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UNIVERSIDADE DO ALGARVE
Faculdade de Ciências e Tecnologia
Bruno Emanuel de Campos Guerreiro
Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas
[2009/2010]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | I
UNIVERSIDADE DO ALGARVE
Faculdade de Ciências e Tecnologia
Bruno Emanuel de Campos Guerreiro
Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas
[2009/2010]
Dissertação orientada por Professora Doutora Maria de Lurdes dos Santos Cristiano
II | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Aos meus pais…
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | III
A Malária é uma das doenças infecciosas que mais mata a nível mundial
e afecta a humanidade há milénios. É causada por parasitas unicelulares protozoários do
género Plasmodium e transmitida por mosquitos fêmea do género Anopheles, sendo a
Malária causada por P. falciparum de longe a forma mais grave da doença. O crescente
aparecimento e disseminação de estirpes resistentes aos fármacos mais utilizados, como
a cloroquina e a mefloquina, principalmente de P. falciparum, bem como a resistência
do mosquito vector aos insecticidas utilizados, levaram a um aumento dos casos de
Malária em todo o mundo nos últimos anos tendo recentemente a OMS considerado a
Malária uma doença tropical de intervenção prioritária.
Assim, com o parasita a esgotar as reservas de antimaláricos mais eficazes e
seguros, a descoberta da Artemisinina na década de 1970 forneceu alguma esperança no
combate à Malária e permitiu a exploração de uma nova classe de antimaláricos, os
endoperóxidos antimaláricos. Estes compostos, com uma extraordinária actividade
antimalárica e sem grande toxicidade associada, têm um mecanismo de actuação
diferente dos fármacos tradicionalmente usados e não apresentam resistência cruzada
com estes. A busca de um fármaco que conjugasse uma boa actividade antimalárica com
boas propriedades farmacocinéticas e toxicológicas, e que fosse barato, levou ao
desenvolvimento dos derivados sintéticos da artemisinina, sendo as classes de derivados
1,2,4-trioxolanos e 1,2,4,5-tetraoxanos as mais promissoras, estando actualmente três
derivados já em ensaios clínicos: os trioxolanos OZ277 (arterolano) e OZ439 e o
tetraoxano RKA 182.
Palavras-chave: Malária, Plasmodium, falciparum, Artemisinina,
endoperóxido, trioxolano, tetraoxano, trioxano.
IV | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Malaria is one of the most lethal infectious diseases all over the world and has
been affecting mankind over hundreds of years. It is caused by unicellular protozoan
parasites of the Plasmodium genus and is transmitted by female mosquitoes of the
Anopheles genus, being Malaria caused by P. falciparum by far the most severe form of
the disease. The constant emergence and spreading of multi-drug resistant strains of the
parasite, especially P. falciparum, likewise the resistance of the vector mosquito to the
insecticides used, lead to an increase of the number of Malaria cases all over the world
in the last few years, having Malaria been considered a tropical disease of preponderant
intervention by the WHO.
With the parasite depleting the world supply of the more efficient and safe
antimalarial drugs, the discovery of Artemisinin in the 1970s, gave some hope in the
fight against Malaria and paved the road for a new class of antimalarial drugs, the
antimalarial endoperoxid. These compounds have an extraordinary antimalarial activity,
no major toxicity, and a mechanism of action different from that of the traditionally
used drugs, which grants them no cross-resistance with the other drugs. The quest for a
drug that fused a good antimalarial activity with good pharmacokinetics and
toxicological properties, along with being cheap, lead to the research of the fully
synthetic artemisinin derivatives, being the 1,2,4-trioxolanes and the 1,2,4,5-tetraoxanes
derivatives the most promising types, being currently three of those compounds at
clinical trials: the trioxolanes OZ277 (arterolane) and OZ439 and the tetraoxane RKA
182.
Key-words: Malaria, Plasmodium, falciparum, Artemisinin, endoperoxide,
trioxolane, tetraoxane, trioxane.
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | V
Índice:
1. Malária na Historia Pág. 1
2. Malária na actualidade Pág. 5
3. Ciclo de vida de Plasmodium sp. Pág. 7
4. Alimentação do parasita Pág. 9
5. A doença Pág. 10
6. Diagnostico Pág. 13
7. Tratamento e Profilaxia Pág. 14
8. Endoperóxidos Antimaláricos Pág. 21
8.1. Artemisinina e derivados semi-sintéticos Pág. 21
8.2. 1,2,4-Trioxanos sintéticos Pág. 31
8.3. 1,2,4-Trioxolanos Pág. 32
8.4. 1,2,4,5-Tetraoxanos Pág. 37
8.5. Compostos Híbridos Pág. 43
8.6. 1,2-Dioxolanos e 1,2-dioxanos Pág. 46
9. Conclusão Pág. 49
10. Bibliografia Pág. 51
VI | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 1
1. Malária na Historia
A Malária é uma doença que aflige a humanidade desde tempos imemoriais:
milhões pereceram, cidades foram dizimadas, grandes civilizações declinaram, guerras
foram perdidas e o avanço da humanidade foi retido. Existem descrições reconhecíveis
desta doença, frequentemente letal quando não tratada convenientemente, em vários
papiros egípcios, incluindo o papiro de Ebers (1550 A.C.), que mencionam sinais e
sintomas como febres intermitentes e esplenomegalia, e que os relacionam com as
inundações do Nilo. A relação entre as febres e os pântanos também era bem conhecida
na antiguidade, atribuindo-se a doença a espíritos maus e a deuses malignos que
habitavam os pantanais, assim como também se suspeitava da relação entre a doença e
os mosquitos, visto muitas vezes esses espíritos e deuses malignos serem representados
sob formas que lembravam mosquitos. [1, 2]
Mais tarde, quando a medicina deixou de lado as crenças espirituais e
mitológicas e passou a assentar na teoria dos miasmas (séc. XVIII), atribuíram-se as
febres da Malária à inalação de vapores venenosos e ares maus, mala aria, em pântanos
e zonas de águas paradas. Esta denominação italiana, mala aria, evoluiu para o nome
pelo qual hoje reconhecemos a doença, Malária, substituindo outros anteriormente
usados como febre da selva, febre dos
pântanos e paludismo, este, no entanto,
ainda hoje é utilizado.[1, 2]
O primeiro tratamento eficaz
para a Malária, conhecido pelo ocidente,
foi a utilização de tintura da casca da
árvore Cinchona, originária das encostas
dos Andes. Este tratamento foi
introduzido por Jesuítas na Europa,
cerca de 1640, pois tinham observado a
eficácia da sua utilização por indígenas,
e foi rapidamente aceite pelos seus bons
resultados, mas apenas em 1820 o princípio activo, a quinina (Fig. 1), foi identificado,
extraído e isolado.[3]
No entanto, séculos antes, enquanto os europeus recorriam a
Figira 1 – Ramo de Cinchona e estrutura
molecular da quinina.[4]
2 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
mezinhas e tratamentos inúteis e supersticiosos, já os chineses utilizavam extractos de
plantas como a Dichroa febrifuga e Artemisia annua que possuíam extraordinárias
propriedades antimaláricas.[1-3]
Com a evolução dos conhecimentos médicos a teoria dos miasmas foi
desacreditada sendo substituída pela teoria do germe, o que levou à suposição que a
Malária seria causada por um hipotético microrganismo, o Bacillus malariae. No
entanto, a Malária não é causada nem por vírus nem por bactérias, mas sim por parasitas
unicelulares com 14 cromossomas e pouco mais de 5000 genes.[1, 2]
Estes parasitas foram pela primeira vez observado e descrito por Charles Louis
Alphonse Laveran, um médico do exército Francês, em 1880, na Argélia, e fazem parte
do género Plasmodium, do filo Apicomplexa dos protozoários.[1, 2]
Apesar desta descoberta, o modo como a doença se propagava continuou
desconhecido por praticamente mais duas décadas, até 1897, quando Ronald Ross
identificou o vector da malária como sendo o mosquito Anopheles sp.[1, 2]
Figura 2 – Micrografia electrônica de Plasmodium falciparum (a) e mosquito
Anopheles (b).[5, 6]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 3
A partir deste momento com o conhecimento de qual o ―inimigo‖ a combater e
com o aparecimento dos primeiros insecticidas, principalmente com a descoberta das
propriedades insecticidas do dicloro-difenil-tricloro-etano (DDT) em 1939 por Paul
Hermann Müller, o combate eficaz à Malária foi possível. Este insecticida, amplamente
utilizado na Segunda Guerra Mundial pelos Aliados para controlar as infecções, não só
de malária como de tifo e febre-amarela, provou ser eficaz no combate aos vectores
artrópodes destas doenças e praticamente eliminou a Malária de amplas áreas do globo,
nomeadamente no sul da Europa, Brasil e Egipto, e com excelentes resultados no norte
de África e Pacifico Sul.[1, 2]
Depois destes bons resultados, o uso de DDT foi a grande base do programa de
erradicação global da Malária lançado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em
1955, que tinha como meta a erradicação da malária de todo o planeta, principalmente
através da eliminação de populações do vector infectadas em número suficiente para
interromper a transmissão do parasita. Curiosamente este programa dito global não
contemplava a África Subsaariana. Embora com resultados inicialmente favoráveis, o
programa foi abandonado em 1969, devido ao aparecimento de resistências, não só do
vector aos insecticidas como também do próprio parasita aos fármacos utilizados,
principalmente devido a um uso pouco controlado destes. Outros factores sociais e
económicos também contribuíram para o insucesso do programa, tal como guerras e
grandes movimentações migratórias.[1, 2, 7]
Apesar de o programa ter falhado em interromper completamente a transmissão,
fizeram-se bons progressos, tendo-se erradicado completamente a doença da Europa e
da América do Norte, embora nestes dois continentes a situação fosse já muito positiva
desde o final da Segunda Guerra Mundial.[1, 2, 7]
Em Portugal a Malária foi um dos grandes flagelos nacionais até ao final dos
anos 50. Doença endémica no nosso país, afectava cerca de 40 a 50 mil pessoas todos os
anos no princípio do século XX, principalmente nas zonas rurais. A partir dos anos 40
teve início o grande combate à Malária, com a pulverização das zonas mais afectadas do
país com DDT e com a distribuição de milhares de comprimidos de quinina, no entanto
é possível especular que o combate à Malária em Portugal se iniciou séculos antes, com
a drenagem de pântanos, principalmente no reinado de D. Dinis. A malária endémica foi
declarada como eliminada de Portugal em 1973 pela OMS, no entanto, já desde 1958
que não se observavam novos casos autóctones.[8, 9]
4 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Com o abandono do programa de erradicação da malária, passou-se a estratégias
de controlo da doença. No entanto nos últimos anos muitas delas foram negligenciadas
pelos esforços económicos que exigiam. Assim, a situação mundial que hoje
enfrentamos é pior que a que se observava à 30 anos atrás.[1, 10]
Tal deve-se não só às
negligências já referidas como também ao crescente aumento da resistência aos
fármacos por parte do parasita, principalmente à cloroquina, a opção mais segura e
barata para tratar Malária, e como tal, a mais utilizada, muitas vezes de forma pouco
racional e sem qualquer controlo. O próprio mosquito tem desenvolvido resistência aos
insecticidas, também eles muitas vezes utilizados indiscriminadamente, não só no
controlo da Malária e de outras doenças transmitidas por artrópodes, como nas
actividades agrícolas. Estes factos, associados às alterações populacionais,
demográficas, ambientais e climáticas que se têm observado nos últimos anos, levaram
a que a doença regressasse a áreas onde se tinha dado como erradicada e se espalhasse
para novas zonas, como a Ásia Central e a Europa do Leste.[1, 2, 8, 10, 11]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 5
2. Malária na actualidade
Actualmente, a Malária é uma doença endémica numa ampla zona mundial,
abrangendo mais de 100 países (Fig. 3), que pode ser transmitida a pessoas de qualquer
idade, estando metade da população mundial em risco de a contrair, sendo a mais
vulnerável a que vive nos países mais pobres.[8, 10, 11]
Estima-se que em 2008 tenham ocorrido cerca de 247 milhões de casos de
Malária em todo o mundo, dos quais resultaram aproximadamente 881 mil mortes,
principalmente entre crianças Africanas. Neste continente, onde uma criança tem em
média entre 1,6 a 5,4 episódios de febre causada por Malária todos os anos, uma criança
morre de Malária a cada 30 segundos e a doença é responsável por 20% de todas as
mortes na infância. Mesmo quando curada, a Malária severa pode deixar danos
cerebrais permanentes e dificuldades de aprendizagem nas crianças afectadas. Mulheres
grávidas estão também em risco elevado, não só de morrer das complicações da Malária
como também de sofrer abortos espontâneos, trabalho de parto prematuro, e nados
mortos ou com atraso no desenvolvimento à nascença. Nas áreas de transmissão intensa,
como nas zonas costeiras de África, a infecção pode ser crónica e constante. Um
individuo pode receber centenas de picadas de mosquitos infectados por ano, estando
perpetuamente enfraquecidos pelo parasita. [8, 10, 11]
Estima-se que em cada ano, cerca de 10% da população mundial irá sofrer pelo
menos um episódio de malária. No entanto, é uma doença perfeitamente prevenível e
curável. Como tal, foi recentemente considerada pela OMS como uma doença tropical
de intervenção prioritária. [8, 10, 11]
6 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Como já foi referido, a Malária é causada por parasitas denominados
Plasmodium. Este são protozoários unicelulares do género Plasmodium (filo
Apicomplexa), existindo quatro tipos de malária humana que diferem na espécie do
parasita infectante, nomeadamente Plasmodium falciparum, Plasmodium vivax,
Plasmodium malariae, e Plasmodium ovale, sendo que P.falciparum e P.vivax são as
formas infectantes mais comuns, e a infecção por P.falciparum é de longe a forma mais
letal. O Plasmodium não é um parasita exclusivamente humano, existindo espécies
deste protozoário que infectam aves, répteis, primatas, morcegos, roedores e outros
mamíferos. O Plasmodium knowlesi, um dos parasitas da malária que infecta símios,
pode também afectar humanos de forma artificial ou natural, sendo uma zoonose
relativamente frequente no sudoeste asiático. [1, 2, 8, 10, 11]
A transmissão da Malária ocorre apenas pela picada de mosquitos Anopheles sp.
fêmea infectados (Fig. 2b). Estes mosquitos, vectores da Malária, alimentam-se
principalmente à noite e multiplicam-se em poças, pântanos e arrozais, sendo a
transmissão mais intensa nos locais em que o mosquito tem um tempo de vida
relativamente longo e prefere picar humanos, como é o caso dos vectores Africanos.
Quantos mais vectores maior será a transmissão, como tal a transmissão depende
também das condições climáticas que afectem a procriação dos mosquitos, tal como a
precipitação, temperatura e humidade, dai que em muitas zonas a transmissão seja
sazonal, atingindo o seu máximo durante e imediatamente após a época das chuvas. [1, 2,
8, 10, 11]
Figura 3 – Plasmodium falciparum no mundo, dados de 2009.
[12]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 7
3. Ciclo de vida de Plasmodium sp.
O Plasmodium sp. apresenta um ciclo biológico complexo (Fig. 4), passando por
vários estádios de diferenciação morfológica e expressando proteínas de superfície
(antigénios) diferentes em cada um deles. O ciclo de vida do parasita humano
desenvolve-se em duas fases principais: uma fase assexuada, que decorre no hospedeiro
vertebrado, denominada de esquizogonia, e uma fase sexuada que decorre no
hospedeiro artrópode, a esporogonia. [1]
A forma infectante para o hospedeiro vertebrado são os esporozoítos, que se
encontram nas glândulas salivares das fêmeas de mosquito do género Anopheles
infectadas, os quais têm a sua origem nos oocistos alojados no estômago do mosquito. [1]
A infecção tem o seu início quando um mosquito infectado no decurso de uma
refeição sanguínea inocula, através da sua saliva, os esporozoítos no tecido subcutâneo,
ou mesmo directamente na corrente sanguínea, de um hospedeiro vertebrado não
infectado. Os esporozoítos parasitas dirigem-se para o fígado (no intervalo de tempo de
30 minutos a 2 horas) e invadem os hepatócitos, onde se instalam, iniciando uma fase de
esquizogonia exo-eritrocitária, alimentam-se e multiplicam-se durante
aproximadamente uma semana dependendo da espécie, diferenciando-se em esquizontes
multinucleados. Estes esquizontes rompem os hepatócitos libertando vários milhares de
merozoítos que invadem os eritrócitos dando origem ao ciclo eritrocitário. Alternativa e
paralelamente, nalgumas espécies de Plasmodium, nomeadamente P. Ovale e P. Vivax,
alguns dos esquizontes permanecem durante anos nos hepatócitos, formando os
hipnozoitos, responsáveis pelas recidivas de Malária, ou seja, o aparecimento de
Malária anos após a infecção inicial, sem nova exposição ao parasita, que pode ocorrer
aquando da infecção por estas espécies de parasita. [1]
A invasão dos eritrócitos pelo
Plasmodium requer a existência de receptores na membrana citoplasmática do eritrócito,
entre os quais a glicoproteina Duffy, muito importante para o P. Vivax, e a mesma que
determina o grupo sanguíneo Duffy. [1]
8 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Segue-se uma fase de desenvolvimento intra-eritrocitário, esquizogonia
eritrocitica, onde o parasita se alimenta, estando então num estado vegetativo de
trofozoíto, degradando e absorvendo nutrientes dos eritrócitos, e multiplicando-se por
esquizogonia. Esta fase pode durar entre 24 e 72 horas, consoante a espécie do parasita,
dando-se então a ruptura do eritrócito, com libertação de novos parasitas, novamente na
fase de merozoítos, mas com os seus números exponencialmente aumentados,
ocorrendo uma nova invasão de eritrócitos. A repetição do ciclo eritrocitário é
responsável pelas manifestações clínicas como a febre, arrepios e exaustão
características da doença, e conduz à forte anemia verificada pela destruição dos
eritrócitos. [1]
Alguns trofozoítos intra-eritrocitários, após alguns ciclos, diferenciam-se em
gametócitos masculinos, ou microgametocitos, e femininos, macrogametocitos, que ao
serem ingeridos pelo Anopheles fêmea durante uma refeição sanguínea, vão continuar o
ciclo do parasita no hospedeiro invertebrado.[1]
Os gametócitos, feminino e masculino, dão origem a gâmetas que, por
fertilização formam o zigoto, um oocineto móvel, que atravessa a parede do estômago
do mosquito, e ai se enquista, formando o oocisto. Os esporozoítos desenvolvem-se no
interior do oocisto, por mitoses sucessivas, originando milhares de novos parasitas
móveis, que vão migrar para as glândulas salivares do mosquito e ai acumulam-se,
aguardando que o mosquito se alimente e os inocule num novo hospedeiro, e iniciar
assim um novo ciclo.[1]
Figura 4 – Ciclo de vida do Plasmodium sp.[13]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 9
4. Alimentação do parasita
As principais reacções envolvidas no metabolismo do Plasmodium são:
1) degradação da glucose do hospedeiro a lactatato para fornecer energia necessária aos
vários processos essenciais à sua maturação;
2) degradação de proteínas, processo essencial na maturação e libertação dos parasita
das células que invade, bem como na invasão celular e na degradação da hemoglobina;
3) vários processos oxidativos, mantidos pela oxihemoglobina da célula do hospedeiro.
O Plasmodium tem uma capacidade limitada para a síntese de novos
aminoácidos e a hemoglobina do eritrócito é a principal fonte de aminoácidos utilizada
pelo parasita, sendo a degradação desta proteína essencial para a sobrevivência do
Plasmodium. [1]
A digestão da hemoglobina no vacúolo digestivo do parasita, constitui a primeira
etapa da acção deste sobre o eritrócito donde resulta a libertação dos aminoácidos,
essenciais à sua nutrição, e do grupo heme livre, com o ferro no seu estado reduzido, na
forma de Fe(II), que em seguida é oxidado, passando o ferro à forma férrica, Fe(III).
Esta heme livre é tóxico para o Plasmodium visto inibir várias enzimas, nomeadamente
proteases, oxidar e quebrar ligações fundamentais para a integridade membranar e
produzir stress oxidativo no interior do vacúolo digestivo do parasita. Assim, para se
proteger, o Plasmodium polimeriza o heme livre oxidado num agregado insolúvel de
várias moléculas ligadas de forma não covalente (β-dimeros de hematina), através de
ligações coordenadas entre os iões de Fe(III) e terminais carboxilados, denominado de
hemozoína, ou pigmento malárico, através de uma polimeraze. O heme livre na forma
não oxidada não é polimerizado a hemozoína, e é um inibidor eficaz da polimerização
da forma oxidada de heme livre. [1]
10 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
5. A doença
Como já foi referido a Malária é uma doença que pode afectar pessoas de todas
as idades e que, de momento, coloca em risco cerca de metade da população mundial. É,
como também já foi mencionado, a infecção dos eritrócitos por Plasmodium, e é
transmitida pela picada de mosquitos Anopheles fêmea infectados. No entanto pode
também ser transmitida por uma transfusão de sangue infectada ou pela partilha de
seringas com pessoas infectadas.
Os primeiros sintomas aparecem normalmente entre 7 e 35 dias após a
inoculação do parasita, normalmente entre 10 e 15 dias. Estes são geralmente calafrios e
tremores, seguidos de febre, dores de cabeça e musculares, vómitos e mal-estar geral,
sintomas estes que podem ser suaves e confundidos com os da gripe.[14]
A maior parte das manifestações clínicas da malária advêm da ruptura dos
esquizontes eritrocitários, e subsequente destruição dos eritrócitos. Este fenómeno leva
a que ocorra uma resposta inflamatória no hospedeiro, que produz os picos de febre alta
e os arrepios característicos. Estes podem ter um padrão característico, e são
denominados de paroxismos. [14]
Estes paroxismos, ou crises, caracterizam-se por 3 fases. Numa fase inicial o
doente tem arrepios frios e tremores intensos, seguindo-se uma subida abrupta da
temperatura corporal (acima dos 40ºC), terminando numa fase de sudação intensa. Entre
paroxismos o doente tem um período de exaustão e alívio, onde se sente melhor de uma
forma geral, podendo adormecer profundamente. [1, 14]
Os paroxismos apresentam uma periodicidade coincidente com o tempo de
maturação intra-eritrocitária do Plasmodium. Assim ocorrem em intervalos de 48h para
o P. falciparum, P. vivax e P. ovale, formas de malária terciária, e de 72h para o P.
malarie, malária quaternária. No entanto, é de notar que raramente esta periodicidade
entre crises é claramente observada, visto frequentemente coexistirem gerações de
parasitas diferentes no sangue do doente, com diferentes tempos de maturação e, como
tal, com ruptura dos eritrócitos infectados a tempos diferentes, principalmente nas fases
iniciais da infecção. Com o passar do tempo, os tempos de maturação destas gerações
tendem a sincronizar-se, podendo estes períodos ser observados em infecções mais
prolongadas. [1, 14]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 11
Para o P. falciparum o tempo entre paroxismo, o período de alívio de sintomas
sentidos pelo doente, é muito inferior, ao mesmo inexistente, relativamente ao que
doentes infectados por outras espécies experimentam, visto o sincronismo entre
gerações ser muito menos marcado, e assim os sintomas desenvolvem-se de forma mais
gradual e prolongada. Como tal, na malária causada por este parasita, a fase febril é
mais prolongada, podendo ser contínua ou flutuante, e podendo os paroxismos durar
entre 20 a 36h, ao invés das 6 a 12h observadas na malária causada por outras espécies
de Plasmodium. [1, 14, 15]
Da enorme destruição de eritrócitos pode resultar uma forte anemia, agravada
pela incapacidade do organismo em reciclar o ferro sequestrado na hemozoína e numa
resposta eritropoética insuficiente, e que pode interromper o fornecimento de oxigénio
aos órgãos principais. [1, 14, 15]
Dependendo da espécie de Plasmodium a doença pode apresentar alguns padrões
e sintomas característicos para cada espécie infectante, sendo a Malária causada por P.
falciparum de longe a forma mais perigosa.
O P. falciparum invade eritrócitos de todas as idades, e retêm-nos no endotélio
vascular evitando que estes sejam destruídos no baço, o que pode levar a bloqueios
microvasculares no cérebro e em alguns órgãos. Este facto, alem de contribuir para a
enorme parasitémia que pode ser observada nas infecções por esta espécie, pode causar
hipoglicémia, choque e falha de múltiplos órgãos. Assim é importante iniciar o
tratamento deste tipo de malária dentro de 24h após os primeiros sintomas, para evitar
que esta progrida para doença severa, que frequentemente é letal para cerca de 20% dos
afectados. [14, 15]
A Malária severa pode apresentar uma anemia severa, stress respiratório e
acidose metabólica, com envolvimento de múltiplos órgãos e podendo ocorrer uma
alteração da função cerebral. Esta alteração denomina-se malária cerebral, é causada
pelos bloqueios microvasculares no cérebro, e pode ter um inicio dramático, com
convulsões generalizadas, ou gradual com dor de cabeça intensa, vertigens, delírio e
confusão iniciais que podem progredir para coma profundo, que pode durar algumas
horas ou alguns dias. [15]
12 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Quando tratada rapidamente a infecção por P. falciparum responde em 48h, mas
se o tratamento for inadequado pode ocorrer recrudescência da infecção, ou seja o
reaparecimento de sintomas. [14]
Se um indivíduo não receber tratamento, os sintomas das infecções por P. vivax,
por P. ovale ou por P. malariae regridem espontaneamente em 10 a 30 dias, mas podem
recorrer com intervalos variáveis, e os sintomas são consideravelmente mais ligeiros e
as crises mais curtas. [14]
A infecção por P. vivax apresenta uma baixa taxa de mortalidade em adultos não
tratados, sendo caracterizado por recidivas da doença causados pela reactivação das
formas latentes nos hepatócitos do doente, que podem ocorrer semanas ou anos após a
infecção inicial. A infecção por P. ovale causa também recidivas e apresenta a mesma
periodicidade nas crises que P. vivax, mas estas são mais suaves. [14]
Por ultimo, a infecção causada por P. malariae causa geralmente uma infecção
indolente, visto reconhecer apenas eritrócitos senescentes e manter uma parasitemia
muito baixa, podendo os paroxismos ocorrer anos ou décadas depois da infecção. No
entanto estes ataques não são recidivas da doença visto neste tipo de infecção não se
formarem hipnozoitos nos hepatócitos dos doentes. [14]
Em geral, se a Malária não for tratada, surge icterícia ligeira e hepato e
esplenomegalia, sendo frequente que a glicemia diminua nas pessoas que têm uma
grande quantidade de parasitas, podendo resultar em hipoglicémia. [14]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 13
6. Diagnóstico
O diagnóstico da doença é feito pela identificação do parasita em amostras de
sangue do doente. Actualmente existem vários métodos para efectuar esta detecção,
alguns deles bastante específicos e sensíveis como a Polimerase Chain Reaction (PCR),
no entanto o método mais utilizado, e especialmente nas áreas mais afectadas pela
Malária, continua a ser o desenvolvido por Romanovsky em 1891, a coloração de
esfregaços sanguíneos com azul-de-metileno e eosina. Este método bastante fiável
permite a observação e distinção da espécie de Plasmodium no interior de eritrócitos
infectados recorrendo a um simples microscópio e lamelas de vidro (Fig. 5), estando a
sua precisão apenas dependente da qualidade do esfregaço e da experiência do
observador. Como tal, é um método de diagnóstico mais simples e muito mais barato do
que o PCR, que muitas vezes não está disponível nas áreas mais afectadas pela Malária,
visto estas serem as áreas menos desenvolvidas e mais pobres do nosso planeta.[1, 15]
Figura 5 – Diferentes estadios de maturação do Plasmodium sp. no interior
dos eritrócitos. Podem se observar as diferenças entre as espécies de
Plasmodium para cada estadio tal como se observariam ao microscópio.[16]
14 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
7. Tratamentos e Profilaxia
O facto de indivíduos expostos permanentemente a Plasmodium apresentarem
alguma imunidade à infecção no hospedeiro, nomeadamente baixos valores de
parasitemia, com maior tolerância ao grau desta e atenuação dos sintomas, levou a que
se desenvolvessem esforços no sentido da obtenção de uma vacina contra a Malária, no
entanto o mecanismo por trás desta imunidade parcial continua um motivo de debate,
sendo que esta desaparece rapidamente quando os indivíduos se deslocam para zonas
sem transmissão do parasita.[17, 18]
Os esforços para desenvolver uma vacina viável e que confira total protecção à
infecção por Plasmodium têm se debatido com o problema de o parasita alterar
frequentemente as suas proteínas de superfície e em cada estádio de desenvolvimento
estas serem diferentes. Os esporozoitos mudam frequentemente a sua membrana
exterior substituindo-a por novas proteínas, com múltiplos epitopos, escapando assim ao
sistema imunitário do hospedeiro ao criarem novos locais de ligação para os anticorpos
e ao produzirem ―distracções‖ sob a forma das moléculas descartadas. Assim, uma
vacina contra merozoitos, não irá conferir protecção contra esporozoitos nem
gametocitos, embora possa de certo modo diminuir a infecção de eritrócitos e assim
levar à interrupção do ciclo de vida do parasita. No entanto, a imunidade obtida
naturalmente é apenas parcial, pelo que existe a possibilidade de a imunidade conferida
por uma vacina ser também parcial.[1, 17-19]
Desta forma, enquanto não existe uma vacina viável e eficaz, as esperanças da
humanidade no combate à Malária recaem nas medidas preventivas e profiláticas, como
a utilização de antimaláricos em profilaxia, não devendo os fármacos substituir as
medidas simples e baratas que ajudam a prevenir a Malária, como a utilização de roupas
escuras e de mangas compridas, uso de repelentes de insectos a utilização de redes
contra mosquitos embebidas em insecticida sobre as camas e ao evitar a exposição a
mosquitos nas alturas de maior alimentação, normalmente ao amanhecer e anoitecer.[19,
20]
O esquema terapêutico utilizado em profilaxia, para viajantes que vão para
locais onde a Malária é endémica, deve ser iniciado antes da partida, para que à chegada
o indivíduo tenha já em circulação quantidades suficientes de antimalárico para debelar
uma possível infecção e para, na eventualidade de ocorrer intolerância aos fármacos
utilizados, o regime terapêutico possa ser alterado. A terapêutica deve-se manter durante
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 15
o tempo de exposição e continuar após o regresso da zona endémica, sendo o tempo de
toma pós-exposição dependente do espectro de actuação do fármaco, de forma a manter
o fármaco em circulação durante o tempo em que poderia ocorrer a infecção de
eritrócitos, mesmo após a saída da zona endémica e fim da exposição a mosquitos
infectados.[19, 20]
Os fármacos utilizados para a profilaxia são os mesmos que os usados para o
tratamento da doença, com algumas excepções de fármacos que pelas suas propriedades
farmacocinéticas e toxicológicas não são apropriados para um tratamento profilático.
Nenhum dos fármacos é 100% eficaz em profilaxia, sendo que alguns podem causar
alguns efeitos secundários que prejudicam a aderência à terapêutica. [19, 20]
Os fármacos actualmente disponíveis para o tratamento da Malária podem ser
classificados consoante a sua actividade nas diferentes fases do ciclo de vida do
Plasmodium, mas essa é uma forma confusa visto muitas vezes o mesmo fármaco actuar
em estadios diferentes de desenvolvimento do parasita, ou consoante a sua estrutura
química. Assim, as principais classes de antimaláricos são as 4-aminoquinolinas, as 8-
aminoquinolinas e os alcalóides da cinchona.
A cloroquina (Fig. 6) é uma 4-
aminoquinolina e é o fármaco de escolha para
o tratamento e profilaxia de todas as formas
de Malária humana, excepto para Malária
causada por P. falciparum resistente à
cloroquina. É altamente eficaz contra as
formas eritrocitárias do parasita e contra os
seus gametócitos, excepto os de P.
falciparum, e não tem qualquer actividade contra as formas hepáticas do parasita. Foi o
primeiro fármaco de síntese para o tratamento da Malária, tendo a sua síntese sido
estimulada pela captura dos campos de produção de quinina americanos no Pacífico
pelos japoneses, na segunda Guerra Mundial, deixando estes sem forma de responder às
necessidades das suas tropas infectadas na Africa e Ásia, pois não possuíam árvores de
Cinchona de onde extrair o fármaco.[19]
O seu mecanismo de actuação parece ser a interferência no metabolismo da
hemoglobina no parasita. A cloroquina acumula-se no vacúolo alimentar e lisosomas
(meios acídicos) dos parasitas susceptíveis onde se liga ao heme, inibindo a actividade
das heme-polimerases do parasita, e levando à acumulação de heme livre no seu
Figura 6– Estrutura molecular da
cloroquina.[19]
16 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
interior, o que é tóxico para o parasita causando-lhe danos por processos oxidativos nas
membranas, proteases digestivas e outras biomoléculas essenciais. A cloroquina pode
também causar a fragmentação de RNA do parasita e intercalar com o seu ADN,
inibindo assim a sua replicação. [19]
Outros fármacos cujo mecanismo de actuação é bastante semelhante ao da
cloroquina são a hidroxicloroquina e outras quinolinas como amodiaquina, mefloquina,
halofantrina, quinina e quinidina. [19]
A cloroquina é um fármaco barato, com um tempo de semi-vida de 30-60 dias e
extraordinariamente seguro, quando tomado nas doses apropriadas devido a uma estreita
margem terapêutica, no entanto a sua utilidade tem declinado devido ao aparecimento
de estirpes de P. falciparum resistentes a este fármaco. Esta resistência parece estar
relacionada com um aumento da excreção do fármaco do interior para o exterior do
parasita. [19]
A quinina (Fig. 7a) é um
alcalóide e o principio activo do
extracto da arvore da cinchona
utilizado à mais de 350 anos. Este
fármaco actua principalmente
contra as formas eritrocitárias
assexuadas do Plasmodium e
gametocitos de P. vivax e P.
malariae, tendo pouco efeito nas formas hepáticas do parasita. É mais tóxico e menos
eficaz que a cloroquina contra parasitas susceptíveis aos dois fármacos, mas é muito útil
devido a permitir um tratamento parentérico nas formas severas da doença,
principalmente às causadas por estirpes multi-resistentes de P. falciparum, sendo a
primeira escolha nestes casos como dose de carga, para subsequente tratamento oral,
assim que o mesmo seja tolerado, visto a maior parte dos outros antimaláricos quando
formulados para administração parenteral poderem causar reacções locais severas.[19]
Assim, apenas a cloroquina e a quinina podem ser administradas por via parentérica. E a
eficácia da terapêutica com quinina pode ser reforçada pela associação com a
doxiciclina.[22]
O seu estéreo-isomero quinidina (Fig. 7b) é igualmente útil nestes casos, e
embora seja um pouco mais potente é também mais tóxico que a quinina. Devido ao seu
tempo de semi-vida reduzido (11h após toma oral) e à sua toxicidade estes fármacos não
Figura 7- Estrutura molecular da quinina (a) e
quinidina (b).[19]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 17
são utilizados em profilaxia. A sua toxicidade é dose-dependente, está associada a
cinchonismo, hipoglicemia e hipotensão, e o tratamento deve ser descontinuado
imediatamente se surgirem sinais de hemolise. No entanto, a quinina, parece ser
relativamente segura em mulheres grávidas, sendo usada frequentemente nestas
situações.[19]
Estes fármacos são de uso restrito ao meio hospitalar em Portugal. [21, 22]
A mefloquina é uma 4-aminoquinolina,
constituída por quatro isómeros ópticos com
aproximadamente a mesma potência
antimalárica. É um esquisontisida sanguíneo
altamente eficaz, sem qualquer actividade
contra as formas hepáticas do parasita e
gametocitos maduros de P. falciparum, mas
que pode ter alguma actividade contra
esporozoitos. O seu mecanismo de actuação
exacto é desconhecido mas pode ser similar ao
da cloroquina, tendo também surgido resistência a este fármaco em certas estirpes de P.
falciparum. É utilizada na prevenção e tratamento de malária causada por P. falciparum
resistente à cloroquina e P. vivax, sendo principalmente útil como agente profilático
para viajantes não imunes, que vão para zonas endémicas destes parasitas por breves
períodos, pois tem um tempo de semi-vida de cerca de 20 dias. As doses profiláticas são
muito bem toleradas, podendo ocorrer vómitos nas doses de tratamento, estando o
fármaco contra-indicado na gravidez e aleitamento. [19]
A primaquina (Fig. 9) é uma 8-aminoquinolina com actividade antimalárica nas
formas hepáticas, primárias e latentes, do Plasmodium, prevenindo e curando as
recidivas de Malária provocados por P. vivax e P. ovale, mas não trata os ataques de
Malária embora tenha alguma actividade contra as formas eritrocitárias. A primaquina
possui actividade também nos gametocitos das 4 espécies de Plasmodium, e
especialmente em P. falciparum. É utilizada principalmente na profilaxia terminal e
cura radical de P. vivax e P. malariae, normalmente em conjunto com um
esquisonticida sanguíneo, como a cloroquina, para erradicar as formas eritrocitárias e
evitar o aparecimento de resistências ao fármaco. A primaquina é também utilizada na
profilaxia de P. falciparum e, principalmente, P.vivax. [19]
Figura 8 – Estrutura molecular de
um dos isomeros da
mefloquina.[19]
18 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
O seu mecanismo de actuação parece
estar relacionado com interferências na
mitocôndria do parasita, interferindo com o
transporte de electrões, além de originar
espécies reactivas de oxigénio. A primaquina
está contra-indicada em pessoas com
deficiência congénita em glucose-6-fosfato
desidrogenase (G6PD), também conhecido
como favismo. As hemácias dos pacientes
deficientes em G6PD não conseguem regenerar NADPH, cuja concentração é reduzida
pelos metabolitos oxidantes da primaquina e de outros fármacos. Em consequência
disto, as funções metabólicas gerais das hemácias alteram-se e ocorre hemólise
fulminante e anemia hemolítica, muitas vezes fatal. Em pessoas saudáveis a primaquina
é relativamente inócua no que respeita a toxicidade e efeitos secundários, podendo
causar alguns distúrbios gastrointestinais. Não deve ser utilizada por grávidas nem por
mulheres que estejam a amamentar crianças que não forma testadas para a deficiência
em G6PD. [19]
Algumas estirpes de P. vivax exibem resistência parcial à primaquina pelo que é
fundamental a estreita aderência à terapêutica com este fármaco, assim como o
desenvolvimento de novos antimaláricos com actividade nas formas hepáticas do
parasita. [19]
Para além dos fármacos acima referidos existem outros antimaláricos
frequentemente usados. A combinação de atovaquona e proguanilo, utilizada na
profilaxia e tratamento de P. falciparum resistente a outros fármacos, associa um
composto que interfere com a função mitocondrial inibindo o transporte de electrões e
colapsando o seu potencial de membrana, a atrovaquona, e uma biguanida, o
proguanilo, que parece aumentar a capacidade da atovaquano de colapsar a membrana
mitocondrial, e ao mesmo tempo retarda o aparecimento de resistência a estes fármacos,
com uma toxicidade e efeitos secundários mínimos. Esta combinação é activa contra as
formas assexuadas eritrocitárias e hepáticas primárias do parasita. No entanto, está
contra indicada em grávidas e mulheres a amamentar crianças com menos de 5kg, e a
falha terapêutica com organismos resistentes a estes fármacos já foi documentada. [19]
Figura 9 – Estrutura molecular da
primaquina.[19]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 19
O uso concomitante de pirimetamina e sulfadoxina foi também bastante
utilizado para o tratamento de Malária causada por estirpes de P. falciparum resistentes
à cloroquina, mas não para a sua profilaxia devido a riscos associados à toxicidade das
sulfonamidas e sulfonas, que podem causar reacções cutâneas severas e fatais. No
entanto, a sua utilidade no tratamento de Malária diminuiu devido à enorme distribuição
de estirpes de P. falciparum resistentes a estes fármacos. Estes fármacos têm uma
actividade sinergistica inibindo a síntese de folatos, e assim a síntese de ADN, em dois
pontos do metabolismo dos folatos: as sulfonamidas e sulfonas inibem a di-
hidropteroato sintase e a primetamina a di-hidrofolato reductase do Plasmodium. [19]
As tetraciclinas, um conhecido grupo de antibióticos, são também utilizadas no
tratamento e profilaxia da Malária, principalmente a doxiciclina. São esquisonticidas
sanguíneos de actuação lenta, tal como as sulfonamidas e sulfonas, com actividade
contra as formas hepáticas primárias de P. falciparum resistente à cloroquina, e são
usadas em profilaxia em áreas com resistência a cloroquina e mefloquina. São muito
úteis no tratamento de ataques de Malária por estirpes de P. falciparum multi-resistentes
com alguma resistência à quinina, sendo utilizadas concomitantemente com a quinina
ou quinidina. Estão contra-indicadas em grávidas e crianças com menos de 8 anos
devido aos seus efeitos adversos nos ossos e dentes, e causam fotosensibilidade. [19]
Figura 10 – Estrutura molecular da pirimetamina e sulfadoxina (a) e da
doxiciclina (b).[19]
20 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
A maior problemática associada ao tratamento com antimaláricos é o crescente
aparecimento e disseminação de estirpes resistentes de Plasmodium, principalmente de
P. falciparum, que vão consumindo o arsenal de fármacos disponíveis para o tratamento
desta doença, de uma forma muito mais rápida do que o aparecimento de novas
alternativas farmacológicas viáveis para o tratamento da Malária. A resistência às
terapêuticas mais efectivas, seguras e baratas, especialmente à cloroquina mas também à
mefloquina e pirimetamina-sulfadoxina, é o factor mais preocupante.
Estudos genéticos a isolados de P.falciparum de doentes em áreas altamente
afectadas pela Malária mostraram que estes continham clones do parasita com
diferentes fénotipos relativamente à resistência a fármacos. Assim, sabendo que num
doente com Malária severa se podem encontrar mais de 1012
parasitas, torna-se fácil de
perceber como parasitas com resistência ao fármaco possam ser seleccionados, e levar
ao aparecimento de mutações que confiram resistência aos fármacos utilizados,
especialmente nas terapêuticas que utilizem fármacos com elevados tempos de semi-
vida em monoterapia.[1, 19]
Se não fosse a descoberta da quinina no século XVII que formas teríamos hoje
de combater a Malária? Esta é uma questão interessante visto muitos dos fármacos
utilizados actualmente, como as aminoquinolinas, serem derivados estruturais
completamente sintéticos deste composto, tendo sido desenhados e optimizados, em
termos de actividade e perfil toxicológico, com base na quinina. Da mesma forma,
podemos olhar para uma descoberta feita na década de 1970, e ter alguma esperança no
futuro do combate à Malária. Esta descoberta foi a identificação do princípio activo do
extracto de Artemisia annua, utilizado na medicina tradicional chinesa desde a
antiguidade para tratar febres, e permitiu a exploração de uma nova classe de
antimaláricos com um mecanismo de actuação completamente diferente do dos
fármacos até então utilizados no tratamento da Malária: os endoperóxidos antimaláricos.
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 21
8. Endoperóxidos antimaláricos
8.1. Artemisinina e derivados semi-sintéticos
A artemisinina, ou qinghaosu, é o
princípio activo do extracto de Artemisia annua
utilizado em infusões há mais de 2000 anos pelos
chineses para tratar febres. No entanto apenas na
década de 70 é que este composto foi
identificado, isolado e a sua estrutura molecular
esclarecida por um grupo de investigação chinês,
no âmbito de um programa governamental
denominado Projecto 523. [19, 23, 24]
A artemisinina é uma lactona sesquisterpénica com um grupo funcional
endoperóxido, do tipo trioxano (Fig. 11). Esta estrutura, quando foi proposta, deparou-
se com um enorme cepticismo por parte da comunidade científica visto o grupo
endoperóxido ser à primeira vista demasiado reactivo e, como tal, a molécula demasiado
instável para ser utilizada como fármaco. Estudos posteriores demonstraram que esta
molécula era no entanto bastante estável em condições fisiológicas e que o composto
apresentava uma extraordinária actividade antimalárica, sendo muito mais rápido a
eliminar o parasita que os fármacos tradicionalmente utilizados, podendo atingir níveis
de parasitémia abaixo do detectável em um ou dois dias de tratamento na maioria dos
pacientes.[26, 37]
Este composto exibe uma rápida
actividade contra as formas eritrocitárias do
Plasmodium e apresenta também actividade
contra os gametócitos do parasita, no entanto
não afecta as formas hepatocíticas do
parasita, quer as primárias quer as latentes
(Fig. 12). Apesar de um inicio de actividade
bastante rápido, em parte devido ao carácter
anfifilico da molécula o que facilita a sua
permeabilidade pelas membranas celulares,
Figura 11 - Estrutura da
artemisinina, e destaque do
farmacóforo da molécula. [24]
Figura 12 – Estadios de actuação da
artemisinina e dos tratamentos
convencionais no ciclo de vida do
Plasmodium sp. [33]
22 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
apresenta um tempo de semi-vida bastante curto, na ordem das 2-5 horas. Este tempo de
semi-vida reduzido deve-se ao facto de induzir o seu próprio metabolismo, o que leva a
que a sua clearance possa ser aumentada em mais de cinco vezes com as sucessivas
administrações.[19, 23, 34, 37]
O facto de a artemisinina ser eliminada rapidamente do organismo contribui não
só para que não apresente efeitos adversos graves, mas também para os altos índices de
recrudescência do parasita após o tratamento inicial com artemisinina em monoterapia.
Além disso, o seu rápido efeito e rápida eliminação contribuem para que seja mais
difícil ao parasita desenvolver resistências a este fármaco. No entanto em algumas zonas
do mundo, onde alguns derivados da artemisinina foram utilizados em automedicação
de forma ilegal e sem qualquer controlo, como a Guiana Francesa e o Senegal, surgiram
algumas evidências de resistência in vitro.[36]
A artemisinina tem pouca biodisponibilidade quando administrada oralmente e é
pouco solúvel em água. É administrada na forma de suspensão aquosa ou oleosa e
apresenta maior biodisponibilidade quando administrada por via intramuscular como
suspensão oleosa, do que por via oral em água.[19, 23]
Os seus metabolitos, isolados após administração oral, não só não apresentam o
grupo endoperóxido como também não tem qualquer actividade antimalárica. Este facto
levou a que se concluísse que o grupo endoperóxido seria parte fundamental do
farmacóforo da molécula.[23]
De forma a melhorar alguns aspectos relacionados com a biodisponibilidade do
fármaco, foram desenvolvidos alguns derivados semi-sintéticos da artemisinina de
modo a permitir a administração por vias alternativas à oral e assim aumentar a sua
biodisponibilidade.
Figura 13 - Derivados semi-sintéticos de 1ª geração da artemisinina. DHA (2), arteméter
(3a), artéter (3b) e artesunato de sódio (4). [23]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 23
Os primeiros derivados semi-sintéticos incluem a dihidroartemisinina (DHA),
obtido da redução da artemisinina; o artemeter e arteter, derivados lipofílico; e o
artesunato, um derivado solúvel em água (Fig. 13).
O DHA é um lactol facilmente obtido da artemisinina por redução com tetra-
hidroborato de sódio (NaBH4) e tem uma actividade duas vezes mais potente que a
artemisinina. No entanto, apresenta um grau de neurotoxicidade relativamente elevado e
partilha da mesma pobre biodisponibilidade por via oral e a elevada taxa de
recrudescência do parasita que a artemisinina.[19, 23]
O artemeter e o arteter são éteres β-alquilados do DHA, desenvolvidos para
aumentar a solubilidade lipídica, perfil farmacocinético e actividade antimalárica da
artemisinina e do DHA. No entanto, visto serem metabolizados a DHA, apresentam
neurotoxicidade significativa principalmente a doses elevadas, doses essas superiores ao
recomendado. Actualmente o artemeter é o derivado mais utilizado da artemisinina,
sendo administrado por via intramuscular sob a forma de uma solução oleosa. [19, 23]
De forma a permitir uma administração intravenosa foram também sintetizados
derivados solúveis em água, mais polares, sendo os mais importantes o artesunato de
sódio e o ácido artelinico (Fig. 14). O facto de serem administrados por via intravenosa
permite uma actuação muito mais rápida e mais eficiente, visto ser ultrapassado o passo
de absorção do fármaco.[19, 23]
O artesunato é um éster do DHA e é rapidamente hidrolisado a este
composto, sendo por isso de preparação extemporânea e administrado em dextrose ou
soro fisiológico. Este composto diminui rapidamente a parasitémia e é muito eficaz a
restabelecer a consciência a doentes em coma por malária cerebral. No entanto
apresenta também elevados índices de recrudescência quando usado em monoterapia.[19,
23]
Figura 14 - Ácido artelinico(R=
H) e derivados. [23]
24 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
O ácido artelinico é um éter do DHA mais estável que o artesunato. Apresenta
maior tempo de semi-vida plasmática, maiores concentrações plasmáticas e menor
toxicidade que todos os derivados semi-sintéticos de primeira geração da artemisinina,
mas menor potencia antiparasitária.[23]
O facto de todos estes derivados de primeira geração continuarem a apresentar
como desvantagem o tempo de semi-vida plasmático reduzido e toxicidade ao nível do
sistema nervoso central, levou a que a partir do composto mais promissor desta geração
de derivados semi-sintéticos, o ácido artelinico, se tentasse ultrapassar estas
desvantagens.[23]
Esta nova estratégia procurou melhorar a molécula de ácido artelinico no sentido
em que se concluiu que os seus parâmetros farmacocinéticos superiores aos dos outros
derivados advinham de efeitos electrónicos, lipofilicidade e factores estéricos e quirais.
Estas alterações permitiriam às moléculas não só evitar ou retardar a sua metabolização
pelas enzimas microssomais, evitando a formação de DHA e dos seus efeitos
neurotóxicos, como as tornou mais estáveis em condições fisiológicas e aumentou a sua
actividade.[23]
A deoxoartemisinina (Fig. 15), um
derivado da artemisinina sem o grupo
carbonilo, encorajou a síntese de novos
derivados sem o grupo carbonilo devido à sua
superior actividade antiparasitica. Os
compostos obtidos apresentam elevada
actividade o que demonstrou que a remoção
do grupo carbonilo da lactona permite um
excelente aumento da potência dos fármacos.
Ésteres e éteres mais lipofílicos foram também sintetizados, mas verificou-se que o
potencial neurotóxico dos compostos aumentava com a sua lipofilicidade,
provavelmente por facilitar a passagem através da barreira hemato-encefálica destas
pequenas moléculas. Foram também sintetizados derivados diméricos da artemisinina
(Fig. 16), que apresentavam maior estabilidade que esta e ao mesmo tempo mantinham
muito boa actividade.[23]
Figura 15 – Deoxoartemisinina.
[23]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 25
Tal como a artemisinina, todos os compostos referidos, assim como todos os
compostos que apresentam uma função endoperóxido necessitam de bioactivação para
exercerem o seu potencial antiparasítico. Esta proposição é consensual no entanto o seu
desenvolvimento mecanistico e intermediários envolvidos após activação não o são. [23,
24]
Assim, de uma forma geral assume-se que os peróxidos antimaláricos após
entrarem no parasita interagem com ferro (II) que catalisa a quebra da ligação peróxido.
A fonte de fero é no entanto um dos tópicos de discussão: ferro na forma livre ou ferro
do grupo heme.[23, 24, 35]
No vacúolo alimentar do parasita, tal como já foi referido, ocorre a degradação
da hemoglobina dos eritrócitos invadidos. Esta degradação leva à libertação de
aminoácidos e do grupo heme da proteína. O grupo heme livre pode então interagir
livremente com o endoperóxido através do seu ião de ferro, na forma reduzida. [23, 24]
Paralelamente no interior do vacúolo alimentar e no citosol do parasita existe em
equilíbrio ferro intracelular na forma ferrosa e férrica, sendo esta forma reduzida do ião
que poderá interagir com os átomos de oxigénio da ligação peróxido. Assim, a
existência de duas possíveis fontes de ferro para activar o fármaco levou a que se
realizassem várias experiências no sentido de esclarecer qual a verdadeira fonte de
ferro, ou eventualmente, se estes peróxidos seriam activados pelas duas formas de ferro.
Estes estudos mostraram que embora as moléculas possam ser activadas por qualquer
uma das duas fontes, são-no mais rápida e eficazmente pelo ferro do grupo heme. [25]
Figura 16 – Dimeros da artemisinina. [23, 24]
26 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Além do mais estes estudos demonstraram também que os peróxidos
antimaláricos são bastante estáveis na presença de hemoglobina, nomeadamente
oxiemoglobina, e assim a reacção com o heme livre pode explicar a sua especificidade
selectiva por eritrócitos infectados. Além do mais, a incubação de endoperóxidos
antimaláricos com enzimas CYP, que contêm o cofactor heme, não resulta em quebra da
ligação peróxido. [23, 26]
Figura 17 – Mecanismo proposto para a cisão reductiva da ligação peróxido da
artemisinina e subsequente rearranjo dos radicais formados. [24]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 27
O modelo mecanistico de bioactivação geralmente proposto é o modelo da cisão
redutiva. Neste modelo (Fig. 17), a bioactivação inicia-se com a clivagem homolitica da
ligação peróxido catalisada pelo ferro na forma reduzida. O ferro liga-se à artemisinina,
transferindo para esta um electrão. Esta transferência induz a clivagem homolitica da
ligação e origina radicais centrados nos átomos de oxigénio (radicais alcoxilo), que
posteriormente rearranjam intramolecularmente de forma a originar radicais centrados
nos átomos de carbono, desimpedidos estericamente. Estes radicais podem ser centrados
num átomo de carbono primário ou secundário, devido à natureza assimétrica da ligação
peróxidica. [23, 24, 27, 28]
Todos os radicais formados, centrados em átomos de oxigénio ou em carbonos
primários ou secundários, são espécies extremamente reactivas que podem alquilar
biomoléculas, ou originar espécies reactivas de oxigénio e assim causar stress oxidativo,
nomeadamente Fe(IV)=O. Na ausência de um possível alvo de alquilação estes radicais
rearranjam em moléculas neutras. [23, 24, 27, 28]
Visto os radicais serem espécies muito reactivas, alguns autores afirmam que
têm um tempo de semi-vida demasiado curto para terem alguma interacção
intermolecular. Como tal, propuseram um modelo mecanistico alternativo ao modelo da
cisão redutiva: o modelo do peróxido aberto (Fig. 18). Este modelo foi também
proposto tendo em conta uma fonte de ferro não ligada à hemoglobina. Assim, neste
modelo, a clivagem da ligação peróxido advém de protonação da ligação ou
complexação com Fe2+
, ou um outro ácido de Lewis, ocorrendo uma bioactivação iónica
e não radicalar dos endoperóxidos. A quebra da ponte peróxido não é homolitica
ocorrendo a formação de um carbocatião terciário, estabilizado pela sua ligação ao
átomo de oxigénio que não faz parte da ligação peróxido. Esta ligação estabiliza a carga
positiva do carbocatião e facilita a abertura do anel. Em seguida uma molécula de água
pode reagir com o carbocatião, e através da abertura do anel, forma-se um
hidroperóxido insaturado. Esta espécie é por si só bastante reactiva, podendo modificar
resíduos de proteínas por oxidação directa. Através de uma posterior redução de Fenton
é formado um radical hidróxilo, uma espécie reactiva de oxigénio que pode oxidar
resíduos de aminoácidos.[24, 27-29]
28 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Este modelo alternativo tem o potencial de permitir a formação de várias
espécies reactivas de oxigénio, e como tal causar stress oxidativo, o que pode ter
implicações na actividade antimalárica destes compostos.
As espécies reactivas formadas pela bioactivação da artemisinina e seus
derivados vão depois reagir com moléculas do parasita e eventualmente conduzir à sua
destruição. Alguns dos alvos moleculares propostos incluem o próprio heme, proteínas e
membranas do parasita, assim como possivelmente da sua mitocondria.[23, 24]
A alquilação do heme foi um dos primeiros alvos moleculares da artemisinina e
derivados a ser proposto. Com a alquilação do heme o parasita seria, em teoria, incapaz
de o oxidar a hematina e assim o polimerizar em moléculas de hemozoina. Como tal, o
heme permaneceria livre e seria acumulado no vacúolo alimentar do parasita. Como já
foi referido, o heme livre é tóxico para o Plasmodium, visto ser uma molécula com o
potencial de originar espécies reactivas de oxigénio e assim causar stress oxidativo ao
parasita. Aductos de heme e artemisinina foram identificados por espectromeia de
massa, o que sustenta esta teoria como um dos mecanismos de acção dos endoperóxidos
antimaláricos.[23, 24]
Para além da alquilação do heme foi também proposto a alquilação de proteínas
do parasita, visto a actividade da artemisinina ser influenciada por aspectos estéricos.
Assim, a alquilação de proteínas essenciais para o Plasmodium, nomeadamente as
envolvidas na degradação de hemoglobina, levaria à destruição do parasita por carência
de aminoácidos. Esta teoria tem sido confirmada por identificação de aductos de
artemisinina com proteases cisteinicas, o que também tem sugerido que a alquilação de
resíduos de cisteina pode estar envolvida no mecanismo de acção ao interferir com a
Figura 18 – Mecanismo proposto para o modelo do peróxido aberto. a) bioactivação
por um ácido de Lewis e b) bioactivação por protonação. [27, 28]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 29
função da proteína, nomeadamente as falcipains, uma família de proteases cisteinicas
envolvidas na degradação da hemoglobina.[24]
Especificamente, a inibição da actividade de uma ATPase transportadora de
cálcio, denominado PfATP6, e existente no reticulo endoplasmático do parasita, é
também um dos mecanismos de actuação da artemisinina, após bioactivação, ao
perturbar a homeostasia de cálcio no interior do parasita. Esta inibição leva a que o
parasita não consiga reduzir a concentração de cálcio livre no seu citosol, visto esta
proteína concentrar esse cálcio livre em estruturas ligadas à membrana, o que leva à
destruição do parasita.[23, 24]
Outro dos mecanismos propostos para a actuação da artemisinina e derivados
envolve a formação de espécies reactivas de oxigénio e concomitante stress oxidativo.
Desta forma um dos alvos moleculares dos endoperóxidos antimaláricos são as
membranas do parasita. Foi demonstrado que a artemisinina acumula em lipidos neutros
e causa danos nas membranas do parasita, nomeadamente, causa a ruptura da membrana
do vacúolo digestivo, enquanto outros endoperóxidos podem também causar a
acumulação de vesículas endociticas, e os tetraoxanos parecem causar degradação
oxidativa de fosfolipidos. Para além disso a perda da função da mitocondria do parasita
pode também ocorrer, no entanto este não parece ser um dos alvos iniciais de actuação
dos endoperóxidos antimaláricos.[24]
Embora não se consiga estabelecer uma ligação directa entre um dos alvos
moleculares e a morte do parasita, parece aparente a complexidade e multiplicidade dos
mecanismos de acção e seus alvos moleculares envolvidos na actuação da artemisinina e
derivados.
Devido à rápida eliminação da artemisinina e derivados estes compostos não são
adequados para a quimioprofilaxia da Malária. A sua utilização implicaria um número
elevado de administrações e um eventual aumento da dosagem devido à indução da sua
própria metabolização por parte dos fármacos, de modo a permanecerem em circulação
quantidades suficientes de fármaco para exercer actividade antimalárica, e assim
fornecer alguma protecção contra a infecção.
Do mesmo modo, quando utilizados em monoterapia estes compostos
apresentam o mesmo problema. Como os fármacos são rapidamente eliminados,
necessitam de administrações frequentes para manter níveis terapêuticos. Para que se
atinjam rácios de cura elevados, sem risco de recrudescências, é necessário que o
composto antimalárico permaneça em circulação durante pelo menos 4 ciclos de vida do
30 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
parasita, ou seja, durante pelo menos 8 dias. [15]
Isto implicaria um número
excessivamente elevado de administrações durante um período de tempo
consideravelmente longo, o que levaria a uma provável fraca adesão à terapêutica e,
consequentemente, maior número de falhas terapêuticas assim como poderia,
eventualmente, facilitar o desenvolvimento de resistência por parte do parasita a estes
compostos, além de potenciar a toxicidade ao nível do sistema nervoso central destes
compostos.[30, 37]
De forma a contornar estes problemas desenvolveram-se as denominadas
terapêuticas combinadas com artemisinina, que envolvem a utilização de derivados da
artemisinina em combinação com antimaláricos de outras classes, como as
aminoquinolinas, com tempos de semi-vida muito maiores que os da artemisinina e
derivados. Assim, com estas estratégias pretende-se uma rápida diminuição da
parasitémia, o que é conseguido pela utilização de artemisinina ou derivados, e evitar a
recrudescência da infecção pela presença de antimaláricos em circulação durante mais
tempo, o que permite manter a actividade durante o tempo necessário, sem implicar um
número exagerado de administrações. [30, 37]
Actualmente a Organização Mundial de Saúde recomenda as seguintes
combinações:
Tabela 1 – Terapêuticas Combinadas de Artemisinina.[30]
Terapêutica Combinada de Artemisinina
(ACT) Observações
1) Arteméter e lumefantrina
2) Artesunato e amodiaquina Em áreas onde o rácio de cura por
monoterapia com amodiaquina é >80%
3) Artesunato e mefloquina
Não existem dados de segurança
suficientes para recomendar o seu uso em
África
4) Artesunato e sulfadoxina +
pirimetamina
Em áreas onde o rácio de cura com
sulfadoxina e pirimetamina é >80%
Esta estratégia permite a obtenção de curas completas em pessoas infectadas
mais rapidamente, sem a ocorrência de recrudescências, e com maior aderência por
parte dos doentes, assim como retarda o possível aparecimento de resistências por parte
do Plasmodium aos fármacos utilizados.[30]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 31
Têm surgido um crescente número de relatórios de falhas terapêuticas de
terapias de combinação com artemisinina na fronteira entre a Tailândia e o Cambodja,
tendo-se inclusivamente confirmado a presença de P. falciparum resistente ao
artesunato nesta área em 2008. Esta área fronteiriça, assim como outras ao longo do rio
Mekong, têm sido o epicentro do aparecimento de resistência a outros fármacos
antimaláricos tal como a cloroquina e mefloquina, e teme-se agora que estas estirpes de
Plasmodium resistentes à artemisinina e seus derivados, possam disseminar-se a outras
áreas do globo, tal como sucedeu com outros fármacos. [24, 31, 32]
Para além da possível disseminação de resistência a estes compostos
promissores, outros problemas têm surgido, como a escassez de Artemisia annua e o
crescente preço da artemisinina, assim como o baixo rácio de extracção desta das folhas
de Artemisia annua (menos de 1% do peso seco). Associados a estas dificuldades, a já
referida fraca biodisponibilidade oral, toxicidade e fraco perfil farmacocinético,
conduziram a comunidade científica na busca
de derivados mais baratos e com melhores
perfis farmacoterapêuticos.
8.2. 1,2,4-Trioxanos sintéticos
Os trioxanos são compostos com uma
estrutura molecular muito mais simples que a artemisinina (Fig. 19). A observação de
que o farmacóforo da molécula é a ponte endoperóxido e o entendimento de que o
átomo de oxigénio adjacente facilitaria a formação dos derivados envolvidos no
mecanismo de acção da artemisinina, levou a que se preparassem derivados sintéticos
com estrutura 1,2,4-trioxano, semelhante mas muito mais simples, de forma a elucidar
os requisitos estruturais para a actividade antimalárica dos endoperóxidos, e dar
indicações sobre a forma de a potenciar. Estes estudos mostraram que esses derivados
mantinham uma elevada actividade antimalárica, mesmo sem as outras características
estruturais da artemisinina, como o anel lactona, demonstrando assim que estas seriam
de somenos importância para a actividade antimalárica do composto, e confirmaram a
importância da estrutura 1,2,4-trioxano.[23]
Com o estudo destas estruturas simples foi demonstrada também a relevância
que algumas pequenas alterações estruturais e estericas tinham na actividade
Figura 19 – Núcleo trioxano.
32 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
antimalárica dos compostos, visto a presença
da ponte endoperóxido em todos estes
compostos (peróxidos antimaláricos) ser
essencial mas não suficiente para apresentarem
actividade antimalárica. Por exemplo,
moléculas em posição cis apresentavam maior
actividade que os respectivos enantiomeros
trans, os substituintes ligados em 3-, 5- e 6-
influenciam grandemente a actividade, nomeadamente a estrutura 2-adamantil, o que
levou a que se passasse a utilizar o modelo adamantil-spiro-1,2,4-trioxano como uma
fonte de boa actividade antimalárica (Fig. 20).[23]
Alterações estéricas nalgumas posições mostraram também diferenças relevantes
entre epimeros[23]
, o que poderá estar relacionado com algum bloqueio estéreo à ligação
endoperóxido, o que dificultaria a bioactivação dos compostos, ou a uma maior
dificuldade na formação dos intermediários reactivos.
8.3. 1,2,4-Trioxolanos
Os trioxolanos são moléculas com
um núcleo heterocíclico de 5 átomos,
incluindo a ponte endoperóxido (Fig. 21).
Estas moléculas são também denominadas
ozonídeos, e algumas delas provaram ser
mais activas contra o Plasmodium que o
artesunato e arteméter tanto in vitro com in vivo, além de apresentarem maiores tempos
de semi-vida e melhor biodisponibilidade após administração oral. [23]
A observação que estas moléculas, obtidas por co-ozonolise de O-alquil ceto-
oximas na presença de compostos contendo um grupo carbonilo, numa reacção de
Griesbaum, eram bastante estáveis em diversas condições sintéticas, permitiu a síntese
de inúmeros compostos e a observação de correlações entre a estrutura e a actividade
destes compostos.[23, 38]
Figura 21 – Núcleo 1,2,4-
trioxolano.
Figura 20 – Adamantil-spiro-1,2,4-
trioxano.
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 33
Assim, foi demonstrado que
trioxolanos, e outros peróxidos
antimaláricos, simetricamente
substituídos são praticamente inactivos,
enquanto os endoperóxidos assimétricos
apresentam normalmente excelentes
valores de actividade, principalmente
quando são flanqueados pelo grupo
adamantil e um anel ciclo-hexilico (Fig. 22). A utilização desta combinação de
substituintes provou ser bastante útil ao permitir um equilíbrio no balanço entre um
grupo endoperóxido demasiado exposto, e como tal muito reactivo, e um grupo
endoperóxido demasiado protegido estericamente, e praticamente inactivo, já que o
grupo adamantil, por ser bastante volumoso e rígido, impede o acesso ao átomo de
oxigénio da ponte endoperóxido do seu lado, enquanto do outro o grupo ciclo-hexano
expõe o endoperóxido ao complexo de ferro (II) no seu lado da molécula, permitindo a
sua bioactivação. Desta forma, trioxolanos substituídos com 2 grupos ciclo-hexano são
inactivos por serem demasiado reactivos e se degradarem rapidamente, enquanto
trioxolanos di-substituidos por adamantil são inactivos por não serem reactivos, visto a
ponte endoperóxido estar demasiado bloqueada estericamente (Fig. 23).[38-41]
Além disso, estudos quânticos em dispiro-1,2,4-trioxolanos mostraram que a
conformação dos substituintes na proximidade da ponte endoperóxido influenciava
grandemente a sua interacção e formação de complexos com o ferro (II). Assim,
isómeros conformacionais da mesma molécula apresentam diferentes graus de
actividade antimalárica consoante a acessibilidade esterica que a sua ligação
endoperóxido apresenta. Assim, foi observado que a conformação equatorial do ciclo-
hexano em relação à ponte endoperóxido é a que permite maior acessibilidade e como
tal, maior reactividade, sendo a prevalência desta conformação que determina a
reactividade e estabilidade da molécula. Foi também observado que quanto mais
volumosos os substituintes em cis-8’- maior a prevalência de conformações axiais.
Assim, parece importante limitar o bloqueio estérico à volta da ligação peróxido
aquando do desenho de novos trioxolanos, no entanto uma excessiva reactividade com o
ferro (II) levará a uma maior clearance do composto, sendo por isso fundamental regular
o equilíbrio entre os conformoros axiais e equatoriais de modo a favorecer a
estabilidade destes compostos, e assim potenciar a sua actividade in vivo.[46]
Figura 22 – Dispiro-1,2,4-trioxanos
com os grupos adamantil e ciclo-hexano
numerados.
34 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Embora se tenha verificado que compostos com fraca actividade in vitro não
possuem actividade in vivo, foi demonstrado que a boa actividade in vitro não é
preditiva de boa actividade in vivo [38-41]
, o que não pode ser considerado uma surpresa
visto a maior complexidade destes modelos.
Para os trioxolanos, e para qualquer família de peróxidos antimaláricos, os
derivados mais lipofílicos são mais activos oralmente mas são metabolicamente menos
estáveis. Tal deve-se ao facto de uma boa biodisponibilidade oral requerer um bom
equilíbrio entre solubilidade em meio aquoso, favorecida para compostos polares, e
lipofilicidade, de forma a permitir a permeabilidade membranar dos compostos. No
entanto, a biodisponibilidade oral é prejudicada para compostos mais lipofílicos, visto
estes serem mais extensamento afectados por metabolismo de primeira passagem que os
compostos mais polares.[38-41]
Trioxolanos com grupos funcionais básicos e neutros apresentam bons perfis
antimaláricos, no entanto grupos funcionais acídicos diminuem a actividade
antimalárica. A comparação da actividade antimalárica contra P. falciparum in vitro
entre trioxolanos com grupos funcionais de base fraca e neutros não apresentou
diferenças relativas na actividade dos compostos, no entanto, a mesma comparação de
actividade contra P. berghei, mostrou que os grupos funcionais de base fracas eram
essenciais para a excelente actividade dos trioxolanos contra este parasita, o que pode
ser função de propriedades de ADME superiores de trioxolanos de base fraca contra
trioxolanos neutros.[39, 40]
Dos trioxolanos sintetizados nestes
estudos um foi seleccionado como
candidato a desenvolvimento como
fármaco, devido às suas características
biofarmacêuticas e perfil toxicológico. O
arterolano, também conhecido por OZ277
(Fig. 24), encontra-se agora na fase III de
Figura 24 – Estrutura molecular do
arterolano ou OZ277.[41]
Figura 23 – Dispiro-1,2,4-Trioxolanos com estrutura simétrica (a e b) e
assimétrica (c).
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 35
testes clínicos na forma de maleato de arterolano em combinação com fosfato de
piperaquina. Este composto apresenta uma semi-vida plasmática superior à da di-
hidroartemisinina e artesunato e é mais activo que estes tanto, in vitro como in vivo.
Toxicologicamente o arterolano apresenta baixos níveis de toxicidade mesmo a doses
elevadas, sendo o fígado, sistema linfático e possivelmente os rins o alvo da sua
toxicidade. Não se observaram sinais de neurotoxicidade nestes compostos, o que
constitui uma enorme vantagem, visto que a neurotoxicidade é uma das grandes
desvantagens associada ao tratamento com artemisinina e derivados.
No entanto o arterolano apresentou alguns problemas relacionados com
estabilidade plasmática em doentes com malária durante a fase II dos ensaios clínicos, o
que poderá aumentar os custos terapêuticos, por implicar uma dosagem maior do que a
inicialmente ponderada.[52]
A incubação do arterolano com
microsomas hepáticos humanos mostrou
que este era hidroxilado em dois pontos dos
anel adamantanona e os metabolitos
originados (Fig. 25) por essa reacção eram
substancialmente menos activos.[42]
Esta
observação pode indicar a perda substancial
de actividade através de metabolismo de
primeira passagem, não apenas para este
composto mas para todos os endoperóxidos de estrutura espiro-adamantanona, assim
como também demonstra a importância de um anel adamantanona não substituído para
a actividade destes compostos.
Posteriormente foram já identificados outros trioxolanos de estrutura similar ao
arterolano, mas com outros grupos funcionais de base fraca, com eficácia antimalárica,
assim como perfis de absorção, distribuição, metabolização e excreção (ADME), iguais
ou superiores ao arterolano.[41]
É importante referir ainda que actualmente encontra-se
um outro trioxolano em fase II de ensaios clínicos, o OZ439, que até agora provou ser
em todos os aspectos superior ao arterolano. [56]
Figura 25 – Arterolano (1) e seus
metabolitos hidroxilados (2 e 3).[42]
36 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Quanto ao mecanismo de actuação destes compostos este parece estar
relacionado com alquilação de heme e de outros alvos moleculares, após bioactivação
catalisada por ferro (II) (Fig. 26). A redução da ligação peróxido mediada por ferro (II)
origina a formação de radicais centrados em átomos de carbono que podem
posteriormente alquilar alvos moleculares assim como causar stress oxidativo no
parasita. Alguns estudos mostram que os trioxolanos parecem estar associados a
maiores índices de alquilação de heme do que a artemisinina e seus derivados. Estes
estudos mostraram também que os trioxolanos são inibidores muito menos potentes da
PfATP6 que a artemisinina e derivados, provavelmente devido às suas diferenças
estruturais, o que mostra que os alvos moleculares e mecanismo de actuação envolvido
na actividade antimalárica destes endoperóxidos possam ser diferentes. [43-45]
Figura 26 – Modelo de
bioactivação e alquilação de heme
por trioxolanos. [44]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 37
8.4. 1,2,4,5-Tetraoxanos
Os tetraoxanos são também eles
compostos heterocíclicos mas possuem duas
pontes endoperóxido (Fig. 27). Os derivados
substituídos em 3,6- dos 1,2,4,5-
tetraoxaciclo-hexano são há muito utilizados
para diferentes fins, tais como a produção
industrial de hidrocarbonetos macrocíclicos e lactonas, mas a descoberta da sua
impressionante actividade antimalárica in vitro, especificamente de dispiro-1,2,4,5-
tetraoxanos simétricos, na década de 90 do século passado, por Vennerstrom e
colaboradores, abriu caminho à exploração deste grupo promissor de endoperóxidos
antimaláricos.[23, 49]
Estes compostos são facilmente obtidos pela ciclização catalisada por ácido de
cetonas cíclicas com peróxido de hidrogénio, no entanto formam-se bastantes
subprodutos da reacção sem qualquer utilidade, como os 1,2,4,5,7,8-hexaoxanos,
compostos com 3 pontes endoperóxido, que apresentam muito fraca actividade
antimalárica comparativamente aos tetraoxanos alvo, devido a um maior bloqueio
estérico das pontes endoperóxido nos hexaoxanos (Fig. 28).[51]
Este facto levou a uma
busca da optimização das condições de reacção, com utilização de substratos, solventes
e catalisadores específicos, e à síntese de intermediários bis-hidroperóxido de forma a
aumentar o rendimento de reacção. [47]
A descoberta de que o núcleo tetraoxano era
extremamente estável, mesmo em condições acídias e redutivas extremas com hidretos
(pH de 1,6 e em presença de LiAlH4), assim como em condições básicas e oxidativas,
permitiu a síntese de uma grande variedade de derivados com grupos funcionais polares
e solúveis em água, muitos deles através de aminação redutiva. [23, 48]
Figura 27 – Núcleo 1,2,4,5-
tetraoxano.
38 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Tal como nas outras classes de endoperóxidos sintéticos, os compostos dispiro-
provaram ser mais potentes como antimaláricos que os seus derivados monospiro,
através da comparação de 3,6-dispiro-1,2,4,5-tetraoxanos com análogos monospiro. Ao
mesmo tempo foi novamente observada a maior potência de derivados mistos (ou
assimétricos) relativamente a tetraoxanos com o mesmo substituinte em 3- e 6- e, sem
surpresa, a superior contribuição do anel adamantil face à estabilização e aumento da
potência antimalárica dos tetraoxanos, tal como foi observado para os trioxanos
sintéticos e trioxolanos, cujos sistemas só apresentavam biodisponibilidade oral em
ratinhos se contivessem este grupo substituinte, devido à sua rigidez e ao equilíbrio
entre a exposição e bloqueio estérico da ligação peróxido que proporciona, como já foi
referido. [23, 47, 49]
Além disso os compostos com o núcleo tetraoxano provaram ser, em estudos
comparativos com moléculas análogas, mais estáveis que os respectivos trioxolanos e
trioxanos sintéticos, visto estes serem mais rapidamente degradados na presença de
ferro que os tetraoxanos: ao final de 48h o tetraoxano mantinha 69% do produto inicial
não degradado contra 43% do trioxano, enquanto o trioxolano tinha-se degradado
completamente nesse período de tempo. Um exemplo simples da superioridade do
núcleo tetraoxano face ao trioxolano é dado pela inactividade e instabilidade reactiva do
dispiro-1,2,4-trioxano 1a) face ao seu análogo tetraoxano 2a) que apresenta actividade
antimalárica em quantidades nanomolares, e é metabolicamente mais estável (Fig.
29).[50]
Figura 28 – Estrutura tridimensional de tetraoxano e hexaoxano.
[51]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 39
No mesmo estudo foi também observada a estabilidade química dos tetraoxanos,
visto para estes compostos não se ter observado degradação significativa em solução
aquosa e ácida. Foram também realizados ensaios de cito e genotoxicidade não se tendo
observado indícios de citotoxicidade nem genotoxicidade para os tetraoxanos
testados.[50]
Da mesma maneira que um composto da classe dos trioxolanos foi seleccionado
para ensaios clínicos, surgiu também um possível candidato a fármaco, proposto por
O’Neill e colaboradores, daquela que parece ser a classe mais promissora de
endoperóxidos antimaláricos: os tetraoxanos. Este composto, o RKA 182 (Fig. 30),
apresenta actividade antimalárica in vitro superior ao artesunato, artemeter e
artemisinina, mesmo contra 11 isolados de Plasmodium de pacientes da fronteira entre a
Tailândia e o Cambodja, a quem a ACT a que foram sujeitos falhou. Suprimiu a
parasitémia para níveis indetectáveis em
ratinhos infectados com P. berghei ANKA
após 24h e em dose oral única de
30mg/kg, enquanto o artesunato reduz a
parasitémia em cerca de 95% em 8h mas
esta aumenta rapidamente em seguida.
Para comparar a estabilidade deste
tetraoxano com o arterolano (OZ277) em
eritrócitos infectados e não infectados in
Figura 30 – Estrutura molecular e dados
biofarmacêuticos do RKA 182. [52]
Figura 29 – Comparação de tetraoxanos com
antimaláricos baseados em trioxolanos.[52]
40 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
vitro, foram realizados ensaios de resgate do fármaco após determinados intervalos de
tempo, tendo-se observado que após 35min o arterolano já se encontrava completamente
degradado nos eritrócitos infectados, não se tendo resgatado qualquer fármaco,
enquanto a percentagem de RKA 182 resgatada após 4h foi de 79%, o que mostra que
este tetraoxano é mais estável que o arterolano que, como já foi referido, apresentou
problemas associados à diminuição da concentração plasmática do fármaco nos ensaios
clínicos de Fase II. Além da sua superior estabilidade face ao arterolano, à sua superior
actividade antimalárica comparativamente a artesunato, arteméter e artemisinina,
apresenta um tempo de meia vida de cerca de 2,4h após administração oral, superior ao
de qualquer outro endoperóxido antimalárico em ratos, boa disponibilidade oral (38%
em ratos e 42% em ratinhos), baixa toxicidade e uma síntese industrial simples de
apenas 4 passos e com um custo de produção baixo, sendo obtido de matéria prima
relativamente barata.[52]
A superior estabilidade destes compostos relativamente às outras classes parece
estar associada à sua aquiralidade, assim como ao facto de serem mais polares que os
seus análogos de outras classes mesmo com estrutura semelhante (apresentam mais um
átomo de oxigénio no farmacóforo que as outras classes portanto são mais polares), o
que contribui para que sofram menos efeitos de metabolização de primeira passagem e
também os torna mais solúveis, facilitando assim o passo de solubilização necessário à
absorção de qualquer fármaco, o que vai aumentar a sua biodisponibilidade oral
relativamente às outras classes de endoperóxidos antimaláricos.
De resto, os tetraoxanos parecem obedecer às mesmas relações estruturais de
actividade que as já referidas para os trioxolanos:
Tetraoxanos simetricamente substituídos são praticamente inactivos,
enquanto os endoperóxidos assimétricos apresentam normalmente
excelentes valores de actividade, principalmente quando são flanqueados
pelo grupo adamantil e ciclo-hexano.
Tetraoxanos com grupos funcionais básicos e neutros apresentam bons
perfis antimaláricos, no entanto grupos funcionais acídicos diminuem a
actividade antimalárica.
Os derivados mais lipofílicos são mais activos oralmente mas são
metabolicamente menos estáveis.
Relembrar que compostos com fraca actividade in vitro não possuem actividade
in vivo, no entanto a boa actividade in vitro não é preditiva de boa actividade in vivo.
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 41
O seu mecanismo de acção está, como todos os outros endoperóxidos
antimaláricos, dependente de bioactivação por parte de ferro (II). Estudos mecanisticos
ao RKA 182 interceptaram tanto os radicais centrados em carbonos primários como
secundários em presença de TEMPO, um agente que forma aductos com compostos
radicalares (Fig. 31).[52]
Neste aspecto os tetraoxanos parecem diferir dos 1,2,4-
trioxolanos visto que para estes apenas foi caracterizado o radical centrado em carbono
secundário.[55]
Visto a alquilação da hemoglobina ser um dos potenciais mecanismos de
actuação molecular dos endoperóxidos antimaláricos, tal também foi estudado para os
tetraoxanos, tendo-se observado, através de espectrometria de massa, a formação de
aductos entre a porfirina do heme e o radical centrado em carbono secundário derivado
do tetraoxano, o que mostra que este processo pode ser importante para o mecanismo de
actuação dos tetraoxanos, tal como também o parece ser para as outras classes de
endoperóxidos antimaláricos.[52]
Adicionalmente foi observado, através de microscopia
confocal após a adição de tetraoxanos marcados com sondas fluorescentes, que estes
acumulavam selectivamente nos eritrócitos infectados por parasitas, no vacúolo
alimentar e no citoplasma do Plasmodium.[50]
A mesma distribuição celular foi também
observada para a artemisinina e 1,2,4-trioxolanos. [23]
Figura 31 – Mecanismo de bioactivação de tetraoxanos e
formação de aductos com TEMPO. [51]
42 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
A incorporação do núcleo tetraoxano, assim como de outros endoperóxidos
antimaláricos sintéticos, em moléculas esteróides foi levada a cabo, e as propriedades
antimaláricas dos conjugados resultantes estudadas (Fig. 32). Inicialmente foram
obtidos derivados bis-esteroidais de colestano que apresentavam actividade antimalárica
na ordem das micromoles, a substituição do colestano por derivados do ácido cólico
levou ao aumento das actividades antimaláricas destes compostos. Com a substituição
de um dos esteróides por um derivado alquilideno, como o anel ciclo-hexano, esta
actividade foi potenciada apresentando alguns dos compostos obtidos actividades in
vitro e in vivo em concentrações nanomolares. Nenhum dos derivados testados
apresentou toxicidade nos animais utilizados, em qualquer das concentrações aplicadas,
e foi observado a sua especificidade de actuação em eritrócitos infectados. Estes
resultados são bastante interessantes pois mostram que mesmo moléculas complexas,
como é o caso dos esteróides, podem ser utilizados como veículos para farmacóforos
endoperóxidos sem comprometer a sua actividade antimalárica, e mesmo aumentá-la,
visto, e especificamente no caso dos esteróides, serem moléculas anfifílicas que vão
aumentar a solubilidade dos compostos em condições fisiológicas e ao mesmo tempo
facilitar a permeabilidade destes a membranas celulares.[23, 53]
Figura 32 – Exemplos de endoperóxidos conjugados com esteroides.
a) tetraoxano bis-esteroide de ácido cólico; b) tetraoxano esteroide de
ácido cólico e c) trioxano pregnano.[23]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 43
Estudos do mecanismo de acção dos derivados de tetraoxano conjugados com
esteróides revelaram que estes derivados originaram apenas radicais alcoxilo (radicais
centrados em oxigénio) após bioactivação na presença de ferro (II), e revelaram a
presença de espécies de ferro de alta valência, Fe(IV)=O.[23]
Assim, parece provável que
as espécies originadas por bioactivação de tetraoxanos conjugados com esteróides não
sejam radicais centrados em átomos de carbono, devido a um possível bloqueio do
rearranjo intermolecular observado nos dispiro-tetraoxanos com o grupo adamantil e
ciclo-hexaoxano já referidos.
8.5. Compostos Híbridos
Com o intuito de ultrapassar a resistência a fármacos derivados da cloroquina e
ao mesmo tempo tirar partido das propriedades farmacocinéticas dos trioxanos,
ozonídeos e tetraoxanos foram desenhados e sintetizados compostos que continham,
convalentemente ligados, um endoperóxido antimalárico e um derivado
quinolinico.[23,57]
Estes compostos híbridos (Fig. 33), denominados 1,2,4-trioxaquinas, 1,2,4-
trioxolaquinas e 1,2,4,5-tetraoxaquinas assim como derivados híbridos semi-sintéticos
da artemisinina, foram conjugados a um grupo aminoquinolónico ou aminoacridino que
contribui para a acumulação destes compostos no vacúolo alimentar acídico do parasita,
e assim aumentar o turnover de radicais livres pela bioactivação do endoperóxido, além
de poderem danificar o parasita por dois mecanismos distintos e, mesmo após alguma
Figura 33 – Derivados quiméricos de trioxanos(a), trioxolanos (b) e tetraoxanos (c).
[23]
44 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
degradação química ou metabólica do endoperóxido, os metabolitos continuariam a ter
actividade pronunciada, podendo funcionar como agentes alquilantes ou bloqueadores
da polimerização da hematina. Além disso, muitos dos compostos quiméricos obtidos
podem ser convertidos em sais solúveis em água tornando possível a sua administração
oral ou intravenosa.[23, 57]
Os resultados destas experiências mostraram que os compostos obtidos eram
mais activos contra estirpes de Plasmodium resistentes a cloroquina que a própria
cloroquina, não indicando qualquer resistência cruzada com este fármaco, no entanto o
sinergismo esperado não foi observado, visto muitas vezes o derivado endoperóxido
sozinho apresentar melhor actividade que os correspondentes híbridos. Os resultados de
actividade antimalárica dos híbridos de derivados semi-sintéticos da artemisinina,
inferiores aos obtidos para o arteméter, podem ser justificados pela inacessibilidade
destes compostos a outros possíveis alvos moleculares fora do vacúolo alimentar, como
a PfATP6, o que mais uma vez mostra a importância deste alvo molecular na actividade
antimalárica da artemisinina e dos seus derivados semi-sintéticos. Mesmo assim,
recentemente uma trioxaquina sintética foi seleccionada para desenvolvimento como
fármaco.[23, 57]
Alguns dos compostos obtidos de endoperóxidos sintéticos podem
inclusivamente funcionar como sistemas de transporte para uma aminoacridina ou
aminoquinolina visto, após bioactivação por ferro (II), formarem os respectivos radicais
livres e libertarem a cetona conjugada com um destes grupos (Fig. 34), incluindo assim
dois potenciais agentes antimaláricos, com diferentes mecanismos e alvos moleculares,
no interior do Plasmodium de uma só vez.[57]
Figura 34 – 1,2,4-trioxolaquina e esquema da sua bioactivação levando à formação do
radical livre e libertação da aminoacridina.[57]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 45
O mesmo princípio foi também utilizado em modelos de profarmacos
endoperóxidos que após bioactivação por ferro (II) no interior do parasita, iriam sofrer a
respectiva fragmentação e libertar não só os correspondentes radicais livres do
endoperóxido como também outros potenciais agentes antiparasitários, como as já
referidas aminoquinolinas e aminoacridinas ou inibidores das proteases cisteinicas do
Plasmodium, como as chalconas (Fig. 35). Estas proteases são responsáveis, em
conjunto com outras proteases asparticas, pela degradação da hemoglobina e
concomitante obtenção de aminoácidos por parte do parasita, que os usa para a
biosintese das suas proteínas. Isto torna as proteases cisteinicas um alvo atractivo para o
desenvolvimento de fármacos antimaláricos, os seus inibidores uma classe inovadora e
de grande potencial antimalárico, e esta associação mais um passo em frente, visto os
derivados sintetizados apresentarem maior actividade que o composto endoperóxido
sintético de que derivam, o artefleno (Fig. 38b), e ao mesmo tempo serem, tal como
este, não tóxicos em experimentações in vivo.[58]
Figura 35 – Mecanismo de actuação do protótipo dioxano com subsequente libertação do
inibidor das proteases cisteinicas (#) e do radical livre.[58]
46 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
8.6. 1,2-dioxolanos e 1,2-dioxanos
Na tentativa de elucidar os fundamentos
estruturais de reactividade que determinam a
actividade antimalárica dos peróxidos
antimaláricos e de optimizar o desenho de novos
compostos, foram sintetizados 1,2-dioxolanos (Fig. 36) e a sua actividade antimalárica
estudada. Assim, foi observado que estes compostos, para os quais foi inicialmente
sugerido que seriam mais estáveis e com melhores características biofarmacêuticas que
os outros endoperóxidos antimaláricos, eram mais estáveis mas ao mesmo tempo
inactivos ou praticamente inactivos no que respeita a actividade antimalárica. Essa
observação foi justificada com o facto de estes compostos sofrerem preferencialmente
uma redução mediada por ferro (II) de dois electrões, o que leva à formação de diois a
partir do radical alcoxilo formado pela redução da ligação peróxido (Fig. 37), enquanto
os outros endoperóxidos maláricos sofrem principalmente uma redução de um electrão
na sua ligação peróxido, e também pela ausência do átomo de oxigénio ligado a um ou
aos dois carbonos que contem a ligação peróxido e que permite as modificações
estruturais que levam à formação dos radicais centrados em carbono, considerados
fundamentais para a sua actividade antimalárica.[32]
Esta observação confirma mais uma
vez o que já foi dito: a ponte peróxido é essencial para a actividade antimalárica dos
endoperóxidos antimaláricos mas não é suficiente.
Figura 36 – Dispiro-1,2-dioxolano.
Figura 37 – Bioactivação induzida por FeBr2 de 1,2-dioxolano e
intermediários formados. Formou-se 64% de diol inactivo e apenas
8% de radical C centrado (medido por aductos com TEMPO).[54]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 47
Derivados 1,2-dioxanos tal como o já referido artefleno, são derivados
estruturais do yingzhaosu A (Fig. 38a) um produto natural. No entanto existem outros
produtos naturais, também eles com um núcleo 1,2-dioxano, mais simples
estruturalmente e activos contra o Plasmodium: os plakortins.
Os plakortins (Fig. 38c) são endoperóxidos simples, de núcleo 1,2-dioxano,
isolados com elevado rendimento de uma esponja proveniente das Caraíbas,
denominada Plakortis simplex, e possuem actividade in vitro significativa em estirpes
de Plasmodium falciparum resistentes à cloroquina, Ic50 de 390nM contra 9nM da
artemisinina. O plakortin e os seus derivados semi-sintéticos possuem um mecanismo
de actuação dependente de bioactivação redutiva por ferro (II) tal como os outros
endoperóxidos antimaláricos já referidos, e tal como estes, após bioactivação formam
radicais alcoxilo que posteriormente rearranjam para radicais centrados em átomos de
carbono (Fig. 39) que irão interagir com biomoléculas do parasita, e assim conduzir à
sua morte. Ao contrário dos dioxolanos e tal como os restantes endoperóxidos
antimaláricos já referidos, estes compostos sofrem uma redução de um electrão mediada
pelo ferro (II) na sua ponte endoperóxido, o que justifica a sua superior actividade face
aos dioxolanos.[59]
Esta observação, aliada à simplicidade da estrutura dos plakortins,
demonstra a superioridade destes compostos como modelos para o estudo da química
subjacente à actividade antimalárica da ligação peróxido do que os seus confrades
dioxolanos, o que possibilitará a optimização dos compostos de todas as classes de
endoperóxidos antimaláricos, tanto em termos de actividade antimalárica como de
estabilidade e, concomitantemente, dos seus parâmetros farmacoterapêuticos.
Figura 38 – 1,2-dioxanos. a) yingzhaosu A e b) artefleno
[58]; c) Plakortin e análogos.
[59]
48 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
Figura 39 – Bioactivação do plakortin.
[59]
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 49
9. Conclusão
Com o crescente aumento de resistência aos antimaláricos de uso corrente por
parte das várias espécies de Plasmodium, e principalmente de P. falciparum, torna-se
extremamente importante a identificação e síntese de novos fármacos que conjuguem
uma pronunciada actividade antimalárica e um bom perfil toxicológico e de segurança,
assim como boas características farmacocinéticas, e um baixo custo associado à
terapêutica, visto a maior parte dos casos de Malária ocorrerem nos países menos
desenvolvidos e mais pobres e sendo a população destes o principal alvo da terapêutica.
A descoberta da Artemisinina, uma molécula de elevado potencial antimalárico e
sem grandes efeitos secundários, abriu as portas à exploração de uma nova classe de
antimaláricos com um mecanismo de actuação proposto diferente do de todos os outros
antimaláricos de uso corrente: os endoperóxidos antimaláricos.
O facto de o mecanismo de actuação proposto para estes compostos ser diferente
é uma das suas grandes vantagens, visto assim conseguirem ultrapassar as resistências
estabelecidas, muitas vezes cruzadas, aos outros antimaláricos de uso corrente.
O fraco perfil farmacocinético da Artemisinina, caracterizado por baixa
solubilidade em água, um tempo de semi-vida extremamente curto e baixa
biodisponibilidade oral, levou à tentativa de optimização do mesmo através de
derivados semi-sintéticos. No entanto, devido à escassez e contínuo aumento do preço
da matéria-prima, de forma a não encarecer o tratamento, a pesquisa direccionou-se na
busca de derivados completamente sintéticos, e como tal mais baratos, que
continuassem a exibir a excelente actividade antimalárica da Artemisinina mas que
possuíssem melhores parâmetros farmacocinéticos e toxicológicos.
Assim, foram obtidos modelos mais simples de endoperóxidos com actividade
antimalárica, e o estudo destes contribuiu para elucidar os mecanismos associados ao
seu modo de acção, obtendo-se assim informação para o desenho e optimização de
endoperóxidos antimaláricos. Através da síntese de novos compostos que respeitassem
essas requisitos estruturais básicos, mas com a integração de diferentes grupos
funcionais, foi possível observar quais destes contribuíam para uma optimização da
actividade e dos parâmetros farmacocinéticos, estabelecendo correlações entre a
estrutura e a actividade destes compostos e permitindo a síntese de melhores compostos.
O trioxolano OZ439, um composto com características farmacoterapêuticas
superiores ao seu precursor OZ277 (arterolano), é um bom exemplo de como a pesquisa
50 | Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade
contínua e os estudos de reactividade estrutural podem contribuir para a optimização
dos fármacos.
Os trioxolanos e os tetraoxanos, parecem ser as classes mais promissoras de
endoperóxidos antimaláricos completamente sintéticos, existendo derivados derivados
destes compostos em ensaios clínicos, como o trioxolano OZ439 e o tetraoxano RKA
182. Enquanto os trioxolanos são extremamente potentes como antimaláricos, os
tetraoxanos associam essa potência a uma maior estabilidade e, como tal, a melhores
características farmacocinéticas.
Ao comparar os mecanismos, alvos e intermediários propostos para a actividade
antimalárica de cada classe de endoperóxidos antimaláricos existem óbvias diferenças.
No entanto, a capacidade alquilante, e especificamente a alquilação do grupo heme, é
um denominador comum. Quanto às diferenças, estas podem ser fruto das diferenças
estruturais de cada uma das classes, sendo por isso natural que os intermediários
formados e os alvos moleculares possam ser diferentes, não descartando no entanto a
possibilidade de que todos estes compostos possam causar stress oxidativo no interior
do parasita podendo este ser, juntamente com o seu potencial alquilante, um factor
preponderante da sua actividade antimalárica.
Apesar de alguns relatórios darem conta de um crescente número de falhas
terapêuticas associadas aos protocolos de terapia combinada com base em Artemisinina
ACT’s), a observação de que os derivados de síntese total parecem ter um mecanismo
de acção, intermediários e alvos moleculares diferentes dos propostos para a
Artemisinina e derivados semi-sintéticos pode significar que a resistência in vivo do
Plasmodium a estes últimos poderá não afectar os derivados de síntese. No entanto, é
extremamente importante evitar a disseminação global destas estirpes resistentes, visto
que enquanto nenhum dos derivados de síntese é aprovado para utilização humana, a
melhor arma para o combate à Malária, principalmente a causada por estirpes multi-
resistentes, é a Artemisinina e os seus derivados semi-sintéticos, sempre em terapêuticas
combinadas.
As observações aqui descritas permitem antever que os endoperóxidos
antimaláricos sintéticos, principalmente os derivados de trioxolano e tetraoxano, vão no
futuro desempenhar um papel preponderante no combate à Malária, possibilitando o
acesso a terapêuticas eficazes e seguras às populações mais pobres e mais afectadas por
este flagelo.
Endoperóxidos com actividade antimalárica: estrutura, reactividade e actividade | 51
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