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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Instituto de Letras Departamento de Teoria Literária e Literaturas Programa de Pós-Graduação em Literatura CARLA CRISTINA CAMPOS BRASIL GUIMARÃES A DÉRISION CHEZ IONESCO: ANTES QUE A PEÇA TERMINE E A CORTINA SE FECHE A CANTORA CARECA ARRANCA OS CABELOS PARA PROMOVER A LITERATURA E A EDUCAÇÃO Brasília - 2018

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Page 1: UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Instituto de Letras Departamento ... · estudo do texto teatral La Cantatrice Chauve, obra de Eugène Ionesco, dramaturgo do Teatro do Absurdo. Para ele,

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Instituto de Letras

Departamento de Teoria Literária e Literaturas

Programa de Pós-Graduação em Literatura

CARLA CRISTINA CAMPOS BRASIL GUIMARÃES

A DÉRISION CHEZ IONESCO: ANTES QUE A PEÇA TERMINE E A

CORTINA SE FECHE A CANTORA CARECA ARRANCA OS

CABELOS PARA PROMOVER A LITERATURA E A EDUCAÇÃO

Brasília - 2018

Page 2: UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Instituto de Letras Departamento ... · estudo do texto teatral La Cantatrice Chauve, obra de Eugène Ionesco, dramaturgo do Teatro do Absurdo. Para ele,

CARLA CRISTINA CAMPOS BRASIL GUIMARÃES

A DÉRISION CHEZ IONESCO: ANTES QUE A PEÇA TERMINE E A CORTINA SE

FECHE A CANTORA CARECA ARRANCA OS CABELOS PARA PROMOVER A

LITERATURA E A EDUCAÇÃO.

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Literatura, do

Departamento de Teoria Literária e Literaturas

do Instituto de Letras da Universidade de

Brasília, como requisito parcial para obtenção

do título de Mestre em Literatura.

Orientadora: Profa. Dra. Maria da Glória

Magalhães dos Reis

BRASÍLIA

2018

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Campos Brasil Guimarães, Carla Cristina CG963d A Dérison Chez Ionesco: antes que a peça termine e a cortina se feche

a cantora careca arranca os cabelos para promover a literatura e a educação / Carla Cristina Campos Brasil Guimarães; orientador Maria da Glória Magalhães dos Reis. -- Brasília, 2018.

103 p.

Dissertação (Mestrado - Mestrado em Literatura) --

Universidade de Brasília, 2018.

1. La Cantatrice chauve. 2. dérison. 3. literatura e educação. 4.

texto teatral. 5. Teatro do Absurdo. I. Magalhães dos Reis, Maria da Glória, orient. II. Título.

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CARLA CRISTINA CAMPOS BRASIL GUIMARÃES

A DÉRISION CHEZ IONESCO: ANTES QUE A PEÇA TERMINE E A CORTINA SE

FECHE A CANTORA CARECA ARRANCA OS CABELOS PARA PROMOVER A

LITERATURA E A EDUCAÇÃO.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura do

Instituto de Letras, Universidade de Brasília, como requisito parcial à obtenção do título de

Mestra em Literatura.

Aprovada em ______ de ________________ de 2018.

BANCA EXAMINADORA

PRESIDENTE:

_______________________________________________________

Profa. Dra. Maria da Glória Magalhães dos Reis

Membro Interno do Programa

Universidade de Brasília

MEMBROS:

_______________________________________________________

Profa. Dra. Cristina Casadei Pietraroia

Membro Externo do Programa

Universidade de São Paulo

_______________________________________________________

Profa. Dra. Adriana de Fátima Barbosa Araújo

Membro Interno do Programa

Universidade de Brasília

SUPLENTE:

_______________________________________________________

Prof. Dr. André Luís Gomes

Membro Interno do Programa

Universidade de Brasília

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Todo o fantasma, toda a criatura de arte, para existir, deve ter o seu drama, ou seja, um drama

do qual seja personagem e pelo qual é personagem. O drama é a razão de ser do personagem;

é a sua função vital: necessária para a sua existência.

Luigi Pirandelo

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DEDICATÓRIA

A todos aqueles que acreditam nas potencialidades do texto literário!

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AGRADECIMENTOS

À professora Glória, minha querida orientadora, uma guerreira, de coração enorme, que

jamais poupou esforços em me guiar nesta caminhada e com a qual tive a felicidade de

compartilhar as alegrias e descobertas da pesquisa com o texto teatral!

À minha mãe, Gorette, que me permitiu ter sonhos.

Ao meu companheiro, Pedro Fontes, sem o qual essa dissertação não teria tido a mesma força,

obrigado por ser luz neste caminho e por me acompanhar nesta jornada, amo-te.

À professora Cristina Casadei Pietraroia pela generosidade de aceitar compor minha banca de

defesa e contribuir com esta dissertação.

À professora Adriana de Fátima Barbosa Araújo pela delicadeza e força de ter aceitado

compor a banca de defesa, pelas enormes contribuições durante esses anos de mestrado e por

seguir me apresentando o amor pela pesquisa e pela educação.

À professora Luciana Hartmann pelas contribuições na banca de qualificação que me

auxiliaram a chegar ao fim deste ciclo.

Ao professor André Luís Gomes pela generosidade das contribuições da qualificação e na

banca de defesa.

Ao grupo de pesquisa Literatura, Educação e Dramaturgias Contemporâneas pelo espaço de

amizade, luz e análises sempre estimulantes que compõem o escopo do meu trabalho.

Ao grupo de pesquisa Literatura, Femininos e Revolução pela acolhida e pelas discussões

sempre ponderadas que me animam todos os dias a lutar contra o patriarcado.

Aos meus amigos queridos de luta e de excelentes risadas, Babi, Carlinhos e Thais! Obrigada

por não terem me deixado desistir.

À CAPES pelo apoio financeiro a esta pesquisa.

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RESUMO

Esta dissertação analisa os diálogos entre o texto literário e a educação, através do

estudo do texto teatral La Cantatrice Chauve, obra de Eugène Ionesco, dramaturgo do Teatro

do Absurdo. Para ele, suas peças têm como principais reflexões o papel do indivíduo na

sociedade, bem como sua insignificância em relação a sua existência. Somos todos

coadjuvantes do nosso próprio espetáculo e nada mais trágico que nossa inabilidade de

representar nosso próprio papel. O trágico e o cômico se fundem nas obras de Ionesco, em La

Cantatrice chauve as risadas abrem o espetáculo e são o enredo para as mais diversas

tragédias humanas. Por isso, Ionesco recusa a distinção entre tragédia e comédia, pois, para

ele, os dois gêneros se completam. Portanto, analisaremos a concepção da dérision por meio

das “farsas trágicas” e “dramas cômicos” no contexto da literatura e da educação. O trabalho

com a educação passará pelo texto literário de maneira quase que intrínseca a esta dissertação,

uma vez que, nesta perspectiva, a literatura e a educação estarão ligadas por meio da

importância do elemento artístico na prática social. Dessa forma, pela educação podemos

encontrar elementos que estimulem os leitores para que eles se interessem pelo texto literário.

Vale ressaltar, igualmente, o papel da literatura enquanto força de transformação da

sociedade. Segundo Todorov (2010), a literatura está em perigo, e a contribuição desta

dissertação será uma análise dos elementos estéticos de nossa cantora careca para garantir que

apenas ela perca os cabelos, e não a literatura.

Palavras-chave: La Cantatrice chauve; dérision; literatura e educação; texto teatral; Teatro

do Absurdo.

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ABSTRACT

This work analyzes the dialogs between the literary text and education through the

study of the theatrical text La Cantatrice chauve, written by Eugène Ionesco, dramatist from

the Theatre of the Absurd movement. Ionesco’s plays have the purpose of reflect on the

individual’s role in society, as well as the insignificance of their existence. We are all

supporting actors and actresses of our own play and nothing more tragical than our inaptitude

to play our own roles. The tragic and the comic merge together in the Ionesco’s texts and in

La Cantatrice chauve the laughs open the theatrical play and are the story to a great variety of

human tragedies. As so, Ionesco refuses the distinction between tragedy and comedy,

because, for him, those two theater genres complete each other. Therefore, we will analyze

the dérision concept through the “tragic comedies” and the “comic tragedies” in the literature

and education context. In this dissertation. the education will be part of the literary text in an

almost intrinsic way, considering that the literature and education will be connected by the

importance of the artistic element of social practices. In this perspective, through education

we may find elements that stimulate the readers, so they become interested by the literary

text. It should be equally noted the literature role as a force to transform society. According to

Todorov (2010), the literature is in danger and this dissertation contribution will be an

analysis of the aesthetic elements of our bald soprano to assure that only her loses the hair,

and not the literature.

Keywords: La Cantatrice chauve; dérision; literature and education; theatrical text; Theatre

of the Absurd.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10

CAPÍTULO 1. AS CORTINAS SE ABREM PARA A LITERATURA E A EDUCAÇÃO .. 24

1.1 O lugar do ensino de literatura nas escolas ..................................................................... 26

1.2 A literatura entra na escola: narrativa da construção do processo colaborativo ............. 33

1.3 Literatura e ensino ou Ensino de literatura? ................................................................... 40

CAPÍTULO 2. É UM ABSURDO?! A ATUALIDADE E O TRABALHO COM O TEATRO

DO ABSURDO NA LA CANTATRICE CHAUVE. ................................................................. 46

2.1 O riso e o trágico nas obras de Ionesco: a tragédia da linguagem .................................. 52

2.2 A dérision: caminhos possíveis para o trabalho com a literatura e a educação .............. 62

CAPÍTULO 3. A CONSTRUÇÃO DOS SUJEITOS NO TRABALHO COM O TEXTO

TEATRAL ................................................................................................................................ 68

3.1 Orientação didático-reflexiva – ODR, o trabalho com a literatura e a educação ........... 82

3.2 O encontro entre a literatura e a sala de aula .................................................................. 94

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 99

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INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado de muito amor pela dramaturgia, pela educação e bastante

transpiração, resumidos na compreensão de que o texto teatral é uma das imbricações mais

belas da literatura, seja nos estudos estéticos, seja nos poéticos e, principalmente, em seu

lugar enquanto componente educacional, em sala de aula. É importante compreender que

ressaltar suas potencialidades não tem como objetivo diminuir o lugar do teatro, mas de

ampliá-lo, por meio da reflexão teórica proporcionada por aqueles que trabalham com a

literatura e suas reflexões diante do texto.

Meu trabalho com o teatro começou quando estava iniciando meu curso de graduação,

minha escolha: Letras-Francês, um mundo de perspectivas se abria. Fui exposta a diversos

textos, atividades, congressos e a professores incríveis que me colocaram em contato com

novas reflexões, principalmente, no tocante à educação e sua importância transformadora na

formação dos indivíduos.

E, como futura professora de Letras, me questionava a todo o momento sobre como

conectar o papel da educação com minha paixão pelo teatro. A partir dessas reflexões e minha

forte ligação com o texto teatral, comecei a desenhar o que seria hoje minha dissertação de

mestrado, sobre a qual vocês se debruçarão.

Mas como essa paixão virou dissertação? Minha primeira constatação de sua

necessidade e meus primeiros sentimentos da importância deste trabalho surgiram quando

compreendi que o teatro, por meio de sua pluralidade e polifonia, teria um papel importante

na compreensão dos elementos estéticos e poéticos, que são o foco dos estudos literários.

Dessa forma, partirei do pressuposto de que o texto teatral traz uma importante

contribuição enquanto gênero literário, pois podemos encontrar em sua composição, e aqui

me refiro, também, à forma do texto, um lugar extremamente relevante no contato com o

leitor. Através da sua forma e seus diálogos, ele transforma palavra em voz, em corpo, em

transpiração. Sua oralidade emerge do papel, o que torna possível a construção de sentidos em

novas perspectivas. Por isso ele, assim como outros gêneros, tem vida e por onde passa, ecoa.

É, portanto, no teatro, que encontraremos o elemento artístico fundamental para o

desenvolvimento das reflexões que permeiam a literatura, ou seja, a possibilidade de colocá-lo

em cena. No caso do drama contemporâneo, sua multiplicidade de novas interpretações traz

consigo, de uma maneira ainda mais fértil, a possibilidade de trabalhar com a poesia, a

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filosofia, a sociologia e inúmeros processos artísticos. Como nos apresenta Sarrazac1, ao falar

sobre essa “nova” obra dramática:

A obra dramática encontra-se isenta da obrigação de seguir o encadeamento

cronológico dos acontecimentos. Ela explora, numa abordagem diferencial e

aleatória, as potencialidades de cada situação. Surge, então, um teatro dos possíveis,

cuja primeira intuição remonta a Brecht, quando este inculcava nos atores a técnica

do “não-antes-pelo-contrário” [...] Mas, aquilo que em Brecht estava ainda implícito

torna-se hoje explícito. Assiste-se, no teatro de Gatti ou Benedetto, à radicalização e

à transposição para o domínio da literatura de um método de trabalho característico

do ator brechtiano (SARRAZAC, 2002, p. 64-65).

Apesar de o teatro brechtiniano não ser objeto deste trabalho, trago esta citação para

exemplificar esse novo lugar do teatro contemporâneo, em que a peça La Cantatrice chauve,

está localizada. Essa peça é um dos pontos de partida desta dissertação que apresentaremos

logo adiante, se encontra nesse momento como uma possibilidade de novas configurações na

passagem do texto para a cena. Importante, no nosso caso, por sua possibilidade de

significação em sala de aula, uma vez que todos esses elementos se tornam reais na prática

social, e por real aqui me refiro à concretude do objeto artístico, ou seja, transformação,

incômodo e toque. Mas não se preocupem, falaremos nos próximos capítulos sobre a

importância da arte.

Com isso, é na arte, por meio do teatro, que, neste trabalho, desenvolveremos a

conexão entre os estudos literários e a educação. Por meio do teatro, essa conexão se tornará

partilha. E, para tanto, o espaço para tal prática será a sala de aula. Uma vez que é, também,

na escola em que encontramos os sujeitos em formação e em constante reflexão; a escola

torna-se, pois, um lugar importante para potencializarmos as propostas que aqui serão

apresentadas.

É importante ressaltar que a sala de aula não é apenas aquele espaço físico tradicional,

uma sala retangular, com poucas janelas e alunos enfileirados. Ela faz parte de uma grande

rede de conexões capaz de transformar a sociedade, na medida em que, dentro de um contexto

mais amplo, pode auxiliar nas construções de sujeitos críticos e ativos. Por isso, é importante

a compreensão de que não se trata de uma imagem utópica e irreal da educação, mas de um

pensamento crítico e reflexivo da potencialidade do trabalho em sala de aula.

É nesse sentido que a pluralidade e a polifonia, conceitos desenvolvidos por Bakhtin

(1997), que trabalharemos em capítulos posteriores, podem ser incorporados no trabalho com

o texto teatral. Mas de que maneira? Por meio de uma compreensão da sociedade enquanto

totalidade e não apenas como fragmento. Com isso, quero dizer que é necessária a

1 Jean-Pierre Sarrazac é um escritor e teórico francês que possui diversos estudos sobre o drama moderno.

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compreensão das diversas contradições e da complexidade das relações do mundo em que os

indivíduos se encontram inseridos.

Candido fala sobre isso quando descreve a importância da literatura devido ao seu

poder humanizador diante da sociedade:

Uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a

personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo

ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da

literatura é mutilar nossa humanidade (CANDIDO, 2004, p. 186).

Todos esses elementos apresentados por Candido coadunam com a perspectiva aqui

adotada, pois, a partir da constatação da importância do trabalho com os elementos estéticos

do teatro nos mais diversos espaços, como, por exemplo, na sala de aula, conseguiremos sanar

tanto a necessidade de promover a reflexão dos indivíduos quanto a de garantir a eles a

literatura enquanto fruição.

Ademais, a literatura nos apresenta as mais diversas visões do mundo, mediante seu

elemento estético. Logo, a formação crítica humana também se desenvolve e se estabelece

uma vez que: “quanto mais facetada se educar a receptividade, quanto mais móvel for, quanto

mais superfície oferecer aos fenômenos, tanto mais mundo o homem percebe” (SCHILLER,

1991, p. 81- 82).

Sendo assim, um dos objetivos deste trabalho será o de fortalecer as relações entre os

sujeitos, bem como a transformação dos mesmos, por meio das práticas sociais e dos

elementos estéticos que compõem o teatro, recorrendo à aplicação de atividades com a

literatura em sala de aula. A partir dessas reflexões, as obras de Bakhtin serão de extrema

importância para a conexão desses elementos, principalmente o do teatro, pois

demonstraremos que, partindo de uma perspectiva em que o texto teatral é polifônico, essa

compreensão nos dará margem para trabalhá-lo em consonância com a formação dos mais

diversos sujeitos.

O teatro traz em si elementos estéticos que passam do texto para a encenação, bem

como da encenação para o texto. É quase como se fosse possível perceber a existência de um

continuum de interpretações e reinterpretações, que tocam os leitores ou espectadores de

diferentes maneiras, entre elas, por meio da reflexão sobre o lugar que cada um desempenha.

Essas percepções que, como dito anteriormente, casarão com os conceitos de dialogismo e

polifonia de Bakhtin.

Ademais, permito-me apresentar Bernard Dort (2010), mais um autor que

trabalharemos nesta dissertação. A contribuição deste autor vem da necessidade de criarmos

um quadro teórico de profissionais que trabalhem com o teatro moderno, contribuindo com as

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análises aqui propostas. Dessa forma, ele nos trará importantes subsídios para o estudo das

relações entre o palco e a plateia.

Este paradoxo é importante para este trabalho, porque quem vos fala não é

propriamente uma atriz, uma diretora, mas uma leitora. Nesse sentido, a montagem cênica

toma uma configuração de partilha com o texto, e faz com que as relações entre o palco e

plateia só sejam construídas por meio da reflexão desses importantes elementos em conjunto

e, partindo, também, da análise do texto teatral.

Tais ressignificações tornam o termo “montagem cênica” muito instável, pois já não

abarcam as multiplicidades do trabalho com o texto. Portanto, nesta dissertação, utilizaremos

o termo “encenar a leitura”, cunhado por Gomes e Magalhães:

O encenar a leitura transita da análise textual à concepção criativa, da palavra à

imagem, da entrega emotiva à técnica, do individual ao coletivo, do coletivo ao

individual, das potencias artísticas às descobertas dessas potencialidades, do texto às

teorias e métodos teatrais, das partes ao todo. Neste trânsito, o fazer teatral exige

sempre a participação do outros e, deste e para este outro, ele se constrói e se realiza.

(GOMES, MAGALHÃES, 2017, p. 44)

A partir dessas reflexões, vemos a importância de romper com algumas análises

baseadas apenas em binômios ou dicotomias, uma vez que o objetivo do trabalho será o de

compreender seus elementos de maneira totalizante. Ou seja, partiremos sempre do

entendimento dos elementos teatrais a partir de uma construção dialógica, a partir da interação

entre esses fundamentos de uma maneira inter-relacional e não a partir de uma lógica de

exclusão.

Para Dort, a verdade está fora do palco, na sociedade, que é o denominador comum

entre o palco e a plateia (DORT, 2010, p. 10). Dessa maneira, o teatro e seus elementos

propõem uma reflexão da sociedade em contato com a encenação e com o texto teatral. Nesse

sentido, como dito anteriormente, não se trata de um paradoxo em que os dois elementos se

anulam, mas de duas perspectivas que podem se complementar por meio dos diálogos

possíveis.

E, a partir dessas reflexões, como poderíamos relacionar o teatro com a sala de aula?

Neste trabalho, partiremos da compreensão contemporânea do teatro. Podemos vê-lo

enquanto drama, em um princípio de desconstrução da constituição aristotélica sobre a cena,

ou seja, sobre seu distanciamento do que foi apresentado por Aristóteles, em sua obra Poética,

principalmente, no que se referia a ideia da mimesis e na proposta das relações entre o

distanciamento do espaço cênico e do público.

Lembramos que esse distanciamento não é uma proposta de exclusão de uma teoria,

mas de afastamento para tomar o fôlego necessário que um estudo sobre um texto da

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vanguarda necessita, para construir novas perspectivas e, sobretudo, apresentar novas

propostas.

Por isso, Sarrazac (2017) também terá um importante papel na construção dessas

novas perspectivas. Por meio de sua teoria do drama moderno, em que, ao propor a

necessidade de uma nova leitura e interpretação do drama, também revisitará antigos

paradigmas e contribuirá com as reflexões aqui propostas, como a discussão sobre o texto.

Dessa forma, os apontamentos nos guiaram para a apresentação de uma perspectiva de

que as análises propostas sobre o texto teatral não estão apenas em um elemento, seja, espaço

cênico ou texto ou público, mas simultaneamente em todos os elementos. Por isso, acredito

que seja importante localizarmos sobre quais espaços nos referimos, e, com isso, qual será

nosso ponto de partida.

Nossa discussão se concentrará em desenvolver novas ressignificações para conceitos

não tão novos. Entre eles, o conceito de mimesis enquanto representação. Repensar esse

conceito torna-se necessário a partir de minhas interações com meus alunos, em sala de aula.

Para eles, o conceito se configura em uma visão do teatro como um objeto de demonstrar, no

sentido da cena, a realidade mimética e sem considerar o papel de reflexão do qual o processo

artístico faz parte.

A partir dessas novas construções, o objetivo principal será o de repensar o papel do

teatro, na literatura e na educação, na formação dos sujeitos, esses que pertencem a uma

sociedade em movimento. Assim, cada elemento desta dissertação deverá ser entendido como

partes interdependentes, localizados em um espaço temporal bem definido, espaço este

composto por uma sociedade ativa. Quando me refiro à sociedade ativa, quero vinculá-la à

mesma noção de movimento já empregada, ou seja, em construção e com papeis sociais que

nos apresentam diferentes perspectivas diante dos diferentes contextos.

Neste momento, começará a tomar forma o entendimento da importância da atividade

teatral, da arte, como elemento da construção da sociedade, bem como de suas práticas

sociais. Neste contexto, a escola emerge, para nós, como um dos espaços das práticas sociais

mais importantes da sociedade.

Sendo assim, é na escola, mas, não apenas nela, que ocupamos nossos espaços

enquanto indivíduos na construção dos saberes, evidentemente, mas também na nossa

construção enquanto sujeitos. E nessas construções levamos adiante um questionamento

importante para os profissionais que trabalham com a literatura na escola: qual é a

importância da literatura?

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Provavelmente, na tentativa de busca desta resposta, encontraremos outras tantas

perguntas sobre a importância de se falar de literatura, não importa de que gênero, e sobre

educação e ensino. Para tanto, trabalharemos com alguns autores, como: Todorov (2010),

Sartre (1997), Candido (2004) e Paulo Freire (1987). Os pensamentos de Todorov e Candido

serão desenvolvidos partindo de seus trabalhos enquanto teóricos da literatura e na relação

que apresentam sobre a importância da literatura. Sartre emerge nesta pesquisa com a

necessidade de se compreender os indivíduos - o indivíduo engajado - que estão inseridos na

perspectiva de lidar com a literatura e o teatro enquanto prática social; Paulo Freire será a

base que orientará o desenvolvimento sobre o papel transformador da educação na sociedade.

Este percurso se torna necessário para que nós, estudiosos da literatura,

compreendamos a importância de seus objetos, bem como para que os leitores de objetos

literários sintam sua força. No entanto, é importante ressaltar que nosso objetivo com esta

dissertação não é o de incorrer em um anacronismo sobre a importância da literatura na

construção dos sujeitos e das escolas, mas de promover uma reflexão, através do texto teatral

e da importância de se trabalhar a literatura enquanto prática social.

Digo isso, pois, durante minhas participações em congressos nacionais e

internacionais, tenho percebido que o número de estudos desenvolvidos por pesquisadores

especialistas em literatura que possuem um olhar para a educação é, ainda, muito pequeno se

compararmos com as pesquisas desenvolvidas por pesquisadores de outras áreas. Esses dados

podem ser comprovados mediante um levantamento simples dentro dos congressos da área de

linguística, por exemplo, em que o eixo literatura e ensino é sempre recorrente, o que ocorre

com menos frequência nos congressos de literatura.

Dessa forma, é preciso que assumamos nosso lugar de fala, enquanto pesquisadores de

literatura, e ocupemos os espaços que devem ser destinados a quem se dedica ao estudo

literário na educação. A literatura não é ferramenta ou instrumento, ela é uma força. Uma

força motriz capaz de transformar uma sociedade, de comparar objetos estéticos, de transmitir

memória, de preservar culturas, dentre outras.

Para tanto, continuarei a apresentar alguns autores que guiaram metodologicamente

esta pesquisa. Permito-me salientar que, como venho desenvolvendo neste primeiro momento,

apenas os citarei e trarei algumas questões chaves para o desenvolvimento da dissertação.

Partindo da perspectiva da importância do teatro, apresento Anne Ubersfeld, estudiosa da

semiótica teatral que se dedicava à pesquisa do paradoxo Texto x Representação, trazendo-

nos a reflexão inicial a ser desenvolvida sobre o papel do texto teatral para a sociedade

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moderna. Segundo Anne Ubersfeld (2013, XI), o texto teatral é um documento textual cuja

chave está fora dele.

Dessa maneira, pode-se entender que o teatro vai além do texto. Ele nos retira da zona

de conforto enquanto leitores passivos quando damos voz a ele, ou seja, a partir do

estreitamento das relações entre o leitor e o texto, por meio da leitura. Passamos, a todo

momento, de espectadores a atores no nosso palco. Ele ultrapassa as linhas do papel e os

elementos estéticos se tornam vivências, encontros e transformações.

Ubersfeld (2013) traz novas contribuições para o entendimento da cena, bem como

reflexões sobre o lugar do ator e do espaço teatral. Com isso, mais do que apenas elementos

cênicos, o teatro promove a alteridade. Troca. Olhar. Toque. Elementos que dão força ao texto

teatral, como dito anteriormente. É como se as palavras conectadas a outros elementos

criassem novos significados, saindo das margens do papel.

O resultado disso é que, apesar das divisões propostas como por exemplo, espaço

cênico e lugar dos espectadores, o teatro, segundo Ubersfeld, será um zona composta pelos

que estão juntos, os que olham e os que são olhados. Contrariando estas divisões estáticas e

delimitadores na cena teatral, abrindo assim para um todo, composto pelos movimentos entre

esses lugares e entre os sujeitos que o compõem.

Essa nova construção da compreensão, não só do lugar do teatro, mas também do seu

impacto social, é um dos objetivos deste trabalho: por meio de análises de novas perspectivas

e de reflexões sobre conceitos que envolvem o texto teatral e o drama contemporâneo,

pretende-se traçar novas abordagens sobre os aspectos estéticos do texto teatral, bem como

metodologias que auxiliem as atividades em sala de aula.

O resultado das transformações do gênero dramático, de uma maneira geral, será,

também, objeto de reflexão aqui adotado, pois as novas zonas de confluências dos espaços

cênicos serão fundamentais para o trabalho do texto teatral na educação. Não se trata de um

ponto fácil de ser abordado e acabaremos nos distanciando cada vez mais da teoria clássica do

teatro, na qual a criação está estritamente vinculada à obra teatral e ao distanciamento dos

elementos já apresentados.

E, quando aqui me refiro ao clássico, não me refiro simplesmente ao teatro

aristotélico, pois, como lembra Ubersfeld (2013, p. 20), o texto é considerado praticamente

sinônimo de encenação teatral, ainda no século XIX. É apenas no início do século XX que os

movimentos de vanguarda se opõem ao texto-centrismo, entre eles Ionesco, autor da peça que

analisaremos nesta dissertação.

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Ionesco configura-se como expoente de uma das correntes teóricas chamada de Teatro

do Absurdo e é essa corrente vanguardista que terá como principal objetivo promover a

ruptura com o já mencionado teatro aristotélico. Ele e tantos outros autores de vanguarda

reivindicavam uma desvinculação a tudo que se entendia como teatro até o início do século

XX, conforme afirma Pavis:

A forma preferida da dramaturgia absurda é a de uma peça sem intriga nem

personagens claramente definidas: o acaso e a invenção reinam nela como senhores

absolutos. A cena renuncia a todo mimetismo psicológico ou gestual, a todo efeito

de ilusão, de modo que o espectador é obrigado a aceitar as convenções físicas de

um novo universo ficcional. (PAVIS, 2013, p. 2)

Sobre o Teatro do Absurdo é importante, do mesmo modo, dar voz ao teórico que

consagrou e sistematizou esta corrente, Martin Esslin. Dessa forma, apresento um trecho de

sua introdução em sua obra intitulada O Teatro do Absurdo, de 1968:

A 19 de novembro de 1957 um grupo de atores preocupados se preparava para

enfrentar seu público. Os atores eram integrantes da companhia Actor’s Workshop

de San Francisco, e o público era formado por mil e quatrocentos sentenciados da

penitenciária de San Quentin. [...] Não era de espantar que os atores e o diretor,

Herbert Blau, estivessem apreensivos. Como iriam enfrentar uma das plateias mais

duras do mundo com uma peça obscura e altamente intelectual quase provocara

arruaças diante de algumas das mais sofisticadas plateias da Europa ocidental?

Herbert Blau resolveu preparar a plateia de San Quentin para o que viria, e subiu ao

palco para enfrentar um mar de fósforos a acender cigarros dos sentenciados que

superlotavam a penumbra do Refeitório Norte. Blau comparou a peça a uma obra de

jazz “na qual se deve ouvir o que aparece”. Era por esse mesmo processo que ele

esperava que houvesse algum sentido, algum significado pessoal para cada membro

da plateia em Esperando Godot. Abriu-se o pano. A peça começou. (ESSLIN, 1968,

p. 15)

Provavelmente, esta seja a primeira inquietação dos textos do movimento do Teatro do

Absurdo, a dificuldade de compreendê-la a partir de critérios lineares ou lógicos, mas é

importante ressaltar que, conforme nos relata Esslin, todos os presos compreenderam Godot e

o estão esperando. Como na peça citada, Esperando Godot, o público se encontra sempre em

busca, diálogo após diálogo, esperando. Por vezes Godot, outras, a Cantora careca. O impacto

do Teatro do Absurdo começa quando a cortina se abre. Em mais uma citação, Esslin (1968)

nos apresenta a grandiosidade de La Cantatrice chauve:

Somente em A cantora careca [...] Alain Bosquet isolou nada mais nada menos de

trinta e seis “receitas de comicidade” que variam desde a negação da ação (isto é,

cenas nas quais nada acontece), perda da identidade dos personagens, título

enganoso, surpresa mecânica, repetição, pseudo-exotismo, pseudológica, abolição da

sequência cronológica, proliferação de duplicações (isto é, toda uma família

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chamada Bobby Watson), perda de memória, surpresa melodramática (a empregada

diz “sou Sherlock Holmes”), coexistência de explicações opostas para o mesmo

fato”, descontinuidade de diálogo, criação de falsas esperanças, até recursos

puramente estilísticos como a frase feita, o truísmo, a onomatopeia, provérbios

surrealistas, uso de línguas estrangeiras para efeitos de nonsense, perda total de

sentido, degeneração da linguagem em pura assonância e esquemas de som

(ESSLIN, 1968, p. 175)

As discussões de como esses elementos se encontram na peça serão desenvolvidas

durante os capítulos 2 e 3 da dissertação, para que juntos possamos discutir a composição

dessas obras e sua possibilidade de reflexão do mundo, partindo da análise desses indicadores

que são do uso da palavra.

Retomaremos, portanto, Bakhtin, outro teórico importante para a fundamentação

teórica desta dissertação. Mikhail Bakhtin foi pesquisador, teórico e filósofo, mas sua maior

contribuição permanece na área das linguagens. Toda forma de arte pressupõe uma

linguagem, por isso será importante na construção do conceito de teatralidade que se

concretizará através dos signos, das sensações e, principalmente, na compreensão de como os

sujeitos interpretam a arte teatral.

Ele se dedicou à definição de noções, conceitos e categorias de análise da linguagem

com base nos mais diferentes discursos, como: cotidiano, artístico, filosófico, científico e

institucional. Em sua trajetória, foi um dos mais destacados pensadores do que se

convencionou chamar de “Círculo de Bakhtin”, composto por diferentes intelectuais que se

dedicavam a trabalhar com diferentes formas de se estudar linguagem, literatura e arte, dentre

eles o linguista Valentin Voloshinov (1895-1936) e o teórico literário Pavel Medvedev (1891-

1938).

Um dos aspectos mais inovadores da produção do Círculo de Bakhtin foi enxergar a

linguagem como uma constante no processo de interação mediado pelo diálogo - e não apenas

como um sistema autônomo, como verificamos na seguinte citação:

“A língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical, não conhecemos por

meio de dicionários ou manuais de gramática, mas graças aos enunciados concretos

que ouvimos e reproduzimos na comunicação efetiva com as pessoas que nos

rodeiam” (BAKHTIN, 1997, p. 326).

Segundo essa concepção, a língua só existe em função do uso que locutores (quem fala

ou escreve) e interlocutores (quem lê ou escuta) que a transforma em situações (prosaicas ou

formais) de comunicação. Dessa forma, o ensinar, o aprender e o empregar a linguagem

passam necessariamente pelo sujeito. Passam pela nossa Cantora careca.

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Nessa relação dialógica entre locutor e interlocutor, entre marido e mulher, entre Sr e

Sra Smith, em que o verbal e o não verbal influenciam de maneira determinante a construção

do texto ganhou uma configuração mais clara. Pois, em cada réplica, a busca pelos sentidos se

modifica. Por outro lado, o interlocutor - o leitor - interpreta e responde externamente com

postura ativa àquele enunciado através de um novo enunciado oral.

Esse é um dos exemplos da importância da reflexão bakhtiniana sobre a linguagem e

suas infinitas possibilidades. A linguagem em La Cantatrice chauve é de extrema importância

para a análise dos elementos estéticos e poéticos da peça. Como dito anteriormente, Ionesco

brinca com ela a partir de uma perspectiva social de sua construção.

Outra importante contribuição de Bakhtin será no entendimento de como a estética é

percebida nas relações sociais. Os elementos estéticos provêm de uma atitude ética que funda

e revê valores em constante movimento de transformação. Ela se completa quando nos

voltamos para nós mesmos, elaboramos o material recolhido dando-lhe forma. “Uma obra de

criação verbal (...): guia o processo de identificação e proporciona o princípio de acabamento

ao outro” (BAKHTIN, 1997, p. 47). Dessa forma, o outro se torna um elemento importante na

construção das percepções dos indivíduos.

Ademais, para essas análises, é preciso visitar e estabelecer conexões com algumas

unidades necessárias para nossa compreensão dos elementos estéticos apresentados na nossa

peça, como, por exemplo, nosso entendimento sobre arte. Primeiramente, de que arte estamos

falando aqui? Da arte que se responsabiliza pela ação humana na vida e que reflete essa ação

em seus elementos constitutivos, colaborando na formação da subjetividade humana e na

criação de um sentido para a vida cotidiana, ou da arte que não se propõe a nenhuma reflexão,

que é apenas um fruição?

A partir da escolha pela primeira colocação, podemos supor, então, que usufruir da

arte ou mesmo vivenciá-la pode se constituir num ato ético, de comprometimento com a

melhoria das condições de existência no mundo, levando o ser humano, pela sensibilização,

pela reflexão e pela linguagem a se relacionar com a alteridade, estabelecendo uma relação

dialógica, que é uma categoria fundamental no pensamento de Bakhtin.

A atividade estética cumprirá, assim, a tarefa de reunir no interior do indivíduo, em

suas reflexões, a dispersão do sentido e do efêmero do mundo, construindo, por meio da

emoção e da razão, um significado para sua vida, conduzindo-o em comunhão com o outro

diferente dele, na direção de um acabamento, de um completar-se no espaço, no tempo e no

sentido. Essa tarefa, embora construída na relação, só pode ser finalizada quando esse

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indivíduo retorna a si e elabora todo o sentido captado no mundo (BAKHTIN, 1997, p. 204-

205).

Dentro desse contexto, trabalharemos a construção dos sentidos por meio da análise da

peça La Cantatrice chauve. Para tanto contaremos com a contribuição do próprio Ionesco,

que em seu livro Notes et contre-notes (2014) propõe revisitar suas peças e as críticas às suas

peças, nos auxiliando a dar o tom do autor em algumas das nossas análises.

Citei-a exaustivamente, contextualizei-a no campo epistemológico, mas ainda falta

mencionar como ocorreu nosso contato. Afinal, vocês não estariam lendo esta dissertação se a

peça não tivesse me tocado e não houvesse partilha.

Enfim, La Cantatrice Chauve foi construída como objeto da dissertação a partir do

primeiro contato que tive com o texto. Em minha primeira aula de Prática do Francês Oral e

Escrito 1 - PFOE1, encontrei-me com quem hoje seria minha orientadora, a Professora

Doutora Maria da Glória Magalhães dos Reis e com o texto de Ionesco La Cantatrice Chauve,

que se tornaria o objeto de minha dissertação.

SCÈNE I Intérieur bourgeois anglais, avec des fauteuils anglais. Soirée anglaise. M.

SMITH, Anglais, dans son fauteuil et ses pantoufles anglais, fume sa pipe anglaise

et lit un journal anglais, près d'un feu anglais. Il a des lunettes anglaises, une petite

moustache grise, anglaise. A côté de lui, dans un autre fauteuil anglais, Mme Smith,

Anglaise, raccommode des chaussettes anglaises. Un long moment de silence

anglais. La pendule anglaise frappe dix-sept coups anglais. (IONESCO, 2016, p.

11)2

Esse cenário inglês demorou a sair de minha cabeça. Alguns anos depois, em uma das

diversas pesquisas que fiz sobre a obra, encontrei a tese da Profa. Dra. Vivianne Araújo Alves

da Costa Pereira intitulada: Ionesco crítico em “Da teoria da derrisão a derrisão da teoria”, da

qual pude aumentar minha paixão pelo trabalho de Eugène Ionesco, assim como compreender

um pouco mais sobre sua trajetória.

A partir dessas leituras, de pesquisas sobre o autor e de uma boa dose de diversos

espetáculos no YouTube, nesse primeiro momento, foi o que fizeram com que as diversas

vozes que compunham o meu eu enquanto ser social se juntassem àquele texto. Foi no

absurdo dos efeitos estéticos criados pelo texto de Ionesco, que encontrei o que resultaria na

2 CENA I Interior burguês de uma casa inglesa, com poltronas inglesas. Tarde inglesa. O Sr. Smith inglês,

sentado na poltrona com chinelos ingleses, fuma seu cachimbo inglês, lendo um jornal inglês, perto da lareira

inglesa. Usa óculos ingleses e um pequeno bigode esbranquiçado inglês. Ao seu lado, numa outra poltrona

inglesa, a Sra. Smith, inglesa, remenda meias inglesas. Um longo momento de silencio inglês. O relógio inglês

dá dezessete badaladas inglesas. (IONESCO, 2016, p. 11, tradução nossa)

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minha dissertação: a estética do Teatro do Absurdo e o trabalho do texto teatral em sala de

aula. Esses dois aspectos estiveram conectados em todo o meu processo de formação.

Em um primeiro momento, enquanto estudante de Letras, e hoje enquanto professora

de língua francesa na Secretaria de Educação do Distrito Federal – SEDF, era preciso falar de

educação na literatura e principalmente na formação de professores. Neste estágio, Ionesco foi

sublime ao trazer todos esses questionamentos em seu texto. Ele tornou esse diálogo possível,

por meio de interações absurdas e nos apresentou uma verdadeira sátira de nós mesmos.

Dizemos sem dizer nada. Essa é a principal proposta do drama da linguagem do autor,

a partir do riso e do sentimento de alteridade que dão voz ao gênero tragicômico em seu texto.

Mas qual foi o caminho percorrido pelo autor para que chegássemos nessas constatações? É

preciso retomar a gestação de sua obra, ou seja, sua percepção sobre o manual de

aprendizagem de língua inglesa que o colocou diante das repetições exaustivas e nenhum

diálogo com o social.

Como ele costumava dizer em diversas entrevistas, o manual escolar o ensinou a falar

sem dizer nada. Mas como seria essa relação? Ela se manifesta, principalmente, na relação

dos seus personagens simples e estereotipados. Eles pronunciam frases feitas, acompanhadas

de ações rotineiras, agindo como bonecos autômatos. Não há reflexão, apenas ações

repetitivas. Ionesco (1966) diz que:

Les Smith, les Martin ne savent plus penser parce qu`il n`y a rien à dire de

personnel, l`absence de vie intérieure, la mécanique du quotidien, l`homme baignant

dans son milieu social, ne s`en distinguant plus. Les Smith, les Martin ne savent plus

parler, parce qu´ ils ne savent plus penser, ils ne savent plus penser parce qu`ils ne

savent plus s`émouvoir, n`ont plus de passions, ils ne savent plus être, ils peuvent

« devenir » n`importe qui, n`importe quoi, car, n`étant pas, ils ne sont que les autres,

le monde de l`impersonnel, ils sont interchangeables : on peut mettre Martin à la

place de Smith et vice versa, on ne s`en apercevra pas. 3 (IONESCO, 1966, p. 249)

Sendo assim, o trabalho elaborado com a linguagem em La Cantatrice chauve é de

suma importância, pois se trata de um convite à reflexão sobre o jogo de palavras que o autor

nos apresenta. No momento em que os diálogos repetitivos, constantes e guiados por frases

aparentemente sem sentido, provocam e incomodam de maneira tão dura, é impossível não se

manifestar.

3 Os Smith, os Martin não sabem mais pensar porque não há nada a dizer de pessoal, a ausência de vida interior,

a mecânica da vida cotidiana, o homem mergulhado em seu ambiente social, não se distingue mais. Os Smith, os

Martin não sabem mais falar, porque não sabem mais pensar, não sabem mais pensar porque não sabem mais se

mexer, não têm mais paixões, não sabem mais ser, não sabem "Tornar-se" alguém, qualquer coisa, porque, não

sendo, eles são apenas os outros, o mundo do impessoal, eles são intercambiáveis: podemos colocar Martin no

lugar de Smith e vice-versa, nós não notaremos diferença. (IONESCO, 2014, p. 249, tradução nossa)

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A risada acompanhada da perplexidade do que se ri incomoda. O desconforto é

presente em cada suspiro e, após cada riso, as repetições que, primeiramente, não pareciam

fazer sentido inquietam e transformam o riso em perplexidade. É o caso da cena IV, por

exemplo, em que um casal, casado há pelo menos 2 anos, se vê mas não se reconhece. C’est

curieux!

O enredo desta história é o principal ponto para a compreensão dessas relações. La

Cantatrice chauve nos apresenta a história de duas famílias inglesas do pós-guerra,

decadentes e pertencentes à burguesia: os Smith e os Martin. E, como dito anteriormente, o

tema principal centra-se na dificuldade de comunicação entre as pessoas.

Isso se realiza, pois as conexões ou réplicas entre os personagens são desconectadas

em si, ou seja, os diálogos muitas vezes não estão conectados em sequências lógicas da

linguagem. Tudo isso ocorre no uso dos clichês, de lugares comuns, que dominam a

comunicação diária, eliminando desta maneira a autenticidade do seio das relações humanas,

gerando, seres autômatos, como podemos observar na seguinte rubrica da cena IV:

Mme MARTIN s’approche de M. Martin sans se presser. Ils s’embrassent sans

expression. La pendule sonne une fois, très fort. Le coup de la pendule doit être si

fort qu’il doit faire sursauter les spectateurs. Les époux Martin ne l’entendent pas.

(IONESCO, 2016, p. 37).4

A precisão do autor em colocar na rubrica elementos como “sem pressa” e “sem

expressão” marcam uma cena inquietante pela falta de movimento. No entanto, esse universo

apático da realidade dos personagens contrasta com o soar bem forte do relógio, que, como o

autor coloca, deve ser tão forte ao ponto de que os espectadores se sobressaltem.

Entendemos, portanto, que esses elementos são de grande contribuição para a

compreensão das camadas de análises presentes no percurso dessa pesquisa, bem como para a

construção do título desta dissertação: A dérision chez Ionesco: antes que a peça termine e a

cortina se feche a cantora careca arranca os cabelos para promover a literatura e a educação.

Justificado pela necessidade de trabalhar por meio dos elementos estéticos da dérision,

optamos neste trabalho por não traduzir para o português, o que explicaremos mais adiante,

uma vez que compreendemos que se trata de muito mais do que um riso zombeteiro, como

nos apresentam alguns dicionários quando procuramos pela palavra “derrisão”. Trata-se de

um escárnio ou desprezo presente nas réplicas do nosso texto. Ademais, o jogo de palavras

4 A Sra. Martin se aproxima do Sr. Martin sem pressa. Eles se beijam sem expressão. O relógio soa uma vez,

muito forte. A batida do relógio deve ser tão forte que deve assustar os espectadores. O casal Martin não o ouve.

(IONESCO, 2016, p. 37, tradução nossa).

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com o título da peça é um dos objetivos deste trabalho, que foi pensado para evidenciar a

importância de se pensar as relações possíveis da literatura com a educação, na atualidade.

Dessa forma, a partir da contextualização aqui apresentada, trabalharemos, no primeiro

capítulo, intitulado “As cortinas se abrem para a literatura e a educação”, com a ideia de

contextualizar a proposta desta dissertação, bem como estudar o lugar do ensino de literatura

na escola, a construção do processo colaborativo, e, por fim, trazer o debate sobre “ensino de

literatura” ou “literatura e ensino”.

No segundo capítulo, “É um absurdo!? A atualidade e a dualidade do trabalho com o

Teatro do Absurdo e La Cantatrice chauve”, analisaremos o Teatro do Absurdo, corrente

teórica na qual Ionesco e nossa obra se encontram inseridas, além do existencialismo e como

a dérision se desenvolve na obra de Ionesco.

No terceiro capítulo intitulado: “A construção do sujeito no trabalho com o texto

teatral”, lidaremos com a construção e a reconstrução do sujeito em meio a essas novas

configurações do trabalho com o teatro em sala de aula, e partindo desse desenvolvimento,

apresentaremos uma proposta de uma Orientação Didática Reflexiva – ODR que é um guia

didático para ser aplicado em sala de aula de Francês Língua Estrangeira - FLE com o texto

La Cantatrice chauve. Finalmente, fecharemos as cortinas, ou a porta da sala de aula, com as

conclusões finais, na qual tentaremos apresentar os resultados desta dissertação, por meio dos

diálogos possíveis entre as artes e a educação.

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CAPÍTULO 1. AS CORTINAS SE ABREM PARA A LITERATURA E A EDUCAÇÃO

Como já dito na introdução, esta dissertação é resultado de muito amor pela

dramaturgia e pelo trabalho com a literatura em sala de aula. Pensando nesses diálogos

possíveis, serão desenvolvidos, neste primeiro capítulo, as principais linhas que comporão

suas leituras neste percurso. Questionar-nos-emos sobre o papel do texto dramatúrgico por

meio da peça La Cantatrice chauve, e minha proposta inicial será demonstrar como se

desenvolverá a reflexão teórica sobre o trabalho com a literatura em sala de aula, bem como

sua relação com o leitor.

Gostaria de retomar uma questão apresentada na introdução: como essa paixão virou

dissertação? O primeiro passo para a pesquisa começa com um problema, e meu primeiro

questionamento enquanto aluna era o da dificuldade do trabalho com a literatura em aula de

língua estrangeira. E essas constatações surgiram quando compreendi que o teatro, por meio

de seus múltiplos enunciados, sua pluralidade, e polifonia, teria um papel importante na

compreensão dos elementos estéticos e poéticos, que são o foco dos estudos literários.

O objetivo seria, então, o de elaborar um percurso a partir do meu trabalho em sala de

aula com o texto teatral passando pelos conceitos que permeiam a minha prática como: cena,

texto e representação, em contexto de sala de aula, bem como na importância de se trazer para

o debate a responsabilidade do mediador, aquele que trabalha com o gênero dramático, além

da tarefa de propor uma reflexão sobre o lugar do espectador, na criação teatral.

Porém, como trabalhar esses elementos de maneira horizontal e não vertical? Por

horizontal, entendemos como de uma maneira que não seja apenas algo imposto e

fundamentado pelo professor para o estudante, mas sim de maneira que a composição venha

de uma construção entre todos os agentes que compõem o fazer em sala de aula.

Partindo dessas premissas, identificamos que a partir desses aspectos e com o objetivo

de desenvolver a autonomia dos estudantes na sala de aula, em relação aos conteúdos que

serão desenvolvidos, todo o percurso das análises desta pesquisa se desenvolverá a partir de

seus interlocutores, a saber: estudantes e professora.

Sobre meus educandos, falamos aqui de estudantes de francês das escolas públicas de

Brasília, mais precisamente, do Centro Interescolar de Línguas - CIL, na região administrativa

do Guará. De uma maneira geral, em relação ao teatro, é preciso levar em consideração que

meus alunos não vão ou vão muito pouco a ele.

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Certa vez, uma aluna me disse: “o teatro pra mim vale muito, vale tanto que não

consigo acessá-lo”. E, por isso, acredito ser importante trabalharmos questões que possam

ajudar a diminuir as distâncias que estabelecem os lugares do teatro e do espectador.

Em seu primeiro capítulo de O Teatro Morto, Peter Brook5 chama a atenção para as

questões que estariam contribuindo para o distanciamento entre o espectador e o teatro.

Seriam elas:

No mundo inteiro, o público de teatro está definhando. Existem

movimentos novos ocasionais, bons escritores novos e assim por diante, entretanto,

como um todo, o teatro não só fracassa em elevar ou instruir, mas raramente distrai.

O teatro tem sido frequentemente chamado de prostituta, no sentido de que se trata

de uma arte impura. Mas hoje isso é verdade em outro sentido: as prostitutas tomam

o dinheiro e depois dão o prazer. (BROOK, 1970, p. 2)

O questionamento que Brook traz no que se refere à mercantilização do teatro é um

dos elementos importantes apresentados pelos estudantes para o fato de eles não irem ao

teatro. Os altos custos tornam o teatro inacessível, dificultando o acesso ao espetáculo. Dessa

forma, precisamos repensar qual o espaço do teatro, ou quais novos espaços o teatro pode nos

proporcionar, bem como ampliar as concepções do que é o fazer teatral para que possamos

aproximar o teatro dos estudantes.

Será que não existe teatro fora dos textos dramáticos encenados em salas caras e/ou

representados fora dos grandes centros das cidades? Acreditamos que existe, sim, e por

acreditarmos na existência desses espaços lhes apresentaremos a sala de aula como uma

possibilidade. A sala de aula emerge como uma alternativa de transportar o teatro para

próximo dos indivíduos. Essa proximidade ocorre baseada em um olhar libertador do

ambiente educacional, bem como de um olhar que traga o gênero dramático para o centro das

discussões.

Mas o que vem a ser um olhar libertador? Evocaremos aqui Paulo Freire6, aquele que

nos trará as bases teóricas sobre as minhas perspectivas de interação em sala de aula, como:

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a

libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a

quem o mundo “encha” de conteúdo; não pode basear-se numa consciência

especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos

conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode

5 Peter Brook foi diretor de teatro e cinema britânico. Propõe um teatro de caracterização psicológica dos

personagens que torne visível a "invisível" alma humana. Procura também imprimir caráter crítico e polêmico às

montagens, substituindo a passividade do espectador pela participação do público no espetáculo.

6 Paulo Freire foi educador, pedagogo e filósofo brasileiro. Patrono da educação brasileira acredita que a

educação é um ato político e defendia uma prática em sala de aula que pudesse desenvolver a criticidade dos

alunos. Ensinar não é transmitir a missão do professor é possibilitar a criação ou a produção do seu

conhecimento, dizia ele.

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ser a do depósito de conteúdo, mas a da problematização dos homens em suas

relações com o mundo. (FREIRE, 1987, p. 38)

Nesta colocação percebemos o primeiro aspecto do trabalho com o drama, que será

desenvolvido nesta pesquisa, o aspecto reflexivo. Trabalhar com o texto dramático em sala de

aula é compreender que cada indivíduo encontra-se inserido em um momento histórico e está

dotado de capacidade de agir e refletir dos pontos trabalhados por meio do texto.

Com isso, a sala de aula pode se abrir para este universo de ação e reflexão e, a partir

dessas questões e de uma concepção dialógica do texto teatral, apresentaremos práticas

desenvolvidas por mim em minha sala de aula, que assumem como eixo central o

protagonismo do espectador na criação teatral, bem como os diálogos que comporão o

trabalho com o texto de Ionesco na educação.

Nesse sentido, o teatro passará a ocupar outros espaços, como já dito anteriormente,

no caso desta dissertação, a sala de aula. Para tanto, me deterei, primeiramente, ao papel do

texto teatral enquanto gênero literário, pois sua atuação, hoje, na educação, vem pautada por

meio dessa possibilidade de trabalho, ou seja, do trabalho com o gênero discursivo a partir da

concepção adotada pelos PCNs nos currículos escolares de educação básica que

trabalharemos no subtítulo subsequente.

1.1 O lugar do ensino de literatura nas escolas

Partindo das referências apresentadas anteriormente, sobre o ponto de partida do

trabalho com o texto teatral em sala de aula, é preciso dimensionar e explorar qual o lugar do

ensino de literatura nas escolas. Para tanto, nosso percurso irá desde as bases legais até

algumas propostas de reflexões que se propõem a analisar quais são os caminhos possíveis

para trabalhar com a literatura nas escolas.

Mas o que são os PCNs? Eles são os Parâmetros Curriculares Nacionais, elaborados

pelo Governo Federal, que funcionam como diretrizes para a educação e que tem como

principal objetivo orientar os educadores por meio da normatização de fatores fundamentais

concernentes a cada disciplina.

Segundo o documento de 1997, o propósito do Ministério da Educação, ao consolidar

os Parâmetros, é apontar metas de qualidade que ajudem o aluno a enfrentar o mundo atual

como cidadão participativo, reflexivo e autônomo, conhecedor de seus direitos e deveres.

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No entanto, no âmbito das Línguas Estrangeiras Modernas - LEM, a minha área de

atuação, a literatura sequer é mencionada. Aliás, a leitura é ligada apenas aos mecanismos

necessários para respaldar o processo comunicativo, ou seja, para que os agentes discursivos

compreendam informações e sejam capazes de repassar esses enunciados.

Apesar de não haver um espaço direto para prospecções literárias em sala de aula,

outros elementos evidenciados na filosofia dos novos PCNs nos apresentam potencialidades e

possibilidades de propostas de trabalho com a literatura em sala de aula de LEM.

Para tanto, são necessárias algumas abordagens importantes, entre elas: uma reflexão

sobre a literatura e sobre sua importância na formação do sujeito leitor. Isto é, de que maneira

a literatura pode auxiliar na consolidação dos objetivos apresentados como basilares para os

PCNs, como no desenvolvimento do cidadão enquanto sujeito reflexivo e autônomo, por

exemplo.

Uma importante abordagem metodológica que emerge dessas discussões é o uso de

gêneros enquanto possibilidade na educação. Evidentemente, o conceito de gênero é bem

mais antigo que os novos PCNs; entretanto, é a partir dele que conseguiremos conectar o

ensino de literatura nas aulas de LEM.

Para tanto, demonstraremos como se consolidou o trabalho com gêneros em sala de

aula. E esse ponto nos demonstra inúmeras perspectivas de realização, principalmente, com o

teatro. É importante, antes de irmos ao texto La Cantatrice chauve, apresentar aqui a

concepção de gênero que adotarei.

Na literatura, no que se refere aos estudos sobre gêneros, recorro a três autores

específicos, são eles: Bakhtin, Dolz e Schneuwly, além das contribuições apresentadas por

Vygotski que serão desenvolvidas oportunamente. Seus aportes são necessários para a

compreensão de que o gênero é um instrumento, como colocado por Bakhtin, mas também é

um objeto de ensino-aprendizado, como colocado por Dolz e Schneuwly. Dessa forma, a

partir dessas perspectivas, podemos dizer que para esta dissertação o gênero terá o papel de

orientar o trabalho por intermédio da perspectiva de instrumento, que legitimará as propostas

aqui elencadas de ensino-aprendizado com o texto literário.

É necessário pensar em alguns elementos colocados por Bakhtin (1992) na estrutura

do conceito de gênero:

Os gêneros constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na

cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção

composicional. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção

dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos

textos. (BAKHTIN, 1997, p. 274)

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Partindo dessa expectativa, apresentaremos aqui a proposta de trabalhar com o teatro

em sala de aula. Mas por que em sala de aula? Como já dito anteriormente, se o objetivo desta

pesquisa é fazer os educandos entrarem em contato com esse gênero, é necessário modificar

e/ou construir novos espaços para esse contato do espectador com o teatro. Ademais, como

explicita Dolz e Schneuwly (2004):

Uma proposta de ensino/ aprendizagem organizada a partir de gêneros textuais

permite ao professor a observação e a avaliação das capacidades de linguagem dos

alunos; antes e durante sua realização, fornecendo-lhe orientações mais precisas para

sua intervenção didática. Para os alunos, o trabalho com gêneros constitui, por um

lado, uma forma de se confrontar com situações sociais efetivas de produção e

leitura de textos e, por outro, uma maneira de dominá-los progressivamente. (DOLZ

e SCHNEUWLY, 2004, p. 82)

Dessa maneira, o trabalho com o teatro, enquanto gênero textual nos apresenta uma

perspectiva de ampliar o olhar dos educandos sobre sua própria realidade através de

intervenções didáticas que possibilitem a reflexão deles sobre suas práticas sociais, por

exemplo.

Igualmente, segundo Martins (1997), a sala de aula deve ser considerada um lugar

privilegiado de sistematização do conhecimento e de interações entre alunos e professores,

sendo estes articuladores na construção do desenvolvimento. Essa reflexão tem suas bases na

teoria vygotskyana, que se baseia no processo de interação, no contexto educacional, que

considera as intervenções pedagógicas, na sala de aula, essenciais para a construção de

saberes.

Vygotsky (1991) trabalha com conceitos importantes para esta dissertação, como a

noção de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) e zona de desenvolvimento real (ZDR),

que são fases do desenvolvimento da aprendizagem de crianças. O aporte que ele nos

apresenta é que a conexão entre desenvolvimento e aprendizagem ocorre por meio da zona de

desenvolvimento proximal, que é, de acordo com ele, a distância entre os níveis de

desenvolvimento potencial e nível de desenvolvimento real, ou seja, a fronteira entre a

autonomia das crianças frente a um problema (nível de desenvolvimento real) e a solução de

um problema por meio da interação com outros, para, posteriormente, poder resolver qualquer

obstáculo sozinho (nível de desenvolvimento potencial).

Por meio da discussão estabelecida pelo autor, fica evidente que a aprendizagem tem

caráter primordial no desenvolvimento da mente, sendo que para a efetivação desse processo

é necessária a inclusão tanto daquele que aprende quanto daquele que ensina e,

principalmente, da interação entre eles. Segundo Vygotsky, (1991, p. 98), a ZDP permite

delinear o futuro imediato da criança e seu estado dinâmico de desenvolvimento, propiciando

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o acesso não somente ao que já foi atingido por meio do desenvolvimento, como também

àquilo que está em processo de maturação.

Para Vygotsky, o elemento principal entre essas interações é a mediação, conceito este

que pode ser definido como “o processo de intervenção de um elemento intermediário, como

os instrumentos e os signos, na relação entre indivíduos e entre o homem e a natureza”. Dessa

forma, é por meio de signos (como as palavras) e instrumentos (um pedaço de madeira

utilizado para alcançar um fruto numa árvore, por exemplo) que o ser humano pode

relacionar-se com a natureza e com os outros indivíduos, diferentemente dos animais.

A linguagem surge da necessidade de comunicação para a realização do trabalho

coletivo; surge da necessidade de um sistema simbólico complexo que permita a

discriminação de objetos para serem armazenados na memória, para que assim o homem

possa pensar em objetos mesmo quando estes não estejam em seu campo visual.

Para explicar o processo de absorção/construção de conhecimento, utilizaremos a

ZDP, a qual é definida como a “distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de

desenvolvimento potencial”. Lembrando que desenvolvimento real é baseado naquilo que o

indivíduo consegue elaborar sozinho e o desenvolvimento potencial seria o que o indivíduo

realiza com a ajuda de alguém, para depois realizar por si próprio e possivelmente alcançar o

nível de desenvolvimento real.

Nesses termos, a aprendizagem pode ser vista como um processo que se expressa

primeiro externamente, para que depois venha a ser internalizado. A exposição a falas

sociais de pessoas mais experientes e a interação das crianças nessas falas fariam com que a

criança/sujeito desenvolvesse o que alguns autores chamam de fala egocêntrica, a partir da

qual a criança oraliza uma espécie de “raciocínio organizador” de suas ações.

Num estágio posterior, essa fala é interiorizada, dando-se esse processo de

planejamento da ação e controle do comportamento de maneira interna, possibilitando o

envolvimento da criança/sujeito em atividades complexas através da mediação, sendo esse

processo nomeado de fala interior. A aprendizagem sucederia ao desenvolvimento, sendo

esse um processo não-natural, mas construído.

Vemos com isso a importância do papel do professor (ou qualquer pessoa com quem a

criança/sujeito se relacione) como um mediador do conhecimento historicamente produzido,

atuando inclusive no desenvolvimento do aluno (e não somente em sua aprendizagem); o

professor é, segundo essa leitura, sujeito atuante na Zona de Desenvolvimento Proximal do

aluno.

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Ademais, a aprendizagem é vista como um processo em que a qualidade da interação

produzida entre professor e aluno num espaço construído sócio-historicamente é de extrema

importância. É necessário esclarecer que a linguagem, segundo esses supostos, tem papel de

preponderância máxima, uma vez que não é somente encarada como objeto de

ensino/aprendizagem, mas também o meio (mediação) pelo qual se dará o

ensino/aprendizagem. Daí a necessidade de se trabalhar com os gêneros do discurso, como o

texto teatral.

Retomar Vygotski foi importante para a compreensão do elemento gênero, mas

também para respaldar o trabalho proposto pelos PCNs. Os Parâmetros Curriculares

Nacionais, como dito anteriormente, expressam a necessidade de apresentar a linguagem aos

alunos em suas situações de comunicação verbal, o que parece ser bastante coerente, pois

somente dessa forma é que se pode inserir o educando enquanto sujeito em práticas sociais de

uso da escrita; somente dessa maneira é que se forma não só alunos alfabetizados, mas

também sujeitos letrados, capazes de construírem de forma mais profunda juízos valorativos

acerca da sociedade e de suas comunidades, com o auxílio da linguagem.

A capacidade da linguagem de “organizar” o pensamento deve ser exposta como mais

um motivo para que se direcione uma maior atenção no ensino de Língua Portuguesa, uma

vez que um sujeito que consiga lidar melhor com as práticas sociais da linguagem vai também

ter maior capacidade de expor suas ideias, e mesmo concebê-las de maneira mais clara, mais

articulada e crítica e menos instintiva. Os PCNs expõem a intenção de formar sujeitos agentes

no seguinte trecho: “(...) um projeto educativo comprometido com a democratização social e

cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de contribuir para garantir a todos os

alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania” (1998, p.

19).

Tais saberes só podem ser transmitidos por via dos enunciados que manifestam o

discurso. Entretanto, os discursos (em sua materialidade discursiva, o enunciado) organizam-

se através de formas relativamente estáveis, os gêneros do discurso. Os PCNs dizem algo que

pode acrescentar a essa discussão:

(...) quando um sujeito interage verbalmente com outro, o discurso se organiza a

partir das finalidades e intenções do locutor, dos conhecimentos que acredita que o

interlocutor possua sobre o assunto, do que supõe serem suas opiniões e convicções,

simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de familiaridade que têm da

posição social e hierárquica que ocupam. Isso tudo determina as escolhas do gênero

no qual o discurso se realizará, dos procedimentos de estruturação e da seleção de

recursos linguísticos. (PCN, 1998, p. 21)

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Do trecho, pode-se ter uma ideia de como os PCNs encaram a questão dos gêneros,

além de como funciona a organização em gêneros através do discurso. Nesse caso: não só a

emissão é importante, mas também o locutor, a sua relação com o receptor, a posição

hierárquica ocupada por cada um dos agentes da interlocução, etc. No entanto, na página 23,

os PCNs apontam em uma direção que toma o texto, e não o enunciado, como unidade de

ensino da língua, o que parece ser uma contradição: se, por um lado, o documento tenta

chamar a atenção para a necessidade de ensinar a linguagem em seu uso, por outro, não

trabalha com a noção pela qual se dá esse uso e ao mesmo tempo aponta para o texto como

uma possibilidade.

Os PCNs admitem que o discurso seja manifesto nos textos (1998, p. 21), contudo não

se pode deixar de considerar os fatores extratexto quando se fala do todo discursivo, do qual o

texto é somente uma parte, correndo o risco de se fazer uma análise simplificada ao extremo

que não exprime as muitas variáveis envolvidas no ato discursivo e que retoma a discussão

acerca do uso social da linguagem, motivo pelo qual os PCNs se fizeram necessários.

Bakhtin (1997, p. 301) é categórico nesse ponto: todos os nossos enunciados dispõem

de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação como um todo. Possuímos um

rico repertório dos gêneros do discurso orais (e escritos). A produção de textos pura e

simplesmente acrescenta muito pouco à aprendizagem dos alunos, assim como a “leitura

silenciosa” deles.

Somente contextualizado com a realidade do aluno e de sua comunidade é que pode

esse texto fazer ao aluno algum sentido; quando contextualizado dessa forma, esse texto passa

já à categoria de enunciado, de discurso. A organização em gêneros textuais é, portanto,

pouco eficiente para a percepção do todo discursivo; somente a generalização em gêneros

discursivos pode dar uma noção clara acerca de tal fenômeno. Os “lugares” dos quais partem

os enunciados devem ser levados em conta. Para fazer outra citação de Bakhtin:

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos

e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.

O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma das

esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela

seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e

gramaticais – mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes

três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se

indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela

especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado

isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora

seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que

denominamos gêneros dos discurso. (BAKHTIN, 1997, p. 280)

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Bakhtin mostra, no trecho, que as situações de uso da língua têm relação íntima com as

esferas da atividade humana nas quais se dão, e que é dentro de certo número de situações

características dessas esferas que vão ocorrer esses gêneros, sendo que, em algumas esferas,

os gêneros são mais ou menos característicos e mais ou menos flexíveis quanto ao tema, estilo

e construção composicional; para que se compreenda melhor o que é tema (ou unidade

temática), estilo e construção composicional.

Dessa forma, se o discurso constitui-se nas relações que se estabelecem antes e durante

a sua produção e também nos efeitos que são produzidos pelo texto; se os enunciados são a

concretude discursiva por meio da qual se manifesta o discurso; se o discurso é a ferramenta

com a qual se dá a mediação entre aluno e professor e entre os interlocutores, decorre daí a

importância dos gêneros discursivos para a formação de sujeitos atores/agentes na sociedade,

conscientes da sua cidadania e com meios para manifestá-la criticamente. Silva esclarece mais

profundamente, no seguinte trecho, a importância da apropriação dos gêneros:

A apropriação de diferentes gêneros discursivos como habilidade de uso da língua

falada e escrita pelo homem, em situações diversas de comunicação, está subjacente

à proposta curricular para o letramento, o que é bastante coerente, haja vista que os

gêneros são modelos de contextos culturais orientadores da ação do homem no

espaço cultural. (SILVA, 2005, p. 225)

Portanto, através dos gêneros do discurso (e não do texto, da oração ou da palavra) é

que pode o sujeito se envolver nas práticas letradas cotidianas, o que implica dizer que, na

sociedade urbana contemporânea, é somente através dos gêneros discursivos que pode um

sujeito apoderar-se de mecanismos (sociais ou não) que se utilizam da leitura, e não somente

da habilidade de ler.

É nesse sentido que os PCN’s do ensino fundamental reiteram a função da escola de

promover condições para que os alunos reflitam sobre os conhecimentos construídos ao longo

de seu processo de socialização e possam agir sobre (e com) eles, transformando-os,

continuamente, nas suas ações, conforme as demandas trazidas pelos espaços sociais em que

atuam (BRASIL, 1998).

Toda essa discussão é importante para nos aproximarmos da minha proposta de

investigação com o texto teatral em sala de aula. A construção das interações do educando

com seu contexto social são alguns dos elementos que respaldarão meu trabalho com meus

alunos e demonstrará como a construção histórica acerca daquilo que seja o ato de ler e das

estratégias valorizadas numa aula de leitura influenciam na maneira como os estudantes

encaram a prática da leitura.

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1.2 A literatura entra na escola: narrativa da construção do processo colaborativo

Após discorrermos sobre o trabalho com a literatura e o ensino somos levada a outra

inquietação. Como o faremos? Mediante o aporte metodológico. Nesta dissertação, a

perspectiva adotada é a metodologia colaborativa. Ou seja, desde a escolha do meu tema, o

trabalho com a derrisão, neste caso, e o caminhar dele será modulado a partir das minhas

interações com os meus coparticipantes, meus educandos.

É importante ressaltar que meu primeiro contato com essa metodologia surgiu em uma

disciplina da graduação do curso de antropologia, pois eu precisava de um escopo

metodológico pra minha pesquisa e ela representava bem como eu me via e via meus alunos

no processo da dissertação, como coparticipantes.

A partir desse momento, comecei a responder algumas perguntas que me ajudariam a

lidar com o percurso da minha pesquisa. Eram elas: com quem eu quero conversar? Quais os

vínculos desses participantes e suas relações entre si? Com quem eu deveria conversar? Com

essas perguntas foi necessário pensar o tema a partir dos cenários de atuação.

Dessa forma, a construção partirá do coletivo, em que todos terão a oportunidade de

falarem e de serem ouvidos. Com essa compreensão, desenvolver uma pesquisa colaborativa

“significa agir no sentido de possibilitar que os agentes partícipes tornem seus processos

mentais claros, expliquem, demonstrem, com objetivo de criar, para os outros partícipes,

possibilidade de questionar, expandir, recolocar o que foi posto em negociação”

(MAGALHÃES, 2002, p. 28).

Assim, deixamos bem determinado como pretendemos trabalhar com os interlocutores

desta dissertação, de maneira a deixá-los completamente tranquilos para proporem e

discutirem, além de poderem se colocar como cocriadores dando ênfase no processo, pois, de

acordo com Desgagné (1998), a pesquisa colaborativa “se articula em volta de projetos onde o

interesse de investigação se baseia na compreensão que os práticos, em interação com o

pesquisador, constroem a partir da exploração, em contexto real, de um aspecto que se refere

a suas práticas profissionais”.

Ademais, este autor faz uma síntese do conceito de pesquisa colaborativa, destacando

a tripla dimensão que tem caracterizado esse tipo de pesquisa:

1 – A pesquisa colaborativa supõe a construção de um objeto do conhecimento entre

pesquisador e práticos[...].

2 – A pesquisa colaborativa associa ao mesmo tempo atividades de produção do

conhecimento e de desenvolvimento profissional[...].

3 – A pesquisa colaborativa visa uma mediação entre comunidade de pesquisa e

comunidade de prática[...]. Essa síntese pressupõe que uma pesquisa colaborativa só

se desenvolve por meio de articulações e relações bem negociadas entre

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pesquisadores, partícipes e instituições (escolares e universitárias). (DESGAGNÉ,

1998, p. 7-8)

Nessas relações, as preocupações dos pesquisadores aproximam-se das preocupações

dos participantes e se instaura um desafio colaborativo de pesquisa, de construção de

conhecimentos, mediado, sobretudo, pela reflexividade. Nesse sentido, todos os participantes

são agentes ativos na construção do conhecimento e no estabelecimento dos caminhos da

pesquisa.

Portanto, podemos concluir que, na pesquisa colaborativa, pesquisadores e

copesquisadores, e não mais objetos de estudo, são essencialmente ativos e as reflexões

construídas coletivamente são orientadas para as ações que pretendem agir sobre a realidade.

Nesse sentido, há, pois, um processo formativo que mobiliza saberes da teoria e da prática,

científicos e experienciais de sujeitos historicamente situados, capazes de desenvolver

competências e habilidades em um processo contínuo de construção de novos conhecimentos

que se mobilizam para transformar, no caso de minha proposta, a prática educativa.

A partir dessa perspectiva, apresentaremos a primeira atividade proposta para este

capítulo. Fizemos a escolha de apresentar aos estudantes, de maneira aberta e disposta ao

diálogo, o texto La Cantatrice chauve, baseada em uma proposta de um primeiro olhar sobre

o texto, pois muitos deles demonstraram pouco ou nenhum contato com o texto teatral, como

já dito anteriormente, e, a partir desse primeiro olhar, podemos encontrar em sua estrutura, e

aqui me refiro à forma do texto, elementos importantes no contato com o leitor.

O que pude observar, primeiramente, é que através da sua forma e seus diálogos, ele

transforma palavra em voz, em corpo, em transpiração. Pedi para que cada um lesse uma

página, sem nesse primeiro momento dividir em cenas, por exemplo, pois a intenção era a de

que eles descobrissem o texto. E, com o desenvolver da atividade, foi possível ver cada aluno,

colocando sua impressão em cada leitura, sua oralidade emergindo do papel, o que tornou

possível a construção de sentidos em diversas perspectivas.

As vozes dos alunos eram singulares, cada um dava uma interpretação ao texto que era

lido e em alguns momentos só se ouvia risadas. Por isso digo que o texto teatral tem vida e

por onde passa, ecoa. E esse eco são as vozes do texto e dos meus alunos, presentes em todos

os momentos em que me dispus a trabalhar o texto teatral.

Voltemos um pouco para falarmos mais sobre esse momento. Em uma das minhas

primeiras experiências de trabalho com o texto teatral, aqui já mencionada, lidei com um

grupo de 15 estudantes de nível intermediário na língua francesa. O primeiro impacto do texto

é com a forma, a maioria deles me explicaram que nas escolas o texto em prosa é sempre a

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escolha dos professores e, por isso, o estranhamento com um texto “nesse formato todo

errado”, disse uma educanda de 22 anos.

É, portanto, nesse formato “todo errado”, que encontraremos o elemento artístico

fundamental para o desenvolvimento das reflexões que permeiam o trabalho com a literatura,

principalmente, em sala de aula, uma vez que todos esses elementos se tornam reais na prática

social, e por real, aqui, me refiro à concretude do objeto artístico, ou seja, transformação,

incômodo e toque.

No momento que começa a leitura do texto, a entonação muda, sem nenhum pedido ou

indicação, vemos palavras sendo transformadas pelas vozes deles. Eles se divertiram, quando

inquietos sobre trabalhar com uma possível montagem/encenação, eu disse: “bem, não sou

atriz e nem acho que o texto se resuma a apenas isso”. Os estudantes concordaram e saímos

da primeira aula com a data que iriamos trabalhar novamente com o texto.

No segundo momento, a cena VIII de La Cantatrice chauve foi a escolhida para

trabalharmos. Como os estudantes não conheciam a peça, eles pediram para que eu escolhesse

qual cena trabalharíamos , pois tínhamos apenas duas aulas por semana, de apenas 1 hora e 15

minutos e outras atividades a serem vencidas de acordo com o calendário da nossa escola.

Sendo assim, minha escolha foi pautada na busca pela cena que possuía várias leituras

disponíveis na internet, porque acreditava que eles poderiam ter um maior acesso a materiais

de estudo e teriam a possibilidade de trabalhar em autonomia fora da sala de aula.

Como já apresentado, existem diversas dificuldades no trabalho com o texto teatral em

escolas de ensino básico, como o tempo e a necessidade de lidar com diversos conteúdos além

das estratégias metodológicas com o teatro. Ademais, existia, também, o modo com o qual

meus educandos viam o teatro, com estranhamento, e se meus alunos olham com

estranhamento para o texto teatral, o motivo é simples: ele é sempre preterido nas “disputas”

curriculares. Ou seja, nas obras escolhidas pelos professores para serem trabalhadas, o lugar

de destaque é do romance, raramente o texto teatral.

Uma das dificuldades encontradas no desenvolvimento de atividades com o texto

teatral muitas vezes decorrem da ideia de alguns professores que pensam que o texto teatral

deve ser mantido com o professor de artes cênicas, pois eles possuem salas próprias e

conhecimento, além de outros professores que optam apenas por trabalhar com o gênero

literário romance.

Como contrapartida a essas dificuldades, trago o texto teatral para a sala de aula e

apresento-lhes a riqueza dele, bem como sua grandiosidade e/ou multiplicidade em revelar

aspectos discursivos importantes para os currículos escolares e o vasto campo da análise que

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pode ser discutido em sala. Não ganharemos todas as batalhas, mas apenas algumas, e são elas

que me permitem apresentar esta pesquisa.

Finalmente, conseguimos trabalhar com uma cena de La Cantatrice chauve. Dessa

forma, é a arte, por meio do teatro, que, como objeto deste trabalho, possui a função de

transformação e conexão entre os estudos literários e a educação.

Partindo desse lugar, voltemos à cena! Nesta aula não lhes entreguei a peça completa,

apenas a cena. Nenhum dos alunos fez nenhum questionamento sobre a forma, mas já foram

se dividindo pra ver quem leria que personagem. Questionei meus coparticipantes o porquê de

eles preferirem dividir ao invés de ler juntos. A resposta: porque o texto está dividido. Gostei

do olhar, mas confesso que fiquei com um pouco de receio de que, na descoberta das rubricas,

nós tivéssemos propostas pautadas no naturalismo.

Isso pois, enquanto movimento estético, o naturalismo se distancia da própria proposta

aqui apresentada. O objetivo desta é reconfigurar os elementos do teatro em sala e não

estruturá-los de maneira a promover uma cópia daquilo que já vem sendo desenvolvido, como

entendemos que as práticas teatrais naturalistas vêm se pautando: pela busca da retratação

fidedigna da realidade, o que não é nossa proposta, pelo menos não sem nenhuma reflexão

anterior.

Dessa forma, minha inquietação foi movida pela possibilidade de não encontrarmos

espaço para uma criação direcionada a partir do olhar dos meus alunos, uma vez que eu

gostaria que as indicações cênicas não formassem uma força contrária às ideias e propostas

deles. Bem, isso não ocorreu e alguns aspectos foram determinantes para que eles se

sentissem capazes de se manifestar.

O primeiro aspecto é a compreensão de que a sala de aula não é apenas aquele espaço

físico tradicional composto por cadeiras alinhadas uma ao lado da outra, sempre em posição

contrária à mesa do professor; é preciso repensá-la e modificá-la. Ela faz parte de uma grande

rede de conexões capaz de transformar os olhares dos alunos, na medida em que, dentro de

um contexto mais amplo, pode auxiliar nas construções de sujeitos críticos e ativos diante da

sociedade.

Voltemos à prática desenvolvida por mim com a cena VIII, elas esclareceram a ideia

de polifonia e do continuum já apresentadas neste trabalho. Bem, recebi meus alunos como

faço sempre, pergunto como eles estão e como foi o dia deles, nunca me coloquei em sala de

aula com uma postura de superioridade ou de diferença e procuro sempre demonstrar,

principalmente no primeiro dia, que estamos todos em busca do conhecimento, somos todos

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educandos. Através do que chamo de contrat d’apprentissage, o nosso contrato de

aprendizagem, é estabelecido no começo do semestre.

É um espaço de trocas em que peço para que meus alunos digam suas experiências e

expectativas em relação ao curso. Um momento importante para que eles saibam que aquele

espaço, a sala de aula, é nosso e necessário em um contexto colaborativo para que possamos

definir de que maneira as aulas serão conduzidas.

Nesses termos, definimos três aulas de ambientação. Nessas aulas o objetivo principal

era conhecer e se reconhecer no texto. Além disso, modificar nossas relações de maneira que

eles compreendam o papel deles enquanto coautores dessas práticas, e, por fim, de que eles

pudessem refletir sobre o motivo de participarem dessas relações, uma vez que, pelos meios

administrativos, eu me configuro como autora da dissertação. Mas qual seriam os ganhos

deles?

Essa não foi uma resposta fácil e, até os últimos dias de aula, não tínhamos resposta

para ela. Contudo, o processo de descoberta que permeou este projeto foi bastante

enriquecedor, principalmente para mim, que consegui ter diferentes olhares sobre a mesma

prática e me via sempre na necessidade de refletir sobre nossas aulas, a fim de que

trabalhássemos pelo projeto e pelos alunos. Mas voltemos às práticas.

Na primeira aula, após a leitura, fizemos uma roda de conversas para elencarmos as

primeiras impressões do texto e, assim, poderíamos, juntos, definir que tipo de atividade

faríamos com ele. Assim que começamos, fui indagada por um dos coparticipantes:

professora, podemos conversar sobre o que gostaríamos de trabalhar em sala de aula? Eu,

rapidamente, disse sim e, assim demos os primeiros passos ao que foi a proposta de uma

participação colaborativa.

Com o início do diálogo, me dei conta de que os alunos sentiam falta de debates, para

se apropriarem e se reconhecerem como falantes de outro idioma. Uma simples pergunta me

apresentou um universo de possibilidades, além de terem achado muito legal que alguém

perguntou como eles se sentiam e o que pensavam. Uma coisa que achei muito interessante é

que tinha medo que a distinção hierárquica, que socialmente coloca professores e educandos

em lados opostos, pudesse influenciar meus objetivos, mas não foi o que aconteceu.

Levei a proposta para meu alunos após a leitura da cena VIII, eles adoraram a

possibilidade de participarem e de compor meu texto. Logo, começaram as inquietações

como: o riso que os provocava, mas que não era exatamente o que eles entendiam por

engraçado. Em algum momento, um aluno se referiu a “humor negro”, e foi o mais próximo

que eles conseguiram nomear para o incômodo que sentiam.

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Aproveitei que teríamos uma pausa para as provas e pedi para que eles lessem a peça e

refletissem sobre os aspectos mais relevantes. O mais importante no desenvolvimento desta

representação é a composição dialógica desses espaços e desses indivíduos. E a concepção de

que não entrei para confirmar hipóteses, mas para construir uma nova narrativa e que o

estranhamento e a busca por novas relações entre o texto e nossas práticas seriam meu ponto

de partida.

No entanto, percebo que eles se veem hoje muito mais ativos e se colocam à frente do

diálogos, deliberando ou puxando assunto. Para mim, esse foi um dos maiores ganhos da

minha pesquisa. Enquanto aluna sempre me deparei com silêncios constrangedores: o

professor fazia a pergunta e nem eu nem meus colegas nos sentíamos à vontade para nos

expressarmos, nenhuma opinião em aula de literatura e a falta do diálogo pode esvair toda a

proposta e/ou simplesmente não gerar resultados, e aqui me refiro também às construções que

ocorrem no percurso dos debates, nem mesmo nas leituras silenciosas.

Na segunda aula, já conhecíamos o texto e pedi para que, em grupos, eles definissem

quais elementos, na percepção deles, deveríamos trabalhar e o motivo. Aproveitei e trouxe

alguns títulos de livros que falavam sobre educação. Deixei os materiais sobre a mesa e pedi

que eles livremente escolhessem o que quisessem ler. Ninguém pegou os livros. Tudo bem.

Falamos sobre os textos, foi bem interessante, eles levantaram algumas questões políticas

sobre a educação. Nesse momento, aproveitei para apresentar o contexto de produção da peça

La Cantatrice chauve e continuamos conversando e desenvolvendo pontos sobre os olhares

deles em relação ao processo educacional em que eles viviam, partindo da aprendizagem do

francês.

Na terceira e última aula, no processo de ambientação com o texto, eu levei novamente

os textos e chegamos a diversas questões como: o ensino de línguas ser pouco valorizado na

área pública, sobre o papel da língua estrangeira para a construção deles enquanto indivíduos,

e que eles nunca se colocaram pra refletir sobre isso. Um dos alunos, marceneiro, com 55

anos, me disse que se ver lendo e falando francês modificou a relação que ele tinha com ele

mesmo.

Então, a partir dos relatos decidimos pelo seguinte tema: a literatura estrangeira e seu

papel na construção dos alunos da comunidade do CILG7. O mais interessante? Pensamos: em

literatura e o papel na sociedade e um dos alunos: “mas somos nós, você não disse que nós

faríamos juntos?” Pois então, coloque a gente no título. Bem, aqui estão! E, assim, começa

7 Centro Interescolar de Línguas do Guará - CILG.

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este trabalho. Dividido em dois momentos, as duas atividades principais, a elaboração de uma

carta para a direção com a proposta de trabalhar na escola e, um segundo momento de

apresentação das análises da peça.

É importante ressaltar que apesar da proposta aqui ser direcionada ao ensino básico,

nada impede que novas reflexões surjam, bem como outras propostas para sua aplicação em

outros contextos. Minha escolha foi baseada no meu atual trabalho, que se concentra no

Centro de Línguas do Guará – CILG. O CIL é uma rede de escolas públicas gerenciadas pelo

Governo do Distrito Federal – GDF e que tem por objetivo fornecer, prioritariamente aos

alunos da rede pública de Brasília, aulas de espanhol, inglês e francês.

Todas essas políticas públicas me possibilitaram, hoje, ter contato com esses alunos

e propor essas atividades. No cerne dessas relações encontramos diversas possibilidades de

reflexões, nem sempre novas, mas certamente atuais. São diálogos que possibilitam diversas

abordagens dentro da perspectiva do trabalho com o texto teatral na área de literatura e

ensino.

Ademais, percebo que esse cenário os deixa mais tranquilos para me enviarem

sugestões ou apresentá-las em sala. O que aconteceu quando eu propus trabalhar com esse

livro, La Cantatrice chauve, bem como com essa cena, VIII, foi exatamente isso, milhões de

questões brotavam a todo momento. O primeiro impacto é sempre o estranhamento. Um título

que para eles aparece como inacabado, em especial quando leem a página que relaciona os

personagens e a cantora não está lá.

Até de fraude chamaram Ionesco. Um fato é que ri muito este dia. Ainda bem que

provavelmente ele não se preocuparia com isso, como ele mesmo disse: J’espère que mon

théâtre a plus d’humour que mes polemiques. J’espère8 (IONESCO, 1966, p. 12). Pedi, então,

para que eles dessem uma chance a ele. E assim chegamos a configuração apresentada acima

e o trabalho que apresentarei no Capítulo III, a cena VIII escolhida por mim, como dito

anteriormente, pela dinâmica e possibilidades de interação e, também, para agradar ao

conteúdo da aula do dia que dizia que eu deveria trabalhar os pronomes.

8 Eu espero que meu teatro tenha mais humor que minhas polêmicas. Eu espero. (IONESCO, 2014, pg. 12,

tradução nossa)

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1.3 Literatura e ensino ou Ensino de literatura?

Para podermos avançar nas interações em sala de aula gostaria de trazer outras duas

questões importantes para esta dissertação, são elas: a relação entre literatura e ensino e a

importância da pesquisa colaborativa. Primeiramente, por que ensino de literatura e não

literatura e ensino?

Provavelmente a realidade em que essas discussões se encontram é o resultado desta

primeira inquietação de ordem metodológica. Dentre os mais diversos aportes que se têm

trabalhado sobre uma possível teoria de pedagogia e/ou metodologia para o ensino da

literatura, pouco se tem falado de sua relação com o indivíduo nesse contexto.

O ensino da literatura nas escolas e na universidade vem sendo baseado

prioritariamente nos estudos dos movimentos estéticos. Pouco se lê e menos ainda reflete-se

sobre as obras literárias. Isso é o resultado de políticas voltadas para um ensino baseado em

resultados quantitativos de seleções para o ingresso nas universidades.

O objetivo principal não tem sido a busca pelo papel revolucionário da literatura

enquanto arte, mas do trabalho compacto e estrutural dos movimentos literários, bem como o

distanciamento do trabalho a partir do objeto. Sendo assim, a reflexão que parte de questões

históricas e teorias que permeiam o objeto literário não faz parte das discussões literárias nas

salas de aula.

Dessa forma, os estudos literários nas escolas têm se constituído por meio de uma

relação de passividade entre o aluno e seu objeto, em que não se é priorizado o olhar do aluno

e nem as reflexões acerca do lugar deste objeto artístico na sociedade. Neste contexto, é

importante salientar que o educando em formação não é estimulado a desenvolver ou criar

suas próprias hipóteses, nem a analisar diferentes obras construindo diversas discussões sobre

as possíveis relações entre a obra e a sociedade que o cerca.

No entanto, qual seria a importância da modificação deste parâmetro e como o

utilizaremos em nosso trabalho? Primeiro, é importante que compreendamos que esta

pesquisa busca dos educandos um olhar mais crítico e engajado para que ele possa tomar pra

si o desenvolvimento de suas reflexões e do seu papel em sala de aula, principalmente, no

caso do professor de literatura, pois o nosso objeto pode nos levar a este processo de reflexão-

ação. E, aqui quando me refiro a engajado, retomo Sartre (1970).

Sartre em sua obra revolucionou o pensar sobre o indivíduo e sua relação com o

mundo, pois:

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Que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e quer só depois

se define. O homem, tal como o concebe o existencialista (Sartre), se não é

definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal

como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para

a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro do

existencialismo. (SARTRE, 1970, p. 216).

Nesse cenário atual, pensar a literatura como agente transformador é uma tentativa

semelhante ao esforço de Sísifo para carregar sua pedra, que no caso é o de enfrentar alguns

movimentos como, o de olhar o texto como um fim em si mesmo, sem potenciais finalidades

de vinculá-lo ao mundo. Quando me refiro a Sísifo, falo expressamente do Mito de Sísifo de

Camus, que introduz sua filosofia do absurdo.

Toda essa temática será retomada quando falarmos de Ionesco e do Teatro do

Absurdo. No entanto, algumas considerações devem ser feitas sobre o que seria esse mito.

Camus entende o cenário social como o indivíduo sempre em busca de sentido e unidade em

uma luta constante pela sobrevivência no absurdo da vida.

Dentro desta perspectiva, Camus compara o absurdo da vida do indivíduo com a

situação de Sísifo, filho do rei Éolo e Enarete, que era considerado o mais astuto de todos os

mortais. Todavia, Sísifo morre de velhice e Zeus envia Hermes para conduzir sua alma ao

Hades. Já no tártaro, Sísifo é considerado um rebelde e, como punição, foi condenado por

toda a eternidade a rolar uma grande pedra com suas mãos até o cume de uma montanha. O

problema era que toda vez que ele estava quase alcançando o cume, a pedra rolava para baixo

até o início, invalidando completamente seu esforço.

Desse modo, é preciso compreender e apresentar de uma maneira bastante coesa como

funcionará o trabalho com a literatura, neste trabalho, no que se refere à educação, a fim de

evitarmos lidar com conceitos que não nos permitirão chegar ao topo da montanha, mas nos

levarão à direção oposta.

Portanto, dentro do paradigma de ensino e literatura, na perspectiva adotada por esta

pesquisa, não faz sentido trabalhar com o ensino de literatura, mas com a literatura e ensino

ou com literatura e educação, escolha feita para o título, uma vez que abarca várias

possibilidades de trabalho, como a formação de professores e/ou desenvolvimento de

metodologias nas salas de aula. A troca da preposição emerge para que ambas as palavras

funcionem em igualdade de posição. Assim, não há como se pensar em ensino sem se

repensar a literatura, bem como não há como se pensar a literatura senão inserida em suas

práticas sociais. Proponho também lidar com a palavra educação e não ensino, bem como

educando e não aluno.

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Ademais, no caso da palavra ensino, há em sua etimologia uma ligação muito forte

com a palavra transferência, o que desconfigura o entendimento adotado nesta pesquisa, de

que a educação deve estar alinhada no sentido da construção do conhecimento entre o

aprendente e o educador. Dessa forma, a palavra ensino estaria alinhada com a educação

bancária exposta por Paulo Freire e não com a construção do conhecimento, perspectiva

adotada nesta dissertação.

Outro autor de extrema relevância no papel da literatura e ensino que utilizaremos é

Todorov (2010). Para ele, a literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de

discursos vivos. Podemos ver nessa afirmação uma justificativa para um tratamento que, a

partir de então, extrapola as fronteiras das abordagens imanentistas do texto, distando assim

dos métodos estruturalistas mais tradicionais.

Será uma mudança substancial para além do texto, no qual a literatura ganhará

contornos muito mais vastos, ampliando o universo do autor, incitando-o “a imaginar outras

maneiras de concebê-lo e organizá-lo” (TODOROV, 2010, p. 23). Nesse sentido, o próprio

Todorov tomará consciência de que a literatura vai muito além do texto.

O autor retoma um outro ponto importante, já citado anteriormente, que os programas

atuais de ensino de literatura estão pautados no “estudo da disciplina”, não no “estudo do

objeto”, constatando em seguida: “ensinamos nossas próprias teorias acerca de uma obra em

vez de abordar a própria obra em si mesma” (TODOROV, 2010, p. 31).

Se fizéssemos o contrário, isto é, focando o ensino no estudo das obras literárias,

poderíamos ir bem além, encontrando um “sentido” que permitisse compreender melhor o

homem e o mundo, para aí descobrir uma beleza que enriquecesse sua existência. Mas esse é

caminho ignorado pelo atual ensino de literatura, que dá as costas a essa “função

humanizadora” da literatura, para usar a expressão de Antônio Candido.

O que vemos hoje, ao trabalharmos com literatura em todas as séries é uma

preocupação tão exacerbada com os métodos de análises, que a própria literatura em si acaba

“reduzida ao absurdo” de um amontoado de teorias, atentas somente a fazer uma abordagem

interna, esquecendo que “as obras existem sempre dentro e em diálogo com um contexto”

(TODOROV, 2010, p. 32).

A partir dessa perspectiva, a atividade do artista seria imitar a natureza, criada por

Deus, e sob essa ótica ele também se igualaria ao criador, pois criaria por meio da imitação da

beleza. Nesse sentido, segundo Todorov, esse artista ganharia status de criador equiparando-

se a uma deidade (2010, p. 46). Sendo assim, o gosto residiria na subjetividade dos leitores ou

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espectadores. E a literatura passaria a ser definida em apenas generalizações, por exemplo,

tudo que estiver em forma de letra e em uma capa dura será literatura.

Há ainda uma concepção romântica da “arte pela arte”. Essa concepção não introduz

ruptura notável, conforme sublinha Todorov. A arte continua a ser um conhecimento do

mundo (TODOROV, 2010, p. 61). O que a diferencia é o “juízo de valor”: a arte possuiria um

grau de conhecimento mais elevado que o da ciência e daria “acesso a uma segunda realidade,

proibida aos sentidos e ao intelecto, mais essencial ou mais profunda do que a primeira”

(TODOROV, 2010, p. 62).

A literatura, sob esse aspecto, continuaria a ser algo (quase) inacessível, uma vez que

se comportaria como uma arte, à qual somente os “iluminados” ou iniciados teriam acesso.

Passado o percurso histórico, podemos chegar a capítulos mais substanciais do livro de

Todorov?. Trata-se dos dois últimos: “O que pode a literatura?” e “Uma comunicação

inesgotável”.

O primeiro apresenta a interface curativa e libertadora da literatura. É claro que são

adjetivos que não podem ser tomados em seus significados estritos, pois a literatura cura e

liberta no sentido de que “ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente

deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos

fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver” (TODOROV, 2010, p. 76).

Essa cura e libertação são transformações que ocorrem em cada indivíduo, de maneira

diversa, sempre no seu interior. A literatura “tem papel formador da personalidade, mas não

segundo as convenções”, citando Antônio Candido (2004). Ela “percorre regiões da

experiência que os outros discursos negligenciaram, mas que a ficção reconhece em seus

detalhes”, complementando com Antoine Compagnon (COMPAGNON, 2009, p.50).

Dentro desse contexto, conforme apresentado anteriormente, o modo como as análises

de obras literárias são tratadas na escola e nas universidades são essenciais para o

entendimento de que o trabalho apenas com ilustração a conceitos sem métodos de análises

subestima o papel que a literatura possui na formação desses indivíduos. Os textos são usados

somente como meros exemplificadores e o “sentido” da obra, ou seja, aquilo que “nos conduz

a um conhecimento do humano, o qual importa a todos” é ignorado (TODOROV, 2010, p.

72).

Dessa forma, os relatos dos professores de literatura no ensino básico são que as

leituras de obras literárias, quando feitas, acabam sendo meramente ilustrativas. Em alguns

casos, talvez não se possa dizer sequer que haja uma leitura da obra, mas somente uma leitura

da leitura, uma espécie de “meta-leitura”, na qual o “leitor” toma conhecimento de

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determinado livro lendo somente o que a crítica escreveu sobre a obra e com isso se mostra

isolada da verdade, podendo ser consideradas como verdadeiros simulacros.

Nesse momento, vemos a necessidade de refletirmos sobre o ensino, e aqui me refiro a

um processo que é contínuo, de construção e reconstrução de paradigmas nas mais diversas

esferas sociais. Segundo Vygotsky (1991), a aprendizagem humana pressupõe uma natureza

social específica e um processo por meio do qual as pessoas penetram na vida intelectual

daquelas que as cercam. A aprendizagem é fundamentalmente uma experiência social, de

interação pela linguagem e pela ação.

Nesse aspecto, mostra-se necessário falar de Paulo Freire (1987). Por meio de sua

perspectiva poderemos compreender a necessidade da reflexão a respeito das práticas

aplicadas nas aulas de literatura, principalmente no contexto universitário, uma vez que se

trata de alunos que estão se preparando para a prática da docência.

Para Freire, o conhecimento consiste em conhecer com propriedade e domínio algum

assunto, seu contexto; compreender as relações que legitimam esse conhecimento e as

diversas dimensões: histórica, cultural, e política daquele saber. Por outro lado, esse

conhecimento consiste também em saber os caminhos para se obter mais informações

atualizadas e de qualidade sobre um determinado assunto.

O professor em processo de formação inicial precisa ter uma visão ampla e profunda

sobre a complexa realidade na qual se insere a sua prática educativa e precisa também de um

espaço de reflexão sobre o sentido dela. No entanto, este processo de reflexão, fundamental à

formação inicial do professor, como uma prática que deve ser incorporada à sua atividade

profissional, tem sido mal compreendida.

É importante, não confundir a noção de profundidade de conhecimento com

especialização, para Morin (2000):

O conhecimento especializado é uma forma particular de abstração. A

especialização “abs-trai”, em outras palavras, extrai um objeto de seu contexto e de

seu conjunto, rejeita os laços e as intercomunicações com seu meio, introduz o

objeto no setor conceptual abstrato que é o da disciplina compartimentada, cujas

fronteiras fragmentam arbitrariamente a sistemicidade (relação da parte com o todo)

e a multidimensionalidade dos fenômenos; conduz à abstração matemática que opera

de si própria uma cisão com o concreto, privilegiando tudo que é calculável e

passível de ser formalizado. Ou seja, a especialização que se fecha sobre si mesma,

sem permitir sua integração na problemática global ou na concepção de conjunto do

objeto do qual ela só considera um aspecto ou uma parte. (MORIN, 2000, p. 41-42)

Com isso, podemos concluir que o saber muito sobre um assunto em particular, e

desconhecer outros assuntos são essenciais ao exercício da docência. O modelo que

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aparentemente tem se imposto na sociedade do conhecimento, e dessa forma também para o

professor, é aquele do especialista “que sabe muito sobre quase nada”.

Todo esse percurso de levantamento do trabalho com a literatura em sala de aula, eixo

norteador dessa dissertação, é composto por bastante reflexão e até mesmo de entendimento

da necessidade de diversificação do trabalho em sala de aula com a literatura. O trabalho

nunca acaba; ele se constrói e reconstrói à medida que as reflexões incitadas por ele nos

levem a novos parâmetros ou configurações ou olhares, por exemplo.

Para finalizar, é importante passarmos pelos pontos principais deste capítulo, que

serão fundamentais para o continuar de nossa caminhada. Já tratamos sobre a importância do

trabalho com a literatura na sala de aula enquanto prática social e falamos, também, sobre o

papel engajado do indivíduo e do papel do professor como sujeito ativo e reflexivo da sua

própria prática.

Além disso, desenvolvemos, a partir da experiência em sala de aula no CILG, os

primeiros elementos da metodologia colaborativa, assim como a construção estética da obra

por intermédio da reflexão e das relações entre o binômio educação e literatura. Além disso,

trabalhamos a importância da literatura na formação do leitor enquanto sujeito ativo na

sociedade e, por consequência, definimos o papel da arte neste emaranhado de relações.

Entendemos que antes de retornar à sala de aula é necessário tomarmos fôlego e

apresentarmos alguns elementos sobre a atualidade, o Teatro do Absurdo, a dérision e La

Cantatrice chauve.

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CAPÍTULO 2. É UM ABSURDO?! A ATUALIDADE E O TRABALHO COM O

TEATRO DO ABSURDO NA LA CANTATRICE CHAUVE.

O objetivo principal deste capítulo é o de apresentar de que maneira o Teatro do

Absurdo, enquanto conceito estético, pretende contribuir para a reflexão do trabalho com o

texto literário em sala de aula, seu significado e a sua importância para a recepção de hoje,

bem como a contribuição do conceito de dérision para o desenvolvimento de algumas análises

da peça La Cantatrice chauve, que, há mais de 60 anos, continua sendo lida e encenada. Por

isso, nos ateremos aqui a extrair os elementos estéticos e filosóficos que nos levam a

continuar trazendo à tona a Cantora careca.

O movimento que faremos para apresentar a atualidade da obra de Ionesco começará

pela tomada de fôlego e retorno ao cenário do teatro e da sociedade dos anos 1950, ano de

estreia de La Cantatrice chauve, um pós-guerra que modificou a sociedade mundial marcada

pelo holocausto e pela dicotomia do socialismo e capitalismo.

Em contrapartida a esses movimentos históricos, surgem pensamentos filosóficos e

literários que se debruçam na tentativa de explicar ou de propor reflexões acerca do sujeito

que se apresenta no pós-guerra, ou seja, de que maneira esses indivíduos foram influenciados

e como se compõem diante dos acontecimentos. Entre esses movimentos encontra-se o

existencialismo.

De acordo com o existencialismo, a reflexão estava centrada no indivíduo e sua busca

se caracterizava pela “atitude existencial”, ou uma sensação de desorientação e confusão face

a um mundo aparentemente sem sentido e absurdo. No meio desses questionamentos

encontrava-se Ionesco, que, em seus textos, nos apresentava os conceitos de “essência” e

“existência” a partir do uso do “eu absoluto”, fora da história, e do “eu relativo”, indissolúveis

e inerentes a si mesmos.

O homem é antes de tudo um projeto que é vivido subjetivamente, em vez de ser um

musgo, um apodrecimento ou uma couve-flor; nada existe antes deste projeto; nada

está no céu inteligível, e o homem será primeiro o que ele projetou ser. Não é o que

ele quer ser. Pois o que comumente queremos dizer com querer é uma decisão

consciente, que para a maioria de nós é mais tarde do que era ela mesma. Eu posso

querer participar de uma festa, escrever um livro, casar, tudo isso é apenas uma

manifestação de uma escolha mais original, mais espontânea do que o que se chama

vontade. Mas se a existência realmente precede a essência, o homem é responsável

pelo que ele é. Assim, o primeiro passo do existencialismo é colocar todo homem

em posse do que ele é e colocar sobre ele a total responsabilidade de sua existência.

E quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer

que o homem seja responsável por sua estrita individualidade, mas que ele seja

responsável por todos os homens. (SARTRE, 1970, p. 14, Tradução nossa).

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Sobre a responsabilidade do homem e o diálogo entre a essência e a existência, é

importante ressaltar que nenhum dos dois elementos trazidos por Sartre passa por Ionesco de

maneira neutra, ou seja, de forma passiva, pois essas ideias serão objeto de reflexão e de

crítica a Sartre, tanto no seu aspecto político quanto em sua literatura engajada. Esta última,

que para Ionesco era limitada ao realismo, efetua uma cisão do binômio realismo/imaginação,

resultando dessa forma não em uma descoberta da verdade, mas em seu acobertamento de

uma realidade criada a serviço de poderes políticos totalitários, como aqueles da antiga União

Soviética.

Para Ionesco, Sartre se comporta de forma submissa à história, posicionando-se frente

ao contexto contemporâneo de maneira alienada. Sua crítica a esse engajamento e a esse olhar

advém do seu entendimento de como a política influencia as relações entre os indivíduos.

Para ele:

Tout est politique, nous dit-on ? En un sens, oui. Mais tout n’est pas de la politique.

La politique professionnelle détruit les rapports normaux entre les gens, elle aliene ;

l’engagement ampute l’homme. Les Sartre sont les véritables aliénateurs des esprits.

(IONESCO, 2014, p. 309)9

Suas críticas a Sartre baseiam-se, em sua maioria, a esse engajamento de esquerda

comunista. Um bom exemplo é o que consta na revista Magazine Littéraire, que publica uma

entrevista com Ionesco em que ele afirma que a obra L’être et le néant10 é anti-humanista e

que as relações humanas estão fundamentadas em termos de relações de força, apreendendo

nestas uma moral imperialista que encontrará, anos depois, sua correspondência no mundo

nazista.

Para ele, no mundo pós-guerra, as pessoas, cansadas, se tornaram boas, e Sartre, atento

à história, transforma o seu existencialismo em humanismo (IONESCO, 2014). No entanto, as

críticas fortes de Ionesco dirigida a Sartre não são suficientes para distanciá-lo de Sartre,

como notamos na mesma entrevista: “J’en veux à Sartre, mais je ne peux pas nier que j’ai été

nourri par lui.” 11 (IONESCO, 2014, p.10).

No Journal en miettes (1967), Ionesco menciona o seu diálogo com o Existencialismo

ao citar o conhecido postulado de Sartre sobre a existência preceder a essência.

Imediatamente após essa observação, ele leva essa ideia ao extremo, aludindo à possibilidade

de um dos elementos do binômio, a essência, não ser, não existir. A consequência dessa

9 Tudo é político, nos dizem? De certo modo, sim. Mas nem tudo é política. A política profissional destrói as

relações normais entre as pessoas, aliena; o compromisso amputa o homem. O Sartre é o verdadeiro alienador

dos espíritos. (IONESCO, 1964, p. 309, tradução nossa) 10 O ser e o nada. (Sartre, 1997) 11 Estou com raiva de Sartre, mas não posso negar que fui alimentado por ele. (IONESCO, 2014, p.10 Tradução

nossa).

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apreensão particular do fundamento existencialista é relevante para a construção da obra

ionesconiana, pois a essência sartriana, que corresponde ao ser ou à explicação da existência,

segundo Ionesco, irá desaparecer.

É exatamente acompanhado pela ausência do ser que esse autor do Teatro do Absurdo

constrói suas primeiras obras, distanciando-se, desse ponto de vista, do existencialismo

sartriano. O dramaturgo que se entretém em uma relação reativa com o existencialismo,

especificamente com Sartre, irá se aproximar do postulado do “absurdo” camusiano, tanto em

um desenvolvimento distinto, quanto em uma nova expressão artística. Não é por acaso que

um conjunto de textos dramáticos, surgido poucos anos após os primeiros escritos de Camus,

é batizado por Martin Esslin (1968) sob o nome de Teatro do Absurdo, como já enunciamos

anteriormente.

Esslin analisa este teatro a partir de Albert Camus, que muitos lembram estar inserido

erroneamente no existencialismo, como no caso da afirmação dos editores da Gallimard, na

publicação de Le Mythe de Sisyphe: “Rattaché à tort au mouvement existentialiste, qui atteint

son apogée au lendemain de la guerre, Albert Camus écrit en fait une oeuvre articulée autour

de l’absurde et de la revolte” 12 (CAMUS, 1942, p. 11). A partir do ensaio de Camus, Esslin

ancora sua comparação entre a maneira com a qual a noção de absurdo é desenvolvida por

Camus e pelos autores do Teatro do Absurdo, afirmando a presença de similitude entre eles,

centrada no sentimento do absurdo suscitado pela ausência de axiomas seguros para a

existência humana, no pós Segunda Guerra, e distinção entre ambos, que estaria na expressão

desse sentimento.

O existencialismo para Esslin:

(...) exporia o sentimento do irracional da conduta humana Eugène Ionesco: da

influência à criação sob a forma de um raciocínio lúcido e logicamente construído

[...]” (ESSLIN, 1968, p.41), enquanto o Teatro do absurdo exprimiria esse mesmo

sentimento na construção da obra, denunciando “[...] o que a razão tem de

inadequação, abandonando deliberadamente as etapas racionais e o pensamento

discursivo. (ESSLIN, 1968, p.41).

A noção de “absurdo” desenvolvida por Albert Camus (1942), como bem indica no

subtítulo de Le Mythe de Sisyphe. Essai sur l’absurde13, tem como fundamento uma distinção

significativa entre o sentimento do absurdo e a noção do absurdo. O primeiro é a tomada de

consciência da estranheza do homem frente a um universo privado de sentido, e o segundo é a

análise racional desse sentimento. Camus discorre sobre o sentimento do absurdo como um

12 Falsamente ligado ao movimento existencialista, que atingiu o auge após a guerra, Albert Camus escreveu de

fato um trabalho articulado em torno do absurdo e da revolta "(CAMUS, 1942, p. 11, tradução nossa). 13 “O mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo” (1942) tradução nossa

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divórcio entre o “homme de sa vie, l’acteur et son décor”14 (1942, p. 20), assinalando que,

muito antes de ele perceber a estranheza dessa separação, esse homem já se sentia deslocado

dentro de seu universo. Camus faz um itinerário da corrente existencialista, analisando as

obras dos escritores filósofos cujo pensamento gira em torno da questão da condição absurda

do homem no mundo, como aquelas de Kierkegaard, Jasper, Heidegger, Chestov.

Entretanto, estes existencialistas encontram vias outras para apaziguar o absurdo que

não aquelas do pensamento racional – fato que os distingue da filosofia camusiana, pois nesta

o sentimento da condição da existência absurda desagua necessariamente na noção do absurdo

– está fundada na análise racional dessa condição. Em outras palavras, o sentimento que o

homem experimenta na sua separação do mundo pode não seguir necessariamente a uma

procura racional de explicação dessa separação, mas sim levar à fuga ao absurdo, que a ela se

segue, por meio de argumentos metafísicos – em uma nostalgia de unidade do homem com o

mundo – ou irracionais; todos escapando ao racional frente ao mundo-mudo e aos homens

em si que “sécrètent de l’inhumain”15 (CAMUS, 1942, p. 31).

Sob o ponto de vista dessa estranheza do homem frente a si mesmo, há uma

convergência entre o pensamento de Camus e o de Sartre, na medida em que em ambos ronda

a sensação de inumano e ainda acreditavam na ideia de liberdade. O próprio Camus irá efetuar

uma correspondência entre tal sensação, que faz parte do absurdo, e a nausée de Sartre,

referindo-se implicitamente a ele como “un auteur de nos jours”16 (CAMUS, 1942, p. 31).

O pensador franco-argelino, no prólogo de Le Mythe de Sisyphe, antecipa o seu

método de investigação do sentimento do absurdo, esclarecendo que

“[...] on trouvera seulement ici la description, à l’état pur, d’un mal de l’esprit.

Aucune métaphysique, aucune croyance, n’y sont mêlées, pour le moment. Ce sont

les limites et le seul parti pris de ce livre.”17 (CAMUS, 1942, p. 16).

Nessa investigação, ele o faz sem querer fugir desse sentimento por explicações

metafísicas (as mauvaises raisons), as quais possam recriar um mundo próximo (o familier)

que dissipa o absurdo. Tomando diretamente as palavras do autor franco-argelino, ele

esclarecerá: “[...] un monde qu’on peut expliquer même avec de mauvaises raisons est un

14 “O homem sua vida, o ator e seu cenário” tradução nossa. 15 Secretamente o desumano. Tradução nossa. 16 Um autor dos nossos dias. Tradução nossa. 17 “encontraremos aqui apenas a descrição, em estado puro, de uma doença da mente. Nenhuma metafísica,

nenhuma crença, está misturada, no momento. Estes são os limites e o único viés deste livro” (CAMUS, 1942,

p.16, tradução nossa).

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monde familier [...]”18 (CAMUS, 1942, p. 20). Em outras palavras, a noção do absurdo é um

método do qual é revelada a condição do homem no mundo, e que rejeita, sobretudo, os

argumentos que não se sustentam através da razão, ou seja, os argumentos metafísicos.

Seu caráter é o da oposição, de dilaceramento e divórcio entre homem e mundo

(CAMUS, 1942, p. 56), sem a possibilidade de reconciliação, pois a razão, único instrumento

de investigação da relação, é vã, incapaz de suprimir o espaço entre aqueles. Camus, ao longo

de sua obra, deixa claro que seu método de pensamento sobre o estudo da relação do mundo-

homem é fundado na aceitação do absurdo apreendido nesse afrontamento, não vendo outra

saída para além desse embate. Entretanto, ele desenvolve um estudo, anos após Le Mythe de

Sisyphe, fundado em outra relação entre homem-mundo, que abranda o sentimento do

absurdo. Trata-se de L’homme révolté (CAMUS, 1951), que efetua uma transformação

positiva dessa relação, expressa na revolta da condição absurda.

A tomada de consciência do absurdo, apreendida no discurso racional, ainda tem seu

pertencimento à modernidade, mesmo que em seus últimos instantes. Contudo, essa

consciência será substituída, em Ionesco, pela inconsciência da condição absurda de muitas de

suas personagens. Podemos afirmar que estas são, acima de tudo, trágico-cômicas – trágicas

por habitarem em um mundo estranho, separado delas próprias, e cômicas pela inconsciência

de sua condição – expressa no automatismo insuperável das personagens. A exceção a essa

inconsciência nos é dada na lucidez única da personagem Béranger, de Rhinocéros – um eco

da voz de Ionesco. Este confessa “C’est moi, Béranger”19 (IONESCO, 1977b, p. 95).

A maior parte das personagens habita um mundo esvaziado de toda expressão,

conteúdo, ancorando-se sobre os escombros de palavras, em seu automatismo (clichês) e de

comportamentos. Tal automatismo é outro recurso empregado por Ionesco para o efeito

cômico; uma espécie de “[...] distraction de la vie. Le comique est ce côté de la personne par

lequel elle ressemble à une chose [...]”20 (BERGSON, 1948, p.88), que irá expressar, em

última análise, o não ser.

O autor estabelece uma comparação entre a sua segunda vertente do insólito, a

negativa, e a noção de absurdo de Camus, vislumbrando como critério diferencial a

desdramatização:

En fait, ce qu’il ne faut pas dans mes pièces, c’est lacher l’insolite au profit du

pathétique. Il faut éviter le pathétique; la dérision, l’ironie doivent l’emporter. Même

18 “[...] um mundo que pode ser explicado mesmo com más razões é um mundo familiar [...]” (CAMUS, 1942,

p. 20, tradução nossa). 19 “Eu sou, Béranger”19 (IONESCO, 1977b, p. 95, tradução nossa). 20 "[...] distração da vida. O cômico é aquele lado da pessoa pelo qual ela se parece com algo [...] "(BERGSON,

1948, p. 88, tradução nossa).

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si on a une conscience, une vision apocalyptique de l’histoire il y a aussi, derrière,

cette idée que le monde n’est qu’une farce. Il faut dédramatiser. C’est ce qui

distingue Macbeth de La Peste, de Camus. Camus n’avait pas d’humour.

(IONESCO, 1977b, p.163)21.

A essa altura, fazemos uma ponderação sobre as diferenças entre o absurdo camusiano

e o Teatro do Absurdo que não estão localizadas somente nas formas com as quais um e outro

exprimem o sentimento de absurdo, como afirma Esslin. Observamos que as distinções

atingem não somente um discurso racional sobre o absurdo, como aquele de Camus, e sua

expressão artística no Teatro do Absurdo. Em Ionesco, o mundo absurdo e a lucidez

camusianos são transformados em sua falta de consciência, em uma ausência do ser, deste ser

em sua tentativa de elucidação da própria condição absurda.

As noções de essência-existência sartrianas, como podemos observar, são levadas ao

extremo, implodindo-as e sendo substituídas pela noção do não-ser. É exatamente

acompanhado pela ausência do ser que esse autor do Teatro do absurdo constrói sua obra,

escolhendo para a sua expressão a via tragicômica. O drama camusiano da condição absurda e

a noção da essência sartriana são apagados, ou desdramatizados, para retomar o termo de

Ionesco, restando tão somente o riso – o riso apesar de tudo – porém, um riso sarcástico

provocado pela descrença:

Peut-on, on ne peut certainement pas, doit-on essayer d’arriver à quelque chose?

Finalement, je ne le pense plus vraiment. Il reste à dire où l’on en est [...]. Des états

présents, suivis d’autres états présents sans aboutissement autre, ou sans esperance

d’aboutissement autre que le rire. Le rire malgré tout. Ou le rire naturel, le rire

jaillissant naturellement. Le rire des morts en sursis. Le rire de la foi. Le rire de

l’incroyance. Mais oui, c’est à cela que je veux aboutir. Je n’arrive qu’à des rires

grinçants. (IONESCO, 1985, p.19).22

Mas que riso é esse? Como esse olhar para o riso irá influenciar as obras de Ionesco é

o que trabalharemos nas próximas páginas, de maneira a apresentar mais um elemento que se

propõe iluminar o texto de Ionesco, La Cantatrice chauve.

21 De fato, o que não é necessário em minhas peças é abandonar o incomum em favor do patético. Devemos

evitar o pathos; o escárnio e a ironia devem prevalecer. Mesmo que tenhamos uma consciência, uma visão

apocalíptica da história, há também, por trás dessa ideia de que o mundo é apenas uma piada. Nós devemos jogar

desdramatizar. Isso é o que distingue Macbeth da Peste, de Camus. Camus não tinha senso de humor.

(IONESCO, 1977b, p. 163, tradução nossa). 22 Podemos, certamente não podemos, devemos tentar pensar em alguma coisa? Finalmente, eu realmente não

penso mais nisso. Resta dizer onde estamos [...]. Estados presentes, seguidos por outros estados presentes sem

qualquer outro resultado, ou esperança de resultado que não seja o riso. Riso apesar de tudo. Ou riso natural, riso

que salta naturalmente. A risada dos mortos em suspenso. O riso da fé. O riso da incredulidade. Mas sim, é isso

que quero alcançar. Eu só tenho risadas barulhentas. (IONESCO, 1985, p. 19, tradução nossa).

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2.1 O riso e o trágico nas obras de Ionesco: a tragédia da linguagem

Sobre o cômico como via de expressão da condição absurda e trágica, Ionesco

confessa: “[...] plus désespérant que le tragique, le comique n’offre pas d’issue. Je

dis:”désespérant”, mais, en réalité, il est au-delà ou en deçà du désespoir ou de l’espoir.”23

(IONESCO, 1966, p. 61). O desespero e a luta vã, expressos no riso acabam, por fim,

transformando-se na denúncia e superação da trágica condição humana:

C’est aussi une dénonciation de l’absurdité, un dépassement du drame. L’humour

suppose une conscience lucide. Il suppose un dédoublement, une conscience lucide

de la vanité de ses propres passions. On continue alors de vivre ses passions tout en

sachant qu’elles sont absurdes, ou stupides même si on ne peut très bien lutter

contre. (IONESCO, 1977b, p. 140).24

Ionesco vai se aproveitar das discussões do riso para tentar ir além daquelas teorias

modernas as quais se fundamentavam no existencialismo, que havia levado nosso autor ao

extremo da condição humana, mas ele já não queria mais estar lá. Comecemos analisando a

função do riso.

Para ele, em sua escritura dramática, o riso desempenha um papel duplo.

Primeiramente, o de disfarçar a tragédia, no sentido do elemento trágico, sofrido pelos

personagens por meio dos automatismos, da falta de finalidade de suas ações, além das

diferenças entre ideia (e seu discurso) e realidade. Posteriormente, o riso desempenha o papel

do desencadeamento dessa tragédia, a partir da percepção do leitor-expectador, ou seja,

quando a obra passa do estado de fruição e provoca o leitor de maneira que ele se sinta um

agente capaz de captar sua sensibilidade e transfigurar.

Nesse momento, ele nos apresenta a distinção entre o absurdo camusiano e o de

Ionesco, uma vez que o primeiro está desenvolvido na consciência lúcida da condição absurda

do homem, e o segundo mascara-a na inconsciência das personagens. É somente no contato

com a obra que o indivíduo despertará essa lucidez na recepção do texto dramático e na sua

encenação.

23 "[...] mais desesperado que o trágico, o cômico não oferece uma saída. Eu digo "desesperado", mas na

realidade está além ou além do desespero ou da esperança "(IONESCO, 2014, p. 61, tradução nossa). 24 É também uma denúncia do absurdo, uma superação do drama. Humor supõe consciência lúcida. Ele supõe

uma duplicação, uma consciência limpa da vaidade de suas próprias paixões. Continuamos a viver nossas

paixões, sabendo que elas são absurdas, ou estúpidas, mesmo que não possamos lutar muito bem. (IONESCO,

1977b, p. 140, tradução nossa)

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Essas diferenças e semelhanças que apontamos constituem uma passagem pelo

existencialismo por Ionesco, que denuncia esse mundo sistemático de pensamentos forjados

para explicar sua frustração por sua insuficiência:

Certes, nous en connaissons des explications! On nous en a donné beaucoup et nous

disposons de toutes sortes de systèmes de pensée [...] tous les systèmes de pensée,

toutesles explications paraissent insuffisantes”. 25 (IONESCO, 1977b, p. 133)

Anunciando uma ruptura filosófica e artística, Ionesco ignora o sujeito em sua

capacidade de formular explicações que deem conta do absurdo do mundo (sem a priori, sem

finalidade) sem a presença: “J’ai l’impression qu’il n’y a de raison à rien et que seule nous

pousse une force incompréhensible. Il n’y a de raison à rien. Tout est contestable à l’intérieur

de soi-même.”. 26 (IONESCO, 1966, p. 23)

E, nesse contexto de valorização do objeto artístico para a formação do homem,

Ionesco nos apresenta seus recursos estéticos, como a farsa trágica, que é como ele define sua

escritura dramática, ou seja, é um conjunto de pensamentos sensíveis que antecipa um

movimento filosófico e literário, constituindo uma paródia moderna. Traduz-se, pois, a

expressão de uma modernidade desiludida com os “a priori” e com a procura racional de

explicação para sua própria condição absurda no mundo.

Dessa maneira, seu teatro para transpor e transfigurar seria uma expressão dessa

impotência, “[...] impuissance humaine, cette inutilité de nos efforts peut aussi en un sens,

paraître comique”. 27 (IONESCO, 1966, p. 61) Estabelecendo uma comparação entre a

filosofia de Camus e a do Teatro do absurdo, com relação à noção de razão forjada na

modernidade, poderíamos apontar a primeira em sua angústia e revolta diante de uma razão

vã para o conhecimento do mundo (CAMUS, 1942), denunciado por Camus por ser o

pensamento inerentemente antropológico, pelo fato de o homem colocar-se no objeto a ser

conhecido.

Com relação ao que designaremos sob a etiqueta contundente de modernidade, em tal

observamos a diluição do sentimento de absurdo, restando constatar e analisar outra condição,

a condição moderna, na crítica à onipotência da razão da modernidade. Ionesco, avizinhando-

se das teorias da modernidade na desconstrução do conceito da razão iluminista, irá afirmar:

25 “Claro, sabemos algumas explicações! Nós recebemos muitos deles, e temos todos os tipos de sistemas de

pensamento ... todos os sistemas de pensamento, todas as explicações parecem insuficientes” (IONESCO,

1977b, p.133, tradução nossa). 26 “Tenho a impressão de que não há razão para nada e que só nós forçamos uma força incompreensível. Não há

razão para nada. Tudo é questionável dentro de si mesmo” (IONESCO, 2014, p. 23, tradução nossa). 27 "[...] o desamparo humano, essa inutilidade de nossos esforços também pode parecer, de certo modo, cômica"

(IONESCO, 2014: 61, tradução nossa).

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“[...] il n’y a de raison à rien. Tout est contestable à l’intérieur de soi-même.” (IONESCO,

1966, p.23).28

Essa relação que as obras e o autor entretêm com o modernismo é complexa, pois o

primeiro se apropria dos textos do modernismo em uma continuidade que estabelece seu

pertencimento. Essa continuidade ora leva ao extremo, ora efetua derivações do texto do

modernismo, inaugurando uma tentativa de romper com esses preceitos, em sua vontade de

tomar uma via diferente da anterior. Ionesco, assim, procede em um contexto de desilusão

quanto à modernidade – essa déchéance mondaine de l’esprit – parodiando-a:

Si j’ai montré les hommes dérisoires, risibles, ce ne fut nullement par souci de

comédie. Mais, comme on ne peut guère en ces moments de déchéance mondaine de

l’esprit, proclamer la vérité, on peut toujours au moins, montrer ce que l’homme

devient ou peut devenir quand il est coupé de toute transcendance...Telle fut ma

démarche, j’ai essayé de mettre en évidence ce néant qui est l’absence de foi,

l’absence de vie spirituelle. Si je fus donc parfois comique, c’est par souci de

pédagogie: le comique n’est que la deuxième face de la tragédie... 29 (IONESCO,

1991, XCV).

Uma questão pertencente à literatura e à filosofia do existencialismo concerne à

concepção da linguagem, que encontraremos em nossa retomada ao texto La Cantatrice

chauve. Para Ionesco, nossa peça se trata de uma verdadeira tragédia da linguagem “tragédie

du langage” (IONESCO, 1966, p. 248). Pois, a obra apresenta expressões fixas, clichés

desgastados que revelam:

[l]es automatismes du langage, du comportement des gens, le ‘parler pour ne rien

dire’, le parler parce qu’il n’y a rien à dire de personnel, l’absence de vie intérieure,

la mécanique du quotidien, l’homme baignant dans son milieu social, ne s’en

distinguant plus. 30 (IONESCO, 1966, p. 249).

A verdade absoluta ou os “axiomes élémentaires” (IONESCO, 1966, p. 245) são

esvaziados e tornados clichés, em um automatismo da linguagem que traduz o falar impessoal

sobre nada, denunciando o apagamento do ser, tão absurdo quanto cômico: “[...] les

personnages comiques, ce sont les gens qui n’existent pas [...]”31 (IONESCO, 1966, p. 249).

28 "(...) não há razão para nada. Tudo é contestável dentro de si mesmo "(IONESCO, 2014, p. 23, tradução

nossa). 29 Sim, eu já mostrei homens irrisórios, risíveis, não era por causa da comédia. Mas, como dificilmente

podemos, nestes momentos de decadência mundana do espírito, proclamar a verdade, podemos sempre pelo

menos mostrar o que o homem se torna ou pode tornar-se quando está separado de toda transcendência... Tal foi

na minha abordagem, tentei destacar esse nada que é a ausência de fé, a ausência de vida espiritual. Então, às

vezes eu era cômico, e por causa da pedagogia: o cômico é apenas a segunda face da tragédia ... (IONESCO,

1991, XCV, tradução nossa). 30 Os automatismos da linguagem, do comportamento das pessoas, do "falar para não falar nada", da conversa,

porque não há nada a dizer sobre o pessoal, a ausência de vida interior, a mecânica da vida cotidiana, o homem

banhado em seu ambiente social, não se distingue mais. (IONESCO, 2014, p. 249, tradução nossa). 31 "[...] personagens cômicos são pessoas que não existem [...]" (IONESCO, 2014: 249, tradução nossa).

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Como já apresentamos anteriormente, essa obra é construída a partir de diálogos de

um livro didático de inglês para estrangeiros, o Assimil. Ionesco transcreve em sua obra

muitos dos seus diálogos, fundados sobre axiomas elementares: a personagem que informa ao

seu marido o seu nome, o número de filhos que eles têm, onde eles moram, apresenta pela

primeira vez a empregada e um casal de amigos conhecidos! Tudo isso como se ela não

soubesse nada, como se houvesse um esquecimento – ou uma inconsciência, ou uma extrema

distração dos axiomas elementares (IONESCO, 1966).

Ao transcrever esses axiomas, eles começam a ser minados no seu próprio interior,

desarticulando a linguagem e retirando a sua função de representação do mundo. O absurdo aí

se instala pelo esvaziamento da comunicação e ausência de interação entre as personagens,

pela falta do ser. A consciência trágica dessa condição das personagens, sob o ponto de vista

comparativo entre o absurdo de Camus e o de Ionesco, será restituída pela sua tomada de

consciência no riso do leitor-expectador.

Serão estes que apreenderão a natureza absurda da comunicação, em um riso trágico.

Ionesco parece construir uma literatura filosófica – em referência ao estudo comparativo entre

literatura e filosofia de Macherey (1990) –antecipando uma discussão que somente anos mais

tarde viria à tona nas teorias da pós-modernidade, mas que não é nosso objetivo nesta

dissertação. O que será fundamental, em Eugène Ionesco, é que iremos observar como o tema

existencialista de explicação do mundo está ligado a uma espécie de transformação paródica

sobre a racionalidade que tudo quer abraçar.

E, nesses termos, a constatação do vazio é apresentada por meio do sentimento de

absurdo que preenche o ser. O riso explode na tomada de consciência, pelo leitor-expectador,

no sentimento de uma “décalage” (retomando o termo de Ionesco) entre a linguagem, entre os

sistemas filosóficos-políticos e entre os comportamentos. E estes, por fim, se esvaziam em

virtude da descrença de sua capacidade de fundamentar uma explicação do mundo e ele

mesmo.

Diante da impotência da razão e da linguagem, nada resta a nós leitores senão o riso

que a constata e que a ela reage. Analisado sob esta perspectiva o absurdo de Ionesco, é

possível localizarmos sua obra em continuidade e ruptura com o existencialismo – ruptura

cujos passos ainda não compreendemos para onde caminham em termos de corrente teórica,

mas que emancipam o leitor do texto teatral, à medida que proporciona, por meio do contato

com o objeto artístico, a reflexão de seu mudo e de si, o que se distancia completamente das

correntes que abarcaram o autor e que já foram apresentadas neste trabalho.

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E como todas essas discussões culminaram no conceito do Teatro do Absurdo,

cunhado por Esslin? Primeiramente, é evidente que o final de uma guerra é marcado por um

processo de ruptura, mas e o período que segue? É um marco zero? Não há relação alguma

com o período anterior? Bem, o Teatro do Absurdo vai nos mostrar que um estudo diacrônico

representa melhor essas construções. Começaremos a dissertar sobre essa problemática pela

análise da nomenclatura dada a esse movimento, o Teatro do Absurdo. Tomemos a declaração

de Martin Esslin (1968) sobre o conceito criado por ele e suas ligações com autores como

Ionesco, Beckett, Adamov, entre outros:

É importante assinalar, entretanto, que os dramaturgos em questão não fazem parte

de um movimento definido e proclamado por eles próprios. Ao contrário, cada um

destes escritores se considera um marginal solitário em relação à literatura, isolado

dentro do seu próprio mundo. Cada um tem seu ponto de vista pessoal sobre o

problema de matéria e forma. Cada um tem suas próprias raízes, suas fontes e seu

contexto. Se sua obra claramente nos revela pontos em comum, apesar deste

trabalho isolado, é porque retratam e refletem as preocupações e ansiedades, as

emoções e os pensamentos de muitos seus contemporâneos no mundo ocidental. (ESSLIN, 1968, p. 21).

Parece-nos que os próprios autores rejeitaram serem nomeados. É inegável a

importância pedagógica da nomenclatura, uma vez que de maneira geral ela vai concentrar as

discussões aqui já apresentadas em um único fator, mas, é importante que compreendamos

que não se trata de encaixotar tudo em parâmetro, pensando na impossibilidade/dificuldade de

comportar as construções epistêmicas que ocorre nas ciências humanas. Pois, se olharmos

apenas em uma configuração rígida e fechada no tempo, não conseguiremos abranger de

maneira mais ampla os lugares de que falam esses autores, seus contextos de criação, e,

principalmente, o impacto de suas obras.

Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em

vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em

vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a

desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (SANTOS, 1988, p.

56).

Boaventura de Sousa Santos é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade

de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Sua

importância nesta discussão está ligada à necessidade de repensarmos os paradigmas sociais

que nos são impostos, lembrando que mesmo nos apresentando essa reflexão, não devemos

fazer uma interpretação rasa e sem questionamentos do referencial teórico.

Na citação acima, ele refere-se a uma ruptura dos processos paradigmáticos da ciência

moderna, e com isso nos apresenta uma crise na teoria clássica e nos faz um convite à

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reflexão. A partir disso, de que maneira nos posicionaremos? Em um processo de

desconstrução, devemos tentar provocar novos aportes teóricos, e quais serão? Sabemos

apenas que em vez da ordem já estabelecida, estaremos expostos à desordem.

Como coloca Sarrazac (2017), a partir de agora, é com a desordem que se deve contar;

é a desordem, aquilo que mina as regras sacrossantas e todo o espírito de unidade, que precisa

entrar em cena. Essa desordem colocada por Sarrazac já foi identificada e vivenciada pelos

autores do absurdo. Esses referenciais são importantes para entender o motivo de Esslin

conectar Ionesco ao Teatro do absurdo, mas, também, importantes para a questionarmos e

para que possamos compreender como todas essas facetas de nosso dramaturgo se coadunam

na La Cantatrice chauve que farão parte de nossas análises dentro e fora da sala.

Com isso, faço aqui um convite à compreensão deste movimento a partir das suas

próprias obras, e, principalmente, através da obra que é objeto desta dissertação. Falemos um

pouco sobre Ionesco. Primeiro, ele não era francês, era romeno. Isso, nascido na Romênia, um

país cuja língua oficial é romena, que Ionesco só aprendeu aos treze anos, pois passou a maior

parte da infância na França, mas foi na Romênia que ele entrou na universidade de Bucareste

e se tornou professor.

E, apesar de não trabalhar com teatro, acabou escrevendo uma peça a partir de suas

experiências como estudante de inglês. Segundo ele:

En 1948, avant d’écrire ma première pièce : La Cantatrice Chauve, je ne voulais

pas devenir un auteur dramatique, J’avais tout simplement l’ambition de connaître

l’anglais. L’apprentissage de l’anglais ne mène pas nécessairement à la

dramaturgie. Au contraire, c’est parce que je n’ai pas réussi à apprendre l’anglais

que je suis devenu écrivain de théâtre. 32 (IONESCO, 1966, p. 243)

Na sua época, o método de aprendizagem, o famoso manual, utilizado era o Assimil, e

o próprio Ionesco escreveu o que ocorreu:

Comecei a trabalhar. Copiava conscienciosamente frases inteiras do meu manual

com o objetivo de decorá-las. Ao relê-las atentamente, o que aprendi não foi inglês,

mas algumas verdades surpreendentes: que, por exemplo, há sete dias na semana,

coisa que eu já sabia; que o chão é em baixo, o teto no alto, coisas que eu também já

sabia, porém às quais eu nunca havia dedicado séria consideração, ou talvez das

quais eu nunca havia esquecido, e que me pareciam, repentinamente, tão

esclarecedoras quanto indiscutivelmente verdadeiras. (Apud. ESSLIN, 1968, p. 122-

123)

32 Em 1948, antes de escrever minha primeira peça, La Cantatrice chauve, eu não queria me tornar um

dramaturgo, só queria saber inglês. Aprender inglês não leva necessariamente à dramaturgia. Pelo contrário, é

porque não consegui aprender inglês que me tornei um escritor de teatro. (IONESCO, 2014, p. 243, tradução

nossa).

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Com o desenvolvimento de seus estudos, dois personagens apareceram Mr. e Mrs.

Smith:

Para grande surpresa minha, Mrs. Smith informou ao marido que eles tinham vários

filhos, que moravam nas redondezas de Londres, que o sobrenome deles era Smith,

que Mr. Smith era empregado em um escritório, e que tinham uma empregada,

Mary, que, como eles mesmos, era inglesa... E eu gostaria de salientar a natureza

irretorquível, perfeitamente axiomática, das declarações de Mrs. Smith, bem como a

maneira integralmente cartesiana do autor de meu primeiro livro de inglês; pois o

que havia de notável nele era a rotina eminentemente metódica de sua busca da

verdade. Na quinta lição chegam os Martin, amigos dos Smith; os quatros começam

a conversas e partindo de axiomas básicos elaboram verdades mais complexas: “O

campo hoje está mais quieto do que a grande cidade...” (Apud. ESSLIN, 1968, p.

123)

Assim nasce A Cantora careca, que já foi L’Anglais sans peine, e já foi também,

L’heure anglaise.

Et pour quoi cette oeuvre s’appelle-t-elle La Cantatrice Chauve et non pas

L’Anglais sans peine, comme je pensai d’abord l’intituler, ni L’Heure anglaise,

comme je voulus, un moment, le faire par la suite ? C’est trop long à dire : une des

raisons pour lesquelles La Cantatrice chauve fut ainsi intitulée c’est qu’aucune

cantatrice, chauve ou chevelue, n’y fait sont apparition, Ce détail devrait suffire.

(IONESCO, 1966, p. 246)33

Talvez tenha que dizer que não será o suficiente, porém isso fica para um próximo

capítulo. É importante dizer que esta peça foi sucesso total, desde as suas primeiras

encenações, com o teatro quase sempre vazio. Não durou seis semanas no Théâtre des

Noctambules, por exemplo. Talvez, não fosse o momento. O que sabemos é que sua

importância para o Teatro do Absurdo e para o público só ocorreu alguns anos após a sua

primeira encenação.

O espetáculo que consagrou e internacionalizou da peça foi e é o encenado no Théâtre

de la Huchette (Fotografia 1) em Paris, que mantém a mesma montagem, assinada por

Nicolas Bataille, desde 1957, e é encenada, ininterruptamente, todos os dias com exceção dos

domingos, tornando possível que, 61 anos após a primeira montagem, a peça de Ionesco seja

vivenciada por outros espectadores.

33 E por que esse trabalho chamado La Cantatrice chauve e não o Inglês sem dor, como eu pensei em chamá-lo,

nem A hora inglesa, como eu queria, por um momento, fazê-lo? É demasiado longo para dizer: uma das razões

pelas quais La Cantatrice chauve foi assim chamada é que nenhuma cantora, careca ou peluda aparece, este

detalhe deve ser suficiente. (IONESCO, 2014, p. 246, tradução nossa)

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Fotografia 1 – Entrada do Théâtre de la Huchette

Fonte: Autoria própria (2017).

Dessa forma, tivemos acesso à montagem mais encenada da referida peça e também a

única que tivemos a oportunidade de assistir em um teatro, não por falta de oportunidades,

pois, ainda hoje diversas companhias de teatro a encenam, como é o caso de Os Dramátikos,34

que, no primeiro semestre de 2018, fizeram duas leituras dramáticas da referida peça. Por

isso, é para nós muito importante saber como La Cantatrice chauve chega aos espectadores,

ou seja, de que forma o texto toca aqueles que têm a oportunidade de assisti-la.

Ademais, existem diversas críticas à peça, mas que não foram objeto direto dessa

pesquisa, por questões metodológicas. Voltemos às dificuldades encontradas pela peça em sua

estreia. Na nossa concepção, não se tratou de fracasso, pois, provavelmente, este seria o seu

maior impacto, não causar, a princípio, impacto nenhum. Mas, foi a partir dela que Ionesco se

viu realizado enquanto dramaturgo.

Para Ionesco esse primeiro encontro com o teatro vivo tornou-se um marco decisivo;

não só ficava espantado que o público risse diante daquilo que ele considerava um

espetáculo trágico da vida humana, reduzida a um automatismo sem paixão por

intermédio das convenções burguesas e da fossilização da linguagem, ficava

também profundamente comovido ao ver tomarem vida as criaturas de sua

imaginação. (ESSLIN, 1968, p. 126)

Apesar de todo o desconforto, percebe-se que, para Ionesco, aquele era o teatro no

qual acreditava. Tudo aquilo que o perturbava em outros dramaturgos, como Brecht era

superado no momento em que ele compreende que a essência do teatro está na ampliação dos

efeitos e, assim, seu teatro era justamente aquilo que ele reivindicava.

Si donc la valeur du théâtre était dans le grossissement des effets, il fallait les

grossir davantage encore, les souligner, les accentuer au maximum. Pousser le

34 Os Dramátikos é uma companhia de teatro que promove leituras dramáticas, no Teatro Goldoni em Brasília.

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théâtre au-delà de cette zone intermédiaire qui n’est ni théâtre, ni littérature, c’est

le restituer à son cadre propre, à ses limites naturelles. Il fallait non pas cacher les

ficelles, mais les rendre plus visibles encore, délibérément évidentes, aller à fond

dans le grotesque, la caricature (...) Humour, oui, mais avec les moyens du

burlesque. Un comique dur, sans finesse, excessif. Pas de comédies dramatiques,

non plus. Mais revenir à l’insoutenable. Pousser tout au paroxysme, là ou sont les

sources du tragique. Faire un théâtre de violence: violence comique, violemment

dramatique. (IONESCO, 2014, p. 22)35

No meio desta inquietação sobre existência e essência, sartriano, do absurdo de Camus

e dessa pequena reflexão sobre La Cantatrice chauve, entendemos que quando Ionesco

começa a escrever suas peças, além de nos apresentar suas angústias face aos problemas dos

indivíduos retratados por meio de seus personagens, ele nos coloca diante de um forte e

pulsante processo de reconstrução do drama.

Se retomarmos, por exemplo, a tríade palco, público e ator a partir de Ionesco,

veremos algumas modificações. Começaremos pelo palco, de um modo geral, o espaço cênico

não perderá sua configuração; diferentemente de outros autores, como Brecht, por exemplo,

Ionesco não ultrapassa as barreiras do palco.

Com isso, quero dizer que há um distanciamento físico bem determinado no que se

refere ao espaço do ator e do espectador. Na verdade, acredito que provavelmente isso

simplesmente não importava aos autores do absurdo. A maior preocupação era com a

linguagem e era mediante ela que o palco e os espectadores se conectariam. Portanto, através

do texto. Mais uma vez em Notes et Contre-Notes, Ionesco fala um pouco sobre esse

fenômeno, que foi sendo construído no momento em que ele passou a escrever a peça:

Um phénomène bizarre se passa, je ne sais comment : le texte se transforma sous

mes yeux, insensiblement, contre ma volonté. Les propositions toutes simples et

lumineuses, que j’avais inscrites avec application sur mon cahier d’écolier, laissées

là, se décantèrent au bout d’un certain temps, bougèrent toutes seules, se

corrompirent, se dénaturèrent. (IONESCO, 1966, p. 246).36

O objetivo era para além de proceder a uma crítica à realidade exterior ao próprio

teatro, mas propor um mecanismo de auto reflexividade, já que, como dissemos

35 Se, portanto, o valor do teatro estava na ampliação dos efeitos, era necessário ampliá-los ainda mais, para

enfatizá-los, para acentuá-los ao máximo. Levar o teatro para além dessa zona intermediária, que não é teatro

nem literatura, é restaurá-lo ao seu próprio ambiente, aos seus limites naturais. Era necessário não esconder as

cordas, mas torná-las ainda mais visíveis, deliberadamente óbvias, para ir ao fundo no grotesco, na caricatura

(...) Humor, sim, mas com os meios burlescos. Um cômico duro, sem delicadeza, excessivo. Nenhuma comédia

dramática também. Mas volte para o insuportável. Empurre tudo ao limite, onde estão as fontes do trágico. Fazer

um teatro de violência: violência cômica, violentamente dramática. (IONESCO, 2014, p. 22, tradução nossa) 36 Um fenômeno bizarro aconteceu, eu não sei como: o texto foi transformado sob meus olhos, insensivelmente,

contra a minha vontade. As proposições simples e luminosas, que eu havia inscrito com aplicação em meu

caderno escolar, saíam de lá, instaladas depois de um certo tempo, movidas por si mesmas, corrompidas e

desnaturadas. (IONESCO, 2014, p. 246, tradução nossa).

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anteriormente, as propostas teatrais anteriores e contemporâneas ao conflito mundial (o teatro

da linha Brechtiana e o teatro Naturalista) faziam parte dessa ordem, e como elas já não

comportavam o dinamismo das relações sociais e mereciam ser reavaliadas, o Teatro do

Absurdo surgia como uma nova via, uma nova possibilidade.

Este processo de compreensão entre realidade, linguagem e teatro da voz é uma faceta

muito importante deste teatro – o metateatro. No sentido de ir além daquilo que já existia, por

isso, trata-se de uma proposta de teatro que parte de uma vertente niilista, ou seja, uma

negação e recusa da política, da história, da religião e da sociedade como princípios

unificadores.

É, portanto, um teatro que tenta também refletir o caos universal, o labirinto

existencial que cerca o homem, a desintegração da linguagem como decodificador do mundo

e como meio de expressar verdades. O caos e condição existencial são muitas vezes expressos

por uma ausência de espaço e tempo determinados e lineares, por uma desintegração e muitas

vezes ausência de intriga, que leva claramente a uma inércia das personagens, frequentemente

marionetes vazias, desprovidas de sentido.

Uma peça que espelha bem as ideias anteriores é À Espera de Godot, de Samuel

Beckett, durante a qual dois vagabundos-palhaços presentes num não-lugar, num qualquer

tempo, procuram um sentido para a sua existência. Estes estão presos num labirinto circular,

que os coloca sempre num mesmo posto, à espera…

A fragmentação linguística é muitas vezes abordada, na peça em questão, pelo mínimo

uso da linguagem verbal. Nesse caso, prefere-se o gesto, a luz, o som e os símbolos cênicos,

que irão oferecer ao público uma interpretação mais próxima do dito “real”, diferentemente de

um jogo de palavras que era afinal vazio e artificial. Outra forma de abordar esta temática é

através de uma falta de concordância entre o gesto e a palavra, como forma de denunciar crua

e claramente a forma ilícita e pouco verdadeira com que as palavras são proferidas na nossa

sociedade.

Na peça As Cadeiras, de Ionesco, por exemplo, são dispostas cadeiras no palco como

sendo um público invisível, reunido para escutar uma mensagem que será transmitida a

qualquer momento. Contudo, o orador é afinal surdo-mudo. O que fica? O vazio linguístico.

O vazio existencial. Outra vertente deste teatro poderá também ser a sua face irônica e

satírica, tentando, por meio da formulação da intriga, refletir o mundo de um modo muitas

vezes cru e até violento, cruel e grotesco.

Em tais exemplos, vemos que o Teatro do Absurdo tentou, em última análise, quebrar

todos os limites entre o que é teatro, o que é realidade, e como estas realidades se confundem,

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contaminam e refletem mutuamente. Numa tentativa de chegar ao essencial e de ampliar

todos os limites do próprio conceito de teatro, tivemos os dois exemplos de peças, que

desafiam o próprio conceito de peça e de teatro, assim como La Cantatrice chauve.

2.2 A dérision: caminhos possíveis para o trabalho com a literatura e a educação

Neste tópico, delinearemos o conceito de dérision a partir da obra de Ionesco. Essa

escolha se deve à necessidade de demonstrar que. ao trabalharmos com o texto literário, os

conceitos e o trabalho de análise devem ter por base o objeto, a peça. Para tanto, nosso

desenvolvimento partirá do conceito, por meio de uma reflexão sobre o lugar da Cantatrice

chauve, ou seja, da construção do jogo teatral de Ionesco, passando pelo desenvolvimento de

uma linha que se distancia do teatro moderno, para tomar o fôlego necessário para nos

apresentar o processo de construção da peça.

Algumas das grandes dificuldades em analisar essa peça é a falta de intrigas ou mesmo

de uma linearidade em sua história. Por vezes, não compreendemos o que os personagens

dizem, nem a relação de suas falas com o contexto das réplicas. No entanto, fica evidente a

falta de compromisso do autor de estabelecer uma relação mimética de representação de

determinada realidade.

O que vemos em sua peça é que os personagens se colocam como marionetes que não

se preocupam em estabelecer uma interação entre os indivíduos que eles nos apresentam, mas

uma relação mecânica. A tragédia da linguagem, aqui já apresentada, torna-se a cada

momento mais evidente, por meio de uma linguagem que não tem como objetivo o de

comunicar. Um exemplo é o que ocorre na última cena em que palavras, letras, sons são

proferidas aleatoriamente.

SR. SMITH: A, e, i, o, u, a, e, i, o, u, a, e, i, o, u, i !

SRA. MARTIN: B, c, d, f, g, h, l, m, n, p, q, r, s, t, v, w, x, z !

SR. MARTIN: De l’ail à l’eau, du lait à ail !

SRA. SMITH (imitant le train): Teuff, teuff, teuff, teuff, teuff, teuff, teuff,

teuff, teuff, teuff, teuff, teuff !

SR. SMITH: C’est !

SRA. MARTIN: Pas !

SR. MARTIN: Par !

SRA. SMITH: Là !

SR. SMITH: C’est !

SRA. MARTIN: Par !

SR. MARTIN: I !

SRA. SMITH: Ci !37 (IONESCO, 1954, p. 99-100)

37 SR. SMITH: A, e, i, o, u, a, e, i, o, u, a, e, i, o, u, i!

SRA. MARTIN: B, c, d, f, g, h, l, m, n, p, q, r, s, t, v, w, x, z!

SR. MARTIN: Do alho ao óleo, do óleo ao alho!

SRA. SMITH (imitando um trem): Tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu,

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Se, por um lado, esses diálogos se mostram insuficientes para uma compreensão, ou

seja, para que possamos afirmar a existência de comunicação real entre as personagens, por

outro lado, a própria alternância das frases, obedecendo a um ritmo determinado pelo jogo

cênico, nos demonstra que esse é o comprometimento de Ionesco, dizer sem dizer nada.

Temos aqui um cenário profícuo para o trabalho com a educação, uma vez que a ação,

também, aparece transfigurada, pois, como já dito, não há uma história a ser contada, mas sim

fragmentos, o importante é que esses fragmentos ou lacunas acabem por dar ritmo à peça na

medida em que colaboram para a criação da expectativa de que algo aconteça.

É o que verificamos todas as vezes que a peça foi lida em sala de aula, os alunos, estão

sempre à espera. Seja da cantora careca, seja de uma palavra que dê sentido à história que eles

criam. E todas essas reflexões saem, também, da experiência estética e artística que o texto os

proporciona, incontáveis risos. Ao revelar os automatismos da linguagem, revelados pelo

manual inglês, Ionesco mostra a falência da ilusão comunicativa, de modo que as falas das

personagens vão se tornando cada vez mais significantes, sem significado. Até chegar ao que

foi apresentado na citação anterior, unidades sonoras mínimas, fazendo com que o tom

cômico dê lugar à seriedade diante não mais de situações patéticas, mas a presença da

constatação da falta de sentido mais profundo nas relações entre os indivíduos.

Em meio a essas relações temos uma preocupação citada diversas vezes por Ionesco,

principalmente nas relações que passam pelo cômico, como no trecho a seguir:

Il n’y a pas toujours de quoi être fier: le comique d’un auteur est, très souvent,

l’expression d’une certaine confusion. On exploite son propre non-sens, cela fait

rire. Cela fait aussi dire à beaucoup de critique dramatiques que ce qu’on écrit est

très inteligente. [...] Si je comprenais tout, bien sûr, je ne serais pas « comique ».38

(IONESCO, 1966, p. 252)

As ligações que o autor faz com o cômico e a confusão dele diante dos fatos

apresentados nos mostra que, apesar de “isso faz rir”, estamos diante de algumas importantes

reflexões, afinal o que faz rir? Porque faz rir? E como o riso chega a nós apresentando fatos

tchu!

SR. SMITH: Não!

SRA. MARTIN: é!

SR. MARTIN: Por!

SRA. SMITH: Lá!

SR. SMITH: É!

SRA. MARTIN: Por!

SR. MARTIN: A!

SRA. SMITH: Qui! (IONESCO, 2016, p. 99-100) 38 Nem sempre há de que se orgulhar: o cômico de um autor é, muito frequentemente, a expressão de uma certa

confusão. Explora-se sua própria falta de sentido, isso faz rir. Isso também faz muitos críticos dramáticos dizer

que o que se escreve é muito inteligente. […] Se eu compreendesse tudo, certamente, eu não seria “cômico”.

(IONESCO, 2014, p. 252, tradução nossa)

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trágicos? É importante ressaltar aqui que usamos esse termo pensando em sua aplicação

contemporânea.

Para tanto, voltemos à última fala e a última rubrica de La Cantatrice chauve:

C’est pas par là, c’est par ici, c’est pas par là, c’est par ici, c’est pas par là, c’est par

ici, c’est pas par là, c’est par ici, c’est pas par là, c’est par ici, c’est pas par là, c’est

par ici, c’est pas par là !

Les paroles cessent brusquement. De nouveau, lumière. M. Et Mme Martin sont

assis comme les Smith au début de la pièce. La pièce recommence avec les Martin,

qui disent exactement les repliques des Smith dans la première scène, tandis que le

rideau se ferme doucement.39 (IONESCO, 2016, p. 101)

O riso que se depreende da repetição não é mais ingênuo ou apenas irônico, mas

comporta igualmente certa melancolia diante do absurdo da condição humana, da dimensão

trágica da existência que se vê diante da espera que a peça termine, porém ela apenas

recomeça, como se os personagens fossem os mesmos, uma vez que a história já é conhecida,

não há fim.

Nesse momento, as risadas que nos levam a crer que a peça é compreendida pelo

público como comédia dão lugar à perplexidade em que o dramaturgo ressalta o fundo trágico

que a perpassa e lhe confere um valor estético. Sem negar inteiramente o aspecto cômico das

situações apresentadas, Ionesco faz notar que estas constituem o lado aparente de uma

sociedade que, sem ter objetivos nem esperanças, apenas continua a seguir modelos. Essa é a

dérision.

Diante da contínua surpresa que o espetáculo do mundo lhe oferece, Ionesco parece

reagir por meio da exploração do cômico, que (re)vela – ao menos parcialmente – o fundo

trágico da própria condição humana. Nesse sentido, o termo dérision comporta tanto o riso

mais ingênuo quanto aquele advindo do sarcasmo, que permite entrever uma atitude de

descrença, ou mesmo desprezo, em relação à superficialidade do homem como ser social,

fazendo com que a obra de Ionesco demonstre um pessimismo latente, que se manifesta sob a

máscara do riso.

Com isso podemos compreender que o cômico nasce da não compreensão, da

confusão, do questionamento que se vê presente na disputa das palavras, entre as réplicas,

levando-nos à conclusão derrisória de que rimos de nós mesmos. E é a partir desses elementos

que encontramos a importância de se trabalhar com essa peça na atualidade.

39 Não é por lá, é por aqui, não é por lá, é por aqui, não é por lá, é por aqui, não é por lá, é por aqui, não é por lá,

é por aqui, não é por lá, é por aqui, não é por lá, é por aqui! As palavras param abruptamente. Mais uma vez, luz.

O Sr. e a Sra. Martin sentam-se como os Smith no início da sala. A peça recomeça com os Martins, que dizem

exatamente as mesmas réplicas dos Smiths na primeira cena, enquanto a cortina se fecha suavemente.

(IONESCO, 2016, p. 101, tradução nossa)

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Uma vez que compreendemos o papel humanizador da literatura, conforme relata

Candido (2011), todos os dilemas que Ionesco propõem em La Cantatrice chauve se tornam

cenários de possibilidades com o trabalho em sala de aula, como nos explica Rouxel (2004):

É necessário instituir alunos, sujeitos leitores, o que significa renunciar, na sala de

aula, ao conforto de um sentido acadêmico, conveniente, “objetivando”, para engajar

os alunos na aventura interpretativa, com seus riscos, suas instabilidades, suas

contradições, suas surpresas, suas descobertas, mas também seus sucessos. A leitura

literária, assim pensada, se apoia nas experiências de leituras particulares dos alunos

pelos quais o texto toma vida e significação. (ROUXEL, 2004, p. 21)

O trecho nos apresenta a importância de mediar a relação entre os educandos e o texto

literário, além das potencialidades desse trabalho. Nesse contexto, o gênero teatro nos

apresenta outras possibilidades, não só na formação do leitor, mas no respeito por parte do

professor de compreender e lidar com os diversos significados de sua leitura, que se

diferencia de outros gêneros pela oralidade que sua escrita provoca, bem como a criatividade

da recepção. Vejamos o que Rouxel tem a nos dizer sobre a experiência estética provocada

pelo texto:

A experiência estética, que é resposta do sujeito leitor às solicitações da obra lida,

pode igualmente ser apreciada a partir das metamorfoses que o leitor imprime ao

texto, tornando-o seu. Durante a leitura, o leitor se apropria do texto: ele o

reconfigura à sua imagem, completando-o com elementos oriundos de sua história

pessoal e de sua cultura ou, inversamente, deixando-lhe lacunas, apagando tal

aspecto que não atraiu muito sua atenção. (ROUXEL, 2004, p. 23)

A citação nos apresenta a importância dos elementos que colaboram para a

compreensão de que o leitor, seja ele, profissional ou não, cria uma relação de

interdependência com o texto de maneira tão profunda que seu significado só se faz presente

através deste “toque”. Dessa maneira, não há de se esperar outra percepção, ou análise sem o

contato entre o leitor e o texto. E, apesar, da autora não se referir a um gênero específico, o

gênero teatral se coloca fortemente dentro dessa perspectiva.

Uma vez que, como já desenvolvido anteriormente, é no gênero teatral que a interação

se torna imprescindível, a ponto de podermos depreender que ele só existe, enquanto sujeito

de significado, a partir do momento que é lido. Mas, por que retomar essa questão é

importante neste momento? Já que compreendemos a importância da interação entre o leitor e

o texto precisamos nos questionar se essa relação ocorre? É preciso, também, estabelecer a

necessidade de que as discussões em sala de aula partam dos seus objetos, da literatura. Já em

1966, data da primeira publicação de Notes et Contre-Notes, de Ionesco, isso já era um ponto

relevante, como veremos na seguinte citação:

Je dois pourtant avouer qu’il me semble constater qu’une chose assez étrange se

passe de nos jours, - au sujet des œvres littéraires et dramatiques. J’ai bien

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l’impression que la discussion porte rarement sur l’œuvre elle porte surtout à côte.

C’est comme si l’œuvre n’intéressait que dans la mesure où elle est pretexte à

discussion. On demande donc d’abord à un auteur de s’expliquer sur ses pièces de

théâtre, - et ses explications semblent passioner davantage que l’œuvre qui est ce

qu’elle est, qui doit s’expliquer par elle-même.40 (IONESCO, 1966, p. 307)

A obra precisa ser lida. Para que por meio dela possamos ter acesso ao conhecimento

que ela nos apresenta, bem como a suas provocações, portanto, deixemos que a obra fale por

meio de nossas aulas. É a partir dela que todo o trabalho de reflexão mediante o aspecto

humano apresentado por Ionesco deixará de ser matéria para ser partilha. É preciso ler o teatro

para que possamos compreender a dérision, e mais que isso, para que ela ilumine o mundo ao

qual pertencemos. Apesar de diversas críticas ligarem a fragmentação apresentada nas obras

de vanguarda como impossíveis de tocar a realidade, acreditamos que, em um mundo

fragmentado, a forma se serve para captar a sensibilidade do conteúdo.

E, nesse momento, que a arte transfigura, ou seja, ela transforma o impossível “Il est

mort il y a deux ans. Tu te rappelles, on a été à son enterrement, il y a un an et demi”41

(IONESCO, 2014, p. 18), como a possibilidade de alguém ter morrido há 2 anos e seu enterro

ter acontecido há um ano e meio, possível. E dentro desse impossível-possível, o riso provoca

consternação, dúvida, reflexão, inquietação e tantos outros sentimentos. Entre a comicidade e

o trágico, deixemos as dicotomias de lado e vejamos as duas como duas faces da vida, como

Ionesco nos apresenta:

Le comique n’offre pas d’issue. Je dis : « déséspérant », mais, en realité, il est au-

delà ou en deçà du désespoir ou de l’espoir. Pour certains, le tragique peut paraître,

en un sens, réconfortant, car, s’il veut exprimer l’impuissance de l’homme vaincu,

brisé par la fatalité par exemple, le tragique reconnaît, par là même, la realité d’une

fatalité, d’un destin, de lois régissant l’Univers, incompréhensibles parfois, mais

objectives. Et cette impuissance humaine, cette inutilité de nos efforts peut aussi, en

un sens, paraître comique.42 (IONESCO, 2016, p. 61)

Nesse trecho, Ionesco apresenta bem a relação da dérision apresentada anteriormente,

uma relação que não é nem completamente cômica nem completamente trágica, mas que nos

40 Devo admitir, no entanto, me parece que uma coisa bastante estranha está acontecendo hoje em dia - sobre

obras literárias e dramáticas. Tenho a impressão de que a discussão raramente é sobre a obra, que está sobretudo

ao lado. É como se a obra interessasse apenas na medida em que ela fosse pretexto para a discussão. Pedimos,

portanto, a um autor para explicar suas peças, e suas explicações parecem mais apaixonadas do que o trabalho

que é o que é, que deve ser explicado por si mesmo. (IONESCO, 2014, p. 307, tradução nossa) 41 Ele morreu há dois anos. Você se lembra, nós estivemos em seu funeral há um ano e meio atrás (IONESCO,

2014, p. 18, tradução nossa) 42 O cômico não oferece uma saída. Eu digo "desesperado", mas na realidade está além ou abaixo do desespero

ou da esperança. Para alguns, o trágico pode parecer, em certo sentido, reconfortante, porque, se ele quer

expressar o desamparo do homem vencido, quebrado pela fatalidade por exemplo, o trágico reconhece, ao

mesmo tempo, a realidade de uma fatalidade, um destino, leis que governam o universo, incompreensível às

vezes, mas objetivo. E essa impotência humana, essa inutilidade de nossos esforços também pode, em certo

sentido, parecer cômica. (IONESCO, 2014, p. 61, tradução nossa)

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apresenta o tom de comicidade dentro do trágico e vice-versa, por meio dessa impotência

humana de lidar com as mais diversas situações.

Le théâtre est, évidemment, un reflet de l’inquiétude de notre époque. Rien ne peut

l’empêcher d’être aussi l’expression des inquietudes de toujours. On mourail

d’amour il y a cent ans ; on mourait aussi de la peur de mourrir ; comme

aujourd’hui.43 (IONESCO, 2014, p. 182)

É importante compreender que quando Ionesco coloca o teatro como um reflexo da

nossa época, não se trata de algo mecânico, de uma representação objetiva, mas de

apresentação das inquietações em que os indivíduos se encontram. E tomando o objetivo da

arte como o de iluminar por meio de seus elementos estéticos a realidade, nossa proposta

neste capítulo em atravessar o momento históricos das vanguardas, em compreender o Teatro

do Absurdo, e em questionar através da dérision o lugar do cômico e do trágico é o de,

justamente, propor novas reflexões sobre antigos paradigmas por meio do desenvolvimento

desses termos. E, assim, a forma, neste caso o teatro, se serve para captar o conteúdo, como

nos apresenta Bastos na seguinte citação:

O que a obra literária evidência não é este ou aquele fato em particular, mas um

processo desencadeado por um fato ou um conjunto deles sim, mas configurando-se

como devir. A obra não é uma reprodução, mas a iluminação de uma direção

histórica. Aí a vida de cada indivíduo está ligada à vida da coletividade, encontra

assim o seu páthos. Em vez de meramente reproduzir a realidade, ilumina-a,

esclarece o seu próprio tempo, que reúne o tempo da obra e o tempo social. Ela

evidencia os limites do mundo real e as possibilidades que nele se abrem para o

futuro. (BASTOS, 2011, p. 188)

Sendo assim, a dérision enquanto elemento estético iluminará as relações entre os

sujeitos e o seu próprio mundo de maneira a nos apresentar não mais o trágico e cômico como

suas faces distintas, mas, de nos apresentar diálogos possíveis entre as “farsas trágicas” e os

“dramas cômicos”. Ao evidenciar os limites do mundo, ela nos apresenta novas

possibilidades.

Continuaremos nossas discussões no próximo capítulo, começando pelo lugar do

sujeito que nos apresentará uma revolução no teatro pelo teatro. Por meio da exploração dos

clichês, dos ecos, das repetições que não se transformam em consequências. E, assim,

colocaremos em discussão a própria arte e seus modelos com a materialidade cênica.

Ademais, finalizaremos com uma proposta de trabalho com o texto em sala de aula.

43 O teatro é, naturalmente, um reflexo da ansiedade do nosso tempo. Nada pode impedir que seja a expressão

das preocupações de sempre. Nós morremos de amor cem anos atrás; nós também morremos do medo de morrer;

como hoje. (IONESCO, 2014, p.182, tradução nossa)

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CAPÍTULO 3. A CONSTRUÇÃO DOS SUJEITOS NO TRABALHO COM O TEXTO

TEATRAL

O trabalho com o teatro e suas multiplicidades veem nos apresentando durante o

percurso desta dissertação alguns elementos de discussão centrais para o nosso objetivo, entre

eles, a construção do sujeito, que desenvolveremos neste capítulo. Trata-se de refletir a

complexidade das relações entre o sujeito no drama moderno, principalmente, dentro de sala

de aula e, para tanto, iremos reconsiderar alguns outros conceitos já estabelecidos, como a

noção de público/espectador e de espaço cênico como parte do processo de se determinar

como eles se encontrão na sala de aula dentro desse teatro contemporâneo.

A importância desta reflexão está aliada à necessidade de se redefinir os espaços em

que encontraremos o trabalho com o texto teatral, no caso a sala de aula, tendo em vista que

os educandos caminharão de maneira autônoma diante desses princípios, ou seja, por meio de

um processo interacional, em que não apresentaremos a eles os conceitos de forma fechada e

sem discussão. Promovendo entre os educandos uma postura crítica para que possam

desenvolver e criar suas próprias representações.

Nesses termos, os educandos serão convidados a refletir sobre a composição entre

palco e público, uma vez que o palco/espaço cênico se transportará para a sala de aula e os

conceitos de público/espectador poderão ser reinterpretados de maneira a serem

ressignificados pelos próprios educandos ou pelos professores, em uma dialética entre o

ensinar e o aprender formada por meio da relação entre o educador e o educando, onde ambos

aprendem e ensinam mutuamente.

Essas discussões veem acompanhadas das relações estabelecidas com o próprio

percurso que as teorias do teatro, desde a Aristóteles e o teatro grego até o teatro

contemporâneo, veem passando. Apesar deste não ser o objetivo principal deste trabalho é

importante estabelecer quais são as relações em que se encontram o texto La Cantatrice

chauve dentro dessas linhas teóricas. Como demonstrado no capítulo anterior, os movimentos

de vanguarda tiveram um importante papel na arte em termos de propor discussões sobre o

pós-guerra e de que maneira todo o contexto social faria parte das inquietações dos

indivíduos.

Nesses termos, cabe à nós ressaltar que o olhar dessas reflexões não tem como

objetivo analisar a obra literária como documento, mas sua potencialidade a partir de seus

elementos estéticos ou poéticos que nos mostrarão alguns fechos de luzes em nossa Cantora

careca, e a partir do texto encontrar alguns fundamentos com os quais poderemos apresentar

as contradições do mundo presentes na vida dos educandos, por exemplo.

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Para tanto, tomemos uma citação do professor Hermenegildo Bastos:

A escrita literária é já uma leitura da sociedade. Como tal, ela propõe uma

interpretação do mundo, ela é já uma hermenêutica. Antes, portanto, de

interpretarmos a obra, convém saber que ela é já, por si mesma, uma interpretação

que se sobreponha à primeira. (BASTOS, 2011, p. 17)

Deixemos a obra falar, é o que propõe Bastos (2011) na citação que apresentamos, e é

um dos aspectos relevantes para esta dissertação, pois, ele dá força ao trabalho com o texto

literário em sala de aula, em um contexto de desenvolvimento e proposições de reflexões

sobre os educandos e seus lugares e suas relações com o mundo. Tomemos, por exemplo, as

análises do título de nossa peça, que já tivemos a oportunidade de trabalhá-la diversas vezes

em sala de aula e assim como nós, em nossa primeira leitura, os educandos se intrigam sobre

o porquê dessa escolha, afinal, quem é a Cantora careca?

Se elaborarmos nossa análise a partir do título, é possível verificar, primeiramente, que

existe na composição do texto de uma presença-ausente. Isso, pois, apesar de ser o título da

peça, não existe nenhum personagem com fala ou mesmo previsto no texto com esse nome. É

importante lembrar, que na forma do texto teatral convencionou-se anunciar antes das cenas

uma lista que apresenta os personagens do drama. Vejamos o que ocorre na peça:

Imagem 1 - Lista de personagens, La Cantatrice chauve

Fonte: Autoria própria (2018)

Trata-se de uma grande brincadeira de esconde-esconde, o leitor atento procura em

cada réplica essa mulher, mas só a encontrará na voz do outro personagem, mais

precisamente, na do bombeiro na cena X. Uma cantora que é careca, mas por que ela ser

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careca faz diferença? Qual a importância da falta de cabelos para quem canta? E a inquietude

do leitor continua em todas as cenas até que sua presença só será percebida pela primeira e

última vez na já mencionada fala do bombeiro:

Le pompier se dirige vers la sortie, puis s’arrête

À propos, et la Cantarice chauve ?

Mme Smith

Elle se coiffe toujours de la même façon ! (IONESCO, 2016, p. 88)44

Ademais, podemos depreender que o autor faz, também, uma espécie de brincadeira

na construção desse título. O leitor ao procurar uma relação entre as palavras cantora e careca,

nessa busca pela compreensão a partir do bloco sintagmático faz com que seja “forçada” uma

interpretação através de uma figura de linguagem, por exemplo. Nesse caso, por meio de um

oximoro/paradoxo surge uma possibilidade que consiste em relacionar numa mesma

expressão ou locução de palavras conceitos contrários.

O que não é o caso do título em questão. O oximoro não funcionará como uma figura

de linguagem, não em seu sentido estrito, ou seja, de uma locução de palavras que nos

apresentam conceitos contrários. Pois, nem cantora nem careca se opõem em um primeiro

olhar. Mas, o que temos é que essa composição aparentemente absurda que faz com que o

leitor procure algum sentido metafórico ao tentar interpretar esses dois elementos que

parecem não fazerem sentido. E com isso Ionesco nos provoca.

E a inquietação continua, quando Mme. Smith dá força ao efeito de ilusão evidenciado

por Pavis (2013), a Cantora careca continua a usar o mesmo penteado mesmo sem cabelos.

Mas, trata-se do Teatro do Absurdo, tudo é possível. Inclusive, uma cantora sem cabelos

utilizar o mesmo penteado, uma verdadeira caricatura. No entanto, nessas pistas

encontraremos os elementos de reflexão necessários para questionar e analisar o lugar desse

sujeito no drama contemporâneo. Como nos aponta Sarrazac, em uma de suas análises sobre a

obra Seis personagens em busca de um autor de Pirandello:

Não é apenas a ação linear que se encontra quebrada, interrompida, contradita; é a

própria unidade do drama, o microcosmos dramático. O dispositivo do teatro dobre

o teatro de Seis personagens rompe irremediavelmente em dois o pequeno universo

da obra: de um lado, as personagens com seus dramas vividos; de outro, os membros

da trupe de teatro. Supõem-se que os segundos se tornarão, graças a seus talentos, os

operadores dos primeiros que, não obstante, não cessam de recusar as pretensas leis

de sua arte. Sob esse ponto de vista, não é apenas a forma dramática que Pirandello

faz aqui explodir; é, igualmente, a ideologia subjacente a essa forma. Para o Diretor,

é evidente que a conveniência interdita a representação da cena incestuosa entre o

44 O bombeiro se dirige a saída, para e pergunta

E a Cantora careca ? ?

Madame Smith

Ela continua se penteando da mesma maneira ! (IONESCO, 2016, p. 88, tradução nossa)

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Pai e a Enteada em casa de Madame Pace; ora quando a enteada coloca em questão

as convenções da representação, isso vai permitir contornar o interdito, ultrapassar

os limites da mímesis por meio do recurso da diegésis – relato e comentário do

drama vivido pelas personagens. (SARRAZAC, 2017, p. 6)

Pirandello e suas peças representam um dos momentos mais importantes na ruptura de

algumas tendências clássicas da obra teatral, em que anos após o processo de ruptura/

desconstrução, iniciadas nas vanguardas europeias, é possível verificar análises contundentes

desse “novo” teatro, distanciado da concepção aristotélico-hegeliana da forma dramática.

Dessa forma, em nossas análises nos deparamos com personagens desprovidos de

emoções, de paixões, de utopias, perfeitamente substituíveis uns pelos outros e um cenário

caótico responsável por tirar o espectador da passividade apresentada pela identificação

momentânea com os personagens. Como ocorre na cena IV, em que os dois personagens, Sr. e

Sra. Smith nos apresentam uma situação em que um casal com pelo menos dois anos de

casamento podem acabar não se percebendo, como no trecho a seguir:

SCÈNE IV

Mme et M. MARTIN (s'assoient l'un en face de l'autre, sans se parler. Ils se sourient,

avec timidité)

M. MARTIN: Mes excuses. Madame, mais il me semble, si je ne me trompe, que je

vous ai déjà rencontrée quelque part.

Mme. MARTIN : A moi aussi, Monsieur, il me semble que je vous ai déjà rencontré

quelque part.

M. MARTIN : Ne vous aurais-je pas déjà aperçue, Madame, à Manchester, par

hasard ?

Mme. MARTIN : C'est très possible. Moi, je suis originaire de la ville de

Manchester! Mais je ne me souviens pas très bien, Monsieur, je ne pourrais pas dire

si je vous y ai aperçu, ou non !

M. MARTIN : Mon Dieu, comme c'est curieux! Moi aussi je suis originaire de la

ville de Manchester, Madame !

Mme. MARTIN : Comme c'est curieux ! (IONESCO, 2016, p. 27)45

É curioso! Ionesco por meio da reiteração nos convida a pensar e repensar o lugar

desses personagens, e o nosso próprio lugar. As réplicas que saem do estranhamento para a

descoberta se apresentam de maneira derrisória. O riso aqui não nos aproxima daquela

situação, pelo contrário, denota indiferença e por vezes desprezo pelo caráter trágico da cena.

45 CENA IV

(O Sr. e a Sra. Martin sentam-se frente a frente, sem se falarem. Sorriem um para o outro, timidamente. O

diálogo que se segue deve ser dito com voz arrastada, monótona, meio cantante, sem nuances)

SR. MARTIN: Desculpe minha senhora, mas me parece, se não estou enganado, que a conheço

de algum lugar.

SRA. MARTIN: Eu também, meu senhor, parece que o conheço de algum lugar.

SR. MARTIN: Por acaso, minha senhora, eu não a teria visto em Manchester?

SRA. MARTIN: É bem possível. Eu sou da cidade de Manchester! Mas não me lembro muito

bem, meu senhor, eu não poderia dizer se o vi ou não!

SR. MARTIN: Meu Deus, que curioso! Eu também sou da cidade de Manchester, minha

senhora!

SRA. MARTIN: Que curioso! (IONESCO, XX, p. Xx, tradução nossa)

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Levando-nos a uma questão bastante relevante, em que medida o que assistimos é capaz de

nos provocar ? E, de que maneira?

Nesses meandros, cabe à nós nos perguntarmos quem é esse sujeito? Que recebe a

obra e compreende suas potencialidades? Ele é ator? Educando? Diretor? Espectador? Leitor?

Além dessas questões, percebemos que o trabalho com o sujeito é diferente quando se trata de

abordá-lo como um objeto teatral, ou seja, a leitura de um texto teatral não é a mesma de um

romance. Isso, pois, a forma e suas potencialidades, como a oralização e a encenação, nos

apresentam diferentes possibilidades de análises e interpretações. Mas, essa não é uma

exclusividade apenas dessa peça, mas, desse gênero, e é o desafio constante que nos

deparamos ao trabalhar com o teatro, pois, ele multiplica os pontos de vista e os ângulos e nos

apontam para várias direções, que podem se relacionar tanto com o texto, quanto com o

espetáculo, e com a sala de aula, na escola, por exemplo.

Para começarmos essa discussão falemos de Rancière46, que neste capítulo terá um

lugar fundamental, pois, a inquietação aqui proposta de uma necessidade de repensar o sujeito

advém do trabalho que ele desenvolveu em seu livro, o espectador emancipado. Já que

constatamos que o teatro está em constante modificação em sua forma e a partir de uma

perspectiva histórica, em suas relações com os espectadores e com o mundo, é necessário

revisitar o lugar da plateia, do público, ou seja, do espectador.

Para tanto, precisamos entender o lugar desse educando que se transforma junto com

as relações do teatro, sendo assim, para iniciar essa discussão, começaremos apresentando

como são as relações das pessoas com o espetáculo teatral, por meio de diversas referência da

importância da mobilização do teatro em todo processo histórico e a partir dessas

constatações trabalharemos com o “o paradoxo do espectador” apresentado na obra de

Rancière. Tal paradoxo tem como princípio a afirmativa de que “não há teatro sem

espectador” (2012, p. 08).

Essa afirmação é muito importante para esse trabalho, pois, o primeira relação dos

educandos com o teatro é a de espectador. Mas quem é esse espectador? E quais são os limites

da sua atuação? É o que Rancière tentará responder neste seguinte trecho, após, chegar à

seguinte constatação: Ora, como dizem os acusadores, é um mal ser espectador, por duas

razões:

Primeiramente, olhar é o contrário de conhecer. O espectador mantém-se diante de

uma aparência ignorando o processo de produção dessa aparência ou a realidade por

ela encoberta. Em segundo lugar, é o contrário de agir. O espectador fica imóvel em

46 Jacques Rancière é um filósofo e escritor franco-argelino.

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seu lugar, passivo. Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade

de conhecer e do poder de agir. (RANCIÈRE, 2012, p. 8)

A partir dessa citação vemos que estamos diante da necessidade de se repensar a dita

passividade do espectador. Para Rancière, a dedução mais lógica que decorre do paradoxo

sobre o espectador é a de que o teatro seria uma cena de ilusão e passividade. No entanto, uma

conclusão diferente da platônica, que acreditava que a mímese teatral era lugar em que

ignorantes iriam para assistir sofredores, que prevaleceu durante muito tempo entre os críticos

do teatro, mas que já não comporta mais o que se convencionou chamar de teatro

contemporâneo, esse novo drama ou o drama moderno.

Por isso, trabalharemos as diferentes possibilidade e o lugar do teatro na superação

dessa relação passiva do público com o espetáculo e, também, com a leitura do texto teatral.

Nas palavras de Rancière, os críticos compreendiam que: “É preciso um teatro sem

espectadores, em que os assistentes aprendam em vez de ser seduzidos por imagens, no qual

eles se tornem participantes ativos em vez de serem voyeurs passivos.”. (2012, p. 9)

No entanto, esse lugar de passividade não corresponde mais as atuais propostas, como

já dissemos anteriormente, logo, os sujeitos que fazem parte de todos os processos de

interação com o texto estarão em movimento. Como vimos na primeira leitura que fizemos

com os educandos e as primeiras análises sobre o título da peça, eles não ficaram calados e

distantes, mas, inquietos e falantes. Sendo assim, para identificarmos como esses elementos

comporão o sujeito no drama é preciso pensarmos alguns deles de acordo com nossa

abordagem metodológica e a partir do trabalho com o texto contemporâneo. Uma vez que,

para esta pesquisa é importante essa relação com La Cantatrice chauve tendo em vista o

desenvolvimento das discussões sobre esse .

O que nos leva a duas questões: a primeira de que desde Brecht e Artaud, dois teóricos

do teatro, já é possível verificar essa ruptura, no tocante ao lugar do espectador, tanto em

relação as unidade cênicas quanto em relação aos olhares, como nos apresenta Rancière em

suas citações aqui apresentadas. Um dado importante, é que para ele, o teatro épico de Brecht

já compreendia que os espectadores não deveriam se identificar com os personagens da cena.

Ao contrário, o espetáculo deveria mostrar algo estranho, inabitual, um enigma cujo sentido

os espectadores tivessem que buscar como cientistas quando observam os fenômenos e

procuram suas causas. Nessas afirmações teremos um cenário fértil inclusive para nos

questionarmos sobre o conceito de mimesis, enquanto representação. O que não

conseguiremos finalizar, devido ao tempo de escrita deste mestrado, mas que será algo que

gostaria de desenvolver em um trabalho posterior, no doutorado.

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No entanto, o papel que esses elementos ou desses estranhamentos que nós

apresentamos demonstram que existe uma força que sai da centralidade do espaço e das

relações entre os personagens para o espectador, que em nossa percepção geraria a partir deste

momento, ou seja, da interação com o texto uma reflexão, por exemplo, uma partilha o que

leva ao educando, no caso de nossa pesquisa, a tornar-se consciente daquela cena e de sua

situação social ao mesmo tempo em que desejaria e/ou encontraria possibilidades de

transformação a partir do contato com o drama. O que nos leva a conclusão de que a dita

passividade aqui dá lugar a busca, ao eco e a inquietação.

Mas como esse movimento é percebido através de um olhar do texto teórico? Em

outra perspectiva, também apresentada por Rancière em seu texto, temos o teatro da

crueldade, como é conhecido o teatro de Artaud, que propunha um dilema ao espectador

semelhante aos das pessoas nas decisões da ação em que o espectador seria arrastado para a

ação cênica na posição do ser na posse de suas energias vitais integrais. Nesse contexto, o

espectador sai, literalmente, de seu espaço e além de participar do jogo teatral ele interfere na

programação do texto que passa a depender das escolhas do outrora pacífico espectador.

Assim, Rancière, por meio da apresentação desses dois olhares ou de duas formas

teatrais, entendendo que enquanto de certa maneira para Brecht o espectador deveria ganhar

distância e refinar a observação, para Artaud o contato, a troca se fazem de maneiras

completamente distinta, pois ela deve fazer com que o espectador se aproxime ao máximo

perdendo sua condição de observador. Nas palavras de Ranciére: os reformadores do teatro

reformularam a oposição platônica entre Khorea e teatro como oposição entre verdade do

teatro e o simulacro do espetáculo. (2012, p. 11)

Para os reformadores, estava na “verdade do teatro” a possibilidade de constituição

estética, outrora considerada na comunidade coreográfica, pela qual o público iria confrontar-

se com ele mesmo e colocar-se de forma ativa. Em ambas, ao público era apresentada uma

verdade, um sentido de teatro. Dessa forma, Rancière propõe que sejam revistos os

pressupostos que sustentam a oposição entre o teatro e o simulacro do espetáculo. Ele afirma

que esses pressupostos se configuram num jogo de equivalências e oposições. As

equivalências se dão entre público teatral e comunidade, olhar e passividade, exterioridade e

separação, mediação e simulacro. As oposições, por sua vez, são entre coletivo e individual,

imagem e realidade viva, atividade e passividade, posse de si e alienação.

Para o autor, as ideias contidas na obra O mestre ignorante ajudam a reformular as

questões apresentadas na obra O espectador emancipado. O primeiro livro descreve a relação

pedagógica entre professores e educandos, a qual considera que existe uma distância entre a

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posição deles, respectivamente, do mestre e o do ignorante. Nesse prisma, o primeiro apenas

pode aproximar o seu saber da ignorância do segundo se recriar incessantemente tal distância

é como se o distanciamento fosse condição sine qua non para a existência de ambos, pois sua

posição, a do mestre, exige que esse esteja sempre um passo à frente. Como contraponto, o

autor apresenta a possibilidade da emancipação intelectual, que prega a igualdade das

inteligências, de modo que não haja um saber maior que o outro, e que dessa forma tanto o

mestre quanto o educando tenham algo a acrescentar no processo de aprendizagem.

Segundo ela, o ignorante não precisa transpor um abismo entre a sua ignorância e o

saber do mestre, mas apenas cruzar o caminho daquilo que já sabe até aquilo que ignora,

apreendendo signo após signo a relação entre o que ignora e o que sabe. O mestre ignorante é

aquele que ignora a noção de inteligências desiguais, para ele não existem fronteiras e

hierarquias fixas nas posições do mestre e do ignorante. Rancière afirma que os pedagogos

embrutecedores compartilham convicções com os reformadores teatrais.

A primeira é a de que existe um abismo separando as posições dos espectadores,

passiva, e dos artistas, ativa. Oposição entre o olhar e o saber que define uma “partilha do

sensível” pela qual existe uma distribuição apriorística de posições e capacidades vinculadas a

elas. Rancière pergunta se o que cria a suposta distância entre o espectador e o artista não é

exatamente o desejo de eliminá-la. Afirma que considerando a emancipação intelectual,

podemos ponderar que olhar também é agir. Dessa forma, o espectador, assim como o aluno,

também age selecionando, comparando e interpretando.

Além disso, ele critica a noção de que ação do espectador é pré-determinada pelo

artista, como prega a lógica do pedagogo embrutecedor segundo a qual o aluno deve

apreender aquilo que o mestre faz apreender. Ao contrário, escreve que “os espectadores

veem, sentem e compreendem alguma coisa à medida que compõe seu próprio poema, como o

fazem, à sua maneira, atores ou dramaturgos, diretores, dançarinos ou performers.” (2012, p.

18)

Decorre disso que a noção do teatro como algo essencialmente comunitário, diferente

da televisão e do cinema, a exemplo da comunidade coreográfica platônica, também pode ser

questionada. Na lógica da emancipação sempre a uma terceira coisa, como, por exemplo, um

livro que é estranho ao mestre e ao aluno. Da mesma forma, no teatro, a performance não é a

transmissão do saber do artista ao espectador numa relação de causa e efeito controlada pelo

primeiro. Ela é a terceira coisa entranha ao artista e ao espectador cujo domínio nenhum deles

possui.

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Nesse sentido, é preciso levar em conta o processo teatral na medida em que ele coloca

o sujeito em contato consigo mesmo, com os outros, com a pequena e com a grande história

ele pode ser muitas coisas menos passivo. Dessa forma, proporemos aqui que é possível

discernir quatro instâncias subjetivas reais no processo teatral - o autor e o diretor, o ator e o

espectador, face-a-face - ao qual deve ser adicionada uma instância ficcional, o personagem,

que será um ponto de encontro, um véu de ficção mais ou menos impenetrável entre o

espectador e o ator.

Optamos por deixar de lado o discurso e os olhos ausentes do processo de

representação, o autor e o diretor, para se concentrar na partilha, como ponto de junção ou

disjunção entre os dois. “Presenças reais” do ator e espectador que compõem o teatro. O

sujeito como personagem é entendido como uma individualidade ficcional construída sobre o

modelo de uma pessoa real, dotada de um ato e de um ditado singular.

Em um drama teatral pós-crise, em que nem as relações intersubjetivas nem as

relações intersubjetivas são auto evidentes, o sujeito não apenas tem dificuldade em se

comunicar, mas também em conhecer, reconhecer e compreender a si mesmo. Reflexão de um

sujeito contemporâneo em crise, o caráter das dramaturgias da busca ou a reconquista de si

mesmo é exibido em pesquisa completa, em plena composição ou reconstrução.

Vago, fragmentado, disperso, dotado de uma consciência fragmentária de si mesmo,

ele aparece sempre no início da peça como uma instância elusiva, para ele, para os outros

protagonistas do drama, para os espectadores. É o estudo deste cenário no teatro da busca de

si mesmo que proponho aqui. Entende-se que a natureza verdadeiramente abissal de tal

assunto de estudo não pode pretender ser exaustiva. O propósito desta reflexão é muito mais

identificar constantes, processos e ferramentas relevantes que refletissem a singularidade

deste questionamento no modo teatral.

A primeira constante que pode ser identificada é a definição do sujeito como sujeito da

fala. O sujeito em crise está lutando para se expressar, em busca do que precisamente funda

sua palavra. Ele está procurando por suas condições de enunciação, obscurecidas pela origem

desconhecida de sua percepção do mundo.

Esta pesquisa do EU - espectador é raramente a economia de um TU - personagem ou

de um NÓS - drama. Mas, um VOCÊ como os outros e outros personagens, você como duplo

ou espelho, necessário para a elucidação do EU. TU como um espectador levado para a tarefa,

empurrado, em busca de compreender, não só falar com ele, mas também o que se disse, e

como sua própria construção muda a sua própria percepção.

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NÓS como uma reconstituição de uma comunidade, seja cultural, étnica, familiar ou

mesmo humana, após a eclosão de uma catástrofe da ordem da intimidade, política ou

humanitária. NÓS como uma assembleia teatral para reconstituir em torno deste desejo de

reunir, reposicionando um assunto singular em uma comunidade.

A aplicação de contribuição espectador pode ser em torno da abordagem hermenêutica

para completar, ou em torno de uma estética participativa para destruir todos os clichés

habituais, que todos reconhecem cada um e o outro. E, enfim, o espectador é finalmente

levado a questionar seu próprio status como sujeito, onde a dramaturgia do personagem se

torna a dramaturgia do espectador.

Quando perguntado sobre o motivo de escrever, Ionesco (1966) responde com uma

pergunta ao entrevistador: si je suis écrivain, pourquoi êtes-vous mon lecteur? C’est en vous-

même que vous trouvez la réponse à la question que vous me posez. (1966, p. 13) 47 Essa

relação proposta pelo autor demonstra o objetivo da reflexão aqui levantada em suas peças

que se mostraram também reconstrução do olhar do espectador, provocam a inquietação nos

espectadores.

E, consequentemente, reconhecimento enquanto sujeitos e espectadores. Em outro

texto do mesmo livro, Ionesco reforça o papel da arte nessa construção:

Si un auteur, me demandait, à moi, pourquoi je lis, pourquoi je vais au spectacle, je

répondrais que j’y vais, non pas pour avoir des réponses mais pour avoir d’autres

questions ; non pas pour acquérir la connaissance, mais, tout simplement, pour faire

connaissance avec ce quelque chose, avec ce quelqu’un qu’est une œuvre. Ma

curiosité de savoir s’adresse à la Science et aux savants. La curiosité qui me dirige

au théâtre, au musée, au rayon littérature de la librairie est d’une autre nature. Je

veux connaître le visage et le cœur de quelqu’un que j’aimerai ou que je n’aimerai

pas.48 (IONESCO, 1966, p. 14)

O que Ionesco nos apresenta, é a importância do objeto artístico na construção dos

sujeitos, partindo de um papel ativo, uma vez que o processo de contato com a arte se faz por

meio de movimentos de idas e partidas. De maneira que, os sujeitos se transfiguram a partir

desses contatos. Por isso, não há passividade nesse processo, pois, não há possibilidade do

objeto artístico não provocar algum tipo de partilha.

47 Se eu sou escritor, por que você é meu leitor? É em si mesmo que você encontra a resposta para a pergunta

que me faz. (IONESCO, 2014, p. 13, tradução nossa) 48 Se um autor me perguntasse, por que eu leio, por que vou ao espetáculo, eu responderia que eu vou, não para

ter respostas, mas para ter outras perguntas; não para adquirir conhecimento, mas, simplesmente, para me

reconhecer com esta coisa, com este alguém que é uma obra. Minha curiosidade de saber se dirige à ciência e aos

cientistas. A curiosidade que me leva ao teatro, ao museu, ao departamento de literatura da livraria é de outra

natureza. Eu quero conhecer o rosto e o coração de quem eu gostaria ou de quem eu não gostaria. (IONESCO,

2014, p. 14, tradução nossa)

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Sendo assim, o estudo do sujeito não pode prescindir de uma reflexão sobre sua

sujeição, sua objetivação de certa forma. O sujeito como sujeito de percepção, transformado

em objeto percebido. Dessa forma, o sujeito em contato com o drama ao captar a

sensibilidade do conteúdo através da forma proposta se coloca no centro do debate daquele

objeto.

E, dentro desse contexto que emerge nosso trabalho com a educação, esse sujeito em

contato com o drama se reapresenta, modificado, sensível a partilha, e, como diria Rancière,

emancipado, ira transpor os limites do espaço cênico e ao sair do público e se tornar ator. Ou

o nosso espect-ator, como Boal49, nos apresenta. Sendo assim, os educandos transmutam do

lugar passivo e começam a interferir diretamente no drama, por meio dele mesmo, e , nesse

momento, todo espaço de fruição sede lugar a novas criações.

O espect-ator que, na verdade, para Boal são espect-atores, têm a responsabilidade de

retirarem dos espectadores a condição de meros observadores passivos e passarem a serem

protagonistas tanto nas cenas teatrais quanto em suas vidas. Ou seja: aqueles que são

observadores e atuantes nas cenas teatrais devem, também, assumir, junto com seus parceiros

o controle de suas vidas, sabendo como e quando devem agir.

No princípio, o teatro era o canto ditirâmbico: o povo livre cantando ao ar livre. O

carnaval. A festa. Depois as classes dominantes se apropriaram do teatro e construíram muros

divisórios. Primeiro, dividiram o povo, entre atores e espectadores: gente que faz e gente que

observa. Terminou-se a festa! Segundo, entre os atores, separou os protagonistas das massas:

começou o doutrinamento coercitivo! O povo oprimido se liberta. E outra vez conquista o

teatro.

É necessário repensar essas fronteiras! De uma maneira geral, primeiro o espectador

volta a atuar, a fazer parte do espaço cênico, e em segundo, é necessário compreendermos que

todos podemos compor os espaços e, não somente, atores profissionais, todos podem ser

personagens. O que coaduna com o percurso que estamos fazendo, neste capítulo, para

compreender esse novo sujeito, que no nosso caso irá ser fundamental para entender quais os

espaços veem sendo ocupados e os que ainda podem ser ocupados pelos nosso educandos.

Para tanto, é necessário desenvolver, também, a ideia de espectador de Boal. Para ele,

mais do que a catarse e a identificação, movimento apresentados por alguns autores como

49 Augusto Boal foi diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro. Fundador do Teatro do Oprimido, que

alia o teatro à ação social, suas técnicas e práticas difundiram-se pelo mundo, de maneira notável nas três últimas

décadas do século XX, sendo largamente empregadas não só por aqueles que entendem o teatro como

instrumento de emancipação política mas também nas áreas de educação, saúde mental e no sistema prisional.

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Pavis, ele acreditava que poderia e deveria ocorrer um envolvimento maior do espectador com

as personagens e a cena. Nesses termos, a interação ultrapassaria uma simples identificação

com a personagem, e passaria a apresentar um anseio do indivíduo em ocupar os espaços

fazendo com que a pessoa que assiste o espetáculo, o espectador, sai da passividade e passe a

atuar no espetáculo. Assim para Boal:

Espectador, que palavra feia! O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é

necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua

plenitude. Ele deve ser também o sujeito, um ator, em igualdade de condições com

os atores, que devam por sua vez ser também espectadores. Todas essas experiências

de teatro popular perseguem o mesmo objetivo: a libertação do espectador, sobre

quem o teatro se habituou a impor visões acabadas do mundo. E considerando que

quem faz teatro, em geral, são pessoas direta ou indiretamente ligadas às classes

dominantes, é lógico que essas imagens acabadas sejam as imagens da classe

dominante. O espectador do teatro popular (o povo) não pode continuar sendo

vítima passiva dessas imagens. O mundo é dado como conhecido, perfeito ou a

caminho da perfeição, e todos os seus valores são impostos aos espectadores. Estes

passivamente delegam poderes aos personagens para que atuem e pensem em seu

lugar. Ao fazê-lo, os espectadores se purificam de sua falha trágica – isto é, de algo

capaz de transformar a sociedade. Produz-se a catarse do ímpeto revolucionário! A

ação dramática substitui a ação real. O mundo se revela transformável e a

transformação começa no teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao

personagem para que pense em seu lugar, embora continue delegando-lhe poderes

para que atue em seu lugar. A experiência é reveladora ao nível da consciência, mas

não globalmente ao nível da ação. Ação dramática esclarece ação real. O espetáculo

é uma preparação para a ação. A poética do oprimido é essencialmente uma Poética

da Liberação: o espectador já não delega poderes aos personagens nem para que

pensem nem para que atuem em seu lugar. O espectador se liberta: pensa e age por

si mesmo! Teatro é ação! Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si

mesmo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio da revolução! (BOAL, 2013, p. 24)

.

Boal (1999) utiliza-se de uma fábula chinesa de Xuá-Xuá, que é a fêmea pré-humana

que teria descoberto o teatro, para demonstrar como ele compreende a ideia do espect-ator.

Xuá-Xuá viveu há dezenas de milhares de anos, quando as pré-mulheres e os pré-homens

ainda vagavam pelas montanhas e pelos vales, à margem dos rios e dos mares, pelos bosques

e florestas, matando outros animais para se alimentar, comendo plantas e frutos, protegendo-

se do frio, morando em cavernas.

Neste momento, não havia se inventado ainda nenhuma linguagem falada ou escrita.

Xuá-Xuá era a mais bela fêmea e Li-Peng o mais forte dos machos. Naturalmente, eles se

sentiam atraídos um pelo outro, gostavam de ficar juntos, se lamber, tocar, abraçar, fazer sexo

juntos, sem saber ao certo o que estavam fazendo. Um belo dia, Xuá-Xuá sentiu que seu

corpo se transformava: seu ventre crescia mais e mais, além da elegância. Então ela preferiu

ficar só, vendo seu ventre inchar.

Uma noite, Xuá-Xuá sentiu seu ventre de mexer. Dentro do ventre da mãe, Lig-Lig-

Lé, assim se chamava o menino, ou qualquer outro nome que fosse, porque nenhuma

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linguagem fora inventada. Lig-LigLé crescia e se desenvolvia. Alguns meses depois Xuá-Xuá

deitou-se à margem de um rio e deu à luz a um menino. Era pura magia! Xuá-Xuá olhava o

seu bebê. Aquele corpinho minúsculo, que parecia com o seu, era sem dúvida uma parte sua

que antes estava dentro dela e agora estava fora. Mãe e filho eram a mesma pessoa.

De longe, Li-Peng observava. Bom espectador. Uma noite Li-Peng queria criar sua

própria relação com o menino. Xuá-Xuá ainda dormia quando os dois (pai e filho) partiram,

como bons companheiros. Li-Peng soube perfeitamente que ele e Lig-Lig-Lé eram duas

pessoas diferentes. Ele era ele, e a criança era o outro. Ensinou seu filho a caçar, pescar etc.

Lig-Lig-Lé estava feliz. Xuá-Xuá chorava cada vez mais porque perdera uma parte bem-

amada de si mesma. Xuá-Xuá reencontrou pai e filho alguns dias mais tarde. Tentou recuperar

seu filho, mas o pequeno corpo disse não.

Xuá-Xuá foi obrigada a aceitar que aquele pequeno corpo, mesmo tendo saído do seu

ventre, obra sua – ele era ela! – era também uma outra pessoa com seus próprios desejos e

vontades. Esse reconhecimento obrigou Xuá-Xuá a olhar para si mesma e a ver-se como

apenas uma mulher, uma mãe, uma dos dois: obrigou-a a se identificar e a identificar os

outros. Foi nesse momento que se deu a descoberta!

Quando Xuá-Xuá renunciou a ter seu filho totalmente para si. Quando aceitou que ele

fosse um outro, outra pessoa. Ela se viu separando-se de uma parte de si mesma. Então, ela

foi ao mesmo tempo atriz e espectadora. Agia e se observava: eram duas pessoas em uma só –

ela mesma! Era espect-atriz. Como somos todos espect-atores. Descobrindo o teatro, o ser se

descobre humano.

Existem dois elementos importantes dentro desta fábula, a primeira é o modo como ela

representa de forma poética o “agir e observar” que podemos compreender que é o que Boal

espera de um espect-ator, e a segunda é o papel do teatro na formação do homem. Esses dois

princípios são determinantes para nossa concepção do trabalho com o texto teatral em sala de

aula. Compreender o momento e a ação, observando o agir de outrem faz com que o

espectador saia de seu lugar de catarse e/ ou fruição e interage com o espetáculo, podendo

intervir na cena com a qual se identifica, ou construindo novas relações de acordo com seu

olhar e sua reação diante daqueles elementos estéticos.

Dessa forma, a revolução de que Boal fala, a revolução provocada pelo e para o

teatro, ocorre quando a pessoa sai do seu lugar de espectador e passa a ser um espect-ator.

Todos esses fatores veem ao encontro do que foi discorrido durante nosso percurso nesta

dissertação e serão fundamentais para a próxima etapa. Nesse momento, traremos de volta, os

educandos e retornaremos com a metodologia colaborativa. Infelizmente, pelas barreiras

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propostas pela tempo da dissertação, fizemos uma escolha de deixar o capítulo 2 e o início do

3, que foram exercícios de levantamento de bibliografia, para que eu fizesse, afinal como

disse um dos educandos: o título será seu, o trabalho chato é seu também professora. Novas

perspectivas.

Pretendemos, então, apresentar uma proposta de interação em sala de aula com nosso

texto. Passando por todos os pontos desenvolvidos até aqui, o objetivo será desenvolver a

reação dos educando diante do texto teatral, para então apresentarmos propostas para ou uma

espetáculo ou uma leitura dramática. Guiados pela possível identificação deles com algum

personagem ou alguma situação, partindo da seguinte indagação: se ele pudesse entrar na cena

e transformar aquele momento de sua vida, o que ele faria? Dessa forma, o espect-ator

possibilitará a transformação, a reação, a “revolução” realizada durante o espetáculo?

Subvertendo todo o sistema que privilegiou somente a observação e transformaria seu papel

de espectador, passivo e em um agente de transformação, um ator de seu próprio espetáculo.

Esses são os termos que demonstram os novos níveis de atuação em sala de aula, [...]

possibilidade de métodos de trabalho que proporcionassem uma melhor preparação do

indivíduo para ações reais na sua existência cotidiana e social com vistas a uma liberação.

Basicamente, o “espect-ator” é incentivado a interromper a ficção observada, sempre que

julgar “falsas, ou irreais, ou mistificadoras ou ineficientes ou idealistas” as soluções vistas em

cena, situando-se este teatro, portanto, nos limites entre ficção e realidade, e o “espect-ator”

entre pessoa e personagem.

Uma vez tendo ciência de seu poder e das possibilidades de transformação, o

espectador da vida real, tendo participado de uma experiência num espetáculo como espect-

ator, terá mais facilidade de identificar o momento em que ele não passa de um mero

observador e saberá o momento e a maneira de se tornar mais atuante, promovendo a

revolução através das suas experiências teatrais.

É importante ressaltar que diferentes pesquisadores já estão se aprofundando nos

estudos sobre o papel do espectador, dentre os que foram apresentados aqui a nomenclatura

de boal é a que mais se adequa nesta proposta, uma vez que une os dois elementos que

emergem do lugar dos educandos em sala de aula: o espectador e o ator. Provavelmente, se

escolhêssemos fazer alguma modificação na estrutura apresentada por Boal seria dar um

pouco mais de “ação” na palavra. Por ora deixemos a ação para a sala de aula.

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3.1 Orientação didático-reflexiva – ODR, o trabalho com a literatura e a educação

Este espaço tem como principal objetivo apresentar uma proposta possível de

metodologia do trabalho com o texto literário em sala de aula. Além de apresentar propostas

que fomentem o debate na construção de práticas docentes ou que as ressignifique, a partir de

alicerces baseados nas experiências apresentadas por nossos educandos e do trabalho de

pesquisa aqui desenvolvido. É, pois, importante ressaltar que os estudos os quais nos levaram

a esta proposta são resultados de anos de dedicação à pesquisa realizada no grupo de pesquisa

GEDLLE – Grupo de Estudos em língua e literatura estrangeiras, antecessor do atual grupo,

Literatura, Educação e Literaturas Contemporâneas que continua a trabalhar com e pela

literatura e ao qual eu devo o amadurecimento deste trabalho.

Ademais, é preciso que consideremos alguns parâmetros pelos quais fizemos a escolha

de trabalharmos com a ODR e não um plano de aula, tradicional. A principal diferença é a

interação com o educando, como trabalhamos com um texto teatral, e conforme já

dissertamos durante todos os capítulos anteriores, não será possível tratar nossos educandos

apenas como receptores passivos, é preciso pensar em práticas que proporcionem a reflexão-

ação, ou seja, com momentos que privilegiem uma educação libertadora nos termos

apresentados por Paulo Freire, conforme a seguinte citação:

Uma educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a

reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu

papel no novo clima cultural da época de transição. Uma educação que lhe

proporcionasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua

instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na

explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção.

Educação que levasse em consideração os vários graus de poder de captação do

homem brasileiro da mais alta importância no sentido de sua humanização

(FREIRE, 2014, p. 80-81).

A proposta apresentada por Freire coaduna com todas as reflexões propostas nesta

dissertação em termos gerais, e esse é o papel da literatura, portanto, apresentamos nos

capítulos anteriores diversas conexões que basearam a aproximação do texto, do teatro e da

educação, por isso, dissertaremos sobre quais são as maneiras de aproximá-los e qual seu

lugar na construção do conhecimento e da prática libertadora.

Dessa forma, vamos apresentar algumas questões que são importantes para nossa

proposta de prática. Primeiro, o contato com o texto, é necessário que seja privilegiado sua

leitura, pois, é a partir dela que os espaços de reflexão irão emergir, e é por meio dela que os

educandos poderão apresentar suas próprias leituras de mundo. Ademais, a partir desses

momentos que poderemos entender de que forma ocorrerá o processo de ensino e

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aprendizagem, de maneira que possamos conduzir as experiências que serão apresentadas

pelos nossos educandos. Com isso, as atividades apresentadas irão contemplar diferentes

níveis de saber. Para tanto, trago uma reflexão sobre o lugar desses educandos, segundo Paulo

Freire:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os

educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis ai

a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece

aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para

serem colecionadores ou fixadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os

grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada

concepção “bancaria” da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da

práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em

que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação,

não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta,

impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os

outros. Busca esperançosa também. Na visão “bancária” da educação o “saber” é

uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se

funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão - a

absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da

ignorância, segundo a qual está se encontra sempre no outro. (FREIRE, 1987, p. 33)

Compreender que há diferentes saberes é importante para que possamos modificar

algumas narrativas pessimistas, uma vez que essas desqualificam alguns saberes dos

educandos em detrimento de outros, por exemplo, os que envolvem os seguintes discursos:

ele não é capaz, eles não leem nada, todos preguiçosos, entre outras que não privilegiam o

trabalho com o texto literário, pelo contrário, só afastam o educando da sala de aula e da

literatura. Ademais, é preciso que tenhamos em mente que a literatura é para todos, como

Candido (1995) nos apresenta é um direito do ser humano e isso significa desmistificar as

relações canônicas e nos apropriarmos de narrativas contemporâneas que estão mais perto das

realidades dos educandos. A partir dessa intenções conseguiremos a compreensão de que

todos àqueles que se comprometam com um trabalho, e aqui me refiro a proposta do trabalho

literário são capazes de vivenciar as experiências que a literatura pode nos proporcionar.

Dentro dessa perspectiva, temos que evidenciar o trabalho desenvolvido na

Universidade de Brasília - UnB, por meio dos grupos: En classe et en scène e Dramaturgia e

Crítica Teatral dirigidos pela Professora Doutora Maria da Glória Magalhães dos Reis e do

Professor Doutor André Luís Gomes, respectivamente. Ambos possuem trabalhos que são

resultados da experiência com o texto dramático em sala de aula. Em um artigo publicado no

GT de dramaturgia e teatro eles nos apresentam um pouco de seus caminhos e sobre a

experiência de encenar a leitura a partir do projeto Quartas Dramáticas50.

50 Projeto de extensão da Universidade de Brasília.

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Encenar a leitura tem sido, portanto, um meio de unir teoria e prática, de retirar

educandos e educandas da condição de receptores para atuar de forma crítica e

criativa do processo de aprendizagem de um gênero tão desprezado pelos cursos de

Letras e até das Cênicas: o gênero dramático. O Teatro. (MAGALHÃES e GOMES,

2017, p. 44)

Neste trabalho compreender o lugar dessa proposta, seja de encenar a leitura, é

importante para evocar como apresentado pelos autores “as descobertas das potencialidades”,

seja, a leitura de teóricos, do texto e dos métodos teatrais, pois esses ampliam o olhar dos

apreendentes por meio do aspecto artístico para eles mesmos e para os lugares que eles se

propõem a ocupar na sociedade. Como já dissertamos, esses lugares são os mais diversos, mas

a proposta do trabalho a ser desenvolvido é o de apresentar esse novo espaço, estar na cena

por meio de uma postura ativa em relação a si mesmo e em relação ao texto teatral.

Nesses termos, a proposta apresentada pelos autores é muito importante, já que esse

trabalho já vem sendo desenvolvido há alguns anos com as turmas de graduação do curso de

Letras da Universidade de Brasília. No entanto, o objetivo desta dissertação, neste momento

será o de apresentar caminhos. Por entendermos que pensar na educação e na literatura é

compreender que os estudos que objetivam levar o texto literário para a sala de aula precisam

serem desenvolvidos por meio de cotidianos exercícios de reflexão, já que são elementos que

estão sempre em construção ou reconstrução assim como as estruturas sociais aonde eles

estão inseridos.

Por isso, nosso caminho começou pela educação, passou pelos elementos estéticos e o

trabalho com o texto teatral, culminou para o lugar desses novos sujeitos e se encerra com

propostas do fazer literário em sala de aula, e aqui a palavra “proposta” é necessária, pois, a

necessidade que as grandes teorias possuem de conceitualizar, de estabelecer parâmetros, de

categorizar e de nominar os processos não corresponde ao percurso aqui apresentado. Nossa

proposta trata-se de repensar e reestabelecer diálogos entre a educação e a arte, com a

finalidade de proporcionai espaços que proponham uma construção crítica do conhecimento.

Dessa forma, pensar na educação e trazer a sala de aula é compreender que os estudos

estão em constante modificação, e que nossas pesquisas precisam continuar acompanhando as

mudanças dos sujeitos. A partir dessa constatação é possível escolher atividades que

problematizem e ressignifiquem as interações dos aprendentes, bem como sua criatividade

que perpassam seus corpos.

Por isso, é necessário desenvolver recursos que propiciem um novo olhar para as

práticas desenvolvidas em sala de aula, bem como para a formação de professores. É

primordial que seja feito um trabalho voltado para encorajar o poder de agência dos

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aprendentes de modo que eles consigam não só se apropriar do gênero, no nosso caso o

dramático, como também refletir sobre novas estratégias de educação que terão como objetivo

facilitar o integração desses alunos à questões educacionais, priorizando uma postura de

agente ativo e não passivo, e essa postura deverá ocorrer tanto da parte do professor quanto da

parte do aprendente.

Dessa forma, apresentaremos uma proposta pedagógica levando em conta a educação

voltada para o desenvolvimento de atividades que propiciem a leitura, a reflexão e a

produção. Para tanto, vou apresentar o início dos diálogos que levaram aos resultados

presentes nessa proposta. O principal ponto de partida foi o conceito “sequência didática”

proposto por Dolz e Schneuwly (2010), a Sequência Didática (SD) trata-se de um conjunto de

atividades pedagógicas organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual

oral ou escrito.

Antes de trabalharmos com sua estrutura é importante transcorrermos sobre o principal

ponto que diferencia o plano de aula, método tradicional, da sequência didática. A principal

diferença entre esses dois modelos é que a sua base discursiva tem seus pilares desenvolvidos

no binômio reflexão-ação, uma vez que a SD se desenvolve a partir da concepção do

interacionismo social, de Vygotsky, já apresentado no capítulo 1, e do entendimento de que as

atividades trabalhadas em sala de aula devem contemplar diferentes níveis de ação.

Dessa maneira, as atividades desenvolvidas devem ser elaboradas, prioritariamente,

por objetos específicos que sejam socialmente elaborados, fruto das experiências dos

aprendentes. É importante que as obras que serão abordadas em sala de aula apresentem uma

conexão dos saberes dos estudantes, seja para propiciar o debate, seja para trabalhar com

elementos que caiam nos exames de seleção para acesso as universidades, por exemplo. Nesta

modalidade, o processo de ensino e aprendizagem estará relacionado à compreensão de que os

elementos estéticos presentes no texto literário podem e devem ser abordados pensando no

contexto social em que os aprendentes encontram-se inserido.

A partir dessa perspectiva, o objetivo do professor que trabalha com a SD deve ser

pautado na dedicação para entender de que forma a literatura, mais precisamente, o texto

teatral, atuarão na constituição e no desenvolvimento das capacidades epistêmicas (ordem dos

saberes) e praxeológicas (ordem do agir) dos indivíduos. Dessa forma, a SD apresentou-se

como um excelente ponto de partida para que o professor consiga trabalhar o

desenvolvimento da leitura e da escrita/encenação/ leitura encenada, no contexto de produção,

no trabalho com a literatura em sala de aula, como afirmam Dolz e Schneuwly:

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A sequência começa pela definição do que é preciso trabalhar a fim de desenvolver

as capacidades de linguagem dos alunos que, apropriando-se dos instrumentos de

linguagem próprios ao gênero, estarão mais preparados para realizar a produção

final” (DOLZ e SCHNEUWLY, 2010, p. 86-87).

Essa explicação nos remete à necessidade de entender de que se trata esse “gênero” e

de que forma ele ou eles (os gêneros) vão estar presentes na sequência didática, importante

também, pois, as sequências abrangem não só a literatura, mas outras áreas. Dolz e

Schneuwly resumem às considerações de Bakhtin (1953/1979) sobre gêneros, chegando a três

pontos principais:

1) Cada esfera de troca social elabora tipos relativamente estáveis de enunciados: os

gêneros;

2) Três elementos os caracterizam: conteúdo temático; estilo; e construção

composicional; e

3) A escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o

conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor.

A partir desses pontos, Dolz e Schneulwy concluem que o gênero é o instrumento

principal da SD. No entanto, partindo do entendimento de que o processo de ensino e

aprendizagem baseia-se nas relações sociais e na compreensão de que a língua encontra-se em

constante movimento, o gênero não pode atuar apenas como instrumento. Na verdade, ele

passaria a assumir o papel norteador, o que significa que ele será um dos mecanismos pelo

qual a SD vai se guiar. Portanto, a SD é o instrumento, ou melhor é um dos recursos

possíveis.

Até o momento trabalhamos com o respaldo teórico necessário para justificar a

escolha da sequência didática e posteriormente o que passamos a chamar Orientação

Didático-reflexiva (ODR), a partir de agora desenvolveremos sua estrutura, as bases e

fundamentos a serem sugeridos ao professor. Como dito anteriormente a delimitação do

gênero é o fundamento no qual se desenvolverá a progressão proposta. A partir disso ela será

capaz de instrumentalizar os meios que auxiliarão os professores a ajudar o estudante a se

apropriar de um gênero.

O objetivo principal de nossa proposta pedagógica é criar contextos de produção

precisos que permitirão aos aprendentes a possibilidade de se apropriarem das técnicas e dos

recursos necessários ao desenvolvimento de suas ações de linguagem tanto no que diz

respeito à leitura e a escrita, em situações de interação diversas.

A proposta pedagógica desenvolvida enquanto ODR, se apresenta da seguinte forma:

1) Gênero: Os enunciados são determinados a partir de cada campo da atividade

humana que vai elaborá-los e organizá-los através de tipos e formas relativamente estáveis

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que constituem o gênero. Podem ser: conversas espontâneas, publicidade, entrevistas, texto

literário etc.

2) Agente discursivo: O objetivo neste ponto é definir a quem se dirige Orientação

didático-reflexiva (ODR). Aprendentes do ensino médio? Crianças em fase de alfabetização?

Alunos do curso de Letras?

3) Tempo estimado: Se a proposta será desenvolvida em apenas uma aula ou se

precisará de um pouco mais de tempo.

4) Suporte: Quais são os meios físicos que serão utilizados para a realização da

proposta. Podem ser os mais diversos, dependendo do gênero escolhido pode ser: livro, cartão

postal, filme etc.

5) Sugestão de documento: Baseado no gênero a ser desenvolvido, como título do

filme ou link da Internet, modelos de cartões etc.

6) Ações de linguagem: O que se pode fazer com a linguagem: Compreender, produzir

ou interagir de forma escrita ou oral, formal ou informal e de maneira criativa.

7) Objetivos: O que se espera conseguir com a proposta, em linhas gerais.

8) Elementos constituintes da ODR: Com a finalidade de delimitar uma sequência de

ações, o objetivo aqui é apenas orientar o educador para os principais pontos a serem

abordados de maneira que fique claro para o aluno o desenvolvimento das atividades.

9) Contexto de produção e uso: Quem produz aquele documento e para quem é

dirigido, quais são as questões sociais e ideológicas veiculadas pelo documento.

10) Elementos linguístico-discursivos e literários: Quais são os elementos discursivos

(pode-se dizer que são os elementos gramaticais que por meio dos quais o documento é

construído) desenvolvidos nesta sequência? Apenas linguísticos ou houve o uso de gêneros

literários (elementos para a análise do texto literário)?

11) Reflexão pedagógica: Dá-se em dois aspectos, o primeiro destinado para que o

educador reflita sua prática pedagógica de modo que identifique como foi a apropriação, o

desenvolvimento e o trabalho dos alunos durante a proposta e de que modo ela colaborou para

o objetivo do aluno, bem como quais são os pontos que devem ser adaptados. O segundo

através de diários reflexivos do estudante descrevendo seu processo de apropriação do gênero

ou ainda por meio de uma Produção Final baseada no gênero trabalhado.

12) Atividades complementares: Espaço reservados para descrever se houve a

necessidade do uso de mais atividades além daquelas que estavam previstas na proposta

inicial.

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Essa forma é pensada para abarcar nesses doze pontos uma estrutura de tópicos a

serem trabalhados enquanto guia para o trabalho em sala de aula, ou seja, não se trata de

elementos fixos, mas, de propostas para reflexão do gênero e de reflexão para o

desenvolvimento. Uma vez que se defina o gênero e os agentes discursivos é possível

repensar de que maneira as atividades podem ser propostas e desenvolvidas. De maneira que:

Os dois elementos são necessários para delimitar os outros passos, sendo assim no

momento que determinamos qual o gênero e o agente discursivo, esses serão basilares para a

escolha dos outros tópicos. Pois, a depender desses dois parâmetros algumas atividades

podem não se encaixar para determinado público, no caso, o agente discursivo. Por exemplo,

se trabalhamos com a literatura, e nossos a gentes discursivos estão nas séries iniciais, é

importante que o livro apresente os temas com os quais os alunos estão inseridos.

É importante ressaltar que o objetivo é potencializar o trabalho com determinada obra

literária, e não classificatória e muito menos de exclusão, ou seja, não se trata de dizer que

uma obra é melhor que a outra ou que determinada obra só pode ser trabalhada com grupos de

determinada faixa etária, mesmo porque em um contexto mais amplo de trabalho, ou seja, em

escolas que não dividem por séries, por exemplo, os livros podem ter diferentes analises a

depender dos agentes discursivos, isso quer dizer que não existe uma obra “apropriada” para

cada série, mas que algumas escolhas podem aumentar a contribuição dela no contexto dos

alunos.

É o caso da minha proposta, que é trabalhar com La Cantatrice chauve. A princípio é

possível que como já explicitado, em capítulos anteriores, por ser um texto inserido no

contexto do Teatro do Absurdo ele pode sofrer com alguns preconceitos em relação a propô-

lo como leitura em sala de aula. Algumas vezes, textos que podem gerar muitas discussões e

diferentes opiniões são preteridos nesse contexto, mas no nosso caso, são esses que devem ser

escolhidos, pois, esse é nosso objetivo com a literatura, provocar reflexão.

Gênero Agente

Discursivo

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Dessa forma, escolhemos trabalhar com ele nas turmas de Específico 2 - E251 todos os

estudantes são maiores de idade. As aulas de literatura, no planejamento de nossa escola, se

desenvolvem no segundo semestre de cada bimestre, neste caso temos apenas 3 aulas para

trabalhar o texto. O que nos apresenta a necessidade de conversar com os aprendentes sobre a

necessidade do trabalho em autonomia. Uma vez definidos o gênero, literatura, e os agentes

discursivos, estudantes do CIL, nível E2, podemos passar para os outros tópicos.

Nesse caso, a relação é hierárquica, visto que ambos são escolhidos em função do

gênero e do tempo disponível para a atividade e de que a depender do suporte, a ser proposto,

a sugestão de documento pode e deve acompanhar a escolha do primeiro. No nosso caso, eles

se fundem por que a sugestão de documento é o texto teatral que é representada pelo suporte

livro, mas, evidentemente que podemos propor outros documentos, como foi nosso caso,

apresentamos vídeos de encenação da referida peça.

Após esses elementos surge a necessidade de se pensar quais são os objetivos com a

atividade, bem como quais são os mecanismos que os aprendentes irão desenvolver durante a

proposta, visto que nossa proposta inicial era trabalhar de maneira colaborativa, os objetivos

irão emergir após o contato dos estudantes com o texto. Evidentemente, que em alguns casos

eles já podem ser mediados pelos educadores, mas, nesses casos a proposta deverá ser

validada pelos educandos.

Os riscos deste trabalho são enormes, afinal, no nosso caso, o corpus já havia sido

determinado, e se os alunos decidissem não trabalhar com o texto? Bem, evidentemente que

não teria os resultados aqui já apresentados, mas, compreenderemos que mesmo a não escolha

é baseada em dados que podem contribuir com a dissertação. Assim como o trabalho em sala

51 No currículo dos CILs do DF o curso específico se divide em seis (6) níveis a saber E1, E2, E3, E4, E5 e E6.

Sendo E1 o primeiro nível e E6 o último.

Suporte

Sugestão de

Documento

Tempo

Estimado

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de aula. Enquanto professora de literatura é preciso estar aberto para as diversas leituras

propostas pelos educandos, saber escolher leituras, mas, também, estimular novas leituras,

partindo da concepção da importância da autonomia e de que a escolha coletiva a prioriza.

Voltemos para os outros elementos:

Nestes dois elementos, ambos se retroalimentam visto que, uma vez determinado; para

quem o documento é dirigido, quem o produz e as questões sociais e ideológicas é possível

determinar todos os elementos que comporão a ODR. No nosso caso, o documento é dirigido

aos alunos do CILG, os elementos serão produzidos em uma atividade conjunta dos

educandos com a educadora, e as questões sociais e ideológicas que estão presentes são o pós-

guerra e o ensino de língua estrangeira.

Definir os fundamentos linguísticos-discursivos e literários são importantes para

termos uma noção da abrangência da ODR, ou seja, determinando quais os elementos de

análise conseguiremos delimitar em quais outros momentos, níveis pedagógicos, por

exemplo, essa ODR poderá ser utilizada, por meio da abrangência dos aspectos linguísticos

e/ou dos gêneros literários. No nosso caso trata-se de um trabalho com o gênero literário

teatro e os instrumentos de análise perpassam os aspectos linguísticos como o trabalho com

figuras de linguagem e os aspectos semânticos das escolhas lexicais do autor. Além, da

importância do contexto de produção para propiciar o debate sobre o ensino de línguas na sala

de aula.

Apesar de compreendermos que partindo de uma abordagem colaborativa as reflexões

são intrínsecas ao processo de desenvolvimento das atividades em aula é necessário um tópico

específico para que sejam tomadas notas sobre todo os processos que compuseram a prática

Elementos

Constituintes

da ODR

Contexto de

Produção e

Uso

Elementos Linguísticos-

discursivos e Literários

Reflexão Pedagógica

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docente e discente. Além das reflexões sobre o processo é importante também as reflexões

sobre a/as produções finais dos estudantes.

Sendo assim, teremos três momentos de análise: o primeiro que refletirá a construção

coletiva e dentre elas, as análises e os debates, em segundo um espaço destinado para que o

educador reflita sua prática pedagógica de modo que identifique como foi a apropriação, o

desenvolvimento e o trabalho dos educandos durante a proposta e de que modo ela colaborou

para o objetivo do aluno, bem como quais são os pontos que devem ser adaptados e o terceiro

através de diários reflexivos do estudante descrevendo seu processo de apropriação do gênero

ou ainda por meio da Produção Final.

Apesar da proposta aqui apresentada não ter sido finalizada a tempo da conclusão

desta dissertação é possível apresentar a proposta inicial e alguns elementos já desenvolvidos

com a finalidade de identificarmos abordagens para o trabalho do texto literário em sala de

aula. Para tanto, segue a tabela abaixo:

ORIENTAÇÃO DIDÁTICO-REFLEXIVA: La Cantatrice chauve entra em sala de aula

DESCRIÇÃO DA

ATIVIDADE ELEMENTOS REFLEXIVOS STATUS

Gênero Literário; texto teatral

Propor a peça para os alunos por

meio da apresentação do autor e

contexto histórico.

Agentes

discursivos

Alunos do nível E2 do

curso de Francês do

CILG

A escolha para trabalhar com

esses educandos foi pautada na

necessidade de se refletir o

processo de educação e os

aspectos culturais que estão

ligados ao trabalho com o teatro

Tempo

Estimado 2 aulas de 1:15h cada

O tempo estimado além de levar

em conta as etapas da ODR foi

pensado com o objetivo de dar

continuidade ao trabalho em

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uma semana de aula.

Suporte

https://www.youtube.c

om/watch?v=79Wer_o

hTE8&t=2608s;

http://www.ciep.fr/site

s/default/files/focus-

pratique-theatrale-

service-enseignement-

du-fle.pdf

Os dois suportes têm por

objetivo apresentar a peça

encenada e as potencialidades do

trabalho com o texto teatral em

classe de língua estrangeira.

Sugestão de

documento

Peça La Cantatrice

chauve -

Ações de

linguagem

Expressão oral e

escrita, sensibilidade

estética, imaginação e

criatividade

São todos os meios que

propiciaram a interação dos

educandos com o texto.

Objetivos

a) Permitir a

apropriação do gênero

teatro

b) Favorecer a

compreensão dos

elementos

linguísticos-

discursivos da língua

francesa

c) Possibilitar a

imaginação e a

criativa por meio da

interação com o texto

e das reflexões

suscitadas em sala de

aula

É importante a construção do

gênero por meio do trabalho

com a carga semântica do texto,

além da forma é preciso

desvendar no tecido textual o

processo da leitura e as lacunas

dele. Como o signo é dialético e

vivo é necessário conceber

atividades que promovam a

leitura e a escrita com o objetivo

de proporcionar imaginação e

criação.

Elementos

Constituintes

d) Apresentar as

características do

Todos os elementos foram

escolhidos baseados nas

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texto dramático a

partir das vivencias

dos alunos

e) Ler o texto

com os educandos

afim de construirmos

os elementos estéticos

e poéticos por meio

da oralização do

texto.

a) Escolher uma

cena para montarmos

em sala

b) Como

produção final a

elaboração de um

jornal de bordo em

que os alunos

pudessem refletir

sobre a atividade e o

papel do texto.

interações com os estudantes e

com a necessidade de se

desenvolver a estrutura

composicional do texto.

Passando pela oralidade e o

olhar dos educandos em relação

as possibilidades de se trabalhar

a encenação a partir da

compreensão dos educandos em

relação ao drama. E, para a

produção final a produção de um

texto escrito vem da busca de se

avaliar o processual através das

narrativas dos alunos, o que nos

possibilitará adaptar esta ODR

para novas práticas.

Contexto de

produção e uso

Despertar o olhar do

aluno para as

potencialidades do

texto dramático.

É preciso incentivar os

educandos a trabalhar as

diferentes camadas do texto

literário.

Elementos

linguísticos-

discursivos e

literários

Figuras de linguagem,

explorar as metáforas

e repetições do texto,

bem como sua

estrutura

composicional.

Elementos que emergem das

interações entre educandos e

educadores.

Atividades

complementares Não foi previsto.

A atividade complementar

deverá ser implementada caso os

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educandos demandem ou caso

existam lacunas da atividade que

precisam de uma nova

abordagem.

A partir desse exemplo, de uma prática pedagógica permeada pelo trabalho com a

ODR compreenderemos como chegar no nosso objetivo principal, que é o de criar contextos

de produção e uso que possibilitarão aos educandos e aos educadores instrumentos

necessários para o desenvolvimento do trabalho com a literatura e a educação em sala de aula

em situações de interações diversas. Permitindo com que amas as partes, por meio de

reflexões construam suas relações por meio da composição textual. Ademais, é importante

salientar que nossa proposta é o primeiro momento de um método que deve ser construído e

(re)construído na prática, resgatando/registrando, problematizando, sistematizando e

produzindo.

3.2 O encontro entre a literatura e a sala de aula

Para finalizar esta dissertação, escolhemos discorrer sobre o contato entre a literatura e

a sala de aula. Em forma de encontro, entre o leitor e o texto ou entre o educador e o

educando, em que o objetivo principal desses contatos é construir ou (re)construir as relações

de espaços afetivos. Através da tentativa de responder as seguintes questões: a quem interessa

essa formação? e literatura pra quem?

Para tanto, é importante delimitarmos nosso ponto de partida; que é o entendimento de

que o texto literário nos apresenta um mundo a se descobrir. Segundo Todorov (2010) “a

literatura não conheceria limites” sendo assim tanto a literatura quanto o homem caminharam

juntos e nesse percursos ambos criam uma relação de interdependência, em que os indivíduos

se reconhecem por meio da literatura, mas é importante lembrar que “o conhecimento da

literatura não é um fim em si mesmo mas uma das vias régias que conduzem a realização

pessoal de cada um” (TODOROV, 2010, p. 33).

Dessa forma, podemos dizer que a educação tem um papel social, assim como a

literatura e é esse ponto em que ambas se encontram que é nosso interesse apresentando La

Cantatrice chauve como uma possibilidade, uma vez que só poderemos compreender o

mundo em que estamos inseridos a medida em que o compreendemos como um mundo

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passível de modificação e por meio do potencial de entrega que o teatro pode nos apresentar

enquanto construção estética.

E, nesse momento, ele emerge como um diapasão da vida emitindo vibrações de uma

nota que nos apresenta os paradigmas de um mundo em que estaremos sempre nos

questionando sobre noções como, por exemplo, a de liberdade e de realidade. Nesses

exercícios de reflexão provocados pelo objeto artístico, em nosso caso trabalhar o teatro, nos

tem apresentado a importância da centralidade do corpo nos processos de ensino-

aprendizagem enquanto elemento fundamental para a constituição de propostas de ensino-

criação como a apresentada neste capítulo.

Dessa forma, como já apresentado a passividade do sujeito/ espectador dá lugar a

incorporação de uma emoção de entrega capaz de gerar mudanças a partir de um novo

paradigma, o da arte-atuante. Em que nossos educandos estarão lidando com essa

ressignificação do próprio espaço de sala de aula, em que a leitura do texto se apresentará

como um espaço de possibilidades e de vivencias.

Como coloca Rouxel (2014) a experiência estética é um momento privilegiado na

formação do leitor, pois, ela deixa rastros por meios dos pontos de contatos seja na memória,

nos valores ou na personalidade. De maneiras muito particulares ligadas a cada vivencia do

leitor, por isso é importante a produção dos diários de bordo. Quando os aprendentes passam

de leitores para autores, eles podem fazer ecoar as questões que antes lhe pareciam

estrangeiras, distantes e transfigurar todos os elementos por meio de sua realidade e assim

dando outro valor a sua leitura e as experiências resultantes da leitura. Como no esquema a

seguir:

Nessa figura, o que vemos é a interação dos ecos que emergem do primeiro contato do

leitor com a obra, nas linhas vermelhas, com o eco das experiências de vida do leitor, nas

linhas pretas. De um lado, temos o processo cognitivo que vai permitir que esse sujeito

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interprete os estímulos oferecidos pela leitura através daquilo que os olhos puderam captar.

Do outro lado, em contrapartida a esses incentivos estão as emoções que são ligadas as

relações que o indivíduo possui com sua vida e que ecoam da mesma maneira que os

primeiros ecos e, embora partam de diferentes “lugares” quando em contato eles nos

apresentam o sentido deste encontro para a leitura e a vida no leitor literário.

Por isso, a importância da produção final no trabalho com a literatura, pois, ela é um

instrumento importante de compreensão que vai nos apresentar, no nosso caso, as

potencialidades de se trabalhar com o texto literário contemporâneo e com o teatro, por meio

das leituras de nossos educandos. Como nos apresenta Rouxel (2014);

Novas práticas se desenvolvem atualmente nas salas de aula, da educação infantil à

universidade, dentre as quais, o trabalho com diários e cadernos de leitura. Eles

permitem observar o ato da leitura, captar as reações, as interrogações dos leitores

ao longo do texto, identificar as passagens sobre as quais eles se detêm, que eles às

vezes grifam para guardar o termo destacado. Esses escritos possibilitam vislumbrar

como a personalidade do leitor se constrói no espelho do texto: os julgamentos

axiológicos sobre os discursos ou a ação dos personagens, as hesitações e as

interrogações sobre a maneira de apreciar o mundo ficcional ou a qualidade da

escrita testemunham essa construção identitária. (ROUXEL, 2014, p. 26)

São esses os vestígios que colaboram para o trabalho com o texto literário em sala de

aula. Compreender de que maneira os elementos estéticos se conectam com a leitura de

mundo dos aprendentes e como elas se ressignifica transformando cada experiência literária

em única. E, no trabalho com o gênero teatro é preciso estabelecer o encontro com o corpo a

partir da prática teatral, mas esse é objeto de uma próxima pesquisa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O início do fim. La Cantatrice chauve não nasce no nada, mas no centro dos discursos

latentes das disputas de narrativas que estabelecem o teatro como gênero literário. Dessa

maneira, apresentamos nesta dissertação entre vozes e silêncios algumas das potencialidades

do trabalho com o texto teatral em sala de aula e demonstramos as forças que se convertem

para a formação dos sujeitos, por meio das práticas sociais e dos elementos estéticos que

compuseram a teoria do Teatro do Absurdo.

Escutamos e demos voz aos aprendentes que fizeram de alguma forma parte desta

pesquisa e por meio deles delimitamos novos espaços, iluminamos as estruturas e

(re)construímos as relações entre os educandos e educadores com o objetivo de transformar

essas relações por meio da construção de um espaço afetivo. E todo esse processo foi de

encontro com a necessidade de dar visibilidade as questões teórico metodológicas de uma

tentativa de se estabelecer uma pedagogia da literatura.

Promovemos o encontro do texto e do leitor por meio da leitura na sala de aula. E

atribuímos pelo e para o sujeito novos papeis dentro desse texto, que não mais se propõem a

ser uma representação da vida, como um espelho, mas nos apresentar uma vida possível de

modificação. Em meios aos fragmentos apresentados em nossa peça, como os discursos que

parecem não dizer nada, na ausência-presente de nossa Cantora e na narrativa de casais que

não se enxergam, a obra procura nos apresentar esse cenário de maneira que suscitam em nós

questionamentos.

Com isso, o teatro, no mundo contemporâneo, torna-se uma possibilidade, seja de

ruptura ou de transformação. O riso da dérision emerge como resistência, como superação de

uma situação, pois o distanciamento momentâneo causado pela gargalhada só acontece com a

conexão. Sendo assim, as críticas que apresentam os textos da vanguarda apenas como

fragmentos não conseguem acessar a expressividade das múltiplas dimensões do humano

presentes em seus textos.

Para tanto, dissertamos sobre o lugar da literatura e da educação por meio de

referenciais bibliográficos que nos apresentaram as potencialidades do trabalho com o texto

literário, bem como nas dificuldades apresentadas por meio de conceitos que colocam

educandos e educadores em relações de hierarquia, o que não vai de acordo com nosso olhar

sobre a educação. Com o objetivo de dar voz a esses atores, apresentamos a metodologia

colaborativa que teve como principal objetivo redimensionar os lugares da prática docente,

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por meio de uma participação mais ativa dos aprendentes, que se envolveram em todas as

reflexões que constituem o trabalho, que é, também, resultado das interações deles.

Tivemos diversas dificuldades, a busca por um referencial teórico que abarcasse a

metodologia colaborativa foi o maior deles, fomos ao departamento de antropologia em busca

de uma teoria que pudesse abarcar nossos educandos e apesar dos nossos limites, como a

possibilidade de fazê-los trabalhar em autonomia, do pouco tempo em sala de aula e da falta

de tempo para a pesquisa, muitas atividades não foram completamente desenvolvidas. No

entanto, trabalhar em colaboração nos apresenta a relevância do processo e da construção do

conhecimento por meio dele.

Ademais, em meio a essas dificuldades é importante constatar a relevância do

desenvolvimento das teorias sobre o existencialismo camusiano para a construção da peça que

é objeto desta dissertação, pois por meio delas ampliamos o olhar sobre os diálogos possíveis

entre o teatro contemporâneo e suas relações com as potencialidades do texto dramático de

iluminar o mundo diante de suas contradições.

A partir dessas reflexões, o novo sujeito se apresenta e o lugar do educando se

reconfigura por meio da partilha e da possibilidade da leitura cênica. Nesse sentido, essas

modificações requerem a necessidade de uma proposta pedagógica para trabalhar com a

literatura nesse novo cenário. A Orientação Didático-Reflexiva (ODR) emerge, portanto,

como uma possibilidade, uma via pedagógica com a finalidade de auxiliar os educadores na

organização de suas aulas.

Pretendemos, em um outro momento, dar continuidade as atividades colaborativas a

partir da continuação desta pesquisa com o objetivo principal de desenvolver uma proposta

didática colaborativa que auxilie a formação dos professores de literatura. Este projeto se dará

no âmbito do Mestrado Internacional, no qual a proposta colaborativa se desenvolverá entre

Nantes, na França e Aveiro, em Portugal. Dessa forma, finalizamos esta dissertação com o

encontro entre a literatura e a sala de aula, reiterando a importância do trabalho com a

literatura e a educação. O fim do início.

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