universidade de brasilia faculdade de planaltina...

79
1 UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO TURMA ANDRÉIA PEREIRA DOS SANTOS COMPOSIÇÃO DO NARRADOR E FIGURAÇÃO DA SOCIEDADE EM “PAI CONTRA MÃE”, DE MACHADO DE ASSIS PRISCILA GOMES PEREIRA ORIENTADORA: ANA LAURA DOS REIS CORRÊA Planaltina- DF 2013

Upload: nguyennhi

Post on 11-Nov-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

1

UNIVERSIDADE DE BRASILIA

FACULDADE DE PLANALTINA

LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO

TURMA ANDRÉIA PEREIRA DOS SANTOS

COMPOSIÇÃO DO NARRADOR E FIGURAÇÃO DA SOCIEDADE EM

“PAI CONTRA MÃE”, DE MACHADO DE ASSIS

PRISCILA GOMES PEREIRA

ORIENTADORA: ANA LAURA DOS REIS CORRÊA

Planaltina- DF

2013

Page 2: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

2

PRISCILA GOMES PEREIRA

TURMA ANDRÉIA PEREIRA DOS SANTOS

COMPOSIÇÃO DO NARRADOR E FIGURAÇÃO DA SOCIEDADE EM

“PAI CONTRA MÃE”, DE MACHADO DE ASSIS

Monografia de final de curso submetida à Faculdade UnB

Planaltina, da Universidade de Brasília, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do Grau de Licenciado em

Educação do Campo, com habilitação na área de Linguagens.

Orientadora: Ana Laura dos Reis Corrêa

Planaltina- DF

2013

Page 3: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

3

PRISCILA GOMES PEREIRA

TURMA ANDRÉIA PEREIRA DOS SANTOS

COMPOSIÇÃO DO NARRADOR E FIGURAÇÃO DA SOCIEDADE EM

“PAI CONTRA MÃE”, DE MACHADO DE ASSIS

Monografia de final de curso submetida à Faculdade UnB

Planaltina, da Universidade de Brasília, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do Grau de Licenciado em

Educação do Campo, com habilitação na área de Linguagens.

Orientadora: Profª. Drª. Ana Laura dos Reis Corrêa

Aprovada em ____/______/2013

Banca Examinadora:

Profª. Drª. Ana Laura dos Reis Corrêa (UnB) – Orientadora

Presidente

Profª. Drª Deane Maria Fonsêca de Castro e Costa

(UnB) – Membro interno

Prof. Dr. Bernard Hess (UnB) – Membro interno

Planaltina – DF

2013

Page 4: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

4

DEDICATÓRIA

Agradeço em primeiro lugar a Deus, pela força e coragem a mim concedidas e por ter

iluminado o meu caminho durante esta caminhada.

Dedico esta e as minhas demais conquistas, aos meus pais, que sempre estiveram ao

meu lado me incentivando e orientado. Obrigada pelas orações, forças e incentivos.

A todos os professores da área de Linguagens que me acompanharam durante esse

processo de transformação e acúmulo de conhecimento, em especial a Prof.ª e Dr.ª Ana Laura

dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora na conclusão deste trabalho.

Aos meus companheiros de comunidade (Simone, Elza, Jaci e Gideão), pelas horas de

discussões em prol de melhoria para a comunidade e pelas realizações dos trabalhos em

grupo.

A minha inestimável amiga e irmã em Cristo Jesus, Rosileide, que esteve comigo nos

momentos mais felizes e nos mais tristes, orando por mim e me encorajando a continuar a

caminhada. Que Deus derrame benção sem medida em sua vida e na sua família.

Page 5: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

5

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela extraordinária força e coragem que me concedeu e por ter permanecido

ao meu lado.

Aos meus pais, que sempre me apoiaram e oraram por mim.

Aos meus irmãos, que sempre me incentivaram a concluir os meus estudos.

Aos docentes da Licenciatura em Educação do Campo, que me ajudaram nessa

caminhada, me ajudando a formar um olhar crítico e humanizado. Também por me ensinarem

que o conhecimento é algo que está sempre se renovando. Em especial aos docentes: Prof. Dr.

Pasquetti, Prof.ª Dr.ª Mônica, Prof.ª Dr.ª Rosineide e Prof.ª Dr.ª Eliete que são os pilares do

curso, pois estão em constante batalha por uma educação do/no campo.

A todos os colegas do curso, pelos momentos passados juntos que ficaram na historia.

Obrigado pelas contribuições em meu processo formativo.

Aos meus amigos e colegas do Colégio Estadual Assentamento Virgilândia, pela

compreensão e incentivo a mim dedicado, no tempo de ausência no período de tempo escola.

Page 6: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

6

...mas os que confiam no Senhor recebem

sempre novas forças. Voam nas alturas como

águias, correm e não perdem as forças, andam e não se cansam.

Isaías 40:31

A atual sociedade não é um cristal sólido,

mas um organismo capaz de mudar e que está em

constante processo de mudança.

Karl Marx

Se eu pudesse deixar algum presente a você, deixaria aceso o sentimento de amar a vida dos

seres humanos. A consciência de aprender tudo o que foi ensinado pelo tempo a fora.

Lembraria os erros que foram cometidos para que não mais se repetissem. A capacidade de

escolher novos rumos. Deixaria para você, se pudesse, o respeito àquilo que é indispensável.

Além do pão, o trabalho. Além do trabalho, a ação. E, quando tudo mais faltasse, um

segredo: o de buscar no interior de si mesmo a resposta e a força para encontrar a saída.

Mahatma Gandhi

A poesia é a memória feita imagem e esta convertida em

voz. A outra voz não é a voz do além túmulo: é a do homem que

está dormindo no fundo de cada homem. Tem mil anos e tem nossa

idade e ainda não nasceu. É nosso avô, nosso irmão e nosso bisneto.

Paz, 1993

Page 7: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

7

RESUMO

Esta pesquisa tem como objeto de estudo a composição do narrador e figuração da

sociedade em Pai contra mãe, de Machado de Assis, e a relação dessa construção estética

com a figuração da sociedade brasileira. Tendo como foco a composição do narrador

mediante os acontecimentos narrados do conto e a posição que o mesmo assume ao narrar às

contradições sociais e históricas figuradas no texto literário. Ainda pretende perceber a

problematização entre conto e crônica histórica. Para este estudo, recorrerei à pesquisa

bibliográfica de textos críticos acerca do conto, da composição do foco narrativo e de autores

como Roberto Schwarz, Antonio Candido, Alfredo Bosi, entre outros, que servem de base

para a leitura analítica do conto Pai contra mãe. O estudo do conto nos mostra a força que a

literatura possui para a humanização do sujeito e que vida social e literatura se configuram na

arte. O narrador é quem nos captura para as contradições narradas, sendo que as contradições

são representações da vida social da época, considerando-se que, na atualidade, ainda existem

resquícios dessas contradições, pois muitas não foram superadas. Este estudo também indica

como a sociedade brasileira é marcada pela desigualdade e pela negação do acesso à arte eà

literatura como forças de desalienação do sujeito.

Palavras chave: conto; narrador; contradições; vida social, literatura.

Page 8: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

8

ABSTRACT

This research aims to study the composition of the narrator and figuration of society in ―Pai

contra mãe‖, Machado de Assis, and the relationship of this construction with aesthetic

figuration of Brazilian society. Focusing on the composition of the events narrated by the

narrator of the tale and the position that it takes to narrate the historical and social

contradictions figured in literary text. Still want to see the problematization between tale and

historical chronicle. For this study, the literature of critical writing about the story, the

narrative focus and composition of authors such as Roberto Schwarz, Antonio Candido,

Alfredo Bosi, among others, serving as a basis for analytical reading of the tale ―Pai contra

mãe‖. The study of the tale shows us the power that literature has to humanize the subject and

social life and literature are configured in the art. The narrator is the one who captures the

contradictions narrated, and the contradictions are representations of social life at the time,

considering that nowadays, there are still remnants of these contradictions, because many

have not been overcome. This study also indicates how the Brazilian society is characterized

by inequality and denial of access to art and literature as forces of alienation of the subject.

Keywords: tale; narrator; contradictions; social life, literature.

Page 9: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................... 10

CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO QUE É O CONTO

LITERÁRIO....................................................................................................................

13

1.1 Como se define um conto?........................................................................................ 14

1.2 ―Pai contra mãe‖, conto ou crônica histórica?.......................................................... 26

CAPÍTULO II – PAI CONTRA MÃE: O NARRADOR NA DISPUTA?..................... 35

2.1 A importância do foco narrativo na estrutura literária.............................................. 36

2.2 O narrador machadiano............................................................................................. 49

2.3 A posição do narrador em ―Pai contra mãe‖............................................................. 54

CAPÍTULO III – A FIGURAÇÃO DA VIDA SOCIAL BRASILEIRA NO MUNDO

DO CONTO ―PAI CONTRA MÃE‖..............................................................................

62

3.1 Relações entre literatura e vida social na sociedade brasileira.................................. 65

3.2 A figuração da vida social brasileira no conto ―Pai contra mãe‖.............................. 70

COSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 76

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 79

Page 10: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

10

INTRODUÇÃO

Quando se trata da análise da obra ficcional de Machado de Assis, um dos pontos mais

fecundos é, sem dúvida, o que diz respeito ao perfil e à composição do narrador machadiano.

Nesta perspectiva, este trabalho tem como objeto de pesquisa a composição do narrador no

conto ―Pai contra mãe‖, de Machado de Assis e a relação dessa construção estética com a

figuração da sociedade brasileira.

O objetivo geral desta pesquisa é analisar a composição do narrador mediante os

acontecimentos do conto e a posição que o mesmo assume ao narrar as contradições sociais e

históricas figuradas no texto literário. A partir desse objetivo, pretende-se, ainda, compreender

o gênero narrativo adotado por Machado de Assis: o conto; perceber a problematização entre

conto e crônica histórica proposta por esse texto de Machado de Assis; compreender a

importância do narrador na composição de uma narrativa; entender as peculiaridades do

narrador machadiano; investigar o papel do narrador machadiano no conto ―Pai contra mãe‖;

analisar as relações entre a composição do narrador e a figuração da vida social no conto.

As razões que justificam os objetivos a serem alcançados neste trabalho de pesquisa

monográfica se ligam a três aspectos: do ponto de vista do trabalho com o texto narrativo, é

evidente, especialmente no caso da obra de Machado de Assis, a importância do foco

narrativo na construção do texto literário; do ponto de vista social, esta pesquisa considera a

importância do acesso e do trabalho com o texto literário por parte daqueles aos quais tem

sido negada a força humanizadora da literatura, na vida e na escola; por fim, considera-se que

o trabalho com a literatura é uma forma de resistência à desumanização da vida social, hoje

marcada pela mercantilização da vida.

O narrador é um dos elementos que estruturam a narrativa literária; trata-se de uma

estrutura textual que pode se apresentar de várias formas na literatura; conhecer e analisar

cada forma que o caracteriza é muito importante, pois o mundo literário, no qual o narrador

tem papel decisivo, não só faz parte da vida humana, mas é também uma crítica da vida.

A estrutura social brasileira marcada pela desigualdade nega diariamente o acesso à

literatura para a classe trabalhadora, restringindo o acesso aos textos literários apenas às

classes dominantes. Assim como na vida social, a literatura como força humanizadora tem

sido negligenciada constantemente nas unidades de ensino, fazendo com que, na maioria das

vezes, os educadores formem cidadãos sem sensibilidade e totalmente insensíveis aos

conflitos existentes na sociedade.

Page 11: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

11

Além disso, o mundo moderno fez com que a sociedade perdesse o interesse pela

leitura da literatura fazendo com que o conto e outros gêneros literários ficassem no

esquecimento, pois, na atualidade, o mundo é bombardeado diariamente pelas informações

jornalísticas, pelas técnicas de produção e representação imediatistas e mercantilizadas;

configurando um mundo onde as pessoas não acham espaço para a troca de experiência mais

profunda e humanizadora.

Ao analisar o narrador do conto ―Pai contra mãe‖ espero evidenciar a importância da

força humanizadora da literatura para a sociedade atual. Machado de Assis é um autor

fundamental para a formação de nossa literatura e, por meio de suas obras, é possível

compreender melhor nosso passado e nosso presente, já que muitos dos problemas que são

apresentados literariamente nas obras do escritor ainda não foram de fato solucionados na

atualidade.

Para a realização desta pesquisa será necessário o estudo dos elementos estruturais da

narrativa, especialmente os que se referem à teoria do conto e à construção do narrador. Como

o narrador machadiano apresenta-se de forma bastante peculiar, é necessário abordar os traços

específicos desse narrador: a mudança de ponto de vista no conjunto da obra machadiana (de

3ª para 1ª pessoa; ou de um ponto de vista dos dominados para o dos dominantes); os traços

de ironia, volubilidade e posição de classe, que marcam esse narrador. Por fim, é preciso

considerar a fortuna crítica acerca do Machado romancista e contista, especialmente aquela

que aproxima a narrativa machadiana do tema que norteia esta pesquisa: a figuração da vida

social brasileira pela literatura. Para tanto, recorrerei à pesquisa bibliográfica de textos críticos

acerca do conto, da composição do foco narrativo e de autores como Roberto Schwarz, John

Gledson, Antônio Candido, Alfredo Bosi e Hermenegildo Bastos, entre outros.

A metodologia adotada para a realização deste trabalho envolve, portanto, a pesquisa

bibliográfica dos textos críticos e a leitura analítica do conto ―Pai contra mãe‖, de Machado

de Assis. Em primeiro lugar, será feito um estudo sobre a teoria do conto, a partir do qual será

possível buscar compreender a tensão entre conto e crônica histórica existente no conto ―Pai

contra mãe‖. Em seguida, será enfocado o problema da composição do narrador do conto, que

terá como base o estudo da estrutura do foco narrativo e, especificamente, o estudo das

peculiaridades do narrador machadiano, para compreender a posição do narrador do conto em

análise nesta pesquisa. Por fim, a partir dos estudos feitos, será possível relacionar a

composição textual e a atuação do narrador com a atualidade da figuração da vida social

brasileira no conto ―Pai contra mãe‖.

Page 12: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

12

Nesta pesquisa espero pode responder as seguintes perguntas: Por que o narrador se

mostra ora distanciado dos acontecimentos narrados e ora próximo deles? Em que perspectiva

o ponto de vista do narrador desse conto se aproxima ou se distancia dos elementos que

caracterizam o narrador machadiano: volubilidade, ironia, posição de classe dominante?

Como a composição do ponto de vista narrativo atua na figuração da vida social no conto?

Para respondê-las, o trabalho será organizado em três capítulos. No capitulo I, faço

considerações em torno do que é um conto literário, ou seja, como se define um conto?

Através da análise do conto ―Pai contra mãe‖ de Machado de Assis, espero discutir os fatores

que resultam da relação entre conto e crônica, proposta pela forma que Machado deu a essa

sua narrativa. O que será que é este conto? Uma crônica ou um conto?

No capitulo II, – ―Pai contra mãe‖, o narrador na disputa –, discutirei a importância do

foco narrativo na estrutura literária, fazendo uma discussão sobre como é o narrador

machadiano, como este narrador se comporta e qual é a sua posição neste conto.

No capitulo III, procurarei analisar de que forma se realiza a figuração da vida social

brasileira no mundo do conto ―Pai contra mãe‖, considerando as relações entre literatura e

vida social.

Page 13: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

13

CAPÍTULO I

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO QUE É O CONTO

LITERÁRIO

o contar não é simplesmente um relatar

acontecimentos ou ações.

Gotlib, 2004, p.8.

Neste capítulo procuraremos estabelecer, com vistas a embasar teoricamente os

capítulos posteriores, uma definição de conto literário. Para tanto, apresenta-se um resumo

dos principais elementos referentes a história, origem, desenvolvimento e características

formais do conto literário, tendo como referência e base o texto de Nádia Gotlib (2004) –

Teoria do conto. Convém assinalar que não retomaremos aqui todos os teóricos elencados por

Gotlib, mas apenas aqueles que tratavam de questões que nos pareceram mais associadas ao

objetivo deste trabalho, ou seja, a discussão do conto ―Pai contra mãe‖, de Machado de Assis.

Considerando-se a hipótese de que este conto se realiza esteticamente a partir da relação entre

conto e crônica histórica, nos pareceu importante apresentar algumas considerações a respeito

do que é um conto literário.

A palavra conto tem três acepções, conforme Julio Casares (Gotlib, 2004, p. 8), sendo

a primeira o relato de um acontecimento; a segunda uma narração oral ou escrita de um

acontecimento falso; e a terceira uma fábula que se conta às crianças para diverti-las. Ao

analisá-las, podemos dizer que todas essas acepções possuem um ponto em comum: são

modos de se contar coisas vividas ou inventadas pelo próprio narrador e, como tal, são todas

narrativas. Mas o conto não tem compromisso só com o real, pois nele relato e ficção não tem

limites. Nas linhas gerais da história do conto, desde seu esboçar ao seu desenvolvimento, a

transmissão das narrativas era oral, mas, com o passar do tempo, o seu registro tornou-se

predominantemente escrito e o narrador passou a assumir a função de contador-criador-

escritor de contos, afirmando o caráter literário desse tipo de narrativa, pois, ao ser escrito, foi

adquirindo a sua força estética.

Page 14: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

14

1.1 COMO SE DEFINE UM CONTO

Um conto é uma verdadeira máquina

literária de criar interesse.

Cortázar apud Gotlib, 2004, p.21.

A arte de contar estórias1 sempre esteve presente nas sociedades mais antigas e tudo

indica que começou com a necessidade de preservar a memória de experiências significativas

para uma comunidade; assim, as pessoas sempre se reuniram para contar o que ouviram ou

presenciaram. As pessoas das sociedades primitivas transmitiam as suas culturas por meio das

histórias contadas de um para o outro e hoje esse rito ainda é bem presente em algumas

famílias. Muitas ainda gostam de transmitir notícias e trocar ideias da mesma maneira que

faziam os nossos antepassados. As estórias podem variar de assuntos e maneiras de se contar,

podem ser de perdas, conquistas, decepções, alegrias e outros. Não sabemos com exatidão o

início do hábito de contar estórias, porém é certo que esse costume está relacionado a tempos

remotos, quando a escrita ainda não havia sido desenvolvida. Muitos afirmam que os contos

egípcios são os mais antigos e devem ter aparecido por volta de 4.000 anos antes de cristo.

Conforme (Gotlib, 2004), enumerar as fases da evolução do conto seria como percorrer a

nossa própria história, a história de nossa cultura, detectando os momentos da escrita que a

representam. Nesse sentido, ela nos leva a pensar nos textos literários do mundo clássico

greco-latino (Ilíada e Odisseia), os contos do oriente (o Pantchatanra VI A.C.; em sânscrito,

ganha tradução árabe VII d. C; e inglesa XVI D.C.) e, por último, as Mil e uma noites, que da

Pérsia passam pelo Egito para toda a Europa.

Na história da teoria do conto uma narrativa que nos chama a atenção é a de

Sheherazade, que narrava estórias para o rei Shariar noite após noite, adiando assim a sua

morte, já que o rei planejava matá-la. O rei desposava toda noite uma virgem e depois a

matava para que nenhuma jovem repetisse o ato de traição que sua ex-esposa cometera.

Sheherazade, contando estórias, ganhou a simpatia do rei, pois, ao narrá-las, aguçava-lhe a

curiosidade, fazendo-o querer ouvi-la na noite seguinte. Os contos acabaram encantando o rei,

e Sheherazade, contando estórias, adiava a morte e prolongava a sua vida.

No século XIV, a forma do conto vive uma transição decisiva, pois o relato, que

inicialmente era transmitido oralmente e que depois ganhou registro escrito, começa a se

1 Mantivemos neste texto a diferenciação entre estória e história utilizada por Nádia Gotlib, em seu livro A teoria

do conto (2004).

Page 15: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

15

afirmar como forma estética. Os contos de Bocaccio, no seu Decameron (1350) são

traduzidos para varias línguas e rompem com o moralismo didático. O narrador dedica-se à

elaboração artística para não perder o tom da narrativa oral e conserva o recurso das estórias

de moldura: ―são todas unidas pelo fato de serem contadas por alguém a alguém. E os

Canterbury tales (1386), de Chaucer, são contados numa estalagem por viajantes em

peregrinação‖, conforme Gotlib (2004, p.6), que continua percorrendo o percurso da

consolidação do conto como forma artística:

O século XVI mostra o Héptameron (1558), de Marguerite de Navarre. E no século

XVII surgem as Novelas ejemplares (1613), de Cervantes. No fim do século surgem

os registros de contos por Charles Perraut: Históires ou contes du temps passé, com

o subtítulo de ―Contes de Ma Mere Loye‖, conhecidos como Contos da mãe Gansa.

Se o século XVIII exibe um La Fontaine, exímio no contar fábulas, no século XIX o

conto se desenvolve estimulado pelo apego à cultura medieval, pela pesquisa do

conto popular e do folclórico, pela acentuada expansão da imprensa que permite a

publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais. (p.6)

Podemos considerar este o momento da criação do conto moderno, pois do lado de

Grimm que registra contos e inicia o seu estudo, surge um Edgar Alan Poe que, enquanto se

firma como contista, se afirma também como teórico do conto. Na busca e na força de contar

estórias no decorrer dos séculos, surge também a tentativa de explicar a história destas

estórias e vai se montando uma problematização do modo de narrar.

O conto passou por várias transformações no decorrer do tempo e, para alguns

estudiosos, ele possui uma teoria própria, enquanto, para outros, não há uma teoria especifica

do conto, porém, em ambos os casos, não há como pensar o conto desvinculado da teoria

geral da narrativa. Como pensar o conto desvinculado da tarefa de representar literariamente a

realidade? É neste momento que surge a diferenciação, pois, enquanto alguns estudiosos

pensam que o conto está regido por determinações gerais da narrativa, outros reconhecem que

ele teria característica especifica de gênero, assim como o romance tem suas especificidades

Podemos perguntar quais os limites da especificidade do conto enquanto determinado tipo de

narrativa? O que faz com que o conto continue sendo conto apesar das mudanças ocorridas no

decorrer da história? E por último, será que o conto ainda possui aspectos que são fiéis as suas

origens?

Muitos escritores ressaltam a dificuldade de escrever contos. Machado de Assis se

manifesta a esse respeito em 1813, dizendo que o gênero é difícil mesmo, negando a sua

aparência de ser fácil. O mesmo relata que essa aparência lhe faz mal, pois afasta os escritores

e o público de toda atenção que ele merece. Muitos outros escritores também atentam para a

Page 16: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

16

dificuldade de explicar o conto. Segundo Julio Cortázar, em ―Alguns aspectos do conto‖,

―esse gênero é de tão difícil definição, tão esquivo nos múltiplos antagônicos aspectos.‖, que,

se de um lado ―é preciso chegarmos a ter uma ideia viva do que é o conto‖, isto se torna difícil

―na medida em que as ideias tendem para o abstrato, para desvitalização do conteúdo. ‖.

Estudar a teoria é aceitar uma luta em que a própria força da teoria pode aniquilar a

vida do conto. Nesse sentido vale lembrar-nos de Cortázar, que pontua:

Se não tivermos uma ideia viva do que é o conto, teremos perdido tempo,

porque um conto, em ultima análise, se move nesse plano do homem onde a

vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for

permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma a

síntese viva ao mesmo tempo em que uma vida sintetizada, algo assim como

um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência.

Só com imagens se pode transmitir essa alquimia secreta que explica a

profunda ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica

também por que há tão poucos contos verdadeiramente grandes. (Cortázar

apud Gotlib, 2004, p.7.).

Podemos considerar que o conto é uma reflexão e uma autorreflexão da vida que toma

forma pelo trabalho estético. Os escritores, ao escreverem um conto, valem-se de normas e

recursos, ou seja, eles estão guiados por finalidades estéticas. Sabemos que, seja de forma

oral ou escrita, a voz do narrador sempre pode interferir no seu discurso, mas essa voz que

fala ou escreve só se firma como contista quando existe um resultado de ordem estética em

sua obra e, por isso, nem todos que contam estórias podem ser considerados contistas.

O modo de narrar passou por vários processos e foi adquirindo modos diferentes e

ganhou alguns elementos característicos que delimitaram o gênero de cada narrativa, que

podem apresentar diferentes características que as associa a este ou àquele gênero: romances,

poemas ou dramas. Vale lembrar que essa classificação dos gêneros da narrativa também tem

sua história; há relatos de que ela se acentuou nos períodos clássicos (a Antiguidade greco-

latina, a Renascença), definindo um público para cada gênero (épico, lírico e trágico) e um

repertório de procedimentos ou normas a serem usado nas obras de arte. Em outros

momentos, os limites de gênero literário se tornaram mais flexíveis, e certas formas literárias

se misturaram: consolidam-se formas híbridas (romance, drama, poema em prosa), como

ocorreu no Romantismo e no Modernismo, que questionaram as normas e os limites

estabelecidos para a classificação das obras em determinado gênero. Quanto ao conto, o seu

modo de ser também sofreu muitas mudanças e delas surgiram maneiras variadas de narrar;

Page 17: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

17

cuja história evolutiva foi sistematizada por alguns teóricos, apresentados por Gotlib (2004),

em seu livro sobre o conto.

O conto maravilhoso é uma das formas mais populares e antigas de narrativa; para

André Jolles (Gotlib, 2004, p.11), trata-se de uma forma simples de narrar, pois pode ser

transmitido oralmente ou por escrito sem que o seu ―fundo‖ se perca. Qualquer pessoa que

conte o conto manterá a mesma forma, ou seja, a forma simples, que não pode ser

desenvolvida sem o elemento do maravilhoso, isto é, não apresenta precisão histórica, narra

um acontecimento que pode ter ocorrido em qualquer tempo ou espaço, daí o conto, como

forma simples, ter esta possibilidade de ser fluido, móvel, de ser entendido por todos, de se

renovar nas suas transmissões, sem se desmanchar: caracterizam-no, pois, a mobilidade, a

generalidade e a pluralidade. Para Jolles, a forma simples não corresponde a uma forma

artística exatamente, pois o que corresponderia ao que hoje se classifica como conto literário

seria a novela (toscana), pois esta leva em si a marca do seu criador, é produto de uma

personalidade em ação criadora, procura representar uma parcela da realidade segundo o seu

ponto de vista compondo assim um universo individualista, coeso e sólido. A novela toscana

adotou a forma da narrativa de moldura: narrativas que se apresentam ligadas por um quadro

que assinala, entre outras coisas, onde, quando e por quem são contadas. O conto maravilhoso

e a novela toscana e de moldura são duas realidades narradas diferentes, ou seja, enquanto um

é sempre um, a narrativa se repete; na outra é o outro que é sempre o outro, a narrativa não se

repete e é peculiar a seu único autor.

Examinando a definição de Jolles do conto maravilhoso, Vladimir Propp descreve, sob

o ponto de vista do formalismo russo, as funções, transformações e origens do conto

maravilhoso. Quanto às funções, Propp afirma que são ―ações de uma personagem, definida

do ponto de vista do seu significado no desenrolar da intriga‖ Essas funções ou ações

praticadas pelos personagens são sempre as mesmas independentemente dos personagens que

as praticam e realizadas na mesma sequência em diferentes contos (uma ordem dada por um

personagem; o engano de outro, a salvação pelo herói do conto e a punição do antagonista,

por exemplo). Propp descreve ainda a presença de sete personagens típicos e constantes dos

contos maravilhosos: o antagonista ou agressor, o doador, o auxiliar, a princesa e seu pai, o

mandatário, o herói e o falso herói.

Quanto às transformações ocorridas no conto maravilhoso, Propp conclui que a vida

real não pode destruir a estrutura geral do conto, mas pode modificá-la ou transformá-la.

Assim existe uma forma fundamental do conto que liga as suas origens às origens religiosas,

Page 18: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

18

nas quais, segundo Propp, ainda existem as formas derivadas que dependem da realidade e da

ordem cultural em que o conto aparece. Segundo Nádia Battella Gotlib

Propp conclui que há vinte casos de transformações de elementos do conto

fátastico, que se fazem ou por alteração da forma fundamental, reduzindo,

deformando, invertento, intensificando ou enfraquecendo as ações das

perrsonagens; ou por tipos de substituição e assimilações. (2004, p.14.)

Depois de desenvolver o estudo da estrutura dos contos, Propp desenvolve o estudo

das suas origens, em que os elementos do conto seram estudados em função de suas fontes. O

estudioso reconhece duas fases na evolução do conto, sendo a primeira a sua pré-história (em

que o conto e o relato sagrado – conto, mito, rito – se confundiam); a segunda é a história de

quando o conto se liberta da religião e passa a ter vida própria, o que era sagrado passa a ser

profano. Os relatos religiosos perdem seus significados sagrados e os contos passam a ser

narrados como se narra um conto, livre do religioso; o conto passa para a atmosfera da criação

artística e recebe seu impulso de fatores socias. Nádia Batella Gotlib afirma que:

A investigação do folclore, desenvolvida por Propp, seguindo a linha do

materialismo marxista, busca explicação dos fatos no exame da realidade

histórica do passado: a origem religiosa dos contos. Investiga a conexão do

folclore com a economia da vida material: esta é que gera determinados

mitos, ritos e contos. (2004, p.15.)

O aspecto ritualístico e sagrado do conto começa a desaparecer quando a caça deixa de ser o

único meio de subsistência, e o destino da arte folclórica/ popular passa a ser atribuído à

sociedade, com ou sem casta. O conto maravilhoso possui elementos e representações da

sociedade anterior, isto é, a sociedade sem castas, e, só mais tarde, passa a ser patrimônio da

classe dominante.

As teorias de Vladimir Propp servem como base para vários outros teóricos que, a

partir das suas teorias sobre o conto maravilhoso, criam outras mais complexas. Dois desses

teoricos são A. J. Greimas e Claude Brémond, que transferem os pricipios de Propp com

modificações para a análise da narrativa em geral. Greimas analisa a distribuição dos papéis

das personagens a partir da relação sintática entre sujeito e objeto (usa funções do conto

segundo Propp e do teatro segundo Souriau). Com isso determina três tipos de ―categorias

atuacionais‖: sujeito vs. objeto, destinador vs. destinatário, adjuvantes vs. oponente. Greimas

retoma as trinte e uma funções de Propp e faz uma fusão entre elas, reduzindo-as somente a

vinte, mas ainda acaba fazendo outra redução, que é por oposição, restanto, então, somente

duas, a ruptura da alienação e a restituição da ordem.

Page 19: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

19

Claude Brémond, também a partir de Propp, cria regras gerais para o desenvolvimento

da narrativa seguindo três funções; ―uma que abre a possibilidade do processo, uma que

realiza tal possibilidade e por último uma que conclui o processo, com sucesso ou fracaso.‖

(Gotlib, 2004, p.16).

V. Chkovski, em ―A construção da novela e romance‖, analisa várias tramas em que

os modos pelos quais os elementos da novela e do romance se organizam. Primeiro analisa a

trama como novela-padrão, onde não acontece uma só ação, mas reação ou falta de

coincindência para o desencandear do enredo. O autor descreve vários tipos de trama, em

combinações diferentes dos elementos; que consistem em elementos ligados entre si por

projeções e oposições. Chkovski chega a conclusões gerais acerca da novela (ou conto) e

romance, sem produzir uma definição tal qual Propp conseguiu para o conto maravilhoso.

Esses estudos dos contos russos foram importantes, pois propiciaram o estudo das

novas formas de narrativa, ―mediante análise dos elementos que as compõem nas suas reações

e como representação cultural de uma situação histórica.‖ (Gotlib, 2004, p.16.).

A caracterização moderna do conto se deu, portanto, a partir do movimento da

narrativa no decorrer do tempo. O autor A. L. Bader (Gotlib, 2004, p 17.) nos diz que o conto

manteve, durante o passar do tempo, a mesma estrutura e o que mudou foi a sua técnica de

composição, o que justificaria a evolução da narrativa do modo tradicional para o modo

moderno. Neste modo moderno de narrar, resultante de transformações sociais associadas ao

advento do capitalismo, comoa Revolução Industrial, o caráter do conto de unidade da vida

passa por um triste proceso, pois vai sofrendo uma fragmentação dos seus valores. Neste

sentido, o modo que narrava e considerava o mundo como um todo não mais consegue

representar esta todalidade, pois perde o ponto fixo. O que era coletivo agora é

individualizado, a verdade de um todo agora é de um só.

Após essas considerações acerca da evolução do conto tradicional ao moderno, Gotlib

(2004) dedica-se a pensar o conto em relação aos gêneros literários. O conto, como um

gênero, de acordo com Edgar A. Poe, não pode ser muito longo, porém não deve ser curto

demais, assim como o poema, pois ―um poema breve demais pode produzir uma impressão

vívida, mas nunca intensa e doradoura‖ (Poe apud Gotlib, 2004, p.19.), essa mesma teoria ele

aplica à leitura do conto, que deve ser uma narrativa breve que proporcione de uma a duas

horas de leitura. O conto não pode ser comparado ao romance, do qual difere, pois o romance:

―como não pode ser lido de uma assentada, destitui-se, obviamente, da imensa força derivada

da totalidade‖ (Poe apud Gotlib, 2004, p.20.). Já com o conto breve, essa totalidade é

Page 20: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

20

alcançada, o outor consegue realizar a plenitude de sua intenção. ―Durante a hora da leitura

atenda, a alma do leitor está sob controle do escritor. Não há nenhuma inflência externa ou

extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção.‖ (Poe apud Gotlib, 2004, p.20.). Julio

Cortázar, no seu estudo sobre Poe, fala sobre esse ―dominio‖ que o escritor tem sobre o leitor.

Podemos considerar que, segundo Poe, a elaboração do conto é produto extremo do domínio

do autor sobre os seus materias narrativos. Toda obra literária é produto de um trabalho

consciente e o conto não fica fora desta análise.

Julio Cortázar define o conto de acordo com o conceito de Poe: ―um conto é uma

verdadeira máquina literária de criar interesse‖, ou, indo mais além: ―no conto vai ocorrer

algo, e esse algo será intenso.‖ (Cortázar, apud Gotlib, 2004, p.21.).

Para Julio Cortázar, Poe ―compreendeu que a eficácia de um conto depende de sua

intensidade como acontecimento puro, isto é, que todo comentário ao acontecimento em si

(...) deve ser radicalmente suprimido‖ (Cortázar, apud Gotlib, 2004, p.22). Isso significa que

cada palavra deve conduzir para os acontecimentos que ocorrem na narrativa, sendo que essa

coisa que ocorre não pode ser alegoria, mas somente acontecimento que reflita a vida:

O importante, pois, é que haja algo especial na representação desta parte da

vida que faz o conto, isto é, que haja um acidente que interesse e que ele

―seja ou pareça-nos realmente um ‗caso‘ considerado pela novidade, pelo

repente, pelo engraçado ou pelo trágico‖ – afirma José Oiticica (citado por

Herman Lima, em Variações sobre o conto). (Oiticica apud Gotlib, 2004, p.

28.).

Alguns escritores se opõem à teoria do conto de Poe; para muitos é dificil estipular

uma teoria sobre o conto, dada a sua fluidez. O gênero não é novo e é produto do século XIX,

as suas origens são antigas. Portanto Poe trata de um efeito no conto e qual seria este efeito?

Seria uma tensão unitária para além da extensão, porque no romance há várias tensões, mas

no poema é possivel haver somente uma. No entanto, de acorto com Gotlib, a questão

permanece, quais as condições que proprciam essa tensão no conto lido?

Um escritor que aborda o problema da tensão no conto é Tchekhov, que a entende a

tensão comocondensação, concentração ou compactação. Tchekhov, ao analisar as suas obras

e as dos outros contistas, avalia os conceitos do escrever bem e esclarece questões refentes à

prática do escrever e ler estórias, especialmente ―o conto.‖ Nos seus pontos de vista, alguns

coincidem com os de Poe, e um deles é a questão da brevidade nos contos. Com relação à

brevidade, Tchekhov considera que é necessario ao conto causar efeito ou o que chama de

impresão geral no leitor. No entanto, ele enfatiza que não é só de brevidade ou impressão

Page 21: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

21

total que se geram as boas estórias ou contos. A brevidade exige algo que seja novo, a força, a

clareza e a compactação, pois é necessario que o texto seja claro para que o leitor entenda; o

conto deve também deve ser forte para marcar o leitor. Ele afirma que o contista deve ser

direto por que o exesso de detalhes não desoriente o leitor levando-o para várias direções.

Para ele, a narrativa deve ser compacta, havendo condensação dos elementos e com objetivos

fortes e claros. Tchekhov valoriza o desenvolvimento da narrativa, mas sem priorizar o seu

desfecho, desta maneira, ele deixa as personagens assumirem um papel importante, revelando

o seu interior. Ao tomar essa atitude, ele cria o conto de reflexão.

O conto possui a capacidade de fazer um corte no fluxo da realidade, ou seja, um

flash, e é nisso que ele consegue ganhar a sua eficácia sengundo alguns teóricos, pois neste

recorte ele capta o momento presente. A esse propósito, Gotlib (2004) cita a escritora Nadine

Gordimer, para quem o conto representa o real como atráves de um flash de luz.

Essa teoria que tem o conto como flash associa-o auma nova maneira de narra,

caracterizada pela fragmentação, ―ruptura com principios da continuidade lógica,‖ que busca

consagrar o momento presente. Essa teoria pode explicar um conto ou uma narrativa, porém

jamais pode explicar o conto enquanto gênero. No entanto, Gordimer faz ponderações

interessantes quanto às questões que levaram à sobrevivência do conto: quais as implicações

sócio-politicas desta sobrevivência do conto; e, de acordo com a teoria marxista de G. Lukács

que considera o romance uma forma estética ligada à ascenção da classe burguesa, que marca

o auge da cultura individualista, qual seria a relação do conto com as implicações sociais e

políticas?

A autora citada por Gotlib nos permite pensar que o conto ―é uma arte solitária na

comunicação,‖ igual ao romance, que se isola em uma solidão que só cresce nesta sociedade

individualista e competitiva. Além de Gordimer, outros autores, como Frank O‘Connor, na

obra The lonely voice, e Elizabeth Bowen, em The faber book, associaram o conto ao leitor

solitário.

Segundo Gotlib (2004, p.31.), Elizabeth Bowen aponta uma proximidade entre o conto

e o teatro, pois o narrador produz um conflito dramático intenso, utilizando teatralmente os

menores gestos e reações dos personagens, na tentativa de ―situar o homem na sua solidão, na

consciência de ocupar um lugar sozinho na realidade‖ (Bowen apud Gotlib, 2004, p.31.).

Os teóricos que seguem as teorias Poe concretizam o caráter da unidade de efeito no

conto e enfatizam a sua importância como gênero novo que foi criado no século XIX. Gotlib

faz referência ao teórico Brande Mathews, que, em um ensaio (1901), aborda a questão de

Page 22: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

22

escrever short-story (usando hifen) para separá-la da short story que é meramente uma estória

curta. Podemos compeender, de acordo com esse teórico, que existe uma diferença entre

conto e romance que não é só de extensão, mas de caratér: o conto tem uma unidade de

impressão, que o romance obrigatoriamente não possui. Gotlib compreende que a unidade do

conto se dá ―por causa da singularidade dos elementos que compõem a narrativa do conto:

personagem, acontecimento, emoção e situação.‖ (Gotlib, 2004, p. 32.). Ainda segundo B.

Mathews, o conto não necessita de um tema de amor como o romance necessita, mas é

preciso salientar que, quando ele se refere ao romance, está se referindo ao romance

cotemporâneo americano. Porém, no conto, o que deve valer é a concisão e a compreensão, a

originalidade, a ingenuidade e, enfim, no conto sempre algo vai acontecer, ou seja, o tema é

de suma importancia para o seu desevolvimento. Com este autor, surge, portanto, uma espécie

de teoria da singularidade do conto, elementos característicos que o definiriam em relação a

outras formas narrativas. A partir disso, tornam-se mais frequentes normas de composição do

conto.

No surgimento da linha da normativa, criam-se alguns manuais de como escrever

contos e o conto passa a ter espaço em revistas e jornais, o que contribui para uma

comercialização do gênero. Neste sentido, deu-se uma certa banalização do conto, pois, na era

industrializada do capitalismo, o conto passa a ter a tendência a ser padronizado, como

formade produção rápida e barata. Nesta perspectiva, surge o conto comercial, ou seja, fica

evidente a mercadorização da forma literária do conto.

Na acentuação do caráte empresarial da produção do conto surge a perspectiva de ver

no conto russo a negação deste estado mercantilizado do conto. Gotlib cita H. S Canby (1915)

como um dos críticos que exaltava a superioridade do conto russo porque na sua

particularidade o conto segue o ritmo da vida, livre do lema imposto pelos escritores e

editores americanos.

Em relação ao Brasil, Gotlib faz referência ao escritor Herman Lima que publica o

livro ―Variações sobre o conto‖ (1954), que marcou a história do conto no Brasil, e dentre as

tantas definições que apresenta, Lima ressalta um texto de Araripe Júnior, publicado em 1894,

em A semana, no qual o crítico apresenta algumas diferenças entre conto e romance:

O conto é síntetico e monocrônico; o romance, análitico e sincrônico. O

conto desenvolve-se no espírito como um fato pretérito, consumado; o

romance, como atualidade dramática e representativa. No primeiro, os fatos

filiam-se e percorrem uma direção linear; no segundo, apresentam-se no

tempo e no espaço, reagem uns sobre os outros, constituindo trama mais ou

Page 23: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

23

menos complicada. A forma do conto é a narrativa, a do romance, a

figurativa. (Araripe Júnior apud Gotlib, 2004, p.34. ).

Definições rigorozas como a de Araripe Júnior, endossada por H. Lima, nos servem de

alerta sobre as várias definições do conto, pois é preciso desconfiar das posturas

enrijecedoras, tanto quanto daquelas que flexibilizaram o conto, colocando-o a serviço do

mercado editorial. Na mesma época em que Araripe Júnior produziu sua definição, Machado

de Assis já escrevia seus contos e também escrevia sobre eles e não era tão rigoroso assim.

Outro crítico citado por Gotlib é Alceu Amoroso Lima, que também faz referência à

brevidade do conto e relata que o conto ―é uma obra de ficção; obra de ficção em prosa‖ e

completa:

O tamanho, portanto, representa um dos sinais característicos de sua

diferenciação. Podemos mesmo dizer que o elemento quantitativo é o mais

objetivo dos seus caracteres. O romance é uma narrativa longa. A novela é

uma narrativa média. O conto é uma narrativa curta. O critério pode ser

muito empírico, mais é muito verdadeiro. É o único realmente positivo.

(Amoroso Lima apud Gotlib, 2004, p. 34.).

Seguido essa linha de raciocínio podemos pensar que a definição de um texto como

conto está sujeita ao fator quantitativo, no entanto, essa postulação não elimina o problema da

definição de um conto na perspectiva qualitativa. A questão da brevidade do conto parece se

basear nos sintomas e não nas causas dos sintomas, pois não importa ao conto ser ou não ser

breve, mas provocar impacto no leitor, para que qualquer leitor, ao lê-lo, se sinta impactado

com a problemática abordada pelo contista.

O conto é uma narrativa que pode ter uma ação desenvolvida, ou seja, um enredo que

pode ser formado de dois ou mais episódios. Portanto, ao ser desta maneira, as suas ações

nem dependem uma da outra, como ocorre no romance, pois as ações do conto podem ser

mais independentes. O contista condensa o conto, deixando-o numa estética forte e

compactada que causa maior efeito no leitor em relação às questões discutidas pelo autor,

mesmo e porque ele omite certos detalhes.

Acerca do tema da brevidade do conto, Gotlib (2004, p.35.), retoma as consideração

de N. Friedman, para quem ―um conto é curto porque, mesmo tendo uma ação longa a

mostrar. sua ação é mais bem mostrada numa forma contraída ou numa escala de proporção

contraída‖. Friedman desloca a discussão para a construção estética do conto, ou seja, para o

aspecto quantitativo e não qualitativo; assim, a brevidade de uma estória passa ser avaliada

Page 24: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

24

não pelo número de palavras que a compõem, mas pela forma como são combinados seus

elementos narrativos.

Logo após esta reflexão sobre o que afirma Friedman acerca da brevidade do conto,

Gotlib (2004, p.35.) acrescenta uma nota essencial de Machado de Assis, a que já no

referimos, mas que vale à pena relembra neste momento. A citação é extraída da Advertência

de Machado publicada em seu livro de contos Várias histórias: ―O tamanho não é o que faz

mal a este gênero de histórias; é naturalmente a sua qualidade‖. Achado também reconhece,

com ironia, que, ―em alguns casos‖, a grande vantagem dos contos é serem mais curtos que os

romances, ―mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes

romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos‖.

Por fim, destacamos a discussão de Gotlib a respeito do que Julio Cortázar chama de

conto excepcional, ou seja, não exatamente aquele que é breve ou longo, que se refere ao

extraordinário ou ao fantástico ou ao cotidiano, que é russo ou americano, mas aquele que tem

efetiva força literária, que seja capaz de fisgar o leitor:

O excepcional reside numa qualidade parecida à do imã; um bom tema atrai

todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no

leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até

idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória e na sensibilidade; um

bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema

planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista,

astrônomo de palavras, nos revela sua existência. (Cortázar apud Gotlib,

2004, p. 36.).

Diante de todas as teorias do conto apresentadas por Gotlib, algumas das quais

evocamos neste texto, a de Cortázar é a que, concordando com Gotlib, nos parece a mais

fecunda, pois chama a atenção para o aspecto literário do conto, pois, sem se articular como

um sistema de relações, em que cada elemento tem a sua função, um conto não pode ser um

conto de fato.

Cortázar, entretanto, não se furta a demarcar as fronteiras entre conto e romance. Para

ele, ―o romance está para o conto assim como o cinema está para a fotografia‖:

na medida em que um filme é em principio uma ‗ordem aberta‘,

romanesca, enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma

justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a

câmara abrange e pela forma que o fotógrafo utiliza esteticamente essa

limitação. (Cortázar, apud Gotlib, 2004, p. 36).

Page 25: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

25

Na fotografia o artista faz um recorte da realidade, fixando-lhe limites, mas esse

recorte tem que atuar de modo em que represente uma realidade maior e ampla, assim como

deve ser o conto. Já no cinema e no romance, a ação é por acumulação. É preciso ter uma

série de elementos que se acumulam, que não podem ser excluídos e que levam para um

climax da obra. Quanto ao conto e a fotografia, o que importa é a seleção significativa em vez

da acumulação.

Em toda teoria do conto de Cortázar sente-se apresença de Edgar Allan Poe, pois

sendo um adimirador das teorias de Poe, Cortázar as estudou e as traduziu várias vezes.

Como foi possível ver até aqui, ao longo do tempo, muitos críticos e escritores

tentaram definir o que seria um bom conto, alguns consideravam a condição do tempo de

leitura como críterio, outros recoriam ao maior impacto.

Pensando no panorama do conto brasileiro, Machado de Assis, é sem dúvida, um dos

contistas brasileiros que conseguiram produzir o conto exepcional. Machado traduz nos seus

contos as perspicazes compreensões da natureza humana, ―desde as mais sádicas às mais

benevolas‖, mas nunca ingênuas. Como ressalta Gotlib (2004, p.42.), ―O modo pelo qual ele

aborda a realidade traz consigo a sutileza em relação ao não dito, que abre para as

ambiguidades, em que vários sentidos dialogam entre si.‖. Conquanto a leitura de seus contos

caminha no sentido de auscutar outra significação sugerida pela ironia fina e implacável do

seu narrador.

Machado tem essa percepção de fisgar o leitor pela intriga bem arquitetada,

intrigando-o com questões não resolvidas, levando o leitor a se inquietar diante da leitura de

seus contos. O leitor de Machado de Assis jamais é o mesmo de antes, pois a sua escrita faz

com que o leitor se incomode com as questões abordadas e busque maneiras de compreendê-

las para buscar formas de superá-las.

Gotlib (2004, p. 43.), relacionando os textos do contista brasileiro às teorias do conto

por ela trabalhadas e aqui apresentadas, afirma que o conto de Machado:

promove o seqüestro do leitor, prendendo-o num efeito que lhe permite a

visão em conjunto da obra, desde que todos os elementos do conto são

incorporados, tendo em vista a construção deste efeito (Poe); neste seqüestro

temporário, existe toda uma força de tensão, num sistema de relações entre

elementos do conto e em que cada detalhe é significativo (Cortázar). O conto

centra-se num conflito dramático, em que cada gesto e olhar são até mesmo

teatralmente utilizados pelo narrador (E. Bowen). Não lhe falta a construção

simétrica, de um episódio, num espaço determinado (B. Matthews). Trata-se

de um acidente da vida (José Oiticica), cercado, neste caso, de um ligeiro

antes e depois (José Oiticica). De tal forma que esta ação parece ter sido

Page 26: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

26

mesmo criada para um conto, adaptando-se a este gênero e não a outro, por

seu caráter de contração (N. Friedman). Este é um lado da questão teórica

referente às características específicas do gênero conto.

O desafio deste trabalho é exatamente analisar um conto machadiano, ―Pai contra

mãe‖, que tem como característica compositiva o fato de se estabelecer por meio do limite

entre conto e crônica histórica, daí a nossa tentativa de, por meio do estudo da obra de Gotlib

sobre a teoria do conto, buscar demarcar as fronteiras dessa forma literária.

1.2 ―PAI CONTRA MÃE‖, CONTO OU CRÔNICA HISTÓRICA?

Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou

estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega,

a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez

o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o

impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Assis, s/d, p. 103

A crônica, assim como o conto, é um gênero narrativo que tem a sua própria história.

Inicialmente, ela se constituía como uma forma de narrativa de natureza histórica que

expunha os fatos seguindo uma ordem cronológica; o que está relacionado à própria origem

da palavra (Chronos é o deus grego do tempo).

Sua origem está associada ao desenvolvimento da escrita (aproximadamente 4.000

a.C.), na Mesopotâmia, inicialmente, com a escrita cuneiforme dos sumérios, que deixaram

gravados, em placas de argila, registros cotidianos, administrativos, econômicos e políticos da

época. O registro cronológico dos fatos históricos, por meio de hieróglifos em papiros ou nas

paredes das pirâmides, que narrava a própria unificação do Império e a vida dos faraós,

assume um lugar privilegiado no Antigo Império Egípcio (3.200 a.C.), onde os escribas

gozavam de benefícios sociais, econômicos e políticos, ocupando posição social destacada,

sendo antecedidos apenas pelos sacerdotes e pelo faraó. Também entre os hebreus, os escribas

(fariseus, saduceus e essênios) ocupavam lugar de importância na vida social, pois eram os

responsáveis pelo registro, estudo e explicação da Lei ou Torá.

Na Antiguidade Clássica, na Grécia (440 a.C.) de Heródoto (Histórias), considerado

ainda hoje como ―o pai da História‖, e de Tucídides (História da Guerra do Peloponeso), e

em Roma (do século III A. C. a 120 D.C.), com Catão, Salústio, Tito Lívio e Tácito, os

homens que se dedicam a narrar os fatos históricos não são mais conhecidos como escribas e

sim como historiadores, ou seja, esse ofício já se mostra mais claramente ligado à perspectiva

Page 27: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

27

histórica, ou seja, ao relato cronológico e imparcial do que aconteceu, diferentemente das

narrativas anteriores que demonstravam uma tendência em exaltar as conquistas heroicas dos

reis e faraós.

Durante a Idade Média, passa a vigorar o termo ―cronista‖ para designar o responsável

pela composição da crônica, relação de acontecimentos organizada cronologicamente, sem a

participação interpretativa do cronista. Os cronistas eram inicialmente muito ligados à

produção orientada ideologicamente pela doutrina da Igreja, o que levava à produção

simultânea de obras religiosas (hagiografias: relatos sobre a vida dos santos) e seculares

(relatos sobre acontecimentos históricos). No século XII, entretanto, a crônica passa a se

identificar mais fortemente com a função histórica e os cronistas começam a apresentar, junto

à narrativa dos fatos, uma perspectiva individual da história, como o fez Fernão Lopes, no

século XIV. Essa mudança provoca uma divisão terminológica na designação das produções

dessa natureza: havia os Cronicões (relação de fatos históricos) e a Crônica histórica

(apresentação dos fatos históricos em perspectiva crítica). No século XVI, o termo "crônica"

começa a ser substituído por história; no século XIX, a crônica histórica‖ já apresenta um

trabalho literário que a aproxima do conto e do poema, impondo-se, porém, como uma forma

especial, porque não se permite classificar como aqueles.‖ (SOARES, 2007, p.65).

A crônica, enquanto literatura, capta poeticamente o instante e, conforme Angélica

Soares (2007, p.65.), continua ligada ao tempo, o

atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do que

se capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas.

Polimórfica, ela se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo, da

alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de personalidades

reais, de personagens ficcionais.

No estudo de Candido sobre a crônica, ele nos diz que a crônica não é um ―gênero

maior‖, pois a nenhum cronista se pensaria em dar um Prêmio Nobel pela sua literatura por

melhor que ele fosse. A crônica é considerada um gênero menor e por possuir este caráter ela

se aproxima mais de nós e de nossa vida cotidiana. Neste sentido, Candido afirma que ―Por

meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que

costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia.‖ (Candido, 2004, p 13.). A

crônica possui uma linguagem natural do nosso cotidiano, e a sua pretensão não é de

humanizar, mas ao se comportar desta maneira ela nos permite alcançar a humanização.

Page 28: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

28

A crônica, às vezes, é verdadeira, isto é, se baseia em fatos reais, e em outras,

escamoteia a realidade para disfarçá-la. A literatura discute e pensa nas consequências de

termos um olhar retilíneo das coisas, e a crônica ―está sempre ajudando a estabelecer ou

restabelecer a dimensão das coisas.‖ O cronista não busca o universal, mas trabalha com o

local, ou como Candido diz ―o miúdo‖, mostrando a riqueza e a grandeza da sua

singularidade. Podemos dizer que ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas diretas e

fantásticas, o seu tom quase sempre é de humor.

O tom humorístico resulta da sua natureza. Por não ter pretensão de durar, já que é da

época do jornal em que tudo é tão passageiro. A crônica não é feita para livros, mas para a

publicação temporária que se compra num dia e no outro é usada como embrulho ou quem

sabe forrar o chão da cozinha de alguém. Antonio Candido nos revela que

Por se abrigar neste veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores

que pensam em "ficar", isto é, permanecer na lembrança e na admiração da

posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da

montanha, mas do simples rés-do-chão. Por isso mesmo consegue quase sem

querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada

um, e quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que

a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava. (Candido,

2004, p. 14.)

Todavia, podemos dizer que a crônica não surgiu propriamente com o jornal. A sua

primeira aparição na sociedade foi através de ―folhetim‖, ou artigo que discutisse as questões

políticas, sociais, artísticas, literárias. Ao longo do tempo, o folhetim foi se comprimindo e

ganhou um sentido mais gratuito; ainda penetrou pelo tom ligeiro e é nesse momento que a

crônica encolhe de tamanho, chegando ao formato atual.

Assim, a crônica, conforme Candido (2004), ganha uma linguagem leve e mais

descompromissada, se afasta da lógica argumentativa ou crítica política e adentra na poesia.

Nesse sentido, Candido (2004, p.15.) nos diz: ―Creio que a fórmula moderna, onde entra um

fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o

amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma.‖.

No seu estudo sobre a crônica, A vida ao rés-do-chão, Candido (2204) traz vários

autores brasileiros que se destacaram no esboço da crônica e na sua construção: José de

Alencar, Francisco Otaviano e Machado de Assis, em quem se notava mais o corte leve,

enquanto em França Júnior ―já é nítida uma redução da escala nos temas, ligada ao

incremento do humor e certo toque de gratuidade‖ Candido (2004, p. 16.). Olavo Bilac é

mestre da crônica leve, porém ainda é um pouco cauteloso e guarda vestígios dos comentários

Page 29: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

29

antigos, no entanto, amplia a dose poética, enquanto João do Rio se inclina para o humor e o

deboche.

Nessa perspectiva, podemos considerar que estes e muitos outros autores maiores ou

menores, de Carmen Dolores e João Luso até ao nosso cotidiano, muitos contribuíram para

que houvesse um gênero com caráter jornalístico e que fosse brasileiro como é hoje. Bilac fez

uma leitura intuitiva da realidade, mostrando que:

a crônica já estava brasileira, gratuita e meio lírico-humorística, a ponto

obrigá-la a amainar a linguagem, a descascá-la dos objetivos mais

retumbantes e das construções mais raras, como as que ocorrem na poesia e

na prosa das suas conferências e discursos. (CANDIDO, 2004, p. 16.).

A sociedade brasileira tinha o costume de identificar a dominação intelectual e literária

com um grande requinte gramatical, no entanto, a crônica operou milagres de simplificação e

singeleza, abrangendo o ponto máximo nos nossos dias. Os fatos do cotidiano são realmente o

que move a crônica, e a sua linguagem mais popular colabora para a sua divulgação no meio

social. O seu prestígio atual é um bom indício do processo de busca de oralidade na escrita,

quebrando paradigmas que a afastavam da sociedade.

De acordo com Candido, foi em 1930 que a crônica moderna se consolidou no Brasil,

com um estilo bem nosso, sendo cultivado por muitos escritores e jornalistas. Nesta década,

Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade se afirmaram como

cronistas; nesse período também apareceu Rubem Braga, que escreveria exclusivamente para

este gênero, promovendo a confluência da tradição, digamos clássica, com a prosa

modernista. Nos períodos de 30 a 50 surgiram outros escritores importantes que se dedicaram

à crônica, como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Raquel de Queiroz. Nos dois

primeiros, a linguagem da crônica trazia um resquício do arcadismo coloquial dos mineiros, e

Raquel de Queiroz discute o traço comum que deixa de lado os comentários argumentativos e

os expositivos para enfocar as conversas consideradas como fiadas. Nesse sentido, o leitor

desatento poderá pensar que a crônica colocou de lado os problemas sérios da sociedade, mas

é o contrário que acontece. Ao manter o caráter despreocupado, como se estivesse falando de

algo sem consequência, é que a crônica penetra nos sentimentos mais profundos do ser

humano, podendo levar longe a crítica social.

Seguindo essa perspectiva, Candido nos dá exemplos de algumas crônicas, mas citarei

apenas duas, a Carta a uma senhora de Carlos Drummond de Andrade, em que podemos ver:

Page 30: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

30

a menininha que não possui nem 20 cruzeiros faz desfilar na imaginação os

presentes que desejaria, no Dia das Mães, oferecer à sua. É como se ela

estivesse do lado de fora de uma vitrina imensa, onde se acham os objetos

maravilhosos que a propaganda criadora de aspirações e necessidades

transformou em bens ideais. Ela os enumera numa escrita que o cronista fez

ao mesmo tempo belíssima e liricamente infantil. (Candido, 2004, p. 18.).

Vejamos o trecho da crônica citado por Candido:

Mammy, o braço dói de escrever e tinha um liquidificador de 3 velocidades,

sempre quis que a Sra. não tomasse trabalho de espremer laranja, a máquina

de tricô faz 500 pontos, a Sra. sozinha faz muito mais. Um secador de cabelo

para Mammy! gritei, com capacete plástico mas passei adiante, a Sra. não é

desses luxos, e a poltrona anatômica me tentou, é um estouro, mas eu sabia

que minha Mãezinha nunca tem tempo de sentar. Mais o quê? Ah sim, o

colar de pérolas acetinadas, caixa de talco de plástico perolado, par de meias,

etc. (Drummond, apud Candido 2004, p 18.).

Na crônica de Drummond podemos perceber a crítica à sociedade consumista

capitalista que exclui quem não tem condições de comprar os seus produtos. Num país

coberto de misérias, o consumo incita muitas pessoas pobres a sonhar em ter acesso a

produtos sedutores, supérfluos e inacessíveis.

Em a Última crônica, de Fernando Sabino, Candido nos mostra que o limite do

patético, firme e discretamente, é totalmente evitado por este autor:

a família de pretos que vai ao botequim celebrar o aniversário da menina,

com um pedaço de bolo onde o pai finca e acende três velinhas trazidas no

bolso. Não será a mesma criança que escreveu a carta mirífica do Dia das

Mães? (...) É então que vê o casal com a filhinha e assiste-se ao ritual

modesto. Mas as suas reflexões, a maestria com que constrói a cena e todo o

ritmo emocionado sob a superfície do humor lírico - constituem ao mesmo

tempo uma pequena e despretensiosa teoria da crônica, deixando ver o que

sugeri, isto é, que, por baixo dela, há sempre muita riqueza para o leitor

explorar. (CANDIDO, 2004, p. 18 - 19.).

Aqui podemos perceber que Candido não critica as peças leves, mas que realça a sua

importância, pois, por serem leves, são mais acessíveis, mostram a visão humana no seu

cotidiano.

Com sua brevidade e sua simplicidade, a crônica é também uma forma literária

importante para a escola, que tende a inculcar nos estudantes que leveza e serenidade são

superficiais e que as coisas duvidosas e sérias são pesadas. A crônica, com seu ar persuasivo,

nos faz espairecer, nos prende e inspira, contribuindo para que tenhamos uma visão madura e

ampla das coisas. ―Tudo é vida‖ e tudo contribui para um momento de reflexão,

entretenimento, que nos transporta para um mundo talvez imaginário e ao voltar, voltamos

Page 31: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

31

mais amadurecidos. Mas, para o cronista alcançar esse efeito é preciso utilizar várias

estratégias.

Os autores buscaram meios diferentes de escrever as crônicas para alcançar o

resultado esperado; uns escreviam crônicas parecidas com diálogos: Carlos Drummond de

Andrade em Gravação e Conversinha mineira, Fernando Sabino, em Albertina. Outros já

escreviam mais voltados para o conto, com estrutura de ficção, como em Os Teixeiras, de

Rubens Braga; outros aproximam a crônica das anedotas abertas, como, por exemplo, A

mulher do Vizinho, de Fernando Sabino. Certas crônicas, de acordo com Candido, se

aproximam da exposição poética e até líricas, como Ser brotinho e Maria José, de Paulo

Mendes Campos.

Segundo Candido (2004, p. 22.), ―a crônica brasileira bem realizada participa de urna

língua geral lírica, irônica, casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido e

certeiro, ou por urna espécie de monólogo comunicativo.‖ Os cronistas brasileiros, cada um

no seu tempo, buscaram desenvolver a crônica com o seu toque pessoal, mas que mostrava em

muitos a presença das suas outras atividades literárias. Para Antonio Candido, somente

Rubens Braga poderia ser reconhecido como exclusivamente cronista. Em Drummond

encontramos a precisão, em Fernando Sabino, o movimento nervoso e em Paulo Mendes

Campos, a larga onda da lírica, todavia, todos mostravam a força da crônica brasileira,

insinuando a sua capacidade de sintetizar a feição do mundo e dos homens e de humanizar o

leitor por meio dos conflitos apresentados.

De acordo com o que vimos sobre o estudo do que é a crônica, podemos considerar

que o narrador de ―Pai contra mãe‖ nos leva no início de sua narração a pensar que a forma

que ele escolheu para narrar a sua história é a de uma crônica histórica, porém Machado de

Assis nos revela no decorrer da narração que o resultado final dessa forma literária por ele

desenvolvida em ―Pai contra mãe‖ constitui-se como um conto.

Os cinco parágrafos inicias desse texto narrativo de 1906 se mostram como uma

crônica histórica a respeito da escravidão, que havia sido abolida recentemente: ―A escravidão

levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais‖ (Assis, s/d

p. 102). O narrador, mascarado de cronista (―Mas não cuidemos de máscaras‖) começa, nos

dois primeiros parágrafos, descrevendo os aparelhos da escravidão: a máscara de folha-de-

flandres (―tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça

com um cadeado‖) e o ferro ao pescoço (―coleira grossa, com a haste grassa também, à direita

ou à esquerda, até o alto da cabeça e fechada atrás com chave‖). A descrição é entremeada

Page 32: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

32

com justificativas ou observações, que, já salpicadas de certa ironia, expressam uma atitude

de observador aparentemente distanciado: ―Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e

humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel‖ (p. 102).

No terceiro e no quarto parágrafos, a mesma estrutura se repete: ―Há meio século, os

escravos fugiam com frequência‖ (p. 102); o narrador retoma o caráter informativo que

localiza o texto no tempo e descreve os processos de fuga dos escravos e as formas de buscar

recuperá-los utilizadas pelos donos de escravos, sem deixar de, com ironia sutil, inserir na

descrição informativa uma justificativa ou observação cortante, mas não sentimental ou

simpática à causa dos escravos ou à dos senhores: ―nem todos gostavam de apanhar pancada

(...) e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação,

porque dinheiro também dói‖ (p. 102).

No quinto parágrafo, dedicado à descrição do ofício de pegar escravos fugidos, o tom

ainda é o mesmo: ―Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo‖ (p. 103). Junto às

informações do perfil do caçador de escravos e das razões que levavam alguém a assumir esse

ofício, seguem também justificativas irônicas: ―Não seria [um ofício] nobre, mas por ser

instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza das

ações reivindicatórias‖ (p. 103).

A partir do sexto parágrafo, a dimensão ficcional começa a prevalecer e o narrador,

antes mascarado de cronista inicia a narrativa da vida de um caçador de escravos: ―Cândido

Neves, – em família, Candinho, – é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à

pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos‖ (p. 103). A ironia permanece e

até se torna mais evidente nas oposições entre o nome do caçador de escravos – Cândido

Neves –, cuja brancura é duplamente sublinhada, e a ―figura de preto, descalço‖ daqueles que

Cândido perseguia. Além disso, o homem de ofício é apresentado também em sua intimidade:

―Candinho‖, o que ressalta a convivência entre os opostos: crueldade do ofício e ternura do

homem de família. A atmosfera ficcional vai ficando clara; existem personagens: Cândido

Neves, em família Candinho; Clara, sua mulher, cujo nome também remete à cor branca; tia

Mônica, uma senhora alegre e chegada a festas, mas que, diante da miséria, pressiona

Candinho e Clara para que entreguem o filho deles na roda dos enjeitados; e Arminda, a

escrava fujona, que está grávida. As emoções dos personagens também são reveladas ao

leitor, mas sempre com certo distanciamento irônico, sem sentimentalismo: ―quando à moça

viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido‖; ―tia Mônica ficou desorientada,

Cândido e Clara riram dos seus sustos‖; ―no chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após

Page 33: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

33

algum tempo de luta a escrava abortou.‖ Esses elementos ficcionais são bem típicos do conto

machadiano e estão em descompasso com a narrativa da crônica histórica anunciada nos

parágrafos iniciais.

As oposições irônicas, anunciadas já no título Pai contra mãe, estão presentes na

estrutura do texto: crônica histórica contra conto. Assim, embora predomine o conto, a força

dele vem das tensões entre crônica e conto, pai e mãe. Mesmo começando a história

descrevendo a época em que o conto foi escrito, o caso narrado chega a um clímax que fisga o

leitor, levando-o a fazer uma leitura de mundo diferente da proposta pela classe dominante

que também está presente no texto.

O fato de o narrador narrar a história, uma hora estando distante e dela outra hora mais

próximo faz com que o leitor fique atento aos seus movimentos. Machado de Assis aborda

uma questão do cotidiano da época em que a escravatura consumia o Brasil, mas somente

através da leitura do conto como um todo é que o leitor descobrirá que existe na obra o

conflito ―crônica ou conto‖ No entanto, no decorrer da narrativa de ficção o leitor vai

acompanhando o desarmar ver da crônica histórica. Nesse sentido Pilati (et al 2011, p. 44)

afirma que: ―A crônica histórica é desarmada pela ficção na medida em, a partir dela, a ficção

pode se armar com potência renovada‖.

Como uma das tendências do conto e da escrita machadiana é levar o leitor pouco

atento a crer em sua primeira leitura, que quase sempre resulta numa superficial leitura da

realidade, esse conto é profundamente rico em detalhes e significados profundos, com

pormenores, em sutilezas e dados despretensiosos que somente o leitor que se detiver sobre a

leitura será capaz de perceber o verdadeiro sentido buscado pelo autor: a representação da

realidade brasileira, não apenas na perspectiva imediata da abolição da escravidão, mas na sua

figuração mais profunda, isto é, no modo de funcionamento das estruturas sociais em suas

contradições, que o atrito entre crônica histórica e conto pode tão bem sintetizar. É a partir

desse atrito que o autor cria um mundo particular, centrado na vida de Candinho, seu ofício,

sua família, a encruzilhada que ele vive diante da possibilidade de perder seu filho e a

necessidade de caçar a escrava Arminda, que, estando grávida, acaba por abortar o seu filho.

Essa narrativa ficcional termina também com uma justificativa irônica, tal como ela começou,

quando parecia ser uma crônica histórica: ―Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o

coração‖ (p. 112).

Ao contrário do que pode parecer ao leitor, a junção entre crônica e conto também está

presente na narrativa, ela se mantém pela ironia que atravessa o conto do início ao fim. Assim,

Page 34: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

34

há uma unidade narrativa tensa no conto inteiro, mas que não apaga a tensão estrutural entre

crônica e conto. Essa tensão é literária, faz parte da composição do texto, mas é também

social, faz parte da estrutura real da sociedade brasileira. O leitor de Machado de Assis, seja

em qual época for, será sempre desafiado pelo tom dialético do narrador machadiano que

surge sempre carregado de dúvidas e incertezas que são expostas para o leitor pelo modo com

que a narrativa é conduzida.

Page 35: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

35

CAPÍTULO II

“PAI CONTRA MÃE”: O NARRADOR NA DISPUTA?

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras

instituições sociais.

Machado de Assis s/d, p. 102

―Pai contra mãe‖ é um conto do escritor brasileiro Machado de Assis. O seu narrador

possui um papel intrigante, pois o mesmo se encontra em uma disputa e somente através de

uma leitura profunda e analítica será possível observar as suas intrigas e contradições. Em

qualquer narrativa, o narrador possui um papel importante e, em se tratando do narrador

machadiano, ele é indispensável. O nome do conto em questão já indica certa intriga que se

faz presente na narrativa e na sociedade capitalista. É importante destacar que o sujeito dessa

sociedade se submete a realizar as maiores barbaridades para conseguir o resultado almejado.

No conto, por meio do narrador, Machado alcança a dialética entre o universal e o

local. No entanto, a ideia de local não pode ser confundida com o pitoresco, e o universal,

nessa perspectiva, não é meramente assimilado da tradição europeia. A relação entre local e

universal, interiorizada na forma do conto, deve ser compreendida como elemento que leva a

literatura a representar a realidade complexa do país, que também se formou da relação

contraditória entre elementos locais e formas universais. Neste conto, Machado cria um

narrador que desenvolve uma narrativa cheia de suspenses, quase um labirinto, que motiva a

disputa entre o narrador, o leitor e o autor.

O narrador usa máscaras que podem ser encontradas na realidade já que o conto

literário é uma representação da sociedade brasileira daquela época. O narrador é o guia do

leitor no interior do emaranhado de fios que tecem o texto; é ele quem conduz o leitor pelos

fatos narrados e espera-se que de maneira imparcial. Contudo, podemos dizer que o narrador

na obra de Machado nem sempre é tão imparcial, nem sempre conduz o leitor. Esta

construção machadiana deixa para o próprio leitor as conclusões e os julgamentos a respeito

dos fatos e das ações dos personagens. Portanto, o narrador questiona o leitor e faz o leitor se

questionar.

Page 36: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

36

2.1 A IMPORTÂNCIA DO FOCO NARRATIVO NA ESTRUTURA LITERÁRIA

Quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que testemunhou,

mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou

(Chiappini, 1998, p.6)

As pessoas sempre narraram suas histórias e essa é uma das características da épica,

que é a narração de fatos vividos ou presenciados por alguém. Entre o ouvinte e o fato

narrado, sempre se interpôs um narrador. Podemos considerar que, no decorrer da história, os

homens nunca perderam o hábito de narrar, porém as suas histórias narradas tornaram-se mais

complexas, pois o narrador foi adquirindo progressivamente formas de se ocultar atrás de

outros narradores, atrás de fatos narrados e ainda atrás de uma voz que nos fala ao mesmo

tempo: narrador e personagem. Tal fusão é apresentada diretamente ao leitor e promove a

distância entre este e o narrador, enquanto também os dilui dialeticamente.

Narrar é coisa antiga e refletir sobre esse ato também é. Consideramos possível recuar

essa reflexão teórica sobre as formas de narrar a Platão e Aristóteles, que foram os primeiros

na tradição do Ocidente a discutirem ―qual a relação entre o modo de narrar, a representação

da realidade e os efeitos exercidos sobre os ouvintes e /ou leitores.‖ Segundo Chiappini (1998,

p. 6), Platão diz ―em A república, que o ideal é, num discurso longo, alternar IMITAÇÃO e

NARRAÇÃO e só imitar diretamente aquelas ações, tipos e gestos nobres.‖ Portanto, em

Platão a imitação e a narração já vêm cheias de valor; analisemos o trecho:

(...) há uma maneira de falar e contar que acompanha o verdadeiro homem

honesto, quando tem alguma coisa a dizer; e há outra diferente, à qual se

conforma sempre o homem de natureza e educação contrárias (...). O homem

ponderado, segundo me parece, quando tiver de referir, numa narração, uma

frase ou uma ação de um homem bom, procurará exprimir-se como se fosse

homem e não se envergonhará de tal imitação, sobretudo se imitar qualquer

aspecto de firmeza e de sabedoria. Imitará menos vezes e menos bem o seu

modelo quando este tiver falhado, sob o efeito da doença, do amor, da

embriaguez ou de qualquer outro acidente. E, quando tiver de falar de um

homem indigno dele, não se permitirá imitá-lo a sério, a não ser de

passagem, quando esse homem tiver feito coisa de bem (...) (SINTRA, 1975,

p. 90-1, apud CHIAPPINI, 1998, p. 7.).

No trecho citado, percebemos que o julgamento mais adequado ao homem de bem é

narrar em vez de imitar, sobretudo quando o objeto de imitação for inferior a ele. Isso está

diretamente relacionado com a filosofia platônica como um todo, basicamente alicerçada na

ideia de "imitação como cópia infiel, simulacro do Real e da Verdade.‖. Chiappini relata que

Page 37: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

37

para Platão o mundo sensível a que estamos presos, "enquanto seres mortais e corporais, já é

uma imitação do Mundo das Ideias" de que descendemos. Nessa perspectiva, a poesia (onde

se inclui a tragédia, a épica e a lírica) é uma cópia desse mundo sensível, pois ela é simulacro

em segundo grau, e de acordo com Platão, segundo Chiappini (1998), é condenável, pois

serve mais para amarrar o homem ao domínio dos sentidos e das paixões, dificultando assim a

sua ascensão ―Á Beleza, ao Bem e à Verdade‖, essências que no seu estado puro só há fora

―da caverna que habitamos‖.

Além de Platão, Aristóteles também discute sobre a distinção entre a imitação direta

das ações e a sua narração:

(...) é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa

simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou

insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou

ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos

agirem e executarem elas próprias. Daí vem que alguns chamam a essas

obras dramas, porque fazem agir as próprias personagens. (ARISTÓTELES,

1964. p. 264, apud CHIAPPINI, 1998, p. 8.).

De acordo com a citação, podemos perceber que a filosofia aristotélica de modo mais

geral afirma o inverso da filosofia platônica, pois, se para Platão a poesia era imitação da

imitação, para Aristóteles, a poesia continua a ser imitação. Porém, com algumas diferenças,

pois não é entendida como cópia das aparências, mas ao contrário. A imitação era uma

revelação das essências. Segundo Aristóteles, imitar é uma forma de conhecer, o que inclusive

diferencia o homem dos ouros seres vivos e lhe dá prazer. Nesse contexto, quanto a imitar ou

narrar, Aristóteles também diverge de Platão, pois para a épica prefere a imitação direta à

narração das coisas.

Ainda estudando narração, ficção e valor, Chiappini (1998) aborda um breve relato de

teorias e teóricos que abordaram esses assuntos, como Hegel e a objetividade épica, que traz

um estudo sistematizado das teorias de Platão e Aristóteles. Hegel, ao procurar distinguir os

gêneros épico, lírico e dramático, os caracterizou da seguinte forma: épico eminentemente

objetivo, lírico subjetivo e dramático objetivo-subjetivo. Nesse sentido, de acordo com a

autora (1998, p. 9.), podemos dizer que a ―poesia épica seria aquela em que, do conjunto dos

homens e dos deuses, brotaria a dinâmica dos acontecimentos que o poeta deixaria evoluir

livremente, sem interferir.‖ Refere-se a uma realidade exterior ao poeta sem se identificar com

ela e nisso se envolve com os sentimentos, pensamentos etc.

O conteúdo da lírica seria o subjetivo, ―a alma agitada pelos sentimentos‖, e nela o que

se expõe é o seu extravasar em vez da ação externa ao sujeito. O dramático, como sendo

Page 38: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

38

síntese dos outros dois, se constituiria ao mesmo tempo como um desenrolar objetivo de

acontecimentos e de expressão vibrante da interioridade.

Em relação ao estudo do desenvolvimento da historicidade da epopeia, desde os seus

modos mais simples (epigramas, inscrições em monumentos, poemas didático-filosóficos,

teogonias e cosmogonias) até chegar a ser a epopeia propriamente, Hegel a caracteriza como

uma ―totalidade unitária‖ e, logo depois, assiste a sua transformação, ou seja, ela se

transforma no romance, que para ele, é a ―epopeia burguesa moderna.‖.

O romance teria como tema básico o conflito entre ―a poesia do coração‖ e a ―prosa

das circunstancias‖, já que a sua realidade é prosaica, sem a transcendência do mundo épico.

A parir desse momento, o romance começa a ser visto como um gênero enciclopédico, em que

o dramático e o épico passam a conviver juntos, e essa distinção, agora interiorizada, será o

eixo de toda a teoria do foco narrativo. O lírico também irá invadir o romance pouco a pouco,

minando a objetividade épica.

Em ―Kayser: narração e convenção‖, a autora aborda o estudo do narrador feito por

Wolfgang Kayser, que faz referência ao narrador do passado objetivado na épica, mas, para

ele, o passado, tempo usual nessa narrativa, concretiza a sua objetividade. Nela, os episódios

são mais livres que o drama e são relativamente independentes, e os desvios que sofre não

comprometem a totalidade.

No decorrer do tempo, o romance se beneficiaria dessa forma livre de narrar, e Kayser

chama a nossa atenção para a mudança do narrador do romance, em relação à poesia épica,

pois não se trata mais de narrar a um público reunido a sua volta, mas aqui o narrador fala de

forma pessoal e para um leitor também pessoal e individual, que vive em uma sociedade

dividida, ou seja, a sociedade de classes, em que as regras são ditadas pelo sistema capitalista

e por quem detém os meios de produção nesse sistema.

Na epopeia o narrador possuía uma visão de conjunto e colocava a si mesmo e

também aos seus ouvintes a uma distância do mundo narrado, no entanto o narrador do

romance se aproxima e se torna íntimo do leitor, aproximando-o intimamente dos personagens

e dos fatos narrados. Isso pode nos fazer ter uma ilusão de que estamos diante de uma pessoa

e de que seus pensamentos estão claramente diante de nós, porém a realidade é que tanto

narrador quanto leitor ―ao qual ele se dirige são seres ficcionais que se relacionam com os

reais através das convenções narrativas‖, ou seja, da técnica, dos caracteres, do ambiente, do

tempo, da linguagem.

Page 39: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

39

Portanto, nessa perspectiva, é importante lembrar a distinção, feita por Aristóteles,

entre verdade e verossimilhança, na qual o que parece ser verossímil não é o verdadeiro, ―mas

o que parece sê-lo, graças à coerência da representação-apresentação fictícia.‖ Também na

ficção nem sempre o verdadeiro é verossímil, pode até ser verdade, porém não é o fato de ser

verdadeiro que consegue convencer o leitor. Um narrador é feito de palavras que são

minuciosamente escolhidas e arranjadas num conjunto estruturado por alguém, mesmo

quando ele não se interponha diretamente entre os leitores e os seres ficcionais. Trata-se de

um narrador implícito, segundo W. Booth, citado pela autora, que sempre vai está ―ao mesmo

tempo oculto e revelado pelo e no que narra.‖.

O pressuposto do foco narrativo desde a sua constituição foi o problema da relação

entre ficção e realidade e da necessidade da verossimilhança. Retomemos a teoria do foco

narrativo, seguindo o que diz Chiappini a respeito das teorias de Henry James e Percy

Lubbock. Para James e para outros teóricos a partir dele, o ideal é que haja:

a presença discreta de um narrador que, por meio do contar e do mostrar

equilibrados, possa dar a impressão ao leitor de que a história se conta a si

própria, de preferência, alojando-se na mente de uma personagem que faça o

papel de REFLETOR de suas ideias. (HENRY, 1948, apud CHIAPPINI,

1998, p. 13).

James demonstra antipatia pelas intromissões e pelas digressões que desviam a

atenção do leitor para a longe da história, ele é a favor de um único ponto de vista, e tudo isso

em nome da verossimilhança. Para ele, é necessário ter um centro organizador das percepções

em torno do qual os personagens da narrativa, mas esse centro tem que possuir sensibilidade,

inteligência e outros elementos que são indispensáveis para o trabalho dos elementos da

narrativa. Nesse momento se dá o desaparecimento estratégico do narrador, ele se camufla em

uma terceira pessoa que se confunde com a primeira.

Em Percy Lubbock, também há influência das inquietações de James, em relação às

interferências do narrador. Lubbock radicaliza e ―só considera ―arte da ficção‖ as narrativas

que não cometem indiscrição.‖ As narrativas que cometem essas indiscrições, para ele, se

enquadrariam mais na ―arte da narrativa.‖.

As obras literárias de Henry James correspondem, segundo as análises de Lubbock, ao

que seria exemplar na ―arte da ficção.‖ Portanto, ―a distinção entre narrar (telling) e mostrar

(showing)‖, ou seja, a intervenção ou não do narrador, é o que direciona a análise de Lubbock.

Na sua teoria, assim como os conceitos de narrar e mostrar estão em oposição, isto é, quanto

mais o narrador intervém mais ele conta e menos mostra, também os conceitos de cena e

Page 40: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

40

sumário (ou panorama) estão em oposição. Segundo Chiappini (1998), para Lubbock, na cena

os acontecimentos são diretamente apresentados ao leitor sem a mediação de um narrador e

no sumário há o resumo, a condensação, que, na maioria das vezes, passa por cima dos

detalhes.

Para Lubbock, a apresentação pode ser cênica ou panorâmica e o seu tratamento pode

ser dramático ou pictórico ou ainda uma fusão dos dois: pictórico-dramático. Nessa

perspectiva, Chiappini observa que ―o tratamento é dramático quando a apresentação se faz

pela cena, e é pictórico quando ele é predominantemente feito pelo sumário.‖.

Por sua vez, o pictórico-dramático é a combinação da cena e do sumário em relação à

―pintura‖ dos acontecimentos que se reflete na mente de uma personagem, e isso se dá a partir

da predominância do estilo indireto livre de narrar. Nenhumas dessas formas são diretamente

defendidas por Lubbock, porém ele justifica a sua escolha pela adequação da forma ao tema e

ao efeito que o escritor busca na hora de escrever uma obra. No tratamento dramático e na

cena, há predominância do discurso direto, no pictórico, do indireto.

Muitos teóricos que se dedicaram à questão do narrador realizaram uma crítica a

Lubbock e um deles é Wayne C. Booth, que discute a questão do ―autor implícito‖. O

romancista E.M. Forster também faz uma crítica ao caráter normativo da teoria de Lubbock

acerca do ponto de vista. Ele debate a afirmação de Lubbock de que, na arte de ficção, o ponto

de vista possui um expediente indispensável e também combate o seu normativismo em

relação à condenação da interferência do narrador na narração e na mudança de ponto de vista

em um mesmo romance.

De acordo com a análise de Chiappini a esse respeito, para Forster, tudo isso é valido

desde que corresponda ao efeito que se quer obter, pois é normal um romancista mudar de

ponto de vista, e o que importa é o resultado final, que seja o resultado esperado. Outro

teórico do romance que também discute a normatividade de Lubbock é Edwin Muir, que tenta

fugir dessa percepção e procura descrever as diferenças dos tipos de romance e os diferentes

tipos de enredos que os caracterizam.

Wayne Booth, em A retórica da ficção, insiste que há várias formas de narrar uma

história e que a escolha da forma depende exclusivamente dos valores a transmitir e dos

efeitos que se busca desencadear. Ele é contra o mito do desaparecimento do autor ou da

narrativa objetiva, e, de acordo com a sua crítica, o autor não desaparece, mas se camufla

atrás de uma personagem ou de uma voz narrativa que o representa. Conforme Chiappini

Page 41: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

41

(1998), devemos a categoria do autor implícito a esse teórico, que definiu essa categoria

narrativa como:

uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os

movimentos do NARRADOR, das personagens, dos acontecimentos

narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em

que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as

personagens envolvidas na HISTÓRIA. (CHIAPPINI, 1998, p. 19).

De acordo com a autora, podemos dizer que, assim como a poesia é feita de silêncio e

sons, a narrativa ficcional é feita de ―visão e cegueira‖, e o que o narrador percebe ou deixa de

perceber está ―subordinado‖ a uma visão mais ampla e dominadora. Por esse motivo, segundo

Chiappini, não podemos considerara apenas os tipos de foco narrativo da tipologia de Norman

Friedman ou de outras teorias, pois só a relação com o autor implícito pode conduzir-nos à

―visão de mundo que transpira da obra, aos valores que ela veicula, à sua ideologia.‖.

Jean Pouillon, em seu livro O tempo no romance, segundo Chiappini (1998, p. 19),

procura ―adaptar uma visão fenomenológica do mundo, em Jean-Paul Sartre, a uma teoria das

visões na narrativa, articulada à questão do tempo.‖ De acordo com esse autor, na relação

autor-personagem haveria três possibilidades: visão com, visão por trás e visão de fora. Na

visão por trás, o narrador é considerado como uma espécie de Deus, que ―tolhe‖ a liberdade,

domina todo o saber sobre a vida das personagens e o seu destino. Este narrador pode-se dizer

que é onisciente, pois sabe de onde parte e para onde se dirige a narração.

Na visão com, o narrador se liberta da visão de um Deus, pois se limita apenas ao

―saber da própria personagem sobre si e sobre os acontecimentos.‖ Aqui se adquire a

liberdade de se assumir como criatura jogada no mundo que é capaz de assumir o nada para

ser. Já na visão de fora, o narrador apenas fica na descrição dos acontecimentos, limitando-se

apenas ao exterior. Renuncia ao saber que a personagem possui e não podemos penetrar nas

emoções, pensamentos, intensões das personagens.

Chiappini (1998) aborda também o autor Maurice-Jean Lefebve, que em seu livro

Estrutura do discurso da poesia e da narrativa, faz uma revisão das ―visões‖ de Jean

Pouillon, tentando reaproveitá-las no sentido de reconhecer nelas uma distinção clara entre

diegese e discurso ou história e narrativa. Para ele, as visões estão ligadas aos romances. A

visão por trás seria típica do romance clássico, em especial o do século XIX, em que diegese e

discurso se encontram lado a lado. A visão com seria típica do romance do século XX que é

narrado em primeira pessoa e faz uso do monólogo interior e do fluxo de consciência; nesse

romance haveria a predominância da diegese sobre a narração. Com relação à visão de fora,

Page 42: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

42

ele faz um apontamento da influência do cinema, característica do século XX, em que

existiria o predomínio da diegese sobre a narração.

Lefebve também faz um comentário a respeito da preferência sartreana de Pouillon

pela visão com, considerando-se que, em última instância, toda visão é convenção e que todo

narrador camufla, principalmente quando se limita a expressar só o que as personagens

veriam. De acordo com Chiappini (1998, p. 22), para Lefebve, a convenção da visão com é

também:

(...) típica do século XVIII na forma do romance epistolar ou romance que

invoca outros documentos (manuscritos encontrados e publicados por um

suposto editor fiel ao texto original), ambos sendo expressão de uma vontade

de realismo empírico, bem ao gosto do enciclopedismo.

Com relação à visão por trás, Chiappini (1998, p. 22) ressalta que ―essa traduziria a

confiança burguesa na objetividade, na possibilidade de explicação racional e exaustiva dos

fatos psicológicos e sociais.‖. A visão de fora e mesmo a visão com do romance moderno,

narrado em primeira pessoa, seriam duas formas quase certeiras de mostrar a desconfiança do

homem moderno em relação ―a sua capacidade de apreender um mundo caótico e

fragmentado, em que não consegue situar com clareza.‖

Portanto, conforme Chiappini, Lefebve nos alerta para os silêncios da narração,

omissão de palavras, o que a narrativa omite ou seus brancos, a sua falta de determinação.

Problematizando a distinção entre discurso e diegese é que existe a impossibilidade de separá-

los rigidamente, porque a ―diegese acaba se confundindo com o enunciado, e este só Tem

existência pelo enunciado.‖ Nesse sentido:

Lefebve corrige a parcialidade de Jean Pouillon que não considera a

distinção entre NARRADOR e AUTOR IMPLÍCITO, já que o

NARRADOR, uma vez enunciado ou mesmo pelo próprio ato de

enunciação, acaba se transformando num ser ficcional, uma das tantas

máscaras do AUTOR IMPLÍCITO sempre à espreita. (CHIAPPINI, 1998, p.

23)

Para passar da análise técnica para a análise ideológica dos textos literários é

importante manter essa distinção.

A análise estrutural da narrativa, segundo Roland Barthes e Tzvetan Todorov, recoloca

a discussão das vozes e das visões do narrador em termos de uma análise linguística.

Chiappini diz que, no ensaio ―Introdução à análise estrutural da narrativa‖, Roland Barthes

apresenta três níveis de distinção. O primeiro nível é o das funções, onde acontece a história

Page 43: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

43

ou a fábula e onde se criam os elementos de caracterização das personagens. O segundo nível

é o das ações, onde ficam as personagens, porém enquanto agentes, ou seja, ―fios condutores

de certos núcleos de funções que definem a área de atuação de cada personagem.‖ E, por

último, o terceiro nível, que é o da narração, no qual há a integração dos outros dois níveis.

Aqui a simples pessoa verbal não basta para esclarecer com quem está a palavra. E nesse

sentido podemos dizer que uma narrativa em terceira pessoa pode ser meramente um disfarce

da primeira.

Já Todorov, através de determinadas categorias, procura aprofundar a análise

linguística do problema do narrador em diversos momentos. As categorias são: o pronome

pessoal, o tempo, o aspecto e o modo verbal. Além das categorias, Todorov, que está também

apoiado em Émile Benveniste, discute a distinção entre o discurso (pessoal, domínio do ―eu-

tu‖) e a história (impessoal, domínio do ―ele‖). Ele inventaria signos que designam

diretamente o processo de enunciação, como certos advérbios (agora, aqui), alguns pronomes

(este, isto) e o tempo presente. Todorov vai analisar também o ―discurso avaliatório‖, em que

o processo de enunciação invade o enunciado inteiro. Segundo Chiappini, ―certos signos o

caracterizam, como, por exemplo: talvez, certamente, deve, pode..., que apontam diretamente

para o SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO OU EMISSOR DA MENSAGEM.‖. (1998, p. 24.)

Todorov também discute a imagem do narrador, o que corresponderia ao autor

implícito de Booth, bem como a imagem do leitor. Nisso compreendemos que, se a imagem

do narrador não se confunde com o autor real, a imagem do leitor também não se confunde

com a do leitor real, porém é dada pelos índices do leitor, encontrados no texto.

No segundo capítulo de O foco narrativo, Chiappini aborda ―A tipologia de Norman

Friedman‖, em que o autor discute o comportamento do narrador e faz questionamentos:

quem conta a história, de que ângulo, quais os artifícios usados pelo narrador para contar o

enredo? Pensamentos? Sentimentos? Do autor ou da personagem? O narrador deixa o leitor

próximo ou longe da história? Os dois? Esses questionamentos, Norman Friedman os faz no

seu ensaio em busca de uma tipologia mais sistemática.

Friedman, para responder os seus questionamentos e construir a tipologia do narrador,

baseia-se em outros teóricos, como Lubbock. Nesta construção ele trabalha por categorias, em

que cada uma aborda uma temática com relação ao narrador. A primeira delas, ―Autor

onisciente intruso‖; corresponde ao narrador que se comporta como bem desejar dentro da

narrativa, podendo narrar como se estivesse dentro da história, fora, na frente, na periferia, no

Page 44: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

44

centro ou mudando e adotando várias posições no decorrer da narrativa. Ele é livre para se

movimentar, podendo comentar e analisar; o traço que o caracteriza é a intrusão.

A segunda categoria, o ―Narrador onisciente neutro‖, se diferencia da primeira porque

o narrador não dá instruções ou faz comentários, fala em terceira pessoa. A caracterização das

personagens é feita pelo narrador que descreve e explica ao leitor, tendendo ao sumário e

utilizando-se da cena geralmente em momentos de diálogo e ação. A terceira categoria diz

respeito ao conceito de ―Eu como testemunha‖: narra-se em primeira pessoa algo de que o

narrador participa ou participou, podendo ser ele o protagonista ou uma personagem

secundária, e como ele pode estar dentro ou observar, ele pode passar para o leitor um relato

mais direto e verossímil. É o próprio testemunho de alguém, nesse sentido, a personagem

narradora é limitada, pois não tem acesso ao pensamento das outras personagens, podendo

somente inferir algo, sem certeza alguma. Esse narrador tanto pode sintetizar quanto pode

apresentar a narrativa em cena, mas sempre, nos dois casos, está limitado ao que ele vê.

A quarta categoria, "Narrador protagonista", possui aspectos da terceira categoria, esse

narrador também não é onisciente, não tem acesso ao pensamento e é limitado, pois narra de

um ponto central e narra somente suas percepções e pensamentos, podendo assim modificar a

distância entre leitor e história, e, para isso, ele também pode se servir da cena ou do sumário.

Na quinta categoria, ―Onisciência seletiva múltipla‖, pode-se dizer que não há

propriamente um narrador; a história é trazida diretamente da mente das personagens, das

impressões que fatos e pessoas deixam nelas. Ainda há o predomínio da cena e agora o autor

traduz os pensamentos, percepções e sentimentos que são filtrados pela mente dos

personagens. A seletiva é semelhante à anterior, trata-se apenas de uma personagem e o

narrador tem suas limitações já que narra de um único ponto fixo e, segundo Chiappini,

―sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central” são mostrados diretamente.

No ―Modo dramático‖, elimina-se o narrador, os pensamentos das personagens e

vários outros aspectos da narrativa (como descrição da cena) são indicados por breves

anotações, como rubricas, e o leitor é quem deve deduzir os sentimentos e significados a partir

de movimentos e falas das personagens. O ângulo é frontal e fixo e a distância entre leitor e

história é pouca, pois o enredo se dá por sucessões de cenas.

Por fim, Chiappini apresenta a última categoria apontada por Norman Friedman, ―A

câmera‖, que é o ponto mais alto da exclusão do autor, pois as cenas são transmitidas como

flashes da realidade. Ligia Chiappini acha que o nome dado por Friedman é impróprio, já que,

Page 45: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

45

para ela, a câmera não é neutra e precisa de alguém para manuseá-la e encontrar o ângulo

certo, dominado assim o ponto de vista.

Para terminar o segundo capítulo, a autora apresenta três recursos enumerados por

Friedman a partir de Bowling: análise mental, monólogo interior e fluxo de consciência. A

―análise mental‖ é o aprofundamento no intelecto da personagem, pensamentos, de maneira

direta. O ―monologo interior‖ vai mais profundo ao retratar os pensamentos da personagem e

nisto podemos dizer que é um fluxo ininterrupto de pensamentos, apresentado numa

linguagem cada vez mais frágil em nexo lógico. Por fim, temos o ―fluxo de consciência‖, que

é um fluxo ininterrupto de pensamentos das personagens ou do narrador, perdendo assim

qualquer sequência lógica. Portanto, percebe-se que seguir a sistematização proposta por

Bowling, embora seja útil, não resolve certas dinâmicas narrativas, já que os limites entre

monólogo interior e fluxo de consciência são difíceis e estabelecer.

No seu terceiro e último capítulo, ―Narração, ficção e história‖, Chiappini (1998, p.

71.), discute o ensaio ―Reflexões sobre o romance moderno‖, de Anatol Rosenfeld, que

ressalta ―a perda do centro, da literatura, por analogia ao que chama de desrealização, na

pintura, ou perda da perspectividade.‖. A pintura no século XX deixa de ser mimética e se

recusa a realizar a sua função, ou seja, a de representar a realidade, e, nesse mesmo sentido, o

romance também sofre alterações análogas, onde podemos perceber a diluição da estrutura

narrativa. Nessa perspectiva, o narrador é substituído por uma voz que está diretamente

envolvida no que narra, deixando transparecer na sua linguagem as entrelinhas das suas

emoções e o fluxo dos seus pensamentos. Também o narrador-personagem acaba com a noção

tradicional de personagem que agora passa a ser fragmentada, uma voz sem rosto, que está

além do caráter retratado pelo romance psicológico.

De acordo com o ensaio de Anatol, Chiappini afirma que, para este escritor, a

desintegração da figura humana e dos seus espaço-temporais, nas artes plásticas e no romance

se dá por razões sociais.

Essa análise da fragmentação do romance (e do narrador) deixa ver que a sociedade,

pela sua fragmentação, exclui o próprio homem, tornando-o um objeto. Nesse sentido, de

acordo com Rosenfeld, artistas e autores, como Kandisnky, Mondrian, Virgínia Woolf, Proust

e Nathalie Sarraute, que tiveram que lidar com essa desintegração da figura humana e de seus

referenciais espaço-temporais, produziram obras que romperam com as técnicas tradicionais

da composição artística. Essa produção, segundo Rosenfeld, seria causa e ao mesmo tempo

resultado ―do fato de que, conforme a expressão de Virgínia Woolf, a vida atual é feita de

Page 46: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

46

trevas impenetráveis que não permitem a visão circunspecta do romancista tradicional‖

(Chiappini, 1998, p.73.).

Da mesma forma, a teoria literária deste século teve também que discutir esse

problema. Segundo Chiappini, no ensaio de Rosenfeld, está sintetizada uma discussão que foi

desenvolvida por vários teóricos do século XX: Auerbach, no capítulo final sobre Virgínia

Woolf em Mimesis; Benjamin, em ―O narrador‖; Adorno, em seu ensaio ―A posição do

narrador no romance contemporâneo‖; Hauser, no último capítulo de sua História social da

Arte: ―A era do filme‖; no ensaio crítico ―A era da suspeita‖, da romancista Nathalie Sarraute;

e em vários textos teóricos do também romancista Robbe-Grillet. Todos eles aludem à

absorção das técnicas cinematográficas pelo romance, ou seja, cortes, montagem e

simultaneidade relacionados:

à impossibilidade de narrar, num mundo reificado pelo domínio da

mercadoria; à estandardização provocada pela produção em série e pelos

meios de comunicação de massas que tenderiam a tudo homogeneizar na

mediocridade do meio-termo vendável; à consequente tematização indireta

dessa crise, pelo autocomentário irônico das obras; ao afogamento das vozes

das personagens na voz perdida e circular do narrador em busca de si mesmo

e dos outros, escolhendo palavras num repertório de palavras igualmente

gastas pela repetição e pela alienação do sujeito na língua da ―tribo‖, que

deixou de ser tribo. (CHIAPPINI, 1998, p. 74.)

Mas Chiappini também afirma que paradoxalmente a ―era da suspeita‖ acaba sendo

também uma ―era de confiança‖ na capacidade da ficção de desvendar sendas ocultas do real

justamente ao assumir uma postura crítica em relação do poder mimético da palavra. Quando

a ficção assume a subjetividade e a escassez das perspectivas no enfoque do real, a autora nos

diz que ―seria talvez uma forma menos ilusória e, portanto, mais eficaz, de conhecer.‖ É por

pensar desta maneira que a crítica do romance reencontra a crítica da História e da filosofia da

História, que nos remete a velhas questões abordadas por Aristóteles acerca da relação entre

História, filosofia e poesia.

Na Poética, no século III a.C., Aristóteles afirma que ―a poesia é mais filosófica e de

caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história

estuda apenas o particular.(ARISTÓTELES, p.288 apud CHIAPPINI, 1998, p. 75).‖ Nesse

sentido podemos considerar que a poesia mostra o universo enquanto a história narra apenas

uma parte e na maioria das vezes somente o que a sociedade burguesa deseja ver, deixando

assim uma brecha na sua descrição.

Page 47: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

47

A posição aristotélica acerca da poesia, como já vimos, é inversa à de Platão, para

quem a poesia é uma cópia da cópia da realidade, e, diferentemente da filosofia, o

conhecimento de mundo resultante da poesia é simulacro. Como afirma Chiappini, essa

polêmica renasce na França do século XVII, entre Diderot e Rousseau: o primeiro defende

que o teatro é uma arte de formação humanizador, enquanto o segundo o considera nocivo à

formação humana e à vida em sociedade.

Alinhada a Aristóteles e a Diderot, a posição crítica de perfil marxista entende que a

poesia possui o poder de revelar o ilusório do mundo em que vivemos e alcança o universal

pela mediação do particular e isto também se aplica a teoria do romance.

Na linha marxista encontra-se toda uma teoria do romance que desenvolve essa ideia e

um dos principais nomes desta teoria é Lukács, que vê o romance como uma forma estética

capaz de desvendar uma totalidade, que através da ficção nos faz conhecer a essência da

realidade e, ao conhecê-la, despertar o desejo de transformá-la. Com isso, de acordo com

Lukács, essa transformação se coloca num plano político e social. A esse respeito a autora de

O foco narrativo diz que Lukács, ao seguir:

Esse ideal de romance, ainda ilustrado, está preso à ideia da coerência, da

totalidade e da VEROSSIMILHANÇA, e é justamente o que impediu um

grande crítico como Lukács de entender o projeto das vanguardas que

rompem com a PERSPECTIVA coesa do romance do século XIX, porque

não crêem mais na sua capacidade de representar uma realidade cada vez

menos inteligível, fragmentada e caótica, cujos caminhos de transformação

ninguém acredita vislumbrar suficientemente para aponta-los a leitor algum.

(CHIAPPINI 1998, p. 77).

Ao invés disso, a ficção opta por expor o caos, o que faz com que haja uma diluição da

história, do personagem e do narrador no romance contemporâneo. Esses romances tendem a

mostrar o fantástico ao invés do realismo, a estar mais para o alegórico do que para o

simbólico. Nessa perspectiva, de acordo com Chiappini, podemos elaborar uma pergunta:

como se coloca a ficção e a história neste momento? E a autora nos diz que:

Ela, volta e meia, reaparece, implícita ou explicitamente, nos próprios

romancistas ou nos teóricos da literatura, quando não vem recolocada pela

própria filosofia. A diferença é que agora não se desconfia somete do poder

de representação do discurso da História. A desconfiança se alastra também

para o poder da FICÇÃO de, pela particularidade, chegar à universalidade,

operação que nos levaria, segundo Aristóteles, Diderot ou Lukács, a

compreender e conhecer mais profundamente a realidade. (CHIAPPINI,

1998, p. 78)

Page 48: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

48

No entanto, Chiappini afirma que, hoje, no confronto com a História, a ficção ainda

leva vantagem, porque assume a sua fragilidade e não tenta escamotear ―uma determinada

visão da realidade sob a máscara da verdade‖ (p.78). Por outo lado, um novo conceito de

História também se desenvolveu a partir de pensadores do século XIX, como Marx, que

corrigiram os pressupostos positivistas anteriormente vigentes.

Finalizando seu texto, Chiappini faz uma reflexão sobre a aproximação entre ficção e

história. A autora retoma o texto de R. Barthes, ―O discurso da História‖, de 1967, para

evidenciar o quanto a História não pode ser encarada de forma linear, neutra e positivista Em

seu texto, Barthes, analisa textos históricos de Heródoto, Maquiavel, Bossuet e Michelet,

evidenciando várias marcas de enunciação no enunciado, usando para tanto, elementos da

linguística e também da teoria literária. O trabalho de Barthes, segundo Chiappini, demonstra

que o discurso não é ideológico apenas pelas ideias defendidas, mas também pela sua própria

estrutura, trata-se de uma a elaboração imaginária ou ideológica, porque é uma elaboração

linguística. A conclusão de Barthes é a de que ―qualquer ordenação num discurso é

significativa; mesmo a opção pela desordem, a enumeração caótica dos fatos, pode ser

significativa de uma determinada visão crítica da HISTÓRIA linear.‖ (p.82).

Quanto à ficção, a autora termina seu último capítulo ponderando que,

mesmo quando comprometida com os esquemas realistas, faz, volta e meia,

explodir a HISTÓRIA do vencedor para iluminar retalhos da palavra e da

ação daqueles que um dia foram impedidos de entrar para o panteon dos seus

heróis. Dos heróis daquela HISTÓRIA que nos formou, que nos ensinaram

na escola e que, até hoje, nos diz: os índios são preguiçosos; as mulheres são

menos racionais; o camponês é ignorante; o negro é supersticioso... Uma

HISTÓRIA que frequentemente e paradoxalmente foi desmentida pela

ficção, de Balzac a Machado de Assis, de Euclides da Cunha a Simões Lopes

Neto, de Lima Barreto a Antônio Callado, entre tantos outros que aí estão

para prová-lo. É só saber ler, nas linhas e nas entrelinhas, o que o narrador

diz e o que ele cala, e ver fundo, desconfiando do encoberto. (CHIAPPINI,

1998, p.85.).

Como já foi dito, toda essa retomada dos pressupostos teóricos e da história da teoria

literária acerca do foco narrativo nos pareceu necessária para chegar à análise do narrador

machadiano. Muitos dos elementos aqui apresentados, diante da composição do narrador do

conto machadiano, por um lado, nos parecem úteis em muitos aspectos, por outro lado, se

mostram como que atordoados ou enrijecidos frente às cabriolas do narrador de Machado de

Assis.

Page 49: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

49

2.2 O NARRADOR MACHADIANO

O olho que só reflete é espelho, mas o olhar que sonda e perscruta é foco de luz.

Alfredo Bosi (2000, p. 48.)

Ao tratar do narrador machadiano todo cuidado é pouco, pois não é uma tarefa fácil já

que exige um estudo mais profundo da relação entre a literatura e a nossa sociedade,

representada por Machado em toda a sua complexidade. As obras de Machado alcançam a

vida social de maneira indireta e sem evidenciar a cor local ou simplesmente os costumes da

vida social brasileira, pois enfocam mais as ações dos personagens, seu comportamento na

situação narrativa. Evidenciar a vaidade e a ironia que está impregnada no perfil do narrador

não é uma tarefa simples, pois ele se camufla, muda de ideia, se movimenta o tempo todo e

somente o leitor atento poderá perceber essa variação de ponto de vista que é uma

peculiaridade desse narrador. O narrador se identifica muitas vezes com o papel de um

escritor que busca estudar o comportamento humano e, nesse sentido, Bosi (2000, p. 11) nos

diz que ―esse horizonte é atingido mediante a percepção de palavras, pensamentos, obras e

silêncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo Império‖.

Machado é o grande mestre do foco narrativo de primeira pessoa, embora tenha

exercido com maestria também o foco narrativo em terceira pessoa, conforme Bosi (2000, p.

45) afirma, é a partir das construções narrativas da primeira fase do romance machadiano, em

terceira pessoa, que:

O narrador em primeira pessoa vestirá, despirá, tornará a vestir e a despir

com desenvoltura as próprias máscaras da virtude e da razão, com habilidade

tal que o leitor poderá ver ora a máscara, ora a fenda por onde brilham de

malícia olhos de humorista.

Este narrador sabe colocar-se no lugar de um narrador hipotético e vivenciar todos os

seus grandes problemas.

O estilo machadiano compromete-se com a originalitade e não se prende aos modelos

literários dominantes de seu tempo. Na sua obra, o leitor crítico tem a possibilidade de notar

cinco fundamentos que enquadram o seu texto: elementos clássicos, resíduos românticos,

aproximação realista, procedimentos impressionistas e antecipação modenas. Machado

realiza uma caminhada que parte do paternalismo e vai até o relismo e aponta para o

modernismo. A estruturação da narrativa romântica seduz-conduz o leitor, colocando-o na

condição privilegiada de conhecedor do destino das personagens, mas a narrativa machadiana

Page 50: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

50

faz o caminho inverso, ela desconstrói o dito romântico para construir o realismo do ainda

não-dito.

Existe uma inconstância na narrativa machadiana que faz o narrador se movimentar

por vários setores da sociedade e nesse movimento usar a linguagem adequada a cada setor: se

for cronista, usará a linguagem adequada aos cronistas, que poderá ser abandoada a depender

da situação narrativa. Seguindo essa linha de raciocínio, Schwarz (2000, p. 65.) diz que o

narrador machadiano ―ora fala como um estudioso das leis do coração e da vida social, ora é

um moralista, ora um homem evoluído, ciente do provincianismo brasileiro, ora enfim é

respeitador dos costumes vigentes‖.

O narrador machadiano cresce nas obras do autor; podemos perceber a cada texto, no

curso dos anos da produção machadiana um amadurecimento gradativo da complexidade do

ponto de vista narrativo. Segundo Schwarz (2000), Machado, em seus quatro primeiros

romances, – Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878)

–, a partir de narradores em terceira pessoa, não adota as ideias do liberalismo, tão festejadas

no momento, mas desenvolve a narrativa tendo como base o paternalismo, já obsoleto na

Europa, mas bem mais adequado à sociedade brasileira da época, baseada na política do favor.

Não se trata do paternalismo autoritário e tradicionalista, mas do paternalismo que busca

aproveitar os dons naturais e a iniciativa do beneficiado, em lugar de sacrificá-lo. Ou seja, o

narrador apresenta ao leitor o mundo familiar e doméstico e se põe ao lado dos personagens

cuja vida é uma mistura de conformismo com a ordem familiar e de questionamento dos

valores dessa ordem paternalista.

Em A mão e a luva, existe um conformismo insolente (Schwarz, 2000, p. 95) que

busca dar coerência e apuro à expressão dos interesses da classe dominante e este é o sentido

ideológico desse livro, em que não há lugar para sacrifícios romanescos. Nesse livro, a

possibilidade de ascensão social dos personagens que gravitam em torno da classe dominante

é vista ―com olhos de quem está em cima, por alguém que vem de baixo‖ (Schwarz, 2000, p.

115.).

Em Helena, que é escrito depois, vemos que a alternativa da criatura digna na sua

modéstia ainda se faz presente na imaginação de Machado. Já Iaiá Garcia possui uma

construção complexa em que se contemplam as organizações opostas de Iaiá e Estela no

mesmo seio familiar.

Page 51: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

51

Em O enigma do olhar (2000, p. 45.), Bosi no diz que em Helena, o que realmente

importa é a exceção, enquanto que, em A mão e a luva, prevalece a regra, e, em Iaiá Garcia,

interagem a exceção e a regra.

Quanto ao estilo machadiano nesses romances da primeira fase, podemos dizer que o

narrador apresenta as personagens de fora para dentro, vai descascando as pessoas, aparência

atrás de aparência. Na luta em analisar e mostrar as contradições da sociedade, Machado parte

de um olhar que vai de dentro para fora, com um olhar que ―morde e assopra”, termo usado

por Bosi (2000, p. 11.), olhar que ora se distancia, ora se aproxima dos personagens. Bosi

afirma que o olhar de baixo para cima, delegado aos agregados, poderá denunciar nas

personagens que estão subindo ou talvez queiram subir socialmente traços que o narrador

prefere descartar, isto é, em posição de observação mais elevada que a dos agregados, o

narrador sabe discernir as riquezas da diferença individual que são justamente o que um tipo

nega ao outro. Assim, o narrador machadiano, para Bosi, mesmo nessa primeira frase da

narrativa de Machado, já apresenta como característica a tendência a se camuflar, o que exige

do leitor crítico uma atitude de desconfiança diante desse narrador que se disfarça o tempo

todo Bosi (2000, p. 49):

Para o leitor de Machado de Assis, o problema está em avaliar o grau de

distanciamento que o narrador crítico (embora, na aparência, concessivo)

guarda em relação a cada personagem e a cada situação. Um narrador que,

mesmo quanto parece culpar, parece desculpar, pois sabe o quanto é

imperioso o aguilhão do instinto ou do interesse.

Ainda segundo Bosi (2000), as personagens da primeira fase do romance de Machado

de Assis parecem guardar sentimentos nobres e valores raros de pureza, beleza e dignidade.

Nelas, esses valores ainda subsistem e constituem uma ―virilidade moral‖ (Bosi, 2000, p. 49).

O narrador movimenta o foco de sua atenção de um nível para o outro dessa escala moral.

Para Bosi, a integridade de algumas dessas personagens se contrapõe e expõe os limites e

mazelas da sociedade paternalista e conformista, fazendo com que o leitor perceba e

questione, pela contradição, a dinâmica social em que os personagens se movem, que revela a

fisionomia da vida social brasileira.

As personagens desses romances estão sempre lutando, umas contra o mundo do favor

e outras para se incluir neste mundo . Em Helena, Iaiá Garcia e A mão e a luva estão

presentes as contradições sociais enfrentadas pelas personagens pobres que estão em convívio

direto com os seus protetores. Essas personagens possuem uma força moral: Luiz Garcia e

Page 52: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

52

Estela lutam o tempo todo para não dever nada para dona Valéria, pois eles não sonham com

uma posição social, ambos se constroem em resposta à arbitrariedade de seus protetores.

Schwarz (2000, p.184) parece concordar com Bosi, quando diz que:

como Luiz Garcia, Estela tem horror a sonhos desta ordem, nos quais o

inferior abaixa a guarda e se deixa seduzir, além de reconhecer enquanto tal

a própria inferioridade. Nisto, Helena prefere morrer a ser suspeita,

Mendonça desiste em se casar pela mesma razão.

Entretanto, para Schwarz, ao contrário do que afirma Bosi, essa grandeza moral que o

narrador atribui às personagens não é a responsável pela percepção da contradição que

fundamenta a vida social brasileira. Segundo Schwarz, tal comportamento conduz ao

imobilismo, uma vez que o desejo de subir na escala social vigente é ainda mais degradante.

Esse imobilismo diante da sensação degradante que o favor impõe às personagens que dele

dependem indica, por um lado, que a nobreza de tais personagens está ainda na esfera do

paternalismo, pois:

a dívida de gratidão pode pesar mais que a inferioridade social, o sentimento

de estar quite é compatível com a situação dependente, a independência pode

ser um estado de dívida (...) a contabilidade dos favores prevalece

inteiramente. (SCHWARZ, 2000, p. 186.).

Além disso, para Schwarz, em já é possível ver alguns aspectos que depois se tornarão

decisivos no Machado da segunda fase. Em A mão e a luva o conformismo é a expressão de

nossas classes dominantes, em Guiomar não há a paixão desatinada, ela uma realista que não

abre mão da sua conformidade:

Guiomar amava deveras, mas sem desatino, cegueira ou nitidez (...) ela é

representativa da reciprocidade natural à prática paternalista, em que a

espontaneidade não é totalmente boa, o cálculo não é todo ruim, e os dois

são imprescindíveis. (Schwarz, 2000, p.103.).

Alfredo Bosi (2000) também reconhece que nas obras da primeira fase já se mostram

as características que serão fortes na segunda fase, especialmente a mobilidade de olhar do

narrador, que Bosi denomina de labilidade e Schwarz chama de volubilidade. Essas

observações sobre os romances da primeira fase demonstram como o narrador machadiano

ganha características cada vez mais intrigantes. A sua narrativa, num processo próximo ao do

impressionismo associativo, exige uma ruptura com a narrativa linear, fazendo com que as

Page 53: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

53

ações não sigam um fio lógico ou cronológico, pois vão sendo narradas conforme seu

surgimento na memória das personagens ou do narrador. Machado de Assis não se apega a

objetos na sua descrição, ele explica somente o que é explicável, pois há coisas que ―seria

inútil explicar.‖, elas aparecem na obra em relação à assimetria da própria realidade brasileira,

mas, por outro lado, Machado penetra o universo das assimetrias como tema que tende a

cruzar o círculo apertado dos condicionamentos locais e vai para um horizonte ao mesmo

tempo individual e universal.

Também nos seus contos Machado busca criar novas técnicas de narração no intuito

de superar os padrões românticos e realistas ou naturalistas. Nessas narrativas, Machado

trabalha de várias formas a composição do narrador, que ora pode ser onisciente e distante,

em terceira pessoa, ora pode ser testemunha ou narrador-personagem, em primeira pessoa. Em

alguns contos, esses dois tipos de narrador dividem a narrativa, criando a estrutura de uma

história dentro da outra, como no conto ―Entre santos‖, por exemplo. Também nos contos é

possível perceber os elementos de ironia e volubilidade do narrador sendo compostos. Para

Alfredo Bosi (2000), por exemplo, ―Teoria do medalhão‖ é um ―conto-teoria‖, no qual o

problema entre essência e aparência é central.

É certo, entre a crítica, que é na segunda fase da produção machadiana que o narrador

realmente atinge o seu estado maior, pois nas Memórias póstumas de Brás Cubas e em

Memorial de Aires, os memorialistas têm o poder de dizer o que pensam sem se preocupar

com que os outros vão pensar ou dizer. Aqui o narrador é totalmente aberto para a sinceridade

em Bosi (2000), ―o defunto será descaro até o cinismo, não precisará mais poupar os outros

nem a sim mesmo.‖ Com isso podemos dizer que nesta fase as palavras possuem um poder

devastador. Bosi (2000, p. 141) nos diz que:

A obra final de Machado, sentida às vezes como o amaciamento de todos os

atritos, parece, antes, desenhar em filigrana a imagem de uma sociedade (ou,

talvez melhor, de uma classe) que, tendo acabado de sair de seus dilemas

mais espinhosos (a abolição da escravatura, a queda do Império), quer deter

e adensar o seu tempo próprio, fechando-se ciosamente nas alegrias

privadas, que o narrador percebe valerem mais que as públicas.

Nesse período, após abolição da escravatura os conflitos da escravidão ainda se faziam

presentes e como sabemos muitos existem até hoje. Machado buscou discuti-los nas suas

narrativas, mas ele não era utópico nem revolucionário e nisso ele nada propõe, nada crê e

nada espera. Porém nunca devemos pensar que ele é conformista. Nas suas obras vemos

muitas vezes o sarcasmo, ele busca trazer o cotidiano para situações limites.

Page 54: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

54

Portanto, ao chegar ao final deste tópico, é importante sabermos que o narrador

machadiano, muitas vezes, é confundido com o homem Machado, e sua obra aparece como

consequência natural, mecânica e patológica de uma deficiência orgânica e psíquica.

No entanto, consideremos que o seu narrador é ―volúvel‖, de acordo com Schwarz, e

com isso o narrador machadiano não é digno de confiança. Por tartamudear, conduz-nos em

uma espécie de labirinto em que o leitor deseja encontrar a saída sempre negaceada. Se

verdadeiramente ele não nos engana, deixa-nos muitas vezes acreditar no que diz, mas, logo

em seguida, ou, talvez bem mais tarde, quando pensarmos estar tudo compreendendo,

percebemos situações narrativas em capítulos inesperadamente surpreendentes que mostram

as possíveis contradições e ambiguidades que encerram.

Portanto, o narrador machadiano coloca o leitor diante das dúvidas, das desconfianças,

das indecisões, e quase sempre o criticando por sua preguiça ou por sua falta de atenção em

segui-lo no seu tartamudear e na sua volubilidade. Por isso, em se tratando do narrador

machadiano, todo cuidado é pouco, por isso espera-se do leitor uma postura atenta.

2.3 A POSIÇÃO DO NARRADOR EM ―PAI CONTRA MÃE‖

A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a

boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da

cabeça por um cadeado.

Machado de Assis. s/d, p. 102

Neste tópico abordaremos a posição do narrador machadiano, mediante os conflitos e

contradições sociais existentes no conto Pai contra mãe. Diante dos estudos anteriores,

sabemos que este narrador é cheio de artimanhas e ironias, por isso, é importante realizarmos

um estudo minucioso do seu comportamento, de suas peripécias e camuflagem.

Para começar, analisemos o início da narrativa:

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras

instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo

ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a

máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez

aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um

para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado (ASSIS, s/d, p.

102).

Page 55: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

55

O narrador situa a narrativa na época em que ela é passada, na qual é possível observar

que se trata do momento depois da abolição da escravatura. Este tema norteia toda a narrativa

e faz com que todos os personagens se envolvam diretamente e indiretamente com o ele.

A sua posição no começo da narrativa é apresentada na forma distanciada de alguém

que somente descreve a situação e não se importa com os fatos ocorridos, pois o narrador

mesmo não é personagem e o que narra ainda não é uma narrativa assumidamente ficcional,

pois a posição e a linguagem do narrador dão ao texto o desenho da crônica histórica, embora

já salpicada de ironia crítica. Nesse sentido, a composição da narrativa fica no primeiro

momento com ar de crônica histórica: o narrador descreve objetos que eram usados na

punição aos sujeitos escravizados que ousavam desobedecer ao seu senhor. Assim vai ficando

claro, sem que o narrador tome partido definitivo de um lado ou de outro, a crueldade e

brutalidade com que esses sujeitos eram tradados.

Quando Machado escreve este conto, já havia passado mais de uma década após a

abolição da escravatura, no entanto, o mesmo dá a entender que este assunto ainda se fazia

presente na atualidade em que o conto foi escrito. O seu narrador apresenta a escravidão da

forma mais impressionante e brutal que o regime escravocrata impôs, mas sem nunca assumir

um tom retórico ou sentimental.

Machado consegue apresentar uma narrativa em que é possível encontrar uma rica

ironia. Trabalha minuciosamente, a fim de que nenhum aspecto do texto se perca ou se desvie

do propósito de representar as várias facetas do ser humano e do sistema social vigente na

década em que a obra foi escrita.

Nesta segunda parte, vejamos como o narrador coloca a sua ideia de forma cautelosa,

sutil e irônica:

Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Era grotesca

tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o

grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda,

na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. (ASSIS, s/d p.102)

Como podemos perceber na fala do narrador: ―não cito alguns aparelhos senão por se

ligarem a certo oficio‖; o mesmo parece inserir no relato histórico dos fatos passados (na

suposta crônica) uma opinião pessoal – ―mas a ordem social e humana nem sempre se alcança

sem o grotesco, e alguma vez o cruel‖. Com isso, podemos fazer um questionamento entre a

aparência e a essência da sua fala. Será que ele está do lado dos dominados ou dos

dominantes? Dessa forma, não deixa claro qual é a sua posição cabendo assim ao leitor essa

Page 56: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

56

análise. E pouco a pouco, o leitor vai percebendo que essa não é a pergunta central, mas que

essa impressão narrativa é escamoteadora, construída pelo narrador, pois sugere que ele

compartilha, como se fosse um narrador-personagem, da justificativa da lógica escravocrata.

Mas é na verdade um modo de levar o leitor para o centro do problema, a naturalidade da

escravidão na sociedade periférica que se pretendia liberal. A linguagem culta e com ares de

crônica do narrador para tratar de tema tão cruel e indicativo de atraso social agudo já

representa o caráter duvidoso das ideias liberais na sociedade da época.

Bosi (2000) afirma que Machado repuxa o cotidiano para situações limites testando

assim o pensamento conformista. Porém, será que nessa fala o narrador está demostrando

conformismo? Ou será mais uma camuflagem (labirinto)? Segundo Schwarz (2000), se trata

de uma espécie de oco dentro do oco, na qual Machado seria mestre. Na fala citada acima o

narrador coloca a neutralidade da crônica histórica sobre suspeita (PILATI et al 2011, p. 47)

e:

tira partido estético do distanciamento temporal para contrapor à aparente

realidade do momento (...), as intromissões do narrador, a composição entre

tons de naturalidade e de crueldade, o jogo entre o presente da narrativa e a

breve crônica do passado escravocrata vão transformando em literatura o que

poderia ficar restrito a um relato de um passado histórico, aparentemente

superado.

A literatura possui um potencial muito grande de humanização e de acordo com que o

autor descreve na sua narrativa irá influenciar os sujeitos coisificados a se humanizar. O

narrador machadiano trabalha o cotidiano abordando a totalidade social com todas as suas

contradições. E para isso ele usa toda a sua capacidade de se camuflar e toda sua ironia para

alcançar o objetivo do autor.

Nos primeiros cinco parágrafos, o narrador se dedica a realizar a descrição da histórica

da época da escravidão e só depois o texto ganha a caraterística de conto, quando o narrador

passa a nos apresentar os personagens da narrativa. As escolhas dos nomes dos personagens é

algo intrigante, pois Candido Neves e Clara são nomes que trazem um ar de pureza e leveza,

no entanto, as suas ações na narrativa desmancham esse aparência, pois as suas atitudes não

são nada leves nem ingênuas, talvez por causa da dureza que a sociedade escravista lhes

impõe.

O narrador faz uma breve apresentação dos personagens: ―Cândido Neves, em família,

Candinho.‖ Esse homem possuía um defeito grave, pois não aguentava emprego nem ofício.

Tenta realizar vários trabalhos, começa por querer ser tipógrafo, ser caixeiro para um

armarinho, mas, por ser muito orgulhoso, essa obrigação de atender e servir os outros feria o

Page 57: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

57

seu orgulho. Portanto, no cabo de ―cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade.‖

Trabalhos em cartório, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.

Essa é a situação de acordo com o nosso narrador. No entanto, quando conhece Clara ele

contava trinta anos e:

não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um

primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego,

resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não

lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal.

Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos

comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o

casamento não se demorou muito. (ASSIS, s/d p.103)

A apresentação de Clara feita pelo narrador não tem como centro o mundo do

trabalho, que, na verdade parecia não existir efetivamente para homens na posição social de

Candinho. O narrador aproxima o leitor da personagem apresentando o mundo doméstico e

íntimo: Clara tinha vinte e dois anos, era órfã e morava com sua tia Mônica. Sobrinha e tia

costuram juntas. Mas não o bastante para que pudesse atrapalhar o tempo da moça namorar.

Todos os namorados que surgiam eram apenas para matar o tempo e não deixavam saudades.

A moça queria muito casar, no entanto, os namorados que surgiam não conseguiam capturar a

sua atenção por muito tempo.

Assim, o narrador que começara o texto pela crônica história chega ao conto ficcional,

que tem em Clara e Candinho o núcleo da narrativa. Essa história familiar, entretanto, parece

ter como temática o dinheiro, pois tanto Candinho quanto Clara são pessoas pobres que

necessitam trabalhar muito para se manter, porém Candinho não gosto de nenhum ofício e

acaba chegando ao limite da pobreza. O dinheiro norteia a vida dos personagens, ela trabalha

dia e noite, ele passa mais tempo procurando algo fácil do que realmente trabalhado. Quando

se casam a princípio tudo parece normal, no entanto, no decorrer dos dias de casados as

dificuldades surgem e principalmente com a chegada de uma criança.

Pilati (et al, 2011) refere-se a essa mudança sofrida na forma da obra que é evidente,

passa do geral para o particular, do público para o privado, da história do passado para a

história ficcional e de Cândido para Arminda. Todavia, essa mudança anuncia uma oposição

no interior do texto, anuncia também a profunda ligação entre o que está em oposição: crônica

e conto, geral e particular, público e privado, caçador de escravo e escrava, pai e mãe. Essas

contradições estão presentes no cotidiano da sociedade, contudo passavam despercebidas, ou

melhor, eram aceitas com naturalidade e estavam ainda de acordo com a lógica social,

Page 58: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

58

embasada na escravidão. Elas estão interinamente interligadas pela força que há na

contradição.

O narrador não segue uma linha linear ou temporal cronológica. Ele faz uso dos

movimentos dúbios da sociedade, cuja estrutura é fugidia e propositadamente negada pelo

capitalismo peculiar que domina a vida social brasileira no século XIX. Machado realmente

faz um trabalho formal minucioso nessa obra, e nós, leitores do século XXI, podemos nos

confrontar com temas complexos e conflituosos que, surpreendentemente, ainda não foram

superados por essa sociedade atual. A marcação temporal a que o narrador às vezes recorre é

sutil e está ligada aos meses, noite e quantidades de dias; vejamos uns exemplos:

O casamento fez-se onze meses depois [...] (p.104). Chegou o oitavo mês, mês

de angústias e necessidades [...] (p.107). Foi na última semana do derradeiro

mês [...] (107). Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia

vintém [...] (p.106). Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel [...]

(p. 108). Cinco dias ou rua! Ao fim de quatro dias [...] (p.108). [...] e dous dias

depois nasceu a criança (p.109). [...] mas, como chovesse à noite, assentou o

pai levá-lo à Roda na noite seguinte. (ASSIS, s/d, p. 109).

Como se vê nessa citação, o narrador não se encontra apegado ao tempo cronológico e

linear, mas, para situar-nos no tempo, ele usa os meses, dias e noite. Algumas vezes a

marcação temporal é genérica, não se sabendo com exatidão a duração do período da ação

narrada: ―(...) após algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou

sem vida neste mundo (...). Não sabia que horas eram.‖.

Clara e Cândido Neves vivem com dificuldade, o dinheiro é conseguido com a captura

de escravos, que para Candinho era o oficio menos trabalhoso, já que não era obrigado a ter

um compromisso diário e seguir rotina, ―não obrigava a estar longas horas sentado.‖ Esse

ofício só exigia habilidade, agilidade, olho atento e um pedaço de corda. O narrador nos

relata que nesse trabalho Candinho, às vezes, tinha vintém e outras vezes não. Nem sempre

conseguia um escravo. Mas com o passar do tempo, esse dinheiro que vinha deixou de entrar,

pois agora havia mais de um caçador de escravo, com mãos novas e hábeis. Diante do negócio

que crescia e da escassez que crescia na mesma proporção, o casal se encontrava em situação

difícil, agravada com o anúncio da chegada de mais um integrante para a família (uma

criança, Clara se encontrava grávida). Os conflitos começam antes mesmo de a criança

nascer, ou antes, mesmo da gravidez. Só a ideia de ter uma criança na família já foi motivo

para Tia Mônica fazer essa afirmação: ―Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a

tia à sobrinha.‖.

Page 59: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

59

O clímax do conto se dá a partir do nascimento do filho de Candinho, que, devido a

sua pobreza, não teria condições de criar o menino e, por isso, é instigado por Tia Mônica a

levar a criança para a Roda dos Enjeitados. Nessa condição de pobreza, é que Cândido se vê

contra a parede. A ideia de ser pai faz com que ele passe mais tempo na rua à procura de

escravos fujões, no entanto, todo seu esforço nesse sentido é inválido. Clara agora trabalha

mais que o normal: ―(...) não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a

necessidade de coser para fora‖. (ASSIS, s/d, p.106.).

A chegada do filho de Candinho e Clara nos leva a conhecer a outra personagem da

narrativa: ―Arminda‖, que, ao contrário das outras personagens, é escrava e se encontra fugida

do seu senhor, que oferecera recompensa de valor alto pela sua captura: ―Uma, porém, subia a

cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido.‖ (ASSIS,

s/d, p. 109.) A descrição feita pelo narrador de Candido Neves e de Clara é bem mais

completa em relação a que ele faz da escrava, que é superficial; o que está ligado ao fato de

que, na sociedade escravocrata e pós-escravocrata, as pessoas negras não possuíam direito

nem voz.

Na análise comparativa entre Candinho e Arminda, as contradições são gritantes:

Uma primeira tentativa de análise sugere a correlação de dois níveis: um

natural, e outro social. O natural aparece nas relações de paternidade e

maternidade. Candinho é pai, Arminda é mãe. São fatos paralelos que, no

plano natural, coexistem sem qualquer conflito. Quanto às relações sociais

que presidem ao encontro de Candinho e Arminda, são, ao contrário das

primeiras, abertamente antagônicas: Arminda é escrava fugida, Candinho é

perseguidor de cativos. (BOSI, 2000, p. 122.)

Nessa citação Bosi deixa claro que os níveis no conto não se acham ―justapostos‖, e

que a solução deles vai depender do desfecho do impasse criado pela profissão de Candinho.

Se ele deixa Arminda em liberdade, ficará sem o filho já que a recompensa não virá, e se

capturá-la, é o filho de Arminda que corre risco.

No clímax da obra, as ironias não perdem a força demonstrada no início da narrativa.

O desfecho final da obra se dá no meio da rua, em que Cândido, ao se despedir do seu filho,

depara com Arminda. O narrador descreve esse encontro fazendo sua última intromissão mais

evidente na narrativa: ―Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com

a intensidade real.‖ O tom irônico deixa ver, no convívio entre o grotesco da situação e o

aspecto grandioso da emoção do personagem, a naturalização da reificação na sociedade

escravagista. Cândido Neves é apresentado pelo narrador sempre de uma forma dual, o pai

apaixonado pelo filho que está sendo forçado a abandonar por falta de condições é o mesmo

Page 60: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

60

que captura a escrava. O narrador nos apresenta um homem, Cândido (e a ironia do seu nome

aqui fica mais intensa), que procura demorar o maior tempo possível para se separar do filho

amado na Roda dos Enjeitados; mas que não se sensibiliza pelas súplicas aflitas e

desesperadas de Arminda, a escrava fugida que estava grávida:

Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que

andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais

alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao

contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. --Estou grávida,

meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por

amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que

quiser. Me solte, meu senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. --Me

solte! (ASSIS, s/d, p. 111).

Em resposta as suplicas, uma resposta seca, vazia e dura: ―--Não quero demoras;

siga!‖.

Depois de um tempo de luta, ambos chegam à casa do senhor que, de imediato,

reconhece a escrava e paga o prometido. De medo e de dor a mãe que tanto suplicou pelo

socorro do seu algoz, agora, como um animal, aborta ali no chão o seu filho. Nem diante

dessa cena, Cândido Neves se mostra sensibilizado. O que realmente importa naquela cena e

naquele momento são os mil-réis pagos pela captura da escrava. Arminda no conto, como

eram os escravos, é meramente mercadoria que serve para custear a existência do filho de

Candinho, cujo retorno do filho para casa depende exclusivamente dos mil-réis pagos pela

captura da escrava.

Machado de Assis cria uma história ficcional que traz o dinheiro como regente da

narrativa, dos personagens, do narrador, da crônica, ficção, história e literatura. A luta para

possuir o dinheiro é ferrenha e desumana na ficção, como é também na vida; quantas

Armindas e Candinhos ainda existem na atualidade.

A representação da história feita por Machado é construída por trabalhar com as

evidências e contradições das formas mercantis da sociedade, mas criando um mundo próprio

no conto, que busca ordenar o que está desordenado. O narrador machadiano não traz

soluções para os conflitos e contradições apresentados na narrativa, não obstante,

problematiza o processo escravocrata brasileiro e, porque não dizer, a sociedade capitalista

que surgia e que existe até hoje. O narrador termina a narrativa descrevendo as emoções de

Cândido Neves: ―Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a

fuga e não se lhe dava do aborto.‖ E Machado termina o conto com a seguinte fala de Cândido

Neves: ―--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.‖. Com o filho e o dinheiro em

Page 61: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

61

mãos, Candinho (branco livre), não se importa nem um momento com o que sucedeu a

Arminda (escrava).

Portanto, a frase do nosso maestro narrador irônico, ―porque dinheiro também dói‖, é

o que podemos talvez dizer que seria o resumo desse conto. Nele, as cicatrizes da escravatura

ainda estão vivas como se fossem o presente. Muitas feridas abertas no período escravocrata

ainda não foram fechadas e nós, leitores críticos, a partir da leitura do conto percebemos que

temos um papel a ser desenvolvido para que essa contradição seja superada.

Page 62: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

62

CAPÍTULO III

A FIGURAÇÃO DA VIDA SOCIAL BRASILEIRA NO MUNDO DO

CONTO “PAI CONTRA MÃE”

A verdadeira arte visa ao maior aprofundamento

e à máxima abrangência na captação da vida

em sua totalidade onicompreensiva.

(Lukács, 2012, p 26).

Para começar a falar das relações entre literatura e a vida social é preciso

considerar como o materialismo histórico e dialético entende essa relação, pois a arte e a

literatura giram em torno das discussões históricas e dialéticas da sociedade, mas têm também

suas especificidades que não podem ser ignoradas. Nesse sentido, Lukács (2012) afirma que o

materialismo histórico dialético compreende a arte e a literatura como formas estéticas que

captam a vida em sua totalidade histórica, abrangente, profunda e dinâmica.

Ao estudarmos literatura, percebemos que a vida social está internalizada na estrutura

das obras literárias. Literatura e sociedade se encontram interligadas, pois a literatura é um

meio de comunicação entre as pessoas e a vida social está diretamente ligada com ela.

Contudo, a forma literária só dá conta da forma social por meio do trabalho estético

realizado pelo escritor. A vida social, que é a forma objetiva externa à obra só é captada pela

arte quando exerce um papel na estrutura da obra, ou seja, quando se torna interna à obra.

Candido (2006), no texto ―Crítica e sociologia‖, chama a atenção para o fato de que a

melhor abordagem da relação entre forma literária e vida social não é buscar, como alguns

críticos defendiam, o valor significativo de uma obra no quanto ela transparece ou não

aspectos da sociedade, nem tampouco restringir o valor estético de uma obra, como defendem

outros críticos, exclusivamente nos fatores formais postos em jogo, entendendo a obra como

forma independente de qualquer elemento social. Para Candido, o caminho mais fecundo é

aquele que não opta exclusivamente nem por uma ou por outra das abordagens acima, mas

sim por uma forma de análise ―dialeticamente íntegra‖ da obra artística, considerando tanto

seus elementos estruturais quanto a presença dos fatores sociais no interior da estrutura da

obra.

Candido (2006) defende que o texto está ligado ao contexto, mas que essa ligação se

realiza na totalidade dialética entre o social e a estética, entre a forma da obra e a realidade

social. Portanto, é preciso perceber como os fatores sociais estão representados na obra, pois

Page 63: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

63

na literatura a vida social aparece nas obras de maneira sempre transfigurada pelo trabalho

estético: aquilo que não era literatura é transformado em texto literário.

A literatura é produto social porque é produzida pelo homem e na história, exprimindo

as condições de cada povo, do espaço e do momento em que ela é produzida. Como produto

humano, a literatura é parte das contradições da vida social, da fratura entre objeto e sujeito,

da vida social em que a existência está alheia ao sujeito. Por outro lado, quando representa

essa fratura de que ela também é parte, a obra de arte torna-se também uma forma de resistir a

essa fratura, de reunir no mundo do texto o que está separado e disperso na sociedade

administrada.

Com o avanço da coisificação do homem e da vida social, resultado da consolidação e

das crises do capitalismo, a literatura não ficou imune aos processos de mercantilização da

vida; os escritores se inseriram também no mercado de trabalho sujeito à lógica da mercadoria

e, mesmo como críticos desse sistema, contraditoriamente, também eram parte dele e suas

obras refletiam essa condição. De acordo com Lukács (2012), a partir desse estágio de

consolidação do capitalismo, na segunda metade do século XIX, a arte que antes dava conta

de mostrar as contradições da vida social, passa a não revelar essas contradições em sua

totalidade. Para Lukács (2012, p. 25.), o naturalismo era um exemplo dessa situação

problemática para a produção artística no mundo reificado: ―Toda teoria e toda prática

naturalista são levadas a unir de maneira mecânica e antidialética fenômeno e essência,

formando uma turva mistura, na qual a essência é necessariamente sacrificada e, em muitos

casos, chega a desaparecer completamente.‖.

O materialismo histórico e dialético de Marx combate o naturalismo e qualquer

tendência que busca representar a vida social como mera fotografia da realidade, pois para

Lukács (2012, p 25.), ―cabe à arte representar fielmente o real na sua totalidade, de maneira a

manter-se distanciada tanto da cópia fotográfica quanto do puro jogo (...) com as formas

abstratas.‖.

Para Lukács, a arte não pode abrir mão do realismo, isto é, não pode deixar de buscar

captar a vida em sua totalidade, considerando sempre a relação entre sujeito e objeto, sem

enveredar pelo terreno do objetivismo puro nem pela estrada do subjetivismo absoluto. Além

disso, a verossimilhança da representação da realidade na obra de arte depende da forma

estética do texto e de como a realidade, em sua camada mais profunda, essencial e universal

como também em sua superfície aparente e singular, está inserida esteticamente dentro do

texto (particular).

Page 64: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

64

A arte realista narra os nossos grandes conflitos e o destino humano, dando um rumo e

um sentido a eles. Enquanto o naturalismo não consegue representar a realidade, pois

sobrepõe a descrição à narração e o seu reflexo artístico é mecânico. A literatura é uma força

humanizadora e, ao narrar, coloca as contradições das estruturas sociais em evidência nas

formas estéticas, enquanto que, na descrição, tudo está nivelado, e por isso, desumano. A vida

social não é retilínea e está continuamente mudando, por isso seu reflexo estético não pode ser

fotográfico.

Nesse sentido, há dois autores que Lukács analisa em seu texto ―Narrar ou descrever‖

(2010): Zola, em Naná, e Tolstoi, em Ana Karenina. Zola descreve do ponto de vista do

espectador ou observador e Tolstoi narra do ponto de vista do participante, ou seja, narra

acontecimentos humanos ―sociais‖. Portanto, Lukács (2010, p. 50.) demonstra que há um

contraste entre observar e participar:

O contraste entre participar e o observar não é casual, pois deriva da posição

de princípio assumida pelo escritor em face da vida, em face dos grandes

problemas da sociedade, e não do mero emprego de um diverso método de

representar determinado conteúdo ou parte de conteúdo.

A forma naturalista de escrever nasce do crescimento e do acúmulo do capitalismo,

que, na medida em que cresce, exclui as pessoas colocando umas contra as outras. O sujeito

do século XIX se individualiza, pois a relação do indivíduo com a sociedade se tornara mais

complexa do que nos séculos passados. As obras naturalistas, ligadas a esse momento,

estavam associadas às formas ideológicas nas quais prevalece o principio da ação e reação, da

causalidade mecânica e imediata, o que explica a predominância do determinismo, da tese e

da descrição. Os autores e obras que resistiam a essa tendência eram os que,

independentemente de sua posição política, produziam obras que lutavam contra a

mecanização da vida e contra a exclusão que o capitalismo impunha aos sujeitos.

Ainda no sentido da predominância da descrição dos fatos sociais na literatura,

Lukács (2010, p. 61) afirma que o método descritivo ―não é apenas efeito, mas também se

torna causa: causa de afastamento ainda maior na literatura em relação ao significado épico‖.

A arte e a literatura estão ligadas à vida social, e de, acordo com Lukács (2010), o

método descritivo impossibilita essa ligação, ocasiona a monotonia compositiva e

conformista, enquanto que o método da narração instiga os autores a buscarem infinitas

formas de composição.

Page 65: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

65

Na literatura realista é que a vida social é realmente refletida nas obras, ao buscar o

afastamento da reprodução imediata da vida, já que é necessário ter o afastamento da vida

social para então mostrá-la com todos os seus conflitos e contradições o autor alcançará de

forma mais verdadeira os conflitos sociais, pois a verdadeira obra literária só se dá ligando-se

artisticamente à vida, pois não é possível existir literatura sem vida social, mas também não

há vida verdadeiramente social na sociedade capitalista sem a força humanizadora da arte.

3.1 RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E VIDA SOCIAL NA LITERATURA

BRASILEIRA

Se, na Europa, o processo de ligação entre a literatura e a sociedade se mostrou

bastante complicado, em um país periférico, como o Brasil, essa relação é ainda mais

complexa. No decorrer do processo de formação da literatura brasileira, nos períodos

literários, os autores foram lidando de maneira diferente com a representação da vida social na

forma literária.

Conforme Candido (1997), a literatura brasileira tem raízes na literatura do Ocidente

europeu, mas aos poucos ganhou forma diferente, pois as estrangeiras não se adequavam

perfeitamente aqui e por isso tiveram que ser adaptadas à realidade local, bem diferente da

europeia. Nessa nova realidade social, que, apesar de nova, também estava estruturada nos

padrões europeus, a literatura deu aos modelos universais novos aspectos e características

locais.

A literatura aqui chegou como uma arma de dominação do colonizador e foi imposta

no Brasil Colônia como forma que estava mais a serviço da Metrópole que da Colônia

atrasada e explorada. Contudo, a literatura que foi se formando aqui gradativamente também

se contrapôs de certo modo aos interesses da Metrópole. O resultado disso é que nossa

literatura tem em sua base formativa a relação entre local e universal.

A construção inicial de nossa literatura exigiu a idealização da sociedade. Os autores

do período nacionalista, marcado pelo exotismo e pelo indianismo, representavam a sociedade

de forma a valorizar a matéria local, celebrando as riquezas naturais brasileiras. Na fase do

―Nacionalismo‖, os autores estavam empenhados em consolidar a independência

recentemente proclamada, e buscavam realizar esse empenho por meio do

patriotismo/sentimentalista, como amantes da terra, propensos a assumir o tom retórico, que

desperta a emoção.

Page 66: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

66

Os autores buscam abordar nas obras a cor local, mas visando alcançar o

cosmopolitismo/universal, já que na maioria das vezes a realidade do país independente ainda

se identificava com a situação colonial.

Por essas características, nos momentos iniciais da formação da literatura brasileira, a

relação entre a literatura e a vida social no país envolvia também a relação entre universal e

local, entre documento e ficção. As obras literárias desse período abordam, por exemplo, a

questão social do índio de maneira idealizada, que, apesar de apresentar muitos elementos

documentais dos costumes e da cultura indígena, idealizavam a figura do índio, que, no

indianismo romântico, foi transformada em símbolo da nacionalidade, quando, na verdade, o

índio real já estava dominado e praticamente destruído. A exaltação do indígena também

acabava por camuflar a presença dos negros, que não podiam figurar na literatura como heróis

ou símbolos de brasilidade, uma vez que estavam inseridos na vida social brasileira pelo

regime escravocrata. Ao se comportarem desta maneira as obras, por um lado, se afastavam

da realidade e idealizavam um passado glorioso onde o indígena era herói e a escravidão não

era considerada.

Em obras como, Caramuru, de Santa Rita Durão, O Uruguai, de Basílio da Gama e

Iracema de José de Alencar, a vida social é, em certo sentido, representada como fetiche, pois

existe todo um embelezamento da realidade que esconde os conflitos existentes na sociedade

periférica. Há um espírito de nacionalismo pelo qual as obras literárias buscam vestir-se com

as cores da nova sociedade. Por outro lado, ainda assim a matéria local acabava por aparecer

nas obras, abrindo espaço para algumas contradições, mesmo com todo o empenho

idealizador do nativismo e do nacionalismo.

Vejamos um trecho de cada uma das obras citadas acima. No Caramuru:

XXVI

O mais rico, e importante vegetal

É a doce cana, donde o açúcar brota,

Em pouco às nossas canas comparável;

XLIII

Das frutas do país a mais louvada

É o Régio Ananás, fruta tão boa,

Que a mesma natureza namorada

Quis como a Rei cingi-la da coroa:

Tão grato cheiro dá, que uma talhada

Surpreende o olfato de qualquer pessoa;

Que a não ter do Ananás distinto aviso,

Fragrância a cuidará do paraíso.

Page 67: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

67

N‘O Uruguai:

As campinas que vês e a nossa terra

Sem nosso suor e os nossos braços,

De que serve ao teu reino? Aqui não temos

Nem altas minas, nem caudalosos

Rios de areias de ouro. Essa riqueza

Que cobre os templos dos benditos padres,

Fruto da sua indústria e do comércio

Da folha e peles, é riqueza sua.

Ter por justiça a força, e pelos bosques

Viver do acaso, eu julgo que inda fora

Melhor a escravidão que a liberdade.

(...) verde, e capa verde e fino pano,

Com bandas amarelas e encarnadas.

E, em Iracema:

(...) muito além daquela serra azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a

virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da

graúna (...), o favo da jati não era doce como seu sorriso (...). Diante dela e

todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho (...). Tem nas faces o branco

das areias que bordam o mar, nos olhos o azul triste das águas profundas.

(ALENCAR, 1980, p.15.)

Nesse sentido, Candido (2010, p. 91.) nos diz:

(...) o Indianismo, que constitui elaboração ideológica do grupo intelectual

em resposta a solicitações do momento histórico e, desenvolvendo-se na

direção referida, satisfez às expectativas gerais do público disponível; mas

graças ao seu dinamismo como sistema simbólico, atuou ativamente sobre

ele, criando o seu público próprio. (...) a vitalidade compreensível pela

influência mediata de Basílio da Gama e Santa Rita Durão — eles próprios

desenvolvendo uma linha de aproveitamento ideológico do índio como

protótipo da virtude natural, que remonta aos humanistas do século XVI. Os

românticos fundiram a tradição humanista na expressão patriótica e

forneceram deste modo à sociedade do novo Brasil um temário nacionalista

e sentimental, adequado às suas necessidades de autovalorização. De tal

forma que ele transbordou imediatamente dos livros e operou

independentemente deles — na canção, no discurso, na citação, na anedota,

nas artes plásticas, na onomástica, propiciando a formação de um público

incalculável e constituindo possivelmente o maior complexo de influência

literária junto ao público, que já houve entre nós.

Como vimos na citação acima, existia uma preocupação com a autovalorização do

novo país, muitos autores desenvolviam formas para esta representação, todavia, não podiam

ainda chegar a uma representação literária dos dilemas mais profundos do país. No caso dos

índios, que eram representados como seres exóticos e até míticos, os seus problemas

Page 68: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

68

históricos e insolúveis não eram representados de fato, embora já se mostrasse, mesmo com

toda a idealização nacionalista, que alguma coisa não estava no lugar, que o nativismo estava

voltado para a transfiguração do país, mas que o enxergava através do mito do ―país novo‖.

A relação entre a literatura e a vida social brasileira vai avançar, no sentido de uma

representação eficaz, com a obra de Machado de Assis. Schwarz (2000) e Bosi (2000)

chamam a atenção para o fato de que Machado usará a estratégia do afastamento da cor local,

da realidade mais imediata, para então conseguir uma representação efetiva da realidade

brasileira. Machado não procurou negar o universal, e nem se ateve aos elementos da cor local

e é nesse ponto que ele alcança tanto o universal, quanto a verdadeira face do local, pois

conseguiu representar literariamente o quanto a realidade local também não deixava de ser

universal. Com seu realismo ele torna a realidade mais clara, se afasta da realidade para

mostrá-la como um todo e a vida política e social está internalizada na sua forma estética. A

prática do favor, por exemplo, que media as relações sociais no país foi representada na obra

literária de Machado com muita força, fazendo com que vários tipos sociais brasileiros fossem

representados: os homens livres (como o nosso Cândido Neves), os escravos (como a nossa

Arminda), os agregados (como José Dias) e, principalmente, os representantes das classes

dominantes locais (como Brás Cubas e D. Casmurro).

Machado de Assis, na sua primeira fase, escrevendo em terceira pessoa, ainda é

paternalista, busca mostrar as contradições existentes dessa fase, em que a cooptação e a troca

de favores são inseparáveis da realidade, fazendo uma representação da sociedade atual da

época. Já na segunda fase, ao optar pela primeira pessoa e pelo narrador-personagem da classe

dominante, Machado consegue ir além, mostrando as verdadeiras e mais profundas

contradições de nossa vida social. Schwarz mostra que essas contradições já se anunciavam

nas obras literárias anteriores, como em José de Alencar, por exemplo, mas elas se mostravam

pelas falhas estéticas do romance; em Machado, essas contradições se tornam parte da

estrutura planejada da obra, ou seja, nossa literatura já mostrava uma consciência profunda

dos problemas de nossa realidade, não havia mais espaço para a idealização anterior.

Machado discutirá a coisificação da sociedade, o conformismo, a alienação, o

fetichismo social, a mercadoria, a troca de favor e outros conceitos. É nas suas obras que a

sociedade é representada da maneira mais próxima da realidade. Segundo Bosi (2000, p.

141.), a obra da segunda fase de Machado é:

(...) sentida às vezes como amaciamento de todos os atritos, parece, antes,

desenhar em filigrana a imagem de uma sociedade (ou, talvez melhor, de

Page 69: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

69

uma classe) que, tendo acabado de sair de seus dilemas espinhosos (a

abolição da escravatura, a queda do Império), quer deter e adensar o seu

tempo próprio, fechando-se ciosamente nas alegrias privadas, que o narrador

percebe valerem mais que as públicas.

Ainda conforme Bosi (2000, p. 122-123.), a obra machadiana parece ter sido escrita

em dois níveis, sendo o primeiro ―de extradição ideológica, pelo qual se insinua que todos os

comportamentos se enraízam nos instintos de conservação; o que vem a dar no fatalismo ou

no ceticismo ético e politico‖; e o segundo nível, o de extração contra-ideológica, que trabalha

a contrapelo a realidade moral onde tomam corpo os enredos e as personagens.‖ Mas, para

Bosi, é somente através do seu ocultamento que a extração contra-ideológica poderá ser

apanhada no texto de Machado de Assis.

Por isso, no sistema literário que se consolida com Machado de Assis, a visão

romântica é superada e as teorias naturalistas nascentes são negadas como formas de

representação efetiva da sociedade. A vida social em Machado vai ser representada com

ironia, levando o leitor a questionar a estrutura social, o realismo está no centro da sua obra, e,

a partir dela, nossa literatura amadureceu e foi possível que novos autores surgissem e

avançassem no sentido da representação literária da vida social brasileira.

Nesse sentido, um autor também muito importante é Gracílimo Ramos, que, no

conjunto de sua obra, transforma a maneira da vida social ser representada pela literatura. Ele

representa o homem sertanejo na sua obra Vidas secas, e, por ela, vemos a coisificação do ser

humano e, ao mesmo tempo, a luta pela humanização. No romance, até a cachorra Baleia é

tão ou mais humana que Fabiano, ela sonha e pensa em um lugar onde não existe fome. Na

obra de Graciliano, a divisão de classe da sociedade é visível na história de Fabiano, o

trabalhador pobre não tinha direito nem a ter voz na realidade do país. Mas Graciliano

representa tudo isso sem que seja necessário falar explicitamente, ao contrário, é pela secura

da obra, pela impossibilidade de falar de Fabiano, que o autor representa a realidade social.

Mas o caminho aberto pelos árcades e românticos, consolidado por Machado e

trilhado por Graciliano Ramos e tantos outros não é retilíneo, pois a vida social se transforma

e exige novas formas estéticas para representá-la. Na sociedade atual, ainda mais reificada,

fica cada vez mais difícil para os autores realizar a representação da vida social na arte.

Diante dessa breve análise da representação da vida social na literatura brasileira,

resta-nos dizer que cada autor tentou de sua maneira representar a sociedade na literatura, mas

jamais nenhum autor conseguiu fazer com que literatura e vida se separassem totalmente.

Literatura é um trabalho humano e não pode existir literatura sem o ser humano, ambos

Page 70: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

70

necessitam um do outro para a sua permanência. A literatura precisa refletir a vida para ser

literatura e o homem precisa da literatura para compreender, discutir e analisar os conflitos

naturalizados existentes na sociedade.

3.2 A FIGURAÇÃO DA VIDA SOCIAL BRASILEIRA NO CONTO ―PAI CONTRA MÃE‖

A descrição torna presente todas as coisas

rebaixando os homens ao nível

das coisas inertes.

Lukács (2010)

Em ―Pai contra mãe‖, publicado em 1906, Machado de Assis faz uma leitura da

sociedade do período escravista, analisando os conflitos sociais que estavam naturalizados. A

sociedade é representada por um branco livre e uma negra escrava e o jogo de poder a que

esta relação remete. No início do conto, há a descrição das cenas da escravidão, cujos objetos

descritos refletem o grau de desumanização da sociedade escravagista. A descrição no início

do conto é distante e não humanizadora, nela, o narrador faz uma breve e cáustica descrição

dos objetos de tortura da escravidão e o seu papel social para colocar ordem na desordem.

Mas, quando associada à parte do conto em que se inicia a narrativa propriamente dita, o

narrar deixa claros os conflitos e a relação de poder e favor que caracterizavam a sociedade

brasileira do século XIX, conforme discute Roberto Schwarz em Ao vencedor as batatas

(2000).

Em ―Pai contra mãe‖, as relações entre homem branco livre e mulher negra escrava

nem são relações de fato, não são humanas, são alienadas, restritas à luta que se mostra

selvagem pela sobrevivência de um em detrimento do outro: pai contra mãe. Essa disputa

reflete o grau de alienação que a pobreza, o regime escravocrata, a classe dominante impõem

sobre os dominados.

Cândido Neves, sujeito livre, mas pobre, é um homem desajustado socialmente e

miserável, e tenta sobreviver como caçador de escravos em uma sociedade onde o trabalho é

considerado coisa degradante, associado à escravidão e oposto à vida da classe dominante

local, que não precisa trabalhar para viver. Cândido está de pés e mãos atadas na sociedade

que usa o trabalho para exploração social. O trabalho no conto é colocado como forma de

dominação.

O caráter provinciano e atrasado da vida social brasileira, resultante lógica da

colonização, da dependência e do favor, produz relações sociais desumanas em que a disputa

pela sobrevivência é travada de forma bastante perversa. Para Arminda, que apesar de escrava

Page 71: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

71

é mãe, como mostra o título do conto, não existe nenhuma outra possibilidade para além de

ser mercadoria. Para Cândido Neves, que apesar de caçador de escravos, é um pai amoroso, as

alternativas também não existem de fato, ou a miséria ou tentar encontrar uma presa que lhe

garanta a sobrevivência por mais alguns dias.

O capitalismo no Brasil da época, portanto, é o de uma sociedade em que a barbárie é

natural e Machado mostra isso com muita força ao contrapor o tom distanciado e culto da

parte inicial do texto à narrativa da disputa pela vida concreta entre o pai Candinho e a mãe

Arminda, ambos sem chances efetivas de levar uma vida humana.

Um aspecto que é importante na leitura da representação da sociedade no conto está

ligado à estrutura temporal da narrativa. No trecho ―A escravidão levou consigo ofícios e

aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais‖, o verbo está no passado, o tempo

verbal usado na oração é o pretérito perfeito – ―levou‖. Isto indica que o assunto de que se

tratará é histórico, passado e findo. Entretanto, ao narrar a situação de vida de Candinho e o

exercício de seu ofício ao prender Arminda, mesmo ainda usando os verbos no passado, isto

é, contando uma história já acontecida, o narrador, na ficção, atualiza o passado no presente

da narrativa. Com isso, se produz um choque entre o passado, aquilo que a escravidão levou

consigo, e a situação narrativa vivida no presente da ficção pelos personagens. O choque é

entre a posição do narrador como cronista distanciado que trata de um tema histórico anterior

e o narrador que apresenta os personagens vivenciando uma situação sem saída; e o seu

resultado para o leitor é o de perceber que o passado não foi realmente superado, que as

feridas sociais da escravidão ainda não foram cicatrizadas.

O autor traz a escravidão como uma instituição social, que dá ―status‖ de ofício à

atividade descrita no quinto parágrafo e que será também o ofício do personagem principal:

pegar escravos fugidos. Cândido, por viver em extrema miséria e por não aguentar emprego

nem ofício que carecia de servir a outros e de ter obrigação cotidiana, acaba se sujeitando ao

oficio de apanhar escravos fugidios, que dava a ele um encantamento novo. Porém, o narrador

já deixa claro que, mesmo na época, ofício de apanhar escravos não era uma tarefa nobre,

como o próprio narrador machadiano nos relata:

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas

por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia

esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em

tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a

inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir

também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia

bastante rijo para pôr ordem à desordem.(ASSIS, 1992, p.16.)

Page 72: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

72

O caçador de escravos era um sujeito socialmente necessário na economia escravagista

brasileira do século XIX, pois ele ajudava na manutenção da ordem social. Mediante o relato

acima podemos dizer que o ofício de caçar escravos não era atividade digna, mas era

desempenhada por sujeitos não ―ajustados‖ socialmente, ou melhor, ―excluídos‖ socialmente;

sujeitos muito pobres ou inaptos ou servis. Diante desse contexto social desajustado e

miserável para os excluídos, é que o narrador caracteriza a personagem principal do conto,

Cândido Neves, como já foi citado anteriormente.

Quanto ao método narrativo, Machado começa o conto com um tom de crônica

histórica e situa o leitor do período que passa a narração. Portanto, a descrição social parte do

geral para chegar ao local, ou seja, o mundo particular de Cândido Neves e Arminda.

Machado utiliza a forma do narrador intruso para questionar o leitor e dar a sua opinião sobre

o assunto tanto na perspectiva da crônica quanto na da ficção:

Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se

alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. (...) o sentimento da

propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. (ASSIS, 1992,

p.15.)

Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da

Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou

aqui a comoção de Candido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade

real. (ASSIS, 1992, p. 24.)

Na forma ficcional, Machado também apresenta o mundo doméstico do homem pobre

da época: Cândido Neves é um sujeito comum, que deseja se casar, ter filhos e viver, mas não

possui trabalho fixo. Casa-se com Clara, outra personagem que também está situada na vida

cotidiana da época, uma moça órfã, que morava com sua tia Mônica; as duas cosiam para

sobreviver. Clara, como Cândido, queria se casar e ter filhos. Quando Cândido encontra

Clara, já estava muito endividado, havia feito empréstimos com um primo, entalhador de

ofício. Esta situação difere da apresentada nos romances de primeira fase, em que a união do

homem e da mulher através do casamento estava ligada quase sempre à possibilidade de

ascensão social de um dos dois.

Na realidade social brasileira da época, a relação conjugal significava o ajuntamento

de interesses sociais e econômicos que faziam do casamento um negócio comercial rendável;

basta lembrar Senhora, de José de Alencar e mesmo os romances da primeira fase de

Machado. Mas, Cândido e Clara não possuem nada mais que a união da miséria, pois ambos

são extremamente pobres. Ele nada tinha há oferecer para ela, pois, além de cheio de dívidas,

Page 73: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

73

vivia sem emprego certo e de favor com o primo. Ela, por sua vez, era órfã, pobre e

dependente de uma tia que nada possuía e em nada poderia contribuir, pois também era pobre.

Ambos em completa miséria casam-se, e a tia Mônica passa a conviver com o jovem casal,

situação que é bem peculiar de uma sociedade que possui esse tipo de relação: a da moça órfã

e sozinha que é cuidada por uma tia ou por uma madrinha e, que, ao ingressar no matrimônio,

deve amparar a tutora, que passa a viver com o casal, não importando a sua situação

financeira da nova família.

Depois do casamento a vida não era melhorou, mas os três eram felizes, amantes das

festas e patuscadas, que os unia também. Na verdade não tinham muito que comer, mas

tinham com quem rir, e o riso digeria-se sem esforço. Como todo jovem casal, eles expressam

o desejo de ter filhos e os dois queriam um só. E ele veio, como abençoado que iria trazer ao

casal a anelada ventura e a conclusão de um dos seus sonhos. Tia Mônica, no entanto, mais

velha, já sabia que uma criança significaria uma boca a mais para alimentar e a vida a cada dia

seria mais difícil e mais longe das patuscadas. Nesse momento, Cândido já desempenhava o

ofício de pegar escravos fugidos e via glória nisto, pois daí tirava a esperança de ter dinheiro

sem ter que ser explorado, mas como aumentava a miséria e com ela aumentaram os

caçadores de escravos, a situação de Cândido e Clara torna-se cada vez pior, logo começam os

problemas graves da falta de dinheiro. Por morarem de aluguel e não terem como quitar os

aluguéis atrasados, Cândido, Clara (que já estava grávida) e tia Mônica são despejados pelo

proprietário da casa.

Além da apresentação da vida cotidiana, dos costumes e das aflições desses

personagens que representam a vida do homem comum e pobre da época, Machado também

nos revela que a troca de favores entre representantes de classes diferentes (ricos e

desvalidos), existente na sociedade como um todo: ao serem expulsos da casa, Tia Mônica já

tinha encontrado lugar na casa de uma senhora rica para que eles fossem morar em quartos

emprestados. A vida social de Cândido Neves e da sua família é um reflexo das famílias

pobres da época e também daqueles que são excluídos ainda hoje na nossa sociedade.

Em todo o texto encontramos o antagonismo de classe que faz eclodir uma guerra de

todos contra todos e nesse sentido, Bosi (2000, p. 123) nos diz que: ―o antagonismo não se

fixa apenas nos extremos; há uma guerra de todos contra todos, que percorre os elos de ponta

a ponta: aqui a vemos comunicar-se do penúltimo ao último.‖ O título dessa obra machadiana

já sugere uma determinada luta, que na verdade acontece o tempo todo, primeiro é Cândido

Page 74: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

74

buscando jeito de viver através do ofício de caçar escravos para se firmar na sociedade e por

último, no clímax da obra, dá-se o encontro de Cândido com Arminda.

O valor da recompensa pela captura da escrava terá um sabor de vitória para Candido

Neves, porém para Arminda será o aborto do seu filho, o antagonismo social está posto, para

que haja o bem-estar de um, tem que haver a desgraça do outro. Candido, um homem livre

que o conto mostra não ser de fato livre, faz voltar ao regime de opressão a escrava que, ao

fugir em busca de liberdade, depara com alguém que concorreria com ela no páreo dos

interesses, mas essa disputa é entre duas personagens que, na sociedade escravagista da época,

estavam fadadas a serem derrotadas, ambas devem trabalhar para o senhor de escravos,

personagem que pode pagar para não sujar as mãos e só aparece muito rapidamente ao final

do conto. Os homens livres, como Candinho, tinham a liberdade garantida, mas não tinham

meios para a sua manutenção, pois embora fossem livres não possuíam a garantia da

alimentação diária. De certa forma estavam também escravos desse sistema.

Em ―Pai contra Mãe‖, portanto, Machado faz a representação de uma sociedade que

ainda parece assombrar a sociedade atual, pois a desorganização do mundo do trabalho, a

crescente reificação das relações sociais e o estado de miséria do trabalhador do século XXI

ainda fazem lembrar a situação ficcional vivida por Cândido, Clara, Tia Mônica, Arminda e o

senhor de escravos. A necessidade material, a falta de especialização profissional e a falta de

uma política trabalhista colocam os trabalhadores livres em um estado semelhante ao dos

homens do século XIX, e em alguns casos, até mesmo ao dos negros escravos. Na atualidade,

não mais existe o ofício de caçar escravos, a sociedade hoje é bem mais complexa, e o

trabalho alienado e reificado se generalizou. Entretanto, ainda há no país elementos bastante

atrasados no mundo do trabalho; embora não sejam mais legalizados esses traços regressivos

da exploração estão muito ativos ainda. Também no terreno da ilegalidade, na esfera de um

Estado paralelo, com ―instituições sociais‖ clandestinas, se desenvolvem ―ofícios‖ que

lembram o de Candinho: milícias, tráfico de drogas, de órgão e de pessoas etc.

Machado realiza uma leitura de uma sociedade que não mais existia no papel, todavia,

na realidade não havia se perdido a sua essência. Ele realiza uma crítica à sociedade pós-

escravidão, em que o trabalhador livre branco ou negro pobre estão em situações semelhantes

ao do negro escravo. Os sujeitos livres dependiam totalmente dos senhores ricos que

mantinham o poder e os meios de adquirir melhores condições. No conto como vimos está

refletida a vida de um trabalhador miserável que institui também uma família miserável, e,

nessa perspectiva, sabemos que as coisas não mudaram o suficiente. Machado, ao discutir o

Page 75: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

75

passado, questiona também o presente que vigorava no início do século XX, mesmo depois do

término da escravidão a sociedade brasileira não estava totalmente livre da lógica escravista.

Hoje ainda é possível ver as cicatrizes abertas pela escravidão e o quanto o atraso do

regime escravagista serviu ao avanço do capital. Muitos dos conflitos apresentados no conto

ainda hoje se fazem presentes na sociedade capitalista em que vivemos, os nomes dos

personagens mudaram, os ofícios se modernizaram. Os senhores de escravos já foram os

latifundiários e proprietários de terras, e hoje são as grandes empresas do agronegócio.

No século XIX não existia no país uma política voltada para o trabalho humanizador e

digno, como hoje também não há. Portanto, Machado não poderia representar uma sociedade

diferente da que é representada no conto: Candinho não poderia ter compaixão de Arminda,

que, por sua vez, não poderia narrar sua história no lugar do narrador machadiano. Assim, por

meio da criação de um mundo literário, onde atuam o narrador e os personagens, Machado

evidenciou os conflitos estruturais da sociedade brasileira. O conto é o reflexo verossímil de

uma sociedade e também de um mundo em que o dinheiro tem poder para alienar e

transformar os seres humanos em objetos e mercadorias.

Page 76: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

76

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado trouxe a discussão do narrador do conto ―Pai contra mãe‖,

evidenciando a importância da força humanizadora da literatura para a sociedade atual e como

se da a figuração da vida social brasileira pela literatura. Neste estudo fica evidente a força

que a literatura possui para a humanização do sujeito e que não tem como separarmos a vida

social da literatura, pois ambas se configura na arte, que, como tal, é feita para servir

inteiramente ao homem.

A literatura brasileira, em todos os seus períodos, buscou meios de representar a

realidade da sociedade através da literatura, podendo, com maior ou menor força, evidenciar

os conflitos e mostrar as formas de exclusão, desumanização e coisificação da sociedade.

Porquanto, a exclusão está na base da sociedade de classes e sendo a literatura um processo

artístico rico, que mantém relação mediada com valores sociais e ideológicos, irá

problematizar a posição do sujeito diante dos conflitos impostos pela sociedade. Nesse

sentido, a literatura ainda pode fazer com que o leitor se questione a respeito do seu papel e da

sua posição como sujeito social, uma vez que os fatores sociais se encontram internalizados

na forma e no conteúdo das obras.

O narrador é um dos elementos que estrutura a narrativa, portanto, trata-se de uma

estrutura textual que pode se apresentar de varias formas. É importante conhecer essas formas

de composição do narrador, pois elas são fundamentais na representação literária da vida

humana e é por elas que a literatura faz uma crítica da vida.

O estudo do narrador nos mostra que a posição tomada pelo autor é de suma

importância para a composição do narrador, pois é o narrador quem nos captura para o mundo

fictício e é ele que possui o poder de nos afastar ou de nos aproximar dos fatos narrados. O

mesmo é capaz de fazer com que nos indignemos ou nos conformemos com o que está sendo

apresentado pela narrativa. O narrador machadiano vai além de qualquer narrador da época,

pois tem características estéticas importantes, que se manifestaram na passagem da primeira

para a segunda fase da produção machadiana. Ao adotar a construção do narrador em

primeira pessoa, diferentemente do narrador da primeira fase, em terceira pessoa, Machado

foi capaz de representar esteticamente os dilemas mais profundos da vida social brasileira e da

própria literatura.

Machado de Assis, com seu narrador irônico e volúvel, representou a sociedade

brasileira literariamente, usando máscaras e às vezes se revelando, o narrador vai dando a ver

a complexa relação de dominação na sociedade. Durante toda a formação do sistema literário

Page 77: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

77

do Brasil, percebe-se a dominação que os pobres, trabalhadores e escravos sofreram e sofrem

até o momento atual, pois a maioria dos problemas sociais representados ainda não foi

superada.

No conto ―Pai contra mãe‖, Machado representa a sociedade escravocrata através do

conflito entre crônica histórica e conto, que não é só da obra, mas é também social, pois não

haveria como escrever a obra de outra forma diante dos conflitos que a sociedade pós-

abolição da escravatura estava vivendo. Como escritor atento ao seu país e ao seu tempo,

Machado apresenta as contradições da escravidão, porém não era otimista, pois parecia

reconhecer que as feridas deixadas pelo sistema escravocrata eram intensas demais para serem

superadas por uma lei. Era preciso humanizar a sociedade e isso não é uma tarefa fácil, já que

para haver a transformação é necessário passar por um processo que na maioria das vezes é

doloroso.

A obra machadiana não explica nem releva a escravidão, porém questiona e

problematiza tal processo, articulando-o à vida econômica do país: ―Porque dinheiro também

dói.‖ Nesse sentido, podemos analisar que o dinheiro apesar de movimentar a vida social

aliena e destrói a vida, forçando a sujeito a ser mercadoria, já que há um acúmulo de capital

em poucas mãos. Enquanto outras que trabalham o dia todo não alcançam garantias para o seu

próprio sustento e o sustento da sua família. A divisão do capital é desigual e gera a exclusão

social dos que menos possuem.

Machado traz a verossimilhança para o texto, através do ambiente criado por ele na

narrativa, ou seja, o espaço em que passa a história é a cidade do Rio de Janeiro, os nomes das

ruas que aparecem no conto são reais, sendo que muitos até hoje ainda são os mesmos. Hoje,

além da permanência dos nomes, também é possível perceber que muitos dos conflitos sociais

brasileiros ainda não foram superados. Se os nomes das ruas ainda são os mesmo na

atualidade, a condição das pessoas que os personagens representam também não sofreu

mudanças definitivas, nesse caso, apenas os nomes mudaram. Os sujeitos que vivem nas

favelas não estão em condições muito diferentes do mundo de Candinho e Arminda; tantas

mães e pais que perdem seus filhos diariamente por tráfico e pelas milícias paralelas. Quantos

Candinhos e Armindas ainda existem na sociedade brasileira? Será que a sociedade que

Machado criticou já é algo superado? Para ambas as perguntas, a resposta é não, pois

enquanto não mudar o sistema em que a sociedade está estruturada não heverá mudança

substantiva na condição de vida das pessoas.

Page 78: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

78

Para que ocorra mudança, é preciso que as pessoas se reconheçam como parte desse

processo. O acesso e o trabalho com o texto literário é uma das formas de despertamos a

sensibilidade humana que foi entorpecida pelo sistema, que nos deixa insensíveis e

coisificados perante as injustiças sociais.

Mediante o estudo realizado, percebe-se que a literatura possui um papel fundamental

para a desalienação social. No entanto, ainda é negada a força humanizadora da literatura

tanto na vida como na escola. A instituição escolar, que era poderia expandir o ensino da

literatura na formação do aluno, é a primeira a negligenciá-la, formando assim jovens que não

pensam na conjuntura em que a sociedade está constituída. A estrutura social brasileira, como

um todo, é marcada pela desigualdade e pela negação ao acesso à arte, a literatura e qualquer

coisa que possa humanizar e dignificar o sujeito.

A sociedade capitalista fez a sociedade perder o interesse e o gosto pela leitura. Hoje

somos bombardeados diariamente pelas informações jornalísticas, causando dependência do

imediatismo e da mercantilização da vida.

Se tivermos uma sociedade que não pensa e nem reconhece como os conflitos sociais

estão estruturados, não haverá possibilidade de atuar para transformá-la. Nesse sentido,

percebemos que é exatamente essa postura que a classe dominante quer que tenhamos, para

que os dominados continuem desumanizados e escravizados.

Page 79: UNIVERSIDADE DE BRASILIA FACULDADE DE PLANALTINA ...bdm.unb.br/bitstream/10483/5182/1/2013_PriscilaGomesPereira.pdf · dos Reis Corrêa, que se disponibilizou a ser minha orientadora

79

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. ―Pai contra mãe‖. In: Contos Escolhidos, [São Paulo]: [s.n.], [199.]

191p.

BOSI, Alfredo. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

_________. ―A vida ao rés-do-chão‖. In: Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.

_________. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

_________. Iniciação à Literatura Brasileira (Resumo para principiantes). São Paulo:

Humanitas Publicações – FFLCH/USP – julho 1999.

CORRÊA, Ana Laura dos Reis; COSTA, Deane Maria Fonsêca de Castro e; PILATI,

Alexandre Simões. ―‗Porque dinheiro também dói‘ – Machado contista e as astúcias mercantis

da escravidão‖. In: ARAÚJO, Adriana; BASTOS, Hermenegildo (org.). Teoria e prática da

crítica literária dialética. Brasília: Editora da UnB, 2011.

GOTLIB, Nádia Battela. A teoria do conto. www.sabotagem.revolt.org

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1998.

LUKÁCS, G. ―Introdução aos estudos estéticos de Marx e Engels‖. In: Cultura, arte e

literatura. Textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

_________. ―Narrar ou descrever‖. In: Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão

Popular, 2010.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades/34, 2000.

_________. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

_________. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2010.

SOARES, Angélica. Gêneros literários. São Paulo: Ática, 2007.