar pistas e sinais, como propõe Ginzburg (2007), permitindo ainda
agrupar temas tratados ao longo da tese.
Presidiram essas análises, observações extraídas de minha experiência
profissional em OV, mas, redefinidas em novas referências como indicado,
sobretudo quanto a embargos de acessos ao Ensino Superior vividos por parcelas
significativas da população jovem, além de dilemas de outra natureza que também
estão nos projetos profissionais. O recurso à microanálise revelou-se útil para a
compreensão de fenômenos sociais complexos. Como afirma Revel (1998), é um
método que possibilita apreender a “estrutura folheada do real”. Com isso, não é
preciso desprezar qualquer escala de observação macrossocial. Aliás, como afirma
Gribaudi (1998), é possível uma análise quantitativa com base num enfoque
microanalítico; tudo depende da escala de análise a ser utilizada. Em geral, a
utilização de dados empíricos, portanto, sejam eles quantitativos ou qualitativos, na
abordagem macrossociológica, permanecem subordinados a uma lógica da
estrutura de “modelos construídos à priori”. Gribaudi a classifica como
substancialmente determinista e evolucionista, ao contrário da análise
microssociológica que rompe com os determinismos e a perspectiva da causalidade
e abrem-se à dimensão da incerteza e da possibilidade. A microanálise, indica Revel
(1998), coloca em xeque algumas certezas construídas pelo paradigma macro. A
continuidade histórica só pode, portanto, “ser lida a posteriori, mas não desvenda,
em si, suas leis”. Muito ao contrário: “ela esconde suas contingências sucessivas
atrás dos anteparos dos modelos projetados” (GRIBAUDI, 1998, p. 122).
Seguindo, então, a proposta da microanálise, examinei as diferentes fontes e
as admiti como úteis à configuração de aspectos relativos às “estruturas locais, e às
dinâmicas que essas estruturações engendram” (GRIBAUDI, 1998, p. 148). Recorri,
ainda, a dados comparativos dos dois grupos, o que possibilitou o enunciado de
mais hipóteses e a confirmação/negação de algumas delas. A primeira constatação
é óbvia evidência: vestibulandos/as do pré-vestibular privado estão ligados às
classes média e alta da população, enquanto os de classes mais baixas
concentram-se no pré-vestibular público. No pré-vestibular público há a seguinte
composição de classes segundo dados do IBGE55: 0% na classe A; 1% na classe B,
55 Classificação: Classe E: até dois salários mínimos; Classe D: de 2 a 6 salários mínimos; Classe C: de 6 a 15 salários mínimos; Classe B: de 15 a 30 salários mínimos; Classe A: acima de 30 salários mínimos.
71
11%; na classe C, 73%; na classe D; 15% na classe E. Ao contrário do pré-
vestibular privado, em que há um predomínio das classes mais altas: 32% de
vestibulandos/as na classe A; 36% na classe B; 26% na classe C; 6% na classe D;
0% na classe E:
Gráfico 1 - Classe social dos/as vestibulandos/as de Vitória 2009-2010
0%10%20%30%40%50%60%70%80%
A B C D E
Pré-vestibular públicoPré-vestibular privado
Mas, outra constatação – essa quase nunca evidente – é a de que a
concentração da riqueza não é apenas material, mas também intelectual e cultural.
Diferenciação econômica, mas também diferenças em relação ao capital cultural são
observadas ao se analisar a escolaridade dos pais. Para Bourdieu (1998c), capital
cultural refere-se a um novo tipo de capital (privilégio de poucos), uma espécie de
recurso social, que distingue os grupos que possuem, daqueles que não o possuem,
já que é privilégio de poucos. Refere-se a um conjunto de disposições transmitidas
pela família, pela escola e outros agentes educativos, nos quais também atuam
modelos e condutas imitativas, um conjunto de referências que compõem uma dada
“mímesis das profissões”56. A conquista de títulos e escolaridade representa a posse
de um capital cultural institucionalizado, nos termos de Bourdieu (1998c), refletindo
também a parte imaterial do capital cultural traduzida nas potencialidades
intelectuais do sujeito. Observações pessoais e fontes examinadas indicam enormes
diferenças na posse desse capital. Entre os vestibulandos/as do curso pré-vestibular
público, 8% dos pais possuem primário incompleto ou nunca foram à escola, 26%
possuem primário completo ou fundamental incompleto, 26% possuem fundamental 56 A mímesis é um conceito utilizado pela literatura que trata de uma forma de imitação, mas não se refere a uma mera cópia do real, trata-se de uma forma específica de representação da sociedade e, por isso, as percepções e interpretações do mundo fazem com que haja uma mímesis produtiva. É esse o uso que faço de “mímesis profissional”. Ou seja, os projetos dos pais são imitados, mas com adaptações. Sobre o assunto ver mais em Lima (1980) e Mousinho (s.d.).
72
completo ou médio incompleto, 32% possuem médio completo ou superior
incompleto, 5% possuem superior completo e 2% possuem pós-graduação.
Comparando com a escolaridade dos pais dos/as vestibulandos/as do curso pré-
vestibular privado, os números seguem diferentes orientações: 1% dos pais
possuem primário incompleto ou nunca foram à escola; 1% possuem primário
completo ou fundamental incompleto; 12% possuem fundamental completo ou médio
incompleto; 15% possuem médio completo ou superior incompleto; 37% possuem
superior completo; e 33% possuem pós-graduação:
Gráfico 2 - Escolaridade dos pais dos/as vestibulandos/as de Vitória 2009-2010
0%5%
10%15%20%25%30%35%40%
Nunca foi àescola / primário
incompleto
Primáriocompleto /
fundamentalincompleto
Fundamentalcompleto /
médioincompleto
Médio completo/ superior
incompleto
Superiorcompleto
Pós-graduação
Pré-vestibular públicoPré-vestibular privado
A distribuição desigual do capital cultural é, também, um indicativo das
diferentes inserções no mercado de trabalho e, por conseguinte, econômica. As
profissões dos pais mais citadas entre os/as vestibulandos/as do curso pré-
vestibular público foram: pedreiro, eletricista, mecânico, taxista, motorista, servidor
público (nível técnico) autônomo e comerciante. Enquanto as profissões mais
comuns entre os/as vestibulandos/as do curso privado foram: médico, dentista,
engenheiro, arquiteto, empresário, advogado, juiz, entre outros.
Os indicativos sobre as mães desses/as vestibulandos/as se fazem na
mesma direção. Entre os vestibulandos/as de classe baixa, 10% das mães possuem
primário incompleto ou nunca foram à escola, 19% possuem primário completo ou
fundamental incompleto, 25% possuem fundamental completo ou médio incompleto,
33% possuem médio completo ou superior incompleto, 6% possuem superior
completo e 7% possuem pós-graduação. Os números invertem-se quando
comparados à escolaridade das mães dos/as vestibulandos/as do curso privado,
respectivamente são: 0%, 0%, 7%, 13%, 48% e 32%:
73
Gráfico 3 - Escolaridade das mães dos/as vestibulandos/as de Vitória 2009-2010
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
Nunca foi àescola /primário
incompleto
Primáriocompleto /
fundamentalincompleto
Fundamentalcompleto /
médioincompleto
Médio completo /
superiorincompleto
Superiorcompleto
Pós-graduação
Pré-vestibular públicoPré-vestibular privado
As profissões das mães dos/as vestibulandos/as do curso público se
concentraram em diarista, empregada doméstica, cozinheira, faxineira, costureira,
autônoma e algumas professoras e assistentes sociais. Mas, a maioria delas foi
considerada dona de casa. Já as profissões nas quais se concentram as mães
dos/as vestibulandos/as do pré-vestibular privado foram: dentista, médica,
advogada, administradora. Algumas, também não trabalham.
De acordo com Bourdieu (1998c), o capital cultural é transmitido em cada
família aos filhos por meios mais indiretos do que diretos. São conjuntos de valores
implícitos e, profundamente, interiorizados. Assim, há certa tendência a valorizar e a
incentivar o conhecimento escolar em um dos grupos, o que contribui para o
sucesso acadêmico. Disso resulta, portanto, diferentes construções de projetos
profissionais em ambos os grupos investigados, sobretudo, se considerado o
sucateamento do ensino público, em nível fundamental e médio, e a falta de
democratização do Ensino Superior no Brasil. Assim, pode-se compreender o
direcionamento de ricos e pobres que o modelo educacional produz, fazendo com
que não se sintam capaz de concorrer a vagas em cursos mais concorridos.
Isso se evidência, quando analiso uma planilha disponibilizada pelo
coordenador do pré-vestibular público de vestibulandos/as aprovados/as no PUPT,
desde sua criação (ver anexo 2). Os cursos que conseguiram o ingresso na
Universidade Pública foram em ordem decrescente: serviço social, biblioteconomia,
ciências contábeis, ciências sociais, educação física e pedagogia. Ou seja, cursos
de menor prestígio social, cuja relação candidato por vaga no vestibular da UFES é
74
menor. Além disso, estabeleci um comparativo entre as expectativas de cursos
dos/as vestibulandos/as do ensino público e do ensino privado para o vestibular de
2009. Posteriormente peguei os dados da relação de candidatos por vaga, deste
mesmo vestibular, que saiu em março de 2005 e agrupei as profissões em função da
concorrência57. Os dados cruzados originaram uma tabela, que pode ser visualizada
anexa.
O primeiro grupo de profissões, com uma relação de 0 a 5 candidatos por
vaga contempla: biblioteconomia, engenharia da automação, ciências sociais,
agronomia, física, serviço social, pedagogia e letras português. No grupo 2, a
relação de candidato por vaga vai de 5,1 a 10, encontram-se as profissões: história,
administração, enfermagem, química, nutrição, fisioterapia, farmácia, biologia,
jornalismo, engenharia elétrica e odontologia. No grupo 3 o intervalo de relação
candidato por vaga foi de 10,1 a 15 e as profissões foram: engenharia da
computação, publicidade, engenharia de petróleo e engenharia mecânica. No grupo
4 a relação de candidato por vaga foi de 15,1 a 20 e concentrou as seguintes
profissões: arquitetura, psicologia, engenharia civil, engenharia da produção e
engenharia ambiental. E, por fim, o grupo 5 tem uma relação candidato vaga
superior a 20,1, fazem parte apenas direito e medicina. Os dados a seguir indicam
as expectativas dos/as vestibulandos/as de ambos os grupos investigados, em
relação aos cursos que serão escolhidos no vestibular de 2009:
Gráfico 4 ‐ Opções por cursos universitários no vestibular 2009 da UFES
0
20
40
60
80
100
120
Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3 Grupo 4 Grupo 5
PROFISSÕES Pré‐vestibular Público
Pré‐vestibular Privado
57 Dados disponíveis em http://www.ccv.ufes.br/Cand_vaga_Curso_2010.pdf. Acessado em 27 de junho de 2010.
75
Foi possível verificar que as opções dos vestibulandos/as do pré-vestibular
privado concentram-se nos cursos mais concorridos, ou seja, direito e medicina. Dos
230 questionários respondidos, há 114 indicações por esses cursos, enquanto no
curso público o número é de 42 indicações. Analisando essas profissões,
separadamente, os dados brutos mostram que 27 vestibulandos/as do curso público
tentarão direito e 15 tentarão medicina. Já no curso privado esse número é de 36 e
78, respectivamente. Ou seja, além de ser grande a diferença ela é mais significativa
em relação ao curso de medicina.
Portanto, o curso de medicina parece se distanciar bastante da realidade de
vestibulandos/as vindos de classes populares. Se não tanto nos sonhos, desejos e
aspirações que investiguei, mas nas reais possibilidades de efetivar esse sonho. O
coordenador do curso de pré-vestibular público afirma que, nos treze anos de
existência do projeto, nenhum/a aluno/a foi aprovado no curso de medicina: “mesmo
depois das cotas, não obtivemos nenhuma aprovação em medicina. Medicina é um
vestibular à parte, tamanha a concorrência”. Nos estudos de Barbosa (1998) e
Bonelli (2005) é possível verificar que as tradicionais profissões de prestígio:
medicina, direito e engenharia ainda se constroem como perspectivas de
crescimento e ascensão social, sobretudo para as classes médias.
Em relação aos cursos de arquitetura, psicologia, engenharia civil, engenharia
da produção e engenharia ambiental, vê-se que a proporção de vestibulandos/as é
semelhante nos dois cursos, sendo um pouco maior, entre os de classes populares.
O que indica o desejo de ingressar em cursos de maior prestígio, certamente na
expectativa de alcance de melhores condições de vida. Em relação às profissões do
grupo 3, os dados foram semelhantes nos dois cursos. Mas, quando observamos as
profissões dos grupos 1 e 2, vê-se o grande número de vestibulandos/as de classes
populares optarem por esses cursos. As profissões mais procuradas pela classe
baixa são as menos disputadas na UFES: biblioteconomia, tecnologia mecânica,
ciências sociais, agronomia, física, serviço social, desenho industrial e em letras,
português, seguida das profissões: história, administração, enfermagem, química,
nutrição, fisioterapia, farmácia, biologia, jornalismo, engenharia elétrica e
odontologia. Ao comparar os cursos individualmente, é possível verificar, por
exemplo, nenhuma procura dos/as vestibulandos/as do curso pré-vestibular privado
pelo curso de serviço social, já o número cresce para 16 entre os/as
vestibulandos/as do curso público.
76
Os cursos mais procurados pelas classes populares são, em geral, não
apenas mais fáceis de passar, mas exigem também uma dedicação menor aos
estudos. Em geral, são noturnos ou se concentram no matutino, permitindo que
conciliem os estudos com o trabalho. Isso se confirma nas entrevistas realizadas.
As carreiras seguidas pelo/as vestibulandos/as do pré-vestibular privado, entretanto,
seguem outras direções. De acordo com informações da Coordenadora desta
Instituição de Ensino:
Temos grandes aprovações nos tradicionais cursos de elite: medicina, direito e engenharia. São as profissões que oferecem mais possibilidade de sucesso. Maiores ganhos e oportunidades futuras. Pode até não ter grandes ganhos, mas há mais estabilidade e segurança. O nosso curso é o que mais aprova em medicina. É claro que nem todos passam nestes cursos. Há vestibulandos/as mais fracos que passam nos cursos menos concorridos.
Evidenciam-se aqui, que processos de exclusão estão presentes nos dois
grupos investigados, quando se examina a opção por determinados cursos. Algumas
profissões oportunizarão a ascensão ou manutenção do lugar social, enquanto
outras parecem destinadas aos mais “fracos”, mais “pobres”, etc. Profissões menos
e mais prestigiadas serão hierarquizadas: as menos prestigiadas serão ocupadas
pelas classes mais baixas, enquanto as de maior prestígio serão procuradas por
aqueles que têm uma boa trajetória educacional e dispõem, inclusive, de mais tempo
para se dedicar aos estudos. Isso também será verificado nas entrevistas. As
construções simbólicas sobre as profissões e as possibilidades de ganhos serão
avaliadas nos projetos profissionais e revelam o campo de possibilidades que cada
estudante dispõe. Direito, medicina e engenharia(s) surgem não apenas como
aquelas, tradicionalmente mais procuradas, mas também como as que possibilitam
“maiores ganhos e oportunidades futuras”, como afirma a Coordenadora do curso
pré-vestibular privado.
Além da verificação do peso da posição de classe nos projetos profissionais,
foi possível observar diferenças numéricas de homens e mulheres em relação às
opções do vestibular. De fato, o número de homens e mulheres que pretendem
passar no vestibular da UFES é a mesma. Na região, em geral e, principalmente,
raras são as pessoas que tentam vestibular sem fazer um curso preparatório; faz
parte da cultura local. A distribuição por sexo, entre os dois grupos, mostra um
número maior de mulheres nos dois pré-vestibulares:
77
Tabela 2. Distribuição de homens e mulheres nos cursos pré-vestibulares
Sexo
Pré-vestibular público
Pré-vestibular privado
Masculino 33% 41%
Feminino 67% 59%
A diferença nos números poderia estar relacionada a uma maior concentração
da população feminina na cidade. Vitória possui 150.873 homens e 169.280
mulheres58, ou seja, respectivamente o percentual de homens e mulheres é 47,13 %
e 52,87%. Apesar da vantagem em pouco mais de 4% do conjunto, é também
sensível a possibilidade de que uma tendência feminina, por conquistas no campo
educacional esteja se afirmando. Esse fato é confirmado por diversas pesquisas,
entre elas as de Castro e Yamamoto (1998), que demonstram a maior escolaridade
das mulheres em relações aos homens, na atualidade. As fontes também indicaram
uma maior composição de mulheres no curso pré-vestibular público, o que confirma
os indicativos anteriores.
Essas mesmas fontes, também, mostram a maior valorização e dedicação ao
estudo entre as mulheres de classe baixa se comparadas aos homens da mesma
classe. De certa forma, isso nos remete ao uso desigual dos tempos femininos e
masculinos e da divisão de tarefas. Isso significa que os homens dedicam-se mais
ao trabalho remunerado, e tomam para si o papel de provedor. Por isso, preocupam-
se desde cedo (sobretudo os de classe baixa) em ter renda. Considerando ainda as
necessidades econômicas das classes populares, os homens pobres ingressam no
mercado de trabalho mais cedo do que os homens de classe média, e do que as
mulheres em geral. Isso pode ser inferido a partir dos dados gerais da amostra: 65%
das mulheres do pré-vestibular público trabalham, contra 92% dos homens desse
mesmo curso; apenas 3% das mulheres e 5% dos homens trabalham entre os
estudantes do pré-vestibular privado:
58 Fonte: http://www.vitoria.es.gov.br. Acessado em 23/06/2010.
78
Gráfico 5 - Percentual de vestibulandos/as de Vitória que trabalham 2009-2010
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Pré-vestibular público Pré-vestibular privado
FemininoMasculino
Também é possível verificar a enorme diferença entre aluno/as que trabalham
no conjunto de dados de cada curso: vestibulandos/as do pré-vestibular privado, em
geral, não trabalham, ao passo que no pré-vestibular público a realidade inverte-se.
Isso está diretamente vinculado à questão econômica, mas também à disposição
para certas ações no interior do campo social, só visíveis com as contribuições
recolhidas da microanálise, também efetivada, a partir das entrevistas realizadas.
Em um levantamento dos quatro últimos anos (2006, 2007, 2008 e 2009) no
vestibular da Universidade Federal do Espírito Santo, foi possível verificar certas
diferenças nas opções por cursos superiores de homens e mulheres. Tomando por
base o critério e maior procura no vestibular da Universidade Federal do Espírito
Santo, o prestígio social de um curso, é possível perceber que as mulheres
concentram-se em cursos menos prestigiados: biblioteconomia, arquivologia e
fonaudiologia, além dos tradicionais nichos femininos, que possuem inclusive um
baixo ponto de corte: pedagogia, serviço social, enfermagem e fisioterapia. As
mulheres se concentram ainda em cursos como: arquitetura, artes, comunicação
social, farmácia, odontologia e psicologia. Já as opções masculinas se concentram
em cursos como: ciências contábeis, ciências da computação, ciências econômicas,
formação de oficiais, as engenharias, de modo geral, e tecnologia mecânica
(apêndice 3). Ou seja, as opções femininas permanecem ligadas aos cuidados e
recaem sobre a saúde, a estética, a educação, a assistência e as ciências humanas.
Já as opções masculinas estão ligadas às ciências exatas e a tecnologia,
associando a imagem masculina ao cálculo e à tecnologia, além de profissões
ligadas à carreira militar.
79
Cabe destacar, entre os cursos considerados de elite, ou seja, os que
apresentaram maior relação de candidatos por vaga, nos últimos cinco anos do
vestibular da UFES, que a presença feminina já é marcante. São eles: medicina,
direito e engenharias (ambiental, civil e da produção), o que mostra que as
mulheres, por outro lado, também tem avançado em outros domínios, e em direção
a algumas profissões marcadamente masculinas, ainda que seja maciça a presença
feminina nos cursos de menor prestígio.
Sobre a maior escolaridade entre as mulheres, isso também pode ser
verificado entre as mães dos/as vestibulandos/as investigados como mostra o
comparativo abaixo:
Tabela 3. Comparativo de escolaridade de mães e pais dos/as vestibulandos/as
O comparativo mostra que o nível superior e pós-graduação é maior entre as
mulheres de ambos os cursos. Se somarmos esses dois níveis, representam 81%
das mães do curso privado, contra 70% dos pais. No curso público, são 13% de
mães com curso superior e 7% de pais. O que mais uma vez comprova os dados já
citados.
Há outras observações importantes por se fazer em relação às fontes
coletadas. As meninas negras e pobres escolhem os cursos menos concorridos e de
menor prestígio social e as meninas de classes mais altas cuja representatividade
de negras é ínfima, escolhem cursos mais prestigiados como: direito, medicina,
arquitetura, engenharia e psicologia. Isso mostra que não apenas o gênero, mas
suas interseções com a classe e a cor da pele situam alguns dos fundamentos das
desigualdades.
Além disso, ressalto que a observação das categorias “cor” e “geração” estão
muito bem enredadas nas categorias de classe. Não foi possível separar quais as
opções por cursos universitários dos negros, independente da posição de classe.
Pré-vestibular público Pré-vestibular privado Escolaridade dos pais PAI MÃE PAI MÃE
Nunca foi à escola / primário incompleto 8% 10% 1% 0%
Primário completo / fundamental incompleto 26% 19% 1% 0%
Fundamental completo / médio incompleto 26% 25% 12% 7%
Médio completo / superior incompleto 32% 33% 15% 13%
Superior completo 5% 6% 37% 48%
Pós-graduação 2% 7% 33% 32%
80
Aliás, a partir do contato com os dois grupos sociais, foi possível evidenciar, uma
vez mais que os negros concentram-se no pré-vestibular público e nos segmentos
mais pobres. Os dados mostram que 41% dos entrevistados/as do pré-vestibular
público se autodeclararam brancos, 46% se autodeclararam pardos, 9% de negros,
1% de indígenas, 2% de amarelas e 1% não soube responder. No curso pré-
vestibular privado, os números foram: 74%, 24%, 2%, 0%, 0% e 0% seguindo a
mesma ordem:
Gráfico 6 - Autodeclaração de cor dos/as vestibulandos/as de Vitória 2009-2010
0%10%20%30%40%50%60%70%80%
Branco Pardo Negro Indígena Amarelo NR
Pré-vestibular públicoPré-vestibular privado
Destaco, ainda, o pequeno percentual de negros mesmo nos dois grupos,
5,5% do total geral de vestibulandos/as. Somando negros e pardos, como sugerem
alguns autores, há 55% no curso público e apenas 26% no curso privado, ou seja,
quase metade. Diversos estudos têm mostrado a pequena parcela de negros e
negras que ingressam nas universidades brasileiras, entre eles Góis (2008),
confirmando desigualdades raciais persistentes na história da educação brasileira.
Também não foi possível verificar, de forma independente do recorte de
classes, a que curso se dirigem os mais velhos e os mais jovens. Isso porque,
também, são eles a maioria no curso pré-vestibular público. Desta forma, a análise
dessa categoria foi, necessariamente, considerada em suas interseções com a
posição de classe. As idades são bastante homogêneas no curso superior privado,
com prevalência do intervalo de 16 a 20 anos. Há 81% de vestibulandos/as até 20
anos, 10% de vestibulandos/as de 21 a 25 anos, 4% de 26 a 30 anos e 3% acima de
31 anos no curso pré-vestibular público. No curso pré-vestibular privado, há 93% de
81
vestibulandos/as até 20 anos, 6% de vestibulandos/as de 21 a 25 anos, 1% de 26 a
30 anos e 0% acima de 31 anos:
Gráfico 7 - Idades dos/as vestibulandos/as de Vitória 2009-2010
0%10%20%30%40%50%60%70%80%90%
100%
até 20 21 à 25 26 à 30 31 ou mais
Pré-vestibular públicoPré-vestibular privado
A geração, assim, não pode deixar de ser associada em suas interseções
com a classe, pois se evidenciam, de imediato, os significados da postergação do
projeto profissional, admitida como vinculada à posição social dos vestibulandos/as
mais velhos, ainda que em menor número. Além disso, é possível observar a grande
concentração de jovens em ambos os cursos.
Por mais que esses dados trouxessem indícios das experiências de interesse
da pesquisa, pareceram-me, por vezes, deterministas e generalistas. Reafirmando o
proposto por Linhares (2008), é arriscado deixar-se aprisionar por formas pré-
definidas no trato de tendências. Assim, pretendendo negar a análise causal e
determinista dos fenômenos sociais, alinho-me a perspectivas históricas que, por
outros caminhos, situam possibilidades de retirar de áreas ocultas, muito da matéria
com que as experiências humanas se fazem. Isso me permite deslocar análises, que
se estabelecem como uma irresistível tendência, a de que “todos/as”
vestibulandos/as de classes mais baixas estão sempre fadados a cursos superiores
de menor prestígio, e de que todos os vestibulandos/as das classes mais altas
buscassem, como uma sina, os de maior prestígio. Não é isso o que pude verificar.
Essas tendências mais gerais são vistas apenas como dados, que compõem o
campo de possibilidades dos entrevistados, mas, apesar delas, os indivíduos
deslocam-se, fazem alianças, entram em conflito, superam limites, fazem rupturas.
82
Enfim, a experiência humana é sempre imprevisível e constrói com tendências
variáveis, processos sociais diversos.
Há limites impostos pelas análises quantitativas, que não me permitem a
apreensão da complexidade das relações sociais, tampouco, no caso em foco, não
permitem informar como os sujeitos agem em sua própria história. Há uma
pluralidade de motivações, impulsionando os projetos profissionais. A análise
quantitativa não dá visibilidade a movimentos do devir, com continuidades e rupturas
de relações sociais. Ela em si, oculta e também dificulta a percepção da dinâmica
social. Além disso, não é o mais indicado para investigar as subjetividades. Por isso,
a perspectiva quantitativa oculta razões e sentimentos, que também movem as
ações do presente de vestibulandos/as em relação ao horizonte de expectativas, ao
futuro de suas escolhas e em relação a seus projetos profissionais. É preciso, então,
também uma mudança na escala de observação, a qual permita investigar a
subjetividade humana e as relações estabelecidas com a realidade social.
1. 5 Mudança na Escala de Análise
Muitas discussões sobre macro e micro, pesquisa quantitativa e qualitativa
repetem-se na tentativa de encontrar o modelo viável para chegar à verdade. Usar
muitas fontes de pesquisas ou aprofundar poucas? Quantificar as respostas e as
fontes ou tratá-las de forma qualitativa? Não é esse o embate que quero travar, até
porque as fontes e as formas de observação das mesmas dependem do fenômeno a
ser investigado. Com vistas ao que já examinado, creio que o problema resida
menos na escolha de escala de observação (macro e micro), e mais na própria
escolha da escala de análise. Para isso, tomo de empréstimo as contribuições de
Gribaudi (1998), que postula essa problemática em termos de diferenciações das
argumentações retóricas.
Gribaudi (1998) postula que a abordagem microanalítica é mais
fundamentada logicamente e possui melhor argumentação retórica. Na abordagem
microanalítica, a utilização dos dados empíricos “parece justificada na medida em
que eles permitem explicar, não apenas as categorias e as representações sociais,
mas também suas utilizações contextuais e os diferentes graus de adesão que estas
83
encontram em seu tempo” (GRIBAUDI, 1998, p. 122). Isso, porque a microanálise é
indutiva; é a partir dos dados observados que se chega às proposições gerais.
Individualiza os processos sociais investigados e os generaliza por meio de fontes
de pesquisa. A abordagem macrossocial, por sua vez, é dedutiva. Suas provas são
deduzidas de um grande modelo analítico:
Nesse enfoque, a construção causal é a principalmente fornecida pelas categorias expressas pelo modelo. Os dados empíricos nele introduzidos têm uma função que é essencialmente de ilustração, por intermédio de uma série de operações retóricas e/ou estatísticas de tipologização” (GRIBAUDI, 1998, p. 122).
A prova da abordagem macroanalítica se baseia mais em modelos dos
processos sociais gerais, do que nos próprios objetos empíricos, daí a busca
constante por modelos coerentes e amplamente partilhados socialmente que
possam orientar de forma global os pesquisadores que a ele aderem.
É claro, como afirmado anteriormente, que é possível variar a escala numa
perspectiva microanalítica, com uso de escalas quantitativas. Também é possível o
contrário, ou seja, dentro de uma visão macroanalítica, usar não só uma fonte
quantitativa, como também qualitativa, mas como mera ilustração de uma
proposição geral. Isso é importante de se destacar na medida em que muitas
pesquisas na atualidade tem se construído dessa forma. Nesse caso, Utilizam-se
entrevistas e outros dados qualitativos apenas para reafirmar uma teoria já
preconcebida. Assim, minha opção não é apenas pela mudança na escala de
observação, mas principalmente na escala de análise.
Investigações importantes sobre a microanálise foram feitas por Revel (1998).
O autor mostra que a escala micro não necessariamente engendra a macro, posição
defendida por alguns autores, mas que revela especificidades não perceptíveis
numa análise macro. Os fenômenos globais podem ser lidos de maneira diferente se
apreendidos por intermédio de estratégias individuais e biográficas. Trata-se, então,
de entender o mundo social a partir de estratégias cotidianas, não perceptíveis numa
análise macro.
O modelo implícito da microanálise é de um processo histórico em
configurações sociais complexas que são postas em jogo, configurações que não
são lineares e que podem ser imprevisíveis, como afirma Gribaudi (1998). Os
objetos de investigação da microanálise podem ser, ainda, psicológicos e sociais,
envolvidos em formas de interação entre os indivíduos e mundo. Os
84
comportamentos sociais são engendrados “concretamente a partir de dinâmicas de
interação dos indivíduos: entre sua memória do passado e suas antecipações do
futuro possível” (GRIBAUDI, 1998, p. 131).
Os modelos macro e microanalíticos remetem, portanto, a modelos históricos.
Nas abordagens macroanalíticas o que se vê é um concepção de processo histórico
global, determinado por processos estruturais e impessoais. Assim, a estrutura
econômica e o mercado de trabalho, por exemplo, são vistos como “agentes
históricos dotados de uma realidade e uma e de uma autonomia própria”
(GRIBAUDI, 1998, p. 135). Na abordagem microanalítica, a concepção é de uma
história que se faz a partir das experiências humanas e, por isso, é nelas que se
compreende o processo de constituição do real. Os projetos profissionais, nesse
contexto, mostram, a cada momento, um conjunto de representações do presente e
também do futuro. A partir desse entendimento é que se pode compreender as
ações humanas.
Nesta pesquisa, precisei estar atenta de modo a não utilizar comportamentos
típicos para provar ou ilustrar modelos analíticos gerais. Foi preciso descobrir, a
partir deles, material de análise capazes de indicar sua variação. Trata-se de um
jogo de desconstruções e reconstruções de fontes e seus significados para tentar
desvelar articulações ocultas, que se fazem entre as sensibilidades e os
comportamentos sociais.
Como indica Revel (1998), é preciso compreender que uma dada experiência
social não é a mesma dependendo do nível de análise. Assim, fenômenos que
estamos habituados a pensar em termos globais “como o crescimento do Estado, a
formação da sociedade industrial, podem ser lidos em termos completamente
diferentes se tentarmos apreendê-los através de estratégias individuais, das
trajetórias biográficas, individuais ou familiares” (REVEL, 1998, p. 13). Daí, vale
buscar: [...] a proposta de um método interpretativo centrado sobre resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, ‘baixos’ que forneciam a chave para aceder a produtos mais elevados do ser humano (GINZBURG, 2003, p.150).
Também sujeitas a muitas imperfeições, a microanálise tira os pesquisadores
dessa área de conforto dada pela perspectiva da “objetividade” da ciência, algo que
85
emerge da positividade atribuída ao conhecimento científico e à ingênua crença nos
“grandes números”. Aliás, o debate atual da historiografia vem ganhando espaço
considerando a capacidade de “conceituar o complexo e o contraditório, de por em
dúvida a noção de regularidade evolutiva, de reintroduzir o provável, quando não o
aleatório, nas sucessões temporais” (GRIBAUDI, 1998, p. 133)
Para proceder, então, essa análise micro selecionei, dos 460 questionários,
22 sujeitos de ambos os cursos pré-vestibulares: 11 do curso público e 11 do curso
privado. Forneceram-me eles, importantes dados para compreender a trama
complexa que envolve o tema proposto. Apenas com a análise microanalítica foi
possível compreender um pouco mais das experiências e também das
representações nelas contidas, decodificadas em comportamentos observados e a
partir de “intenções dos autores, captadas em seus contextos” (GRIBAUDI, 1998, p.
133). A opção por dois cursos possibilitou um recorte de classes, visto que as
classes baixas concentram-se no curso público e as médias e altas no curso
privado, uma evidência histórica trivial. Mas, ao levar em conta, ainda, os atributos
de gênero, idade, cor e classe social que cada um porta como aluno/a de um curso
vestibular, cheguei a novos resultados. Essa primeira aproximação a partir de um
conjunto de entrevistas mais sistematizadas, mas, também, de outros meios de
pesquisa, trouxeram informes que me permitem pensar questões tópicas e
relevantes. Essas entrevistas são mapeadas no quadro abaixo enunciado59: Tabela 4. Qualificação dos sujeitos de pesquisa
59 Os nomes utilizados são fictícios; as entrevistas foram feitas mediante Termo de consentimento livre e esclarecido, devidamente assinado; Estão gravadas entre os períodos de agosto de 2009 a março de 2010. Foram transcritas e estão em poder da autora deste trabalho.
Pré-
vestibular
Sujeitos
(nomes fictícios)
Gênero Idade Cor60 Classe Curso que fará vestibular
Público Sujeito 1 – Liliam Feminino 27 anos Branca D Pedagogia
Público Sujeito 2 – Maria Feminino 37 anos Negra E Enfermagem
Público Sujeito 3 – Patiane Feminino 22 anos Parda D Serviço Social
Público Sujeito 4 – Brenda Feminino 17 anos Negra D Geografia
Público Sujeito 5 – Sirlei Feminino 18 anos Negra D Medicina
Público Sujeito 6 – Priscila Feminino 20 anos Negra E História
Público Sujeito 7 – Geisiane Feminino 20 anos Parda D Engenharia de petróleo
Público Sujeito 8 – João Masculino 42 anos Branca D Tecnologia Mecância
Público Sujeito 9 – Isac Masculino 29 anos Negra D Biblioteconomia
Público Sujeito 10 – Luciano Masculino 21 anos Branca D Direito
Público Sujeito 11 - Guilherme Masculino 19 anos Branca D Fomação de Oficiais
Privado Sujeito 12 – Sara Feminino 17 anos Branca C Direito
Privado Sujeito 13 – Hanna Feminino 19 anos Branca B História
Privado Sujeito 14 – Marina Feminino 17 anos Branca A Engenharia Civil
Privado Sujeito 15 – Lívia Feminino 16 anos Branca A Medicina
Privado Sujeito 16 – Gabriele Feminino 17 anos Branca C Psicologia
Privado Sujeito 17 – Isabela Feminino 16 anos Branca B Design Gráfico
Privado Sujeito 18 – Thaíssa Feminino 20 anos Branca A Engenharia Civil
Privado Sujeito 19 – Pedro Masculino 18 anos Branca B Engenharia Mecânica
Privado Sujeito 20 – Ricardo Masculino 17 anos Parda B Medicina
Privado Sujeito 21 – Rodrigo Masculino 18 anos Branca A Odontologia
Privado Sujeito 22 – Leandro Masculino 18 anos Branco A Geologia
86
O número maior de mulheres justifica-se em função de ter lidado com a
temática da feminização de profissões. Foram, então, sete mulheres e quatro
homens em cada curso. Além disso, procurei variar a seleção dos sujeitos em
função da autodeclaração de cor indicada nos questionários. Encontrei dificuldades
maiores em relação à variação dessa categoria no curso privado, visto que a maioria
é branca. Procurei variar as idades, o que também não foi fácil em função da grande
quantidade de jovens, ou seja, indivíduos de até 20 anos. Outro fator de seleção
desses 22 sujeitos é que apresentassem opções por cursos emblemáticas das
questões que me proponho a trabalhar. Por exemplo, ao trabalhar sobre a
feminização de profissões precisava de trajetórias que apontassem as tradicionais
opções profissionais femininas: serviço social, enfermagem, pedagogia e psicologia.
Ainda nessa temática, precisei de trajetórias que indicassem rupturas, ou seja,
mulheres optando por profissões masculinas. Escolhi, então, mulheres que
optassem por engenharia nos dois cursos. Procurei variar o atributo cor de pele e
classe, para que as análises escapassem de qualquer tendenciosidade. Depois, ao
trabalhar como os projetos profissionais estão atrelados aos projetos de classe,
precisei de homens e mulheres dos dois segmentos.
As categorias propostas para análise deram origem a novos dilemas quanto
aos capítulos da tese, cujo objetivo foi responder à principal questão desta tese:
“Que processos sociais compõem o campo de experiências dos vestibulandos/as de
pré-vestibular da cidade de Vitória, e como se compõem a partir dele as razões e os
sentimentos com que se fazem seus projetos profissionais?” Atenta, desse modo, a
determinismos de classes sociais, gêneros, cor de pele, geração e outro atributo
desses sujeitos, a pesquisa permitiu-me afirmar que experiências dos indivíduos,
tanto podem ratificar, como negar condições impeditivas, colocadas por seus
atributos à construção dos projetos profissionais. A tese analisa, entretanto, para
além das classes, do gênero, da cor da pele, das gerações etc., esses sujeitos, com
razões e sentimentos variados, também produzem novas experiências que podem
deslocar ou manter suas posições originais.
Nesse ponto, procurei reconstituir histórias de vida a partir do estudo das
memórias dos entrevistados, o que é importante para esse trabalho, já que uma
60 Adotou-se para a pesquisa o critério “cor” como indicativo de “cor de pele” branca, negra e parda, em substituição ao de raça, de reconhecidas imprecisões conceituais.
87
relação viva estabelece-se entre a memória e os projetos profissionais. As memórias
são socialmente relevantes por expressarem experiências pessoais, sofrimentos,
decepções, mágoas, frustrações, desejos, amores, triunfos, traumas que dão
sentidos à existência humana:
A biografia do indivíduo biológico não é enfatizada, em proveito da ênfase na continuidade de uma categoria social abrangente, a ponto de não ficar claro se um fato narrado ocorreu com o indivíduo biológico A ou B, pertencentes à mesma linhagem, categoria etc. Obviamente isso não significa que não haja consciência ou percepção do ciclo vital dos indivíduos A e B que nascem, vivem e morrem. Mas a persistência da unidade englobante é permanentemente fixadas através de mitos, narrativas que reforçam o pertencimento do indivíduo biológico àquelas unidades (VELHO, 1999, p. 99).
A memória desempenha importante papel na medida em que os significados
sociais ganham materialidade em indivíduos concretos. Para decifrar esses
significados é preciso aprender a captar “atrás da superfície lisa do texto um sutil
jogo de ameaças e medos, de ataques e retiradas. Devemos aprender a
desembaraçar os fios multicores que constituíam o emaranhado desses diálogos”
(GINZBURG, 2007, p. 287).
As memórias foram investigadas a partir do testemunho. A matéria de análise
foi, portanto, a oralidade. A oralidade permite-me tratar do âmbito subjetivo da
experiência humana. Permite uma aproximação com algo que é central na vida dos
seres humanos: “a criação de uma parte muito importante da cultura e da esfera
simbólica” (LOZANO, 2009, p. 15). A oralidade tem raízes nos estudos etnográficos
da antropologia, que precisavam investigar os processos de transmissão das
tradições orais em culturas que não possuíam tradição escrita. Mas, a oralidade
ultrapassou esse campo e expandiu-se para outras áreas. É o caso de uma corrente
específica da historiografia: a história oral. De acordo com Lozano (2009), a história
interessa-se pela oralidade porque permite a obtenção e o desenvolvimento de
conhecimentos novos e também a fundamentação de análises históricas com base
na criação de fontes inéditas ou novas: “Diria que é antes um espaço de contato e
influência interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e regionais; com
ênfase em fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, oferecer
interpretações qualitativas de processos histórico-sociais” (LOZANO, 2009, p. 16).
A história oral possui um ponto de contato e intercâmbio com outras ciências
como sociologia, psicologia e a antropologia, ou seja, áreas que lidam com o
comportamento humano e as relações sociais. Essas interações são importantes
88
para a compreensão das questões simbólicas e culturais. O estudo, a partir da
oralidade possibilita, além de tudo, uma complementação das análises a partir de
outras fontes da realidade social. Não há um único método e uma única técnica. Isso
me forneceu liberdade metodológica, sempre com o necessário rigor científico, para
buscar fontes que complementassem a análise da oralidade.
Na investigação das trajetórias tive claro, como indica Bourdieu (2006), “que
uma vida é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência
individual concebida como uma história e o relato dessa história” (p. 183). Ao tratar,
entretanto, da vida como uma história, ou seja, o relato coerente de uma sequência
de eventos com significado e direção pode-se cair numa ilusão retórica “uma
representação comum da existência” (p. 189) que propõe coerência e constâncias
nas histórias. É preciso estar atento às variações, àquilo que rompe com relato
oficial e ordenado, para conseguir compreender a experiência humana em suas
contradições e complexidades. A trajetória é “uma série de posições sucessivamente
ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele
próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (p. 189). Assim, as
trajetórias revelam um conjunto de relações objetivas e subjetivas do campo em que
se inserem. Por isso, também revelam confrontos e embates com outros sujeitos
envolvidos e outros planos da realidade.
Isso tudo me levou a fazer uso das trajetórias, ao longo dos capítulos, não
como meras ilustrações de uma proposição que pretendo provar (típico da posição
macroanalítica). Busco nelas significados e sentidos que se fazem num plano
complexo e em relação a outras. Por isso, trago as trajetórias diluídas, ao longo dos
capítulos, em função da trama que se desenrola a partir de elementos que elas
próprias me apresentam.
A ideia central, então, desta pesquisa foi localizar as trajetórias dos/as
entrevistados/as, mas pensando os sentidos civilizatórios que movem experiências e
expectativas desses sujeitos, apesar de seus atributos, quando fazem seus projetos
profissionais. Isso significa que, para além das classes, do gênero, da cor da pele,
das gerações etc., esses sujeitos tem desejos, percepções, sensações e
pensamentos, que produzem energia e movem essas experiências, atribuindo
muitos sentidos a projetos. Diria que não há apenas os sentidos que podemos
captar por seus vários atributos, mas, aqueles que traduzem a experiência humana
como sempre plural e complexa. Nela, cruzam-se processos sociais nem sempre
89
percebidos. O desafio desta tese situa-se na tentativa de visualizar esses processos
sociais ocultos, que não se separam, em sua interação com os sujeitos apesar
dessa ou daquela condição social. Esses movimentos humanos nem sempre são
perceptíveis; eles parecem se construir com um rizoma, usando a metáfora de
Guattari e Deleuze (1997), neles, a organização dos elementos que constituem uma
energia propulsora de um desejo e de um projeto não, necessariamente, estão
visíveis, nem tampouco se definem como um sistema social subordinado a qualquer
modelo hierárquico ou linear. Em recentes debates sobre os estudos de gênero, em
especial sobre os movimentos feministas – periodizados em irrupções das
chamadas primeira, segunda e mais recentemente, terceira ondas, a história dos
feminismos vem sendo pensadas como entre se esses tempos múltiplos presentes,
na longa duração histórica, não houvesse prosseguimento e redefinições de tensões
e conflitos que favorecessem cada ruptura temporal, no caso, em cada “onda”. A
metáfora do rizoma tem servido para mostrar que os feminismos, com um dado
movimento humano, pode manter muitas de suas manifestações submersas e, de
repente, espocar como erupções vulcânicas – uma outra metáfora, recorrendo aos
movimentos das placas tectônicas (COSTA, 2010), de sentidos novos e produzindo
novas circunstâncias. Ou seja, na perspectiva da longa duração histórica, elementos
sociais de uma dada conjuntura, podem ter continuidades e podem mudar certas
tendências sociais. Admite-se, para o caso em questão, essa mesma percepção.
Animei-me, assim, a encontrar nesse campo de experiência – o pré-vestibular
e nas expectativas em relação ao Ensino Superior de diferentes jovens (pobres, de
classes médias e altas, homens e mulheres, brancos, negros e pardos, mais novos e
mais velhos) questões ainda pouco examinadas, ligadas às razões e aos
sentimentos que os movem e que se movem com rizoma; raízes saem do
subterrâneo e aparecem aqui e acolá de forma imprecisa, sem revelar todas as
direções e sentidos.
90
2 SENSIBILIDADES, MUNDO DO TRABALHO E ROMANTISMO POLÍTICO
O estudo das sensibilidades é um tema de pesquisa retomado recentemente
– embora já tenha aparecido nas preocupações Raymond Williams nos anos 60 do
século passado e, como indica Pesavento (2004), traz a emergência da
subjetividade para a compreensão dos fenômenos culturais. Isso implica numa
análise da experiência pessoal, admitindo-se que é possível resgatar “emoções,
sentimentos, ideias, temores ou desejos” como aquilo que move a história de
homens e mulheres de um determinado tempo. As sensibilidades, como sugere
Costa (2009a), poderiam comparar-se ao que Williams (1969) chama de “sinais dos
tempos” ao conceituar as “estruturas de sentimentos”. Parafraseando a autora, são
úteis para pensar homens e mulheres como sujeitos políticos que, em suas
trajetórias e de formas singulares, aprendem a pensar, a sentir ou a “traduzir o
mundo em razões e sentimentos” (PESAVENTO, 2004, p.3).
Com intuito de dar nitidez às razões e sentimentos que emergem de
experiências pessoais e que movem os projetos profissionais de vestibulandos/as de
cursos preparatórios para o vestibular de Vitória-ES, adentrei o campo de pesquisa a
partir da análise da materialidade do sensível: o testemunho. Sem desconsiderar
processos sociais mais amplos, admiti os modos pelos quais as trajetórias de vida
são expressas. A reconstrução dessas trajetórias implica num processo de releitura
das experiências humanas vividas. Histórias pessoais foram entendidas como parte
de um processo de construção de si, que implicam em transformações sucessivas
de um espaço social projetadas no devir. A dinâmica das transformações dessas
trajetórias foram entendidas a partir das noções de campo de possibilidades e de
projeto, como propõe Velho (1999). Desse modo, opções potenciais identificadas
pelos sujeitos como caminhos profissionais a seguir, estão articuladas as suas
efetivas escolhas. Essa orientação redesenha, efetiva e constantemente, a
experiência humana. Sugere ainda que “o nível da escolha” contém uma opção
individual, avaliada diante de um conjunto de combinações de situações que
demarcam as possibilidades profissionais. Desse modo, os projetos profissionais
fazem-se numa negociação com a realidade e em meio a sensibilidades muito
plurais. Como afirma Velho (1999), as trajetórias individuais ganham consistência a
partir do delineamento dos projetos com objetivos específicos. A viabilidade das
91
realizações dependem, entretanto, “do jogo de interação com outros projetos
individuais ou coletivos, da natureza e da dinâmica do campo de possibilidade” (p.
47). Trago, então, uma primeira trajetória marcada por dilemas vividos por uma
menina de 16 anos, estudante do pré-vestibular privado de Vitória-ES, em relação à
futura profissão. Esses dilemas reportam-se à complexidade do campo de
possibilidades no qual se constrói seu projeto profissional.
2.1 Dilemas de um Projeto Profissional: Fazer Medicina ou Design Gráfico?
Isabela61 estuda no curso pré-vestibular privado, seu pai e sua mãe são
médicos e construíram seu patrimônio a partir do trabalho. Tem dúvidas se irá tentar
o vestibular para medicina ou design gráfico. Seu gosto apurado por arte, a
habilidade de desenhar e de escrever – escreve pequenas histórias em inglês (fan
fiction - ficções criadas por fãs) para um site em português. Desenha cartões, pinta,
etc. – e possui uma vasta cultura obtida por viagens, intercâmbios culturais a outros
países (EUA e Canadá), propiciados pelas condições sócio-econômicas dos pais.
Tudo isso faz essa menina desenvolver o desejo pelo curso superior de design
gráfico. Diz pensar e sentir, na maior parte do tempo, como sendo essa a melhor
opção; leva em conta a possibilidade de desenvolver suas habilidades e fazer o que
gosta, independente do retorno financeiro. As informações sobre a profissão,
coletadas por ela em revistas, sites e com os próprios professores mostraram,
entretanto, que se trata de uma profissão ainda incipiente no estado do Espírito
Santo. Afirma: “Se eu realmente fizer, tenho que ir para o Rio de Janeiro ou São
Paulo, aqui não tenho futuro, esse curso nem existe na UFES”. Em outros
momentos, entretanto, as facilidades colocadas pelos pais, por serem médicos e
donos de importante clínica no Espírito Santo, deixam-na em dúvida, já que seguir a
profissão: medicina pode oferecer-lhe melhores oportunidades profissionais. É um
dilema para a menina:
61 Mulher branca, 16 anos, pertencente à classe B, estudante do curso pré-vestibular privado. Optei pelo uso da identificação em rodapé, e de maneira recorrente ao longo das páginas que seguem, para facilitar a identificação dos/as 22 sujeitos de pesquisa, uma vez que trago, partes da vida deles por todo o trabalho.
92
Não sei se quero fazer medicina... Quando penso nisso fico chateada em imaginar que não farei nada do que gosto. Eu até tentei gostar de medicina. Quando voltei do Canadá me matriculei [sic] na turma de biomédicas, minha mãe ficou toda contente. Aí comecei a ver livros de anatomia, fisiologia, ver site... Mas não adiantou, não consegui me identificar de jeito nenhum. Aí fui para a turma de humanas. Só que bate às vezes bate uma dúvida: “deixar para trás todo um futuro que meus pais construíram? E que já está ali. Eu só preciso dar continuidade para ter um bom futuro...”
Sentimentos de dúvida e medo de perder uma boa oportunidade de
conquistas futuras são engendrados, sobretudo, nas relações de família. Como parte
do projeto dos pais, a profissão de médico propiciou-lhes conquistas e ascensão
social, um fenômeno típico das classes médias que buscam a ascensão por meio da
profissionalização. A entrevista com a mãe de Isabela62 revela elementos da
percepção dos pais: “A Isabela é muito jovem. É imatura. Ela nunca precisou
trabalhar, não tem que se preocupar em pagar contas. Então essa coisa de fazer
design é muita ilusão. Acho que ela precisa botar os pés no chão”. A mãe também
revela que o curso de medicina lhe trará mais oportunidades de crescimento e
sucesso: “Vê [sic]: eu e o pai dela temos uma clínica e agora serão abertas novas
unidades. Tudo vai ficar para ela e a irmã. É uma boa oportunidade de crescerem e
de ter sucesso”. Suas dúvidas e temores surgem como parte de projetos construídos
pelos pais para as filhas. As expectativas dos pais também fazem parte da
construção desse projeto profissional. Os projetos não operam num vácuo, afinal, os
projetos individuais “sempre interagem com outros dentro de um campo de
possibilidades” (VELHO, 1999, p. 47). Por isso, um mesmo indivíduo pode portar
projetos diferentes, até contraditórios, sendo tão complexas e múltiplas as suas
formas de escolha. Deixar de lado as expectativas dos pais é motivo de tristeza e
dúvida:
Eu sinto exatamente que estou deixando de lado o sonho que meus pais fizeram a vida inteira, porque eles construíram do chão, do nada... Às vezes eu penso que estou jogando tudo no lixo, entendeu? Que eu estou completamente abandonando tudo o que eles fizeram a vida toda. Mas eu fiz um esforço para gostar de medicina e não deu certo. Às vezes, olhando para minha mãe, parece até que sou uma decepção para eles. Mas acho que todo mundo já viu que esse não é o meu foco.
O desejo de fazer o que gosta, o medo de não corresponder às expectativas
dos pais, medo do fracasso e do arrependimento, além da percepção de suas
capacidades e as representações que os outros constroem sobre ela se misturam.
62 A entrevista com a mãe de Isabela deu-se ao acaso, pois ela levou a menina para a entrevista agendada comigo e acabou querendo conversar sobre a percepção da dúvida da filha. Solicitei que gravasse nossa conversa e ela aceitou, o que se constituiu numa importante fonte para a pesquisa.
93
Isabela relata que amigos, professores e colegas vinculam suas características e
habilidades aos cursos ligados na área de arte: “Sempre elogiam meus desenhos,
meus textos, dizem que tenho um dom. Eu não acredito nisso. Eu me esforço
bastante para fazer o que gosto”. Fazer o que se gosta é um valor que se constrói
como parte de disposições mais ou menos duráveis dos indivíduos para a ação, ou
seja, é parte de seu habitus, fazendo alusão à Bourdieu (2004). Dedicar-se ao
desenho, a leitura e à escrita fez parte de seu processo de socialização, como
também não se preocupar com dinheiro foi algo forjado em suas experiências de
vida; disso, pois, recolhe os sentidos que atribui ao curso de design:
Para mim, fazer design significa criação. É perfeito! Além de fazer o que gosto e de poder aplicar tudo que me interessa e mais um pouco, tem a oportunidade de estar num ambiente de criação. Vou ter que acompanhar as tendências do mercado, você fica ligada com as coisas do mundo. Não é só dinheiro que importa.
As experiências de Isabela revelam os lugares, as posições ocupadas em seu
campo social e o acesso ao capital cultural como parte das tradições vividas por ela,
preservando a preocupação de ser bem sucedida. Além disso, a associação do
curso de medicina a status e prestígio parece estar em jogo, quando pensa em
desistir dessa carreira. Afirma: “Vê, médico é médico! Tem aquela coisa: oh!... É
doutor! E, ou bem ou mal, médico nunca está desempregado”. Um processo de
construção e negociação de projetos profissionais constrói-se, portanto, vinculado a
códigos culturais em que atuam sentimentos contraditórios. A opção por uma
profissão não é tarefa simples e envolve experiências de muitas complexidades.
Opera-se um intenso processo de trocas entre grupos, projetos e sentidos. Aliás, os
indivíduos modernos “[...] nascem e vivem dentro de culturas e tradições
particulares. [...] Mas, de um modo inédito, estão expostos, são afetados e vivenciam
sistemas de valores diferenciados e heterogêneos” (VELHO, 1999, p. 39). Nessa
complexa rede de sentidos, que se entretece, Isabela faz suas negociações com a
realidade, quando avalia o curso de design dentre outras opções:
Acho que muita gente se desmotiva [sic] por essa área por causa do mercado de trabalho. Ta [sic], é mais difícil que outras áreas, mas não é todo mundo que faz medicina e direito que vai lá para o alto. Acho que é algo complicado, mas não é monstruoso, não sou pessimista.
Além disso, busca formas de afirmar seu gosto diante da preocupação
expressa pelos pais sobre garantir-se em uma carreira promissora. Recupero parte
da matéria que ela utiliza como argumento para mostrar que design gráfico é uma
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“profissão de futuro”. Traz, em apoio as suas expectativas, argumentos de um site
na internet sobre as profissões, por ela indicado na entrevista realizada em 201063:
Os cursos mais concorridos não são os de melhores perspectivas futuras, que por sinal, em médio prazo, estarão fadados ao desaparecimento, fazendo com que esses jovens saiam das faculdades para aumentarem o número de desempregados. Cursos em alta são os de gastronomia, gestão ambiental, indústria do entretenimento, gestão pública, hotelaria, gestão de turismo, design de interiores, design gráfico [grifo nosso], moda, agroecologia, biocombustíveis, agroindústria, engenharia agronômica, logística, produção sucroalcooleira, arquitetura, urbanismo entre outros. O certo é que, na velocidade com que anda esse planeta, as informações se renovam a cada 3 meses, fazendo de nós um novo ser, completamente diferente, a cada seis meses, tornando-nos “velhos” e ultrapassados em um curto espaço de tempo, se não nos atualizarmos constantemente.
A matéria em circulação entrelaça-se aos desejos de Isabela com aquilo que
projeta em seu horizonte de expectativas. Sentidos colocados pelo mundo do
trabalho como ter sucesso, obter ganhos materiais, escolher uma profissão de
prestígio, entre outros misturam-se a sentidos que apontam para uma visão mais
romântica acerca das profissões: fazer o que se gosta, buscar realização pessoal,
não se importar com ganhos materiais, etc. Esses dilemas se fazem em meio a uma
rede subterrânea de sentidos e possibilidades ocultos, complexos como um rizoma,
fazendo alusão à Guattari e Deleuze (1997). Há, enfim, muito por considerar nessa
trama em que se articulam suas sensibilidades e suas disposições para a ação.
Sentidos múltiplos atribuídos às profissões estão nesse projeto dos pais associados
à posição de classe social, à preservação de um dado capital cultural conquistado, a
facilidades usufruídas de acesso ao ensino superior, à qualidade da educação
primária e secundária recebida, a demandas de mercado, a projetos de afirmação de
habilidades, e, no caso específico, à condição de autonomia do gênero feminino.
Sentidos que se entretecem num vasto campo de representações sociais, expondo
processos tantas vezes ocultos ao quanto se considera elementos envolvidos na
construção de projetos profissionais. Afinal, a experiência humana revela uma
multiplicidade de elementos que a compõe, construídos numa realidade múltipla
marcada pela coexistência de diferentes mundos e “províncias de significados”
(VELHO, 1999) diversas. Mas é nesse campo de experiências que ela inventa e que
constrói um dado projeto profissional.
63 Disponível em http://www.diariodaregiao.com.br/novoportal/Opiniao/Artigos/9287,,Profissoes+de+futuro+.aspx acessado em maio de 2005.
95
O importante aqui é observar que os processos sociais que constituem e que
atravessam o campo de experiências de Isabela, não são entidades separadas da
vida pessoal que a influenciam ou que determinam seus rumos profissionais. Como
indica Elias (1990), indivíduo e sociedade são entidades sociais que se inter-
relacionam. E as experiências humanas modificam “de maneira sutil ou de maneira
radical” o rumo da História, segundo Thompson (2002, p. 13). É na experiência
humana que se criam e se recriam sentidos dados à própria vida. A noção de projeto
recupera, então, essa dimensão ativa e criadora do indivíduo. Isabela constrói seu
projeto, rompendo com a tradição de família e com sentidos que os pais orientam
suas ações. Afirma o que gosta, numa negociação com a realidade e em direção a
conquistas que as meninas de seu tempo almejam. Não abandona a perspectiva do
sucesso, mas negocia com base naquilo que o seu campo de experiências projeta
como o seu horizonte de expectativas.
Adentrar a complexidade desse campo de experiência, pois, não é tarefa fácil.
Como um fenômeno multideterminado, os projetos profissionais exigem um olhar
atento à diversidade de processos que os constitui. A principal dificuldade reside no
método de exposição desses processos. Se minha opção metodológica fosse
apresentar as trajetórias, em separado, seguidas da análise dos processos que nela
se atualizam, as análises ficariam repetitivas e superficiais, dada a opção de tentar
apreender, de uma só vez, a complexidade estudada. Entretanto, não creio que o
adequado seja uma análise à moda de Descartes (1996) “dividir para conhecer”,
fracionando e fragmentando a realidade. O desafio que me proponho aqui é, então,
buscar um modo de análise de cada processo envolvido na construção dos projetos
profissionais, sem perder de vista a inter-relação entre eles e admitir, assim, a
possibilidade de desvendar, neles, partes que sejam de certos sentidos civilizadores
desses nossos tempos. Para a compreensão desse campo de experiência, usando a
metáfora da rede, persigo alguns fios dessa primeira trajetória, como tentativa de
aproximação da complexidade desses sentidos.
O primeiro fio diz respeito a uma inscrição no sensível do projeto dos seus
pais – um projeto típico de classe que projeta ascensão social a partir da profissão
(assunto que será mais bem discutido no capítulo 4). Esse projeto atualiza razões e
sentimentos que parecem dar prosseguimento a um projeto por meio da imitação de
um modelo. Atualizam o desejo de garantia de uma transferência de patrimônio
familiar, de retorno financeiro assegurado com a profissão, mas, também, o
96
reconhecimento do sucesso familiar conquistado, de afirmação e continuidade de
sucesso, afastando o medo do fracasso, numa profissão tida como de elite. Tudo
isso se vincula a sentidos que se constroem na modernidade sobre o trabalho.
Esses sentidos civilizadores remetem-nos a costumes e práticas desenvolvidos pelo
grupo de origem de Isabela que, são moldados por meio do despertar da ansiedade
nos jovens, como forma de adequação aos padrões de “conduta desejáveis da sua
época”, como observa Elias (1990).
Num outro fio, é possível perceber nas razões e sentimentos de Isabela
indícios de uma visão de mundo pautada na ideia de “fazer o que gosta”
independente do retorno financeiro, sentido que, em alguns momentos, opõe-se ao
anterior. O diálogo de Isabela e sua mãe sobre o poder de sedução do consumo,
marca dos tempos que correm, representa muito desse embate de forças:
Mãe: Vê [sic], ela não parece uma adolescente normal... Eu saio com ela para ir ao Shopping comprar roupas. O que uma adolescente normal faz? Quer bolsa, sapato, além das roupas, é claro! Isabela, não. Eu tenho que empurrar. Que ficar falando: “Compra minha filha, é muito bonito. Vai ficar bem em você.” Mas ela não quer nada! Isabela: É que minha mãe é exagerada! Se eu já tenho uma bolsa e ela está boa, para que comprar outra? Minha mãe tem seis ou sete bolsas, não sei quantos sapatos, roupa de griffe. Eu acho tudo isso besteira. Mãe: Tá vendo?! Diz para mim, é uma adolescente normal? (risos)...
As formas de perceber, sentir e ver a realidade são de fato diferentes. Isabela
atualiza uma nítida recusa aos valores consumistas da sociedade pós-industrial
como parte dos sentidos civilizadores que movem a sua experiência. Ainda que não
se trate de uma ação engajada a um movimento romântico, sentidos românticos
inscritos na política e na cultura misturam-se e adensam suas sensibilidades. Não só
específicos aos seus gostos e habitus, mas quanto à forma de interpretar o mundo e
de buscar uma profissão. As “afecções”64 românticas que fazem parte da construção
de seu projeto profissional. Dessa forma, ainda que não seja determinante de sua
opção por uma das profissões, esse segundo fio sugere o romantismo presente nos
sentidos civilizadores em pauta e se traduzem em razões e sentimentos nas
experiências cotidianas.
64 Termo utilizado por Chauí (1999) ao Tratar da Nervura do Real. O sentido dado pela autora, embasado no pensamento de Spinoza, é que as afecções são sensações que a atravessam e constituem as experiências humanas.
97
Assim, deixo de lado, por hora, tantos outros processos sociais que se
manifestam na trajetória de Isabela e focalizo apenas alguns deles, como parte das
razões e sentimentos que se forjam nesse campo. Recorto, então, sensibilidades
que se vinculam às racionalidades do mundo do trabalho, tais como: a decisão de
profissionalizar-se, de fazer curso superior, de ter sucesso profissional e ganhos
materiais, manter um dado status e/ou ascender socialmente, entre outras. E, num
outro recorte, há sensibilidades atreladas ao que chamarei de “romantismo das
profissões” 65, uma visão de mundo que afirma valores opostos aos propagados pela
civilização industrial capitalista.
A expressão “romantismo das profissões” apóia-se em estudos sobre o
romantismo político66, útil para examinar visões altruístas/humanitárias das
profissões como “fazer medicina para salvar vidas”, “ser juiz para promover a
justiça”, “fazer psicologia e serviço social para ajudar as pessoas”, entre outras. Uma
visão que se contrapõe à lógica do mercado, e também opera nas indicações dos
projetos profissionais. À luz das contribuições de Elias (1990), a ideia aqui
desenvolvida, então, é que nas experiências humanas o romantismo político
conforma sentidos atribuídos às profissões, matéria pouco examinada nessa área,
em geral tratada na perspectiva do tempo curto, conjuntural. Pensar e teorizar sobre
as estruturas de sentimento, a partir do estudo de pessoas em uma sociedade
específica, analisada aqui e agora, remete à visualização de processos de longo
prazo, por vezes, ocultos em análises do presente. Por isso, ao visualizar esses
sentidos que marcam as trajetórias, procuro entendê-los como parte de um
movimento da história que se atualiza no presente, num dado recorte de tempo e
espaço. Dessa forma, que os sentidos civilizadores serão procurados. Algumas
questões serão úteis para nortear as seguintes reflexões: No campo de
possibilidades de vestibulandos/as, que sensibilidades se forjam a partir das
interseções entre as experiências humanas e o trabalho? Que sentidos civilizadores
são atualizados nas opções profissionais e de que modo se expressam?
65 O termo romantismo aqui utilizado se até, ao sentido proposto por Michel Löwy (1996) para se referir não só ao movimento que perpassa a literatura, a filosofia, a política e a religião do final do século XVIII e XIX, mas como uma visão de mundo que insiste em se opor aos valores burgueses e aos valores da sociedade industrial capitalista. 66 Sobre romantismo político ver Williams (1969), Thompson (2002), Ridenti (2000) e Lowÿ (1990, 1996, 2005).
98
2.2 Razões, Sentimentos e o Mundo Trabalho
As preocupações expressas em “escolher uma profissão”, “fazer uma boa
escolha”, “não fracassar”, “obter sucesso a partir de suas escolhas” são parte das
sensibilidades dos entrevistados. Apontam para sentidos que, como destaca Elias
(1987), modelam habitus e costumes e se constroem a partir da mudança ocorrida
em função da criação de um espaço específico para o trabalho na sociedade
burguesa:
A vida privada é modelada em função de sua dependência com relação à situação profissional. O homem da sociedade burguesa de massa sabe, em geral muito bem, como ele deve se comportar na esfera profissional. Todos os esforços de modelagem da sociedade visam esta esfera (ELIAS, 1987, p. 114).
Preocupações com o futuro profissional, expectativas de que este traga
ascensão social, ganhos, conquistas, status, sucesso, dinheiro, reconhecimento e
pertencimento é parte dos sentidos civilizadores que constituem os projetos
profissionais. A própria identidade é modelada a partir da situação profissional como
demonstra Viviam67: “Eu quero ser professora, porque assim eu lido com criança,
com pré-adolescente, então é uma área em que eu me identifiquei muito, por isso eu
escolhi.” Não se trata apenas de fazer ou exercer a pedagogia, mas de “ser”
professora. Ou seja, a profissão torna-se um elemento constitutivo de sua forma de
ser. A ideia de Elias é reforçada: a própria vida social é modelada a partir do
trabalho. Assim, razões e sentimentos nas trajetórias investigadas forjam-se,
também, em função dos sentidos pertinentes às racionalidades do mundo do
trabalho. Vejamos alguns deles.
2.2.1 Desejo de sucesso
O que eu quero ser?... Eu quero andar de terninho, salto alto, bem arrumada, escovada, maquiada, com pasta de couro, andando para lá e para cá.
Vestígios deixados na análise das trajetórias investigadas fazem-me
recuperar em minhas memórias a fala da menina já referida na introdução desta
67 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
99
tese. O que ela atualiza em suas percepções ao afirmar que quer andar de terninho,
salto alto, maquiada e portando uma pasta de couro? Ela fala de um desejo. Desejo
que se constrói sobre as representações acerca de uma mulher bem sucedida.
Sentidos que se fazem no aqui e agora, mas que revelam um movimento mais
amplo da história, das conquistas femininas de direito e oportunidades na esfera
pública. Desejo de sucesso é o que parece impulsionar aquela menina de minhas
lembranças, mas também sentidos que movem tantas outras trajetórias
investigadas, não apenas de mulheres. No sentido comum, sucesso diz respeito ao
êxito na execução de uma tarefa ou de um projeto. Mas, o sucesso tem um sentido
mais específico na sociedade capitalista num tempo em que os sentidos constroem-
se em função do trabalho, como destaca Elias (1987). O sucesso está vinculado a
reconhecimento profissional, status, ganhos materiais, enfim, ao que garante
reconhecimento e valorização aos sujeitos sociais.
A história de Isabela, narrada no início do capítulo, retrata não apenas os
dilemas e conciliações que se fazem entre o desejo de fazer o que gosta e o desejo
de seguir uma perspectiva já consolidada de sucesso familiar. O descarte de
profissões como desenho industrial, artes, cinema é ilustrativo de suas
preocupações em fazer o que gosta, mas também avaliando as dificuldades que terá
para ingressar no mercado de trabalho. A busca de definição de resultados
favoráveis a sua opção também é uma busca de conciliação de projetos familiares e
pessoais, aparentemente antagônicos, visível quando localiza informes na mídia,
que reforçam que design gráfico é uma das “profissões do futuro”. Liliam68 também
revela expectativas de reconhecimento, sucesso e de ganhos financeiros no seu
fazer profissional:
Se você fizer uma coisa bem feita, você vai poder conhecer outras pessoas que vão te perceber e reconhecer teu trabalho. Essas pessoas vão ver e, consequentemente, você vai fazer sucesso. Se você faz sucesso, com sucesso traz o lucro, o bem estar financeiro... Eu acho que uma coisa atrai a outra.
Como parte dos sentidos construídos pela e na modernidade o desejo de
sucesso atualiza lógicas individualistas ao nosso tempo. Recupero, nesse sentido, a
frase dita pela mesma aluna: “Eu quero ser professora, porque assim eu lido com
criança, com pré-adolescente, então é uma área em que eu me identifiquei muito,
por isso eu escolhi [grifo nosso]”. A ênfase ao pronunciar “eu escolhi”, a entonação 68 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
100
de sua fala e firmeza com que faz tal afirmativa, mostra a atualização do ideal liberal
em sua trajetória: a garantia de liberdade e a responsabilidade sobre suas escolhas.
Como destaca Behring (1998), a questão do sucesso e do fracasso, na sociedade
atual, são entendidas como algo que pertence à esfera privada. O individualismo e a
competição por um lugar melhor constituem o núcleo central da ideologia liberal. A
ideia básica está em que o ser humano é, antes de tudo, um indivíduo do ponto de
vista ontológico e ético e, portanto, livre para escolher entre o sucesso e o fracasso.
Conquistar o sucesso e evitar o fracasso é um sentido que move as experiências no
tempo e no espaço. Está presente nas entrevistas e revela parte das sensibilidades
dos entrevistados, independente de cor, classe, raça, gênero ou idade; isso move a
construção de projetos profissionais. Por isso, além de verificar o desejo de sucesso
que se atualiza na trajetória de duas mulheres de diferentes classes, trago um pouco
da trajetória de um homem.
Luciano69 quer fazer o curso de direito para ter maior embasamento na hora
de tentar concurso público, porque “aumenta o leque de possibilidades e os
rendimentos são bem maiores que de outras profissões”. Fazer direito, entretanto, é
parte das negociações entre seus desejos e a realidade que vive, já que gosta
mesmo é de história. Mas como diz: “História não dá muito dinheiro... Não vou ter
futuro. Eu sou meio ambicioso. Quero ter sucesso! Quero ser bem sucedido, quero
ter dinheiro, quero ter uma vida boa. E no direito eu também acabo vendo história”.
O desejo de sucesso e a visão de que é preciso sacrificar o que gosta em função do
sucesso aparece na sua trajetória. Não tem tantas dúvidas quanto Isabela. Para ele,
o importante é fazer o que lhe garantirá boas oportunidades futuras. Sentidos como
esses, remetem-nos a movimentos de longa duração que marcam também os
tempos atuais.
Homens e mulheres têm perseguido, arduamente, o sucesso, a superação de
limites a sensação de vencer. De forma inconsciente ou não, o desejo de sucesso
profissional e financeiro e o reconhecimento social são motivações para a
construção de autonomia pessoal, algo indissociável dos projetos profissionais. São
movidos pela busca de um ideal normativo de pertença e de participação, ou seja,
busca a cidadania como indica como indica Kymlicka (1999). A cidadania não se
refere apenas a um estatuto, definido por um conjunto de direitos e de
69 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
101
responsabilidades. Mas constitui-se, principalmente, numa identidade, uma
expressão de pertença a uma comunidade política específica e tem, por isso, função
integradora.
A busca de autonomia está mais nitidamente presente nas razões e
sentimentos dos projetos de vestibulandos/as que não dispõem de patrimônio
familiar, caso de Luciano. Seus pais tiveram pouco estudo e trabalham no comércio
como vendedores. Entretanto, sempre o incentivaram nos estudos. Ele que parou
depois de terminar o Ensino Médio porque queria trabalhar, agora quer cursar
direito. Não acredita, entretanto, ter chances de passar no vestibular deste ano
porque está sem tempo para estudar: “Tem gente se preparando [sic] para o direito
há muito mais tempo que eu. Só tem quatro meses que eu estou estudando, quando
eu acabei o Ensino Médio eu fiquei três anos sem pegar no caderno, aí eu quero me
preparar mesmo”. O pouco tempo de estudo dá-se em função do trabalho no qual
ele tem uma jornada de oito horas por dia. Faz, por isso, o pré-vestibular à noite.
Como parte de negociações de si para si avalia, em seu campo de possibilidades e
decide que, neste ano, tentará história, porque é o primeiro vestibular que fará e no
próximo ano tentará o curso de direito: “Ao menos, já ponho o pé na universidade,
isso para mim já será uma vitória!”. Isso não significa que ele não tenha escolha,
mas as faz num dado campo de possibilidades. Projetos profissionais, pensados à
luz das contribuições de Velho (1999), são condutas organizadas para atingir
finalidades específicas. Essas condutas são formuladas e implementadas num
campo de possibilidades e com um horizonte de expectativas que se projeta a partir
e apesar dele. Não se trata, portanto, de uma escolha deliberada de um ser
autônomo e livre de quaisquer influências de seu contexto social – o que tira o peso
da visão individualista de responsabilidade única no indivíduo na definição de suas
contingências.
O desejo de sucesso por meio de concursos públicos é também parte de uma
dada profissionalização, atualizados em tempos mais recentes. Passar em
concursos, pode representar razões e sentimentos de um tempo marcado pela
instabilidade na esfera do trabalho, frente às mudanças heterogêneas, complexas e
fragmentadas, como destaca Antunes (1995, 2002, 2009), no mundo do trabalho.
Com a reestruturação produtiva e a entrada das novas tecnologias, microeletrôncia e
robótica, diversas tendências configuram-se no capitalismo brasileiro. Dente elas “a
redução do proletariado industrial, fabril, tradicional, manual, estável e especializado”
102
(ANTUNES; ALVES, 2004, p. 2) ocorre, ao mesmo tempo em que se dá o aumento
do novo proletariado fabril e de serviços sob a forma de trabalho precarizado como
terceirização, subcontratação, tempo parcial, entre outras formas, com destaque
para a expansão dos assalariados médios no setor de serviços; a presença feminina
em vários setores de serviço e industriais; a exclusão de uma massa enorme de
trabalhadores sem qualificação; o aumento do terceiro setor. Enfim, o resultado é a
contração do trabalho estável e regulado, herdeiro da fase taylorista e fordista e se
contrapõe à:
[...] ampliação, em escala global, das formas desregulamentadas de trabalho precarizado, do “trabalho atípico”, de que são exemplos a infinitude de trabalhos terceirizados, part time, subcontratados, “quarteirizados” etc. Ou ainda daquelas formas de trabalho que frequentemente mascaram a superexploração e mesmo autoexploração, como o “empreendedorismo”, as falsas “cooperativas”, os trabalhos “voluntários”, exigidos pelo mercado de trabalho de modo compulsório, visto que se trata de requisito “obrigatório” na difícil busca por novos empregos (ANTUNES, 2009, p. 01).
Isso gera, nos sujeitos sociais, instabilidade e insegurança em relação às
formas de trabalho, sobretudo do mercado privado. É nesse contexto, que fazer
concursos públicos pode representar a possibilidade de segurança e de ganhos
perdidos na esfera privada. Além disso, o fato de os concursos públicos, na
atualidade, atraírem um número significativo de candidatos “demonstra que a
profissionalização por meio do Estado ainda é uma estratégia importante para os
agentes de classe média” (BARBOSA, 1998, p. 138). Não apenas o curso de direito
é procurado em razão disso, mas vários outros considerados mais rápidos e mais
fáceis de ingressar são procurados em virtude de muitos concursos exigirem nível
superior em qualquer área. Os concursos públicos representam, em nosso tempo,
uma importante estratégia de manutenção de lugares sociais e também de ascensão
social e, portanto, de sucesso. O que se evidencia, então, é que a busca do
sucesso, o desejo de conquistas futuras é um sentido - apesar de não ser único -
que move as trajetórias investigadas.
103
2.2.2 Medo do Fracasso
Assim como o desejo de sucesso profissional, o temor ao fracasso é parte
das razões e sentimentos de jovens e adultos que buscam uma profissão. Passar no
vestibular é um sentido que confere a esses jovens a sensação de reconhecimento.
A reprovação, por outro lado, é motivo de vergonha. O testemunho de Lívia70 que
estuda no curso preparatório para o vestibular privado, expressa essas razões:
“Ninguém quer perder. Isso começa aqui na escola. Todos querem passar no
vestibular. E se não passar é motivo de vergonha e de chacota para os outros. É um
fracassado! Mesmo em medicina, que é difícil passar, tem um pouco disso”. Essas
percepções, esse medo de sentir-se um perdedor, um fracassado, levam muitos a
optar por cursos em que há menor interesse, cuja concorrência é menor, apenas
como estratégia para garantir a aprovação no vestibular. Isso me remete ao caso de
um menino atendido em meu consultório. Há um ano, fazia o curso de geografia e
estava insatisfeito. Queria na ocasião fazer engenharia de petróleo, mas como
achou que não iria passar tentou um curso mais fácil. Achava que fazer mais de um
ano de cursinho era vergonhoso, porque afinal, sua tarefa era apenas estudar. As
trajetórias investigadas nesta pesquisa, em menor ou maior proporção, também
revelam esses sentidos. Gabriele71 tentará psicologia porque acredita que não
conseguirá passar em medicina, algo que deseja no momento. Prefere fazer um
curso mais fácil para evitar a sensação de fracasso: “Em psicologia, eu passo, já se
eu tentar medicina vai ser impossível. É o curso mais concorrido da UFES. Não vou
suportar estudar um ano inteiro de cursinho e depois... reprovar”. O Ensino Médio foi
cursado numa escola pública profissionalizante o que a deixa com muitos déficits em
sua aprendizagem:
No Ensino Fundamental, eu estudei em escola particular. Sempre fui a melhor aluna da turma e tive ótimas notas. Mas resolvi fazer magistério e é muito fraco. Não tive química, não tive física, geometria. A matemática era ridícula: fazer as quatro operações básicas e coisas do tipo. O máximo que foi visto era radiciação e potencialização. Coisas básicas que se aprende ainda no primeiro grau. É uma coisa horrível. Tinha uma colega que contava nos dedos coisas simples do tipo: “Três vezes quinze é... e contava nos dedos”. Só tinha gente burra naquele lugar, incluindo muitos professores. Eu me decepcionei. Meu desejo desde criança era ser professora, mas quando vivi tudo isso, resolvi mudar de profissão. Só que agora é difícil. O magistério não te base para nada. Estou aqui no [cita o nome do cursinho], mas tudo o que os vestibulandos/as estão revendo, que é do Ensino Médio, eu estou vendo pela primeira vez. Sempre fui inteligente, mas é questão de lógica, não
70 Mulher branca, 15 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado. 71 Mulher branca, 16 anos, classe C, estudante do curso pré-vestibular privado.
104
dá para aprender em um ano, o que todos aprendem em três. Então prefiro tentar psicologia porque sei que em psicologia, mesmo sendo um curso difícil de passar, eu tenho chance.
Um temor de fracassar na prova do vestibular, junto com o desejo de
aprovação em um curso da Universidade pública misturam-se. Ingressar numa
universidade pública representa uma conquista para essa menina de 17 anos.
Apesar de estudar no cursinho privado, vêm de uma família humilde em que os pais
não tiveram estudo. O ingresso no mercado de trabalho deu-se aos 14 anos e tinha
poucas expectativas de ingressar na Universidade. Isso só se desenha em seu
horizonte de expectativas a partir da decepção com a profissão – aliás, a história
também se move em função de ressentimentos – e com a promoção que seu pai
recebera no trabalho. A mudança das condições econômicas de sua família
possibilitou-lhe parar de trabalhar para dedicar-se a sua formação escolar. Criou
outras expectativas e motivações que pudessem levá-la ao crescimento pessoal e
profissional.
O desejo de reconhecimento e de conquistar um futuro profissional melhor
não se realizou diante do curso de magistério. Ela busca isso em um curso superior.
Medicina ou psicologia? Como revela, não sabe a que ponto quer medicina porque
gosta ou por um desejo de reconhecimento, afirma: “Se eu passar em medicina
todos vão dizer: Oh! Ela passou em medicina, é uma pessoa muito inteligente”.
Parte dos sentidos são conscientes, mas há outros não tão conscientes, como o
desejo de ascender socialmente e de ter uma profissão de status assegurado pelo
curso de medicina. Por outro lado, avalia suas reais possibilidades de passar em um
vestibular tão concorrido, afinal não teve uma boa base de conhecimentos. A
avaliação que faz sobre seu campo de possibilidades e a necessidade de passar
logo no primeiro vestibular, a fazem desistir de medicina: “Preciso passar esse ano,
meu pai não vai ficar pagando cursinho para mim no ano que vem. Se eu tentar
medicina e não passar, fico sem nada. Quero entrar na UFES”. Nesse campo de
possibilidades em que desenha seu projeto profissional, também enuncia sentidos
que revelam o desejo de sucesso e de conquistas futuras. É nesse campo que faz
suas negociações com a realidade: “Psicologia não é um curso tão difícil de passar
quanto medicina, mas não é um curso tão fácil. Não é qualquer um que passa.
Então é uma profissão mais valorizada do que outras. E, se eu me esforçar
bastante, consigo passar”. As condições precárias da formação de professores, no
105
Brasil, são processos sociais de longa duração que se atualizam. Não apenas nessa
trajetória, mas em várias outras, há uma denuncia explicita de que o ensino público,
em nível secundário, não fornece reais condições para o ingresso no ensino em
nível superior. O que será tratado mais adiante.
A busca da superação de limites, o desejo de conquistas futuras, a
possibilidade de adquirir status com a profissão, o reconhecimento pessoal a partir
da aprovação no vestibular são expressos nas razões e sentimentos dos
entrevistados, indicando que muita coisa está em jogo, nesse momento. Agir de
forma a evitar o fracasso configura parte do que move as experiências humanas,
afinal “ninguém quer perder” como afirma a vestibulanda, ainda mais num mundo
que confere tamanho valor e significado à esfera do trabalho. Fracassar, nesse
âmbito, é fracassar na própria vida e pior, é ser responsável por isso, de acordo com
as teses liberais em circulação. A construção do projeto profissional é, então,
percebida como parte da construção da própria identidade. A trajetória a seguir
também ilustra como a profissão acaba por fazer parte da identidade social, mostra
o desejo de João72 de “ser menos peão” com o ingresso no curso superior.
2.2.3 “Quero ser menos peão”: projetos, necessidade e desejo de profissionalização
O curso superior vai me dar mais expectativas, trabalhar mais... Trabalhar sem ser peão, eu acho que o sentido certo da palavra é esse, né? Tentar ser um pouquinho mais intelectual... Ser mais profissional, menos peão... Ser mais especializado.
A frase acima é de João, torneiro mecânico há 20 anos. Quando terminou o
Ensino Médio, fez um curso técnico no SENAI e logo começou a trabalhar.
Constituiu família, tem um casal de filhos adolescentes (uma menina de 18 anos e
um menino de 13 anos), sua esposa trabalha em casa com costuras, o que ajuda na
renda da família. João, que leva uma vida modesta, revela alguns motivos para
voltar aos estudos. Como diz, significa sair da sua condição atual: “ser peão”. Quer
dar exemplo para os filhos: “Lá em casa um dia, eu puxei na memória e pensei:
como que eu fico cobrando, cobrando dos meus filhos que eles estudem, se eu
parei? Aí resolvi voltar para dar exemplo.” Afirma o desejo de “ser mais profissional,
menos peão” com a formação superior em Tecnologia Mecânica, curso que tentará
72 Homem branco, 42 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
106
no vestibular. As razões e sentimentos que movem as expectativas desse homem
da classe popular indicam sentidos que se constroem no seu tempo histórico e nas
interseções com outros tempos: “Ser mais profissional”, “mais especializado” e “mais
qualificado”, “dar um exemplo”, além de o desejo de pertencer a um grupo
socialmente mais valorizado. Razões e sentimentos, partilhados pelas trajetórias
investigadas, indicam que os projetos profissionais movem-se em função de certos
sentidos civilizadores. Mesmo àqueles, que já estão inseridos no mercado de
trabalho, procuram pela profissionalização em “nível superior”. Ter uma profissão,
inscreve-se no desejo dos entrevistados. Esses sentidos civilizadores apóiam-se,
sobretudo, na ideia dominante nas sociedades modernas de “ganhar status via
trabalho” (BARBOSA, 1998, p. 132). Nas sociedades em que predomina a
profissionalização o mérito da ocupação, de possuir um lugar privilegiado no
trabalho, se torna em um princípio de classificação social. Algo que persiste,
portanto, como um fenômeno da longa duração e que ganha espaço nessa história.
O sentido expresso em: “trabalhar sem ser peão” e “ser mais profissional” indica não
apenas o desejo de superação de seu lugar atual, como nos remete à questões
relativas ao campo das profissões. Mas o que significa ser mais profissional? O que
constitui de fato uma profissão? Adentro essas questões antes de prosseguir.
O conceito de profissão é recente, surge apenas na metade do século XX no
campo da sociologia das profissões. Por outro lado, vale lembrar que as profissões,
propriamente ditas, no mundo ocidental, têm suas raízes nas corporações artesanais
urbanas da idade média. O “modelo da profissão”, expressão de Zarifian (2003), tem
como características: pertencer a uma profissão, aprendizagem realizada por
provas, a hierarquização das relações (de aprendiz até mestre mais especializado),
o conhecimento, o monopólio local da distribuição institucionalizada de sua
transversalidade. Esse modelo, associado aos regimes de monopólio das
instituições feudais, sofre vários ataques no final do século XVIII. Assim, na
emergência do sistema fabril e no limiar do liberalismo econômico, acontecem
erosões por serem as corporações consideradas antidemocráticas, em virtude de
que só os profissionais (artesãos) poderiam exercer certos ofícios. Sob ataques dos
empresários que queriam exercer controle sobre os mesmos, subordinando-os aos
interesses fabris, a transição do ofício artesanal para o trabalho fabril, no qual se faz
a formação do operariado, marca fundas redefinições de vida e muitas lutas sociais.
O modelo do “posto de trabalho” veio, então, substituir o modelo das profissões e
107
começa a triunfar com o taylorismo no final do século XVIII. O trabalho na grande
indústria, ao contrário da experiência anterior, desvaloriza o saber artesanal, e
impõe o modelo caracterizado pela baixa exigência de qualificação profissional,
inclusive com a incorporação de mulheres e crianças na indústria. A propagação do
conhecimento científico reforça, entretanto, restaura o modelo das profissões e
propicia a coexistência de ambos os modelos na modernidade.
A profissão é um tipo de ocupação que se distingue das demais em função do
conhecimento e competência especializados para a realização de tarefas.
(FREIDSON, 1996)73. Esse conhecimento é adquirido por meio de uma formação
especializada, geralmente ofertada pelo ensino de nível superior. Ter a autonomia
sobre o trabalho, o monopólio do conhecimento abstrato (a expertise) e o controle
institucionalizado sobre os recursos desejados, podendo controlar o acesso aos
domínios, julgando e solucionando problemas são características das profissões. De
acordo com Freidson (1996, p. 141), o profissionalismo define-se por meio de:
[...] circunstâncias típico-ideais que fornecem aos trabalhadores munidos de conhecimento os recursos por meio dos quais eles podem controlar seu próprio trabalho, tornando-se, desse modo, aptos a criar e a aplicar aos assuntos humanos o discurso, a disciplina ou o campo particular sobre os quais têm jurisdição74.
As profissões constituem-se, portanto, em “grupos sociais livres de maiores
controles por parte da sociedade” (BARBOSA, 1998, p. 131) em função do
conhecimento específico pautado na ciência. A profissão também faz alusão a status
profissional, código de ética, regras de controle do trabalho, entre outras. Aliás, a
desprofissionalização e a desqualificação estão vinculadas à redução desse
controle, bem como a redução das exigências de qualificação para o ingresso em
uma profissão. Uma outra característica importante das profissões é a “disputa entre
os diversos grupos” (BARBOSA, 1998) pelo domínio do espaço social. O controle
rigoroso da formação e do exercício profissional é a principal forma de exercício de
poder das profissões, assim como o dos privilégios que elas desfrutam.
73 A proposta de Freidson (1996) se faz contra o ponto de vista funcionalista, em que as profissões são vistas a partir da “expertise” que os profissionais possuem para resolver problemas. E também se opõe a teoria do conflito, vertente predominante a partir da década de 1970, que assume a perspectiva do poder, segundo a qual os profissionais são autoridades para decidir o que fazer. Faz críticas a ambas visões e postula que as profissões são construídas social e historicamente, em função de uma luta política em que os vencedores adquirem as mais altas recompensas sociais e econômicas. Ele ainda destaca que para ser considerada uma profissão é necessário ter como pré-requisito a formação de nível superior. 74 Como destaca Barbosa (1998) jurisdição na perspectiva apresentada se refere a um laço que liga um grupo profissional ao seu campo da divisão técnica do trabalho. Um grupo que realiza um determinado tipo de trabalho só será considerado um grupo de profissionais se tiver controle autonomo sobre essa área e estabelecer reconhecida legislação legitimada sobre sua área específica de atuação.
108
Considerando-se as características apresentadas, a profissionalização no
Brasil começa no início do desenvolvimento industrial, com a burocratização da
ordem social e, como afirma Schwartzman (1987), com a introdução dos saberes
modernos, recursos na luta interelite75. A crescente busca por profissionalização
também se deve ao fato das sociedades modernas terem uma dependência em
relação aos saberes profissionais. Uma medicalização e uma jurisdição da vida
social, juntamente com a “economicização” das práticas, na atualidade, podem ser
observadas na história das profissões, como revela Barbosa (1998). Essas
transformações, na organização social do trabalho, criam possibilidades de
trajetórias independentes com novas perspectivas de carreiras. O tipo de trabalho
predominante “mantém ainda como central o princípio ocupacional: a ideia de que o
trabalho profissional seja controlado pelo próprio profissional ou pelo grupo e/ou
suas elites” (BARBOSA, 1998, p. 139). Ao que tudo indica, caminhamos para uma
sociedade dos serviços. Aumenta o número de especialismos e os especialistas com
poder de verdade, pautados na ciência, para falar da realidade. Cresce também, por
exemplo, demandas de serviços de médicos, advogados, engenheiros e arquitetos.
Mas, de fato, a valorização da profissionalização é um fenômeno mais recente
em nossa história. De acordo com Zarifiam (2003), a valorização e a busca da
autonomia e da qualificação dos trabalhadores, colocadas com a reestruturação
produtiva (pautado no toyotismo japonês) reforça o modelo da profissão em
detrimento do “posto de trabalho”. Os trabalhadores buscam “qualificação e
requalificação” (SANTOS, 2005) para o mundo profissional em que as rápidas
transformações são a tônica, não apenas para a colocação como também para a
manutenção no mercado de trabalho. É a dimensão gerencial da qualificação
operária que emerge na década de 1980. Modelo encontrado, sobretudo, “nas
indústrias ditas flexíveis, que aplicam o método “just-in-time” a responsabilização da
oficina na gestão do fluxo é a solução organizacional mais eficiente” (ZARIFIAM,
s.d., p. 3). Mas as contradições do mundo do trabalho são tamanhas. Dessa forma,
num mesmo momento histórico, há tendências que apontam para a necessidade de
força de trabalho qualificada nos setores mais dinâmicos da economia do país, mas
75 O processo caracterizou-se de acordo com a instituição de padrões específicos da organização de relações sociais, como destaca Barbosa (1998), ao falar dos economistas, dos médicos, advogados e sanitaristas no Brasil.
109
cresce, também, a sub-remuneração intensificada, o desemprego e a precarização
do trabalho.
Todos esses processos sociais atualizam-se, por exemplo, no projeto
profissional de João76. É nesse momento atual de incertezas que ele deseja
ingressar na universidade. Ser mais especializado e, ter uma profissão são sentidos
que se constroem em seu tempo, marcam suas razões e sentidos. Movem suas
expectativas em direção à Universidade. João constrói seu horizonte de expectativas
(KOSELLECK, 2006) a partir de um campo de possibilidades específico, marcado
por incertezas, tendências e por uma verdadeira interação de diferenças. A
sociedade atual é marcada pela heterogeneidade. É possível, então, visualizar nas
razões e nos sentimentos, expressos nessa história, que os projetos profissionais se
modificam. Mudam porque as pessoas mudam e as circunstâncias também se
modificam ao longo do tempo. Os projetos profissionais não são estáticos.
2.2.4 Sentidos e exigências do mercado
“Fazer curso superior virou obrigação” e “ingressar logo no mercado de
trabalho” são elementos das racionalidades do mercado. Parto da ideia já
desenvolvida de que a modernização e a reorganização de diversos setores
econômicos, frente às novas demandas capitalistas de implantação de novos
procedimentos de trabalho, no setor produtivo fazem crescer as exigências de
formação, qualificação, desenvolvimento de novas habilidades e aquisição de novos
conhecimentos. Com isso, pode-se compreender a busca por educação, sobretudo
de nível superior. Essas mudanças são sentidas ao longo das experiências
individuais. Sentidos civilizadores são construídos nas existências particulares para
dar conta dessas exigências. Razões e sentimentos que movem as experiências de
vestibulandos/as refletem essas mudanças como indica Gabriele77: “Hoje em dia,
curso superior não é mais um diferencial, é obrigação”; Hanna78 afirma: “Se você
76 Homem branco, 42 anos, classe D,estudante do curso pré-vestibular público. 77 Mulher branca, 16 anos, classe B, estudante do curso pré-vestibular privado. 78 Mulher branca, 17 anos, classe B, estudante do curso pré-vestibular privado.
110
não tem curso superior, você não é ninguém, nem olham seu currículo”. Liliam79
também observa: “No meu trabalho, já estão cobrando que eu faça faculdade”.
João, sujeito social anteriormente descrito, percebe essas transformações ao
longo de sua trajetória. Há vinte anos, quando terminou o curso técnico, a exigência
de nível superior era insipiente. E afirma: “Hoje as coisas mudaram, quem tem só
nível técnico não se dá bem. Penso que meus filhos têm que fazer uma faculdade.
Por isso eu resolvi voltar, para dar o exemplo”. Em parte, suas ações revelam o
desejo que os filhos tenham um futuro construído a partir dos estudos e do trabalho
melhor que o dele. Tem melhores condições financeiras e “mais informações”,
afirma, do que seus pais, o que lhe permite proporcionar aos filhos uma melhor
educação e preparação para o trabalho. Por outro lado, sente que “fazer curso
superior virou obrigação”. Liliam, também localiza esse sentido para falar dos
motivos que a levaram a fazer curso superior: “Bom, em primeiro lugar, lá no meu
trabalho já estão me cobrando que eu tenha nível superior, mas hoje em dia é
assim. Em todo o lugar que você vai tem que ter curso superior. E eu também quero
aprender mais.” Liliam trabalha na secretaria de uma escola e as relações vividas,
nesse ambiente a colocam em interação com sentidos e projetos educacionais
diversos, o que acaba por fazer parte da construção de seu próprio projeto
profissional. Não é por acaso que sua opção recai no curso de pedagogia. Além
disso, quer um curso que lhe proporcione um retorno mais rápido, com menor tempo
de investimento, o que parece se adequar também a racionalidades do mundo do
trabalho, quanto à rapidez, velocidade, retorno rápido de um dado projeto
profissional, considerando-se uma experiência já consolidada. Fará vestibular para
pedagogia, apesar de querer o curso de direito:
O direito é um curso que você demora mais pra você ter um resultado, você tem que investir muito, já a área pedagógica é uma área em que eu estou trabalhando, é uma área em que estão me cobrando no meu serviço. Então é uma área em que terei um retorno mais rápido. Financeiramente e até mesmo no meu ensino... Em tudo, vou ter um retorno bem mais rápido. Foi isso que me fez mudar.
Além de racionalidades do mercado, suas experiências atualizam
problemáticas constantes das classes populares como as de ter que ingressar logo
no mercado, não ter tempo para se dedicar aos estudos, querer um curso mais
rápido e mais fácil, superar a defasagem do ensino escolar, entre outros. Seu projeto
profissional se constrói num campo de experiências abrangente em que processos 79 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
111
sociais mais amplos e duradouros ganham densidade. Liliam faz suas negociações
com a realidade e sua “conduta organizada” (VELHO, 1999) dirige-se a um
“horizonte de expectativas” (KOSELLECK, 2006), projetado a partir desse campo.
Faz parte desse campo de experiências, também, todas as memórias e
marcas que carrega dos acontecimentos de sua vida. Afinal “a memória desse
indivíduo é que se torna socialmente mais relevante. Suas experiências pessoais,
seus amores, desejos, sofrimentos, decepções, frustrações, triunfos etc. são os
marcos que indicam o sentido de sua singularidade enquanto indivíduo” (VELHO,
1999, p. 100). Liliam foi criada pela avó porque os pais eram negligentes com os
cuidados e atenção a ela. Teve que trabalhar cedo, desde os 13 anos, na padaria da
tia e não apenas em função da necessidade material, mas como forma de adquirir
autonomia e independência. Na época que terminou o Ensino Médio, nem tentou o
vestibular. Disse: “Como sempre estudei em escola pública não teria chance de
passar em direito na UFES. Aí comecei a pagar faculdade particular. Mas minha
mãe que pagava os meus estudos ficou doente e eu tive que parar”. Segue
trabalhando em escritórios de advocacia, oportunidades que aparecem com
indicações de amigos: “Tinha trancado a faculdade de direito... Daí procurei muitos
escritórios de contabilidade, enviava muito currículo... Essas coisas assim. Mas
consegui esse emprego por indicação de um dos patrões que conhecia a minha ex-
patroa”. Demissões e novas contratações fazem parte de sua história. Também há o
término de um relacionamento de oito anos às vésperas do casamento, fato
marcante em sua história, quando havia dedicado todo o tempo e esforço para
“construir um lar”. Essas experiências a impulsionam a buscar um futuro melhor;
casou-se com outra pessoa e junto com o marido, que trabalha como motorista de
ônibus, está “tentando sair do aluguel”, como afirma. A perspectiva que se desenha
em seu horizonte com o curso superior é a melhoria das condições de vida. Mas isso
se conecta aos sentidos recorrentes do mundo do trabalho: a valorização das
profissões superiores; o discurso da qualificação; fazer um curso com retorno mais
rápido.
O discurso das organizações capitalistas sobre a qualificação, a sociedade do
conhecimento, o capital intelectual como diferencial competitivo, atravessa, portanto,
a sua trajetória e imprime significados específicos. Fazer um curso superior, hoje,
transformou-se em praticamente um requisito mínimo em muitos setores de trabalho,
como indica Barbosa (1998). Isso porque, como afirma Romanelli (1999, p. 14), “A
112
forma como se organiza o poder também se relaciona diretamente com a
organização do ensino”. A educação pública ligada ao Estado está, portanto,
vinculada a um projeto político e social. Na atualidade, esse projeto articula-se as
novas demandas e exigências que perpassam as relações de trabalho, e é nessa
medida que se compreende o contexto em que surgem os projetos de
democratização do Ensino Superior brasileiro. De acordo com Gentilli (1996),
Frigotto (1996) e Chauí (2001) a educação básica e superior passa a ser reordenada
a partir da década de 1990, em função dos ajustes neoliberais, visando
exclusivamente o mercado. Neste contexto, a universidade é “regida por contratos
de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a
universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia
organizacional […] (CHAUÍ, 2001, p.190)”. As propostas para esse nível de ensino,
pensadas por organismos internacionais a partir da década de 1990 são condizentes
com o modelo institucional gerencialista (CORAGGIO, 1996), que preconiza como
reforma: racionalização de recursos, avaliações gerenciais como forma de controle,
flexibilização da gestão, descentralização e privatização dos sistemas educacionais.
O resultado é um processo de expansão do ensino em nível superior, caracterizado
pelo aumento das instituições privadas, que foi de 267% no período entre 1991-2004
no território nacional (MANCEBO, 2006), marca do Estado neoliberal minimalista.
Os projetos profissionais, portanto, também resultam de negociações que se
constroem vinculadas aos códigos culturais, mas numa noção que não exclua
também processos sociais mais abrangentes, alguns inclusive pertencentes a longa
duração histórica. Assim, a educação, especialmente a de nível superior, tem uma
importante função, pois irá conferir possibilidades de ascensão e de mobilização
pessoal e grupal. Isso está presente nas expectativas dos entrevistados quanto ao
ingresso na universidade. A negociação com a realidade se faz em múltiplos planos.
Mas, essa negociação, se faz não apenas em função de um desejo de ascensão
profissional. É preciso passar pelo gosto, pelas sensibilidades:
Eu estava comentando com meu marido há pouco tempo... A área de ciências contábeis é uma ótima, você tem empregos todos os dias nessa área. Mas eu acho importante você fazer o que você gosta, não adianta você estar num lugar que você não está satisfeito com aquilo, você não vai trabalhar bem, não vai se desenvolver. As pessoas que estão do seu lado também não vão ficar bem porque você vai passar mal-estar para elas. É bom acordar todos os dias e dizer: ‘que bom que eu estou indo trabalhar, que bom que eu estou indo para o meu emprego... Que bom que eu gosto de fazer isso. Se você não gosta, não se dedica.
113
Os projetos não são feitos por atores em gozo da plenitude do livre-arbítrio
para decidir. Há forças e circunstâncias que se precisa enfrentar. Para isso, é
preciso “fazer e refazer mapas cognitivos [...] com implicação imediata na
autopercepção e representações individuais” (VELHO, 1999, p. 45). Liliam combina
memórias de sua infância, exigências do mundo do trabalho e a vontade de
trabalhar cedo, como forma de adquirir a desejada autosuficiência. Universos
simbólicos construídos em sua família de origem, sua primeira socialização,
interagem com os sentidos colocados pelo mundo do trabalho, além das
representações que constrói de si e das profissões, numa trama complexa de
interações rizomáticas, de que nem sempre se apercebe. Ela aprende, contudo,
com suas experiências, não apenas a lidar com essas situações a partir do
desenvolvimento de estratégias racionais, mas desenvolvendo uma capacidade de
se “adequar” a essas circunstâncias: “Eu acho que se você não criar uma
compensação, tudo fica mais difícil. Acho que a vida já é frustrante; se você ficar
remoendo tristeza é pior. Mas, você tem que fazer o bem para você mesmo”. Isso
não sugere passividade ou comodismo, Liliam é ativa e consciente nesse processo
de adequar-se às circunstâncias – táticas e estratégias de ação – como indica
Michel de Certeau (1994) colocadas por seu campo de possibilidades. O desejo de
ascensão social, de ter sucesso pessoal e profissional, de ter mais qualificação e de
ter uma profissão, direcionam as trajetórias a fazer um curso superior. Parte dos
desejos e necessidades individuais, que se conectam as transformações colocadas
pelo mundo do trabalho. Pois novamente, voltando a Elias (1987), a lógica da
profissionalização constrói-se como um sentido civilizatório em que “a vida privada é
modelada em função de sua dependência com relação à situação profissional”
(p.113).
2.2.5 O sistema de cotas: possibilidades, exigências de qualificação e a marcha dos
direitos
As trajetórias individuais se fazem a partir de oportunidades abertas aos
sujeitos. Ter boas oportunidades de educação são elementos que contam muito na
construção dos projetos profissionais. Nas trajetórias examinadas até o momento, foi
114
possível identificar, entre aqueles que estudaram em escola pública, a percepção de
que ela é “carente”, “fraca”, “que não oferece um ensino de qualidade” e “não
prepara para o vestibular”. Esses significados ganham maior densidade nos relatos
colhidos em uma dinâmica de grupo80, que fiz com os vestibulandos/as do curso pré-
vestibular público, tendo por intuito tratar de motivações para as opções por
determinados cursos superiores. Suas falas revelam sentimentos e ressentimentos
de injustiça, indignação e sensação de abandono. Transcrevo uma sequência de
testemunhos a esse respeito:
“Os professores só dão trabalhinhos, nem passam a matéria. E totalmente dão nota para passar. Ninguém precisa estudar. E se não passa, tem segunda chamada, terceira chamada, quarta, quinta, até que todo mundo passa, mesmo quem não sabe muito.” “É e aí depois vêm o resultado. Ninguém cobra nada e depois na hora de tentar o vestibular a gente não passa”. “Tem coisa que nós vemos no cursinho aqui, que nunca vi na escola. Nem sabia que existia. E também tem aquela coisa de informação. Na escola ninguém fala sobre ENEM, vestibular, Cotas. Eu só fiquei sabendo aqui. Os professores trazem provas aqui, a gente faz. Aí sabe das reais condições de passar no vestibular.” “Parece que lá na escola, eles desistiram da gente. Como se a gente fosse, todos fracassados. Que não fosse conseguir nada na vida” “É, a gente até sabe do salário baixo dos professores e coisa e tal, mas a culpa é do governo, não nossa”.
Razões e sentimentos, sobre essas experiências, são também denúncias que
se fazem a movimentos de longa duração no Brasil, expondo as condições precárias
da educação pública brasileira e seu caráter classista, discriminatório e elitista. As
falas de Brenda também nos remetem a essa problemática:
Por um cartaz no terminal de ônibus eu li sobre o programa de cotas e descobri que tenho direito ao programa de cotas. Mas o ProUni, a gente fica sabendo na escola. Na escola pública, eles não acreditam que você tenha potencial para passar na UFES... Eles falam isso: “a gente sabe que na UFES é difícil entrar, então se inscrevam no ProUni, que vocês conseguem uma bolsa”. Então é descarado as coisas que eles fazem. Eu falo que é uma coisa horrorosa isso. Eu escuto isso todo dia, mas aqui [PUPT] não eles botam fé na gente todos os dias, já nas escolas públicas isso não acontece.
A tradição de desprezo pela educação popular vem de longa data. A escola
no Brasil sempre se apresentou como um privilégio da classe dominante e, por meio
80 A dinâmica de grupo foi feita com 15 vestibulandos/as do curso superior público, oito meninos e sete meninas. Minha intenção inicial era usar a mesma estratégia em ambos os grupos, o que não foi possível em virtude da não autorização do pré-vestibular privado, pois eles não podem perder tempo de estudo. Consistiu na solicitação de que fizessem uma montagem com colagem, desenho, pintura que retratassem as motivações e expectativas em relação à futura profissão. A dinâmica foi filmada e posteriormente transcrita.
115
de mecanismos seletivos e de conteúdo cultural não propicia às camadas populares
a preparação para o trabalho (ROMANELLI, 1999). Acaba mantendo, portanto, os
privilégios de classe e reforçando as desigualdades sociais. As desigualdades de
acesso à educação, seja pela cor de pele, gênero ou classe, capacidade física e
mental dentre outras condições sociais são visíveis. Cabe a ressalva de que as
mulheres, entretanto, conseguiram reverter as discriminações no que tange à
educação, como indica Beltrão e Alves (2004), em função de lutas e ganhos das
próprias mulheres, mesmo que conjugado a interesses do próprio sistema. Persiste
o fato de que obstáculos à educação, além das condições postas pelo gênero, são
dados também por classes e raças. Ainda são pouco representativos os grupos de
pobres e negros no ensino em nível superior e, principalmente, em cursos
considerados de prestígio como medicina, engenharias, direito, economia, entre
outros. A experiência educacional brasileira do escravismo exclui, entre avançados
anos do século XIX, os negros e seus descendentes, prosseguindo as
discriminações nas diferentes décadas do XX e chegando aos nossos dias
Além disso, como marca de um fenômeno de longa duração na história da
educação brasileira é possível identificar uma submissão externa – seja em relação
à metrópole no Brasil colônia ou em relação ao capitalismo mundial. É em função
dessa submissão que se compreende o surgimento de políticas atuais para a
educação brasileira anunciadas por organismos internacionais como Banco Mundial,
UNICEF, UNESCO, entre outros, propostas para o desenvolvimento econômico da
América Latina.
Na esteira de discursos, medidas e pacotes para “democratizar o ensino” e
“ampliar as oportunidades no mercado de trabalho”, localizam-se as políticas
compensatórias criadas pelo governo federal e que estão em processo de avaliação.
A política de cotas das universidades, o ENEM, o projeto NOSSA BOLSA do
Governo do Estado do Espírito Santo, entre outros, sugerem que as Políticas não
apenas facilitam o acesso ao Ensino Superior, mas também reforçam a cultura de
que a formação para o trabalho passa, necessariamente, pelo curso superior. O
sistema de cotas é parte das políticas educacionais que ocorreram a partir da
década de 1990. Refere-se a uma medida governamental que reserva vagas, nas
instituições públicas ou privadas para certos segmentos sociais. E, nessa medida, é
considerada uma ação afirmativa, de acordo com o conceito que emerge na década
116
de 1960, nos EUA81. As ações afirmativas são compreendidas como medidas de
caráter social que visam à democratização do acesso ao emprego e à educação
conforme Guarnieri e Melo-Silva (2007)82.
Neste contexto, é impossível deixar de perceber que a “política de cotas
nacional” amplia esse campo de possibilidades dos vestibulandos/as provenientes
de escola pública, visto que esses, aparentemente, são os maiores beneficiados
com o sistema de cotas sociais adotado pela Universidade Federal do Espírito Santo
a partir do vestibular de 2007. Após um ano de discussão, o sistema de cotas foi
aprovado em 2007 pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) e passou
a vigorar a partir do edital de Vestibular da UFES (Vest/UFES) 2008. A reserva de
40% das vagas dos cursos de graduação da Universidade do Estado, para ex-
vestibulandos/as de escolas públicas, produz efeitos em seus campos de
possibilidades: “Se não fossem as cotas eu nem tentaria o vestibular. Não tem
como! Você fazendo escola pública, era muito difícil entrar na UFES. Agora, com as
cotas, pelo menos a gente pode sonhar...”, observa João83. Liliam indica que as
cotas reconhecem esforços – assim, razões e sentimentos – dos vestibulandos/as
dedicados que, de outra forma jamais teriam esse ingresso assegurado84:
Eu sempre fui dedicada, só que, tipo assim, hoje, pra [sic] você entrar numa faculdade pública, está mais fácil que antigamente... Você tem as cotas, você tem o ENEM que te ajuda, tem vários programas que te incentivam, que te auxiliam a entrar nesse universo... Antigamente, há dois anos, há três anos atrás [sic], isso não existia. Então era mais complicado.
81 Ações afirmativas referem-se à medidas especiais e temporárias efetivadas pelo Estado de forma espontânea ou compulsoria, cujo objetivo é eliminar desigualdades historicamente acumuladas, por meio da garantia de igualdade de oportunidades e tratamento, assim como da compensação de perdas provocadas por discriminação e marginalização que decorrem de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. As ações afirmativas são formas de combater ou minimizar os efeitos acumulados das discriminações ocorridas no passado (SANTOS,1999). 82 Nas universidades brasileiras o sistema de cotas, ou seja, a reserva de vagas para determinados grupos sociais, começa com a aprovação da lei estadual 3.524/00, de 28 de dezembro de 2000. De acordo com a lei 50% das vagas nas universidades estaduais do Rio de Janeiro são reservadas para estudantes das redes públicas municipal e estadual de ensino. Posteriormente, a lei 3.708/01 implementa o sistema de cotas para estudantes negros ou pardos, com reserva de 40% das vagas das universidades estaduais do Rio de Janeiro. Em novembro de 2005, como afirma com Guarnieri e Melo-Silva (2007), representantes dos movimentos negros no Brasil e entidades estudantis realizam um apelo na Câmara dos Deputados com a finalidade de proceder à votação do Projeto de Lei (nº 3627/2004): “Sistema Especial de Reserva de Vagas”, que institui cotas nas universidades públicas federais. O projeto de lei prevê a instituição de reserva de vagas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escola pública e também para pessoas negras e indígenas nas instituições públicas federais de Educação Superior. 83 Homem branco, 42 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 84 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
117
Anteriormente analisei, na trajetória desta menina, aspectos outros que se
atualizam em suas experiências. Mas, cabe lembrar que as razões e sentimentos
investigados são sempre plurais, não existe um único motivo, sentimento ou razão
para a construção dos projetos profissionais. Brenda85 também sente o impacto da
cotas na sua experiência: “O sistema de cotas me incentivou e se não fossem as
cotas eu nem tentaria UFES, na verdade eu nunca nem tentei para saber como é,
mas com as cotas eu tenho mais chance de passar”. Acrescento a fala de Isac86
com esse sentido:
Aumentou a oportunidade para os vestibulandos/as de escola pública, porque você querendo ou não, é visível a diferença. Não porque o professor de escola particular é mais preparado, mas a gente fala de estrutura, então sem dúvida hoje o aluno de escola particular é mais bem preparado para tentar UFES e ai acabam pegando muitas vagas. Por causa dessa preparação, o foco é bem maior. Então devido a isso eu acho que a incidência é bem maior de escola particular. E nós estamos aí para mudar esse quadro.
Luciano87, também aluno de escola pública, reconhece a contribuição das
cotas para seu ingresso da universidade: “para mim é bom porque eu estudei
sempre em escola pública”. É fato que essa política representa uma oportunidade de
ingresso na Universidade Pública, portanto, redefine o campo de possibilidades
desses jovens de Vitória. Eles/as passam a sonhar e desejar algo antes nem
pensado. Mas essas medidas estão repletas de contradições e paradoxos. Luciano,
ao mesmo tempo, admite as facilidades do sistema de cotas e não é favorável a
elas:
Eu acho um pouco injusto a universidade ter cotas. Eu acho que as pessoas têm que entrar na Universidade por merecimento, não por cor da pele ou porque estudou em escola pública. Porque da mesma forma que o rapaz que está estudando em escola particular, se eu tivesse determinação eu poderia estudar neste curso da Universidade para Todos que é bom... e estudar da mesma forma que eles estão estudando, pra poder concorrer com eles também. Não seria, então, necessário [sic] as cotas.
Brenda tem opinião semelhante à opinião de Luciano88: “Pois é, eu acho que
o governo deveria investir no melhoramento da educação de base, para que todos
pudessem passar por seus próprios esforços e não porque tem facilidades para
85 Mulher parda, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 86 Homem negro, 29 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 87 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 88 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
118
entrar”. A percepção baseada em meritocracia também é apontada por outras
pesquisas que investigam as representações sociais sobre cotas, mostra Menin et
al. (2008, p. 1) que afirmam: “o vestibular, baseado apenas no mérito, é
representado como o sistema mais justo para ingresso de vestibulandos/as de
escola pública e, principalmente de negros, na universidade”. Essas respostas
baseiam-se em valores como justiça, igualdade, esforço próprio, o que tem sido
questionado pelas políticas de ação afirmativa. A igualdade só pode ser estabelecida
enquanto os indivíduos forem julgados como indivíduos ou pessoas. Essa
suposição, como afirma Scott (2005), estaria nas “interpretações rígidas da
Constituição e da Carta de Direitos, as quais tomam a igualdade para significar,
simplesmente, a presumida igualdade de indivíduos perante a lei” (p. 13).
A política de cotas tem acirrado as diferenças de classes e constrói dois
grupos distintos num mesmo universo. Trago a fala de uma das entrevistadas do
pré-vestibular privado, que conseguiu ingressar no curso de medicina da UFES89:
“Eu achava que eles (os cotistas) eram diferentes. Mas eles são iguais a nós. Eles
estudam, se esforçam... Não são aqueles vestibulandos/as “pobrinhos”; são
vestibulandos/as bons, que vieram do IFES [Instituto Federal do Espírito Santo]”.
Além das discriminações, as cotas parecem demarcar esse universo em “eles e
nós”, “meu grupo” “o grupo deles”, enfim espaços delimitados e diferenciados, já que
ressaltam as diferenças; a menção ao ódio e à discriminação aparece nos discursos
dos vestibulandos/as de escola particular e esta é uma realidade.
No ano em que as cotas sociais foram implementadas na UFES, em 2007,
para o vestibular de 2008, diante da reserva de 40% das vagas para
vestibulandos/as de escola pública, várias manifestações de protesto contra as
cotas, foram feitas por vestibulandos/as de escola particular no campus da própria
Universidade. Por outro lado, o movimento negro, juntamente com vestibulandos/as
de escola pública, fizeram manifestações pró-cotas. As imagens abaixo reflete um
pouco dessa tensão, a primeira90 em manifesto a favor e a segunda91 em manifesto
contra a implementação de cotas na UFES:
89 Helena, 19 anos, branca, classe D, estudante do pré-vestibular público, que fora entrevistada em 2009, passou no vestibular para medicina e, num encontro casual, quando eu seguia com minhas investigações, me procurou para dar a notícia de que havia passado e trouxe esse relato.
90 Imagem disponível em http://universoufes.files.wordpress.com/2007/10/foto_vestibulandos/as_escola_particular_protesto_ufes.jpg
119
Figura 2. Movimentos contra e pró-cotas sociais
Esses grupos defendem diferentes posturas. Em um deles, as ações
afirmativas seriam uma forma de preferência por um determinado grupo seja de
negros, de mulheres, de gays, etc., o que também gera discriminações com a
exposição da diferença. Lê-se na primeira figura: “cota é preconceito”, uma
percepção de que as capacidades intelectuais individuais não podem ser
subordinadas às características raciais de um grupo. O outro grupo, por outro lado,
percebe as ações afirmativas como tentativas de se restabelecer igualdade de
direitos e oportunidades aos grupos sociais excluídos, historicamente, do acesso a
esses direitos. Para eles, essas políticas são formas de garantir a justiça social,
cabendo mantê-las enquanto persistirem discriminações e preconceitos a que certos
segmentos sociais como mulheres, negros, pobres, entre outros, se vêem
submetidos.
De um lado, um grupo pautado na meritocracia pressupõe que o indivíduo
deve ser avaliado por seus atributos intelectuais, pessoais e sociais. De outro,
grupos que lutam pelas políticas afirmativas buscam promover oportunidades para
indivíduos que, de modo desigual, são impedidos de possuí-los. Essa seria uma
visão que “prefere a inclusão à discriminação, mesmo se isso significasse a perda
de privilégios tradicionais para alguns indivíduos” (SCOTT, 2005, p. 26). Num
momento da dinâmica de grupo, citada anteriormente, testemunhos começam a
mostrar que dois grupos parecem se formar com contornos bem definidos: “Eles e
Nós”, “os cotistas e os não-cotistas”. Nessa dinâmica, os vestibulandos/as do
cursinho público expressam-se:
- Eu acho certo ter cotas. Porque eles (os não cotistas) têm mais chances do que a gente de passar no vestibular. Eles sabem mais coisas.
91 Imagem disponível em http://polimidia.blog.br/ufes-ainda-estuda-programa-de-permanencia-para-cotistas
120
- Eu não acho! Então você está dizendo que eles são melhores do que nós? Eu acho que se a gente se esforçar bastante a gente consegue também, mesmo sem as cotas. - É, mas, tem aquela questão, quem estuda na escola pública até pode se esforçar, mas eles não puxam muito. O garoto lá da escola particular, mesmo que não se esforce muito, tá [sic] sempre vendo tudo o que cai no vestibular. Claro que para ele é mais fácil. - É eu também concordo. Não é que eles sejam inteligentes, mais eles têm mais chance do que nós. Tem professores, apostilas, simulados, tudo voltado para o vestibular. Então já estão acostumados.
Em sua experiência singular, Livia92, aluna de escola particular, sente a
política de cotas como algo que dificulta seu ingresso no curso de medicina: “Além
da concorrência grande para medicina, para o aluno de escola particular, o sistema
de cotas é uma coisa que está dificultando muito mais. Vai acirrar ainda mais a
disputa entre os estudantes”. Como o outro lado, a aluna da escola particular não é
favorável à política de cotas:
Eu acho o sistema de cotas errado. Eu acho que tá [sic] errado beneficiar as pessoas que não tiveram acesso à educação de qualidade... Enfim, eu acho que não é o caminho certo para consertar a problemática do Brasil. Porque eu acho que tem que começar no início da educação, não tem que começar pelo ingresso na faculdade. Vai ficar mais difícil porque tem uma porcentagem muito grande destinado aos vestibulandos/as de escola pública, por isso que eu acho que vai ficar bem mais difícil para nós [os vestibulandos/as da escola particular].
O “eles e nós” confirma-se em outro trecho do seu relato. Com referências,
inclusive, a discriminações que o grupo de cotistas pode vir a sofrer. Seu relato se
pauta naquilo que vê, sente e percebe a partir do convívio com os não cotistas:
Eu fico até pensando que esses vestibulandos/as podem até ser vitimas de algum preconceito dentro da sala de aula pelo pessoal que veio da escola particular, eu acho que vai ter alguma coisa assim. Até porque eu tenho muitos colegas que ficam meio que discriminando os cotistas e eu não vou muito por ai não, porque, sei lá, se eu tivesse no lugar deles? É claro que eu iria aproveitar essa oportunidade ia gostar muito das cotas! Agora ficar discriminando os cotistas assim... É que na cabeça dos meus amigos tem que entrar pessoas preparadas. É claro que tem que entrar pessoas preparadas, pessoas esforçadas e tal, mais daí a discriminar e até jogar um certo ódio, como se as vagas nas universidades estivessem destinadas exclusivamente aos vestibulandos/as de escola particular, acho isso errado.
A perda de privilégios de alguns gera lutas legais e ilegais. Com base na
legalidade, há vestibulandos/as de escola particular que entraram na justiça por
entender que se não fosse o sistema de cotas/UFES, teriam a aprovação no
92 Mulher branca, 15 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado.
121
vestibular. Sua nota de corte era superior ao do primeiro colocado nas vagas
reservadas para cotistas. Divulga o jornal local sobre um caso específico:
Entenda o caso Justiça. Em 2007, um grupo de 49 vestibulandos/as entrou na Justiça para questionar o sistema de cotas da UFES e para garantir a entrada na universidade, caso obtivessem pontos suficientes na seleção. Eles perderam a ação na primeira e na segunda instância. Nova ação. Em nova ação, um outro grupo, de 15 estudantes, entrou na Justiça, em 2008, tentando garantir a matrícula, alegando que estariam na universidade, se não fosse o sistema de reserva de vagas. Matrícula. Em fevereiro deste ano, a Justiça Federal concedeu liminar, garantindo a matrícula desses vestibulandos/as. Cinco deles já tinham sido aprovados no vestibular de 2009 e não precisaram se valer da decisão. Derrota. Pouco depois, a 4ª Vara Cívil de Vitória proferiu sentença favorável à UFES, e a matrícula dos vestibulandos/as foi cancelada. Nova liminar. Na última terça-feira, dia 26, o Tribunal Regional Federal, no Rio de Janeiro, restabeleceu a liminar concedida anteriormente, assegurando a matrícula dos vestibulandos/as. 93
Além dessas ações, tentativas de burlar as cotas, como pôde ser verificado
em um trecho da matéria “Mais dois vestibulandos/as afastados da UFES por burlar
as cotas”, de um jornal local, publicada em 02/09/2009, em A Gazeta:
Dois vestibulandos/as foram afastados dos cursos mais concorridos da UFES - Direito e Medicina - por fraudarem o sistema de cotas para ingressar na universidade. Esse é o terceiro caso este ano. Todas as irregularidades se tornaram alvo de investigação do Ministério Público Federal (MPF). Outras três pessoas são avaliadas pela UFES por suspeitas de fraude, todos estudantes de Direito. [...] Nos casos de fraude, os candidatos não estariam aptos a concorrer pela reserva de vagas, mas fizeram um curso na modalidade EJA - antigo supletivo- na rede pública e omitiram o diploma das escolas particulares.
A principal questão que se coloca diz respeito à busca de igualdade. Scott
contribui para se pensar as ações nesse campo ao debater “o enigma da igualdade”
e seus paradoxos. Nas ações afirmativas, as “identidades de grupo definem
indivíduos e renegam a expressão ou percepção plena de sua individualidade” (p.
15). A ação afirmativa tem sido atacada como uma forma de “preferência ao grupo”
que discrimina os indivíduos. O argumento de Scott (2005, p. 22) é de que a tensão
entre grupo e identidade individual não pode ser resolvida, “ela é uma consequência
das formas pelas quais a diferença é utilizada para organizar a vida social”. Afirma:
Se identidades de grupo são um fato da existência social e se as possibilidades de identidades individuais repousam sobre elas tanto em sentido positivo quanto negativo, então não faz sentido tentar acabar com os grupos ou propositadamente
93 A Gazeta, 30/05/2009. disponível em http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2009/05/515241-vestibulandos/as+derrubam+cotas+na+justica+e+voltam+para+a+ufes.html
122
ignorar sua existência em nome dos direitos dos indivíduos. Faz mais sentido perguntar como os processos de diferenciação social operam e desenvolver análises de igualdade e discriminação que tratem as identidades não como entidades eternas, mas como efeitos de processos políticos e sociais.
Além disso, as ações afirmativas acabam por ressaltar a diferença que se
pretende eliminar. Nesse aspecto, igualdade não se traduz em “ausência ou
eliminação da diferença” (SCOTT, 2005), mas no reconhecimento delas. Longe de
uma conclusão a esse respeito à ideia, parafraseando Scott, é fazer dos aspectos
paradoxais das ações afirmativas, uma tentativa de equilíbrio de interesses
contrários como os individuais e os de grupos, do bem individual e do bem coletivo,
de direitos e necessidades. O que é possível concluir, entretanto, é que essas
políticas compensatórias criam novos horizontes de expectativas para os grupos de
vestibulandos/as de escolas provenientes de classes populares. Se irão representar,
nessas trajetórias, novas formas de exclusão e discriminação, ou formas
democráticas de inclusão é algo ainda por acontecer. Afinal, como um processo do
tempo presente, ainda em construção, cabe mais perguntar do que responder.
Até aqui foi possível perceber como processos sociais recentes, e de longa
duração, produzem sentidos no campo de experiências dos entrevistados, que
traduzem em razões e sentimentos a orientação de suas ações. Os processos
tratados até aqui são relativos ao mundo do trabalho e atualizam, tantas vezes,
sentidos liberais e capitalistas. Exigências de qualificação, responsabilização pelo
sucesso e fracasso, busca de prestígio e ganhos materiais e a visão meritocrática
movem as trajetórias investigadas. Mas é hora de adentrar um outro fio referido na
história contada no início dessas reflexões, e que também pertence aos sentidos
que circulam na cultura sobre o mundo do trabalho. Trata-se do romantismo das
profissões, o que também faz adensar essa rede de relações múltiplas que compõe
o campo de possibilidades no qual seus projetos profissionais são construídos.
2.3 O romantismo das profissões
O uso do conceito de romantismo político, retomado por Michel Löwy (1996),
é útil para uma dada cultura94 e serve também para caracterizar representações
sociais sobre as profissões atualizadas em seus sentidos civilizadores. Esse 94 Na atualidade, uma sólida vertente sobre o tema redesenha a obra de Marx. Ela está na obra de Gramsci, Lukács, Williams, Thompson, Jameson, dentre outros – que analisa a cultura em sua vinculação com a política.
123
romantismo também move sensibilidades e preside a definição de projetos
profissionais de vestibulandos/as dos cursos preparatórios para vestibular.
De acordo com Löwy (1996), o romantismo é entendido como uma visão de
mundo que perpassa a literatura, a filosofia, a política e a religião do final do século
XVIII e XIX, mas que prossegue. Em suas formas mais reacionárias e mesmo nas
mais revolucionárias, persiste na cultura atual, como forma de protesto contra a
civilização burguesa e em nome dos valores do passado. O romantismo é “anti-
burguês”, na medida em que protesta contra a civilização industrial capitalista
moderna e todas as consequências no terreno econômico, político e intelectual.
Revela um “desencantamento do mundo”, produto de uma racionalização que
acompanha o desenvolvimento da civilização industrial e se opõe ao pensamento
mágico e religioso da época. Trata-se de “uma estrutura de sensibilidade que se
manifesta em todas as esferas da vida cultural” (RUBBO, 2008, p. 113). Essa
estrutura, conforme Elias (1990) dá sentido à experiência humana. O romantismo
atualiza-se na produção cultural em “proposições e ações voltadas às questões
sociais e às mudanças da sociedade” (CHAIA, 2001, p. 167) o que se observa em
trajetórias repletas de tensões e paradoxos.
Nas trajetórias analisadas, observa-se que o desejo de sucesso e de ganhos
materiais e financeiros coexiste com proposições românticas acerca das profissões.
Afinal, como afirma Velho (1999), a coexistência de diferentes mundos constitui a
própria dinâmica da sociedade atual. Trago, então, os sentidos impressos em
algumas trajetórias investigadas para recuperar esses movimentos. A primeira delas
está numa referência inicial, desse capítulo, à Isabela que vive um dilema entre fazer
o curso de medicina ou o de design gráfico. Movimentos românticos estão não
apenas no seu desejo por essa profissão, mas em seus hábitos e costumes. Ela
veste de maneira simples, sem a sofisticação da mãe que é considerada por ela
uma “burguesa”. Não liga para consumismos e acha tudo isso uma besteira... Mas,
em relação à profissão, ela afirma o valor da criação, do belo e de aspectos
subjetivos em detrimento àqueles quantificáveis em cifras ou prestígio. Insiste: “Para
mim, fazer design significa criação. É perfeito!”. O pensamento romântico revela que
o indivíduo experimenta relativa autonomia no campo da cultura: “o homem cria a
beleza de acordo com as leis de beleza” e o “exercício dos sentidos pode ser um fim
em si mesmo” (CHAIA, 2001, p. 167). Há um protesto contra a quantificação do
mundo: a sociedade burguesa substitui os valores do belo e feio, do justo e injusto
124
por valores quantificáveis, refletidos no espelho da lógica das mercadorias (LÖWY,
1996). Sentidos civilizadores românticos, também aparecem na fala de Lívia que
fará medicina:
Muita gente se preocupa em ganhar dinheiro, mas tem esse lado humanitário da medicina que eu acho legal, essa parte de salvar vidas, essas coisas. Até já vi que se eu entrar na UFF [Universidade Federal Fluminense] que de lá (se) pode fazer mestrado em Cuba na área da medicina social. Eles tem muitas coisas legais como cuidar de crianças carentes, pessoas com câncer, com AIDS e tudo. Isso eu acho interessante.
Esses sentidos humanitários são confirmados por Leite, Caprara e Coelho
Filho (2007) na análise dos aspectos subjetivos, envolvidos na opção por medicina;
é possível encontrar, no discurso dos próprios estudantes, razões para o ingresso
em medicina como: desejo de ajudar os outros; desejo de trabalhar com demandas
humanas; querer salvar vidas; desejo de acolher e mitigar o sofrimento das pessoas.
Além disso, se observado o juramento da profissão médica é possível ver aspectos
românticos que reforçam ideais de caridade e outros valores humanitários:
Prometo que ao exercer a arte de curar, me mostrarei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados os quais terei como preceito de honra; nunca me servirei da minha profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com Fidelidade, goze eu a minha vida e a minha arte com a boa reputação entre os homens e para sempre; se dele me afastar ou infringir suceda-me o contrário. Hipócrates – 460 A. C.
O sentido de ajuda ao próximo também aparece no relato de Liliam95.
Contribuir para minimizar as desigualdades sociais, para um país melhor, parte dos
valores postulados pelos romantismos revolucionários. Outras trajetórias, já
investidas, mostram como esses sentidos são parte das sensibilidades dos
entrevistados:
Isso também contribuiu para minha escolha. Eu sempre quis ajudar o próximo e nada melhor do que você prestar um serviço, e como eu sempre pensei: Como eu posso ajudar o meu próximo? Dando a ele uma educação, uma orientação, aquilo que eu aprendi. Se o que eu aprendi foi bom, claro que eu não quero passar nada de ruim para ninguém. Se o que aprendi foi bom, pretendo passar isso adiante. Então eu quero ser professora.
95 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
125
Também foi observado o juramento da profissão do pedagogo; nele, é
possível verificar ideais românticos, fazendo menção inclusive a Deus e à pátria
como valores supremos:
Prometo, no exercício da minha profissão de Pedagogo, enfrentar os desafios que a educação me propõe, com criatividade, perseverança e competência, buscando novos caminhos para o processo educacional e valendo-me do conhecimento que me foi dado como instrumento de mudança e construção de um mundo onde o homem possa realizar-se com liberdade.
Maria96 que fará enfermagem, também reafirma sentidos semelhantes:
“Cuidar de gente é muito bom [...] você saber que é útil para o outro é muito bom!
Você pode contribuir para salvar vidas, ajudar as pessoas”. O protesto contido no
romantismo se estende à mecanização do mundo que destrói a comunidade e
aumenta a atomização individual: “O individualismo moderno destrói a comunidade e
atomiza os indivíduos” (LÖWY, 1996). Na trajetória de Gabriele97 também é possível
verificar sentidos românticos presentes em sua primeira opção pelo curso de
magistério. Seu desejo foi forjado na esfera familiar, uma família humilde cujas
conquistas das mulheres se fizeram com base na saída para o magistério. Os
sentidos que se construíram apontavam para uma profissão com uma importante
missão: Quando vi minha prima formar no curso de magistério, teve uma parte do discurso da oradora falando de uma grande necessidade do país para acabar com as desigualdades. Nesse momento minha prima levantou uma placa com a palavra escrita e gritou bem alto: “educação”. Eu achei aquilo lindo. Me emocionei. Pensei é isso o que eu quero, ser educadora, contribuir para um país melhor!
Sara que tentará vestibular para direito afirma: “Meu sonho desde pequena foi
fazer direito. Eu sempre falava que queria colocar bandido na cadeia, fazer justiça,
contribuir para um mundo melhor”. Esses ideais também são reafirmados nos
sentidos expressos pelo juramento da própria profissão: Juro, no exercício das funções de meu grau, acreditar no Direito como a melhor forma para a convivência humana, fazendo da justiça o meio de combater a violência e de socorrer os que dela precisarem, servindo a todo ser humano, sem distinção de classe social ou poder aquisitivo, buscando a paz como resultado final. E, acima de tudo, juro defender a liberdade, pois sem ela não há Direito que sobreviva, justiça que se fortaleça e nem paz que se concretize.
96 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público. 97 Mulher branca, 15 anos, classe C, estudante do curso pré-vestibular privado.
126
Sentidos semelhantes são expressos na trajetória de Sirlei98, aluna do curso
público que deseja fazer medicina: “Eu sempre estive ligada à saúde pública, meus
pais eram auxiliares de enfermagem, então, sempre foi uma coisa que eu gostei.
Gosto de lidar com pessoas”. Afirma valores humanos sobre os valores de mercado:
Sempre sonhei com medicina. No começo eu achava uma coisa, que medicina é uma coisa bonita, nos primeiros anos. Depois, com informações que a gente vai coletando... Aí vê que não é tão bonita, mas ainda sim é o que eu quero. Mesmo que eu passe por tantas dificuldades, eu ainda quero seguir essa profissão, pela ajuda mesmo. Muitas pessoas falam assim ‘ah, é tão bonito né?! Um médico ajudando e tal’, mas eu procuro não ver a beleza eu procuro ajudar as pessoas. No nosso caso, por exemplo, a sociedade, nosso Estado... Aliás, não vamos muito longe, aqui mesmo no município, Cariacica, por exemplo, é precária a situação dos hospitais públicos... É também uma área que eu quero trabalhar... na saúde pública, quero trabalhar com pessoas carentes mesmo. Na verdade, eu acho que as pessoas pobres precisam muito mais de ajuda, então é isso...
A visão romântica se faz com base em valores éticos, sociais e também
religiosos, que procuram reencantar o mundo e resgatar valores humanos perdidos
com a modernidade capitalista. O romantismo representa, então, a restauração de
virtudes do passado. Mesmo em suas formas reacionárias, quer o retorno do
passado; em suas formas revolucionárias, toma os elementos do passado e os
projeta no futuro como utopia (LÖWY, 1996). Assume, pois, formas mais
reacionárias, mas também outras revolucionárias e utópicas ou, como podemos
perceber, impregna sentimentos da trajetória de Hanna99.
2.3.1 “Mudar a vida e transformar o mundo”: a trajetória de Hanna
Diferente da trajetória narrada no início do capítulo, que parece também servir
à atualização de um romantismo centrado em escolhas individuais e, portanto, mais
reacionário, Hanna deseja fazer história na UFES e justifica sua opção trazendo à
baila valores de um romantismo revolucionário, citado por Löwy (1990, p. 16), como
uma recusa e uma “ilusão de retorno às comunidades do passado e à reconciliação
com o presente capitalista, procurando uma saída para a esperança no futuro.
Nessa corrente, a nostalgia do passado não desaparece, mas se transmuda em
98 Mulher negra, 20 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público. 99 Mulher branca, 19 anos, classe B, estudante do curso pré-vestibular privado.
127
tensão voltada para o futuro pós-capitalista”. Afirma: “Escolhi história porque tenho
uma visão mais humanitária, essa coisa de entender e querer mudar o mundo. Eu
não ligo para dinheiro, essas coisas...”. Hanna é filha de intelectuais, o pai é doutor
em filosofia e professor da UFES e a mãe é jornalista. É filha única de pais
separados, nunca trabalhou e estudou em escola particular. Mora em Vitória com a
mãe. Grande parte de seu projeto profissional é construído a partir das
sensibilidades e habitus construídos na sua primeira socialização. Estudou numa
boa escola de Vitória, fez intercâmbio, viaja, lê livros. Diz: “Não tinha muito para
onde correr. Acabei na área de humanas”. A menina conta episódios de sua vida
que mostra o envolvimento dos pais e os estímulos à leitura. O pai fez doutorado na
Universidade de São Paulo (USP) e defendeu uma tese ligada ao pensamento de
Rubem Alves. E, como eram amigos, seguidas vezes, a menina acompanhou o pai
em saraus na casa do pensador.
Desde quando eu era muito pequena eu ia pra casa do Rubens, ele fazia “sarais”, com os pensadores da região. E eu, com dez anos de idade, sentava no colo do meu pai e ficava “viajando na maionese”. Mas ficava. E aí acho que isso me incentivou. Porque desde pequena eu escrevo muito. Gosto muito de ler. Quando eu era pequena, eu escrevia muita poesia. Com doze e treze anos, eu comecei a participar dos “sarais” na casa dele e lia e discutia com os caras... Discutia minhas poesias, meus pensamentos. Aí acho que essa coisa de estar sempre com o meu pai... E meu pai é isso: ele é um filosofo vinte e quatro horas por dia... Então, o contato com o meu pai era discutir a vida, discutir o planeta, discutir os porquês de tudo. Meu pai não tem aquela conversa trivial... Eu estava conversando com ele essa semana sobre um seminário aqui na UFES de filosofia medieval, e é a galera de filosofia que está organizando. Aí, a gente ficou duas horas no restaurante, só falando de filosofia medieval, de pensamentos medievais... Meu pai é um pós-doutor sinistro! E minha mãe é jornalista, é mestre, está fazendo doutorado agora. Então, lá em casa minha mãe me colocava pra ler cada livro... e pensar, discutir e ler... A, eu acho que me fez seguir nessa área de humanas.
A educação familiar conta muito na formação de gostos, no entendimento do
mundo e na segurança com que a menina faz seu projeto. Há, de alguma forma,
uma imitação do projeto profissional paterno. A educação escolar, por sua vez, teria
reafirmado aspectos que atualizam sentidos românticos da vida individual e social.
Seu gosto por história também se afirma com as aulas de um determinado professor
que passa a admirar. Sua paixão por história antiga foi alimentada desde pequena,
quando ouvia as histórias de Perseu, Hércules e Zeus para dormir. O avô italiano,
viveu na Itália na época da Guerra Fria, também passava noites conversando e
discutindo coisas sobre a vida com a menina. Nessas disposições, a percepção
adquirida do mundo e a ação sobre ele parecem alimentar a recuperação dos
sentidos românticos que ela afirma em seu projeto profissional:
128
Se eu fosse como a minha mãe, que gosta de dinheiro, gosta de gastar, gosta de comprar... Se eu tivesse a personalidade da minha mãe, eu nunca teria ido para área de História. Assim, tudo bem que tem pessoas que ganham dinheiro com as coisas mais estranhas do mundo, mas não é a regra. Sempre que as pessoas me perguntam o que eu vou fazer e eu falo que é História, aí eles falam: “você tem problema? Você vai ficar pobre!”.
Hanna diz que percebe que entre seus amigos e as pessoas em geral “o
dinheiro move tudo”. Apesar de não negar que precisa dele, diz que não quer luxo,
só uma vida digna. Seu pai é mais radical, afirma ela: “O sonho do meu pai, se a
FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] não fossem tão terroristas,
era ir para lá... Ele já falou isso... Se eles não raptassem, não matassem gente, ele
iria para lá. Ele gosta dessa coisa de ficar na floresta, num mundo socialista,
pensando no comunismo da vida. Eu não sou tão assim também!” Por mais que os
projetos dos pais tenham impacto na construção de seu próprio projeto, ela faz
rupturas, ajustes, negociações.
O romantismo, então, está nas estruturas dos sentimentos que se atualizam
na construção do projeto profissional de Hanna. Nesse aspecto, Rubbo (2008)
localiza a existência de um romantismo na intellingentsia brasileira anticapitalista. O
que é compreensível, conforme teses de Löwy (1996), se considerarmos que
intelectuais, escritores, teólogos e sábios, de um modo geral, baseiam-se num
universo regido por valores qualitativos. Assim, muitos se encontrariam
“naturalmente” e “organicamente” em contradição com o universo capitalista dirigido
por valores de troca, ou seja, valores quantitativos.
2.3.2 “Não quero muito sucesso”: A trajetória de Patiane
Patiane100 tentará vestibular para serviço social. Sua principal motivação se
atrela ao romantismo das profissões: “Eu vou estar, não só ajudando as crianças,
como também à população em geral. Estar ajudando o ser humano a sair dessa
miséria que o mundo vive. Contribuindo, de certa forma, para melhorar a vida”. Mas
há outros sentidos não antes observados na trajetória de Hanna. Sentidos religiosos
também surgem em sua fala: “Deus sabe o que faz. Se for de sua vontade eu passo
em serviço social e posso, então, ajudar o próximo”. A trajetória de Patiane mostra
100 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público.
129
acontecimentos muito diferentes da trajetória tratada anteriormente. Os pais não
aceitam que a jovem retorne para casa após a separação conjugal. Seus irmãos são
usuários de drogas e têm um relacionamento ruim com a irmã com quem moram
atualmente. Mas fala com orgulho: “Nem por isso eu me droguei e nem me prostituí.
Tenho Deus no meu coração. E no dia do juízo final eles [refere-se à família] é que
vão ter que temer a Deus”.
Suas narrativas me remetem a um tipo de romantismo diferente do
apresentado por Hanna. Parece aqui se atualizar um romantismo messiânico, como
indica Lowÿ (1990). O romantismo messiânico é discutido por Löwy nas ideias de
pensadores marxistas, concedendo à obra de Walter Benjamin, um especial
destaque. Retira das teses desse autor matéria para associar suas ideias sobre o
conceito de história às origens desse autor. Assim, o messianismo judaico e as
utopias revolucionárias e libertárias, dialeticamente, interseccionam e se mantêm em
tensão. Além disso, destaca Löwy (1990), seu messianismo101, marcado pela fonte
romântica alemã e judaica, carregaria traços “apocalípticos”, “catastróficos” e
“destruidores", nela recolhidos. A redenção messiânica, nesse sentido, é preparada
pela catástrofe e não por um progresso ou desenvolvimento. As ações humanas se
fazem, portanto, em virtude do medo de corromper a ordem divina. Isso pode ser
observado no diálogo em que a jovem revela não querer “muito sucesso”: Pesquisadora: O que você espera para seu futuro? Entrevistada: Espero sucesso. Quer dizer... Muito sucesso não! Pesquisadora: Como assim? Entrevistada: Deixe-me ver... Porque muito sucesso sobe a cabeça e você se esquece do grande objetivo de escolher uma profissão, que é ajudar as pessoas. Espero um pouco só de sucesso... Espero que nessa profissão eu possa ajudar as pessoas e me ajudar também... Porque de certa maneira me ajuda.
Parece estar ancorada em preceitos cristãos que associam sucesso à
ambição e, em conseqüência, ao pecado. Mecanismos que limitam suas
possibilidades de sonho e desejo, e que, portanto, se inscrevem em suas
sensibilidades. A ideia de conquista do “sucesso na esfera profissional” perpassa
suas experiências, mas está, ao mesmo tempo, em negociação com outras
tradições e valores: “não deixar o sucesso subir à cabeça”, “não esquecer de ajudar
ao próximo”, ou seja, sentidos civilizadores do romantismo que redefinem-se e
chegam, de forma rizomática aos nossos tempos.
101 Embora o viés messiânico não seja o único na obra do Benjamin ele se refere a um aspecto que se encontra em constante tensão com o materialismo marxista do autor.
130
2.4 Meios de comunicação e ideários de projetos
As trajetórias revelam o quanto razões e sentimentos diversos sobre os quais
são organizados os projetos profissionais constroem-se no campo da cultura. Atenta
a esses sentidos que se constroem na cultura em circulação, escolhi fazer a análise
de um semanário específico que trata de profissões, escolhas e mercado de
trabalho, no estado do Espírito Santo: “Oportunidades Cursos & Concursos”102.
O periódico foi escolhido, primeiramente, em função da circulação entre a
população investigada: há 34.000 leitores semanais, sendo o perfil desses de 44%
de homens e 56% de mulheres. A distribuição por classe é de: 39% da classe A,
15% da classe B, 35% da classe C e de 10% da classe D/E. Em relação à idade a
distribuição dá-se da seguinte forma: 10-19 anos (30%); 20-29 anos (57%); 30-39
anos (4%); 40-49 anos (4%); acima de 50 anos (4%); em relação à escolaridade,
temos 19% dos leitores vestibulandos/as do Ensino Fundamental, 55% do Ensino
Médio e 26% do Ensino Superior ou pós103. Além de ser representativo entre a
população investigada, o veículo trata da matéria em questão, ou seja, de projetos
profissionais. Foram analisados os 52 exemplares do ano de 2009, período em que
foram realizadas as entrevistas dos/as vestibulandos/as dos cursos preparatórios
para o vestibular.
Como o próprio nome sugere, “Oportunidades, cursos & concursos” grande
parte dele se destina à divulgação de empregos no setor público e privado. Em
entrevista com o Editor da revista, indica que, no início, essa publicação tinha o
formato de jornal, como a Folha Dirigida. Mas, “com a expansão do mercado
capixaba e o crescimento do Estado, muitas pessoas de fora vem para cá. Isso
aumenta a exigência do público leitor”. Hoje, além da divulgação de oportunidades,
traz matérias ligadas à carreiras, a opção profissional, dicas para passar no
vestibular e em concursos, informações sobre as carreiras mais promissoras, enfim,
tendências e perspectivas sobre o mundo do trabalho. A análise desse Periódico
102 O jornal “Oportunidades Cursos & Concursos”, sai, semanalmente, às terças-feiras e tem por objetivo oferecer à população do Espírito Santo informações sobre a capacitação profissional e as novidades sobre concursos e oportunidades no mercado de trabalho. Além de haver nele dicas de empregos existentes no Estado. Dados extraídos da entrevista com editor-chefe do jornal no dia 10 de agosto de 2009.
103 Fonte: Pesquisa Marplan / Nov-Dez 2004/Jan 2007. Grande Vitória.
131
revelou dois grandes temas que se ligam aos projetos profissionais: “Que profissão
escolher?” e “Como fazer a escolha profissional?”
2.4.1 O que circula sobre as profissões? O que os jovens devem escolher?
Considerando-se a mídia em sua dialeticidade com o meio social e, portanto,
como espaço de circulação de significados culturais, admite-se que a matéria em
circulação, nesse periódico, afeta e é afetada transversalmente por processos
sociais da vida social. Desse modo, é capaz de reelaborar o caráter simbólico da
vida social, porque atua na produção e intercâmbio da informação e dos conteúdos
simbólicos, transformando os meios pelos quais os indivíduos relacionam-se entre si.
Mas a comunicação da mídia é sempre contextualizada e conectada às redes
sociais. Assim, recortei parte da matéria sobre “Quais profissões escolher”, não com
o intuito de mostrar que a mídia cria ou manipula demandas, mas porque ela faz
circular e reforça representações culturais sobre as profissões.
Pude observar que, atrelados a ideia de que “faculdade virou obrigação”,
diversas matérias da revista elucidam e reforçam a necessidade de se fazer um
curso superior. Além de trazer chamadas que localizam os mais altos salários nas
oportunidades de nível superior, ou de chamadas como “Sadia abre seleção para
quem tem nível superior”104, há edições especiais que tratam do assunto. Trago uma
edição cuja capa anuncia: “Técnico ou superior: qual a melhor carreira? Veja
vantagens e desvantagens e escolha!”105 A matéria inicia afirmando que “Entre
técnico e superior, o melhor é aquele que te faz bem”. O que parece reafirmar ideias
correntes, nesse nosso tempo, sobre ‘fazer o que se gosta’ e também sobre a
‘responsabilidade individual’ em relação de uma dada escolha. Entretanto,
acrescenta experiências de pessoas e informações que levam a distinguir vantagens
e desvantagens de cada uma. Como desvantagens da formação técnica, pontua os
salários mais baixos e a limitação para assumir vagas que exigem curso superior,
mas afirma: “Quem tem pressa de ingressar no mercado de trabalho, por exemplo, o
mais indicado é fazer o curso técnico”. As profissões que requerem cursos
104 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 332,Vitória, 18-24 ago, 2009 105 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 331,Vitória, 11-17 ago, 2009.
132
superiores apresentam como desvantagem o tempo de investimento, o custo e a
grande concorrência. O texto apresenta uma solução: “Que tal escolher as duas
opções?” Com isso, reforça a ideia de que é necessário fazer um curso superior
para conquistar melhores chances no mercado, matéria das sub chamadas: “Altos
salários em cursos superiores” e “Chance maior para quem continua os estudos”. A
matéria em circulação reforça práticas do mundo social, ou seja, como afirma
Barbosa (1998), os concursos mais disputados do país trazem sempre a exigência
de curso superior.
A revista também chama bastante a atenção para as oportunidades na
carreira pública. Em todas as edições, a capa apresenta uma coluna à direita com
chamadas para concursos públicos e seus respectivos salários. Na edição de nº
336106 a reportagem “Muitas novidades na carreira pública” mostra algumas
vantagens dessa área como: “A carreira profissional na iniciativa privada tem seus
riscos. Já no meio público há uma tendência para a estabilidade, além de bons
salários” (p.3). Mas mostra como a concorrência é grande e as dificuldades de se
conseguir salários que chegam a 18 mil reais. Numa outra edição107, lê-se o título
“Comece já a preparação para o teste físico dos concursos” e oferece três páginas
(p. 6,7 e 8) em dicas e informações sobre testes físicos para se ser aprovado em
concursos públicos, demonstrando ser um requisito que reprova muito em
determinados concursos. Várias outras matérias tratam de concursos públicos, o
que reforça a existência de um movimento da sociedade em direção à busca de
estabilidade e segurança, oferecida pelos concursos públicos. Isso, que também é
sentido nas trajetórias pessoais examinadas, reflete sobre a construção dos projetos
profissionais. Há indicações, inclusive, de quais são os cursos exigidos para quem
quer seguir carreira pública:
Para quem ainda não entrou na faculdade, mas já quer ingressar na carreira pública, é mais indicado fazer cursos como Direito e Administração, pois são nessas áreas que são lançadas as melhores oportunidades de cargos e salários. [...] o jovem que ainda não escolheu sua profissão, mas deseja prestar concurso, deve optar de preferência, pelos cursos citados, dedicando-se, desde cedo, aos estudos e não deixando de se qualificar (Especial Concursos Públicos108).
106 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 336,Vitória, 15-21 set, 2009. 107 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 334,Vitória, 01-07 set, 2009. 108 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 330,Vitória, 28 jul – 03 ago, 2009.
133
A parte final da citação faz referência ao discurso da qualificação, como parte
do que circula sobre o mundo do trabalho e o que tem impacto na construção dos
projetos profissionais. Barbosa (1998) também indica que inúmeras publicações
dirigidas a empresários e executivos, trazem quantidade expressiva de informações
sobre as necessidades de se investir em cursos de formação para obter uma boa
qualificação no mercado. A referência aos cursos de direito e de administração já é
parte da realidade dos cursinhos. Em geral, as salas se dividem em áreas humanas,
exatas e biomédicas, cujo critério de divisão reside na especificidade das provas
discursivas de vestibular. Como afirma Hanna: “Tem uma pessoa ou outra que vai
fazer alguma coisa assim considerada mais excêntrica. O que é diferente é
considerado excêntrico, mas a maioria vai fazer direito, medicina e engenharia”. Mas
apenas os tradicionais nichos de mercado das classes médias apesar de se
manterem, agregam outros, algo que percebi na análise quantitativa: “Tem agora
administração, muita gente fará esse curso. Até criaram a turma de “humanatas”
(humanas com exatas) para o pessoal que vai tentar administração. O ano passado
não tinha, eles criaram esse ano. A prova discursiva deles é de História e
Matemática”109. Numa das edições de setembro de 2009110, na reportagem “Saiba
escolher a profissão certa”, o curso de administração aparece como o mais
procurado:
Entre as ofertas, o curso de administração continua sendo o preferido dos brasileiros, pois costuma, ano a ano, ser a formação mais almejada por estudantes. Segundo dados do Censo da Educação Superior, divulgados pelo MEC, a carreira registrou em 2007, cerca de 17% do total das matrículas nas instituições de ensino no país.
Isso tudo indica uma interação entre mídia e práticas sociais. Além de o curso
de administração, outros cinco são apontados na revista como os mais procurados:
direito, engenharia, pedagogia, comunicação social e enfermagem. Os dados
quantitativos permitiram-me observar essa procura, exceto a de comunicação social.
Questões ligadas ao mercado de comunicações, no Estado, interferem nos
números: “O mercado do Espírito Santo é ruim para a área de comunicações. Se um
aluno quiser tem que ir para o Rio de Janeiro ou São Paulo”111. Pedagogia e
109 Fala da coordenadora do curso pré-vestibular privado. 110 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 336,Vitória, 15-21 set, 2009.
134
enfermagem estão, de fato, entre os cursos mais procurados por estudantes no
curso pré-vestibular público, o que é indicativo de como se estabelecem certos
nichos profissionais. Na reportagem “Profissões Promissoras”112, há indicação de
algumas profissões nas quais se poderá construir uma carreira de sucesso, com
indicação dos respectivos cursos a serem feitos: administrador de correntes virtuais
(administração, comunicação social e tecnologia da informação), gestor de
segurança na internet (engenharia da computação, sistema de informação e ciência
da computação), engenheiro de rede (diversas engenharias, sistema de informação
e ciência da computação), consultor de carreiras (administração, psicologia e
recursos humanos), gestor de relações com o cliente (administração, marketing e
psicologia), gestor de grandes cidades (engenharias, administração, sociologia e
geografia), coordenador de atividades de lazer e entretenimento (pedagogia,
educação física e psicologia), especialista em ensino à distância (psicologia e
pedagogia), gestor de empresas do terceiro setor (serviço social, sociologia e
administração) e especialista na preservação do meio ambiente (engenharia
ambiental e biologia). Destaco que essa última reportagem não menciona o curso de
medicina e, na anterior: “o tão disputado curso de medicina, por exemplo, aparece
apenas na 16ª colocação entre as áreas com mais matrículas”.
Apesar dessas tendências e toda a diversidade de cursos superiores listados,
a busca ainda está muito centrada nos cursos tradicionais de direito, medicina e
engenharias (procuras mais recentes também crescem no curso de administração).
O curso de engenharia é, em parte, procurado devido a uma demanda histórica, o
de direito em função dos concursos, como já citados, mas, e o de medicina? Isso
revela que não apenas o mercado, ou as informações sobre ele, tem impacto sobre
os projetos profissionais. Sentidos culturais outros, transmitidos em família, parecem
ter um grande peso na busca de prestígio de profissões tradicionais. É claro que as
pessoas circulam por espaços múltiplos cujos sentidos se constroem de maneiras
diversas.
111 Fala da coordenadora do curso pré-vestibular privado. 112 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 330,Vitória, 04-10 ago, 2009.
135
2.4.2 O que circula sobre os projetos profissionais?
A análise de como essa produção midiática funciona como elemento
mediador das relações sociais, faz parte do tema: “Como escolher?”. Em geral, a
revista lança mão do artifício da cientificidade do campo profissional e da
credibilidade da opinião de um especialista sobre a questão. A revista, então, fala
por meio da voz desses profissionais investidos de poder ao dizer, com autoridade,
algo sobre a questão. Trago a fala de uma psicóloga que dá dicas de como escolher
uma profissão:
Não escolha a carreira em função dos seus pais, não deixe questões como o salário e status decidirem por você. Lembre-se que quando fazemos algo que gostamos temos mais chances de ser bem-sucedidos. Deixe-se guiar pela sua vocação. Ensina a especialista [...] (p.12)113
É possível sinalizar uma expressão romântica que se mistura aos sentidos
ligados ao sucesso. No caso, a indicação é de ‘fazer o que se gosta’ sem se
preocupar com salário e status. A menção à vocação também remete a sentidos
românticos. Ou seja, cada um tem um “dom divino”, uma vocação que já nasce com
as pessoas. Na outra matéria, “Saiba escolher a profissão certa para você”114, a
recorrência ao saber do especialista também se faz; “os especialistas em orientação
profissional dizem que é preciso estar atento ao que gosta de fazer, quais suas
habilidades e o que mais o motiva” (p. 2), uma visão pautada nos individualismos
modernos, e continuam: “Os especialistas aconselham o estudante a consultar os
pais e amigos sobre a escolha de carreira. Desde que tenha em mente que a
decisão é dele. Assim, não se sinta tentado a fazer medicina só porque há uma
geração de médicos na família” (p. 2). O reforço do ideal liberal é parte do que
circula nessa mídia impressa. A edição 333115 traz como chamada a indicação de
Silvio Bock, um importante especialista sobre “vocação”: “Vocação, Silvio Bock tira
as dúvidas na hora de escolher a profissão”. Cabe destacar que esse autor é
contrário ao conceito de vocação e, provavelmente, a chamada da capa assim foi
feita para “atrair o público leitor” como revela o editor da revista, numa entrevista
113 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 330,Vitória, 04-10 ago, 2009. 114 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 336,Vitória, 15-21 set, 2009. 115 Oportunidades Cursos & Concursos, ano 6, edição 333,Vitória, 25-31 ago, 2009.
136
concedida em agosto de 2009. Isso, em parte, contribui para a construção de
equívocos. Tenta-se chegar ao leitor a partir de um sentido comum do conceito,
mas, ao mesmo tempo, reforça-se a ideia de vocação que muitos psicólogos, entre
os quais me incluo, desejam superar. Como os sentidos são sempre múltiplos na
reportagem em questão a revista pergunta a Bock, o que deve ser levado em
consideração na hora de definir uma escolha? Ele responde:
Interesse, desempenho pelas disciplinas escolares; realização pessoal; mercado de trabalho; conhecimento mais profundo possível à respeito das profissões; expectativas familiares; sonhos e desejos pessoais; vestibular; autoconhecimento; conhecimento da realidade econômica, social e política da região, do Brasil e do Mundo; condições financeiras da família; formação educacional; conhecimento das Instituições de Ensino Superior que oferecem os cursos desejados; e Habilidades já desenvolvidas (p. 03).
É uma perspectiva diferente das duas anteriores que centram as análises no
indivíduo. Bock atenta para questões mais amplas e específicas do campo de
experiência do sujeito, visão também sustentada nessa pesquisa. O exame da mídia
é percebido como espaço de produção e reprodução de significados, no qual se
representa e se propaga códigos culturais diversos que também estão no meio
social. Segundo Fausto Neto (2006), a mídia constitui-se numa nova ordem tecno-
simbólica, num dispositivo de organização social: “A nova vida tecno-social é origem
e meio de um novo ambiente, no qual institui-se um novo tipo de real, que está
diretamente associado a novos mecanismos de produção de sentido, nos quais
nada escaparia das suas noções de inteligibilidade” (p. 3). Prefiro concluir que os
meios de comunicação são sim, capazes de reelaborar o caráter simbólico da vida
social, porque tanto interferem na produção e no intercâmbio da informação e dos
conteúdos simbólicos em circulação no meio social quando sofrem a interferência
desse meio. Assim, transformam e são transformados, considerando-se que são
partes dos espaços nos quais os indivíduos também se relacionam entre si, movidos
por referências que estão dentro e fora deles.
Além disso, a comunicação da mídia é sempre contextualizada, ou seja, vive
contextos sociais que se estruturam de diversas maneiras; por sua vez, os meios de
comunicação conhecem impactos daquilo que está sendo produzido no meio social.
A dialeticidade dos meios de comunicação, afirma Thompson (2008), mesmo em
situações estruturadas da comunicação midiática vê-se diante de receptores; mas
“[...] os receptores têm alguma capacidade de intervir e contribuir com eventos e
137
conteúdos durante o processo comunicativo”. É o que o editor da revista revela: “a
revista tem que acompanhar as tendências, nós precisamos do público. Se você
observar a capa hoje é com uma página da internet, textos curtos, um principal e
outros ao lado como se fossem hiperlinks, isso para quê Para atrair o leitor”. Além
disso, sobre o próprio conteúdo das matérias afirma que as pessoas ligam ou
mandam e-mail comentando e, por isso, a mídia não pode ser impositiva. A mídia,
portanto, não cria sentidos com finalidades manipulatórias. Como dispositivo social
ela interage com os atores sociais, produzindo e reproduzindo sentidos, que
circulam no campo da cultura.
2.5 Sentidos civilizadores e projetos profissionais
Os sentidos civilizadores de uma experiência humana, como destaca Elias
(1990), podem ser configurados num dado rumo dos acontecimentos; trata-se de um
sentido que move as histórias particulares, mas, também, a própria história humana
coletiva. Os indivíduos deslocam-se entre contextos hierarquizantes,
individualizantes e igualitários ou não, e, por isso, partilham diferentes códigos em
função de situações e planos diferenciados que estão em suas trajetórias de vida. O
processo civilizador pode ser entendido como uma concepção social e política do
“humano” e, como tal, faz parte da cultura. Isso significa que os sentidos são sempre
múltiplos como já indicado. Esses sentidos são inventados e reinventados no campo
das experiências humanas. Passam, portanto, pelas sensibilidades. Assim, o desejo
de sucesso, o medo do fracasso, fazer o que se gosta, querer um curso superior, o
desejo de ser mais especializado, entre outros são razões e sentimentos que
encontrei no campo de experiência investigado.
É claro que as razões e sentimentos dos indivíduos, além de serem múltiplos,
também se modificam, como no caso de Gabriele116 que acaba descobrindo os
dissabores da profissão, ligada ao magistério e parte para outros caminhos: “É uma
pena que a educação seja tão desvalorizada no país. Sempre quis lutar por um
mundo melhor, mais justo, mas cansei. Acho que isso não vai acontecer, não é
interesse do governo. Então vou tentar de outras formas.” Em outros casos, 116 Mulher branca, 16 anos, classe C, estudante do curso pré-vestibular privado.
138
conciliam-se outras razões e sentimentos. Lívia117 não escolhe medicina apenas em
função de sentidos românticos, mas, também porque faz parte de um projeto de
família e é uma “profissão boa, o retorno financeiro que dá é bom”. Na trajetória de
Isabela o desejo de dedicar-se à arte é conciliado com uma profissão apontada
como “do futuro”. Processos sociais tão abrangentes assumem, então, diferentes
sentidos em função da interação de indivíduos e suas redes de relações. Nesse
sentido, destaca-se o fenômeno da negociação com a realidade, visto em seus
múltiplos planos. Nele inclui-se o problema das diferenças como elemento
constitutivo da sociedade. Não só conflitos, mas trocas, alianças e outras formas de
interação efetivam-se nas trajetórias: “O fenômeno da negociação com a realidade,
que nem sempre se dá como um processo consciente, viabiliza-se por meio da
linguagem no seu sentido mais amplo, solidária, produzida e produtora da rede de
significados, de que fala Geertz.” (VELHO, 1999, p. 22). O campo de possibilidades
refere-se a “alternativas construídas do processo sócio-histórico e com o potencial
interpretativo do mundo simbólico da cultura.
117 Mulher branca, 15 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado.
139
3 RAZÕES, SENTIMENTOS E FEMINIZAÇÃO DE PROFISSÕES
Os lugares assumidos por vestibulandos/as de Vitória, ES, expressam
algumas de suas formas de percepção e de atuação na vida social. No interior de
seu campo e nesses lugares de experiências, sensibilidades se constroem118. Com
isso, não estou pressupondo nenhum tipo de determinismo tributado às relações
sociais, sejam de gênero, de classe, de raça ou cor de pele e de idade no processo
de construção de projetos profissionais que esses sujeitos enunciam. Mas, como já
afirmei, anteriormente, não observar lugares sociais e outras especificidades do
campo social desses sujeitos, seria tratá-los de modo essencialista e universal,
numa abordagem genérica e a-histórica, independente das condições pessoais e do
meio em que vivem119. Os/as entrevistados/as, portanto, têm classe, cor ou raça,
gênero, idade; vivem, sentem, pensam e constroem suas percepções sobre o
mundo a sua volta a partir de contextos específicos, sempre múltiplos. Trata-se,
então, de examinar suas experiências de vida admitidas como um “campo de
possibilidades” (VELHO, 1999), nos quais se entrecruzam processos sociais
múltiplos, conectados de forma rizomática (GUATTARI; DELEUZE; 1997), para
compreender os sentidos de seus projetos profissionais, aí criados e recriados.
Pode-se admitir nesse campo certos sentidos civilizadores (ELIAS, 1990), de
histórias por se fazer e conhecer. Nessa medida, ao tentar compreender razões e
sentimentos que emergem das experiências dos jovens de Vitória, ES, e que movem
seus projetos em relação a uma futura profissão, deparei-me, dentre tantos, com
sentidos produzidos no campo do gênero. Esse é um tema ainda pouco considerado
nos estudos sobre “orientação profissional” e “escolhas profissionais”120.
Ao assumir que a constituição do feminino e do masculino não são dadas pela
natureza, as considerações desse capítulo recorrem à reflexões sobre Joan Scott,
118 A noção de campo é usada por Bourdieu (2004), para se referir a um “microcosmo dotado de leis próprias”. Os campos constituem-se em lugares de relações de força “que implicam tendências imanentes e probabilidades objetivas. Um campo não se orienta totalmente ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível em cada momento” (p. 27). O campo é um tipo de jogo social no qual as próprias regras sociais são postas em jogo. 119 Sobre o assunto, ver: MARTINS, Ana Paula Vosne. Possibilidade de diálogo: classe e gênero. Campinas, SP, História Social, n. 45, p. 135-156, 1997/1998. 120 Embora o tema relações entre orientações de gênero e escolhas profissionais, seja pouco explorado na área da Psicologia, há importantes trabalhos que articulam gênero à história de algumas profissões. Em contribuições mais recentes sobre gênero e Serviço Social temos trabalhos desenvolvidos por Silva (1998, 2005 e 2009), e Simões (2005, 2007).
140
segundo a qual gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas
sobre as diferenças percebidas entre os sexos” (1990, p. 14), e expresso
culturalmente. Por legitimar e construir relações sociais, o campo do gênero
engendra relações de poder e sistemas de dominação nas interseções com outras
relações sociais.121 Numa aproximação com os estudos de Michel Foucault (1997,
2004), o poder não é compreendido como uma polaridade fixa, ou como uma
propriedade que os homens possuem e que, por isso, exercem dominação sobre as
mulheres, mas como um feixe de relações sociais, construído socialmente. Isso
confere ao conceito de gênero um caráter relacional. Os papéis femininos e
masculinos são, portanto, construídos social e historicamente, forjando-se nessas
interseções; nelas, relações de poder, com seus muitos significados e usos, estão
na vida pessoal e social de cada dia.
No mundo do trabalho, sobretudo, lugares femininos e masculinos são
reafirmados individualmente, quase de maneira inconsciente, e informam decisões e
direções dos projetos profissionais. Os projetos de alguns entrevistados parecem
carregar a marca constitutiva desse campo de relações sociais, e revelam-nos certas
trajetórias de vestibulandos/as que se preparam para o ingresso em cursos
superiores da Universidade Federal do Espírito Santo. Algumas questões presidiram
a orientação desta análise: Que lugares sociais homens e mulheres têm ocupado no
mercado de trabalho? De que modo as relações de gênero impactam a construção
de projetos profissionais? Esses projetos profissionais reafirmam/ negam a equidade
de gênero? Para tratar dessas questões, dois movimentos de pesquisa revelaram-se
procedentes: um, no sentido de desvendar, na atualidade, se a perspectiva da
equidade de gênero se enuncia na formação educacional e na inserção no mercado
de trabalho; outro, no sentido de verificar, posteriormente, com base nas trajetórias
de entrevistados/as, em que medida os projetos de carreiras reafirmam/negam
lugares e mecanismos de exclusão/inserção do feminino e do masculino. E em que
medida, traduzem também continuidades/rupturas de tendências.
121 Segundo Costa e Suíte (2008, p. 30), as noções que presentes nos movimentos feministas por direitos e cidadania expressa “a complexidade das relações entre de sexos, vistas nas interseções de outras relações sociais: não mais restrito à oposição homem versus mulher, nem tampouco às oposições de sexos e classes, como nas abordagens feministas de corte marxista, os estudos de gênero inauguram a chamada para as revisões desse campo”. Para uma discussão da matéria no campo marxista, ver: MARTINS (1997/1998).
141
3.1 Gênero e profissão: equidade na formação e no mercado de trabalho?
No sentido corrente na língua portuguesa, o termo “equidade” indica formas
de pensamento e ação que obedecem a critérios de justiça e igualdade. As
condições de existência de homens e mulheres, nos mais variados campos como
política, economia, religião, trabalho, vida privada, pouco tem revelado desse
sentido. Temas como ‘igualdade entre os gêneros’ e ‘empoderamento das mulheres’
(vinculado a maior participação da vida pública e acesso aos níveis mais elevados
de escolaridade)122 estão, inclusive, entre as metas de desenvolvimento do milênio,
em compromissos firmados por líderes do mundo inteiro, em 2000, o que mostra
que a equidade de gênero ainda se desenha num horizonte de futuras conquistas.
Diversas lutas são e foram travadas no mundo inteiro, sobretudo pelos
movimentos feministas, Conquistas foram efetivadas garantindo direitos, antes
negados às mulheres: direito ao voto, direito à escolarização, à participação na vida
pública, a acesso a postos de trabalho, entre outros. Atualmente, as mulheres são
maioria nas escolas e possuem, em média, mais tempo de estudo do que os
homens. O gráfico do IBGE (anexo 1) mostra que nos anos de 2006, 2007 e 2008 o
número de mulheres com mais de 11 anos de escolaridade foi superior ao dos
homens. Mas, as conquistas educacionais das mulheres ainda não são
acompanhadas de grandes mudanças no mundo do trabalho, como se observa no
relatório global de 2002, da Organização Internacional para o Trabalho:
As oportunidades de emprego para as mulheres aumentaram, e estas assumiram carreiras anteriormente consideradas exclusivas dos homens. Apesar disso, e das conquistas educacionais das mulheres, a remuneração que recebem é, em média, inferior a dos homens. É também difícil para as mulheres conciliar as obrigações familiares com o trabalho remunerado, sem prejudicar as suas oportunidades de promoção ou de aprimoramento de suas competências. No entanto, mesmo quando conseguem ultrapassar estes obstáculos, ganham menos que os homens 123.
Diversos autores, entre eles Bruschini (2007), Dedecca (2008), Hirata e
Kergoat (2008), Schweitzer (2008), e Salas e Leite (2008), tem constatado 122 Níveis de escolaridade mais elevados articulam-se com o empoderamento das mulheres na medida em que isso significa maiores acessos à oportunidades de trabalho e, com isso, o aumento da qualidade de vida delas e de suas famílias. O empoderamento reflete-se não apenas no aumento do potencial de geração de renda, mas significa mais autonomia nas decisões, controle sobre a vida pessoal e maior participação na vida pública. 123 Relatório Global 2007 da Organização Internacional do Trabalho, disponível em http://www.oitbrasil.org.br/ . Acessado em 23/06/2010.
142
exatamente isso: um crescimento da atividade feminina124 nos últimos anos no
Brasil, sobretudo, a partir da década de 1970. E, em contrapartida, mesmo com o
aumento da escolaridade e o ingresso nas universidades – o que representa
condição de acesso a novas oportunidades de trabalho – não houve igualdade nos
ganhos, acessos e oportunidades entre homens e mulheres no mercado de trabalho.
Há números nacionais que também dão respaldo às afirmações. Segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a participação da mulher na População
Economicamente Ativa (PEA) aumentou 2,5%, em 2003 – entre os homens esse
número cresceu 1,6% – a taxa de atividade feminina no mercado de trabalho
permaneceu inferior a masculina, 50,7% da população feminina contra 72,9% da
população masculina125.
De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudo
(DIEESE) o desemprego, no Brasil, atinge mais a população feminina126. Além do
desemprego, a distribuição dos empregos nos setores de atividade econômica, o
tipo de vínculo e os ganhos não favorecem as mulheres127. Além disso,
independentemente da jornada de trabalho, os rendimentos das mulheres são
inferiores ao dos homens: em 2002, entre aqueles que trabalhavam em período
integral, 57% das ocupadas e 51% dos ocupados ganhavam até 02 salários
mínimos, por outro lado, os ganhos acima de 5 SM, estavam entre 16% dos homens
e 13% das mulheres.
A segregação da mulher no trabalho não se faz de forma única. Dois tipos de
segregação podem ser apontadas: a segregação salarial e a segregação
ocupacional, também chamada de segregação setorial por gênero, caracterizada
124 A População Economicamente Ativa feminina passou, do início dos anos 1970 até 2005, de 28 milhões para 41,7 milhões, a taxa de atividade aumentou de 47% para 53% e a porcentagem de mulheres no conjunto de trabalhadores cresceu de 39,6% para 43,5%. Estimou-se que 40% do total trabalhadores eram, em 2005, do sexo feminino e mais da metade das mulheres em idade ativa estavam trabalhando. 125 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Informações disponíveis on-line: www.ibge.gov.br. Acessado em 23/06/2010. 126 Mais informações consultar: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e convênios regionais. PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego. Elaboração: DIEESE. Informações disponíveis em: http://www.dieese.org.br/ped/bd/mercadotrab.xml. Acessado em 10 de março de 2009. 127 Na Grande São Paulo, pelo menos nos últimos dezoito anos, a taxa de desemprego feminina sempre foi maior que a masculina. Além disso, é tênue a linha que demarca o desemprego e a inatividade feminina: as mulheres que não trabalham podem ser facilmente deslocadas do desemprego para a inatividade em função das representações sociais que permitem colocá-la como “dona de casa”, o que não ocorre com um homem desempregado (AQUILINI; COSTA, 2003). Isso pode revelar que o número de mulheres que estão excluídas do mercado de trabalho em função pode ser ainda maior do que revelam as estatísticas.
143
pelas chances diferenciadas de homens e mulheres ocuparem ofícios de maior
prestígio. Estudos sobre a discriminação salarial estão em diversos trabalhos128. Em
2005, no Brasil, 64% das mulheres ocupadas que trabalham uma jornada em
período integral, recebem até dois salários mínimos, enquanto que os homens
representam 58% dos ocupados, segundo Bruschini, Ricoldi e Mercado (2008).
Entre as mais escolarizadas a discriminação é maior a dos trabalhadores com nível
superior, e que recebem mais de cinco salários mínimos, pois destes 62% são
homens e apenas 35% mulheres.
É de fato possível que se pague menos à mulher que desempenha a mesma
função masculina, no mesmo ambiente de trabalho. Mas, essa prática vem
diminuindo em função da convenção 100 da Organização Internacional para o
Trabalho (OIT), que estabelece “salário igual para trabalho igual”. Ao que tudo
indica, então, o maior fator que explica as desigualdades de gênero no trabalho é,
portanto, a segregação setorial e ocupacional por gênero. Ou seja, os menores
salários femininos podem ser explicados, pelo fato de as mulheres concentrarem
suas atividades profissionais em áreas de menor prestígio econômico e social.
Isso significa que há uma concentração das mulheres em trabalhos
considerados precários do ponto de vista da proteção social, do tipo de vínculo e das
condições de trabalho. Há nichos de empregos, tipicamente femininos, como o
emprego doméstico no Brasil, em que predominam situações precárias com baixos
salários, baixo índice de registro da carteira de trabalho e longas jornadas de
trabalho (BRUSCHINI; RICOLDI; MERCADO, 2008). É possível observar a
persistência das mulheres em algumas profissões como enfermagem (89% de
participação das mulheres), nutrição (93%), assistência social (91%), psicologia
(89%) e magistério pré-escolar (95%), fundamental (88%) e médio (74%)129,
profissões menos valorizadas socialmente cujos salários são mais baixos. Profissões
de nível técnico também são, predominantemente, femininas como secretárias,
128 Cambota e Pontes (2007), investigam a “desigualdade de rendimentos por gênero para indivíduos alocados em grupos ocupacionais idênticos”, cuja base de dados foi a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicilio (PNDA) de 2004. Apesar de verificar que os anos de experiência das mulheres eram superiores ao dos homens e que o nível educacional também, os dados mostraram que a média salarial feminina é menor nas mesmas ocupações. O rendimento-hora médio encontrado para mulheres e homens, respectivamente, foi para funções como “dirigentes em geral” de: 11,36 e 15,16, o que representa menos 25,09 % para as mulheres. Essa diferença percentual negativa para as mulheres também se observa nas demais ocupações: profissionais das ciências e das artes (-45,97%), técnico de nível médio (-28,53%), trabalhadores administrativos (-24,32), trabalhadores dos serviços (-28,53%), trabalhadores do comércio (-23,73%), trabalhadores agrícolas (-18,36%), trabalhadores da produção de bens e serviços (-30,83%). 129 Dados trazidos a partir das pesquisas de Bruschini e Lombardi (2000) e Bruschini, Ricoldi e Mercado (2008).
144
auxiliar de contabilidade e caixas. Em contrapartida, os homens ocupam posições de
maior prestígio social, nas quais se concentram os maiores rendimentos. Mas, como
explicar toda essa falta de equidade entre homens e mulheres no trabalho?
A fisiologia e anatomia, diferente, de homens e mulheres deu margem a uma
série de práticas discriminatórias ao longo dos tempos. “A crença na inferioridade
intelectual e em suscetibilidades emocionais, ambiguamente, compõe o pensamento
igualitário do século XVIII; contra ela lutam as mulheres.” (COSTA; SOIHET, 2008, p.
32). A busca por igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres
constitui-se, então, um sentido civilizador dentre outros das práticas humanas, nos
três últimos séculos. Esse sentido traduz bem a perspectiva da história vista como
um horizonte de expectativas, como percebe Koselleck (2006); ele situa uma certa
direção dos movimentos expressos em diferentes experiências humanas. Daí, a
compreensão do sentido dos movimentos feministas: pois são emblemáticos de
lutas por igualdade. Para compreender suas diferentes configurações, afinal, apesar
de um movimento universal, não é único, nem a-histórico. Por sua vez, ele tem
diferentes periodicidades no tempo e espaço.
Nesse sentido, Costa (2009b), associa-se as críticas feitas pela historiadora
Joana Maria Pedro quanto à noção de onda, como um marcador universal de
intervalos de tempo para as mais diversas experiências feministas. Em geral, nesse
modelo, aplicado à história do Ocidente, a primeira onda feminista diria respeito
àquela na qual se expressa manifestações feministas do século XVIII pelo “
igualitarismo de direitos entre homens e mulheres” (p. 5), em função de uma
racionalidade moderna. Os ideais igualitários revolucionários, de então, não
eliminaram, entretanto, a exclusão das mulheres. Ao contrário, como afirma Scott
(2002), as mulheres nesse tempo e nos seguintes, têm afirmado o paradoxo da
diferença, afirmando a condição feminina - que se pretende eliminar – como modo
de afirmação de direitos. A segunda onda é localizada após o ano de 1968 que
conduz à proposição radical da diferença entre identidade feminina e masculina,
indica Costa (2009b, p. 5). Constitui-se, principalmente, como prática feminista,
sexista e separatista. A terceira onda, mais recente, busca “reconciliar o tempo
maternal (cíclico e monumental) com o linear (político e histórico)” 130. Conclui o
mesmo texto:
130 KRISTEVA apud COSTA, 2009b, p. 5.
145
De fato, embora esse seja um dilema feminino de longa duração histórica, essa geração, mais do que as anteriores, vai-se empenhar, em grande medida, em soluções destinadas a vencer ou atenuar tensões decorrentes do crescente trânsito das mulheres entre as esferas pública e privada, ampliadas na formidável presença feminina na vida social do século XX.
Mais do que apontar tendências conceituais sobre as relações de gênero,
essas ondas restringem-se à práticas de homens e mulheres de uma dada
conjuntura, embora expressem ações de tempos múltiplos. A critica à noção de
onda, então, desvenda que certas tendências que marcam o comportamento
feminino e masculino, numa dada conjuntura, sinalizam rupturas, mas também
continuidade de processos históricos, nem sempre percebidos. Apesar de uma
tendência mais geral afirmar, elementos anteriores como os que irrompem do
subterrâneo e apontam tendências, por vezes, entrelaçam-se. Para perceber isso,
reafirma Costa (2009 b), a utilidade da metáfora do rizoma, indicada por Guattari, em
que “raízes, submersas e aéreas, trançadas e espalhadas de muitas formas e em
muitos terrenos de nutrientes vários, recuam e avançam, morrem e renascem, mas,
aqui e ali, dão noticias e deixam indícios de que, mais cedo ou mais tarde,
irromperão da terra ou não e terão sentidos a serem desvendados”( p.13).
Os processos sociais de um tempo, assim, apontam sentidos diversos. Ao
mesmo tempo em que tendem a perpetuar as desigualdades entre homens e
mulheres, expõem outros movimentos que marcam rupturas e promovem ganhos e
conquistas na afirmação da igualdade de direitos. Se por um lado, há um grande
número de mulheres que atuam em atividades precárias, ou menos favoráveis,
quanto ao vínculo, à proteção social ou às próprias condições de trabalho, como no
caso do trabalho doméstico, em atividades de produção para consumo próprio e
familiar e nas atividades sem remuneração, por outro, verificam-se mudanças de
direção oposta, como no caso da expansão da presença feminina em profissões de
nível superior de prestígio como arquitetura, direito, medicina e até as engenharias,
áreas consideradas masculinas (BARBOSA, 2003; BONELLI; 2005).
Essa tendência de crescimento dos projetos profissionais femininos, em áreas
nunca antes imaginadas, vêm acompanhada de uma “masculinização” de cursos,
tradicionalmente só habitados por mulheres, como serviço social, enfermagem,
arquivologia e pedagogia, entre outros. Um número expressivo de homens,
principalmente negros e pobres, tem procurado ingressar em cursos universitários
cuja exigência acadêmica é menor e que, por isso, permite a conciliação de trabalho
146
e curso. As pesquisas desenvolvidas, pela Fundação Carlos Chagas, mostram que
nos espaços tradicionalmente feminizados, como educação, saúde e serviços
pessoais, há uma maior proporção de homens (30% versus 15% de mulheres). Isso
tudo sugere rupturas, transformações e manutenção de antigas formas acontecendo
ao mesmo tempo.
Todos esses dados, ajudam a uma aproximação de tendências à equidade
que estão nas experiências examinadas, embora nem sempre as expliquem. Mas,
falar de equidade de gênero no campo do trabalho não é tarefa simples. Há
fenômenos da longa duração que persistem, como a própria exclusão das mulheres
de espaços profissionais de prestígio, às tentativas femininas de conciliar a atividade
profissional “sem ameaçar sua mais ‘nobre’ missão – a maternidade”, como afirma
Costa (2009c, p. 3), e as próprias lutas por igualdade de direitos e oportunidades.
Tudo isso em meio a um conjunto de práticas de transgressões, lutas, conquistas e
perdas feitas por mulheres e homens engajadas/os ou não em movimentos
feministas. Esses “ritmos, construídos por homens e mulheres em suas práticas
sociais cotidianas, têm sentidos civilizadores, alguns bastantes singulares, por
conhecer” (COSTA, 2004, p. 104).
No campo das profissões, há uma primeira verificação sobre as relações de
gênero: papéis assumidos por homens e mulheres, no mercado de trabalho, estão
na base das desigualdades. Isso me leva a outras questões do mundo atual.
Examinar a feminização das profissões, como processo não linear e único é parte
constitutiva do campo investigado, exige adentrar as sensibilidades de homens e
mulheres que regem suas escolhas. Significa um esforço de compreendê-las como
significativas de razões e sentimentos de vestibulando/as presentes nas
possibilidades de definição de projetos profissionais. Por essa orientação, tento
distinguir razões e sentimentos que levam mulheres a optar por profissões
feminizadas. Mas, como os sentidos produzidos no campo do gênero não se dirigem
apenas às mulheres, discursos dos homens foram também examinados, forma de
adensar essas análises.
147
3.2 Razões, sentimentos e projetos profissionais femininos
Na tentativa de responder a segunda questão proposta nessa pesquisa:
“Como as relações de gênero impactam os projetos profissionais?”, foi preciso
compreender sentimentos e razões indicadas por mulheres, que optam por cursos
tradicionalmente femininos. Para isso, busquei, então, penetrar a densidade do real
e desvelar, nas experiências observadas, mecanismos de dominação/resistência
que se atualizam na opção das carreiras profissionais. A trajetória de três mulheres
que demonstraram opção pelos tradicionais cursos superiores feminizados:
pedagogia, serviço social e enfermagem, ajudam a compreender, em parte, esses
movimentos. Como já afirmado, sentimentos e razões que movem à definição de
projetos profissionais nunca são únicos: parecem afirmar sentidos múltiplos e se
combinam com experiências emergentes do campo de possibilidades da qual os
sujeitos dispõem. Buscando um aprofundamento analítico, retomo, para isso,
elementos de trajetórias antes tratadas.
Liliam,131 deseja fazer pedagogia na Universidade Federal do Espírito Santo.
Trabalha na secretaria de uma escola e, à noite, estuda no curso pré-vestibular
PUPT (Projeto Universidade para Todos). Estudou sempre em escola pública e já
iniciou e largou, por duas vezes, um curso superior em instituição privada: um curso
de direito e um de administração. Ela é casada, e seu marido é motorista de ônibus
coletivo. Moram de aluguel na cidade de Vitória, não possuem filhos e, de acordo
com a renda do casal, pertencem a classe D. A segunda trajetória é de Maria,132 que
deseja fazer enfermagem na Universidade Federal do Espírito Santo. Maria fez o 2º
grau técnico em contabilidade, depois fez o curso de magistério e, posteriormente,
um técnico em enfermagem. Está desempregada, mas ajuda o marido na sapataria.
Sempre estudou em escola pública e também faz pré-vestibular no PUPT. Não
possuem filhos, moram de aluguel em Vitória e, conforme a renda do casal,
pertencem a classe D. A terceira trajetória é de Patiane133, um que deseja fazer
serviço social na Universidade Federal do Espírito Santo. Patiane já foi casada,
separou-se e hoje mora com a irmã casada, porque os pais não aceitam que ela
131 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 132 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público. 133 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
148
volte para casa. Trabalha com mosaico numa cooperativa de Vitória, como
estagiária, e recebe menos de um salário mínimo. Somando sua renda, com a da
irmã e a do cunhado, a classificação conforme o IBGE é classe E. Ela fica pela
manhã em casa “cuidando” da sobrinha para a irmã ir trabalhar. À tarde, vai para a
cooperativa e, à noite, estuda no PUPT.
Além de o fato de serem mulheres e estarem preparando-se para ingressar
no Ensino Superior, todas estão optando pelos tradicionais cursos feminizados. Uma
fará pedagogia, a outra fará serviço social e a outra enfermagem. Numa observação
inicial, percebo que todas elas associam seus projetos a sentimentos que emergem
de uma dada experiência exclusiva das mulheres, ao se definirem como mãe,
esposa e filha nos mais variados territórios que ocupam e em que circulam.
Admite-se que o relato de experiência dessas mulheres, de alguma forma,
pode traduzir a materialidade dos sentimentos que as leva a optar por cursos
feminizados, pensada nos sentidos civilizadores (ELIAS, 1990), “produzidos” ou
“relacionados” (não sei qual a melhor expressão) ao campo do gênero que parecem
impulsionar seus projetos profissionais. Nas memórias dessas mulheres, localizei
motivações e sentidos de ações das alunas investigadas. As memórias, segundo
Velho (1999), são constituídas por experiências pessoais, sofrimentos, decepções,
mágoas, frustrações, desejos, amores, triunfos, traumas que dão sentidos à
existência humana. Essas memórias atualizam o passado a partir do testemunho. O
testemunho da memória “é fiador da existência de um passado que foi e não é mais.
O discurso histórico encontra ali certificação imediata”, segundo Chartier (2009, p.
23). Admite-se, pois, que as “relações entre projeto e memória dão significado à vida
e as ações dos indivíduos” (VELHO, 1999, p.). Examinar essas memórias e os
sentidos civilizadores que elas podem revelar, indica um enorme esforço de
selecionar partes de um imenso conjunto de possibilidades de compreensão do
movimento da história. Assim, animada pelo paradigma indiciário (GINZBURG,
2003), não perco de vista que alguns indícios selecionados nessas trajetórias podem
aproximar-me desse vasto campo de experiências humanas para pensar projetos
que nele estão sendo construídos, a partir de um dado horizonte de expectativas. A
complexidade e a multideterminação do fenômeno aqui tratado, indicou a pertinência
de revistar trajetórias por revelarem os sentidos civilizatórios (ELIAS, 1990),
emergentes da rede subterrânea e rizomática da qual o real se compõe.
149
3.2.1 “Gostar de crianças”: razões e sentimentos ligados à maternidade
Eu escolhi pedagogia porque é uma área que eu acho que me identifiquei. Eu gosto de trabalhar com criança, eu me dou bem com elas... Eu gosto de criança. Eu sei cuidar de criança... [grifo nosso]. Então isso também contribuiu para minha escolha.
Liliam,134 expressa sentimentos de seu gostar de crianças como parte daquilo
que a leva a definir seu projeto profissional. Antes, essa mesma entrevista foi útil
para localizar outras razões e sentimentos que a fizeram buscar o curso superior de
pedagogia, localizados em sociabilidades pertinentes à experiências de trabalho e a
sua busca de autonomia na satisfação de necessidades de sobrevivência. Sua
opção é em parte motivada, como diz, pelo fato de não ter tempo para se dedicar a
estudos mais complexos e querer um curso rápido e mais fácil “de passar”, tudo isso
avaliado, pois, como condições colocadas em seu campo de possibilidades. Mas,
dentre os cursos mais fáceis, por que teria ela optado especificamente por
pedagogia? É aí que sua trajetória atravessa o campo do gênero, o que direciona
seu projeto profissional. O “gostar de crianças”, “gostar de trabalhar com crianças”,
“saber cuidar de crianças” são sentimentos que orientam suas ações. Revelam
disposições pertinentes a seu meio cultural, produzidas por significados que
estabelecem nexos entre “cuidados infantis” e o universo feminino. Esses sentidos,
atualizam-se nas razões e sentimentos de Liliam135, mas não só. Sensibilidades
partilhadas por muitas outras mulheres e homens de diferentes tempos históricos
revelam semelhantes sentidos. Trata-se, portanto, de uma regularidade histórica a
ser percebida e destacada, entendendo a força de sentidos civilizadores como
propõe Elias (1990), presentes na história dos costumes; nela se definem lugares
femininos e masculinos e forjam-se sensibilidades desse nosso tempo e de outros
tempos.
Gostar de criança é um sentido que se liga à maternidade. Trata-se de um
fenômeno moderno consolidado com o avanço da industrialização e modernização
do século XX. A invenção da maternidade é parte de um conjunto de transformações
do século XVIII, que faz emergir a ideia de amor romântico, a criação do lar e
mudança nas relações entre pais e filhos (GIDDENS, 1993). Já em fins do século
XIX, há um “declínio do poder patriarcal” com o “maior controle das mulheres sobre a 134 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 135 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
150
criação dos filhos”. A partir daí, consolida-se uma ideologia que ressalta o papel
natural da mulher como mãe, e limita a função social feminina à realização da
maternidade. Trata-se de um fenômeno da longa duração na história das civilizações
modernas ocidentais. Marca o imaginário das mulheres de tal forma, que muitas
constroem representações e sentimentos autodepreciativos quando, por algum
motivo, não conseguem realizar a maternidade. Numa experiência de pesquisa de
iniciação científica, tive a oportunidade de examinar representações sociais da
infertilidade feminina, entre mulheres de diferentes estratos sociais e diferentes
idades136. Os principais elementos do campo das representações sociais sugerem
os seguintes significados: tristeza, incompletude, frustração, cobrança dos outros,
solidão, pessoa inferior, adoção, busca de soluções, entre outros, o que confirma a
forte vinculação do papel feminino à maternidade. Liliam,137 não poderá ser mãe
devido a uma infecção que a levou a tirar o útero. Esse ressentimento pode também
movê-la em direção ao curso de pedagogia, quem sabe uma possibilidade de
compensação de um desejo reprimido, processo consciente para ela: A área pedagógica me incentivou a mudar também por esse lado de carência. Não poder ser mãe do meu próprio filho, não poder ter o meu próprio filho... Então, acho que me fez criar a percepção que no trabalho eu vou lidar com muitas crianças, que eu vou poder cuidar de todos, proteger todos. É uma coisa suprindo a outra. Eu acho que se você não criar isso, não se compensar por um lado, acho que a vida já é frustrante!
Os padrões de maternidade também mudam em função das contradições
inerentes ao processo de industrialização e ao ingresso desigual das mulheres no
mercado de trabalho. Ao longo do século XIX, operárias começaram a associar a
maternidade ao trabalho fora do lar, instaurando uma lógica da dupla
responsabilidade como afirma Scavoni (2001). Essa lógica irá consolidar-se com o
avanço da industrialização, e a tomada de consciência das mulheres sobre a
conhecida dupla jornada de trabalho feminina o que advém dessa experiência de
sofrimentos e ressentimentos. Para que as mulheres façam parte da vida pública e
adquiram autonomia são necessários equipamentos sociais e transferência de
maternidade da esfera privada para a pública. As mulheres, em diferentes tempos,
136 Participei como atividade de Iniciação Científica da pesquisa “Saúde Reprodutiva na Perspectiva Feminina” (1996-1997) coordenada por Zeidi Araújo Trindade. A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 137 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
151
organizaram e continuam organizando lutas por direitos que avançam, e por isso,
chegam a novos espaços profissionais.
Mais três relatos revelam um pouco dessa marcha nas tentativas de
“reconciliar o tempo maternal (cíclico e monumental) com o linear (político e
histórico)”, como indica Kristeva. Trata-se da conciliação de relações entre os muito
próximos: “É claro que não abro mão da minha profissão. Quero primeiro formar em
medicina. Mas não vou ser solteirona (tom depreciativo na fala)... Quero casar e
construir uma família”, afirma Lívia.138 O relato de Gabriele,139 também mostra
significados semelhantes: “Meus planos para o futuro... Casar, ter filhos, me formar,
construir uma família... Não pretendo abrir mão da carreira. Mas, vou dar uma
parada quando tiver filhos, depois retomo”. Brenda,140 também revela esses
sentidos: “Acho certo dividir os cuidados com os filhos. Mas, homem não tem muito
jeito com crianças. Se meu marido tiver dinheiro, fico em casa cuidando dos filhos”.
O que percebo é que independente da classe social, os gostos e as disposições
para a ação dessas quatro mulheres indicam tentativas de conciliar a maternidade
com a atividade profissional, o que é uma “regularidade de longa duração da história
das mulheres” (COSTA, 2009c, p. 3).
Esse é um sentido que perpassa a experiência, não apenas de mulheres. O
discurso de Luciano,141 reforça o ideal de uma mulher que concilie carreira com a
maternidade. Ele, atualmente, tem uma namorada que possui dois filhos, mas não
quer casar-se com ela: “Eu quero ter meus próprios filhos. Eu tenho vinte e um anos
e ela vinte e nove... Pretendo casar-me com uma mulher da minha idade, que tenha
pretensão de ter filhos e também uma carreira profissional”. Desejo forjado nas
relações que estabelece com o campo do gênero, e que atualizam imagens das
mulheres que buscam “reconciliar o tempo maternal (cíclico e monumental) com o
linear (político e histórico)”, como indicado.
No ingresso das mulheres na vida pública, o que se faz por diferentes vias, é
possível compreender racionalidades que acentuam a feminização de algumas
profissões. Cada tempo histórico produz formas específicas de trabalho feminino e
138 Mulher branca, 15 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado. 139 Mulher branca, 17 anos, classe C, estudante do curso pré-vestibular privado. 140 Mulher parda, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 141 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
152
veicula imagens e representações que os legitimam. O que interessa a esse trabalho
é compreender com que racionalidades constroem-se essa feminização, sobretudo,
na sociedade brasileira. O intuito não é recuperar a história para explicar o tempo
presente. Como se o presente estivesse sempre amarrado, numa linha contínua, ao
passado, como indica Sarlo (2007), afastando-me de tendências que situam grandes
explicações dos movimentos da história em justificativas sobre fatos do passado. É
fato que as instituições sociais, ou seja, àquilo que é criado, socialmente, e adquire
valor de verdade para guiar os comportamentos humanos atualizam formas de
funcionamento sociais passadas. Mas, a intenção não é fazer uma história que
“afogue o impulso a-histórico de produção da vida” (SARLO, 2007, p. 11), lembrando
pronunciamentos de Nietzsche contra o historicismo. Os projetos profissionais se
fazem, mas numa aliança com o futuro, com as expectativas e desejos criados no
presente vistos como o futuro do passado, lembra-nos Koselleck (op. Cit.).
Então, tendências como essa da feminização de profissões não pertencem ao
passado: atualizam-se no presente. Persistem como processos de longa duração,
atravessando o tempo histórico. A transposição de características consideradas
tipicamente femininas, como “cuidar” e “educar”, e admitir o espaço doméstico como
espaço privado seu e da família e sem sinal político, são algumas noções que
traçam características da profissionalização feminina. A saída da mulher para os
espaços públicos evidencia-se, com nitidez, sobretudo na economia mineira, dos
séculos XVII e XVIII, bastando lembrar o abastecimento de alimentos em tabuleiros
feito por mulheres negras e pobres (FIGUEIREDO, 2004). Isso se acentua no Brasil,
no final do século XIX, com a chegada da Família Real portuguesa. Projeta-se, neste
momento, um horizonte de novas expectativas e necessidades que faz com que o
governo amplie suas preocupações com a educação feminina, prevalecendo a
educação das mulheres da aristocracia para os salões e das mulheres comuns para
a gestão e o exercício de atividades ligadas ao espaço doméstico, à função de mãe,
cuidadora e provedora do bem estar da família.
A caminhada em direção à educação formal das mulheres no caso brasileiro é
lenta; por muito tempo seguiu tradições culturais ibéricas, reforçada por padres
jesuítas, como afirma Ribeiro (2007), nas quais as mulheres, vistas como seres
inferiores, dispensariam o aprendizado da leitura da escrita ou de qualquer outra
atividade que não estivesse vinculada ao espaço doméstico. Sabe-se, ainda, muito
pouco de saberes adquiridos pelas mulheres por diferentes meios; em geral, a
153
educação feminina foi examinada no interior da ideia de reprodução da mentalidade
medieval portuguesa, já em crise na Europa, transportada para a colônia. Todavia,
estudos mais recentes, estão revendo essa, como a única orientação, considerando
pesquisas recentes de formas de sociabilidades que estimulam o desenvolvimento
de leitura e escrita por mulheres no espaço doméstico, ainda que tendo o início do
século XIX como referência142. De todo modo, a ideia é de que prevaleceria, nos
moldes medievais, mulheres submetidas à tutela masculina, sob o pátrio poder do
marido. Novos acontecimentos, alterados pela mudança da família real para o Brasil,
evidenciando-se, com a abertura dos portos, a intensificação da urbanização de
regiões brasileiras, a “quebra do isolamento de cidades” (DIAS, 1984). Alargam-se
as possibilidades sócio-culturais e o espaço de mobilização das mulheres. Um novo
estilo de vida burguesa se desenha no horizonte de expectativas das mulheres
brasileiras e, em função disso, haveria a mudança de hábitos e costumes familiares.
A abertura para a escolarização e, também, para a profissionalização feminina são
partes dessa mudança.
É fato que esse movimento se faz numa sociedade cujo modelo fundava-se
na propriedade rural e na mão de obra escrava, em modos de vida que tornavam de
pouca serventia a educação, e não somente das mulheres. Havia, portanto,
resistências à mudança. O ensino primário das mulheres, pela falta de interesse dos
pais na educação das filhas, e falta de professores qualificados, não é maciço. E
quando acontece é forte o conteúdo moral e ideológico, fortalecendo o papel
feminino como mãe e esposa (UNICEF, 1982). O ensino secundário, por sua vez, se
restringirá ao magistério. Como acrescenta Romanelli (1999), os graus mais
elevados de instrução são quase inacessíveis às mulheres durante o século XIX. A
chegada das mulheres ao Ensino Superior se faz com resistência e em alguns
casos, em fins do século XIX, acontecem por interferência direta de D. Pedro II143. E,
mesmo quando se criam decretos com vistas à garantia de participação feminina, a
exclusão do ensino secundário, coloca grandes restrições ao ingresso aos graus
mais elevados de instrução144. Na verdade, as mulheres vão abrindo espaço em
142 Sobre o assunto, ver: LEITE, Márcia Maria da Silva Barreiros. Entre a tinta e o papel. Memórias de leituras e escritas femininas na Bahia (1870-1920) Salvador: Quarteto, 2005. 143 Sobre o assunto, ver. RODEHN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2001. 144 Como indica Hahner (1981) a tônica estava na agulha e não na caneta visto que apesar da criação da escola de Niterói, em 1835, e da Bahia, em 1836, elas permaneciam com um número quase insignificante de matrículas.
154
diferentes cursos superiores, mas, somente em 1961, com a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Brasileira (LDB), com a garantia de equivalência dos cursos de
grau médio, é que houve reais possibilidades de acesso ao vestibular para as
mulheres normalistas.
Nesse movimento, final do século XIX e início do século XX, há avanços e
retrocessos. A urbanização facilita a entrada de diferentes ideologias filosóficas, em
desenvolvimento, no contexto de industrialização européia. O pensamento
escolástico, predominante no Brasil, passa a ser criticado por liberais, cientificistas e
positivistas que pregavam ideais republicanos (SODRÉ, 1970). Dentre esses ideais,
doutrinários de Comte recuperam e dão destaque ao papel da mulher na
estruturação da família: as mulheres, por serem consideradas mais altruístas e mais
virtuosas devem, então, responsabilizar-se pelo bem estar físico, moral e espiritual
não só de suas famílias como também de sua pátria145. É a chamada missão
civilizatória, como revela Chamon (2006). As mulheres passam a ter a missão de
cuidar, educar, reforçando o magistério como vocação feminina. Um ideal cristão é
conferido às mulheres. É assim que se compreende a fala de Liliam146:
Eu sempre quis ajudar o próximo [grifo nosso] e nada melhor do que você prestar serviço, e como eu sempre pensei em querer ajudar o meu próximo... E... Como eu posso ajudar o meu próximo? Dando a ele uma educação, uma orientação, aquilo que eu aprendi. Se o que eu aprendi foi bom - claro que eu não quero passar nada de ruim para ninguém! - se o que aprendi foi bom, pretendo passar isso adiante. Então, eu quero ser professora! Porque, assim, eu lido com criança, com pré-adolescente... Então, eu posso passar algo que seja útil para vida deles.
Liliam147, além da transferência do desejo de ser mãe para a esfera
profissional, atualiza o ideal de “educar” como missão feminina. Trata-se de uma
construção simbólica da maternidade reafirmando-se. Atua, sobretudo, na definição
de deveres morais das mulheres que orientam as experiências femininas, individuais
e coletivas. Tudo isso se reveste de um ideal cristão.
Liliam, por sua própria inserção profissional no trabalho de secretaria em uma
escola, insere-se num campo de experiências que atualiza/amplia as possibilidades
145 Chamon (2006) ajuda-nos a compreender a emergência desse novo papel da mulher na Europa. Dá-se em função de, na segunda metade do século XIX, a força de trabalho feminina não se fazer mais necessária ao capitalismo. Assim, novos mecanismos sociais foram criados para restabelecer os velhos valores da ideologia patriarcal fragilizados pelos interesses da produção e do lucro. Como os meios de transporte e de comunicação encurtam as distâncias entre Brasil e a Europa, esse “novo papel” chega na colônia. 146 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 147 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
155
de trabalho que surgem para as mulheres. Afirma: “Eu já estou trabalhando nessa
área, que é a área pedagógica”. Esse tipo de ofício não é, por acaso
desempenhado, por mulheres. O mundo do trabalho, afirma Bourdieu (2005), é
constituído por grupos de profissionais que funcionam “quase como famílias, nos
quais o chefe do serviço, quase sempre um homem, exerce autoridade paternalista,
baseado no envolvimento e na sedução” (p. 73), sobre o pessoal subalterno
“principalmente feminino (enfermeiras, assistentes, secretárias)”. Essas disposições
inscrevem-se na sensibilidade das mulheres. Bourdieu, ainda atenta para o fato de
distinção da qualidade do trabalho feminino, em geral, menosprezado, e o do
masculino, sempre revestido por uma certa nobreza:
[...] as mesmas tarefas podem ser nobres e difíceis quando realizadas por homens, ou insignificantes e imperceptíveis, fáceis e fúteis, quando são realizadas por mulheres, como nos faz lembrar a diferença entre um cozinheiro e uma cozinheira, entre o costureiro e a costureira; basta que os homens assumam tarefas reputadas femininas e que as realize fora da esfera privada para que elas se vejam com isso enobrecidas e transfiguradas (BOURDIEU, 2005, p. 75).
O trabalho de secretária e, ainda mais, no ambiente educacional é uma
função tradicionalmente ocupada por mulheres. Isso se torna mais evidente quando
compreendemos que a ocupação foi a “única opção que apareceu” quando a mesma
estava desempregada.
A atividade docente no Brasil, como destaca Apple (1987), desde o século
XIX com a criação das escolas normais, é exercida prioritariamente por mulheres.
Uma pequena parcela de homens, de classes mais baixas, também desenvolvia a
atividade docente, mas as condições materiais da profissão os afastaram. A primeira
dessas condições diz respeito à ausência de um ensino secundário
institucionalizado, fazendo com que a demanda do quadro de professores no
sistema educacional fosse suprida pelos portadores de diplomas da escola normal,
em geral, mulheres de camadas médias e pobres. A segunda está atrelada a pouca
valorização do ensino público pelos governantes. A desvalorização da profissão e a
concentração de baixos salários fazem com que os professores abandonem,
gradativamente, a profissão. Por outro lado, as políticas públicas da época acabam
por solicitar às mulheres que substituíssem os homens na “nobre” missão de educar.
Esse apelo inscreve-se, então, no campo do simbólico e constrói representações
que associam o feminino ao discurso da “vocação”. Ensinar crianças é atributo
156
feminino. Um trabalho que deve pautar-se no amor e não nas recompensas
materiais.
Além disso, a sociedade brasileira, no período republicano, sobre crescente
concentração urbana, precisava da escola para educar o cidadão e trabalhador.
Com a elevada taxa de analfabetismo, cresce a necessidade de preparar
trabalhadores tanto rurais como urbanos. A missão civilizatória feminina, então, pode
contribuir para “civilizar” essa enorme parte da população. Enguita (1989), afirma
que “o mundo capitalista precisava de braços adestrados para promover o seu
desenvolvimento”. O que é feito pelas mulheres, de classe média em busca de
acesso à vida pública e pelas mulheres de classe baixa como uma oportunidade de
sobrevivência.
Nessa medida, é possível compreender porque há um desprestígio associado
ao magistério. As mulheres ocupavam essa função não por dinheiro, mas por
vocação. A associação entre magistério e desprestígio social é, então, instaurada
gradativamente, afastando os homens da docência e, principalmente, do ensino
primário. Quando se mantém na docência, os homens atuam nos níveis mais
elevados. Diferentes sentidos, portanto, se constroem: o professor é associado à
figura de “autoridade do conhecimento”, e a professora vinculada ao “apoio e a
cuidados dirigidos aos vestibulandos/as” (LOURO, 1997, p. 45).
O que se evidencia na construção dessa primeira trajetória, em que os
sentidos e razões para a opção por pedagogia se fazem num campo de
experiências, atrela-se à experiência de vida, os sentidos inventados em um tempo
distante e que persistem no subterrâneo como movimentos da longa duração, o que
reforça os lugares a serem ocupados pelas mulheres. Mas, as mulheres também
conquistaram espaços e foram mudando a história.
O passado, tradicional e conservador, não segurou o avanço das mulheres
nas primeiras décadas do século. Como destaca Marques e Melo (2008), enquanto
a sociedade se modificava, lentamente, grupos de mulheres de classe média
surgiam com o propósito de lutar por direitos. Um bom exemplo das mulheres na
ciência e na política é o de Bertha Lutz (1894-1976), bióloga pela Universidade de
Paris, integrante do movimento feminista e deputada federal – curto mandato entre
1936 e 1937, mandato perdido com a instauração do Estado Novo (COSTA, 2006) –
a qual lutou para modificar a condição legal e social das mulheres brasileiras. Sob a
liderança de Bertha Lutz, no ano de 1922, é fundada a Federação Brasileira para o
157
Progresso Feminino (FBPF), que reunia associações de mulheres de vários estados
brasileiros e sucedia a ‘Alliança Brasileira para o Suffragio Feminino’. As
reivindicações iam além do direito ao voto, embora uma etapa considerável para a
emancipação da mulher. As lutas eram também por educação de qualidade, o que
daria igual condição a homens e mulheres para ingresso na vida pública, e emprego
feminino.
Bertha é a segunda mulher a ingressar no serviço público brasileiro, antes
dela como destaca Costa (2006), Nísia Floresta e Josefina Álvares de Azevedo,
abolicionistas e feministas, que se empenharam na chegada das mulheres ao
mundo público. Soihet (2005) mostra que Nísia foi uma literata que adentrou a vida
pública no século XIX, uma das primeiras mulheres a colaborar em jornais, em
Recife, e trabalhou também na publicação de contos, poesias, novelas e ensaios em
periódicos do Rio de Janeiro. Envolveu-se com questões culturais de seu tempo
histórico, o que manifestou em sua militância. Melo e Oliveira (2006), também
mostram a presença das mulheres na ciência ao longo do século XX, e a partir de
uma análise aos dados da biblioteca SciELO, mostra que a revolução feminista a
qual abriu espaço para as mulheres nas universidades e vida profissional, reflete-se
no aumento de publicações científicas: 32,28% dos autores identificados nos últimos
anos. Mas, afirmam: “é preciso lembrar que as mulheres ainda continuam sujeitas a
padrões diferenciados por gênero na escolha de carreiras profissionais próximas do
estereótipo do ser mulher” (p. 28).
É fato que essa missão civilizatória acaba por abrir espaços para a educação
e a profissionalização feminina, o que pode significar uma conquista das mulheres a
espaços públicos antes impensados. Por outro lado, abre espaço para o trabalho
filantrópico148, que embora conferisse oportunidades de movimentação na esfera
pública, atrela à atividade feminina a um trabalho não pago, de caráter moral e
religioso. As mulheres aproveitaram as oportunidades criadas pelo contexto de
transformações, e o que move, nesse momento, suas expectativas, ações e
148 As mulheres francesas, sem seus direitos civis garantidos encontram na Lei de 1901, uma brecha para o exercício da cidadania a parir das associações. Criam associações sanitárias e sociais para lutar contra a miséria em todos os sentidos: moral, intelectual e material. A maior parte das atividades das associações eram exercidas por mulheres e se caracterizavam pela prestação de serviços à comunidade: tratamento domiciliares, campanhas de prevenção contra doença, atividades com crianças, jovens, entre outros. Neste contexto, a principal contribuição do serviço social é melhorar as condições de vida da população, de início de caráter paternalista e, posteriormente, inspirado no catolicismo social, busca compreender o ser humano em sua totalidade, o que implica num trabalho de educação.
158
sensibilidades era esse ideal civilizatório. Imbuídas desse ideal e, em função das
condições concretas de sua inserção, as mulheres movimentam-se para
determinadas profissões. Não por acaso, as primeiras profissões que se dirigiram
foram o magistério, a enfermagem e o serviço social, profissões em que o “cuidado”
e o “ensino” são predominantes.
A feminização de profissões refere-se, portanto, a um processo que se
constrói ao longo do tempo, o qual identifica determinadas profissões como um
trabalho socialmente de mulher e o vincula a certas características tidas como
femininas. É claro que não se pode pensar que houve uma criação proposital dessas
profissões para que as mulheres as ocupassem. Tudo é parte de um intrincado jogo
de forças, que conjuga interesses das mulheres em participar da vida pública,
representados por vários movimentos sociais, e há interesses das elites sociais,
interesses capitalistas, que precisam de força de trabalho feminina para a
implantação da grande indústria no Brasil, entre outros. Valores e habitus
constroem-se aos poucos. Um complexo conjunto de condições econômicas e
políticas que fazem com que haja mulheres em determinadas profissões. Os
processos sociais se engendram de tal forma que as trocas culturais são intensas.
“Existe uma mobilidade material e simbólica sem precedentes em sua escala e
extensão” (VELHO, 1999, p. 39).
3.2.2 “Gosto de cuidar de gente!”: mulheres na saúde
Eu parti pra enfermagem... Nossa é uma área muito boa. Gosto de cuidar de gente! Cuidar de gente é muito bom! Eu já gostava antes de entrar no posto, quando eu entrei e passei a cuidar de vidas, vi que era muito bom. Você saber que é útil pro outro é muito bom, não tem dinheiro que pague. É uma área que, realmente, eu me identifiquei!
A transferência de características femininas para a esfera privada não se dá
apenas na profissão do magistério. Nas profissões ligadas à saúde “cuidar”, um
atributo ligado ao feminino, é transferido para essas profissões. Maria,149 atualiza
essas razões e sentimentos na busca por enfermagem. Sentidos civilizatórios
atualizam-se aos atributos que transfere para a futura profissão. A missão
civilizatória também marca o ingresso da mulher na profissão de enfermagem.
149 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público.
159
Criada em 1890, segundo Lopes e Leal (2005) é a primeira profissão feminina
universitária. O objetivo principal150 é dar suporte aos programas de saúde pública. A
enfermeira, subordinada ao médico, tem como principal função “cuidar” e outros
afazeres que garantam o bem-estar do paciente. O que já é parte dos sentidos
atribuídos à pratica feminina. Nesse ponto, Giddens (2005), registra a tendência
contemporânea das mulheres de transferir para a esfera pública o cuidado com o
outro, assim como, outras características associadas à “feminilidade” vividas na
esfera privada como a delicadeza, dedicação ao outro, capricho, entre outros.
As condições de emergência da primeira escola superior de enfermagem
revelam semelhante descaso que o governo tem com a educação, e também com a
saúde pública. Segundo Lopes e Leal (2005), a Escola Superior de Enfermagem foi
criada no ano em que as irmãs de caridade deixaram de “cuidar” do Hospício
Nacional de Alienados Pedro II. Em função disso, guardas e serviçais da Instituição
passam a compor o quadro de ingressantes da escola de enfermagem para atuar
tanto em hospícios, quanto em hospitais civis e militares do país. Havia pouca
preocupação com a formação dessas enfermeiras, marcada por uma carência de
procedimentos técnicos e científicos. As práticas de cuidado masculinas são, aos
poucos, substituídas pela prática de cuidado feminina. Um movimento semelhante
ao ocorrido com a educação é observado. Não apenas a precarização da profissão –
como a má formação educacional e o exercício da profissão por mulheres leigas –
mas pela instituição de um novo perfil exigido pela profissão.
O modelo de ensino de enfermagem da Fundação Rockefeller vai privilegiar o
gênero feminino. As ações educativas, preventivas e de cuidado da enfermagem
atuaram, reorganizando o serviço de saúde pública e dos hospitais. Esse novo perfil
exigido, e que atrela a profissão às qualidades femininas, revela que a origem da
profissão no Brasil está associada e organizada por instituições das ordens sacras.
“Coexiste com o cuidado doméstico às crianças, aos doentes e aos velhos,
associado à figura da mulher-mãe que desde sempre foi curandeira e detentora de
um saber informal de práticas de saúde, transmitido de mulher para mulher”
(LOPES; LEAL, 2005, s.p).
Se por um lado, a prática da enfermagem pelas mulheres era movida por
representar maiores oportunidades de crescimento e de acesso à vida pública, para
150 Aperibense e Ferreira (2008)
160
os homens deixou de ser uma profissão de interesse. Um conjunto de condições
específicas da época movimenta homens e mulheres. Os valores ideológicos que
começam a ser incorporados aos sistemas de saúde, em crescimento, importam
nesse conjunto de condições concretas e simbólicas.
[...] é a noção de cuidado (de saúde à família), enquanto ação concebida como feminina e produto das “qualidades naturais” das mulheres, que fornece atributos e coerência ao seu exercício no espaço formal das relações de trabalho na saúde. Esse último, historicamente limitado pelas possibilidades sociais das mulheres, pelas perseguições religiosas e pelas corporações médicas. Nessa perspectiva, os valores simbólicos e vocacionais, introduzidos no recrutamento de trabalhadoras, apelam para a entrada seletiva das mulheres nesse espaço profissional apropriado cultural e socialmente ao seu sexo (LOPES; LEAL, 2005, s.p).
Esses valores também se observam nas experiências das estudantes que
optam por medicina: “Eu sempre estive muito ligada a essa área da saúde. Gosto de
lidar com pessoas, cuidar da saúde delas”, fala Sirlei151. “Eu conheci um clínico geral
que me inspirou. É um médico que todo mundo gosta, não trabalho por dinheiro,
trabalho por amor à profissão. Então pensei que é isso que quero para minha vida:
salvar vidas, ajudar o próximo, fazer algo útil para o mundo ser melhor”, afirma
Elaine152 “A medicina tem essa coisa de salvar vidas, curar... Achar cura para
doenças. E tratar das pessoas mesmo!”, diz Livia153. A construção desses projetos
profissionais, portanto, se fazem com sentidos que marcam rupturas com a tradição
– busca de um curso de prestígio – mas, ao mesmo tempo, negociam com a
realidade (VELHO, 1999). Reafirmam nos espaços profissionais características
presentes nas imagens femininas: os cuidados. Muitos desses sentidos vinculam-se
ao romantismo das profissões, antes tratado. Busca-se na profissão, uma forma de
ajuda ao próximo, e de contribuição para o bem estar social entre outros.
Montenegro (2003) identifica três fatores para as mulheres concentrarem-se
nas profissões de cuidado: “altruísmo”, “reciprocidade duradoura” e “realização de
uma obrigação ou responsabilidade”. Identifica também nas abordagens feministas
motivos pelos quais as mulheres as escolhem: profissões de cuidados. Articula-se
com uma maneira de sentirem sua aceitação no mundo social e, ainda, como um
mecanismo de compensação por realizações pessoais não atingidas.
151 Mulher negra, 20 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público. 152 Mulher branca, 22 anos, classe C, estudante do curso pré-vestibular privado. 153 Mulher branca, 15 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado.
161
Há também condições específicas na construção do projeto profissional, que
se fazem nas interseções das relações de gênero com as de classe, e com as de
raça ou cor de pele. Maria154 cursou, primeiro, contabilidade em nível de segundo
grau porque os exemplos da irmã mais velha e da mãe sugeriram-lhe o mesmo
caminho. Não conseguiu emprego por três anos na área. E, aí, começou a fazer
magistério porque “gosta de criança”. Trabalhou em algumas escolas, mas acabou
largando a profissão. Como relata: “dominar uma turma é muito difícil e eu era muito
tímida. Daí parti para enfermagem,”. Insatisfeita com o curso de magistério descobre
o curso técnico em enfermagem por meio de um panfleto. Conversou com algumas
pessoas e achou que era uma boa oportunidade. Até hoje não conseguiu emprego
na área e, por enquanto, está “ajudando” o marido na sapataria. Isso se vincula às
interseções das relações sociais de gênero, de raça e de classe, é claro. Essa
experiência pode revelar ainda um mecanismo de exclusão, não só das mulheres
pobres, ao mercado de trabalho, mas também de mulheres pobres e negras.
Diversas pesquisas, entre elas a de Romariz, Gomes e Votre (2007), mostram que o
mercado brasileiro discrimina homens negros e mulheres brancas e negras, mas,
sobretudo, as mulheres negras. Valverde e Stocco (2009) também mostram que, em
geral, as mulheres negras no Brasil, têm menos anos de escolaridade do que as
brancas. E Góis (2008), reforça as discriminações sobre a raça, mostrando que,
mesmo com o ingresso das mulheres às universidades, a entrada das mulheres
negras é precária e se faz em cursos menos prestigiados.
As condições históricas concretas e sociedade, fundada numa cultura de
subordinação das mulheres, servem a certos interesses de classes. Silva (2009, p.
4), mostra que, em certos momentos, discriminação de gênero e discriminação
étnica confundem-se, ou seja, apresentam semelhantes matrizes explicativas:
Talvez, por estratégia política, em algumas passagens da luta pela garantia de direitos sociais ou do próprio estado de direito, houve uma aproximação entre o movimento feminista e o movimento negro, fortalecendo-se mutuamente na afirmação de um modelo de cidadania plena.
As disposições para a ação de Patiane,155 também são reforçadas pelas
significações culturais de seu campo: “Minha amiga, na época, falou que eu tinha
tudo a ver com enfermagem. Esse meu jeito de “mãezona” [sic]. Eu não achei muito, 154 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público. 155 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público.
162
mas não é que tem a ver!” Como Velho (1999), afirma as sociedades moderno-
contemporâneas caracterizam-se “por um intenso processo de interação entre
grupos e segmentos diferenciados”. Os projetos profissionais constroem-se,
portanto, entrelaçados com outros projetos. As condições de educação na família, e
na própria escola, também se atualizam; e enunciam-se como projetos diversos que
interagem com o seu próprio campo. As famílias, por muito tempo, pouco
valorizaram a educação feminina; predominou a preocupação com a criação de boas
esposas. De acordo com Silva (1995), a subordinação feminina é, sobretudo,
explicada pelas disposições para a ação criadas na dinâmica familiar. Essas
disposições mostram que, na esfera profissional, as mulheres espelham-se no
espaço doméstico tradicional. Carregam para o espaço público a disposição para o
cuidado com os filhos, a saúde, a nutrição e a educação. A educação escolar
deficitária e, em nível técnico, também dificultou o acesso ao curso superior.
Sobretudo, o curso de magistério que, embora tenha se modificado a partir da LDB,
na prática, ainda não prepara para o ingresso à universidade. Um marca das
interseções do gênero com a classe.
Mas, as mulheres rompem com determinismos e inventam novas tradições.
Maria,156 deseja agora o nível superior. Não teve dinheiro para dar prosseguimento
aos estudos, mora de aluguel, está desempregada e o marido tem uma pequena
sapataria. A oportunidade de voltar a estudar surge a partir do projeto já
mencionado, “Universidade para Todos”. A política de “cotas” para os
vestibulandos/as de escola pública também é um facilitador de seu ingresso. Tentará
enfermagem e está bem confiante. “Estou fazendo a minha parte. Esse ano eu não
ia nem tentar fazer cursinho, mas como surgiu a oportunidade, não iria perder. Junto
mais conhecimentos até que uma hora eu passo”. Relata que quer, pelo menos, tirar
uma boa nota no ENEM, para “conseguir uma bolsa em uma faculdade pra eu fazer
Enfermagem. Eu sei que dá pra [sic] conseguir no Salesiano”. As políticas
compensatórias também impactam nos projetos profissionais.
Essa trajetória, portanto, carrega as marcas do lugar ocupado na hierarquia
social como mulher, negra e pobre. Suas características geracionais, também têm
peso em sua trajetória: “Como não tenho experiência na área, eles [os
empregadores] acabam contratando os mais jovens. Acho que é porque aprendem
156 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público.
163
mais rápido, principalmente essas coisas de informática”. Mecanismos de poder
apenas reforçam esses lugares na estrutura, o que é vivido em seu campo de
experiências, modelando as razões e sentimentos. Mas ela também enfrenta as
rupturas com esses limites. Volta à escola, e deseja por meio do ingresso à
Universidade melhorar suas condições de vida. Isso significa que é apenas no
campo das experiências humanas que se pode compreender os sentidos
civilizadores nos quais a história é construída.
A hierarquia entre homens e mulheres não ocorre de forma análoga, em
diferentes culturas ou momentos históricos. A dedicação das mulheres às atividades
que envolvem o cuidado e a assistência pode atuar no sentido de conferir mais
autonomia às mulheres ou limitar seu campo de atuação social. O fato insinua que
as mulheres são ativas na construção de suas histórias. Usam estratégias como, por
exemplo, de buscar carreiras menos competitivas e nas quais possam se dedicar em
tempo parcial, caso das profissões de cuidados, na tentativa de conciliar atividades
profissionais e atividades domésticas.
A feminização de profissões é, portanto, um movimento que perpassa a
construção de projetos profissionais como pode ser observado nas trajetórias
investigadas. Não atua como força determinística dessa ou daquela ação, mas
produz sentidos que constroem e reconstroem o presente. 3.2.3 “Querer ajudar a comunidade e ao próximo”: romantismos e feminização
Serviço social tem haver com ajudar a comunidade... Tem haver com ajudar os outros, trabalhar com pessoas carentes. Fazer sua parte no social... Eu gosto de ajudar as pessoas. E eu já trabalho com pessoas lá na cooperativa. Então acho que vai dar certo!
Nas duas trajetórias anteriores, de Líliam157 e de Maria158, pude suspeitar que
a feminização das profissões também pudesse ser parte dos processos sociais
presentes no romantismo que a expressa, antes examinado. Nesta terceira
trajetória, evidencia-se seu projeto profissional não só valoriza a esfera dos cuidados
para com o próximo, mas também a ideia de missão, traduzida como modo de fazer
157 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público. 158 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público
164
o bem e de poder ajudar o próximo. A fala de Patiane,159 que tentará vestibular para
serviço social a indica: “Eu vou estar não só ajudando as crianças, como também a
população em geral. Estar ajudando o ser humano a sair dessa miséria que o mundo
vive. Contribuindo, de certa forma, para melhorar a vida”. Sentidos religiosos
também surgem em sua fala. O que me permite pensar nessa missão como parte do
romantismo messiânico, algo que constitui o campo de experiências dessa
entrevistada. Não querer “muito sucesso” – no sentido de “dar-se bem na vida” – por
outro lado, parece estar ancorada em preceitos cristãos, que associam sucesso à
ambição e, em consequência, ao pecado. Mecanismos que limitam suas
possibilidades de sonho e desejo e que, portanto, se inscrevem em suas
sensibilidades estão no diálogo abaixo: Pesquisadora: O que você espera para seu futuro? Entrevistada: Espero sucesso. Quer dizer... Muito sucesso não! Pesquisadora: Como assim? Entrevistada: Deixe-me ver... Porque muito sucesso sobe a cabeça e você esquece do grande objetivo de escolher uma profissão, que é ajudar as pessoas. Espero um pouco só de sucesso... Espero que nessa profissão eu possa ajudar as pessoas e me ajudar também... Porque de certa maneira me ajuda.
O romantismo messiânico é discutido por Löwy nas idéias de pensadores
marxistas, concedendo à obra de Walter Benjamin, um especial destaque. Retira
das teses desse autor, matéria para associar as idéias sobre o conceito de história
às origens desse autor. Assim, o messianismo judaico e as utopias revolucionárias e
libertárias dialeticamente se interseccionam e se mantêm em tensão. Além disso,
destaca Löwy (1990), seu messianismo160, marcado pela fonte romântica alemã e
judaica, carregaria traços “apocalípticos” “catastróficos” e “destruidores", nela
recolhidos. A redenção messiânica, nesse sentido, é preparada pela catástrofe e
não por um progresso ou desenvolvimento. As ações humanas fazem-se, portanto,
em virtude do medo de corromper a ordem divina. É fato que Patiane,161 atualiza
sentidos civilizatórios que persistem na longa duração e estão nas sociedades
contemporâneas. A ideia de conquista do “sucesso na esfera profissional” está em
negociação com outras tradições e valores e, arrisco-me a afirmar, expressam
sentidos civilizadores do romantismo. Assim, manifestações como “não deixar o
159 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público. 160 Embora o viés messiânico não seja o único na obra do Benjamin ele se refere a um aspecto que se encontra em constante tensão com o materialismo marxista do autor. 161 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público.
165
sucesso subir à cabeça”, “não esquecer da ajuda ao próximo” levaram-me a
perceber que os romantismos prosseguem, redefinem-se e chegam, de forma
rizomática aos nossos tempos.
Há muito por conhecer dos códigos políticos em circulação, que organizam essa energia política, passada de pessoa para pessoa. Ricas formulações teóricas de M. Löwy sobre teses de W. Benjamin (2005) e sobre aproximações entre a doutrina cristã e o marxismo e o conceito weberiano de “afinidade eletiva” (2007) podem-nos apoiar em investigações sobre o “romantismo” feminista (COSTA, 2009b, 21).
Romantismos atualizam-se nessa sua opção por serviço social: “Minha colega
do serviço social, lá da Cooperativa, disse que é muito bonito! A auto-estima vai lá
em cima quando você ajuda uma pessoa, dá uma palavra de conforto... Você poder
ajudar, pelo menos um pouquinho, na vida das pessoas”. As experiências vividas
por Patiane refletem movimentos de longa duração que se atualizam sobre o lugar a
ser ocupado pelas mulheres na hierarquia social: trabalhar não por dinheiro, mas em
função de uma nobre missão. Os sentidos civilizadores do “fazer o bem ao próximo”
e de “contribuir para um mundo melhor”, evidenciam-se em suas razões e
sentimentos.
Simões (2007), também mostra que entre os estudantes que optam por
serviço social encontram-se como principais motivações: “A ideia de fazer o bem, de
ajuda ao próximo, da busca da justiça social, o ideal do “bom samaritano” (p. 176).
Além disso, também verifica como fator motivacional para o ingresso no serviço
social, a identidade que o curso possui com valores religiosos (SIMÕES, 2005).
Afirma:
Pode-se observar também que os vestibulandos/as não abandonam os valores religiosos adquiridos através de suas famílias e de suas socializações antes do ingresso na universidade. Ao contrário, eles são extremamente participativos nas instituições religiosas. Os valores políticos, adquiridos durante a formação profissional, não afetam nem as crenças religiosas dos vestibulandos/as (pois não há um percentual menor de religiosos nos últimos períodos do que nos primeiros), assim como não tornam os vestibulandos/as mais participativos (SIMÕES, 2007, p. 188).
Além da característica religiosa e, em vinculação com ela, a profissão está
associada ao trabalho voluntário. Uma outra característica contemporânea do
serviço social é a composição quase exclusiva de mulheres provenientes de classes
sociais baixas e com pouca cultura letrada. O ethos profissional “relaciona, assim,
gênero (feminino), religião e voluntariado” (SIMÕES, 2007, p. 188). Outros indícios
do romantismo podem ser identificados nos dados trazidos por Simões (2007). Os
166
vestibulandos/as de serviço social apresentam um “espírito cívico religioso” e “não
cívico político” que revela sentidos como solidariedade social, cidadania e
obediência ao governo: “os fundamentos morais para a ação social dos
vestibulandos/as remetem, privilegiadamente, à formação cristã que os discentes
obtiveram em suas socializações primárias” (p. 188).
Esses sentidos, expressos na cultura, fazem parte do campo de experiências
de Patiane,162 e marcam sua trajetória. Razões e sentimentos constroem-se em
função desses sentidos e, a partir daí, seu projeto profissional. Explica de onde
surgiu sua vontade de fazer esse curso:
Até o início do ano, eu não tinha decidido o que eu ia fazer. Mas aí eu tenho umas cinco colegas que fazem serviço social, já trabalham com isso e eu comecei a observar como que é... Tem uma na cooperativa onde eu trabalho. Eu trabalho na cooperativa dos bens, em São Benedito, e lá eu percebi... Ela estava falando que tinha vários convênios com a gente sobre: como a gente deve escolher o futuro da gente, decidir sobre a carreira. Aí eu pensei: “Ah! Eu vou tentar isso”. Aí quando eu vim na UFES falei com um colega. Aí ele me trouxe uma revista, falando sobre era o serviço social... Que tem a ver em ajudar a comunidade... Tem a ver com trabalhar com pessoas... E eu já trabalho com pessoas lá na cooperativa, aí eu pensei assim: “ah, acho que vai dar certo!” Eu sou meio brincalhona assim... Gosto de ajudar as pessoas... Então acho que vai dar certo.
A ideia de uma profissão para a qual as mulheres estão “naturalmente
preparadas”, também faz parte da missão civilizadora que move os projetos
profissionais femininos do início do século passado. Essa ideia também se atualiza
com a institucionalização do serviço social. A atuação nas desigualdades sociais e
econômicas e o trabalho contra a exclusão social já está colocado no ideário social,
como atividade feminina e também marca a criação da primeira escola de serviço
social, em 1936. É fato que desde o seu início, o serviço social, no Brasil, esteve
atrelado às práticas assistenciais de organizações caritativas de cunho religioso,
inicialmente, realizadas pelas damas de caridade: mulheres de alto poder aquisitivo,
em geral, as primeiras-damas.
Mas, a emergência da profissão se dá a partir dos acirramentos do conflito de
classes, a partir da década de 30, com o crescimento econômico brasileiro pautado
nas relações capitalistas. Para mediar esses conflitos, as ações caritativas eram
insuficientes, visto o estado de pobreza da população. As lutas reinvindicatórias, por
melhores condições, indicam que o estado precisa atuar nessa questão social. As
políticas repressoras, usadas em tempos anteriores, poderiam acirrar ainda mais
162 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público.
167
esses conflitos. Segundo Russo, Cisne, Bretas (2008, p. 6), o Estado apropriou-se
da assistência de duas formas:
[...] de um lado, buscando enfrentar politicamente a questão social e, de outro, utilizando-a como mecanismo político para dar conta das tensões sociais advindas com a crescente pauperização da força de trabalho. De uma forma ou de outra, está por trás das ações do Estado a manutenção do status quo e de uma sociabilidade assentada na alienação e fragmentação das organizações coletivas.
Novamente, as mulheres são convocadas pelo governo, mas movidas por
ideais da época, a ocupar os bancos das faculdades. A emergência da Legião
Brasileira de Assistência (LBA), em 1942, também contribui para a associação do
ideal de caridade ao feminino e, por sua vez, à assistência. O objetivo dessa
instituição era prover as necessidades das famílias, nas quais os chefes haviam
partido para guerra, num momento em que o governo Getúlio Vargas colocava o
Brasil na Segunda Guerra Mundial, como destaca Iamamoto e Carvalho (1982).
Essa instituição ficara a cargo da primeira dama Darcy Vargas, já que em uma
sociedade patriarcal, fica sob a responsabilidade da mulher cuidar, educar, servir e
acolher. A LBA, embora garantisse certa circulação da mulher na esfera pública,
também levava características do espaço privado a esse. Uma espécie de extensão
do lar, em que o cuidado com o outro e o amor incondicional é tarefa das mulheres.
É claro que, como não se trata de um movimento linear, houve também
movimentos como o de Mary Richmod, como destaca Aperibense e Barreira (2008),
que buscam diferenciar a assistência social que era praticada pelas associações de
caridade. Seu entendimento é de que o trabalho do assistente social significa não
prestar ajuda material aos pobres, mas trabalhar com os indivíduos com vista a sua
inserção com o meio social. O objetivo passa a se estudar com essa inserção do
indivíduo e descobrir uma melhor forma de ajudá-lo a enfrentar seus problemas.
Além de as representações construídas sobre o serviço social ter em
impactos sobre a construção de seu projeto profissional, Patiane163 localiza indícios
de que ele encontra orientação nas interseções das relações de classe, raça e
gênero, por ela vividas. A consciência de sua inserção precária, ao sistema
educacional, e de um deficitário legado cultural parecem dar direção aos seus
projetos. Conta que quando anunciou na cooperativa que tentaria serviço social, as
meninas nem acreditaram: “Elas pensavam que eu fosse fazer humanas. Mas aí eu
163 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público.
168
disse: não, eu gosto de mexer com gente, sempre gostei.” E continua a explicação
ao ser indagada à respeito do serviço social estar ou não na área de humanas:
“Para falar a verdade, não sei bem... Acho que não. Humanas é artes, essas coisas”.
No tom e nos gestos que usa, transmite um sentimento de menosprezo pela área de
humanas. Faz isso, como se quisesse diferenciar/valorizar seu projeto profissional,
indicando-o como algo que a desloca do lugar comum. O serviço social, para ela,
representa oportunidade de crescimento e valorização social. Hoje, ganha menos de
um salário na cooperativa, e como diz: “Serviço social pode ajudar a conseguir algo
melhor”.
A identificação, portanto, entre profissionais de serviço social com caridade,
filantropia, ajuda ou voluntariado contribui para que romantismos atualizem-se nos
tempos que correm, gravados em opções por essa e outras carreiras. O contato com
essas três trajetórias, mostra que, não de maneira coincidente, a profissionalização
feminina, além de expressar diferenças - na medida em que refundam significados
acerca do feminino - , revela, inclusive, interseções com as posições de classes. No
espaço investigado do cursinho privado, dos duzentos e quarenta vestibulandos/as
que responderam ao questionário de identificação, ninguém manifestou o interesse
em fazer qualquer um desses três cursos mais feminizados escolhidos: serviço
social, pedagogia e enfermagem. Ao passo que, no outro, essas são as opções mais
disputadas, sobretudo, pelas mulheres. Nessa medida, é difícil afirmar que certas
profissões são desprestigiadas, porque concentram um grande contingente de
mulheres. Essas experiências sugerem que são procuradas pelas mulheres por
serem menos concorridas. É bem verdade que esse não é o ponto principal desta
discussão. O que interessa é compreender as razões e sentimentos das mulheres
que optam por essas profissões.
Não se pode negar que a naturalização de papéis vinculados ao feminino, é
reforçada por algumas profissões na área da saúde, educação e de cuidados. Dayse
de Paula Silva (2009) observa que “Mulheres, contratadas para essas atividades
[cuidados e educação], transformam a subordinação na esfera doméstica para uma
subordinação no mercado de trabalho e dependência do estado” (p. 34). Aliás, as
características e papéis sociais, tidos como “pertencentes à natureza feminina”
expandiram-se do espaço doméstico para as profissões ditas femininas, como
serviço social, pedagogia e enfermagem.
169
Mas, os movimentos femininos não são lineares e nem apontam para uma
única direção, como antes afirmado. Isso significa que outros movimentos surgem,
retrocedem, irrompem em várias manifestações, nem sempre percebidas. Assim,
tendo enfocado razões e sentimentos das mulheres para a opção por algumas
profissões feminizadas, trago também a análise de práticas e representações de
homens e mulheres, que reforçam a esfera doméstica como responsabilidade
feminina, optando por profissões que lhes assegure uma maior flexibilidade de
tempo e de regime de trabalho. Admito que, culturalmente, esse é um forte
componente dos projetos profissionais femininos. Daí, admitir com Kristeva que esse
é um marcante movimento de busca no sentido de “reconciliar o tempo maternal
(cíclico e monumental) com o linear (político e histórico)” .
3.3 Costumes e Habitus no campo do gênero: continuidades e rupturas
Ao estudar a transformação dos costumes de fins da Idade Média ao início da
civilização moderna, Elias (1990), busca compreender a transformação dos
comportamentos e das necessidades de controle e proibições que se estabelecem
para o convívio social. O autor descobre estreitos vínculos entre processos
civilizadores individuais e processos civilizadores sociais, sugerindo a superação da
dicotomia indivíduo e sociedade. Bourdieu, na mesma perspectiva, trata do habitus
como um processo de interiorização das estruturas sociais, mas que não pertence
ao domínio apenas da individualidade. O habitus se refere a um “conhecimento
adquirido e também um haver, um capital [...] o habitus, a hexis, indica a disposição
incorporada, quase postural [...].” (BOURDIEU, 2007, p. 61). Esta estrutura entra em
movimento, no interior do indivíduo, sendo resultado da incorporação da estrutura
social e da posição social de origem do indivíduo, e, assim, precisa ajustar-se a
situações diferentes daquelas no qual foi formado. A posição que cada sujeito ocupa
na estrutura de relações objetivas, propicia vivências, então, que consolidam seu
habitus.
As contribuições de Elias e Bourdieu foram úteis para a compreensão de
como se forjam razões e sentimentos nas experiências investigadas. As
sensibilidades, entendidas como formas dos indivíduos representarem a realidade
170
por meio de razões e sentimentos, vinculam-se ao habitus e aos costumes que
orientam comportamentos humanos num dado tempo histórico. A formação das
sensibilidades se dá, portanto, no campo das experiências e, muitas vezes, as
experiências entram em contradição com as expectativas que se desenham num
horizonte. Instaura-se, então, a possibilidade de mudança. Processos de negociação
com a realidade são constantes, e ora se fazem por lutas, conflitos e disputas, e ora
por concessões e permissividades. Esses processos ocorrem num campo múltiplo, o
campo de possibilidades que “[...] trata do que é dado com as alternativas
construídas do processo sócio-histórico e com o potencial interpretativo do mundo
da cultura” (VELHO, 1999, p. 28). É nesse campo que se forjam as sensibilidades,
ou seja, razões e sentimentos que movem o habitus e os costumes numa certa
direção. São os sentidos civilizadores de que nos fala Elias (1990). Esse campo de
possibilidades é avaliado, levando em conta seus sentidos civilizadores; as
trajetórias dos indivíduos estudados constroem seus projetos profissionais com
esses sentidos. Vejo a necessidade, então, de explorar os costumes e habitus em
suas rupturas e continuidades os quais orientam o comportamento dos/as
vestibulandos/as.
3.3.1 Desigualdades, Práticas domésticas e usos dos tempos
Nas trajetórias analisadas, os projetos profissionais se fazem em função dos
sentidos civilizadores construídos no campo de experiência humana. Há condições
específicas desse campo, que são marcas constitutivas das disposições mais ou
menos duráveis para as ações desenvolvidas pelas entrevistadas. A divisão do
trabalho doméstico e a organização do tempo de homens e mulheres são condições
construídas na longa duração histórica das civilizações modernas, e que, na maioria
das vezes, emerge como prática atualizando habitus e costumes dessa civilização.
Lassance e Magalhães (1997), afirmam que, em muitos casos, a vida profissional
ocupa um lugar secundário na vida das mulheres, visto que frente a dificuldades em
conciliar os trabalhos domésticos e profissionais, a opção mais frequente é a
redução da carga horária e até interrupção da carreira de mulheres.
171
Colocar a atividade profissional, em segundo plano, é perceptível na trajetória
de Maria164. Sua principal preocupação é com os cuidados da casa. O uso
diferenciado do tempo e a divisão social de tarefas é um exemplo disso: “Às vezes
vou até as duas horas da manhã estudando. Chego em casa à noite, adianto todo o
almoço, preparo a marmita pro [sic] meu marido, faço as coisas que tenho pra fazer
e fico no computador até as duas horas da manhã estudando”. Os trabalhos
domésticos implicam na diminuição do tempo de dedicação aos estudos. Na
descrição de sua rotina, é possível perceber que eles são tomados como trabalho de
sua responsabilidade:
A rotina é assim: nós levantamos sete e meia. Ele sai, e eu levanto, preparo o café, lavo umas roupas de manhã, arrumo a casa, aí umas nove meia eu estou chegando na loja para ajudar ele. Aí quatro e meia eu saio e ele fecha ás seis horas. Aí eu chego em casa e termino de arrumar as coisas e venho para o curso. Dez e quinze eu saio da escola, ele já está dormindo, eu chego em casa, adianto o almoço do outro dia e depois vou estudar. Ele faz um lanche, aí pelo menos a cozinha ele limpa. No início ele não fazia nem isso, mas depois fui ficando emburrada e ele foi percebendo. Agora ele limpa a cozinha.
Mantém-se a divisão tradicional de papéis, pois a maior responsabilidade da
mulher é com a casa, e a do homem com o trabalho que gera renda. Além disso,
Maria atribui também grande importância ao casamento e de cumprir com seu papel
de esposa e “dona do lar”. Mas, o curioso é que só fala disso quando desligo o
gravador. Será uma vergonha admiti-lo em público? Estaria revelando certa pressão
que as mulheres sofrem, na atualidade, em ter que conquistar a esfera pública e
abdicar do espaço doméstico, ainda que a contragosto? Creio que esses dados
possam ser melhores investigados no futuro. De qualquer forma, o papel de mulher,
dona do lar, novamente se afirma.
As experiências de Liliam,165 adensam essa percepção. Ela confere grande
importância ao matrimônio. “Casar-se” ocupa o centro de suas atenções, e a
profissionalização vem sempre em segundo plano. Logo que terminou o segundo
grau seu principal objetivo era se casar. Trabalhava dois turnos para comprar,
construir uma casa e mobiliá-la com o namorado anterior. Não pensava muito em
estudar. A intenção era trabalhar e “ajudar meu marido”. Aqui, observo que o sentido
da palavra “ajuda” reforça os papéis sociais masculinos e femininos, à mulher cabe
os cuidados com a casa, e ao homem “o sustento do lar”. Seus planos só mudam
164 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público 165 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
172
quando, próximo ao casamento, o namorado envolve-se e com outra mulher e ela
fica, então, desorientada: “Eu não sabia o que fazer. Foram seis anos preparando-
me para casar e construir um lar”. Desse momento em diante, começou a se
preocupar com o seu futuro profissional. Observei que a valorização do matrimônio é
reforçada pela desvalorização da solteirice. Afirma: “não ficar para titia”. Algo que se
constrói como um valor para muitas mulheres de seu tempo. Em outras trajetórias,
esse sentido atualiza-se como se casamento conferisse status e garantisse a
valorização feminina.
As experiências marcam percepções e conhecimentos sobre a vida social,
expressas em representações específicas. A percepção de Patiane,166 sobre
diferença x equidade de gênero, parece comportar elementos de segunda onda da
geração feminista. Constrói a partir de suas experiências, e dos sentidos que dispõe
em seu campo de experiências, no caso, reforçando a superioridade feminina:
Os homens estão todos preguiçosos. Não querem fazer faculdade nem nada. Muitos deles não querem estar em igualdade com as mulheres. Tem muitos homens que pensam assim, vou fazer um curso técnico e parar. Eles falam que acham chato estudar. Eu falo para eles: “vocês vão sentir falta. Estou falando que vocês vão sentir falta”. Eu fiquei dois anos sem estudar e senti falta. E eles falam: “Você está doida” (risos). Quando eu terminei o Ensino Médio e recebi o meu diploma pensei: “Nossa eu pensei que não ia conseguir!”. Por isso, as mulheres conseguem coisas melhores, são mais esforçadas!
Os sentidos civilizadores que marcam a cultura de um tempo, como o
indicado, variam e nem mesmo são interpretados da mesma forma pelos sujeitos
que o vivem. É aqui, que vejo a ruptura com visões deterministas sobre a relação
entre o indivíduo e sociedade. Os indivíduos, com seu potencial interpretativo, dão
novos sentidos aos aspectos da vida social de acordo com as suas experiências.
Maria,167 entende que as mulheres assumem papéis antes considerados masculinos
porque precisam trabalhar a qualquer custo: “eu acho que hoje em dia tudo está tão
difícil, que a mulher acaba pegando trabalhos que antes eram prioridades de
homens. Por exemplo, eu conheço uma mulher que está trabalhando na construção
civil...” Em sua experiência, as hierarquias de gênero aparecem. Não percebe esse
trabalho feminino, numa área masculina, como conquista, mas como uma falta de
opção diante das dificuldades do mercado de trabalho. Em sua fala, foi possível
166 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público. 167 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público
173
observar certo desdém por essa mulher, sua amiga. Era como se a visse como
superior a ela, por não precisar desse tipo de trabalho, e por ter um marido que a
sustenta. Sente-se diferente da amiga. Esses sentidos parecem ligar-se a
mecanismos, por vezes inconscientes, pelos quais os indivíduos buscam,
desesperadamente, significar suas ações no mundo e dirigi-las por meio de
caminhos que os levem a reduzir suas penas e a aumentar o prazer. Tomo de
empréstimo aqui, a ideia freudiana de que as pulsões humanas são forças motrizes
do comportamento humano que buscam aumentar o prazer e diminuir a dor
(FREUD, 1996a).
O discurso, em foco, também possibilitou pensar nos dispositivos sociais
colocados pelo poder simbólico (BOURDIEU, 2005, 1996, 2007), ao reproduzir as
hierarquias e os lugares a serem ocupados por homens e mulheres. O poder
simbólico é uma forma de poder silencioso, exercido através das palavras: tem por
base a “crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia”
(BOURDIEU, 2007, p. 15). Ele age sobre os corpos, modelando formas de ser,
pensar e agir em sociedade. Para compreender a divisão de papéis e os usos dos
tempos masculino e feminino, Bourdieu (2005), chama a atenção para a dominação
masculina que se faz, ao mesmo tempo, a partir das estruturas inscritas na
objetividade quanto na subjetividade sob a forma do uso dos corpos. A dominação
masculina diz Bourdieu (2005, p. 31) é uma forma de violência simbólica, “o que faz
com que não seja fácil livrar-se dela”, a dominação masculina existe “objetivamente
sob forma de divisões objetivas e sob forma de estruturas mentais que organizam a
percepção dessas divisões objetivas”.
As formas de percepção e de conhecimento próprios à Maria168, na sua
narrativa sobre o trabalho masculino exercido por sua amiga, parecem indicar
significados de censura a tudo aquilo que traduz a quebra de uma norma de conduta
feminina na vida social. Liliam169, por outro lado, nas práticas identificadas como de
ruptura, revela experiências que a levam a diferentes formas de percepção e
conhecimento sobre essas mesmas normas. No caso, por ganhar mais do que o
marido, acha que muitas mulheres estão em condição de desigualdade porque
querem:
168 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público. 169 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
174
Eu acho que ainda há um retardamento da mulher no mercado de trabalho. A mulher precisa ser mais ousada, ela precisa acreditar mais nela mesmo, porque a gente foi tão submissa pra tudo, aquela questão de que a mulher foi feita pra “esquentar barriga no fogão, cuidar dos filhos, esfriar no tanque, cuidar da casa”, isso está impregnado na nossa educação. E hoje quando a gente pensa em alguma coisa, em subir, a gente já vem logo com aquele conceito na cabeça “nossa, eu estou recebendo mais que meu marido, como é que ele vai reagir a isso? Como é que ele vai se portar mediante eu estar recebendo mais que ele? Eu ser uma profissional melhor que ele? Aí muitas mulheres acabam desistindo dessa situação e acabam estagnadas, por não ter força de vontade e não acreditar nelas mesmo.
Mas, outros impeditivos, talvez menos conscientes, também se manifestam nas
experiências dessa mulher. Pode-se observar que, por mais que trabalhe e ganhe
mais do que o marido, a divisão desigual de tarefas domésticas persiste em seu
cotidiano. Afirma “ele ajuda em tudo”, o que já revela que toma para si a
responsabilidade do serviço do qual ele apenas é colaborador: “Ele varre a casa,
passa pano, lava vasilha, só não lava roupa. Ele faz arroz... Igual agora, que eu
trabalho o dia inteiro, aí chego a casa onze e quinze, onze e vinte... aí ele cozinha
um macarrão deixa na água para mim. Eu sempre deixo um bilhete pra [sic] ele faz
isso, faz aquilo e ele faz”. Reforça: “Ele é meio desligado. Se não deixar os bilhetes
ele esquece”. No sábado, ela dá uma “faxina grande” e a casa fica limpa a semana
toda, “ele ajuda a manter”. O trabalho doméstico, no final das contas, é de sua
responsabilidade. Um aspecto da longa duração que ressurge no subterrâneo, como
um rizoma.
Até mesmo em comparações internacionais, Rizavi e Sofer (2008), indicam
que as mulheres ocupam-se do trabalho doméstico numa proporção que varia de
60% a dois terços. A Suécia, a Noruega, a Bélgica e a Finlândia classificam-se entre
os países mais igualitários, enquanto a França, como menos igualitário. Além disso,
também é desigual o tipo de tarefas a que se dedicam nesse tempo. As atividades
femininas estão vinculadas à limpeza da roupa e da casa, enquanto as masculinas a
pequenos concertos ou manutenção do carro, entre outros. Também foi constatado,
em nível internacional, que as mulheres gastam mais tempo com os filhos, mesmo
que possuam atividade remunerada. O que fica evidente é que as mulheres dedicam
mais tempo ao trabalho doméstico, enquanto que os homens dedicam mais tempo à
atividade remunerada.
Há mais diferenças por se destacar no uso do tempo de homens e mulheres
no cenário mundial. As estatísticas européias mostram que os homens trabalham
em média 39,8 horas semanais, ao passo que as mulheres 32,8 horas (HENAU;
PUECH, 2008). Além disso, o trabalho em tempo parcial é mais comum entre as
175
mulheres, o que pode estar vinculado ao tempo dedicado às obrigações familiares
(HENAU; PUECH, 2008). Outra diferença no uso dos tempos de homens e
mulheres, encontrada nessa pesquisa européia, é que as mulheres executivas têm
menos autonomia na gestão do tempo de seu trabalho do que os homens
executivos, embora, é claro, essa autonomia seja, significativamente, maior que a
dos não executivos. Em profissões feminizadas, o grau de autonomia e decisão
sobre o horário de trabalho é também mais elevada, o que pode, na opinião de
Henau e Puech (2008, p. 218) “confirmar as hipóteses de profissões ditas family-
friendly, com horários de trabalho conciliáveis e taxa elevada de tempo parcial”.
Apesar de as mulheres terem menos tempo de dedicação ao mercado de trabalho,
em compensação, dedicam 131 minutos a mais que os homens em tarefas
domésticas, ultrapassando o tempo de trabalho total dos homens, e tendo, portanto,
menos tempo para atividades destinadas a lazer, cuidados e ao próprio descanso.
Na França, de acordo com Hirata e Kergoat (2008), tem-se observado o modelo de
“delegação” das tarefas domésticas às mulheres de classes baixas, visto a
repartição desigual do trabalho doméstico entre os cônjuges, mesmo quando ambos
trabalham fora. No Brasil, a delegação de tarefas domésticas às empregadas, babás
e faxineiras também é comum nas classes mais favorecidas, nas médias e,
inclusive, nas populares.
Patiane,170 não tem mais uma casa para cuidar. Separou-se do marido e mora
com a irmã – aliás, as mulheres também recorrem ao matrimônio para sair de casa:
“Eu não gostava muito dele. Mas ele gostava de mim. Eu queria mesmo era sair de
casa, meus pais me cobravam muito...” – Apesar disso, participa da rede de
cuidados com os filhos ao tomar conta da filha da irmã. Um trabalho tipicamente
feminino, que toma grande parte do seu tempo e que poderia ser dedicado a uma
formação. Um trabalho invisível, considerado parte da natureza feminina mostra
como o tempo das mulheres para a dedicação aos projetos profissionais é reduzida.
A presença de filhos pequenos é considerada, inclusive, o fator que mais atrapalha a
atividade produtiva feminina, visto que o cuidado com as crianças é uma tarefa que
consome muito tempo e energia das mulheres. Bruschini, Ricoldi e Mercado (2008),
destacam que, em 2005, as mães cujos filhos eram menores de 2 anos, dedicam 35
horas semanais para a atividade reprodutiva171, 32 horas semanais quando os filhos
170 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público.
176
possuem de 2 a 4 anos e 27 horas é o que gasta a população feminina, em geral,
com esse tipo de atividade. Destacam, também, que as mães com filhos menores de
2 anos de idade, sobrecarregadas na esfera produtiva, apresentam taxas mais
baixas de atividade produtiva.
O discurso de Isac, homem, negro, 29 anos, estudante do curso pré-vestibular
público sobre a divisão de tarefas e uso dos tempos domésticos e profissionais
reforça essa realidade: “no pensamento do homem é o seguinte, fui criado para
trabalhar fora, para garantir o sustento e tal. Então, a criação que nós tivemos é
essa, de que a mulher tem que cuidar da casa, mesmo que não goste de fazer as
coisas de casa”. Luciano,172 evidencia semelhantes significados, quando pergunto
sobre a divisão de tarefas com os filhos que diz desejar ter, e afirma que pagará
uma babá. Um outro processo social, de longa duração histórica, no caso brasileiro,
acentua-se em nosso tempo: a transferência dos cuidados de uma mulher para uma
outra mulher de classe mais baixa ou de mesma classe, no caso de apoios familiar,
com e sem remuneração. Insisto em perguntar: “Mas, se por acaso não conseguirem
pagar uma babá?” Me responde: “Minha mulher para de trabalhar por um tempo
para cuidar das crianças!”. Sua expressão revela o tom de obviedade da expressão.
Continuo, então, na tentativa de compreender sua percepção: “Se acaso sua mulher
estiver num emprego mais estável, e com maior rendimento do que o seu, você
dedicaria mais tempo aos cuidados com os filhos?”. Responde: “Aí eu acho que é
sacanagem. Eu não me imagino saindo do meu emprego para cuidar dos meus
filhos. Viver assim, dependendo do dinheiro de uma mulher, acho que seria meio
humilhante!” Como afirma Bourdieu (1986, p. 29), “existe uma certa constância das
estruturas simbólicas sobre as quais repousam nossa representação da divisão do
trabalho entre os sexos”. Além disso, vestígios da dominação masculina fazem-se
presentes, como afirma Bourdieu “[...] o homem não pode, sem derrogação,
rebaixar-se a realizar certas tarefas socialmente designadas como inferiores (entre
outras razões porque está excluída a ideia de que possa realizá-las)” (2005, p. 75).
Enfim, tentativas de reconciliar o tempo maternal, cíclico e monumental, com
o linear que é político e histórico, falam desses dilemas femininos, como afirma
171 Trabalho doméstico, trabalho reprodutivo, trabalho não remunerado, trabalho na unidade doméstica tem sido alguns dos termos utilizados para identificar esse trabalho dedicado aos cuidados com a casa e com os filhos. 172 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
177
Costa (2009b, p. 5). E são parte das sensibilidades dos entrevistados. Sentimentos
que movem as mulheres em direção à futuras conquistas de direitos continuam
levando mulheres à tentativas de associar esses dois tempos na atual conjuntura
(COSTA, 2008), ou seja, “nesse futuro passado, de enormes insatisfações e
sofrimentos, verificados em dilemas e conflitos, reiterados intermitentemente e de
muitas formas, postos por saídas das mulheres para o espaço público diante das
obrigações domésticas” (COSTA, 2009b, p. 6).
O fenômeno do “teto de vidro” reflete bem esses dilemas. Descrito por vários
autores, Marry (2008), Salas e Leite (2008), referem-se ao desaparecimento das
mulheres à medida que se avança em direção às altas esferas do poder, de
prestígio e remunerações. A opção por certo limite de crescimento é das próprias
mulheres. Algumas explicações surgem para a “auto-exclusão” feminina de carreiras
mais promissoras. A primeira articula-se com a interiorização de normas e valores
vinculados ao seu gênero: “Seu hábito de modéstia, ou mesmo de autodepreciação
e de atenção ao outro, as afastariam das disputas acadêmicas e das disputas de
poder” (MARRY, 2008, p. 405). As representações baseadas nas “características
femininas” de submissão, docilidade e atenção aos outros, também repercutem, de
modo a se mostrarem contraditórios com as características necessárias para se
empenhar em disputas profissionais. Além disso, outra explicação é que as
mulheres tem um menor engajamento em âmbitos profissionais, cuja concorrência
com os homens é acirrada, devido às restrições familiares que pesam sobre elas.
Elas buscam “evitar o custo psíquico” gasto para superar os obstáculos, advindos da
necessidade de ser aceitas no mundo dominado por homens.
Como afirma Costa (2004), há muitas desigualdades por desvendar nas
práticas domésticas cotidianas. São, sobretudo, as representações coletivas sobre o
papel das mulheres que formatam as redes de proteção, de dependências e de
relações sociais que colocam limites às conquistas femininas. Isso é marca da
“marcha por direitos sociais”; ela se dá com a saída das mulheres para o campo
político. São saídas que, historicamente, colocam “em risco práticas fundamentais
ao conforto da vida, à reprodução, por muitas razões, naturalizadas como femininas”
(p. 27). Mas parafraseando Costa (2004), muito do poder social das mulheres é
extraído do próprio mundo da casa, no qual, obtém algumas compensações. Esse
poder, “em meio à competições e cumplicidades, faz mudar a ordem das coisas, ora
se faz” (p. 27).
178
3.3.2 Invenção de novas tradições
A feminização das profissões pode ser entendida como partes de movimentos
de longa duração histórica, dentre muitos que marcam as trajetórias femininas. Mas,
as experiências inscritas, no tempo presente, apontam para a invenção de novas
tradições. As experiências humanas se fazem rompendo tradições, costumes,
inventando e mantendo outros. Assim sentidos civilizadores (ELIAS, 1990), orientam
ações e expõem novas tendências. Há dois outros movimentos com os quais
deparei nas interseções entre projetos profissionais e relações de gênero. O primeiro
deles diz respeito às mulheres estarem se movimentando profissionalmente para
áreas antes consideradas masculinas como medicina, direito, engenharia,
odontologia, entre outras. O segundo, diz respeito ao direcionamento de homens
negros e pobres para tradicionais nichos feminizados como serviço social,
pedagogia, biblioteconomia, arquivologia, entre outros. Os projetos profissionais
situam um campo de experiência que desvela muito das razões e sentimentos, que
levam os entrevistados a buscarem caminhos definidos em suas trajetórias
individuais rumo a um horizonte de expectativas.
Mulheres e homens inventam tradições. Rompem com antigas racionalidades
de divisão do trabalho e usos dos tempos, reafirmam outras. Mas, constroem suas
experiências com horizontes de expectativas. Como afirma Costa (2010), não há
lugar nem tempo histórico em que não tenha ocorrido invenção de tradições.
Parafraseando Hobsbawm, Costa (p. 3), afirma que a tradição é “um certo conjunto
de práticas, de natureza ritual ou simbólica, que, em geral, visa afirmar certos
valores e parece expressar uma continuidade em relação ao passado”. O campo de
experiências, portanto, expressa razões e sentimentos que organizam e traduzem
rumos civilizatórios. Trago, então, dois movimentos que parecem apontar para
rupturas de antigas tradições e para a emergência de novas. Possuem uma dada
direção: homens chegam a espaços profissionais, considerados femininos, e
mulheres aos considerados masculinos.
179
3.3.2.1 Homens e espaços antes feminizados
Diversos estudos têm mostrado que diferenças nas representações e nos
papéis sociais, desempenhados por homens e mulheres acabam encaminhando
homens e mulheres para profissões diferenciadas por sexo. Como afirma Gomes,
Nascimento e Araújo (2007), a diferença entre os gêneros demarca certas
especificidades: homem é “forte”, “agressivo”, “tem iniciativa”; mulher é “suave”,
“sensível” e “doce”. Encaminham-se, assim, para profissões adequadas a seus
perfis. Ainda são persistentes demarcações de fronteiras em relação às profissões
masculinas e femininas. Em geral, homens encaminham-se para as ciências exatas
e mulheres para as ciências humanas e áreas ligadas à saúde. Razões e
sentimentos dos entrevistados, para a opção por um curso superior, mostram um
pouco dessas persistências, com base nas diferenças de sexo. Guilherme, branco,
19 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público afirma que irá tentar o
curso de Formação de Oficiais da Aeronáutica:
Bom, escolhi por afinidade. Eu adoro muito essa questão do militarismo, do patriotismo, a seriedade dos militares. Além de ser uma carreira estável, porque você não pode ser demitido, o salário relativamente é bom... Você vai subindo no cargo por tempo de trabalho, não precisa fazer concurso, nem nada. Por tempo de serviço, você vai ganhando patente. Dá para ter segurança para manter uma família. E é algo que eu gosto mesmo. Gosto de aviões, eu gosto de jogos de computadores e eles soam jogos de estratégias de guerras, então é mais por afinidade mesmo, eu gosto desse meio.
Estão nessas manifestações o gosto pelo ganho seguro, pela estabilidade ao
longo da vida, pelos jogos de estratégias militares, por um conjunto de sinais de
virilidade do militarismo, tudo muito característico do ambiente, “tipicamente”,
masculino e, em tempos inseguros, a certeza em cumprir a tradicional função de
sustento do lar. Observo, numa outra narrativa, de um candidato ao curso de
medicina, área da saúde, que preocupações com cuidados e ajuda ao próximo,
presentes nas falas das mulheres, não aparecem nem conferem importância dentre
razões e sentimentos que os movem:
Desde novinho eu sempre tive vontade de fazer medicina. Lá em casa meu pai é médico, tenho um tio que é médico... E eu tenho dois irmãos mais velhos, aí o meu irmão fez medicina também, minha irmã fez medicina. É de família. Já fui ao trabalho do meu pai, na faculdade dos meus irmãos. Então, acaba me influenciando bastante. E também eu gosto dessa área de saúde. E medicina é uma boa profissão. Posso fazer um nome. Ter uma boa remuneração e poder dar boas oportunidades aos meus filhos.
180
Tradição de família, boa remuneração, reconhecimento profissional.
Diferentes razões e sentimentos estão mobilizando homens e mulheres que buscam
áreas consideradas femininas. Pedro, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-
vestibular público fará serviço social. Atribui seu projeto ao fato de não ser bom em
exatas: “Bom escolhi por causa do... Eu gosto muito de humanas, gosto de ler. Eu
estava pensando em alguma coisa que tivesse que ler bastante, porque eu não sou
muito bom na área de exatas”. Sua fala demonstra que é quase uma obrigação
masculina ser bom em exatas. Revela isso na expressão corporal e no tom de voz
usado para dizer que não é bom em exatas. Gostar de “ler”, parece ser uma
compensação por não apresentar aquela característica “tipicamente” de homens.
Mas, por que procura uma profissão tradicionalmente feminizada? Que razões e
sentimentos têm levado os homens a procurar profissões, tradicionalmente,
consideradas de mulheres e, portanto, profissões de menor prestígio social, cujos
rendimentos são menores que as tradicionalmente masculinas?
A trajetória de Isac que optará pelo curso de biblioteconomia, na UFES, ajuda
a entender essa tendência. Isac trabalha na revenda de cartões de recarga de
créditos de celular e, tem uma nítida preocupação em propiciar o sustento da família:
“Hoje eu consigo manter a minha casa com um certo conforto”. Apesar disso,
movimentos atrelados à racionalidade do trabalho, tratados anteriormente, situam
uma busca em direção a uma maior especialização e qualificação, fazendo sentir a
necessidade de realizar-se um curso superior: “A gente nunca sabe o que vai
acontecer... Fazer o curso superior te abre possibilidade de fazer concurso público”.
Seu projeto constrói-se na busca de melhores oportunidades, mas, também, fala de
temores em relação à instabilidade do mercado.
Além disso, em seu caso, ocorreu o ingresso cedo no mercado de trabalho
impondo-lhe a exigência de conciliar estudos com o trabalho, situação que o afastou
da faculdade. “Na época, eu tinha que escolher: trabalhar ou estudar. Preferi
trabalhar. Depois casei e o tempo passou”. Isac vem de uma família muito pobre e
com muitos irmãos. Teve que trabalhar pela dificuldade dos pais em manter os nove
filhos. As políticas compensatórias também tiveram impacto em sua trajetória: “O
sistema de cotas incentivou-me e se não fossem as cotas, eu nem tentaria a UFES”.
Afirma:
181
Quando eu consegui essa bolsa no PUPT, vi a oportunidade de crescer. Eu sempre tive isso na mente: “eu quero me preparar para o vestibular” e não tentar por tentar. Agora que eu tive essa oportunidade de fazer esse cursinho estou com um sonho, com a esperança de passar.
Passar na UFES é um grande sonho. Gostaria de tentar educação física, mas
disse que com a pontuação que vêm fazendo nos simulados sabe que não passa e
“ninguém quer só estudar para chegar lá no vestibular e não passar”. Vai, então,
optar por biblioteconomia:
Há uma série de fatores... Não tem como você hoje escolher um curso que você vai estudar quatro anos, cinco anos só por causa do sonho. Não é nem só o fato de ser mais difícil de passar no vestibular, mas se eu fizer um curso desses em que tem que estudar o dia inteiro, como é que eu vou sustentar a minha família? A gente sabe que quem trabalha, quem dá duro, infelizmente são cursos como biblioteconomia, arquivologia e outros que tem à noite, que dá para fazer. Hoje, a maioria desses cursos, direito, medicina... além de serem complicados para entrar por serem muito difíceis e concorridos, têm esse lance de que você só pode estudar... Só lá no décimo período é que você consegue eliminar algumas matérias e “caçar” um lugar para você ir trabalhar.
Cursos, tradicionalmente, procurados por mulheres passam a ser requisitados
pelos homens, mas cabe destacar quão diferentes são as razões e os sentimentos
de homens e mulheres nessa busca. Enquanto, muitas mulheres fazem seus
projetos profissionais seja reafirmando lugares e tarefas naturalizadas como
femininas, ou conciliando o trabalho com o espaço doméstico, os homens, ao
contrário, pouca importância dão a atividades restritas ao espaço doméstico. Na
verdade, centram-se em manutenção financeiro deste espaço. O que também
reafirma antigos lugares masculinos: homem chefe de família, responsável pelo
sustento do lar. Isac, por exemplo, quer fazer um curso universitário que lhe permita
conciliar as atividades do estudo com o sustento da casa e, por isso, precisa de um
curso mais fácil e com menor tempo de dedicação.
Os homens que fazem essas opções são, em geral, das camadas populares
e, não raro, homens negros. Isso me leva à compreensão de mecanismos de
exclusão e discriminação os quais presidem suas escolhas. Um estudo realizado, no
Brasil, pelo PNAD173 compara rendimentos mensais padronizados por 40 horas de
trabalho, em setembro de 1998, e mostra as diferenças nas médias salariais:
homens brancos (726,89), homens negros (337,13), mulheres brancas (572,86),
mulheres negras (289,22).
173 Fonte: Microdados das PNAD padronizados pelo IPEA.
182
Galbraith (1992) e Saparolli (1997), em estudos recentes, mostram que a
opção por carreiras feminizadas entre os homens, se faz, em geral, tardiamente,
indicando que esses também já tiveram outras ocupações. Buscar uma carreira
“feminizada” por exigir menor dedicação, e ser o caminho mais fácil de ingressar e
cursar a Universidade pode ser uma importante estratégia dos homens negros e
pobres para ascender socialmente. O estudo de Pinheiro (1999) mostra que a classe
média negra das capitais brasileiras apresentou um crescimento relativo de 10% nos
anos de 1992 a 1999. É fato, como indica Pastore e Silva (2000), que a mobilidade
social, ascendente para a população negra, ainda é bastante limitada. O difícil
acesso à educação de qualidade por parte desse segmento, junto a dificuldade de
conversão da educação formal para as posições educacionais, sugerem processos
de discriminação racial no mercado de trabalho.
Isac constrói seu projeto profissional nesse campo de possibilidades “próprio
à sociedade complexa moderna” (VELHO, 1999, p. 19). Nesse espaço, cruzam-se
várias experiências, interações sociais e significados, enunciados a partir de sua
posição social, grupo de origem, família, gênero e etnia. Dificuldades de acesso à
educação, ingresso precoce no mercado de trabalho em função da necessidade de
sobrevivência pessoal e familiar, além de outros mecanismos excludentes misturam-
se a oportunidades que, com as cotas sociais, abrem-se ao ingresso na
universidade e asseguram um futuro mais promissor. Isac faz suas negociações com
a realidade rumo a um horizonte de expectativas em que se desenham melhores
oportunidades e maiores conquistas.
3.3.2.2 Mulheres e espaços masculinizados
Enquanto alguns segmentos de mulheres ocupam nichos femininos e
precários de profissionalização, outras têm ascendido à ocupações de alto prestígio
social e econômico, em geral, lugares considerados masculinos. No campo
investigado, um lugar de relações de forças, há tendências de manutenção das
relações de poder e também de outras tendências opostas. O próprio Bourdieu
afirma, que as disposições adquiridas em função de um dado campo “podem, em
particular, levá-los [os agentes sociais] a resistir, a opor-se às forças do campo”
(2004, p. 28). Assim, tem-se constituído a história das mulheres em seus
183
movimentos de chegada a lugares masculinos. Resistências se situam; disputas
acontecem.
Importantes conquistas educacionais das mulheres sugerem, inclusive, uma
reversão do quadro profissional que sempre marcou a história da educação
brasileira. Castro e Yamamoto (1998) situam essa reversão, sobretudo, a partir da
década de 1970, quando, de fato, há maior paridade entre o número de homens e
mulheres no Ensino Fundamental (49,7% de mulheres e 50,3% de homens), e no
Ensino Médio (50,2% de mulheres e 49,8% de homens). No Ensino Superior, as
mulheres só foram maioria no final dos anos oitenta, quando as matriculadas
atingem 52,9% do total.
Atribui-se a movimentos políticos e sociais brasileiros, dentre eles, o
feminista, a principal responsabilidade pela expansão da escolaridade feminina e,
em consequência, o ingresso ao 3° grau e o acesso à carreiras universitárias. A
expansão das universidades públicas também contribui para esse ingresso das
mulheres em profissões superiores, como afirmam Bruschini (2007). Somam-se a
isso transformações ocorridas no interior de profissões consideradas de prestígio,
ampliando oportunidades para o desenvolvimento de carreiras femininas vindas de
segmentos superiores da sociedade. Atualmente, as mulheres são maioria nas
universidades, inclusive, adentrando cursos de prestígio social. O comparativo, a
seguir, apontado por Bruschini, Ricoldi e Mercado (2008), atesta esse crescimento:
1995 2005 Ocupações de nível
superior no Brasil Total Bruto Percentual de mulheres
Total Bruto Percentual de mulheres
Médicos 146.141 37,7% 226.021 39,8% Advogados 20.160 37,0% 42.724 45,6%
Procuradores e advogados públicos
7.994 43,0% 7.241 42,3%
Magistrados 10.991 24,2% 12.206 34,2% Membros do Ministério
Público - - 6.581 41,1%
Engenheiros 130.225 11,6% 147.754 14,2% Arquitetos 7.121 51,9% 9.210 54,2%
Fonte: MTE/Rais
Barbosa (1998, p. 139), afirma que há “aumento da proporção de mulheres
entre estudantes de medicina e odontologia em qualquer universidade”. Essas
mulheres inserem-se no mercado como profissionais e produzem um aumento
“substantivo dos trabalhadores de classe média na PEA”. Além disso, há grupos de
ocupações femininas ligadas à tarefas administrativas subordinadas, que buscam
184
formas de afirmação profissional, tanto na busca de cursos superiores, como na
“realização de seminários e simpósios, nos moldes daqueles das nossas
associações científicas” (p. 139). A autora cita o caso das secretárias que buscam a
criação de cursos superiores de secretariado em universidades federais.
Numa análise sobre as profissões de nível superior e a distribuição por sexo
em cursos universitários, Silva (2009, p. 1), também demonstra “mudanças e
permanências em sua configuração nas últimas décadas”. Investiga,
particularmente, a medicina e o serviço social. Verifica a alteração significativa do
perfil de medicina quanto à distribuição por sexo, em função da entrada das
mulheres nas últimas décadas. Também verifica a permanência destas nos cursos
como serviço social, no qual há uma “maioria impactante de mulheres”.
Razões e sentimentos de duas mulheres Thaíssa174 e Geisiane175 mostram
um pouco dessas tendências. Ambas pretendem fazer engenharia, a primeira,
engenharia civil e a segunda engenharia elétrica, tradicionais nichos masculinos.
Apesar das diferenças de classes sociais, há semelhantes sentimentos em relação
aos projetos profissionais. O gosto pela matemática é um primeiro fator que contribui
para a opção de ambas. Gesiane afirma: “Sempre fui boa em matemática, então, um
curso na área de exatas é melhor”. Segue o relato de Thaíssa: “Gostar de
matemática é um dos motivos para escolher engenharia”. Querer conciliar algo que
se gosta de fazer com uma profissão prestigiada é parte das razões e sentimentos
de ambas: “Acho que juntei o útil ao agradável. Por que assim... Eu já tinha afinidade
com a área e como o mercado está em alta, pensei, por que não?” (Geisiane).
“Engenharia está em alta aqui no estado. Mas, não é só por isso que escolhi. É
porque dá para juntar o que gosto de fazer com aquilo que dá dinheiro” (Thaíssa).
Essas indicações estão presentes em quase todos os projetos profissionais. Não
raro, vem acompanhado dos seguintes discursos “não adianta ter dinheiro e ser
infeliz”, ou ainda, “se fizer algo só por dinheiro será um profissional medíocre”. Essas
são tendências que estão fazendo as experiências deste nosso tempo. Os
discursos, afinal, apresentam uma profundidade histórica, como afirma Velho (1999),
ou seja, revelam processos que subjazem à realidade.
174 Mulher branca, 20 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado. 175 Mulher parda, 20 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
185
O desejo por engenharia, também é forjado em função do projeto profissional
da mãe, no caso de Thayssa. As experiências, profissionalmente, bem sucedidas da
mãe têm impacto na sua avaliação de possibilidades de alcance e conquistas
femininas: “Minha mãe é engenheira civil, ela sempre teve o dinheiro dela, é
independente, tem o respeito e a admiração profissional. O pessoal lá da obra olha
para ela assim... [tom de orgulho]. Então, isso acabou me influenciando”.
Experiências como essa, sugerem-me que mulheres ligadas, afetivamente, também
inventam tradições, como afirma Costa (2009b).
Outro exemplo disso é o caso de Liliam176, criada pela avó, um importante
modelo na constituição de sua independência. Disposições para a ação são
construídas a partir daquilo que vivem na primeira educação. No caso, “trabalhar” é
um meio de auto-afirmação e, também, um sentido construído a partir do modelo de
criação da avó: “eu sempre cresci ouvindo isso da minha avó: ‘homem nunca vai te
dar nada’, sempre aquela conversa...”. Para Thaíssa, o trabalho mostra-se como
meta, mais pela via da profissionalização. A metáfora do “sororidade” - num sentido
inverso ao estudado por Costa (2009b) - é útil para se pensar a energia de relações
familiares desse tipo. No caso de Liliam, largada, diversas vezes, dentro de casa
sozinha pelo pai e a mãe: “Eles saíam, cada um para um lado e me deixavam lá,
sozinha, chorando. Uma vizinha uma vez contou para minha avó, e ela me pegou e
nunca mais me devolveu”.
Como indica Costa (2009b), a representação simbólica da “sororidade”, na
antiguidade, está ligada aos cuidados e aos deveres gravados na história da deusa
Themis, segunda esposa de Zeus. A sobrevivência de Themis, ainda menina,
dependerá da transferência dos cuidados de Gaia, sua mãe, para Nix, irmã de Gaia,
que irá protegê-la da fúria de Urano, seu pai. Como a autora afirma “Trata-se
daquela regularidade histórica em que a tia assume a responsabilidade de mãe e a
vivencia, por transferência, nas práticas de cuidados peculiares à maternidade” (p.
19). No caso aqui, a sobrevivência de Liliam dependerá de sua avó, a que a ensina
a “se virar” e ser uma mulher independente: “Meu pai nunca me deu nada. E nunca
precisei dele. Eu e minha avó nos viramos muito bem”. Thaíssa tem uma história
diferente, mas apresenta grande ligação com a figura materna: “Minha mãe é tudo
para mim. Ela me deu a vida, cuidou de mim. Eu devo tudo a ela. Não é fácil cuidar
176 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
186
sozinha de uma casa. Meu pai dá pensão, mas é pouco, se for pensar nos gastos
que temos”.
Não apenas observo continuidades e invenções de tradições que são
transmitidas às mulheres de outra geração, há também rupturas. As experiências,
em relação ao modelo materno, interferem nos projetos femininos, tanto a partir de
sua identificação como de sua recusa. Geisiane quer sua independência financeira
em recusa às experiências e o lugar social assumido pela mãe:
Não quero que aconteça comigo o que aconteceu com a minha mãe. Ela se tornou muito dependente do meu pai. Então, agora que está sem ele, não consegue emprego. Ela não tem estudo e quer um trabalho que assine carteira, trabalhe de segunda à sexta e pague pelo menos um salário, mas não encontra. Eu já estou no fim do Ensino Médio e ganho duzentos reais. Como ela que não tem curso, não tem nada, parou na oitava série e quer um salário? Não tem como.
Sua fala reflete não apenas o desejo de construir um projeto profissional que
a leve a diferentes caminhos, dos seguidos por sua mãe, mas, também, revela
mecanismos de dominação e exclusão que se fazem no mundo do trabalho
capitalista. A fala “não tem como” é legitimadora daquilo que se percebe como
natural. Esses mecanismos são reafirmados e legitimados no campo da cultura,
graças ao poder simbólico, como indica Bourdieu (2005). A saída que Geisiane
encontra é modificar, então, suas experiências, e escrever outras. E, com essas
razões e sentimentos, que ela move suas ações em direção a um certo horizonte de
expectativas.
3.4 Um balanço: o campo da profissionalização feminina
Retomo as questões propostas no início do capítulo: Que lugares sociais,
homens e mulheres têm ocupado no mercado de trabalho? Como as relações de
gênero impactam a construção de projetos profissionais? Esses projetos
profissionais reafirmam ou negam a equidade de gênero? É possível, então, afirmar
que o campo do gênero, em suas interseções com classe, raça e geração tem
impactos sobre a construção dos projetos profissionais? Evidências indicam o
reforço da falta de equidade de gênero, mostram não apenas que homens e
mulheres seguem diferentes caminhos profissionais, mas, sobretudo, caminhos que
podem levar à desigualdade das condições de trabalho e renda. Os projetos
profissionais vêem-se diante de tendências como essa.
187
Considerando-se o campo do gênero nos termos de Bourdieu (2004),
pensado como um “espaço relativamente autônomo”, permeado por relações de
forças, é possível verificar como os lugares femininos, e significados nele
produzidos, ajudam a compor os projetos profissionais. Sentidos civilizadores
perpassam o campo do gênero; são internalizados, mostram as entrevistas. Um
dado capital cultural cria certas disposições para a ação, o habitus, identifica
Bourdieu (2007), são essas disposições que permitem identificar caminhos que se
abrem às mulheres em direção a determinadas profissões. A segregação setorial,
por gênero, já citada, também se faz nesse processo. Mas, outras tradições também
são inventadas ao se recriarem novos projetos profissionais. Nessa medida, tanto
podem contribuir para perpetuar as desigualdades como para superá-las.
Mas, cabe lembrar que os sentidos que se constroem em torno da busca de
igualdade de direitos e oportunidades, pelas mulheres, contém uma série de
paradoxos, como indica Scott (2005), posto nos debates sobre “igualdade” e
“diferença”, dilemas que prosseguem nos dias atuais e estão presentes nos
diferentes feminismos (COSTA, 2008). Deslocamentos de mulheres, de confortáveis
lugares femininos para os masculinos, mostram que aquele paradoxo posto pelos
feminismos, como parte da revolução democrática que se fez com base em um
“discurso baseado na diferença sexual”, como afirma Scott (2002, p. 27), pode estar
sendo superado nessas novas tendências de projetos profissionais.177
Concordando com Aguiar, citado por Costa (2009 b), os feminismos em suas
lutas por igualdade, nunca foram apenas manifestações intelectuais, mas também
expressões de sentimentos de muitas e diversas mulheres e homens. A noção de
igualdade aqui entendida é a que indica Scott (2005, p. 15): “Não é ausência ou
eliminação da diferença, mas sim o reconhecimento da diferença e a decisão de
ignorá-la ou de levá-la em consideração”.
Buscas por afirmação de diferenças e, ao mesmo tempo, a busca pela
igualdade de direitos, apesar de que se fazem e farão em lutas de homens e
mulheres, pobres e ricos, brancos e negros, pessoas de diferentes gerações, enfim
177 Para Scott apud Costa (2009a) o feminismo era um protesto contra a exclusão política da mulher: seu objetivo era eliminar as “diferenças sexuais” na política, mas a reivindicação tinha de ser feita em nome das “mulheres” (um produto do próprio discurso da “diferença sexual”). Na medida em que o feminismo defendia as “as mulheres”, acabava por alimentar a diferença sexual” que procurava eliminar. Esse paradoxo – a necessidade de, a um só tempo, aceitar e recusar a “diferença sexual” – permeou o feminismo como movimento político por toda a longa duração histórica”.
188
em experiências humanas que são sempre múltiplas. Práticas e representações de
nosso tempo sobre as relações de gênero nas interseções de classe, raça/etnia,
geração, orientação sexual dentre outras, estão nos projetos profissionais; compõem
o campo de possibilidades com vista a certos objetivos a alcançar. Como afirma
Koselleck (2006), se a história for pensada como um campo de experiências e um
horizonte de expectativas humanas será mais bem compreendida. Seguindo
indicações do autor também foi possível compreender no presente, futuro do
passado, a perspectiva da longa duração histórica, permitindo precisar a história dos
conceitos como parte de processos sociais mais amplos. No caso específico deste
capítulo, o exame das relações de gênero e profissões desvenda um pouco mais os
projetos profissionais femininos.
189
4 PROJETOS DE CLASSE E PROJETOS PROFISSIONAIS
Experiências e expectativas, dos sujeitos entrevistados, expõem desejos,
percepções, sensações e pensamentos. Os projetos profissionais emergem dessas
experiências sugerindo alguns sentidos, ou mesmo um certo sentido, ainda que não
seja nunca único, linear ou previsível. Os sentidos estão nas tramas do processo
civilizador, que, para Elias (1990), com base em Freud, traduzem dilemas entre
experiências de dor e de prazer. Os projetos profissionais se fazem, então, numa
negociação em busca de caminhos que levem a ganhos e a conquistas e/ou
descaminhos significativos de perdas, desprazer e sacrifícios. Essa negociação com
a realidade não se refere, entretanto, ao domínio consciente, por mais que se faça
no plano racional. Isso significa que por mais que os projetos resultem de ações
deliberadas, o indivíduo não tem consciência de todas as forças que compõe seu
campo de possibilidades. Não tem consciência de que suas disposições para a
ação, suas percepções sobre a realidade, seu modo particular de ser, entre outros,
se vincula a uma dada realidade. E essa realidade, em suas complexidades, porta
os projetos de classe. Isso não significa que os projetos profissionais são
determinados pelas classes, mas que, de modo singular, expectativas e sentimentos
criados pelos grupos sociais impactam nos projetos profissionais. Assim, desejos,
expectativas, sonhos, gostos, habitus, formam-se em determinados campos de
relações sociais que, ao ser mais bem investigados, permitem a compreensão dos
projetos profissionais:
Inicio a análise de como os projetos profissionais se ligam aos projetos de
classe, a partir do relato de Patiane178 sobre um colega de sua sala de aula, o
Cristian:
Patiane: As pessoas desanimam de fazer as coisas. Igual o menino lá da sala, meu colega Cristian [estudante do curso pré-vestibular privado e amigo de Patiane]. Ele ía fazer estatística, mas ele desanimou porque as pessoas chegam para ele e dizem que é muito difícil passar... Aí, ele não sabe se vai fazer mais. Pesquisadora: Pela influência dos outros? Patiane: Pela influência dos outros. Eu falei para o Cristian que se for pelo que as pessoas falam e pensam, nunca vai fazer nada. Mas aí ele falou que vai fazer primeiro, humanas e, depois, faz estatística. Pesquisadora: E por que você acha que o seu amigo Cristian fará isso? Patiane: Porque humanas, é mais fácil de passar! Estatística exige muita matemática... As pessoas falam que, logo no começo do curso, aqui na UFES, muitos desistem, porque é difícil. Aí eu falei com ele: “Cristian, se você for olhar
178 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público.
190
para isso, você não vai conseguir nada. Você é inteligente!”. Mas ele está com medo: sempre estudou em escola pública.
Esse relato, comum a outras experiências que investiguei, mostra as
negociações que se fazem, dentro dessa lógica de busca por prazer e de evitar o
desprazer. Renunciar ao curso de estatística, ao menos por hora, é parte desse
processo o qual prenuncia a possibilidade de reprovação. Garantir o ingresso na
universidade pública, mesmo que por meio de um curso menos desejado, parece a
Cristian (citado no relato de Patiane), ser sua grande conquista, no momento. Aliás,
isso se verifica não apenas no campo investigado, mas no Brasil como um todo: o
Ensino Superior público para a maioria daqueles que pretendem uma profissão
superior está desenhado nos seus horizontes de expectativas; além de um lugar de
prestígio, é sentido como o que possibilita o alcance de maiores/melhores
oportunidades de inserção profissional. Mas, se por um lado, ingressar em uma universidade pública faz parte dos
desejos e das expectativas de uma parte dos jovens brasileiros, para a grande
maioria esse desejo não faz parte de seu campo de experiências. Essa exclusão se
faz, principalmente, em razão das posições de classe, cor, raça e gênero. Uma
expressiva parte dos jovens está excluída do processo educativo escolar. Segundo
dados do IBGE, em 2005, a frequência à escola, entre os jovens de 18 a 24 anos,
era apenas um privilégio para 31,6% da população nessa faixa etária. O rendimento
familiar per capita, foi um marcador explícito: a escolarização dos 20% mais pobres,
foi quase a metade da dos 20% mais ricos (25,1% e 48,6%). Além disso, a maioria
desses jovens (51,7%) cursava níveis inferiores de escolaridade ao recomendado
para a idade179.
Vários fatores dificultam o ingresso no Ensino Superior como, a baixa oferta
de vagas nas universidades públicas, a má qualidade de ensino da escola pública de
nível médio para as classes populares e a grande concorrência nos cursos de maior
prestígio social.
179 Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=774&id_pagina=1 acessado em 02/07/2010.
191
4.1 Propostas educacionais para elites e classes populares
A exclusão das classes populares do ensino público superior, no Brasil, é uma
característica que decorre de propostas educacionais que marcam o Ensino Médio
durante todo o século XX: “a dualidade de um sistema que se voltava para as elites
e outro para as classes populares” (RAMOS, 2009, p. 240). Inicia-se com a
diferenciação dos currículos entre o ensino técnico e o ensino secundário, em que
apenas o último prepara para as universidades. Com a industrialização, como
mostra Ramos (2009), a dualidade acirrou-se, visto à necessidade de preparar
trabalhadores para o ingresso no mercado de trabalho e, com isso, a ênfase no
ensino profissionalizante. A universidade era pouco pretendida pela massa de
trabalhadores que mal chegava lá. Durante todo o período em que vigorou “o projeto
nacional desenvolvimentista e a certeza no pleno emprego” (p. 40), o Ensino Médio
voltou-se a preparação para o trabalho. A conjuntura atual, entretanto, marcada pela
crise do emprego e novas sociabilidades capitalistas, modificam e tornam frágeis os
objetivos deste segmento do ensino. Não se trata de investir na preparação para o
trabalho, em função de sua instabilidade. Fala-se a, partir de 1996, sobre a Lei
9.394/96, como indica Ramos (2009), que o Ensino Médio precisa preparar para a
vida, desenvolvendo competências genéricas e flexíveis à adaptação de novas fases
do capitalismo. Essa mudança estaria apontando para uma tendência de valorização
e aprimoramento da pessoa humana em detrimentos dos valores de mercado? Ao
que me parece, mais uma vez esse “novo” projeto não só do Ensino Médio, mas da
educação de forma geral por mais que não esteja comprometido com a formação
para o emprego, o está com a preparação para trabalho, considerando-se é claro, as
novas formas de trabalho como mostra Antunes (1995). E, isso não modifica em
nada os impactos para os projetos de classes sociais, pois se trata de uma etapa
que, ainda, exclui as camadas populares de acesso ao Ensino Superior.
O acesso às universidades públicas do Brasil acaba se restringindo a alunos
oriundos das classes mais favorecidas, com trajetórias escolares que os favorecem.
Já as Instituições de Ensino Superior particulares absorvem jovens e adultos das
classes menos favorecidas, cujas trajetórias escolares são, em geral, deficientes. As
classes também se movimentam em diferentes cursos. Classes mais altas dirigem-
se aos cursos mais prestigiados, academicamente, enquanto as classes mais baixas
192
acabam ingressando em cursos com menor prestígio social, evidenciam pesquisas
realizadas nesse sentido180.
Em geral, os cursos universitários com menor prestígio social são, também,
aqueles mais fáceis de passar no vestibular e que exigem menor tempo de
dedicação durante o curso, condições que atraem, justamente, alunos/as de classes
populares. Dados do IBGE, de 2008, indicam que o percentual de jovens que,
somente, estuda diminuía na faixa etária de 18 a 19 anos, pois a maioria já concilia
trabalho e estudo: Na faixa etária de 10 a 15 anos, 85,5% só estudavam, passando
para 54,4% na faixa de 16 e 17 anos, para 27,6% entre 18 e 19 anos e, por fim, na
faixa de 20 a 24 anos, para o percentual de 10,5%.181
Assim, para segmentos de classe que têm dificuldades de ingressar na
Universidade Pública, fazer um curso mais fácil e de menor prestígio social é uma
forma de acesso, de ganho e conquista futura. Mas, não são apenas as dificuldades
de passar num vestibular, ou de ter que optar por um curso de dedicação parcial, as
determinações dos projetos profissionais. Como indicativo da entrevista usada como
epígrafe deste capítulo, a opção por um curso na área de humanas em detrimento
do curso de estatística revela, entretanto, algo mais.
O que indica o insucesso do jovem colega de Patiane no curso de
estatística? De onde vem o medo e a sensação de que não será capaz? O que está
em jogo, neste caso específico, é mais do que a materialidade das condições de
existência. Seu desejo é forjado a partir de certas disposições internalizadas para a
ação, um habitus, “maneiras de ser permanentes e duráveis” (BOURDIEU, 2004, p.
2), que, introjetadas, revelam aceitação de limites e do “sentimento do seu lugar”
que representa “um ajuste da personalidade às condições objetivas e às chances
reais” de grupos sociais menos favorecidos economicamente (SILVA, 1995, p. 26).
Evidencia-se, aí, o conformismo desse jovem com a predestinação para esse lugar e
o sentimento de impotência de superá-la. Essas percepções e sentimentos de si
estão nos modos pelos quais seus mestres os definem. São representações que
convergem, também, para a de imagens reafirmadas nas trajetórias pessoais desses
180 Para aprofundamentos ver pesquisa “Quando raça conta: um estudo de diferenças entre mulheres brancas e negras no acesso e permanência no ensino superior” de João Bosco Hora Góis (2008). 181 Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=774&id_pagina=1 acessado em 02/07/2010.
193
jovens, a partir do lugar que ocupam na estrutura social. Esse sentimento de
impotência é reforçado ainda, pelos demais indivíduos de seu grupo social: “As
pessoas desanimam você de fazer as coisas”. Ele não cria, sozinho, a percepção de
si; assim, não conseguir sucesso em Estatística é um sentimento partilhado por
pessoas de seu convívio social. Em muitas indicações, esse meio reforça a ideia de
que cada um tem um lugar e determinadas possibilidades de conquista e de
sucesso, lembrando metáforas inscritas em provérbios populares que circulam entre
nós: “cada qual com seu igual”; “cada macaco em seu galho”, dentre outros... O
lugar ocupado pelos jovens no conjunto das classes sociais, embora não
determinante, atua na definição dos projetos profissionais. O habitus (BOURDIEU;
2004), compõe-se de inclinações e tendências que resultam de condicionamentos
sociais. Mecanismos de poder funcionam, não apenas no plano material, mas,
sobretudo, no plano simbólico, e assim na produção de imagens. No caso, a auto-
imagem cria a razão da desistência do acalentado projeto: “Não serei capaz de
cursar estatística”.
Ao fim do relato de Patiane, ela situa inibições ao projeto de seu colega de
turma: “Mas ele está com medo: sempre estudou em escola pública”. Estudar em
escola pública faz a diferença no acesso à universidade pública quando revela a
posição de classe e tudo o que lhe diz respeito a possibilidades de realização do
projeto. É, pois, sinônimo de limite, daí a insegurança e o medo. Essa é uma
regularidade presente nas observações de outros/as entrevistados/as. Relatam que
a escola pública não prepara para o vestibular, como já registrado. O relato de
Patiane é emblemático dos limites oferecidos aos jovens egressos da escola pública:
“Eles ficam dando um monte de trabalhinhos e provinhas fáceis só pra [sic] a gente
passar... Aí chega no vestibular todo mundo ‘se ferra’. Como se a gente não fosse
conseguir nunca nada”. A escola funciona como mecanismo eficaz para definir os
lugares a ser ocupados pelos indivíduos, como afirma Bourdieu (2004).
Expectativas profissionais serão restringidas entre aqueles que escolhem
trajetórias acadêmicas de menos prestígio: “É a força determinante do habitus de
classe fazendo com que membros de classes inferiores se “auto-releguem” ao
desempenho sofrível e a baixas expectativas profissionais” (SILVA, 1995, p. 29).
Memórias dos/as entrevistados/as registram, com frequência, razões e sentimentos
(e também ressentimentos) associados à posição de classes que possuem. Projetos
de classe estão conectados a projetos profissionais. O sentimento expresso na fala
194
de Patiane mostra o reconhecimento de sua incapacidade de conseguir acesso a
profissões mais prestigiadas. Essas experiências são marcadas por privações e
mecanismos de exclusão, nem sempre examinados em avaliações de políticas
públicas.
4.2 Exclusão, habitus e capital cultural
Gostos, valores, estilos e estruturas de pensamento e ação decorrem de
condições específicas das diferentes classes sociais. O sentimento de exclusão, de
incapacidade de grandes conquistas, de lugares específicos a ser ocupados por
cada um, está na fala dos/as vestibulandos/as do curso público. Liliam,182 afirma:
“Não sei se consigo passar, mesmo com o sistema de cotas, eu acho que esse ano
está meio complicado, está bem mais rigoroso... Eu sei que aqui (refere-se à UFES)
é muito disputado e tem gente melhor do que eu! Tem pessoas que estão
disputando com afinco...”. Brenda,183 demonstra em seu discurso sentimentos de
inferioridade em relação às classes mais favorecidas, um sentimento forjado nas
relações sociais que conhece: “Os alunos de escola particular são mais elevados do
que a gente, eles sabem muito mais, são mais especializados. Isso não dá para
negar!”. Sentimentos de menos valia em relação a outra classe, percebida como “os
alunos da escola particular”, são expressos por Isac184: “Eu tenho medo de não
passar. Se não fossem as cotas, eu nem tentaria, porque os alunos do Darwin
[nome de um dos cursinhos privado da região] são melhores do que eu”.
Medo, baixa auto-estima, sensação de incapacidade, são alguns dos
sentimentos (e ressentimentos) que deslocam jovens de classes sociais mais baixas
para os cursos superiores de menor prestígio social. Simbolicamente, definem-se,
assim, os lugares que cada um pode ocupar, socialmente. Esses (res) sentimentos
modelam e orientam as ações a partir de disposições para a ação, que vão sendo
internalizadas ao longo das experiências dos indivíduos.
182 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 183 Brenda, mulher parda, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 184 Homem negro, 29 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
195
A distribuição desigual do capital econômico entre as classes, é claro,
também é fator de desigualdade de acesso ao capital cultural. Para Bourdieu
(1998b), o capital cultural é um conceito de utilidade para apreensão da dimensão
simbólica da luta entre diferentes grupos sociais – uma luta pela legitimação de
certas práticas sociais e culturais que distinguem os diversos grupos pela posse da
cultura dominante, ou reconhecida como legítima. O capital cultural é incorporado,
principalmente, no ambiente familiar a partir do processo de socialização. Nesse
processo, diferentes tipos de capitais descritos por Bourdieu (2004) – capital cultural,
capital social (contatos e relações sociais), capital simbólico (ligado ao prestígio) e
capital econômico – articulam-se constituindo um espaço de poder. Para o autor, há
três tipos de capital cultural: o objetivado, o incorporado e o institucionalizado. O
primeiro diz respeito aos objetos culturais. Já o capital cultural incorporado, indica
SILVA, (1995, p. 25) refere-se à "capacidades culturais específicas de classe
transmitidas intergeracionalmente através da socialização primária", frisando que o
capital cultural institucionalizado refere-se a “títulos, diplomas e outras credenciais
educacionais” , base de mais hierarquias sociais.
Cada grupo social constrói um conhecimento prático daquilo que é possível
ou não se alcançar pelos membros de uma família (BOURDIEU, 1998b). Famílias
que possuem alto poder aquisitivo tendem a transmitir isso aos seus filhos e, por seu
capital cultural também valorizam, por exemplo, o sucesso escolar. Esse
conhecimento prático transforma-se em ação, transforma-se em habitus. Famílias de
baixo poder aquisitivo tendem a ter, também, um menor capital cultural,
considerando-se os acessos restritos a bens culturais. É o que observo das
distinções entre os dois grupos de vestibulandos.
Comparando esses grupos, fica nítido que estruturas de pensamento, valores
e ações são muito diversas. Entretanto, há algo que parece comum entre as
pessoas de um e de outro grupo; algo que articula grupos sociais tão diferentes
entre si. Por exemplo, observo que a questão de trabalhar cedo, dentre os indivíduos
de segmentos de classe menos favorecidos, socialmente, além de uma necessidade
econômica, aparece como um valor social. Para eles, parece inconcebível chegar
aos 18 anos sem trabalhar. É o que pode ser observado no discurso de Luciano185:
“Não tem que ficar pedindo dinheiro para o pai para sair. É ridículo um homem de 18
185 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
196
ou 19 anos, ficar pedindo dinheiro. Tem que trabalhar para ter sua independência”.
Entre alunos/as do curso privado, o discurso é outro. Ao contrário, trabalhar nessa
mesma idade, antes de terminar um curso superior, é que é inconcebível. Sara
afirma: “Não tem como trabalhar e estudar. Não dá tempo, estudo o dia inteiro e
sábado ainda tem os cursos extras de redação, simulados... É bem puxado!”.
Entretanto, mais do que representativo de uma “subcultura de classe”
(SILVIA, 1995), o capital cultural representa um recurso de poder referido ao capital
econômico, mas como indicado, não se reduz a isso. Nesse sentido, é na
valorização social do capital cultural das classes dominantes, em relação às
subalternas, que se localiza o mecanismo de poder. O campo, segundo Bourdieu
(2004, p. 26), “é um lugar de constituição de uma forma específica de capital”. Os
capitais podem ser acumulados, assim o estudo, aprendizagens, comportamentos, e
atitudes podem fazer com que uma pessoa modifique a posição em seu campo
social. Os indivíduos podem, portanto, ambicionar mais ou menos do capital cultural
que tem disponível. Para esse autor, os indivíduos aprendem desde cedo que ações
e objetivos são possíveis a uma pessoa na posição em que ela se encontra e assim,
esse conhecimento é incorporado e se transforma em ação.
Há grandes diferenças, a considerar, no que diz respeito às condições de
incorporação do capital cultural em ambos os grupos investigados, como já indiquei
na análise quantitativa. Pais e mães mostram dilemas de seus filhos e filhas que se
traduzem em nítidas divergências em relação ao legado e à posse do capital
cultural, seja ele incorporado e/ou institucionalizado. Esses dilemas não estão
referidos, apenas a títulos de escolaridade dos pais e das mães, mas a hábitos e
costumes que detêm. A possibilidade de acesso de membros de classes sociais
diversas à leitura, à viagens, teatro, cinema, museus, de fato, são diferentes, como
em dois exemplos já citados: os de Isabela, do curso pré-vestibular privado e de
Patiane, do pré-vestibular público 186. Isabela187 viaja, lê, fez intercâmbio no Canadá,
fala inglês fluente e escreve histórias em inglês e português para um site. Além
disso, pinta, desenha, vai ao teatro com os pais e dedica-se, sempre, somente aos
estudos. Patiane, com a mesma idade, de diferente inserção econômica e social, já
se casou e separou e os pais não a aceitam em casa. Não tem para onde ir e
186 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público. 187 Mulher branca, 16 anos, pertencente à classe B, estudante do curso pré-vestibular privado.
197
acabou morando com a irmã. Trabalha numa cooperativa em que ganha menos de
um salário, estuda e cuida da sobrinha para a irmã trabalhar. Mal sabe inglês, nunca
foi ao teatro – conforme seu relato – e não conhece nenhum lugar, além do próprio
Estado em que vive. Isso produz um universo cultural de diferentes percepções da
vida social e de outras disposições para a ação; não há como negar. Essas
experiências conformam sensibilidades diversas. Quando pergunto para ambas
sobre planos para o futuro, as respostas evidenciam diferentes expectativas
considerando-se, em cada uma, o seu campo de experiências. Patiane, fala: “Há
muito tempo que deixei de sonhar... Bem, mas o que eu quero?... Ter um trabalho
digno, e se eu passar em serviço social, aqui na UFES, já está de bom tamanho”.
Isabela tem planos mais audaciosos:
Primeiro, entrar na faculdade, de preferência na USP porque lá é melhor no campo que eu quero me formar. Depois, fazer uma pós, talvez no exterior ou aqui mesmo no Brasil... Trabalhar com o que gosto, ser uma boa profissional, independente. E depois me casar e constituir família. Nada demais, acho que é o que todo mundo quer.
Na verdade “nada demais”, mas dentro do segmento social a qual pertence
Isabela. Seus desejos expressam-se a partir de um modo de vida e um campo
cultural específico. Não estou afirmando que as diferenças no acesso aos capitais
econômicos e culturais, irão determinar o futuro dos/as entrevistados/as. Mas, é
nesse campo que os jovens encontram suas razões e produzem sentimentos; nesse
campo, fazem negociações e tanto definem movimentos de manutenção de seu
status, ou de ascensão social.
E, por mais que haja lutas e movimentos, saltam aos olhos histórias de
privações que marcam memórias e são parte constitutiva das experiências de
exclusão de jovens de classes mais pobres. Alguns lutam o tempo todo para
ressignificar suas histórias, outros, nem tanto. Brenda,188 conta histórias de sua
infância pobre com um pouco de tristeza: “Eu lembro, quando era criança, que todo
mundo chegava, na escola, com material escolar novo: caderno, mochila, lápis.
Aquele cheiro de tudo novinho... E, meus pais não tinham dinheiro para comprar.
Dava uma tristeza!” Há, nesse exemplo, uma educação dos sentidos: o cheiro da
coisa nova significa uma privação. Isac também conta de privações materiais de sua
188 Mulher parda, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
198
infância, sobretudo, pela quantidade de filhos que os pais tiveram – um padrão
persistente nas experiências de jovens mais pobres: Olha, deixa eu explicar: primeiro, o meu pai casou com a primeira esposa dele e ela veio a falecer. Ele tinha oito filhos. Aí casou com a minha mãe e teve mais oito. Quando ele chegou a casar com a minha mãe, já tinha filho casado. Minha mãe tinha enteado que era quase da idade dela. Na época eles casaram e foram para São Paulo. Eu fui um dos últimos. Aí não tinha muito jeito, foi uma infância difícil... O tênis de um passava para o outro e coisa assim. Mas nem por isso desanimei. Quero melhorar de vida.
Essas impressões serão ressignificadas ao longo da vida. Ambos afirmam o
desejo de luta com vistas a superar as privações do passado. As privações serviram
de motivação para a busca de melhores oportunidades de vida, o que para esses
indivíduos pode se efetivar por meio da educação. Brenda chega a afirmar:
“Educação é chave de tudo”. Mas há algo em comum na vida de ambos. Os pais
sempre os estimularam a estudar. Isac afirma: “Meus pais sempre incentivaram os
filhos. Eu nunca soube o que é matar aula. Meu pai e minha mãe não estudaram
muito, mas eles sempre falaram para nós que sem estudo não há oportunidade”.
As disposições construídas na primeira infância estão presentes nessas
trajetórias. Isac dá continuidade ao projeto dos pais: “Educação é importante. Na
verdade, eu quero que minha filha me supere. Eu não quero que ela deixe de fazer
cursinho para entrar na faculdade como eu”. Um projeto iniciado pelos pais e que
conhece continuidade nas sensibilidades de Isac. O mesmo ocorre com Patiane189:
“Meu pai falou que não quer que eu faça geografia. Para ele, professor não é
profissão. Ele quer que eu faça Direito ou coisa assim”. Ou seja, em ambos constrói-
se o projeto de crescimento a partir do estudo e da profissionalização.
A história de João,190 mostra diferenças. Ele fez até a segunda série e a mãe,
mal sabe escrever. Vieram do interior. Pouco incentivo foi dado aos estudos. O que
para eles importava era o trabalho. Diz ter crescido ouvindo do pai: “Homem que não
trabalha é vagabundo”. João começou a trabalhar cedo, afirma: “Meus pais são
pessoas quase analfabetas que vieram do interior pra [sic] tentar criar os filhos
melhor aqui na capital. Eu sou o filho mais velho, então, tive que começar a trabalhar
logo, ajudando no sustento da família”. Ele fez curso técnico no Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (SENAI) e, em seguida, arrumou um estágio. Trabalha 189 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público. 190 Homem branco, 42 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
199
como torneiro mecânico até hoje. Na época, nem acabou o Ensino Médio. Achava
besteira estudar. Já estava empregado e não via motivo para continuar os estudos.
Suas concepções e ações refletem, também, as disposições criadas na família, e
João parece ter dado continuidade a essas tradições em sua trajetória.
Os dispositivos de ação não são estáticos, ainda que tenham relação com a
socialização, e o indivíduo sempre pode romper com valores e crenças que
embasam suas ações. Os indivíduos inserem-se em estruturas e posições que
dependem dos variados capitais de que dispõem; assim, desenvolvem estratégias
de ação que “dependem elas próprias, em grande parte, dessas posições, nos
limites de suas disposições” (BOURDIEU, 2004, p. 29):
Essas estratégias orientam-se seja para a conservação da estrutura seja para sua transformação, e pode-se genericamente verificar que quanto mais as pessoas ocupam uma posição favorecida na estrutura, mais elas tendem a conservar ao mesmo tempo a estrutura e sua posição, nos limites, no entanto, de suas disposições (isto é, de sua trajetória social, de origem social) que são mais ou menos apropriadas à sua posição.
Mas, mesmo as disposições para a ação internalizada na primeira infância,
não são estáticas. Experiências futuras ocorrem em outros espaços transitados,
além do espaço familiar, e permite o confronto com diversas razões e sentimentos.
Províncias de significados diversos, como afirma Velho (1999), atravessam as
trajetórias de vida e dão contornos específicos à existência individual. Tudo isso, cria
novas percepções da vida social e novas disposições para a ação em João:
Voltei a estudar porque hoje acho importante. Tenho uma menina de dezoito e um menino de treze, e eles não gostam de estudar. Não vão mal, mas sempre passam raspando. E eu cobrando, cobrando. Aí puxei na memória: “como que eu estou aqui cobrando e cobrando, se eu não estudei”. Aí resolvi voltar para dar o exemplo.
Todo o campo constitui-se num “objeto de luta tanto em sua representação
quanto em sua realidade” (BOURDIEU, 2004, p. 29). Ou seja, trata-se de um tipo de
jogo social no qual as próprias regras são postas em jogo. Isso significa que nos
espaços sociais, permeados por relações de poder, configuram-se lutas, disputas e
consensos entre os indivíduos, dispostos hierarquicamente. O espaço social é
dinâmico; nele, sempre há relações de forças imanentes. O habitus, tal como
examinado por Bourdieu (2004), não possui um caráter determinista. Costumes são
reinventados no interior dos campos. Aliás, como ele propõe, é a partir dessa
concepção que se vê, de fato, a interação indivíduo e sociedade.
200
4.2.1 “Vocês são uns fracassados”
Um professor meu, falou uma coisa que é certa: “Infelizmente eu tenho que falar para vocês que vocês são uns fracassados!” Aí todo mundo ficou assim... E ele continuou: “Sabem por quê? Se vocês tivessem cursado direitinho o primeiro e o segundo grau, vocês estariam nessa sala aqui? Não! Sabe por quê? Tudo o que vai cair na prova do vestibular é do segundo grau e se vocês tivessem estudado bem, tivessem tido uma boa base vocês não precisariam estar aqui aprendendo coisas que já viram no segundo grau”. Então são algumas coisas que ele falou, até grosseiramente, mas que tem um fundamento.
A fala acima é de Isac191. Sua trajetória na escola pública revela e oculta
sentidos múltiplos. Destaco as palavras registradas por ele como vindas de um
professor. Elas assumem valor de verdade, como afirma Foucault (1974), por serem
proferidas por uma autoridade, portanto, por alguém que ocupa uma posição de
poder na sociedade moderna, a de especialista. Admitidas como “verdadeiras”, o
que afirmam? Novamente, propagam o individualismo. Mesmo considerando-se o
fato de que muitos alunos/as não se dedicam aos estudos, ou não se empenham em
aprender, seriam eles os responsáveis pela defasagem do ensino público
secundário (e, também, primário) e pela falta de democratização do ensino superior?
Como tantos outros, esse professor, quando fala em nome da instituição/escola,
atribui toda a responsabilidade por um histórico de exclusões educacionais das
classes populares aos próprios alunos. E, reforça, assim, as teses liberais: eles são
os responsáveis, eles fracassam.
Isac admite que “o professor falou uma coisa que é verdadeira”, ou ainda,
“coisas que ele falou, até grosseiramente, mas que têm fundamento”. Isac confere a
si mesmo, resultados obtidos em sua vida: um exemplo de força da violência
simbólica (BOURDIEU, 2007), atuando sobre suas sensibilidades. Um modo de
exercício de poder invisível, que age sem coação e se faz sentir graças ao domínio
do capital simbólico, que as classes privilegiadas portam, fazendo parecer natural e
universal sua maneira própria de ser, pensar e agir. Esse poder age sobre as
relações sociais e as sensibilidades, e formata-as. O sentimento de derrota passa a
fazer parte, então, das experiências de Isac, mas não só dele, é claro. Afinal não
apenas Isac, mas o professor afirma: “Vocês são uns fracassados”. Trata-se de um
sentimento impresso em uma classe, e atestado pela instituição escolar; estará,
sempre, presente em determinadas formas de ação.
191 Homem negro, 29 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público
201
As disposições para ação ganham consistência, principalmente, no interior do
processo educativo. Parafraseando, Bourdieu e Passeron (1998), a escola
complementa a família como o mercado em que se formam competências culturais
e, também, como o lugar no qual o habitus se consolida: "O habitus adquirido na
família (está) no princípio da recepção e assimilação da mensagem escolar, e (...) o
habitus adquirido na escola (está) no princípio da recepção e do grau de assimilação
das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural e mais geralmente de
toda mensagem erudita ou semierudita” (BOURDIEU; PASSERON, 1998, p. 54). Um
outro depoimento, de Geisiane192, mostra como no interior da escola esse
sentimento de classe se expressa:
Lá na escola, os professores não acreditam muito que a gente vai passar na UFES. Então eles ficam falando para gente fazer o PROUNI, que daí consegue uma bolsa para a faculdade particular. De certa forma, eles têm razão porque a UFES é difícil mesmo, mas eles não acreditam muito na gente e não preparam a gente para UFES. No terceiro ano, você tem que ficar lutando com os trabalhinhos, com caderno completo, com provinha, pra só passar de ano. Como se só tivéssemos potencial para passar de ano e na UFES não, sem contar que o conteúdo que eles passam no terceiro ano, é tudo que não cai na UFES. Você tem um monte de matéria e não aprende nada. Olha: saiu a lista que vai cair no ENEM esse ano, nada veio pra gente na escola; eu estudo pro ENEM aqui no PUPT. A escola pública não te dá base para passar na UFES, a única coisa boa é que eles te dão uma esperança de conseguir uma bolsa no PROUNI. Se eu não conseguir passar na UFES, tento o PROUNI e o NOSSA BOLSA, num deles passo.
A escola contribui para hierarquizar os indivíduos. Nesse ambiente escolar, é
enunciado um vaticínio em relação aos segmentos sociais pobres, a de uma “atitude
resignada com relação ao fracasso” e uma “baixa auto-estima”, como observam
Bourdieu e Passeron (1998). A hierarquização dos indivíduos, no interior da
instituição escola se dá, sobretudo, com as desigualdades de acesso ao capital
cultural, como já indicado. Ainda que esse capital esteja, primeiramente na família, é
na escola que ele tem um papel efetivo sobre o desempenho individual. As
sensações de inferioridade e de baixa auto-estima estão sendo vivenciadas nas
relações desiguais das classes, em práticas cotidianas. É constantemente
reafirmada, como afirma Luciano, por vários professores,193: “Eu tava [sic] querendo
fazer direito, mas aí o professor conversou comigo. ‘Cara direito é difícil, você vai
acabar não passando! Faz história, que história é melhor’. É, ele tem razão, é difícil
para mim [sic] passar em direito.”
192 Mulher amarela, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 193 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
202
Maria194, de idade mais avançada, culpabiliza-se por não ter estudado quando
era mais nova; e atribui a si própria a culpa por estar desempregada: “Eu acho que
eu deveria ter tido mais disposição antigamente para fazer um cursinho, se eu
tivesse tentado, não estaria na situação que estou hoje”. Ainda que os sentimentos a
que me refiro construam-se, em parte, em função de registros emitidos no campo
educativo e dados como de verdade, eles ganham densidade com as próprias
percepções dos/as alunos/as com base em condições sentidas como objetivas: “Eu
ia tentar psicologia, mas aí fiz o simulado e vi que minha nota não alcança o ponto
de corte de psicologia. É muito alta. Aí resolvi fazer enfermagem,” afirma Maria195.
Há percepções e opiniões de familiares, amigos e parentes que reforçam avaliações
de idênticos significados. Isso mostra que a defasagem da educação tem cor,
classe, raça, geração e gênero.
Luciano,196 não acredita que passará em direito: “Tem gente se preparando
pro [sic] Direito muito mais tempo que eu, e só tem quatro meses que eu estou
estudando. Quando eu acabei o ensino médio, eu fiquei três anos sem pegar no
caderno, aí eu quero me preparar mesmo”. Geisiane,197 também mostra suas
percepções sobre as deficiências no preparo para o vestibular: “O pessoal lá do
Darwin e do Up [pré-vestibulares privados de Vitória], são mais especializados do
que a gente. Eles estudam muito mais”. Esses sentimentos vão compor as
disposições da ação que leva a “tentar um curso com concorrência baixa”, “fazer um
curso fácil”, “fazer curso na área de humanas”. Enfim, costumes que se inventam,
escondem a falta de equidade brasileira e, ao mesmo tempo, conferem uma
sensação de conquista. Passar no vestibular de uma universidade pública,
independente do curso pré-vestibular, de fato, é uma conquista.
É claro que isso não significa que o acesso à educação básica, em si,
determina as opções por determinadas profissões. Embora tenham peso
considerável, os indivíduos movimentam-se nos diferentes espaços que vivem. São
experiências humanas muito plurais, afinal, o motor da história. Não quero destituir o
indivíduo de potencial, e colocar todas as determinações do meio, nos rumos
194 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público. 195 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público. 196 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 197 Mulher amarela, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
203
tomados por suas vidas. Isso significa que há aqueles com boas oportunidades
escolares e econômicas, mas que não as utilizam e nem as aproveitam. Por outro
lado, é igualmente possível, que aqueles de muitas dificuldades econômicas e
educacionais, venham a superá-las e a fazer importantes conquistas.
Geisiane relata que nem todos os colegas empenham-se na conquista de
melhores oportunidades: “Tem uns meninos lá no cursinho que não vão passar, eles
ficam do lado de fora matando aula. O coordenador tem que ficar chamando. Alguns
pensam que só porque tem as cotas já estão dentro da UFES, mas não é assim, tem
que se esforçar. Igual o professor Alexandre. Ele se esforçou muito e demorou três
anos para passar no vestibular”. Por mais que haja um tom de meritocracia, no
discurso da vestibulanda, os projetos profissionais não se fazem sozinhos, são
construídos por pessoas num campo de experiências e diante de alguns horizontes
de expectativas. Por isso, as ações individuais são importantes. Patrícia, fala um
pouco de sua falta de motivação para estudar:
Meus pais sempre me incentivaram muito. Não só eu [sic] como os meus irmãos. Tanto que eles são o que são por causa dos meus pais. Mas o problema tá [sic] comigo. Eu não gosto de estudar (risos). Nunca parei de estudar, mas é aquela coisa... Vou me arrastando. Lá em casa todo mundo gosta de estudar, até meus pais depois de velhos. Mas comigo o incentivo falhou.
Isso não se configura apenas entre os/as alunos/as de um dos cursos
investigados. Não é algo próprio às classes populares. No curso pré-vestibular
privado, Rodrigo,198 também localiza experiências assemelhadas: “Eu queria fazer
engenharia, mas tá [sic] muito concorrido e não sei se eu passo. Não sou tão
inteligente para passar em engenharia. Para falar a verdade eu nunca gostei muito
de estudar. Estudei porque meus pais quase que me obrigaram”. Os indivíduos são
ativos e fazem opções dentro daquilo de que dispõem, como o seu campo de
possibilidades. Negociam com a realidade. Nela, não apenas examinam as
condições de que dispõem no momento, mas, também aquelas que suas memórias
preservam. Fazem, então, suas avaliações; limites e possibilidades orientam suas
disposições para a ação. Disposições que construíram ao longo de uma história
coletiva, mas, também, individual.
Pergunto até que ponto essas disposições para a ação “refletem” uma
realidade ou “criam” uma realidade? Lembro de um dilema parecido, por mim vivido
198 Homem branco, 18 anos, classe A, estudante do pré-vestibular privado.
204
na adolescência: fazer psicologia, ou um curso mais fácil de ingressar na
faculdade?, Em parte, vejo-me identificada com trajetórias percorridas por alunos/as
da rede pública, já que fiz “Segundo Grau Magistério”. Partilhava, então, do
sentimento de impotência e incapacidade de ingressar na Universidade Pública. Tive
oportunidade, entretanto, de obter uma bolsa de estudo num pré-vestibular privado
e, então, uma chance de concorrer ao vestibular: Daria para passar em Psicologia?
Lembro de algumas pessoas me falando para fazer o curso de pedagogia, porque
era mais fácil de ingressar. Ouvi isso de muitas pessoas. Se eu tivesse feito
pedagogia, estaria confirmando a realidade de que as classes mais baixas dirigem-
se aos cursos menos privilegiados, ou criando uma realidade? Com muitas
incertezas, avalio o risco de afirmar que a capacidade individual determina as
conquistas. Entretanto, não se pode destituir os indivíduos da capacidade de
acionarem seu potencial criador e de enfrentarem situações-limites e caminhos
impensáveis num dado momento. Registro isso em outras trajetórias como mostrei
anteriormente.
Tratei até aqui dos sentimentos de exclusão e das disposições para a ação
que se forjam, sobretudo, nas camadas sociais mais pobres. Mas, não se pode
perder de vista que os indivíduos movem-se no interior de suas experiências, tantas
imprevisíveis. É assim que se compreende, também, as rupturas com projetos de
classe e aliança com outros projetos. Apesar dos entrevistados, principalmente, de
classes populares apresentarem essa sensação de reconhecimento do seu lugar e
sentimentos de exclusão, em suas experiências plurais e contraditórias, possuem
desejos de superação de dificuldades, desejo de superação, de ingressar em
profissões prestigiadas, com todos os determinismos que se fazem. Sirlei199, por
exemplo, negra e pobre, busca fugir desses determinismos e sonha com a carreira
médica. Não é apenas um sonho, seu desejo move suas ações. Dedica-se muito
aos estudos, vira noites estudando. Mesmo pobre, economizou parte da pensão que
recebe dos pais, já falecidos, para, ao longo desse ano, apenas dedicar-se aos
estudos. Acredita que irá passar. E, também, recebe o apoio dos/as professores/as
do pré-vestibular público que partilham desse sonho. Enfim, os/as vestibulandos/as
vivem múltiplos papéis e movem-se em diferentes planos: “[...] nenhuma sociedade
é monolítica culturalmente, sempre apresentando planos e dimensões diferenciados
199 Mulher negra, 20 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público.
205
em função do seu modo singular de construção da realidade” (VELHO, 1999, p. 26).
Abre-se espaço e caminhos para a mudança e a transformação de relações sociais.
4.3 O “sentido do jogo”
Na discussão, indivíduo e sociedade que retomo mais uma vez, é nítida a
dificuldade de se precisar rumos tomados pela experiência de cada um. Nessas
experiências, os processos são intercambiáveis, lembra Elias (1990). Isso impõe
cautela de análise. Por mais que os indivíduos movam-se em diferentes espaços e
tempos, como sujeitos de diferentes classes sociais partilham experiências comuns
e, por conseguinte, percepções, sentimentos, memórias, sensações próprias a
essas experiências são criados. É observável que há aqueles que parecem ter mais
acesso ao jogo social, como se dominassem mais as regras, e quando isso se
atualiza nos projetos de classe.
Leandro,200 é filho de médicos e tem vários tios com essa profissão. Fazer
o curso de medicina parece ter sido uma estratégia de ascensão social da família de
Leandro. Os avós paternos são muito humildes, e vieram da Itália com o projeto de
“fazer fortuna”. Conseguiram, por meio da educação dos filhos, que todos se
formassem em medicina, e todos “estão bem de vida. Foi uma conquista para os
meus avós” afirma. Mas, quer romper com a tradição de família e fazer geologia:
Minha é mãe é médica, praticamente minha família toda trabalha na área de saúde. E sempre foi tudo muito certinho, assim, eu sou meio do contra. Acho um absurdo isso que o pessoal faz: numa escola de 2000 alunos, tipo... 1500 (decidem) fazer só três tipos de curso, direito, medicina e engenharias. Acho um absurdo... Aí resolvi fazer algo diferente.
Leandro diz que todo mundo sabe que ele não gosta de seguir aquilo que é “o
normal”; gosta de criar, de inventar. A ideia de geologia surge, primeiro, do gosto
pela geografia. Diz que adora ver “Discovery Chanel” (canal de tv por assinatura), ler
sobre arqueologia e ver documentários. O acesso ao capital cultural dado por sua
posição de classe possibilita-lhe um número maior de opções. Depois, começa a
investigar essa matéria em sites e com os amigos. Nesse ponto, não só o acesso ao
200 Homem branco, 18 anos, classe A, estudante do curso superior privado.
206
capital cultural lhe permite-lhe chegar a essa profissão como a própria rede de
relacionamentos é mais propícia a novas informações: “A namorada do meu irmão é
engenheira e trabalha na Petrobrás. E, ela falou que geologia é uma área bem
promissora”. Complementa com pesquisa, nas quais também descobre tendências
de ascensão nessa profissão:
O curso que eu faço tem uma perspectiva de ganho muito alto depois. O salário inicial é tipo... 8.000 reais, podendo chegar a 20.000, 30.000 reais; não é uma coisa pequena. Mas ninguém quer arriscar. Ficam nos tradicionais. Meus pais me apóiam e ainda caçoam do meu irmão, por estar fazendo medicina. Porque meu pai é médico e sabe como está o mercado... Tudo saturado... Esse bando de gente saindo agora para engenharia, medicina e direito... Tudo com o mercado saturado, provavelmente vão ter uma carreira estagnada... E depois, conversei com meu pai, vou tentar as melhores faculdades do Brasil, faço uma pós no exterior e estou com muito mais chance do que esses que estão na mesmice.
Ainda que não se saiba, se de fato ele terá mais “chances de fazer carreira”
em geologia do que em medicina, é visível o seu grau de autonomia ou liberdade
para buscar opções, em que concilie seus gostos e percepções da realidade com
perspectivas futuras na construção de seu projeto profissional. Essa possibilidade se
dá pelo lugar que ocupa no interior de seu campo, e por facilidades e mobilidades
que aí estão dadas. Sua segurança e visão de futuro parecem apontar para atitudes
típicas de sua família: os avós ascenderam, socialmente, como comerciantes,
quando vieram da Itália; os pais dedicaram-se à medicina numa época propícia ao
desenvolvimento da profissão no Estado do Espírito Santo. Parece dar continuidade
ao projeto de família, mesmo que não perceba. Não no sentido de seguir a profissão
dos pais, mas, de tentar buscar novos caminhos que a levem a maiores ganhos e
conquistas futuras. Fala que quer “ter muito dinheiro”, mas também é importante
fazer o que gosta: “Eu estou unindo os dois. Eu gosto da área. E o mercado está
bom. Sempre abrem vagas na Petrobrás, Arcerlor Mital Tubarão... Essas grandes
empresas do Estado sempre tem 5 ou 6 vagas para geólogos... com salários bons”.
O que observo na experiência de Leandro é aquilo que Bourdieu (2004),
chama de senso do jogo, algo que forjado nas experiências humanas, a partir do
campo em que os indivíduos encontram-se: “Entre as vantagens sociais daqueles
que nasceram num campo, está precisamente o fato de ter o que se chama em
rugby, mas também na Bolsa, o sentido do jogo” (p. 27). Trata-se de uma arte de
“antecipar as tendências”, algo que se vê com freqüência, e que se articula a “uma
origem social e escolar elevada e que permite apossar-se dos bons temas em boa
207
hora” (p. 28). O senso do jogo é uma forma de antecipar acontecimentos, mas,
também, de saber portar-se da maneira devida em cada situação. Aqueles que
nascem no jogo têm o privilégio de já possuir as disposições adquiridas em família.
Nas trajetórias de Sara,201 e de Lívia,202 é possível visualizar os privilégios das
disposições adquiridas em família. A forma de planejar o futuro profissional e a
segurança com que decidem, mostram disposições forjadas em família. Fazer
ensino superior para pessoas das classes mais elevadas, nem mesmo parece uma
conquista, mas uma “consequência natural” da educação. As duas jovens, sequer
concebem a possibilidade de trabalhar antes do término de um curso superior. Lívia,
afirma: “Não pretendo trabalhar antes de completar os estudos”. A ideia de
“completar” mostra que considera o ensino superior uma etapa necessária de sua
educação. Antes de tudo, irá terminá-lo; depois, ingressa no mercado de trabalho. O
mesmo se verifica em Sara que tentará o curso de Direito:
Não tem como trabalhar antes de terminar a faculdade. Agora, no cursinho, a gente estuda o dia inteiro, mas na faculdade não vai ser diferente. Ainda mais em direito que tem que ler muito. Eu penso também que a gente tem que se preocupar em ter uma boa formação. De que adianta trabalhar agora nesses trabalhinhos que pagam pouco? Só atrapalham a formação. Então depois de formado, aí sim, você pode conseguir um emprego de verdade.
O sentido do jogo aqui referido é útil para a análise do acesso à universidade
e às profissões de prestígio. Para esses/as que nascem numa classe de maiores
recursos materiais e simbólicos é como se tivessem maior domínio das
racionalidades do mundo do trabalho desse nosso tempo histórico: estudar, ter uma
boa formação e, em consequência, uma boa colocação no mercado de trabalho. Já
aqueles que aprendem, posteriormente, as regras do jogo, arriscam-se mais, correm
o risco de “estar sempre defasados, deslocados, mal colocados, mal em sua própria
pele, na contramão e na hora errada, com todas as consequências que se possa
imaginar” (BOURDIEU, 2004, p. 29).
Nada impede que as regras do jogo sejam aprendidas. Vejo isso na história
de Isac, por exemplo. Mesmo com todas as dificuldades financeiras e educacionais,
concorda com a importância da educação para uma boa colocação no mercado de
trabalho: “Já passou da hora de fazer faculdade. Se eu quiser melhorar de vida,
preciso entrar na Universidade”. Brenda, também parece aprender como se faz esse
201 Mulher branca, 17 anos, classe C, estudante do curso pré-vestibular privado. 202 Mulher branca, 15 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado.
208
“jogo social” e negocia com a realidade em função da percepção dos sentidos desse
jogo:
Sei que para ter alguma coisa na vida, você precisa ter curso superior. Ficar só nestes “empreguinhos” não leva a gente a lugar algum. Mas tenho que trabalhar. Eu gosto de trabalhar. Então prefiro continuar trabalhando em meio período para poder me dedicar aos estudos. Aí, lá na frente, posso conseguir um emprego melhor.
Os sentidos do jogo, nesse campo das experiências investigadas aqui, são
peculiares a indivíduos que se direcionam para profissões de prestígio. Para àqueles
que pertencem às camadas populares, esses sentidos são apreendidos. O sentido
da ascensão social, a partir do ingresso ao ensino superior e às profissões de
prestígio, não é algo tão comum às experiências dos indivíduos de classes
populares, como é para aqueles de classes mais privilegiadas. Nas experiências
dos/as vestibulandos/as do ensino privado, isso se estabelece quase como próprio
ou “natural” a essa cultura.
Esses sentidos do jogo, estão referidos as próprias vantagens que uma
classe tem em relação a outra de manter-se na escola em nível fundamental e
médio. Um discente, proveniente das camadas populares, tem mais dificuldade e
menos preparo para lidar com o ambiente escolar do que um discente das mais
privilegiadas. No primeiro caso, o ambiente familiar já prepara os indivíduos para o
ambiente escolar, ou seja, para a concentração, para a estabilidade por grandes
períodos de tempo, para as leituras, o gosto pelo conhecimento, para as avaliações,
o domínio das hierarquias, entre outros. Estão mais habituados ao ambiente escolar.
O que, também, é um fator de permanência na escola, além de outros tantos.
Considero importante abordar que as classes sociais portam projetos, formas
de estabelecer relações sociais, aspirações, valores, tradições, costumes e sentidos
atribuídos a própria vida humana. Isso compõe os projetos profissionais
investigados. Assim, os projetos profissionais vinculam-se das mais diferentes
formas aos projetos de classe – seja rompendo, dando continuidade ou compondo-
se a outros projetos.
209
4.4 Projetos de Classes
A opção por dois grupos de investigação, o de uma instituição pública e o de
instituição privada, foi uma estratégia de utilidade metodológica, porque permitiu um
recorte por classes e a investigação de como elas operam sobre os projetos
profissionais. Por outro lado, nessa polaridade, parece haver ocultado as
experiências da classe média. É como se tivesse de um lado alunos/as pobres no
curso pré-vestibular público, e alunos/as mais ricos no pré-vestibular privado. A
classe média é, entretanto, central nessa análise e, ao mesmo tempo, difícil de ser
localizada. Ela é flutuante e seus contornos não estão bem definidos, por isso,
inclusive, tem sido menos estudada do que as elites ou as classes populares. Mas,
na pesquisa em questão, considero de extrema importância tratar dessa classe, uma
vez que a busca de profissionalização os inclui e indica uma estratégia importante
de manutenção e/ou conquista de novas posições de classe.
Aliás, é possível afirmar que a profissionalização é, sobretudo, um projeto das
classes médias. Segundo estudos divulgados pela Fundação Getúlio Vargas (FVG),
o quanto a classe média cresceu no Brasil, no período entre 2004 e 2008, já
corresponde a mais da metade população economicamente ativa (PEA). O número
de famílias na classe C, aumentou de 42,26% para 51,89%, no período investigado.
Para a FGV, uma família é considerada de classe média (classe C), quando tem
renda mensal entre R$ 1.064 e R$ 4.591. As classes de elite (classes A e B)
correspondem a ganhos superiores a R$ 4.591, a classe D ganha entre R$ 768 e R$
1.064. E, os de fato pobres (classe E) são aqueles cujos rendimentos são inferiores
a R$ 768. Nesse estudo, há indicativos de que as famílias das classes A e B
também cresceram de 11,61% para 15,52% na população. Já os brasileiros de
classes mais baixa, com famílias que ganham menos de R$ 1.064, caiu de 46,13%
para 32,59% na população brasileira.203
Passar no vestibular é um sempre acalentado projeto dessas classes, sempre
plurais, em busca de ascensão social, por meio da profissionalização. Como indica
Gomes (2001), os pré-vestibulares foram criados, inclusive, com o intuito de dar
condições para que as pessoas, principalmente de classe média, diante de lacunas de
conhecimento da educação fundamental e média, venham a pleitear vagas nas
203 Disponível em: http://www.fgv.br/fgvportal/principal/idx_materia.asp?str_chave=12089&sessao=2 Acessado em 02/07/2010.
210
universidades públicas e nos cursos de maior prestígio social (aqueles em que a
concorrência é mais acirrada).
Parte dessa classe média - está entre os/as alunos/as da escola pública e
outra parte entre os alunos/as da escola privada. Trata-se de uma classe destinada
a mover-se “em direção à proletarização ou em direção ao aburguesamento”
(MAYER, 1984, p. 92). Por isso, ainda ha dificuldade de localizá-la204. Mas, não
basta indicar uma renda econômica para poder distinguir os limites dessa classe em
relação ao proletariado ou à burguesia. É preciso compreender um pouco mais de
sua constituição histórica.
Mayer (1984) usa os termos “baixa classe média” ou “pequena burguesia”
para indicá-la. E, sugere que sua constituição teria se dado no fim do período
medieval e início dos tempos modernos “cujos contornos sociais permanecem
vagos”, quando “novos homens começaram a fundar cidades e a instalar-se nelas,
fossem comerciais, manufatureiras, eclesiásticas ou burocráticas” (p. 94). Esses
novos homens não eram apenas oriundos de uma classe de nobres senhores da
terra, cavaleiros ou vilões da Europa Medieval, mas, também, pertenciam a uma
“escória flutuante” como indica Pirenne (Apud Mayer. Op. Cit.), de homens pobres e
sem terra, associados pela pobreza que construíram seu “capital a partir do nada”.
Esses pequenos comerciantes e burocratas são o grosso da população das cidades.
E, quando a base econômica muda da estrutura feudal para as cidades, o “patriciado
mercantil e manufatureiro” passa a ocupar as primeiras posições nas cidades,
deixando essa pequena burguesia como classe intermediária. Com a burguesia
patrícia no poder, essa baixa burguesia luta pela ascensão movida pela esperança
de pertencer à classe rica e o medo de cair no estado miserável do proletário. É o
que já apontava Marx (2006), em O “18 brumário de Louis Bonaparte”205.
Politicamente, é também uma classe flutuante. Só se apresenta como
revolucionária, quando está ameaçada.
204A classe média constitui-se básica e historicamente, desde seu surgimento, de advogados, jornalistas, médicos, professores, estudantes universitários, e outras profissões liberais. Essa classe média seria existente como subproduto do “rápido desenvolvimento do capitalismo comercial, industrial e financeiro, que também estimulou a expansão do recrutamento à força da classe trabalhadora” (MAYER, 1984, p. 100). Os white-collar compostos por funcionários públicos, empregados do escritório e do comércio começam a integrar essa classe criando um novo segmento dessa pequena burguesia. 205 Para aprofundamentos ver MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006.
211
O que me interessa aqui é a identificação desses dois sentimentos: “medo”
de perda de posição social e “esperança” de ascensão social, como expectativas
desse segmento. Uma classe, que busca o tempo todo se diferenciar das classes
pobres e se assemelhar às classes mais altas, efetiva a valorização da cultura
burguesa. Mas ela, por si só, “gera continuamente uma cultura, um ethos, um estilo
de vida e uma visão de mundo distinto” (MAYER, 1984, p. 93). Ela pode ser
apreendida nos gostos, nos costumes, e nas disposições para a ação que se
constroem a partir de um projeto comum: a ascensão social. Há, portanto, um
sentimento comum da classe média que, desde o seu surgimento, busca fugir dos
riscos de retorno às classes baixas e projeta a ascensão social em direção à classes
mais elevadas. O sentimento é de medo e esperança que, em suas práticas,
relaciona-se a mecanismos de querer marcar uma diferença em relação aos
desfavorecidos, como uma demarcação “não pertenço a essa classe” e, ao mesmo
tempo, uma vontade de se assemelhar às classes mais altas. Há ainda indicativos
importantes sobre essa classe, em sua composição mais modesta, indicados por
Mayer:
(1) ganham a vida através de um trabalho que não é preeminentemente natural, não exigindo esforço físico regular e exigindo um mínimo de alfabetização, (2) que, examinados através de critérios objetivos (de renda, riqueza, educação, residência, etc.) não são uma classe alta nem baixa, (3) que são singularmente autoconscientes do fato de não serem nem de uma nem da outra classe, mas que aspiram subir; (4) que são inclinados a ser altamente individualistas em sua busca de mobilidade ascendente; (5) que consideram a propriedade privada algo sacrossanto; (6) que são imensamente suscetíveis à ação pessoal e as práticas de patronagem; (7) que são propensos a proteger ou melhorar as oportunidades de vida dos seus filhos; (8) que, em última instância, e especialmente em situações de tensão estão mais temerosos de cair ou voltar para ramos de negócios considerados desonrosos ou para o trabalho manual, do que ansiosos para ascender para a classe média absoluta; e (9) que se reúnem para uma ação política conjunta somente em ocasiões de grande tensão (1984, p. 107).
Barbosa (1998) argumenta que a profissionalização é um caminho
significativo de organização de estratégia de extratos da classe média. É o que se
observa na formação dos costumes dessa classe. Montam estruturas para que os
filhos possam estudar. Há importantes estratégias dessa pequena burguesia como
gostos, modos de se vestir, uma estrutura e a vida familiar típica, “possuem hábitos
de lazer, maneiras de falar, valores sociais, atividades associativas e atitudes
políticas que são típicas de sua classe” (MAYER, 1984, p. 93).
212
4.4.1 Costumes e tradições das classes média e alta
Lívia, nem pensa em trabalhar antes de ter uma formação acadêmica
universitária. É como se nem menos considerasse a possibilidade de ofício sem o
curso superior. Ela tem 15 anos, é filha de médico e apesar de seus pais morarem
no interior, montaram toda uma estrutura para ela fazer o pré-vestibular na capital.
Tem um apartamento na Praia da Costa, um dos melhores bairros, da Grande
Vitória, motorista que a leva e busca na escola, uma faxineira que limpa o
apartamento e faz as refeições na própria escola, já que estuda em tempo integral;
são comodidades criadas para que ela e a irmã dediquem-se apenas aos estudos.
Lívia, estuda certa de 13 horas por dia, de 07 às 17h30 na escola, (para a 1h30
quando faz sua refeição) e mais duas horas quando chega em casa. Tudo isso é
parte de tradições, inventadas pelas classes mais altas de Vitória. Algo que persiste
nessa região como uma tradição – talvez desde a época em que as elites agrárias
mandavam seus filhos estudar na capital – mas, também, resultado do
desenvolvimento incipiente de outros municípios, que compõem o Espírito Santo.
Lívia complementa: “Eu nunca trabalhei, nem estágio. Eu nunca pensei em trabalhar
antes de entrar na universidade, isso nunca passou pela minha cabeça”. As marcas
de classe social são nítidas em sua experiência. As facilidades, favorecidas pelas
famílias, ajudam a ampliar as disposições sobre o “senso do jogo”. E disso, Lívia,
tem consciência:
Para mim, tá [sic] mais fácil por um lado. Tenho esse apartamento aqui, eles vêm todo o final de semana aqui ver eu e minha irmã. E até essa facilidade que a gente tem pra buscar informação, conhecimento pela internet... Assim a escola oferece muita coisa, que na época deles eles não tinham.
Reclama, entretanto, que a concorrência aumentou “é quase impossível
passar logo no primeiro vestibular de medicina, as pessoas tentam duas ou três
vezes”. Já se prepara para estudar por dois ou três anos, só para ingressar no
vestibular. Isso me leva a perceber, não apenas a invenção de tradições e costumes
das classes médias, mas, também, o quanto essa classe aumentado e tem
ascendido na estrutura social do país.
Os projetos profissionais de que trato, em grande parte, são de indivíduos
vindos de segmentos dessa classe. Eles portam projetos e costumes que lhe são
213
comuns, mesmo que não se localizem nela. Os costumes e tradições da classe
média são percebidos por Luciano206, referindo-se à vantagens de que alunos/as de
curso privado desfrutam para passar no vestibular. Assim, conquistam vagas nos
cursos acadêmicos, não por seus méritos pessoais, mas pelas facilidades de que
dispõem:
Eu não concordo que eles sejam mais inteligentes do que nós, mas eles têm mais chances [reforça o tom da voz] do que nós. Tem professores, apostilas, simulados, tudo voltado para o vestibular. Então já estão acostumados a isso. Estudam o dia inteiro, tem tudo nas mãos, não precisam trabalhar. Claro que assim é mais fácil passar no vestibular.
Luciano é de classe popular; observa que essas vantagens estão nos
costumes e tradições desses segmentos de classe, quando afirma: “Eles estão
acostumados”. Habituaram-se a um modo de vida, montado para passarem no
vestibular. Para esses/as alunos/as desses segmentos, passar no vestibular é quase
uma obrigação. Mas não só ingressam na Universidade Pública como precisam
passar nos cursos mais prestigiados e, para isso, não se importam de fazer cursinho
por mais de um ano. Sara, indica: “Se eu não passar em Direito esse ano, eu faço
cursinho de novo. Porque é o que eu quero mesmo, e não vou tentar outro curso.
Um curso mais fácil”.
Diferenças afirmam-se em relação aos alunos/as do pré-vestibular público,
quanto a aprovação no vestibular de 2009. Não tentarão novamente vestibular na
UFES. João afirma207: “Se eu não passar na UFES esse ano faço, então, outro curso
técnico. Algo ligado à mecânica”. João desistirá do curso superior, até porque, como
afirma já tem uma profissão: a de torneiro mecânico, há mais de 20 anos. Mas, há
aqueles que tentarão uma instituição privada, como afirma Maria208: “Se eu não
passar aqui na UFES, faço Enfermagem numa instituição privada à noite, porque
preciso trabalhar, vou tentar o PROUNI. Sara, ao contrário, vive só para se preparar
para o ingresso na Universidade Pública:
Eu passo o dia inteiro na escola estudando, aí eu chego em casa de noite é só tomar um banho mesmo e descansar. Estudo no feriado, sábado, domingo e ainda mais agora por causa do ENEM aí mudou tudo lá na escola. A prova do ENEM vai ser dois dias, então lá na escola, teve que mudar o simulado para dois dias. O
206 Homem branco, 21 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 207 Homem branco, 42 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público. 208 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público.
214
simulado agora é sábado e domingo, aí realmente não sobra tempo para quase nada. Sábado normalmente é dia letivo e agora eles estão querendo aumentar o número de simulados, porque a prova já é agora em Outubro. Daí quando não tem aula no sábado tem o simulado. A média era de um por bimestre, só que eles aumentaram agora porque é uma coisa muito repentina. E a gente tem que se acostumar com o novo padrão de prova e os professores estão fazendo a gente enxergar como é que vai ser. Por isso tem tantos simulados assim, para a gente treinar.
O projeto profissional de Sara liga-se aos projetos desses segmentos de
classe e, por isso, tem o reforço e o apoio da família, além das facilidades materiais
e de acesso ao capital cultural:
A minha mãe incentiva, depois que eu escolhi ela falou: “é isso mesmo”, porque ela falou que eu sempre gostava de impor minha opinião, falava que eu era um pouco autoritária. Ela diz que, dentre todos que eu falei, direito é o que eu mais me encaixo. Às vezes, eu falo que quero desistir e fazer uma coisa mais fácil porque o direito é muito concorrido, aí ela vai e fala: “Ah não minha filha! É seu sonho, você falou que queria fazer mesmo, então faz!”. Aí é um apoio também.
Além disso, Sara afirma que, o outro incentivo vem do fato de toda a família
gostar muito de estudar. Todos estão fazendo curso superior: “Eu vejo minha mãe
agora, depois de tanto tempo, fazer faculdade, entrando numa área bem diferente
daquela em que ela trabalhava, porque está fazendo farmácia. Meu pai, agora,
resolveu fazer administração, então eu vejo a força deles em estudar”. Um incentivo
a Sara e, também, um reforço na afirmação dos projetos da classe média em busca
de ascensão de uma família que emerge das classes inferiores.
Além de estudarem em tempo integral, de buscarem cursos de maior prestígio
social e deterem as facilidades promovidas pelos pais, observo outros costumes nas
classes média e alta capixabas com relação à educação: viagens e intercâmbios
culturais a outros países. Rodrigo, Hanna, Leandro, Isabela209 e Pedro210 já
passaram um ano, estudando nos EUA ou no Canadá para aperfeiçoar o inglês.
Vejo aí também estratégias de diferenciação usada pela classe média para a
afirmação de prestígio e valor social. Um outro costume típico, em relação ao meio
que investigo, é que os/as filhos/as são estimulados a tentar vestibular em várias
Universidades Públicas do país, e os pais montam as estruturas financeiras para
essa locomoção e instalação. Leandro,211 relata:
209 Mulher branca, 16 anos, pertencente à classe B, estudante do curso pré-vestibular privado. 210 Homem branco, 18 anos, classe B, estudante do curso pré-vestibular privado. 211 Homem branco, 18 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado.
215
Vou tentar bastante coisa esse ano, é... Na verdade, Geologia para cinco universidades, que estão no ENEM. Se não der nessas cinco eu vou remanejando e jogando pra qualquer lugar do país, eu não tenho problema em viajar pra qualquer lugar do país. Eu posso ir pra Amazônia que pra mim ta bom. Já falei com meus pais.
Essa prática é incentivada pelo próprio curso pré-vestibular privado. O mural
das salas de aula está sempre atualizado com informações sobre os melhores
cursos do Brasil em cada profissão. Montam turmas especiais para a preparação do
vestibular de universidades específicas, como Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Universidade de Brasília (UNB), Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Universidade de São Paulo (USP), entre outros, além de Cursos
preparatórios para: Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e o Instituto Militar de
Engenharia e, assim por diante. Além de cursos específicos, sempre incentivam
os/as vestibulandos/as que desejam sair das profissões tradicionais: medicina,
engenharia e direito, a sair do Estado para poder trilhar uma boa carreira. Os/as
vestibulandos/as incorporam esses valores: “Se você quer algo na área de
comunicação, tem que sair. De preferência São Paulo, afirma Isabela212”.
Há outro sentimento que se revela comum a esses/as pré-vestibulandos/as é:
“o dever de passar numa Universidade Pública”. Expressam tais sentimentos, como
afirma Hanna: “A obrigação é passar na Federal! Eu sinto que é... Ainda mais que
meu pai é professor de Federal também. A obrigação é sempre essa também, lá em
casa ele cobra muito!” Não ingressar na Universidade é motivo de vergonha para
muitos, Leandro afirma:
Nosso pai paga – o quê? são 13 anos da vida pagando escola particular – pra gente, com esperança que a gente passe numa Federal... Daí a gente vai e não consegue passar... É vergonhoso. Então, acho que é meio que obrigação a gente passar e se não passar na Federal, pelo menos, pagar a particular. Senão, vira exploração com os pais.
É fato que tais tradições e costumes estão referidas às classes média e alta
da população de Vitória, visto que o curso privado, que investigo, é composto pelas
classes C, B e A, como já indicado na análise quantitativa. Projetos das elites e os
projetos da classe média, por vezes, se misturam e, por isso, foi difícil uma análise
em separado das classes mais altas porque elas misturam-se. Além disso, destaco
que há uma pequena elite, que não foi contemplada nesta pesquisa por não estudar
212 Mulher branca, 16 anos, classe B, estudante do curso pré-vestibular privado.
216
no curso pré-vestibular que investigo. Aliás, pequena só no tamanho, porque nesse
grupo concentra-se grande parte da riqueza de Vitória. São jovens que estudam
numa renomada escola de tempo integral, na qual todo o ensino médio já é voltado
para a preparação para o vestibular. Embora não os tenha entrevistado, trabalho
com estes/as alunos/as como orientadora profissional há mais de cinco anos, o que
me possibilita observar que tendências referidas à tradições e costumes observados
nesta pesquisa estão, sobejamente, reforçadas nessa pequena elite. Aliás, como
mostra Mayer (1984), são as classes média e alta que reforçam costumes de uma
elite cultural e, portanto, a análise seria oposta: tendências observadas no curso
investigado é que seguem tendências das elites que não investiguei, mas que, por
dedução, permitem-me tal inferência. Intercâmbios culturais, viagens, cinemas,
teatros, estudo em tempo integral, leitura, fazer vestibular em várias e nas melhores
Universidades Públicas do país, além de uma estrutura material (apartamento,
empregados, etc.) na capital, apenas para se dedicar aos estudos, são experiências
bastante comum às elites capixabas.
4.4.2 Tradição e Mímesis
Ainda como parte do estudo das tradições e costumes das classes, avalio
que, em grande parte, projetos são (re) produzidos em função da mímesis que,
segundo Lima (1980), não pressupõe mera imitação do real, mas, de uma forma
específica de representação da sociedade. E, como toda a representação não é
cópia fiel da realidade, mas, também, recriação de sentidos e significados,
considero que os projetos dos pais ou de classes são “imitados”, na medida em que
são avaliados pelos sujeitos como “bons” modelos a ser seguidos. A fala abaixo é a
tradução de sensibilidades de Lívia,213 ao dar continuidade ao projeto dos pais.
O motivo principal que me levou a escolher medicina, foi por influência dos meus pais, porque eles são médicos. Desde criança que tem aquela coisa, de que os pais gostam que os filhos sigam a carreira deles, pelo menos no meu caso foi assim. Ai eles me influenciaram. É uma área que eu gosto, essa área de biomédicas, eu até me identifico.
213 Mulher branca, 15 anos, classe A, estudante do curso pré-vestibular privado.
217
Os pais são médicos, fizeram importantes conquistas, “construíram um
patrimônio”, e a esse projeto de crescimento ela quer dar continuidade. O projeto de
vida dos pais é parte constitutiva de seu próprio projeto profissional. Os pais tiveram
muitas dificuldades para ingressar no curso de medicina e são exemplos de pessoas
que tiveram ascensão social a partir da profissão. Os avós maternos moravam no
interior, a mãe ganhou uma bolsa por ser boa aluna, num bom colégio de Vitória, e
veio morar na casa de uma prima para poder estudar. O pai teve diversos
problemas, sua família, é também do interior, sem muitas posses, e ele começou a
trabalhar cedo para se manter e pagar os estudos. Lívia dá continuidade, repete a
tradição dos pais e afirma a importância de direcionamento dos filhos: “Eu acho que
os pais devem, realmente, influenciar um pouco os filhos, orientar, indicar o que é
melhor para nós na opinião deles. Porque é tão legal poder conversar com os
nossos pais se eu tiver a mesma profissão deles”. Neste caso, a expectativa de
repetição do projeto dos pais situa a força da imitação ou mímesis como parte da
“poética” profissional.
Como afirma Mousinho (s.d, p. 2), parafraseando Lima: “mímesis supõe algo
antes de si a que se amolda, de que é um análogo, algo que não é a realidade, mas
uma concepção da realidade”. Esse dado anterior permanece como referência,
mesmo quando as ações miméticas parecem divergir do modelo. O dado anterior é
a própria experiência dos pais que permanecem como modelos a ser seguidos.
Desde quatro ou cinco anos de idade, ela fala que quer ser médica, vai ao
consultório dos pais e fica encantada. A mímesis só ocorre porque os modelos
passam pelo crivo de avaliação de Lívia e são julgados como “bons” modelos. Não
se imita modelos dos pais, simplesmente, porque são deles, mas porque passam a
ser considerados “dignos de imitação”. Ela traça suas construções com base na dos
pais e legitima tais produções:
Se a gente parar para pensar, a gente é muito novo para escolher uma profissão que vai seguir o resto da vida. Acho que no meu caso foi até necessário eles me orientarem mesmo. Até porque eu entrei adiantada na escola, dois anos, eu tenho 15 anos e já tenho que escolher uma profissão.
A mímesis pode operar um “despojamento de valores sociais e da maneira
como eles enfocam a realidade e, por fim, desta própria realidade” (MOUSINHO, s.
d., p. 2). Lima, distingue mímesis de representação em que o ato mimético é
interpretado como o correlato a uma visão, anteriormente, estabelecida da realidade
218
e mímesis de produção, que se refere à maneira pela qual a sociedade concebe a
realidade. Isso significa que não existe um mero reflexo do real em nossa
subjetividade, uma representação da realidade. Há uma criação desta. Isso alarga o
conceito do real.
Trata-se de uma imitação criativa, o que pode ser observado na trajetória de
Hanna. Observa: “Não dava para fugir de ser intelectual”, referindo-se ao projeto dos
pais. O pai, PHD em filosofia, é professor universitário e a mãe é jornalista.
Tradições de família inscrevem-se em seu projeto como o gosto pela leitura, mas,
também, uma atitude reflexiva diante da vida, disposições criadas, principalmente,
em função do convívio e dos fortes laços afetivos com o pai. Seu pai é figura de
admiração e inspiração: “Meu pai é um pós-doc sinistro, eu não chego a metade
dele”. Por tomá-lo como modelo bem sucedido, percebo a mímesis no
comportamento de Hanna. Mas, como mímesis é também produção, Hanna avalia a
postura do pai como muito radical, excessivamente crítica e, por isso, faz
adaptações: “Pelo meu pai, ele viveria no meio do mato, lá nos socialismos da vida.
Eu não sou tão assim. Mas, sou bastante crítica em relação à realidade social. Isso
eu puxei dele”.
Proponho, então, que o projeto de ascensão social a partir do trabalho e da
profissionalização, próprio às classes médias expõem a mimesis dos “bons” modelos
a serem seguidos, fadados a ganharem continuidade no tempo e no espaço, algo
observado em grande parte das trajetórias dos entrevistados. A imitação de projetos,
mostra Isac, está também em classes populares, quando menciona um pouco das
suas perspectivas de crescimento e de conquistas a partir dos estudos:
Eu penso assim, que a educação hoje é a base para você conseguir alguma coisa na vida. Eu quero que minha filha supere, eu não quero que ela deixe de fazer cursinho para entrar na faculdade e nem que ela trabalhe cedo como eu. Quero que ela se dedique aos estudos para conseguir subir na vida.
O desejo de ascensão é parte daquilo que move as expectativas de Luciano,
que também vem das classes populares. Além disso, como afirma, “é ambicioso”, ou
seja, quer romper com as determinações de classe, quer um curso considerado
próprio das elites.
219
4.4.3 Tradições das classes mais baixas
Há algumas tradições e costumes, que também parecem reafirmar-se entre
jovens das classes mais baixas, como já indicado quanto aos projetos profissionais:
o ingresso cedo no mercado de trabalho, a escolha de um curso mais fácil de passar
no vestibular, a opção por cursos que permitam conciliar o trabalho, a redução ou de
planejamentos rigorosos; a persecução de resultados no curto prazo, entre outros.
Vale lembrar, entretanto, que classes mais baixas da população brasileira, as da
classe E, nem mesmo estarão contidas nesta análise. Isso, porque muitos deles
nem menos chegam ao final do Ensino Médio; estão fora da escola.
Entrevistados/as do curso pré-vestibular público, pertencem mais a classe B, como
mostrei nos dados quantitativos: 73% estão na classe D e, somente, 15% pertencem
a classe E.
Jovens de camadas sociais mais pobres pensam a ascensão social a partir de
uma profissão; e os sentidos que se desenham no horizonte de expectativas é esse.
Semelhante conduta fica evidenciada entre aqueles/as pertencentes a segmentos
sociais mais elevados. Por isso, afirmei que apesar do projeto de classe média ser
forjado por ela, não lhe é exclusivo dela: o projeto está em circulação na cultura,
compondo e orientando os sentidos dos projetos profissionais. Mas as formas de
buscar, essa ascensão, não são únicas. Há costumes e tradições por conhecer,
alguns já tratados, que são parte das experiências comuns que observo entre os/as
vestibulandos/as do curso público.
Como indicado, o ingresso cedo no mercado de trabalho e a necessária
conciliação entre estudo e trabalho é uma prática recorrente entre os jovens das
classes populares. Entre os/as entrevistados/as que trabalham, suas atividades
laborativas iniciaram-se entre 13 ou 14 anos, seja no mercado informal, seja como
estagiário ou em programas como o do menor aprendiz214. Em geral, são as próprias
necessidades econômicas que os levam a essas experiências; é o que observo no
relato de Brenda:
214 O programa do menor aprendiz é um “contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de quatorze e menor de vinte e quatro anos, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência, as tarefas necessárias a essa formação”. Esse contrato não pode ultrapassar 2 (dois) anos. Informação disponível em: http://www.guiatrabalhista.com.br/guia/menor.htm. Acessado em 23/06/2010.
220
Eu tinha ganhado uma bolsa de estudo no Americano Batista [escola privada de Vitória] só que meu pai não quis a bolsa porque tinha que pagar a matrícula e mais o material de estudo. Uniforme, eu ganhei e a bolsa de estudo. Mas, como ele não pode pagar, eu acabei ficando na escola pública. Então, nisso veio a vontade de trabalhar... Eu não tinha dinheiro para pagar as coisas que eu poderia ter como estudar numa escola boa. Então pensei em trabalhar para ter dinheiro. Fiz minha inscrição em todos os lugares de estágio e de menor aprendiz, até que o Salesiano [escola privada de Vitória] me chamou e eu consegui fazer o menor aprendiz lá.
Grande parte desses/as jovens começa a trabalhar por questões econômicas.
Mas, as trajetórias dão densidade a essa análise, quando mostram que não se trata
de questão simples. Tradições inscrevem-se nas famílias e estão nos discursos dos
pais: “Homem com 18 anos que não trabalha é vagabundo”. Formulam assim
projetos de conquista de liberdade e de independência, que se atualizam em suas
razões e sentimentos: “Quero trabalhar pra poder sair à noite, sem ter que ficar
pedindo dinheiro para os meus pais”. Enfim, pude perceber nesses costumes e
tradições, que razões e sentimentos forjam sensibilidades que criam certas
disposições para a ação. Uma interiorização das relações sociais que não pertence
ao domínio apenas da individualidade, pois, se refere sempre a uma classe ou um
grupo. Trabalhar cedo é algo que se inscreve na esfera do sensível, como é possível
perceber na fala de Brenda:
Muitos pais pressionam os filhos para estudar e trabalhar, mas pra mim não é uma pressão, é uma coisa que eu quero, eu gosto de estudar e de trabalhar. Adoro o meu emprego, o ruim é acordar cedo, mas do resto eu gosto muito. É um sacrifício que estou fazendo de estudar de manhã e trabalhar a tarde e estudar aqui no cursinho à noite, mas que vai ser muito melhor pra mim no futuro.
Esta estrutura entra em movimento e se aloja no interior do indivíduo,
lembrando que o habitus, como resultado da incorporação da estrutura social e da
posição social de origem dos indivíduos, ajusta-se, constantemente, à situações
diferentes daquelas no qual foi, originalmente, formado. Por isso, vê-se a criação de
um habitus que, por vezes, rompe com as disposições e os valores criados pela
família. Os pais de Geisiane,215 não querem que ela trabalhe: “Eles sempre falaram
para eu me dedicar só para os estudos, mas aí meus amigos começaram a trabalhar
e eu fui na onda”. Incorpora, entretanto, essa atividade como parte de seus gostos:
“Meus pais conseguem me sustentar. Mas só que, sabe, quando você começa a
trabalhar, não consegue mais parar. Quando teve a greve da Caixa Econômica, 215 Mulher amarela, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
221
nossa, eu fiquei agoniada, não tinha nada pra fazer, só estudando”. Na trajetória de
Luciano, é possível perceber que a opção por trabalhar vem de um desejo de
autonomia, de independência:
Luciano: Estagiei na CST, aí quando eu saí de lá, o pessoal da área em que eu trabalhava me chamou para trabalhar lá como contratado e aí e acabei ficando. Estou lá desde os quinze anos. Entrevistadora: Por que você começou a trabalhar aos quinze anos? Luciano: Porque eu quis, pra eu ter uma maior independência e não precisar dos meus pais, pra eu poder sair e comprar o que eu quisesse, achei que seria bom. Entrevistadora: E seus pais na época, o que acharam? Luciano: A minha mãe falava quase todo dia que não era para trabalhar porque ia atrapalhar os estudos, mas eu não dei muito ouvido não. Entrevistadora: E se você falasse para seus pais que ia largar o emprego para estudar como seria? Entrevistado: O problema não é esse, eles me ajudariam. Mas a questão é ficar dependente deles para tudo. O meu dinheiro não vai para minha casa, é pra cobrir os meus gastos pessoais.
Para dar conta do trabalho e do estudo, os jovens acabam por optar por
cursos superiores cuja dedicação seja em tempo parcial. É o que observo no relato
de Isac:
Não tem como você hoje escolher um curso que você vai estudar ai quatro anos cinco anos só por causa do sonho, esses fatores ai contribuíram até pra minha esperança de entrar na UFES. O próprio direito, não é nem eu acho dificuldade. Hoje porque eu não tentaria direito na UFES, primeiro porque estuda o dia inteiro e como é que eu vou sustentar a minha família? A gente sabe que trabalha, dá duro, então infelizmente são cursos como educação física, biblioteconomia e arquivologia que tem a noite.
Bartalotti e Menezes-Filho (2007) mostram que a procura por
um curso mais fácil é comum entre os/as estudantes do curso superior. Isso mostra
que a concorrência e a probabilidade de sucesso, no vestibular, têm impacto sobre a
construção dos projetos profissionais. Liliam216, aluna do curso pré-vestibular público
que irá tentar o vestibular para pedagogia na Universidade Federal do Espírito
Santo, ao invés de Direito, acredita que não irá passar em direito e tentará
pedagogia porque é um curso mais fácil de passar:
Mesmo com o sistema de cotas, eu acho que esse ano está meio complicado passar em Direito na UFES. O ENEM está bem mais rigoroso, e eu nunca tinha tentado vestibular aqui (refere-se a universidade já que PUPT funciona lá dentro). Então eu não tenho noção de como vai ser... Eu sei que é muito disputado. Tem pessoas que estão disputando com afinco, e eu estou há dois anos, parada.
216 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
222
Outros optam pela faculdade privada, porque há mais facilidades em conciliar
trabalho e estudo, é o que fala Brenda: “Teve uma época que eu estava optando
pelo PROUNI e a NOSSA BOLSA, porque em faculdade particular você pode
trabalhar, e já na UFES parece que não, porque é bem puxado”.
Além desses costumes, observo a recorrência de outras práticas que se
vinculam como: não planejar o futuro e perseguir resultados de curto prazo, entre
outros. Maria,217 mostra isso em sua trajetória: “Eu tava [sic] com vinte e cinco para
vinte e seis anos, eu já tinha feito contabilidade, magistério, já não estava gostando
mais; aí parti para essa área de enfermagem, fiz o curso técnico”. Pergunto como
ela chegou a essa conclusão, como ficou sabendo do curso e ela responde: “Se eu
não me engano, eu estava passando em frente ao SENAC e falei que iria aproveitar
para entrar para ver que cursos estariam tendo, aí eu pequei um panfletinho dos
cursos e me interessei. Uma amiga tinha falado que era um curso bom...” Na
verdade, os outros cursos também são procurados, sem muito planejamento. Fez
contabilidade, em nível técnico, porque a irmã estava fazendo, como não conseguiu
emprego na área, foi fazer magistério porque uma amiga falou que ela levava jeito
com crianças. E, então, fez enfermagem. A falta de planejamento e a busca de
resultados rápidos parecem afirmar racionalidades do mundo do trabalho. É como
se os projetos profissionais também indicassem um presentismo, decorrente de
circunstâncias ocasionais.
Embora difícil de ser identificado, é possível verificar uma concepção de
mundo, bastante freqüente, que valoriza o tempo presente na construção dos
projetos profissionais. Explicação do presente pelo presente que, comum ao
presentismo que centra seus interesses no curto prazo, no hoje, no aqui e agora, no
contexto atual, sem preocupações com futuro ou passado. Os presentismos
pautam-se em teses de que nem o futuro e nem o passado existem, o que importa é
o tempo presente. Como afirma Hartog (1996), estamos “no tempo do presentismo”.
Os grandes ideais de progresso, as utopias revolucionárias e as esperanças de
mudar a sociedade foram enfraquecidas a partir das catastróficas Guerras Mundiais
e, com isso, a perspectiva de voltar-se para o futuro foi, aos poucos, cedendo
terreno ao presente. Essa é a fisionomia do século XX de que nos fala Hartog
(1996). O apelo é: esqueçam o futuro e aproveitem o presente. As próprias utopias
217 Mulher negra, 37 anos, classe E, estudante do curso pré-vestibular público.
223
revolucionárias começam a não ultrapassar a análise sobre o presente. O presente
transforma-se em horizonte:
Nessa progressiva invasão do horizonte por um presente mais e mais ampliado, hipertrofiado, está claro que a força motriz foi o crescimento rápido e as exigências sempre maiores de uma sociedade de consumo, onde as descobertas científicas, as inovações técnicas e a busca de ganhos tornam as coisas e os homens cada vez mais obsoletos. A mídia, cujo extraordinário desenvolvimento acompanhou esse movimento que é sua razão de ser, deriva do mesmo: produzindo, consumindo e reciclando cada vez mais rapidamente mais palavras e imagens (HARTOG, 1996, p. 135).
Essas perspectivas, assentadas no presente, começam a florescer a partir da
década de 1960, mas é bom lembrar, entretanto, que a solução de problemas
imediatos de sobrevivência tem maior impacto nas classes populares do que nas
classes mais privilegiadas, por razões óbvias. Essa luta por sobrevivência se faz,
cotidianamente. Os/as alunos/as de classes mais privilegiadas, ainda que possam
façam projetos profissionais, associados aos objetivos de curto prazo, desfrutam de
muitas possibilidades de reverem seus rumos e os reorientarem em novas
referências, no jogo que sabem jogar. Além disso, o presentismo é uma marca dos
tempos que correm, pois as mudanças tecnológicas reciclam saberes e fazeres,
redefinindo campos de interesse a cada momento. Instabilidades e redefinições,
principalmente no campo do trabalho, são percebidas. Mas, essa instabilidade
parece ter efeitos mais devastadores nas camadas menos favorecidas.
Não é comum apenas às classes populares, embora seja mais recorrente
nestas, atrelar religião aos projetos profissionais. Brenda descartou os cursos
superiores de psicologia e de biologia porque teme deixar de acreditar em Deus:
Eu conheci uma menina que estava fazendo psicologia e ela falou coisas que eu não acreditava. Disse que não acreditava que uma pessoa possa ser curada por Deus. E eu acredito nisso, tanto que acredito em milagres, eu acredito que o sol é deus dizendo bom dia e a lua ele dizendo boa noite. Eu vejo Deus em pequenas coisas, sempre tive muita fé em Deus, nas coisas, nas pessoas. Então a psicologia meio que desacredita as pessoas, pelo que eu entendi é isso... fiquei com medo! Também tem a professora de biologia do Salesiano, onde eu faço o menor aprendiz, ela escreveu no quadro sobre o “Bing Bang” e ela acredita nisso. Aí eu falei que eu conhecia pessoas que fizeram curso superior que acreditam que foi Deus quem criou a terra, mas ela disse que não acreditava. E meio que te assusta isso porque eu tenho receio de parar de acreditar.
O relato de Brenda retoma questões já indicada sobre o romantismo das
profissões, sobretudo o romantismo messiânico, apontado por Löwy (1990). É como
se uma profissão não pudesse confrontar preceitos religiosos, como se isso fosse
224
perigoso e ameaçador à ordem do mundo. Os traços “apocalípticos”, “catastróficos”
e “destruidores" da tradição judaica atualizam-se. O medo impera nesse tipo de
projeto. Os projetos profissionais também se constroem atrelados a esses sentidos.
Arrisco dizer que, talvez, com maior recorrência nas classes mais baixas. Há vários
fatores que posso destacar para tal argumento. O primeiro é a própria precariedade
de informação e educação. O deficitário capital cultural os faz depender de outros
registros de saber, que não os oferecidos pelas instituições educacionais. É como se
na falta do conhecimento acadêmico científico, as camadas populares afirmassem
suas orientações para a vida em registros do saber comum e saberes religiosos.
Isso é reforçado no habitus, que se forja em família, e que dá o tom às percepções e
compreensões sobre a realidade.
Assim, tradições e costumes de classes imprimem às experiências
humanas sentidos diversos; são esses sentidos os que orientam projetos
profissionais. Querer um curso superior mais fácil de passar ou de maior status
social? Ingressar logo na Universidade, independente do curso de ingresso, ou
tentar por dois ou três anos o vestibular para o curso escolhido? Dedicar-se apenas
aos estudos ou conciliar estudo e trabalho? Planejar uma carreira ou optar pela
oportunidade do momento? Buscar ascensão social ou fazer o que gosta? São
muitos os sentidos encontrados nesse campo.
4.5 Para onde se dirigem as classes? Os projetos de classe, então, dão rumo aos projetos profissionais. Ao
menos em parte, eles compõem partes das sensibilidades dos/as jovens. Profissões
almejadas sociais com vistas à concretização da ascensão social é sempre um
projeto comum às classes sociais em geral. Tradicionais cursos de prestígio social
no Brasil, como indicado por Barbosa (1998), engenharias, medicina e direito ainda
são bastante procurados, sobretudo, como parte desse movimento. O relato de um
professor do cursinho privado, confirma o que indico:
Os mais ricos escolhem cursos mais diferenciados. Diferente dos alunos de classe média. Ficam no trio tradicional (medicina-direito-engenharia). Observo que muitos alunos que romperam essa tradição, voltam depois para o pré, tentando novo curso... quase sempre no trio tradicional. Importante considerar que os menos abastados escolhem outros cursos, mas normalmente esses alunos – aí é uma
225
aposta pessoal – fazem essa opção por não estarem preparados para os cursos mais concorridos.
A fala do professor do cursinho privado é representativa dos movimentos que
acontecem nesse campo. Suas percepções são feitas com base nos quinze anos de
atuação junto a esse público. O professor, também, percebe que a implementação
do sistema de cota na UFES, modifica levemente os caminhos seguidos pelas
classes privilegiadas com a redução de cotas sem reservas: “Um bom exemplo é o
curso de medicina. Se antes a concorrência era grande, com a redução das vagas,
houve migração para as faculdades privadas, mesmo com o alto custo”. Além disso,
percebe algo já indicado: os projetos também se fazem em função das
racionalidades do mundo do trabalho: “os que buscam na verdade, pelo menos a
maioria deles, é a possibilidade de ganhos futuros e aí tentam seguir as tendências
do mercado. Com o petróleo, por exemplo, muitos têm procurado cursos em que
haja uma conexão relacionada à área”.
Já os cursos de menor prestígio social, em geral os menos concorridos no
vestibular, como mostra Narita e Fernades (2001), são destinados às classes mais
baixas. Biblioteconomia, letras português, ciências sociais, história, nutrição, serviço
social, pedagogia, entre outros, como indicado nos dados quantitativos sobre
escolhas de alunos/as do pré-vestibular público. De outro lado, as classes média e
alta procuram os cursos de maior prestígio. No estudo de Souza e Silva (2000),
medicina aparece como a profissão de maior prestígio, acompanhada de
odontologia, engenharia e psicologia. São, portanto, as profissões mais almejadas
pelos/as alunos/as de classes mais privilegiadas.
Os lugares a ser ocupados pelas classes são do conhecimento dos próprios
vestibulandos/as. Este é o caso de Hanna,218 quando anuncia aos amigos e colegas
que fará vestibular para o curso de história: “Sempre que as pessoas me perguntam
o que eu vou fazer e eu falo que é História, aí eles falam: ‘Você tem problema? Você
vai ficar pobre!’”. Isso mostra como as profissões estão vinculadas às perspectivas
de classes. Ela conta: “Todos meus amigos me zoam, até a minha melhor amiga. Na
maioria, a mentalidade é focada em Medicina. Das dez pessoas que eu mais gosto,
meus amigos que eu estudei desde o primário, oito farão Medicina”. Hanna pertence
a uma classe mais privilegiada em que fazer história não é comum. Há uma
218 Hanna, mulher branca, 19 anos, classe B, estudante do curso pré-vestibular privado.
226
separação nítida entre os cursos a ser seguidos pelas classes. Hanna, que possui
boas chances de ingresso numa Universidade em cursos mais prestigiados, se
considerada a sua trajetória escolar, por isso ninguém acredita que fará história, um
curso menos concorrido e menos prestigiado, socialmente. Mas, Hanna, parece
romper com predestinações de sua própria classe. Em seu projeto, há a tradução de
um certo “romantismo das profissões”:
Se eu tivesse a personalidade da minha mãe, eu nunca teria ido para área de História. Minha mãe gosta de gastar, daquilo que é bom... Assim, tudo bem que tem pessoas que ganham dinheiro com as coisas mais estranhas do mundo, mas não é a regra. Só que eu não estou preocupada com dinheiro.
Os pais de Brenda, provenientes das camadas populares, também
compreendem os movimentos das profissões e dos projetos de classes. Por isso,
projetam um futuro de ascensão social para a filha, indicando que são contra sua
opção por Geografia, pois para eles “professor não é profissão”. A mãe fala sobre os
perigos da profissão:
Hoje em dia para ser professor está muito perigoso, assim na rede estadual, lá você lida com todo tipo de pessoa, então está perigoso! Hoje em dia tem alunos ameaçando professores, tem até no caso uma escola do meu bairro em que os alunos fizeram uma lista de professores que eles iam assassinar, coisas assim horrorosas que estão acontecendo, eu também tenho muito medo disso.
Seu pai apresenta mais argumentos: “Meu pai, quando eu disse que queria
fazer Geografia, ele disse que não, que eu não poderia ser professora porque para
ele professor não é profissão. Ele disse que eu teria que ser ou Médica, Advogada
ou Engenheira”. Observo que o pai de Brenda compactua, e deseja para a sua filha,
um projeto das classes médias.
Bartalotti e Menezes-Filho (2007) mostram como o status influencia na opção
por determinadas carreiras nos ingressantes do curso superior. Mostra que os
graduados em cursos tradicionais como direito, medicina e engenharia têm
“vantagens” associadas ao prestígio de suas carreiras. O que também se vincula
aos rendimentos próprios a essas profissões. Mostram, ainda, que o maior
diferencial de rendimento ajustado pela jornada de trabalho é encontrado na carreira
de medicina, seguido por engenharia e economia. Na ponta oposta, os autores
indicam geografia, pedagogia e educação física, aqueles que, como visto, são de
fato os mais procurados pelas classes baixas. Um dado interessante, da pesquisa
desenvolvida por esses autores, diz respeito à carreira de geólogo que apresentou
227
diferencial crescente de rendimentos, superando inclusive medicina, o que é
atribuído ao aumento expressivo das operações da Petrobrás, nas últimas décadas.
Leandro, pertencente à classe mais alta, aquele que usei como figura emblemática
para falar do “senso do jogo”, opta por esse curso. Rompe com os tais três cursos
tradicionais, os quais quase todos de sua escola irão fazer; decide ousar e arriscar.
Isso confirma a percepção do professor deste cursinho: os mais ricos optam por
diferentes cursos, enquanto a classe média mantém-se presa à tradição: medicina,
direito e engenharias.
Tudo isso é também parte das representações que se constroem no interior
das experiências humanas. A mídia analisada também reforça as representações
das profissões de prestígio, bem como os lugares a ser ocupados pelos indivíduos
sociais. Na figura a seguir, capa de uma das edições da revista analisada
“Oportunidades Cursos & Concursos”, é possível perceber na chamada que traz
sobre o vestibular, que os jovens seguram livros de química, cálculo e anatomia:
Figura 3. Capa do “Oportunidades Cursos e Concursos”
Fonte: Cursos & Concursos, ano 6, Vitória, 03-09 mar., 2009.
Apesar de ser uma matéria que não trata, especificamente das profissões em
específico, mas do vestibular, em geral, porque apenas representadas as áreas de
cálculo, as exatas e as ligadas à saúde? Porque nenhum livro de sociologia,
filosofia, ou qualquer outro ligado às ciências humanas? Porque são representadas
áreas como suposta opção áreas de maior prestígio social? Além disso, é possível
observar que enquanto os meninos seguram livros das áreas exatas e a menina
segura o de anatomia, indicando que, provavelmente fará medicina. Em entrevista
228
com o editor chefe da revista que prepara as capas deste periódico, perguntei se a
escolha dos livros que os alunos e a aluna segurariam para a foto foi sugerida por
ele. O editor chefe nos responde:
Não, não é proposital. Mas acaba sendo pela escolha deles. Como eles são candidatos, quando você fala: “cada um pega um livro que gostaria de mostrar”, eles vão exatamente naqueles que eles vão precisar no seu curso. É o que a área de atuação deles tende a pedir. Isso é uma coisa natural, você não precisa dizer que livro escolher. Neste caso aqui o que a gente escolheu de propósito foi três pessoas, porque vestibular você não compete sozinho. Você compete contra candidatos e é preciso colocar números na capa para dar essa idéia de competitividade. E precisa ter homens e mulheres para mostrar que existem candidatos homens e mulheres.
Mas por que nenhum negro na capa? Eles não fazem o vestibular? Na verdade
quando o editor chefe vai até um curso pré-vestibular para fazer essa foto, encontra
valores, tendências e segmentos próprios a uma realidade social e as reproduz. O
relato mostra, idéia que já tratei anteriormente, que a mídia re(cria) as
representações que circulam na cultura. E assim, reforça as idéias de
competitividade, de profissões de prestígio bem como lugares a ser ocupados por
homens, mulheres, brancos, negros, ricos, pobres, etc. Pude observar relatos que os
vestibulandos trazem sobre a percepção de que a mídia, principalmente, a televisiva
produz representações sobre as profissões. Brenda relata:
Você vê, nas novelas e nos filmes não tem médico e nem advogado pobre. E isso, com certeza, influência os jovens. Sempre aparece o médico como “o doutor”, naquele casarão, cheio de empregados, com carrão... A mesma coisa acontece com o advogado... Mas quando mostram professor... É aquela dura realidade.
Creio que em estudos posteriores é possível desenvolver um aprofundamento do
impacto das mídias audiovisuais na opção por carreiras, que encontrei como indícios
neste campo. Há ainda certas representações que persistem em relação aos gostos
por disciplinas e a associação de cursos superiores, é o que observo e que também
se registra no relato de um dos professores do pré-vestibular privado:
Em geral os alunos escolhem por que acreditam que quem gosta de história e geografia tem que ir para o direito, quem gosta de matemática para as exatas e que gosta de biologia para as biomédicas. O que pode ser uma furada. O curso superior não tem nada a ver com as disciplinas da escola.
229
Representações que persistem e são parte dos direcionamentos nesse campo. Mas
apesar de todas essas representações, outros movimentos se fazem. Brenda,
contrária ao pai, não deseja as tais profissões de prestígio:
Para ser médica hoje em dia não daria certo. Ver que está acontecendo na saúde pública e na particular, todo mundo ficando no meio dos corredores, todo mundo passando mal... Eu sempre gostei de ajudar todo mundo... Não daria certo para mim. Para eu ser advogada já me disseram que tem que “levar a pessoa muito bem na conversa”, e não gosto de mentira, um dia você pode estar defendendo uma pessoa que é culpada... ou acusar alguém inocente... Eu ficaria com peso na consciência! Já ser Engenheira é muito cálculo pra mim. São profissões dignas, mas como qualquer outra. Para mim qualquer profissão é profissão. Sei que tem gente que descrimina, mas o gari é essencial para a sociedade...
Isso mostra que apesar dos projetos profissionais dirigirem-se, em parte,
rumo às racionalidades do trabalho no presente, numa aliança aos projetos de
classe, os projetos profissionais resultam de escolhas deliberadas, nem sempre
conscientes. Os indivíduos negociam com a realidade e, como muitas vezes
indicado, afirmam sentidos outros, que nem sempre são os contidos nos projetos de
família ou de classe. Como afirma Velho (1999, p. 41): “Um projeto coletivo não é
vivido de modo totalmente homogêneo pelos indivíduos que o compartilham.
Existem diferenças de interpretação, devido a particularidades de status, trajetória e,
no caso de uma família, de gênero e geração”. Por mais que certas profissões sejam
de prestígio, essa jovem parece não desejar nada representado como de ajuda ao
próximo – situando, por exemplo, a medicina e o atual enfrentamento das
precariedades da área de saúde. Nem mesmo aceita a área da justiça - nem sempre
comprometida com “fazer justiça” – mas, muitas vezes, com interesses do mercado.
Os sentidos que Brenda afirma, parecem-me parte de uma “poética” presente num
dado romantismo das profissões, tema por ser mais bem examinado.
4.6 Ressentimentos também orientam projetos profissionais
Os estudos sobre memória e história têm considerado as relações entre
afetos e esfera política, ampliando a compreensão das experiências humanas. Para
isso, tem recorrido à compreensão não somente de razões e sentimentos, que
movem a história, mas também dos ressentimentos, ou seja, rancores, invejas e
desejos de vingança. Alguns desses estudos rememoram a perspectiva de
230
Nietzsche na indicação de que há nas experiências humanas “um conjunto de
sentimentos em que predominam o ódio, o desejo de vingança e, por outro lado, o
sentimento, a experiência continuada da impotência, ‘a experiência continuamente
renovada’ da impotência rancorosa” (ANSART, 2004, p. 15).
Nietzsche faz do ressentimento, segundo Ansart (2004, p. 17), “uma
verdadeira configuração psíquica e cultural, um habitus próprio à civilização judaico-
cristã”. O que me interessa, aqui, é mostrar que não apenas sentimentos, mas,
também, ressentimentos movem experiências estudadas. Patiane,219 que se casou
para sair de casa e agora, separada, não é mais aceita na família, tem
ressentimentos dos pais: “como pode um pai e uma mãe não querer seu filho dentro
de casa?” Esses ressentimentos a fazem desejar o ingresso num curso superior.
Raiva, desejo de vingança e impotência fazem com que ela tenha a energia para
revidar, mostrar que é capaz, ao contrário do que os pais pensam:
Pensava em fazer vestibular, mas tinha sempre preguiça, nunca pensei em me esforçar de verdade. Aí quando eu fui chamada para fazer o cursinho aqui, eu aproveitei a oportunidade e pensei: ‘agora em tenho chance de mostrar para os meus pais que eu posso ser melhor, que eu posso dar a volta por cima’, eles sempre falaram assim que eu sou a vergonha deles... [choro].
Liliam,220 também é movida pela raiva, pelo medo que suas experiências
revelam. Relata que o pai nunca lhe deu atenção, nem a ajudou na questão
financeira. Foi praticamente sua avó quem a criou com os poucos recursos que
tinha: “Agora ele vem querer dar uma de pai? Não! Eu tenho muita mágoa dele. Não
por ele ter se separado, mas pela diferença, a minha irmã ele criou e sempre deu
atenção. Por que comigo foi diferente?” Os ressentimentos de Liliam também a
movem em direção a futuras conquistas profissionais: “Faço questão de mostrar
para ele que não preciso de nada. Que tenho meu dinheiro. Que posso conseguir as
coisas sem ajuda dele. Para mim, esse é o maior castigo que posso dar a ele”.
No relato de memórias dessas duas trajetórias, observo que elas funcionam
como uma irrupção, como um “trazer à tona” o passado e que retorna, de alguma
forma, como algo que ainda “não passou, continua ativo e atual e, portanto, muito
mais do que reencontrado, ele é retomado, recriado, reatualizado” (SEIXAS, 2004, p.
49). Nesse movimento de resignificação do passado, é como se o passado fosse
219 Mulher parda, 22 anos, classe D, estudante do pré-vestibular público. 220 Mulher branca, 27 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
231
presente nas experiências citadas; como há carga afetiva significativa das memórias
evocadas, os ressentimentos também se fazem presentes. Constituem forças
imanentes nas histórias investigadas. Vale lembrar, que os ressentimentos não se
constituem em reações a estímulos imediatos, trata-se de um estado ou sentimento
persistente, como afirma Konstan (2004, p. 59).
Os ressentimentos não são restritos à esfera individual, apenas. Eles são
partilhados também por grupos, por afinidades nas experiências. A solidariedade
viabiliza o ressentimento coletivo. É o que observo nas descrições e referências aos
descasos da escola pública com os/as alunos/as provenientes de classes populares.
Na dinâmica que apliquei com estes/as vestibulandos/as, medo, tristeza, rancor e
raiva foram observados, muito mais, nos gestos e expressões do que nas palavras.
As palavras captaram apenas o nível da indignação, que já descrevi por vezes: “É
horrível o que fazem com a gente. O ensino é muito fraco [refere-se à escola
pública] e isso prejudica a vida toda!”, é o que afirma Guilherme221. Mas, há muitos
ressentimentos não expressos em palavras. Como afirma Seixas (2004), não há
memória involuntária que não venha carregada de afetividade.
As emoções e sentimentos descritos são criadores de ressentimentos: “a
inveja, o ciúme, o rancor, a maldade e o desejo de vingança.” (ANSART, 2004, p.
22). Pode-se localizá-las em emoções que derivam da “percepção de que o grupo,
ao qual se pertence está em uma posição injustamente subordinada em uma
hierarquia de status” (KONSTAN, 2004, p. 61). Soma-se a eles a experiência do
medo e da humilhação. “A humilhação não provém apenas de uma inferioridade. Ela
é a experiência do amor próprio ferido, experiência da negação de si e da auto-
estima suscitando o desejo de vingança” (ANSART, 2004, p. 22). Esse é um
sentimento partilhado pelas classes desfavorecidas.
O regime democrático favorece o surgimento dos ressentimentos. Ele está na
base do igualitarismo democrático destruidor, afirma Ansart (2004), parafraseando
Nietzsche, na base de movimentos populares, socialistas e anarquistas. Isso, porque
supõe uma igualdade de direitos que se desenha muito mais como ideal, do que
como realidade. Mas, a proposta do regime democrático é outra, ou seja, é
“substituir as violências pela tolerância, o enfrentamento por fruto dos ódios e pelo
confronto de opiniões” (ANSART, 2004, p. 23). Esse estado psicológico, duradouro e
221 Homem branco, 19 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
232
coletivo, pode ser compreendido como uma “raiva que se consome lentamente”,
como afirma Konstan (2004, p. 61):
[...] uma frustração de longa duração ou percepção de uma injustiça contra a qual não se tem poder, ao menos no momento, de reagir. É muito mais provável encontrar tal sentimento em um Estado democrático, no qual os cidadãos acreditam que são pares uns dos outros; nesse caso, a desigualdade social coexiste com um ideal de igualdade política. Tal sentimento também emerge entre classes que perderam, ou estão perdendo, sua posição historicamente privilegiada.
Essas referências favorecem a compreensão de movimentos de estudantes
de classe média contra as cotas sociais e raciais. Eles/as lutam e se mobilizam, não
pelo sentimento de classe, mas pelos ressentimentos. Pelos temores de perder
direitos e lugares conquistados, no caso, na Universidade Pública. Temem que seus
privilégios de ingresso no vestibular estejam ameaçados pelas classes baixas. É
também, em função de ressentimentos que as classes subalternas mobilizam-se. Os
movimentos sociais, a favor das políticas compensatórias, são movidos por perdas
e por ressentimentos, ocorridos ao longo da história passada, mas que se inscrevem
em memórias atuais.
A idéia colocada, aliás, nos regimes democráticos é a de superação do ódio e
rancores pelo reconhecimento das pessoas e dos direitos delas. O que, de acordo
com Freud (1996a, 1996b), seria impossível. Para ele, a superação dos
ressentimentos é impossível, porque qualquer existência de convívio social,
civilizado, exige uma repressão dos instintos individuais. As pulsões e os desejos
não plenamente satisfeitos geram ressentimentos. Algo a se pensar.
E, por mais que eu tenha algumas ressalvas em relação à teoria psicanalítica,
reconheço nela elementos para compreender, societariamente, sentimentos e
ressentimentos – que não consegui explicar, até então. Muitos/as entrevistados/as
manifestaram um “horror à medicina”, por não gostar da profissão e por senti-la
como uma profissão que nunca fariam. Sara, afirma: “Eu nunca faria Medicina,
porque tem sangue... essas coisas todas... Eu tenho horror a tudo isso”. Maria, que
tentará enfermagem, revela também um horror à medicina: “Nem pensar eu fazer
medicina. É uma profissão que eu nunca faria. Estar com a vida de alguém nas
mãos...” Mas, não teria semelhantes tarefas na profissão de enfermagem?
233
Geisiane,222 também, atesta seu “horror à medicina”: “Não gosto da profissão. Essa
coisa de salvar vidas e tal... E também é muito concorrida”.
Esse último relato pode ter ajudado a encontrar raízes de repulsa à medicina
que por tantas vezes deparei-me: “É muito concorrida”. Sendo uma profissão tão
concorrida, e tão distante das possibilidades das classes populares, admito que há
ressentimentos não à profissão em si, mas ao fato de não terem acesso a ela. O
vestibular de medicina atualiza, para muitos, ressentimentos de exclusão dos grupos
em relação as melhores oportunidades e às chances de ascensão, simbolicamente
constituídas. Melhor, então, “rejeitar” a medicina, como parte de nossos mecanismos
de defesa humano, lembrando a explicação da raposa por não alcance das uvas, na
velha fábula: “[...] elas estão verdes”... Pergunto-me, então, se Freud (1996a,
1996b), diante do mal estar da civilização, nos nossos dias, não poderia estar certo
ao afirmar que aquilo que desejamos pode ser o que rejeitamos, e também o seu
inverso, aquilo que rejeitamos é aquilo que desejamos? Creio ser este um assunto
para aprofundamentos posteriores, mas, sempre com o cuidado de não se atribuir à
esfera individual e mecanismos inconscientes e universais, as causas únicas para
razões e sentimentos que se forjam em contextos sociais específicos, localizados
espacial e historicamente.
Por hora, admito a existência de diferentes visões de mundo; de estilos de
vida que se constroem no espaço das sociedades complexas, e que compõem as
diferentes formas de ser, pensar e agir. Isso significa que esses jovens adquirem
suas maneiras de perceber e traduzir a realidade em função das experiências
vividas em suas trajetórias; e seus projetos profissionais se fazem num campo de
possibilidades. Isso não significa, entretanto, que as disposições sociais construídas
em razão da cor, raça, gênero, geração e classe social não tenham importância.
Defendo que não há determinismos de qualquer espécie; o que existe é uma
interação constante, que constrói e desconstrói formas de ser, sentir, pensar e agir.
Tudo isso, expressa um campo de possibilidades em que se constroem projetos
profissionais, marcados por elementos conscientes e inconscientes. A cultura move-
se em meio a diferenças. As noções de campo de possibilidades e de projeto,
propostas por Velho (1999) contribuem, então, para lidar com a problemática de
unidade e da fragmentação social. O projeto, no nível individual, lida com a
222 Mulher amarela, 18 anos, classe D, estudante do curso pré-vestibular público.
234
performance, as explorações, o desempenho, as opções, ancoradas à avaliações e
definições da realidade”. Nesse aspecto, os projetos de classe assim pensados, são
projetos coletivos, nem sempre percebidos como tal pelos indivíduos. Entretanto,
eles compõem razões e sentimentos dos projetos profissionais de vestibulandos/as
e indicam que também atuam e mudam seus sentidos originais.
235
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chego ao final com a sensação que há, muito mais, o que dizer e
compreender sobre essas experiências humanas investigadas. A multiplicidade de
sentidos e de sensibilidades que se forjam do campo de possibilidades, espaço de
feitura dos projetos profissionais, não se esgota com essa pesquisa. Ao contrário
levanta questões e proposições para aprofundamentos posteriores. Alguns aspectos
que investigo, do campo de possibilidades dos/as vestibulandos de Vitória 2009-
2010, como a exclusão educacional e as racionalidades do mundo do trabalho, são
matérias já bem exploradas por outros pesquisadores, como mostrei. Há, entretanto,
um olhar diferente, nesta pesquisa: vê-los como processos de longa duração
histórica que compõe a subjetividade humana de múltiplas formas, em rupturas,
conciliações, adaptações... Enfim como processos que compõe as experiências
humanas, que compõe as sensibilidades de um tempo, mas que, nem por isso, as
determinam, são (re)criados e (re)significados por homens e mulheres com
diferentes inserções políticas, econômicas, sociais e culturais. É nessa perspectiva
que tanto a exclusão educacional e as racionalidades do mundo do trabalho são
parte constitutiva dos projetos profissionais.
Há, ainda, outros aspectos bem menos explorados sobre os projetos
profissionais. Um desses aspectos, bastante pertinente, que orientou minhas
investigações foi: como os sentidos, produzidos no campo do gênero, compõe as
razões e sentimentos de jovens que buscam por uma profissão? As associações do
feminino aos cuidados e à maternidade, a busca por igualdade de direitos e
oportunidades, o uso desigual dos tempos femininos e masculinos, tentativas de
conciliação dos tempos pelas mulheres, as diferentes representações que se
constroem sobre homens e mulheres, a manutenção de tradições e as
rupturas/conquistas femininas em relação à profissionalização, tudo isso é parte,
ainda não investigada, que descobri ser de extrema importância na feitura de
projetos profissionais. Nisso, acredito ter dado uma contribuição, significativa, aos
estudos da área.
Contribuições sobre razões e sentimentos forjados a partir das diferentes
inserções, além de gênero, como as de classe social, raça e geração, foram de
grande valia para a compreensão de que os projetos profissionais se fazem,
236
também, atrelados a outros projetos mais amplos e que se articulam aos lugares
sociais ocupados.
Os “romantismos das profissões”, termo que usei para descrever como o
romantismo político pode ser observado, também, na opção por carreiras, foi um
importante achado desta pesquisa. Os romantismos movem as experiências
profissionais: desejo por profissões em que se possa fazer o bem ao próximo, salvar
vidas, fazer justiça, mudar a sociedade ou contribuir para um mundo melhor foram
observadas. Algo que só descobri no contato com o campo de investigação e com
os movimentos analíticos que se fizeram a partir de leituras específicas. É um tema
que merece maiores investigações, não apenas por ser recente, mas por se
constituir em sentido civilizador de nosso tempo, de impacto na formação dos
projetos profissionais.
A análise da mídia revelou-se num caminho inverso. A percepção inicial que
possuía, era de que a mídia teria um impacto decisivo nas opções por carreiras,
mas, o que observei, é que ela, como parte do campo cultural, circula e faz circular
sentidos diversos construídos pelos homens e mulheres de um dado tempo. Não
digo, com isso, que a mídia é neutra. As relações de poder e os interesses atrelados
ao mercado são visíveis nessa instituição, mas isso não faz da mídia, uma autarquia
quase metafísica manipuladora e criadora de sentidos à própria vida humana, como
supõe certas tendências. Mas, uma análise sobre essa temática, precisa ser mais
bem tratada em estudos posteriores. Usando, talvez, outros recortes. A mídia
impressa que investiguei, apesar de trazer importantes elementos de análise, tem
menos impacto entre os jovens do que as formas mais modernas de mídia áudio-
visual. Sugiro que se busque sentidos das profissões a partir da internet, ou de
programas de televisão assistidos pelos jovens, em futuros estudos.
Desdobramentos posteriores também podem fazer-se em relação ao próprio
material coletado. Há muitos registros de memória que não utilizei. Cada entrevista
transcrita resultou em importantes achados de mais de 10 páginas que, com certeza,
revelam sentidos ainda não explorados.
Mas, chego a importantes conclusões. As razões e sentimentos que
investiguei revelaram questões próprias a uma temporalidade: dos/as
vestibulandos/as de Vitória ano 2009 – 2010. O regime de historicidade foi útil para
verificar um dado recorte no tempo e no espaço, que possui sentidos próprios – não
referentes apenas a um contexto, mas, como parte da longa duração, uma ordem do
237
tempo – com suas proibições, permissões e invenções. Esse olhar permitiu-me
entender, nas experiências investigadas, o cruzamento de processos sociais, nem
sempre percebidos e que não se separam, em sua interação com os sujeitos apesar
da condição social. Esses movimentos humanos constroem-se como um rizoma,
usando a metáfora de Guattari e Deleuze (1997), em que a organização dos
elementos que constituem uma energia propulsora de um desejo e de um projeto
não estão, necessariamente, visíveis, nem tampouco se definem como um sistema
social subordinado a qualquer modelo hierárquico ou linear. É essa a grande
contribuição da tese: verificar os projetos profissionais para além dos determinismos
sociais ou individuais. O ineditismo reside no fato de ter pensado as “escolhas
profissionais” como “projetos profissionais”, por isso a sugestão de mudança do
nome. Processos que se constroem ao longo das experiências individuais e em suas
diferentes inserções, com tantos outros campos da vida humana.
O que pretendi mostrar é como as experiências são indissociáveis de uma
dada configuração social. É na experiência individual que se constroem as
resistências, as docilidades e os conformismos. O que se faz num dado estágio de
configuração da civilização. Por isso, implicam em certos sentidos civilizadores. Os
acontecimentos civilizadores, por menores que possam parecer, apontam para um
processo em constituição que se faz com certos sentidos. Assim, ousei na busca de
sentidos para os acontecimentos que investigo. O processo civilizador é uma obra
lenta, de construção do homem pelo homem, descarta qualquer possibilidade de se
apresentar como resultado determinístico de ação da natureza ou de fatores alheios
à própria ação humana. Assim, os sentidos, por mais insignificantes que pareçam,
ao serem articulados uns aos outros, podem indicar aquilo que se pode constituir
nesse processo.
Na perspectiva da longa duração histórica, esses sentidos, de uma dada
conjuntura, mostraram tanto continuidades como mudança de tendências sociais.
Assim, o campo de experiência – o pré-vestibular e nas expectativas em relação ao
ensino superior de diferentes jovens (pobres, de classes médias e altas, homens e
mulheres, brancos, negros e pardos, mais novos e mais velhos) – revelou razões e
sentimentos, ainda pouco examinados, que movem os/as vestibulando/as e que se
movem em determinadas direções e sentidos. Na análise do sensível me deparei
com uma multiplicidade deles: medo do fracasso, desejo do sucesso, sensação de
“não se capaz”, desejo de superação, “senso do jogo”, a escolha de um curso mais
238
fácil de passar, não poder se dedicar somente aos estudos, querer uma profissão
em que afirme gostos pessoais, seguir a profissão dos pais ou de figuras de
referência (mímesis das profissões), a opção por uma profissão feminina ou
masculina, enfim, razões e sentimentos diversos dessa dada configuração local e
temporal investigada. Sensibilidades atreladas às racionalidades da
profissionalização, um dos sentidos civilizadores da modernidade, também puderam
ser visualizadas: ter que fazer curso superior, escolher uma profissão de prestígio,
fazer ensino superior para ser menos peão, desejo de ascensão social e de status,
reforço do ideal liberal de escolha, além das já mencionadas sensibilidades que se
vinculam aos romantismos das profissões.
Também pude verificar como as opções por carreiras se fazem em função
campo cultural, em que se criam disposições para a ação, tradições e costumes. Em
geral, um habitus de classe, o que faz com seus membros se destinem a certas
expectativas profissionais. Observei tendências: grupos sociais com menos acesso
ao capital econômico e cultural tendem a seguir profissões de menor prestígio,
assim como o seu contrário, grupos que possuem maior capital econômico e cultural
tendem a seguir profissões de maior prestígio. Movimentos da longa duração
reforçam essas tendências, como a falta de democratização de ensino no Brasil,
atualizam-se nessas experiências. Há, entretanto, outras questões que se colocam
no horizonte de expectativas com as novas demandas do mundo do trabalho e as
políticas compensatórias no campo educacional (cotas sociais e programas como
PROUNI e Nossa Bolsa).
Enfim, os projetos profissionais também remetem à inserção social econômica
e cultural e a questões inscritas no presente como: sistema de cotas e as
expectativas que surgem com esse sistema, ingresso no mercado de trabalho,
desemprego, entre outros. Além de processos sociais mais duradouros como:
acesso desigual das camadas populares ao mercado de trabalho, a falta de
democratização do ensino superior no Brasil, divisão social do trabalho, questões
relacionadas à classe, gênero e etnia e campo das políticas públicas, entre outros.
Tomando de empréstimo as contribuições de Koselleck, afirmo que o campo de
experiência pessoal, sempre revela outras experiências. O importante é que todos
esses processos sociais atualizam-se nos indivíduos na forma de gostos, razões,
sentidos, sentimentos e habitus, vividos na experiência individual de cada um.
Ganham contornos específicos. Os indivíduos negociam com a realidade, com
239
certos sentidos civilizadores que os levem a caminhos que tragam ganhos e
conquistas. E, é nessa negociação com a realidade, inter-relação complexa do
indivíduo com seu meio, que se encontra, tanto as possibilidades de manutenção
como as de ruptura com as determinações sociais. Negociações com a realidade fazem-se nos projetos profissionais em função
de um horizonte de expectativas. O ingresso numa Universidade Pública é, de fato,
parte dessas expectativas e impulsiona outras tantas. O que orienta a experiência
humana são os desejos, os sonhos, as perspectivas futuras, a possibilidade de
ganhos e conquistas materiais e imateriais. E, não, simplesmente, acontecimentos
passados. Aliás, as memórias humanas, inclusive, não são fiéis retratos fieis do
passado, são também invenções, na medida em que sujeitas a interpretações e
resignificações.
A tese conclui que, para além das classes, do gênero, da cor da pele, das
gerações etc., esses sujeitos, com razões e sentimentos variados, também
produzem novas experiências que podem deslocar ou manter suas posições
originais. Uma série de negociações com a realidade resignificam e dão novos
rumos às trajetórias humanas. Esse campo de experiências em que se constroem os
projetos profissionais move-se, portanto, não apenas em função do passado, mas
das expectativas futuras que ele porta. E, assim, em razões e sentimentos humanos,
se constroem os projetos profissionais!
240
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257
APÊNDICE 01 - QUESTIONÁRIO PARA ALUNOS/AS VESTIBULANDOS/AS DE 2009
Nome:______________________________________________________________ Telefone(s) para contato:_______________________________________________ Em que bairro e cidade você mora? ______________________________________ Instituição em que faz pré-vestibular:_____________________________________ Turma/Sala:__________________________ Local:_______________________________ Sexo: ( ) M ( ) F Idade: ( ) Até 20 anos ( ) 21 à 25 anos ( ) 26 à 30 anos ( ) 31 ou mais Você se considera: ( ) Branco ( ) Pardo / Mestiço ( ) Negro ( ) Indígena ( ) Amarelo (oriental) Você trabalha? ( ) Sim ( ) Não Se você trabalha, assinale abaixo qual a natureza: ( ) Estágio ( ) Setor público ( ) Setor privado ( ) Autônomo ( ) Mercado informal Qual a escolaridade do seu pai? ( ) Nunca foi à escola / primário incompleto ( ) Primário completo / fundamental incompleto ( ) Fundamental completo / médio incompleto ( ) Médio completo / superior incompleto ( ) Superior completo ( ) Pós-graduação Que profissão seu pai exerce ou exerceu? _________________________________ Qual a escolaridade da sua mãe? ( ) Nunca foi à escola / primário incompleto ( ) Primário completo / fundamental incompleto ( ) Fundamental completo / médio incompleto ( ) Médio completo / superior incompleto ( ) Superior completo ( ) Pós-graduação
258
Que profissão sua mãe exerce ou exerceu? _______________________________ Para qual(is) curso(s) você fará vestibular em 2009? _________________________ O que levou você a essa escolha? ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Qual a renda da sua família223? ( ) até dois salários mínimos ( ) de 2 à 6 salários mínimos ( ) de 6 à 15 salários mínimos ( ) de 15 à 30 salários mínimos ( ) acima de 30 salários mínimos
MEIOS DE COMUNICAÇÃ
O
Qual(is) você
acessa, lê ou
assiste:
Identifique nos campos o(s) nome(s) de cada um:
Qual o tempo diário
gasto com esta
atividade?
Qual(is) contribuem
ou influenciam sua escolha profissional?
Programas de
TV
Jornais da TV
Novelas da TV
Revista
Jornal Impresso
Comunicação on-line (e-mail,
MSN, etc.)
Sites de relacionamento (Orkut, Match,
etc.)
Internet em
geral
Outros:
223 Classificação definida pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
259
APÊNDICE 2 – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado(a) como voluntário(a) a participar de uma pesquisa sobre “PROJETOS PROFISSIONAIS”
O objetivo é dar nitidez aos sentimentos e razões, que emergem das experiências de vestibulandos/as de cursos preparatórios para o vestibular em Vitória-ES e que orientam a construção de projetos profissionais.
GARANTIA DE ESCLARECIMENTO, LIBERDADE DE RECUSA E GARANTIA DE SIGILO:
Você será esclarecido(a) sobre a pesquisa em qualquer aspecto que desejar. Você é livre para recusar-se a participar, retirar seu consentimento ou interromper a participação a qualquer momento. A sua participação é voluntária e a recusa em participar não irá acarretar qualquer penalidade ou perda de benefícios. A pesquisadora irá tratar a sua identidade com padrões profissionais de sigilo. Os resultados da pesquisa serão apresentados a você e permanecerão confidenciais. Seu nome ou o material que indique a sua participação não será liberado sem a sua permissão. Você não será identificado(a) em nenhuma publicação que possa resultar deste estudo. Uma cópia deste consentimento será arquivada no programa de estudos de gênero, geração e etnia: demandas sociais e políticas públicas da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e outra será fornecida a você.
Eu, _______________________________________ fui informado(a) dos objetivos da pesquisa acima de maneira clara e detalhada e esclareci minhas dúvidas. Sei que em qualquer momento poderei solicitar novas informações e motivar minha decisão se assim o desejar. A pesquisadora Luciane Infantini da Rosa Almeida e sua certificou-me de que todos os dados desta pesquisa serão confidenciais.
Em caso de dúvidas poderei chamar a estudante me comunicar com a pesquisadora no telefone (27) 9924-3889.
Declaro que concordo em participar desse estudo. Recebi uma cópia deste termo de consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer as minhas dúvidas.
___________________________________
Participante
___________________________________
Pesquisador
260
APÊNDICE 3 – Opções de homens e mulheres por cursos universitários
Segue a tabela224 com nome do curso oferecido pela UFES, o total de homens que o escolheram, o total de mulheres e o total de vagas oferecidas em cada um:
CURSO MASCULINO FEMININO TOTAL Administração 46 52 98
Administração noturno 30 20 50 Arquitetura 14 46 60
Arquivologia 21 45 66 Artes Plásticas 8 51 59 Artes visuais 11 35 46
Biblioteconomia 17 33 50 Ciências da computação 39 01 40
Ciências Biológicas 27 43 70 Ciências contábeis (not.) 50 26 76
Ciências contábeis (vesp.) 20 22 44 Ciências Econômicas 61 37 98 Ciências Sociais (not.) 22 18 40 Ciências Sociais (ves.) 25 15 40 Curso de Formação de
Oficiais 22 3 25
Comunicação Social - jornalismo
18 32 50
Publicidade 16 34 50 Desenho industrial 35 24 59
Direito 47 61 108 Ed. Física 20 24 44
Ed. Física Bacharel 22 18 40 Enfermagem 10 50 60
Engenharia ambiental 8 12 20 Engenharia civil 51 29 80
Engenharia da computação 38 2 40 Engenharia Elétrica 66 13 79
Engenharia Mecânica 71 9 80 Engenharia da Produção 16 4 20
Estatística 7 3 10 Farmácia 14 36 50
Filosofia (bacharelado) 13 11 24 Filosofia (licenciatura) 14 10 24
Física – diurno 50 9 59 224 A partir das listagens dos nomes dos aprovados por cada curso, fiz uma tabulação de número de homens e do número de mulheres que buscaram determinados cursos superiores. Vale ressaltar que como a tabulação foi feita com base em nomes próprios dos sujeitos, já que não existe esse registro por sexo, é possível que o número não seja preciso em função de alguma falha na classificação dos nomes. De qualquer forma, a maioria dos nomes próprios dessa listagem nos permite a interpretação a partir do uso cotidiano, tendo como exemplos de nomes freqüentes que associamos ao masculino: Alexandre, Pedro, Arthur, Felipe, João, Ricardo, Antônio, entre outros. Em relação aos associados ao feminino, podemos destacar: Adriana, Vanessa, Andréia, Viviane, Luciana, Tatiana, entre outros.
261
Física – noturno 34 6 40 Fisioterapia 6 31 37
Geologia 40 50 90 Geografia – diurno 20 20 40
Geografia – noturno 20 20 40 História – diurno 22 14 36 História - noturno 26 11 35
Letras inglês 19 31 40 Letras português- diurno 12 38 50
Letras português – noturno 11 14 25 Licenciatura Espanhol 8 14 22
Matemática 90 60 150 Medicina 40 40 80 Música 20 9 29
Oceanografia 11 19 30 Odontologia 22 38 60
Pedagogia Matutino 4 63 67 Pedagogia Noturno 4 36 40
Psicologia 15 45 60 Química bacharelado 22 18 40 Química licenciatura 2 1 3
Serviço social 6 77 83 Tecnologia mecânica 42 8 50 Terapia Ocupacional 3 10 13
262
ANEXO 1
Distribuição das pessoas de 10 anos ou mais de idade,por grupos de anos de estudo- 2006-2008
FONTE: Indicadores IBGE, Pesquisa nacional por amostra de domicílios.
263
ANEXO 2