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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LINGUÍSTICA
Uma análise estilístico-discursiva em dois contos de Lygia
Fagundes Telles: Anão de Jardim e Biruta
SHEYLA MARIA DE OLIVEIRA SANTOS
Orientadora: Profª. Drª. Magalí Elisabete Sparano
Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.
SÃO PAULO
2013
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
S238a
Santos, Sheyla Maria de Oliveira. Uma análise estilístico-discursiva em dois contos de Lygia
Fagundes Telles: anão de jardim e biruta / Sheyla Maria de Oliveira Santos. -- São Paulo; SP: [s.n], 2013.
95 p. : il. ; 30 cm. Orientadora: Magalí Elisabete Sparano. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise do discurso 2. Estilística 3. Conto 4. Ethos I. Sparano,
Magalí Elisabete. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguísticaia. III. Título.
CDU: 81’42(043.3)
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
Uma análise estilístico-discursiva em dois contos de Lygia
Fagundes Telles: Anão de Jardim e Biruta
Sheyla Maria de Oliveira Santos
Dissertação de mestrado defendida e aprovada
pela Banca Examinadora em 03/06/2013.
BANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Magali Elisabete Sparano
Universidade Cruzeiro do Sul
Presidente
Profa. Dra. Ana Elvira Luciano Gebara
Universidade Cruzeiro do Sul
Profa. Dra. Isabel de Andrade Moliterno
Faculdades Metropolitanas Unidas
DEDICATÓRIA Aos meus pais.
Infância Carlos Drummond de Andrade Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu chamava para o café. Café preto que nem a preta velha café gostoso café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo olhando para mim: - Psiu... Não acorde o menino. Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, que me dotou de inteligência e perseverança para
assumir esta proposta de trabalho.
À minha orientadora Profa. Dra. Magalí Elisabete Sparano, que generosamente me
acolheu e dividiu seus conhecimentos tão valorosos sem os quais eu não seria
capaz de superar este desafio.
À Universidade Cruzeiro do Sul que me proporcionou esta experiência com uma
estrutura organizada, comprometida e eficaz.
A todos os professores que ministraram as disciplinas que cursei nesta etapa de
desenvolvimento acadêmico: os conhecimentos significativos foram essenciais e
serviram como base em todo o processo.
À Universidade Nove de Julho- UNINOVE - que me incentivou constantemente e
acreditou no meu potencial.
A todos os colegas do Mestrado em Linguística pelo apoio e companheirismo.
Aos meus familiares que tanto sofreram com as mudanças ocorridas na rotina
familiar durante todo o período de desenvolvimento desta dissertação.
Obrigada.
Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Carlos Drummond de Andrade
SANTOS, S. M. de O. Uma análise estilístico-discursiva em dois contos de Lygia Fagundes Telles: anão de jardim e biruta. 2013. 95 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)-Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar as escolhas lexicais e a constituição de
sentido em dois contos, passando em seguida a desvelar os ethé dos respectivos
enunciadores, observando as semelhanças e os contrastes entre os textos
selecionados por meio da relação temática entre a humanização e a coisificação.
O corpus selecionado são dois contos de Lygia Fagundes Telles, Anão de Jardim e
Biruta. No primeiro, encontra-se Kobold, um narrador em primeira pessoa,
enunciador de toda a trama, um anão de jardim feito de pedra, que se apropria de
características humanas. Mesmo em sua estrutura limitada, demonstra alguns
sentimentos, tais como: tristeza, solidão e impotência, mediante os fatos
apresentados, exemplificando o processo de humanização de um objeto inanimado.
As marcas linguísticas mostram um enunciador consciente mediante sua existência
e o conhecimento de mundo, muitas vezes severo, outras vezes reflexivo e
contestador, porém com um desejo imenso pela vida e clamante por sua existência.
Esse enunciador contrapõe-se ao Professor, personagem sem nome, que sofre, pela
indiferença da esposa, o processo de coisificação, que culmina com o descarte por
meio do assassinato. No segundo, o enunciador Alonso, um órfão que é retirado do
asilo por um casal que não o trata como filho, mas sim como um auxiliar dos
serviços domésticos, sofre, por meio do abandono, o processo de coisificação,
vivenciando, também, sentimentos de tristeza, solidão, luto e impotência mediante
os acontecimentos. Por outro lado, seu cachorro Biruta assume traços humanos por
ser o único vínculo de afeto que o menino experimenta ao longo do conto. Assim,
percebe-se que, em ambos os textos, estão presentes, apesar dos diferentes
contextos, sentimentos semelhantes, aspecto que, ao lado da recorrência dos temas
coisificação e humanização, aproxima os dois contos e justifica a escolha e análise
do corpus selecionado. Baseando-se em autores como Martins (2008),
Maingueneau (2008 e 2009), Amossy (2005) e Koch et al. (2007), o estudo
desenvolve-se pelos pressupostos teóricos da Estilística Léxica em diálogo com a
Análise do Discurso e a Linguística Textual.
Palavras-chave: Estilística, Discurso, Ethos.
SANTOS, S. M. de O. A stylistic analysis of two-discursive Lygia Fagundes Telles Tales: garden gnome and windsock. 2013. 95 f. Dissertação (Mestrado em
Linguística)-Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.
ABSTRACT
This study aims to analyze the lexical choices and the constitution of meaning in two
stories, then moving on to reveal the ethé their enunciators, noting the similarities
and contrasts between the texts selected by the thematic relation between
humanization and objectification.The corpus selected is two Lygia Fagundes Telles’s
tales, Anão de Jardim and Biruta. In the first, is Kobold, a first-person narrator,
enunciator of the whole plot, a garden gnome made of stone, which appropriates the
human characteristics. Even in its limited framework demonstrates some feelings
such as sadness, loneliness and helplessness upon the facts presented, illustrating
the process of humanization of an inanimate object. The marks show a linguistic
enunciator conscious through its existence and world knowledge, often severe,
sometimes reflective and challenging, but with an immense desire for life and
clamoring for their existence. This contrasts with the enunciator Professor, unnamed
character who suffers the indifference of his wife, the process of commodification,
which culminates with the disposal through murder. In the second, the speaker
Alonso, an orphan who is taken from the asylum by a couple who does not treat him
as a son but as a helper of household services, suffer through abandonment, the
process of commodification, experiencing also feelings of sadness, loneliness, grief
and helplessness through the events. On the other hand, your dog Biruta assumes
human traits as the only bond of affection that the boy experiences throughout the
tale.Therefore, it is clear that in both texts are present, despite different contexts,
similar sentiments, that aspect, beside the recurrence of themes objectification and
humanization, approaching the two stories and justifies the choice and analysis of the
selected corpus.Based on authors like Martins (2008), Maingueneau (2008 and
2009), Amossy (2005) and Koch et al. (2007), the study develops the theoretical
assumptions of Lexical Stylistic Analysis in dialogue with the Speech and Language
Textual.
Keywords: Stylistics, Discourse, Ethos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10
1 CONTO ........................................................................................................... 13
1.1 O conto brasileiro contemporâneo ............................................................. 13
1.2 Considerações sobre o conto fantástico e o conto intimista ................... 17
1.3 Conto fantástico ........................................................................................... 17
1.4 Conto intimista .............................................................................................. 20
2 ETHOS E EXPRESSIVIDADE ........................................................................ 24
2.1 Um pouco de teoria ...................................................................................... 24
2.2 A subjetividade do texto literário ................................................................ 27
2.3 Expressividade ............................................................................................. 29
2.4 Cenas ............................................................................................................. 30
2.5 Ethos .............................................................................................................. 31
2.6 A construção do ethos de kobold ............................................................... 33
2.7 A construção do ethos de Alonso ............................................................... 42
3 OS ETHÉ DE KOBOLD E ALONSO: UMA LEITURA COMPARATIVO -
CONTRASTIVA .............................................................................................. 52
3.1 Semelhanças ................................................................................................. 54
3.1.1 Texto Anão de Jardim: discurso religioso ................................................. 54
3.1.2 Texto Anão de Jardim: discurso mitológico .............................................. 56
3.1.3 Texto: Anão de Jardim: memória discursiva e conhecimento de mundo 57
3.1.4 Texto:Anão de Jardim: tristeza, solidão e impotência mediante os fatos58
3.1.5 Texto Biruta: discurso religioso .................................................................. 59
3.1.6 Texto Biruta: memória discursiva e conhecimento de mundo ................. 60
3.1.7 Texto Biruta: solidão e impotência mediante os fatos .............................. 61
3.2 Contrastes ..................................................................................................... 63
3.2.1 Texto Anão de Jardim: humanização.......................................................... 63
3.2.2 Texto Biruta: marcas da coisificação.......................................................... 65
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 68
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 71
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .............................................................................. 73
ANEXOS ................................................................................................................... 75
APÊNDICE ................................................................................................................ 93
10
INTRODUÇÃO
O texto literário pode se revelar como fonte inesgotável para análises,
mostrando os múltiplos significados das palavras, sua expressividade e o poder que
exercem na tessitura textual. O valor denotativo lexical na narrativa alcança uma
informação muitas vezes direta e pontual, o valor conotativo abre um leque de
possibilidades, chegando a atingir reflexões profundas mediadas pela subjetividade
dos enunciadores. O texto literário cumpre o seu papel, convida o leitor a participar
ativamente do processo. Emociona, informa, encanta, conscientiza e liberta das
amarras da alienação, um legado para todos que valorizam descobertas e sentem
prazer com a leitura.
Iser estabelece o movimento do ato da leitura:
Cada momento da leitura representa uma dialética de protensão e retenção, entre um futuro horizonte que ainda é vazio, porém passível de ser preenchido, e um horizonte que foi anteriormente estabelecido e satisfeito, mas que se esvazia continuamente; desse modo, o ponto de vista em movimento do leitor não cessa de abrir os dois horizontes do texto, para fundi-lo depois. (ISER, 1999, p. 17)
Na busca de preencher esses vazios, esta pesquisa se constrói com o
objetivo de analisar a constituição de sentido inerente às escolhas lexicais presentes
na materialidade linguística dos contos Anão de Jardim1 e Biruta2, de Lygia
Fagundes Telles.
O objetivo específico do trabalho é discutir a coisificação do ser humano e a
humanização das coisas, por meio dos traços estilístico-discursivos, pelo
desvelamento dos ethé dos enunciadores Kobold e Alonso, personagens principais
dos contos que estabelecem o corpus desta pesquisa.
No conto Anão de jardim, o enunciador principal é Kobold, um anão de jardim,
que se apropria das características humanas, pensa, mostra-se indignado com o
1 Tendo-se em vista as várias edições do texto, optou-se pela de 2009, cuja versão integral encontra-
se no anexo A. 2 Tendo-se em vista as várias edições do texto, optou-se pela de 1961, cuja versão integral encontra-
se no anexo B.
11
comportamento vil de alguns exemplares da sociedade e com alguns membros da
família que ele observa do jardim, aprisionado em sua estrutura limitada. Segundo
uma lenda alemã pagã, Kobold é um pequeno espírito que costuma ficar em
residências ou na natureza, geralmente com comportamento instável. O
comportamento do anão do corpus realmente é instável: em algumas situações
mostra-se por meio do fluxo de sua consciência com dureza e inflexibilidade em
relação a alguns fatos observados, em outros apresenta a fragilidade diante da
existência efêmera, luta pela vida e clama por forças ocultas que possam modificar o
quadro dramático e iminente.
No conto Biruta, o enunciador principal é Alonso, menino órfão que é retirado
do asilo por uma família que o trata com indiferença. Assume sem direito de escolha
o papel de auxiliar das tarefas domésticas e sofre castigos físicos e psicológicos. A
história desenvolve-se numa narrativa não linear que apresenta algumas situações
de muito sofrimento regado a solidão, tristeza e incapacidade de mudanças ou
alteração dos fatos apresentados. Nesse cenário, Alonso desenvolve relações de
afeto com o cachorro Biruta, tentando proteger o amigo de possíveis castigos, pois
quer/pretende oferecer a ele uma infância feliz e harmoniosa, algo que lhe foi
negado, o direito de ser criança.
Diante do exposto, percebe-se que a escolha do corpus justifica–se pela
presença, em ambos os contos, de sentidos de melancolia, solidão e incapacidade
de mudança, mediante os fatos apresentados, que perpassam a construção dos dois
referidos enunciadores.
Assim, no conto Biruta, Alonso sofre uma degeneração do humano
aproximando-se de uma coisa, enquanto em Anão de Jardim, Kobold sente as
aflições do humano, mesmo sendo um objeto (coisa).
No primeiro capítulo apresentam-se alguns conceitos sobre o gênero conto,
sua estrutura e características dos subgêneros: conto fantástico e conto intimista. No
conto Anão de Jardim, há a manifestação do fantástico que causa hesitação no leitor
mediante os fatos observados. No conto Biruta é possível perceber o fluxo da
consciência, uma reflexão interior, a solidão e o drama pessoal do enunciador
principal. O narrador também oferece uma contribuição valorosa, pois os trechos
12
narrados são descrições do cotidiano do menino que apresentam o drama vivido por
ele, com detalhes necessários para a construção da imagem da criança.
O segundo capítulo explana sobre alguns conceitos relevantes que são
apresentados em prol dos múltiplos significados do corpus selecionado. A estilística,
a subjetividade, a expressividade, as cenas e o ethos colaboram no estudo do léxico
e na busca em revelar os ethé dos enunciadores, Kobold e Biruta.
No terceiro capítulo, que encerra o trabalho, encontram-se comparações e
contrastes nos ethé estudados. A divergência observada entre os contos é a
manifestação da humanização da coisa no conto Anão de Jardim, e a coisificação do
homem no conto Biruta. Os sentimentos (tristeza, solidão e incapacidade mediante
os fatos), apresentados pelos sujeitos nos textos, serão como fio condutor que
revelam as semelhanças manifestadas nos contos selecionados. Outra semelhança
entre os contos é a intertextualidade, há marcas nos dois textos dos discursos:
religioso e mitológico.
O método de estudo é bibliográfico, organizando a pesquisa a partir dos
pressupostos teóricos da Estilística Léxica em diálogo com a Análise do Discurso e
Gênero Textual, segundo autores como Martins (2008), Câmara Jr. (2004), Cardoso
(2009), Maingueneau (2008 e 2009), Amossy (2005) e Marcuschi (2008).
Considerando-se, ainda, alguns conceitos advindos da Teoria da Literatura segundo
Bosi (2006), Moisés (1995 e 1996) e Todorov (2006 e 2008).
Dessa forma, a presente dissertação está estruturada em três capítulos, além
da Introdução, Conclusão, Referências Bibliográficas, Anexos e Apêndice.
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1 Conto
Segundo Marcuschi (2008) o conto está no domínio discursivo ficcional e
pertence às modalidades de uso da língua escrita e também da oralidade.
Os textos situam-se em domínios discursivos que produzem contextos e
situações para as práticas sociodiscursivas características. Entendemos como domínio discursivo uma esfera da vida social ou institucional (religiosa, jurídica, jornalística, pedagógica, política, industrial, militar, familiar, lúdica etc.) na qual se dão práticas que organizam formas de comunicação e respectivas estratégias de compreensão. Assim, os domínios discursivos produzem modelos de ação comunicativa que se estabilizam e se transmitem de geração para geração com propósito e efeitos definidos e claros. Além disso, acarretam formas de ação, reflexão e avaliação social que determinam formatos textuais que em última instância desembocam na estabilização de gêneros textuais. E eles também organizam as relações de poder. (MARCUSCHI, 2008, p.193-194)
O texto literário é muito rico no desenvolvimento das análises linguísticas em
domínios discursivos. O conto se insere nesta esfera, pois oferece um leque de
possibilidades e significações nos estudos relacionados às comunicações em
contextos diversos.
1.1 O conto brasileiro contemporâneo
O conto brasileiro contemporâneo apresenta alguns desassossegos em
relação à vida em sociedade, envolvendo os aspectos sociais, políticos, históricos,
culturais e individuais. Esse gênero de forma sucinta geralmente captura o leitor nos
primeiros parágrafos. Mostra os conflitos presentes no cotidiano da sociedade e
retrata o comportamento humano, as alegrias e as mazelas em seus contextos.
Seguem algumas características que apresentam uma estrutura estilística na
lírica modernista e contemporânea de acordo com D’Onofrio (2004, p.450-453):
14
A ruptura com a tradição cultural e o desejo de criar uma nova estética encontra sua justificativa face à crise da humanidade provocada pelos horrores do entre guerras;
A poesia deve provocar no leitor apenas uma “sugestão mágica”, sem nenhuma pretensão de ser compreendida;
A crise do conceito de personalidade, pela redução do ser humano a um número, a uma matrícula, atinge também o mundo das artes;
Um dos intuitos da arte moderna é apresentar, não a totalidade da vida, mas apenas pedaços, fragmentos da realidade;
As palavras, ou até sílabas ou grafemas, só adquirem sentido num contexto topográfico;
A concepção clássica da beleza torna-se trivial, provocando a atrofia do espírito. (D’ONOFRIO, 2004, p. 450-453)
Segundo D’Onofrio (2004) a ruptura com a tradição cultural, a crise da
humanidade e a concepção clássica da beleza versus atrofia do espírito são
observadas nos Contos Contemporâneos Brasileiros.
Segundo Tavares (1991), o conto é uma narrativa de maior brevidade e sua
estrutura apresenta alguns tópicos de discussão em relação à sua estética literária,
subgêneros. Tavares afirma que é a narrativa que o autor apresenta como conto. Os
conteúdos permitem múltiplos assuntos como: conteúdos densos; psicológicos;
impressionistas; fantásticos; maravilhosos; simbolistas; regionais; de mistério;
policiais; de fada; orientalistas; de aventura etc. Geralmente prende a atenção do
leitor no primeiro momento. Carregado de subjetividade, convida ao universo
verossímil, que emociona e encanta.
Esta pesquisa apresenta dois contos contemporâneos brasileiros de Lygia
Fagundes Telles, Anão de Jardim e Biruta. O corpus selecionado mostra algumas
características desse movimento, com suas especificidades. No primeiro, observa-se
o fantástico. No segundo, o drama pessoal do enunciador, podendo-se classificá-lo
como intimista.
Assim, em Anão de Jardim, tem-se como características do conto
contemporâneo brasileiro uma ruptura que se instaura pela presença, como o
enunciador principal, de um anão de jardim de pedra, que possui características
humanas e se mostra em toda a narrativa como narrador protagonista. O anão inicia
o texto falando da sua estrutura e de seus posicionamentos sobre as complexidades
15
humanas, depois segue com a apresentação dos personagens. “A data na qual fui
modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota, mas esse detalhe não
interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve vigorar também para
os anões de jardim, sou um anão de jardim.” (TELLES, 2009, p. 99)
A crise social revela a mudança do comportamento humano. No conto alguns
personagens têm condutas inaceitáveis, mostram-se com falhas no caráter e
buscam saciar prazeres superficiais e momentâneos. A coisa, anão, assume
características humanas em toda a trama, porém, no decorrer dos fatos volta a ser
coisa, destruído pela picareta do demolidor. “O braço do homem se levanta e fecho
os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a
estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito...” (TELLES, 2009, p.
108)
Há também a inversão das caracterizações. ”O humano, professor, é visto
pela esposa como coisa. “Ficamos sós”. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-
lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! ”(TELLES, 2009, p. 105) Kobold não pode
ser ouvido, por isso a vítima da esposa dissimulada sucumbiu, para o desespero do
anão.
Já no conto Biruta, tem-se como características do conto contemporâneo
brasileiro uma ruptura que se instaura de forma não linear. O narrador inicia o texto
mostrando uma das atividades domésticas exercida pelo enunciador principal:
“Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava com
dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus
bracinhos finos.” (TELLES, 2007, p. 61)
O texto selecionado apresenta o cotidiano de uma criança que atua neste
contexto familiar como auxiliar dos serviços domésticos.
O leitor é constantemente provocado em relação ao menino Alonso, por meio
da descrição, e com as escolhas linguísticas é possível observar os maus tratos
oferecidos àquela criança. “Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que
sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova”. Lágrimas
saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos... (TELLES, 2007, p. 63).
16
A crise social em muitos setores atinge o ser humano na sua estrutura mais
preciosa, a essência. A busca insana pelo ter cega a alma e transforma o homem
em coisa. O enunciador Alonso é tratado assim na estrutura familiar. Há o fenômeno
da coisificação do homem no corpus. “- Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar
fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.” (TELLES, 2007, p.
65). O menino não representa nada para aqueles que vão deixá-lo sozinho em uma
data tão significativa para todo cristão, principalmente as crianças. Isso demonstra
que o homem desqualifica, ignora, despreza outro homem, trata-o como coisa. “-
Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãozinho!” (Telles, 2007, p. 63). Infere-
se, então, que se podem devolver coisas, não pessoas, na conduta aceitável em
sociedade.
A obra é fragmentada, não há a apresentação na íntegra dos fatos relatados.
São expostas algumas cenografias para o leitor assimilar todas as reflexões
esperadas.
Os vocábulos são carregados de significações no contexto, termos que
revelam emoções sentidas pelo enunciador tanto de representações afetuosas,
quanto representações depreciativas. “Só dona Zulu não entende que você é que
nem uma criancinha.” (TELLES, 2007, p. 64) O termo “criancinha” está repleto de
afeto e proteção ao cachorro Biruta. O enunciador Alonso tenta envolvê-lo de
carinho e dos possíveis castigos. “- Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo...” (TELLES,
2007, p. 63). O vocábulo “atrevido” tem um valor pejorativo, um adjetivo com carga
de xingamento.
A beleza clássica, a estética não está vinculada a essência. “- Dona Zulu
estava linda, não? - Estava. - E tão boazinha também. Você não achou que hoje ela
estava boazinha? - Estava, estava muito boazinha, sim... - concordou a empregada.
E riu-se.” (TELLES, 2007, p. 69). Uma mulher em sua aparência tão bonita, porém
suas atitudes são desumanas, nesse contexto a bela senhora retira do convívio da
criança seu único vínculo de afeto, o cachorro.
Todos esses termos observados revelam marcas dos textos modernos e
contemporâneos, que de forma direta sofre influências das mazelas do tempo, tendo
a interferência dos aspectos psicológicos e sociais.
17
1.2 Considerações sobre o conto fantástico e o conto intimista
Este capítulo apresenta conceitos e características sobre os contos
selecionados como corpus para análise neste trabalho.
Segundo o dicionário de termos literários de Massaud Moisés:
O conto é, do prisma dramático, univalente: contém um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só ação, enfim, uma única célula dramática. Todas as demais características decorrem dessa unidade originária; rejeitando as digressões e as extrapolações, o conto flui para um único objetivo, um único efeito. O passado anterior ao episódio que nele se desenrola, bem como os sucessos posteriores, não interessam, porque são irrelevantes. Quando, por ventura, importa mencionar os acontecimentos precedentes, o contista sintetiza-os em escassas linhas. Tudo sucede como se na existência das personagens, apenas aquele incidente é que alcançasse densidade para fugir ao anonimato. E, fechado o parêntese em que se constitui a narrativa, a vida das personagens regressaria à opacidade que abandonara por um momento fugaz. (MOISÉS, 1995, p.100- 101)
O conto desenvolve-se por meio de uma temática sucinta e envolvente. Toda
a narrativa oferece marcas que possibilitam a progressão e a resolução do conflito
apresentado.
De acordo com Moisés (1996, p. 123-124), a análise de um conto passa por
um processo de interações. Há a necessidade da observação de alguns aspectos
que auxiliarão na construção dos sentidos existentes na obra. Todos os elementos
que compõem uma narrativa (enredo, espaço, tempo, personagens e narrador) têm
um papel importante na compreensão do texto. O leitor inicia um desenvolvimento
progressivo na busca de desvendar os segredos mediante a estrutura dos fatos
apresentados, até chegar a conclusões que expressam julgamentos de valor e
geram posicionamentos reflexivos e críticos sobre os temas abordados.
1.3 Conto fantástico
Segundo Todorov (2008, p.31) o fantástico revela-se mediante a inquietação
do sujeito diante da observação de cenas insólitas que podem provocar fascinação
ou estranheza nos leitores. “O fantástico é a hesitação experimentada por um ser
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que só conhece as leis naturais, em face de um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 2008, p.31)
O primeiro texto que compõe o corpus de estudo, o conto Anão de Jardim, de
Lygia Fagundes Telles, apresenta a estrutura do conto fantástico, em que não há
uma explicação científica ou religiosa que justifique os fatos e os fenômenos
apresentados. O sujeito principal, narrador protagonista, é um anão de jardim. Ele
observa a estrutura familiar e manifesta suas emoções em relação ao
comportamento dos sujeitos da cena. Nesse conto, o leitor experimenta a hesitação
que foge às leis naturais: um anão de jardim que manifesta características humanas,
acontecimento possível no conto fantástico com o auxílio da figura de linguagem,
personificação.
Todorov explana sobre algumas características do conto fantástico. “Torna-
se claro, afinal, que a função social e a função literária do sobrenatural são uma
única: trata-se da transgressão de uma lei”. (TODOROV, 2006, p.162)
No conto Anão de Jardim, o leitor identifica e experimenta uma transgressão
de uma lei da natureza. O sujeito principal, Kobold, um anão de jardim, feito de uma
estrutura de pedra, assim procede, pois transgride leis naturais: fala, pensa, reflete,
mostra insatisfação em relação ao comportamento humano e luta pela sua
sobrevivência. Todos os elementos citados em relação às ações pertencem ao
humano, não à categoria dos inanimados. Pode-se constatar a transgressão com
todas essas ações que norteiam o universo humano, por isso pode-se afirmar que,
nesse texto, houve um processo de humanização de um ser inanimado.
De acordo com Todorov (2008), no subgênero fantástico, o leitor hesita
mediante a cena observada. Essa hesitação é em relação ao mundo real ou do
mundo irreal. Nos acontecimentos reais as leis da natureza explicam e justificam os
fatos. No mundo irreal, fictício, não acontece da mesma forma, o leitor precisa tomar
uma posição. Se ficar claro que as leis naturais são feridas, chega-se à esfera
fantástica.
A escolha do nome do anão de jardim, Kobold, envolve lendas e lembranças
da estrutura familiar. Em relação aos mitos, permite nos a aceitação do fantástico,
porque pode provocar no leitor inquietações das cenas apresentadas. Segundo uma
19
lenda alemã pagã, Kobold é um gnomo que tem um espírito aprisionado, algumas
vezes mal humorado, que vive nas residências ou na natureza. O personagem
professor escolheu esse nome para o anão porque a sua expressão era semelhante
à do seu avô, nariz de batatinha, pele enrugada e a maneira pretensiosa de olhar
tudo e todos.
Kobold3. Pois Kobold foi o nome que o Professor me deu, ele estava
num antiquário quando me descobriu de repente no fundo penumbroso de uma das salas. Achou graça em mim (nesse tempo ainda ria) e disse ao vendedor que eu era muito parecido com seu avô chamado Kobold, o avô tinha o mesmo nariz de batatinha, a pele toda enrugada e esse jeito pretensioso de juiz que julga, mas não admite ser julgado. (TELLES, 2009, p. 105)
A Enciclopédia Britânica Online apresenta uma breve explanação sobre a
lenda do nome Kobold:
in German folklore, mischievous household spirit who usually helps with chores and gives other valuable services but who often hides household and farm tools or kicks over stooping persons. He is temperamental and becomes outraged when he is not properly fed. He sometimes sings to children. (Encyclopedia Britannica, 2008.)
Apresentando uma tradução livre, sabe-se que há uma lenda pagã no folclore
alemão de um espírito pequeno que geralmente habita as residências e auxilia com
os trabalhos diários muitas vezes considerados maçantes. Permanecia em objetos
valiosos ou animais da casa ou da fazenda. Ele é temperamental quando não está
satisfeito com alguma situação, neste caso costuma esconder as ferramentas. Em
alguns momentos canta para as crianças.
A estrutura do anão também é motivo para uma lembrança de uma lenda
chinesa. “Esse anão tem um furinho lá dentro do ouvido como as imagens dos
deuses chineses para ouvir melhor as preces.” (TELLES, 2009, p. 105) O professor
tenta uma comunicação com o anão, porém não há uma interação, ele fala e com
isso sente-se bem, um perfeito ouvinte para expor seus sentimentos de solidão e
angústias.
3 O dicionário.com mostra a definição do termo Kobold e a etimologia. “Definition: in German folklore, a
haunting spirit, gnome, or goblin.” Etymology: Middle High German kobold 'goblin'.” (Dictionary.com's 21st Century Lexicon Copyright © 2003-2012 Dictionary.com, LLC Cite This Source)
20
Todorov apresenta marcas do gênero fantástico:
Vimos que o fantástico não dura mais que o tempo de uma vacilação: vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da “realidade”, tal como existe para a opinião corrente. Ao finalizar a história, o leitor, se o personagem não o tiver feito, toma, entretanto uma decisão: opta por uma ou outra solução, saindo assim do fantástico. Se decidir que as leis da realidade ficam intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra pertence a outro gênero: o estranho. Se, pelo contrário, decide que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. (TODOROV, 2008, p. 15)
O elemento sobrenatural é frequente em muitas obras literárias. Alguns
autores exaltam esse elemento um pouco mais, outros falam desse recurso para
envolver o leitor sem a pretensão de provocar suspense. Nesse caso trata-se de
uma transgressão de uma lei natural.
Passemos à função literária do sobrenatural. Existe uma coincidência curiosa entre os autores que cultivam o sobrenatural e os que, na obra, se preocupam particularmente com o desenvolvimento da ação, ou, se se quiser, que contam histórias: são os mesmos. Os contos de fadas nos dão a forma primeira e também a mais estável, da narrativa. Ora, é nesses contos que encontramos primeiramente acontecimentos sobrenaturais. A Odisséia, o Decameron, Don Quixote possuem todos, em diferentes graus, elementos maravilhosos; são, ao mesmo tempo, as maiores narrativas do passado. Na época moderna, não é diferente: são narradores, Balzac, Mérimée, Hugo, Flaubert, Maupassant, que escrevem contos fantásticos. Não se pode afirmar que exista aí uma relação de implicação, existem autores cujas narrativas não fazem apelo ao fantástico; mas a coincidência é, entretanto por demais frequente para ser gratuita. . (TODOROV, 2006, p. 161)
No conto fantástico Anão de Jardim, as marcas do sobrenatural não
provocam suspense, muito menos horror. As marcas revelam uma transgressão das
leis naturais. Uma possível alma aprisionada na estrutura de um anão de jardim que
nomeia o enunciador principal, Kobold.
1.4 Conto intimista
Segundo Bosi (2006, p. 15-16), o conto intimista apresenta uma profunda
reflexão interior com enfoque urbano envolto na solidão e nos dramas pessoais, é
também devedor de alguns modos alusivos e da análise moral.
21
Assim, o corpus de análise o conto Biruta de Lygia Fagundes Telles,
apresenta a estrutura do contemporâneo intimista. Pois o protagonista, enunciador,
sofre maus tratos em uma estrutura familiar. Uma criança que foi retirada de um
orfanato, infelizmente não foi acolhida como filho, foi recebido como um auxiliar nos
serviços gerais da casa. Sofreu castigos físicos e psicológicos. Físicos, geralmente
envolvendo as travessuras do cachorro Biruta, único vínculo de afeto e amizade da
personagem Alonso. Psicológicos, quando o cachorro foi retirado do convívio com a
criança.
A citação mostra uma cena de altíssimo grau de sofrimento do conto, o
momento em que o menino fica sabendo que o seu cachorro biruta não voltará para
o seu convívio.
- Olha aqui, se eles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.
- Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai o quê, Leduína?
- Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.
Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca.
A voz era um sopro quase inaudível:
- Não? ..
Ela perturbou-se.
- Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. - Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar..(TELLES,2007, p. 66)
Neste conto, não há superação do enunciador, o texto termina com uma
estrutura aberta, que provoca uma reflexão consciente no leitor, marca da autora na
apresentação de alguns contos.
22
O trecho mostra a última cena do conto. A estrutura aberta se revela porque
possibilita ao leitor múltiplas interpretações mediante a finalização.
Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu-¬se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão desmantelado.
Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou-¬se. E estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.
- Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.
Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.
Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração. (TELLES, 2007, p. 66)
No conto Biruta, não há acontecimentos sobrenaturais. São fatos do cotidiano
que mostram, infelizmente, a realidade de uma sociedade envolta com o sofrimento
de uma criança. As memórias do menino Alonso estão presentes no
desenvolvimento da narrativa, outra marca do texto intimista. Sua vida é escrita
através da sucessão de eventos.
Essa obra intimista não causa estranheza ou hesitação ao leitor como
acontece nos contos fantásticos, em que os fatos irreais são bem aceitos no
desenvolvimento das cenografias apresentadas. No conto Biruta, escolhido para
análise, apresentam-se fatos que permeiam as esferas reais, pois por meio da
observação da sociedade é possível afirmar que as cenas observadas fazem parte
da sociedade. O conflito micro apresentado na narrativa ficcional em uma estrutura
familiar revela o conflito macro da sociedade.
O conto Biruta revela não apenas um drama familiar, mas um drama social. O
que o país está fazendo pelas crianças? As crianças brasileiras, um número bem
expressivo, vivem em situações precárias. Algumas têm algumas carências,
necessidades básicas, com que a própria pobreza obriga a conviver em suas
estruturas familiares. Outras, logo após o nascimento, experimentam a dor da
solidão e do abandono, e muitas outras situações que tiram dos pequenos a alegria
que todas as crianças deveriam ter.
23
Por meio desse conto pode-se refletir sobre vários temas: adoção,
afetividade, amizade, amor, família, solidão, tristeza, castigos físicos e psicológicos e
a coisificação do homem.
Alfredo Bosi explana sobre o papel do conto contemporâneo:
Quanto à invenção temática, o conto tem exercido, ainda e sempre, o papel de lugar privilegiado em que se dizem situações exemplares vividas pelo homem contemporâneo.
Repito a palavra-chave: situações. Se o romance é um trançado de eventos, o conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um
discurso que os amarra. (BOSI, 2006, p. 8)
Segundo Bosi, o conto contemporâneo apresenta fatos vivenciados pelo
homem. Pode-se falar sobre a realidade ou retratar um mundo ficcional, além de
encantar e prender o leitor de forma rápida por ser sucinto.
24
2 ETHOS E EXPRESSIVIDADE
Estilística e Análise do Discurso:
É muito difícil definir a linha de separação entre a estilística e a
análise do discurso, pois a estilística, conforme dissemos, pode tomar formas extremamente diversas. Os fenômenos que eram abordados pela estilística de Bally no início do século XX são hoje distribuídos entre as teorias de enunciação linguística, a pragmática, a sociolinguística, a análise conversacional, a análise do discurso..., mas essas disciplinas os abordam sob ângulos diferentes. No que tange à estilística especificamente literária, o problema da fronteira entre a análise do discurso e a estilística não se coloca da mesma maneira, quando a estilística contenta-se em ser uma aplicação da linguística ao estudo do uso da língua nos textos literários, ou quando ela reflete sobre as relações entre as obras literárias e seus contextos de produção, circulação e consumo. Nesse último caso, há, certamente, inúmeras interferências entre a estilística e a análise do discurso. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2008, p. 218)
A estilística oferece várias possibilidades de análises, pois pode revelar
marcas de diversos estilos nos textos observados. A expressividade presente auxilia
no processo de interpretação dos múltiplos significados existentes. Na análise do
discurso observam-se todos os movimentos que interferem e complementam o dizer,
locutor, interlocutor, contexto que se insere e os fatores no discurso proferido. Tanto
a estilística quanto a análise do discurso têm aspectos semelhantes, por isso o
processo para apresentar características diferentes é muito tênue. Apenas quando a
estilística limita-se como uma dimensão da linguística pode-se observar aspectos
diferentes entre a análise do discurso.
2.1 Um pouco de teoria
Neste capítulo, apresenta-se uma análise estilística em diálogo com a análise
do discurso e a linguística textual. As escolhas linguísticas revelam a construção da
imagem dos dois enunciadores do corpus selecionado, Kobold e Alonso.
Para uma compreensão do estudo, faz-se necessária uma definição sobre
estilística. Para tanto, consultamos Martins, que apresenta uma discussão do
referido conceito:
25
O caráter científico da estilística – ou a sua pretensão de atingir o
estatuto de ciência – advém do seu objetivo de explicar os usos da linguagem que ultrapassam a função puramente denotativa, com maior exatidão e sem o propósito normativo que caracterizou a retórica. Contudo, não se logrou ainda um método rigoroso que assegure sua condição de ciência e o seu objeto não está satisfatoriamente delimitado.
O estudo que ora apresentamos trata da expressividade da língua portuguesa, isto é, os meios que ela oferece aos que falam ou escrevem para manifestarem estados emotivos e julgamento de valor, de modo a despertarem em quem ouve ou lê uma reação também de ordem afetiva. (MARTINS, 2008, p. 41)
A estilística mostra por meio dos traços linguísticos as funções reveladas nas
comunicações, vai além do sentido real para alcançar o universo figurado repleto de
significações, força e poder nas enunciações. Assim o leitor faz parte de forma
efetiva dos múltiplos sentidos encontrados no texto, com o envolvimento pleno. Além
de se envolverem de forma afetiva com o contexto e seus enunciadores.
No conto fantástico Anão de jardim, o leitor vivencia todas as emoções
sentidas por Kobold que observa, sente tristeza, experimenta a solidão e se
compadece do ser que viveu como homem e conviveu com as mazelas da
sociedade, demonstrou crenças, trocou afeto e lutou pela vida mesmo tendo a
consciência de que ela é efêmera.
No conto intimista Biruta, até os corações mais duros se sensibilizam
mediante os conflitos e o drama pessoal do menino Alonso: o órfão é desrespeitado
em relação aos direitos da infância, porém oferece ao amigo biruta, o cachorro,
afeto, proteção e lhe assiste o direito de ser criança, algo que ele não tinha ainda
vivenciado.
Segundo Cardoso (2009, p. 67-68), em uma análise de um texto literário pela
perspectiva da Estilística Léxica é primordial associar o estilo à escolha. Os usuários
fazem suas escolhas de acordo com as necessidades de expressão, assim,
provocam os efeitos esperados: “A Estilística Léxica, a parte da estilística que se
preocupa com os efeitos estéticos obtidos com a escolha e a formação de palavras”
(CARDOSO, 2009, p. 67).
Câmara Jr. explana sobre o papel da estilística:
26
(...) pode-se definir a estilística como a parte do estudo da linguagem que se opõe à gramática, a qual trata da língua representativa. O papel da estilística é depreender todos os processos linguísticos que permitem a atuação da manifestação psíquica e do apelo dentro da linguagem intelectiva. Um pobre homem que chora e se desespera diante do ataúde do filhinho morto manifesta a sua dor e apela para a nossa comiseração, mas não é assunto de estilística; é-o, ao contrário, Fagundes Varela, quando na mesma situação compõe a elegia “Cântico do Calvário”, dobrando a expressão linguística às mais sutis e impressionantes exteriorizações do seu estado anímico. Isso talvez nos dê a justificativa para o termo estético, há pouco sugerido em vez de emocional: os gritos do pobre homem têm valor emocional; o “Cântico do Calvário” tem valor estético, porque houve a integração do mundo representativo no mundo emocional e se teve num “estético” o fator “representação” multiplicado pelo fator “emoção” (CÂMARA JÚNIOR, 2004, p. 176)
Diante do exposto, percebe-se que, em relação à definição sobre estilística,
Câmara Jr. diz que é a integração do mundo representativo no mundo emocional.
Porém todas as três contribuições concordam que a Estilística estuda os fenômenos
da linguagem, a expressividade da língua, observando as escolhas das construções
linguísticas ali presentes.
A elaboração dessas escolhas ao longo do texto revelam os múltiplos
significados presentes no corpus analisado, por isso, podem-se mostrar diferentes
situações, desejos, emoções e enunciações nos contextos apresentados.
O que é estilística? Eis uma pergunta a que não se responde fácil e prontamente. Pode-se dizer, como princípio de explicação, que estilística é uma das disciplinas voltadas para os fenômenos da linguagem, tendo por objetivo o estilo, o que remete a outra embaraçosa e infalível pergunta: e o que é estilo? (MARTINS, 2008, p. 17)
Mattoso Câmara Jr. define estilo como: “Um conjunto de processos que fazem
da língua representativa um meio de exteriorização psíquica e apelo (no sentido de
Bühler)” (CAMARA Jr., 2004, p. 175)
Que o estilo, assim entendido, é individual, não é uma verdade absoluta, mas apenas meia verdade. Há nele sempre um aspecto coletivo, que decorre de ele ser também, como a “língua” saussuriana, um meio de comunicação social, embora no plano emocional. Mas é indubitável que a personalidade se assinala firmemente no estilo, porque o mundo dos sentimentos é muito mais nosso do que o das ideias. Podemos divergir, por exemplo, na maneira de sentir a luz do sol, mas não na sua análise espectral, e assim, e assim por diante. É até lícito dizer que uma ideia se torna individual pelas diversas maneiras por que é “sentida” (CÂMARA Jr., 2004, p. 176)
27
O estilo revelado nos textos contribuirá nas análises. Segue uma afirmação
de Câmara Jr. sobre o estilo nas manifestações linguísticas e nos textos literários:
(...) o estilo aparece em qualquer manifestação linguística e chegamos até à conclusão de que entender a estilística como apenas referente à língua literária é restringir indevidamente, e mesmo falsamente, os seus objetivos; mas vimos também que na língua literária é que a estilística encontra um campo mais amplo, porque considera textos que valem principalmente pelo estilo e foram feitos por pessoas que se especializaram em obter os efeitos estilísticos. (CÂMARA Jr., 2004, p. 180)
Em todas as comunicações, o enunciador deixa marcas do seu estilo, por
meio do seu discurso, podendo-se conhecer muito sobre suas preferências, desejos
e intenções.
O texto literário mostra o estilo com uma estrutura mais definida, por meio dos
estudos amplos sobre os recursos estilísticos e os efeitos que se quer alcançar.
Neste trabalho, esses elementos estilísticos estabelecem a construção da
imagem dos enunciadores observados em cada um dos contos escolhidos, ou seja,
descreve os ethé desses enunciadores por meio das escolhas lexicais e a
expressividade que causam nos textos. Revelam proximidade por meio dos
sentimentos, discurso religioso, discurso mitológico e a impotência mediante os fatos
apresentados, e se distanciam por meio da humanização versus coisificação e da
consciência versus alienação.
2.2 A subjetividade do texto literário
O corpus selecionado para o desenvolvimento deste estudo pertence à esfera
literária, há inúmeras marcas que mostram os discursos dos enunciadores repletos
de sentimentos: desejos, necessidades e reflexões.
O texto literário é carregado de subjetividade, e esse é um dos aspectos que
envolvem os leitores e convida-os a participar desse processo.
Martins apresenta um interesse da estilística da enunciação, a subjetividade
do discurso. Por meio da linguagem verbal nos textos, os enunciadores mostram-se,
revelam suas essências no universo subjetivo.
28
A linguística/estilística da enunciação se interessa pelo nível de subjetividade do discurso. Se a linguagem é sempre produzida por um falante que sente a necessidade, a conveniência, o desejo ou o prazer de dizer qualquer coisa, a linguagem é sempre subjetiva. (MARTINS, 2008, p. 234).
Segue um conceito sobre a subjetividade segundo Benveniste citado no
dicionário de análise do discurso por Maingueneau e Charaudeau:
Para Benveniste, como efeito (1966:259-260), a subjetividade nada mais é que a “capacidade do locutor de se posicionar como ‘sujeito’”, e é na linguagem que devemos procurar os fundamentos dessa aptidão, “ é na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito”. Ele assim o faz, apropriando-se de certas formas que a língua lhe disponibiliza. (MAINGUENEAU & CHARAUDEAU, 2008, p. 456)
O enunciador se apropria da subjetividade para apresentar as suas ideias e
posicionar-se diante de qualquer comunicação. Assim o sujeito expõe algo e
defende suas teses com propriedade, por meio do seu discurso carregado de
marcas que revelam essa subjetividade.
O trecho mostra a subjetividade no discurso de Kobold:
Falei na auréola da casa. Esse suave halo também surpreendi (às
vezes) em redor da cabeça do Professor, mas isso foi nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor no seu violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. (TELLES, 2009, p. 106)
O enunciador constrói, por meio das declarações, impressões sobre a casa e
o professor. Os vocábulos auréola/halo representam um círculo dourado utilizado
por pintores revelando santidade às imagens que possuíam essa marca, que está
vinculada à pureza, algo divino. Com essa afirmação o anão experimenta
sentimentos em relação à casa e ao professor, algo imperceptível aos olhos e
sentidos objetivos e concretos. Assim, Kobold deixa a sua marca como sujeito que
revela sua subjetividade na construção do discurso. Um enunciador sensível em
suas observações e percepções.
O trecho mostra a subjetividade no discurso de Alonso:
29
Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pelo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai! (TELLES, 2007, p. 64)
O enunciador Alonso constrói por meio do seu discurso um parecer sobre os
personagens, um julgamento de valor que descreve o comportamento dos
envolvidos na cenografia.
O doutor é caracterizado por meio da adjetivação, bom.
(...) ‘Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você’(...) (TELLES, 2007, p. 64)
Leduína, a empregada, mostra um pouco de afeto quando oferece
proteção ao menino.
(...) a Mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. Vacilou ainda um instante, decidiu-se (...)
_ Que gente também! Explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. – Não se importe, não, filho. Vai, vai, jantar... (...) (TELES, 2007, p. 69; 79)
Dona Zulu é aquela que não compreende as necessidades do universo
infantil.
Ele ainda tinha viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos forma ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais. (TELES, 2007, p. 63)
Alonso se relaciona com todos os integrantes daquela estrutura familiar,
embora de maneiras diferentes, porém é apenas com o cachorro Biruta que ocorre a
troca de afeto, havendo a oferta de conforto mútuo em todos os momentos, tristes e
alegres.
2.3 Expressividade
O conhecimento da língua do ângulo da expressividade constitui o passo
inicial para a compreensão e valoração dos textos literários. (MARTINS, 2008,42)
30
2.4 Cenas
Para a análise da construção da imagem dos enunciadores, há a necessidade
de observar os sujeitos produtores dos discursos e as cenas dessas enunciações.
Todos os aspectos observados no corpus estão inseridos em uma cena
englobante literária, que segundo Maingueneau, “corresponde ao que se costuma
entender por ‘tipo de discurso’”. (2009, p. 251)
Ele conceitua a cena englobante literária e apresenta as diversas facetas
dessa esfera, considerando que é insuficiente para explanar o texto. A obra é
apresentada por meio de um gênero. Para uma compressão ampla deve-se
identificar o tipo de texto que pertence à primeira abordagem e o gênero que é
enunciado:
Todo enunciado literário está vinculado com uma cena englobante
literária, sobre a qual se sabe em particular que permite que seu autor use um pseudônimo, em que os estados de coisas que propõe sejam fictícios etc. (...) A cena englobante não é suficiente para especificar as atividades verbais, pois não se tem contato com um literário, político ou filosóficos não especificados; a obra é na verdade enunciada através de um gênero do discurso determinado que participa, num nível superior, da cena englobante literária. Pode-se falar nesse caso de cena genérica. As condições de enunciação ligadas a cada cena correspondem, como vimos, a certo número de expectativas do público e de antecipações possíveis dessas expectativas pelo autor. (MAINGUENEAU, 2009, p.251)
Assim, as cenas se completam: inicialmente o leitor visualiza a cenografia, as
múltiplas maneiras de explanar o texto, depois a cena genérica que enuncia inserida
em uma cena englobante.
O leitor se vê assim apanhado numa espécie de armadilha, porque o
texto chega em primeiro lugar por meio de sua cenografia, não de sua cena englobante e de sua cena genérica, relegadas ao segundo plano, mas que na verdade constituem o quadro dessa enunciação. É nessa cenografia, que é tanto condição como produto da obra, que ao mesmo tempo está “na obra” e a constitui, que são validados os estatutos do enunciador e do co-enunciador, mas também o espaço (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos quais a enunciação se desenvolve. (MAINGUENEAU, 2009, p. 252)
Na construção da imagem do enunciador, no conto Anão de jardim, podem-se
observar as três cenas: a cenografia se revela quando Kobold participa e assume as
suas declarações, posicionamentos e julgamentos de valor. O enunciador principal
31
deixa de ser coisa e passa a tomar posse das características humanas, ao término.
Da narrativa ocorre a inversão, volta ao natural, torna-se coisa, abandonado no
jardim.
Na construção da imagem do enunciador, no conto Biruta, também as três
cenas são facilmente identificadas pelo leitor, a cenografia se mostra com Alonso e
seu drama pessoal. A temática envolta de melancolia revela um humano sendo
tratado como coisa, sem valor algum.
A cena genérica apresenta o gênero conto inserido na esfera literária que
revela a cena englobante.
2.5 Ethos
Apresenta-se o conceito de ethos segundo o dicionário de análise do discurso
de Charaudeau e Maingueneau (2008 p.220):
Ethos – Termo emprestado da retórica antiga, o ethos designa a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutários. Essa noção foi retomada em ciência da linguagem e, principalmente, em análise do discurso, em que se refere às modalidades verbais da apresentação de si na interação verbal.
Em Análise do Discurso:
O enunciador deve legitimar seu dizer: em seu discurso, ele se atribui uma posição institucional e marca sua relação a um saber. No entanto, ele não se manifesta somente como um papel e um estatuto, ele se deixa apreender também como uma voz e um corpo. O ethos se traduz também no tom, que se relaciona tanto ao escrito quanto ao falado, e que se apóia em uma dupla figura do enunciador, aquela de um caráter e de uma corporalidade.
As marcas observadas nas comunicações são essenciais na formação da
imagem do enunciador, os detalhes nas cenas oferecerão dados necessários que
auxiliarão os leitores na busca do ethos do enunciador protagonista. “O ethos está
crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não podemos ignorar que o público
constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo de ele
começar a falar.” (MAINGUENEAU, 2009, p. 269)
32
É o que Maingueneau chama de ethos pré-discursivo, a plateia constrói uma
imagem do orador antes de sua enunciação. A escolha do vestuário e a postura do
orador perante a plateia serão elementos observados, e a primeira imagem começa
a se construir. Com o discurso esse ethos pré- discursivo pode sofrer alterações ou
possíveis confirmações dessa construção prévia.
De acordo com o Dicionário de Análise do Discurso:
O ethos discursivo mantém relação estreita com a imagem prévia que
o auditório pode ter do orador ou, pelo menos, com a ideia que este faz do modo como seus alocutários o percebem. A representação da pessoa do locutor anterior a sua tomada de turno- às vezes denominada ethos prévio ou pré-discursivo- está frequentemente no fundamento da imagem que ele constrói em seu discurso; com efeito, ele tenta consolidá-la, retificá-la, retrabalhá-la ou atenuá-la. Essa noção, que permanece problemática, dado que extradiscursiva é, entretanto, adotada, com diversas precauções, por mais de um analista. (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2008, p. 221)
Ainda, Salgado e Motta afirmam sobre a construção da imagem do sujeito por
meio do discurso que:
– “o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma ‘imagem” do locutor exterior a sua fala; - o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio histórica. (SALGADO; MOTTA, 2011, p. 17)
Roland Barthes afirma sobre ethos citado por Amossy:
Os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão: é o seu jeito (...) O orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: sou isso, não sou aquilo. (AMOSSY, 2005, p. 10)
Assim, considerando a previsão teórica apresentada acima e os objetivos
desse estudo, observa-se que a conduta da análise demonstra as relações que se
estabelecem entre estilística, subjetividade e ethos, pois por meio da subjetividade
inerente às escolhas linguísticas que constroem a tessitura textual, o sujeito
enunciador em meio a concretização de seu próprio discurso revela seu ethos.
33
O trabalho apresenta uma análise estilístico discursiva em dois contos de
Lygia Fagundes Telles, Anão de jardim e Biruta. Tendo como base do
desenvolvimento a estilística na busca da construção dos ethé dos enunciadores
principais, Kobold e Alonso.
2.6 A Construção do ethos de Kobold
O conto Anão de Jardim de Lygia Fagundes Telles apresenta um texto que
tem um universo coloquial com algumas escolhas eruditas que revelam a
consciência do enunciador mediante o conhecimento linguístico e conhecimento de
mundo; alguns termos se repetem, porém não de forma excessiva; os sinais
expressivos escolhidos provocam interação, reflexão e conscientização; o discurso
revela um julgamento de valor em relação ao comportamento humano; a adjetivação
contribui para revelar o ethos do enunciador; as formas verbais auxiliam nas
expressões dos sentimentos, desejos e a estrutura da essência dos sujeitos
principais, e as escolhas conotativas contribuem para revelar os múltiplos
significados presentes em um texto.
O enunciador protagonista é um anão de jardim, Kobold. Ele está preso em
uma estrutura de pedra no jardim da casa do professor. Narra todos os
acontecimentos que julga serem importantes, assim, participa também da cenografia
que engloba o texto ficcional de forma ativa e efetiva.
Muitas lendas apresentam diversos significados às figuras consideradas
mágicas, os anões. Seres com alguns poderes sobrenaturais que são verdadeiros
guardiões de jardins. Não são belos, porém possuem uma inteligência superior. O
temperamento mostra-se impaciente e mal humorado.
Nos contos de fadas e fábulas, as figuras dos anões são geralmente
instáveis, ora amistosas, ora rudes e perversas.
A sociedade aceita de forma natural a figura do anão de jardim, suas lendas
fantasiosas e os mitos envolvidos.
O que representa o anão no conto?
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Segue uma contribuição que explana os significados: tem sua origem nos
Cadernos de Literatura Brasileira, uma publicação semestral do Instituto Moreira
Salles (1998), que apresentou uma entrevista com a autora do corpus escolhido
para o desenvolvimento desta pesquisa. A própria Lygia Fagundes Telles explana a
representação da figura do anão de jardim no conto Anão de jardim:
Um anão de jardim para mim representa a impossibilidade de justiça, a impunidade, e a impossibilidade de liberdade. No conto “Anão de jardim”, que está em A noite escura e mais eu, você tem o aprisionamento dele no material de que é feito – pedra – e como ele sabe que vai ser destruído pelas picaretas, pede um corpo de verdade para Deus. Na última versão que dei ao conto, o anão de jardim pede para ser transformado numa serpente para poder picar Pilatos no calcanhar (Pilatos devia usar sandália, não é?). O anão é um revoltado com o fato de Cristo ter sido condenado e os apóstolos não reagirem. Por isso ele pede para virar a serpente que vai picar Pilatos. (Lygia Fagundes Telles) (Caderno de Literatura Brasileira, 1998, número 5)
O enunciador do conto Anão de Jardim carrega múltiplas significações, deixa
de ser adorno para o jardim e passa a testemunhar e sentir o universo humano
repleto de complexidades.
As análises se desenvolvem por meio da perspectiva do enunciador:
Em uma perspectiva enunciativa a figura central é o enunciador. Segundo
Charaudeau e Maingueneau (2008) o enunciador tem um valor instável, mediado
pelas relações que o envolvem na enunciação.
Pode-se definir o termo enunciador por meio da subjetividade do falante nas
cenografias presentes em cada texto apresentado:
As dificuldades que a noção de enunciador suscita são inseparáveis
daquelas suscitadas pelo que concerne à subjetividade falante. Existe efetivamente um certo número de estatutos ligados a essa subjetividade: sujeito produtor efetivo do enunciado, sujeito organizador do dizer, sujeito responsável pelo ato de fala, sujeito fonte do ponto de vista, sujeito ponto de origem das ancoragens dêiticas, sujeito oposto a um outro sujeito na alteridade fundadora da troca linguística... A priori, pode-se conceber duas posições diametralmente opostas: aquela que consiste em remeter esses diversos estatutos a instâncias igualmente distintas, e aquela que os associa a uma única instância compacta, indiferentemente nomeada “locutor”, “enunciador”, “sujeito falante”. Na realidade, os linguistas adotam posições intermediárias, que se distribuem entre os dois pólos. (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU 2008, p. 197)
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O estudo desenvolve-se por meio do discurso direto do enunciador, por
marcas linguísticas que revelam a imagem de Kobold, um anão de jardim.
De acordo com Maingueneau e Charaudeau (2008, p. 198-199), o enunciador
é aquele que produz um enunciado, sendo assim responsável pela situação de
comunicação apresentada.
No conto Anão de Jardim, o trecho a seguir apresenta um sujeito que observa
o anão e tece um comentário, construindo assim uma imagem prévia. O sujeito
principal (anão) também constrói a imagem de quem o observa, porém por meio do
discurso.
Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um
menino de olhar dissimulado, fugidio. Então eu pensei aqui com os meus botões (não tenho botões) que quando ele for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou bastante satisfeito. (TELLES, 2009, p. 99)
O sobrinho do professor constrói uma imagem prévia do anão, afirma que ele
tem cara de besta observando as características da aparência de Kobold. A
expressão utilizada pode revelar um ser pretencioso, pedante, que pode provocar
incômodo em algumas pessoas apenas com a sua presença, não havendo
necessidade de uma comunicação entre os enunciadores para alcançar um parecer
ou um julgamento de valor a respeito do ser observado. Kobold também constrói
uma imagem do menino, uma reação ao discurso proferido: “um menino de olhar
dissimulado, fugidio, futuro corrupto boçal”. Os adjetivos oferecidos ao menino estão
carregados de sentidos pejorativos, aproximam-se de um xingamento, ( um insulto
por meio de palavras). Assim o enunciador revela que está insatisfeito com o
julgamento do menino e responde com um discurso agressivo.
Nessa passagem do conto um ser inanimado, Kobold, deixa de ser coisa e
ganha características humanas porque pensa e demonstra insatisfação mediante a
conduta do outro. A ciência e a religião não conseguem justificar esse fenômeno, a
justificativa vem do texto literário que trabalha com a subjetividade e apresenta
figuras de linguagem nas enunciações que se manifestam nas cenografias
apresentadas.
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Na análise do ethos, busca-se encontrar marcas no indivíduo (sentimentos,
julgamento de valor, posicionamento crítico etc.) observado e procura-se assimilar
toda a enunciação. Alguns discursos soam como verdadeiras descrições do ser,
outros não se mostram de forma clara.
Na construção da imagem devem-se analisar todos os aspectos para
finalmente tecer um parecer. O ethos apresentado não está necessariamente no
universo da verdade, caminha também no universo fictício.
O enunciador revela-se crítico em relação à cenografia. Utiliza–se das marcas
linguísticas, formas adjetivas, para apresentar o comportamento do menino no
presente e em um futuro próximo (fugidio, dissimulado, corrupto e boçal), assim
mostra-se como sujeito que manifesta o seu julgamento de valor. A expressão em
parênteses (não tenho botões) segue uma linguagem conotativa. Então eu pensei
aqui com os meus botões. Pensar com os meus botões é uma expressão popular,
significa pensar consigo mesmo, sem a interferência direta do outro. O enunciador
mostra que reflete, e com consciência tece o seu parecer.
Os elementos linguísticos apresentados neste trecho marcam a narrativa
ficcional, conto fantástico, e auxiliam na construção do ethos do enunciador. O
exemplo principal que contempla o fantástico é a hesitação do leitor mediante as
declarações de um anão de jardim, houve a quebra da barreira do real. Outro fato
que contribui é a possível alma aprisionada segundo uma lenda pagã alemã.
Marcas da argumentação que mostram o fluxo da consciência. O sujeito em
seu discurso revela os sentimentos, mostra indignação mediante os fatos
observados e se sente impotente em relação ao comportamento humano. A
expressão pensar com os meus botões revela também o fluxo da consciência do
sujeito principal, uma reflexão sobre o discurso do menino que participa da cena,
uma linguagem conotativa carregada de significados.
O trecho analisado mostra a construção da imagem pré-discursiva e também
o discurso direto do sujeito principal. A cena observada na citação direta apresenta
as duas formas, o ethos construído antes do discurso e marcas no ato da fala do
enunciador.
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Ethos pré-discursivo formado por outro personagem antes do discurso do
enunciador principal:
A imagem pré-discursiva é formada com a declaração do personagem
menino: “Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um menino
de olhar dissimulado, fugidio.”
Discurso do enunciador:
Então eu pensei aqui com os meus botões (não tenho botões) que quando ele
for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou bastante satisfeito.
(TELLES, 2009, p. 99)
Assim o anão pode apresentar em seu discurso alguns sentimentos: a
indignação se manifesta por meio dos adjetivos corrupto e boçal e mostra-se
satisfeito porque não concorda com o termo que o menino utiliza quando classifica o
anão, cara de besta. Essas escolhas lexicais (corrupto, boçal e cara de besta)
exprimem julgamento depreciativo em relação aos enunciadores da cena. As
escolhas revelam dois níveis, adjetivos de nível popular e adjetivos de nível erudito.
Adjetivos depreciativos eruditos: corrupto e boçal; locução adjetiva depreciativa
popular: cara de besta.
Segundo Martins (2008, p. 107) as palavras que exprimem julgamento são
predominantemente os adjetivos, que em geral oferecem qualidades positivas,
negativas, valorizadoras e depreciativas. Alguns adjetivos podem ser de nível
popular, bem como podem ser de nível erudito.
A enunciação seguinte revela por meio das marcas linguísticas a estrutura do
sujeito principal:
A data na qual fui modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota, mas esse detalhe não interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve vigorar também para os anões de jardim, sou um anão de jardim. Não de gesso como pensava a Marieta, Esse anão de gesso é muito feio, ela disse quando me viu. Sou feio, mas sou de pedra e do tamanho de um anão de verdade com aquela roupeta meio idiota das ilustrações das histórias tradicionais, a carapuça. A larga jaqueta fechada por um cinto e as calças colantes com as botinhas pontudas, de cano curto. A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão sério. As crianças (poucas) que me viram não acharam a menor graça em mim. Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um menino de olhar dissimulado, fugidio. Então eu pensei aqui com os meus
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botões (não tenho botões) que quando ele for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou bastante satisfeito. (TELLES, 2009, p. 99)
A palavra pedra remete à estrutura do anão de jardim. O sujeito analisado no
conto fantástico é de pedra, um material mais forte e resistente à exposição que lhe
era apresentada, um jardim. A palavra pedra utilizada no sentido conotativo
representa a essência de Kobold, forte em seus posicionamentos sobre tudo e
todos. No sentido denotativo, representa a estrutura do anão e também força
mediante materiais mais frágeis. “(...) sou um anão de jardim. Não de gesso como
pensava a Marieta, Esse anão de gesso é muito feio, ela disse quando me viu. Sou
feio mas sou de pedra (...)”. O vocábulo gesso representa a fragilidade do material
comparado à resistência do material pedra. A construção da imagem revela um
sujeito forte, apesar de suas limitações, uma estrutura de pedra em um jardim. O
anão expressa-se em primeira pessoa, assim assume plenamente o seu discurso.
Este fenômeno só é possível por meio da figura de linguagem, personificação, que
oferece características humanas aos seres inanimados. O anão deixa de ser coisa e
torna-se humano.
“A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão
sério.” O vocábulo sério apresenta uma qualidade positiva e valorizadora que mostra
a essência do sujeito. O sujeito protagonista é sério, com essa adjetivação revela o
seu comportamento mediante os fatos que o cercam. No início do conto a
enunciação mostra um sujeito forte em sua estrutura, aparência, e sério em sua
essência, pois demonstra um caráter sóbrio e tem concentração e organização nos
seus pensamentos. O vocábulo risonho revela a oposição estabelecida pelo
enunciador, e não demonstra alegria na elaboração do seu discurso.
O conhecimento linguístico auxilia na caracterização do Anão com o uso da
adjetivação. Essas marcas revelam a estrutura física e emocional, pela qual
sentimentos são expostos de forma explícita e implícita.
A imagem é construída por meio do discurso proferido pelo enunciador, que
se revela durante a narrativa. O ethos é construído também por meio das
declarações e inquietações mediante os fatos apresentados no conto.
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O conhecimento de mundo se faz necessário para interpretação e
compreensão dos fatos que envolvem o conto fantástico.
O trecho selecionado revela o ethos do enunciador que sofre mediante a
observação dos sujeitos envolvidos na cenografia. A insatisfação é apresentada em
seu discurso, e aproxima-se da melancolia quando Kobold não pode alterar as
situações que ele condena no comportamento humano. Kobold assiste
passivamente o assassinato do professor sem poder alterá-lo, apenas observa e
sofre muito por isso, pois a sua limitação impede a concretização dos seus
pensamentos.
O trecho a seguir apresenta um momento de muita tensão e angústia para
Kobold, que assistiu, sem poder interferir, o plano desumano de Hortênsia:
Mas assim que a distraída Hortênsia (fazia a distraída) começou a executar seu plano para herdar esta casa (e outras), assim que começou a esquecer (era esquecida) as tais pequenas doses de veneno na caneca do chá-mate, a carne já envelhecida (setenta anos) do Professor começou a ficar mais triste. E o halo foi se apagando até desaparecer completamente. (TELLES, 2009, p.101)
O vocábulo Hortência é carregado de significados que ganham valores
conotativos em relação ao comportamento do personagem.
De acordo com o dicionário etimológico “Hortênsia sf.’ Planta da fam.. Das
saxifragáceas’ 1858. Do fr. Hortênsia, deriv. Do lat. Bot. Hortênsia, nome criado por
Commerson (1727 – 1773) em honra a Hortense Lepaute, mulher de Lepaute, um
célebre relojoeiro da época.” (CUNHA, 1986, p.416)
Um artigo no Diário do Nordeste apresenta uma contribuição sobre o nome
Hortênsia:
As hortênsias possuem um princípio ativo, o glicosídeo cianogênio,
hidrangina, o que as torna venenosas. Este veneno causa cianose (falta de oxigenação no sangue), convulsões, dor abdominal, flacidez muscular, letargia (sonolência), vômitos e o coma. Tratam-se de espécimes extremamente perigosas quando ingeridas. As principais vítimas são crianças e animais. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2008)
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De acordo com o dicionário de símbolos, mediante uma lenda celta, pode-se
observar os múltiplos significados do vocábulo escolhido que nomeia a esposa do
professor, Hortênsia.
A flor parece ser um símbolo de instabilidade, não de uma
versatilidade que seria própria da mulher, mas da instabilidade essencial da criatura, votada a uma perpétua evolução, e, em especial, símbolo do caráter fugitivo da beleza (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 438)
A escolha de Lygia Fagundes Telles pelo vocábulo Hortênsia, esposa do
professor, revela nessa obra as suas ações desprezíveis. O veneno no sentido
denotativo que é oferecido em pequenas doses ao professor lhe tirou a vida. No
sentido conotativo pode revelar o caráter duvidoso, mulher venenosa, aquela que é
capaz de matar o próprio marido.
Kobold do seu jardim observa essas ações sem poder alterar os fatos, sofre e
envolto nessas angústias mostra-se indignado mediante o comportamento humano.
Segue um trecho de alta tensão e angústia demonstradas pelo enunciador,
oriundas da impotência mediante os fatos, o que causa um sofrimento paradoxal:
Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, te matando! Minha indignação foi tão violenta que senti nessa hora que alguma coisa em mim estava se rompendo, foi excessivo o esforço que fiz para me movimentar. Ele continuou imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois levantou-se com dificuldade, chegou a se apoiar no violoncelo que quase tombou num gemido, Blom!... Vai chover Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se cambaleando em direção à casa eu tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A chuva se anunciou num raio que varou o teto do caramanchão. Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e acabou por golpear a pedra? Não sei, mas sei que foi nessa noite que se abriu esta rachadura sem sangue e sem dor. (TELLES, 2009, p. 104-105)
Esta rachadura sem sangue e sem dor é um paradoxo, abre-se uma tristeza
infinita, principalmente pela incapacidade de mudar os fatos que estão diante do
anão. O termo rompendo revela que algo foi aberto à força.
(...) alguma coisa em mim estava se rompendo (...) abriu esta rachadura sem sangue e sem dor (...)
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Se o professor pudesse ouvi-lo, talvez tivesse escapado da morte, do
assassinato. Kobold, coisa, humanizou-se porque apresentava características
humanas, porém esse fenômeno não foi suficiente para salvar o professor e a sua
existência.
Segue um discurso de afirmação da existência do enunciador:
Volto às minhas lembranças que foram se acumulando no meu eu lá de dentro, em camadas, feito poeira. Invento (de vez em quando) o que é sempre melhor do que o nada que nem chega a ser nada porque meu coração pulsante diz EU SOU EU SOU EU SOU. Meu peito (rachado) continua oco.
As repetições dos vocábulos EU SOU EU SOU EU SOU reafirma o desejo de
Kobold em relação a sua existência. Um anão de jardim, feito de pedra, repleto de
lembranças, inventa, pensa e não para de lutar pelos seus ideais.
A expressão “coração pulsante” revela o humano que existe aprisionado na
estrutura de um anão, com a aparência de um simples objeto de adorno para o
jardim, porém com toda a força e sensibilidade de um humano crítico e reflexivo.
O trecho a seguir revela o último clamor do enunciador:
Os homens estão parados na entrada do caramanchão e combinam
um jogo para mais tarde, o mais velho parece satisfeito, o trabalho está praticamente terminado. O escorpião já fugiu com seu dardo aceso, as pinças altas no alerta, escondeu-se. A tática. Um ser odiado, odiado, odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram no Zodíaco, lá está o Signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa mínima forma eu aceito, quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho em qualquer tempo espaço e o demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso que estais no céu com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outu / bro. (TELLES, 2009, p. 108)
A escolha linguística na forma verbal quero manifesta o desejo do enunciador
que, mesmo diante do término de uma existência, sonha com uma forma de vida,
não importando agora qual seja: “quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do
sonho”. O desdobramento do termo em destaque representa a determinação das
aspirações de Kobold. O presente do indicativo caminha para uma possível certeza.
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Com a esperança, o enunciador acredita que é possível alcançar a concretização do
almejado, mesmo quando a situação apresenta o exemplo contrário, e então ter
esperança é mostrar uma virtude. A ilusão lhe oferece a oportunidade de enxergar o
mundo ficcional, o que não existe no mundo real, é sentida mediante o desejo. O
sonho pode intensificar uma visão sobrenatural tão necessária para a cenografia
apresentada.
A prece revela a conformidade com os fatos e o enunciador aceita o seu fim.
“Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela
menor da grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outu/bro.”
O trecho selecionado finaliza apresentando a palavra outubro (outu/bro) com
uma ruptura, uma barra representando a lâmina da picareta, que finaliza também a
existência de um ser inanimado que tomou posse das características humanas,
observou, sentiu, demonstrou insatisfação mediante a conduta dos moradores
daquela residência em que o anão permanecia no jardim. O enunciador apresenta
resistência quando sente a chegada do seu fim iminente, clama pela vida ou por
qualquer tipo de vida, agora não importando a forma, a luta é pela vida.
2.7 A construção do ethos de Alonso
O conto Biruta organiza-se a partir de uma mescla entre escolhas da norma
culta e coloquial que caracterizam as personagens e seus universos. Alguns termos
se repetem com o intuito de retomar a idéia principal que norteia as relações
afetivas. Assim, os sinais expressivos envolvem os leitores na cena narrativa: o
discurso revela um julgamento de valor em relação ao comportamento humano. A
afetividade é apresentada como item necessário no convívio dos indivíduos, a
adjetivação contribui para revelar o ethos do enunciador, as formas verbais auxiliam
nas expressões dos sentimentos do sujeito principal e as escolhas conotativas
ganham significados afetivos na relação do menino Alonso e o cachorro Biruta.
Todos os elementos citados auxiliarão na análise que busca revelar a imagem do
enunciador protagonista.
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As marcas observadas na narrativa são essenciais para a construção da
imagem do sujeito principal, os detalhes nas cenografias oferecem dados
necessários que auxiliaram na decodificação das análises.
Por meio das estruturas do discurso direto, Alonso interage com Biruta e
Leduína e podem ser observadas expressões coloquiais que revelam a
expressividade dos trechos.
As palavras evocativas, do parágrafo “- Biruta, eh, Biruta! - chamou sem se
voltar”. (TELLES, 2007, p. 61), são repletas de significados e neste contexto
representam o afeto que o menino Alonso tem pelo seu cachorro Biruta. Além de
querer ter uma conversa sobre as recentes travessuras do seu melhor amigo. A
expressão “eh” demonstra uma marca da oralidade e o grau de intimidade existente
nessa relação, livre de regras e de condutas formais.
De acordo com Martins:
A totalidade emotiva de um grande número de palavras se deve a associações provocadas pela sua origem ou pela variedade linguística a que pertencem. São as palavras de poder evocativo, conforme as classificou Bally. São os estrangeirismos, os arcaísmos, os termos dialetais, os neologismos, as expressões de gíria, os quais não só transmitem um significado, mas também nos remetem a uma época, a um lugar, a um meio social ou cultural. (MARTINS, 2008,108)
O termo conversinha, presente em “- Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma
conversinha - disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se,
arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos”. (TELLES, 2007, p.
61), ganha um sentido figurado. A criança deseja chamar a atenção do amigo Biruta
para uma suposta bronca, afinal o cachorro tinha feito algo de que o menino
discordava. No sentido real, conversinha poderia ser algo relacionado a uma
conversa sucinta, porém a cenografia mostra que o enunciador está insatisfeito em
relação ao comportamento do cachorro. O termo está cristalizado na sociedade, ter
uma conversinha com alguém pode ser muito penoso em alguns casos. No caso
deste corpus, o intuito era chamar a atenção do cachorro que era muito travesso.
Outro exemplo:
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- Leduína disse que você entrou no quarto dela - começou o menino num tom brando. - E subiu em cima da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova, Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora, o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa fazer essa cara de inocente!...(TELLES, 2007, p. 62)
A palavra carteirinha revela a escolha das palavras que pertencem ao
conhecimento linguístico do enunciador. Martins afirma que: “grande parte dos casos
de diminutivo consiste em acentuar um valor já contido no lexema, ou a atmosfera
lírica de um enunciado.” (MARTINS, 2008, p. 146) Nesse caso, acentuou o valor já
contido na palavra e por meio do conhecimento de mundo Alonso internalizou o uso
do termo e sua adequação em relação ao contexto.
As expressões ou palavras de significado afetivo:
São aquelas, cujo lexema exprime emoção, sentimento, um estado psíquico. O lexema pode receber vogal temática, desinência ou afixo que o atualize como substantivo, adjetivo, verbo ou advérbio, podendo assim haver cognatos emotivos das várias classes de palavras lexicais. (MARTINS, 2008, p. 106)
As repetições no trecho da expressão “se fosse uma carteira nova” mostra a
inquietação de Alonso em relação às travessuras de Biruta, o enunciado repetitivo
busca chamar a atenção do cachorro para uma possível situação de grande conflito
que fugiria do controle do menino, pois precisaria proteger o Biruta de possíveis
castigos.
Alonso mostra também certa irritabilidade, por isso insiste com o mesmo
questionamento como se o cachorro pudesse entender todo o seu desabafo.
Os sinais de pontuação assumem valor expressivo e envolvem o leitor na
cena enunciativa. O ponto de exclamação oferece descontentamento em relação
aos fatos narrados. O ponto de interrogação mostra a ânsia do sujeito em relação ao
entendimento do seu interlocutor, o cachorro. O enunciador Alonso tem consciência
de que o cachorro não responderá, porém insiste nas perguntas com o desejo de
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alertá-lo e se possível desenvolver um bom comportamento no futuro, aliviando
assim possíveis castigos para o Biruta e para si mesmo.
O discurso revela um julgamento de valor em relação ao comportamento
humano:
- Mas por que você escondeu o resto? - perguntou a patroa, aproximando-se - Por que fiquei com medo. Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais. - Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãozinho! Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. “Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal.”. Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos. (TELLES, 2007, p. 63)
O menino foi agredido pela patroa por causa de uma travessura do cachorro
Biruta. A criança sofreu agressões físicas e psicológicas, tudo pelo laço de afeto que
determina a amizade com o cão. Nessa cenografia, o sujeito principal constrói um
julgamento de valor em relação a sua agressora, a patroa. Um comportamento
inadequado, inaceitável para qualquer pessoa, principalmente em relação às
crianças.
A repetição do vocábulo batendo oferece ênfase à agressão cometida pela
patroa ao menino que não mostrava alguma resistência.
O termo piscando mostra uma relação de afeto entre os dois, o menino e o
cachorro, uma maneira de acolher Alonso depois de ser agredido por meio da
linguagem não verbal.
A expressão “Lambeu-lhe as lágrimas, lambeu-lhe as mãos” mostra o afeto na
relação, uma maneira de o Biruta demonstrar ao amigo Alonso que sentira muito e
com essa atitude tentar aliviar as dores sentidas pelo menino. Cúmplices em todas
as situações, sejam elas de tristezas, reveladas neste trecho; ou de alegria, quando
envolvia as brincadeiras dos aliados.
A afetividade é apresentada como item necessário no convívio dos indivíduos.
Em "Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal. Biruta então ganiu
sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos”. (TELLES, 2007, p.
46
64), a afetividade é necessária para o desenvolvimento do indivíduo. Alonso, sujeito
principal, mostra toda a sua consideração em relação ao amigo canino, não
relatando toda a verdade dos fatos que caíam sobre o cachorro Biruta. Quem entre
os adultos já não sentiu o prazer de experimentar uma amizade tão leal? Pois é, no
universo infantil a lealdade é sentida e demonstrada com mais naturalidade.
A adjetivação contribui para revelar o ethos do enunciador. A característica da
expressão do menino é desolada, “Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho
do menino”. (TELLES, 2007, p. 64), revelando assim uma imagem de um sujeito
triste, solitário e inconsolável.
O tom brando encontrado, em “- Leduína disse que você entrou no quarto
dela - começou o menino num tom brando”. (TELLES, 2007, p. 62), revela a
docilidade que envolve o comportamento da criança.
A voz do narrador revela marcas necessárias para a construção da imagem
do enunciador.
Em “(...) arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos.
Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha as mãos de velho”. (TELLES, 2007, p.
64) Os pulsos finos mostram a possibilidade de a criança ser magra, a locução
adjetiva em mãos de velho revela maus tratos - o menino executa trabalhos pesados
para a sua idade.
A adjetivação nos trechos apresentados revela a imagem de Alonso: um
menino que muitas vezes demonstra tristeza porque sofre maus tratos em sua
estrutura familiar e, apesar de toda essa carga negativa, mostra também docilidade
em seu comportamento e troca laços de afeto com o seu cão.
As formas verbais auxiliam nas expressões dos sentimentos do sujeito
principal, em “Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a bacia meteu a
mão na água e espargiu-a no focinho do cachorro”. (TELLES, 2007, p. 64), as
formas verbais do período mostram as brincadeiras que envolviam a relação da
criança com o seu melhor amigo. (ergueu-se, meteu, espargiu-a). Uma cenografia
reveladora do afeto entre o menino e o seu único vínculo de amor naquela estrutura
familiar.
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As escolhas conotativas ganham significados afetivos na relação entre o
menino Alonso e o cachorro Biruta.
Assim, em “- Aproveita, seu bandidinho! - riu-se Alonso. - Aproveita que eu
estou com a mão ocupada, aproveita!”. (TELLES, 2007, p. 65) e “-Eh, Biruta! Está
com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!...” (TELLES, 2007, p. 66),
encontram-se os termos bandidinho e vagabundo ganham um sentido conotativo e
nesses exemplos, o valor é afetuoso. O sujeito utiliza esses recursos para
demonstrar ternura.
De acordo com Martins (2008, p. 85), as palavras depreciativas que
geralmente ganham um valor de insulto em tom de brincadeira envolto de carinho
perdem a agressividade dos termos. O que vai indicar o valor da palavra é a
entoação.
Denotativamente, os termos empregados poderiam ter uma carga
depreciativa, um insulto grave. Nos exemplos dos trechos apresentados os termos
recebem outra carga semântica, pois representam os laços afetuosos que envolvem
as relações entre Alonso e Biruta.
Esses vocábulos mostram uma marca cultural da sociedade brasileira que
geralmente mostra o grau de amizade com palavras depreciativas, porém perdem a
agressividade com o envolvimento afetuoso, geralmente entre homens.
Para Martins (2008, p. 59), a insistência em sons de valor expressivo
apresenta vários sentidos: de reforço, realce, lúdico, harmônico e agradável. “Pode
ser um processo lúdico que crie harmonia e seja agradável ao ouvido.”
Em, “– Eh, Biruta”, a marca da oralidade provoca harmonia no discurso do
enunciador, uma brincadeira revelada pelo uso do da interjeição “Eh”.
O vocábulo madrinha revela a esperança que se desfaz sem justificativas,
uma promessa que não foi cumprida, causando tristeza a Alonso:
- Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moças com uns saquinhos de balas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malha e uma camisa.
48
- Por que ela não ficou com você?
- Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse.
Depois, não sei por que ela não apareceu mais... (TELLES, 2007,66)
O termo madrinha no discurso de Alonso mostra inicialmente a possibilidade
que o menino tanto esperava, a de sair do asilo. Ter alguém que o auxiliasse e
protegesse alguém que pudesse exercer as funções de pais. Nos contos de fadas a
fada-madrinha é uma entidade mágica que protege e atende os desejos dos seus
afilhados. A madrinha que visitava o asilo demonstrava carinho pelo menino, tinha
um olhar de afeto que era transmitido por meio de alguns mimos em forma de
presentes.
As reticências ao término da frase, “Depois, não sei por que ela não apareceu
mais...” (TELLES, 2007, p. 66), mostram uma interrupção em sua fala, revelam
também tristeza. A madrinha não apareceu mais, com essa atitude finaliza um
sonho, a esperança de Alonso de ser acolhido por uma família.
Segundo Martins (2008, p. 87), os sinais de pontuação auxiliam no processo
de entoação que o autor quer transmitir ao leitor, uma pausa, uma queda ou
elevação da voz.
No trecho observado com o discurso direto do enunciador, apresenta-se uma
queda na voz, mostra a emoção regada à melancolia pela decepção que o contexto
provoca, a ausência inexplicável da madrinha.
O trecho a seguir revela a alienação do enunciador Alonso em relação ao
conhecimento de mundo e do contexto familiar em que está inserido:
- Biruta vai adorar a festa! - exclamou assim que entrou na cozinha. - E lá têm doces, têm crianças, ele não quer outra coisa! - Fez uma pausa. Sentou-se. - Hoje tem festa em toda parte, não, Leduína?
A mulher já se preparava para sair.
- Decerto.
Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.
- Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?
49
- Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é
que aquele rei manda prender os três. (TELLES, 2007, p. 68-69)
O enunciado “- Biruta vai adorar a festa!” mostra que Alonso realmente
acredita que a festa será maravilhosa para o cachorro. Justifica dizendo que haverá
doces para satisfazer a necessidade de guloseima e crianças para interagir nas
brincadeiras. Por acreditar, mostra uma alienação em relação ao contexto familiar. O
trecho “- Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?” revela a alienação de
conhecimento de mundo: Alonso não sabe o que o Natal representa para a
sociedade cristã, desconhece os valores que geralmente são transmitidos no núcleo
familiar.
O trecho apresenta a manifestação explícita de proteção que Alonso
demonstra ao cachorro. Compreende as travessuras do Biruta, nesse universo
infantil que deveria ser repleto de alegrias, descobertas e fantasias que lhe foi
negado, o direito de ser criança. O menino assume uma postura adulta para o
cachorro se sentir livre.
Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. (TELLES, 2007, p. 64)
O menino sente-se uma coisa, algo sem valor para aqueles que deveriam
amá-lo e protegê-lo.
O termo criancinha revela a compreensão do menino em relação ao universo
infantil que lhe é negado, porém aceita as normas daquela estrutura familiar que o
acolheu do asilo (local que abrigava órfãos), trata Alonso com indiferença e muitas
vezes com agressões físicas e psicológicas.
Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. (TELLES, 2007, p. 64)
O discurso de Alonso mostra uma inversão do comportamento real, o menino
assume uma postura adulta para o cachorro vivenciar o universo infantil com alegria
e segurança.
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Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pelo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai! (TELLES, 2007, p. 64)
O trecho a seguir apresenta o momento de maior tensão no conto, Biruta é
retirado do convívio com Alonso:
A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. E após vacilar ainda um instante, decidiu-se:
- Olha aqui, se eles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.
- Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai o quê, Leduína?
- Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.
Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca.
A voz era um sopro quase inaudível:
- Não? ..
Ela perturbou-se.
- Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. - Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar...
Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu-¬se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão desmantelado.
Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou-¬se. E estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.
- Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.
Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.
Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração. (TELLES, 2007, p. 70)
51
O questionamento do enunciador mostra a inquietação e descrença mediante
o relato de que Biruta não vai mais voltar. “- Não vai o quê, Leduína?”
O ethos do enunciador observado, Alonso, revela-se repleto de melancolia e
impotência mediante os fatos. Aceita as condições sem contestações, apenas
aceita. Mostra-se também uma criança afetuosa, que brinca, protege e cuida com
carinho do seu único vínculo de afeto naquela estrutura familiar, o cachorro Biruta.
Alonso, uma criança que foi acolhida nos seus primeiros anos de vida em um
orfanato e deseja um lar como todos que ali estão. O corpus não revela a causa,
mostra o desejo do enunciador de se inserir em um contexto familiar, acolhedor e
harmonioso.
Mas não recebe o que queria em relação aos desejos tão esperados. Alonso
foi acolhido em uma estrutura familiar, porém não é tratado como filho, foi tratado
como um auxiliar da empregada nos serviços gerais. Sofre castigos físicos e
psicológicos e, apesar de todo o sofrimento, mostra-se afetuoso com o único vínculo
de troca de carinho naquele lar, o cachorro Biruta, que lhe é retirado por meio de
uma grande farsa elaborada pelos patrões.
O conto finaliza de forma aberta, há a possibilidade de reflexão e de múltiplas
ações que venham a significar conscientização num nível pessoal e social em
relação às crianças brasileiras Um passo para o desenvolvimento de um país
essencialmente principia com os cuidados com as crianças e esses cuidados
envolvem vários aspectos fundamentais, direitos de todo cidadão, como
alimentação, saúde, educação, entre outros. Todos os elementos básicos em uma
estrutura familiar harmoniosa, repleta de amor e compreensão que oferecerão a
base necessária para o desenvolvimento de um ser.
52
3 OS ETHÉ DE KOBOLD E ALONSO: UMA LEITURA
COMPARATIVO – CONTRASTIVA.
Neste capítulo, analisam-se as marcas linguísticas que revelam comparações
e contrastes entre os textos do corpus selecionado. Os contos Anão de Jardim e
Biruta mostram dois enunciadores principais, que se aproximam mediante os
sentimentos e se distanciam por meio da humanização e da coisificação, da
consciência e da alienação.
Kobold e Alonso se assemelham em relação aos sentimentos, ambos sentem
solidão, tristeza e impotência mediante os fatos apresentados. A intertextualidade
também se faz presente, alguns discursos marcam os dois textos, discurso religioso,
mitológico, memória discursiva.
A humanização da coisa do enunciador protagonista, Kobold, no conto Anão
de Jardim, e a coisificação do homem do enunciador protagonista, Alonso, no conto
Biruta. Os textos apresentam os contrastes nos ethé analisados, observando-se a
humanização versus a coisificação e a consciência versus alienação.
Estas semelhanças e diferenças podem ser observadas a partir da
perspectiva da intertextualidade, revelando-se também por meio das marcas
textuais, escolhas linguísticas que fazem parte da estrutura e convidam o leitor à
participação ativa na construção dos sentidos. As significações mudam e provocam
emoções diferentes; no caso do corpus escolhido sensibilizam e provocam
discussões calorosas.
Fairclough afirma:
A representação do discurso é uma forma de intertextualidade na qual partes de outros textos são incorporadas a um texto e explicitamente marcadas como tal, com recursos, com aspas e orações relatadas (por exemplo, “ela disse” ou “Maria afirmou”) (FAIRCLOUGH, 2001, p. 138-139).
53
Os dois textos, Biruta e Anão de Jardim, apresentam elementos que
representam a intertextualidade no corpus escolhido. Há marcas que revelam
discursos religiosos, mitológicos, históricos e conhecimento de mundo, que se
manifestam por meio da construção dos textos. Os sentimentos estão expostos e
representam: tristeza, insatisfações mediante o comportamento de alguns
integrantes da estrutura familiar em que os enunciadores estão inseridos, solidão,
impotência e incapacidade de mudança em relação aos fatos apresentados. Os
sentimentos citados estão presentes nos dois contos.
Seguem algumas contribuições de conceitos sobre intertextualidade que
auxiliarão no processo de identificação das marcas linguísticas dos textos
analisados.
Neste trabalho, entende-se o conceito de intertextualidade:
O conceito de intertextualidade foi introduzido na década de 1960, pela crítica literária francesa Julia Kristeva. Num sentido mais óbvio, o termo pode ser aplicado aos casos célebres em que uma obra literária faz alusão a outra obra literária..”(TRASK (2004) Apud KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2008, p. 13)
Maingueneau, apud Koch; Bentes; Cavalcante (2008, p.14), afirma que “um
discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um
já-dito em relação ao qual toma posição”.
O discurso proferido é elaborado pela construção de todos os outros
discursos que estão presentes nas relações diárias. Mediante a necessidade, o
enunciador se apropria dos discursos já ditos norteados pelas metas que se quer
alcançar com o enunciado.
“o texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente neste ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos que esse contato é um contato dialógico entre textos...” (BAKHTIN (1997) Apud KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2008, p. 16)
O diálogo entre os textos é enriquecedor; assim, torna-os claros e
envolventes.
54
As escolhas linguísticas no trecho selecionado mostram a construção da
imagem do enunciador protagonista e revelam também um dos critérios de
textualização, a intertextualidade que auxiliará na análise.
3.1 Semelhanças
3.1.1 Texto Anão de Jardim: discurso religioso
O enunciador revela os seus desejos, clama por justiça mesmo que para isso
possa pensar em uma situação hipotética, possível apenas na construção da
imaginação de Kobold.
Na hora do julgamento do Cristo Pilatos pede uma bacia d'água, lava as mãos e diz: "Estou inocente do sangue deste justo". Ah! eu queria tanto entrar ali na forma de uma serpente e picar Pôncio Pilatos no calcanhar!” (TELLES, 2009, 107)
O exemplo apresentado mostra marcas de intertextualidade explícita do
discurso religioso.
A intertextualidade será explícita quando, no próprio texto, é feita
menção à fonte do intertexto, isto é, quando um outro texto ou um fragmento é citado, é atribuído a outro enunciador; ou seja, quando é reportado como tendo sido por outro ou por outros generalizados (“ Como diz o povo...” “ segundo os antigos...”). É o caso das citações, referências, menções, resumos, resenhas e traduções. (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2008, p. 28)
O trecho apresenta uma passagem bíblica que retrata uma omissão por parte
de Pilatos, que determina a condenação à morte de Jesus Cristo. “Na hora do
julgamento do Cristo Pilatos pede uma bacia d’água, lava as mãos e diz: “Estou
inocente do sangue deste justo.” O enunciador Kobold mostra o desejo de vingança
movido pelo descontentamento mediante a grande injustiça do mundo para todo
cristão e por meio desse trecho faz uma analogia com a sua história. “Ah! eu queria
tanto entrar ali na forma de uma serpente e picar Pôncio Pilatos no calcanhar!.”
O que realmente Kobold queria era livrar o professor da morte anunciada por
meio de doses de veneno oferecidas pela esposa, Hortênsia.
55
O anão revela por meio do seu discurso os seus posicionamentos. As
escolhas linguísticas nesse trecho estão carregadas de marcas que revelam outros
textos, que são acionados no desenvolvimento da leitura, auxiliando a construção
dos sentidos.
Em, “Não quero ser um anão puritano”. (TELLES, 2009, p. 100), o anão em
relação aos seus posicionamentos sobre questões de sua essência, o anão afirma
que não quer ser puritano. Segundo o dicionário Houaiss o cristianismo atribuía a
expressão puritano àquele indivíduo que era fiel às escrituras, fazia pregação
expositiva, tinha piedade mediante tudo e todos e almejava a santidade na doutrina
religiosa. Não era esse mérito que Kobold almejava, não mostrava desejos em
alcançar a santidade, mostrava desejos de observar comportamentos mais humanos
em relação aos integrantes da família que ele acompanhava do jardim, local que o
recebeu e foi cenário do seu fim.
Já em, “(...) não estou pedindo santos”. (TELLES, 2009, p. 100), a escolha da
palavra santo mostra a crença do cristianismo católico referindo-se ao indivíduo que
tenha feito uma obra admirável. O enunciador não pede a santidade para a
humanidade, quer apenas um comportamento aceitável para a convivência entre os
seres humanos.
A intertextualidade implícita ocorre “quando se introduz, no próprio texto,
intertexto alheio, sem qualquer menção explícita da fonte, com o objetivo quer de
seguir-lhe a orientação argumentativa.” (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2008, p.
30)
O discurso religioso se manifesta por meio da prece repleta de emoções:
Pai nosso que estais no céu com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outu / bro. (TELLES, 2009, p. 108)
A oração do enunciador principal traz uma menção à crença religiosa de que
existe um Deus que nos protege de todos os males e alivia as nossas dores. Assim,
conhecedores do seu poder, aceitamos a sua vontade quando não podemos alterá-
56
la. A imagem do enunciador revela-se por meio dos seus dogmas. Kobold crer e
clama por uma mudança, porém percebe que infelizmente, diante da picareta em
punho, não há como escapar; resignado, cumpre o seu destino.
Em relação à intertextualidade estilística, Koch; Bentes; Cavalcante (2008, p.
19) faz as seguintes considerações:
Descartamos a possibilidade de existência de uma intertextualidade apenas de forma, como por vezes se costuma postular, já que defendemos a posição de que toda forma necessariamente emoldura, enforma determinado conteúdo, de determinada maneira. A intertextualidade estilística ocorre, por exemplo, quando o produtor do texto, com objetivos variados, repete, imita, parodia certos estilos ou variedades linguísticas: são comuns os textos que reproduzem a linguagem bíblica, um jargão profissional, um dialeto, o estilo de um determinado gênero, autor ou segmento da sociedade. (grifo do autor)
O trecho selecionado do corpus revela a imitação da oração que é conhecida
por toda a sociedade, o Pai Nosso. A intertextualidade estilística mostra-se por meio
da linguagem bíblica, um estilo que geralmente sensibiliza e emociona, pois mostra
dogmas que são princípios das bases de toda estrutura religiosa, demonstrando,
assim, o ethos religioso.
3.1.2 Texto Anão de Jardim: discurso mitológico
A intertextualidade implícita mostra-se por meio do discurso mitológico, em
“(...) afinal, não estou pedindo heróis”. (TELLES, 2009, p. 100). O herói é destemido,
luta com garra para defender aquilo em que acredita ou auxilia alguém que precise,
íntegro por excelência, reúne atributos necessários para superar de forma
excepcional qualquer dificuldade apresentada em seu cotidiano. Para os gregos, o
herói aproxima-se do semideus. Os discursos mitológicos e históricos mostram-se
presentes na enunciação. O herói no legado histórico tem um valor muito
significativo na construção e na significação da identidade de um povo.
O trecho mostra o discurso mitológico em diálogo com traços astrológicos que
complementavam a cenografia em, “(...) deuses o inscreveram no Zodíaco, lá está o
Signo do Escorpião o Scorpio”. (TELLES, 2009, p. 100).
57
O discurso mitológico mostra-se quando o enunciador remete aos deuses. O
discurso astrológico revela-se com a menção ao zodíaco que também ganha
significações com os signos.
O enunciador clama pela vida, e assume o desespero quando convoca o
auxílio de forças poderosas em seu socorro. Não há um critério, a união das crenças
apresenta-se em prol do pedido em forma de uma oração.
3.1.3 Texto: Anão de Jardim: memória discursiva e conhecimento de mundo.
A Intertextualidade implícita ocorre em, “(...) mas dentre esses machos e
fêmeas, quais deles serão ao menos limpos? Dê um passo à frente aquele que
conseguir escapar da agressividade num mundo onde a marca (principal) é a da
violência. Pois é, as crianças”. (TELLES, 2009, p. 99)
O conhecimento de mundo e ideologias presentes no enunciado são aspectos
norteadores para o leitor observar outras falas na estrutura apresentada. O
enunciador Kobold não fala das crianças como nós estamos acostumados, ele
apresenta um comportamento inadequado, marcado pela violência. Alguns podem
mostrar rejeição em relação ao discurso proferido e levantar questionamentos tais
como: Como pode falar de criaturas tão amáveis? Ele está falando realmente das
crianças?
O sujeito está revelando o comportamento dos indivíduos em nossa
sociedade e as crianças não estão imunes a esta contaminação: as condutas
inaceitáveis na observação do comportamento na sociedade. Assim, o enunciador
vai revelando com o discurso traços de sua imagem, um ser indignado com o
comportamento de uma sociedade marcada pela violência, que não deseja a
santidade, tampouco grandes feitos heroicos. Crítico e consciente, mostra suas
reflexões com o seu discurso.
O conhecimento de mundo mostra a Kobold um momento de perigo, a
finalização de sua existência.
Em, “(...) e o demolidor jovem está aqui junto de mim”, o vocábulo demolidor
retrata a força, o poder maior que age sobre uma criatura mais fraca. Naquele
58
momento o enunciador tem a consciência de que, mesmo sendo de pedra, não vai
poder alterar o fim trágico que se aproxima, ele sabe que o seu adversário o
destruirá, por isso desespera-se, e por meio da oração suplica pela vida.
Marcuschi (2008) afirma que não há textos isolados, portanto existe
intertextualidade em todos os textos. Em algum aspecto o texto observado vai
apresentar questões que marcam ligações explícitas ou implícitas com outros textos.
O dicionário de análise do discurso (2008, p. 228) expõe a intertextualidade
como relação explícita ou implícita que um texto tem com outros textos.
3.1.4 Texto: Anão de Jardim: tristeza, solidão e impotência mediante os fatos
As marcas linguísticas apresentadas revelam tristeza, solidão e impotência
mediante os fatos que o sujeito principal, Kobold, observa como testemunha
impassível.
O excerto mostra a solidão que é imposta ao enunciador. A escolha verbal
debandaram expressa o estado de abandono em que o anão se encontra.
Debandaram todos. Eu fiquei. Eu e o violoncelo esquecido e apodrecendo lá no canto”. (TELLES, 2009, p.102).
Além da limitação da sua estrutura, Kobold experimenta a prisão do conflito
interior que o atormenta.
Fiquei como um homem que é prisioneiro de si mesmo no seu invólucro de carne, a diferença é que o homem pode se movimentar e eu estou fincado no lugar onde me depositaram e esqueceram. (TELLES, 2009, p. 102)
A forma verbal fiquei representa solidão que o leva à tristeza. O enunciador
demonstra nesta cenografia uma situação momentânea com a significação da
escolha verbal, porém revela permanência, pois não há uma superação, ninguém
voltou para retirá-lo, assim, foi esquecido.
O trecho revela a impotência mediante os fatos observados pelo enunciador:
59
Presenciei, assisti como testemunha impassível (na aparência) ao que vagarosa ou apressadamente foi se desenrolando (ou enrolando) em redor, tantos acontecimentos com gentes. Com bichos. Mas tudo já acabou, as pessoas, os bichos, desapareceram todos. (TELLES, 2009, p. 101)
O vocábulo presenciei mostra que o enunciador observa os fatos. A escolha
lexical de assisti revela que Kobold vê, acompanha, porém não pode interferir em
nada. É um espectador que não conseguiu demonstrar emoções.
Kobold não tinha nenhum poder para intervir nos acontecimentos e nessa
situação é passivo, apenas observa em sua estrutura limitada, ele não tinha meios
de alterar os fatos presenciados.
3.1.5 Texto Biruta: discurso religioso
As duas citações selecionadas apresentam contribuições que relatam a maior
festa cristã, o Natal.
“- Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho? - Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é que aquele rei manda prender os três.” (TELLES, 2007, p. 69)
“Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.” (TELLES, 2007, p. 65)
A celebração do Natal é uma manifestação da crença cristã. Toda
denominação religiosa que acredita em Jesus Cristo como filho de Deus, que viveu
um período como homem mortal, com os sentimentos e necessidades humanas,
acredita também que nesse dia é a maior festa da família, repleta de emoções que
alimentam a alma. As famílias desejam a união, transmitem amor em pequenos
gestos e compartilham emoções com entes queridos.
A intertextualidade se revela por meio da citação explícita da grande festa
cristã, o Natal.
O trecho do conto apresenta uma cena que sensibiliza o leitor, até mesmo os
corações mais duros. Uma criança sozinha em uma noite tão significativa para a
família provoca reflexões que inquietam as mentes. O contexto revela uma estrutura
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familiar que retirou uma criança do asilo, porém o menino não recebeu o tratamento
esperado, que seria um ambiente de amor e proteção dos pais adotivos. A família
em questão tratava o órfão como um auxiliar nas atividades domésticas. Laços de
afeto não existiam naquelas relações, por isso sensibiliza os leitores e provoca
questões. Como uma família pode deixar uma criança sozinha na noite de Natal?
O ethos do enunciador observado, Alonso, revela-se repleto de melancolia e
impotência mediante a cena. Aceita as condições sem contestações, apenas aceita.
Talvez esta aparente aceitação do trecho selecionado venha da falta de
conhecimento que o enunciador revela quando confunde parte do legado histórico
religioso. Realmente ele desconhece a grandeza da celebração.
3.1.6 Texto Biruta: memória discursiva e conhecimento de mundo.
A intertextualidade auxiliará na análise do conto Biruta que apresenta marcas
explícitas e implícitas que podem ser identificadas através da observação, da
memória discursiva e do conhecimento de mundo do leitor.
Em, “Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãozinho!” (TELLES, 2007, p.
63), o termo asilo neste enunciado traz o significado de orfanato, onde crianças
permanecem sob os cuidados de uma instituição e, por mais estruturadas que
sejam, não substituem a necessidade do indivíduo de viver em um lar, cercado de
condições que desenvolvam aspectos necessários e que contribuam para formar
pessoas seguras, afetuosas e participativas em sociedade. A intertextualidade da
palavra asilo mostra o conhecimento de mundo e manifesta o seu significado por
meio da memória discursiva.
Nesse momento, o narrador constrói o texto e representa-o com a construção
da memória do enunciador principal, o menino órfão, que sofria agressões físicas e
psicológicas naquela família.
Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas
mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais. !”(TELLES, 2007, p. 63)
61
A imagem do enunciador revela-se repleta de sofrimento. Dores físicas e
psicológicas invadem a vida do menino Alonso que passa a desenvolver vínculos de
afeto com o seu cachorro Biruta.
“- Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal. Biruta então ganiu
sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.” Com essa ação,
lamber as mãos, o cachorro mostra que realmente sente muito e tenta amenizar as
dores sentidas pelo menino.
3.1.7 Texto Biruta: tristeza, solidão e impotência mediante os fatos
As marcas linguísticas apresentadas revelam tristeza, solidão e impotência
mediante os fatos do sujeito principal, o menino Alonso.
- Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moças com uns saquinhos de balas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malha e uma camisa.
- Por que ela não ficou com você?
- Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...
. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno a vasilha. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas “a madrinha". Inutilmente a procurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de presentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo! (TELLES, 2007, 66)
O sujeito principal revela tristeza em seu discurso direto, esperou a madrinha
que não retornou. Assim, evolui o sentimento que o entristece e provoca dor.
O silêncio mostra o descontentamento em relação à situação que o sujeito
principal revela, discordava da situação, porém em sua quietude guardava em seu
interior as mazelas da vida que lhe fora oferecida.
Revela-se um ethos repleto de tristeza e dor, o trecho é apresentado pelo
narrador que não participa da cena, apenas narra um fluxo da consciência do
62
enunciador que mantinha uma interação com o cachorro Biruta, único vínculo afetivo
da criança naquele lar.
Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar. (TELLES, 2007,63)
Esse trecho apresenta o drama pessoal do enunciador Alonso, as mãos
corajosamente abertas revela a maturidade forçada pelas circunstâncias. O menino
se ausenta da posição que deveria ocupar (ser criança) para mostrar uma postura
adulta em relação à situação. Assume uma culpa que não é sua para proteger o
cachorro, seu melhor amigo. “Biruta estava lá deitado bem em cima do travesseiro,
com a posta de carne entre as patas, comendo tranquilamente.” (TELLES, 2007, p.
63) Essa foi a travessura do Biruta que tirou lágrimas de Alonso, pois recebeu
castigos físicos praticados pela patroa.
O excerto revela uma tristeza tão intensa que paralisa o enunciador, com a
apresentação do seu discurso e a descrição da cenografia explanada.
- Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.
Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.
Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração. (TELLES, 2007, p. 70)
O momento de maior tensão no corpus revela a solidão, a dor e a impotência
mediante a situação revelada, o menino sofre com a ausência do seu melhor amigo
que de forma cruel foi-lhe retirado do convívio. A repetição do vocábulo ”Biruta”
mostra que o enunciador ainda não acredita que o cachorro não vai mais voltar,
chama-o como se ele pudesse ouvi-lo, escutar os seus pensamentos, quem sabe
ser guiado pelo desejo de Alonso. O estado de choque do enunciador é
experimentado na cenografia apresentada no trecho selecionado. A expressão
“como se quisesse enterrá-la no coração”, representa o luto que o menino sentia
com aquela ausência, principalmente os vocábulos enterrá-la, um luto simbólico que
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representava a tristeza que o envolvia, uma perda significativa e aparentemente
para o momento insubstituível.
Revela também um momento de incertezas sobre o futuro. Como Alonso
sobreviverá a essa situação? O leitor também entra em um processo de buscas, e
os questionamentos se tornam presentes. Por ser uma obra aberta, provoca
reflexões, norteadas pelo desejo de um mundo melhor para todos.
3.2 Contrastes
A seguir apresentam-se as análises que demonstram os contrastes entre os
dois contos selecionados.
3.2.1Texto Anão de Jardim: humanização
No conto Anão de Jardim, analisa-se a humanização da coisa, um anão de
jardim que apresenta as características humanas em uma narrativa fantástica
envolvente. O enunciador, narrador protagonista, sente como o humano e
experimenta sentimentos que o aproximam do complexo universo humano.
Os trechos seguintes mostram marcas de humanização da coisa:
A data na qual fui modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota mas esse detalhe não interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve vigorar também para os anões de jardim, sou um anão de jardim. (TELLES, 2009, p. 99)
Nesse trecho observa-se o discurso do enunciador que toma posse das
características humanas e expõe a constituição de sua aparência. O discurso revela
a condição humana. O anão abandona o estado de inércia de objeto inanimado e
alcança o domínio da comunicação, fatos aceitáveis no texto literário. Os fatos reais
não aceitam como possível, porém é bem aceito nas narrativas ficcionais.
O excerto apresenta uma cena da narrativa que causa uma tensão excessiva
no sujeito principal. A coisa passa a ser humano revelando indignação em relação à
conduta observada.
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Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, te matando! Minha indignação foi tão violenta que senti nessa hora que alguma coisa em mim estava se rompendo, foi excessivo o esforço que fiz para me movimentar. Ele continuou imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois levantou-se com dificuldade, chegou a se apoiar no violoncelo que quase tombou num gemido, Blom!... Vai chover, Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se cambaleando em direção a casa eu tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A chuva se anunciou num raio que varou o teto do caramanchão. Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e acabou por golpear a pedra? Não sei, mas sei que foi nessa noite que se abriu esta rachadura sem sangue e sem dor. (TELLES, 2009, p. 104-105)
A humanização mostra-se por meio do fluxo da consciência do anão. Um
acontecimento que causou sofrimento mediante a impotência do enunciador. Os
elementos: “Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e acabou
por golpear a pedra? Não sei, mas sei que foi nessa noite que se abriu esta
rachadura sem sangue e sem dor.” O enunciador mostra-se confuso em relação ao
que realmente provocou a rachadura em seu peito, o raio ou a dor? A dor que
Kobold sentiu foi tão intensa que causou a dúvida. “Rachadura sem sangue e sem
dor” marcam o paradoxo do sofrimento causado pela atitude desonesta e brutal da
esposa em relação ao marido, que é vítima de envenenamento. As marcas
linguísticas não esclarecem a certeza da causa, porém permitem aceitar que a
indignação provocou um sofrimento exacerbado, que se pode assemelhar a uma
rachadura, não há como aliviar a dor do humano, e já não há interesse em restaurar
a coisa, anão de jardim, pois o único membro da família estava sendo assassinado,
o personagem professor.
Os sentimentos do enunciador são apresentados com censura mediante o
comportamento inadequado de um membro daquela família. Uma explosão de
emoções que se fecha no indivíduo, ele não consegue exteriorizar, por isso se
rompe, não consegue alterar o fato observado. Rompe-se por dentro porque a sua
estrutura é limitada.
Outra contribuição na busca de exemplificar a humanização da coisa: “Sei
que esta essência (alma?) que me habitou tantos anos não vai agora se esfarelar
como a pedra, sei que vou continuar, mas onde?” (TELLES, 2009, p.107)
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A humanização revela-se pelo substantivo alma. Acredita-se em nossa cultura
que apenas os humanos possuem alma. O anão apresenta uma consciência clara
dos acontecimentos, porém duvidosa na questão da continuação de uma existência.
Um conflito da nossa sociedade, gerado pelo fluxo da consciência. Em relação à
existência, as certezas caminham com as múltiplas crenças e dogmas existentes.
Há também a inversão da posição que o enunciador ocupa na maioria das
cenografias, agora aquele que era coisa e se apropria das características humanas,
fato observado pelo próprio enunciador e pelo leitor passa a ser coisa sem valor. “Eu
e o violoncelo esquecido e apodrecendo lá no canto”. (TELLES, 2009, p.102). Os
vocábulos esquecido e apodrecendo mostram que tanto o anão de jardim quanto o
violoncelo não têm valor algum para ninguém. O esquecer de algo ou alguém pode
ser involuntário ou proposital e, no conto, as marcas levam a acreditar que é
intencional, pois não há relatos de alguém que tivesse interesse por eles, exceto o
professor, porém esse não podia mais desejar, foi-se apagando lentamente com as
doses de veneno oferecidas por Hortênsia. O apodrecer pode ser um processo
longo, sofrido e muitas vezes incômodo para aqueles que observam - deteriorar-se é
o fim de uma existência.
3.2.2Texto Biruta: Marcas da coisificação
No conto Biruta, analisa-se a coisificação do homem, uma criança que é
retirada de um orfanato por uma família que deveria protegê-lo e amá-lo, porém
trata-o com indiferença, como coisa. O enunciador protagonista sente-se só. O único
vínculo de afeto do menino é o cachorro, Biruta, que por crueldade é retirado do seu
convívio. Essa narrativa pode sensibilizar um pouco mais, pois apresenta o
sofrimento de uma criança.
Segundo o dicionário Houaiss, coisificar é tornar parecido com uma coisa;
reduzir o homem e sua consciência a coisa.
As citações seguintes mostram marcas da coisificação do homem:
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Olhaí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno. Mas só eu vou jantar? - surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo. Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho. (TELLES, 2007, p. 65)
O trecho permite inferir um humano sendo tratado como uma coisa, a criança
ficará sozinha na noite de Natal, uma atitude desumana. Os seres humanos se
humanizam diariamente com a troca de afeto e atitudes de respeito perante o outro,
um comportamento ético é o que se espera dos relacionamentos em sociedade.
Quando alguém desqualifica, ignora, trata como coisa, assim o humano passa a ser
coisa.
O trecho selecionado permite a inferência da humanização do cachorro
Biruta:
Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças? (TELLES, 2007, p. 64)
O termo criança no discurso do enunciador Alonso aproxima muito Biruta do
universo infantil, caracteriza-o como se realmente ele fosse uma criança e essa
certeza vem da relação que o menino mantém com o seu melhor amigo: oferece-lhe
proteção, compreende bem as necessidades dele e acredita que as brincadeiras
soltas, repletas de alegria, fazem parte do processo natural para o desenvolvimento
saudável e fantástico que todos os pequenos deveriam experimentar. Alonso
humaniza o cachorro e defende essa posição de direitos para o Biruta, mesmo que
para isso esqueça que também é criança, porém, por sentir o processo inverso, a
coisificação do homem, intensifica essa conquista para o seu melhor amigo, embora
não tenha ninguém na narrativa que lhe proporcione de forma direta ou indireta o
direito de vivenciar a infância.
Neste capítulo, comparações e contrastes são apresentados nos dois textos
selecionados.
Os contos se aproximam por meio dos sentimentos manifestados e pela
intertextualidade, vários discursos dialogam com a necessidade de expor reflexões
presentes dos dois enunciadores, tanto no conto Anão de Jardim quanto no conto
Biruta.
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Os textos se distanciam com a representação da humanização da coisa, do
conto Anão de Jardim, com o enunciador Kobold, e pela coisificação do humano,
com o enunciador Alonso.
O contraste também se manifesta em relação à posição que os enunciadores
ocupam na sociedade.
O enunciador Kobold mostra-se consciente mediante os fatos decorridos no
conto, posiciona-se de forma crítica e assume assim o seu discurso. O enunciador
Alonso apresenta certo desconhecimento mediante o mundo, por isso ocupa um
espaço pouco favorecido na sociedade, do ser alienado e esquecido, abandonado
como um objeto sem valor.
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CONCLUSÃO
O estudo desenvolvido apresenta uma análise estilística na busca de revelar
a construção da imagem dos enunciadores principais do corpus selecionado, Biruta
e Anão de Jardim, de Lygia Fagundes Telles.
Além do ethos revelado, as escolhas lexicais abrem um leque de
possibilidades. Todos esses elementos, segundo Eco, são mecanismos que são
acionados para a máquina texto funcionar de forma plena e significativa. Eco (2004)
utiliza o termo “Bosque” como metáfora para o texto narrativo, já que em um bosque
não há apenas uma única trilha. Portanto o leitor tem a oportunidade de múltiplas
escolhas. Neste trabalho, o conhecimento de mundo é ativado por conhecimentos
prévios e, no conto analisado, há inúmeras possibilidades de temas para reflexão e
conscientização do leitor.
O entrelaçamento das escolhas lexicais sugere a expressividade resultante do
processo de constituição dos sentidos inerentes à tessitura textual por meio de
formas nominais, expressões populares, formas verbais.
Essas escolhas, também, caracterizam os enunciadores principais, mostram
sentimentos que os aproximam, tais como: solidão, tristeza e a incapacidade
mediante os fatos vivenciados -, e compartilham também os discursos religiosos e
mitológicos, que bebem nas fontes das crenças religiosas e no legado da mitologia.
A intertextualidade dialoga com o discurso religioso, o discurso mitológico, a
memória discursiva e o conhecimento de mundo, demonstrando quais posições os
referidos enunciadores ocupam nas cenografias apresentada, Kobold demonstra
consciência em relação ao todo que o envolve em sua estrutura limitada; observa o
comportamento humano que é abominável aos seus olhos; deseja e chama pela
vida, não importando a forma escolhida para existir. Alonso, por sua vez, demonstra
alienação em relação à existência e ao conhecimento do mundo.
A divergência entre os textos caminha também em processos de
transformações.
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O ethos do enunciador Kobold no conto Anão de Jardim revela-se de forma
consciente, mediante as suas observações, diante das suas limitações e preso a
uma estrutura, anão de pedra, experimenta os sentimentos plenamente. Critica as
atitudes inadequadas dos indivíduos daquele meio familiar. Tenta inutilmente evitar
um assassinato, porém não há da parte dele comunicação com outras pessoas, sua
consciência no conto, como humano, é fruto do fluxo interior, numa reflexão
constante que se desenvolve quando Kobold se manifesta como enunciador
principal, narra em primeira pessoa e, por isso, assume a responsabilidade do seu
discurso, fato possível por meio da personificação que oferece características
humanas a seres inanimados. Além de sua insatisfação em relação ao
comportamento humano, mostra-se triste e impotente, porém aprecia a vida de
forma sublime, quer continuar a existir, não importa a forma, a luta é pela vida.
Finaliza uma existência clamando pela oportunidade de vivenciar outro momento
pleno, em outro tempo, em outro espaço, quem sabe em outra forma mais livre. A
coisa sente, deseja, mostra-se, suplica e sonha, torna-se humano, assim, Kobold,
um objeto inanimado se apropria das características humanas. Assim, torna-se
humano no processo de humanização da coisa.
O ethos do enunciador Alonso no conto Biruta revela-se de forma
inconsciente em relação a si, às pessoas que o cercam e aos acontecimentos da
sociedade e do mundo. Essa alienação é resultado do próprio meio em que a
criança se inseriu - um órfão que deseja o que a maioria das crianças necessitam
para se desenvolverem, mas não é isso que lhe é oferecido. Alonso é acolhido num
grupo familiar que o trata como auxiliar dos serviços domésticos. Nesse momento é
privado de alguns direitos: à educação, à saúde, ao convívio com familiares que
possam oferecer amor, afeto e proteção. O único vínculo de troca de afeto o menino
o tem com o cachorro Biruta, assumindo a postura de adulto em certos momentos
para protegê-lo em seu universo semelhante ao infantil. Alonso deixa de ser criança
para seu cachorro vivenciar o que lhe foi negado, a infância. Revela-se uma imagem
triste em alguns momentos e impotente mediante os acontecimentos. É tratado
como coisa, mas não se expressa como coisa, assim, revela-se um fenômeno
inaceitável e real para a sociedade, a coisificação do homem, assim, Alonso, um
menino órfão é tratado como se fosse um objeto sem valor, torna-se coisa no
processo de coisificação do homem.
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A humanização da coisa no conto Anão de Jardim e a coisificação do homem
no conto Biruta refletem o cotidiano, que é facilmente observado na convivência em
sociedade.
A análise dos ethé dos enunciadores nos corpus busca uma reflexão
consciente dos fatos apresentados. Por meio da observação do comportamento
humano e da construção da imagem pode-se refletir sobre melhores condutas,
mesmo que a observação seja de um comportamento vil.
Outro aspecto observado é a valorização inversa, quando o homem oferece
valor extremo a algo que é supérfluo. O que realmente tem valor? O que é
importante? A sociedade realmente é imediatista? Estamos vivendo a era dos
descartáveis para tudo e todos? Aparência ou essência? Todas as questões
sugeridas provocam reflexões profundas, quiçá futuras conscientizações.
O afeto também é tópico do corpus selecionado, pois o ser humano necessita
do desenvolvimento do afeto em suas relações: vive-se em sociedade, portanto o
outro é muito importante.
Essas discussões não têm fórmulas nem roteiros rígidos com estruturas
definidas, surgirão mediadas pelas experiências e pela necessidade de
humanização que toda sociedade organizada e justa julga ser importante.
O texto literário observado, conto cumpre as funções esperadas, oferece
prazer, humaniza, desperta a curiosidade, apresenta costumes, tira o homem do
caos e conquista os leitores pelo encantamento.
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Anexo A
Anão de Jardim
Lygia Fagundes Telles
A data na qual fui modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota mas
esse detalhe não interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve
vigorar também para os anões de jardim, sou um anão de jardim. Não de gesso
como pensava a Marieta, Esse anão de gesso é muito feio, ela disse quando me viu.
Sou feio mas sou de pedra e do tamanho de um anão de verdade com aquela
roupeta meio idiota das ilustrações das histórias tradicionais, a carapuça. A larga
jaqueta fechada por um cinto e as calças colantes com as botinhas pontudas, de
cano curto. A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão
sério. As crianças (poucas) que me viram não acharam a menor graça em mim.
Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um menino de olhar
dissimulado, fugidio. Então eu pensei aqui com os meus botões (não tenho botões)
que quando ele for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou
bastante satisfeito. Não agrado as crianças e nem espero mesmo agradar essas
sementes em geral ruins, com aqueles defeitos de origem somados aos vícios que
acabam vindo com o tempo. Quais desses pequeninos modelados pela vulgaridade
dos pais vão chegar à plenitude de seres honestos? Verdadeiros? Não quero ser um
anão puritano, afinal, não estou pedindo heróis, não estou pedindo santos mas
dentre esses machos e fêmeas, quais deles serão ao menos limpos? De um passo à
frente aquele que conseguir escapar da agressividade num mundo onde a marca
(principal) é a da violência. Pois é, as crianças. Não tive melhor impressão dos
adultos, pelo menos dos habitantes dessa casa. Tirante o Professor (bom e bobo)
pude ver (por dentro) a sedutora Hortênsia que desde o começo desconfiou de mim,
Não parece um anão filosofante? Prefiro os anões inocentes, ela disse. Então a
Marieta riu com seu hipócrita lábio leporino, É um anão de gesso, Professor? Não dá
sorte, resmungou. Ele não respondeu, tinha o cachimbo no canto da boca e estava
ocupado em me instalar mais confortavelmente entre os tufos de samambaia e
próximo da cadeira onde vinha se sentar para tocar o seu violoncelo. Pois é, os
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adultos. A saltitante Hortensia matou (devagar) o Professor com doses (mínimas) de
arsênico dissolvido no chá-mate. Não era melhor a chantagista Marieta que vestia as
roupas da patroa quando ela viajava e dava beijos estalados no focinho do Miguel
para depois aplicar-lhe os maiores pontapés quando não via ninguém por perto.
Falei em Miguel, um vira-lata que Hortênsia achou na rua quando voltava do
encontro com o amante, ela ficava generosa depois desses encontros, recolheu o
Miguel com suas pulgas e numa outra noite recolheu o gato no qual botou o nome
de Adolfo. Esse sempre foi sagaz como a própria dona mas ainda assim eu o
preferia ao Miguel que era superficial, confiado, na primeira vez em que me viu
levantou a perna e mijou na minha bota.
Fui feito de uma pedra bastante resistente mas há um limite, meu nariz está
carcomido e carcomidas as pontas destes dedos que seguram o meu pequeno
cachimbo. E me pergunto agora, se eu fosse um anão de carne e osso não estaria
(nesta altura) com estas mesmas gretas? Nem são gretas mas furos enegrecidos
como os furos dos carunchos, a erosão. Tanto tempo exposto aos ventos, às
chuvas. E ao sol. Tudo somado, nesta minha vida onde não há vida (normal) o que
me restou foi apenas isto, juntar as lembranças do que vi sem olhos de ver e do que
ouvi sem ouvidos de ouvir. Presenciei, assisti como testemunha impassível (na
aparência) ao que vagarosa ou apressadamente foi se desenrolando (ou enrolando)
em redor, tantos acontecimentos com gentes. Com bichos. Mas tudo já acabou, as
pessoas, os bichos, desapareceram todos. Fiquei só dentro de um caramanchão em
meio a um jardim abandonado. Pela porta (porta?) deste caramanchão em ruínas
vejo a casa que está sendo demolida, resta pouco dessa antiga casa. Quando ainda
estava inteira havia em torno uma espécie de auréola, não eram as pessoas mas
era a casa que tinha essa auréola mais intensa nas tardes de céu azul. E em certas
noites claras, quando em redor dela se formava aquele mesmo halo luminoso que
há em redor da lua. Agora há apenas névoa. Pó. A morte lenta (e opaca) da casa
exposta vai se arrastando demais, os dois operários demolidores são vagarosos
(preguiçosos) e estão sempre deixando de lado as picaretas para um jogo de cartas
com uma cerveja debaixo do teto que ainda resta. Falei na auréola da casa. Esse
suave halo também surpreendi (às vezes) em redor da cabeça do Professor mas
isso foi nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor no seu
violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. Mas assim que a distraída Hortênsia
(fazia a distraída) começou a executar seu plano para herdar esta casa (e outras),
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assim que começou a esquecer (era esquecida) as tais pequenas doses de veneno
na caneca do chá-mate, a carne já envelhecida (setenta anos) do Professor
começou a ficar mais triste. E o halo foi se apagando até desaparecer
completamente. O Professor, Hortensia e Marieta. O Professor tocava seu violoncelo
e sonhava até que interrompeu (ou continuou?) o sonho debaixo da terra. Hortênsia,
a (falsa) distraída podia ter ido embora simplesmente com seu amante corretor de
imóveis mas e a herança? Na última vez em que apareceu aqui no caramanchão
teve um olhar pensativo para o violoncelo lá no canto. Voltou o olhar para mim e
disse como se eu tivesse lhe pedido satisfações, Depois eu volto para levar. Não
voltou. Saiu com seu passinho curto e o seu espelho e o seu gozo. Depois de tão
longa temporada com um músico velho, só um corretor tão jovem quanto voraz,
foram cúmplices no crime. Será que o tempo (o remorso) vai um dia corroer as
delicadas entranhas de Hortensia como corroeu a minha cara? Fico às vezes me
perguntando por que a Marieta me irritava ainda mais do que a própria assassina
que pelo menos sabia o que queria e fez (bem) o que planejou. Mas a Marieta-
Alcoviteira era uma estúpida, chantageou (mal)a patroa e só não foi além porque
mediu a força da outra e teve medo, recuou. Habilmente, Hortensia se desfez dela,
mandou-a cozinhar em outra freguesia até o dia em que ela mesma for cozinhada no
fogo do inferno. Os bichos? Adolfo, o gato, assim que desconfiou que as coisas por
aqui não andavam brilhantes, fez sua valise e tomou rumo ignorado, sempre foi
misterioso. Continua em algum lugar com o seu mistério. Miguel, o cachorro, era
superficial mas esperto, quando viu o navio afundando, saiu correndo e foi se
aboletar com os móveis no caminhão da mudança e de lá ninguém conseguiu tirá-lo,
o que fez a Marieta perder o fôlego de tanto rir quando avisou à patroa que o Miguel
já tinha ido na frente esperar por ela na nova casa. O triunfo da impunidade.
Debandaram todos. Eu fiquei. Eu e o violoncelo esquecido e apodrecendo lá
no canto. A madeira do caramanchão também apodreceu debaixo das trepadeiras
ressequidas, um dia os homens da demolição entraram aqui para fazer suas
avaliações. Olharam o violoncelo, bateram com os nós dos dedos na madeira, Será
que isso vai render alguma grana? o mais velho perguntou. O outro fez uma careta,
Apanhou muita chuva, não serve nem para o fogo, disse e botou a mão no meu
ombro. E este anão rachado? Deixa este por minha conta que eu acabo com ele.
Saíram e ficou o silêncio murmurejando no jardim. Uma aranha cinzenta desceu e foi
tecer sua teia entre as grossas cordas do violoncelo mas as cordas já estavam
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fracas e como se a teia pesasse, foram estourando aos poucos, tóim. Tóim. Então a
aranha abandonou a casa musical, deve estar por aí com os insetos e outros
bichinhos que continuam fazendo (e desfazendo) os seus negócios. Volto às minhas
lembranças que foram se acumulando no meu eu lá de dentro, em camadas, feito
poeira. Invento (de vez em quando) o que é sempre melhor do que o nada que nem
chega a ser nada porque meu coração pulsante diz EU SOU EU SOU EU SOU. Meu
peito (rachado) continua oco. A não ser um ou outro inseto (formiga) que se
aventura por esta fresta, não há nada aqui dentro e contudo ouço o coração
pulsante repetir e repetir EU SOU. Fiquei como um homem que é prisioneiro de si
mesmo no seu invólucro de carne, a diferença é que o homem pode se movimentar
e eu estou fincado no lugar onde me depositaram e esqueceram. Até ser removido.
Ou destruído, o que vai acontecer logo, os demolidores estão chegando à última
parede da casa. Logo eles virão com as picaretas nesta direção, já disse que o mais
jovem (e mais forte) me escolheu. E até que esses operários sabem fingir eficiência,
a pressa porque apressado mesmo é o corretor-amante, ontem ele andou por aqui.
Deu suas ordens com a maior ênfase, está impaciente, o terreno é grande e está
localizado num bairro elegante, quer fazer logo o negócio. Quando foi embora no
seu belo carro, fiquei olhando o jardim com sua folhagem desgrenhada enfrentando
bravamente o capim furioso. Um jardim selvagem mas fácil de abater, trabalho vai
dar a figueira-brava com suas raízes agarradas à terra, se descabela às vezes
quando fica em pânico. Mas antes será a vez deste caramanchão e eu aqui dentro.
Meu avô também era meio arrogante, me disse o Professor certa noite, E riu seu riso
breve, nesse tempo ainda ria. É com arrogância que agora espero a morte? Não
tenho medo, não tenho o menor medo e essa é outra diferença importante entre um
anão de pedra e um homem, a carne é que sofre o temor e tremor mas meu corpo é
insensível, sensível é esta habitante que se chama alma. Falei em alma, seria ela
um simples feixe de memórias? Memórias desordenadas, obscuras. Tudo assim
esfumado como um sonho entremeado de fantasmas, seria isso? Não sei, sei
apenas que esta alma vai continuar não mais neste corpo rachado mas em algum
outro corpo que Deus vai me destinar, Ele sabe. E agora me lembro da noite em que
este peito rachou feito uma casca de ovo: Hortênsia entrou aqui trazendo um
pratinho de biscoitos e a caneca fumegante de chá-mate. Deixou a bandeja na
mesinha e fez um ligeiro afago na cabeça do Professor que estava abraçado ao
violoncelo mas com as mãos descansando frouxas sobre as cordas. Ela voltou para
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mim o olhar buliçoso, E como vai o anão filosofante? Um dia vou tapar os seus
ouvidos com duas bolinhas de algodão, ela disse rindo. E levou a caneca ao
Professor, Toma logo, querido, assim vai esfriar! Foi quando meu peito pareceu
intumescido, inchado, era tamanha a minha fúria e asco, quis saltar e jogar longe
aquela caneca, Não beba isso! O que eu teria lhe transmitido nesse instante para
que ela tivesse aquela reação estranha? Ficou de costas, afastou-se. Ele pegou a
caneca, soprou a fumaça e tomou um largo gole como um viciado em veneno. Teve
um sorriso descorado quando me indicou com a mão que segurava a caneca, Deixa
o Kobold com seus ouvidos, preciso de um ouvinte assim severo. Fechei os olhos
(olhos?) para não vê-lo beber o resto do chá. Vou jogar no clube, ela avisou ao sair
toda saltitante, andava às vezes feito um passarinho. Ah, não vá deixar de tomar sua
sopa, já avisei a Marieta. Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo
até faze-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, te matando! Minha
indignação foi tão violenta que senti nessa hora que alguma coisa em mim estava se
rompendo, foi excessivo o esforço que fiz para me movimentar. Ele continuou
imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois levantou-se com dificuldade, chegou
a se apoiar no violoncelo que quase tombou num gemido, Blom!... Vai chover,
Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se cambaleando em direção à casa eu
tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A chuva se anunciou num raio que varou o
teto do caramanchão. Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e
acabou por golpear a pedra? Não sei, mas sei que foi nessa noite que se abriu esta
rachadura sem sangue e sem dor. Então as formigas foram subindo pelo meu corpo
e vieram (em fila indiana) me examinar. Entraram pela fresta, bisbilhotaram o
avesso da pedra e depois saíram obedecendo a mesma formação, além de
disciplinada a formiga é curiosa e essa curiosidade é que a faz eterna.
Kobold. Pois Kobold foi o nome que o Professor me deu, ele estava num
antiquário quando me descobriu de repente no fundo penumbroso de uma das salas.
Achou graça em mim (nesse tempo ainda ria) e disse ao vendedor que eu era muito
parecido com seu avô chamado Kobold, o avô tinha o mesmo nariz de batatinha, a
pele toda enrugada e esse jeito pretensioso de juiz que julga mas não admite ser
julgado. Inclinou-se para me examinar e pareceu agradavelmente surpreendido,
Esse anão tem um furinho lá dentro do ouvido como as imagens dos deuses
chineses para ouvir melhor as preces. Não vai ouvir preces mas o meu violoncelo,
ele avisou ao me instalar no chão arenoso do caramanchão, entre dois tufos de
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samambaia. Sua música era boa? Era ruim? Não sei e nem ele ficou sabendo, esse
meu dono era tão fraco que não teve nem forças para cumprir sua vocação, não
tomava notas ou então rabiscava desordenadamente as composições em folhas que
acabava perdendo e a Marieta jogava no lixo. Tocava o violoncelo horas seguidas
(blom, blom, blom) refugiado ali no verde do caramanchão fechado pelas trepadeiras
e nesses momentos parecia (vagamente) feliz. E agora me lembro, quando um sabiá
veio cantar na figueira, ele se encantou e acabaram ambos fazendo um dueto,o
sabiá soltava seus gorjeios agudos e o violoncelo respondia com sons tão graves
que pareciam vir das profundezas da terra. Me lembro ainda que ele lamentou um
dia, Que pena, o sabiá foi embora. Numa tarde em que Hortênsia chegou com a
manta para cobrir-lhe os pés (fazia frio), surpreendeu-o falando sozinho e fingiu
zangar-se, Não quero que fale sozinho, querido, isso é coisa de velho! Ele suspirou,
Mas eu sou velho. E defendeu-se em seguida. Não estou falando sozinho, estou
falando com o Kobold. Mas isso já faz muito tempo, ela era amante do banqueiro
com quem ia para a Europa, acho que não pensava (ainda) em assassinar o
Professor. Nessa época ele estava de cama com bronquite e era aqui no
caramanchão que ela vinha telefonar para o amante. Trazia o pequeno telefone
dentro da sacola de lona vermelha e ficava fazendo suas ligações secretas. Quando
não conseguia comunicar-se com ele (era casado) mandava a Marieta levar-lhe os
bilhetes. Aqui ela teve a notícia da morte do banqueiro e pela palidez que vi em sua
face (sempre corada) pude bem imaginar o quanto ele era rico. Vieram em seguida
os outros amantes, demorou um certo tempo para conhecer o corretor que acabou
seu cúmplice. Pelas conversas (em código) que chegavam (às vezes) ao auge da
discussão, deu bem para perceber que ele queria recuar, deve ter tido medo. Mas
quando esse tipo de mulher mete uma coisa na cabeça, vai mesmo até o fim.
A diferença foi que dessa vez a mensageira Marieta (que já devia estar
chantageando) ficou completamente de fora.
Amanheceu. Ontem, os homens derrubaram o último muro e hoje será a vez
do caramanchão, ouvi os dois combinando, a figueira vai ficar para depois. Deixa o
anão comigo, o mais jovem lembrou e fez um gesto obsceno. Tenho pouco tempo.
Sei que esta essência (alma?) que me habitou tantos anos não vai agora se
esfarelar como a pedra, sei que vou continuar, mas onde? Reconheço que sou mal-
humorado, intolerante, não devo ter sido um bom parceiro nem de mim mesmo nem
dos outros, não me amei e nem amei o próximo. Mas convivendo com esse próximo
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eu poderia ser diferente? Tanta ambição, tanta vaidade. Tanta mentira. O Professor
era delicado, manso de coração mas não era irritante com a sua mornidão? A
bondade sem a coragem, sem a energia, ele nem dava pena, dava até raiva. Dos
outros, desses não quero nem falar, tenho pouco tempo, confesso que não fui
mesmo compassivo e assim ainda ouso sonhar com uma outra vida porque sempre
sonhei (e ainda sonho) com Deus. Então peço isto, queria servi-lo na ativa, quero
lutar com o amor que sou capaz de ter e não tive, queria ser um guerreiro, não um
discípulo-espectador mas um discípulo-guerreiro, me pergunto até hoje como
aqueles lá permitiram a crucificação de Jesus Cristo. Eu sei do seu desencanto
diante deste mundo que ficou ruim demais e ainda assim estou pedindo, quero lutar,
me de um corpo! Imploro o inferno do corpo (e o gozo) que inferno maior eu conheci
aqui empedrado. Na hora do julgamento do Cristo Pilatos pede uma bacia d'água,
lava as mãos e diz: "Estou inocente do sangue deste justo". Ah! eu queria tanto
entrar ali na forma de uma serpente e picar Pôncio Pilatos no calcanhar!
As vozes dos demolidores estão mais nítidas, um deles parou para arregaçar
as mangas da camisa, vai acender um cigarro. Baixo o olhar e vejo um escorpião
que saiu de debaixo da pedra e se aproximou até parar interrogativo diante do bico
da minha bota. Sei que é o último bicho que vejo, nenhum medo nem dele nem da
morte mas agora é diferente, estou ansioso, ansioso, ah! se pudesse compreende-
lo, mas escorpião não precisa de compreensão, precisa de amor. Tem a cor da
palha seca e a cauda erguida, está com a cauda em gomos sempre erguida no alto
e em posição de dardo, o veneno na ponta aguda, é um lutador pronto para se
defender. Ou atacar. Avançou mais e as pinças dianteiras que sondam e informam -
as pinças se imobilizaram endurecidas no ar. A cauda (rabo) erguida e pronta para o
combate se ele pressentir que minha bota vai avançar. Aí está o taciturno habitante
das cavidades. Das sombras. E me lembro de repente, vi certa tarde um casal
(macho e fêmea) passeando de mãos dadas, é possível? mas vi o casal sair de
mãos dadas sob o sol que se escondia, também eles se escondendo.
Os homens estão parados na entrada do caramanchão e combinam um jogo
para mais tarde, o mais velho parece satisfeito, o trabalho está praticamente
terminado. O escorpião já fugiu com seu dardo aceso, as pinças altas no alerta,
escondeu-se. A tática. Um ser odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses
o inscreveram no Zodíaco, lá está o Signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der
essa mínima forma eu aceito, quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho
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em qualquer tempo espaço e o demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso
que estais no céu com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com
todas as suas estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a
Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da
grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outu/bro.
TELLES, Lygia Fagundes. A Noite Escura e Mais Eu: Contos / São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
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ANEXO B
Biruta
Lygia Fagundes Telles
Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava com
dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus
bracinhos finos.
- Biruta, eh, Biruta! - chamou sem se voltar.
O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino e branco, uma orelha em pé
e a outra completamente caída.
- Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma conversinha - disse Alonso pousando a
bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a
lavar os pratos.
Biruta sentou-se muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a
direita, ora para a esquerda, como se quisesse apreender melhor as palavras do seu
dono. A orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra empinou, aguda e
ereta. Entre elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida do esforço
de meditação.
- Leduína disse que você entrou no quarto dela - começou o menino num tom
brando. - E subiu em cima da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma
carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou
muito. Mas se fosse uma carteira nova, Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga
agora, o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava
uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou
a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa
fazer essa cara de inocente!...
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Biruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patas e baixou a orelha. Agora, ambas
as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu
olhar interrogativo parecia perguntar:
"Mas o que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de nada..."
- Lembra sim senhor! E não adianta ficar aí com essa cara de doente, que não
acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! - repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos.
Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos
finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha as mãos de velho
- Alonso, anda ligeiro com essa louça! - gritou Leduína, aparecendo por um
momento na janela da cozinha. - Já está escurecendo, tenho que sair!
- Já vou indo - respondeu o menino enquanto removia a água da boca. Voltou-se
para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não
se emendava, por quê? Por que razão não se esforçava um pouco para ser
melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente. Leduína também. Biruta fez isso,
Biruta fez aquilo...
Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne.
Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os
pastéis, "Alonso, você não viu onde deixei a carne?" Ele estremeceu. Biruta!
Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro
num velho colchão metido num ângulo de parede. Biruta estava lá deitado bem em
cima do travesseiro, com a posta de carne entre as patas, comendo tranquilamente.
Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha.
Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne
desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, "o
que é que eu faço, dona Zulu?"
Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os
cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que
a envolvia e entrou com a posta na mão
- Está aqui Leduína.
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- Mas falta um pedaço!
- Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e
aproveitei quando você foi na quitanda.
- Mas por que você escondeu o resto? - perguntou a patroa, aproximando-se
- Por que fiquei com medo.
Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos
corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo
vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não
pudesse parar mais.
- Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãzinho!
Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho
entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. "Biruta, Biruta, apanhei por
sua causa, mas não faz mal."
Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.
Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de
Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?
- Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?
Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.
- Por que você não arrebenta minhas coisas? - prosseguiu o menino elevado a voz.
- Você sabe que tem todas as minhas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou
presente de Natal, está acabado. Você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai
ver!...
Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda
enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida, calou-se, esperando qualquer
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reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo.
Biruta dormia profundamente.
Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso?
Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva
dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva
de crianças?
Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. "Por que dona Zulu
tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem
com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas
duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma
criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique
um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar
lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!"
- Alonso! - Era a voz de Leduína. - Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia.
Já está quase noite, menino.
Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a bacia meteu a mão na
água e espargiu-a no focinho do cachorro.
- Chega de dormir, seu vagabundo!
Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas
dianteiras, num longo espreguiçamento.
O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos,
mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu
avental.
- Aproveita, seu bandidinho! - riu-se Alonso. - Aproveita que eu estou com a mão
ocupada, aproveita!
Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas
Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.
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- Aí, Leduína que o Biruta judiou de mim!...
A empregada pôs-se guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola
com batatas:
- Olhaí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.
- Mas só eu vou jantar? - surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.
- Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa.
Você vai jantar sozinho.
Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olhinhos
brilharam no escuro: Biruta estava lá. Alonso suspirou. Era bom quando Biruta
resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia. Tinha então a certeza de que não
estava acontecendo nada. A
trégua. Voltou-se para Leduína.
- O que o seu filho vai ganhar?
- Um cavalinho - disse a mulher. A voz suavizou. - Quando ele acordar amanhã, vai
encontrar o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentado que queria um
cavalinho, que queria um cavalinho...
Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.
- Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moças com uns saquinhos de balas e
roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar
de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malha e uma
camisa.
- Por que ela não ficou com você?
- Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não
apareceu mais...
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Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em
torno a vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma
expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo?
Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas “
a madrinha". Inutilmente a procurava entre as moças que apareciam no fim do ano
com os pacotes de presentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da
festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!
"... O bom jesus é quem nos traz
A mensagem de amor e alegria"...
- Também é muita responsabilidade tirar crianças para criar! - disse Leduína
desamarrando o avental. - Já chega os que a gente tem...
Alonso baixou o olhar. E de repente sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro
pelo rabo. Riu-se:
-Eh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!... Sabe, Leduína,
Biruta também vai ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu
travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma
bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora dele não vai precisar mais morder
suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nada, sabe
Leduína?
- Hoje cedo ele não esteve no quarto da dona Zulu?
O menino empalideceu.
- Só se foi na hora em que fui lavar o automóvel... Por que Leduína? Por quê? Que
foi que aconteceu?
Ela hesitou. E encolheu os ombros.
- Nada. Perguntei à toa.
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A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco.
Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava sorridente. O menino sorriu também.
- Ainda não foi pra sua festa, Leduína? - perguntou a moça num tom afável.
Abotoava os punhos do vestido de renda. - Pensei que você já estivesse saído... - E
antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: - Então?
Preparando seu jantarzinho?
O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não
sabia o que dizer.
- O Biruta está limpo, não está? - Prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer
uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e
escondeu-se debaixo do fogão.
Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:
- Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... - Voltou-se para a
patroa. E sorriu desculpando-se: - Até de mim ele se esconde.
A mulher passou mão no ombro do menino:
- Vou a uma festa onde tem um menino assim do seu tamanho. Ele adora
cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O
pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só
por hoje, não empresta? O automóvel já está na porta. Ponha ele lá que já estamos
de saída.
O rosto do menino resplandeceu num sorriso. Mas então era isso?!... Dona Zulu
pedido o Biruta emprestado, precisando do Biruta!... Abriu a boca para dizer-lhe que
sim, que o Biruta estava limpinho, e que ficaria contente de emprestá-lo para o
menino doente, estava muito contente com isso... Mas sem dar-lhe tempo de
responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.
- Viu, Biruta? Você vai numa festa- exclamou Alonso, beijando repetidas vezes o
focinho do cachorro. - Você vai numa festa, seu sem-vergonha! Numa festa com
crianças, com doces.com tudo! Mas pelo amor de Deus, tenha juízo, nada de
90
desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te
esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato ... - acrescentou num
sussurro, com a boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata. - Te
espero acordado, Biru ... Mas não demore muito!
O patrão já estava na direção do carro. Alonso aproximou-se.
- O Biruta, doutor...
O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.
- Está bem, está bem. Pode deixá-lo ai atrás.
Alonso ainda beijou furtivamente o focinho do cachorro. Em seguida, fez•lhe uma
última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.
- Biruta vai adorar a festa! - exclamou assim que entrou na cozinha. - E lá tem
doces, tem crianças, ele não quer outra coisa! - Fez uma pausa. Sentou-se. - Hoje
tem festa em toda parte, não, Leduina?
A mulher já se preparava para sair.
- Decerto.
Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.
- Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?
- Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é
que aquele rei manda prender os três.
Alonso concentrou-se, apreensivo:
- Sabe, Leduina, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia
com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois!... - Riu-se
metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruido do carro que
já saia. - Dona Zulu estava linda, não?
91
- Estava.
- E tão boazinha também. Você não achou que hoje ela estava boazinha?
- Estava, estava muito boazinha, sim... - concordou a empregada. E riu-se.
- Por que você está rindo?
- Nada - respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta. Mas antes, parecia
querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.
Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a preocupava.
- Sabe, Leduína, você não precisa dizer para Dona Zulu que ele mordeu sua
carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele, ele não vai fazer mais isso nunca mais,
eu prometo que não.
A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. E após vacilar
ainda um instante, decidiu-se:
- Olha aqui, se eles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela
mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.
- Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu
com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai
o quê, Leduína?
- Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que
estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha,
enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não
queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e
mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia
sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e
depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa
do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É
melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.
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Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca.
A voz era um sopro quase inaudível:
- Não? ..
Ela perturbou-se.
- Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. -
Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar...
Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de
velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu-¬se à garagem. A porta de ferro estava
erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão
desmantelado.
Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio
encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou-¬se. E estendeu a mão tateante. Tirou
debaixo do travesseiro uma bola de borracha.
- Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se
moveram e não saiu som algum.
Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.
Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração.
_________
Conto extraído de: TELLES, Lygia Fagundes. Histórias escolhidas. São Paulo: Boa
Leitura Editora, 1961.
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APÊNDICE
Um caso de amor com o conto.
O conto tem várias facetas, ora fantástico, ora intimista ou em qualquer
classificação, chega sem pedir licença e envolve o leitor em seu emaranhado. Não há
como escapar, não adianta fugir. Esse gênero é muito forte, intenso e muitas vezes
arrebatador, não resista. A decisão mais sensata é se entregar a esse estado de
contemplação.
Vamos abrir a caixa de pandora às avessas
Primeiro, mantenha o contato visual ininterruptamente por algumas horas.
Compreenda os sinais.
Observe seus sentimentos, sinta também sua dor, sua alegria, prove da paixão
que queima e do amor que acalma o espírito. Você vai conseguir. Tente.
Pronto, estou envolvida, prendi a respiração e mergulhei neste mar, ainda não
sei o que vou encontrar, tenho medo, mas não é nada que possa me paralisar, meu
coração bate fora do compasso, passo minutos neste estado de euforia e de repente
sinto os batimentos em harmonia e a respiração suave, acordada experimento a
leveza do quase sono, pisco os olhos e algo me desperta.
Vejo um anão de jardim, sozinho com uma fisionomia séria, um observador
implacável, nada passa despercebido diante do seu olhar. Aproximo-me sem ser
vista e algo fantástico me encanta e sento próximo ao caramanchão. O anão está
contando uma história, mas para quem? Ele não pode me ver, será um desabafo?
Vou ouvir.
Ele fala sobre a sua estrutura, um sujeito de pedra, forte e seguro de suas
convicções sobre tudo e todos. Sua aparência é semelhante aos anões que nós
temos como base das lendas, fábulas e contos de fadas.
O anão não está feliz, observa o comportamento humano e abomina a conduta
desses classificados humanos. Mas o que restou para eles de humanos? Quase
nada, pequenos vestígios passageiros, fagulhas, partículas quase não observadas.
94
A criatura lendária está inquieta, até as crianças não escapam das suas
críticas severas, afinal elas costumam imitar o comportamento dos adultos.
Aproximo-me como o vento e como não posso ser vista, chego bem perto. Fico
pensativa. Um anão de jardim de pedra que pensa, sente emoções, e mostra-se
impotente para modificar os fatos?
A coisa toma posse das características humanas, torna-se humano, limitado
em sua estrutura, mas com a consciência plena, e o fluxo dos pensamentos em
ebulição. Compadeço-me do seu sofrimento, quero minimizar sua dor, acalentá-lo no
meu colo, porém minha condição semelhante ao vento impedem as ações, por isso
danço sem parar para provocar uma brisa ao menos suave em sua volta.
O anão já não aguentava mais assistir de forma pacífica as atitudes
inadequadas de alguns membros daquela família, falsidade, inveja e até um
assassinato. Todos foram embora, e a coisa que experimentou o universo humano
passa a ser coisa diante do braço do demolidor com a picareta em punho.
Chorei, não sentindo piedade da criatura, mas com a emoção aflorada de pura
admiração, parabéns pela coragem, amigo.
Mergulho novamente. Agora mais reflexiva, meus batimentos cardíacos estão
suaves, momentaneamente, porque a cena que vi mexeu e abalou a minha estrutura,
e o meu coração acelera com a minha indignação, cenas repulsivas que dividirei com
todos vocês.
Uma criança aparentemente alegre brincando com o seu cachorro em um
quintal, a farra é interrompida por uma voz chamando para o trabalho, alguns
serviços domésticos que ele dividia com a empregada. Esse menino não estuda, e
não experimentou ainda o amor de pais protetores e amáveis. Não há consciência de
sua realidade muito menos em relação ao mundo.
A relação de afeto é sentida com o seu único melhor amigo, o cachorro
travesso. Chega ao ponto de abrir mão da sua condição de criança para
experimentar as obrigações adultas, tudo em prol da proteção que ele oferecia ao
amigo.
Por essa amizade sofreu castigos físicos e psicológicos, mesmo assim é
abandonado sozinho na residência que morava com aquele casal que teve a
crueldade de deixar o menino em uma noite de natal sem o seu melhor amigo, que
não voltará. Agora observo um humano sendo tratado como coisa, sem valor, apenas
coisa. Como vento que sou, aproximei-me da criança e abracei a sua dor, beijei as
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suas lágrimas e tentei levar a sua tristeza para outra dimensão. Acredito que não tive
sucesso, porque ainda visualizo nesta sociedade crueldade, abandono, falta de amor
e maus tratos a nossas crianças. Deixo a minha pequena parcela para futuras
grandes mudanças, refletindo sobre todos esses itens. Quem sabe alcançaremos
uma consciência das relações humanas.
Sheyla Santos
(Baseado nos contos Anão de Jardim e Biruta, de Lygia Fagundes Telles.)